Continente #065 - A sedução do olhar

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Reprodução/Acervo Ernesto Barros

EDITORIAL

Cena do filme Amores Expressos, de Wong Kar-wai, com direção de fotografia de Christopher Doyle

Luz e sombra no cinema

A

rte complexa e industrial, o cinema necessita de uma variada gama de profissionais, para compor sua plena realização. Entre os mais importantes estão o diretor, o roteirista, os atores e o diretor de fotografia. É o diretor de fotografia que pode determinar o “caráter” de um filme, como fica bastante explícito no período do expressionismo alemão, onde os fortes contrastes entre o preto e o branco, a luz e a sombra, acentuavam o pathos retorcido de filmes como M, o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang e Nosferatu, de Friedrich W. Murnau. Mais recentemente, Barry Lindon, de Stanley Kubrick, fotografado por John Alcott, é memorável nesse sentido, sobretudo na inesquecível seqüência toda filmada à luz de velas. No caso do Brasil, basta ver as obras do Cinema Novo fotografadas por Luiz Carlos Barreto, como Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, que procura captar o ácido sol nordestino em toda sua intensidade cegante. A Continente entrevistou quatro dos maiores diretores de fotografia cinematográfica do mundo: o australiano Christopher Doyle, criador de imagens etéreas e atmosferas lúdicas, que tem colaborado assiduamente com o diretor chinês Wong Kar-wai, autor de 2046; o iraniano Darius Khondji, criador de imagens fortes, misturando técnicas sofisticadas de filmagem e pro-

cessos especiais de laboratório, e que ajudou o cineasta francês Jean-Pierre Jeunet a realizar a ambientação sombria de Delicatessen; o português Eduardo Serra, indicado ao Oscar de melhor fotografia pelo filme Moça com Brinco de Pérola, do diretor inglês Peter Webber, no qual recria a delicadíssima luz do pintor holandês Veermer; e o francês Denis Lenoir, defensor da teoria da “imagem suja”, com granulação, aumento alucinante do contraste, dos brancos que explodem, dos negros completamente fechados e cores saturadas, em filmes como Desordem, do seu conterrâneo Olivier Assayas. No testemunho de todos, a importância da fotografia na definição de um bom filme. Outro assunto em destaque nesta edição é uma questão fundamental da filosofia: a verdade. Desde a ruptura moderna com o pensamento religioso e o aristotélico, a verdade perdeu seu valor absoluto. No entanto, não são poucos os que estão tratando de rever os excessos cometidos em nome da relatividade e da subjetividade. O cético é o perspectivista; é quem conhece a tendência humana à ilusão e se acautela. Mas ceticismo não é duvidar de tudo, caso em que não veríamos nexos nem propósitos em nada. Está, pois, aberta a questão. Que o leitor encontre sua posição neste debate. •

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CONTEÚDO

Divulgação

Reprodução/Acervo Ernesto Barros

34 Construção portuária de Santiago Calatrava, exemplo de arquitetura latino-americana

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Quatro diretores de fotografia do cinema internacional em entrevista exclusiva (cena de O Último Portal, fotografado por Darius Khondji)

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CONVERSA 04 Para Harold Bloom, a literatura dá lições sobre a morte

CAPA 12 Os diretores de fotografia Christopher Doyle, Darius Khondji, Eduardo Serra e Denis Lenoir discutem o estado da arte da imagem cinematográfica no mundo de hoje 22 O signo essencial do cinema

LITERATURA 24 Fernando Monteiro disseca vida do Nobel brasileiro 26 O luar que Euclides da Cunha inventou 28 Uma narrativa de Gustavo Holanda 32 Agenda Livros

56 Os absolutistas e os relativistas 58 Como pode a literatura ser verdadeira 60 A verdade na política

FILOSOFIA 62 Pascal e Descartes, uma dupla em eterno conflito

MÚSICA 72 A história da ópera em Pernambuco 76 Agenda Música

CÊNICAS 78 Em Caruaru, festival internacional de dança folclórica 80 Agenda Cênicas

ARQUITETURA

REGISTRO

34 As duas vertentes da arquitetura latino-americana

81 O legado literário de Múcio Carneiro Leão

ARTES

HISTÓRIA

40 Exposição revisita as vanguardas russas

84 Presença do negro em Portugal quase não deixa

48 Agenda Artes

vestígios

ESPECIAL

TRADIÇÕES

50 Em busca da verdade no mundo contemporâneo

90 Quando o esquecimento alimenta a cultura

53 Conquista da razão ou atributo intrínseco do real Continente maio 2006


Divulgação

CONTEÚDO

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Reprodução

40 Retrato de um Filósofo, de Liubov Popova, um dos mestres das vanguardas russas, em exposição retrospectiva

50 A busca da verdade no mundo contemporâneo A Criação com o Universo e o Homem Cósmico, (A em gravura da Alta Idade Média)

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A revolta da juventude pode ser um festival vazio

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 30 Cantorias e folhetos merecem estar nos cursos de Letras

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 46 Adriana Maciel mostra o espaço inabitado, a ausência

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 66 Como bacalhau, são vendidos cinco diferentes peixes

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 69 Portugal, uma paisagem amena, disciplinada

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Até nos sonhos precisamos fazer escolhas

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Os citadinos e a cultura indigente Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente maio 2006


CONVERSA

HAROLD BLOOM

“Acho que a paz é uma impossibilidade” Apesar do inegável pessimismo, Harold Bloom mostra que a literatura pode, sim, ser um consolo, sobretudo em tempos obscurantistas Paulo Polzonoff

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izer que Harold Bloom é o mais importante crítico literário do mundo é pouco. Bloom é um livre-pensador como as academias já não fabricam. Sua atuação não se restringe à literatura, ainda que ela seja um pilar importante, mesmo em obras como Jesus e Javé – Os Nomes Divinos, magistral ensaio que Bloom acaba de publicar no Brasil. O livro não é apenas uma análise literária dos três personagens fundamentais da Bíblia – Javé, Jesus e Cristo –, e sim, uma discussão profunda e apaixonada a respeito da possibilidade da coexistência religiosa. Harold Bloom me concedeu esta entrevista por telefone, de sua casa em New Heaven, Connecticut. A voz grave, fraca e severa mostram um homem desiludido com os rumos da Humanidade. Para alguém que viveu e pregou a idiossincrasia como método de pesquisa, um mundo de valores planificados se assemelha a uma Idade das Trevas. Apesar do inegável pessimismo que destila nesta entrevista, porém, Harold Bloom mostra que a literatura pode, sim, ser um consolo, sobretudo em tempos obscurantistas. Afinal, é graças à literatura, à alta literatura, que aprendemos a maior das lições: a morte.

No final do livro, o senhor diz que, se Javé é o Senhor da Guerra, Alá é um terrorista suicida. Não é uma afirmação perigosa de ser feita nestes tempos de intolerância religiosa? É curioso você dizer isso. Não acho que seja uma afirmação perigosa, mas acredito que vivemos uma época perigosa. Meu livro não pretende ofender nem judeus, nem cristãos ou muçulmanos. Não falo sobre religião, mas sobre personagens literários. Mas acredito que é realmente complicado. Vivemos dias em que não sabemos quem é mais louco, se o presidente Bush ou o presidente do Irã. E, no final das contas, ambos foram eleitos democraticamente. O que é confuso, porque aprendemos desde sempre que a democracia é o melhor sistema de governo que existe. Eu acredito muito no que Churchill disse, que a democracia é o pior sistema de governo existente, com a exceção de todos os outros. É engraçado, é estranho, mas, se você pensar bem, é verdade. Mesmo pensando em cristãos e judeus como tradições literárias distintas, o senhor acha uma coexistência pacífica é possível, até mesmo pela existência do que o senhor considera uma farsa, ou seja, a sociedade judaico-ccristã? Eu pensava que vivia um pesadelo durante a Guerra Fria, mas ela acabou e agora temos as guerras religiosas. Acho muito difícil que seja possível uma coexistência pacífica, não só entre Continente maio 2006

Joao Carlos Volatao/Folha Imagem

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CONVERSA exige educação. Não quero impor nada. É um livro de idéias. Não sei como anda a educação no Brasil, mas tenho a impressão de que a educação no mundo como um todo tem piorado. Vivemos na Era da Informação, pessoas conseguem informação que querem a todo o momento, vivem na frente do computador. Mas não tenho certeza se isso se traduz em educação. Se elas Como o livro, que faz críticas explícitas ao cristia- estão abertas a discutir idéias, se conseguem comprenismo, está sendo aceito nos Estados Unidos, princi- ender. Vivemos tempos estranhos... palmente entre a direita cristã? Há quem diga (eu digo) que vivemos uma segunda Meus livros sempre geram alguma polêmica. Mas acho que eles são aceitos da melhor forma possível. É claro Idade das Trevas. Vivemos tempos obscurantistas... Acho que é uma boa definição. Vivemos, sim, numa que há reações exacerbadas. Outro dia uma mulher me ligou – e eu não sei como ela conseguiu meu número, por- Idade das Trevas. Obscurantistas, sem dúvida. que ele não está na lista. Perguntou se eu era o professor O senhor é um crítico confessional, que se expõe Bloom. Eu disse que sim. Começou a dizer que meu livro era um livro do inferno, um livro que queria instigar a luta muito em seus livros. O senhor acredita que seja possível entre judeus e cristãos, que era um livro que destilava fazer uma crítica objetiva, quase científica, ou o senhor preconceito contra os cristãos. Daí ela começou a gritar acredita que crítica é uma experiência essencialmente comigo. Mas foi um caso isolado. Para minha surpresa, subjetiva? acho que o livro tem sido muito bem aceito por aqui. Eu acho que o que a maioria das pessoas chama de objetividade é na verdade muito rasteiro, muito fácil de O senhor faz declarações muito interessantes sobre as se atingir, muito estúpido. Enquanto a subjetividade, a distinções entre Javé, Jesus e Jesus Cristo, que seria um autêntica subjetividade, é muito profunda e difícil. É outro personagem. Fico aqui me perguntando: o leitor uma relação forte com tudo o que foi pensado, dito e excomum é capaz de compreender seus argumentos? Será presso com beleza. É claro que temos, no Ocidente, 3000 que este tipo de leitor, que cresceu lendo autores vul- anos de tradição literária, espiritual e filosófica. Não é gares, está capacitado para discutir suas idéias? possível, de modo algum, conhecer tudo isso. Mas eu Realmente, as pessoas não estão preparadas. Elas insisto que prefiro uma subjetividade profunda, tanto não querem... É complicado, porque é um livro que quanto for possível, a uma mera objetividade rasa. judeus e cristãos, porque temos os muçulmanos no meio disso tudo. E os muçulmanos desejam que judeus e cristãos se curvem diante da lei de Alá. Realmente acredito que uma guerra próxima é possível. Há muito ódio no meio disso. Historicamente, acho que a paz é uma impossibilidade.

Peter Turnley/Corbis

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Harold Bloom acha difícil uma coexistência pacífica entre cristãos, judeus e muçulmanos


CONVERSA Quando lançou no Brasil sua coletânea de Contos e Poemas para Crianças Extremamente Inteligentes de Todas as Idades, o senhor parecia desesperançado quanto ao futuro da literatura. O senhor ainda se sente assim? Eu estava deprimido. E não só por causa do frenesi quanto à internet ou aqueles livros bobos da J.K. Rolling, e, sim, pela degradação da literatura infantil em todo o mundo. Quero dizer, quantas crianças hoje, em qualquer língua, lêem Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, ou quantas crianças lêem O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame? Quantas lêem Hans Christian Andersen? Há uma terrível queda na qualidade da leitura. Quantos brasileiros lêem Os Lusíadas? Quantos se debruçam sobre Shakespeare ou Cervantes? E por quê? Eu hesitaria em dar uma resposta, porque a televisão e o cinema são capazes de assimilar certos aspectos de Shakespeare ou Jane Austen. O problema é que as pessoas se contentam com isso, e acabam tendo apenas uma leitura de segunda mão destes autores, o que é muito superficial. Há alguma esperança? Este é meu 51º ano como professor. E minha visão do que é a leitura é a de um jovem se apaixonando por livros. Eu o imagino saindo da sala de aula com um livro realmente bom nas mãos, sentando-se embaixo de uma árvore e lendo em voz alta para si mesmo. Com que freqüência isso acontece hoje? Eu não sei...

outras línguas. Bem, o senhor deve saber que eu conheço muito bem a poesia e os romances clássicos da literatura brasileira. Mas, quem, dentre os autores brasileiros vivos, o senhor diria que eu deveria ler? Eu não acho que o senhor deva ler nenhum escritor brasileiro vivo. A literatura brasileira atual é muito pobre. É, eu tinha esta impressão, mas esperava que eu estivesse errado. Infelizmente, não. Sei que há muitos poetas bons, mas eles estão mortos... Acho que o senhor está em ótima companhia com os clássicos. Se o senhor me perguntasse sobre os Estados Unidos, não há muita coisa por aqui também. Bem, há o Philip Roth. Mas no geral tudo é decepcionante. Eu não vejo nos Estados Unidos, hoje, ninguém capaz de escrever contos tão bons quanto os de Hemingway. A verdade é que nós não tivemos um escritor realmente bom desde Faulkner. Temos um punhado de bons poetas, como Wallace Stevens, mas ele já morreu... E o senhor sabe, ocasionalmente temos um bom poema ou um bom poeta ou um bom romance ou um bom conto, mas nada como as obras-primas de Faulkner. Nenhum poeta tão compreensivo e poderoso como Whitman. A segunda metade do século 20 foi marcada por uma grande decadência, se comparada com a literatura da primeira metade do século.

Há quem diga que o fenômeno Harry Potter é uma esperança... Não, não, não. Eu discordo. Isso é um desastre. Geralmente as pessoas que dizem isso argumentam que pelo Seu livro Onde Encontrar a Sabedoria? é uma grande menos as crianças estão lendo. E que no futuro, se elas criarem o hábito, lerão coisas melhores. Mas a resposta reflexão sobre a vida e a morte. O senhor teme a morte? para este argumento já foi dada pelo “Harry Potter de Não. Eu penso nela. Você não pode ter 75 anos e não adultos”, um escritor horrível, deplorável: Stephen King, pensar na morte. que resenhou um dos livros de Harry Potter no Sunday Eu sei. Tenho apenas 28 anos e penso muito nela... Times Book Review, e disse: “É maravilhoso!”. Bem, se isso é o que as crianças estão lendo aos 9, 10, 11 anos, Eu acho que eu aprendi a não pensar muito sobre então aos 12, 13 elas estarão lendo Stephen King. É o isso, porque Dr. Samuel Johnson, um dos meus heque elas estarão preparadas para ler. róis, apesar de ser cristão, ele realmente temia a morte. E ele dizia que não há nada que possamos fazer, O senhor é um grande comentarista da Bíblia, Sha- então não devemos nos lamentar. E eu acho que ele kespeare, Cervantes, enfim, todos os autores canônicos. está certo. Eu mantenho isso em mente o suficiente O senhor tem algum interesse na literatura con- para não me permitir ficar chateado sobre qualquer temporânea? dia específico em que eu não tenha me sentido muito Eu faço o que é possível. A maior parte do que me bem.... Eu fico cansado, minhas pernas já não são cochega é em inglês, mas também recebo muita coisa em mo antes... Mas eu estou vivo. • Continente maio 2006

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Maio | 2006 Ano 06 Capa: Cineasta olha cena em visor de enquadramento Foto: Adrianna Williams/zefa/Corbis

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistente de Edição Isabelle Câmara Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Renata Bezerra de Melo e Diego Dubard Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara

Colaboradores desta edição: ALBERTO OLIVA é coordenador do Centro de Epistemologia e História da Ciência do Depto de Filosofia da UFRJ e Pesquisador do CNPq. ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista e doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade de Paris 3 - Sorbonne Nouvelle. CAMILO SOARES é jornalista e formado em Cinema ARTUR

DE

ATAÍDE é graduado em Letras e mestrando em Teoria da Literatura

DANIEL PIZA é jornalista e editor executivo do jornal O Estado de S.Paulo. DOMINIQUE DESCOTES é diretor do Centre de Recherches sur les Réformes, l'Humanisme et l'Âge Classique (CERHAC), publicou diversos livros, como L'Argumentation chez Pascal (A Argumentação em Pascal), Paris, PUF, 1993 DUDA GUENNES é jornalista EDUARDO MAIA é jornalista e mestrando em Teoria da Literatura FÁBIO ARAÚJO é jornalista FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia FLORA GUEDES é jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.

Gestor de Gráfica e Editora Adailton Elias

MARIA ALICE AMORIM é jornalista, pesquisadora em arte popular e co-autora do livro Carnaval - Cortejos e Improvisos.

Supervisora de Marketing Ygara Kober

MARIANA OLIVEIRA é jornalista

Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra

MURILO MELO FILHO é jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco

SILVIO GOMES estudou Engenharia Civil na UFPB e bacharelado em Física na UFPE

Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. Continente maio 2006

PAULO POLZONOFF é jornalista

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA DE BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens.


CARTAS

Nota da Redação A edição da Continente Documento sobre Abreu e Lima (Nº 15) foi publicada em novembro de 2003.

“ ” Luiz Ruffato

Muito mais do que “não ter uma tradição de representar a classe média baixa”, a literatura brasileira é omissa quando nega o direito à voz a uma classe que compõe majoritariamente o universo brasileiro. Negar a voz a essa massa é não querer ver quem somos. Luciana Melo, Brasília – DF

Fascínio Estou verdadeiramente impressionada com a qualidade da Revista Continente. Faz apenas algumas semanas que vim a conhecê-la, através de um sobrinho que trabalha na FNAC da Av. Paulista. A partir daí, tornou-se minha leitura preferida! O que me impressiona é ver numa única revista assuntos tão variados e tão interessantes, sem falar na edição de imagens, que é fantástica. Merecem somente elogios! Ainda não sou assinante, mas assim que eu puder, farei uma assinatura. Fica aqui meu agradecimento por termos disponível um material de pesquisa tão rico e fascinante. Veralice Velo , Guarulhos – SP Moacir Santos Gostaria de saber em que número da Revista foi veiculada reportagem com o músico pernambucano Moacir Santos e como adquiri-la. Paulo Primo de Carvalho, Recife – PE Nota da Redação A matéria sobre Moacir Santos foi publicada na edição nº 60, dezembro de 2005. Mestre Radamés A matéria “Usina de sons” (nº63 – Março de 2006) é muito boa. Já mandei para vários amigos. Não sei se saberia dizer onde adquirir partituras para violão do mestre Radamés Gnatalli. Fernando Artur Nogueira, Olinda – PE

Filosofia Sou leitor desta Revista desde o seu início. Porém, tenho observado que pouco se escreve sobre Filosofia. Será que o tema não faz parte do seu perfil? Acho que não! Gostaria muito de ler sobre temas filosóficos através desta inteligente publicação. Eduardo Farias Moraes, Recife – PE Nota da Redação Só nas últimas nove edições da Revista Continente, de agosto de 2005 a abril de 2006, publicamos pensatas sobre ceticismo, corrupção, globalização, estética trash, utopia, as complexas relações entre arte & loucura, a atualidade ou o fim das vanguardas, simbologia do fogo e a querela entre forma & conteúdo – todas elas analisadas, também, sob uma abordagem filosófica. Abreu e Lima Vocês estão, como sempre, de parabéns pelo excelente trabalho, disponibilizado, inclusive no site. Estou fazendo uma pesquisa sobre o General Abreu e Lima e fui informada de que vocês já publicaram uma matéria (ou especial) sobre este ilustre pernambucano. Vocês podem me informar em qual ano/ mês a edição da Revista ou edição especial foi publicado material sobre Abreu e Lima? Anna Malaquias, Camaragibe – PE

Conforto no exílio Sou um pernambucano exilado em São Paulo e gostaria de saber como faço para adquirir edições anteriores. Desde já, recebam os meus cumprimentos pelo primoroso trabalho desenvolvido por vocês. Uma revista que me enche de orgulho em ser pernambucano. Parabéns a toda a equipe. José Kenedy Bezerra, São Paulo – SP Nota da redação As edições anteriores da Revista Continente Multicultural e Documento podem ser encontradas na Cia. Editora de Pernambuco, situada na Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife – PE. Sugestões Estive lendo uma revista concorrente e me interessei bastante por saber mais da Nouvelle Vague. Apesar de conseguir essa revista por um preço mais acessível, sinto uma preferência pela Continente Multicultural. Acredito que seja um assunto que teria grande quantidade de leitores interessados. E existem outros temas que despertam curiosidade, como beatnik, Movimento Hippie e Revolução Cultural da China. Tábata Clarissa de Morais, Recife – PE Nota da Redação O tema beatnik já foi publicado na edição nº 60, de dezembro de 2005. Já A China Contemporânea foi tema de capa da edição nº 29, de maio de 2003. Cidade dos Baobás Em relação à matéria, publicada na Edição Especial de Turismo, nº 01, vale esclarecer que em Santo Amaro não há praça de nome “Sudene”, e, sim, a Praça da Saudade, em frente ao Cemitério de Santo Amaro. Mas o baobá ali existente já tombou há alguns anos por conta do apodrecimento de suas raízes. Risco idêntico corria o majestoso baobá do Fundão, o qual já se encontra protegido por um gradil, desde dezembro/2005. O Prof. Dr. John Rashford, antropólogo especializado em etno-botânica do College of Charleston, Carolina do Sul, EUA, vem estudando os baobás há 15 anos e está finalizando o livro O Baobá Africano: Descobrindo a Árvore da Vida da Humanidade. O grande número de baobás identificado no Estado de Pernambuco, mais especificamente na capital pernambucana, levou-o a classificar o Recife como a “cidade dos baobás e Pernambuco, o coração da espécie no Brasil”. Fernando Batista, Paulista – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

A Revolta da Juventude Festival vazio ou não, a revolta da juventude francesa tem muito a ver com o que vivemos nas grandes capitais brasileiras

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iferentemente dos brasileiros, neste ano de 2006, estudantes franceses, a maioria imigrante pobre da periferia, se revolta contra o desemprego, a segregação cultural, a desagregação familiar e cultural e mostram suas inquietações por serviços públicos de qualidade. De repente, descobriram que a vida de festinhas e namoro é incompatível com seus sonhos futuros de consumo. A revolta que ocorre na França tem muito a ver com o que vivemos nas grandes capitais brasileiras e no Brasil como um todo. O racismo, a violência e o desemprego que atormentam os jovens pobres na França são, no fundo, fatos que também atingem nossos jovens nas favelas e periferias, embora a violência propriamente dita seja muito mais intensa aqui. No Brasil, já se convive com o “primeiro” e o “terceiro” mundos dentro de nossas próprias fronteiras. O primeiro mundo brasileiro está cercado por um segmento miserável e violento de terceiro mundo, mestiço, negro e indígena. Miscigenação que encantou Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. O apartheid que testemunhamos não é apenas de renda, é cultural e social. E não poderia haver algo mais simbólico da verdadeira realidade histórica atual do mundo que as diferenças de renda e de acesso a bens sociais e culturais A cordialidade identificada por Sérgio Buarque de Holanda como característica básica do homem brasileiro talvez sirva para explicar o conformismo e a passividade da nossa juventude para com a violência, a exclusão cultural e a falta de oportunidades de emprego de que é vítima nesse país. Outra válvula de escape para a inércia de uma revolta é o sonho acalentado pela possibilidade de buscar trabalho no exterior: dois em cinco jovens alimentam essa esperança. Anestesiados pela mídia global, preenchem a ausência de ideologias e a falta de utopias com os sonhos de consumo do presente. Desprezam o futuro e se dão por satisfeitos ao viverem o aqui e agora. Esse horizonte de curto prazo abre espaços individuais para todo tipo de infrações cívicas, mas que não atingem o coletivo de suas aspirações. Rebeliões e revoltas, quando ocorrem, só são visíveis em presídios e nas dependên-

cias das instituições de proteção ao menor e ao adolescente. E, mesmo assim, muito pouco são os escritos literários sobre elas. Octavio Paz, através do seu pequeno volume de prosa Conjunções e Disjunções (1969), teria escrito logo após as rebeliões estudantis de 1968, na França: “Será a revolta da juventude mais um sinal de que estamos vivendo o fim de uma era? Já expressei minha convicção: o tempo moderno – o tempo linear, homólogo das idéias de progresso e História, sempre voltado para o futuro, da vontade de dominar a natureza e domar os instintos, o tempo da sublimação, da agressão, da automutilação – chega ao fim. Acredito que entramos em um novo tempo, um tempo que ainda não revelou a sua forma, e sobre qual nada podemos dizer, exceto que não será linear nem cíclico. Nem História, nem mito. O tempo que ora chega, se é que vivemos uma mudança de tempo, uma revolta geral e não uma revolução linear, não será futuro nem passado, mas presente. Ao menos é isso que as rebeliões contemporâneas estão exigindo. Se a rebeldia contemporânea (e não me refiro apenas à revolta dos jovens) não se dissipar em uma sucessão de gritos roucos, e não se degenerar em sistemas fechados, autoritários...” Nesse livro, Paz apresenta uma conclusão deveras sombria para aqueles movimentos estudantis e creio que pode ser incorporada como ilação para os movimentos atuais da juventude francesa. Paz observa que talvez a revolta da juventude seja um festival vazio. Vítima ungida pelo fascínio ambíguo da profanação, a juventude é o cordeiro a ser sacrificado na cerimônia: após haver se profanado através do sacrifício, a sociedade pune a si mesma. Octavio Paz não está mais entre nós para testemunhar a inquietude da juventude francesa ao tentar reviver os idos de 68 nem tampouco descobrir que o Haiti pode ser aqui. Nesse mesmo diapasão, ela hoje se revolta por muito menos. Reivindica direitos constitucionais consagrados e emprego que a tecnologia e a globalização lhe surrupiaram. Infelizmente, esteja onde estiver, Octavio não está descansando em paz. • Continente maio 2006


Reprodução/Acervo Ernesto Barros

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CAPA


CAPA

A estética do

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omem atrás da câmera, o diretor de fotografia decididamente tomou o lugar do roteirista na posição de braço

direito do diretor. Mero técnico nos primórdios do cinema, a profissão evoluiu com a chegada de equipamentos e filmes mais performáticos e variados, abrindo novas possibilidades para a construção da estética do filme. O diretor de fotografia é o responsável pela imagem do filme, controlando a qualidade e a intensidade da luz, dando ritmo ao movimento de câmera e escolhendo a paleta de cores do filme. Diante da provável substituição do filme fotográfico pelo vídeo de alta definição, devido ao preço e a facilidades da pós-produção digital, procuramos o diálogo com quatro profissionais em atuação em vários continentes para traçar um panorama da imagem atual do cinema, em plena transmutação.

Camilo Soares, de Paris

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Reprodução/Acervo Ernesto Barros

Cena de 2046, de Wong Kar-wai

oyle partiu da Austrália natal aos 20 anos, deixando-se à deriva de ventos que o levaram ora para a Índia, ora para um kibutz israelense, também para um navio norueguês onde passou anos girando o mundo, finalmente desembarcando na Tailândia, como doutor em medicina chinesa. Foi para Taiwan fundar uma companhia de teatro e começou a trabalhar na televisão. Conheceu a nata do cinema tailandês, tendo sido chamado para fazer a imagem do primeiro filme de Edward Yang. Hoje é colaborador privilegiado de Wong Kar-wai (In the mood for love), além de ser solicitado por alguns grandes diretores americanos. Suas imagens etéreas e seu trabalho de câmera criam atmosferas lúdicas que o fazem despontar como um dos mais influentes cineastas do cinema mundial. Confira esta entrevista exclusiva à Continente, feita em Berlim.

Para você, que não fez escola de cinema, o que é fazer a imagem de um filme? É fazer erros e aprender com eles. É começar a crescer e adquirir confiança. Um dia, finalmente, começamos a propor coisas a nosso gosto. Temos que ser conscientes de nossas escolhas e saber encontrar as informações necessárias para executá-las. Mas é preciso tentar sempre. Eu não posso me sentir em segurança e em conforto para fazer meu trabalho. A franqueza com as pessoas é também importante. Não é a tecnologia que faz um filme. Você tem a preocupação de impor um estilo? Quando comecei, pensava que o estilo era o mais importante. Eu insistia tanto nisso que o estilo se tornava um estorvo para meu cinema. Comecei a ter verdadeiros problemas técnicos. Tinha necessidade de mais projetores, mas a gente não os tinha. A focalização se tornava um problema, pois tinha que abrir muito o diafragma. Era preciso mexer a câmera, mas com projetores por todo lado, isso se tornava contraditório. O que é então importante para a formação visual de jovens cineastas? Educar os olhos de acordo com maneira que vocês vivem. Assim, Continente maio 2006

“Os melhores diretores de fotografia do mundo já foram despedidos por Tom Cruise” Camilo Soares

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Christopher Doyle


CAPA poderão encontrar o próprio estilo, sem imitar ninguém. verde. Às vezes acontece por acaso, mas o lance é ter O que você tem é sua experiência visual, então lhe faça consciência para dizer: “ok, quero ir nessa direção”. É confiança. uma relação também de diálogo. Pois dizemos ao diretor ou ao produtor que a pele dos atores não vai ficar muito Quando Wong Kar-w wai fala de você, ele o descreve pura. Eles vão, talvez, dizer que não estão nem aí. É por como um músico de jazz. Você confirma essa relação isso que amizade e confiança são tão importantes. Senão, entre imagem e música? você tem, do outro lado, Tom Cruise que vai tratá-lo A metáfora com a música é que começamos algo em como um merda e o mandar embora. Bye, bye. É isso o conjunto e tentamos acabar em conjunto. Podemos fazer que acontece. Então, por que querer ir? Os melhores solos, é verdade. Fazer cinema não é rolar lentes ou diretores de fotografia do mundo já foram despedidos escrever roteiros. Isso é simples. O lance verdadeiro são por Tom Cruise. A única coisa que posso dizer é que o as pessoas. Tantas relações humanas ao mesmo tempo. O que funciona, pela personalidade, é mais importante do negócio é criar um ambiente onde todos estão confor- que esse sistema. Isso não vai te enriquecer, mas vai te dar táveis para fazer seus solos. As pessoas sentem que você um senso de assimilação e te fazer um diretor de sabe quem elas são, sentem seu respeito. Assim entramos fotografia diferente. Essa é a meta. novamente na música, como no bom jazz. Mas mesmo Você acredita então num antagonismo entre no bom jazz, às vezes, o saxofone dá um solo de dois Hollywood e o cinema asiático? minutos, quando já estamos querendo ouvir o piano. Se você não celebrar seu tipo de cinema, você não vai Você acha importante trabalhar com as mesmas para lugar algum. Mas, se você o faz, aí terá algo que pessoas? ninguém tem. Você não será apenas outra pessoa no Claro, assim dá tempo de se conhecer. Isso não quer mercado de Hollywood. É isso que você quer? Eu lhe dizer dormir juntos (risos). Veja Wong Kar-wai e eu, ou direi: não faça isso! Mesmo John Woo está perdido em Peter Greenaway e Emi Wada (figurinista). As pessoas Hollywood! • são a chave de todos os filmes. Eu não quero dizer que sou melhor do que Eric Gautier ou Anthony Don Reprodução/Acervo Ernesto Barros Mantle, mas somente que Anthony vive na Dinamarca A Dama da Água, de e entende os diretores desse país, entende seus medos. M. Night Shyamalan Então eles podem fazer filmes juntos. Não estou falando dos filmes de Martin Scorsese, mas de nosso cinema. É preciso somente celebrar nosso tipo de cinema. Essa celebração internacional de certo tipo de cinema não hollywoodiano parece-llhe cara. Seria possível um diálogo entre um grupo tão heterogêneo? Eu não acho que Win Wenders quer ser igual a Peter Greenaway. Acho que você deve celebrar o que você faz. Isso não quer dizer o que nós queremos que você seja, mas o que você quer e o que você tem necessidade de ser. Isso em todos os níveis de existência. Normalmente, é uma trajetória de 10 anos. Mas leva também 10 anos para se tornar capitão do navio. Você utiliza em seu trabalho algumas coisas que são academicamente consideradas como erros na fotografia, como a coloração verde de luzes fluorescentes domésticas. Por que essa escolha estética? Pra dizer a verdade, são realmente erros! Às vezes acontece porque não temos projetores suficientes. Então é melhor acender tudo, sabendo que vai ficar um pouco

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Darius Khondji

“Não tenho definição para o cinema moderno. É uma atitude, uma maneira de ser” Beleza Roubada, de Bernardo Bertolucci, com fotografia de Darius Khondji

Para o último filme de Sidney Pollack, O Intérprete, você utilizou pela primeira vez um sistema de pós-pprodução inteiramente digital (DI, Digital intermediate). Depois dessa experiência, você ainda acha que essas astúcias fotoquímicas têm razão de ser? Sim... acho que ainda há interesse de se fazer no filme positivo processos fotoquímicos sobre a cor. Para O Intérprete, fizemos um tratamento em DI, mas foi um erro, pois é uma técnica que demanda muito tempo, o que não tínhamos. Filmamos em Scope anamórfico (formato largo), mas só soubemos no último momento se o estúdio iria dar sinal verde para fazermos o DI. Pollack passa muito tempo editando, de forma que sobraram apenas duas semanas para o DI, o que é muito curto. Se pudesse voltar atrás, eu faria hoje no processo tradicional. Reprodução/Acervo Ernesto Barros

Camilo Soares

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arius Khondji deixou o Irã ainda criança, quando os pais emigraram para a França. Colaborou com os primeiros filmes de Jean-Pierre Jeunet, ajudando o cineasta a criar os ambientes sombrios de Delicatessen, hoje considerado um clássico do cinema francês. Perfeccionista, criou imagens fortes, misturando técnicas sofisticadas de filmagem e processos especiais de laboratório. Seu gosto pelo misterioso é conhecido, apelidado de “Príncipe das trevas”, por Bertolucci. Concordando com sua realeza, Jeunet o descreve como um príncipe persa de cultura refinada. Depois de Seven (de David Fincher), entrou na estratosfera dos cineastas, sendo solicitado por alguns dos maiores diretores atuais, como Roman Polanski, Woody Allen e Alan Parker. Darius concedeu esta entrevista em Paris.


CAPA Quais são as principais diferenças visuais no resultado de uma pós-pprodução totalmente digital e de um tratamento fotoquímico no filme? A meta é não se perceber o tratamento digital. Pegamos, por exemplo, O Aviador, filme de Scorsese que ganhou o Oscar de melhor fotografia. Eu não gosto nem um pouco do resultado final desse filme, pois o tratamento digital é muito escancarado. A idéia deles era reproduzir o look Technicolor dos filmes da época em que a história se passa, mas o resultado é falso, não parece nem um pouco! Para voltar à sua questão, a diferença em fazer um tratamento especial no laboratório, diretamente sobre o filme, é que custa muito mais caro, porém demanda menos tempo. Mas o resultado é a grande diferença. A opacidade dos tons negros, por exemplo é muito mais forte e bem mais bela sob um tratamento fotoquímico. Enquanto no digital, não se pode ter o negro muito profundo, pois os tons negros possuem a mesma opacidade. É uma questão de contraste! Jean-P Pierre Jeunet diz que, devido às complexas combinações de tratamentos especiais de laboratório nos filmes que fizeram juntos (Delicatessen, Ladrão de Sonhos), se tornava quase impossível prever as cores finais. Para compor a decoração, não lhes restava mais que acreditar que o que era belo para a vista, também o seria para o filme. Como você trabalha em relação a essa previsão das cores? As cores são por instinto. Agora, a gente aprende com a experiência o que é que vai dar. Mas, sobretudo, fazemos testes. Isso é muito importante, quando fazemos um trabalho ambicioso com as cores, mesmo num filme naturalista. É necessário levar esses efeitos captados até o estado final do filme, na projeção. Você costuma dizer que é influenciado pelas luzes da cidade. Objetivamente, o que isso representa no seu trabalho? São coisas difíceis de explicar. Eu não tenho muita consciência disso. Eu saio, às vezes, à noite, para dar uma volta no meu carro. Durante horas, dirijo escutando música. Não sei por quê, mas tenho necessidade de fazer isso, quando estou num projeto para o qual me dou de coração. Acho que é necessidade de ficar só. É difícil encontrar inspirações diretas. Algumas coisas ficam, outras partem.

diretores de fotografia que aproximam demais a pintura à luz de cinema. Mas é verdade que temos todos os pintores de que gostamos. Meu trabalho foi sempre inspirado pelos mesmos pintores. Delacroix foi sempre importante para mim. Edward Hopper foi importante no começo, quando era estudante de cinema. Finalmente, Andrew Wyeth, um pintor realista americano, foi importante no meu começo de carreira de diretor de fotografia. Ilustradores também, como Martin Lewis. Outros pintores como Francis Bacon e Edward Munch me ajudaram bastante. E os antigos? Gosto muito do Rembrandt, mas não o vejo em meu trabalho. É importante ter um pólo de inspiração, mas depois não é fácil saber se o encontramos diretamente nos filmes. A introdução do trabalho no suporte da obra como expressão é um das inovações da pintura moderna. Eu diria que seu trabalho com a textura e o grão do filme vai nessa mesma direção. Você pode falar de seu trabalho com a matéria do filme? Como a pintura, o cinema evoluiu bastante depois dos anos 60, na maneira de iluminar, de impressionar o filme, de fazer tratamentos de laboratórios para mudar o contraste ou saturar as cores... Eu sei que, quando comecei a fazer curtas-metragens, escutei falar sobre o tratamento especial bleach py pass. Havia pouquíssimos diretores de fotografia que se aventuravam. Junto a um amigo diretor fizemos um curta-metragem, usando esse tratamento, depois um longa-metragem. Uma das coisas de que gosto nesse tratamento é que temos a impressão de sentir a textura na tela. A gente sente a matéria como se pudesse tocá-la, como se ela estivesse em relevo.

O que é para você uma imagem moderna de cinema? É difícil dizer. Cinema moderno para mim é Godard, é Antonioni, é também David Lynch e alguns filmes dos irmãos Cohen. Mas não tenho definição para o cinema moderno. É uma atitude, uma maneira de ser. É um tipo de premonição em relação a seu tempo. Não podemos nos declarar modernos. Eu acho que é uma postura de trabalho em relação à história que contamos e ao diretor com quem trabalhamos. Quando um diretor vem com muitas idéias, tenho a tendência de apurar bastante, Alguns pintores são importantes para seu trabalho? tentando seguir uma linha condutora, uma idéia forte Digo sempre que sou um pouco alérgico a todos esses capaz de ser o motor de toda a cena, de todo o filme. •

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Reprodução/Acervo Ernesto Barros

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Moça com Brinco de Pérola, baseado na obra do pintor holandês Veermer

Eduardo Serra

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“O cinema ganhou sua autonomia a partir do momento em que se aproximou da pintura Camilo Soares

ara Eduardo Serra, a vinda para a França representou uma guinada em sua vida: “Entrei para a engenharia em Portugal, mas só fazia agitação política”. Em 1962, quando viu os amigos sendo presos, resolveu que era hora de partir. “Vim de qualquer maneira. Sem certeza de nada”, lembra. Cursou a Vaugirard (atual Louis Lumière), escola técnica de cinema. Hoje desenvolve um estilo de fotografia naturalista, admirada em todo o mundo. Vem acumulando prêmios em todo mundo com o filme Moça com Brinco de Pérolas (indicado ao Oscar de melhor fotografia em 2005), que narra a vida do pintor holandês Veermer. Recebeu, inclusive, uma recente homenagem da ABC (Associação Brasileira de Cinematografia) por esse trabalho. Sua relação com a pintura não começou com o filme Moça com Brinco de Pérolas? Exato. Isso vem desde meu primeiro filme, O Processo do Rei, de João Mário Grilo. Isso se deve também ao fato de que eu tenho licenciatura em História da Arte, particularmente cativado pela Idade Média e pela arte contemporânea. Minha maneira de trabalhar parte dos princípios da pintura clássica e da iluminação natural, ou seja, não utilizar iluminação direta, de limitar o número de fontes de luz e iluminar grandes superfícies em vez de iluminações pontuais. Fazer filmes sobre a pintura ou sobre um pintor é sempre arriscado. A passagem de uma arte para outra significa muitas vezes

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CAPA perda de dinâmica narrativa. Quais foram as dificuldades que você sentiu para fazer um filme sobre o pintor Veermer? Nenhuma. Foi até um dos projetos mais fáceis que tive, totalmente de acordo com meus princípios de iluminação. Esse quadro idílico vivido por um pintor era fácil de recompor. É a mesma coisa que iluminar uma casa contemporânea. É evidente que a luz entra pelas janelas. Se aplicarmos isso com um certo rigor, já fizemos quase tudo. Se os atores estivessem vestidos com roupas atuais, não iríamos dizer que é sobre o Veermer. Por outro lado, consideram-se os filmes do Peter Greenaway como pintura, pois ele tem uma iconografia pictural. No entanto, a luz de seus filmes é uma luz de estúdio, uma luz tradicional dos anos 30, que não tem nada de pintura. A grande crítica ao filme é que, reproduzindo os quadros de Veermer na escala do cotidiano, ele reduz sua pintura a uma simples cópia da realidade. Mas o que é a pintura clássica? É a representação do mundo. É a invenção da câmera obscura e da perspectiva. Quando Veermer pintava, fazia apenas 100 anos que se representava o mundo numa tela. A pintura clássica toma posse do mundo. Na pintura da Idade Média, não havia perspectiva nem sombras. Não se podia representar o mundo. A pintura clássica é um acontecimento maior na História da humanidade e do pensamento. O cinema de até 10 anos atrás se baseava nessa realidade. Hoje, as possibilidades digitais vão além. Fora as referências clássicas, como Veermer, Rembrandt e Caravaggio, você acha possível haver influência de artistas modernos para o cinema? As referências diretas são obrigatoriamente os figurativos, pois representam o real. Mas são possíveis outras referências. É verdade que temos a liberdade de mudar um pouco essa realidade, na iluminação ou no laboratório. Portanto, são possíveis outras referências, como os orientalistas (que muito me inspiraram) e os pré-rafaelitas. Mas certas coisas mais contemporâneas não podem ser interpretadas como uma referência concreta e exata. É como um livro que pode inspirar uma fotografia.

a utilizar técnicas de iluminação de teatro. Pela baixa sensibilidade (ASA) dos filmes, fazia-se necessário trabalhar com grandes quantidades de projetores, de luz violenta sobre os rostos e de contra-luz forte para separar o personagem do fundo, o que inevitavelmente criava muitas sombras ao mesmo tempo. Só foi possível uma representação mais naturalista do mundo com a chegada de filmes mais sensíveis nos anos 50. Quando comecei, só havia 100 ASA Tugstênio. Era muito limitado. Há 50 anos, seria impossível fazer uma imagem à la Veermer. A técnica não permitia. Para criar o universo do pintor, eu fabriquei simplesmente a luz do dia. A luz vem da janela, não há diferentes fontes aqui e ali. Meu trabalho era apenas definir o ângulo e o contraste. Reprodução/Acervo Ernesto Barros

a Demoiselle d’Honneur, Cena de La de Claude Chabrol

A modernidade no cinema é, então, mais ligada a pintores como Edward Hopper, para quem a representação psicológica permanece num universo figurativo? Hopper é um dos pintores mais úteis para o cinema. Desde meus primeiros curtas-metragens mergulhei fundo em sua pintura. Ele combina um respeito à lógica de luz com uma grande modernidade no enquadramento, numa intensidade de composição extraordinária.

Sua origem portuguesa não porta uma certa influência na sua percepção da luz? Essa liberdade advinda da matéria do filme e do gesto Não é impossível. No meu primeiro longade filmar não seria um sinal de autonomia do cinema metragem, feito em Portugal, eu percebi que a luz de lá como arte? é uma agressão contra a qual nos protegemos fechando a O cinema ganhou sua autonomia a partir do mo- janela para manter a sombra. Não estou certo, mas talvez mento em que adquiriu a possibilidade de se aproximar isso tenha uma relação com minha necessidade de da pintura clássica. Até os anos 40, o cinema era obrigado encontrar a sombra. • Continente maio 2006

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Reprodução/Acervo Ernesto Barros

Daddy Nostalgie, de Bertrand Tavernier

Você reivindica o termo “imagem suja” para classificar a estética de seus filmes. Seria uma resposta a uma fórmula clássica de “imagem lambida”, lisa, de uma perfeição sem personalidade? A imagem suja não é algo novo. Eu penso nos filmes dos anos 20 que tinham muita granulação, coisas superexpostas, câmeras que mexem, e mesmo imagens quase abstratas. Algo ainda meio desastrado. Nos anos 30 e 50 houve uma certa tendência de academismo, salvo alguns filmes de série B, que mantinham um certo frescor por falta de tempo e dinheiro. Quando se fala que havia uma arte primitiva, depois uma arte clássica e agora algo diferente, não é verdade. É mais complicado que isso. Temos que ter em mente que a maioria de engajamentos estéticos, como os da Nouvelle Vague, vêm também por razões econômicas. Eu mesmo já fiz filmes com grão e com câmera no ombro por razões econômicas. Por exemplo, temos hoje o DVcam, que traz uma outra matéria, uma textura. Podemos gostar ou não dessa textura, mas não esqueçamos que o DVcam é escolhido primeiramente porque não é caro. Quando você começou a trabalhar essa “imagem suja” por escolha estética? O segundo longa-metragem que fiz foi Desordem, primeiro filme de Olivier Assayas. Não tínhamos muito dinheiro. Como não tínhamos meios de repintar a decoração dos lugares de filmagem ou Continente maio 2006

“A maioria dos engajamentos estéticos, como os da Nouvelle Vague, vêm também por razões econômicas “ Camilo Soares

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rauto de novas sensibilidades, Denis Lenoir é o diretor de fotografia de autores franceses como Olivier Assayas, Bertrand Tavernier e Patrice Leconte. Pregando uma “imagem suja”, ele defende estender a expressão cinematográfica à utilização da textura do suporte fotográfico. Falando quase como um artista plástico, em entrevista exclusiva concedida em Lille, França, Lenoir mostra uma reflexão profunda sobre seu trabalho de criador de imagens. Vive hoje em Los Angeles.

Denis Lenoir


CAPA mandar tirar um carro vermelho estacionado na rua, para criar uma estética geral do filme, decidimos fazer isso diretamente na película. Propus o tratamento bleach by pas, por três razões essenciais. A pior delas foi a vontade de ser cool e de correr riscos... A outra foi tentar dar uma unidade para todo o filme. A terceira é que, depois de fazer alguns testes, apaixonamo-nos pelo resultado com a matéria, com a granulação, com o aumento alucinante do contraste, dos brancos que explodem, dos negros completamente fechados e cores saturadas. Já com uma emulsão rápida (ASA elevada), tínhamos um grão que dava um lado trash que ia bem com a história. Depois de ficar apaixonado, descobri os inconvenientes. O tratamento se fazia apenas nas cópias, e isso custava caro. Além disso, não sabíamos se os distribuidores internacionais iriam investir nesse tratamento. A estética de hoje, em relação ao cinema clássico, é uma imagem que privilegia a textura, o toque? Eu penso que sim. Para o filme que acabei de fazer (Les Kangourous), por exemplo, eu fui empregado claramente por isso. A diretora, Anne Fontaine, fez antes alguns filmes bem atuados, com bons roteiros, mas com uma estética um pouco bonitinha demais, com bonita luz, bonita decoração, cabelos penteados. Alguém deve ter lhe dito que precisava mudar algo. Então, fui engajado, não porque sou o melhor diretor de fotografia francês, mas porque ela sabia que iria trazer câmera no ombro, essas liberdades que ela não tinha sozinha. Há de se dizer que, esses indícios de grão e câmera tremendo, os diretores os querem não porque são modernos, mas porque dão um toque de real. Um espectador normal gosta de ver uma imagem brilhante, mas sabe que é um filme de ficção. Parece paradoxal, mas indícios da câmera fazem a imagem mais real, pois a faz mais próxima da reportagem e do documentário. Quer dizer que uma imagem mais subjetiva, mais mexida, mais granulada é tida paradoxalmente como mais real? É como o preto-e-branco. Nos anos 70, fazia mais real, pois no inconsciente do espectador era como o jornal da televisão e do cinema. Depois mudou. Agora o jornal é em cores. Então o preto-e-branco faz hoje um estilo mais artístico, artificial e falso. É uma mudança de gosto? Sim. Por sinal, meus colegas gritam contra o Dvcam, pois eles acham inaceitável a superexposição do branco no

vídeo. Mas eu tenho certeza de que daqui a três anos, o gosto vai mudar. Todo mundo vai gostar disso, pois será a imagem que vemos todo o tempo. Meus colegas vão dizer: Que lindo! Não há mais informação. Tudo é branco! É como exaltamos outrora o negro sem nada. Um branco profundo. Vai-se achar genial, tenho certeza! Você reside hoje em Los Angeles. Qual a diferença entre fazer cinema na França e nos EUA? Acho que é bem diferente. Mas acho que há filmes independentes americanos que se aproximam do cinema europeu e de algumas produções francesas que se aproximam do cinema de Hollywood. Aconteceu algo engraçado comigo. Fiz uma série para o canal de televisão NBC filmada na Eslováquia. Fiz uma imagem um pouco suja, mas não tanto, pois era um filme para a televisão americana e não um filme do Assayas. Foi difundido nos EUA e saiu no cinema na França. Meus colegas americanos disseram que era uma fotografia bem européia, tons frios, dessaturada. No entanto, eles gostaram bastante! Ganhei até prêmios por esse filme. Mostrei para meus colegas franceses da AFC (Associação Francesa de Cinematografia). Eles me disseram que a fotografia era bem hollywoodiana. Certamente, ambos têm razão. Estou no meio. Você acha que a influência da pintura no cinema é algo ultrapassado? É engraçado, mas quando vejo filmes cheios de efeitos, como Gladiador, me lembro sempre dos pintores pompistas do século19, como Bouguereau e Cabanel, com suas imagens sublimes e impecáveis. Eles estavam na moda na época, mas, felizmente, os historiadores de arte constataram que não havia nada muito interessante nessa pintura. • Reprodução/Acervo Ernesto Barros

The Clearing, de Pieter Jan Brugge

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CAPA

Os escultores da Diretores de fotografia são responsáveis por algumas das mais instigantes formas de sedução do olhar no cinema contemporâneo

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Nosferatu, de Friedrich W. Murnau

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imagem é, sem dúvida, o signo essencial do cinema. Por meio dela, o espectador entra em contato com o universo sensível e perceptível daquilo que o filme quer mostrar. Na arte cinematográfica, portanto, tudo depende dela e esta é a razão para os diretores, mesmo os de maior prestígio, e as estrelas, mesmo as mais caprichosas, renderem-se às exigências daquele que é responsável pela sua qualidade: o diretor de fotografia. É verdade que, nos anos 30 e 40, durante a fase áurea dos grandes estúdios, quando as convenções narrativas tornavam imprescindível o uso de pesadas fontes de luz artificial que restringiam a movimentação da equipe no set de filmagem, o diretor de fotografia era uma espécie de deus onipotente. Cabia a ele esculpir a luz de cada plano com precisão matemática e qualquer falha podia pôr abaixo todo o esforço do pessoal envolvido na captação da imagem. Atrizes como Greta Garbo e Marlene Dietrich exigiam ser fotografadas pelo mesmo diretor e submetiam-se, sem queixas, a horas de espera até que a iluminação atingisse o ponto perfeito e elas pudessem ser vistas na tela com todo o esplendor que as tornaram divas incomparáveis. O diretor de fotografia, no plateau, é talvez aquele que demonstre mais inquietação. Com olhos bem abertos e auxiliado por medidores da intensidade de luz, eles caminham sem parar no meio dos cenários e do elenco, orientam a colocação de refletores e rebatedores de modo a corrigir focos de luz e controlar as sombras, e zelam para que a luz seja coerente de um plano a outro. Se a tomada for externa e depender da luz solar, eles precisam ficar atentos às variações da mesma, segundo a hora do dia, e às nuvens em movimento, para que as passagens visuais fiquem corretas e não provoquem dor de cabeça no montador. Por estas e outras razões, percebe-se claramente o porquê de tantos realizadores estabelecerem com seus diretores de fotografia uma cumplicidade que os levam a trabalharem quase sempre juntos em diferentes filmes. Foi assim com o diretor sueco Ingmar Bergman e com o diretor de fotografia Sven Nykvist, cuja parceria rendeu obras em que a imagem sempre teve uma elaboração meticulosa, a exemplo do belíssimo Gritos e Sussurros, com suas composições em vermelho, conduzindo a trama de uma cálida ternura maternal a uma sufocante atmosfera pútrida de morte. Podemos citar também o cineasta chinês Wong Karwai, cujos filmes são fotografados sempre por Christopher


Acervo Continente

Terra em Transe, de Glauber Rocha

Doyle. Vendo Anjos Caídos, Amores Expressos, Felizes Juntos e Amor à Flor da Pele não é difícil perceber traços comuns ligando essas obras pela maneira da câmera flagrar os personagens e envolvê-los num ritmo de cores e movimentos, recurso que faz Kar-wai e Doyle serem responsáveis por algumas da mais instigantes formas de sedução do olhar no cinema contemporâneo. O cuidado com a arquitetura da imagem é algo que evoluiu com o cinema e foram alguns realizadores, junto com os diretores de fotografia, os principais artífices de boa parte das inovações registradas em sua história. O quadro cinematográfico precisa encontrar seu equilíbrio, a harmonia de seus volumes no espaço que ele forma, e tudo isto é construído no interior da imagem. Um exemplo incontornável dessa preocupação é vista no Expressionismo alemão do final dos anos 10 até o início dos anos 30, quando se desenvolveu uma utilização dramática da luz, algo que pode ser mensurado nos excepcionais M, o Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang e Nosferatu, de Friedrich W. Murnau. Os diretores de fotografia que participaram do movimento fizeram do contraste entre o preto e branco, e entre luz e sombra, um dos meios de expressão do cinema e sua influência se difundiu por todo o mundo até os dias de hoje. Evidentemente, nem sempre o cinema obedeceu a padrões rígidos e não faltaram diretores de fotografia que rompessem com o academicismo de normas de representação. Os movimentos e escolas estéticas do pós-guerra, e que se difundiriam nos cinemas novos dos anos 60, inclusive no Brasil, aliados ao aparecimento de equipamentos mais leves, quebraram essas regras e submeteram a imagem a escolhas quase inteiramente submissas às variações naturais. Para esses diretores, a luz passou a ser tratada de uma maneira muito mais aleatória que na cinematografia clássica. Alguns diretores de fotografia partiam de princípios cuja marca era a simplicidade. Com os meios de filmagem o mais econômicos possível e pequenas equipes, eles deram à fotografia um tratamento menos dramático e estritamente funcional. A imagem acompanha, assim, um certo sentido de modernidade que deixa ao espectador a escolha do trajeto de seu olhar em vez de conduzi-lo diante do espaço filmado.

Esses novos conceitos foram uma saída para as cinematografias que não precisavam mais depender de grandes recursos para realização de uma obra e marcaram também a possibilidade de se dizer não a uma ditadura dos processos de captação e revelação impostos pelos fabricantes de material sensível que tinham sempre em conta a luminosidade dos países do hemisfério norte. Basta ver as obras do Cinema Novo fotografadas por Luiz Carlos Barreto – Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos e Terra em Transe, de Glauber Rocha – ou um exemplo bem próximo de nós: o curta metragem Aruanda, de Linduarte Noronha, magnificamente fotografado pelo pernambucano Rucker Vieira, filme que inspirou a estética cinemanovista. Hoje, com o advento das câmeras digitais, inicia-se uma nova era na fotografia do cinema e, embora não se tenha ainda muita certeza do que virá por aí, já se estabeleceram alguns conflitos entre os diretores de fotografia defensores do filme tradicional em película e aqueles que, pouco a pouco, estão migrando para as novas tecnologias de captação e tratamento da imagem. O russo Aleksandr Sukurov é um dos diretores a desbravar este caminho, como pode ser comprovado no curioso Arca Russa, obra em plano-seqüência cujas imagens foram totalmente captadas pelo fotógrafo alemão Tilman Büttner com uma câmera digital de alta definição. A exemplo de outras fases da história do cinema, o debate ainda está começando, mas uma coisa é certa, quando o processo de transformação estiver concluído, os diretores de fotografia, como já aconteceu no passado, terão de usar seu talento e criatividade para escapar da mesmice e mais uma vez inovar. •

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LITERATURA

Confissões de um nobel brasileiro Foto: Arquivo pessoal

Em seu novo livro, Fernando Monteiro introduz conexões e reflexões teóricas metaforizadas em vida, viagens, despedidas, reencontros e movimento Luiz Carlos Monteiro

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quinto e mais recente romance de Fernando Monteiro, As Confissões de Lúcio, sugere ter sido escrito com a intencionalidade de quem reflete exaustivamente sobre os processos poéticos da ficção ao longo do tempo histórico-literário. Neste passo é que podem ser encontrados focos interpretativos acerca da “obra” e da persona do escritor imaginário Lúcio Graumann, gaúcho morto no Recife pouco antes de receber o prêmio Nobel de 2001. A vida literária de Graumann é dissecada em sua flagrante obscuridade, e sua “obra” passa a ser duplamente ficcionalizada e referida em vários títulos e passagens – tanto, obviamente, pela própria ficção de Fernando Monteiro, como pela espécie de influência enviesada exercida sobre o narrador onisciente Mauro Portela, que por sua vez acusa o suposto Nobel de plágio. O principal procedimento do romance é a paródia, considerada um dos eixos de sustentação do pós-moderno: o primeiro texto é um resumo de A Confissão de Lúcio, narrativa de Mário de Sá-Carneiro do início do século 20, em forma de argumento cinematográfico e com uma cronologia um tanto aleatória do protagonista. Constata-se em praticamente todo o livro a interferência do cinema, que se dará com a descrição da realização de um filme a partir do romance de SáCarneiro em Portugal, onde os atores se tornam personagens e se envolvem na trama de Monteiro, interagindo fortemente com o jornalista Mauro Portela. Ali vão aparecer Raissa, que fará o papel de Márcia (ex-mulher de Graumann), no filme uma morena brasileira que terá o nome artístico de Elena Bonassi, além do produtor Joaquim Cançado, “um homem cheio de ouro na boca e nos bolsos”. Deste modo, Monteiro traz o cinema para a literatura, e viceversa, introduzindo conexões e reflexões teóricas metaforizadas em vida, viagens, despedidas, reencontros e movimento. Faz-se notória também no seu


LITERATURA texto a inserção de recursos gráficos diversificados, hoje bem mais acessíveis com a voga dos microcomputadores, a exemplo de fotografias diversas e textos de jornal digitalizados, utilização de vários tipos, tamanhos e disposições de letras em itálico ou negrito. Com o ar de quem não se esquiva de fazer suas próprias escolhas, a dupla Graumann-Portela vai alinhando escritores de vários países – Malcolm Lowry, Clarice Lispector, Thomas Mann, Vladimir Nabokov, Eugenio Montale, entre muitos outros –, ensejando preferências e gostos e descartando o que não lhes agrada. Assim, ambos logram praticar uma crítica típica dos escritores que pouco investiram no trabalho crítico, e embora lançando luzes sobre os textos nos quais se debruçam, orientam-se bem mais pela intuição, pelo impressionismo e pela ausência de um método reconhecível. Num texto atribuído a Leônidas Câmara, crítico literário pernambucano de orientação “cientificista”, é feita a análise da obra de Graumann, cuja alta elaboração técnica fecha as portas ao leitor comum, àquele leitor não familiarizado com as inovações estruturais no plano complexo de uma obra tida como “nova”. De algum modo, tal texto crítico, certamente modificado, vai servir também para As Confissões de Lúcio, quando, em determinada passagem se lê que “estamos diante de um romancista bem diferente dos que fazem a adaptação do cânone etc., porque aqui nos deparamos, no mínimo, com um policial grego, fora do tempo e do espaço”. Apesar da interdependência e relação entre os textos – que estão divididos em quatro partes e vários epílogos, sem dar propriamente a idéia de capítulos –, eles guardam, numa medida razoável, uma franca independência. E isto se verifica em diálogos inteiramente aspeados, breves notícias de jornal, cartas, prosa poética, pequenos insights biográficos, textos que podem ser classificados como contos, e ainda narrativas sobre o mundo intelectual e artístico brasileiro, com tiradas impiedosas sobre revistas, cadernos de cultura de grandes jornais, academias e editoras. Monteiro cria personagens secundários, porém instigantes: Rosalvo, o “orelhão bicador” ou amigo invasor de Portela, que se serve das coisas antes do próprio dono, seja de um livro, da bebida, da correspondência que chega ou de todo o espaço da casa; e Leopoldo Luiz Simões Siqueira, parente de Graumann, escritor medíocre e seu pretenso biógrafo, daqueles que se restringem a ajuntar algumas datas familiares e oficiais relativas ao morto e rotulá-las como biografia. A metaficção de Fernando Monteiro resulta num novo e inesperado produto romanesco, que se remove entre um espaço de erudição (palavras e expressões em outras línguas, livros e autores somente conhecidos por aqueles leitores contumazes) contraposto a alguns simplismos (“Um erro não se conserta com outro”). E oscila ainda entre a mais pura abstração (que revela a construção ficcional originada da poesia, de um certo sentido lírico-metafísico que o autor não deixa de cultivar) e o sentido prático do cotidiano (“Então recebo um convite formal, por telefone, para jantar na companhia do Senhor Doutor Joaquim Moreira Cançado”.). O fato é que nenhum leitor culto se sentirá entediado na companhia deste livro, podendo digeri-lo de maneiras as mais diversas, na sua polifonia sem fronteiras ou países e nos seus personagens sempre em atividade, mas sem rosto ou retrato. As Confissões de Lúcio se assemelha a um diálogo a muitas vozes em que ninguém se policia, embora os interlocutores não se deixem cair na mesmice geral que enfatiza a desinteligência do mundo. •

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Capa do livro O Grau Graumann

As Confissões de Lúcio, Fernando Monteiro, Editora Francis, 216 páginas, R$ 39,50.

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LITERATURA

Luar dOs Sertões Por engano ou com a intenção de produzir um toque dramático, Euclides da Cunha errou na descrição de uma cena, sacrificando a precisão científica por um efeito poético Sílvio Gomes

Euclides da Cunha criou um “luar admirável” numa noite em que a lua estava em quarto-minguante

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s historiadores Marco Antonio Villa e Frederico Pernambucano de Mello apresentam fortes argumentos, questionando vários aspectos explicáveis e inexplicáveis quando da elaboração desta monumental obra literária, que é Os Sertões. Podemos mostrar, aqui, uma passagem onde Euclides da Cunha faz uso da ficção, na recriação de um episódio relatado em “A Luta”. No trecho do livro Os Sertões, em que toda a ação ocorre entre o anoitecer do dia 27, “nas primeiras sombras da noite que descia” (p.235), até o dia seguinte, “Ao clarear da manhã de 28.” (p.237). Não há dúvida de que o autor descreve a chegada da 1ª Coluna, ao alto da Favela, nas cercanias de Canudos, na noite de 27/6/1897. [...] “Alinhou-se em batalha, no alto. Desenrolou-se no ar a bandeira nacional. Uma salva de vinte e um tiros de granadas atroou sobre Canudos...

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LITERATURA O general Artur Oscar, a cavalo junto aos canhões, observou pela primeira vez, embaixo, esbatido no clarão do luar deslumbrante, a misteriosa cidade sertaneja; e teve o mais fugaz dos triunfos na eminência varejada em que se expusera temerariamente. (p.235). [...] A inopinada quietude do inimigo dera-lhes a ilusão da vitória. Saudaram-na antecipadamente as bandas de música da 3ª Brigada, esgotando até desoras um grande repertório de dobrados; e um luar admirável alteou-se sobre os batalhões adormecidos...” (p.237). Essas cenas seriam fascinantes, se realmente tivessem acontecido dessa maneira, pois neste fantástico cenário, o seu principal elemento, a lua, que nesta noite era quarto-minguante, não apareceu! Esta só apareceria na madrugada (às 04h30) do dia seguinte (28/6/1897), com os tênues cornos, característica daquele fim de fase e uma hora depois ofuscada pelo crepúsculo, que anunciava o ALTO DA FAVELA LATITUDE: 9º 55´ S nascer do sol (às 05h53), daquela clara manhã, quanLONGITUDE: 39º 08´ W (CERCANIAS DE CANUDOS) do se pôde realmente observar a misteriosa cidade LUA SOL sertaneja. NASCER OCASO NASCER OCASO Para quem pretendia explicar cientificamente os DATA h: min h: min h: min h: min acontecimentos, essa falha é, no mínimo, um contrasenso, e ela poderia ser originária tanto da desatenção do 27-06-1897 03:39 15:22 05:53 17:26 autor, como também produto da sua engenhosidade. 28-06-1897 04:30 16:13 05:53 17:26 Considerado por muitos, e entre eles a maioria de seus pares, um escritor perfeccionista, preciso e criterioso, ele mesmo escreveu: “Sem dar crédito às priJUNHO 1897 meiras testemunhas que encontrei, nem às minhas Dom Seg Ter Qua Qui Sex Sáb próprias impressões, mas narrando apenas os aconte1 2 3 4 5 cimentos de que fui espectador ou sobre os quais tive 6 7 8 9 10 11 12 informações seguras”. (p.362). Poderíamos conside13 14 15 16 17 18 19 rá-lo também, sem dúvida, um escritor engenhoso. 20 21 22 23 24 25 26 Euclides esteve presente em Canudos apenas 16 27 28 29 30 Cres. 08 Cheia 14 Ming. 21 Nova 29 dias, compreendidos entre 16/9/1897 e 01/10/1897, logo, não assistiu à batalha daquela noite. Precisou recorrer às anotações de outros que dela participaram, JUNHO 1896 para reconstruí-la e, ao que parece, não ficara satisDom Seg Ter Qua Qui Sex Sáb feito com o que lera. Na reconstrução deste episódio, 1 2 3 4 5 6 talvez querendo aumentar o contraste entre o belo e o 7 8 9 10 11 12 13 terrível, que a sua narrativa seria capaz de produzir, 14 15 16 17 18 19 20 pensou na lua como o elemento primordial na com21 22 23 24 25 26 27 posição do cenário e ao consultar qual seria a fase da 28 29 30 lua para a noite de 27/6, por desatenção, trocou o ano Ming. 03 Nova 11 Cresc. 18 Cheia 25 de 1897 por 1896 (nessa data, 27/6/1896, foi lua Tabelas que cheia, portanto, manter-se-ia a intenção do autor), demonstram a mas o mais provável é que a tenha mantido, mesmo certificando-se de que a lua não fora cheia, na impossibilidade de cheia na noite data da chegada da 1ª Coluna, ao alto da Favela. Dessa maneira conseguiu a luminosidade ne- lua de 27/06/1897 cessária para engendrar uma cena maravilhosa, porém, fictícia. Diplomado em Matemática e em Ciências Físicas e Naturais (1891), Euclides estava ciente da precisão periódica dos fenômenos astronômicos e que estes poderiam ser confirmados ou desmentidos posteriormente. Mesmo assim, intencionalmente, colocou uma esplêndida lua cheia no céu de Canudos, quando a noite fora de uma escuridão formidável! Arriscou, acreditando que jamais alguém fosse verificar esse detalhe tão delicado. • Continente maio 2006

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PROSA

Piano (8) Gustavo Holanda

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nada mais ocupava o mesmo lugar. Nem o nada, mais no mesmo lugar. Outros vazios. Há dois, há anos, tudo ao redor, aos sorrisos. E de repente os ruídos. O tempo, roedor mudo dos intervalos. A sinfonia do amor perdia o compasso. – Maldito zelador que não pára de perguntar por ele. Sim! Ele foi embora. Sim! Coitada de mim. Não vou precisar de sua ajuda e não! é da sua conta. Além do mais, nem formávamos um casal tão bonito assim. As reconciliações, tristes tardares. Saltitar entre reticências de um inevitável ponto final. – Só não queria esse gosto amargo na boca. Como um cigarro solto na noite solitária. Quando tenho coragem pra me lembrar, não penso em crepúsculos ou auroras, Nem na melancolia grandiosa de Beethoven. Me perco em silêncios. A mulher que sou, frágil como me sonhei, terna como nunca pude. É a mina caverna. É meu o coração amarrado que só vê as sombras de um passado que insiste em se impor como única realidade. Por favor, acendam as luzes. Não se preocupem, sou uma mulher moderna, eu pago a conta. Aprendi a lidar com os egos e as libidos pelancosas de velhos engravatados. Sei, como poucos, ser respeitada e obedecida. Mas esse travesseiro, intacto, durante toda a noite, me deixa a voz embargada. Preciso repetir meus desejos em voz alta. Pra me convencer de que são meus, e não imposições desta incerta ausência. Que o sabor deste café vai para minha boca, e não para essa xícara esquentar minhas mãos, ou meu corpo se sentar na janela e tentar amargar a memória. Quero um café com bastante açúcar. Melhor, vou tomar um café na esquina, Com pão de queijo e... mentir. Mentir para o primeiro esperto que sentar ao meu lado. Mostrar que sou ideal e impossível. Como não pensei nisso antes, simplesmente mentir. Saia, um decote elegante, uma displicente sandália baixa, e um leque, um enorme leque de clichês e piadas bestas. Quem poderá resistir. – Afinal, se o violinista se machucou, não há por que substituí-lo de imediato. Passemos para um solo de piano. • Gustavo Holanda é graduando em Letras na Universidade Federal de Pernambuco. Continente maio 2006

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

O valor da cantoria Num tempo em que o construtivismo parece ter o seu triunfo sedimentado em todos os grandes centros poéticos do Ocidente, a ponto de João Cabral de Mello Neto ser considerado, hoje, o maior poeta “erudito” do Brasil, o improviso parece afirmar-se pelo que tem de oposto, de negação a essa tendência, o que torna medíocre toda a poesia que não se define por uma radicalidade, ou por um dos extremos da dificuldade do fazer poético

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cantoria é uma expressão artística de autoria mais do que conhecida, reconhecida, e por um público infinitamente superior ao de que dispõem muitos bustos de bronze que enfeitam ou enfeiam praças e ruas das capitais do Nordeste. É preciso que ela e o folheto de cordel não sejam só objeto material das teses de Sociologia e Antropologia Cultural, mas que entrem com todas as honras nos cursos de Letras e nos departamentos de Artes das nossas universidades. É tempo de alguém ousar uma análise literária da produção do repente e do folheto. Quanto ao repente, um estudo comparativo de suas técnicas e resultados diante do automatismo psíquico praticado pelos surrealistas poderia colocar em confronto, por exemplo, o propósito de conciliar o urgente com o consciente, do primeiro, com o uso do urgente para abolir o consciente do segundo. Outro campo de estudo seria o da textualidade, através de análises comparativas entre o acervo disponível de cantorias, preservado desde a metade do século passado, pelos apologistas, e as escolas literárias brasileiras. Continente maio 2006

A esse respeito, talvez fosse interessante verificar o grau de tradicionalismo estético do repente, enquanto expressão da cultura popular e, por isso mesmo, mais ligado às raízes e, ao mesmo tempo, analisar os elementos textuais que o aproximam da poesia atual. Bastante provocativo seria um estudo que analisasse os padrões de rigor estrutural do repente, nos campos da estrofe, da métrica e da rima, que o ligam a uma metrificação estreitamente filiada ao sistema silábico-acentual ou qualitativo, que se universalizou nas literaturas ocidentais contemporâneas, enquanto mantém a terminologia “pé”, do sistema quantitativo temporal greco-latino, para designação do verso, e não de uma unidade dele, como seria de se esperar. Isso deve ser feito sem esquecer de analisar as dezenas de modalidades ou “gêneros” de cantoria (mourões, quadrões, martelos, galopes etc.). No entanto, mais interessante talvez seria a confrontação dos referidos elementos textuais do repente (que se encontram dentro de um arcabouço rígido), com os textos do presente e do passado da poesia “literária” brasileira. Estudar, por exemplo, no repente (e no folheto), o predomínio do substantivo, da ordem direta


MARCO ZERO

e do coloquialismo, que o tornam ao mesmo tempo antecessor e contemporâneo da poesia moderna, e o afastam da literalidade (distanciamento da linguagem comum) e da adjetivação preciosística ou barroca, bastante presente na poesia pré-moderna brasileira, principalmente no Parnasianismo e no Simbolismo. Segundo o sociólogo Abdias Moura, ao analisar as sociedades tradicionais em seu livro O Evangelho do Subdesenvolvimento, a predominância do substantivo é traço indicador do tradicionalismo, ao lado de uma adjetivação não qualificativa, própria da “linguagem tabelioa”, dos “meritíssimos” e “augustos”. Como os violeiros não são chegados à linguagem bacharelesca, o predomínio do substantivo fez bem à sua poesia, mesmo porque Abdias não se estava referindo à linguagem artística, que não é cumulativa.

Quando o violeiro usa o adjetivo qualificativo, ele o faz com precisão, pois não é, por exemplo, qualquer mulher que pode extasiá-lo, tem que ser “mulher nova, bonita e carinhosa” que “faz um homem gemer sem sentir dor”, como no conhecido mote. No entanto, tenho notado que, quando o violeiro glosa um mote de uma pessoa considerada “culta”, ou quando ele escreve ao invés de improvisar, às vezes se observa a tendência de alterar o estilo ou de incluir substantivos e adjetivos consagrados pela poesia acadêmica, tais como “auras” e “halos”. No desafio, entretanto, quando apertado com a falta das rimas, vale tudo para o violeiro, até vocábulos estrangeiros. Mas todos estes estudos estruturais e textuais é trabalho para gente que, além de erudita, seja jovem. • Continente maio 2006

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AGENDA/LIVROS Baudelaire em prosa

Zenival

Pequenos Poemas em Prosa, de Charles Baudelaire, também publicado com o título de Le Spleen de Paris, é uma coletânea de histórias contadas em poemas sem versos. Spleen significa melancolia, presente em vários dentre os 50 poemas do livro. A obra, que sofreu várias censuras por ir contra os bons costumes e somente foi publicada em livro após a morte do autor, agora nos chega em edição bilíngüe, em ótima tradução, mantendo a linguagem acessível e sem perder o anticonvencionalismo do original. Os poemas foram publicados entre 1861 e 1869 em revistas francesas.

Estranhamento e a surpresa Nas narrativas de Elegbara, as afirmações sobre fatos, personagens ou situações históricas refletem-se em seu oposto

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s 10 narrativas de Elegbara, do carioca Alberto Mussa, têm como medida explícita para o seu entendimento e leitura, o estranhamento e a surpresa. Elas poderiam ser caracterizadas como contos, quando se percebe que a brevidade e a condensação permanecem em primeiro plano. As afirmações sobre fatos, personagens ou situações históricas chegam sempre acompanhadas de seu oposto: a negação, a dúvida e, conforme já tinha observado Antônio Houaiss, a ambigüidade. Os personagens deste livro são imprevisíveis: um degredado judeu da expedição de Cabral que vomita quando lhe é oferecida a hóstia, a mulher vedada, de quem ninguém podia ver o rosto porque buscava a verdade, Elegbara, o detentor do poder (e que significa Exu), Zumbi e Ganga Zumba que vivem em constante embate, Dom Sebastião em Alcácer Quibir ou um capitão-do-mato que se apaixona por uma escrava e é condenado à morte. O flash biográfico se dilui nos enredos histórico-antropológicos, estabelecendo um choque dialético inusitado entre sujeito e objeto, entre mitologia e história. E isso vai deixar o leitor perplexo, mesmo aquele bem-informado. O autor intenta anular as fronteiras entre realidade e ficção, e aí está a grande provocação do livro, embora não devam ser levados demasiadamente a sério todos os eventos e personagens da obra, imaginando-os como absolutamente reais. De modo oposto, renegá-los totalmente seria destruir o caráter de verossimilhança que toda obra ficcional deve trazer em alguma proporção. Resta ao leitor se embrenhar nas páginas de Elegbara e desfrutar do prazer de uma leitura insígne e diferenciada, onde vale mais o que está dito e escrito do que as possíveis especulações acerca do que pode ou não ter acontecido. (Luiz Carlos Monteiro) Elegbara, Alberto Mussa, Record, 144 páginas, R$ 26,90. Continente maio 2006

Pequenos Poemas em Prosa, Charles Baudelaire, Tradução de Gilson Maurity, edição bilíngüe, Editora Record, 288 páginas. R$ 33,90.

Os jornalistas Palavra de Jornalista, de Evaldo Costa e Gilson Oliveira, é o primeiro volume do Projeto Memória Viva da Imprensa de Pernambuco, realizado pelo Centro de Estudos da Mídia. Contém o depoimento de 20 jornalistas veteranos, todos com passagem importante nos meios de comunicação. Corporativismos à parte, trata-se de documento importante, formando um vasto painel da evolução da imprensa local, tendo como pano de fundo o contexto político, histórico, sociológico, econômico e cultural da vida no Recife, no século 20. Palavra de Jornalista, Evaldo Costa e Gilson Oliveira, edição CEM, 351 páginas, R$ 50,00.

Elipses e precisão

Tempo morto, mundo perdido, lembranças, medos, desejos, rotinas, rancores, sustos, esperas, fatalidades, velhice, solidão, silêncio, tristezas, esquecimento, dores, retornos frustrados, assassinatos passados, pequenas cidades perdidas, meninos perseguindo velhos, fantasmas passeando por ruas imemoriais, família cujos mortos se recusam a morrer, rasga-mortalhas, benjamins, galos. Nos contos de Pedro Salgueiro, a elipse está para a prosa como a metáfora para a poesia, como deve ser. A linguagem é ágil, áspera, sem experimentalismos, mas precisa. Dos Valores do Inimigo, Pedro Salgado, Editora da UFC, 114 páginas, R$ 8,50

Sêneca hoje O livro Imagens do Poder em Sêneca: Estudo sobre o De Clementia, analisa o Tratado sobre a Clemência, escrito por Sêneca em meados do século 1 e investiga de forma percuciente a teoria do poder que permeia a obra do filósofo estóico. Além disso, a autora, que é formada e tem o título de mestre em História pela USP, ambiciona relacionar tal teoria política com situações similares na atualidade, quer dizer, ela analisa uma possível aplicação das idéias de Sêneca em um império atual nos moldes do Império Romano. Imagens do Poder em Sêneca: Estudo sobre o De Clementia, Marilena Vizentin, Ateliê Editorial, 225 páginas, R$ 30,00


AGENDA/LIVROS Resposta em ficção

Quando publicou Os Demônios, uma crítica aos jovens grupos de esquerda russos, que pregavam o terrorismo, Fiódor Dostoievski foi criticado por uma aparente “volta à direita”, já que tinha um passado envolvido com os círculos socialistas. A resposta do autor veio na forma de ficção, o conto “Bobók”. Com sua tradução em português, direta do russo, por Paulo Bezerra, o texto é também analisado pelo tradutor, que o relaciona a outras obras como Diálogo dos Mortos, de Luciano Samósata, Apocoloquintose do Divino Cláudio, de Sêneca, Diário de um Louco, de Gogol, e a alguns contos fantásticos de Puchkin. Bobók, Fiódor Dostoievski, Editora 34, 1176 páginas, R$ 29,00.

Alegoria e hermetismo Figura controvertida – alguns o consideram o maior poeta brasileiro –, Jorge de Lima deixou uma obra vasta e que variava de tom e estilo de acordo com o desenvolvimento de sua personalidade artística. Foi parnasiano, regionalista, modernista, chegando ao barroco. Esta obra reúne os livros de sua fase religiosa: Tempo e Eternidade (1935), A Túnica Inconsútil (1938) e Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1943), em que alegoria e hermetismo prenunciam sua obra maior, Invenção de Orfeu. O volume faz parte do projeto da Editora Record, de lançar a obra completa do escritor alagoano. Anunciação e Encontro de Mira-Celi, Jorge de Lima, Record, 320 páginas, R$ 44,90.

História do documento Fundador do Festival de Documentários É Tudo Verdade, Amir Labaki cobre 110 anos de história da cinematografia documental no Brasil, desde os pioneiros da era muda, passando pela Vera Cruz e o Cinema Novo, até o Globo Repórter e o documentário brasileiro hoje. Ao final, traz uma lista comentada de 50 filmes que podem ser encontrados em locadoras de VHS e DVD. Um destaque, merecido, é dado ao filme Cabra Marcado Para Morrer, documentário de Eduardo Coutinho, que começa a ser filmado em 1962, é interrompido pela ditadura militar em 1964 e retomado 20 anos depois. Introdução ao Documentário Brasileiro, Amir Labaki, Francis, 128 páginas, R$ 16,50.

Humano soterrado

Depois de um tempo de recesso, em que o conto ficou de fora dos lançamentos das editoras, num desses mistérios do mercado cultural, a narrativa curta voltou com a violência de um rio há muito represado e tem surpreendido o número de bons contistas que surgiram nos últimos anos. Mais escondido ainda, por morar no Nordeste, à margem dos pólos sudestinos, Jeová Santana vem construindo uma obra sólida. Neste Inventário de Ranhuras (que segue a Dentro da Casca e A Ossatura – livros que pelos títulos já se revelam), sua escrita dura e limpa nos reensina a amar o ser humano soterrado pelo hábito. Inventário de Ranhuras, Jeová Santana, LGE Editora, 183 páginas, R$ 25,00

O fascínio do oculto Livro de jornalista inglês mapeia a subcultura gótica desde o Marquês de Sade até filmes e grupos de rock atuais

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ornalista especializado em rock, fascinado pelo ocultismo, o inglês Gavin Baddeley criou, no livro Goth Chic uma verdadeira viagem pela expressão dark da natureza humana, particularmente a subcultura gótica. Horror, estranheza, escuridão, são as características deste estilo cuja sombra se estende sobre a literatura, o cinema, a música e as histórias em quadrinhos, além do rádio e da televisão. Desde os guerreiros visigodos, da Idade das Trevas, de onde vem o termo gótico, até a cultura de massa contemporânea, Gavin mostra que, mais do que um movimento que fascina adolescentes, o gótico pode ser visto como um modo de vida. Com humor, ironia e senso crítico, o jornalista fala de figuras como os escritores Marquês de Sade e Edgar Alan Poe, os atores Bela Lugosi e Christopher Lee, o cineasta Roman Polanski e o cantor Marilyn Manson, entre outros contribuidores da cultura gótica. Mostra que em toda metrópole existe um clube dark, (movimento surgido no início dos anos 80, do qual fazem parte jovens pálidos e maquiados, sempre vestidos de negro) e que o fascínio pelo obscuro e tenebroso atinge pessoas de todas as idades. Muito bem ilustrado – cenas de filmes como As Filhas de Drácula ou de seriados como Arquivo X, fotos de cantores como Nick Cave ou Alice Cooper, de clubes sadomasoquistas e de capas de revistas como Bizarre –, o livro faz uma panorâmica divertida do universo gótico, para os amantes do gênero e para quem quer entender melhor nosso tempo. (Marco Polo) Goth Chic: Um Guia para a Cultura Dark, Gavin Baddeley, Rocco, 288 páginas, R$ 52,50.

Sociologia e romance Logo na apresentação de A Realidade Social da Ficção, Sebastião Vila Nova explica que este não é um trabalho de sociologia do romance, mas sim de sociologia do conhecimento. A partir de algumas idéias esboçadas por Gilberto Freyre, ele se dispõe a procurar entender a sociedade retratada nos romances, ou seja, a partir dos personagens – suas falas, pensamentos e ações –, e do pano de fundo em que se interagem, tentar compreender e analisar seus mecanismos. O pernambucano exemplifica sua tese estudando o complexo do amor romântico em Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, ressaltando que, embora a análise da obra de ficção de modo algum substitua a investigação de dados empíricos em sentido positivista, estrito, esta análise é sociologicamente relevante, na medida em que as representações na ficção de estruturas sociais são “teorias” do social. A Realidade Social da Ficção, Sebastião Vila Nova, Editora Massangana, 90 páginas, R$ 10,00. Continente maio 2006

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ARQUITETURA

Fotos: Roberto Segre

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O duplo perfil da arqui Arquiteto ítalo-argentino acompanha debate que divide a arquitetura do continente em uma corrente que dá expressão à identidade regional e outra que segue o cosmopolitismo das grandes metrópoles Fábio Araújo Continente maio 2006

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ítalo-argentino Roberto Segre conhece como poucos os rumos e tendências da arquitetura latino-americana. Nascido em Milão há 70 anos, Segre mudou-se para a Argentina em 1939. Após concluir a graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Buenos Aires, foi viver o sonho da revolução em Havana, onde atuou entre 1962 e 1994. Desde então, é professor titular e coordenou o Programa de PósGraduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ao longo das décadas, colecionou experiências acadêmicas em países como República Dominicana, Peru, Bolívia, México, Estados Unidos, Espanha e França.


Arquivo Nacional, em Bogotá. Obra do arquiteto Rogelio Salmona

tetura latino-americana Doutor em Ciências da Arte pela Universidade de Havana e em Planejamento Regional e Urbano pela UFRJ, socialista convicto, Segre acompanha de perto o debate sobre a existência e a identidade de uma expressão arquitetônica latino-americana. Das discussões entre críticos, arquitetos e urbanistas emergiram correntes contrapostas. Há quem acredite numa linguagem que expresse as tradições históricas e assuma as condições precárias do subdesenvolvimento; outras vertentes incorporam o cosmopolitismo das grandes metrópoles, as funções corporativas e a sofisticação tecnológica em cidades como Buenos Aires, México, São Paulo, Caracas e Santiago. Segre concorda. Ele cita diversos exemplos de projetos cosmopolitas, mas elaborados localmente e integrados no diálogo sincrético latino-americano. Após a Segunda Guerra Mundial, em sua visão, a proliferação das torres nas capitais latino-americanas definiu uma paisagem anônima e sem expressividade, no chamado internacional style. Só no segundo processo de expansão do capital financeiro, na década de 80, o anonimato deu lugar Continente maio 2006


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ARQUITETURA Fotos: Roberto Segre

Conjunto de torres de escritórios no World Trade Center, na beira do rio Mapocho, Comuna de Las Condes, Santiago do Chile, de vários arquitetos

à busca por uma identificação da imagem corporativa. “Superada a curta etapa do pós-modernismo historicista, que tentou retornar aos elementos clássicos, a linguagem arquitetônica ligada ao poder assumiu o expressionismo cenográfico tecnológico, a high tech e as virtualidades do movimento minimalista, gerando obras com alta qualidade de desenho”, considera. Neste sentido, Santiago do Chile concentra alguns dos prédios mais refinados da AL. O arquiteto Borja Huidobro insere edifícios de grandes dimensões, marcados pela leveza e transparência: a cobertura suspensa do prédio Plaza Los Angeles e a curvatura do plano de brises do prédio Banmédica se identificam pelas formas do contorno e traçado linear das fachadas. Junto com Enrique Browne, Huidobro desenha os escritórios do Consorcio Vida, com um sistema de trepadeiras que cria uma cortina verde na fachada, gerando a metáfora de uma natureza quase perdida nos espaços centrais. Há diversos casos em que os volumes se dissolvem nas transparências, nos reflexos e na ambigüidade da imagem criada pelos vidros cromatizados, translúcidos ou opacos. Isso ocorre no cubo do edificio corporativo H.N.S, em Santiago, projetado por Juan Sabbagh, Marina Sabbagh, Juan Pedro Sabbagh e Marcial Olivares; nos dois retângulos de vidro do conjunto Colonos Plaza de Manteola (que mantém, com aço e vidro, a mesma volumetria dos armazéns tradicionais de tijolos da arquitetura inglesa portuária); e no volume virtual que reconstrói o armazém de Puerto Madero, ambos em Buenos Aires. Também, nesta cidade, o Museu de Arte Latino-Americano (Malba), de Gastón Aterman, Martín Fourcade e Alfredo Tapia, cria um equilíbrio entre o contexto urbano, a paisagem natural e o dinamismo da espacialidade interior. “No México, a Videoteca Nacional Educativa, de Michael Rojkind, Miquel Adriá e Isaac Broid, estabelece uma ambigüidade perceptiva com o vidro, enquanto o Corporativo Las Flores, de Migdal Arq, cria um diálogo visual com os que transitam pela estrada na frente do prédio”, acrescenta Segre. Ainda neste país, ele cita o prédio da Televisa, vencedor do Prêmio Mies van der Rohe Continente maio 2006


ARQUITETURA

Consorcio Vida, em Santiago, de Henrique Browne e Borja Huidobro

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ARQUITETURA Fotos: Roberto Segre

Armazéns no projeto de resgate de Porto Madero, Buenos Aires, por vários arquitetos

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em 1999, marcado por envoltura metálica que isola seu interior do espaço urbano. Já o hotel Habita, de Enrique Norten, na Cidade do México, considerado o melhor da América Latina pelo Arup World Architecture Prize de 2002, está envolto numa superfície de vidro que transformou as fachadas numa caixa de luz. Em Havana, o Banco Financiero Internacional, de José Antonio Choy, superpõe volumes transparentes sobre uma colunata neoclássica dos anos 50. O arquiteto Juan Gustavo Scheps transformou uma sala de máquinas no centro de pesquisa da Faculdade de Engenharia, em Montevidéu, quebrando a ordem rígida da estrutura de concreto com cabos de aço e passarelas inclinadas, que estabelecem com as linhas diagonais uma dinâmica de diretrizes visuais. Em outros casos, figurações minimalistas e desconstrutivistas tentam reduzir o prédio à sua expressão mais sintética, ou estabelecer contraste com o contexto urbano. Exemplos: o pavilhão do Café Colômbia, de Leonardo Álvarez Yepes, que se insere como uma caixa de vidro e aço no pátio do prédio do Museu Nacional de Bogotá, e o cubo de chapa dobrada no edifício de escritórios Oficinas El Cubo, de Alexandre Lenoir, em Monterrey. Enquanto a arquitetura cosmopolita se relaciona com o contexto das metrópoles, outra vertente se inspira na pluralidade das paisagens, na diversidade climática, nas técnicas locais e na diferenciação das comunidades nacionais. Germán del Sol Guzmán projetou um hotel em San Pedro de Atacama, no Chile, onde o sistema de geometrias irreais, linhas e planos diagonais cria uma imagem onírica que dialoga intensamente com a paisagem. “Nesta tendência, a cidade não é uma abstração, mas um contexto que tem história, uma ancestralidade, sistema simbólico e vida social. Sua dimensão é formada por fragmentos, os bairros particularizados pela identidade que caracteriza as formas e os espaços. Os projetos em cada cidade buscam o espírito do lugar”, destaca Segre. Em Valparaíso, Roberto Barria e Pol Taylor, na extensão da Escola de Arquitetura da Universidade UTFSM, integram o vocabulário desconstrutivista com as volumetrias dos cerros da cidade. Em San José de Costa Rica, Bruno Stagno desenha várias sedes do Banco de San José, rejeitando a tipologia da caixa de vidro e assumindo a arquitetura bananeira local. Heléne de Garay, no prédio La Fosforera em Caracas, resgata a tropicalidade com filtros em concreto na fachada, quase um muxarabi que protege o interior do sol. O colombiano Rogélio Salmona sintetiza modernidade, tradição e memória. Seus projetos têm coerência gramatical e se integram na cidade, ao mesmo tempo em que definem novos ícones. Exemplos: as Torres del Parque, o Arquivo Nacional, a Escola de Graduados da Faculdade de Ciências Humanas e a Biblioteca Popular Virgilio Barco, todos em Bogotá.


ARQUITETURA

A valorização dos materiais locais é outro marco da arquitetura regionalista. Francisco Serrano, na Escola de Arquitetura e Desenho da Universidade Ibero-Americana em Santa Fé, Argentina, define um volume horizontal caracterizado pelo ritmo dos pilares de tijolos. No Chile, com grandes plantações de pinhos e araucárias, a madeira voltou a ser utilizada em projetos recentes, relacionando as qualidades texturais e estruturais com uma linguagem plástica: as Bodegas Unificadas de José Cruz, Hernán Cruz, Ana Turel e Juan Purcel, a Bodega Las Niñas no vale de Cochagua, de Mathias Klotz, e a Viña Gracia, em Totihue, de Germán del Sol Guzmán. Os exemplos cosmopolitas no Brasil são basicamente os prédios de escritórios encontrados, na sua maioria, em São Paulo. Conjuntos como o Centro Empresarial Nações Unidas, do escritório Botti Rubin; o Plaza Centenário, de Carlos Bratke; e o prédio “Os Bandeirantes”, de Aflalo & Gasperini. Como exemplos regionalistas, Segre cita edifícios com elementos vernáculos elaborados em diferentes regiões: na Amazônia por Severiano Porto, em Curitiba por Domingos Bongestabs, no Rio de Janeiro por Cláudio Bernardes, em Belo Horizonte por Éolo Maia, em Salvador por Assis Reis. A globalização na arquitetura começou a se materializar já na Antiguidade, com os templos helenísticos e romanos que se espalhavam pelo mundo. Por toda a História, os gêneros se difundem e geram interpretações locais. “Hoje, mais do que falar de uma consolidação de estilos, acontece em múltiplos países uma expressão estética individual. Como definiu Luis Fernández-Galiano, vivemos na época das grifes e do narcisismo. É longa a lista dos que atuam nos cinco continentes: Moneo, Gehry, Meyer, Piano, Nouvel, Koolhaas”, destaca Segre. E, considerando-se tanto a coexistência das “cidades mundiais” quanto as isoladas paragens dos Andes peruanos, dos Pampas argentinos e do Sertão brasileiro, o estudioso questiona se não seria mais adequado se falar em “arquiteturas latinoamericanas” do que numa só. Para responder à questão, o especialista propõe um diálogo criativo e contemporâneo, rejeitando tanto as manifestações miméticas dos centros metropolitanos, quanto a procura de identidade baseada num regionalismo fechado e nacionalista. “São válidas as expressões de um refinamento tecnológico e de uma linguagem cosmopolita, possíveis nos países de alto desenvolvimento industrial, como Argentina, Brasil, Chile, México ou Venezuela, bem como as respostas regionalistas, contextualistas e de tecnologias tradicionais, que tentam resolver os desafios apresentados pela presença de uma população de recursos escassos ou dialogar com a particularidade do sítio e da paisagem”, afirma. •

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Cidade da Música, no Rio de Janeiro, de autoria do arquiteto Christian de Portzamparc

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ARTES

Imagens: Divulgação

Poster promocional de Alexander Rodchenko, 1924 Fotografia original com toques de guache, 20,4x29,2cm

VANGUARDAS VERMELHAS Num recorte cirúrgico, exposição no Thyssen-Bornemisza de Madri reúne os principais artistas e tendências das vanguardas russas Mariana Oliveira, de Madri

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a Rússia, o vermelho tinha um significado especial, que ia além do político. Existia, nas casas, um “espaço vermelho”, principal recanto do lar, onde eram depositados os ícones e objetos mais charmosos e valorizados. Assim, o vermelho seria sinônimo de algo importante. As vanguardas artísticas que se desenvolveram no país nos primeiros anos do século 20 foram esteticamente relevantes e determinantes, alastrando influências por todo o mundo. Em 1905, a Rússia vivia um momento de efevercência, depois da derrota na guerra russojaponesa. Foi o ano da revolta do Encouraçado Pontenkin e do porto de Odessa, da formação dos sovietes. O enorme país era um vulcão a ponto de explodir, naquele tempo anterior à Revolução de Outubro. Toda essa movimentação político-social teve reflexo no plano cultural. O mundo artístico fervia e dele começavam a sair os primeiros gritos de um número variado de movimentos que foram batizados como “Vanguarda Russa”. Num recorte cirúrgico, feito na produção artística realizada entre os anos 1907 e 1930, o museu Thyssen-Bornemisza traz a Madri uma mostra com 280 obras russas, que vão desde pintura até o material gráfico, usado com forte cunho político. Os historiadores da arte costumam identificar essa profusão de estilos como um fenômeno único e o acento dessa exposição é a pluralidade. Ao ser batizada de Vanguardas Russas, tenta expressar a diversidade das experimentações artísticas realizadas ali, tomando como base as abordagens mais recentes do tema, que priorizam a variedade. Uma das questões centrais que a exposição tenta aclarar é a ausência de uma linha evolutiva. Tamanha a quantidade de experimentos e criações paralelas, é impossível compor um esquema simplificado de sucessões. Dentro de uma proposta didática, bastante difundida, conta-se que o Cubofuturismo teria sido a primeira vanguarda, dando lugar ao Suprematismo, que foi seguido pelo Construtivismo. Na realidade, essas correntes surgiram em paralelo. A unidade que existia entre elas era o furor revolucionário, no qual se pregava quase uma anarquia. O objetivo daqueles idealistas era aproximar a arte da vida, e deixar “os resíduos dos gregos nos crematórios”, como propunha Malévich.

Sem Título, Kasimir Malevich, c. 1916, óleo sobre lenço, 53x53cm

Proletários do Mundo, Uni-v vos, S. G. Shulman, bandeja octagonal,, 1925, óleo sobre madeira, 57,5x57,5cm

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Acima, Movimento no Espaço, Mikhail Matiushin, c. 1921, óleo sobre tela, 124x168cm À direita, Muro Roxo, Wassily Kandisky, 1909, óleo sobre tela, 83x116cm

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Imagens: Divulgação

O percurso tortuoso dos caminhos trilhados pela arte russa tem como ponto de partida obras do início do século, ainda figurativas, de pintores como Kandinsky e Jawlensky, os quais se dedicaram a criar uma Rússia imaginária, fortemente inspirados em Gauguin e Matisse. Os experimentos individuais de três ícones da arte russa estão bem distribuídos nos salões do museu. Wassily Kandinsky é um dos grandes, não só por suas telas, mas também pelo seu grande labor teórico na abertura de caminhos à abstração. Um dos primeiros movimentos nesse sentido acontece, em 1909, quando o pintor começa a numerar e a dar a suas obras os títulos de improvisação, composição e impressão (representando as sensações e paisagens interiores, e os vínculos que via entre música e pintura, sons e cores). Marc Chagall é outro a ocupar lugar de honra. Chagall é um daqueles artistas de multifacetas, que cria um mundo pessoal entre a realidade e a imaginação, sempre de forma narrativa. Dos três destaques, é o nome de Pável Filónov o menos conhecido. Contrário ao Cubismo e a Picasso, cuja renovação lhe parecia apenas formal e sem representação universal, Filónov dedicou-se a trabalhar numa linha baseada na intuição com objetivo de captar o desenvolvimento do universo. Ele se definia como “maestro investigadorinventor”. Suas obras são analíticas e quase sempre figurativas, mesmo que por alguns segundos possa remeter à abstração. O gosto pelo primitivo invadiu o país nesse período. Criou-se a corrente Primitivista ou Neoprimitivista, que não possuía artistas fiéis, mas por onde quase todos circularam. Mijaíl Lariónov, Niko Pirosmani, Natalia Goncharova foram influenciados pelos ícones da tradição e pelos gravados populares russos (Lubok), passando a utilizar a simbologia, a perspectiva plana, a compartimentaçao de formas com muita recorrência. As obras traziam temas relacionados à vida cotidiana dos campesinos e da população pobre e, apesar da mesma fonte de inspiração, não eram parecidas. Cada um expressava seus próprios temas dentro daquele universo, criando, assim, um movimento de enorme variedade. Era a estética do simples que deixava de ser algo indigno de ser reproduzido. As influências futuristas e cubistas que sopravam do Ocidente fizeram germinar duas novas escolas: o Rayonismo – que, como descreveu Lariónov, era “uma síntese de cubismo, futurismo e orfismo”, centrado na questão da luz – e o Cubofuturismo, que compartia com o Futurismo italiano a paixão pela máquina, pela velocidade, pela vida industrial, mas com uma representação do movimento menos vertiginosa. Do Cubismo havia grande semelhança no plano das cores, no interesse pelas formas geométricas e na fragmentação dos objetos.


ARTES

Proun 1, Eliezer Lissitsky, c. 1919, óleo sobre madeira, 68x68cm Abaixo, Círculo Negro, Kasimir Malevich, 1909, óleo sobre tela, 105.5x106cm

Talvez o ramo menos conhecido das vanguardas russas seja o Movimento Orgânico, do qual a figura-chave era Mijaíl Matiushin. A idéia dessa corrente era perceber o mundo como um todo orgânico, regido por suas próprias leis. O constante movimento de transformação da natureza, crescimento e morte, era algo essencial. “Qualquer troço de madeira, de metal ou de pedra validado pela força da intuição contemporânea é capaz de expressar o signo da divindade de forma mais intensa que os retratos ordinários e intermitentes que se fazem dele”, declarava Matiushin, em 1919. Eles não criavam esquemas formais apriorísticos. Sua arte era fruto de uma longa observação feita diretamente da natureza, às vezes, de um mesmo motivo em distintos momentos do dia. Quase que simultaneamente, dois grandes nomes da arte russa elaboraram dois dos movimentos mais relevantes do período. Vladímir Tatlin e o Construtivismo e Kazimir Malévich com o Suprematismo. Mesmo que o termo Construtivismo só tenha aparecido na década de 20, os relevos pintados de Tatlin foram expostos em 1914, consagrando o início do movimento. Foram, entre outros experimentos no campo da abstração, os objetos tridimensionais de Tatlin, realizados com diferentes materiais (vidro, madeira, tela...), que traçaram o caminho para elaboração dos princípios da construção espacial. “A influência da minha arte se percebe nas obras dos construtivistas, de quem eu sou o fundador”, afirmava em sua autobiografia. Em 1915, na Exposição 010, Malévich expôs quase 39 obras suprematistas, entre elas seu famoso quadrado negro. A teoria suprematista tem como elemento plástico elementar o quadrado. A intenção de Malévich era determinar o fim da linguagem figurativa e sua transição à linguagem abstrata. O quadrado cumpria a função de ponto de partida, sua concisão formal transformava-o no “zero”, em uma forma plástica absoluta. O quadrado seria a semente do suprematismo, a célula suprematista, como definiu seu criador. Continente maio 2006

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ARTES Imagens: Divulgação

Um pouco depois da revolução de 1917, passou-se a identificar a revolução artística vanguardista com a revolução social e política. Grande parte dos protagonistas dos movimentos vanguardistas se tornou responsável por algumas das instituições artísticas da criação da nova cultura para o povo

Capa do Livro, Disto. Para Ela e para Mim, Alexander Rodchenko, de V. Maiakoviski, 1923, Huecograbado e tipografia, 23x15.6cm À direita, Composição, Ivan Puni, c. 1915-16, Assemblage, 77x51x8cm

A fotografia também foi contagiada pelo espírito vanguardista, deixando de lado sua tradicional temática para entrar no universo da experimentação. Os artistas começaram a usar a fotografia como um meio de expressão e buscaram novos pontos de vista. A câmara deixou de ser estática e começou a passear por vários ângulos. Ródchenko iniciou-se na fotografia através da fotomontagem, realizando o primeiro livro ilustrado com fotomontagens para obra de Maiakovsky, em 1923. Arte na rua – Um pouco depois da revolução de 1917, passou-se a identificar a revolução artística vanguardista com a revolução social e política. Grande parte dos protagonistas dos movimentos vanguardistas se tornou responsável por algumas das instituições artísticas da criação da nova cultura para o povo. Malévich foi nomeado professor da Escola de Belas Artes de Moscou; Chagall designado Comissário de Belas Artes; Kandinsky fundou a Academia de Ciências Artísticas de Moscou e 22 novos museus por todo país. Durante os primeiros anos de revolução, a liberdade artística foi ilimitada, bem como as possibilidades de experimentação. As abstrações dos construtivistas e suprematistas, as figurações tardias dos cubofuturistas, as fotomontagens invadiram as ruas e as casas. As obras do

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ARTES

Pioneiro com um Trompete, Alexander Rodchenko, 1930, gelatina de prata sobre papel, 44.5x38.5cm

passado eram cobertas de vermelho e grandes afrescos eram pintados nas ruas por artistas vanguardistas, as antigas esculturas eram substituídas por outras feitas em materiais efêmeros (seguindo os princípios abstratos de Tatlin), até os pôsteres de propaganda política, cujas mensagens eram traduzidas a imagens simples para facilitar a aproximação com as massas, levavam o dedo da vanguarda. Mesmo com esse entusiasmo inicial, o panorama mudou substancialmente, alguns anos depois, e a arte de vanguarda, mesmo permanecendo vinculada aos bolcheviques, sofreu as conseqüências das muitas variações ideológicas e das mudanças de tendências políticas no poder. As vanguardas foram outro grande expoente da necessidade de mudança que existia na Rússia de princípios do século passado. A luta era contra a arte burguesa, encarcerada, e distante da vida. Assim como os bolcheviques, os vanguardistas eram idealistas, entusiastas e arrebatados. E talvez a maior diferença que existia entre os líderes das vanguardas russas em relação aos das outras vanguardas européias fosse sua atuação global, que ia além da função artística, e os transformava quase em gurus espirituais. A complexa criação cultural (arte, cinema, teatro, literatura) atesta a existência de um mosaico moderno, num momento histórico e social marcado pela pluralidade, liberdade, excitação, investigação e presença de inquietas personalidades. • Continente maio 2006

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

O espaço invisível A pintura de Adriana Maciel nega o espaço ilusório tridimensional, usando-o como passagem a um outro espaço, situado além dos truques óticos

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mbora o cenário artístico seja hoje dominado pelas manifestações da chamada arte conceitual – que abandonou os suportes tradicionais da expressão plástica –, continuam a existir a pintura, a escultura e a gravura, como expressão contemporânea. No meu entendimento, se é verdade que a arte conceitual nasceu como resultante da problemática posta pelas vanguardas históricas, no começo do século 20, o rumo que ela tomou terminou por desvinculá-la do que se conhece como artes plásticas. Por essa razão, pode-se afirmar que se trata de um outro modo de expressão que, embora surgido daquelas artes, já muito pouco tem a ver com elas. Existem, assim, dois campos distintos em que esses artistas se expressam. Estou convencido de que a crise da pintura foi precipitada por sua natureza de expressão artesanal numa sociedade dominada pela produção industrial. Os read mades, de Marcel Duchamp, são a expressão sarcástica dessa crise, e deles derivam toda uma tendência antiarte que, creio eu, em vez de

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Redondos, montagem

trocar o caráter artesanal da arte por novos procedimentos tecnológicos, abriu mão dele; noutras palavras, recuou para um estágio pré-artesanal, uma vez que o autor não “faz” a obra, não a tem como resultado do trabalho manual (tal como ocorre com a pintura, por exemplo): concebe-a como conceito. A própria denominação de “arte conceitual” seria imprópria para um tipo de expressão que lida com formas e cores, que são não conceituais por definição. O outro lado da questão diz respeito às respostas que a pintura deu ou tentou dar à mesma crise. Em termos puramente pictóricos, ela manifestou a impossibilidade de superar o seu caráter figurativo. O limite dessa busca da total abstração é o quadro Branco sobre Branco, de Malevtich: o passo adiante seria a tela em branco. Como já observei noutras ocasiões, a tela em branco é o fim da pintura ou o seu recomeço, isto é, voltar a pintar, a reconstruir o espaço fictício, criado pelos pintores a partir do Renascimento. Como se sabe, a invenção da perspectiva introduziu o espaço tridimensional na pintura, na tentativa de aproximála da representação do mundo real, mas, na verdade, criou um espaço ilusório, imaginário, que só se extinguiu de fato quando


Imagens: Adriana Maciel

TRADUZIR-SE

Políptico 4 Sem título, 2006, acrílica s/ tela, 4 x ( 90 x 124 ) cm

Mondrian pintou suas composições estritamente bidimensionais. Mas o fascínio pelo espaço inventado não morreu ali: renasceu nas telas construtivistas de Tatlin e Lissitsky e nos quadros surrealistas, onde adquiriu dimensão onírica. Com esta introdução, pretendo situar, no âmbito da pintura de hoje, os trabalhos de Adriana Maciel, cuja exposição na Galeria 90, no Rio, marca um novo momento de sua reinvenção do espaço pictórico. A reconstrução de um espaço geométrico tridimensional é preocupação desta artista, há bastante tempo, tendo se constituído na marca particular de sua arte. Outra particularidade – coerente com a preocupação espacial referida – é a quase ausência da cor, que só aparece incidentalmente em seus quadros, quando aparece. De fato, o que caracteriza a pintura de Adriana Maciel é a presença constante do branco, como a cor do espaço abstrato. Abstrato porque, embora muitos de seus quadros retratem banheiros, o que ela de fato mostra ali é o espaço inabitado, o espaço-espaço, vazio da presença humana, mas “nosso” espaço, do qual estamos ausentes, o espaço da ausência: solidão. E, essa ausência, Adriana a sublinha quando pinta uma minúscula – mas “real” – mosca, pousada na parede branca de azulejo. O inseto indica

que o espaço é real, embora vazio. Na verdade, a pintora lida com uma contradição, que decorre da crise a que me referi anteriormente, ou seja, a necessidade moderna de eliminar na pintura o espaço ilusório (tridimensional), tendência que Adriana contraria ao pintar seus banheiros vazios e mostrar como real o espaço inventado. Mas nenhum espaço na tela é real, senão a sua bidimensionalidade de superfície branca. Adriana, herdeira da experiência moderna que negou a tridimensionalidade, a perspectiva, a recria com um mínimo de concessão ao imaginário, à fantasia; nada mais banal, intranscendente, que um banheiro. Essa banalidade nega a fantasia implícita na recuperação do espaço tridimensional doméstico. Sonhar é proibido, mas como fazer arte sem sonhar? Na mostra atual, quando o espaço do banheiro desaparece e o que se vê são apenas paredes, Adriana afinal nos revela e revela a si mesma, o que, sem o saber, era a resposta àquela contradição: a invenção de um espaço invisível, de que só vemos a entrada, a qual nos conduz ao que a pintora designou como o “não-lugar”. Foi o modo que encontrou de negar o espaço ilusório tridimensional, usando-o como passagem a um outro espaço, situado além dos truques óticos, já que não o podemos ver. • Continente maio 2006

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AGENDA/ARTES Imagens: Divulgação

A intuição das deusas

Nordeste em aquarelas

As mulheres e suas peculiaridades são o tema da mais recente exposição de Bruno Vilela. Inspirado na arte japonesa de representar belas mulheres – denominada Bijinga, que é também o título da mostra –, o artista busca extrair a essência que, segundo ele, compõe a alma de toda mulher. A Bijinga caracteriza-se pela exploração dos gestos, das roupas, das atitudes; pela preocupação em retratar os costumes de uma época. Apesar de fortemente influenciado pela pintura tradicional do oriente, Bruno coloca o ideal de feminilidade e de amor num contexto próprio, através do qual tenta traduzir sensações com uma pintura forte, sem limites bem definidos entre o que é figura e fundo, marcada por traços que carregam significações e simbolismos múltiplos.

José Goiana comemora 10 anos de pintura com uma mostra na Segundo Jardim

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Arquiteto há mais de 30 anos, responsável por megaprojetos, incluindo shoppings centers e grandes hotéis, José Goiana se descobriu pintor em 1994, exatamente na praia de Toquinho-PE, defronte da Ilha de Santo Aleixo. De lá para cá, não parou mais de exercitar o lado plástico durante os dias de folga. Este mês, Goiana comemora os 10 anos de sua primeira individual, Aquarelas, com uma mostra de mesmo nome na galeria Segundo Jardim. “Não sei como dizer diferente, são aquarelas, uma técnica escassa, difícil de encontrar...”, simplifica o artista. Um clima bem nordestino – cores quentes, litoral, os sombreiros de Boa Viagem, embarcações, acácias e flamboyants – caracteriza a exposição. Ao todo, 25 aquarelas integram a mostra. Desse total, algumas já estavam prontas, desde o segundo semestre de 2005, pois seriam expostas em Amsterdã, na Holanda, numa mostra que acabou não acontecendo. “A galerista pediu que eu desse uma iluminação especial às paisagens para causar o diferencial, já que a mostra aconteceria em pleno inverno europeu, por isso caprichei ainda mais nos já usuais vermelho, amarelo, enfim, nas cores vibrantes. É assim, vibrante, que está a mostra da Segundo Jardim”, conclui ele.

Aquarelas. Galeria Segundo Jardim (R. Solidônio Leite, 62 – Boa Viagem – Recife – PE). Até 30 de maio. Informações: 81.3326.5610. Continente maio 2006

Bijinga. Galeria Dumaresq (R. Prof. Augusto Lins e Silva, 1033, Boa Viagem – Recife – PE). Até 27 de maio. Informações: Tel: 81.3341.0129 / www.dumaresq.com.br / www.brunovilela.com.br

Futebol e arte Uma exposição de arte na qual tudo é futebol. Às vésperas da Copa, essa é a mais nova aposta do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Futebol – Desenho sobre Fundo Verde reúne 19 artistas, sendo nove brasileiros e 10 estrangeiros, em torno de todas as possibilidades que a estrutura de um estádio e a dinâmica de um jogo possam proporcionar. Na exposição, entre outras obras, a tela Maracanã, de Paulo Climachauska, duas telas de Roberto Cabot, a mesa robótica com bola de futebol do americano Serge Spitzer, quatro esculturas de Felipe Barbosa e seis fotografias de Caio Reisewitz. Outras atrações são a instalação sonora Totó Treme Terra, de Chelpa Ferro, e a instalação Camouflage/Gol 1–3, do alemão Olaf Nicolai, onde o público chutará bolas em três simulações de traves de gol. Futebol – Desenho sobre Fundo Verde. Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66 – Centro – RJ). Até 09 de julho. Informações: 21. 3808.2020 / www.ccbb.com.br


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ESPECIAL

Verdade: um chute na pedra A ruptura moderna com o pensamento religioso e o aristotélico teve papel libertário. No entanto, não são poucos os que estão tratando de rever os excessos cometidos em nome da relatividade e da subjetividade Daniel Piza

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Images.com/Corbis

ESPECIAL

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verdade anda meio fora de moda. Não, não me refiro ao abuso de mentiras por parte dos políticos, nem mesmo ao cinismo que parece crescer nestes tempos que se dizem pós-utópicos. Tampouco estou pensando na internet como a central de boatos que em tantas ocasiões ela acaba sendo. Nos campos de conhecimento, da filosofia à estética, é que o conceito tem sido evitado como o demônio. Uma das explicações é o predomínio do pensamento relativista nas universidades do mundo todo, especialmente a partir dos anos 60. Claude Lévi-Strauss certa vez disse que Montaigne era o precursor dessa mentalidade, ao dizer no ensaio “Dos Canibais” que não podemos julgar outra cultura pelos critérios da nossa, que é preciso “suspender o juízo” diante do que não conhecemos. É, mas Montaigne não estaria de acordo com um relativismo que, de tão exacerbado, termina sendo uma espécie de absolutismo – o relativo tratado como absoluto. “Não existem fatos, apenas versões”, a frase de Nietzsche, é o resumo dessa teoria. Nietzsche, a propósito, escreveu também que “palavras são máscaras”, e esses dois aforismos dão idéia da influência poderosa que ele exerceu sobre a mente moderna, como sobre o estruturalismo na teoria literária. Para essas correntes, que inclui autores tão díspares como Heidegger, Wittgenstein e Derrida, não existe verdade e, pior, nossa linguagem é um instrumento que a afasta. A ruptura moderna com o pensamento religioso e o aristotélico teve papel libertário, pois afirmou a realidade do indivíduo e contrariou o moralismo que pressupõe verdades inerentes à natureza, sobretudo a humana. As artes, as idéias e o comportamento sofreram agudas transformações a partir do último quarto do século 19, causando aquilo que Robert Hughes chamou de “choque do novo” e o poeta W.B. Yeats descreveu da seguinte maneira: the center cannot hold – e a fragmentação tomou conta, ainda que tantos tenham tentado erguer novos sistemas fechados que evitassem a desagregação social e psicológica. Ainda vivemos sob impacto dessa perda do centro. No entanto, não são poucos os que estão tratando de rever esses muitos excessos cometidos em nome da relatividade e da subjetividade. Isaiah Berlin, o grande ensaísta de anglo-russo, estudou tais questões a fundo; para ele, um pensamento como o de Montaigne é mais bem descrito como perspectivista, e não relativista, porque afinal ele não diz que não possam existir campos de consenso e relações de causa e efeito. Neurocientistas como Steven Pinker, apesar de seu moralismo com pinta de “darwinismo social” (homens, por exemplo, seriam mais infiéis por predisposição genética), analisaram em livros como The Blank Slate a suposição aburda das chamadas ciências humanas de que o indivíduo é um papel em branco a ser preenchido pelos valores da sociedade, desprovido de inclinações e restrições biológicas.

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ESPECIAL Imagens: Reprodução

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Wittgenstein teorizou sobre o afastamento entre linguagem e verdade

Foi das chamadas ciências naturais, por sinal, que acadêmicos das outras áreas derivaram muitos desses conceitos. A Teoria da Relatividade de Einstein, por exemplo, foi tomada como base para a afirmativa de que “tudo é relativo”, a qual Einstein sempre refutou; ao contrário, sua teoria é de um classicismo inegável, uma visão do cosmos como elegantemente inteligível por uma simples equação. Atualmente, a moda é tomar a física quântica como explicação ou metáfora das coisas mais esdrúxulas – até o “amor quântico” já foi inventado – apenas porque detecta uma incerteza nos comportamentos subatômicos. Os exemplos se multiplicam. São raros, por ironia, os cientistas que concordam com o hiper-relativismo que emana de quase todos os sociólogos, antropólogos, comunicólogos, filósofos e psicólogos pós-modernos. A maioria dos pesquisadores tem enorme respeito pelos fatos, ou, para ser mais exato, pela força autônoma de muitos acontecimentos que não dependem de nossa vontade pessoal ou coletiva. Não são empiristas no sentido de acreditar que a história se faz apenas de fatos, dissociáveis das idéias e dos signos. São, em suma, céticos. Ceticismo não é duvidar de tudo, caso em que não veríamos nexos nem propósitos em nada; como disse Machado de Assis, os óculos são feitos para os narizes, e não o contrário. O Continente maio 2006

cético é o perspectivista; é quem conhece a tendência humana à ilusão e se acautela. Não avançamos muito nessa questão desde que Samuel Johnson, indagado sobre a realidade das coisas e de si mesmo (como você sabe que existe?), chutou uma pedra, demonstrando que ações produzem conseqüências. Bertrand Russell, no célebre debate “Por que não Sou Cristão”, em que se mostrou o herdeiro do cético David Hume, disse que um daltônico pode não ver azul onde a maioria vê, mas que isso ao menos oferece um ponto de partida sobre a realidade concreta. E na famosa discussão narrada por David Edmonds e John Eidinow, em O Atiçador de Wittgenstein, o anti-idealista Popper se viu obrigado a pedir a Wittgenstein que tomasse cuidado para não machucar ninguém com o atiçador de lareira que brandia, enquanto argumentava – e então Wittgenstein decidiu abandonar a sala apenas 10 minutos depois do início. O jornalista H.L. Mencken costumava dizer que “aquele que se gaba de só dizer a verdade é um sujeito sem nenhum respeito por ela”. Estava, claro, se referindo aos fatos que teimamos em não aceitar, não à verdade final sobre todas as coisas. Essa Verdade, com V maiúsculo, não existe. Toda verdade é um dogma em potencial. Toda mentira, também. Os políticos que o digam. •


ESPECIAL

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N Deus mede o mundo com o compasso, de uma Bible Moralisée, 1250

os limites da percepção e da imaginação, a verdade é conquista da razão ou atributo intrínseco do real? O outro lado da Lua, o inverso da moeda, os sons que não podemos ouvir, o espectro da luz fora da visão, a matéria escura do universo. Isso de fato existe, possui essência enquanto não se mostra? Depois que se descobriu que a objetividade depende do sujeito, e até no reino subatômico há segredos para quem olha – como no princípio da incerteza de Heisenberg, na física quântica –, a crença na verdade tem decaído a um ritmo que assumiu ares de crise. Os argumentos fortes dos detratores da verdade encontram respaldo numa realidade polissêmica, na oferta maciça de informações contraditórias que caracterizam o território da pós e da hipermodernidade. Na poeira do multiculturalismo identidades se inquietam, tradições balançam, e os conceitos, expostos, ficam em xeque. O risco, recordando Chesterton, não é que as pessoas não acreditem mais em nada – é o inverso, que se acredite, a partir daí, em qualquer coisa. Quando o mundo parece arquitetado para o sujeito, os objetos são signos na busca de linguagens que traduzam a realidade. É da trajetória dessa busca que trata o livro Verdade: uma História, de Felipe Fernández-Arnesto, que nos serve de roteiro para uma viagem pelos caminhos da compreensão.

Depois que se descobriu que a objetividade depende do sujeito, e até no reino subatômico há segredos para quem olha, a crença na Verdade tem decaído a um ritmo que assumiu ares de crise

Uma viagem no tempo Fábio Lucas

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ESPECIAL A Verdade que se sente – O nosso primeiro contato com a verdade é um pendor imediato à ligação sujeito-objeto. Falamos da verdade como substância, e como algo íntimo: “é como sinto”, podemos dizer no meio de uma discussão, se não podemos duvidar daquilo. A técnica não despreza a reação rústica. O “detector de mentiras” não capta uma única mentira. Seu objetivo é registrar no aparelho a crença emocional de quem fala naquilo que diz. É uma prova de que, até para a ciência, a emoção é parte integrante da verdade. O autor afirma que a “verdade que se sente” pode ser impeditiva ao conhecimento, um obstáculo epistemológico, como classificaria Gaston Bachelard. Um exemplo seria o monismo pré-socrático: Parmênides prega que “nada há e nada haverá além do que é”, ou seja, que o todo é uno, indivisível. Muito mais tarde Lavoisier completaria: “Na natureza nada se cria, tudo se transforma” – uma versão racionalizada da metafísica grega. O desejo humano de ordem pode explicar a preferência pelo universo monista, coeso, semelhante a um regime totalitário em que a visão de mundo definitiva – da “segurança uterina contra a incerteza”, compara o historiador – choca-se a todo instante com o caos e a dúvida. Colado ao monismo está o dualismo, na raiz do exercício de conciliação que para o taoísmo é o equilíbrio, e, para os pitagóricos, a harmonia. Ocorre que duas metades sempre coerentes também denotam a baixa necessidade crítica, ou quem sabe, a pequena capacidade de verificação. Pode-se supor que o conforto de um mundo A Escola de Platão, Jean Delville, Musée d’Orsay, Paris, 1898

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dividido entre o bem e o mal – ou o yin e o yang – é muitas vezes traço conformista, sintoma de insuficiência do conhecimento diante da verdade que parece mais inalcançável quanto maior o acúmulo de informação. A simplicidade do cosmos monista é atrativo costumeiro das religiões. É a fonte regular da qual tudo brota e para a qual tudo volta, alegada imagem da pureza, identidade e comunhão suprema do que foi, é e será. “O grande todo que tudo integra”, em versão cifrada, ou “a verdade divina”, na forma direta. Dos Upanishads à Bíblia, a evocação da indiferenciação requer o esquecimento das diferenças e a imersão na plenitude do uno, para o alcance da “iluminação”. A integração possível entre o monismo e a ciência é representada por Fritjof Capra, físico que se tornou “suscetível à mística da unidade cósmica”, segundo o historiador Felipe Fernández-Arnesto. Ele também afirma que o monismo “é uma dessas idéias antigas que nunca deixaram de ser modernas”. Uma espécie de verdade imutável, como o conceito que professa. Se o monismo foi retomado pela física quântica e pela relação entre massa e energia, vale recordar que o caráter sistêmico é minimizado em detrimento da unidade intocável, pondo a razão num beco sem saída. Por isso é que, como sustenta Arnesto, “a ciência quântica não autorizou os cientistas a serem místicos, mas encorajou o misticismo” – porque este é o produto usual do monismo. Além disso, quem sabe foi mais pelos vazios que criou do que pelas descobertas que abalaram o alvorecer do século passado: o quanta é um pacote de dúvidas, e não de últimas verdades. Para o autor, a “verdade que se sente” não funciona em nossa época porque não compartilhamos, como antigamente, uma visão de mundo coerente. Convivemos hoje com a incoerência. O que ele deixa no ar é que as visões compartilhadas pela maioria foram justamente o alvo das revoluções científicas (as grandes verdades começam como blasfêmias, escreveu Bernard Shaw). O “sentimento” que guia o senso comum não puxa muito pelo intelecto dos velhos sábios monistas: basta pensar que “tudo é uno” – e o real fica no seu lugar, mesmo que a “verdade sentida” perca os vínculos com a realidade. Talvez seja causa do êxito da sabedoria mística o fato de que a razão não lhe é necessária: a realidade do corpo é incômoda para a alma, a existência do mundo não importa à ordem – monista ou dualista – do universo.


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Oráculo de Delfos, na Grécia

ESPECIAL

A crença de que a verdade é uma propriedade transcendente à existência humana é responsável pela ocorrência não só das aparições, como do xamanismo na história das sociedades. Para Fernández-Arnesto, o xamanismo – a possessão por espíritos – é quase tão usual quanto os sonhos. Seu ritual pode incluir estados de êxtase, provocados ou não por drogas, e depende de aceitação social (como os oráculos) para difundir-se. Com o mote da expressão de Cézanne – a “verdade na pintura” –, Felipe Fernández-Arnesto aproveita para tangenciar a “verdade poética” da arte, que pode não se expressar por palavras. Os grandes pintores também nos passam segredos de um mundo proibido. Essa verdade ideal foi copiada, por exemplo, da teoria platônica das formas, para o Renascimento. Uma imagem comum é a de musas inspiradoras para os poetas – noutra rota disponível à verdade que nos é dita. A ascensão de valores que primam pela busca da liberdade e o desenvolvimento científico e tecnológico leA Verdade que nos é dita – Desembarcamos agora vam-nos à última parada de nossa breve caminhada: à no Sudão para ver uma tribo que dá veneno a uma gali- praça da inteligência e da percepção. nha como forma de chegar à verdade. Eis uma mostra de A Verdade em nossa mente – A crença na razão é nossa credulidade, e da insegurança que temos na hora de tomar decisões. É mais fácil esperar e ver se o veneno tão forte que pode prescindir da realidade. Para Witt– a vontade do oráculo – mata a galinha ou não, e se a genstein, a tarefa da lógica é investigar a natureza das coiafirmação que lhe foi feita recebe a confirmação que sas, sem se importar se algo está acontecendo ou não. Sua vantagem, para Fernández-Arnesto, é que ela depende de desejamos. Faz milhares de anos que estamos a escutar os orá- nossos recursos, mas está sujeita a testes externos, situanculos. O de Delfos, da tradição grega, é o mais famoso. do-se entre o ceticismo e o entusiasmo. O desvio se dá quanSua hierarquia, não por acaso, presta-se à jurisdição dos do a razão não apenas identifica, como produz verdades, dirigentes: “A verdade transmitida de um outro mundo fugindo do conceito platônico segundo o qual os pensasempre vem com fios ligados a manipuladores humanos, mentos são tão nobres que não poderiam ser invenção hué inseparável de uma autoridade conferida por consen- mana. Neste ponto em que cria verdades, emerge a tentação totalitária, muitas vezes associada à idade científica. timento e imposta pelas elites”, observa Arnesto. A razão aporta para dispensar os sacerdotes, os xaHá de fato uma confiança subsistente em todas as somãs, os mapas astrais e os textos sagrados. Mas ela já está ciedades, de que o acesso restrito à verdade necessita de mediações. Por outro lado, se aprofundamos a tendência presente na lógica oriental, precursora de uma frase bem indicada pelo historiador, topamos com uma insegurança conhecida dos lógicos: “Um cavalo branco não é um cacoletiva na base do recurso às verdades que caem dos valo”. A pergunta filosófica subjacente é se a aplicação de céus. A insegurança se abraça à ignorância para legitimar um termo geral a algo particular se refere ao que existe. Percebemos o que existe através dos sentidos, e aí os manipuladores do rito na continuidade do jogo e na esbarramos no fato de que os dados transmitidos por manutenção do poder. A verdade colhida de fonte sobrenatural requer al- nossos sensores nervosos são codificados e lidos pelo céguém autorizado a traduzi-la: um mensageiro da segu- rebro antes de virarem sensações. Em frações de segunrança. Para Arnesto, é importante que quem acredita do, a verdade em nossa mente emerge antes que tenhaaprove a autoridade do mensageiro, pois o valor do que é mos tempo de fazer uso da razão. “O ponto de partida e dito vem do apelo à objetividade – ou da subjetividade o princípio norteador da ciência é a descoberta de que nossa informação sobre o mundo só vem através de nosdos outros, atalho objetivo para muita gente. Continente maio 2006

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ESPECIAL

sos sentidos”, resume FernándezArnesto. Para David Hume, a percepção se vincula ao pensamento de maneira irredutível, interferindo no modo como descobrimos e formamos a idéia que temos de nós mesmos. No limite, analisa Arnesto, “para alguém que crê na veracidade dos sentidos, a verdade final é que os dados são as únicas realidades que podem ser comprovadas: não há nada mais a perceber”. O pragmatismo e o existencialismo também foram “fatais para a verdade”, no entender de Arnesto, relativizando-a. Sem falar na influência de filósofos como Nietzsche, “o mais autoconfiante dos homens”, que resolveu o problema da verdade negando que ela existia. A lingüística pôs ainda mais dúvidas no meio do caminho. “Há uma espécie de Teoria da Relatividade em seu núcleo”, compara. A linguagem se revela um fim em si mesma, incapaz de roçar a realidade. “Para um filósofo que procura a verdade, as limitações da linguagem parecem um obstáculo fatigante”, desabafa o historiador. Segundo ele, a lingüística, “emudecedora e entorpecente”, retrata os pesquisadores da verdade com escárnio, porque não há sentido objetivo num discurso que será sempre subjetivo. E regressamos ao ponto de partida: a verdade é conquista da razão ou atributo intrínseco do real? Num mundo de fragmentos e aparências, carências e fios soltos, a verdade é necessária, por mais redundante, contraditória, até mesmo ilusória que seja. Caso a dúvida se confirme como “a verdade de nossos tempos”, não importa: vamos continuar procurando. • Continente maio 2006

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A Boca da Verdade, embutida no pórtico da igreja de Santa Maria in Cosmedin, Roma, séc. 16

A possibilidade da Verdade O que parece é que os filósofos atuais, em geral, encaram a Verdade com mais humildade, falando em níveis de Verdade Eduardo Maia

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ara o senso comum, a questão da possibilidade humana de ter acesso a algum tipo de verdade pode parecer bastante simples: se uma informação acerca de um fato pode ser confirmada pela experiência, dizemos que tal informação satisfaz o critério de veracidade. Não obstante, dentro de uma perspectiva filosófica, essa discussão assume um caráter bem mais complexo e polêmico. Em seu novo livro Verdade: um Guia para Perplexos, o filósofo de Cambridge Simon Blackburn transforma a discussão sobre a possibilidade de acesso à Verdade num campo de batalha entre dois “tipos” de filósofos – os absolutistas, que “descenderiam” de Platão; e os relativistas, que seguiriam os passos do sofista Protágoras. Os primeiros acreditariam ser possíveis a razão e a objetividade, o conhecimento universal e seguro. Entre eles estariam, além de Platão, nomes como Santo Agostinho, Espinosa, Kant ou Husserl. Na outra trincheira, ao lado do sofista, estariam nomes como Berkeley, Hume ou Nietzsche, que acreditavam ser impossível verificar se os objetos de nossa consciência têm uma existência independente de nós.


ESPECIAL A questão da possibilidade de acesso à “coisa-em-si”, independentemente das afecções humanas, tem relação direta com o conceito de verdade que buscamos. Para ilustrar essa discussão, o desenvolvimento das idéias de alguns filósofos sobre o tema pode nos dar um caminho de exploração. O filósofo Francis Bacon (1561), por exemplo, negava que a capacidade sensorial do homem pudesse ser a medida de todas as coisas. Para ele, tanto as percepções sensoriais quanto as mentais são relativas ao homem mesmo e não ao universo que lhe é exterior: “A compreensão humana é como um espelho ondulado recebendo os raios das coisas, que, por conseguinte, as distorce e corrompe”, escreveu. John Locke imaginava a mente humana como uma folha em branco – experiência dos sentidos escreveria nela de múltiplas formas, até que a sensação gerasse memória, e a memória, idéias: “Nada existe na mente que não haja estado primeiro nos sentidos”, quer dizer, para ele a mente tinha acesso direto ao mundo empírico e o problema da verdade estaria resolvido. Já para George Berkeley, “a matéria só existe como modalidade da mente”. Todo o nosso conhecimento sobre qualquer coisa é meramente a sensação que temos dela, e as idéias derivadas dessa sensação. Um ente é meramente um feixe de percepções. A questão da verdade aqui se torna bem mais complexa, pois toda matéria passa a ser uma condição mental. Um terceiro filósofo que deu prosseguimento a esse debate foi o escocês David Hume. No seu Tratado sobre

a Natureza Humana, afirmou: “A mente, assim como a matéria, só nos é conhecida através da percepção”. Aqui, o empirismo radical do filósofo situa a verdade fora das possibilidades humanas. Para ele, a mente não é uma entidade que percebamos, percebemos meramente idéias, memórias, sentimentos etc., e essa série de coisas é que chamamos “mente” ou alma, mas não existiria, para Hume, tal entidade por trás dos processos mentais. Pensadores como Kant e Husserl, na trincheira platônica, tentaram resgatar o conceito apodítico de verdade (universal e necessário). O apriorismo kantiano e a fenomenologia de Husserl talvez tenham sido as últimas grandes defesas dessa espécie de verdade absoluta, independentemente de perspectivismos. O livro de Simon Blackburn aborda essa discussão sob o ponto de vista de vários outros filósofos e escolas, chegando a autores recentes como Davidson e Richard Rorty. A discussão está longe de ser resolvida: o que parece é que os filósofos atuais, em geral, encaram a verdade com mais humildade, falando em níveis de verdade, ou como escreveu o próprio Blackburn: “Talvez, os filósofos e as culturas tenham pensado na verdade de algum modo específico e grandioso (uma correspondência direta com a realidade). E agora temos que aprender a pensar nela como algo diferente e menor”, tornando o processo político um palco de canhestras operações de ilusionismo. Se ao pobre contribuinte se dá o lacre da urna, do leitor se confisca a chave dos cofres públicos... •

O filósofo escocês David Humme

Capa do livro Verdade: um guia para perplexos, de Simon Blackburn

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ESPECIAL

A literatura não é um discurso sobre a Verdade; ela demonstra que, ao se dramatizar a Verdade, a Verdade pode estar no drama, e não na Verdade ela mesma Artur A. de Ataíde

A Verdade em movimento H

Detalhe do vaso: Ulisses e as sereias, cena descrita na Odisséia de Homero

á algo nos textos antigos, fundadores de culturas inteiras, a exemplo dos de Homero, que não cessa de exercer fascínio nos leitores de hoje. Uma grande tradição oral, da qual são meros vestígios, absorvia, numa totalidade única, indistinta, aspectos da realidade que à própria história coube dissociar: os atos de Ulysses diziam respeito, simultaneamente, à estética, à ética e à religião de toda uma sociedade, chegando a repercutir, por extensão, mesmo em suas esferas práticas, como a moral e o direito. Na Grécia Arcaica, a verdade – uma teia ubíqua de mitos – irmanava ordem universal e práticas sociais; e a verdade ouvida, que hoje lemos em Homero, era a verdade vivida. Se ainda é possível, como parece, relacionar literatura e verdade, dois conceitos em si já tão problemáticos, em que medida nos pode servir o exemplo grego? As convicções religiosas de Dante ou de San Juan de la Cruz, bem como os ideais aristocráticos de Eliot, as mitologias de Yeats ou o panteísmo de Hölderlin, não constituem princípios metafísicos incontestes, compartilhados por todos; não regem cada uma das várias esferas de nossa vivência cultural; e se, por um lado, podem se elevar à condição de verdade enquanto objetos de alguma fé individual – e aqui não vão além de uma verdade pessoal, subjetiva –, por outro, convivem com a afronta incontornável de os reputarmos pura invenção humana, pura quimera, ficção. E essa afronta tem uma causa: a pretensão de se formular um pensamento, uma proposição, que se ajuste perfeitamente à realidade de fato, à realidade das coisas tal como são, não foi levada a termo nem por religiosos, nem por poetas, cientistas ou filósofos. São castelos de ar. Essa parece ser a verdade de hoje, humilde. É por intermédio dessa verdade que se revela o paradoxo da nossa relação com os primeiros gregos: invejar-lhes a certeza e saber que estavam, todos, enganados. Parece, portanto, que há um beco sem saída: qualquer discurso sobre a verdade, hoje, está fadado a uma espécie de “quase-morte”. Como diria Fernando Pessoa, nossas verdades são, cada uma, um “nada que é tudo”.

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Mais que no caráter ficcional ou E então nos perguntamos: não de uma obra – questão cada vez como poderia a literatura ser mais espinhosa –, a verdade vivida verdadeira, se falar da verdade na literatura está em nos submeterjá implica hoje algum fracasmos a um destino – de alguém, de so? Mas tal pergunta passa uma coisa ou das coisas –, cujo senmuito ao largo do que seja a tido último encontramos ao virar da verdade literária. Literatura última página. Nesse momento, não é um discurso sobre a veraquele destino, na medida em que dade. Ela demonstra que, ao chega a um fim, na medida em que, se dramatizar a verdade, a verao contrário do nosso próprio, deidade pode estar no drama, e xa-se apreender como um todo, pernão na verdade. mite-nos alcançar sobre ele mesmo Algo une a proposição filouma espécie de inteligibilidade, uma sófica e a obra literária: ambas inteligibilidade irredutível a uma são artefatos de linguagem. proposição única, mas, nem por Uma proposição aguarda sua isso, menos aclaradora. confirmação ou refutação pelo O poeta W. B. Yeats, por John Singer Sargent Ler, nesse caso, é se enredar estado real das coisas. Ao lê-la, resta-nos optar por um ou outro de dois caminhos bem numa rede de circunstâncias como esta, rica e complexa, delineados: é falsa ou verdadeira? A experiência literá- humana e inumana, em que vivemos, e que, ao mesmo ria é algo bem diverso. Sob os olhos de um leitor, um ro- tempo, nos constitui e rege em conversa constante. Mas mance ou um poema são enlaçados por uma memória, há uma diferença essencial: há um fim. Essa espécie de por uma visão de mundo, por consciências e incons- Juízo Final, que não podemos viver em vida a não ser ciências; a abertura da experiência literária para essas re- dessa maneira – ou seja, perfazendo como nosso um desalidades faz da leitura um labirinto móvel, de caminhos tino artificial –, permite-nos tomar em mãos, como um inumeráveis. O texto literário é acolhido, por vezes, por todo abarcável, a experiência sem limites, ao menos para uma abertura ainda maior que aquela que reservamos os vivos, de viver o tempo, de estar enredado na vida. cotidianamente ao próprio real, eivado de automatis- Dramatizar uma qualquer verdade, um destino, termina mos, de caminhos necessários e inquestionados. Por por afirmar algo que ninguém sabe ao certo o que é; o outro lado, ao transferir, do cotidiano para um poema, drama afirma algo tacitamente, sem dizer seu nome. por exemplo, a atenção dos cinco sentidos, o leitor subs- Uma verdade experiencial, não proposicional. É um trabalho sem sentido, dirão alguns, como o de titui a matéria caótica e sem sentido do mundo por um tecido sonoro que, posto em movimento às custas de Sísifo, que, condenado a rolar eternamente, montanha um cúmplice inumano – a sucessão temporal –, o per- acima, uma pedra maior que ele mesmo, o faz tomado meia de correspondências, rimas e cadências, humani- sempre de uma certeza inabalável, e assim suspende, por zando-o. Enfim: literatura é, sim, uma experiência com poucas horas que sejam, a certeza absoluta do fracasso fia linguagem, mas o ato de lê-la ou escrevê-la é uma ex- nal, quando uma espécie impessoal e implacável de deus periência permeável, receptiva a esse amálgama relati- vem trazer tudo novamente encosta abaixo. Cada invesvamente confuso, repleto de claro-escuros, a que cha- tida nossa rumo ao topo é uma incursão nos terrenos de mamos vivência. É uma forma de acessá-lo, mas com a certa fé, laica ou não; é viver a crença. A esperança é a de vantagem de ser desencadeada e, de alguma maneira, que possamos entender melhor, assim, o nosso destino estar circunscrita a um objeto que cabe em nossas mãos. de, antes de tudo, fundamentalmente crentes; é a espeEssa complexidade e riqueza do fenômeno literário já rança de que o romance jogue luz sobre o não-romance parece, por si só, desautorizar que se tomem as obras que vivemos. Se os primeiros gregos reencontravam a verdade e o por meras proposições. Mas há outro aspecto tão essencial quanto esse, e que aclara em definitivo o caráter mundo na literatura, para nós, o literário é o meio de conhecer, viver e ampliar a verdade. • não-proposicional da verdade literária.

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A Verdade na Política Uma enorme distância separa a ciência política da prática política Alberto Oliva

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a era da fetichização da imagem, as entranhas da vida política de sociedades como a brasileira estão cada vez mais expostas à execração pública. Só que as justas críticas dirigidas a legisladores e governantes precisam ser complementadas com a percepção dos vícios dos processos políticos. Na política, mais que alhures, é difícil estabelecer um tipo perfeito de correspondência do que se diz com o que é. Isso não significa que o discurso político esteja dispensado de se mostrar em conformidade com a realidade. Por mais que a prática política seja, por exemplo, radicalmente diferente da atividade científica de pesquisa, não é admissível que se torne o reino do verbalismo promesseiro, da mentira deslavada e do desrespeito aos condicionantes conjunturais e estruturais dessa insensível Grande Rocha que chamamos de realidade. As falas e discursos dos políticos têm se esmerado em contornar os balizamentos do mundo real. Talvez por temerem que a realidade, infensa a negociações e conchavos, desminta de forma taxativa o que retoricamente proclamam sobre a macroeconomia, a educação, a saúde, a segurança, a previdência e outros pedregosos desafios. A prática política não se vê compelida a perseguir, como a filosofia e a ciência, a verdade, a fundamentada compreensão da realidade; mas isso não lhe dá o direito de desconsiderar e manipular fatos por meio de vazias e prestidigitadoras retóricas. A falta de veracidade e autenticidade no discurso político causa enormes estragos nas sociedades que tendem a acreditar que as soluções de muitos de seus aflitivos problemas dependem de salvadores da pátria e não de reformas graduais e profundas que façam suas instituições funcionarem com crescente eficiência. O grau de verdade presente no discurso político só aumentará quando o eleitor rechaçar programas promesseiros e verves salvacionistas, quando chegar à conclusão de que a política – domínio das tomadas de decisão sobre problemas coletivos – requer soluções objetivas calcadas em conhecimento aplicado por líderes probos e sábios. Por não existir uma ciência da administração pública, é forte a tendência a ideologizar os problemas para propor soluções demagógicas. Em países com instituições fracas ou vulneráveis, a falta de controle sobre a ação dos governantes gera,


ESPECIAL

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A falta de controle sobre a ação dos governantes gera mentiras em profusão

mais que discursos falsos, mentiras em profusão. E a mãe de todas as mentiras é a que acintosa e grosseiramente tenta esconder a cloaca da corrupção. Com o fito de conter as águas imundas que passam pelos dutos da corrupção e deságuam em plena praça pública, os governantes negam evidências acachapantes; passam a mentir descaradamente, tornando o processo político um palco de canhestras operações de ilusionismo. Se ao pobre contribuinte se dá o lacre da urna, do leitor se confisca a chave dos cofres públicos... O que quer que hoje desponte, com base na evidência disponível, como verdade pode amanhã se revelar falso. Até se encontrar um cisne negro na Austrália, supunha-se corretamente que todos os cisnes tinham a mesma cor. Por operar em cenários cambiantes, a política está muito mais sujeita a constatar que verdades de ontem são hoje falsidades. O esbulho é tentar ocultar fatos, sustentando mentiras em cadeia. O espetáculo deprimente da política começa com as manobras – eticamente condenáveis – dedicadas a persuadir a qualquer preço, por meio de promessas que não têm como ser cumpridas, e culmina com a propaganda enganosa paga com o dinheiro do contribuinte. Existe maior desrespeito pela verdade? A verdade na política deixa de ser alcançada tanto pela visão equivocada da realidade, pelas falsidades proclamadas com loquacidade ilusiva, quanto pelo marketing que cria sublimações da dura realidade no subconsciente do eleitor. A nova retórica política explora cada vez mais o fascínio exercido pela imagem sobre as consciências intelectualmente desarmadas. O crescente domínio que o ver exerce sobre o pensar torna as disputas políticas um confronto entre as visões que os marqueteiros constroem sobre a sociedade de modo a manipular o imaginário de cada um de seus segmentos. O fosso que se abre entre as propostas mágicas de solução dos problemas sociais e a dura realidade resistente às boas intenções provoca, infelizmente, não o descrédito dos que exercem circunstancialmente o poder e, sim, o da política. Para tentar ser conquistada, a verdade requer postura de respeito aos fatos. Só que a luta pelo poder se desenrola de forma tal que as chances de conquistá-lo se tornam maiores quando se propõem, por meio de verbosidade ardilosa, visões da

realidade que desconsideram os sacrifícios requeridos para que os problemas estruturais da sociedade sejam adequadamente enfrentados. Eis a tragédia da política: em muitos países emergentes os discursos com menor apreço pela realidade são os que mais granjeiam apoio, os que têm maior coeficiente eleitoral. Fica a impressão de que a despreocupação com a formulação de soluções objetivas e viáveis é que dá força ao tipo populista de discurso político. Quando a oratória sedutora e fascinante deixa de respeitar as restrições da realidade e consegue conquistar as consciências, fazendo promessas que sabidamente não têm como ser cumpridas, comete sério deslize ético. E se, depois, ao galgar o poder, adota práticas corruptas, complementou a “obra”, transformando a falta de ética em crime tipificado. Em que pese exibirem pouco ou nenhum conhecimento sobre a sociedade que pretendem gerir e até transformar, os discursos políticos ostentam a empáfia de “donos da verdade”. Conseguem enganar os reféns de carências materiais e os que acreditam que com vontade política se superam desequilíbrios estruturais. Para que a verdade avançasse no campo da política, os legisladores e administradores teriam de ser avaliados, como qualquer profissional, por sua performance e considerados demissíveis a qualquer tempo por mau desempenho. A ausência de veracidade e autenticidade no discurso político é também causada pelo eleitor que apóia promessas irrealistas dos candidatos e que depois cobra dos governantes o que deveria saber que não têm como ser posto em prática. Mesmo que a verdade sobre alguma coisa tenha sido na ciência alcançada, não se tem como saber que o foi enquanto a pesquisa prosseguir. A enorme distância que a separa da ciência não dá à prática política o direito de se tornar o cenário das inverdades institucionalizadas e das mentiras repetidas com teatralização cínica. Junto com o empenho de se respaldar em verdades, a política precisa de projetos realistas voltados para o aprimoramento da funcionalidade institucional da sociedade. A verdade na política se manifesta quando praticada com honestidade, quando seus líderes, com credibilidade, propõem medidas e reformas que concorram para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. • Continente maio 2006

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Pascal

Pascal, Descartes Na história do Pensamento francês, os opostos dialogam e se complementam Dominique Descotes

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duo Pascal-Descartes é comparado a um desses velhos casais que duram desde sempre, mas que vivem em eterno conflito. Há alguns anos, um autor dramático imaginou um diálogo entre Pascal e Descartes, no qual expunha, um após outro, todos os temas de suas filosofias respectivas, o que sublinhava o que esses dois irmãos inimigos tinham de imcompatível e, de uma certa forma, não deixava de ter um certo interesse pedagógico. A realidade histórica é sensivelmente diferente. Se é verdade que Pascal e Descartes encontraram-se duas vezes, se eles com efeito discutiram sobre um ponto da Física, sobre a possibilidade da existência do vazio, jamais houve entre eles alguma querela, e apesar de não

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concordarem sobre pontos fundamentais da filosofia, Pascal expressou no seu opúsculo O Espírito Geométrico toda sua admiração pelo gênio cartesiano. Mas foi instaurada a tradição de se fazer oposição rigorosa entre essas duas figuras maiores da literatura e do pensamento clássico. Todos os dois serviram de exemplo do espírito francês. Entre as duas guerras, por exemplo, um filósofo hoje um pouco esquecido, Jacques Chevalier, pensava opor ao progresso julgado pernicioso dos filósofos germânicos estes dois pensamentos de Descartes e de Pascal, que lhe pareciam fundamentalmente nacionais, e, no entanto, muito mais saudáveis. Talvez sua oposição seja mais significativa do espírito francês do que


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Descartes

e o gênio francês eles, à parte. Instaurou-se, na cultura francesa, a tradição de se posicionar em relação a esses dois escritores, geralmente, com tanta força em favor de um que se estabelece distância do outro. A adesão a um vem, geralmente, junto a uma violenta recusa do segundo. Paul Valéry, na sua célebre Variation sur une Pensée de Pascal denuncia a arte insidiosa da retórica prosélita no autor de Pensées e faz, ao contrário, o elogio ao método cartesiano. Mesmo na filosofia atual essa oposição ressurge como a serpente do mar sob formas sempre diferentes. Quer seja para dizer que a teoria pascaliana da linguagem é uma contestação interna da de Descartes ou que a ontologia ou a teoria de Descartes é subvertida pela espiritualidade pascaliana, volta-se sempre ao mesmo ponto: o processo em conciliação não finaliza nunca, e o juiz de paz que quisesse reconciliar este casal teria muito trabalho.

Por que, malgrado sua oposição, os dois puderam ser tomados como modelos do espírito francês, ou, como escreve um biógrafo de Pascal, do gênio francês? Sem dúvida, em primeiro lugar, porque eles são, todos os dois, escritores completos. As letras francesas abundam de autores especialistas: d’Alambert, dizia Diderot, era apenas sábio; Balzac é romancista, Rimbaud poeta, e todos os dois geniais; mas fora isso? Eles são excelentes no limite de sua arte, mas vivem estreitamente rodeados dela. Pascal e Descartes têm em comum, como diria Paul Claudel, o domínio da totalidade da cultura de seu tempo, tanto do lado científico quanto das letras e da filosofia. O que permite a todo mundo achar num e noutro um reflexo de suas preocupações ou dos seus interesses. Quer abordemos Pascal do ponto de vista moral, com as Provinciales, da pesquisa religiosa com o Memorial e as Pensées, ou da geometria com o Triângulo Aritimético, Continente maio 2006


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Pascal e Descartes têm em comum, como diria Paul Claudel (foto), o domínio da totalidade da cultura de seu tempo, tanto do lado científico quanto das letras e da filosofia

encontramos nele sua justificativa, e cada um desses domínios conduz insensivelmente o leitor a todos os outros, oferecendo-lhe uma via de acesso familiar e uma abertura em direção aos domínios que lhe eram desconhecidos. Quantos leitores abordaram Descartes na perspectiva das meditações metafísicas, e foram, em seguida, conduzidos à moral, à dióptrica ou à cosmologia. Pascal escreve que a falha dos especialistas, geómetras ou homens de guerra é a de sempre tomar o leitor por um teorema ou um lugar forte a tomar. A universidade é, tanto nele como em Descartes, uma forma de generosidade na recepção do leitor. Tanto é assim que seu segundo ponto em comum é o fato de serem praticamente criadores em todos os domínios que são abordados. À satisfação de ver abrirem-se perspectivas, acrescenta-se a perspectiva de segui-los no caminho da descoberta. Desse ponto de vista, eles oferecem um prazer que, apesar de todo interesse que apresenta a Encyclopédie, não poderá jamais oferecer um Diderot que é, nas ciências, apenas um compilador. E basta ler o que escreve Voltaire, outro ilustre representante do gênio francês, sobre Wallis e Newton, para descobrir nele – uma vez não é costume – o lado emocionante de uma galinha que teria achado um telefone. Ao que é preciso acrescentar que, qualquer que seja sua respectiva lenda, Descartes bem como Pascal apresentam-se em diferentes graus como homens de ação e não como literatos de profissão. Desde o século 17, os literatos que são apenas literatos multiplicam-se repidamente. Pascal falava de poètes à enseigne (poetas de insígnia) e Molière os representava sob os traços de Trissotin e Vadius, que têm seus epígonos modernos, cuja razão de ser é passar de um programa de televisão a outro, para falar com um largo sorriso de obras tão interessantes quanto notícias farmaceuticas. Descartes seguiu as guerras da Alemanha. Quanto a Pascal, sabemos também que a criação da empresa das carruagens luxuosas, que anunciam os transportes coletivos urbanos dos dias atuais, a invenção da Continente maio 2006

máquina aritmética e a tentativa de comercializá-la, testemunham que havia nele a qualidade de um diretor de empresa. E não nos surpreende que os textos de Pascal sobre esse ancestral das nossas calculadoras tenham podido servir de inspiração a engenheiros pesquisadores dos problemas da iniciativa de qualidade na indústria moderna. É preciso ir ainda mais longe. Durante a campanha das Provinciales, Pascal foi coagido pelas perseguições da polícia, fortemente apoiada pela rede da Companhia de Jesus (outro gênero de profissionais...), a viver na clandestinidade, adotar uma falsa identidade sem renunciar, mês após mês, aos pequenos artigos que desconsertavam o mundo político e o religioso. Reconhece-se nele um tipo de prefiguração deste herói do qual os franceses são, em geral, ávidos, cujo arquétipo é o Arsène Lupin de Maurice Leblanc. Mas no fundo, é, sem dúvida, a oposição mesma desses dois irmãos que os torna, aos olhos dos franceses, tão significativos. Se a forma pela qual nós os opomos muda sempre segundo as épocas, a oposição continua. Houve uma época em que a herança intelectual de Descartes era principalmente definida pela sua dúvida hiperbólica em relação a todas as opiniões, convenientes ou não, e pelo exame crítico ao qual ele submetia tudo o que o ensino tradicional impunha, de opiniões e de preconceitos. Em geral, acrescenta-se o elogio do espírito analítico, considerado como tipicamente cartesiano,


FILOSOFIA

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Voltaire ironizava as invenções cartesianas

tal qual ele aparece no Discours de la méthode, les Regulae ad directionem ingenii, e la Géométrie. As regras do método formuladas no Discours serviram, um dia, todas elas, com razão ou não, para simbolizar o que o espírito francês pode comportar de racionalidade, de rigor e poder analítico. Percebe-se que no mesmo momento o que era destacado em Pascal é, ao contrário, uma forma de préromantismo: assim o via Victor Cousin, que interpretava as Pensés como a obra de um espírito inquieto, alimentando um pessimismo natural pelo ceticismo de Montaigne, constantemente atormentado, até mesmo obcecado por uma dúvida universal: dúvida sobre a verdade, dúvida sobre a moral, sobre a política, e mesmo sobre a religião. Foi assim que se formou essa imagem contra a qual protestava Valéry, de um Pascal cheio de angústia à vista dos abismos que encerram a condição humana, e que se refugia na religião por uma aposta quase pré-existencialista. Mas existe uma outra maneira de opô-los que sublinha em Descartes não a racionalidade rigorosa, mas, ao contrário, seu temperamento profundamente barroco: desde o século 18, Voltaire ironizava as invenções cartesianas, principalmente os turbilhões cósmicos dos quais ele compunha o universo. Vários estudos recentes insistem no interesse pelo Descartes barroco, escritor, ou mesmo poeta. Pascal, por sua vez, sofre, sob vários pontos, uma evolução inversa. Não se acredita mais nos mitos do Pascal romântico. Os trabalhos de Philippe Sellier, a nova edição, por Jean Mesnard, de certas obras por muito tempo desconhecidas, como os Ecrits sur la Grâce, revelaram um teólogo rigoroso e um grande conhecedor da doutrina augustiniana, onde se via apenas um janséniste a dois passos da

heresia. Sua obra científica foi objeto de novas análises que renovaram este conhecimento. Tão bem que vemos paradoxalmente, hoje, a matemática Claude Merker mostrar a que ponto os tratados de Pascal sobre a ciclóide comportam uma construção de uma racionalidade complexa, rigorosa e sobretudo segura de si, enquanto que Michel Serfati descobre na Géométrie de Descartes conflitos secretos entre critérios de definição das curvas algébricas que não são rigorosamente compatíveis entre eles. É talvez sob esse aspecto, e em razão mesmo de seu caráter desconcertante, que o casal é francês. Os franceses gostam das oposições afiadas entre personalidades poderosas. No fundo, o casal Pascal-Descartes, como mais tarde a dupla Voltaire e Rousseau, encarna tensões talvez insolúveis, mas que correspondem ao que eles gostariam de ser, nem sempre eficazmente, talvez. O vilarejo gaulês de Astérix é apenas, de uma certa maneira um avatar desses gênero de oposições. De resto, talvez essas reflexões estejam atrasadas em relação à atualidade recente. Podemos nos perguntar se os dois gênios de Pascal e Descartes ainda são tão representativos quanto o foram. O ensino secundário não ocupa mais o lugar que ocupava antes. Para as gerações das quais as Cynosures chamam-se Joey Starr, José Bové e Bernard Tapie, podemos nos perguntar se subexiste algum lugar para as Méditations e as Pensées. Fica no discurso ordinário e na língua corrente uma impressão difusa, mas subsistente, temas, fórmulas: o coração que tem suas razões, o cogito ergo sum, o bom senso que seria, parece, a coisa mais bem dividida do mundo. São traços que formam o que, em língua clássica, chamaremos um caractère... • Continente maio 2006


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Bacalhau para todos os gostos

B

acalhau, para os cientistas, é Gadus morhue. Mas recebe, em cada lugar, nomes diferentes, segundo os jeitos de consumir. Ao “natural” ou “fresco”, quando preparado sem nenhum processo de conservação. “Seco” (sem sal), quando deixado ao ar livre, como faziam os antigos vikings. “Verde”, quando apenas salgado, sem ser posto a secar. Mas o velho e bom bacalhau que conhecemos é, a um só tempo, seco e salgado. Assim conquistou o mundo. A palavra tem origem latina – baccalaureu. Daí vindo bacalao, na Espanha; baccalà na Itália; e palavras similares, em países de línguas latinas – exceto França, onde é conhecido como morue (corruptela de Gadus morhue). Variando, em outras línguas, segundo costumes e jeitos de fazer. Como bacalhau são vendidos cinco diferentes peixes. Dois principais. O Cod Gadus morhue (o verdadeiro bacalhau), pescado no Atlântico Norte. Em Portugal e no Brasil, mais conhecido simplesmente como Cod – ou do “Porto”, por ter sido essa cidade a primeira a receber e preparar o bacalhau que vinha da Noruega. E o Cod Gadus Macrocephalus, do Pacífico, ou do Alaska, que chegou no mercado brasileiro há só 10 anos. São semelhantes, no aspecto. Apesar disso, o “verdadeiro” apresenta características próprias: na forma (maior, mais largo e mais pesado), na aparência (limpa, sem manchas), na cor (“palha”, enquanto o Macrocephalus é branco), na pele (solta com muito mais facilidade), no rabo (quase reto ou ligeiramente curvado para dentro, tendo o Macrocephalus forma de babado). Mas são bem diferentes na panela. Sobretudo depois de cozidos, que o Mohue desfaz-se em lascas claras e tenras, enquanto o segundo é fibroso – e, por isso, mais barato. Segundo a legislação, só esses dois podem ser considerados bacalhau. Três outros tipos também freqüentam as lojas, como se bacalhau fossem. Por ordem decrescente de preços, temos: Saithe – mais escuro e de sabor mais forte, campeão de vendas no Nordeste brasileiro, basicamente utilizado para fazer bolinhos, saladas e ensopados (por desfiar sua carne, quando cozido); Ling – mais estreito que os precedentes; e Zarbo – menor e mais popular de todos (por ser também o mais barato). Na comercialização, ainda acabam

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"O vosso quarto vos espera, já preparado com duas camas, como se estivesse prevista a vossa bemvinda visita. E sabe-se cá fazer o bacalhau de cebolada". Eça de Queiroz (Carta ao conde de Ficalho, 15 de Abril de 1886)

divididos em três outras categorias: Imperial, a melhor classificação – significa estar bem cortado, bem escovado e bem curado (melhor de todos, só para lembrar, é o Porto Imperial); Universal – com mesmo paladar do Imperial, mas apresentando pequenos defeitos (que não chegam a comprometer sua qualidade); e Popular – com manchas e falhas causada pelo arpão, na hora da pesca. Alimento obrigatório nas grandes travessias, chegou ao Brasil a bordo das caravelas de Cabral. Mas ganhou prestígio, por aqui, apenas com a vinda da corte portuguesa - no início do século 19. A primeira importação oficial de bacalhau da Noruega, por exemplo, só aconteceu em 1843. Pagando dízimo à Coroa, depois do 15º peixe. Por falar em imposto, só lembrar que por essa época transferência de imóvel pagava 10%, e de móveis, 5%; aguardente de exportação 80 réis por canada (a medida de cada canada variava, dependendo do lugar), correspondendo a algo entre 15 a 20% do seu preço; sem contar que o povo de Pernambuco pagava pesadas taxas por conta da iluminação pública do... Rio de Janeiro. Voltando a nosso velho e bom bacalhau, ainda hoje 95% dele continua vindo da Noruega. Somos o segundo maior consumidor (30 mil toneladas), perdendo só para Portugal (95 mil toneladas). Durante muitos anos foi sobretudo alimento barato. Presença obrigatória nas mesas populares. Depois veio a Segunda Guerra Mundial e a escassez de alimentos na Europa, e o preço do bacalhau acabou ficando, como ele próprio, salgado. Mas, apesar desse preço, é presença obrigatória em todas as mesas – pelo menos Sexta-Feira Santa e Natal. Algumas receitas foram nascendo aqui mesmo, no Nordeste – como a fritada de bacalhau e o ensopado com molho de coco, acompanhado de feijão de coco, quibebe e bredo. Mas quase sempre se faz reproduzindo receitas portuguesas. Bacalhau também é cultura. Em edição do Jornal do Brasil, de 1891, está registrado que (Joaquim Maria) Machado de Assis, então bem velho, continuava, todas as sextas, liderando grupo de intelectuais num restaurante na praça Tiradentes. Para comer um autêntico “Bacalhau do Porto” e resolver todos os


problemas do Brasil. Numa delas teria tido a idéia de fundar a Academia Brasileira de Letras. Algo mesmo natural – dado ter sido esse peixe, como nenhum outro na literatura, enaltecido por numerosos escritores. Eça de Queiroz, por exemplo, em O Crime do Padre Amaro (1875), fala de abade, grande cozinheiro que “no meio dos sermões, ao domingo, ensinava a maneira de preparar o bacalhau”. Também o faz em cartas que escreveu ao amigo Oliveira Martins – “Por aqui nada de novo. Esteve cá o Luis Soveral, e fizemos um jantar de vencidos, com bacalhau, na Maison d'Or. Depois houveram cantigas e danças” (27 de Agosto de 1889). O peixe como que lhe lembrava o país que abandonou, quando passou a peregrinar pelo mundo. Viveu no Egito, na Palestina, em Cuba e na Inglaterra, até findar seus dias como cônsul em Paris. Sendo mesmo natural ter confessado: “Os meus romances, no fundo, são franceses, com eu sou, em quase tudo, um francês - exceto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho e no justo amor do bacalhau de cebolada” (Eça de Queiroz – Palavra e Imagem, de Beatriz Berrini – 1989). James Joyce, em Ulisses, dizia que “Mr. Leopold Bloom comia com deleite as vísceras dos animais. Ele gostava da sopa espessa dos miúdos, as moelas com sabor a avelãs, um coração estufado, fatias de fígado frito com pão ralado ou ovos fritos da mãe-bbacalhau”. Esse fígado com pão ralado são iscas empanadas. E ovos fritos, apenas ovas - costume bem irlandês (como Joyce) de tomar café com ovas, partidas ao meio, e grelhadas com toucinho. Já um inglês como Rudyard Kipling, em Capitão Corajoso escreveu: “Harvey podia ver os bacalhaus cintilantes em baixo, que nadavam em cardume e mordiam com firmeza à medida que avançavam”. Parafraseando seu mais conhecido poema, até poderíamos dizer – “Se és capaz” de sonhar com um prato de bacalhau, “és um homem meu filho”. Em Cuba, famoso provérbio ensina: “Conheço-tte, bacalhau/ mesmo que venhas disfarçado”. Em Porto Rico, quando passa uma mulher bonita, sempre se ouve: “Tanta carne e eu comendo bacalhau”. Na medicina popular, “Um tumor ou furúnculo estoura, naturalmente, colocando em cima couro de bacalhau bem quente”. Segundo velha crença, “Pirão de bacalhau é bom para enjôo de gravidez”, palavras do mestre Mario Souto Maior (Alimentação e Folclore). Faltando, nessa relação, só o pernambucano Chacrinha – que às “Terezinhas” (moças de seu auditório) oferecia, gritando, “Vocês querem bacalhaaau ???”.

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Titular/Leo Caldas

SABORES PERNAMBUCANOS


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SABORES PERNAMBUCANOS Em Pernambuco, é também vareta usada para percutir o metal do surdo, nos caboclinhos. E nome de bloco de carnaval – primeiro batizado como “Bacalhau na Vara”, depois “Bacalhau do Batata”. Fundado em 25 de fevereiro de 1962, pelo garçom Isaías Pereira da Silva – o famoso e popular “Batata”, claro. Para se divertir nem que fosse um dia, já que trabalhava o carnaval todo. E então saía com seu bloco quarta-feira de cinzas, pela madrugada. Encerrando a brincadeira só de tarde. No estandarte, alguns dos ingredientes de uma boa bacalhoada; na frente do desfile, depois que morreu, um boneco gigante com sua imagem; depois, 45 músicos de uma orquestra de frevo; e, fechando o desfile, o povão cantando, ladeira abaixo, o hino do bloco – “Vou começar no Galo da Madrugada/ Sustentar a pisada até quarta-feira chegar/ Depois vou prá Olinda tirar ressaca/ No Bacalhau do Batata e tomar banho de mar”. Dando-se por findo esse pequeno relato, com alguns conselhos úteis: – Guarde o bacalhau sempre em local seco e refrigerado (umidade e calor são seus maiores inimigos). – Quando salgado e seco, só pode ser congelado depois de demolhado (ato de eliminar o sal, com água). – Antes de demolhar retire a pele - levantando uma das extremidades dessa pele e puxando com firmeza. – Nesse demolhe, recomenda-se cuidados especiais. Podese mesmo dizer que o processo, de tão importante, já faz parte da própria preparação do prato. Primeiro, corte o peixe em postas e deixe embaixo da torneira, sob fio de água, por uns 10 minutos. Depois, coloque em recipiente com água e gelo, cubra e leve à geladeira. Troque a água 3 vezes durante o dia. O tempo em que ficará de molho depende da grossura do peixe – pedaços pequenos, 8 horas; postas normais, 24 horas; grossas, 40 horas; muito grossas, 48 horas. – Há quem demolhe, por estranho à primeira vista possa

parecer, usando ainda mais sal. Nesse caso, leve o bacalhau ao fogo com bastante água, juntando a ele um punhado de sal; e, antes que comece a ferver, escorra, escalde em água fria (sem sal) e torne a levar ao fogo com bastante água fria, agora sem sal. – Há ainda os que demolham com leite (só pedaços pequenos) – colocando esse leite, fervendo, sobre o bacalhau e deixando descansar por 1 hora. – Bacalhau, bom lembrar, nunca deve ser fervido - para que não resseque. – Depois de demolhado, pode ser congelado. Mas não sem antes pincelar com bom azeite toda a superfície (para impedir que fique seco), envolver cada posta em papel alumínio e colocar em saco plástico. – Quando for usar, retire do freezer e coloque na geladeira, com pelo menos12 horas de antecedência. – Para servir, calcula-se entre 150g e 250g por pessoa. – O sucesso do prato depende dos seus acompanhamentos – azeite extravirgem, azeitonas portuguesas (pretas ou verdes) e sobretudo batatas. Tudo de boa qualidade, claro. – Do bacalhau, bom lembrar, tudo se aproveita. Lombo grosso (a parte mais nobre) deve ser preparado no forno, ou assado, ou grelhado – com alho, cebola e muito azeite. Da parte junto ao rabo e das laterais, desfie e faça bolinhos, saladas, recheios. Até língua tem serventia – é prato de muito prestígio nos países nórdicos, especialmente Noruega. Faltando só dizer que aquele óleo retirado do fígado do bacalhau é um fortificante poderoso. Das farmácias de antigamente ficou, inclusive, na lembrança, um cartaz quase do tamanho (e formato) de uma porta; com pintura de pescador levando um bacalhau enorme nas costas, quase do tamanho do próprio pescador. Completado, embaixo, pelo nome do produto – “Emulsão Scott”. Sucesso garantido. Apesar do gosto ruim. Muitíssimo ruim. Afinal, ninguém é perfeito. •

RECEITA: BACALHAU ESPIRITUAL INGREDIENTES: 1.200g de bacalhau (aferventado,desfiado e refogado),1 litro de leite, 4 gemas, 1 ½ caixa de creme de leite, 1 dente de alho, 2 cebolas grandes, 1 cenoura ralada, 3 colheres de sopa de azeite, 1 pacote de queijo ralado, molho inglês, 4 colheres de sopa de trigo. PREPARO: Refogue o bacalhau no azeite com alho e cebola. Reserve. Faça um molho branco. Para isso, doure cebola ralada na manteiga e junte trigo. Acrescente o leite. Quando engrossar, ponha gemas, bacalhau, cenoura ralada, queijo ralado, molho inglês, nozmoscada e creme de leite. Coloque em pirex e cubra com mistura de 5

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bolachas cream-craker, batidas no liquidificador com queijo ralado. Na hora de servir, leve ao forno para gratinar


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Ah! Portugal.....lá eu moraria, lá eu viveria, lá eu morreria

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ma paisagem que não humilha o homem: tomo emprestadas a Ferreira de Castro as suas palavras para resumir a paisagem portuguesa.Uma paisagem amena, disciplinada, onde cada coisa está em seu devido lugar, em seu lugar exato. Tudo parecendo ter sido ali posto pelo homem nos lugares devidos, com a ciência com que devem ser dispostos os móveis numa casa pequena, arrumados de forma a que não ocupem no espaço reduzido mais do que devem ou do que lhes cabe. É essa minuciosa arrumação e esse extremo aproveitamento de uma terra tão pequena e tão pouca para tantos que fazem de Portugal um país sem vazios. Naquele território apertado entre o mar e a Espanha, tudo tem de ser aproveitado ao máximo – mesmo as encostas mais empedradas e mais verticais, mesmo a terra mais sáfara e gasta das proximidades do litoral sul – já uma continuação das terras da África. A um guia que me acompanhou numa corrida entre o Minho e o Algarve, um bravo luso intimamente conhecedor do seu país, perguntei certa tarde por que, sendo Portugal tão amante do futebol quanto o é o Brasil, não se viam às margens das estradas campos de peladas, iguais aos que entre nós se espalham, aos milhares, do Oiapoque ao Chuí. Ele me respondeu: – Por falta de espaço. É impossível jogar futebol num chão onde as sementes já foram plantadas, estão sempre prestes a brotar ou já brotaram. Ah! Portugal....Lá eu moraria, lá eu viveria, lá eu morreria. • Continente maio 2006

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MÚSICA

Dramas musicais A recente apresentação da ópera Carmen, de Bizet, por uma companhia formada exclusivamente por pernambucanos, faz lembrar a tradição do Estado nesta arte Flora Guedes

Alexandre Belém/ JC Imagem

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MÚSICA

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s cenas marcantes de Carmen, de Georges Bizet, ainda povoam as mentes dos pernambucanos que compareceram ao Teatro de Santa Isabel, no final do ano passado. Não só porque se trata de uma da óperas mais bem escritas e encantadoras da cultura universal. Nem por ter sido encenada, pela primeira vez na História, por uma companhia formada exclusivamente por músicos e cantores pernambucanos, a Cia. Operários. Mas pela soma disso tudo e porque Pernambuco tem um passado de ópera. Houve um tempo em que a sociedade burguesa e açucareira esperava ansiosa pelas temporadas de clássicos como La Traviata, Lucia de Lammermmoor, Cavaleria Rusticana. Da metade do século 19 até as três primeiras décadas do século 20, o Recife foi um importante pólo receptor desse espetáculo dramático, que reúne música, cenário, dança, teatro, canto, literatura e pintura em um palco só, atraindo, inclusive, público de províncias vizinhas (Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará). Os escassos registros sobre o assunto podem ser um dos motivos que tornaram esse passado de efervescência cultural pouco conhecido dos próprios pernambucanos. Uma das raras pesquisas data de 1850 a 1882 e se refere apenas ao movimento de recepção de espetáculos dramáticos no Teatro de Santa Isabel (dissertação defendida pelo músico e professor da Universidade Federal de Pernambuco José Amaro dos Santos). E é o próprio Santa Isabel, teatro projetado especialmente para receber essa arte dramática, o ponto de partida dessa matéria. Construída em 1850, a opera house oferecia a estrutura exigida pelas companhias européias: fosso para orquestra sinfônica, acústica apropriada e requinte. “A ópera foi moda na Europa desde o século 17, e com a chegada de Dom João, em 1809, vamos ter o primeiro teatro no Rio de Janeiro. E claro que as províncias copiaram isso, então se construíram teatros em Manaus, Pernambuco e Salvador”, contextualiza a historiadora e professora da UFPE, Bartira Ferraz. Antes do Santa Isabel, os dramas musicais aconteciam na Casa da Ópera, construída no século 18 e que funcionava à Rua do Imperador. Segundo Samuel Campelo, a primeira apresentação com nome de ópera acontece em 1822, “mas não fica bem esclarecido se foram três óperas ou três récitas”, afirma o escritor e historiador Leonardo Dantas. “Na Casa da Ópera passaram grandes artistas, dentre eles, o Pedro Caetano, patrimônio do teatro nacional, homem festejado, que aqui esteve durante a execução de Frei Caneca, em 1825. Também há depoimentos sobre decoração e divisão interna do local segundo os viajantes Hernry Poster e Tolenar”, pormenoriza o pesquisador. Depois da Casa de Ópera, um grupo de pernambucanos cria a Sociedade Harmônico-T Teatral, que veio dar lugar ao Teatro Apolo (1842), espaço que entrou em decadência com a construção do Santa Isabel.

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Fachada do Teatro de Santa Isabel

MÚSICA “Em 1858, veio a companhia de Giuseppe Marinangelli, primeira que se apresentou integral e à caráter, no Santa Isabel. Ela trouxe a ópera de Bellini, Impuritani”, conta José Amaro. “Graças ao seu porto favorável, entre outras atrações, o Recife recebeu companhias italianas, francesas e espanholas (zarzuelas). Já por volta de 1881, se apresentaram aqui companhias inglesas”, acrescenta ele. De acordo com o professor, o teatro era o motivo mais forte para atrair as companhias estrangeiras que chegavam em Pernambuco, depois de cumprirem um roteiro de apresentações no continente sul-americano. Pelo Rio da Prata elas subiam até a Corte (agora de Dom Pedro II), no Rio de Janeiro e o percurso seguia fazendo paradas nos portos de Salvador, Recife e Belém (depois de 1878, quando foi inaugurado o Teatro da Paz). “Havia uma movimentação cultural em torno do Santa Isabel. Os empresários divulgavam as apresentações no Diario de Pernambuco e no Jornal do Recife, além de alguns folhetins que eram inseridos nos jornais destacando óperas e cantores”, detalha José Amaro. Na época, o Recife era uma pequena cidade, mas já contava com uma grande imprensa. “Era a terceira maior cidade da América portuguesa, onde se divulgavam notícias nacionais e internacionais e sobre as Artes. A gente teve um grupo de cartunistas e artistas plásticos famosos, à exemplo de Carneiro Vilela, que vão ilustrar cerca de 400 títulos de jornais que circularam aqui no final do século 19”, conta Bartira Ferraz. A sociedade em Pernambuco estava claramente organizada nesse momento: uma elite açucareira e uma elite burguesa, de comércio. Ambas prestigiavam esse tipo de arte. “A ópera foi relevante porque através dela a sociedade pernambucana entrava em contato com os costumes de pólos mais desenvolvidos, afetando não só no gosto, mas na adoção de uma estética européia, principalmente

para as pessoas mais abastadas”, explica a socióloga Laura Buarque. A Europa estava muito presente no Recife, seja na assimilação de um novo vocabulário (palavras inglesas e francesas), seja na forma de se vestir e se portar. “As pessoas faziam roupas novas e esperavam o espetáculo como um grande evento. As mais ricas ficavam na primeira fila, e assim sucessivamente. A maneira como a classe aristocrática entrava no teatro era uma maneira também de exibir suas roupas, peles, jóias e até um momento para tratar de negócios e discutir problemas sociais”, completa a socióloga. Em alguns casos, a admiração cultural também se fez de forma inversa. Muitos músicos e artistas abandonaram suas companhias e adotaram o Recife como lar. Foi o caso do regente Inocence Smotz, provavelmente o primeiro maestro da orquestra do Teatro Santa Isabel. “Aqui ele também passou a exercer a atividade de professor de canto e de piano”, conta José Amaro. “Teve outro regente que vale ressaltar, o francês Jullius Polp, que arranjou meios de ficar aqui e teve contatos substanciais com Euclides Fonseca, que foi o compositor daquela época mais importante de Pernambuco”, explica ele. Só no século 20 é que autores brasileiros vêm aos palcos do Santa Isabel. Izaht, de Villa-Lobos, Tiradentes, de Eleazar de Carvalho, além de Oscar Lourenço Fernandes com sua Malazarte, foram algumas das óperas que chegaram ao Recife nas décadas de 30 e 40. “A ópera que se desenvolveu no Brasil foi muito importante, agregando artistas e músicos nacionais. Ela reúne pelo menos 10 grandes nomes, desde Leopoldo Miguez, um dos mais antigos do século 19, a Alberto Nepomuceno, Delgado de Carvalho, Assis Pacheco, Carlos Gomes, Villa-Lobos, entre outros”, elucida Bartira Ferraz. É, também, no começo do século 20, que começam a chegar em Pernambuco

Roberta Mariz

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MÚSICA

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Divulgação

Cena da ópera Carmen, de Bizet, apresentada no Recife, no final de 2005

companhias judaicas. As óperas, esquetes e quadros que elas apresentavam tratavam de temas estritamente sobre judeus (embora tivessem apresentado aqui Rei Lear, de Verdi) e faziam parte de um movimento que teve origem em Manhattan, no final do século 19. A vinda das companhias coincide com o momento de dispersão dos judeus da Europa, que precisavam sair da Romênia, Hungria, Polônia e da Alemanha, depois do recrudescimento das perseguições e que vai culminar, pouco mais tarde, no Nazismo. As duas grandes guerras mundiais levaram a uma queda de poder aquisitivo da sociedade do mundo ocidental. E isso vai se refletir na vinda de companhias de ópera para cá. Pernambuco, com suas bases fincadas na cana-de-açúcar, já sofria, desde os séculos 18 e 19, concorrência com os produtores da América Central. A chegada do cinema também contribuiu para o declínio da ópera em Pernambuco, no século 20. “As fitas americanas, que traziam, inclusive, óperas e operetas filmadas, tinham custos baixíssimos de exibição. No período pós-guerra, você vê os teatros virando cinemas, como aconteceu com o Teatro Moderno”, diz José Amaro. “Culpa-se muito o cinema pelo declínio da ópera, mas a gente não pode fazer isso porque o cinema vai ser uma arte destinada às massas, ao contrário da ópera, que sempre teve uma estrutura

extremamente hierárquica e estratificadora”, discorda Laura Buarque. Para a historiadora Barptira Ferraz, a decadência também está vinculada ao nascimento de outras artes e formas de comunicação.”Passam a surgir em Pernambuco pequenos grupos de artistas e intelectuais, produzindo cinema local, poesia, fotografia, dança e teatro, não mais com aquela idéia européia de grandes companhias. E a música também ganha outra dimensão”. De acordo com Leonardo Dantas, a ópera também teve em Pernambuco uma grande influência nas manifestações culturais. Para ele, a ópera tem presença na nossa música popular, no nosso carnaval. Outro registro remonta a época da colonização, quando se teve no Brasil a presença do teatro cantado, uma forma dos portugueses inserirem os índios na “civilização”, através da teatralização de histórias religiosas. O mundo indígena foi aproveitado pelos jesuítas, que compuseram letra por letra das canções em tupi, língua mais falada no Brasil até o século 18. “É uma espécie de ópera, sim, porque é o mesmo sistema. Tem o corpo de balé, de dança, de artistas, atores, cantores e músicos. É a mesma estrutura da ópera do século 19. E isso é bem documentado por Anchieta”, justifica Bartira. “Então a gente tem uma história de ópera desde o período colonial até a história contemporânea em Pernambuco”, conclui. • Continente maio 2006


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AGENDA/MÚSICA

CDS Fotos: Divulgação

Voz de lavadeira

Cuscuz com blues Aristides Guimarães lança CD com sua própria voz para comemorar os 40 anos de carreira

“A

lguém me diz/ Que a gente tem que seguir uma linha/ Vem outro e fala/ Que a linha tem, tem que ser de raiz/ Já não agüento/ Tanto palpite, tanta opinião/ Eu vou seguir/ sempre firme no compasso/ do meu coração/ linha que eu conheço é de trem/ ou de carretel/ raiz, já disse alguém do norte/ que ele conhece/ é de mandioca/ gosto de samba, rock, funk/ de maracatu e blues/ linha é pra coser/ mandioca é pra comer/ como também cuscuz/ pra rimar com o blues.” Estas imagens, no mínimo inusitadas, da letra do samba “A Linha da Raiz”, resumem o espírito do primeiro CD do poeta e compositor Aristides Guimarães, que leva seu nome. Resultado de um trabalho que não se restringe à escolha dos parceiros, das canções, dos músicos, arranjos e mesmo à gravação em estúdio, este álbum é o produto de um trabalho que completa 40 anos de carreira, tendo passado pelo Grupo Construção, pelo Tropicalismo e pela voz da cantora Joanna, com a composição “Chama”. As 10 canções são do próprio Aristides, que atua como músico e letrista e faz parceria com três cantores e compositores: Geraldo Maia, Geraldo Amaral e Marco Polo. Além deles, estão o baixista e violonista Fernando Barreto que, junto com Hito Pereira (percussionista), assina os principais arranjos do disco. “Passageiro do Sol” é um samba à moda antiga. “Você Roubou os Meus Segredos” é um blues bem marcado. Já “La Rumba” é uma rumba divertida e inteligente e “Chuva de Caju” marca o trabalho que Aristides sempre fez em torno da obra de Joaquim Cardozo. Tudo isso, conduzido pela voz macia e grave do compositor, faz do disco uma obra repleta de paisagens sonoras e visuais. (Isabelle Câmara) Aristides Guimarães. Independente, preço médio R$ 23,00. Continente maio 2006

Cila do Coco é uma das representantes da efervescência cultural do Estado. Ainda pouco conhecida, mas realizadora de um trabalho que respeita a ancestralidade do coco, ritmo caracterizado pelas batidas da zabumba e do pandeiro e pelo trupé, a cantora e compositora faz um disco que projeta imagens insólitas, como em “Coco do Pneu”: “Foi aqui no pneu/ Que eu fiz esse coco levantar poeira/ Poeira cobria, candeia apagava/ E Bembem brincava na escuridão”. E acrescenta ao gênero, quando enriquece os arranjos com um violão, uma rabeca e um bandolim. A voz rasgada de Cila pode, inicialmente, incomodar, mas letras, melodias e arranjos fazem deste um disco bom de se ouvir, dançar e recitar. Cila do Coco. Independente, Funcultura, preço médio R$ 10,00.

Oba Ogunté O Sítio de Pai Adão é o mais antigo centro afro-religioso de Pernambuco, tendo sido fundado em 1875 e tombado pelo Estado em 1986. Estudado pelos mais renomados pesquisadores do país e do mundo, como Gilberto Freyre e Pierre Verger, a casa, assim como a maioria dos ambientes religiosos, possui diversos cantos sagrados e mistérios, raramente permitidos para os não iniciados ou pessoas de outras casas. Mas, o disco Sítio de Pai Adão – Ritmos Africanos no Xangô do Recife difunde os cânticos entoados por babolorixás, yalorixás e ogãns. São saudações e toadas para todos os orixás, através de ritmos como ijexá, egó batá, nagô, jejê e abata. Um importante registro histórico-cultural. Ritmos Africanos no Xangô do Recife. Independente, Funcultura, preço médio R$ 15,00.

No trupé e na preaca No Traçado do Guerreiro é o primeiro registro em CD da brincadeira dos Caboclinhos, que está marcada no imaginário pernambucano como os índios, caboclos, que saem dançando o trupé e tocando pelas ruas do Recife e Olinda, geralmente durante o carnaval, delineando o ritmo com uma gaita ou flauta indígena, e marcando-o com preacas. Os contemplados neste disco, organizado pela pesquisadora Márcia Sena, são as Tribos de Caboclinho Tupi de Cavaleiro, pelos 67 anos de fundação, e Canindé do Recife, pelos 108 de existência. O álbum traz ritmos como o perré, toré, loas e baiões, além de falas e gritos de guerra. Um importante registro histórico e etnomusical. No Traçado do Guerreiro. Independente, Funcultura, preço médio R$ 15,00.


AGENDA/MÚSICA Erudição premiada A aclamada Orquestra Acadêmica, merecedora do Prêmio Carlos Gomes como a melhor formação erudita do país, em 2005, é regida pelos maestros Kurt Masur e Roberto Minczuk no álbum Kurt Masur | Roberto Minczuk | Orquestra Acadêmica - Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, gravado durante a 36º edição do evento. O primeiro disco, sob a batuta de Masur, traz a interpretação de obras de Samuel Barber, Brahms, Gustav Mahler e Dvorák. No segundo, sob a regência de Minczuk, diretor-artístico do evento, a Acadêmica interpreta Carlos Gomes, Almeida Prado e Modest Mussorgsky/Maurice Ravel, com “Quadros de Uma Exposição”. Encantado e encantador. Kurt Masur | Roberto Minczuk | Orquestra Acadêmica. Biscoito Fino, preço médio R$ 42,90.

Pop cubano Obtalá é uma entidade espiritual africana que rege todas as coisas. Obatalá No Quiere Guerra, segundo disco solo do cantor cubano René, é uma forma musicada de “tranqüilizar a vibração”. O álbum é uma mistura da mais pura tradição cubana com a doçura e a cadência da música brasileira. O resultado tem raps, reggaes, sambas, salsas, muito lirismo, e, claro, um acento cubano no toque do violão e dos tambores batá que permeia as canções. Todas as composições são assinadas por René e falam de amor, paz, guerra, do Rio de Janeiro (onde hoje vive, ao lado da mulher brasileira e da filha Branca, homenageada numa canção homônima), e da própria música. Obatalá No Quiere Guerra. Cambucá Music, preço médio R$ 21,50.

Diário da Manhã in Concert O jornalista Salomão Schvartzman presta um tributo à música clássica com o CD Diário da Manhã in Concert, uma compilação das músicas mais executadas durante os seis anos do programa Diário da Manhã, da Rádio Cultura FM, dirigido por ele. “A idéia surgiu a partir dos próprios ouvintes do programa, que constantemente me pediam para organizar uma seleção com as músicas mais belas do Diário da Manhã”, explica. Entre as 13 obras, há orquestrações originais da Mazurka do balé Les Sylphides, de Chopin; músicas ciganas, tradicionais judaicas e até uma versão brasileira para “When I’m Sixty-Four”, a canção que Paul MacCartney escreveu aos 25 anos. Diário da Manhã in Concert. Atração Fonográfica, preço médio R$ 22,00.

Música de sopro Do silêncio das calmarias até o assobio das tempestades, todo o sopro que se ouve é música. Não há nada de tão antigo e tão novo: chegou ao Brasil de pés descalços, misturou-se às caravelas e fortes, chegou ao metal e às teorias. Para homenagear os instrumentos que moldam o ar em forma de música, a pesquisadora Myriam Taubkin, através do Projeto Memória Brasileira (sétima etapa), patrocinado pela Petrobrás e pela Galvani, realizou o projeto multimídia Um Sopro de Brasil, composto por livro, CD e DVD. O produto é resultado do registro do evento homônimo, realizado no Sesc Pinheiros, em novembro de 2004, que reuniu um número inédito de músicos, arranjadores, grupos e representantes de manifestações tradicionais para celebrar e compartilhar com o público a rica variedade dos instrumentos de sopro. “Sopradores” como Paulo Moura, Moacir Santos, Maestro Spok e Frevo Orquestra, Altamiro Carrilho, Caboclinhos Sete Flechas, Marcos do Pífano, João do Pife, Andréa Ernst Dias, Toninho Carrasqueira, Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, Tavares da Gaita, Nailor Proveta, Banda Mantiqueira, Uakti e Léa Freire compareceram ao projeto para assobiar o Brasil em todos os seus tons, tempos, timbres e ritmos musicais. Um Sopro de Brasil (livro, CD e DVD). Independente, preço médio R$ 140,00.

O samba é uma grande invenção Ela é inquieta e não pode ser definida dentro de conceitos engessados: é cantora, apresentadora, locutora. É multimídia. E Mônica Feijó ainda consegue quebrar o tabu de que o universo musical de Pernambuco é dominado por homens, desde Luiz Gonzaga a Chico Science. Do alto de seu laboratório na Rua da Aurora, ela volta a surpreender com o lançamento do seu segundo CD, Sambasala. Dessa vez, o samba dá a nota tônica do trabalho. Junio Barreto, Ortinho, Fred 04 e Fábio Trummer, mas também Maíra Macedo e Alê, presentearam a artista com sambas bem locais, que fazem uma panorâmica da produção contemporânea desse gênero. As belas “Aclimação” “Procurando Dun dun” e “Passando a Ponte”, além de cantarem Pernambuco, são cantadas com um típico sotaque pernambucano, o que diverte e valoriza a sonoridade local, em todos os seus aspectos. Sambasala. Independente, distribuição Tratore, preço médio R$ 22,90. Continente maio 2006

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CÊNICAS

Todo mundo dança, todo mundo canta Caruaru tornou-se palco para danças folclóricas de vários países, entre os dias 8 e 15 de abril Renata Bezerra de Melo

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CÊNICAS

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m palco para danças folclóricas de todo o mundo. Foi nisso que a cidade de Caruaru, porta para o Agreste pernambucano, se transformou entre os dias 8 e 15 de abril. Mas, a Capital do Forró, acostumada aos forrozeiros e bacamarteiros, viu danças bem diferentes do que está habituada: grupos da Itália, da Polônia, de Portugal, do Paraguai, da Paraíba, do Recife, de Belém do Pará e de Alagoas utilizaram-se da linguagem corporal para compartilhar com o público aspectos relevantes de suas culturas. Além das coreografias e figurinos, os sons – cada espetáculo trazia uma música executada ao vivo – complementavam a proposta de inserção do público na identidade do “outro”. O 27º Festival Internacional de Danças Folclóricas também abriu espaço para o artesanato e para um espontâneo diálogo entre costumes, crenças e tradições das mais distintas regiões e etnias. Em paralelo aos espetáculos, uma Feira de Negócios do Artesanato de Pernambuco reforçou o encontro de técnicas, formas e conteúdos diversos. A ala de artesanato reuniu 100 estandes com artífices pernambucanos, nacionais e internacionais. Mais de 100 mil pessoas circularam pelo evento, que é promovido pelo Conselho Internacional das Organizações de Festivais Folclóricos e Artes Tradicionais (CIOFF), uma organização não governamental internacional que mantém relações formais de consulta com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). A presidente da seção nacional do CIOFF Brasil e coordenadora do Festival, Socorro Maciel, assinala que, por tratar-se de uma ação do terceiro setor, os grupos que participaram do evento não receberam cachê, além de terem custeado suas passagens. Ainda segundo ela, o objetivo maior do CIOFF é promover a herança intangível, assim como servir aos objetivos da Unesco de preservar a memória cultural. Apesar de não ter fins lucrativos, a coordenadora destaca que o Festival é um investimento gerador de emprego, renda e oportunidades de negócios, que fomenta o turismo e ocupa a rede hoteleira da região, enquanto promove o lazer e a cultura. Há mais de 10 anos, o Festival se realiza em Pernambuco por iniciativa da artista plástica e delegada do CIOFF Brasil, Luisa Maciel, e com o patrocínio do Ministério da Cultura, apoio cultural do Sebrae, Sesi, Chesf, e institucional da Associação Comercial de Caruaru, Rádio Liberdade AM/FM e Pólo Comercial de Caruaru. Foi Luiza quem trouxe o CIOFF para o Brasil, em 1984, depois de tomar posse, como delegada, na Alemanha. Atualmente, o Conselho possui, no Brasil, 10 seções estaduais, incluindo o Nordeste, o Centro-Oeste, o Sudeste e o Sul. A sede do CIOFF Brasil, entretanto, está localizada em Caruaru, atendendo pelo nome de Centro Cultural Popular Luisa Maciel. Não é à toa que o Festival acontece em Pernambuco. •

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Fotos: Divulgação

Grupos da Polônia, do Chile, do Paraguai e do Recife estiveram presentes no evento

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AGENDA/CÊNICAS Fotos: Divulgação

Antologia do balé clássico Ballet Nacional de Cuba apresenta clássicos do balé, como Quebra Nozes e O Lago dos Cisnes, porém com acento cubano

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ma das maiores companhias de dança clássica da atualidade, o Ballet Nacional de Cuba, que revolucionou o clássico naquele país por acrescentar um acento cubano ao balé, estará se apresentando no Recife, no Teatro da UFPE, nos dias 6 e 7 de maio. Intitulado A Magia da Dança, o espetáculo consiste numa antologia, que reúne clássicos como Giselle, A Bela Adormecida, Quebra Nozes, Copélia Dom Quixote, O Lago dos Cisnes e Sinfonia de Gottschalk. A coreógrafa da Companhia, Alicia Alonso, explica que a idéia é reviver alguns momentos que marcaram para sempre a história do balé mundial. Para representar tais momentos, nomes que estão entre os melhores bailarinos da atualidade, como: Viengsay Valdés, Hayna Gutiérrez, Anette Delgado, Sadaise Arencibia, Víctor Gili e Octavio Martín. Do Recife, o balé segue para São Paulo, Belo Horizonte Rio de Janeiro, Brasília, Aracaju, Porto Alegre e Curitiba.

Ballet Nacional de Cuba. Dias 6 e 7 de maio, no Teatro da UFPE (Av. dos Reitores, s/n, Campus Universitário, Cidade Universitária). Mais informações: 81. 3453-4344/ www.luckyassessoria.com.br / www.matakli.com.br

Ricardo III Inglaterra. Depois de 30 anos de guerra civil, o conflito entre os clãs York e Lancaster chega ao fim. Com a morte do rei Henrique e de seu filho, assume o poder Eduardo, primogênito da família York, graças ao comando vitorioso de seu irmão mais moço, Ricardo, Duque de Gloucester. A partir daí, Ricardo fará de tudo para conquistar o poder. A obra-prima de Shakespeare, Ricardo III, escrita em 1593, foi traduzida e adaptada por Jô Soares, que também dirige a peça, para

estrear no Teatro Faap, em maio. No papel principal, Marco Ricca interpreta um dos maiores vilões da dramaturgia universal, ambicioso e capaz de tudo pelo poder. Apesar do viés maquiavélico exacerbado, a peça proporciona, ao representar o mal com imensa ironia, oscilando entre o macabro e o cômico, a possibilidade de reflexão sobre os tempos atuais. No elenco também aparecem Denise Fraga, como Elisabete, e Glória Menezes, vivendo a Duquesa de York.

Ricardo III. Teatro FAAP (Rua Alagoas, 903 – Pacaembú – SP). Tel.: 11.3662.7233. Durante o mês de maio

Nunca se Sábado... Os principais grupos de humor do país voltam a se reunir no palco do Teatro Folha na segunda temporada do Projeto Nunca se Sábado.... No decorrer do ano, estarão de volta os grupos Pessoal do Vacalhau, Cia. do Pátio, Canal 3, Ex-Filhos, Parlapatões, Os Melhores do Mundo, Le Plat du Jour, ExQuesitos, Los Tupi, Cia Cachorra, além da presença já confirmada de Marcos Pasquim, Marcos Breda, Paulinho Vilhena, Carlos Moreno, Ana Lúcia Torre, Petrônio Gontijo, Tuna Duek e Mariana Hein, entre outros. Com concepção e direção de Isser Korik, o projeto é inspirado no formato do show Saturday Night Live, sucesso na televisão americana há mais de 30 anos. Nunca Se Sábado... traz, a cada espetáculo, três grupos teatrais para apresentar esquetes inéditos, ficando a cargo do público escolher quais deles voltarão na semana seguinte. Nunca se Sábado... Teatro Folha (Shopping Pátio Higienópolis. Av. Higienópolis, 618 / Piso 2 – Higienópolis – SP). Mais informações: 11.32556202 / www.teatrofolha.com.br

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Múcio Leão “Imortal” Pernambucano empossado na Academia Brasileira de Letras na juventude, Múcio Carneiro Leão legou uma obra literária perfeita em todos os gêneros Murilo Melo Filho

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sta é a história de Múcio Carneiro Leão, um pernambucano elegante, nascido no Recife há 108 anos, dia 17 de fevereiro de 1898, poucos meses depois da fundação da Academia Brasileira de Letras, a 20 de julho de 1897 e que morreu aos 71 anos de idade, em 1969. Ele foi o quarto ocupante da minha Cadeira nº 20, na ABL, sucedendo ao Patrono Joaquim Manuel de Macedo; ao fundador, Salvador de Mendonça e aos antecessores, Emílio de Menezes e Humberto de Campos. Pelas letras, muito cedo começou, no Recife, a vida de Múcio, quando, ao lado de Barbosa Lima Sobrinho e de Aníbal Freire, começou a escrever os seus primeiros textos para o Diario de Pernambuco. Tinha apenas 18 anos e já escrevia ensaios sobre Eça de Queiroz, Oliveira Lima, Afonso Arinos e Afrânio Peixoto. Como corajoso maratonista, fazia, a pé, na companhia de Barbosa Lima Sobrinho, o percurso de 80 quilômetros, entre o Recife e a cidade de Goiana. Justamente quando ele se formava pela Faculdade de Direito do Recife, as armas da Primeira Grande Guerra tinham sido ensarilhadas, com o armistício de 11 de novembro de 1918. Seu curso se concluía, assim, no eco dos canhões que haviam tonitruado durante quatro anos, e as novas gerações, saídas das faculdades, tinham de deparar-sse com a nova ordem de coisas, instigantes e desafiadoras, e com o novo mundo, que iria emergir, de tanto sangue e de tantas cinzas. Múcio embarcou, em seguida, para o Rio de Continente maio 2006

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Fotos: Acervo ABL

Capa do suplemento “Autores & Livros”

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Janeiro, onde se dedicou ao jornalismo, cum- que se desfez de todos os privilégios de sua prindo o axioma, segundo o qual quem se for- classe e desceu até as senzalas pobres, onde os negros agonizavam, para conduzi-llos, das ma em Direito pode até advogar. No Rio, fez crítica literária até 1923, quan- masmorras da escravidão, até a margem do foi substituído por Humberto de Campos, resplandescente e florida da liberdade. A seguir, Múcio chama a atenção para a a quem, por sua vez, em 1935, ele próprio sucederia nesta nossa comum Cadeira nº 20. mocidade da ABL, que foi um impulso dos Em 1941, com Cassiano Ricardo e Ribeiro moços, no meio dos quais Machado de Assis Couto, fundou o jornal A Manhã, dirigindo aí, nos aparece hoje como um ancião venerando, durante nove anos, o Suplemento Literário embora acontecesse que tinha, então, apenas Autores & Livros, hoje tido como uma his- 58 anos de idade. E relaciona a juventude dos tória de parte da literatura brasileira, utilíssimo patronos, que, também quando a Academia foi fundada, já estavam todos mortos e haviam até agora. Naquela noite de morrido até muito jovens, desde Álvares de 16 de novembro de Azevedo e Casimiro de Abreu, com 21 anos, 1935, a Academia e Castro Alves, com 24 anos, até Gonçalves Brasileira de Letras Dias, falecido com apenas 41 anos de idade, estava toda engala- quase todos ceifados pela tuberculose, uma nada, já funcionan- doença muito grave e fatal, numa época em do no Petit Tria- que não havia ainda os antibióticos. Era a prónon, para receber pria mocidade paraninfando a imortalidade. Sucessivamente, foram lançados os livros um novo Acadêmico, o jovem per- de Múcio Leão, que viriam a compor uma nambucano Múcio obra importante: Tesouro Recôndito, A ProLeão, de 37 anos de messa Inútil, No Fim do Caminho, e Castigada, idade, que, agora, um romance social, na linha do romanceiro com sua vasta cabe- nordestino, dos nossos confrades José Améleira – alto, apolíneo rico de Almeida, José Lins do Rêgo e Rachel e elegante – assumia de Queiroz. Recém-eempossado na ABL, coube a Múa tribuna, para pronunciar o seu dis- cio Leão fazer o discurso de saudação à Stefan Zweig, fugido do Nazismo e refugiado no curso de posse. Brasil, sobre cuja obra fez uma minuciosa E começou dizendo: – Aqui estou, porque solicitei o vosso voto análise, comparando as duas mulheres – Mae porque me chamastes. Sempre fui, na vida, ria Antonieta e Maria Stuart, belas e amadas. apenas escritor. E sinto que o serei pela exis- Uma delas, a rainha da França e mulher de tência afora. Se há, portanto, em meu país, Luís 16, saiu dos esplendores de Versalhes uma instituição que congrega os escritores, a para a guilhotina. A outra, a ardente rainha da Escócia, teve a cabeça decepada pela lâmina ela devo e quero pertencer. Revela depois por que se interessou pela de um machado, na torre de Londres. Em seguida, sustenta que Zweig soube amar os ABL: – Por causa de Joaquim Nabuco, o herói espíritos, quando eles são difíceis e complexos belo e generoso do seu povo, olhando a figura e quando se chamam: Balzac e Dostoievski, daquele Apolo, filho dileto da aristocracia e de Freud e Nietszche, Erasmo de Rotherdam, Pernambuco – terra comum, a mim e a ele – Mesmer, Stendhal, Casanova, Dickens e


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Inauguração da Oficina Manuel Antônio de Almeida. Da esquerda para a direita: Deolindo Couto, Levi Carneiro, Antônio da Silva Melo, Marques Rebelo, Múcio Leão, Austregésilo de Athayde, Rodrigo Otávio Filho e Cassiano Ricardo

Tolstoi. Emocionado e comovido, Zweig agradece a saudação de Múcio, dizendo que guardaria da Academia e do Brasil, que ele chamou de “O País do Futuro”, a mais imorredoura das recordações. Múcio Leão viveria na ABL outros grandes momentos: os discursos de saudação às posses dos queridos conterrâneos Barbosa Lima Sobrinho e Austregésilo de Athayde; os memoráveis discursos sobre “O espírito brasileiro” e sobre “O espírito universal” do seu co-estaduano, Joaquim Nabuco; e sua eleição para presidente da Academia, em 1944, quando fez uma administração simplesmente inesquecível. Estávamos no dia 31 de julho de 1969. Corria rotineiramente a sessão semanal das quintas-feiras na ABL, quando nela deu entrada o acadêmico Múcio Leão. Tinha 71 anos de idade, em pleno vigor intelectual, mas já debilitado fisicamente. Ele comparece a essa sessão, achando que aquela talvez fosse sua despedida aos confrades, em cuja companhia passara os últimos 34 anos de sua vida. Quando a crise aconteceu, um cirurgião amigo tentou salvar-lhe a vida, mas foi impossível fazê-lo, por causa de uma cavidade na pleura, provocada por um aneurisma fulminante e fatal. Múcio Leão legou uma obra literária – perfeita em todos os gêneros – desde o ensaio e a crítica, da qual foi um pioneiro, até a poesia, o conto e o romance, nos quais explodiu todo o seu talento criativo. Empossou-se na “imortalidade” em sua plena juventude, cheio de entu-

siasmo, com 37 anos de idade, como um dos mais jovens Acadêmicos e também sendo depois o decano e o mais antigo deles, como guarda fiel das nossas melhores tradições. Da inteireza do seu caráter, emanava a força de um magnetismo pessoal, ajudado pelo seu porte elegante, com abundantes cabelos brancos e uma palavra fácil, improvisando madrigais a que as moças geralmente não resistiam. Foi um grande sedutor, que seduzia muita gente, homens e mulheres – sobretudo as mulheres – pelo seu bom gosto e pela sua bela aparência. Era, enfim, um homem inteiriço e indomável, cuja presença muito elevava a Academia, com o prestígio de sua fascinante personalidade, que, inclusive, ficaria hoje muito feliz se pudesse ver o seu Pernambuco representado na ABL pelos queridos Acadêmicos Evanildo Bechara, Marcos Vinicios Vilaça e Marco Maciel. Em 1998, ocorreu o centenário do seu nascimento e, atendendo a ponderações do acadêmico Alberto Venâncio Filho e por insistência dos presidentes Arnaldo Niskier e Tarcísio Padilha, eu escrevi e a Academia lançou o livro Múcio Leão – Centenário, na Coleção Afrânio Peixoto, com um admirável prefácio de Josué Montello. Múcio Leão foi um incansável polígrafo, para quem, parafraseando Afrânio Peixoto e Pirandello, segundo o qual La via si vive e si escrive, poderia, na sua sepultura, ter sido gravada apenas uma curta inscrição: – “Leu e escreveu. Nada mais lhe aconteceu”. •

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HISTÓRIA

Tabu negro em Portugal Paul Anthony/Corbis

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A história da presença dos negros em Portugal – um tabu até hoje – começa, a rigor, a partir de 1440, mas quase não deixou vestígios Duda Guennes, de Lisboa

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presença do negro em Portugal é assunto tabu, votado ao silêncio, que só agora, discretamente, começa a ser estudado. E, nestes estudos, dois livros de autores estrangeiros são referências obrigatórias: Os Negros em Portugal – Uma Presença Silenciosa (Editorial Caminho – 1988), do brasileiro José Ramos Tinhorão. Sim! O terrível crítico musical, adversário ferrenho da bossanova, e O Negro no Coração do Império: Uma Memória a Resgatar (séculos 15 –19), do antropólogo francês Didier Lahon (Casa do Brasil, Entreculturas – 1999). A história da presença do negro em Portugal nunca foi muito estudada pelos investigadores locais. Existe uma meia dúzia de trabalhos importantes como o do professor Joaquim Romero de Magalhães, Os Escravos e os Emigrantes, e o de Vitorino Magalhães Godinho, O Mercado de Mão-de-Obra e os Escravos; e outros mais antigos, de conteúdo eminentemente racista, como os de A. A. Mendes Corrêa e Oliveira Martins, que nem devem ser levados em conta. Na década de 50, o historiador Manuel Heleno havia elaborado um exaustivo trabalho, em dois volumes, sobre a escravidão em Portugal. Lançou apenas o primeiro, que ia dos primórdios da nacionalidade até o século 15 (o período da


Fotos: Reprodução

HISTÓRIA

servidão branca e moura). O segundo, que pegava de 1444, ano em que se efetuou o primeiro leilão de escravos negros em Lagos, Algarve, até a modernidade, foi simplesmente proibido de vir à luz pela censura. Ainda hoje o mercado de escravos de Lagos, construído no século 16, está lá, de pé, para evocar o papel dos portugueses no tráfico negreiro. Em Lisboa, houve também uma “casa dos escravos”, de onde eram exportados para Sevilha e Valença. Em 1550, havia cerca de 10 mil negros em Lisboa, chegando a constituir 10% da população da capital. Estavam presentes na corte e nas casas da burguesia nascente e do clero. (Aliás, o papel do clero no tráfico de escravos precisa ser estudado). A mão-de-obra marinheira, que embarcou nas descobertas, era em grande número composta de escravos negros africanos. Geralmente eram batizados no porto de embarque e, se tentavam escapar, quando capturados eram marcados a ferro e fogo no rosto. Houve, era inevitável, muitos cruzamentos que deram origem a muitos mestiços. É essa mistura de sangue que Portugal tentou esconder ao longo da sua história, e que agora os pesquisadores tentam resgatar. Houve até quem o negasse, como foi o caso do antropólogo Mendes Corrêa (citado por Tinhorão), segundo quem “a proporção de negróides, mulatos ou negros na nossa gente metropolitana é escassíssima”; os “portugueses não têm afinidades hemáticas com os negros africanos” ou “têm-se acumulado os documentos comprovativos de que são reduzidíssimos os vestígios das influências negríticas ou simplesmente negróides na população portuguesa atual” (1938). Essa era a política “oficial” do Estado. No final da década de 50, Gilberto Freyre, que teve grande influência junto aos poderes salazaristas, propôs, e foi aceita, a “mítica” de que Portugal era uma sociedade multirracial. Em 1961, começou a guerra colonial na África portuguesa. O preto passou a ser o inimigo. Com a Revolução dos Cravos, abril de 1974, e a independência das ex-colônias, a Metrópole foi invadida pelos “retornados” do ex-ultramar. Não se sabe ao certo o número, mas varia entre os 500 e 700 mil. Lisboa, que era uma cidade branca, passou a ser plurirracial, como preconizara Gilberto Freyre. Mas o preto continuou a ser discriminado. Um trabalho recente, exibido na TV estatal, apresentou um debate com diversos especialistas, no qual foram levantadas questões suscitadas pelos primeiros contatos entre a população portuguesa e

Mercado que recebeu os primeiros escravos vindos da África no século 15, em Lagos, Portugal

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HISTÓRIA

Habitantes da Guiné, de Hans Burkmair, impressa na obra Die Merfart Enfarung, de Balthasar Sprenger, publicada em 1509

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os negros africanos recém-chegados. Debates como o do choque e da repulsa pela cor da pele, o reconhecimento da diferença, vista como negativa, a fixação da imagem do africano como ser humano, sim, mas “inferior”, “atrasado”, “situado entre o animal e homem”. Portugal tem um grande orgulho e proclama, aos quatro ventos, ter sido um dos primeiros países da Europa a abolir a pena de morte, mas foi também o último a ter acabado com a escravidão. E como demorou. Neste ponto, não resisto e volto ao livro de Tinhorão: “Decretada pelos liberais do chamado Setembrismo, a abolição do tráfico de escravos ao sul do Equador em 1836, com o objetivo de libertar os capitais necessários ao desenvolvimento – mas que serviu na verdade para desencadear o recrudescimento do comércio de escravos para o Brasil –, iniciaram-se em 1838 entendimentos exigidos pela Inglaterra para obter garantias contra o tráfico clandestino (o que foi formalizado por acordo de 1842, após a restauração da Carta Liberal de 1837), mas a instabilidade política no país, onde a força mais estável continuava ser a dos proprietários de terras, faz novamente sepultar o problema por mais 15 anos. Em 1858, finalmente, cinco anos depois do aparecimento do telégrafo, e dois anos após a inauguração do trecho inicial do caminho-de-ferro que devia ligar Lisboa ao Porto – e quando já se começava a discutir o socialismo nos meios operários –, o governo português marcou o fim da escravidão para 20 anos depois. E, de fato, embora a 27 de abril de 1869, após nova discussão do tema no Parlamento, ficasse escolhida finalmente a data da abolição para o dia 25 de abril de 1877, o assunto é retomado em abril de 1875, e a abolição antecipada para o ano seguinte, 1876, quando enfim se consumou”. Presença residual – Como e por quê, depois de terem sido numerosos em certas cidades de Portugal, não se encontra nenhum traço de sua descendência? No livro de Lahon, as possíveis causas do esmaecimento da memória da escravidão negra em Portugal (fenômeno que também se deu em outras metrópoles européias) talvez se devam à falta de novas levas ou por miscigenação com a população portuguesa. A verdade é que os povos importados da África perderam, no século 20, a visibilidade que tanto surpreendeu os viajantes estrangeiros da segunda metade do século 18. Uma visibilidade que agora volta a ganhar contornos mais nítidos com a entrada de trabalhadores africanos lusófonos e de brasileiros. Cresce também o número de imigrantes de países do Leste, especialmente da antiga Iugoslávia e da Ucrânia. Com uma população envelhecida, controle de natalidade motivado por questões econômicas e a imigração de seus próprios cidadãos, nunca interrompida, para a América do


HISTÓRIA

Mascarada Nupcial, de José Conrado Rosa, representa o exército de anões da corte da rainha D. Maria, a Louca, 1788. A obra se

Norte, França e Alemanha e outros centros, Portugal necessita cada vez mais de jovens imigrantes que possam restabelecer o seu equilíbrio populacional. O governo tem consciência dessa necessidade e estabelece políticas apenas para disciplinar a entrada desses imigrantes e reprimir abusos, mas, ao mesmo tempo, não consegue evitar que recrudesça um sentimento xenófobo que se tem traduzido em atitudes discriminatórias, especialmente em relação à juventude negra. A história da presença dos negros em Portugal começa, a rigor, a partir de 1440, com a entrada sistemática de cativos. Segundo dados levantados por Lahon, no fim do século 16, no Algarve, eles chegam a representar 10% da população, algo em torno de seis mil pessoas. À mesma época, em Lisboa, a parcela negra ou mestiça, escrava e liberta, representava uma parte significativa da população, talvez um percentual semelhante, embora seja sempre arriscado fazer estimativas devido à precariedade das fontes consultadas. Em Portugal, a partir de 1761, progressivamente, os negros vão desaparecendo – especula-se que muitos tenham voltado para a África ou seguiram à força para o Brasil, onde teriam continuado a saga da escravidão, enquanto os libertos acabariam por se extinguir naturalmente, pouco a pouco. Com o fim da escravatura em todos os territórios sob controle luso, Portugal começa a substituir o trabalho escravo africano pelos galegos, que passaram a entrar no Reino em número cada vez maior, a ponto de o intendente-geral de polícia, Pina Manique, calcular em 30 mil esse contingente ao final do século 18. Mas essa é outra história... • Continente maio 2006

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Ilustração: Sávio Araújo

Acho melhor não Se todas as vezes em que nos exigem uma escolha pudéssemos adiar para mais tarde, e responder como o Bartleby, de Melville...

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oda escolha pressupõe um julgamento de valor. Elegemos o que é melhor ou pior, e fazemos a nossa opção. Mas quanta tragédia por causa das escolhas, desde o começo dos tempos. Caim cultivava o solo e Abel era um pastor de ovelhas. Um vivia preso a terra, e o outro vagando pelas pastagens. Caim ofereceu frutos e sementes a Iahweh, e Abel, por sua vez, ofereceu a gordura do seu rebanho. Iahweh agradou-se de Abel e sua oferenda, mas não se agradou de Caim. A preferência é subjetiva e arbitrária. Caim sentiu-se ofendido pelo Deus que o preteriu, e matou o irmão. Iahweh amaldiçoou Caim e o expulsou do solo fértil. O crime aconteceria se O Deus não provocasse a animosidade entre os irmãos, com sua escolha arbitrária? É impossível responder. Julgamos, escolhemos, somos escolhidos, num permanente jogo de ou isto ou aquilo. Continente maio 2006


ENTREMEZ

Uma boa risada é a melhor resposta ao que consideramos injusto, um antídoto contra o rancor e o desejo de vingança. Mas não somos santos, desejamos ganhar, ser eleitos os melhores. Os concursos são motivos de guerra, mesmo os mais pueris, como os de beleza. Vocês pensam que é de agora que eles acontecem? Numa festa nupcial em que compareceram os deuses olímpicos, a Discórdia atirou uma maçã de ouro com a seguinte inscrição: à mais bela. Três deusas se engalfinharam pela posse da faixa de miss, Hera, Atena e Afrodite. Como não entravam em acordo, resolveram submeter-se ao julgamento de Páris, o mais bonito dos mortais. Para corrompê-lo, Hera ofereceu fortuna, Atena prometeu sucesso nas guerras, e Afrodite acenou-lhe com o amor de uma linda mulher. Páris fora abandonado pelo pai, o rei de Tróia, e criado por pastores, pois um oráculo anunciara que ele seria a causa da destruição da cidade e seu povo. Não deu outra. Páris concedeu a maçã a Afrodite, e com sua ajuda raptou a bela Helena, causando a guerra entre gregos e troianos. Nunca gostei de submeter-me a concursos e avaliações, por covardia, talvez. Passados 35 anos, ainda sonho com as provas do vestibular e experimento a mesma angústia que senti na época. Mas a vida não me deu moleza. Continuo sendo avaliado a cada novo livro, nas peças que enceno, ou até num artigo como este. Os que afirmam não ligarem para a crítica, estão mentindo. Ligam, sim. Desejamos que as pessoas nos leiam, e que de preferência gostem do que escrevemos. Mesmo que os nossos frutos não sejam os mais saborosos, sofremos com a recusa, igual a Caim. E se alguém nos menospreza por um Abel mais elevado, atiramos pedras e fazemos vítimas. Por todos esses motivos, não me convidem para membro de uma comissão julgadora. Prometi que nunca mais atribuiria notas a livros, contos, poesias, ou grupos carnavalescos desfilando. Bastam os

julgamentos que faço a cada instante: melhor tomar à direita, melhor apertar o botão amarelo, melhor comprar a calça jeans. Não quero ser o juiz de ninguém, nem atirar a primeira pedra, nem fazer a escolha certa. Mesmo que os apócrifos afirmem que a porta é a que escolhe e não o homem, vivemos fazendo escolhas. – Que livro marcou sua vida? Quantas vezes respondi a essa pergunta?! – Folhas de Relva, de Walt Whitman. – É verdade? Nunca imaginei. Pensei nOs Lusíadas ou em Homero. – Não, o livro que mais me marcou foi esse. – Jura? – J...u...r...o... Será que foi mesmo? E se não foi? Li tantos livros. Mas no momento atual, na minha crise de nacionalismo, Whitman tem me dado uma força. Sinto vontade de rebater com mais ênfase, dizer que nunca atravessei Os Lusíadas, “por mares nunca dantes navegados”. Nem transpus oceanos, apenas o Capibaribe. Por que me obrigam a tantas escolhas? Pedem-me a lista dos livros que mais gostei em 2005. Reviro a memória, remexo, cato. Encontro traduções, lançamentos nacionais, livros de pequenas editoras, edições do autor. Cuido em ser honesto, não cometer injustiças, nem excessos, nem faltas. Publicam a lista. Surgem queixas: você me esqueceu; não fui lembrado. Ah!, se fosse possível viver sem a obrigação da escolha, sem a dúvida que nos corrói a cada decisão entre isto e aquilo. Se a maçã de ouro fosse depositada em nossa mão, com endereço certo – ao melhor, ao mais belo –, sem discórdia nem dúvida. Se todas as vezes que nos exigem uma escolha pudéssemos adiar para mais tarde, e responder como o Bartleby, de Melville – acho melhor não, deixando sempre para depois, de preferência para nunca. Mas nem quando dormimos sossegamos, pois também nos sonhos precisamos escolher por esta ou aquela porta. • Continente maio 2006

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TRADIÇÕES Divulgação / Fox Filmes

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O esquecimento essencial A tradição poética só consegue existir e proliferar graças a três aspectos do traçado cultural: reminiscência, costume e esquecimento Maria Alice Amorim

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pelo esquecimento que a tradição vai alimentando a vida contemporânea. Homero, cego e poeta, é uma metáfora da palavra essencial, invisível, inscrita bem mais na memória e no ouvido do que no papel. Não é simplesmente pela reminiscência de temas que a tradição poética sobrevive, é antes por aquilo que desses temas se esquece e pelas fórmulas clássicas do verso que se perpetuam há séculos. O fator esquecimento permite a flexibilidade, a adaptação do discurso poético à realidade social, ao espaço-tempo. A tradição, evocada por Ortega y Gasset, é a ajuda que pedimos ao passado para resolver os problemas da atualidade. É a linha que utilizamos para coser nosso traçado cultural: neste caso, o fio de Ariadne é a tradição poética, que, segundo Paul Zumthor, só consegue existir e proliferar graças a três aspectos: reminiscência, costume e esquecimento. Seleção e rejeição correspondem a uma das dimensões da rememoração poética. O esquecimento, nas poéticas da oralidade, significa “conservação de dados” e “lugar de tensões criadoras” – dois aspectos da ação memorial. O “estilo formular” da tradição poética medieval é o mesmo das poéticas da oralidade existentes em Pernambuco. Do mesmo modo, a performance do nosso repentista “instaura uma integridade nova”, a partir de fórmulas literárias que se repetem e se reinventam há séculos – na rima, no ritmo, na métrica. Pela conservação desses dados, relativos ao fazer poético, cada Homero refaz o percurso que lhe convém, segundo o talento pessoal, pela rememoração e repetição de fórmulas, associadas ao esquecimento – esquecimento que nas mitologias significa morte e retorno à vida –, acúmulo de esquecimento de tantos poemas feitos e de tantas histórias cantadas em verso, para que seja propiciado o momento criador. A tradição poética existe como tal pelas fórmulas, não pelo discurso temático. Poesia é palavra, convertida em imagem, em metáfora, e, na poesia tradicional (oral e/ou escrita), fabricada em formas fixas. Continente maio 2006


Palimpsestos – A vida, a poesia é palimpsesto. Se recordo as aulas de literatura, que recebi durante a adolescência, em que a professora fazia a defesa entusiasmada da literatura de cordel, isto é apenas parte de uma memória individual/autobiográfica, que cultivo por razões particulares: o amor a esta expressão artística. Entretanto, se não apenas as aulas, mas a própria literatura popular me fazem relembrar histórias que as avós contavam – como aquela da “Moura Torta”, de “Antonino e o Pavão”, da Donzela Teodora, do País de São Saruê – passamos a uma memória coletiva, porque inscrita num espaço e num tempo de determinado grupamento humano, que preza aquela tradição oral. É numa comunidade afetiva que as histórias são contadas e recontadas, os versos do romanceiro e do cordel recitados, a poesia de repentistas fruída por novos e velhos. É também a sucessiva e/ou simultânea participação em diferentes grupos sociais que faz a nossa memória ser auxiliada pela dos outros, desde que existam pontos de contato entre as lembranças. No caso de pessoas que conviveram num certo passado, é necessário que as barreiras do presente sejam transpostas a fim de que fale a memória. A intuição sensível, ou a consciência individual da memória, aflora, por exemplo, com muita intensidade no poeta que faz da rememoração das vivências da infância e de outras vivências matériaprima para elaborar o discurso poético. Essas evocações vão servir de esteio para realimentar a tradição literária preservada por sucessivas gerações. É freqüente entre os violeiros a recordação dos tempos de criança, geralmente na zona rural do sertão, em que são evocadas as paisagens: a fauna, a flora, o clima, as alegrias do inverno, a escola, a família, os amigos. As lembranças da criança são imagens situadas no quadro familiar, e podem aparecer ajudadas pelo relato dos adultos. Nestes, as lembranças subsistem e dão a ilusão de unidade/eternidade, enquanto o indivíduo as vivencia com determinado grupo. É por causa da história vivida na infância que podemos compreender a história aprendida nos livros. A memória coletiva – ou memórias Continente maio 2006


O espetáculo do improviso verbal é espetáculo também visual

coletivas – existe/existem porque sustentada por um conjunto de homens, e cada memória individual é uma memória singular daquela memória coletiva, mutante segundo as combinações de influências e transformações sociais. A lembrança é sempre uma reconstrução do passado, com a ajuda do presente e das experiências acumuladas. O passado está sempre sendo retocado pelas novas combinações de vivência e rememoração. O indivíduo vai guardando as memórias, rabiscando e pintando umas sobre as outras, e sempre as terá dentro de si. Acessíveis ou não. Verbo sedutor – Se as sereias de Ulisses queriam fisgálo pelos ouvidos, é justamente pelo ouvido que o verbo sedutor dos mestres improvisadores nos hipnotiza. É um canto de sereia a sonora, isto é, a voz do mestre de maracatu rural, do violeiro, do coquista, do cirandeiro, que mobiliza em torno de si apreciadores do verso feito na hora, ágil, sagaz, inteligente. A senha de canto e poesia, que nos abre as portas da percepção, nos faz ir ainda mais profundamente nessa viagem, mergulha-nos em oceano de signos e palimpsestos. É a palavra a garantia de que não seremos náufragos nesse mergulho pela memória coletiva, pelo imaginário popular, pelos territórios do discurso. O verso sedutor do poeta exercita a função de toda e qualquer retórica, quando laça o ouvinte. A técnica do discurso é que é especial: passa pelo estilo formular, passa pela transfiguração do cotidiano em imagem poética. E é justamente essa transubstanciação de matéria que magnetiza o público, que o faz interagir com o criador. Mas, o espetáculo do improviso verbal é espetáculo também visual. É no conjunto da música, da dança, do Continente maio 2006

canto, da embriaguez de infinito, da eternidade daqueles instantes de magia, do cenário previamente organizado para o espetáculo da improvisação que a verve do poeta sobressai, e, em performance sempre singular, comunica à platéia: as musas passeiam sob céu de estrelas e as sereias cantam. Os temas desenvolvidos pelos mestres improvisadores são variados. Na sambada ou no ensaio de barraca, na roda de coco ou ciranda, na cantoria de pé de parede, é pelo imaginário popular que o poeta passeia, desfiando versos sobre cangaceiro, amarelinho, santos e diabos, vaqueirama, valentões, paraíso e inferno. Muitas das estrofes fixadas no imaginário em disputas antológicas, de contemporâneos ou mestres já falecidos, são repetidas em novas contendas, são repetidas pelos amantes da poesia de improviso, são relembradas sempre que se evoca o que há de melhor nessas composições literárias. Se, na hierarquia dos versos construídos no embate entre dois mestres ou na apresentação individual de um poeta popular, o início é composto de mais “versejamento” do que mesmo poesia, é no desenrolar do véu da noite que despontam as melhores surpresas. As formas fixas também influem na qualidade dessas alegrias, dessa fruição estética. O samba curto do mestre de maracatu, construído em sextilhas, fica caracterizado, na temática, pela cantoria despeitada, um querendo esfolar o outro, conforme visto em diversos embates. Outro tipo de estrofe é o samba comprido, ou usualmente samba em 10 linhas, que termina tendo amarração diferenciada, conforme o fôlego do poeta. Há samba comprido em 12, 14, 16 linhas, segundo a amarração que o mestre queira usar para surpreender o adversário.


TRADIÇÕES Os ciclos temáticos no cordel repetem certos assuntos recorrentes na poesia folclórica, como o ciclo do boi, do diabo, as lendas populares, a cachaça, dramas de amor, apologia a ações e personagens heróicos, amarelinhos do tipo de Pedro Malazartes. Mas praticamente todos os temas são regionalizados, mesmo os que foram importados da tradição ibérica. A princesa Magalona, Carlos Magno e os 12 pares de França, a donzela Teodora são algumas das novelas tradicionais impressas por aqui sob a forma de folheto de cordel. Entre nós, cordel significa poesia, com rima e métrica, impressa em folhetos de tamanho em torno de 11 x 16 centímetros, e poesia que trata, sobretudo, de temas regionais, como o do cangaço, padre Cícero, frei Damião, violeiros, valentia de vaqueiros, coisas do sertão, notícias de jornal, o sofrimento e a luta dos nordestinos, sem esquecer que há sempre a utilização dessas temáticas relacionadas a histórias tradicionais seculares transmitidas entre gerações. Babel das memórias – Para ativar os canais da memória, lançando mão de todo um imaginário construído ao longo de séculos, estão em jogo, antes de tudo, conceitos antropológicos e políticos. Porque a memória pode ser manipulada, para fins nada louváveis. O saudosismo reacionário ou o tecnicismo podem tentar enfurná-la numa redoma ou bani-la do incessante intercâmbio com a vida contemporânea. Depende desses conceitos o tratamento que se dá às memórias coletivas. A espetacularização da cultura, a institucionalização de logradouros da lembrança e a comemoração de efemérides evocam memórias, entretanto de

modo artificial e segundo as exigências da sociedade de consumo. Assim, por exemplo, é extremamente danoso à tradição do teatro popular, realizado ao ar livre, que as agências de turismo forjem uma apresentação de cavalo-marinho, durante uma hora, para que os visitantes possam ter uma idéia do que é aquilo. Ora, a brincadeira se desenrola durante uma noite inteira, desfia umas dezenas de personagens, cantigas e versos, inclusive improvisados, e significa comemorar um ciclo festivo do ano. Porém, há que se ressalvar que todo e qualquer brinquedo popular está em constante mudança, em construção, pela dinâmica mesma da vida. As interferências programáticas, com fins lucrativos, eleitoreiros, totalitários, é que não são bem-vindas. A manipulação das tradições, num apelo insistente à sua inserção na indústria cultural, na cultura de massa, é uma realidade de conseqüências nefastas: leva à desfiguração. Num mundo cada vez mais dependente da rapidez das novas tecnologias digitais de comunicação, a noção de tempo e espaço está acirrando conflitos entre gerações: vive-se o tempo da urgência, do imediato, e as distâncias são desconsideradas por causa das redes midiáticas. O mundo virtual pode embaralhar a realidade, fazendo a palavra viva perder força, enfraquecendo nossas memórias, desqualificando lugares e temporalidades. É desde os primórdios que poesia, canto, música e dança se misturam nas manifestações lúdicas e ritualísticas da humanidade. Continua não sendo diferente. Um dos aspectos que as culturas de tradição cultuam é justamente a palavra, a poesia, e as poéticas da oralidade significam uma das garantias da memória coletiva e dos territórios culturais. •

É numa comunidade afetiva que as histórias são contadas e recontadas, os versos recitados, a poesia de repentistas fruída por novos e velhos

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Indigente cultura Os jovens de hoje não “se ligam” no Aurélio, pouco se interessam pelo passado. Sequer plantaram uma roseira, declamaram Bilac ou cantaram Cartola

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esmo a modernidade que hoje espelha toda essa parafernália eletrônica para os lares do mundo, via sputniks de última geração, planadores de antenas informativas e culturais, ainda faz muita gente nos surpreender com seus desconhecimentos. Com tanta generalidade adicionada à nossa língua pátria, por vezes ainda nos deparamos a absurdos perfurocortantes. Não só à sintaxe lusíada, mas também quanto a não saberem da nossa história, de seus personagens, heróis – em geral mártires – lamentavelmente que nunca venceram, no entanto deixando lições nunca esquecidas. Dia desses, palestrando com universitários, preferi trocar de lugar para melhor me ventilar e ter a claridade da fresta de uma janela enquanto dissertava um texto de Pereira da Costa. Surpresos, os velhos-jovens discentes tanto perguntaram sobre dona Fresta (que deveria estar debruçada na janela), como não sabiam quem foi nosso historiador. Jovens que não mais lêem hoje em dia preocupam qualquer país. Não “se ligam” no Aurélio, pouco se interessam pelo passado, seus ancestrais, sequer plantaram uma roseira, declamaram Bilac ou cantaram Cartola, e se desligam sempre que o assunto assume a grade da literatura. É uma pena, só comparável aos bedegüebas que vivem ligados somente em pagodes, raps e nos horóscopos adivinhadores de suas vidas vazias. Lembro-me do médico e cientista Orlando Parahym, que, de certa feita, me contou uma hilariante passagem de sua vida, quando recém-formado e iniciava sua carreira nos grotões do Salgueiro, belo Sertão pernambucano. Ao se deslocar, à tardinha, para atender uma parturiente num roçado a seis léguas da sede, saudado com as regalias do matuto – que reina a norma receptiva do nor-

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destino –, cumpriu seu dever e logo fez gritar o mais novo rebento da casa. Terminado o trabalho do parto, desabou um pé-d’água daqueles, que o deixou impossibilitado de retornar, uma vez as carroçáveis estradas desabonarem a piçarra enlameada. Convidado assim a pernoitar, o doutor Orlando certificou-se com o dono da casa de que o mesmo lhe garantiria a sua volta ao primeiro sinal-da-cruz assobiado pelos galos-de-campina da manhã – Pai, Filho, Espírito Santo... Amém! Ao acordar, o jovem médico já encontrou a mesa pronta do almoço (naquela época de 1937, almoço de sertanejo era às oito da matina). Cercado de mil gentilezas sentou-se à mesa com toda a família do anfitrião e, curioso por todos estarem presentes e junto dele haver uma cadeira vazia, perguntou: – “Por favor, seu Duzinho, poderia o cativante amigo me dizer de quem é esta cadeira ao meu lado?... O senhor espera por alguém?...”. – “Sim, seu doutor, a cadeira é do cinesíforo”. Intrigado, o hoje saudoso amigo e mestre das letras ficou a imaginar como se podia colocar um nome tão estranho em alguém. E logo chegou o homem. – “Muito prazer, Seu Cinesíforo...” Ao chegar na cidade, Parahym encontra o professor de português Alberto Soares, e logo indaga o que significa “cinesíforo”. – “É motorista, condutor, “bulieiro”... Palavra de origem grega”. E aproveitou para alfinetar o doutor vindo das bancas acadêmicas: “Aqui é mais do que normal usarmos o vocábulo correto nas nossas comunicações... Pelo visto, Orlando, infelizmente vocês da capital cultivam muito o hábito da cultura indigente”. E imediatamente o fez ler 360 Dias de Boulevard, de Theo Filho, que não se cansa de usar esta palavra em todo o livro. Ave, cultura nostra!... Morituri salutante! •


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