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Betânia Uchoa
EDITORIAL
Brasília é um marco da arquitetura brasileira
Brasília passada a limpo
O
s 30 anos da morte do presidente Juscelino Kubitschek estão sendo comemorados este ano em grande estilo, incluindo uma minissérie levada ao ar pela TV Globo e lançamento de biografias. JK soube encarnar o período de transformações porque passava o Brasil no rastro da política de industrialização de Getúlio Vargas. Período em que a sociedade brasileira adquiriria sua feição urbana, encerrando definitivamente o mito do “país essencialmente agrário”. O símbolo desta época é Brasília, a nova capital erguida no tempo recorde de três anos e 10 meses no Planalto Central brasileiro. É esse aspecto da era JK que focalizamos nesta edição, observando os resultados, quase meio século depois, da ousadia urbana saída das pranchetas do urbanista Lucio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer, com a colaboração imprescindível do engenheiro e poeta pernambucano Joaquim Cardozo. Marco da arquitetura brasileira, Brasília foi o mais abrangente e volumoso experimento do modernismo mundial, citada obrigatoriamente em todo catálogo arquitetônico. A grande obra, entretanto, não esteve infensa à crítica, especialmente em relação ao fracasso da sua utopia igualitária,
ao separar pobres (expelidos para as cidades-satélites) e ricos (confortavelmente instalados no padrão de primeiro mundo do plano piloto). A matéria de capa desta edição – da lavra das professoras Sônia Marques e Maria Betânia Uchoa Cavalcanti-Brendle – passa a limpo a história dessa grande obra, com o distanciamento permitido pelo tempo e a serenidade resultante da observação empírica. Para completar, o escritor Fernando Monteiro brinda os leitores com um fragmento do roteiro inédito do filme que Alberto Cavalcanti pensou fazer sobre Brasília. Outro tema abordado nesta edição é o fim dos “ismos”. Após uma vertiginosa sucessão de movimentos de vanguarda, ocorrida na primeira metade do século 20 – Impressionismo, Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, Construtivismo, Abstracionismo, Surrealismo, Dadaísmo, Futurismo, Minimalismo, Concretismo e Neoconcretismo, entre outros –, que resultou em inegáveis conquistas na linguagem das artes em geral, na atual era pós-moderna, em que tudo é permitido e reciclado, as vanguardas parecem ter perdido ímpeto e função. É o que debatem um jornalista cultural, um crítico de arte e um professor universitário. • Continente abril 2006
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Divulgação
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CONTEÚDO Reprodução
12 Brasília, símbolo de um Brasil novo
38 O erotismo
segundo a arte popular
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Eduardo Coutinho, o mestre do documentário sensível
54 Os mistérios do sucesso da Paixão de Cristo de
CAPA
Nova Jerusalém 59 Agenda Cênicas
12 Brasília, símbolo da utopia modernista 17 O papel de Joaquim Cardozo na construção 18 Um canto do cisne estético da nossa arquitetura 21 O filme que não foi feito por Alberto Cavalcanti
LITERATURA 24 A obra de John Donne e os perigos da crítica incondicional 28 Uma visão sem idolatrias da arte de Shakespeare 30 Os 40 anos de poesia de Alberto da Cunha Melo 32 Agenda Livros
ARTES 38 O erotismo dos artistas populares 44 Agenda Artes
CINEMA 46 Documentário faz painel desolador sobre comunidades africanas 50 A Máquina mistura signos da pós-modernidade às tradições populares
Continente abril 2006
ESPECIAL 64 Estragos causados pelas ideologias criam vacina contra “ismos” 68 Arte contemporânea prescinde de vanguardismos 71 Retomada da vanguarda é fundamental para criticar o capitalismo global
MÚSICA 76 Nos 250 anos de Mozart, novas interpretações e releituras de sua vasta obra
81 Agenda Música
ANTROPOLOGIA 82 Arte da capoeira está na moda em todo o mundo
PERFIL 86 O ativismo cultural multifacetado de Jomard Muniz de Britto
TRADIÇÕES 91 O improviso dos poetas populares do México
Divulgação
CONTEÚDO
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Re pro du ção
76 Aos 250 anos, a
atualidade de Mozart
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No cinema, A Máquina une o pós-moderno e a tradição
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 As novas gerações e sua necessidade do divino
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 Pesquisa destrói dois mitos sobre a leitura no Brasil
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 42 A radicalidade e a coragem de inovar de Lygia Clark
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 60 Bacalhau com cabeça é mesmo coisa muito rara
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 63 Monteiro Lobato, o escritor que amava as crianças
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 94 Duas versões sobre Caetano Veloso no carnaval do Recife
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 96 Josué Montello – a viagem do decano de nossas letras Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente abril 2006
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CONVERSA
EDUARDO COUTINHO
“Não sou gênio coisa nenhuma” Diretor simbolo do documentário nacional fala sobre sua carreira e sua última obra cinematográfica Ricardo Paiva
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cineasta Eduardo Coutinho esteve no Recife para lançar no Cinema da Fundaj sua última realização, o documentário O Fim e O Princípio (2005), que é junto de Santo Forte o trabalho mais pessoal do cineasta, símbolo do documentário nacional. Ele criou uma forma de documentário repleta de conversas e interação, que reitera a idéia de que os personagens escolhidos para suas entrevistas são colaboradores fundamentais do documentário. Além do filme Cabra Marcado para Morrer (feito durante a ditadura e censurado, só finalizado e lançado em 1985), obra-pprima do autor, Coutinho ainda dirigiu os excelentes Teodorico, Imperador do Sertão (1978), Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (1999) e Edifício Master (2002). Em O Fim e O Princípio, de novo como um amigo perguntador (porém nunca invasivo), Eduardo Coutinho se permite de forma inédita participar de toda dialógica de um de seus filmes mais pessoais e colhe preciosidades da palavra falada de um povo de traços marcados pelo tempo. Personagens, em sua maioria de 70 e 90 anos, que na tela retratam as belas peles da ancestralidade.
cumentário brasileiro. Que análise você faz de sua importância? Eu não tenho idade para ficar deslumbrado com elogios. Na verdade, eu considero Cabra Marcado para Morrer, sim, uma obra importante, falo nela até na terceira pessoa, mas eu acho que voltei a fazer filmes como Santo Forte, que é um filme que muito me satisfaz. Eu acho que tinha que fazer, só poderia fazer daquela forma e falava da palavra, do valor dela. Depois de Cabra Marcado, só em Santo Forte é que as pessoas voltaram a falar de marco, reinvenção. Porém, também tem quem fale que o gênero que eu talvez influencie, com muitas entrevistas centradas nos personagens, tenha criado uma má influência.
É difícil a tarefa de criticar e você não gosta de falar sobre obras alheias. Mas, no geral, quais devem ser afinal os elementos principais a nortear um bom documentário e quais as falhas da produção de hoje? Quando você tem certo prestígio, cria-sse um mito e isso foge do controle da pessoa. Mas, mesmo que em meus filmes tenha improviso, não é simples. Há nos filmes uma técnica, as pessoas sabem o que falam, como falam, existe certa pesquisa e é feito um traA sua forma de filmar é ciosa de um certo tempo balho. É falso eu ser regra para alguém, cada um tem e edição, por essas características você marcou o do- um valor, uma biografia. Eu cito um filme especial
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Leonardo Aversa/Ag. O Globo
CONVERSA “ O ideal é você dominar a técnica para esquecer da técnica”
para mim, o Santo Forte, por exemplo, pois nele acreditei como nunca no que estava fazendo, porque são 30 anos de cinema, foram 10 anos de leitura sobre o tema, não é olhar e achar que é fácil de fazer. Então, o ideal é você dominar a técnica para esquecer da técnica. O documentário que, em especial, é um desafio, sempre foi marcado por filmes feitos com pequenas equipes, nunca foi indústria. Então é lídima essa reverência que os mais novos realizadores têm ao elogiar sua sensibilidade e capacidade de improviso? Não sei. Eu acho que me preparo e essa sensibilidade deve acontecer. Basicamente, o documentário sempre foi e tem que continuar sendo livre. Existem as duas pontas da coisa, é como se o que me interessasse fosse o miolo. O intelectual pode erigir conceitos, nós podemos ter informações e buscar avaliações – são válidos. Mas, em algumas horas, o que há é apenas a vida. Eu filmei certa vez no lixão; as pessoas que lá estavam, tinham que conviver com o dia-a-dia; seria um erro e indelicadeza perguntar: Como você vive mal ou como você se sente em viver tão mal aqui? Ou que aquilo é um escândalo. O prático para aquele povo é que o mundo aí está posto todo o dia e ele tem que enfrentar essa batalha. Continente abril 2006
Exato. Eu tenho que encarar que aquilo é o dia-a-dia, minha câmera vai captar aquilo, por mais que tenha me feito mal. Foi a mais difícil filmagem que fiz e só consegui vivenciar aquelas pessoas sofrendo, catando lixo, a partir do terceiro dia. Mas eu tinha que considerar que aqueles seres humanos têm aquela vida e colocar perguntas que não o situassem como se estivessem no inferno. Porque justamente dessa forma respeitosa, sem ser caridosa, faço com que eles compartilhem mais as verdades. Na produção de seu novo documentário, O Fim e O Princípio, ficou decidido que o filme seria uma busca – sem pauta e perfis pré-cconcebidos – apenas sobre personagens que estivessem distantes da urbe. O filme difere de seus outros documentários em quê? Por que parece ser o seu mais pessoal? O Fim e O Princípio e Santo Forte são especiais pelos temas, palavra e pessoas, pois não são meus mundos. E não que queira viver no Sertão. Mas o que está no filme e em minhas obras são as histórias das pessoas, o microcosmo e o particular que falam muito e alcançam profundidade lá na frente. Não sei se é uma sensibilidade especial, não sou gênio coisa nenhuma, mas acho que as pessoas podem falar sobre esse mérito, então. Que é meu tanto quanto dos meus pesquisadores, de uma equipe. O preparo em documentários, que é uma coisa diferenciada
Imagens: Divulgação/Video Filmes
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CONVERSA sabe que, ali, naquele filme, era para ser assim. É um belo filme e veio antes da crise. Eu não sei se faria, a questão é que eu não teria a vontade e dedicação para essa obra, mas ele é fundamental, muito válido, tinha que ser feito e é importantíssimo. No entanto, eu me interesso, atualmente, com essa curiosidade e paixão pelo indivíduo mais comum. O homem comum. E eu estabeleço as Quais as influências, tanto documentais quanto fic- relações com pessoas comuns, mas o Entreatos também cionais, cinematográficas e as fontes literárias do cinema tem que existir. de Eduardo Coutinho? Elas são decisivas ou mais intuitivas? O que tem ressonância, hoje, no Eduardo Coutinho Elas existem. Hoje, os documentários de fora são de cinéfilo? Como você vê a geração de documentaristas difícil acesso, eu assisti muito em outras épocas. Eu ad- talentosos no cinema nacional de nomes como o próprio miro alguma coisa do Jean Rouch. E o documentário João Moreira Salles, o Paulo Sacramento. E o que julga interessante hoje na ficção do cinema nacional? Cabra Marcado para Morrer : um clássico do O João Moreira Salles é um documentário nacional grande cineasta, O filme pernambucano Cinema, Aspirinas e Urubus é notável, é impressionante que um rapaz relativamente jovem tenha a maturidade e percepção que ele teve, não existem maneirismos, ornamentos, exibicionismo, o Marcelo filmou aqueles dois homens e foi muito preciso. É só aquele lugar, aquele universo, partindo daquela realidade e espectro – e ele chega num resultado que é um filme que admiro muito, de muito valor. pela liberdade, dá ainda mais liberdade. A pessoa pode incorrer no erro de fazer um filme militante. O documentário é uma prática que deve ser livre ao mesmo tempo que seja um artesanato. Cabe o improviso, mas use-se esse diferencial a seu favor, pois de que vale fazer um filme que se sabe onde vai chegar?
nacional está, sim, com novos valores. Eu prefiro documentários sem recorrer muito a fotos de arquivo, sem buscar por recursos que não a entrevista, imagens e filmagens do presente. Na sua obra, especialmente em seu último trabalho, O Fim e O Princípio, os entrevistados estão muito à vontade e o filme sempre funciona. É mérito do entrevistador ou das pessoas simples, que não representam como um Lula filmado no Entreatos do João Moreira Salles? Não. É mais complexo. O Entreatos é muito bem feito, ele teve uma paciência enorme para manejar toda a equipe, técnica e realização para acompanhar toda a campanha de Lula em 2002. O João teve, como sempre, sua delicadeza, ele não pergunta, é um dos poucos que
Os dois filmes, nesse sentido de simplicidade, por serem histórias universais e centradas no homem, são mais eficientes no retrato do mundo? Pois, se tudo é política, em O Fim e O Princípio e em Cinema, Aspirinas e Urubus existe outra forma mais litúrgica de política, a do indivíduo. Exato, mas não no sentido pobre e infeliz no uso moderno do termo. A política é o que o sujeito faz com a vida, o que come, como exerce sua cidadania, a forma que se relaciona com as mulheres, os filhos, o mundo, suas reflexões. No cotidiano, temos política, muitas coisas dão sentido ao mundo. É difícil dar sentido ao mundo. E são essas coisas da vida, imanentes, que ficam, elas é que me interessam. O Fim e O Princípio termina com as pessoas à mesa, almoçando, a vida continua, pessoas vão nascer, vai entrar progresso, vão persistir desigualdades, mas depois a mesa fica vazia. E a vida continua. • Continente abril 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Abril | 2006 Ano 06
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Sara Correia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Karolina Melo e Renata Bezerra de Melo Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente abril 2006
Capa: Detalhe da fachada do Teatro Nacional, em Brasília Foto: Ricardo Labastier
Colaboradores desta edição: ALFREDO BOSI é professor da USP e crítico literário. ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. ANTONIO CICERO é poeta, filósofo e autor de A Cidade e os Livros, entre outros. ARTUR
DE
ATAÍDE é graduado em Letras.
ARTHUR AGUIAR é jornalista. BETÂNIA UCHOA CAVALCANTI-BRENDLE é arquiteta e PhD em História e Desenho Urbano pela Oxford Brookes University CAMILLE MARC DUMOULIÉ é professor de literatura comparada na Universidade de Paris X-Nanterre e autor de livros sobre literatura e filosofia. DANIEL PIZA é editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e escritor. EDUARDO MAIA é jornalista e mestrando em Teoria da Literatura. FERNANDO COCCHIARALE é professor de Filosofia da Arte da PUC-RJ, escritor e diretor do MAM do Rio de Janeiro. FERNANDO MONTEIRO é escritor e cineasta. JOSÉ MANUEL BEREA é Diretor de Rádio Clássica da Radio Nacional da Espanha e membro do Comitê de Programas Musicais da União Européia. KLEBER MENDONÇA FILHO é jornalista, crítico de cinema e cineasta. LUCIANO JUSTINO é professor do Departamento de Letras e Artes da UEPB. LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista, professor de teatro, mestre em Comunicação e doutorando em Teoria da Literatura. MARIA ALICE AMORIM é jornalista e pesquisadora em arte popular. PAULO CUNHA é professor da pós-graduação em Comunicação da UFPE. RICARDO PAIVA é jornalista. SÔNIA MARQUES é arquiteta, mestra em sociologia e doutora em sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que foi assim. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.
CARTAS
Academia Leitor assíduo desta Revista, só agora, colocando em dia leituras em atraso, tomei conhecimento, no volume Pensata, do artigo de Ricardo Oiticica “Ideologia Brasileira de Letras”. Nesse artigo, como ignora aquilo que escreve, não sabe que desde a fundação Joaquim Nabuco (já ouviu falar desta figura?), advogava a entrada de expoentes, como na Academia Francesa, e são os nomes que cita Dantas Barreto e Lauro Muller. A explicação sobre a imortalidade é ridícula assim como hilariante o comentário sobre as editoras. A Panelinha teve vida efêmera e não se compara com os 109 anos da Academia. A longa explicação sobre a “parceria” entre a Academia e o Instituto Nacional de Música é inteiramente fantasiosa, pois nunca existiu, confundindo o autor a atuação de acadêmico individualmente (Medeiros e Albuquerque), com a atuação da Academia. Dois erros crassos: a) O general que tem nome Aurélio Dias Tavares teve como concorrente não Mário Quintana, mas Ledo Ivo que depois foi eleito pela casa. b) Medeiros e Albuquerque não sucedeu Machado de Assis na Presidência da Academia. Falecido em 1908, o sucessor foi Rui Barbosa que foi presidente até 1919, tendo, posteriormente, como Presidente Domício da Gama e Carlos Laet em três mandatos, seguido de Afrânio Peixoto, o Grande Presidente da Casa, esse sim, seguido por Medeiros e Albuquerque. Dessa longa moxinifada, não se chega a conclusão de qual é a “Ideologia Brasileira de Letras”. Fiquemos por aqui. Sou inteiramente favorável à liberdade de expressão, mas imagino que deveria ter um controle no direito de dizer bobagens. Alberto Venancio Filho – Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro – RJ Tiragem A Revista Continente está se transformando numa das melhores do país. É pena que a sua tiragem só atinja 10 mil exemplares, e a sua distribuição seja restrita às livrarias e bancas do Norte e Nordeste e a algumas livrarias especializadas do Sudeste, particularmente do Rio e São Paulo. Se a tiragem fosse maior e a distribuição melhor, os leitores agradeceriam. Adriana Lucena – Brasília – DF Agenda Gostaria de saber se a Agenda Continente 2006 está pronta, como e onde comprar. Aproveito para parabenizar tanto a Revista quanto a Agenda; são de primeira qualidade. A Continente Multicultural é, sem dúvida, a melhor. Socorro Freire, Recife – PE
Nota da redação Tanto a Agenda Continente 2006 como a Revista Continente (edições passadas) podem ser encontradas na Cia. Editora de Pernambuco, na Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife – PE. Alcione Araújo Moro em Paris há três anos, onde faço minha tese. No Brasil, fui professor de História. O filósofo Alcione Araújo faz um alerta importante (“Conversa”, edição nº 61). Acredito que o primeiro passo para tentar solucionar o problema educação X cultura é elaborar programas que dêem possibilidades, primeiramente, aos professores de obterem acesso à cultura. Acredito que os professores podem ser um dos agentes de uma transformação para a valorização da cultura, desde que eles também possam ter acesso aos meios para isto. Alberto da Silva, Paris – França Indignação Estou escrevendo para demonstrar minha indignação. Fui assinante desta Revista durante um ano e deixei de assinar, pois simplesmente não recebia a Revista; ou quando a recebia já estava nas bancas. Reclamei, mas de nada adiantou. Resolvi comprá-la nas bancas. No final do ano de 2005, decidi fazer uma assinatura da Documento, ou melhor duas, pois dei de presente a uma amiga. Qual o problema desta vez? Ela não recebe a Revista. O último exemplar que ela tem é o de dezembro, que se referia a receitas natalinas. Nós trabalhamos diretamente com a Revista, pois somos educadoras, e estamos privando nossos alunos de uma diversidade no conhecimento. Espero que alguma providência seja tomada, para que a Revista não perca a credibilidade com seus assinantes. Giselle Araújo, Paulista – PE
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Nota da Redação Prezada Senhora, tanto a Revista Continente Multicultural quanto a Documento são remetidas via Correios para os nossos assinantes; as que seguem para as bancas vão via empresa de distribuição. As Revistas que não chegaram para a sua amiga foram remetidas, mas consta em nosso relatório que elas não foram entregues porque não havia ninguém para recebê-las, contudo já providenciamos o envio em mãos. Porreta A Revista Continente está cada vez mais porreta! A de Guimarães Rosa e a de março, que trata da temática do fogo, estão um arraso. Estamos integrando um grupo de estudos aqui, em Brasília, para discutir temas culturais e a Continente é um dos nossos alumbramentos. Creio que o Ministério da Cultura deverá olhar com bons olhos um produto editorial dessa natureza. Diniz Imbroisi – Brasília – DF Entremez Assinei a Revista Continente há pouco tempo. Um dos motivos foi a coluna de Ronaldo Correia de Brito. Já li quase todos os seus livros – só me falta As Noites e os Dias (que não encontro nem na Editora Bagaço). Ele fala da violência, não de maneira banal, corriqueira, mas da sua passagem através da História. Transforma o que poderia ser mais um simples texto numa verdadeira obra de arte. Não dá para ler e esquecer. Deixa-nos ansiosos, pensando: “Qual será o tema abordado na próxima edição?” – deixa um gostinho de quero mais. Lígia Lopes, Cachambi – RJ
“
Fogo
Fábio Lucas, a matéria de capa “A Simbologia do Fogo” / edição nº 63 é daquelas que merecem ser impressas e guardadas junto com outras inesquecíveis. É ótima! Nunca tinha me ligado sobre todas as simbologias e significados que o fogo tem. Aliás, acho que já sabia tudo isso, mas nunca tinha conseguido colocar ou visualizar isso em palavras. Uma espécie de pensamentos meio arquetípicos. Vão sair reportagens sobre os elementos água, ar e terra também?
”
Gabriela Willig, Tapejara – RS
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Contemporaneidades “Esta geração nova sente a necessidade do divino”
udo isto é desolador. Tanto mais que o lado deste movimento negativo contra o positivismo – surge e cresce paralelamente a um movimento afirmativo de espiritualidade religiosa. Não é já aquela vaga religiosidade que aqui há anos apareceu, sobretudo na literatura, mera forma de diletantismo poético, que achava requintadamente original o dar interpretações modernas à ternura mística de São Francisco de Assis ou ao furor de sacrifício dos mártires do século 3. E não é decerto também ainda, na mocidade, o propósito de ir moralmente a Canossa bater com as mãos contritas às portas paternais da Igreja. Não! É uma outra e renovada ansiedade de descobrir neste complicado universo alguma coisa mais do que força e matéria; de dar ao dever uma sanção mais alta do que a que lhe fornece o código civil; de achar um princípio superior que promova e realize no mundo aquela fraternidade de corações e igualdade de bens que nem o jacobinismo nem a economia política podem já realizar; e de achar enfim alguma garantia da prolongação da existência, sob qualquer forma, para além do túmulo. Esta é realmente a grande ansiedade, porque quanto mais a vida para cá do túmulo se alarga em actividade e se multiplica em força, mais profundamente se infiltra na alma a ânsia do “não cessar”... Em suma, esta geração nova sente a necessidade do divino. A ciência não faltou, é certo, às promessas que lhe fez: mas é certo também que o telefone, e o fonógrafo, e os motores explosivos e a série dos éteres não bastam a calmar e a dar felicidade a estes corações moços. Além disso, eles sofrem desta posição ínfima e zoológica a que a ciência reduziu o homem, despojado por ela da antiga grandeza das suas origens e dos seus privilégios de imortalidade espiritual. É desagradável, para que sente a alma bem conformada, descender apenas do “protoplasma”; e mais desagradável ter o fim que tem uma couve, a quem não cabe outra esperança senão renascer como couve. O homem contemporâneo está evidentemente sentindo uma saudade dos tempos gloriosos em que ele era a criatura nobre feita por Deus, e no seu ser corria como um outro sangue o fluido divino, e ele representava e provava Deus na Criação, e quando morria reentrava nas essências superiores e podia ascender a anjo ou santo. Tão tumultuosamente esta geração nova apetece o divino –
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que, à falta dele, se contenta com o sobrenatural. Assim sucede que, enquanto alguns rondam já com os braços em cruz, em torno do cristianismo, e outros mais ousados, penetram na Índia a procurar o budismo há um numero considerável que se senta em torno de uma mesa ou de um chapéu, e se instala confortavelmente no espiritismo. Em Paris, em todas as grandes cidades, onde o materialismo excessivo exasperou as imaginações, não se vêem senão homens inquietos batendo de novo a porta dos mistérios.”. O texto é de autoria de Eça de Queiroz e foi escrito em 1893. A sua atualidade histórica corrobora afirmações de que a história se repete. As civilizações são objeto de sístoles e diástoles. Em contraposição a uma força chamada globalização é gerada outra denominada tribalização. Para contrapor a força materialista do consumo, surge a onda da espiritualidade sustentada na imortalidade da alma. Sábia natureza. A racionalidade do mundo moderno resgata a história ao considerar imprescindível ao homem dois fundamentos: o material e o espiritual. É nesse equilíbrio de visões que a vida humana se sustenta, desenvolve-se e mantém sua estabilidade temporal. A imaginação e a razão – como gêmeas siamesas – emergem como pilares fundamentais da sociedade do conhecimento. Só através da combinação genética dessas companheiras inseparáveis, o homem conseguirá alguma felicidade e paz. O advento do neocristianismo (the second coming, de Yeats?) já pode ser percebido com a volta das novas gerações à dialética existencial das religiões e ao convívio espiritual das igrejas. É evidente que muitas almas, feridas pelo materialismo consumista, refugiem-se em si próprias. E, por conta da violência e da insuficiência das democracias, os homens mais sensíveis e mais imaginativos busquem refúgio no recatado ambiente religioso, ou pelo menos procurem, nos sonhos, alívio para a opressão da realidade. Intelectuais, deixem de lado os livros e vamos à ceia santa, com pão e vinho. •
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CAPA
rediscutida Símbolo de ruptura com o Brasil velho, Brasília, quase meio século depois de criada, reafirma a possibilidade de uma nova prática urbanística Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle
Ricardo Labastier
CAPA
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CAPA Betânia Uchoa
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Brasília (no Plano Piloto) é um caso de urbanismo racionalista onde não há lugar para a anarquia da cidade espontânea
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ruto da determinação de Juscelino Kubitschek, realizava-se em 18 de abril de 1956 o concurso para o Plano Piloto da nova capital brasileira, cuja proposta vencedora de Lucio Costa, para quem a nova arquitetura e as transformações sociais faziam parte de um mesmo projeto, concretizaria o ideal urbanístico da cidade funcional do Movimento Moderno. No urbanismo racionalista de Brasília não há lugar para a anarquia da cidade espontânea onde a falta de planejamento O presidente gera o caos urbano e multiplica ma- Juscelino Kubitscheck les como esgotamento dos equipamentos urbanos e de infra-estrutura, o congestionamento do tráfego, a ausência de áreas verdes, de luz, de ar, a poluição ambiental, visual e sonora, e principalmente a cosmética urbana da ornamentação dos edifícios. Símbolo de ruptura com o Brasil velho, em Brasília nasce a possibilidade de uma nova prática urbanística. Idealizada para 500 mil habitantes (hoje com mais de 2 milhões) e concebida como um imenContinente abril 2006
so parque com extensos gramados e generosas áreas livres, Brasília rompe com o conceito da cidade tradicional de ruas, quarteirões e lotes. Lucio Costa, mais do que um plano urbanístico, propõe uma nova maneira de viver e de morar, que tira partido da imensidão da paisagem belíssima do cerrado onde edifícios de seis a oito pavimentos são distribuídos em espaços fluídos e amplos cheios de luz e verde e de horizontes. Estigmatizada pela crítica como cidade artificial, recebe de Clarice Lispector Reprodução uma defesa fulminante em sua crônica “Abstrata Brasília Concreta”: “Brasília é tão artificial quanto devia ter sido o mundo, quando foi criado”. O plano de Lucio Costa, estruturado no traçado de dois grandes eixos – cardum e decumanum –, a exemplo das cidades imperiais romanas, é essencialmente clássico e traz ainda a pureza, simetria e regularidade geométrica presente nas cidades ideais renascentistas, sendo entretanto moderna e contemporânea ao atender às doutrinas urbanísticas da Carta de Atenas (habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, circular), documento resultante do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna de 1933.
Julieta Sobral/Reprodução do livro Brasília Abstrata Concreta
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Lucio Costa, mais do que um plano urbanístico, propunha uma nova maneira de viver e de morar
Críticas desautorizadas e arbitrárias referem-se à monumentalidade de Brasília como uma associação com o autoritarismo. Pura desinformação. A monumentalidade tem sido usada desde a antiguidade por regimes políticos de ideologia e orientação diversas para expressar o poder (religioso, político ou econômico) na forma urbana e arquitetônica das cidades. O absolutismo real em Versailles, o império colonial britânico em Nova Dehli, a “vitória do socialismo” (sic) em Bucareste ou as democracias de Washington e Canberra são alguns dos numerosos exemplos de cidades capitais que exibem desenho urbano, espaços e edifícios de escala monumental para simbolizar os rituais políticos dos centros de poder. Não esqueçamos que em 1989 François Mitterrand celebrou grandiosa e espetacularmente o bicentenário da Revolução Francesa, com uma nova Paris de arquitetura monumental, arrojada e contemporânea. Como tal, em Brasília, em seu eixo monumental uma grande ênfase é dada aos edifícios públicos representativos dos poderes que governam a nação brasileira. Afinal não se estava planejando um mercado ou centro de compras, nem tampouco se estava construindo uma cidade de província e, sim, o centro político de uma nação. Monumental, segundo Lucio Costa, “não no sentido de ostentação, mas no sentido da expressão pal-
pável, por assim dizer, consciente daquilo que vale e significa. Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos do país”. A monumentalidade de Brasília celebra a nação brasileira e a identidade nacional e não é um capricho ou vaidade pessoal de um rei ou do culto de personalidade de ditadores totalitários. Em Brasília não há palácios para déspotas como Hitler, Stalin, Kim-IlSung, Ceausescu ou Saddam Hussein. Para Lucio Costa, a Praça dos Três Poderes é o Versalhes do povo e Brasília “foi concebida e nasceu como capital democrática e a conotação de cidade autocrática que lhe pretenderam atribuir, em decorrência do longo período de governo autoritário, passará”. O golpe de 1964, que instalou por 20 anos a ditadura militar no Brasil, usurpa não só o poder legítimo da democracia brasileira como se apropria de Brasília transformando-a no centro da arbitrariedade e da autocracia de generais truculentos que desvirtuaram as intenções do plano de Lucio Costa, acentuando tremendamente a desigualdade e a segregação social. Na Memória Descritiva do Plano Piloto, é clara a preocupação social do urbanista: “Deve-se impedir a enquistação de favelas tanto na Continente abril 2006
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periferia urbana quanto na rural. Cabe à Companhia Urbanizadora prover dentro do esquema proposto acomodações decentes e econômicas para a totalidade da população”. Ao contrário do previsto, os candangos (palavra oriunda do quimbundo kangundu, que segundo Hoaussis significa vilão, ordinário, ruim), denominação dada aos também brasileiros, na maioria oriundos do Nordeste, que construíram Brasília, foram os primeiros a serem segregados em guetos nas inúmeras cidades-satélites que rapidamente proliferaram em torno da capital, algumas como Taguatinga, já em 1958. Ao urbanismo moderno vem juntar-se a beleza plástica da arquitetura insólita de Oscar Niemeyer que produz obras líricas de concreto como a Capela Nossa Senhora de Fátima de 1958 (com afrescos de Volpi, infelizmente destruídos e azulejos de Athos Bulcão) e o Palácio dos Arcos, e o paisagismo exuberante de Roberto Burle Marx ao lado de numerosas esculturas de artistas como Alfredo Ceschiatti (autor de Os Candangos), Bruno Giorgio, Brecheret, entre outros. Era a afirmação da arte e arquitetura brasileira no panorama internacional que também atrairia a crítica furiosa (invejosa?) de Robert Hughes que a chama de utopian horror. Como bem disse Lucio Costa já em 1959: “já não exportamos apenas café,
Imagem de satélite do Plano Piloto Continente abril 2006
açúcar e cacau – damos também um pouco de comer à cultura universal”. A pedido do presidente Juscelino Kubitschek, a Sinfonia da Alvorada, depois conhecida como Sinfonia de Brasília, dividida em 5 partes – o planalto deserto; o homem; a chegada dos candangos; o trabalho e a construção; e, o coral – é composta por Tom Jobim e Vinícius de Morais em 1960. Era o Brasil moderno explodindo numa sinfonia rara e bela de arquitetura, urbanismo, artes plásticas, música e poesia. O reconhecimento das qualidades urbanísticas e arquitetônicas de Brasília como marco contemporâneo representativo do Movimento Moderno é consagrado em 1987, quando a Unesco a inscreve como Patrimônio Cultural da Humanidade. No Brasil, entretanto, somente em 1990, o governo federal vem reconhecer e proteger a cidade capital através de seu tombamento pelo Iphan como monumento nacional, quando Brasília já é mundialmente aclamada como uma das grandes realizações do urbanismo e arquitetura do século 20. “Deixem Brasília crescer tal como foi concebida, como deve ser – derramada, serena, bela e única”. (...) Não vale a pena visitar Brasília, se vocês já têm opinião formada e idéias civilizadas preconcebidas. Fiquem onde estão.” Este é o desejo de Lucio Costa •
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O homem que calculava
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ernambucano, nascido no Bairro do Zumbi em 1897, o matemático, engenheiro estrutural, poeta e artista plástico Joaquim Cardozo foi convidado, em 1941, por Oscar Niemeyer para calcular as obras da Pampulha, em Minas, iniciando uma parceria de gênios que permitiu trazer para o concreto a imaginação plástica e a liberdade de expressão do arquiteto que se afasta da rígida linguagem funcionalista européia, transgredindo assim os dogmas modernistas internacionais para explodir em uma poética combinação de plástica e técnica. Deste encontro de titãs, resultou a projeção e visibilidade definitiva da arquitetura moderna brasileira no cenário internacional. Joaquim Cardozo, com o arquiteto Luís Nunes, introduziu nos primeiros edifícios modernos, construídos no Recife, grandes vãos envidraçados, cobogós, novos tipos de esquadrias e as rampas e escadas de acesso. O calculista possibilitou que a audácia, a voluptuosidade e a sensualidade das formas terrivelmente belas, livres e insólitas idealizadas pelo jovem Oscar Nie-
meyer saíssem do papel para serem expressas no concreto, não sem desafiar as convenções e romper dogmas construtivos, celebrando assim a harmonia perfeita entre talento artístico e saber técnico e científico. Em Depoimento de uma Geração (Cosac & Naify, 2003), Joaquim Cardozo esclarece que o uso freqüente de linhas curvas aparece na arquitetura de Oscar Niemeyer não como uma textura decorativa e, sim, numa intenção de leveza, de desligamento do solo e das condições materiais e mais ainda uma sugestão de efeito dinâmico. Exemplo disso é a Catedral de Brasília, onde Niemeyer projeta um volume claro, puro e único, resultado da junção de superestruturas de elementos parabólicos que surgem do chão e se encontram no alto, dirigindo-se ao céu do cerrado, acentuando fortemente o caráter simbólico e religioso do edifício, cuja nave encontra-se parcialmente no subsolo. O testemunho de Niemeyer sobre o Joaquim Cardozo em Depoimento de uma Geração é definitivo: “(...) Passo em revista, mentalmente, todos os trabalhos que juntos realizamos, e não me lembro de um único caso em que ele se insurgisse contra o que meus projetos sugeriam, nenhum caso em que se fizesse cauteloso, propondo alterações de caráter econômico ou de prudência estrutural. Sua atuação se mantém, invariavelmente, num alto nível de compreensão e otimismo, interessado em fixar para cada problema a solução justa, a solução que preserve a forma plástica em seus mínimos aspectos, indiferente às dificuldades que poderão advir, certo, como eu, de que a arquitetura, para constituir obra de arte, deve antes de tudo ser bela e criadora.” •
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Alberto Ferreira / Tyba
Joaquim Cardozo foi responsável por colocar no concreto a arquitetura poética de Niemeyer
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Analisando Oscar Niemeyer olhando a maquete: inspiração para obras internacionais
No caso de cidades planejadas, como Brasília, o que se julga, geralmente, não é a cidade em si, mas o seu projeto original, como promessa de paraíso Sonia Marques
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ois cenários, distantes há menos de uma década. Cenário 1. Estamos em 1998, ouço atônita os meus primeiros alunos do curso de arquitetura moderna e contemporânea, na UFRN. Segundo eles, Brasília é a expressão do equívoco do zoneamento, seguindo o modelo da Carta de Atenas de Le Corbusier, é uma cidade feita para o automóvel, sem esquinas, que despreza o pedestre, despreza o contexto. Cansada da basbaquice destes argumentos fáceis, contra-ataquei, escudada, matreiramente, na condição de forasteira: – Ah, aqui em Natal, vocês vivem nas esquinas? Vocês andam muito a pé? Vocês compram tudo no bairro, vivem a vida do bairro? O bairro de vocês não é só residencial? Tem um misto de atividades, sem o zoneamento modernista? Vocês vivem que nem gente humilde, na música de Chico, não é? Nas casas simples, com cadeiras nas calçadas... Continente abril 2006
Cenário 2. Estamos em 2006. De volta ao Brasil, após um ano em Montreal, na ambiência de um seriado global, vejo Brasília aparecer majestosa, amada e aplaudida. Será que, nesta volta às aulas, no primeiro semestre de 2006, meus alunos amarão Brasília? Será que se decidirão a conhecê-la? Porque meus primeiros alunos não conheciam Brasília, me dei logo conta. Eles repetiam o que haviam ouvido ou lido. Quando desarmados, pela minha recusa de suas criticas epidérmicas, costumavam perguntar: Enfim, professora, a senhora acha que Brasília deu certo? Ora, avaliar cidades é tarefa complicada e que varia segundo os critérios utilizados. Por exemplo, o badalado índice de qualidade de vida é um atributo de cidades muito pouco interessantes, às vezes chatíssimas. Segundo ele, Seattle é melhor que Veneza. No caso de cidades planejadas, como Brasília, o que
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Ricardo Labastier
Mario Fontenele/ Reprodução do livro Brasília Abstrata Concreta
se julga, geralmente, não é a cidade em si, mas o seu projeto original, como promessa de paraíso. Os próprios urbanistas e planejadores urbanos são responsáveis, em grande parte, por este tipo de avaliação, uma vez que se colocam frequentemente como substitutos da mão divina, numa dimensão utópica. Ou, no mínimo, como médicos da cidade, na dimensão curativa. Meus alunos têm, assim, uma certa razão quando perguntam se a receita, o remédio aplicado deu certo ou não em Brasília. Educados na cultura do marcar um x, querem uma resposta curta: sim ou não. Difícil. Ouso uma contraproposta: uma avaliação em três ee: da estética, da ética, e da eficácia social. Do ponto de vista estético, Brasília, inaugurada em 1960, é um canto de cisne à altura da nossa excepcional arquitetura moderna brasileira, se admitirmos com Lauro Cavalcanti que moderna é a arquitetura do período 1930 a 1960. Publicada em todas as grandes revistas internacionais de arquitetura, figurando obrigatoriamente em todos os volumes de História da Arquitetura Moderna, Brasília serviu de fonte de inspiração a várias realizações internacionais, todas menos felizes. O Lincoln Center em Nova York, as grandes edificações em cidades francesas como Rennes, na Bretanha ou la Grande Motte no Midi comprovam a marcante influência, sobretudo da formada âncora dos primeiros palácios brasilienses. Também nas demais cidades brasileiras, as alusões a Brasília se multiplicaram.
O projeto urbanístico, sem paralelo no Ocidente, esmerado nos aspectos arquitetônico e urbanístico, não teve ações complementares ao planejamento físicoestrutural no âmbito sócio-espacial
O desenho urbano brasiliense é também de grande impacto visual. Cruz, pássaro ou avião, os dois eixos do Plano Piloto são um sucesso, e conferem à cidade uma identidade formal bem delimitada. Esta delimitação faz pensar na Paris, tal qual resultante da ação de Haussmann, no século 19. Em ambas as cidades, limites formais correspondem a limites sociais: uma vez atravessados os limites, há em geral um rebaixamento social. Sob o ponto de vista ético, o balanço de Brasília pode parecer amplamente negativo. É inegável o custo social da sua construção, como mostram documentários e exposições sobre o assunto. Explorados, morreram os candangos aos milhares para cumprir os prazos das obras, mais do que cabiam nas escavações dos prédios que construíam. Quanto às promessas de igualdade social, – os sonhos do candango morando ao lado do senador,– estas foram para o beleléu. Cruel, cruel. Mas, se a quantidade de vítimas – entenda-se, trabalhadores, claro – fosse o critério legitimador da engenharia civil humana, o que nos sobraria, desde os túmulos dos faraós, passando pelas nossas modernas torres e pontes? Quanto à utopia do convívio social: onde é que vocês já viram esta cidade sem segregação, esta coabitação de ricos e pobres? Avisem-me! Nas rajadas de balas anti-modernistas, desencadeadas por razões diferentes nos Estados Unidos e em alguns países europeus, principalmente na Itália, Brasília foi convocada como a expressão do fracasso das ambições modernistas, que pretendiam fazer a cidade para todos e
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Augusto Areal - www.infobrasilia.com.br
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Cidade-satélite de Tabatinga: planejamento superado pela realidade
resolver desigualdades sociais com uma proposta espacial. Mas, quando Holston, num dos mais consagrados livros sobre a cidade, fala da utopia socialista de Lucio Costa, contrariada na prática, comete, na minha opinião um erro primário para qualquer pesquisador: acreditar no discurso dos atores tal qual, sem tentar decodificá-lo através de uma análise. Para Brasilmar Nunes, “Brasília é mais um plano urbanístico do que propriamente um plano urbano”, pois “as interações humanas são aqui desproporcionalmente inferiores ao volume demográfico, fenômeno”. Mas de quem é a culpa? Para Nunes, da própria concepção urbanística, mas os autores preferem acentuar o distanciamento entre o pensado e o realizado, isto é, entre a imaginada cidade utópica, dita “socialista” e que se formou sob a batuta do capitalismo, com apartação social, como prefere denominar Cristóvam Buarque. Nesta linha de raciocínio, Padovani sustenta que o planejamento foi superado pela realidade “com o projeto de Taguatinga, em 1958, visando abrigar os habitantes excedentes do Núcleo Bandeirante. Ademais, o projeto urbanístico, sem paralelo no Ocidente, esmerado nos aspectos arquitetônico e urbanístico, não teve ações complementares ao planejamento físico-estrutural no âmbito sócio-espacial. “Assim, segundo Padovani, a rigor, Brasília, não é uma “cidade planejada”, pois a previsão era de “uma cidade compacta, delimitada ao Plano Piloto de Brasília em uma base democratizante “que seria completada no futuro com cidades-satélites. “Com a manutenção do plano piloto ‘fechado’, a democratização do espaço urbano se daria com maior socialização da cidade entre as classes sociais presentes, Continente abril 2006
contrariando o ‘normal’ desenvolvimento dos demais centros urbanos onde o padrão é o do uso capitalista da terra e a formação de periferias pobres e favelas, com segregação sócio-espacial. Por isso, a cidade utópica cedeu espaço à apropriação desigual do território, com os ricos ocupando o Plano Piloto e adjacências e os pobres, as cidades-satélites ou mesmo as muitas ‘invasões’ que permeiam o tecido urbano”. Como resultado, insiste Padovani, hoje o centro é um território elitizado, rígido, “tombado” e declarado “Patrimônio Cultural da Humanidade”, cunhado “ilha da fantasia”, enquanto nas demais cidades-satélites predomina o sentimento de exclusão. Erro de execução? Culpa do capitalismo? É difícil acompanhar este raciocínio generoso, compartilhado em grande parte por uma geração que conviveu na NovaCap com o Dr. Lucio e o Oscar, como eles costumam chamar. Mas este é o problema das bases do raciocínio dos urbanistas e dos arquitetos progressistas. Há sempre um condicional: o “se tivesse sido feito” ou “o deveria ser”. Enquanto que os conservadores e pragmáticos aceitam a segregação como um dado inevitável e partem do ponto de vista de que o que “dá certo” é o que se elitiza ou gentrifica, como diz o bom jargão urbanístico. Entre generosidade utópica, pragmatismo ou cinismo, a vida é mais forte que o planejamento, para o bem ou para o mal. Life is what happens when we had other plans. Parodiando a frase da música dos Beatles, eu diria que uma cidade é o que acontece no lugar para o qual os urbanistas tinham outros planos. Brasília aconteceu e virou manchete. •
Folha Press
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O olho do cineasta Alberto Cavalcanti, dublê de cineasta e arquiteto, pretendia fazer um documentário sobre Brasília. Em primeira mão, apresentamos um fragmento do roteiro que nunca foi filmado Fernando Monteiro
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o rol das muitas injustiças cometidas, no Brasil, contra a obra de Alberto Cavalcanti (cineasta de prestígio internacional e um dos maiores talentos nascidos no país de Macunaíma), avulta o filme que ele não conseguiu realizar sobre Brasília, um caso típico daquela estupidez que Osman Lins listou entre os “problemas inculturais brasileiros”. Nascido no Rio, em 1897 – de família pernambucana por parte da mãe (Anna Olinda do Rego Cavalcanti) –, Alberto diplomou-se em arquitetura pela Escola Superior de Genebra, em 1917, e chegou a trabalhar, logo depois de formado, nos escritórios do célebre arquiteto Alfred Agache. Sua iniciação no cinema se deu em 1923, como cenógrafo num filme do francês Marcel L'Herbier, daí partindo para uma nova carreira, ao abandonar a prancheta a fim de se dedicar à câmara cinematográfica como instrumento de um meio de expressão ainda engatinhando nos seus recursos de linguagem. O olho do arquiteto, porém, nunca perderia a agudeza no refinado e culto brasileiro com o qual pude conversar, em longas tardes do verão de 1972, no terraço da casa olindense da sua prima Gicélia Marroquim, ocasiões em que Brasília foi assunto mais de uma vez, e não só pelo lado estético. Cavalcanti desconfiava de um projeto com as características do concebido pelo gênio de Continente abril 2006
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Oscar Niemeyer – hoje na ordem do dia, pelas atuais celebrações dos feitos do presidente Juscelino. “Aquilo (Brasília) é uma nave espacial que fatalmente irá ficar cercada por todos os lados, um dia, do Brasil real e desorganizado” – resumia ele, falando como entendedor do riscado arquitetônico. Falecido em 1982, na mesma Paris dos primeiros passos no cinema (perguntas: com quem se encontra o vasto acervo de obras de arte e documentos deixados pelo solteirão? E onde estarão os originais do seu livro de memórias, quase terminado?), o arquiteto Cavalcanti certamente gostaria de ver Brasília, hoje mais do que nunca, disco urbano não-voador, mas preso à poeira vermelha do planalto onde o “Presidente Bossa-Nova” mineiramente a inaugurou no dia dedicado a Tiradentes, em abril de 1960. Seja como for, o diretor de O Canto do Mar acalentou o projeto de “um documentário de 20 minutos” sobre a capital, tendo concluído, em 1977, um Esboço de roteiro para um filme sobre Brasília (leia fragmento, a seguir), documento encaminhado à antiga Empresa Brasileira de Filmes. Infelizmente, o projeto não sairia do papel – mesmo com o interesse da Unesco. A Embrafilme, que havia frustrado o velho realizador empenhado no seu último projeto de longa-metragem – Antonio José, o Judeu –, também haveria de negar apoio à concretização do curta-metragem sobre a “ilha da fantasia” da política brasileira, a atual cidade já madura, aos 46 anos, para se impor aos riscados da arquitetura. Isso é o que prevalece, aliás, no filme que o carioca Antônio Carlos Fontoura realizou com base nas sugestões deixadas, neste “esboço” de roteiro, pelo cineasta falecido sem ver esta “homenagem”. Seja como for, perdemos a oportunidade de ver Brasília pelos olhos do rea-lizador pioneiro de Rien que les Heures (que influenciou o Ruttmann de Berlin, Symphonie einer Grosstadt), também considerado “insuficientemente ilustre”, pela ECT, para merecer um selo comemorativo do centenário do seu nascimento... • Continente abril 2006
Esboço de roteiro para um filme sobre Brasília Títulos em cor vermelha sobre fundo imitação mármore amarelo fade-in.
Música de abertura.
O quadrado centraliza a marca
EMBRAFILME
A inicial idem. A palavra “apresenta”. O título do filme vindo do fundo e avançando para a câmara. Um cartão com letras claras indicando a colaboração da “Fundação Cultural do Distrito Federal” e da Unesco. Subindo os créditos dos colaboradores técnicos do filme e a menção das gravuras de Jean Batiste Debret fade out.
Música de abertura cessa. Os agradecimentos aparecerão em título após a palavra "FIM".
Plano Geral fade in de uma maloca de índios.
(Caso necessário, obter da Funai viagem para a filmagem destes planos).
Três planos médios mostrando cenas da vida dos índios. Cozinha? Pinturas no corpo para o preparo de uma festa? Fade out (sépia)
Alternativa seria usar a maloca projetada, em Brasília, pela Fundação Cultural, se houver possibilidade de fotografá-la sem indicação do local.
Primeiro Plano fade in de Lucio Costa, com voz off, anunciando o seu nome.
Estas apresentações sonoras, tanto de Lucio Costa como de Oscar Niemeyer são, com o plano da Constituição, as únicas palavras que ficam na versão da Unesco, porque ela recusa-se a admitir comentários no filme.
A frase adequada não pôde ser encontrada nos documentos sobre Brasília. Propõe-se uma redação original, explicando que a vida de uma povo se reflete na arquitetura de seu habitat. (Caso Lúcio Costa não queira fazer esta afirmação,é possível encontrar uma personalidade conhecida internacionalmente, mesmo que não seja ligada à história de Brasília.) Frase sincronizada. Fade out. Corte em diagonal wipe de sete ou nove imagens.
A seqüência do estilo barroco seria organizada com o seguinte esquema de cores:
Prancha de Jean Batiste Debret – nº 5 – Parte II (com as cores originais). “Empregado do Governo saindo de casa com a família”. Corte franco. Vista geral de uma igreja barroca bem conservada.
Filmar no Museu existente no Rio (Fundação Castro Maia).
Reconstituição de uma missa em latim, no interior dourado de uma igreja barroca (elevação).
Plano servindo de contraste com o interior da Catedral de Brasília.
Cor amarela. Corte em diagonal wipe. Debret – prancha 8 – Parte III. “Escravos indo à igreja para serem batizados” (cores originais). Cor sépia. Corte em diagonal – Debret. Prancha nº ...– Parte II. “Uma senhora no interior de sua casa” (cores originais). Corte franco: Largo do Boticário. Corte franco – “Memória do Carnaval”. Obter de Alice Gonzaga Assaf cena movimentada de Carnaval antigo, no Rio de Janeiro. Corte em diagonal. Debret – Prancha 23 – Parte II. “Venda de escravos” (cores originais). Plano de Pelourinho, em Salvador. Fade in. Primeiro plano de Oscar Niemeyer. Voz off anunciando o seu nome. Sépia. Frase sincronizada (curta), referente às dificuldades encontradas pelo tráfego atual, dado a inadaptabilidade do urbanismo do passado: Três ou quatro exemplos de construções, estilo empreiteiro português, art nouveau – igreja, habitação etc. Sépia. Vista tomada do alto, mostrando o atravancamento de túmulos pretenciosos. (NB: Este plano serviria de contraste com a vista do Cemitério de Brasília, na parte final do filme).
Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro? Plano prometido por Nelson Pereira dos Santos. Procissão em rua da Bahia. Alternativa: procurar no material existente no depósito/EMBRAFILME. Alternativa: pedir a Fernando Monteiro para filmar o mercado de escravos, em Olinda. Tradução a ser gravada p/ versões estrangeiras.
Esta seqüência deve ser apoiada de maneira muito enfática pela música. Cemitério de São João Batista, no Rio.
Vista do alto de três ou quatro ruas estreitas, com a máxima dificuldade de tráfego, em São Paulo (idem: Copacabana). Três planos de um guarda de trânsito, com luvas, dirigindo o tráfego. Três primeiros planos, em cores originais, de luz de tráfego, passando do verde para o amarelo e deste para o vermelho. Três primeiros planos de transeuntes para montar fade out. Panorama fade in do Cerrado, sem nenhuma habitação, com leve ruído de vento. Procurar obter uma impressão de secura (manter a cor até o fim do filme).
NB: A montagem será feita em um crescendo. [Se possível, filmado antes das chuvas.]
Fusão lenta. Panorama da Cidade, com o Lago em primeiro plan.
Locais prováveis: SHIS-QL 9/3 ou QL 9/4 (em frente ao Clube Cota Mil), ou antes da Ponte "Costa e Silva". Música em um crescendo.
Plano da Esplanada dos Ministérios, começando com o enquadramento de um paredão lateral, e partindo, em movimento, com um ângulo de 45 graus, para mostrar o ritmo dos paredões sucessivos. (NB: Nesta parte do filme, mostrando a arquitetura moderna da Cidade, seria interessante usar o máximo de movimentos, o que evitaria vistas fixas reminiscentes de cartões-postais.)
A filmar num domingo, com ausência de tráfego. •
Corte – o texto sobre a Capital (achado por Juscelino Kubitschek).
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23 Betânia Uchoa
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LITERATURA
A permanência do poema A obra de John Donne, poeta inglês do século 17, constitui um exemplo do que a crítica incondicional aos cânones literários, muito em voga, pode pôr a perder Artur Almeida de Ataíde
LITERATURA
O
s motivos para a permanência de um poema estão muito além do numerável, do previsível. Imiscuem-se na rede móvel e heterogênea de forças e acaso da história: ora são cúmplices de um certo estado de coisas em vigência, e, por isso, sensíveis a seu posterior desabamento; ora são, simplesmente, objetos do acordo tácito entre membros de algum cenáculo, tornando-se dogmas intocáveis sob a ameaça de perturbar o escambo já habitual das vaidades; ora, ainda, expõem-se mesmo à intervenção da natureza, como em casos de extinção completa por fogo ou água, quem sabe, de manuscritos, de bibliotecas inteiras. Enfim: a reverência a tal ou qual autor, malgrado os princípios da eterna Beleza, é frágil, corruptível e sujeita a azar. Em decorrência, assim como a história renuncia hoje a quaisquer absolutos, a teoria da literatura, ante o misterioso rótulo de “memorável” apenso a cada escrito de um cânone, tem de renunciar a soluções simples, a qualquer equação geral insubmissa ao tempo – ou, melhor dizendo, aos tempos, sempre outros. A proposição parece saudável: desde que a circunstancialidade histórica embasando cada cânone não sirva de argumento para a sua derrocada, para a sua relativização – pasme-se – absoluta. A questão do valor no campo literário se tornou, sobretudo com a fundamentação coerente das últimas gerações de teóricos – as várias desconstruções –, um tabu, um centro de inescapável polêmica (e, portanto, de saúde crítica, não fosse a interdição que o esteriliza). Leu-se Nietzsche, parece, pela metade: por um lado, o esclarecimento das raízes históricas, nada inumanas, dos nossos absolutos – ou, noutras palavras, a troca do olhar castamente metafísico pelo olhar obscenamente filológico no despir de pretensas verdades éticas como o Bem e o Mal – foi passo essencial para a atual desconfiança ante qualquer assertiva mais robusta, ante qualquer assunção de valores; Nietzsche pode fornecer instrumentos para a desqualificação de tudo quanto se diz, mas seu uso abusivo, no entanto, termina por exilar a crítica num limbo infrutífero: algum lugar entre a proscrição das várias verdades e a impossibilidade de erigir uma própria. Por outro lado, há outra metade a ser lida, há outra componente essencial, aí ignorada, do pensamento de Nietzsche. Constitui ela, aliás, a própria fonte do vigor a um só tempo filosófico, estilístico e axiológico que anima a Genealogia da Moral: são a “robustez” e a “saúde” aristocráticas, a mistura inexaurível “de força, liberdade e alegria” exercitada “na guerra, na aventura, na dança, na caça”. São valores, eleitos, sim, explicitamente; com eles, Nietzsche garante o que falta à desconstrução: o antídoto contra a paralisia.
Nietzsche: filósofo preferido da desconstrução também fornece o fundamento para criticá-la
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LITERATURA A permanência do poema: como, no menor espaço, abordar uma questão tão essencialmente valorativa sem ferir as verdades intrincadas – porque assim pede o seu objeto – da teoria da literatura? Solução à la Nietzsche: imiscuir-se, com todos os riscos, na história, ou seja: além de teórico, ser uma nova versão do italiano que, nos fins da Idade Média, trazia de cor a canção Per una ghirlandetta, de Dante, ainda que um pouco alterada metricamente, segundo Ungaretti; ou um tradutor que verte tal ou qual poema pelo mesmo motivo que leva alguém a lhes reservar memória: acreditam que aquele dizer é, sim, um dizer melhor. John Donne (1572-1631), assim como não poucos de seus maiores irmãos de língua, faz jus ao que dela herda: a sintaxe complexa de fluxos e refluxos de seus poemas deve muito, e paga em dobro, ao sistema prosódico da língua inglesa, ao torque incomum de seus monossílabos, à liquidez maior de suas consoantes líquidas. Os poetas canônicos ingleses, aliás, parecem abdicar muito menos que os brasileiros da plasticidade do verso como princípio fundamental de suas poéticas: um clássico como Drummond perde, nesse aspecto, para cruz-e-souzas e jorges-de-lima, e, mais recentemente, para uma certa harmonia de repuxos que anima versos como o terceiro dos seguintes e muitos outros de Mário Faustino: “Inferno, eterno inverno, quero dar/ Teu nome à dor sem nome deste dia/ Sem sol, céu sem furor, praia sem mar” (...). Diante disso, parece menos lamentável que se perca a literalidade fiel conseguida por Augusto de Campos, por exemplo, no terceiro verso do poema “The Extasie” (“O Êxtase”), por ele vertido como: “A inclinada cabeça da violeta,” e, por nós: “pensa, a violeta que descansa” – versão mais plástica, salvo engano. A tradução que segue compreende as 12 primeiras estrofes do poema; a escritura delas, segundo Leo Spitzer, pode ter antecedido em muito a das últimas sete, em que o poema perde força apesar de alguns achados. É uma tradução antes funcional – como diz Curt Meyer-Clason da que fez do Grande Sertão: Veredas para o alemão –, ou seja, quer privilegiar antes de tudo o efeito estético do texto. Onde não foi possível encontrar correspondência, tentou-se plantar qualquer beleza, desde que ajustada ao todo (por exemplo, o pequeno labirinto lógico em que se transformou o quarto verso: Donne se utiliza muitas vezes do jogo lógico). Em alguns pontos a correspondência foi possível: a métrica original (em octossílabos) foi mantida, duplicando o esforço por concisão, característica simultaneamente da língua matriz e do estilo de Donne. “The Extasie”, aliás, é um poema que desenvolve idéias com rapidez incomum: cada uma das curtas estrofes desembrulha um conceito novo, um novo ângulo do momento extático dos amantes. A nona estrofe, por sua vez, oferece um exemplo aproximado da sintaxe de Donne; a quarta poderia servir de ilustração à crítica de Johnson aos poetas metafísicos, relatada por T. S. Eliot em “The metaphysical poets” (“Os poetas metafísicos”), qual seja: a justaposição, não sem “violência”, de imagens díspares (no caso da estrofe, o fio que as une é a idéia de tensão). Para exemplo da inteligência exercida como forma de sentir, ler esse poema e o quanto mais puder de Donne. Quanto às falhas, falhas há: o leitor do inglês notará os momentos em que o padrão acentual (predominantemente iâmbico, ou seja, uma sílaba métrica átona seguida de uma tônica, sucessivamente) foi traído, assim como lamentará a tradução de estátua sepulcral por anjo sepulcral, solução que relega estátua à implicitude. O mundo mudou extraordinariamente desde o primeiro poema; mas a linguagem verbal permeia ainda toda a vivência humana. O valor do poema, a sua permanência, deve muito a uma ars, a uma technè, a uma técnica que sutiliza e faz o falar, o dizer, ou a língua – a última de todas as mitologias – melhor. Não há aqui um dogma, mas há um credo. • Continente abril 2006
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The Extasie (John Donne)
O Êxtase e (J John Do onne e) Tradução: Artur de Ataíde
Where, like a pillow on a bed, A Pregnant banke swel'd up, to rest The violets reclining head, Sat we two, one anothers best. Our hands were firmely cimented With a fast balme, which thence did spring, Our eye-beames twisted, and did thred Our eyes, upon one double string; So to'entergraft our hands, as yet Was all the meanes to make us one, And pictures in our eyes to get Was all our propagation. As 'twixt two equal Armies, Fate Suspends uncertaine victorie, Our soules, (which to advance their state, Were gone out,) hung 'twixt her, and mee. And whil'st our soules negotiate there, Wee like sepulchrall statues lay; All day, the same our postures were, And wee said nothing, all the day. If any, so by love refin'd, That he soules language understood, And by good love were growen all minde, Within convenient distance stood, He (though he knew not which soule spake, Because both meant, both spake the same) Might thence a new concoction take, And part farre purer then he came. This Extasie doth unperplex (We said) and tell us what we love, We see by this, it was not sexe, We see, we saw not what did move: But as all severall soules containe Mixture of things, they know not what, Love, these mixt soules doth mixe againe, And makes both one, each this and that. A single violet transplant, The strength, the colour, and the size, (All which before was poore, and scant,) Redoubles still, and multiplies. When love, with one another so Interinanimates two soules, That abler soule, which thence doth flow, Defects of lonelinesse controules. Wee then, who are this new soule, know, Of what we are compos'd, and made, For, th'Atomies of which we grow, Are soules, whom no change can invade.
Onde, almofada numa cama, a margem Fértil cresce e ampara, pensa, a violeta que descansa, o amor um do outro a dois sentava: tu e eu, as mãos encimentadas por bálsamos em nossas palmas, e olhos, de olhares enlaçados, por dupla linha alinhavados. Além de mãos no enxerto mútuo – nos era tudo a unir então – reter nos olhos o minuto era a tão só propagação. Como, a iguais Armadas, o Fado suspende o inesperado fim, as almas, avançando o estágio, pairavam fora, entre ela e mim. E o corpo, as almas em congresso, como anjo sepulcral, jazia; o dia inteiro o mesmo gesto, e sem falar, por todo um dia. Se alguém, do amor tão sublimado que de almas entendesse a língua, em pura mente transmudado, distasse quanto a ouvir convinha, ali (sem ver quem lhe falava, que de ambas escutava o mesmo) de nova confeição provara, e iria mais puro do que veio. Tal Êxtase revela o nexo (dissemos) do que nós sentimos; por ele vemos: não é sexo, por ele vemos: é invisível: que tendo as almas, e são elas, mesclas de coisas, de insentidos, o amor, a mesclas, vem e remescla, faz duas uma, e isto aquilo. A violeta transplantemos, e a força, a cor, o porte e a vida (e tudo o mais que fenecendo) redobra ainda, e multiplica. Se amor, a alma com mais uma interinanimiza as duas, mais una, a que dali reflua a falta e a solidão regula. E em nós – nessa alma – descobrimos o que nos fez e nos formara: que os Átomos de que provimos são almas, ao mudar contrárias. Continente abril 2006
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LITERATURA
A linguagem do bardo Frank Kermode analisa a arte de Shakespeare sem idolatrias nem pré-conceitos Eduardo Maia
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embro da British Academy, da Royal Society of Literature e da American Academy of Arts and Science, Frank Kermode é reconhecido como um dos maiores especialistas no mundo na obra do poeta e dramaturgo William Shakespeare. O livro A Linguagem de Shakespeare, lançado este ano no Brasil, com tradução de Bárbara Heliodora, atesta a pertinência e a originalidade de Kermode ao tratar de um tema já incansavelmente debatido: a arte do bardo inglês. Neste ensaio, o crítico centra a sua análise na linguagem, no verso dramático de Shakespeare. O intuito de
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Kermode é mostrar a complexidade crescente no pensamento e no uso do idioma nos jogos lingüísticos do escritor, analisando como se deu o desenvolvimento de Shakespeare de dramaturgo poético a dramaturgo consumado. Kermode ressalta que o fato de ele ter sido, antes de dramaturgo, um poeta (e dos grandes), deve ser levado em consideração em qualquer estudo sério. Não obstante a profundidade do texto e a utilização de alguns termos técnicos, A Linguagem de Shakespeare não está orientado exclusivamente aos leitores especializados. O autor se propôs a escrever com clareza para o grande público, mas sem abrir mão do rigor. Como disse o resenhista Gregor
Imagens: Reprodução
LITERATURA
Milne, da The Richmond Review, trata-se de um centra com mais atenção em 16 peças, entre as quais merecem destaque as quatro grandes tralivro para leitores inteligentes. Apesar do foco de Kermode estar na utilização gédias shakespearianas: Otelo, Macbeth, Rei Lear e da linguagem pelo poeta-dramaturgo, o pesquisa- Hamlet. Kermode identifica um período fundador não oblitera os fatores históricos e sociais – mental para a compreensão do desenvolvimento Shakespeare é analisado dentro de suas circunstân- artístico do dramaturgo: o período de cerca de 15 cias, em sua época, junto com seus contempo- anos que vai desde Titus Andronicus até Coriolano, râneos elisabetanos. Mas Kermode não compactua intervalo que registra profundas mudanças tanto com aqueles críticos que relativizam o valor da na platéia quanto no escritor: “a maneira e o objetivo de suas atividades são transforobra de Shakespeare, situando-o simmados”. A data fundamental para a plesmente como um represencompreensão do “salto” de quatante do seu tempo. O crítico lidade e realização do escritor, endossa que nós pensemos na opinião de Kermode, são nele primeiramente como os anos 1559-1560, períoum grande escritor, mas do em que produziu sem cair no que ele chaHamlet e o poema “The ma pejorativamente de Phoenix and the Turtle”. “idolatria obsoleta”. Frank Kermode tem Nesse sentido, Kermogarantido para si o méride assume uma visão to de falar algo novo sobastante interessante bre o tema, trazendo novas por se afastar tanto de possibilidades de investigacertas correntes “culturaGravura ção. Em um outro ensaio do listas”, que propagam a idéia representativa da peça autor, dedicado à explicação da de que a reputação de ShakesRicardo II noção de “clássico” em literatura, peare é fraudulenta, fruto do naKermode afirma que o verdadeiro clássico cionalismo do século 18, ou mesmo de uma conspiração imperialista; mas também re- suscita um ininterrupto debate da crítica durante pudia a veneração acrítica ao escritor – aqui a os anos seguintes – ou até séculos – após sua referência negativa ao crítico americano Harold publicação. Estas discussões, adverte Kermode, Bloom é evidente. Kermode é en- “implicam que cada época varia não somente as fático ao afirmar que nem tudo que interpretações, mas também a ênfase, os assunfoi escrito pelo dramaturgo pode ser tos”, aquilo que é chamado desde Gadamer o avaliado como excepcional. Pas- “horizonte de expectativas”; quer dizer, a visão sagens e até peças inteiras podem dos leitores sobre aquilo que se lê. Para Kermode, ser consideradas pouco interessan- indubitavelmente, a obra de Shakespeare é tes: “um homem que escreveu tan- clássica e canônica. A Linguagem de Shakespeare é uma obra de to, e por vezes com pressa, pode, muito bem, ter alguns baixios entre fundamental importância para a renovação dos suas elevações”, escreveu. Mas estudos sobre o gênio de Stratford-on-Avon. O enfatiza: “no fim ninguém pode se equilíbrio e a lucidez de Frank Kermode, quando livrar de Shakespeare sem abolir a contrastados com a barulheira da crítica relativista ou politicamente correta, que tenta sepultar Shaprópria idéia de literatura”. A Linguagem de Shakespeare, Durante o ensaio, a grande kespeare por ter sido inglês, branco e homem, faz Frank Kermode. Tradução de Bárbara Heliodora, Editora maioria das obras de Shakespeare é com que esta pareça, usando as palavras do bardo, Record, 2006. R$ 54,90. citada e comentada, mas o autor se “cheia de som e fúria, não significando nada”. • Continente abril 2006
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POESIA
Arnaldo Carvalho/JC Imagem
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Tradição dos extremos
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que significa esta nova experiência poética de Alberto da Cunha Melo – O Cão de Olhos Amarelos? Começo atentando para o procedimento de composição que o poeta adotou de modo sistemático. A repetição é aqui estrutural, pois se dá não só no interior de cada estofe, mas serve de leixa-pren atando as quintilhas entre si. O efeito é encantatório como na poesia ritual que habita as fórmulas mágicas, antiga função religiosa que ainda sobrevive. O rito renasce, de algum modo, na música e na dança que não dispensam a reiteração do som e dos gestos. A magia penetra as renkas de Alberto da Cunha Melo, conferindo insólita beleza a esta sua última criação. Mas quer-me parecer que O Cão de Olhos Amarelos vale-se da retomada frásica e rítmica com vistas a outro efeito, a rigor oposto ao da melopéia encantatória. Trata-se de um modo de compor que tem a ver com o desígnio intelectual de chamar a atenção para o cerne semântico do poema. Um dos traços molestos da cultura pós-moderna é certa multiplicação incoercível de mensagens, beirando a vertigem e minando por dentro as forças da atenção e da memória. Um antídoto válido à dissipação do espírito do leitor é precisamente a repetição pensada de idéias e sentenças. A
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O poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo está comemorando 40 anos de poesia com o lançamento, pela Girafa Editora, do livro O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos Alfredo Bosi
nova poesia de Cunha Melo traz esse estímulo à inteligência: convida o leitor a deter-se no sentido de cada frase, é um plus de energia significante que “dá a pensar”, para dizê-lo com a fórmula incisiva de Paul Ricoeur. No entanto, esse trabalho formal entre mágico e cognitivo não foi construído para si próprio, não é um mecanismo autodecorativo, puro desfrute da linguagem pela linguagem. Ao contrário, volta-se para um núcleo rico de dimensões existenciais. Reencontro nestes poemas o criador original de Yacala modulando em tom menor o mistério da vida nos seus confins com a morte. E reconheço veios de uma forte tradição nordestina de poetas da agonia e dos extremos. Aqui ressoam a voz dramática de Augusto dos Anjos, a voz faca-só-lâmina de João Cabral, as vozes lancinantes de Nauro Machado, as muitas e vertiginosas vozes de Ferreira Gullar. O imaginário é diferente, peculiar a cada poeta, mas em todos repontam a intuição da finitude da carne e o anseio de reter na palavra o pathos do amor e do sofrimento. Percebo um ar de família que aparenta fisionomias diversas, um olhar severo mas ardente que séculos de experiências comuns acabaram formando: “Um dia temos de escolher/ entre a dor que já padecemos/ e a que tentamos inventar”. •
POESIA
Inconfidencial
Distâncias Mora lá perto a dor alheia, mas teu verso não chega lá. Mora lá perto a dor alheia, mas teu verso não chega lá. Contra os gritos da casa em frente, tu pões o Adágio de Albinone no volume do temporal. tu pões o Adágio de Albinone no volume do temporal. Não chega lá o piedoso, que reza, tem medo de sangue, e vai trabalhar de manhã.
freirinha magra dos caminhos e que anda muito devagar. Só chega lá o amanhecer, mas, já é tarde, não há gritos nem ninguém para abrir a porta. mas, já é tarde, não há gritos nem ninguém para abrir a porta.
A inocência do corpo, o sol adivinhado na epiderme das folhas quentes, das cortinas intumescidas pelo vento. O carinho domesticado morde, às ocultas, a coleira. Todos os gestos prisioneiros no fundo verde da vontade. Quando as fronteiras já estão pelo próprio amor demarcadas, o perfume da noite vem adormecer as sentinelas.
despertar
Formas de
que reza, tem medo de sangue, e vai trabalhar de manhã. Não chega lá a compaixão, freirinha magra dos caminhos e que anda muito devagar.
Para dois corpos que se buscam a própria roupa é uma distância, um modo antigo de dizer: ainda não, ainda não.
A vigilância dos colchetes é rompida sob o alvoroço das peças caindo, pedras de uma fingida fortaleza.
Só aqueles que não me amam ousam assim me despertar: como se a manhã desejasse erguer-se junto com meu ódio. Naqueles tempos, minha amada nunca me despertava assim: em silêncio lavava o rosto, por acaso me despertava. Mas sempre desejando um tempo que só viria depois dela, fui um vagão de peixes mortos entrando lento na cidade. Quem chegar ao seu ponto alto deve ali cavar o seu túmulo: disseram-me, ou melhor, gritaram-me, quando me dispunha a subir. Este lugar, visto de longe, ainda parece uma ladeira fácil, dividida em degraus: nem precisa ser destruído.
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AGENDA/LIVROS Sociologuês à mão
Chega às livrarias a edição brasileira do Dicionário de Sociologia, de L. Gallino, lançado originalmente em Turim, em 1989, mas com versão atualizada que inclui o impacto, neste início do século 21, das transformações tecnológicas recentes sobre os processos sociais e culturais. Entre os verbetes, além dos antigos conceitos tão caros à sociologia, como classes sociais, encontramos novos como sociologia da moda, sociologia da informática, imagem da mulher e ecologia humana. O ponto alto é a conexão entre os verbetes e o baixo é a recorrência ao jargão da área. Dicionário de Sociologia, Luciano Gallino, Editora Paulus, 716 páginas, R$ 125,00.
O Diabo presepeiro Obra satírica do século 17 é lançada em tiragem popular
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espanhol Luis Vélez de Guevara (1579-1644), autor de dramas, comédias, romances históricos e peças sacras, foi um dos mais prolíficos escritores do Século de Ouro. Mas esse contemporâneo de Cervantes entrou para a posteridade com uma novela satírica e picaresca, O Diabo Coxo, que acaba de ganhar uma edição popular no Brasil. O pequeno livro não é leitura fácil, por causa do estilo do autor, repleto de ambi güidades, rebuscamentos, elipses e jogos de palavras que, em alguns trechos, tange o ininteligível. Isso sem falar nas referências de época, que nesta edição não contam com notas esclarecedoras. Mesmo assim é leitura agradável para quem se deleita com o gênero. O enredo: um estudante de Alcalá de Henares (terra de Cervantes), fugitivo da justiça sob a acusação de haver deflorado uma falsa donzela (que já tinha acusado outros 21 antes), libera sem querer um Diabinho encerrado numa redoma de um astrólogo. Em agradecimento, o Diabo Coxo o ciceroneia por uma viagem mágica pela Espanha, levantando os telhados das casas e os véus da hipocrisia da sociedade de então. Reis, nobres, artistas, mendigos, oficiais, escrivães, alfaiates e toda sorte de gente são apresentados como trapaceiros e mentirosos. O ponto alto é o estatuto da Academia de Sevilha, em que se listam as palavras proibidas de serem repetidas – como fulgor, pompa e idílio – e se estabelece que na portaria se dê sopa de versos aos poetas mendigos. Num artigo de hilária atualidade, decreta-se que “nenhum poeta se atreva a falar mal dos outros, a não ser duas vezes por semana”. Como o personagem central é manco, os capítulos são chamados de trancos, num ótimo achado. (Homero Fonseca) O Diabo Coxo, Luis Vélez de Guevara, Editora Escala, 290 páginas, R$ 4,90. Continente abril 2006
Carmen Mulher Jornalista e psicanalista, a gaúcha Carmen da Silva (1919-1985) marcou época na imprensa brasileira. Durante 22 anos ininterruptos, escreveu a coluna “A Arte de Ser Mulher”, na revista feminina Cláudia. Começou dando conselhos sobre os conflitos domésticos, sem nunca perder de vista a opressão da mulher, e terminou sendo uma presença vigorosa no feminismo brasileiro. Firme em suas posições, sensata e pragmática, ajudou milhares de mulheres a tomar consciência de sua posição no mundo. Escrevia para a classe média, mas nunca esqueceu que as maiores vítimas eram as mulheres pobres. Carmen da Silva – O Feminismo na Imprensa Brasileira, Ana Rita Fonteles, Expressão Gráfica e Editora, 186 páginas, R$ 20,00.
Catolicismo
Ainda que Villaça mantenha sempre um fio condutor – a passagem do dogma de limitante a libertador do pensamento, que culminaria em Alceu Amoroso Lima –, é na erudição rara e no prazer de quem escreve que reside o valor primeiro de sua obra, mais que em sua qualidade de síntese histórica. Villaça percorre com a naturalidade da conversa o labirinto de influências constatado por ele mesmo ao longo de suas leituras como estudioso. Destaque para os capítulos finais, sobre Frei Damião Berge e Heráclito. O Pensamento Católico no Brasil, Antônio Carlos Villaça, Civilização Brasileira, 335 páginas, R$ 42,90.
Guerra e Brasil
O economista e pesquisador Josué Mussalém analisa os impactos da Segunda Guerra Mundial no Brasil, abordando os contextos político, econômico, social e militar, recorrendo a inúmeras fontes primárias, no país e no exterior. Citando o professor Frank McCanm, da Universidade de New Hampshire, revela que oficiais superiores brasileiros fizeram curso de artilharia de costa nos EUA já em 1938 e que os americanos consideraram a possibilidade de ocupar à força o Nordeste brasileiro. II Guerra Mundial – Sessenta Anos Depois – Os Impactos do Conflito sobre o Brasil, Josué Mussalém,Comunigraf, 266 páginas, R$ 40,00.
AGENDA/LIVROS Filosofia contemporânea
Com o subtítulo Os Debates Rorty & Habermas, o livro Filosofia, Racionalidade, Democracia, organizado pelo doutor em Filosofia Política José Crisóstomo de Souza, traz o pensamento de dois dos mais engajados e cosmopolitas filósofos do nosso tempo, o norte-americano Richard Rorty e o alemão Jürgen Habermas. Entre os temas abordados, estão a própria filosofia, a cultura, a razão, a política, valores, verdade, linguagem e conhecimento, para os quais são também requisitadas as reflexões de outros pensadores importantes, do passado e de hoje, como Apel, Dewey, Wittgenstein, Heidegger, Nietzsche, Hegel e Kant. Filosofia, Racionalidade, Democracia, José Crisóstomo de Souza (Org.), Unesp, 272 páginas, R$ 29,60.
Amor e morte Em Biologia do Homem, o jovem poeta português Jorge Reis-Sá (nasceu em 1977, em Vila Nova de Farmalicão) fala de duas pulsões básicas do ser humano: amor e morte. Como ele próprio diz: “Dantes escrevia poemas de amor. Para viver com o amor nos poemas, sempre. Depois disseram-me que já toda gente o fez, que nada mais havia a escrever sobre o amor, que já estava em demasiados poemas. Eu aceitei o conselho e passei a escrever poemas de morte. Escrevi muitos poemas sobre meu pai, até o dia em que percebi que a morte é sinônimo do amor. E voltei a escrever o que nada mais havia a dizer. Porque até o poema é sinônimo do amor”. Biologia do Homem, Jorge Reis-Sá, Escrituras, 80 páginas, R$ 17,00.
Estratégia oriental
A Arte da Guerra, livro clássico do mestre chinês Sun Tzu, é um dos maiores tratados sobre estratégias militares, mas que vem sendo utilizado ao longo dos anos em todos os tipos de conflitos cotidianos, graças à sabedoria e alcance de seus ensinamentos, baseados no taoísmo, e no confucionismo. Neste livro, o texto de Tzu é comentado por dois outros estrategistas também chineses, à luz do I Ching também conhecido como Livro das Adivinhações. Traz também uma ampla introdução do sinólogo britânico Thomas Cleary, da Universidade de Harvard. Dominando a Arte da Guerra, Liu Ji e Zhuge Liang, Madras, 144 páginas, R$ 14,90.
Sapientia de Barthes
Nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível. É assim que a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF define a sapientia de Roland Barthes, o pensador francês que passou a vida numa mutação contínua, estudando desde a subjetividade autoral até a estruturalidade dos sistemas sígnicos, passando por filosofia, literatura, cinema, fotografia, mitos e utopias do século 20. O livro De Volta a Roland Barthes reúne ensaios de professores da UFF e da USP, em comemoração aos 25 anos da morte do autor francês. De Volta a Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés e Maria Elizabeth Chaves de Mello (Orgs.), EdUFF, 146 páginas, R$ 25,00.
Poesia e mistério Alex publica antologia de crônicas, com ilustrações de grandes nomes da pintura pernambucana, como João Câmara e Francisco Brennand
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osé de Sousa Alencar, mais conhecido pelo pseudônimo Alex, com que assinou, durante décadas, as páginas sociais do Jornal do Commercio, deu uma dimensão maior a este tipo de atividade jornalística. Mais que um colunista social, foi um cronista social, isto é, além das notas sobre aniversários e casamentos ou das notícias “de bastidores” de empresários e políticos, criou um espaço de reflexão sobre pessoas, fatos, emoções e pensamentos. É uma seleta destes textos que está no livro, Ao Lado o Arcanjo, em que, quase sempre numa clave poética, tece considerações sobre a vida, tirando, com sensibilidade, recortes dos detalhes significativos e até mesmo inusitados que às vezes se escondem por trás de fatos corriqueiros. Como no velório do poeta Mauro Mota, no salão nobre da Fundaj, quando percebe que em torno do prédio “os inúmeros cajueiros estavam floridos e pareciam penetrar pelas janelas abertas”, como que numa homenagem ao autor do livro O Cajueiro Nordestino. Ou, ainda, neste trecho, onde perpassa um sopro de mistério e pura poesia: “Ontem preparei a casa para receber. Joguei fora a poeira de um dragão fantástico e mudei da parede um cavalo lunar e noturno com a meia lua sobre a cabeça erguida. As luzes foram todas acesas e até mesmo a orquídea colhida no jardim foi para um jarro turquesa. Esperar não é bom, mas preparar-se para a espera pode ter o seu sabor, distrai, divide o tempo nos relógios, define a sombra e a face do que se deseja”. (Marco Polo) Ao Lado o Arcanjo, Alex, Intergraf, 144 páginas, R$ 25,00.
Clássica e experimental Em A Noiva de Messina ou Os Irmãos Inimigos, uma “tragédia com coros”, o poeta e dramaturgo alemão Friedrich Schiller pretende ressuscitar a tragédia grega nos palcos modernos, criando uma peça ao mesmo tempo clássica e experimental. A ação se passa na Sicília medieval e acompanha uma luta fratricida que acaba arrastando todos os envolvidos para um destino inexorável. A peça foi traduzida pelo poeta maranhense Gonçalves Dias, dentro de um projeto pessoal de divulgação das grandes obras internacionais em território brasileiro. O texto, que foi restabelecido por Manuel Bandeira, traz comentários do próprio Schiller, dos críticos A .W. Schlegel e F. Schelling, do escritor E. T. A. Hoffmann e do filósofo Friedrich Nietzsche, além de um posfácio assinado por Márcio Suzuki, todos estudando a não convencional utilização do coro da tragédia grega numa peça moderna. A Noiva de Messina, Friedrich Schiller, Cosac & Naify, 24 páginas, R$ 29,00. Continente abril 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Sobre leitura "A leitura, esse vício impune". Valéry Larbaud (19881-1953)
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os quatro sábados de fevereiro passado, o jornal O Globo publicou uma série de reportagens, no seu suplemento literário Prosa & Verso, sobre a situação do livro e da leitura, no Brasil. Para começo de conversa, os repórteres de O Globo reduziram a “pó de traque” dois mitos que a maioria de nós, esmolambados intelectuais de esquerda, costumamos usar como verdadeiros postulados, em mesas de bar ou no “bas-fond” das universidades. Mas, deixemos a casca e vamos à gema da questão. Os dois mitos recém-destruídos são: “Buenos Aires possui mais livrarias do que o Brasil inteiro;”, o outro é: “o brasileiro não gosta de ler”. Vamos logo ao primeiro, que dava um ar de erudição e objetividade empírica a muito beletrista. Hoje, as estatísticas estimam que o nosso país possua 1.800 livrarias, enquanto Buenos Aires possui 400. Tudo bem, mas até meus milhões de leitores sabem que a destruição do mito não é suficiente para se ter uma melhor imagem do Brasil. Nossa situação deixa apenas de ser muito humilhante, para continuar humilhante. O fato é que a Argentina, com uma área de 2.780 milhões de km2 e uma população de 37,5 milhões de pessoas, dispõe de uma livraria para cada 50.000 pessoas, e o Brasil, com uma área de 8.514 milhões de km2 e uma população (ano 2000) de 169 milhões de habitantes, dispõe de uma livraria para cada 84.500 pessoas; isso revela, com todos os algarismos, a superioridade do país do tango em oferta ou pontos de oferta de livros relativamente à sua população. Por trás desses algarismos estão o nível de escoContinente abril 2006
laridade, o hábito de leitura, o preço do livro e uma porrada de outras variáveis em que nosso país perde feio para a terra de Carlos Gardel. Mesmo pouco confiáveis as estatísticas sobre o universo cultural, pelo menos elas nos dão certa aproximação da realidade, paciência. Quanto ao segundo mito – morto e desmoralizado por várias experiências de sucesso –, o de que o brasileiro não gosta de ler, eu nunca acreditei nele. Sempre cri que ninguém pode gostar ou desgostar daquilo que desconhece. Um sujeito plenamente alfabetizado, mas não convencido dos mundos que se lhe abrirão, com o hábito de leitura, não gosta nem desgosta de ler. Alfabetizar os analfabetos e motivar os alfabetizados a ler, não esporadicamente, mas com freqüência, este é o caminho para aumentar os índices de leitura em nosso país e, como tudo que é fundamental, parece fácil, mas não é. O jornal, baseado em suas fontes, fala ainda da necessidade de se estimular “do jeito certo” o futuro leitor, mas não explica que jeito é esse. Creio que para cada uma das realidades deste desmesurado país existe um modo específico e mais eficaz de motivação para a leitura. Estou propenso a acreditar que em áreas de muitas alternativas de informação e lazer, será preciso, talvez, sofisticar as formas de motivação, o que talvez não aconteça numa pobre aldeia amazônica. Concordo com a reportagem ao argumentar que a “demanda por leitura” ainda não chegou à extensão e firmeza que estimule a abertura de novas livrarias autosustentáveis. Mas a chegada de livros nos cafundós do país, em número que possa satisfazer a demanda cres-
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cente (desde que o trabalho pró-leitura vá ganhando terreno), é possível através de bibliotecas públicas com acervo diversificado, o que é uma responsabilidade dos governos. Elas é que formarão a demanda segura que compense a implantação de livrarias. Mas há pedras econômicas nessa estrada. São muito complexos os caminhos que podem levar o livro às mãos de novos leitores. O que é preciso lembrar, em relação à interiorização do mercado do livro, é a infame renda de milhões de brasileiros. Tão baixa é essa renda que parece uma estupidez pensar que o aumento de livrarias aumentará o número de livros nas mãos dos leitores pobres. Eu mesmo, a única livraria que freqüentei, em toda a minha vida, foi a Livro 7, no Recife, do livreiro Tarcísio Pereira. E por quê? Lá havia bancos, circulando um micro-jardim, onde sentávamos e líamos, tranqüilamente, os livros em exposição. Para a parte cachaceira de sua clientela, mantinha, aos sábados, um barrilzinho de aguardente, sem dono, no meio da livraria, com pilhas de copinhos de plástico. Eu fazia parte deste tipo de clientela. A Livro 7 fechou, pois os últimos governos empobreceram
demais a classe média e baixa, os professores universitários, principalmente. Ele vendia livros à prestação, e a inadimplência fechou as portas de sua livraria, que está, para sempre, nos anais de nossa lembrança. Eu, que antes só comprava livro nos sebos, depois da Livro 7, aos sebos voltei. Ainda continuam muito baixos os índices de leitura. As editoras continuam com suas tiragens médias de 2.000 e 3.000 exemplares. E 70% do que publicam são de autor estrangeiro. A mesquinhez editorial é coerente com a baixa renda média dos brasileiros, lembra o jornal, citando o IBGE, que ainda mostra uma queda de 16% no rendimento médio do país, de 1995 a 2004. Mais de um entrevistado de O Globo falou na “cultura do livro caro” das grandes editoras brasileiras. Exemplificando que livros de R$ 25, R$ 40 e R$ 50 “são artigos de luxo”. Se o presidente Lula estava pensando em baratear o livro, quando em fins de 2004 isentou as editoras dos impostos PIS e Cofins, bateu com o pangaré na poça, pois nenhum comprador sentiu qualquer diferença. Existe, ainda, o problema do livro didático. Concordo com o governo, mas vou deixar para lá, porque isto é uma crônica e não um relatório. •
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ARTES
Mulher Sentada, de Gina
Representações do erotismo popular Marchand paulista coleciona arte popular erótica, num espectro que vai da sutileza à pornografia Arthur Aguiar
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dão e Eva são retratados nus no paraíso – o primeiro mito erótico do Ocidente; mais à frente, dois torcedores de futebol mantêm relações homossexuais num banheiro público; logo depois, um rosto é desenhado tendo várias genitálias femininas como representação do cérebro; ou, em seguida, uma mulher nua que se banha num riacho em que seus cabelos se confundem com a água; juntamente com outras cerca de 80 obras de arte populares, essas representações do imaginário popular da sexualidade são a tônica de uma coleção feita pelo marchand paulista Roberto Rugiero. A sexualidade e o erotismo são as temáticas que balizaram a reunião de cerca de 40 artistas das classes menos favorecidas do país, critério sócio-econômico que, segundo Rugiero, é, juntamente com a ausência de uma formação erudita em artes plásticas, o que define o artista como popular. “A arte é um objeto de desejo, como o sexo é. Nada mais natural que juntar as duas coisas”, diz Rugiero, explicando o processo de formação da coletânea.
ARTES
“Desde que existe a arte popular, existe o picaresco desmistificado; quando a arte deixa de ser mística e passa a retratar a vida das pessoas, dessacraliza-se e passa a dar espaço ao popular e ao sexual, ao erótico. É um tipo de expressão muito antigo e que vem desde a influência portuguesa no país, influenciado pela própria Idade Média”, conta o marchand. Chico Tabibuia, Ranchinho, José Antônio da Silva, Vicente Ferreira, Ciça e Babalu, provavelmente, não são os nomes mais tradicionais a serem catalogados para uma exposição em profundidade. Artistas populares, todos oriundos de situações financeiras precárias, eles são alguns dos principais criadores reunidos. Cerca de 80% das obras que fazem parte da coleção surgiram naturalmente, como parte da criação espontânea de cada artista. “Hoje, a sexualidade é maior que a religião na representação da arte popular. Com a ascensão do evangelismo, que não permite a figuração, diminui a presença da religião na expressão popular. Desde que o mundo é mundo, o erotismo está aí como uma das principais forças da natureza. Antes, pelo mito da fertilidade e, hoje, pelos aspectos prazerosos e poéticos da vida”, afirma Rugiero. Mas ele também pediu a alguns artistas que considera importantes no cenário da arte popular que desenvolvessem obras com o tema da sexualidade. “Eu coleciono arte organizada em temas há algum tempo: religiosidade, carnaval, futebol – sobre o qual já tenho pelo menos 20 obras reunidas –, paisagem e o erotismo, que sempre é um dos assuntos que mais interessam ao público”.
Acima, Sanfoneiras, de Nilson Pimenta. Ao lado: Adão e Eva, de Resendio
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ARTES
Sem Título, da Família Cândido. À direita: Barca, de Babalu
Pintura, escultura, xilogravura e objetos lúdicos: brinquedo para gente grande, objetos de arte criados a partir da manipulação, mas que mantêm aspecto de jogo, são algumas das técnicas utilizadas pelos artistas. A abordagem do erotismo toma diferentes formas, podendo ir do sutil, do belo e sensual, à figuração ponográfica, desde que com um bom nível artístico. “A pornografia faz parte do leque da sexualidade. Algumas obras são mais explícitas, outras chegam a ser críticas. Há vertentes de sexualismo heterossexual, homossexual e sodomistas; a única forma de erotismo sobre a qual não encontrei nenhuma referência foi o homossexualismo feminino”, diz Rugiero. Entretanto, o maior reforço da coleção está na sensualidade, no jogo duplo de imagens que podem parecer inocentes, mas contêm malícia, na criatividade em mostrar o que excita, na figuração da nudez. “A arte popular erótica é reforçada na sensualidade que aparece por meio da nudez, das vestimentas, da postura das pessoas retratadas... São imagens que são eróticas apenas na medida em que a nudez, a sensualidade, pode ser considerada erótica.” Rugiero lembra, também, o caráter humorístico da representação popular, que aparece em muitas das obras que brincam sobre a temática da sexualidade. “Tem todo tipo de abordagem. Algumas obras são bem sutis, como a do artista Ranchinho (que além de tudo é deficiente físico e mental, mas que tem na sexualidade uma de suas obsessões existenciais, presente muitas vezes de forma metafórica e subliminar em seus guaches e pinturas), que mostra uma garota pulando uma cerca em direção a um touro, que tem um erotismo subliminar, muitas vezes não percebido pelo próprio artista, que não sabe que está fazendo uma obra erótica.” O Estado brasileiro com o maior número de artistas populares representados na coleção de arte erótica popular é Pernambuco. “É o México do Brasil. É o Estado culturalmente mais rico do país”, ressalta Rugiero. Segundo ele, além do grande número de artistas e obras, o Estado também contribui com algumas de maior qualidade. “A urbanização das capitais do Sudeste quase anula a presença de artistas populares tradicionais, como existem no Nordeste, com grande qualidade, mesmo nos centros urbanos”, finaliza. • Continente abril 2006
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Lygia Clark: após o estético A radicalidade da artista plástica, sua coragem de inovar e sua intuição de uma outra linguagem tornaram possível seu reconhecimento
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ygia Clark levou sua experiência de artista plástica a uma tal radicalidade que extrapolou os limites do que se pode considerar como arte, para penetrar num campo até então indevassado: o uso de objetos inventados para, com sua ajuda, explorar outras dimensões da sensibilidade. Há uma retrospectiva de sua obra, atualmente, na Pinacoteca de São Paulo. Ao iniciar sua carreira de pintora no final da década de 40, ela nunca podia suspeitar do rumo a que suas buscas a conduziriam, mesmo porque esse rumo só começaria a esboçar-se depois que ela, sob a influência do crítico Mário Pedrosa e da arte concreta, abandonasse a pintura figurativa. Certamente, ela tomou o rumo que tomou, em função de sua personalidade que imprimiu às idéias concretistas um cunho próprio. Tampouco as coisas teriam acontecido como aconteceram, não fosse a eclosão do movimento neoconcreto, que se opôs ao excesso de racionalismo que caracterizava a arte concreta, e abriu caminho para a participação do espectador na obra de arte, ou seja, mudou a relação autor-obra-espectador, tornando-a mais sensorial, tátil e relacional do que apenas intelectual e visual. Mas como isso se deu? Se é verdade que foi a criação dos poemas espaciais e, particularmente, “Poema Enterrado”, de minha autoria – que introduziu a participação corporal na obra –, só a radicalidade de Lygia Clark, sua coragem de inovar e sua intuição de uma outra linguagem, tornaram possível o seu reconhecimento. Essa radicalidade manifestou-se inicialmente na eliminação de toda e qualquer forma no espaço da tela, o que fez com que se defrontasse com o suporte material da pintura, puro e simples, como um questionamento: volto a pintar? Como já observei em outra ocasião, essa experiência de Lygia repete, noutro plano e noutras circunstâncias, o impasse a que chegara Casemir Malevitch, após pintar o quadro Branco sobre Branco, em 1918. A tela em branco é o fim ou o recomeço da pintura: o fim, se o artista, por não querer recuar, desiste Bicho, alumínio, 1964, de pintar; o recomeço, se ele recua e volta a pintar. 20x15x19cm Continente abril 2006
TRADUZIR-SE
Espaço Modulado, tinta industrial sobre madeira, 1984, 30x30cm
Malevitch, diante do impasse, optou pelas construções em terceira dimensão (arquiteturas suprematistas), que em seguida abandonaria para retornar à pintura figurativa. Lygia adotou uma atitude parecida com a de Malevitch (muito embora ignorasse a opção do russo), mas essencialmente diferente: decidiu, em vez de voltar a pintar sobre a tela, agir sobre ela: estufá-la, cortá-la. Essa atitude implica o abandono da ação do pintor, criadora do espaço imaginário – que é o ato de pintar – pela ação real, física, transformadora do suporte material da pintura, que é o quadro, a tela. A partir daí, o objeto resultante dessa ação pretende incorporá-la como significação: isto é, o resultado não seria um simples objeto e, sim, um novo “estado” em que a “pintura” se manifestava. Pintar deixava de ser valer-se de formas e cores pintadas sobre a tela e tornar-se-ia a metamorfose de seu suporte. Na verdade, desse modo, Lygia abandonava a pintura e iniciava uma aventura de conseqüências imprevisíveis. Seu propósito era explorar um terreno fora das linguagens existentes, porque, se aquilo não era pintura, tampouco se queria escultura. Estou falando, de fato, nos famosos Bichos, que Lygia Clark inventou por volta de 1960 e que constituem, por assim dizer, a linha divisória entre o último momento do “objeto artístico”, na busca de expressão da artista, e as experiências meramente sensoriais em que a concepção do objeto não é um fim em si mesmo, mas a tentativa de criar formas instrumen-
tais capazes de atuar nas camadas insondáveis do corpo. São o que ela chamava de “objetos relacionais”. Isto é, objetos que têm a função (e a virtude) de, ao serem tocados e manipulados, (como máscaras, luvas, bolas, redes, pesos), suscitar impulsos ou revelações capazes de reestruturar o “eu” (self), tal como o concebe a psicanálise. Parte ela do pressuposto de que o corpo é um aglomerado de significações intraduzíveis em palavras ou figuras, a que só se teria acesso pela provocação de choques sensoriais inusitados; a estranheza da experiência sensorial deflagaria reação reestruturadora do eu profundo. Trata-se, sem dúvida, de uma teoria impossível de comprovar, em que Lygia fundiu suas experiências sensoriais, configuradas nos objetos relacionais, à sua experiência de “analisada”, para dar sentido a uma busca formal que, no plano estético, perdera sentido. Lygia Clark tinha consciência de que os objetos que passara a criar não possuíam qualidades artísticas, não eram para ser contemplados, mas para serem manipulados e usados. Se a experiência estética implica distanciamento e contemplação – definindo-se como vivência espiritual ou intelectual –, o que Lygia pretendeu situa-se no pólo oposto a isto, já que se volta para o envolvimento tátil com a “obra”, na tentativa de explorar o lado escuro do eu. Não a visão – definível como distanciamento objetivo –, mas o tato, que é cego, torna-se o veículo da busca de sentido para a expressão plástica. •
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AGENDA/ARTES
Imagens: Divulgação
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Arte em foto Fotógrafo que mais assina as fotos de artes plásticas, Wilton Montenegro, expõe seus trabalhos pela primeira vez
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fotografia de uma obra de arte carrega, normalmente, em seu crédito, um nome de peso. No caso dos registros de mostras de arte contemporânea brasileira, o fotógrafo que aparece com maior freqüência é Wilton Montenegro. Discretamente, no cantinho da foto, sempre ele, o preferido de artistas como Franz Weissmann, Eduardo Sued, Ricardo Basbaum e Jac Leirner. Wilton, então, resolveu inverter os papéis e assinar uma exposição para provar a importância da fotografia na expressão da obra de arte. Intitulada Da obra, nasce outra obra, a mostra está em cartaz no Centro Cultural Telemar e apresenta registros de intervenções, instalações e performances, que falam da necessidade da fotografia como suporte para a permanência dessas criações. A transposição de objetos tridimensionais, como esculturas e instalações para a linguagem bidimensional da fotografia, provoca uma busca de adequação que pode implicar em transcrição ou até mesmo em “transcriação” e é exatamente isso que Wilton pretende traduzir para o público. Da obra, nasce outra obra. Centro Cultural Telemar (Rua Dois de Dezembro, 63, Flamengo – RJ). Fone: (21) 3131.3060. Até 17 de junho.
Arquitetura e arte Quando o arquiteto Acácio Gil Borsoi chegou ao Recife, na década de 1950, as formas até então presentes no mercado, quase sempre simétricas, deram espaço ao seu trabalho inovador. O mais importante hospital público do Recife, o Hospital da Restauração, localizado na Av. Agamenon Magalhães, é um dos exemplos de sua contribuição didática à região. Casa projetada Aos 80 anos, Borsoi é um por Borsoi ícone da arquitetura moderna brasileira e revê suas criações em painéis expostos no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) na mostra Arquitetura como Manifesto. Nascido no Rio de Janeiro, Borsoi lecionou durante 28 anos na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), estendeu sua atuação a todo Nordeste e assinou obras também no Centro Administrativo de Uberlândia. Entre as premiações que atestam a qualidade de seu trabalho estão o prêmio máximo de arquitetura por sua contribuição à arquitetura brasileira (Colar de Ouro) na Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo e uma menção honrosa em Paris, promovida pela União Internacional de Arquitetura (UIA) pelo trabalho de Arquitetura e Erradicação da Pobreza, entre outros. Arquitetura como Manifesto. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista – Recife – PE). Tel: (81) 3423-2761. Até 30 de abril. Continente abril 2006
A natureza por José Guedes O artista plástico cearense, José Guedes, brinca com a natureza, recortando árvores, interferindo em poças d’água, registrando o mar com ângulos diferenciados e explorando o uso de espelhos e reflexos em meio à paisagem urbana. Suas criações estão retratadas através de 26 painéis com imagens digitais, dois vídeos em projeção contínua, duas instalações e um registro digital de intervenção urbana no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza – CE. A mostra é inédita no Ceará e a segunda maior da carreira do artista. Poemas Visuais sobre Paisagens Contemporâneas. Até 30 de abril no Centro Cultural Banco do Nordeste (R. Floriano Peixoto, 941 – Centro). Fone: (85) 3464.3108
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Em O Pesadelo de Darwin, o comércio de peixe funciona como simbologia para toda uma situação política e social
O Pesadelo de Darwin Documentário do austríaco Hubert Sauper faz um painel desolador sobre pobreza e violência nas comunidades ribeirinhas do Lago Vitória, o segundo maior do mundo e o maior da África Kleber Mendonça Filho
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ano de 2005 viu uma safra interessantíssima de filmes (boa parte deles ainda inéditos comercialmente no Brasil) que contribuem para um painel crítico e reflexivo sobre o grande tema do nosso hoje: o embate entre ricos e pobres, o sistema cruel de desigualdade na sociedade moderna pósGuerra Fria, a riqueza da Europa e dos Estados Unidos e a relação que eles têm com os que ali querem entrar, ou com os que ali estão infelizes, segregados, marginalizados do processo tido como oficial. É um mundo que quer enquadrar um todo, e onde muitos estão fora do quadro. Desta safra, quatro filmes merecem destaque: Caché, filme francês do austríaco Michael Haneke, apresenta um mal-estar social e racial que explodia nas ruas da França na época em que o filme teve seu lançamento nos cinemas franceses. O filme funciona como perfeita demonstração do quão sintonizada essa obra está com o ambiente humano e social daquele país. Seu foco está num francês aburguesado que é Continente abril 2006
obrigado a lembrar um fato (bastante simbólico, politicamente) da sua infância que envolveu um então garoto argelino. Esse filme potente corre paralelo com The Three Burials of Melquiades Estrada (Os Três Enterros de Melquíades Estrada), de Tommy Lee Jones, uma pequena grande história sobre racismo e, no final das contas, respeito ao ser humano, ambientada numa das fronteiras mais significativas do mundo no sentido “norte-sul”, “rico-pobre”: a linha que divide os Estados Unidos do México. O filme de Lee Jones – que, como Caché, foi premiado no Festival de Cannes 2005 – desenvolve-se como um lindo conto sobre a aspereza e a delicadeza da humanidade. Já enfocando a África, o brasileiro Fernando Meireles adaptou com vigor e pesar um romance extremamente britânico de John Le Carré, O Jardineiro Fiel (The Constant Gardener). Fez um thriller que não parece querer ser, de fato, um thriller no sentido hollywoodiano do termo, por mais que seu material promocional insistisse. O filme, que pode ser des-
CINEMA Fotos: Divulgação
Yliushin, avião cargueiro de fabricação soviética: imagem de um mundo onde prevalecem os mais potentes
crito como de liberal-esquerda, enfoca os mecanismos de lucro e truculência entre mundo rico (a grande indústria farmacêutica) e mundo pobre (cobaias africanas), mais uma vez expondo a falta de respeito ao ser humano. O quarto filme, Darwin’s Nightmare (O Pesadelo de Darwin), de Hubert Sauper, faria uma sessão dupla saudável com O Jardineiro Fiel. Se o primeiro utiliza artifícios de um cinema ficcional sensorial (com pitadas de um registro documental), o segundo resulta sensorial pela naturalidade e coragem que tem de registrar um quadro de horror presente e real, mais uma vez, na África. O foco narrativo deste documentário é o Lago Vitória, o segundo maior do mundo e o maior da África. Banha o Quênia, Uganda e a Tanzânia, sendo ainda a nascente do Rio Nilo. Da Tanzânia, em Mwanza, às margens do lago, Sauper registrou o bem-sucedido comércio de peixe, que funciona como simbologia e fio condutor para toda uma situação política e social. Do lago, saem semanalmente 500 toneladas de peixes, que são processados em fábricas administradas para satisfazer padrões de higiene europeus. No pequeno e movimentado aeroporto de Mwanza, aviões cargueiros Yliushin de fabricação soviética chegam abarrotados com cargas misteriosas, ou com doações de comida da comunidade internacional, numa tentativa de ajudar os milhares de refugiados das guerras fraticidas da região. Ironicamente, os mesmos aviões decolam com até 50 toneladas de filé de peixe processado rumo às mesas da Europa. São jogadas em lixões toneladas de espinhas e cabeças de
peixe que a população faminta reprocessa para comer. Há uma ironia darwiniana que sublinha o todo. Nos anos 60, alguém inadvertidamente trouxe para o Lago Vitória uma espécie de peixe até então alienígena ali: a Perca do Nilo, um predador que, ao longo dos últimos 40 anos, dizimou mais de 200 outras espécies. O ecossistema estaria tão doente que o peixe, um grande sucesso comercial, estaria agora praticando canibalismo contra os seus. Sauper monta um painel desolador sobre pobreza e violência, ao aproximar-se de uma dezena de personagens que personificam diferentes mazelas sociais, políticas e humanas. O vigilante de uma das fábricas prefere matar quem pular o muro, pois já matou gente demais nas guerras. As prostitutas de Mwanza, presas num círculo vicioso de estrangeiros, Aids e violência. Os pilotos russos e ucranianos ganham destaque especial na galeria de personagens e Sauper transforma os Yliushins (aviões gordos, gigantescos, representativos de uma tecnologia e sistema político ultrapassados) em imagens-ícones no filme. Os pilotos mantêm discrição sobre o que trazem nos seus Yliushins, consertam avarias constantes nos aviões e pesam, a golpe de vista, sobrecargas para ganhar aquele extra financeiro, caso concordem em decolar com cinco toneladas a mais do que se recomenda. Ao vermos as cabeceiras da pista de Mwanza como cemitério de aviões que não conseguiram decolar (com morte certa para suas tripulações), Sauper fecha seu filme com a imagem simbólica de um mundo onde prevalecem os mais potentes. • Continente abril 2006
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A contradição do mundo “Estamos cavando nosso próprio túmulo”, avalia Hubert Sauper, depois de quatro anos rodando O Pesadelo de Darwin
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ubert Sauper não estava muito satisfeito no último Festival do Rio, em outubro. A cópia 35mm do seu filme, Darwin’s Nightmare (O Pesadelo de Darwin) havia ficado retida na alfândega brasileira e o filme terminou sendo projetado em DVD. A sessão na qual vimos o filme transcorreu tensa com o que víamos, e a platéia parecia achar de mínima importância o fato de o formato de projeção ser tecnicamente inferior. O documentário e sua formidável exposição de como o mundo consegue ser contraditório falaram bem mais alto. Sauper é austríaco, das montanhas do Tirol. No entanto, deixa transparecer claramente a postura de um cidadão do mundo com estofo europeu. Estudou cinema em Viena e em Paris. Morou na Itália, Inglaterra e nos Estados Unidos. O Pesadelo de Darwin é o seu filme mais bem-sucedido, até agora, numa carreira composta por, em grande parte, documentários. No final de 2005, o filme entrou na concorrida lista de filmes documentais elegíveis para uma indicação ao Oscar. Sauper investiu no projeto quatro anos e cerca de 300 mil euros para realizar uma obra rodada com pequenas câmeras digitais que investigam a visão política de um mundo que o clichê descreve como globalizado. “O Pesadelo de Darwin é Continente abril 2006
uma história sobre seres humanos que estão entre o norte e o sul, sobre globalização e sobre peixe”, diz o realizador ao apresentar seu filme. Nesta entrevista feita no Rio, horas antes de embarcar para Tóquio, o resultado parece refletir o próprio filme. Sauper fala tanto sobre aviões Yliushin soviéticos como também sobre peixe e ecologia, sobre mundo rico e mundo pobre e sobre um certo cinema atual que se mostra preocupado com o mundo. Para onde iam aqueles aviões Yliushin? Vemo-llos chegando e levantando vôo em direção à “Europa”, mas quais os destinos, efetivamente, de toda aquela comida exportada? Os aviões vêm da Rússia, Moldávia e Ucrânia, eram das forças armadas soviéticas. Agora, voam comercialmente em todo o mundo, especialmente na África. Você pode alugá-los para transportar seja lá o que você quer ou precisa, entre a Europa e a África e o Oriente Médio, ou no sentido inverso. Eles levam peixe para a Bélgica, França, Áustria, Eslováquia, Espanha... Descarregam os peixes e voltam para a África carregados de televisores, geladeiras, Kalashnikovs, o que for.
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Um ponto crucial do filme é a curiosidade em torno do que os aviões trazem da Europa para a África, enigma solucionado por um dos pilotos num momento que expõe forte elemento humano. Eu trabalhei nesse filme durante quatro anos. Eu sabia que teria que chegar naquele ponto, em algum momento. Chegar para um dos pilotos e fazer a pergunta, formalmente: “Eu sei o que vocês levam, mas me digam: o que tanto vocês trazem no compartimento de carga?” Eu queria que isso simplesmente surgisse, em alguma fala, algum depoimento, naturalmente. Em francês, você diz le non dit que, às vezes, é mais forte do que as coisas que são, de fato, afirmadas. Muita gente me perguntou, se eu não teria tido resultados diferentes, se tivesse sempre perguntado “o que tem aí nessa carga?”. Obviamente, é claro que eu sabia o que tinha ali. Nós chegamos a um ponto onde ele simplesmente achou que seria necessário, ele mesmo, dizer. Soou-me como um tipo de confissão. E é bom que fique claro que eu sou geralmente muito franco sobre minhas intenções. Em outras situações, eu explicava que era um filme que tinha um ponto de vista crítico sobre uma determinada situação. Aos donos das fábricas, por exemplo, eu nunca menti, afirmando que o filme seria uma boa propaganda para seus lindos empreendimentos. Deixei claro que tentava enxergar as coisas num contexto complexo. Já com os pilotos russos, eu de fato me tornei amigos deles, sem confrontá-los. Foram dois anos de uma relação que poderia tornar-se fisicamente perigosa para mim, onde as palavras “bombas” ou “armas” eram proibidas. Durante esse tempo, eu era apenas o cara interessado em peixe, aviões, pneus, turbinas, e isso foi parte da minha relação com eles. Bebíamos vodca, nos aproximamos e, aos poucos, perguntei coisas tipo “...mas, o que exatamente você está fazendo?” Durante esses anos, eu virei um tipo de superespecialista em tráfico internacional de armas, pois conheci todos os autores que escrevem sobre o tema, todos os sites de internet sobre o tráfico na região dos grandes lagos. Passei a conhecer os envolvidos e suas famílias, os traficantes, os transportadores e empreendedores que vivem disso.
Você enxerga uma certa tendência atual no cinema, em especial o europeu, de enfocar o choque entre mundo rico e mundo pobre? Existe uma ação coordenada para que se filme tema tão relevante e atual? Talvez esta coordenação me faça acreditar que os intelectuais estejam se comunicando, estão discutindo. Muitos vêem o que eu faço, eu vejo o que eles fazem. De qualquer forma, é um tema extremamente necessário, atualmente. Creio que os que estão tentando radiografar os problemas não trabalham movidos por algum sentimento de pena ou caridade, “os pobres marroquinos” ou algo do tipo. Isso fica com a igreja, ela vem fazendo isso ao longo dos últimos dois mil anos. Para mim, está mais no desejo de revelar a fantástica estupidez da nossa política. Eu poderia ter feito esse filme em Serra Leoa e, no lugar de peixe, seriam diamantes, ou petróleo na Líbia ou em Angola. Muita gente não entende, mas creio que estamos cavando nosso próprio túmulo, regando jardins e mais jardins de pequenas plantas BinLaden ao tratar, por exemplo, um país como o Chad como se fosse merda.
Que impacto político O Pesadelo de Darwin teve, na sua percepção? Muito mais do que eu esperava. Eu imaginava que talvez tivesse um efeito político, mas não pensei que tivesse qualquer tipo de efeito sobre as crianças da Tanzânia. Na verdade, não achei que tivesse qualquer tipo de influência sobre a realidade da Tanzânia. O presidente do país, aliás, viu o filme e queria me conhecer, algo que eu soube através de gente que trabalha no governo. Agora que ele não vai mais se reeleger, imagino que não queira mais se reunir comigo. No entanto, acho que o filme funciona num nível sub-cutâneo ao ser visto por milhões de pessoas, fornecendo mais um elemento para cada uma dessas pessoas chegar a uma mudança no sentido mais coletivo do termo. A partir daí, eu espero, cria-se uma pressão maior sobre os que fazem a política. Talvez os eleitores não votem nos mesmos de sempre. De qualquer forma, há efeitos bem diretos que eu não sei se deveriam, ou não, me deixar feliz. O filme foi exibido no Parlamento Europeu para políticos que lidam diretamente com a indústria pesqueira interUm projeto como este deve ter um preço físico e pessoal. nacional. Acontece que a pressão que foi feita sobre os polítiVocê se sentiu atingido pelo tema e pelo que registrava? cos resultou em mudanças, tais como limpar os lugares onde Muito. Eu não consegui fazer o filme de uma só vez. Eu as carcaças de peixe são reprocessadas, ou instalar duchas para precisava voltar e descansar. Descobri também que, após cada os trabalhadores. Enfim, cosmética que não muda em nada o sistema, bloco de trabalho, foram quatro, ao todo, eu estava completalvez o suficiente para expurgar culpas. • (K.M.F) tamente esgotado. Continente abril 2006
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A Máquina chega ao cinema Em sua estréia como diretor de cinema, João Falcão pretende repetir na tela grande o sucesso da peça A Máquina, misturando signos de pós-modernidade às tradições populares Alexandre Figueirôa
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uando o pernambucano João Falcão dava seus primeiros passos na vida artística, nos palcos recifenses já era perceptível que o rapaz chegaria longe. Mas foi apenas após desembarcar no Rio de Janeiro que ele desenvolveu todo o seu potencial criativo. No teatro, sua carreira é repleta de sucessos com as montagens de A Ver Estrelas, Mamãe Não Pode Saber, O Burguês Ridículo, A Máquina e Cambaio (com música de Chico Buarque). Na televisão, ganhou destaque, sobretudo, com a vitrine proporcionada pela TV Globo, onde participou ativamente do núcleo do também pernambucano Guel Arraes. Lá, ele produziu O Coronel e o Lobisomem, O Homem que Sabia Javanês, Suburbano Coração, para a série Brasil Especial e também capítulos da Comédia da Vida Privada. Agora, aos 47 anos, João diversifica ainda mais os seus talentos: consolidando-se na direção cinematográfica. E, pelo visto, com possibilidades de repetir o brilho de sua trajetória até o momento. Com a estréia da adaptação do romance A Máquina, de autoria de sua esContinente abril 2006
CINEMA Fotos: Zeka Araújo/Divulgação
Os atores Mariana Ximenes e Gustavo Falcão
posa Adriana Falcão, para as telas, João dá continuidade às experiências iniciadas como roteirista de Auto da Compadecida, de Guel Arraes, e A Dona da História, de Daniel Filho (adaptação de uma peça do próprio João) . No último FestRio, A Máquina foi muito bem recebido pelo público e ele já está finalizando seu segundo longa, Fica Comigo Esta Noite, adaptação da peça homônima de Flávio de Souza. O primeiro filme de João Falcão é claramente uma experiência voltada para o entretenimento. Segue o rastro do êxito da montagem teatral, cuja estréia aconteceu no Recife e seguiu pelos palcos brasileiros, impressionando as platéias pela sua carpintaria teatral espetacular e um elenco afinado, com destaque para os então pouco conhecidos Wagner Moura, Vladimir Brichta e Lázaro Ramos, hoje atores renomados no cinema e na televisão. Eles também aparecem no filme ao lado de Gustavo Falcão e Mariana Ximenes, a quem foram destinados, desta feita, os papéis principais junto com o veterano Paulo Autran. João, todavia, apostou na potencialidade fílmica do texto de Adriana Falcão, desde que o leu pela primeira vez. “Sempre achei que a história de A Máquina merecia ser contada em qualquer veículo e desde a estréia da peça tento viabilizar sua produção cinematográfica”, afirma ele com tranqüilidade. Como o livro da Adriana é literatura em estado puro, sem diálogos e com as ações se passando muito mais no interior dos personagens do que nos acontecimentos externos, para o diretor foi um grande desafio encontrar uma linguagem puramente teatral, sem abrir mão da poesia do texto. Continente abril 2006
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Na versão cinematográfica do livro A Máquina, de Adriana Falcão, há o recurso claro a um imaginário regionalista
Face ao sucesso da peça, o desafio da adaptação para o cinema aumentou. João procurou vários produtores cinematográficos, muitos dos quais haviam assistido à versão teatral, adoravam a peça e, por isso mesmo, achavam que aquilo era teatro puro e não dava filme, até que Diler Trindade – produtor de filmes da Xuxa e Renato Aragão – apostou na proposta. “Agora, com o filme pronto, penso que temos três versões muito próprias da mesma história, O livro é muito diferente da peça que é muito diferente do filme que é muito diferente do livro, mas o poder da palavra está presente nas três experiências”, observa, confiante. A Máquina é uma fábula que se passa numa pequena cidade imaginária chamada Nordestina. Nela vamos encontrar Karina, sonhando em conhecer o mundo lá fora, e Antônio, um jovem apaixonado que, para trazer o mundo de sonhos para sua amada e conquistar definitivamente a sua afeição, desafia o tempo. O filme foi praticamente todo rodado em estúdio e mescla vários recursos audiovisuais comuns tanto ao meio televisivo quanto cinematográfico. João confessa que, ao longo dos anos, nos quais alimentou a idéia de fazer o filme, fez várias viagens ao interior em busca de locações e muitas das cidades visitadas retratavam perfeitamente a Nordestina real. “Acontece que o filme, como eu o estava construindo, não era nem realista nem documental. Eu queria contar uma fábula nos dias de hoje, porém sob o ponto de Continente abril 2006
Cidade fictícia de Nordestina: cenário de memórias fabulistas
vista de um personagem situado no futuro, cinqüenta anos à frente. O passar do tempo idealiza as memórias desse personagem, e os cenários dessas memórias precisavam ser idealizados. Optei então por construir a cidade de Nordestina dentro de um estúdio e trabalhar dentro dessa irrealidade”. Não é difícil identificar no filme traços de uma estética que aproxima A Máquina de algo já visto de alguma forma em Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes. Há nele o recurso claro de um imaginário de fundo regionalista – como pode ser observado na entonação das vozes dos atores e no figurino –, que se mescla com citações do pop e de elementos da cultura contemporânea, onde signos de pós-m modernidade são contrapostos às tradições populares. A explicação para tal mix é oferecida pelo próprio João, pela forma como ele manipula os processos de produção de imagens em que emergem claramente uma formação na televisão, considerada por ele um veículo, e como tal capaz de produzir e exibir os mais diversos formatos, desde uma telenovela com mais de 200 capítulos, com cinco diretores que gravam 40 seqüências por dia, até um documentário científico que demorou anos para ser feito. “No meu caso específico, prefiro produzir obras curtas de ficção, onde tenha mais tempo para trabalhar o texto e os atores, como sempre fiz no teatro. Ainda na televisão gosto de trabalhar com equipe pequena e uma única câ-
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Cine PE faz 10 anos Evento faz retrospectiva dos filmes exibidos nos últimos nove anos e acirra a competição entre vídeos e curtas-metragens
N João Falcão dirige Paulo Autran
mera, como faço agora no cinema. Talvez a grande diferença entre trabalhar em um e outro veículo é o fato de a televisão no Brasil falar para um público infinitamente maior que o cinema e isso é algo que não dá pra esquecer”. João, embora se revele grande admirador do trabalho de Guel Arraes e de Jorge Furtado e afirmar sentir orgulho de qualquer comparação com ambos, diz não perceber influência direta do trabalho deles no filme A Máquina. Ele acrescenta “também não acreditar na existência de um estilo ou maneira adequada de fazer cinema para o espectador brasileiro”. “Não parto do pressuposto de que o espectador brasileiro se relaciona melhor com determinado universo estético televisivo ou não. A verdade é que não consigo identificar esse “universo estético da televisão” e, menos ainda, nomear Guel Arraes e Jorge Furtado como exemplares típicos desse universo”, completa. Talvez a fotografia de Walter Carvalho, um artista muito mais ligado ao fazer cinematográfico do que ao universo televisivo, e o próprio percurso teatral de João Falcão mascare de certa maneira tais influências, contudo elas são incontornáveis e não haveria aí nenhum problema sob o ponto de vista dos objetivos comerciais do filme, cuja meta é, sem dúvida, atingir uma platéia acostumada a compartilhar a sala de cinema com sua sala de estar. E este é um caminho que a Globo Filmes, parceira do projeto, acalenta sem remorsos e hoje já está incorporado na produção cinematográfica brasileira. Cabe agora ao espectador ver o filme e tirar as suas próprias conclusões. •
o últimos nove anos, o Cine PE – Festival do Audiovisual exibiu 508 filmes, entre curtas e longas, para mais de 200 mil pessoas. Consagrado pela marca de Festival que mais reúne público do circuito, cerca de 25 mil pessoas por edição, o evento, que se realizará entre os dias 16 e 22 de abril, chega aos seus 10 anos com algumas novidades. Uma é a criação da Mostra Retrospectiva de Longas-Metragens Nacionais e Curtas-Metragens Pernambucanos, com filmes escolhidos por votação direta no site do evento. Outra é a ampliação da participação de trabalhos captados em câmera digital de outros Estados do Nordeste na Mostra Competitiva de Vídeos Digitais, até o ano passado restrita aos pernambucanos. Ainda no âmbito competitivo, mais uma boa nova: a competição entre os curtas-metragens em 35mm terá critério de premiação única. Segundo a diretora do Cine PE, Sandra Bertini, deverão ser exibidos, por noite, cinco filmes, sendo dois vídeos digitais, dois curtas e um longa. No final de semana, considerando a quinta (20/4), pré-feriado, e a sexta (21/4), a maratona se estenderá um pouco, com mais um longa por noite. As noites do sábado (22/4) e da abertura (domingo/16) serão destinadas às exibições de películas fora de competição. O evento permanece com a programação dedicada a oficinas, palestras e debates. Os ingressos eletrônicos já estão à venda nas lojas BR Mania dos postos credenciados. Durante o evento serão vendidos nas bilheterias do Cecon, a partir das 17h, por R$ 6,00 (inteira) e R$ 3,00 (meia). • 10º Cine PE Festival de Audiovisual. De 16 a 22 de abril, no Teatro Guararapes, Centro de Convenções de Pernambuco (Complexo Salgadinho, S/N, Olinda). Programação completa: www.cine-pe.com.br
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Cena de Rapsódia para um Homem Comum, de Camilo Cavalcanti
Fotos: Divulgação
Cena da Crucificação de Jesus (Luiz Mendonça) no espetáculo de 1956
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m 1977, uma equipe de repórteres da BBC de Londres veio ao Agreste pernambucano, a fim de rodar um documentário sobre a representação da Paixão de Cristo na cidade-teatro de Nova Jerusalém. Intitulado Passion of Pernambuco, esse filme procurava entender a existência de um espetáculo tão grandioso numa região marcada por uma “pobreza antiga e entediante, onde as pessoas clamam aos céus pelas mais corriqueiras necessidades”. Não se podia supor que aqueles experientes documentaristas haviam cruzado o Atlântico apenas para filmar mais uma “das incontáveis encenações da mais poderosa história do mundo”; estava claro, isto sim, que eles, já naquela época, tinham a percepção de que aquela Paixão de Cristo se tratava de um acontecimento sem par na história recente do teatro ocidental. Iniciada no ano de 1951, pelo comerciante e líder político local Epaminondas Mendonça e sua esposa Sebastiana Mendonça, essa representação dos últimos dias de vida de Jesus, a cada ano, atraía mais espectadores às ruas da vila de Fazenda Nova, a 180 km do Recife. De início, relembrando a tradição medieval das encenações religiosas, não havia atores profissionais, todos os papéis eram interpretados por moradores da região. A um dos filhos desse casal, o talentoso Luiz Mendonça, coube a tarefa de interpretar o papel de Jesus. Foi ele, também, em parceria com o radialista Osíris Caldas, quem escreveu o primeiro texto da peça, intitulado Drama do Calvário. Além disso, até a chegada de Clênio Wanderley, em 1956, Luiz Mendonça acumulou ainda a função de “diretor” do espetáculo.
Paixão de
Precioso patrimônio cultural de Pernambuco, o sucesso da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém não se explica apenas pela fé cristã dos espectadores, nem somente pelo prazer da fruição estética Luís Augusto Reis
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CÊNICAS Em seu livro Teatro Moderno em Pernambuco, publicado em 1966, o crítico Joel Pontes afirma que, nesses primeiros anos, dois aspectos garantiam o sucesso da Paixão de Cristo de Fazenda Nova: o fervor religioso dos participantes e a integração teatro-natureza. Nessa época, mais especificamente desde 1962, as apresentações haviam sido suspensas por conta da construção da Nova Jerusalém, projeto idealizado e concretizado pelo gaúcho Plínio Pacheco, marido de Diva, filha mais nova de Seu Epaminondas. Somente em 1968, depois de seis anos de trabalho extenuante, Plínio consegue inaugurar a sua sonhada Nova Jerusalém: uma área de 70 mil metros quadrados, cercada por uma muralha de pedra de três metros de altura, onde foram construídos oito palcoscenários, inspirados na Jerusalém de 2000 anos atrás. Se anteriormente Joel Pontes já apontara a importância da paisagem local no resultado estético da representação, com o advento da cidade-teatro as semelhanças entre a dura geografia do Agreste nordestino e as áridas paisagens da Judéia parecem ter se tornado mais perceptíveis. De algum modo, o peso dessa extraordinária construção ressaltou o sagrado que se depreende do relevo daquele local. Além disso, milagrosamente, até hoje, de dentro das muralhas, quase não se vêem marcas da civilização moderna. O caos visual gerado pelo marketing e pelo comércio informal fica do lado de fora; os cenários permanecem emoldurados por belíssimas colinas acinzentadas. Nesse espetáculo, portanto, a paisagem faz-se também protagonista, impondo-se em sua magnitude a cada um dos espectadores, provocando neles um certo temor estético-religioso, talvez similar àquele suscitado pelos altíssimos pés-direitos e pelos esplendorosos vitrais das antigas catedrais européias.
Plínio nunca dissimulou a ambição contida em seu projeto. Aliás, todo o seu trabalho, desde que assume a coordenação da produção, em 1961, parece revelar uma comovente determinação de desafiar o caráter efêmero do teatro. Aos repórteres da BBC, explicando como conseguira convencer os trabalhadores locais a enfrentarem a dureza da pedra, ele deu o seguinte depoimento: “Eu mostrei a eles que no Egito Antigo as pirâmides tinham sido construídas com arenito, e que na Grécia eles haviam usado mármore. E o arenito e o mármore ainda estão de pé, após 5000 anos. Eu explicava aos meus trabalhadores que, como esse granito daqui é muito mais duro, essa muralha, essa Jerusalém construída por eles, poderia ainda estar de pé, daqui a 20 ou 30 mil anos”. Em 1967, decerto intuindo que as palavras também podem resistir à ação do tempo, Plínio escreve a peça Jesus, em dois atos, que no ano seguinte, pelas mãos de Clênio Wanderley, se transforma no primeiro espetáculo da Paixão de Cristo, dentro da Nova Jerusalém. Embora jamais houvesse escrito um texto teatral, sua peça, publicada na íntegra, pelo próprio autor, em 2001, meses antes de sua morte, revela qualidades surpreendentes. Além do rigor da pesquisa bíblica, o requinte e a beleza de seus diálogos produzem cenas de grande eficiência dramática. Em alguns momentos, Plínio chega a propor soluções ousadas, de difícil realização cênica, mas de indiscutível teatralidade. Por exemplo, nas cenas das tentações de Jesus, tanto no deserto como no Horto das Oliveiras, em vez de colocar demônios no palco, ele sugere que os atores que interpretam os apóstolos passem a tentar Jesus, como se estivessem possuídos pelo demônio, transfigurando-se sem qualquer auxílio de maquiagem ou de figurino. Terminada a tentação, eles retor-
Elenco do 2º espetáculo da Paixão de Cristo nas ruas de Fazenda Nova (1952)
CÊNICAS nam, diante do público, aos seus personagens originais. Essa proposta, porém, nunca foi levada à cena. Até hoje, os diretores têm seguido a opinião de Clênio Wanderley, que julgou necessária a presença dos demônios. Cinema ao vivo – Em 1969, quando José Pimentel assume a direção do espetáculo, o texto de Plínio, considerado muito longo, sofre alguns cortes. No ano seguinte, outros cortes se fazem necessários, para que a peça pudesse ser toda encenada em uma única noite – até então, cada ato era representado em um dia diferente. Tal medida propicia um imediato crescimento no número de espectadores. Mas o sucesso trazia novos desafios. Com o aumento do público, ficava difícil escutar o que os atores diziam em cena. Em 1972, tentou-sse, sem êxito, a utilização de microfones, colocados em locais estratégicos de cada palco. Um ano depois, após longo debate, Pimentel decide implantar o recurso da dublagem, que é até hoje uma marca distintiva do espetáculo. Essa experiência teria repercussões definitivas na estrutura da peça. Agora, o aspecto imponderável do teatro, aquilo que torna única cada apresentação, cedia lugar para uma reprodutibilidade estranha à arte teatral. Claro que, por contar com a presença física dos atores, diante da multidão de espectadores, o jogo teatral, com seus riscos e seu fascínio, não deixara de existir. Porém, a segurança da trilha gravada imprimia à representação um caráter diferente, aproximando-aa do cinema. Como o cinema, a Paixão de Cristo podia agora atingir grandes massas. Ainda na década de 1970, a peça chega a reunir mais de 13 mil espectadores em uma única apresentação. Efeitos especiais, como o uso de raio laser, por exemplo, vão agregando mais espetaculosidade à montagem. A trilha sonora torna-sse mais popular, com a utilização de canções de Roberto Carlos e de Chico Buarque de Holanda. Em 1989, após uma modificação na disposição dos palcos-ccenários, José Pimentel volta a enxugar o texto de Plínio, deixando-oo praticamente tal qual é encenado na atualidade. Entre 1969 e 1977, o papel de Jesus foi interpretado pelo ator Carlos Reis, que, nos últimos dez anos, vem exercendo a função de diretor-aartístico da montagem, sempre em parceria com Lúcio Lombardi. Desde 1978, além de dirigir, José Pimentel passara também a protagonizar a peça. Somente ao final de 1996, por não concordar com a pressão dos patrocinadores para que outro ator fosse escalado para o papel principal, Pimentel deixa a Paixão de Cristo, após quatro décadas de profundo envolvimento com o espetáculo. Da TV ao teatro – No início dos anos 70, como forma de ampliar a divulgação da peça em outras regiões do país, a produção passa a convidar artistas famosos, do eixo Rio-SSão Paulo, para integrar o elenco. Com essa prática, a encenação, que já incorporara traços do cinema, passou também a ser tocada pelo onipresente universo da televisão. A partir de 1997, essa estratégia se intensifica. Desde então, grandes estrelas das telenovelas da Rede Globo vêm interpretando papéis de destaque na peça. Alguns deles, como Fábio Assunção, Diogo Vilela e Herson Capri, além da fama, trou-
Seqüência de imagens do documentário produzido pela BBC de Londres
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CÊNICAS xeram efetivas contribuições artísticas para espetácu- da montagem, deixou de ser vista pela platéia. Agora, lo. Eles agregaram ainda mais qualidade a uma obra em vez de se mostrar o suplício de Jesus, permite-sse que é fruto do talento de importantes figuras da cena apenas que o público o intua, por meio de sombras e local, como por exemplo, entre tantos outros, fora os de sons. Terminada a tortura, tal como acontecia nas nomes já mencionados, o figurinista Victor Moreira, tragédias gregas, um centurião descreve em detalhes o cenógrafo Otávio Catanho, o sonoplasta Hugo o estado em que se encontra o supliciado, derraMartins, além de atores e atrizes como Luiz Mau- mando sobre os espectadores a dor daquele sofrirício Carvalheira, Lúcia Neuenschwander, Marilena mento. Outra cena altamente teatral foi recuperada Breda, Ednaldo Lucena, Rubem Rocha Filho, João há alguns anos: o encontro de Jesus com as mulheres Batista Dantas, Yara Lins, José Mário Austregésilo, de Jerusalém, na Via-SSacra. Por alguns minutos, José Ramos, Pedro Henrique, Marcos Macena, João suspende-sse o naturalismo ilusionista da peça e Ferreira, Jones Melo, Paulo Góes e Evandro permite-sse a intromissão coreografada de um coro recitativo, tão poético quanto épico. Campelo. Tem-sse a impressão de que, em breve, esse moviCuriosamente, nos últimos anos, a despeito da presença dos atores televisivos, nota-sse que a direção mento de reencontro com o que existe de mais teatral tem investido cada vez mais na teatralidade do espe- na peça deve suscitar uma nova tentativa de utilização táculo. Com uma iluminação mais próxima à que se de microfones, ao menos em algumas cenas da peça. costuma ter nos teatros convencionais, e uma trilha Talvez agora, com a tecnologia disponível, esse retorsonora mais solene, percebe-sse que as cenas têm ga- no ao calor da interpretação ao vivo já esteja próximo nhado maior precisão e eficiência. Suprimiu-sse o la- de se tornar realidade. E isso, sem dúvida, represenser, mas os efeitos especiais, tão presentes nos misté- taria um importantíssimo salto qualitativo na história rios medievais, não foram esquecidos. Pelo contrário, desse espetáculo que, há muito tempo, já se tornou ampliaram-sse, como, por exemplo, nas aparições dos um precioso patrimônio cultural, pertencente a todo o demônios, no Horto e no Enforcamento de Judas. As povo pernambucano. Um sucesso que não se explica marcações também vêm se aprimorando a cada ano, apenas pela fé cristã dos espectadores, nem somente com pequenos detalhes que resultam em grande pelo prazer da fruição estética. Trata-sse de um fenôimpacto, como na formação do tableau vivant, ao final meno que está além dos planos de mídia, das estrada Última Ceia, atualizando outra tradição do teatro tégias de marketing e dos interesses políticos. Para os ingleses da BBC, a razão de sua continuidade reside, medieval. antes de tudo, em seu poder de despertar nas pessoas Recentemente, a cena da o sentimento de que estão “fazendo parte de um Flagelação, que sempre desgrandioso ato de criação”. • toara do padrão cênico geral
Para os ingleses da BBC, o poder que o espetáculo exerce sobre o público está na possibilidade de “fazer parte de um grande ato de criação”
AGENDA/CÊNICAS
Fotos: Divulgação
O poeta é um fingidor Fernando Pessoa é o mote dO Fingidor, peça sobre a distância entre a vida real e a artística
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abismo entre a aura de glamour, criada geralmente em torno dos artistas, e a vida real que esses profissionais levam foi o que despertou Samir Yazbek a escrever uma peça sobre o poeta português Fernando Pessoa. O resultado foi O Fingidor, que está em nova montagem no Teatro Tuca. A ação se passa em Lisboa, em novembro de 1935, uma semana antes da morte do poeta. À procura de uma aventura, em seus últimos dias, Fernando Pessoa decide se disfarçar de um heterônimo vivo e se candidata à vaga de datilógrafo, oferecida por um crítico literário, profundo conhecedor de sua obra. A partir desta situação inicial imaginária, investindo no jogo cômico, a peça pretende ser uma reflexão sobre a distância existente entre o Fernando Pessoa histórico, que publicou um livro em vida, e aquele que se tornou referência da cultura ocidental. O espetáculo acumula, desde sua estréia, em 1999, uma série de premiações, entre as quais Prêmio Shell de melhor autor. O Fingidor. Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes – SP) . Telefones: 11.3670.8455/3670.8456.
Fábulas medievais
O Rim
As fantásticas estórias medievais – de árvores mágicas, cavaleiros de escudo e espada, dragões que cospem fogo, princesas desamparadas, gaitas mágicas e bruxas que surgem em meio a explosões – estarão povoando o palco do Teatro Hermilo durante esse mês de abril. Trata-se do espetáculo Fabulário, uma criação e produção da Companhia Máscaras de Teatro. O espetáculo está dividido em três estórias, “A Princesa e o Dragão”, “A Árvore Mágica” e a “Bruxa Caolha”, e os protagonistas são 18 bonecos de luva e de vara articulados. Sob a direção de Sebastião Simão Filho, Fabulário integra o projeto Bonecos no Apolo-Hermilo, cuja proposta é valorizar o teatro de formas animadas, sua história, a tipologia de bonecos e as diferentes técnicas de manipulação até o mês de maio.
A notícia saiu no jornal: rapaz é atropelado por empresário que estava à procura de um doador de um rim. Patrícia Melo aproveitou o conteúdo jornalístico e deu-lhe ares de comédia romântica: O Rim. O enredo prossegue, acompanhando o esforço de Augusto – o empresário doente e necessitado de um rim – em seduzir a irmã da vítima, Rosário (vivida por Carolina Ferraz) porque ela tem o mesmo tipo sanguíneo dele. Mas Augusto corteja Rosário até descobrir que existe uma incompatibilidade e, a partir daí, transforma Carlos em seu alvo. Sobre a plataforma da comicidade, o espetáculo explora a dicotomia crueldade e generosidade ao som da obra de Tchaikovsky. A direção é de Elias Andreato.
Fabulário / Projeto Bonecos no Apolo-Hermilo. Durante todo o mês de abril no Centro de Formação e Pesquisa nas Artes Cênicas ApoloHermilo (R. Do Apolo, 121, Bairro do Recife-PE). Fone: 81.3224.1114.
As atrizes Ivone Hoffman e Carolina Ferraz
O Rim. Teatro Folha (Av. Higienópolis, 618 – Higienópolis –SP). Informações: 11. 32556202 / www.teatrofolha.com.br. Até 30 de abril. Continente abril 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Bacalhau com cabeça? "Presente raro dos deuses o bacalhau, graças ao engenho humano, é levado à mesa e entregue à sanha de nossa gula". Nélida Piñon (Brasil)
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ereira era mais um desses doidos que perambulavam pelas ruas do Recife. Não fazia mal a ninguém. Fazia versos. Em troca de algumas poucas moedas. Vivia disso. Corria o ano de 1710 e a cidade começava a prosperar, pela força de comerciantes conhecidos como “mascates”. Olinda, residência de toda a aristocracia, pouco a pouco deixava de ser centro das decisões na capitania de Pernambuco. Das contradições entre os interesses econômicos dessas duas cidades, deu-se o que passou à história como a “Guerra dos Mascates”. De Portugal vieram nomes ilustres, com ordens para negociar a paz – o governador Félix José Machado de Mendonça Castro e Vasconcelos e o ouvidorgeral João Marques Bacalhau. Logo percebendo nosso poeta que poderia, com tão nobres visitantes, ganhar alguns trocados. Assim pensando, instalou-se bem em frente à casa do tal ouvidor, na rua das Cruzes – hoje Duque de Caxias. E começou, aos gritos, a anunciar, sobre um tamborete – “Coisa nova, raridade,/ Nunca vista na verdade!”. E tanto repetia os versos, e tão alto eram seus berros, que a rua logo se encheu de curiosos que queriam conhecer tal raridade. Entre eles o próprio dono da casa, que veio à porta ver a razão de tanta confusão. Então Pereira apontou para o insígne ouvidor-geral e gritou: “É bacalhau com cabeça”. A multidão foi ao delírio. “O ouvidor ficou fulo de raiva, enquanto o povo ria-se de bom rir”, segundo cronista da época – registrado por Pereira da Costa (Folk-lore Pernambucano). Nesse dia, o pobre poeta encheu de moedas os bolsos. E de cachaça o juízo. Tendo ainda o bom senso de, por bom tempo, não voltar àquela freguesia. Bacalhau com cabeça é mesmo coisa muito rara. Por aqui, ao que se saiba, nunca veio. Nas prateleiras de armazéns e vendas dos tempos antigos, ou nos supermercados e delicatéssens de hoje, está invariavelmente seco, salgado e sem cabeça. Vem de longe, esse peixe. Das águas geladas do Ártico – Noruega, Canadá, Rússia, Islândia e Finlândia. Não se sabe bem por quê, as fêmeas desovam sempre no arquipélago de Lofoten (Noruega). Entre janeiro e abril. E tantos são esses ovos (até 10 milhões, por fêmea) que Alexandre Dumas escreveu – “se de cada ovo nascesse um bacalhau, o Atlântico poderia ser atra-
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vessado a pé sobre o dorso dos peixes”. Podem chegar a 2 metros. E, embora tenham dois grandes olhos, quase não enxergam – como todos os seres que vivem em águas profundas. Apesar disso, são exímios caçadores. É que “nadam de boca aberta e engolem tudo o que entra, inclusive os filhotes”, segundo Mark Kurlansky (Bacalhau – a História do Peixe que Mudou o Mundo). Vikings foram os primeiros a pescar (séc 9) aquele peixe que, bem depois, se chamaria bacalhau. Nada a estranhar. Eram exímios navegadores. Construíram os primeiros barcos de madeira, vela e remo – que chamavam drakkars. No verão se lançavam ao mar tenebroso, indo cada vez mais longe. No inverno, se preparavam para grandes combates. Não era uma vida fácil. No grande frio, acabava sendo impossível colher ou pescar. Tinham então que conservar e estocar alimentos. Assim faziam, sobretudo com os peixes que encontravam nas águas geladas do Norte (Mar da Noruega e de Barents). Inclusive bacalhau. Não usavam sal, nesse processo de conservação. Sendo os peixes secos ao ar livre, e pendurados em varas, por longo tempo – a que chamavam stokvisch (stok de vara, mais visch de peixe). No tempo livre fabricavam espadas, escudos, machados e arcos. E guerreavam. Conquistaram Escandinávia, Groenlândia e Islândia. Unificaram a Noruega. Além de guerreiros, eram bons comerciantes. À Europa foram dar em busca de cavalo, gado, cereal, sal, madeira e tecido. Nessas viagens levavam aquele peixe seco que servia como mantimento (durante as longas travessias) e moeda de troca (nos portos). E nem sempre negociavam com bons modos. “Da fúria dos nórdicos, livrai-nos Senhor” rezavam os monges da província Basca (séc 9), quando vikings pagãos invadiam seus tranqüilos mosteiros. Apesar disso o povo espanhol logo começou a apreciar esse peixe seco. E aprendeu a conservá-lo por ainda mais tempo, usando sal. Depois ganhou o mundo. Em Portugal chegou no séc 12, trocado pelo sal da região de Aveiros (considerado o melhor da Europa). Estava nas caravelas de Colombo e de Cabral. Para os marinheiros, era piscis durus. Aos poucos, passou a ser alimento obrigatório também nos jejuns e nas abstinências. E não por
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acaso. Deu-se que a Igreja atravessava período difícil. O Concílio de Trento (1454-1563) tentava conter os estragos causados pela pregação de Lutero. Para realçar o espírito religioso sugeria, aos fiéis, jejum e abstinência na “Quarta-feira de Cinzas e todas as Sextas e Sábados da Quaresma, nas Quartas, Sextas e Sábados das Têmperas, nas vésperas do Pentecostes, da Assunção, de Todos-os-Santos e do dia de Natal. Ainda nos dias de simples abstinência, ou seja, todas as Sextas-Feiras dos anos não coincidentes com dias enumerados para as solenidades, os restantes dias (quarenta) da Quaresma, a Imaculada Conceição, a Bem-Aventurada Virgem Maria e os Santos Apóstolos Pedro e Paulo”, segundo Carlos Veloso (O Bacalhau na Vida e na Cultura dos Portugueses). O rigoroso calendário de jejum foi aos poucos perdendo força. Mas a tradição ainda se mantém forte nos países de língua portuguesa, até hoje. Principalmente no Natal e na Páscoa, datas mais expressivas da religião católica – onde se comemora o nascimento e a ressurreição do Cristo. Para esses períodos, era alimento ideal. A tanto contribuindo o fato de poder ser consumido mesmo no interior, em época de transportes difíceis. Bartolomeo Scappi, cozinheiro do papa Pio V, até escreveu livro de receitas (Opera di Bartolomeo Scappi, Maestro dell’Arte del Cucinare, 1570) recomendando bacalhau de muitos jeitos – com cebolas picadas, com suco de laranjas azedas, com caldo engrossado, com óleo de oliva ou, destaque especial, “com amêndoas, ervas, pimenta, canela e cravo que muito bem combinam com esse peixe”. A localização exata do local da pesca do bacalhau era segredo bem guardado pelos vikings. Portugueses, espanhóis, franceses e ingleses foram aos mares do Norte, à sua procura - chegando à Terra Nova (Canadá) e, depois, ao mar da Noruega. Em 1510, Portugal e Inglaterra firmaram acordo contra a França, para ter o domínio dessa pesca. Em 1532, ingleses perderam para os alemães o direito de pescar na Islândia. Entretanto ganharam de espanhóis e portugueses, em 1585, o direito de comercializar esse peixe. Era uma pesca difícil. E acontecia, todos os anos, do mesmo jeito. Sempre entre março e outubro – quando quase não há noites e a temperatura da água é mais elevada, no Atlântico Norte, trazendo os peixes à superfície em busca do alimento abundante das águas rasas. Tão importante era essa conquista que barcos à vela, antes de partir, recebiam bênçãos de cardeais. Cada um com tripulação de 50 homens. No convés dóris, pequenos barcos a remo, cuja “fragilidade ameaçava a vida dos tripulantes” – segundo Mario Neto (pescador que viveu essa experiência). A pesca de hoje não é muito diferente daquela de antigamente. Manhã bem cedo baixavam os dóris, voltando às caravelas só quando os barcos estavam cheios. Usavam lulas como isca. “Trabalhávamos 20 horas, com quatro horas de descanso, e isto durante seis meses”, confirma aquele pescador. Os peixes eram “pesados a olho”, pelo capitão; depois abertos ao meio, para retirar vísceras; só então indo ao porão, para ser salgados. Sem cabeças. E com todo cuidado – que sal demais
queimava o peixe e, de menos, não o conservava. Depois, em terra, ainda eram colocados ao sol, para secar. A Portugal veio esse peixe por mãos dos ingleses. Primeiro ao Porto – chegando a cidade a consumir “muitos mil quintais de bacalhau”; depois também a Lisboa “porque em nenhuma outra parte da Europa lhes tem tanta conveniência”, tudo segundo a Câmara Lisboeta. No princípio, era “alimento dos pobres e dos rústicos, próprio para pessoas que trabalham e se exercitam muito. Por gerar humores melancólicos e maldepurados das suas partes excrementícias. Não se deve usar em pessoas delicadas, nem nas que passam vida sedentária”, segundo o Dr. Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731), médico de D. João V. Talvez por tantos cuidados, só aos poucos conquistou seu lugar nas mesas lusitanas. Substituindo o congro (frito ou em sopa com pão de milho), ciba (polvo assado ou guisado), sardinha, pescada, carapau, cação, raia. Foi “Portugal quem primeiro introduziu na alimentação este peixe precioso, universalmente conhecido e apreciado”, segundo o famoso cozinheiro francês Auguste Escoffier (Le Traité sur L’Art de Travailler les Fleurs em Cire, 1886). Ainda longe das boas mesas, não mereceu referência no primeiro livro de receita português A Arte de Cozinha (1693) de Domingos Rodrigues, cozinheiro de D. Pedro II de Portugal (o Pedro II português, claro; que o nosso Pedro I era, lá, Pedro IV; e nosso Pedro II só foi rei por aqui). Depois bacalhau tornou-se “o fiel amigo – aquele com quem se conta sempre, o que merece a confiança plena”, segundo José Quitério (Comer em Português). Tanto que brilhou no segundo livro culinário editado em Portugal – O Cozinheiro Moderno (1780), de Lucas Rigaud, que cozinhava para a rainha D. Maria I. Religiosa, e preocupada com os períodos de abstinência, pediu-lhe a rainha que criasse muitos pratos de bacalhau. Assim nascendo “à provençal”, “à Baxamela”, “assado nas grelhas e por outros modos”. Depois, coitada, enlouqueceu. E acabou substituída por seu filho Dom João VI – que fugindo das tropas de Junot, ao Brasil veio em 92 naus, com 15.000 homens. Lamentando-se apenas que, nessa viagem, não tenha trazido seu cozinheiro. Mas essa é outra história. Em Portugal, cada lugar tem seu jeito de preparar bacalhau. São 1.200 receitas catalogadas. De muitas maneiras – cru, cozido, frito, assado no forno ou na brasa, guisado, grelhado, gratinado, estufado. Como recheio de empadas e crepes. Sempre com muito azeite. E pimenta (verde, branca ou preta), louro, azeitona, cravo, noz-moscada. E mais cebola, alho, salsa, coentro, couve, poejo, tomate, pimentão, hortelã. O pão se misturou ao bacalhau nas “migas” (miga vem de migalha – pedaços pequenos de pão ensopado em caldo, ficando com aspecto de papa) e nas “açordas” (caldo transparente temperado com salsa e alho que se despeja sobre fatias de pão). Como complemento, arroz e batata – assadas, cozidas ou como purês. Algumas receita acabaram ganhando nome de seus criadores – à Margarida da Praça (cozinheira do primeiro restaurante de Viana do Continente abril 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS Castelo), à Narcisa (eximia cozinheira de Braga), à Zé do Pipo (nome do dono de um restaurante no Porto), à João do Buraco (apelido de João Pereira), à Brás (tasqueiro do bairro Alto, em Lisboa). E, mais famoso de todos, o bacalhau à Gomes de Sá – criação de Jose Luis Gomes de Sá Junior, dono de armazém no Muro dos Bacalhoeiros e depois cozinheiro no Restaurante Lisbonense, no Porto (ver receita, no fim da coluna). Outras receberam nomes de quem se quis homenagear – à Batalha Reis (exímio enólogo, amigo de Antero de Quental e de Eça de Queiroz, 1847-1935), à Pardal Monteiro (importante arquiteto modernista), à Afonso Costa (Ministro da Justiça de Teófilo Braga – para Pessoa, “Lênin de capote e lenço”, “louco”, “traidor”, “vil” e, como não fosse pouco, “um sapo”. E à Salazar (“Este senhor Salazar, é feito de sal e azar”, segundo o mesmo Pessoa) – por ironia, uma receita que não leva azeite, “já que grosso não precisa e magro não merece”. Sem esquecer os que homenageavam a nobreza – Bacalhau à moda aristocrata, à Conde da guarda, à Fidalga; ou profissões – à alfaiate, à fragateiro, à marinheiro, à lagareiro (homenagem aos que trabalham em lagares – tanques onde se espremem as azeitonas destinadas ao fabrico de azeite), à Congregado (que participavam da congregação religiosa dos marianos). Outras vezes essas receitas indicavam apenas o lugar onde nasceram essas receitas – à Moda de Viana do Castelo, à Valença, à Portuense, à Lafões, à Agueda, ao vale de Cértima, à Lisboa Antiga, à Alentajana. Ou referindo o principal ingrediente que acompanha o prato – à poejada, de cebolada, com batatas ao murro, açorda de bacalhau com tomate, a couves do Lagar, assado com pimentões, com feijão. Também os que refletem estados da alma - espiritual (que dizem recebeu esse nome por elevar o espírito a sentimentos nobres), à bon vivant ou à bonne femme. Ou ligados a festas religiosas – de Consoada (chamado também de “Bacalhau cozido com todos”, normalmente servido na véspera de natal – com muito alho, vinagre, azeite, couve, batatas, ovo), Roupa-velha (corta-se em pedaços o que sobrou da consoada, servido no almoço do dia de Natal), Bacalhau da Sagrada Família (feito na última semana de agosto em Fonte Boa dos Nabos, perto de Ericeira). E aqueles próprios de ocasiões especiais – bacalhau com Grão (que se faz na Malveira, no dia de seu mercado semanal), Bacalhau de Pau de Fileira (para comemorar a coberta do telhado da casa ou o final de uma obra). Por fim, os que recebem nome de países – não significando, necessariamente, terem sido criados neles, mas apenas por levar algum ingrediente do lugar – bacalhau à Alsaciana (usando manteiga fresca e finas ervas), à Antilhesa (com pimenta em grão e pimentão vermelho), à Aragonesa (com muita páprica doce), à Espanhola (leva pimentões, tomate), à Francesa (com creme de leite fresco e molho bechamel), à Florentina (com espinafre), à Inglesa (servido com batatas cozidas ao natural, como servem na Inglaterra), à Italiana (com lingüiça calabresa, presunto fatiado e pepino em conserva), à Parisiense (com muita manteiga e nozmoscada), à Assis (usando presunto). Cada país tem suas receitas preferidas. Na França, brandade (bacalhau triturado com batata cozida), langues de morue avec Continente abril 2006
souce pistou (língua de bacalhau com molho de manjericão e azeite), morue à la bénédictine (com legumes e muito azeite de oliva), morue à la créole (com tomate e pimenta caiena), morue à la lyonnaise (com cebola, manteiga e suco de laranja) parmentier de morue fraîche aux Saint-Jacques (com batata e molho feito com coquille Saint-Jacques). Na Espanha, bacalao a la Vizcaina (com pimentão vermelho, toucinho defumado e presunto), bacalao al Ajoarriero (com páprica doce, alho, cebola e pimentão), Carpaccio de bacalao fresco (lâminas finas de bacalhau fresco com limão e pimenta rosa em grão), Purrusald (com alho-porro, batatas e açafrão), Bacalao Monacal(com espinafre, batata, queijo de cabra). Na Itália, stoccafisso allá genovese (com cenoura, cebola, aipo, cogumelo e vinho branco), Baccalà Mantecato (com nozmoscada, alho e salsa), Baccalà à la Vicentina (com salsa, anchova e parmesão ralado). Nos Estados Unidos, Salt Cod Cakes (bolo com bacalhau, batata, ovo e creme de leite), Salt Cod Stew (cozido junto com cebola, alho, molho de tomate e vinho branco). Até em lasanhas e pizzas, pode ser hoje encontrado. Sem contar que já se fala até em hamburguers de bacalhau, bem ao estilo americano. Depois, quem sabe, virá até hot-dog de bacalhau. Hotcodfish, talvez. Ou, se valer o marketing, hot-cod. Era só o que faltava. •
RECEITA: BACALHAU À GOMES DE SÁ INGREDIENTES: 500 g de bacalhau, 500 g de batata, 1lata de azeite (preferencialmente de muito boa qualidade), 1 dente de alho, 2 cebolas, 2 ovos cozidos, 1 litro de leite, azeitonas pretas, salsa, sal e pimenta. PREPARO: •Demolhe o bacalhau, deixando em água e gelo, na geladeira, por 48 horas. De vez em quando, troque essa água. •Coloque o bacalhau em recipiente fundo. Cubra as postas com água fervente. Tampe e deixe fora do fogo por meia hora. Depois escorra, retire peles e espinhas. Separe em lascas. Ponha essas lascas em novo recipiente. Cubra com o leite fervente e deixe assim (fora do fogo), por 2 horas. •Leve ao fogo panela com metade do azeite. Doure cebolas (cortada em rodelas) e alho (picado). Junte o bacalhau escorrido. Refogue. Tempere com sal e pimenta. •Arrume em pirex camadas de batatas (cozidas e cortadas em rodelas), bacalhau, ovo e azeitona. Regue com o restante do azeite. Leve ao forno por 20 minutos. Na hora de servir, enfeite com salsa.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Lobato, o escritor que amava as crianças
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onteiro Lobato amava as crianças. Não as enganava nunca. Eu mesmo senti a prova desse amor na confidência que Lobato me fez quatro anos antes de morrer, quando fui entrevistá-lo em São Paulo. Confessou-me ele, então, que não costumava guardar “cartas de literatos e excelências” que recebia diariamente, “aos montes”, mas que tinha “cuidadosamente arquivadas, como pergaminhos sem preços”, as ingênuas mensagens infantis que todos os dias o carteiro deixava no escritório da Rua dos Gusmões ou na casa do escritor, desde que ele havia dado vida aos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Antes de Lobato, o que as crianças do Brasil ouviam ou tinham para ler eram as aterrorizantes histórias de Trancoso, trazidas de Portugal, quase todas elas desenroladas num reino sombrio de
fadas más e rainhas vingativas, madrastas perversas e vilãs sem alma que mais aterrorizavam que divertiam. Ao contrário, nas histórias infantis do criador de Pedrinho e de Emília, não se encontram, como escreveu Edgard Cavalheiro, “o misticismo, a superstição, a fantasia mórbida que emboloraram o pensamento através dos séculos. Há nelas completa libertação de velhos preconceitos; alegria de viver, saúde para o espírito e impulso para os vôos da razão que desabrocha”. Já no fim da vida, doente e sentindo-se como um “cavalo cansado”, Lobato ainda fazia planos para o futuro. Pequeno Hércules, imaginava e projetava novas façanhas. Não ligava para a idade. Talvez porque tivesse aprendido com Emérson que “o homem só conta os anos que tem quando não tem mais nada para contar”. • Continente abril 2006
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Contra os “ismos”, Parece sadio que os artistas atuais não queiram formar grupos e propor soluções totalizantes para a espécie humana, graças à consciência contemporânea dos estragos causados pelas ideologias Daniel Piza Ilustrações: Nelson Provazzi
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contra os slogans
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á cerca de 100 anos, a esta altura do século, o mundo da cultura estava tomado por movimentos que propunham a revolução da arte. Desde o Impressionismo, no final do século 19, a sucessão de “ismos” vinha sendo vertiginosa. Pós-Impressionismo, Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, Abstracionismo, Surrealismo, Futurismo – cada corrente oferecia uma utopia que ia não apenas redimir a arte, mas acima de tudo a humanidade. Decretava-se o futuro, e quem não desse ouvidos ao decreto seria varrido com a história. Ao mesmo tempo, a ousadia era regra. Acreditava-se na arte, e quem seguisse as convenções do passado era criticado por isso. O “choque do novo” eletrificava idéias e linguagens, ainda que na maioria das vezes produzindo mais energia do que luz. Continente abril 2006
ESPECIAL A onda de vanguardas que vemos, quando pensamos no início do século 20, era também, obviamente, expressão de um tempo em que a política, a economia, a ciência e o comportamento passavam por transformações aceleradas. Revoluções e guerras eclodiam na Europa, os Estados Unidos cresciam em ritmo exponencial e sentiam a conseqüente oscilação, o ideário socialista se espalhava pelo planeta na esteira da industrialização. Einstein e Bohr mostravam que, no micro e no macro, a natureza não se comporta como o olho humano crê. As mulheres queriam votar, cortar os cabelos, dançar sensualmente. As cidades inflacionavam novidades e incertezas, e a regularidade do tempo tradicional parecia cada vez mais uma ilusão. As artes sentiram a mesma urgência e passaram a refletir isso que Arthur Koestler batizaria de Era da Ansiedade – não raro, prometendo o paraíso em vida. É curioso notar como os artistas que hoje, com a vantagem da distância no tempo, sabemos que “ficaram”, que são os grandes nomes daquele fervoroso primeiro quarto de século, foram justamente os que transcenderam as tendências a que eventualmente pertenceram durante um tempo. Picasso foi proponente e expoente do Cubismo, mas sua obra vai muito além do programa cubista. Matisse passou pelo Fauvismo, só que depois abandonou as pinceladas curtas e flamejantes do movimento. Miró flertou com Surrealismo e Abstracionismo, porém sua estética é inconfundível de tão única e de tão livre. E assim por diante. É fato que os próprios movimentos tinham vida curta e raramente eram mantidos como tais depois de uma década. Mas essa é a natureza da verdadeira vanguarda, aquela que sabe que veio para confrontar o estabelecido até passar a ser ela mesma confrontada por novas gerações. O grande artista, por definição, não se dá por satisfeito com uma estética programática. Com o passar do século, a freqüência de novos movimentos foi se reduzindo, pelo esgotamento natural. Nos anos 50 e 60, quando surgiram minimalismo, art pop, arte conceitual e outros, comeHenry Matisse, expoente do Fauvismo Imagens: Reprodução
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Auto-retrato de Pablo Picasso, criador do Cubismo
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ESPECIAL No Brasil, o lema do poeta e crítico americano Ezra Pound (retratado no desenho ao lado), make it new, que significa “renove” (a tradição), foi convertido pelos concretistas brasileiros em "inove". A diferença é substancial
çou-se a perceber que esse já era o funcionamento do próprio “sistema”, não mais estratégias de combate a ele. A pregação do novo pelo novo caiu no gosto geral, numa sociedade cada vez mais teleguiada por empresas de comunicação e pelo mercado de consumo, em que se fabrica uma novidade por semana. O novo virou palavra de ordem e, como tal, se tornou um paradoxo. Pois é preciso ter pouco apreço pelo novo para achar que ele brota a todo instante. No Brasil, por exemplo, o lema do poeta e crítico americano Ezra Pound, make it new, que significa “renove” (a tradição), foi convertido pelos concretistas brasileiros em “inove”. A diferença é substancial. De lá para cá, a febre de novidades aumentou à medida que os “ismos” foram se extinguindo, apesar de alguns excessos anacrônicos que somos obrigados a aturar nas bienais de artes plásticas. Hoje é difícil ver um movimento utopista nas artes, que faça um manifesto com seus conceitos, uma revista com suas produções, um evento para se lançar no cenário. O Surrealismo bebeu em Freud, o Futurismo exaltou a Idade da Máquina, o Abstracionismo dizia fugir da representação subserviente da realidade exterior. Hoje não há nada remotamente comparável a isso. É claro que existem movimentos, por sinal mais e mais lançados na internet, alguns com o sufixo “ismo”; e é claro que não se pode esvaziar um conceito como vanguarda, porque a cultura vigente precisa estar sempre sob contestação, para que os critérios não se rebaixem e o tédio não se instale. Mas o caminho já não é o do “ismo”. Parece sadio que os artistas atuais não queiram formar grupos e propor soluções totalizantes para a espécie humana. Antes de mais nada, porque está em sintonia com a consciência contemporânea dos estragos causados pelas ideologias no século passado. Não foi apenas nas artes que os “ismos” sumiram. Se o capitalismo persiste, é em parte porque, como notou o historiador Paul Johnson, não é um “ismo” como o comunismo era, sendo um sistema aberto e renovável; e em parte porque ele foi renovado inclusive pelas pressões de movimentos comunistas que o obrigaram a dividir melhor a renda do capital e o poder de decisão na sociedade. O mesmo vale para outro “ismo” que segue em vigor, o evolucionismo ou “darwinismo”: não se trata de uma ideologia, mas de uma teoria científica que vem sendo alterada e atualizada sem perder a validade concreta de suas premissas fundamentais. O que não parece sadio é que as artes e as idéias hoje sejam tão pasteurizadas, tão corriqueiras. A velha e boa ousadia dos modernistas (ou modernos, para ser coerente) precisa retornar, sem o fardo da arrogância utópica, do “heroísmo”. Individualmente, não em patotas politizadas, o criador ou pensador precisa recuperar sua força crítica. A ambição de reinterpretar a natureza humana em termos vigorosos, que misturem reflexão e descrição, deve voltar. Qualquer palavra terminada em “ismo”, observou George Orwell, “cheira a propaganda”. E hoje, quando tudo é reduzido a slogans – da literatura à política –, eis o que mais se deve combater. • Continente abril 2006
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Valores como a pureza formal despojada do ilusionismo clássico e a sucessão frenética de estilos visualmente reconhecíveis (ismos), que estão na raiz histórica das vanguardas e da arte moderna, não continuam mais vigentes Fernando Cocchiarale
Vanguardismo e contemporaneidade P
ara o senso comum, “vanguarda” ainda hoje designa aquelas atitudes e obras estranhas para a maioria das pessoas “normais”, já que estariam ligadas à aposta deliberada, de seus adeptos e simpatizantes, na incomunicabilidade de suas ações. O espectador médio e mesmo alguns daqueles melhor informados, mas conservadores, têm reduzido as vanguardas aos efeitos mais escandalosos de sua natureza “desviante”, redução cujo sucesso só é possível fora do contexto histórico no qual elas floresceram e se difundiram. Talvez isso explique a sobrevida de um conceito que, não sendo aplicável à produção cultural contemporânea, pode servir para conjurar as perplexidades ante situações que muitos repertórios excluem e outros, com ingênua boa vontade (ou má fé), cultivam, posto que ainda crêem no extemporâneo mito moderno da novidade como um valor em si mesmo positivo. Por horror ou encantamento sobrevive entre conservadores, publicitários e alguns jovens jornalistas a ilusão da existência das vanguardas em nossos dias. Termo de origem militar, forjado para designar os setores avançados de um exército que ainda hoje fazem a prospecção do campo inimigo antes do avanço de seu contingente massivo, passou, por analogia, a ser a ser utilizado também no campo das artes da segunda metade do século 19. Seu novo sentido parece estar ligado ao Salon des Refusés (1863), quando artistas que o futuro iria consagrar por sua genialidade e pioneirismo (Boudin, Cézanne, Manet, Pissaro e Whistler, entre outros) foram recusados pelo comitê de seleção do Salon oficial.
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O Ateliê (1854/55), de Gustave Coubert, que antecipou os impressionistas na escolha de temas do cotidiano Reprodução
Há no emprego inicial do termo às artes uma forte ênfase na ação política, legada por sua origem militar. A vanguarda artística seria nesse momento integrada por artistas cuja oposição aos valores burgueses se dava na arena explícita da luta social. Seu emblema maior é certamente Gustave Courbet, artista que a partir de 1850 substitui os grandes temas mitológicos e históricos da pintura acadêmica pelo “realismo” de cenas populares, de personagens anônimos, sem identidade histórica ou notoriedade público-social. As pinturas de Courbet, entretanto, são menos contundentes do ponto de vista da renovação formal, então em curso, que seu engajamento na luta política, cujo auge foi a participação em 1871 na Comuna de Paris. A partir do Neo impressionismo (1886), o termo “vanguarda” reorientou-se. Passou a designar não mais o engajamento direto nas barricadas erguidas contra o mundo burguês, mas o confronto dos novos valores estéticos que propunham, com aqueles desejados pelo establishment. A luta das vanguardas, desde então, refluiu da ação política concreta para o da experimentação de novas linguagens. É certo que as vanguardas históricas exploravam, na época, a potência escandalosa do choque causado pela novidade de suas propostas. No entanto, o novo não era um fim nele próprio, mas algo entranhado na lógica da superação dos meios e processos artesanais (tradição), por aqueles da indústria (novo). Era antes uma conseqüência da adequação de um produto eminentemente artesanal (a produção artística) a um mundo no qual a indústria havia demitido a mão. Ainda que a execução da obra de arte, na contramão da Revolução Industrial, permanecesse no âmbito da manualidade, seu destino deveria ser o de qualquer outro bem: a inserção num mercado específico, e a especialização profissional de seus produtores. Se a seriação em larga escala e a obsolescência permanente do produto industrial, determinada pelo avanço tecnológico, eram traços que não existiam nas obras de arte, o apreço pelo novo era cultivado pelos artistas como em nenhuma outra esfera do capitalismo. A vertiginosa sucessão dos chamados “ismos” foi conseqüência direta e imediata da inserção desse produto atípico, posto que artesanal e único, num mercado abastecido por bens produzidos em série e dinamizado pela oferta permanente de novidades.
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Imagens: Reprodução
A segunda correspondência das vanguardas com a lógica (e não com o conteúdo ou os efeitos sócio-políticos) do capital é observável na sua especialização. Tal como todos os outros profissionais, o artista de vanguarda tornou-se um especialista na investigação dos fundamentos da linguagem visual (literária, cênica, musical etc.) e com isso consolidou o processo de autonomia da arte, iniciado no século 18, quando o Iluminismo separou arte e artesanato. Valores como a pureza formal despojada do ilusionismo clássico, em nome de uma arte sem representação, a sucessão frenética de estilos visualmente reconhecíveis (ismos), que estão na raiz histórica das vanguardas e da arte moderna, continuam vigentes? A resposta é não, ainda que consideremos a sobrevivência do regime capitalista. Assim como os valores e repertórios culturais básicos da modernidade podem adquirir sentido específico se remetidos aos métodos de produção e circulação da índústria siderúrgico- eletro-mecânica da passagem dos séculos 19 para o 20 (a linha de montagem fordista e a engenharia do ferro, por exemplo, qual paradigmas do construtivismo e da montagem, no cinema, de Eisenstein e Griffith), a biogenética, a eletrônica, a informática e a fluidez quase imaterial do capitalismo financeiro tornaram-se um pano de fundo da contemporaneidade. O final da década de 50 e o começo da década de 60 marcam a crise das poéticas abstracionistas e construtivistas, clímax do projeto de uma arte autônoma. Sucedidas pela pop e a emergência internacional de uma figuração interessada por ícones da vida diária, e, por isso mesmo, influenciada pelos repertórios da publicidade, dos meios de comunicação, das histórias em quadrinhos; a proposta de uma integração entre arte e vida ( desde o transnacional grupo Fluxus, aos brasileiros Oiticica, Clark e Pape) indica não somente o fim da busca pela autonomia da arte, mas a contaminação das linguagens artísticas por atividades pertencentes a outros campos da especialização profissional. Em lugar da velha concretude dos processos de montagem modernos, as imagens eletrônicas da atualidade resultam da edição de componentes imperceptíveis (chips e programas). Tornaram-se, ainda assim, paradigmáticas de um mundo em rede, um mundo editado, no qual a noção de ser (algo dotado de identidade permanente e passível de ser fixada em conceitos) deu lugar ao império do estar (algo cujo sentido provisório é refeito a cada nova conexão). A produção cultural contemporânea move-se num solo transitivo bastante diverso daquele instaurado pelos valores históricos que deram origem às vanguardas. Hoje a “hibridização” substituiu a “pureza”, a “interface” destronou a “especialização”, as “narrativas” (conteúdo) retomaram o lugar que Relevo lhes fora tirado pela “investigação formal pura” e as “citações ao Espacial passado” valem mais que o “genuinamente novo”, e, finalmente, a (1959), de Hélio Oiticica “expressão pessoal” tornou-se mais essencial para o homem contemporâneo que os “valores universais”. •
Bicho (sem data), escultura de Lygia Clark
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Hoje, a retomada da vanguarda é fundamental para potencializar até o limite a crítica ao capitalismo global a partir de um projeto de futuro Luciano Justino
Ainda a Vanguarda? A
impossibilidade da vanguarda em tempos “pós-modernos” é um lugar-comum do debate contemporâneo. Quero me deter em duas das razões alegadas para tão triste desfecho: a assimilação da vanguarda pelo sistema artístico e a pluralidade democrática inerente ao nosso tempo, aquilo que se tem chamado de “ausência de ordem dominante”. Sem ordem a questionar, obsolescência estratégica da vanguarda. Dois implícitos: um estético, mais óbvio e mais na superfície, e outro, político. Se hoje é difícil aceitar qualquer noção de arte que desvincule o “objeto artístico” de seus suportes, canais e redes de circulação e recepção, no que diz respeito às vanguarda modernas, o que está em jogo são as relações profundas entre a arte e a sociedade, a dimensão sociopolítica da prática simbólica. Em certo sentido, as vanguardas modernas antecipam e tornam possível a crítica política da instituição artístico-literária. Como disse François Albera sobre Eisenstein, “os critérios são menos estéticos, intra-artísticos, do que sociais”, e Maria Eugênia Boaventura, “pensar-se-á em vanguarda ao constatar as características do conceito de moderno exacerbadas e os problemas da linguagem explorados até a saturação – contradiscurso –, contestando a sociedade”. A vanguarda sempre é pouco artística e pouco poética; não está na dominante discursiva coetânea, mas num lugar contíguo, por razões estéticas, técnicas, profissionais, de classe etc. Suas atribuições de valor, suas formas de ação, suas ferramentas ou o uso singular que faz das ferramentas de sua época, suas formas de semiotização e construção imaginária, não criam raízes na hegemonia, Continente abril 2006
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Imagens: Reprodução
O russo Sergei Eisenstein, que desenvolveu o Construtivismo na montagem cinematográfica
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ou melhor, nascem da contradição mesma com o hegemônico. Daí ser um processo ininterrupto de ação e superação crítica, invenção e reinvenção, atualização e atualização. O critério estético que anuncia a morte da vanguarda não tem nenhuma autoridade para fazê-lo, pois a ruptura com o estético, em sentido amplo, foi um dos vetores da vanguarda moderna, não podendo ser de outra forma. A vanguarda atravessa o campo artístico, sempre em busca de uma outra coisa. Nas vanguardas modernas, esse “outro” era sempre uma totalidade: a revolução, a máquina, a nação, a expressão, o inconsciente. Se essa totalidade se esvaiu na configuração singular das sociedades capitalistas atuais, muito daquilo contra o que elas se insurgiram ainda permanece. Pode ser dito que as bases do capitalismo permaneceram intactas nos últimos cem anos, embora bastante modificadas em aspectos importantes. No caso brasileiro, o debate tem um dado específico, um interesse em esvaziar o Concretismo ou minimizar sua importância. O Concretismo virou uma espécie de mito (ou de gato de sete vidas), que precisa ser “matado” a todo instante. “Noigandres” parece um fantasma constitutivo, um inimigo morto, mas insistentemente presente. Contudo, nunca se observa que a importância do Concretismo não está na ruptura ou no “emparedamento”, como se disse certa vez, que potencialmente tenha gerado nas artes e/ou na literatura, está sobretudo no abalo político que sugere a partir de seu fundamento poético, cujas implicações podem ser sentidas na contra-tradição que abre nos modos de pensar o Brasil (ver o “caso Sousândrade” e do “seqüestro do barroco”) e, por extensão, suas relações interamericanas e internacionais. De fato, o Concretismo tem pouco a dizer, se observado “poeticamente”, “literariamente” ou “artisticamente”. É preciso agora observá-lo de outro ângulo, para usar uma expressão futebolística. Acusado de formalista, ironicamente o Concretismo tem sido vítima de uma visão formalista de seu projeto, as experiências concretistas se resumem a simples disposições de letras sobre papel, escolha do tipo, jogos sonoros, significantes etc., impressiona ainda como as abordagens sobre ele ainda repetem os mesmos argumentos e os mesmos exemplos há 50 anos. Didi-Huberman chamou de “tautológico” um certo hábito crítico que não consegue ver outra coisa no objeto além de sua objectualidade: “o homem da tautologia terá fundado seu exercício de visão sobre uma série de embargos em forma de (falsas) vitórias sobre os poderes inquietantes da cisão. Terá feito tudo para recusar as latências do objeto ao afirmar como um triunfo a identidade manifesta desse objeto mesmo: ‘esse objeto é aquilo que vejo, um ponto, nada mais’ ”. A tautologia, que preside a maior parte dos comentários sobre os concretos, transforma uma cegueira em triunfo intelectual. As mesmas frases feitas sobre o Concretismo derivam de um discurso maior que, salvo raras exceções, aparece sob a rubrica do Pós-Modernismo e de certa forma se liga ao jargão do fim das utopias, da ideologia e da história. Para este discurso dominante, as vanguardas modernas surgem no princípio do século 20 e vão até o final dos anos 60 porque a Europa e a América eram campos de tensão de diversas ordens. Nossa época também não está “tensa”? Ou melhor, quando viver sob o capitalismo deixou de ser tenso para a grande maioria? Não parece inteligente, para dizer o mínimo, supor que os substratos políticos e sociais contra os quais as vanguardas modernas lutaram, desapareceram. Tampouco não levar em conta as novas necessidades e os novos anseios do homem contemporâneo. Postular uma vanguarda tal qual foi há cem anos seria uma forma de cinismo, cujas conseqüências na melhor das hipóteses seria a transformação da vanguarda em “estilo de época”.
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Hoje, a retomada da vanguarda é fundamental para potencializar até o limite a crítica ao capitalismo global a partir de um projeto de futuro. Ela nem pode ser aleatória nem simplesmente “pluralista”, os “pluralistas” geralmente demarcam a diferença para deixar intocada sua própria indiferença. A diferença e a pluralidade só têm relevância quando caminham em direção à justiça social, não da auto-realização pessoal (Bauman). A vanguarda, enquanto atitude de pesquisa constante, histórica e política em toda amplitude, é ainda necessária para fazer a crítica das pseudo-democratizações, tão em voga no discurso contemporâneo, do atual determinismo tecnológico e da anulação do outro vendidas sob a máscara de integração na uniformização cultural do Pós-Modernismo. A morte de uma vanguarda possível, contemporânea, em tudo oposta ao Pós-Modernismo, só é possível em um mundo que perdeu todo senso de projeto humano futuro ou, como parece ser o caso dos coveiros, num ambiente de profunda apatia política. A vanguarda tem um terreno fecundo a semear na América Latina, por ser esta formada de sociedades “mestiças”, em que projetos étnicos diversos, que ocupam lugares rigidamente hierarquizados na disposição do valor econômico-cultural, têm que negociar seus exercícios, ainda que frágeis, de cidadania, raramente harmoniosa, quase sempre tensa e, por vezes, desesperada, tanto num plano local, de sua própria dinâmica regional, quanto internacional. De outra parte, o neo-imperialismo, o tratamento desigual que entidades como ONU e OMC dão às nações, a concentração da riqueza nas mãos de poucos exigem uma atitude demolidora, mais intensa que em qualquer época anterior. A defesa da vanguarda, hoje, precisa resgatar sua natureza utópica e transformá-la em heterotopia intersemiótica e intercultural. Um princípio “didático” consiste em desvincular, tanto quanto possível, a heterotopia da vanguarda contemporânea das velhas utopias autoritárias, com as quais várias vanguardas modernas mantiveram relações, e aproximá-la definitivamente da ética, a partir da instigante diferença feita por Luis Villoro entre utopia e ética política: “a ética [política] rompe com a situação existente; não se conforma com ela e propõe, assim como a utopia, uma série de fins e valores que não se realizam na sociedade atual. Nesse sentido a ética tende a ruptura. Mas, diferentemente da utopia, a ética política tem de ser concreta, isto quer dizer que deve se adaptar, a cada momento, às relações de meios e fins que há em cada situação particular para realizar as ações políticas”. A ética política aponta para uma heterotopia do agora, busca imediata de realização projetiva desde já, sem tempo de maturação senão a ação seletiva no presente. A vanguarda existe para resgatar a esperança incrustada na própria ordem capitalista como potencial bloqueado. A não ser que estejamos vivendo no paraíso como teletubbies metafísicos. A vanguarda se contentaria com o paraíso? Ou, como diz a canção popular, “justo na terra de ninguém (pode sucumbir) um velho paraíso?” •
Ambivalência número 27 (1982), de Jesús-Rafael Soto, um dos destaques do Construtivismo
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MÚSICA
Uma festa para Mais que uma simples efeméride, os 250 anos do compositor austríaco são marcados pela consagração da sua atualidade em novas interpretações e releituras de sua vasta obra José Manuel Berea, de Madrid
Existem aniversários que servem apenas para tirar o pó de umas quantas partituras amarelas que já não interessam a ninguém, outros que são celebrados simplesmente com intenções politicamente corretas. O de Mozart, além de resultar numa festa universal, não é mais que a ampliação social do seu valor excepcional como um dos grandes criadores da arte ocidental. O importante, no fundo, é que Mozart esteja aí; que siga sendo o centro das paixões e das devoções musicais de milhões de pessoas em todo o mundo, que sua música mais alegre e otimista seja ainda capaz de aliviar penas, que sua música mais profunda e mais dramática possa elevar nossos espíritos, que esteja na boca de todos sem que ninguém a discuta. Que seja o número um, em definitivo, mesmo que no terreno da cultura a hierarquização seja sempre muito discutível. Cumprem-se agora 250 anos do aniversário de nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart, acontecimento notório que se deu em Salzburgo, em 27 de janeiro de 1756. Porém, é como se tivesse ocorrido há 250 dias, porque sua música, como acontece com todas as grandes obras mestras, longe de envelhecer, está, a cada dia, mais viva e fresca, toca-se e canta-se muito melhor que em seu tempo, muito mais gente a escuta e desfruta, e segue gerando reflexões em todos, musicólogos e profanos, divas e estudantes, velhos e crianças. A vigência de Mozart como compositor é indiscutível no alvorecer do século 21. Parece que seus acordes, trinos e cadências sobreviveram milagrosamente Continente abril 2006
Imagens: Reprodução
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MÚSICA nesse mundo de wap, mp3, DVD e outras siglas tecnológicas de última geração. Suas melodias são escutadas em milhares de celulares, suas produções discográficas se empilham em lojas e quiosques, muitas de suas gravações estão na internet, disponíveis para download, suas obras são presença constante em programações de ciclos e festivais. Mas, em maior ou menor medida, isso também acontecia em 2005 e seguirá acontecendo em 2007 – para sorte de todos. Precisamente porque não necessitamos de uma efeméride para descobrir nada. A figura de Mozart foi bastante reconhecida ao largo desse quarto de milênio, começando por seus colegas. Schubert, em uma carta de 1816, se mostrava assombrado com a quantidade de impressões de uma vida melhor que a música de Mozart produzia em nossas almas. Rossini confessava que Beethoven era “o Grande”, mas dizia que o austríaco era “o Único”. Para Tchaikovsky, ele representava a encarnação do verdadeiro artista, aquele que compunha da mesma maneira que cantava o Ruseiñor. Darius Milhaud, compositor francês que se deixou seduzir pelo samba em sua estadia no Rio de Janeiro, se espantava com a liberdade que Mozart sempre mostrou frente à inevitável coerção das regras clássicas. A música de Mozart sempre despertou a admiração unânime, devido ao conjunto de fatores que a converte em uma das maiores aportações individuais da cultura universal. Toda sua obra parece apresentar-se como uma mensagem de amor à humanidade, mesmo que o segredo do seu êxito não seja fácil de precisar. Revestida de certo ar de simplicidade e ingenuidade, em sua obra se sente de perto a emoção, o mistério, a alegria e a dor. Isso é um marco formal estritamente clássico que só a inteligência de um músico genial sabe colocar a serviço de seus interesses expressivos. Por isso, todos esses componentes se fazem visíveis através do equilíbrio, da simetria e do perfeito desenho das proporções, mesmo que sempre haja espaço para a exceção e transgressão das normas escolásticas. Isso se plasma num assombroso domínio de todos os gêneros, desde o piano à ópera, da música de câmara à música religiosa. Tanto nas sonatas compostas na infância, como no póstumo e célebre Réquiem, passando pelos concertos de piano, as sinfonias e os quartetos, a personalidade do autor transcende as inquietudes da sua vida privada e as penúrias econômicas que sofria para ascender ao lugar que só os privilegiados ocupam. Herdeiro do passado Barroco mais imediato e em muitos aspectos precursor do Romantismo, que explodiria na Europa pouco depois de sua morte, Mozart resume na sua obra os conflitos e as ilusões de uma época. Os grandes intérpretes do nosso tempo observam, cada um a sua maneira, o grande mito mozartiano e nos deixam seu valioso testemunho pessoal. Assim, para Alfred Brendel, algumas de suas sonatas pianísticas são pouco executadas, porque muitos pianistas as consideram erroneamente muito fáceis, sem perceber toda a Continente abril 2006
Mozart Vestido de Gala, P. A. Lorenzoni, 1763
MÚSICA complexidade que possuem. Por sua vez, o que mais atrai Maria João Pires na música de Mozart são os contrastes, as súbitas mudanças de caráter, até o ponto de, às vezes, conviver em uma mesma passagem o humorístico e o dramático. Outro pianista, András Schiff, confessa que tocar Mozart é um privilégio, ainda que não seja fácil transmitir a naturalidade que se esconde em seus pentagramas. Do ponto de vista operístico, a mezzosoprano Cecília Bartoli afirmou que os personagens femininos de Mozart são maravilhosos. Da Fiordiligi del Cosi fan tutte, que interpretou recentemente em Salzburgo, diz a carismática diva italiana, que se trata de uma grande mulher que resume em seu personagem uma extensa gama de sentimentos. O barítono Thomas Hampson proclama que em Mozart existe uma extraordinária conexão entre texto, pensamento, música, movimento cênico e interpretação que não se dá com o mesmo grau de intensidade em nenhum outro compositor. Não apenas as divas; os virtuosos e os maestros se atrevem a falar do compositor. Os encenadores também nos dão sua visão pessoal do universo mozartiano, muitas vezes em meio a grandes polêmicas pelo atrevimento das produções. Patrice Chéreau, que montará o Don Giovanni, na íntegra, que este verão será apresentado no Festival de Salzburgo, afirmou que quando um cantor tem que declarar a mesma frase três vezes – já que Mozart se preocupou em compô-las da mesma maneira – sempre pede que invente uma progressão dramática que deixe claro para o público que se canta de três maneiras diferentes. O encenador francês criticou publicamente algumas versões “heterodoxas” das óperas de Mozart (em particular A Flauta Mágica que a Fura dels Baus montou em Paris e Madrid), por deixar certo vazio no espectador na hora de criar o argumento. Mesmo que alguns proclamem que Mozart é um enviado dos deuses, a verdade é que foi um músico metido plenamente no curso da história, um artista genial que absorveu idéias de seus predecessores e que influenciou também a posteridade. Beethoven compôs diversas variações sobre temas da Flauta Mágica e As Bodas de Fígaro, Chopin as variações sobre “La ci darem la mano del Don Giovanni”, Liszt as “Reminiscências de Don Juan”, Tchaikowsky sua “Suíte Mozartiana” e Reger as
variações e fuga “Opus 132”, para citar apenas uns poucos exemplos das numerosas obras que se inspiraram na música de Wolfgang Amadeus. 1956 foi uma data-chave na mitologia mozartiana. Eram completados dois séculos do seu nascimento e, no festival alemão de Donaueschingen, se estreou uma obra coletiva composta por 12 breves peças orquestradas escritas especialmente para a ocasião. Chamava-se Divertimento e o motivo comum de todas elas era a ária “Ein Mädchen oder Weibchen”, da Flauta Mágica, o que deu lugar a uma grande variação de estilos. Entre os compositores que participaram do projeto figuravam alguns célebres, como o alemão Hans Werner Henze, o francês Maurice Jarre e o italiano Luciano Berio, grande especialista em comentários sobre a música de outros autores. Entre os muitos criadores que se aproximaram de Mozart durante os últimos anos, pode-se destacar o nome de Michael Nyman, autor da trilha sonora do filme O Piano, que compôs recentemente “Revisiting the Don”, na qual aparece, dentro do estilo minimalista que caracteriza o compositor britânico, uma referência a Don Giovanni. Contudo, numerosos músicos de outros gêneros já mostraram seu interesse por recriar o espírito mozartiano, demonstrando até que ponto sua mensagem musical permanece e sobressai à questão de gêneros e estilos. Em “The Rambles of Mozart”, o violinista popular irlandês Frankie
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Uma série de concertos, em Praga e em várias capitais européias, celebrará os 250 anos de Mozart durante todo o ano de 2006
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MÚSICA Gavin comenta, à sua maneira, algumas frase da “Pequena Serenata Noturna”, dentro de um ambiente rústico e neofolclórico, com um resultado divertido. “The Flower is a Key” (2002), do mexicano Sergio Cárdenas, é um curioso rap cheio de sutileza e ironia, uma obra para um recitador e 12 violoncelos que gravou ninguém menos que Sir Simon Rattle, com músicos da Filarmônica de Berlim. Mozart’s Turkey Rock Mambo é o atrevido título de uma obra de Terence Greaves, na qual as evocações mozartianas se misturam com insinuações desses estilos (rock e mambo). Por fim, o Mozart meets Cuba, um disco do grupo Klass Brothers & Cuba Percussion, é um atrativo, onde os temas de Mozart são encaixados com ritmos caribenhos em um projeto lúdico e original. E para que não nos falte nada, na galáxia Mozart, também cabem experimentos científicos. Não faz muitos anos, Francis Rauscher realizou, na Universidade da Califórnia, um teste sobre as reações psicológicas de indivíduos perante a música de Mozart. Depois de comparar as respostas dos alunos que escutaram a “Sonata para dois pianos K.488” com as de outros que escutaram outras obras ou simplesmente nada, Rauscher chegou à conclusão de que aqueles que recebiam a mensagem musical de Mozart tinham um considerável incremento nos dados de coeficiente de inteligência. Segundo aquelas teorias, todos os estilos musicais ativam as zonas do cérebro associadas com as emoções, mas apenas a de Mozart atuaria sobre as áreas que pro-
cessam a razão. A imprensa americana batizou aquelas previsões otimistas como o “Efeito Mozart” e em coisa de dias os discos do compositor desapareceram de todas as lojas dos EUA. Posteriormente, numerosos debates científicos sobre o tema acabaram criando uma certa áurea mítica sobre a possibilidade da influência positiva de Mozart no rendimento intelectual de seus ouvintes. À margem de debates e especulações, uma coisa é certa em 2006: o deleite coletivo em torno da celebração de um dos grandes aniversários culturais do século 21. Salzburgo ferve durante esses dias. A bela e pequena cidade austríaca recebe, anualmente, milhões de visitantes, em uma oferta turística baseada, sobretudo, na figura do compositor: os bombons Mozartkugeln, a casa natal, o teatro de marionetes, os festivais de música, a iconografia... A “mozartmania” vive agora momentos de esplendor: discos, películas, livros, souvenirs se convertem em best-seller em todas as partes. O ano 250 da era Mozart é a ocasião para que os austríacos, que colocaram moedas de euro com sua imagem, celebrem tudo. Viena preparou um exaustivo programa de atividades, englobado dentro do slogan Ein Fest für Mozart (Uma festa para Mozart), contudo não são apenas eles, e, sim, toda a Europa e o mundo que desfrutam cada dia de todos os mistérios e maravilhas que se escondem na obra daquele que possivelmente é compositor mais genial de todos os tempos. • Tradução: Mariana Oliveira
Salzburgo, hoje – a cidade que viu o nascimento de Mozart
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Monumento a Mozart nos Jardins Burggaten (Salzburgo), feito por V. Tilgner
CDs
AGENDA/MÚSICA Cabo Verde
O poeta, multiinstrumentista, pintor e ativista cultural Mario Lucio, que também é fundador e líder do grupo caboverdiano Simentera, lança Mar e Luz, seu primeiro trabalho solo. Mar e Luz reúne todas estas habilidades: através da literatura, o poeta tem seu lirismo expresso em canções como “Nha Mudjer”, que conta com participação especial de Gilberto Gil, “Eat Me” e “Mar e Luz”. O pintor aparece nas imagens de “Ilha de Santiago” e “Mindelo”. Já o ativista cultural permeia todas as canções, mas surge mais forte em “Deus Graça”: “Undé menino cu sé ar de graça/ Mostra futuro m'é ca só desgraça/ Futuro é uma raça, Nu da Deus Graça”.
Festa eletrônica
Imagens: Divulgação
Mar e Luz. Rob Digital, preço médio R$ 22,80.
Religioso e profano A Festa de Reis é uma tradição cultural e religiosa abrangente, que comemora o nascimento de Jesus, revivendo a viagem dos Três Reis do Oriente para adorar o menino. O álbum duplo Folia de Reis – Tradição e Fé apresenta as funções religiosas – cantos de devoção, rezas e ladainhas – e as cantorias de diversão e danças, como catiras, curraleira e lundu, gravadas durante o Encontro de Folia de Reis do DF. Os CDs guardam um registro sonoro e fotográfico da diversidade e riqueza dos grupos de reisados de boa parte do país. Folia de Reis – Tradição e Fé. Independente, preço médio R$ 20,00.
Nobre encontro
Os versos “Somos apenas dois mulatos/ fazendo poses nos retratos/ que a luz da vida imprimiu de nós”, de Caetano Veloso, na canção “Os passistas”, bem que poderiam estar descrevendo a cantora Jussara Silveira e o violonista Luiz Brasil, que se encontraram para realizar o álbum Nobreza. Em suas 13 faixas, o disco vai de Caetano, Djavan, Paulo Vanzolini e Lupicínio Rodrigues a Zé Miguel Wisnik, Carlinhos Brown, Chico Buarque, Dodô e Osmar e Moraes Moreira, mapeando o Brasil musical. Nobreza. Maianga Discos, preço médio R$ 25,00.
Efeito Sanfona
Efeito Sanfona é o primeiro registro do trabalho do sanfoneiro “sem compromisso” Arimatea Ayres. O repertório, maravilhoso, inclui frevos tradicionais como “Madeira que Cupim Não Rói”, “Evocação Nº 1” e “Hino dos Batutas de São José”. Mas, frevos executados por uma sanfona? Pois é. As melodias tiveram suas harmonias e andamentos alterados (afora “Não Diga Adeus Ainda”) e o resultado é muito bom, exceto pela utilização de uma bateria eletrônica, que pasteuriza as canções. Efeito Sanfona. Independente, preço médio R$ 20,00.
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Banda Lou (BA)
Em sua 14ª edição, o Abril Pro Rock inova ao começar com uma pista de dança eletrônica
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a primeira noite de sua 14ª edição, no dia 21 de abril, o Abril Pro Rock não usará nenhum de seus dois palcos tradicionais. Em vez disso, transformará o Pavilhão do Centro de Convenções de Pernambuco numa pista de dança eletrônica, com capacidade para 5 mil pessoas, animada por nomes como Diplo (EUA), Kook and Roxxy e Stereo Total (ambos da Alemanha). A noite de sexta-feira conta ainda com a participação dos DJs João Gordo (Ratos de Porão) e Igor Cavalera (baterista do Sepultura), do Montage (CE) e do Bloco Mega Hits (PE). O sábado (22/4) contará com Montage (CE) shows da Atrocity e Leaves Eyes, ambas da Alemanha. A já conhecida noite do metal tem ainda Angra (PE), Forgotten Boys (SP, com CD recémlançado), Cólera (SP), Lou (BA), Terra Prima (PE), Ungodly (BA) e Medulla (RJ). A francesa Camille, que foi vocalista do Nouvelle Vague, integra a programação do domingo (23/04), junto com a Orquestra Imperial (RJ), formada por músicos como Wilson das Neves; Thalma de Freitas (atriz e cantora) e Rodrigo Amarante, do Los Hermanos. A noite terá ainda shows de Lafayette e os Tremendões, que divide o palco com Gabriel Thomaz, do Autoramas, Érika Martins (Ex-Penélope), André Nervoso e outros. Ao todo, o festival terá 27 atrações, sendo seis internacionais. Os ingressos custarão R$40,00 (inteira), R$20,00 (meia) e R$65,00 (passaporte para os três dias). 14° Abril Pro Rock. 21, 22 e 23/04. Pavilhão do Centro de Convenções de Pernambuco, Complexo Salgadinho, S/N, Olinda. Programação completa: www.abrilprorock.com.br Continente abril 2006
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ANTROPOLOGIA
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capoeira é atualmente o segundo esporte nacional no Brasil depois do futebol. Porém, sua prática se espalha hoje em dia por todo o mundo. Ela provoca um verdadeiro encanto na Europa e nos Estados Unidos, locais onde quase não há mais centros esportivos que a ignorem, deixando, assim, de propor seus cursos. E esta moda ganha todas as idades, todas as raças, todos os sexos. Assim sendo, ela é apresentada como a melhor expressão da mestiçagem cultural da qual tanto se orgulha o Brasil. Entretanto, é conveniente lembrar que a capoeira é uma criação especificamente negra, que coloca em xeque uma visão de mundo antagonista da cultura branca. Antes de ter sido reduzida a um esporte ou confundida com uma arte marcial, esta luta a passos de dança foi uma arte de resistência inventada pelos escravos negros do Brasil. E ainda que ela não tenha sido diretamente utilizada contra os brancos, ela induziu a um pensamento sobre o corpo, a uma filosofia e a uma ética que contrariam, em um mundo vital e carnavalesco, os valores da ontologia branca. Para falar em termos deuleuzianos, a capoeira é uma máquina de guerra nômade situada no seio mesmo da estrutura de poder econômico e social do imperialismo branco. Mas, como se trata de uma arte verdadeira, ela é também uma máquina desejante. Ela exalta a potência e a beleza do corpo do homem negro contra todas as forças de submissão e escravidão. Ela constitui uma vitória estética face à derrota dos corpos que aceitaram a integração ao sistema de exploração capitalista: corpos obesos ou anoréxicos, corpos funcionais, corpos abandonados pelo desejo, corpos siliconados etc. E diante de todas as formas de desconstrução da arte ocidental, ao menos daquela que escapou da sociedade do espetáculo de massa, a capoeira encarna a possibilidade de uma arte de afirmação vital e alegre. Continente abril 2006
Stefan Kolumban/Tyba
Arte da capoeira e ideologia da mestiçagem A arte brasileira está na moda em todo o mundo, às custas de uma negação do seu princípio fundador: a resistência negra à opressão cultural Camille Marc Dumoulié, de Paris
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ANTROPOLOGIA Ora, eis que esta gloriosa expressão da resistência negra se tornou um instrumento de integração social. A dança de guerra dos antigos escravos foi levada a se transformar em dança de submissão dos novos escravos da sociedade contemporânea. E isto, em nome da ideologia politicamente correta da mestiçagem. Certamente, o fato de a capoeira possuir uma força de mestiçagem prova que ela é uma máquina desejante que nos leva a desejar com ela e contra nossas barreiras identitárias. Nós admiramos a superioridade do gesto que exibe sua graça ao infinito, sem tocar no adversário, em relação ao ato utilitário próprio do mundo do trabalho e da rentabilidade. Nós entramos no domínio do devir-animal, que os primeiros lutadores empregaram para inventar os golpes da capoeira: a coxa de mula, o vôo de morcego, o rabo de arraia, o escorpião, o macaco... Nós entendemos, de repente que a cabeça não é mais feita para pensar, mas para dar cabeçadas, e que, como dizia Nietzsche, “é preciso pensar com o pé”. Nós reconhecemos a dignidade de uma estética do jogo contra o espírito de seriedade e da moral do lucro dos quais nós somos escravos. Em suma, nós estamos prontos para um devir-negro, pois ser negro, no Brasil, é sempre devir – dando seguimento aos escravos aos quais se renegou o fato de ser e que, assim,
foram levados a inventar um corpo e uma natureza. Transformar-nos em outro, para além do modelo globalizado do homem branco ocidental, experimentar o devir-negro, o devir-mulher, o devir-árvore em uma pintura, o devir-linha melódica de uma música, tal é a potência da arte como máquina de guerra e máquina desejante. Mas é isso o que se passa hoje em dia em virtude da moda da capoeira? Não. Ao invés de reconhecer na capoeira uma arte de resistência e uma potência criativa de formas de devires, faz-se dela, sob o pretexto da mestiçagem, um produto de consumo exótico e um rebaixamento no nível de esporte. Os intelectuais brasileiros, depois de Oswald de Andrade, gostam de se declarar “antropófagos”. No entanto, a última antropofagia que persiste é a antropofagia cultural dos brancos, que perderam toda cultura real e que, depois de terem explorado os corpos dos escravos e pilhado as riquezas da África, tentam se alimentar da vitalidade dos corpos negros como verdadeiros antropófagos. Porém, a força da morte da civilização branca faz com que ela mate em si a vida com a qual ela pretende se mestiçar. Na verdade, somente os negros se mestiçam. Um evidência deste fato é que não se diz nunca “este branco é um mestiço”, mas, ao contrário, se diz “este negro, ou este índio, é um mestiço”. Para Fotos: Luiz Santos/Local
Em vez de ser reconhecida como arte de resistência, a capoeira tem sido apontada como produto de consumo ou esporte
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ANTROPOLOGIA Eduardo Knapp/Folha Imagem
“Que as crianças nas escolas façam capoeira, mas somente se a dignidade da capoeira não for confundida com pedagogia infantil”
os brancos, a mestiçagem é sempre cultural e, portanto, metafórica. A metáfora é, aqui, uma negação do real e, em particular, da invenção cultural e estética dos negros que se quer incorporar em práticas sociais uniformizadas, onde as diferenças se nunciam, se acinzentam, se embranquecem. Protege-se, assim, do devir-outro, que representa a verdadeira mestiçagem e que suscita toda experiência estética autêntica. Felizmente, a máquina de guerra negra se vinga: o espetáculo normalmente deplorável dos brancos que lutam sem jeito a capoeira em seus clubes de esporte só faz tornar ainda mais sublime a graça dos verdadeiros artistas. Enfim, esta ideologia da mestiçagem está justificando a desnaturalização da capoeira, a ponto de se fazer dela um meio de integração social. Nada é mais sinistro que as obras de certos sociólogos sobre o uso pedagógico e integrador da capoeira junto às crianças das favelas. Nada é mais repugnante que ver as senhoras caridosas e os bons pastores regozijarem-se com a idéia de estarem subjugando fantasmaticamente os corpos potentes, ao nos obrigarem a dançar-lhes uma dança de submissão: aquela da integração dos excluídos, que devem, a qualquer preço, desejar ocupar seu lugar no grande sistema da exploração social – o mais baixo, evidentemente. Que eles sejam integrados à força de armas ou a golpe de marketing publicitário, e que as crianças nas escolas façam capoeira, assim como elas fazem desenho, pintura e a tocar um instrumento, porém, somente se a dignidade da capoeira não for então confundida com a pedagogia infantil. Assim como nós ainda não temos a audácia de sustentar que Shakespeare, Rembrant ou Mozart são meios de integração social, é importante que nós reconheçamos que a capoeira, como uma arte, é um princípio de revolta que retira sua dignidade da graça dos corpos que se sobressaem com insolência à real desintegração vital da atual sociedade neo-capitalista. E que, assim, a criação de resistência artística dos negros não seja transformada em um instrumento de sua alienação voluntária. •
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Jomard Muniz de Britto em O Veneno do Novo Existencialista, intelectual engajado, vanguardista e visceral, Jomard Muniz de Brito ĂŠ um excelente personagem para um longa-metragem Paulo Cunha
Marcelo Lyra/OlhoNu
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Heitor Cunha/DP
e ainda fosse possível filmar a vida em super-8, se ainda houvesse lugar, entre as cores de hoje, para aqueles incríveis vermelhos saturados, algum cineasta adolescente que tivesse sido congelado no século passado tentaria fazer um retrato em seqüências de Jomard Muniz de Brito: Cena 1: Bar da Central, década de 80, JMB toma Montilla com Coca Cola. Cena 2: Sala de aula da Universidade Federal da Paraíba, década de 60, JMB defende a bossa-nova. Cena 3: Complexo de Salgadinho, década de 70, JMB dirige um ator do Vivencial Diversiones. E por aí vai. Ficaria bonito, como eram bonitos os super-8 simplesmente porque eram super-8. Mas seria preciso muito mais para dar conta da vida desse dândi nordestino. Anotem aí um roteiro mais completo: JMB se graduou em filosofia pela UFPE. Desde os anos 50, foi a um só tempo existencialista, cineclubista, intelectual engajado. Por isso mesmo integrou a equipe do educador Paulo Freire, na década de 60, durante a fase inicial do histórico programa de alfabetização de adultos. JMB se juntou a Paulo Freire, aliás, naquele ponto eqüidistante entre a juventude do PCB e a juventude católica. Precocemente universitário, foi assistente daquela filósofa que, poucos dias depois do golpe militar de 1964, publicou um anúncio pago nos jornais dizendo que não o conhecia. Por essa e por outras (mais por outras...), foi preso. Na cela, tornou-se companheiro provisório de Gregório Bezerra, a quem tentou ensinar um pouco de francês entre um espancamento e outro. Solto, voltou a ensinar, mas depois do AI-5 foi aposentado compulsoriamente da UFPE e da UFPB – na UFPB, por ordem direta do comandante militar local. Pasmem: JMB respondeu nessa época a um inquérito administrativo-policial, coordenado por um professor com vocação de delegado, por ter feito uma palestra sobre o amor. No período de afastamento, ensinou onde foi acolhido: na Escola Superior de Relações Públicas do Recife. Só no início dos anos 80 conquistou na justiça a reintegração nas duas universidades federais. Teria mesmo de ser um longametragem. Ou um romance. Ou uma instalação multimídia. Para aquilo que é quantificável, JMB publicou 11 livros poéticos e ensaísticos, realizou 33 filmes e vídeos, escreveu peças de teatro, gravou um CD com músicas feitas a partir de seus textos e vive fazendo performances para comunicólogos, psicanalistas, historiadores, arte-educadores e para o público em geral, naqueles lugares onde é chamado ou aonde vai de todo jeito, penetrante como os textos que escreve.
JMB: uma esfinge
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PERFIL O enredo do filme deve deixar claro o seguinte: JMB faz parte ativa da melhor paisagem cultural brasileira, no mínimo desde 1966, quando lançou o livro Do Modernismo à Bossa-Nova. O prefácio foi escrito por Glauber Rocha, àquela altura já consagrado pela obraprima Deus e o Diabo na Terra do Sol. JMB havia sido assistente de direção de Cruz na Praça, curta realizado por Glauber em 1959. No prefácio de 1966, Glauber contou o seguinte: “O que me fez amigo de JMB foi nossa comum paixão pelo cinema, isso já faz 10 anos (em 1956, portanto), na decente Recife. Depois, nosso desencontro de temperamentos criou compensações: JMB veio escrever crítica de poesia numa revista literária que eu dirigia em Salvador, depois veio mesmo para a Bahia, onde agiu com brilhantismo e polêmica nas rodas jovens das artes e letras locais. E assim foi, revelando-se palmo a palmo: o crítico de cinema era professor de filosofia, o teórico de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista era professor e o professor, sambista, outra vez no teatro!” Foi nesse texto que Glauber descobriu o segredo mais importante sobre a personagem: “Outra coisa que me fascina em JMB é a sua desaristocratização, sua erudição é diluída no seu grande interesse pela vida, sobretudo pela vida que o cerca, a que vive nos inesperados caminhos de hoje”.
Há outros enigmas, é claro. JMB é uma esfinge. Mas as chaves para a sua compreensão estão nos próprios textos de JMB, para quem souber ler. Por exemplo, no texto da autodefesa no inquérito administrativopolicial da UFPB, no dia 15 de março de 1973, quando era acusado de manipular as indefesas mentes juvenis dos universitários: “Minha personalidade nunca foi estruturada por convicções fechadas ou rígidas. Minha formação filosófica se fundamentou em bases de uma fenomenologia existencial, de abertura vivencial, de experiências anti-dogmáticas por excelência. Assim, dentro de uma renovada metodologia – discussão em grupo, leitura dirigida, debate de textos –, sempre procurei mostrar aos meus alunos que o dogmatismo é a atitude mais desaconselhável em termos de filosofia da cultura”. O que ainda hoje perturba muita gente na trajetória de JMB é a busca incessante pelo novo, a preferência pelo experimental, sua adesão visceral à produção mais recente da cultura. Se alguém perguntar ao próprio JMB a razão de estar sempre desconfiando das tradições, ele olhará para a câmera e dirá o seguinte: “A minha biografia está muito ligada ao novo desde a bossa-nova. Estivemos ligados ao Cinema Novo, devido à minha amizade com Glauber Rocha. Dirigimos shows com músicas de protesto, Em Tempo de Bossa, Pregão, trabalhamos junto aos grupos Raiz, Constru-
Reprodução
Cena do Super 8 O Palhaço Degolado, de JMB
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PERFIL Arquivo Continente
ção. Depois do Cinema Novo surge o Tropicalismo, que foi uma movimentação ampla que abalou muito a cidade”. JMB dá a esse traço do seu temperamento o título de “O Veneno do Novo”. É isso que corre nas veias dele. E pergunta o seguinte, no livro Escrevivendo: “O que seria de nós, mestres amestrados ou dionisíacos, dissipados ou bem regulados, operários da cultura ou boêmios da revolução, civiltares de todas as disciplinas ou militantes da política do cotidiano, o que seria de nós sem o versátil exercício da sofística, da polêmica, dos filosofemas? O que seria de nós sem a paixão, mais do que didática, pelo veneno do novo? O que aconteceria de nós sem os fulgores e fissuras da academia? Assim, por que não trocar a Universidade pela Univercidade?” O plano é claro. O papel do intelectual é perturbar. Desafinar o coro dos contentes, como dizia Torquato Neto. E essa foi a tarefa que JMB se atribuiu, nesse espaço do planeta que ele mesmo chama de “trinômio Recife–João Pessoa–Natal”. Foi para brincar com a tradição nesse pedaço do mundo que ele participou dos primeiros manifestos tropicalistas, ainda em 1968. Nesses textos coletivos se reconhece de cara a pegada de JMB, como o primeiro manifesto, assinado também por Celso Marconi e Aristides Guimarães: “A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo! Tropicalistas de todo imundo, uni-vvos”. No segundo manifesto tropicalista, divulgado logo depois e intitulado Inventário do nosso feudalismo cultural, e que foi assinado também por Caetano Veloso, Gilberto Gil e Moacy Cirne, ele clama: “Por toda iniciativa de cultura não oficial, descomprometida com a política cultural dominante. Pelo poder jovem (compreendido não apenas como um fenômeno de luta entre gerações) representado pelo movimento radical-eestudantil e pelos intelectuais independentes. Por qualquer movimento de vanguarda cultural (pois não queremos impor unicamente a nossa posição) que se caracterize pelo rompimento de todos os padrões: morais, sociais, literários, sexuais etc. e tal”. A história vem de longe, como se vê. E se separa claramente de outras trajetórias intelectuais nordestinas, como as de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Sobre a questão da cultura popular, por exemplo, que JMB não pretende separada (nem melhor, nem pior) das outras esferas de produção cultural, mesmo da cultura midiática. Já em 1964, no ensaio chamado Contradições do Homem Brasileiro, JMB apontava uma saída: “a intercomunicação ampla (nunca bitolada) da cultura reflexiva com as expressões opulares e a cultura de massas”.
JMB (ao fundo, com capacete de engenheiro) numa festa na casa de Celso Marconi
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PERFIL Naquele tempo, o modelo era o homem visualizado pelo Cinema Novo, cantado pela bossa-nova. JMB inventou e praticou desde então as noções de intercomunicação, de unificação cultural, o chamado método das contradições. Ele substituirá esses conceitos por outros, ao longo da sua trajetória, mas a idéia de fundo permanece: a necessária dialética entre a cultura popular e as vanguardas experimentalistas, capazes de gerar uma espécie de mixagem, de mistura, mixtura com x: “Mixturando o lixo com o luxo cultural, vanguarda com o investimento pobre de todos nós nudificados e sem critérios definitivos de julgamento, mixturando os carnavais com as procissões, os processos com os insu-
forma de reconhecimento ou transformação do mundo, expressão mais recepção. Isso é muito mais do que apenas isso”. JMB faz bem à cultura brasileira. Sua existência enche a atmosfera de claridade. Sem ele, como ficaria a arenga entre o feudalismo cultural e a cultura experimental? Quem, em Pernambuco, teria força para escrever esses versos da Terceira Aquarela do Brasil, em 1983, pensando em Gilberto Freyre: “Coço as virilhas da poesia em pânico: – Vem, ó menino da rua, menino desejado, menino senzalado! Heitor Cunha/DP
JMB é um atravessador – aquele que conecta, que traduz, que mistura. Híbrido e multicultural antes que os acadêmicos entendessem o que eram essas coisas, JMB é, de fato, um dos poucos intelectuais e artistas brasileiros que podem ser chamados de multimidiáticos
cessos, Ângela Maria com Gal Costa, Caetano Veloso com Odair José, Alceu Valença com Núbia Lafayette, vanguarda como tigre de papel solto para assustar ou pelo menos assuntar os imperialismos culturais reinantes, mas desejando sempre saber onde quando você, vocês vão colocar os x’s na vida, x’s nas múltiplas escolhas”. É por vivenciar permanentemente essas idéias que JMB não suporta ser chamado de escritor, ou de cineasta, ou de poeta. Tanto do ponto de vista das linguagens quanto do ponto de vista dos instrumentos, JMB é um atravessador – aquele que conecta, que traduz, que mistura. Híbrido e multicultural antes que os acadêmicos entendessem o que eram essas coisas, JMB é, de fato, um dos poucos intelectuais e artistas brasileiros que pode ser chamado de multimidiático. Não apenas por ter feito livros e peças e filmes e vídeos e música, mas por ter exercitado, em cada uma desses objetos, transposições radicais de linguagem. Ele mesmo se perguntou certa vez, se o que fazia era arte. A resposta: “Não. Isso é isso. Qualquer coisa. Poiésis. Poesia, criação, irrupção de algo novo, artefato e interpretação, Continente abril 2006
– Fui eu quem inventou a morenidade de tuas coxas púberes Durmo e sonho com a eternidade de meu y.” Ninguém, além dele, seria capaz de se filmar, com tanta pertinência, nO Palhaço Degolado, batendo palmas diante de um casarão de Casa Forte chamando: “Mestre Ariano Suassuna !?!” Produzida com endereço certo, a escritura de JMB não perdoa, como já percebera Glauber Rocha nos anos 50. E, graças a Deus, esse super-8 não tem hora para acabar: “Apesar de protegido pelas rugas e cabelos brancos, continuo no exercício talvez orgulhoso da margi-na-li-da-de. Orgulhoso e desesperador. A experiência de uma solidão radical, intercalada por uma difusa afetuosidade. Entre fantasmas da liberdade. Entre farrapos da cultura popular asfixiada pela cultura de massa. Entre as fantasias do Eros pedagógico”. •
Fotos: Maria Alice Amorim
Casais apresentam coreografias com sapateado, enquanto os poetas improvisam
Topadas mexicanas Noites de poesia na Ciudad Valles, no México, testemunham e dão o mote para emocionante farra poética de mexicanos e hermanos latinos Maria Alice Amorim
No México, quando dizemos topada, estamos falando de poesia. Poesia improvisada. Violão, dois violinos e viola acompanham o poeta, num tablado uns dois a três metros acima do chão onde o grupo se senta. Frente a frente, diante do público, outro tablado, mais quatro músicos e um poeta. Está pronto o cenário do combate, que durará cerca de 12 horas, e por testemunhas o sol, a lua, as vibrações de uma platéia. Três noites de poesia no centro do México, mais precisamente na Ciudad Valles, Estado de San Luis Potosí, foram testemunhas e deram o mote para emocionante farra poética de mexicanos e hermanos latinos. Os músicos disputam, instrumento a instrumento, os melhores ponteios. Escorre o sangue da poesia pelo fim da tarde até o amanhecer. Entretanto, a partir da meia-noite é que jorram picardia e desaforos em língua afiada. As primeiras horas são dedicadas a versos laudatórios, versos encomendados sobre o motivo da festa. A topada poderia se chamar sambada de maracatu, por que não? Afinal, o rito de embebedar-se de poesia é o mesmo nos dois encontros, embora saibamos das diferenças culturais. Há os músicos, os dançadores, os que vão olhar, os que vão beber cachaça, os que não deixam de ir a tal festa por nada desse mundo. Há um espírito de celebração, de transfiguração da realidade tão bem evocado ali. E, no centro de todas as atenções, o mago da palavra, o poeta, que não é um, são dois, a desafiarse um ao outro, protagonistas da noitada de ritmos, rima e métrica. Alto à la música!, grita o poeta, Continente abril 2006
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Praça de Ciudad Valles
os instrumentistas param, ele entra: aí não há vaga para rascunho, como diz Paul Zumthor. O que é feito, está feito e acabado. Uma das principais formas fixas no repente mexicano, e, aliás, em toda a América hispânica, é a décima espinela, que aparece em diversas tradições do continente e corresponde, entre nós, à décima de sete sílabas com rima consoante em ABBAACCDDC. Técnicas seculares de versificação, empregadas naquele país, aparecem sob variadas denominações, conforme o ritmo, como a décima michoacana ou no estilo jarocho, a valona (ou loa), a sextilha, a quadra, o mote e as glosas, resultantes todas da mistura de culturas, do mosaico étnico. O jarocho, por exemplo, pode ser quadra, sextilha, décima, tudo associado ao som tradicional, que inclui música, canto, dança. Há a décima escrita, ou de rodilla (joelho), como chamam. O que não destoa do nosso repente e cordel, em suas múltiplas formas de fazer, cantar e recitar os versos. Há nuances, há o ritmo próprio a cada gênero, há as diferenças regionais, mas o que não deve faltar é poesia. Justamente na região central do México, numa localidade até hoje de difícil acesso e escassos meios de comunicação, mantém-se um celeiro de improvisadores da tradição poética conhecida Continente abril 2006
TRADIÇÕES
Guillermo Velázquez Benavídez: diálogo com o contemporâneo
José Curbelo, pajador uruguaio em apresentação na Ciudad Valles
Justamente na região central do México, numa localidade até hoje de difícil acesso e escassos meios de comunicação, mantém-se um celeiro de improvisadores da tradição poética conhecida como huapango arribeño, onde o improviso campeia
como huapango arribeño, onde o improviso campeia: a Serra Gorda, que abarca os Estados de San Luis Potosí, Guanajuato e Querétaro. Um dos gênios desse repente huapanguero é Guillermo Velázquez Benavídez, poeta tradicional que sabe e faz questão de dialogar com o contemporâneo, que vai da valona ao rap. “A tradição é feita de transumância”, brada o trovador de Los Leones de la Sierra de Xichú, que sobe nos tablados ou tarangos desde 1976 para disputar as melhores estrofes, a golpes de inspiração. “O que me conquistou foi o canto, a voz, a palavra”, relembra Velázquez a primeira vez em que se sentiu enfeitiçado pela poesia huapanguera, entre os 15 e 16 anos. Tradutor de anseios populares de terra, justiça e paz, defende, nos versos, o movimento zapatista, e não se intimida diante de nenhuma platéia quando trata desses e de outros temas. “A vida é mais do que se imagina, do que ela mesma é.”p Foi o que também conseguiram mostrar dois ícones do mundo dos payadores ou pajadores: o uruguaio José Curbelo e a argentina Marta Suint, com uma poesia que canta o campo, a cidade e os sonhos libertários. Cerca de 40 poetas se envolveram em vibrantes shows em praça pública, e três mesas de debate. Viveu-se intensamente tudo isso e mais dança ritual indígena, rodas de improviso, canto e dança. O mais importante foi o prazer de desfrutar um jogo de sedução verbal indescritível, em variadas construções do improviso. O encontro de decimistas e versadores da América Latina e do Caribe teve o mérito de conseguir reunir grandes poetas de 12 países – Argentina, Brasil, Chile, Cuba, Equador, Estados Unidos, Itália, México, Panamá, Porto Rico, Uruguai, Venezuela – e oferecer uma espécie de amostragem da riqueza poética que não é exclusividade de nenhuma região, e, entretanto, é expressão de apego atávico e manifestação identitária de cada uma das comunidades que transita nesse fazer criador. •
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
O que Caetano Veloso fazia no carnaval do Recife? O carnaval do Recife está ficando parecido com todos os carnavais do Brasil. As câmeras se ocupam muito mais dos “desfiles nas alturas”, do que das pobres agremiações, lá embaixo.
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rimeira versão: Cansado de trios elétricos, música axé, dança da galinha, bloco Filhos de Gandhi, de Gil e Carlinhos Brown, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, Chiclete com Banana e Timbalada, o baiano resolveu cair de páraquedas na rua do Bom Jesus. - Fui convidado a passar o carnaval em Pernambuco, falou com singeleza. Convidado por quem? Seja bem-vindo! Mas será que gastaram o nosso dinheiro para Caetano desfilar pelo Bairro do Recife? Ninguém me paga cachê para brincar carnaval. – Isso aqui parece muito com a Bahia. Senti-me em Santo Amaro, com 13 anos de idade. Nesse tempo, ele saía anônimo como toda a gente, num vestido emprestado de uma irmã, e brincava pra valer. O carnaval era assim, desde a idade média. Até os reis iam para as ruas de máscara, para que ninguém reconhecesse. Caetano subiu nas cadeiras da rua do Bom Jesus para ver melhor os batuqueiros, os blocos, os clubes. Em volta dele todos se assanhavam. – Olha Caetano, olha! – Uau! E assim, “todos viam o Mano e ele não deixava de ser visto por ninguém”, nem pelos blocos e batuques que paravam na frente dele e evoluíam em louvor e honra ao Divino Maravilhoso, nem pelos foliões expectadores (mais expectadores que foliões), nem pelas câmaras da TV. Ah!, essas não tiravam o foco do Continente abril 2006
moço. Davam aquela chamada com jeito falso de que iam passando e, casualmente, só por acaso, por força do destino, vejam só!, olhem lá!, quem está ali?, será ele mesmo? É. É, sim. – Caetano, e aí, brincando o carnaval no Recife? (Rápido, não alarga a deixa, porque se ele pega o microfone não pára mais nunca de falar!). – E então?! (será que Caetano pergunta “e então?”) Há tempo eu desejava conhecer os maracatus, e agora estou conhecendo. O carnaval do Recife é muito parecido com o da Bahia (não é erro do colunista, Caê repetiu a comparação várias vezes). É mesmo, agora me toquei! O carnaval do Recife está ficando parecido com todos os carnavais do Brasil. As pessoas só querem aparecer, se mostrar. As que estão fora do desfile, nos camarotes ou cadeiras, bem mais do que as que dançam no meio da rua. Os políticos, as celebridades locais, nacionais e internacionais não param de se mostrar, num périplo cansativo de um camarote para outro. É preciso ser visto, a qualquer preço. As câmeras se ocupam muito mais desses desfiles nas alturas, do que das pobres agremiações, lá embaixo. E os convidados globais (preciso reler o verbete no Houaiss), aquela turma da televisão que cobra caro para ser vista ao lado de políticos ou bebendo cerveja? O anonimato da máscara perdeu a vez. Dê um jeito de aparecer, custe o que custar. O carnaval é uma plataforma de lançamento para a fama e para as eleições. Mano Caetano está noutra, mas faturou legal.
ENTREMEZ
Segunda Versão Depois de afirmar que sozinho possuía mais talento do que Milton, Gil e Chico juntos, Caetano decidiu checar nossos valores. – E existem compositores no Recife? – perguntou certa vez. – Eu pensava que não tinham feito mais nada, depois de Vassourinhas. E veio conferir. Como nas Virgens de Olinda metade dos homens sai com o vestido da irmã e a outra metade com a camisola da mãe, Caetano providenciou um figurino meio sem graça, um blusão pintado com um corpo de mulher. Ninguém entendeu a mensagem, mas Caetano é Caetano, usou, vira moda. Lembram daquela saia longa, na entrega de um prêmio? E lá estava ele no palco do Marco Zero, no Galo da
Madrugada, nos papangus de Bezerros. Quanta ladeira! Caetano viu, cantou e dançou. E levou na bagagem uma marcha de bloco de Getúlio Cavalcanti. Não sei quantos artistas dos nossos se medem com o talento do Mano. Opa! Essa história de medida! Freud... Assim que chegou em Salvador Caê soube do estrago, o bate-boca entre Gil e Carlinhos Brown. Se estivesse por lá, teria de tomar partido. Uma vez doce bárbaro, sempre bárbaro. Por aqui, só tietagem e aplauso. Não chegou a ser um show dos Rolling Stones, nem do U2. Mas pra quem se sentiu com 13 anos em Santo Amaro da Purificação, deu pra curtir a fama disfarçada em anonimato. E que disfarce, uau! – Carnaval na Bahia, nunca mais! •
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
O último dos antigos modernistas Quem rufará os tambores maranhenses?
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literatura brasileira perdeu um dos seus maiores expoentes, que recentemente subiu os degraus do paraíso na grandeza de seus 88 anos. Mnemônico, era prodigioso ao recitar de cor uma preciosa parcela de poemas de Machado de Assis – seu ídolo. Dedicou parte de sua vida ao estudo da obra machadiana – suas memórias póstumas e seus inimigos. Josué Montello, o decano das letras nacionais, se foi. Sabia ser ferino aos desafetos em alfinetadas à la Emílio de Menezes, todavia nunca colecionou nem regou inimigos; mas, segundo Arnaldo Niskier, foi com Guilherme de Figueiredo que desavenças houve no tocante a uma representação diplomática na França. No plano internacional era um dos autores brasileiros mais apreciados e lidos pelos estudantes da Universidade de Estocolmo, na Suécia. Natural de São Luís, no Maranhão, de verve bairrista, elevou sua cidade natal o quanto pôde, derramando todo seu amor ao seu povo, derramando sua história para que todo o País conhecesse sua beleza e seus encantos culturais. Sempre manteve extrema fidelidade às suas origens, notadamente quando escrevia o sabor de sua infância e juventude por entre os azulejos portugueses dos becos sombrios de sua cidade. Romancista, poeta, ensaísta e historiador, legou às novas gerações uma escola de civismo e civilidade no trato intelectual, a partir do seu primeiro romance em 1941, Janelas Fechadas, quando já morava, em 1936, no Rio de Janeiro, onde viveu o resto de sua vida. Ganhou quase todos os significativos prêmios literários, destacando-se alguns dos famosos escritos, como A Mais Bela Noiva de Vila Rica, Cais da Sagração e Labirinto dos Espelhos, consagrando-lhe por tais obras uma justa eleição como o mais jovem integrante da Academia Brasileira de Letras (onde reinou desde 1954), aos florescentes 38 anos, recebido pomposamente pelo seu amigo Viriato
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Correia. Dirigiu a Biblioteca Nacional, colaborou com seus artigos publicados nos principais jornais e revistas do seu Estado e do País, principalmente no Jornal do Brasil, de 1954 a 1990, depois revelando-se um respeitado crítico literário. Ministrou aulas na Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru, sendo lá professor de Vargas Llosa. Conselheiro cultural da Embaixada do Brasil em Paris e também junto à Unesco, criou em seu rico rincão a Casa de Cultura que leva seu nome, utilizando-se de um acervo bibliográfico-documental de mais de 30 mil peças açodando sua obra, beirando os 100 livros. Espirituoso, com fino humor, deliciava a todos aqueles que o cercavam, fazendo de cada reunião literária ou social um momento de aprendizado e bem-estar. Conheci o mestre Josué num jantar no Rio de Janeiro, precisamente organizado pelo hoje presidente da ABL, eminente acadêmico pernambucano Marcos Vilaça. Em dado momento, numa roda descontraída onde pontificava uma boa parcela da intelectualidade brasileira, como Rachel de Queiroz, Pitanguy, Houaiss, Callado, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Sabino e Hélio Pelegrino – formando os mosqueteiros mineiros, aproximou-se uma senhora para lá de emperiquitada e ornada de brincos escandalosos e dirigiu-se a ele: “Então, doutor Montello, duvido o senhor saber quem eu sou... dizer meu nome!” – E ele bem formal e com um rasgo discreto de sorriso nos lábios: – “Ora, ora, se a senhora não sabe seu nome como é que eu posso adivinhar? Este era o Josué implacável. Último escritor de uma geração de modernistas, da era de Oswald de Andrade, para quem era um dos “búfalos do norte”, mais famoso ficou com seu Os Tambores de São Luís, retratando a dinastia dos negros ao longo de séculos da história dos Damião maranhenses. E agora, quem tocará esses tambores da mais fina literatura? •
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