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Alexandre Belém/Titular
EDITORIAL
Ariano Suassuna, com o seu Romance da Pedra do Reino, é o único autor vivo citado entre os “canônicos”
Nosso cânone provisório
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a “sociedade líquida”, em que “tudo que é sólido desmancha no ar”, cabe indagar da existência e da pertinência de um cânone da literatura brasileira. Foi isso que a Continente fez, numa enquete cujos resultados são a matéria de capa desta edição. Mais importante que o resultado em si – que no fundo não passa de uma lista produzida por uma amostra aleatória, no caso basicamente o universo de colaboradores da revista – foi a discussão que a iniciativa propiciou. Percebeu-se, de imediato, uma desconfiança em relação ao que poderia ser “oficial” e “fossilizado” – o que é justo, pois está-se a tratar de uma matéria feita de inventividade e criação. Por outro lado, negar a possibilidade de um cânone, entendido como uma referência, uma renovação dialética da tradição, seria como negar o sol porque se acordou de mau humor. É possível falar numa literatura inglesa, sem citar Shakespeare? Espanhola, sem Cervantes? Americana, sem Whitman? Argentina, sem Borges? Caso a resposta fosse sim, caberia perguntar: estamos falando de quê? Cânone, na origem grega, vem de vara de medir, medição, modelo etc. Na ação simbólica, como a produção literária, não se pode medir a quantidade (ou só muito secundariamente), mas a qualidade. Aí entra uma escolha de valor, o que envolve posturas político-ideológicas, correntes estéticas, preferências pessoais. Não custa lembrar que a vanguarda
de hoje pode muito bem ser o cânone de amanhã. Armase então a discussão. Um pouco ludicamente foi a isto que nos propusemos, estimulando a problematização do conceito e da escolha. Se entendermos o cânone como percebemos a própria língua – que se renova, mas se mantém estável num período maior ou menor – dentro dos limites entre a historicidade e o incontornável, talvez possamos travar uma discussão livre, arejada e aberta. Como deve ser o próprio cânone (afinal, argumento de autoridade à parte, cada cabeça tem a sua própria seleção). Falando em grandes escritores, nas comemorações pelos 150 anos de Freud, embora surjam questionamentos sobre a sobrevivência de suas teorias, num ponto todos concordam: Sigmund escrevia muitíssimo bem! Há até quem ache que muito do que sustentou só está vivo porque é boa literatura. Já o crítico norte-americano Harold Bloom sustenta que Shakespeare teria sido o verdadeiro inventor da psicanálise, tendo Freud apenas transformado em boa prosa os insights do dramaturgo inglês. Uma coisa, porém, é certa: a influência de Freud é uma constante não só na Literatura como nas artes em geral (do fluxo de consciência em Joyce ao surrealismo de Dalí), incluindo o cinema, que, de O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, a Taxi Driver, de Martin Scorcese, vem investigando os mitos e os sonhos que remontam às primeiras inquietações humanas. • Continente junho 2006
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CONTEÚDO Divulgação
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La Muñeca Rota (detalhe), do pintor e cirugião plástico argentino Orlando Lopez
O poeta João Cabral está entre os autores de obra fundamental da literatura brasileira
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CONVERSA 04 O cinema indignado de Nelson Pereira dos Santos
CÊNICAS 58 Bonecos unem Brasil, Espanha e Portugal
CAPA
62 Agenda Cênicas
12 Cânone: a tradição repensada
FUTEBOL
16 Em busca do cânone brasileiro 21 Questionando o cânone poético
LITERATURA 24 Horácio Castillo, poeta e tradutor 26 Dois poetas pernambucanos sem pressa 28 Prosa: Amílcar Bettega 30 Poemas de Lucas Tenório 32 Agenda Livros
ARTES 36 Artistas revelam Portugal pós-moderno 42 A arte da cirurgia 48 Agenda Artes
CINEMA 50 A nova safra de filmes pernambucanos
Continente junho 2006
66 Sociologia do torcedor / Ensaio fotográfico ESPECIAL 72 Os 150 anos do escritor Sigmund Freud 77 A psicanálise no cinema 81 O complexo de Hamlet
PERFIL 84 Tarcísio Pereira, o homem-livro
MÚSICA 92 Jazz e Blues em Guaramiranga 93 Agenda Música
CONTEÚDO Carolina Pires
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Reprodução
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Ensaio fotográfico flagra a emoção do torcedor de futebol: identidades
72 Nos 150 anos de Freud, a psicanálise é contestada, mas seu gênio literário é reconhecido
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Resultados macroeconômicos mostram quebra de paradigmas históricos
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 34 EUA já proclamaram o fim da História. Agora, anunciam o fim da Arte
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 46 A ruptura é um retorno ao não-saber, que poderá resultar em nova linguagem
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 49 O moleque José Lins do Rego prega uma peça no maior orador de Sergipe
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 63 Lagosta com chutney de manga picante: um prato para saborear na Copa
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Todas as experiências do homem são de algum modo análogas
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Nada é mais empolgante do que ser rei na cultura do futebol Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente junho 2006
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CONVERSA
NELSON PEREIRA DOS SANTOS
Cinema com arte e indignação social Eleito para a Academia Brasileira de Letras, cineasta acaba de lançar Brasília 18%, filme em que mais uma vez ilumina aspectos nefandos da identidade nacional Ricardo Paiva
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elson Pereira dos Santos é um dos maiores e mais importantes cineastas do Brasil em todos os tempos. O autor de Rio 40 Graus (1955) e Vidas Secas (1963), que sofreu proibições da ditadura militar e foi um dos inspiradores e precursores do Cinema Novo, acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Advogado que nunca exerceu o Direito, conhecido pelo intenso amor pelos livros, acaba de lançar Brasília 18%, seu mais recente filme, em que mais uma vez ilumina aspectos nefandos da identidade nacional. Sua obra vai de retratos contundentes como Memórias do Cárcere (1984), adaptação das memórias de Graciliano Ramos sob a ditadura Vargas, à ousadia de Como Era Gostoso o meu Francês, passando por estudos sobre o misticismo, a religiosidade, a cultura afrobrasileira e a marginalidade em Amuleto de Ogum (1974). Foi também o cineasta do libelo contra o preconceito religioso e a favor da miscigenação, em Tenda dos Milagres (1977) da obra de Jorge Amado, adaptou também A Terceira Margem do Rio (1994), de Guimarães Rosa, e é, hoje, o mais profícuo diretor a aproximar literatura, história, antropologia e formação da identidade brasileira com a sétima arte. Também realizou uma minissérie sobre Gilberto Freyre de Casa Grande & Senzala (2001) e um documentário sobre Sérgio Buarque de Hollanda e seu Raízes do Brasil (2004). Continente junho 2006
Seu cinema é erigido em torno da indignação social, da curiosidade histórica e da pesquisa, como fosse ele um professor, um contador de histórias, um repórter fotográfico ou um cantador que descobrissem que a câmera na mão pode servir como arma de denúncia. Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras foi recebida entre os artistas e intelectuais como reconhecimento a quem aproximou como nenhum outro cineasta a literatura do cinema brasileiro. Que outros aspectos o senhor vê na eleição? A eleição, sem dúvida, representa um reconhecimento a uma forma elevada de manifestação cultural brasileira: o cinema nacional. É uma distinção a todo o Cinema Novo e todo o cinema brasileiro que se faz e ainda se fará. Eu vejo o fato com gratidão imensa: a eleição não é só um reconhecimento a meu trabalho, mas a todos esses heróis do cinema nacional, fundamental na análise de nossa formação. O cinema é tão eficaz quanto a literatura nos estudos e análises da identidade de uma nação? O cinema e a literatura são coisas diferentes, mas o cinema narrativo, particularmente nosso Cinema Novo e muito de nossa ficção, retratou nos seus limites cada maturação sociológica, cultural, política e antropológica da identidade nacional
Leonardo Aversa/Ag. O Globo
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CONVERSA Reprodução
“Nós criamos formas novas de cinema que projetavam visão histórica, denúncia e investigação sobre a crise de valores e a crise social brasileira”
Cartaz de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, um dos marcos do Cinema Novo
com muito vigor. Como os mitos retrabalhados em muitas obras e presentes diretamente na formação de nosso povo: o patriarcado, o mandonismo, a miscigenação, em material de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Roberto da Matta e Euclides da Cunha. Documentários de gente da estirpe de um Jean Rouch são fecundos estudos sociais e antropológicos feitos em cinema.
acontecer com o homem brasileiro. A corrupção, como abordo em Brasília 18%, meu filme recente, são temas que estão aí e vem se repetindo ao longo da história. O Brasil ainda está em formação, são vários processos e desacelerações, vitórias, derrotas. Ainda temos muito que aprender dentro desses novos processos históricos.
Quais outras obras literárias são caras ao senhor e que julga merecedoras de serem adaptadas para o cinema? Da religião e estudo da miscigenação do povo em Uma de sua terra, A Pedra do Reino, do Ariano Amuleto de Ogum e Tenda dos Milagres à democracia racial Suassuna, que o próprio Glauber louvava muito e eu de Casa Grande & Senzala até o caráter cultural assimi- acho que há muito merece. É um livro fundamental. lacionista de Darcy Ribeiro, os tópicos tratam da iden- Mas, isso já se resolveu; já soube que o Luiz Fernando tidade do povo brasileiro. É uma obsessão que o levou a Carvalho vai adaptar o livro para filme. que conclusões? No seu entender, qual o legado do Cinema Novo? No bojo do conhecimento adquirido com Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Sérgio Buarque de Hollanda, A ebulição do Cinema Novo veio com uma carga Raymundo Faoro, Roberto da Matta e com os estu- genial de talentos, mas eu tinha quase cinco filmes diosos, acadêmicos e a Universidade, o cinema fez uma realizados. Nós, eu, o Joaquim Pedro de Andrade, o análise metafórica do Brasil, do que fomos e seremos Glauber Rocha, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Paulo dentro do contexto da globalização, do que ainda pode César Saraceni, tínhamos similaridades e urgência Continente junho 2006
CONVERSA
nos temas, mas eu sou um pouco anterior. Nós criamos formas novas de cinema que projetavam visão histórica, denúncia e investigação sobre a crise de valores e a crise social brasileira. Havia uma forma seca e incisiva de filmar, dentro da estética da fome, preconizada pelo Glauber num manifesto. E os temas abordados implicavam na identificação de problemas de nossa cultura social, do povo, dentro de uma visão realista. Que formato pode trazer mais informações? A ficção ou o documentário? É difícil fazer análise meritória sobre qual dos dois é mais importante. O documentário é guiado por fatos, rigor histórico, depoimentos que vão balizando a obra. A ficção permite a criação, a arte. Ambos são válidos para contar sobre nossa identidade, nosso povo.
Na maturidade, os cineastas ficam atraídos por temas mais universais? Pela carga histórica, experiência e leitura ficamos, sim, diferentes, e os temas mudam, dentro de uma maior liberdade de criação. Em Brasília 18%, que eu retomava na minha cabeça desde a época do Collor, quando visitei a cidade, foram várias dissonâncias a me remeter à cidade. Há na trama a secretária, o político, o lobby, a corrupção, aquela personagem assassinada pode ser a falência da esquerda, a morte ainda da juventude da política. E nesses temas, flutuam os personagens. Qual seu próximo projeto? O meu próximo projeto é sobre Tom Jobim. Depois, quero ter condições de realizar um filme sobre Castro Alves. É um projeto que venho acalentando há muito. Mostra a passagem do poeta por São Paulo e também sua produção e força intelectual. •
Divulgação/Columbia
Cena de Brasília 18%, novo filme em que o diretor trata de corrupção
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Junho | 2006 Ano 06 Capa – Modelo: Ravena Viana Locação: Biblioteca Ruy Antunes Foto: Flávio Lamenha
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Renata Bezerra de Melo, Monique Lima e Diego Dubard Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara
Colaboradores desta edição: CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CLAUDIO DANIEL
É POETA,
tradutor e ensaísta.
DANIEL PIZA é jornalista e editor executivo do jornal O Estado de S. Paulo. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros, e cineasta. HUMBERTO FRANÇA é poeta. JORGE VENTURA
MORAIS é PhD em Sociologia, professor da UFPE,
DE
coordenador geral do NESF (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Sociologia do Futebol da UFPE). JOSÉ LUIZ RATTON é doutor em Sociologia, professor da UFPE, coordenador do NESF (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sociologia do Futebol da UFPE). KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema e cineasta. LUCAS TENÓRIO é poeta. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO PEREIRA é poeta e jornalista.
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MÁRIO HÉLIO é poeta e ensaísta.
Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
MONCHO RODRIGUEZ é diretor, encenador teatral e coordenador do CITI na Espanha. RICARDO PAIVA é jornalista.
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DA
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poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente junho 2006
CARTAS Alcione Araújo 2 Como professora, concordo plenamente com a afirmação de Alcione, pois é sabido que a grande maioria dos professores brasileiros, principalmente os da escola pública, estão realmente fora da vida cultural, o que é bastante triste e lamentável. Infelizmente, a nossa realidade é exatamente esta, embora a “culpa” talvez não seja apenas dos “pobres” professores malremunerados, e, sim, do sistema em que eles estão inseridos, cuja preocupação maior não é mais a educação e cultura, ou seja, a formação do cidadão como ser humano, mas a formação de uma mão-de-obra precária. Neste mundo tão mecanicista e tecnológico, no qual se forma “o profissional”, a educação passa a ser apenas um processo de treinamento para a produção. O que importa agora num mundo que se diz “moderno” é o Ter e não o Ser”. Valéria Vanda Xavier Nunes, Campina Grande – PB Alcione Araújo 3 Fiquei muito inquieta ao conhecer os dados resultantes da pesquisa realizada pelo escritor Alcione Araújo (em entrevista publicada na Continente, janeiro de 2006), acerca de cultura e educação em nosso país. São “números assombrosos”, como é citado na Revista, revelando o quanto cultura e educação cada vez mais se distanciam, num país em que os alunos quase não têm contato com a produção cultural propriamente dita. A situação é uma vergonha, considerando que em países como a Argentina e o México a produção cultural está bem ligada à educação. Por isso, é importante que sejam revistas as práticas educacionais em nosso país, começando por nós, professores de ensino básico, que devemos ter mais acesso à produção cultural brasileira. Verônica Lima, Campina Grande – PB Diretores de fotografia Gostaria de fazer uma ressalva sobre a reportagem de capa, da edição de maio/ 2006 – n°65, pois discorre sobre os principais diretores de fotografia do mundo, menos Walter Carvalho. O mesmo fez a fotografia do belíssimo longa Lavoura Arcaica e de Janela da Alma, documentário. Adriano Pimentel Liesen Nascimento, Paulista – PE Nota da Redação O diretor de fotografia Walter Carvalho já foi citado em várias edições da Revista, mas, especialmente, nas edições nº 19/Julho de 2002, quando publicou um ensaio fotográfico, e nº 51/Março de 2005, quando foi tema de ampla matéria/entrevista, que incluía toda a sua cinematografia.
Eduardo Coutinho Na madrugada do dia 25 para 26 de abril passado, foi uma daquelas noites em que, após um intenso dia de atividades entre a nossa participação num encontro, realizado na UFPE, e a docência noturna no curso de Secretariado Executivo, da cidade da Vitória de Santo Antão – PE (Faintvisa), quase por um insight, resolvemos pôr em dia a leitura desta maravilhosa Revista (edições 63 e 64). Para nossa surpresa, encontramos logo nas primeiras páginas da última edição, entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho, cujos filmes foram, durante o dia, objeto de ampla discussão e debate em simpósio daquele evento, proferido pela Profa. Rosa Maria Fisher (UFRS) e intitulado “Cinema e TV como experiência crítica e fruição”. Neste contexto, é maravilhoso perceber a interlocução e interdisciplinaridade entre a produção do saber científico e os sujeitos que produzem cultura. Luz Santos, Recife – PE A simbologia do fogo Foi a primeira vez que a Continente Multicultural me decepcionou. A simbologia do fogo é um tema fascinante que merece uma abordagem ampla, mas infelizmente a opção foi principalmente pelo viés daquela linha das humanidades chamada “Imaginário”, cuja falta de embasamento empírico é camuflada por uma linguagem hermética. Uma pena. Peter Schröder, Jaboatão dos Guararapes – PE
“ ”
Brasília Prezada Sônia Marques, acabo de ler o seu (oportuno) artigo sobre Brasília na Revista Continente (N.º 64, p.18-20). Muito boa a estratégia de iniciar narrando o ambiente acadêmico que corrompe(?) ou vicia(?) a “cabeça” dos jovens aspirantes à arquitetura e ao urbanismo. Entre os autores citados, Cavalcanti, Holston, Nunes, Buarque, senti falta (e ainda aguardo) de uma referência à abordagem doutoral sobre o “espaço-de-exceção” (em Brasília), de Holanda. Não ficou clara (para mim) a referência (citação) do “Padovani” (sic), autor que não conheço. Existem dois: um arquiteto-e-urbanista da FAU, Bruno Padovano, radicado em São Paulo; e o outro geógrafo(?) da UnB, Aldo Paviani, radicado em Brasília. Tomo a liberdade para sugerir um esclarecimento ao leitor: a data do concurso do Plano Piloto não foi 1956 (cf. p.14 linha 2, no artigo B. Uchôa), nem está agora completando 50 anos; a obra, inclusive do Palácio da Alvorada, foi iniciada em nov./56, antes do julgamento do Concurso do Plano, em 57. Parabéns aos autores e editores. E para os “50 anos em cinco”, 50 anos depois. Geraldo Santana, Recife – PE Em casa Sempre que lia a Continente no meu trabalho, ficava contagiado com o seu conteúdo. Fiz a assinatura e estou com uma Revista riquíssima dentro de minha casa. Parabenizo a todos que a fazem. Dejamilton Alves, Bodocó – PE
Alcione Araújo
Nós somos professoras da Universidade Federal de Campina Grande, no curso de Letras, e trabalhamos com formação continuada de professores, em um projeto da UFCG. Em uma de nossas aulas, levamos a entrevista com Alcione Araújo, publicada em janeiro de 2006, cujo tema era “professores fora da vida cultural”, digase de passagem, bastante atual. Essa atividade rendeu uma tarde inteira de discussões acerca do tema. E gostaríamos de deixar a nossa opinião sobre a entrevista: concordamos quando ele afirma que não há como pensar em professores distantes da vida cultural do nosso país, uma vez que educar também é fornecer/trocar conhecimentos extra-escolares. Assim, é necessário pensar sobre como “refazermos as pontes que aproximam a educação da cultura, de forma que o mundo da educação participe da vida cultural...”. Como trazêlos para o circuito? Profas. Ana Paula Sarmento, Denise Lino de Araújo e Karine Viana Amorim, Campina Grande – PB
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
Continente junho 2006
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
A liderança heróica O Brasil tem atingido por linhas tortas os objetivos macroeconômicos desejados
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história política do Brasil tem demonstrado que nenhum líder, carismático ou não, tem sido competente o suficiente para acalentar os sonhos do cidadão brasileiro, particularmente em relação a compatibilidade entre os discursos e as ações dos governantes, mesmo a despeito de realizarem dois mandatos. As experiências de gestões, tanto no setor público como no privado, têm demonstrado que nem sempre colocar líderes capacitados no comando é garantia de sucesso. A realidade do mundo moderno tem mostrado que normalmente, o culto à liderança heróica impede a visão das contradições existentes no contexto social e institucional. Talvez, em função desse contraponto do imaginário popular, a maioria dos cidadãos da América Latina faça seu ponto de inflexão política, quando elege governantes inteiramente fora dos padrões clássicos de competência intelectual e alinhamento ideológico aos americanos do norte. Todavia, essa mudança de paradigma político não tem implicado em alteração de alinhamento econômico. O Consenso de Washington – apesar das críticas de que o crescimento gerado com suas medidas não atinge as pessoas –, invariavelmente continua valendo para todos. No governo central, independentemente do preparo intelectual e carisma pessoal do presidente, o governo do PT – pressionado pelos modelos da responsabilidade fiscal e da geração de superávits primários para pagamento de juros da dívida – está por caminhos contraditórios atingindo os objetivos macroeconômicos clás-sicos desejados no que diz respeito às seguintes variáveis: a) crescimento econômico; b) distribuição de renda; c) geração de emprego; d) estabilidade monetária; e, por último, aquela relacionada à eficiência alocativa. Paradoxalmente, apesar da crise política do mensalão e das críticas das dimensões do superávit primário – que chegou a superar cinco pontos percentuais do PIB – as taxas de crescimento ainda que inferiores aos patamares
desejados, têm sido positivas apesar das altas taxas de juros. A inflação tem se mantido estável, nos níveis de 5% ao ano. A geração de empregos, segundo dados oficiais, já atinge o quantitativo de quatro milhões. A distribuição de renda – turbinada pelo salário mínimo de R$ 350,00 e pela transferência de renda dos programas sociais que neste ano tende a ultrapassar vinte bilhões de reais – já mostra uma cara mais positiva segundo o IBGE. Por seu lado, o mercado interno mantém-se aquecido e contribuindo para o crescimento econômico, inclusive, ajudado pela liberação de recursos da ordem de trinta bilhões através dos programas de empréstimo consignado e crédito popular. Curiosamente, apesar da virtual irresponsabilidade nos gastos com programas sociais do tipo Bolsa Família e com a liberação frenética de recursos via crédito pessoal, o que se vê é que o Brasil tem atingido, por linhas tortas, os objetivos macroeconômicos historicamente desejáveis. Feliz ou infelizmente, o que a realidade macroeconômica tem mostrado é que o paradigma clássico de que só concentrando recursos para investimentos pode-se obter o crescimento sustentável está para cair por terra, pelo modelo atual de transferência direta de renda realizada através dos programas sociais e pela injeção de recursos no mercado interno. A propósito, é bom lembrar o fato histórico da independência dos Estados Unidos quando os cidadãos das chamadas 13 colônias se rebelaram contra a coroa inglesa e formaram uma república, quebrando todos os paradigmas anteriores. A independência só se concretizou porque as tais colônias tinham o respaldo de um mercado interno dinâmico que foi o sustentáculo econômico básico para a consolidação da independência. No Brasil, com liderança preparada ou não, os resultados macroeconômicos apontam para a quebra de modelos históricos e para uma liderança heróica. O líder posto ainda não se configura como um líder morto. • Continente junho 2006
Continente junho 2006
Fotos: Reprodução
Nelson Provazi
CAPA
Uma definição das obras canônicas deve evitar leituras reducionistas, procurar consensos sobre as obras mais vivas, ricas em apreciações e implicações, sob o critério da qualidade literária Daniel Piza
A
palavra “cânone” é problemática. Os livros canônicos da Bíblia são aqueles reconhecidos e autorizados pela Igreja, por critérios que passam longe da transparência histórica. Assim, quando um douto ou grupo de doutos senta para produzir uma lista das obras fundamentais de uma literatura, a sensação é a de que seus autores estão sendo canonizados. Harold Bloom, por exemplo: o autor de um famoso Cânone Ocidental tem uma inclinação para o entendimento da criação literária como um substituto da religião. Em conseqüência, suas escolhas são veneradas de forma acrítica ou criticadas de forma venal. Tratar livros como sagrados pode ter o nefasto efeito de reforçar o preconceito vigente na cultura contemporânea de que livros dizem remoto respeito à nossa existência cotidiana, de que são algo sempre além do nosso alcance, reservados para uma turma de “eleitos”. E o grande barato dos livros é que podem mudar nossa concepção de mundo, nossa relação com a vida; para pior ou para melhor, ficamos mais conscientes, mais alertas, mais críticos - menos dogmáticos, menos dependentes, menos conformistas. Menos dispostos, portanto, a canonizações. Daí a contradição de tal iniciativa. Lembro a impressão causada em mim quando li Voltaire e Bernard Shaw – dois dos meus autores preferidos, “ídolos” no sentido profano do termo – fazendo restrições a Shakespeare. Voltaire, como também Tolstoi, o achava vulgar. Mas o que Shakespeare tem de formidável é justamente a capacidade de mesclar registros, de confundir o pobre e o nobre. Shaw reclamava de sua afetação e de tramas quase frágeis como a de Otelo, que se deixa levar pela prova nada cabal do lencinho. No entanto, as histórias de Shakespeare sempre têm reviravoltas e ambigüidades, e nenhum outro artista mostra como ele as reações interiores ao curso dos fatos. Mesmo assim, foi uma lição de liberdade ver que até o mais festejado dos escritores – que, acrescente-se, demorou dois séculos para sê-lo – podia e pode ser criticado. Muita gente e eu os consideramos errados, mas agradecemos a eles pelo uso que fizeram do direito da livre opinião, fundamentada como sempre em seus casos, pois estamos falando de dois mestres da argumentação, de dois gênios da prosa. Shakespeare, por sua vez, continua o maior latifundiário da nossa memória literária; como Bloom, eu o vejo no centro magnético da tradição ocidental, irradiando interpretações para tudo que foi escrito antes e depois. Um deus e um diabo. Continente junho 2006
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CAPA
Imagens: Reprodução
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Aproximar-se de listas como essas, logo, exige humor. Não se pode levá-las a sério demais, como se contivessem uma verdade factual e plena. Encare como um jogo, uma brincadeira. Mas, como disse Romário sobre futebol, o segredo é brincar a sério. Tome como uma lista de sugestões de livros que não apenas marcaram a subjetividade de quem a elaborou, mas também que desempenharam um papel na formação de um corpo literário, de um processo de técnicas e temáticas, de um conjunto de abordagens que dialogam entre si. Este aspecto é muito importante. Fazer listas, para quem tem hábito mais ou menos sistemático de leitura, não é difícil; o importante é entender o que esse coletivo de obras implica. Só assim se poderá marcar diferenças entre um simples rol de preferências pessoais e aquilo que o poeta Ezra Pound chamava de “paideuma”, as obras mais urgentes do passado que uma geração deve ler. Para Pound, clássicos valem pela capacidade que ainda têm de falar ao presente, de trazer sempre novidades por mais que sejam relidos e analisados. Não se sinta, portanto, apenas cumprindo o dever de ler aquilo que outros consideram de qualidade; procure o prazer de ler aquilo que pode mexer com sua vida, de forma ao mesmo tempo perturbadora e encantadora. Com isso, você adquire não uma biblioteca, mas uma formação. E é a partir dessa seqüência de ricas sensações que poderá ver sentidos por trás dessas listas. Ensaístas como Matthew Arnold e Eric Auerbach, que deram força para o conceito de cânone literário, queriam não
Continente junho 2006
CAPA
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apenas selecionar os melhores livros de todos os tempos, mas também debater noções como a de civilização, cultura, herança intelectual. Essa é a matriz de coleções famosas, desde Great Books of the Western World, da Britannica, até Os Pensadores, da Abril; elas supõem o acesso a uma estrutura de valores, idéias, símbolos. Infelizmente, o conceito de tradição como algo uniforme e obrigatório tem predominado. Pound tentou mudar isso, sugerindo um método comparativo de leitura, como se obras pudessem ser examinadas como lâminas ao microscópio. Mas comparações técnicas são insuficientes; excluem o diálogo de temas morais e filosóficos que se faz entre autores. O melhor é ver a tradição como uma grande conversa – parecida com a de uma família italiana, cheia de brigas e dissonâncias, mas com muito amor ao fundo. Tradições não existem para ser seguidas, mas para ser repensadas. No caso de um “cânone” da literatura brasileira, o esforço deve ser o de procurar consensos sobre as obras mais vivas e lançar luzes sobre essa tradição, até mesmo para entender o país e seus rumos (ou falta deles). Mas é preciso evitar que a definição de tais títulos dê margem para leituras reducionistas de um suposto sentido global, do tipo que vemos tanto nas academias brasileiras – em pessoas que dizem que sua “essência” é, por exemplo, o “memorialismo” ou, então, a “emancipação” em relação às tradições das quais se originaram. É recomendável, portanto, deixar de canto explicações sociológicas, como a que olha a literatura brasileira como uma colcha de regionalismos, e explicações formalistas, como a que relê o passado de acordo com programas estéticos do presente. Uma lista assim tem de seguir unicamente o critério da qualidade literária, a grande costura de forma e conteúdo que as boas obras realizam. Os autores não devem ser escolhidos por seu local de nascimento, por sua linha política, por sua classificação estética. Mas pela obra que ergueram, ricas em apreciações e implicações. •
Pound: análise comparativa de obras
Shakespeare: misturando o pobre e o nobre
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Enquete da Continente aponta obras canônicas, mas problematiza o conceito de cânone que tanto pode ser manejado por quem defende a cristalização quanto a renovação Homero Fonseca
É
como percorrer um caminho tortuoso que atravessa um extenso pântano. A metáfora define bem o tipo de problema que a Continente se dispôs a enfrentar, ao colocar em pauta o que seria o cânone literário brasileiro. A idéia era fazer uma provocação: por meio de uma questão aberta, pedir a opinião dos colaboradores da Revista (permanentes ou eventuais). Não fixamos critérios, apenas alguns parâmetros para permitir a tabulação dos dados: indicar até 10 obras, de ficção e poesia. A escolha do número foi arbitrária (e proContinente junho 2006
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vocou queixas generalizadas, pela exigüidade). Deixamos de fora o ensaio (também sob protestos) para não expandir demasiadamente o universo. Estávamos conscientes do cipoal de contradições que qualquer processo de escolha implica. Especialmente nesse campo em que as teorias literárias, as opções político-ideológicas e as preferências pessoais (impossível não haver uma carga de subjetividade nessas indicações, diluída entretanto no cômputo final, expressão simbólica de um acordo coletivo) podem conduzir a posições extremadas. Dos conservadores empedernidos, para quem o cânone é erigido em dogma, aos relativistas radicais, que não vêem diferenças qualitativas entre Shakespeare e Paulo Coelho. De Harold Bloom aos expoentes dos Estudos Culturais, a gama é vasta e o campo é fértil. A equipe da Revista se absteve de se envolver na votação, embora houvéssemos feito o penoso exercício de simular nossa própria escolha, numa empatia com os instados a escolher. Dos mais de uma centena de e-mails enviados, 75 foram respondidos, citando nada menos de 111 autores e 221 obras, numa talvez demonstração da riqueza da nossa literatura. Alguns, como os poetas Floriano Martins e Almir Castro Barros, recusaram-se a fazer indicações, por discordar do próprio conceito de cânone. O jornalista Sérgio Augusto eximiu-se, prevendo, cautelosamente, que amanhã poderia renegar suas escolhas “ou delas me envergonhar parcialmente por culpa de uma, quiçá imperdoável, ignorância”. E aí ele tocou num ponto crucial: a transitoriedade e a dinâmica de algo que paradoxalmente tenta fixar valores resistentes ao tempo. Paradoxo aparente, se considerarmos a questão de forma dialética: “Sabemos que os cânones são históricos, como a língua, mas assim também como ela, apresentam uma durabilidade”, como define a professora Graça Paulino, da UFMG. Isso explica porque Homero, Dante, Camões e Machado de Assis, entre tantos outros, continuam como estrelas a luzir no céu sobre os pântanos. Um conceito problemático – O que é o cânone? Para que serve? São problemas subjacentes que afloraram nos depoimentos de inúmeros participantes da enquete, cujo caráter aberto ensejou toda sorte de interpretação. O poeta César Leal, crítico com uma bagagem de erudição colossal, advertiu, liminarmente, que “o cânone é escolhido por uma só pessoa, de grande autoridade. E não inclui autores vivos, escolha sujeita às influências políticas e de amizade”. Muitos dos respondentes fizeram restrições, mais ou menos enfáticas, a conceitos como “academicismo”, “cultura oficial” que estariam embutidos na definição do que seriam as obras canônicas, não obstante tenham colaborado apontando o que consideram obras fundamentais da literatura brasileira. O professor Luciano Justino, da UFPB, advogou uma revisão radical do termo cânone, “com a entrada em cena de novos agentes de escrita, como negros, gays, mulheres, índios, presidiários, imigrantes etc.”. O professor Janilto Andrade, da Unicap, confessou que, consciente de viver numa “sociedade líquida”, não se sentia confortável tendo que sugerir uma lista canônica de obras literárias: “É como se concordasse com ‘listas eternas’, como se tivesse que defender uma linguagem de minoria na literatura”. Já o professor e poeta Jomard Muniz de Britto ironizou, exercendo sua conhecida verve: “Qualquer lista valorativa é trabalhosa e sempre injusta. Para não dizer frustrante, perdemos por duas polegadas a mais, tendo a beleza fulgurante de Marta Rocha como exemplo. Em letras, perdemos muito mais”. O caráter dialeticamente cambiante da escolha canônica foi enfatizado por muitos participantes. Nessa linha, pergunta-se o escritor e jornalista José Anderson Sandes: “Será que este cânone sobreviverá aos próximos 50 anos? Até hoje lemos com deleite Shakespeare. Não sei, no entanto, se ele será lido no futuro. Ou que novas interpretações surgirão em torno da sua obra”. O poeta e professor Ângelo Monteiro argumenta: “O cânone literário prevalecente no país, nos Continente junho 2006
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As obras mais votadas Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa: 49 Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado de Assis: 34 Dom Casmurro Machado de Assis: 29 Vidas Secas Graciliano Ramos: 25 Macunaíma Mário de Andrade: 20 Eu Augusto dos Anjos: 18 A Pedra do Reino Ariano Suassuna: 17 O Tempo e o Vento Érico Veríssimo: 16 Invenção de Orfeu Jorge de Lima: 12 A Rosa do Povo Carlos Drummond de Andrade: 12
Autores mais citados Machado de Assis: 78 Guimarães Rosa: 69 Graciliano Ramos: 47 João Cabral de Melo Neto: 40 Carlos Drummond de Andrade: 38 Manuel Bandeira: 31 Clarice Lispector: 27 Mário de Andrade: 23 Augusto dos Anjos: 20 Érico Veríssimo: 18 Obs.: o número após o nome da obra e do autor refere-se ao total de indicações.
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Clarice Lispector: uma mulher entre os canônicos
últimos anos, para usar a acepção adotada por Harold Bloom, é francamente diluidor, podendo nele estar, em igual medida, tanto o estético quanto o inestético, o valioso como o desvalioso, sem conflito algum. Mas temos de considerar que (...) não podemos nem devemos entregar ao olvido a excelência de algumas obras, antigas e contemporâneas, que merecem ser tidas como canônicas no sentido apontado pelo crítico norte-americano”. Alguns assumiram construir uma espécie de “cânone pessoal”, como fundamenta o escritor e crítico Nelson de Oliveira: “O cânone literário, por parecer algo coerente e racional, é o que sustenta o ensino de literatura nas escolas. Mas os professores e os alunos precisam saber que há muito de acidente e acaso na formação desse cânone. Sua formação se deve mais à irracional seleção natural do que ao rigoroso método científico. É por isso que não dou muito valor a esse cânone ensinado nas escolas. Ao longo dos anos tenho preferido elaborar meu próprio cânone, que reúne autores pouco conhecidos do grande público. Todos delirantes e iconoclastas”. Alcir Pécora, professor das Unicamp e autor de vários estudos sobre literatura clássica e moderna, ressaltou que “todo cânone supõe uma medida, um
CAPA critério de avaliação que é histórico, com maior ou menor consistência argumentativa, abrangência literária e eficácia política. No Brasil, tem-se escamoteado a construção histórica do cânone em favor de sua naturalização idealista”. Já o professor Gilmar de Carvalho, da UFCE, aduziu que sua idéia de cânone “se ampara naqueles que ousaram levar a linguagem a outros limiares e aos que atualizaram a tradição”. E numa síntese, que de certa forma coincide com a avaliação que precedeu a elaboração desta pauta, Ivo Lucchesi, doutor em Teoria Literária pela UFRJ ponderou: “O efeito do cânone na criação literária tanto é benéfico quanto maléfico. O benefício diz respeito à fixação de parâmetros, a partir da qual se consolida o limite de qualificação da escrita literária. O malefício consiste no risco do congelamento da criação, capaz de inibir o impulso renovador”. Obras e autores canônicos – Discussões à parte, que elas o que têm de bem-vindas têm de infindáveis, as obras que emergiram dessa investigação como o nosso “cânone provisório” (quadro na página ao lado) talvez tragam um certo de sabor de obviedade. Como observou o escritor Bráulio Tavares, "votações deste tipo acabam sempre premiando o óbvio, aqueles títulos inescapáveis e consensuais, e afinal de contas cânone é exatamente isto". Os títulos indicados, com efeito, refletem o que há de mais inventivo ou peculiar das nossas letras no campo ficcional e no poético. Como a quantidade terminou se revelando muito restrita (e quando a equipe da Revista se deu conta disso já havia recebido uma grande quantidade de respostas, não havia mais nada a fazer) sobraram obras e autores exponenciais, entretanto citados a seguir. Como vários autores foram eleitos com mais de uma obra, elaborou-se ainda uma listagem por autor. Vale salientar que apenas um autor vivo foi referenciado: Ariano Suassuna, pelo romance A Pedra do Reino. Apesar de a enquete ter se referido exclusivamente a obras de ficção e poesia, alguns ensaístas foram lembrados: Euclides da Cunha (com 21 indicações para Os Sertões, que ficaria entre as cinco primeiras obras), Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala), Joaquim Nabuco (Minha Formação), Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), além dos compositores Nélson Ferreira (“Evocação Nº 1”) e Canhoto da Paraíba (“Tua Imagem”). Outras obras figuraram com destaque, como Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar (8); Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade; e Fogo Morto, de José Lins do Rego (todas com 7); Avalovara, de Osman Lins; Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles; Poema Sujo, de Ferreira Gullar; Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga; Espumas Flutuantes, de Castro Alves, e Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso (com 6) e Os Ratos, de Dyonélio Machado (com 5). Com números menores (entre quatro e três citações), seguem-se O Cortiço, de Aluízio de Azevedo; Galáxias, de Haroldo de Campos; Tambores de São Luís, de Josué Montello; O Ateneu, Raul Pompéia; Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado; Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato; Quarup, de Antônio Callado; Os Sermões, de
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Guimarães Rosa teve a obra mais votada: Grande Sertão
Participaram desta enquete os seguintes escritores, críticos, professores, jornalistas (e alguns poucos artistas ou intelectuais, leitores compulsivos): Abdias Moura, Adriana Falcão, Alcir Pécora, Almir Castro Barros, Amilcar Bettega, André Resende, André de Sena, Ângelo Monteiro, Antônio Carlos Secchin, Antonio Naud Junior, Antônio Nóbrega, Antonio Torres, Artur de Ataíde, Astier Basílio, Bráulio Tavares, Brenno Kenji, Carlos Newton Júnior, César Leal, Cíntia Moscovich, Eleuda de Carvalho, Esman Dias, Everardo Norões, Fábio Andrade, Fátima Quintas, Fernando Monteiro, Floriano Martins, Frederico Barbosa, Fred Navarro, Gilmar de Carvalho, Hélio Ponciano, Ivo Barroso, Ivo Lucchesi, J. B. Medeiros, Janilto Andrade, João Gabriel de Lima, Jomard Muniz de Britto, José Anderson Sandes, José Mário Rodrigues, José Nêumanne Pinto, José Teles, Júlio Moura, Jussara Salazar, Linaldo Guedes, Luciano Justino, Luiz Carlos Monteiro, Luiz Cláudio Arraes, Luiz Ruffato, Lydia Barros, Marcelo Pereira, Márcia Denser, Marcos Vinícios Vilaça, Mário Hélio, Mauro Rosso, Micheliny Verunschk, Miguel Falcão, Moacir dos Anjos, Moacir Scliar, Nagib Norge Neto, Nelson de Oliveira, Paulo Cunha, Paulo Fernando Craveiro, Paulo Polzonoff Jr, Pedro Vicente, Raimundo Carrero, Rinaldo de Fernandes, Rosane Pavam, Rodrigo Garcia Lopes, Schneider Carpegiani, Sérgio Augusto, Silviano Santiago, Stéphane Chao, Teodora de Barros, Toninho Vaz, Urariano Mota, Weydson Barros Leal. Continente junho 2006
Machado, com Dom Casmurro e Brás Cubas, foi o autor mais citado
Padre Antônio Vieira; Obra Poética, de Gregório de Matos; Iracema, de José de Alencar; Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Cobra Norato, Raul Bopp; Cante Lá que Eu Canto Cá, Patativa do Assaré. Referidas duas vezes, estão obras como O Homem e sua Hora, de Mário Faustino; O Guesa Errante, de Joaquim de Sousândrade; O Coronel e o Lobisomem, José Cândido de Carvalho; Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel Antônio de Almeida; Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo; Ciranda de Pedra e Antes do Baile Verde, Lígia Fagundes Telles; Catatau, Paulo Leminski; Bonitinha mas Ordinária, Nelson Rodrigues; A Teus Pés, Ana Cristina César, e Sargento Getúlio, de João Ubaldo. Foram ainda citados os autores: Alberto da Cunha Melo (Yacala, Poemas Anteriores e Oração pelo Poema), Joaquim, Cardozo (Trivium, Signo Estrelado e Poemas) e, com uma obra, Adélia Prado, Adolfo Caminha, Adonias Filho, Afonso Arinos, Alberto Mussa, Antônio Fraga, Antonio Maria, Augusto de Campos, Autran Dourado, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Carlos Nascimento Silva, Carlos Pena Filho, Chico Buarque, Cruz e Souza, Dalton Trevisan, Décio Pignatari, Domingos Pellegrini Jr., Dora Ferreira da Silva, Fernando Sabino, Francisco Dantas, Gilvan Lemos, Guido Guerra, Gustavo Corção, Herberto Sales, Hermilo Borba Filho, Hilda Hilst, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, João Silvério Trevisan, José Agrippino de Paula, João Antônio, Leandro Gomes de Barros, Luís Antônio de Assis Brasil, Luís Fernando Emediato, Lya Luft, Manuel de Barros, Marcelo Mirisola, Márcio Paschoal, Mário Quitana, Milton Hatoun, Moacir Scliar, Murilo Mendes, Nauro Machado, Nélida Piñon, Olavo Bilac, Paulo Mendes Campos, Paulo Rangel, Pedro Nava, Ronaldo Correia de Brito, Roberto Piva, Rubens Figueiredo e Vinicius de Moraes. A escolha de alguns desses, contemporâneos, com obras ainda em construção, podem expressar, talvez, julgamentos precoces ou meras preferências pessoais. Quem pode garantir, entretanto, que dentre eles não está o cânone de amanhã? •
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Não se trata apenas da avaliação da qualidade literária dos poetas, mas também do que eles representam como modelos ou signos ideológicos para as novas gerações Claudio Daniel
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ntonio Candido, em sua conhecida Formação da Literatura Brasileira, construiu uma tradição que tem início no Romantismo, excluindo autores como Gregório de Matos e o Padre Vieira por não conseguir enquadrá-los em sua visão sociológica da literatura. Wilson Martins, autor de uma História da Inteligência Brasileira, fez pouco caso de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, elegendo como obra de sua predileção Vila dos Confins de Mário Palmério, romance epigonal do realismo regionalista. Tais equívocos, cometidos por nomes consagrados de nossa crítica literária, têm como antecedente histórico as investidas de Sílvio Romero contra Sousândrade e as Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, numa miopia só comparável à do crítico francês Saint-Beuve, que condenou as Flores do Mal de Baudelaire e Madame Bovary de Flaubert. Nos dias de hoje, a referência inevitável é o crítico norte-americano Harold Bloom, que incluiu em sua lista o chileno Pablo Neruda, deixando de lado os mais inventivos nomes da poesia latino-americana, como o peruano César Vallejo e o argentino Oliverio Girondo. Continente junho 2006
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Manuel Bandeira no traço de Carlos Drummond de Andrade: hoje é história
Estes poucos exemplos são talvez suficientes para questionarmos a idéia de cânone como algo permanente ou estável. O exercício da crítica nunca é imparcial, neutro ou objetivo, mas uma operação ideológica que revela uma concepção de literatura e uma estratégia para a criação. Nesse sentido, podemos considerar a crítica uma reflexão subjetiva, que se movimenta dentro de um território teórico-conceitual, num dado momento histórico. Definir um cânone da poesia brasileira significa inventar uma tradição com os olhos do presente para justificar uma doutrina ou visão da história literária, e como tal não poderia deixar de ser uma investigação parcial e precária, passível de constantes revisões. Nossa crítica literária, como sabemos, é fortemente conservadora – sobretudo aquela ligada às instituições –, desejando, na maioria das vezes, perpetuar o estabelecido, evitando o risco de considerar obras que revelem qualquer grau de informação estética nova (para estes casos, cabe o sarcasmo, o silêncio ou o anátema papal). Por esse motivo, não causa surpresa a escolha dos nomes incluídos na maioria das listas, que em geral repetem nomes de autores considerados clássicos, como Castro Alves, Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos, bem como a Santíssima Trindade formada por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar, que são adorados com devoção fervorosa (convém citar aqui, em contraponto, o verdadeiro pânico que ainda causa a simples menção do nome de Augusto de Campos, capaz de provocar crises de gagueira ou epilepsia). Na definição de um cânone, não se trata apenas da avaliação da qualidade literária dos poetas, mas também do que eles representam como modelos ou signos ideológicos para as novas gerações. A estratégia da crítica convencional é manter como paradigma as formas consolidadas do Modernismo, em sua vertente discursiva, coloquial e cotidiana, na medida em que ela não representa mais uma ruptura com padrões lineares de criação. A leitura que se faz hoje de Manuel Bandeira não é a mesma que se fazia em 1930, quando o uso do verso livre, do humor e da fala prosaica tinha um sentido transgressivo, desafiando a solenidade clássica do soneto. O que houve de perturbador nessa poesia pertence agora à história: a constante repetição dos procedimentos modernistas por poetas epigonais transformou o tabu em totem, a rebelião em rotina, o motim em mito. Um bom exemplo do que dizemos é a poesia de Cacaso e Francisco Alvim, autores que não avançaram um Continente junho 2006
CAPA milímetro em relação a Bandeira. No culto devocional prestado a Drummond, com certa histeria beata, é evidente o êxtase de seus fiéis pela poesia-crônica de “Morte do Leiteiro”, e um interesse menor pela poesia-crítica de “Áporo”, obra-limite que antecipa a engenharia poética de João Cabral e as criações mais densas de Murilo Mendes. Como sempre ocorre em tais escolhas, o caminho mais fácil é apostar no assimilado, e a partir dele construir uma tradição para justificar a apatia presente. Raul Bopp, cujo poema “Cobra Norato” apresenta rara ousadia semântica, com forte expressão sonora e certo brutalismo plástico, é por isso pouco citado nas listas canônicas, como se fosse um autor “menor” ou mero companheiro de viagem dos modernistas mais famosos. Como se não bastasse, até Oswald de Andrade, o arquiteto da poesia nova, é reconhecido com mais freqüência por seus notáveis romances experimentais (apesar da declaração de Jorge Amado, para quem “Oswald antecipou todos os temas com que iriam trabalhar os poetas brasileiros”). Dentro do cancioneiro oswaldiano, eu citaria especialmente O Escaravelho de Ouro e Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão, que conciliaram invenção poética, participação política e intensidade emocional. Murilo Mendes, cuja poesia completa foi editada em livro no Brasil em 1994 (quase duas décadas após o seu falecimento), é conhecido sobretudo pelos poemas de imagética surrealista, ficando em segundo plano suas obras mais complexas, como Convergência, Siciliana e Tempo Espanhol. Fenômeno similar acontece com João Cabral de Melo Neto, citado em muitas listas e manuais escolares como o autor de Morte e Vida Severina, poema dramático construído no feitio de autos populares do Nordeste, ou ainda por poemas narrativos como O Rio e O Cão sem Plumas. Estes títulos, ainda que de boa fatura, não têm a mesma concentração, densidade e invenção formal que a Fábula de Anfion, Antiode e Psicologia da Composição, onde temos a medida plena de um poeta rigoroso, que investiu contra o lirismo e o discurso linear, na conquista de novos territórios poéticos (aventura comparável, talvez, ao Objetivismo do poeta norte-americano William Carlos Williams). Como compensação a estas oscilações da crítica, é salutar perceber a releitura positiva de Jorge de Lima, cuja Invenção de Orfeu é uma das poucas tentativas de se criar um poema longo moderno em nossa língua (empresa que recebeu o elogio do competente poeta-crítico Mário Faustino, ele mesmo um cultor do “cinema prosa”, estudioso e tradutor de Ezra Pound, outro entusiasta da épica moderna). O outro lado da moeda é o quase silêncio em relação à poesia concreta, “aquela que não se deve nomear”, cuja contribuição à cultura brasileira (poesia, música, artes plásticas, teatro, multimídia) ainda causa em certos críticos verdadeiro horror. Nenhuma surpresa aqui. Todos os poetas que cultivaram uma linguagem inovadora foram colocados de quarentena, em nossa história literária, evitados como alienígenas, seres estranhos, bizarros, inquietantes, que precisam ser escondidos cuidadosamente numa caixinha de escorpiões: ali estão também os nomes mais radicais de nosso Simbolismo, como Ernâni Rosas e Pedro Kilkerry, e os românticos Bernardo Guimarães e Joaquim de Sousândrade, autores que projetaram no verso estranhezas semânticas e sintáticas que desafiam a visão rotineira das palavras e do mundo. Apesar da estratégia do boicote e do silêncio, os poetas que trouxeram informação estética nova e que ainda hoje provocam indignação e perplexidade são os nomes fundamentais, não os já assimilados ou domesticados, e logo incapazes de contribuir para a renovação de nossa poesia. Os críticos talvez não saibam disso, mas os poetas sabem, e isto é suficiente. •
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Oswald de Andrade: arquiteto da poesia nova
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LITERATURA
Um mestre argentino Além da excelência de sua própria obra, Horácio Castillo traduziu com perfeição alguns dos maiores poetas gregos Humberto França
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tradição da crítica literária argentina caracteriza-se por um rigor à altura das grandes obras que se têm produzido naquele país. O destacado reconhecimento da poesia e das traduções de Horácio Castillo, por parte de críticos notáveis, torna-se uma credencial, embora dispensável para um poeta do seu quilate. A partir do seu trabalho de tradutor, Castillo alcançou uma rara competência que talvez seja concedida apenas a grandes poetas, ao conseguir excelentes aproximações na tradução dos versos dos mais importantes poetas gregos da modernidade. A tradução de uma grande poesia requer uma habilidade próxima da perfeição no domínio de uma língua, exigindo uma espécie de transmigração literária do que se encontra magicamente interpenetrado na linguagem de autores de obras soberbas. Esta é a façanha que esse poeta-tradutor, nascido em Enseada, Argentina, em 1934, alcança, ao transportar para a língua espanhola a obra de Constantino Kavafis, mantendo a rara sincronia musical do demótico, a língua grega moderna. A lapidar tradução de obras de poetas gregos por Horácio Castillo encontra-se, no Brasil, ao lado do trabalho de José Paulo Paes e de Jorge de Sena, em Portugal, numa peleja para trazer à língua portuguesa a riqueza melódica e paradigmática daqueles versos. O escritor argentino também traduziu as obras de Odysseas Elytis, e apresentou, na língua de Borges, a poesia de angústia existencial de Giórgios Séferis, ambos ganhadores do Prêmio Nobel. Os versos de Yánnis Ritsos e os de Takis Varbitsiotis também mereceram o seu esmerado tratamento literário. Esses poetas formariam, desde os primórdios da Grécia moderna, um movimento que possibilitou a ressurreição da língua grega, após o seu longo adormecimento. Desde o século 19, os esforços de escritores como Dionýsos Salomós, o poeta nacional da Grécia, e no século 20 com Palamás, Várnalis, Ouránis, Karyotákis e Randós, e o ficcionista Karantzákis, autor de Zorba o Grego, ajudaram a Grécia a se levantar como nação, cujo espírito se substanciava no cumprimento dos gregos com a sua língua sempiterna, que em si conservou a fortaleza onde eles encontrariam a sua identidade, depois de quase dois milênios de inexistência política. Continente junho 2006
LITERATURA A obra poética de Horácio Castillo, embora não seja “orientada para o grego”, como ele assevera, bebe a seiva da tradição greco-latina. Há ligações entre a sua obra e os poemas históricos de Constantino Kavafis, que também se nutria do “Grande despojo da Antiguidade”, salvado da avalanche que foi a nova religião semítica que nos legou sublimidade, mas, também “as raivas de um deus provinciano”, antropófobo e tirânico. A poesia de Castillo transpira grecidade pela sua temática e linguagem lírica, exigente na espontaneidade, ultrapassando-se num discurso que, vencendo o “resplendor do trivial”, alça-se para tocar os domínios da metafísica. A sua trajetória se inicia em 1971, com o livro de estréia Descripción, prosseguindo até o seu mais recente A Música de Vítima, do qual destacam-se poemas de estremecedora beleza, como: “O Peito Branco, o Peito Negro”, permeado, talvez, em nuanças da psicanálise kleiniana. No poema “Na Coxa do Deus”, observa-se uma reinvenção ao tema edipiano. Em “Epigrama”, encontro um possível diálogo dos seus versos com o poema de Ovídio “O Poder da Poesia”. Os seus temas igualmente acercam-se do testemunho místico de Tereza D’Ávila e de San Juan de la Cruz, sem no entanto se abismarem no religioso. Influenciado desde a adolescência pela leitura de Hölderlin, que o apresentou à literatura clássica, Castillo reinterpreta essa tradição, afastando-se dos seus excessos e das vertigens teóricas em torno da poesia, para produzir uma linguagem medida por um contumaz encontro com a beleza. Os demais livros da sua contida produção, Tuerto Rey (1971), Los Gatos de la Acrópolis (1998), La Casa del Ahorcado. Obra Poética 1974 – 1999, Antologia Poética (2000), Mandala e por un poco más de Luz. Obra Poética 1974 – 2000 (2005), se completam com uma ensaística referencial: Ricardo Rojas (biografia) (1999). Dario Y Rojas – Una Relación Fraternal (2002), um estudo sobre o poeta nicaragüense Rubén Dario, e La Luz Cicládica y Otros Temas Griegos (2004). Os livros foram traduzidos para o francês, inglês, italiano e português Escritor que recebeu os mais importantes prêmios literários do seu país, jurista, membro da Academia Argentina de Letras, professor emérito da Universidade de La Plata, Horácio Castillo é também correspondente da Real Academia Espanhola e pertence ao conselho editorial da revista internacional de cultura Franchachela, de Buenos Aires, dirigida pelo escritor argentino José Kameniecki, líder de um movimento pela integração cultural da América Latina, que inclui, na Argentina, mestres do pensamento e da literatura, como o admirado scholar portenho José Burucúa, o escritor Jorge Ariel Madrazo, ao lado de poetas do tope de Norma Perez, Beatriz Schaeffer, Martínez Astorino, Edgardo Elois, Mireya Keller e do colombiano Ruben Rodrigué, diretor da revista Rampa. Horácio Castillo, que traduziu para o espanhol, A Noite de um Dia, o livro de poemas deste articulista, num recente ensaio sobre a criação poética, citou Alain Bosquet: El poeta es el poema, e sobre si mesmo, confessou: ...me considero sólo un servidor de la Belleza. Um servidor de alta categoria, acrescente-se. •
Poeta grego Odysseas Elytis
O poeta e tradutor Horácio Castillo
Constantino Kavafis
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Tatuagem e A Rua do Padre Inglês Marcelo Pereira: estréia consistente
Livros de poemas de Everardo Norões e Marcelo Pereira são daquelas obras que jamais cogitam em dispensar a descoberta e a surpresa que a poesia sempre insiste em revelar Luiz Carlos Monteiro
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Tatuagem, Marcelo Pereira, Bagaço, 122 páginas, R$ 20,00.
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ois livros de poesia lançados recentemente refletem a diferença absoluta entre dois poetas locais, Marcelo Pereira e Everardo Norões. O primeiro, que tem como atividade principal o jornalismo, chega com Tatuagem, edição conjunta da Bagaço e do Instituto Maximiano Campos. Everardo Norões, economista e cearense radicado no Recife de há muito, já tem outros trabalhos circulando desde 1981, caso dos Poemas Argelinos. Ele reaparece agora com seu quarto livro, A Rua do Padre Inglês, pela 7 Letras, editora do Rio de Janeiro. O volume, da coleção Guizos, está dividido em três partes, que são também títulos de poemas: “Lavador de Pratos”, “A Rua do Padre Inglês” e “Nuvens”. São características básicas dos poemas de A Rua do Padre Inglês a densidade e a precisão, contrapostas a um certo tom metafísico. E isto resulta numa multiplicidade de efeitos fonéticos e rítmicos buscados e rebuscados poema a poema, verso a verso, palavra a palavra, além de recortes de uma profundidade intrínseca no tratamento de questões polêmicas e intrincadas que envolvem dialéticas como homem-máquina ou homem-natureza. Há poemas e palavras que estabelecem relações lingüísticas fora da língua-pátria e também retratam vivências, paisagens, situações, encontros e ausências referentes a outros países e regiões, que não apenas o Brasil. Em Tatuagem, Marcelo Pereira percorre os recantos, labirintos e guetos da urbe, servindo-se da linguagem de colóquio comum a quem acompanha o rito noturno da cidade, ou que se encontra perfeitamente adaptado à fumaça diurna e às buzinas estridentes de carros, ao barulho nem sempre educado das conversas, dos pregões e dos negócios. Sem deixar de pensar no que isso representa de paradoxal, e constatando-se que o haicai é a forma que mais se destaca no livro, Pereira rende mais quando dele se afasta e trabalha outras formas poéticas. Apesar da concisão difícil de ser alcançada e do resultado satisfatório de alguns deles (“Canoa Quebrada” e “Móbile”, por exemplo), o haicai veio se tornando mais um mero jogo lúdico que qualquer um pode praticar. Nos poemas em que se estende mais um pouco, ele se sai bem melhor, como em “Sem Resposta”, último do livro: “O silêncio é arma de terrível crueldade// Tiro seco em carne viva dos amigos/ Faz secar a saliva das palavras// Murcha o verbo que explodiria/ A manhã em branco da página// Amarga marcha da noite/ Apagando sílabas// Escrevendo ao vento a solidão/ Nenhum vulto, ninguém a ouvir”. Em alguns daqueles que poderiam ser seus poemas de melhor desempenho conteudístico-formal em termos de
LITERATURA
precisão e radicalidade, ressoa, em proporção visível, os ecos da prosa: “o calendário/ armadilha suicida/ não faz previsão do tempo”. Este poema, “Sem Palavras”, incrusta-se em outro, dedicado ao músico norte-americano B. B. King. Ambos conseguem dizer mais do que o fôlego de quem escreve enseja e logra suportar, e por isso tendem à desritmização interna que os torna menos rigorosos formalmente. Marcelo é da geração de 1980, tendo absorvido as nuances literárias de 70, cujos poetas introduziram o coloquialismo em que, contraditoriamente, falavam de si mesmos, abusaram do verso curto e difundiram uma gritante facilidade no escrever. Ele, contudo, persegue sempre em seus poemas o diálogo direto e aberto com alguém nominado, a companhia humana e próxima para partilhar saídas e festas, sono ou trabalho, fazendo com que seus versos originem-se, sem escamoteações ou esquivanças, de um eu explícito e assumido. Norões carrega influências de 45, sendo Mauro Mota o poeta com quem mais dialoga, e de quem adquiriu certa maneira de empregar verbos e vocábulos onde hiberna ou se liberta a ação, e com quem divide a dicção grave que leva a uma retórica bastante reconhecível e centrada na realidade prosaica de um cotidiano encontrável mais no passado que no agora. “Náusea Matinal” se destaca como um bom representante da fala solene que atravessa muitos poemas do livro: “Restos de falas na mesa/ e a náusea matinal./ O bule, a xícara, os copos./ A mão, submersa no sal,// da tarde, na planície,/ tão clara, dessa mesa,/ onde deslizam os repastos/ da habitual tristeza// que cobre a toalha branca/ de rendas. E essa fome,/ bordada sobre a mesa/ como as iniciais de um nome.// O jarro, com flores e/ as cinzas do outro dia,/ fugindo aos arabescos/ das rendas, tão frias,// como as coisas distantes/ que nos aguardam à mesa:// o leite, o bule, o café,/ o sono, a morte, a incerteza.” Mesmo em vista disto, dessa voz abissal e subliminar, ele intenta e consegue momentos de uma ironia muito peculiar, que se mostra às vezes indispensável para a fruição de sua poesia, podendo-se conferir isso em vários textos, como neste trecho de “Quando se declina o Sol”: “Quando se declina o sol/ como o grego do meu ginásio,/ entre a haste da papoula/ e o gerânio calado,/ sinto-te perto.” De João Cabral, Everardo herda a visada que se volta para a exterioridade e nudez das coisas, para a comoção de quando se contempla, com o olhar e a força da poesia, cemitérios, paisagens ou cidades. A publicação destes dois livros vem demonstrar que, além dos poetas permanentemente em evidência, embalados na crista da onda literária (se é que existe mesmo isto), outros poetas trabalham em surdina e sem a pressa dos desavisados. Por motivos de ordens diversas, que só a eles mesmos cabe avaliar, teimam em esconder sua produção poética por um tempo que dura às vezes décadas. Mas, quando um dia se decidem a mostrar seus poemas, o resultado pode surpreender positivamente aqueles leitores e aficcionados que, independentemente de contexto ou situação, jamais cogitam em dispensar a descoberta e a surpresa que a poesia sempre insiste em revelar e trazer a lume. •
Everardo Norões: poesia madura
A Rua do Padre Inglês, Everardo Norões, 7 Letras, 104 páginas, R$ 19,00.
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PROSA
Valdívia, Chile Amílcar Bettega
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m frio de aço, azul e limpo na manhã que emerge na camada cinza de duas semanas de mergulho ao sul: avançar como em queda livre, verticalmente, chilenamente, descer por terras embebidas de chuva e ver que a partir daí o teu Chile vai se esfarelando nas águas geladas do Pacífico, desfazendo-se em ilhotas frágeis que bóiam abandonadas, à deriva, perdidas no gás dessa chuva que não se sabe se cai ou se levanta do mar, e descer ainda, descer por uma geografia indecisa, onde costa, horizonte, céu, mar, tudo é pulverizado, tudo é cinza. Então, o único caminho possível é o inverso, o outro sentido, então pode ser uma noite de ônibus e Valdívia, então, é um rio entre margens de cimento e ruas com bancos de madeira na manhã cristalina. Valdívia é ainda esse rio, ou esse mar, contra um rochedo que se abre em dois, que se abre em fenda e recebe a água, fria, porque o frio é a cor do Chile, em suas paredes frias, em suas pedras vulcânicas e cobertas de limo. E Valdívia é verde, Valdívia vem do verde, vivificada pela palavra que dorme no ventre da outra. Valdívia é,
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PROSA
como sempre, um deambular despreocupado do viajante solitário em pleno gozo de sua solidão, caminhada de descoberta, de horas que passam, gordas de um espaço que não voltará, que já é memória. Valdívia é tudo o que o olhar agarra desordenadamente e que mais tarde poderá ser uma rua, uma fachada, um sorriso através da vitrine. Mas Valdívia é um rosto, um rosto muito chileno, entre o mapuche e europeu, amorenado pelo sangue e o sol da cordilheira. Então um rosto, então Valdívia. Mas antes a idéia do passeio, 20 quilômetros de kombi até um lugar cujo nome a memória não vai reter. Antes, essa praça com feira livre, sábado, almoço, salmão e vinho branco, e já ali, no outro lado da rua, a kombi. Valdívia será então essa porta aberta da kombi, a visão que se tem desde e através dessa porta aberta: a calçada sob o sol, o andejar aparentemente despreocupado de sábado depois do almoço, o olhar moreno. E então algo se decide, do outro lado. Algo se oferece. E esse algo é Valdívia. Então Valdívia é corpo, que se põe ao lado desse outro corpo no último banco da kombi, e um contra o outro eles se espremerão com a entrada de mais dois, três, cinco passageiros, e a porta se fecha e tudo já é pleno jogo, Valdívia, um jogo que lhe é cômodo, que lhe legitima a timidez: estender ao máximo os gestos da aproximação, a dança do amor exibicionista, virtude narcísica do silêncio, a música dos olhos, flauta mágica e frágil. Os corpos se aquecem, colados assim um ao outro nesses 20 quilômetros de estrada e a impressão de que uma só palavra bastaria, uma só palavra e tudo passaria como normalmente se passa: a tarde inteira de teatro alegre, revelando, descobrindo, representando a mímica universal, tarde bêbada de sábado que escorre sob o sol, as ruínas de um forte, um morro, a visão do mar, e o mesmo sol que se alaranja, que mergulha e que prepara a noite, uma só palavra e tudo se encaminharia inevitavelmente para essa noite, um conhaque, vinho e um fogo na lareira estilo fotonovela, uma só palavra e Valdívia seria como esse lugar a 20 quilômetros de kombi. A kombi pára numa praça semelhante à da partida, todos descem, os corpos são devolvidos ao frio justo à entrada das ruínas de um forte no cume de um pequeno morro de onde se pode ver o mar e o sol que em seguida vai se inclinar sobre ele. Talvez seja isso Valdívia: o morro, as ruínas de um forte, lá embaixo o mar, e talvez aí o rochedo que se abre em dois. Mas é, sobretudo, o sol que vai começar a se inclinar. Valdívia é essa luz que se torna cada vez mais amarelada. Valdívia não é. Valdívia é uma frustração. Uma alegria, um pedaço de história, nenhuma fotografia. Valdívia é o que resta de todas as viagens, uma lembrança difusa, um nome sonoro ou uma nota de restaurante no bolso do casaco. Valdívia é Chile, Holanda, Hungria, Senegal. E será China, Turquia, México. Valdívia é essa luz amarelada que atravessa os anos latentemente. Valdívia não existe. O Chile não existe. Não existe o frio que no dia seguinte Amilcar Bettega é varrerá Santiago no sentido de suas avenidas, não existe a escritor gaúcho, autor Os Lados do Círculo, cordilheira vista do avião, não existem os mariscos, as navaruelas, de vencedor do Prêmio machas, huepos, puyes, choros, nem o ouriço do mar. Nem mar. Nem Portugal Telecom de esse mar que te afronta, difuso mar, chuva, neblina, gás, e o Literatura Brasileira em 2005. penhasco dos anos. • Continente junho 2006
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Poemas de Lucas Tenório
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POESIA
A face oculta da sombra Acougue Da carne o osso é parte é parte o sangue frio na arcaica e escarlate demão que a coloriu Em tons do arco-íris digestivos do sol que a carne em sua bílis fulgiu num urinol Do mesmo barro opaco que pretendeu lustrar algo tampouco laico e por sacralizar, A urina doce e quente da terra desposada a subserviente costela desossada Em matiz de placenta. Depois do incesto lato na cria empoeirenta num berço caricato, Choro de um quase-deus na dor da pedra manta que medra o sangue seu em verbo na garganta.
Lucas Tenório, 36 anos, pernambucano do Recife, vem publicando poemas na internet desde 2000.
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Falar de sombra em pedra é dizer-lhe da pluma no dizer que arremeda lamparina nenhuma. Na réstia do intestino de pedra a sombra brilha na íris do inquilino estilhaçada em quilhas. Na íris sombra-marca de fractais dormentes em antiincandescentes soalhos de barcaças. Ancoradas a fio de ouro e de barbante cordames de extravio em treva naufragante Engolfada em um sol de feito estomacal espelhos de um atol de lava gutural. Em luz que é haurida em sua opaca cama matéria preferida do leito de sua chama E a luz e sombra dobram o mesmo e ambíguo sino no ferro em que se forjam os vãos do cristalino de transparência muda. Dos olhos palpebrados a sombra-luz exsuda o grito imatizado.
Papel de parede Entre o avesso recortado, entre a serra Maquinalmente empregada A palavra cresta escrita, nela berra A celulose decepada. Berra o gemido chiado O ranger dos dentes incisivos E em todos os prados O laminar lascivo. Lascivo na palavra Víscera, ferro, ventre Que o corte de por dentro, entre Escalavra. Abre-se-lhe um duto, um traço De caligrafia erótica Numa balaustrada gótica De braço a terraço. Dos morfemas, antes células O adorno do corpóreo espaço. Num bailado de libélulas De anca a espinhaço. E se a casa verbal é língua E a casa da casa monumento Escrita em sua dor, à míngua No antigo testamento, Dói a dor do corte, em Adão Do pênis que agora é falo Dói o corte do papel, cambão Num verbete em que não falo.
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AGENDA/LIVROS Geometria verbal
Reprodução
Relançado o diário de adolescência e juventude de Gilberto Freyre, importante documento para compreender o homem e a obra Freyre (sentado à direita), com amigos, no início dos anos 20
Diário genético
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ublicado pela primeira vez em 1975, quando o autor tinha já 75 anos, o diário (trechos) do autor de Casa Grande & Senzala abrange o período 1915 – 1930 – do momento em que o adolescente concorda com a Mãe (sempre grafada em maiúscula) em desfazer-se dos brinquedos de infância ao primeiro Natal como exilado da Revolução de 30 em Lisboa, quando se instala numa água-furtada e começa a garatujar “o trabalho que se tornará talvez um livro como não há igual: originalíssimo”. É uma leitura quase romanesca, ao passo que vai desvendando aspectos notáveis da complexa personalidade do escritor-sociólogo e a lenta construção do plano da obra que, em 1933, revelaria um Brasil diferente aos próprios brasileiros. Convivendo com aristocratas e pais de santo, alternando duras horas de estudos com visitas às mulatas das pensões de mulheres do Recife, Freyre vai misturando uma erudita base de conhecimento científico a sensações e fatos pouco prezados pela ciência para construir uma obra única. Tão paradoxal quanto o próprio autor, onde conviviam nem sempre harmoniosamente a razão e a paixão, o apolíneo e o dionisíaco. Vaidoso, anticonvencional, determinado a ocupar um lugar de honra entre a Sociologia e a Literatura, o jovem Gilberto registra reflexões e observações com grande argúcia. Do sexo à política, da maconha ao cotidiano, as experiências do autor são registradas já no estilo maduro do escritor, o que é explicado pela estudiosa Maria Lúcia Pallares-Burke, para quem se trata não exatamente de um diário mas de uma “biografia à prestação”. Não importa o gênero, diante da fascinação causada pelo desnudamento (parcial) de um dos mais poderosos e contraditórios gênios de nossas letras. (Homero Fonseca) Tempo Morto e Outros Tempos, Gilberto Freyre, Editora Global, 392 páginas, R$ 55,00. Continente junho 2006
Uma edição artesanal revela aquilo que alguns já sabem: nos rincões brasileiros, por aí afora, pulula uma literatura feita de letras e vida. É o caso de Théo G. Alves, da sertaneja Currais Novos, no Rio Grande do Norte, cujos contos aspergem gotas de um universo feito de memória e percepção. Por baixo de influências claras (e citadas), delineiam-se geometrias verbais anunciadoras de um escritor vocacionado. Vale a pena se deparar com achados como “O tempo tem muitos caminhos, muitos agoras” e pequenas obrasprimas como “Antônio e o escafandro”. A Casa Miúda, Theo G. Alves, edição artesanal, 96 páginas. Informações: imoralista@hotmail.com
Lente de aumento Depois de Abril é a estréia de Suênio Campos de Lucena na ficção. Seus contos, predominantemente urbanos, têm como centro a psicologia torturada de seus personagens – à maneira da escritora Lygia Fagundes Telles, cuja influência se faz sentir na suspensão final de muitos deles, como o que dá título ao livro. Um menino que experimenta amor e morte num mesmo dia e lugar; um encontro, esperado há décadas, entre um homem e uma mulher; ou a solidão de três mulheres que esperam um parente misterioso: pessoas em momentos dramáticos sob uma lente de aumento. Depois de Abril, Suênio Campos de Lucena, Escrituras, 142 páginas, R$ 20,00.
Sarcasmo
Marcada por bons diálogos, a história de O Faz-Tudo, de Bernard Malamud, conta as experiências de Iákov Bok que, entediado das mesquinharias de sua aldeia e cercado pelas leis do Torá, parte para Kiev onde viverá uma grande mudança em sua vida. O teor sarcástico e os personagens comuns dão uma vivacidade própria à obra. O livro foi premiado com o Pulitzer e com o Nacional Book Awards, duas das mais importantes premiações da literatura norte-americana, e coloca Malamud no rol dos grandes escritos judaico-americanos. O Faz-Tudo, de Bernard Malamud, tradução de Maria Alice Máximo, Editora Record, 400 páginas, R$45,90.
Marx não, Groucho sim A Coleção Baderna, da Conrad Editora, nos brinda com o título Groucho-Marxismo, do sociólogo e escritor americano Bob Black, espécie de Mencken mais radical e bem-humorado. Alinhado criticamente ao anarquismo, Black defende “a revolução pela diversão” e ataca impiedosamente comunistas e capitalistas, Estado, Família, Igreja, Propriedade, Trabalho e Tecnologia e mais tudo que for instituição que, a seu ver, contribui para escravizar e infelicitar o homem. De sólida formação acadêmica, destila ditos hilariantes, como “A arte é o substituto mais inadequado para o sexo”. O Groucho-Marxismo, Bob Black, Conrad, 120 páginas, R$ 19,00.
Imagens: Divulgação
AGENDA/LIVROS
Alta qualidade
Tradução da primeira edição de Folhas de Relva, de Walt Whitman, traz excelente estudo sobre o poeta, seu livro e seu tempo
A contista premiada Lúcia Bettencourt
A Secretária de Borges, Lúcia Bettencourt, Editora Record, 176 páginas, R$ 34,90.
Sesc incentiva novos escritores Já estão abertas as inscrições para as categorias Conto e Romance do Prêmio Sesc de Literatura 2006
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o dias 7 e 8 deste mês, acontece a premiação do Prêmio Sesc de Literatura 2005, no Espaço Sesc Rio de Janeiro. Na ocasião, serão abertas as inscrições para o Prêmio Sesc de Literatura 2006 e a Editora Record, que é parceira da iniciativa, lançará as duas obras premiadas nas categorias Romance e Conto em 2005: respectivamente, Hoje Está um Dia Morto, de André de Leones, 26 anos, de Silvânia, Goiás, e A Secretária de Borges, de Lúcia Bettencourt, 54 anos, do Rio de Janeiro. A premiação do concurso consiste na publicação e distribuição nacional do livro. O Sesc adquire mil exemplares de cada livro para distribuir na rede de bibliotecas da entidade. Prêmio nacional, traça o perfil da nova geração de escritores no país e vem revelando talentos inéditos. O vencedor do Prêmio Sesc em 2003, Marco Cremasco, foi finalista do Prêmio Jabuti, na categoria Romance, com o livro Santo Reis da Luz Divina. Já o romance vencedor em 2004 As Netas da Ema, de Eugênia Zerbini, em menos de um ano esgotou a primeira. edição de 4.000 exemplares. A Record já lançou a segunda edição. A versão 2005 do Prêmio recebeu 540 inscrições, das quais 45 obras foram pré-selecionadas por cinco subcomissões regionais. Esta foi a primeira vez em que o concurso ofereceu a categoria Conto. O Sesc Pernambuco coordenou a etapa final, com os escritores Marcus Accioly e Marco Polo Guimarães na comissão julgadora. Na categoria Romance, integraram a comissão os gaúchos Moacyr Scliar e Luiz Antônio Assis Brasil. O regulamento do Prêmio 2006 está disponível a partir deste mês, no site www.sesc.com.br.
O vencedor da categoria Romance André de Leones
Hoje Está um Dia Morto, André de Leones, Editora Record, 160 páginas, R$ 32,90.
A
primeira edição do livro Folhas de Relva, de Walt Whitman, ocorreu em 1855. Eram apenas 12 poemas, com um longo prefácio explicativo, de autoria do próprio poeta. Por volta de 1891, quando saiu a última edição do livro com o poeta ainda vivo, o 12o poema e o prefácio já tinham sido retirados, mas Flores de Relva tinha sido ampliado para 383 poemas. É, entretanto, aquela primeira edição que o poeta e ensaísta curitibano Rodrigo Garcia Lopes traduziu, acrescentando um posfáciodossiê sobre o poeta, o livro e seu tempo. Marco da poesia moderna mundial, lançado dois anos antes de As Flores do Mal, do francês Charles Baudelaire, o livro do norte-americano foi revolucionário de ponta a ponta. Primeiro, na capa, trazia só o título, sem indicação de autor. A “assinatura” era uma foto de Walt, em atitude desafiadora. O texto, poemas em versos livres em que se cantava a liberdade e o sexo (inclusive o homossexual), entre outras ousadias. A tradução procura atualizar as expressões “de rua” dos textos originais, para acentuar o entendimento do tom original de Whitman, que buscava um verso sobretudo antiliterário, sujo e pulsante como a própria vida. O dossiê que acompanha a tradução é um tour-de-force brilhante, que, além de não cair no elogio deslumbrado e descomprometido com a verdade crítica, traça uma detalhadíssima análise de Whitman como homem, como poeta e como participante de uma época turbulenta. (Marco Polo) Folhas de Relva, Walt Whitman, tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes, Iluminuras, 325 páginas, R$ 44,00.
Sem complacência Alheio à disputa entre poesia “atemporal” e poesia “de invenção”, que vem marcando a produção crítica e poética brasileira nos últimos tempos, Miguel Sanches Neto cria uma obra voltada antes de tudo para a vida real, no caso, a sua própria. Como em Drummond, a autobiografia e a memória são a principal matéria do poeta, mas, ao contrário do mineiro, que manejava uma sofisticada reflexão entre o amargo e o irônico, de vez em quando bem-humorado, Sanches Neto usa o verso direto, limpo, duro, sem enfeites, onde não há espaço nem para a ironia nem para o humor. Aqui, fica apenas o amargor e, às vezes, a crueldade necessária. É uma poesia sem autocomplacência e sem piedade do leitor. Uma poesia de quem tem o que dizer e não pode perder tempo com firulas. Para o poeta, o verso honesto vale mais do que todas as querelas da chamada “vida literária”. (MP) Venho de um País Obscuro, Miguel Sanches Neto, Bertrand Brasil, 108 páginas, R$ 21,00. Continente junho 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Danto matou a arte “Talvez o que mais ouça tolices seja um quadro de museu!” E. e J. de Goncourt (escritores do século 19)
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e fim em fim, a gente termina acreditando que nada tem fim, seja no tempo e no espaço, seja na eternidade e no infinito. Comecei esta crônica com ares metafísicos, para expor minha idéia de que os Estados Unidos não querem apenas o fim do Iraque, do Irã e da Coréia do Norte. Eles já proclamaram o fim da História e, agora, anunciam o fim da Arte. Daqui a uns 10 anos, proclamarão o fim da alma. Quando Francis Fukuyama, nascido em Chicago, lançou seu mais famoso livro, O Fim da História e o Último Homem, provocou um reboliço na área das Ciências Humanas. Eu mesmo espiei já com saudade meus dois volumes de História, de Heródoto, na tumba-estante do apartamento. Essa primeira impressão se foi quando comecei a ler releases sobre a obra. Não
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era bem o que eu pensava quando li as notícias no jornal. O triunfo do liberalismo capitalista era o encerramento da luta histórica por uma sociedade estável, permanente, comunitarista. Na verdade, o cristianismo e o comunismo eram, como a de Fukuyama, uma profecia. E, como as duas outras, o liberalismo ou, como ele quer, o comunitarismo, também poderá fracassar. O fim da História nada mais é, portanto, que a interrupção da busca do mundo perfeito. Não seria melhor considerá-lo uma utopia pop? O homem civilizado não é um caçador de tribo arcaica, que não espera mudanças a não ser no clima, no tamanho das famílias. O civilizado é um eterno insatisfeito, quer mudanças na política, na economia e nas artes. Se a civilização é a luta por uma nova tecnologia, por
MARCO ZERO
mais energia e mais bem-estar coletivo, a História nunca findará. Lembro até o que o escritor Abdias Moura chama de “ideologia do desenvolvimento”. Quando a nossa civilização se sentirá plenamente desenvolvida? Agora, os EUA anunciam o fim da Arte. Agora, não, em 1984, através de um ensaio do filósofo e crítico Arthus C. Danto, nascido em 1924, em Michigan. No último dia 19 de março, a Folha de S. Paulo, no seu caderno Mais!, publicou entrevista concedida pelo autor, já com 82 anos, a Paulo Ghiraldelli Jr. Antes que se pense que perderam toda a validade, as artes que foram realizadas ontem ou não realizadas, hoje, artes do tempo e artes do espaço, é preciso que se alerte que o que está finda para o autor é a sucessão histórica: estilos de épocas, vanguardas e todas as mudanças artísticas classificadas cronologicamente. O que Arthur Danto propõe é algo como um panteísmo estético: tudo é arte. Portanto, extingue todo rótulo ou definição que estabelece a diferença entre a Arte e não-Arte. A coisa é complicada. Não li o ensaio dele (que ele afirma ser mais atual do que nunca) e só dependo de sua entrevista para esta crônica. Copio um fragmento de resposta do Danto, que fala do seu encontro, com grande impacto, com o trabalho de Warhol: “se a ‘Brillo Box’ de Warhol fosse arte, qualquer coisa poderia ser arte, e, portanto, não havia nenhum modo especial de ser da obra de arte”. Pronto, os museus vão esborrar de sabão em pó, camisinhas e o que der na cabeça de alguém, que se julga artista, colocar, com o nome embaixo, numa exposição. Um livro de poesia pode ser a reunião de menus, listas para a lavanderia, tíquetes de supermercados, resultado de exame de saúde e o quanto o sujeito encontrar nas lojas ou lixeiras. Música pode ser escape de moto envenenada, apito de guarda, barulhos típicos dos sanitários, tosses, espirros e demais sons do lar, do bar e da rua. Basta gravar tudo isso, em ordem aleatória, e Danto a classificará de Arte. Arte é, agora, o que qualquer um chamar de arte.
Ah! Se isso fosse apenas uma piada de Arthur C. Danto! Mas se trata de um filósofo respeitável, que se tornou crítico de arte depois que encontrou num museu, como obra de arte, um pacote de lã de aço, destes que se vendem em todos os supermercados, assinado por Warhol. Quando Arthur Danto, depois de mergulhar na arte produzida na década de 60, especialmente a do seu herói Warhol, desistiu de procurar uma definição para a Arte e, entrevistado diz: “Uma definição filosófica da Arte não poderia excluir nada”. A Arte estava liberada da História da Arte, era o que eu sentia. A entrevista toda dá a entender que ele fala dirigindo-se às artes plásticas, porque não há exemplos nem citação das outras artes, embora todo o seu raciocínio abarque todas as manifestações artísticas. Sua tese se refere ao que nós, seres humanos, até certo ponto racionais, entendemos como Arte e História da Arte. Ele elimina, de um só golpe, uma disciplina filosófica, a Estética (a Filosofia da Arte) e as teorias essencialistas, estético-filosóficas, institucionais, simbólica de Goodman, estudadas e questionadas por Célia Teixeira. No máximo, se aproxima das teorias da indefinibilidade. Esses livros de Francis Fukuyama e Arthur C. Danto fazem furor no mundo acadêmico de hoje e nos nãoartistas, que querem uma justificativa para o fato de aquilo que fazem não desperte qualquer emoção nos seres humanos. Os artistas verdadeiros, que deixaram a insegurança na adolescência, estes estão por demais ocupados em criar em suas grandes obras, e não têm tempo para ler as teses sobre o fim da Arte e o fim da História. Basta-lhes o fim do dia. Em certo trecho de sua entrevista, Arthur Danto confessa que o seu interesse na Arte dirige-se mais ao sentido do que à forma, distanciando-se de Aristóteles, para o qual o objetivo da Arte está em si mesma, seu objetivo é puramente estético (Platão pensa o contrário). O todo poderoso Lessing fica a meio caminho: “A beleza é a única finalidade do artista, mas nem por isso a Arte deve ser autotélica.” Nessas coisas estou com o paripatético Aristóteles. •
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Portugal pós-moderno
Imagens: Reprodução
Um panorama da arte contemporânea portuguesa, através da obra de sete artistas, ganha visibilidade em Madri, numa exposição no Círculo de Bellas Artes Mariana Oliveira, de Madri
Une table qui alguisera votre apetit – le poids poli (2003),, de Francisco Tropa
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m tempos de políticas da diferença e da luta por reconhecimento de identidades minoritárias, também surgem movimentos de aproximação. A exposição Caminos: Arte Contemporáneo Portugués, no Círculo de Bellas Artes de Madri, é uma dessas iniciativas de estreitamento de laços entre dois países bastante diferentes, mas com uma larga história em comum e uma sensação de irmandade latente. Dentro dessa perspectiva de levar à Espanha um pouco da bagagem cultural portuguesa, estão reunidas obras de sete artistas portugueses da nova geração, que ainda não têm uma grande visibilidade internacional, mas que apresentam trabalhos relevantes, originais e são uma expressão do que se está produzindo em terras lusas.
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ARTES
Os trabalhos expostos ao deleite dos madrilenhos fazem parte da coleção da Caixa Geral de Depósitos, empresa portuguesa que começou a investir em arte contemporânea em princípios da década de 80. A política de aquisição sempre teve um caráter de prospecção, investindo em jovens artistas. Recentemente, a seleção e compra de obras passou a incluir artistas brasileiros e africanos, unindo peças de toda a comunidade lusófona. Diante da necessidade de organizar uma exposição concisa, que pudesse realmente dar uma panorâmica da produção portuguesa, o curador Miguel Wandschneider optou por apresentar apenas obras adquiridas ao longo de 2005. A imagem, hoje objeto dos mais variados estudos e muitas vezes demonizada, é uma das essências do trabalho de Noronha da Costa; segundo contam, o mais filósofo dos artistas portugueses. Pintor, cineasta, escultor e arquiteto, o multiartista é também um entusiasta da filosofia de Nietzsche e também da de Heidegger, cujos pensamentos, de uma maneira ou de outra, terminaram absorvidos na sua obra. No campo do seu trabalho pictório, o cinema também exerce grande influência. Há uma tentativa de converter a própria pintura em imagem, como declarou o artista para um catálogo de exposição, em 1972: “O lugar do que é real, que é o quadro, coincide com o ser real do representado; o que realmente está pintado é o que existe de parecido: o corpo da obra é o invisível. (...) O caminho até o fim da metafísica é sempre tentar que o que representa (o ícone) e o representado (a parede iluminada) convirjam no mesmo”. Todo esse jogo em torno da imagem é expresso em seus quadros. Ao utilizar objetos industriais, como uma mesa e uma bola de ping pong, Ricardo Jacinto, o mais jovem do grupo, nos remete aos ready-made de Duchamp. No entanto, o artista não escolheu os ditos objetos por sua neutralidade estética, eles são simplesmente elementos dentro da construção da sua obra. Em Ping Pong Piece, esses dois ícones fazem parte de uma complexa articulação de movimento, ritmo e som produzidos, com a ajuda de um ventilador e um projetor. Essa peça engloba os principais códigos da produção do
À esquerda, Sem título (1972), de Noronha da Costa Acima,, Ping Pong Piece, (1999), de Ricardo Jacinto
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ARTES
Solitaire Universel, (1994), de Ana Jotta
artista: som e a exploração de elementos de exibição. Outro ponto fundamental é a interação com o público, convidado a participar e construir, junto com ele, o resultado final, numa tendência bastante recorrente na contemporaneidade. Peça de Embalar, exposta em Madri, carrega todo esse desejo de interatividade. Talvez Francisco Tropa seja o mais misterioso dos artistas portugueses contemporâneos. Suas obras podem ser entendidas como uma forma de tradução. Tropa atuaria como um “xamã”, dentro de uma zona nebulosa entre espaços, nos quais convivem várias épocas. Esse anacronismo é uma das suas principais características, como afirma o crítico de arte Nuno Faria: “O tempo a que pertence a obra de Francisco Tropa é o tempo absoluto, o tempo sem tempo, da vida e da morte”. Esse passeio por dois pólos opostos pode ser traduzido, por exemplo, na espécie de gangorra que utiliza em Une table qui aiguisera votre apétit – le poids poli. O artista se fundamenta num pensamento místico, acreditando em tudo aquilo que uma imagem pode propiciar, sem esquecer a sua transitoriedade. A sala dedicada a Ana Jotta consegue levar o espectador ao universo da artista, que tem um forte tom colecionista, como se ela tivesse reunido ali bibelôs. Seu “corpo de trabalho”, como prefere chamar, versa sobre apropriação de iconografias variadas, que podem ter tanto referências cultas, da História da Arte e da Literatura, quanto o suvenir kitsch. Seu ímpeto está dentro do processo de recolher e reciclar tudo que passa por ela, gerando obras nos mais variados suportes e técnicas. O problema identitário é outro ponto crucial para a artista que joga bastante com sua assinatura e a inicial do seu nome, numa alusão ao problema de copyright. Na obra Jotas, por exemplo, ela recolheu objetos e matérias variados que são modelos da letra jota. Continente junho 2006
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A outra presença feminina é a de Luisa Cunha, com Linha #1, bastante representativa das rotas seguidas pelo seu trabalho (a transparência do processo, o uso do corpo e da linguagem). Em uma sala, a artista traçou dois traços e uma linha de texto. O traço mais elevado corresponde à altura máxima da sua mão e o mais baixo à altura mínima que sua mão tem acesso sem ter que baixar-se. Entre os dois, lê-se a seguinte frase, repetidas vezes, ao longo da parede: los tacones de mi zapatos miden 5cm de altura y estando de pie ésta es la línea a lo largo de la cual escribo con menor esfuerzo escribir a lo largo de esa línea es escribir a lo largo de esa línea todo lo que escribiese por encima o por debajo de esta línea no sería escribir en esa línea. A obra é um registro da sua própria história e da sua própria realização. O processo de execução faz parte da obra tanto quanto o resultado final. Até mesmo o tempo tem papel fundamental, uma vez que o espectador revive o itinerário percorrido por Luisa Cunha.
Panorama demonstra a conexão da arte contemporânea portuguesa com as tendências gerais da arte na contemporaneidade. Há variedade de suportes (pintura, desenho, escultura, instalações, performances, vídeos), num momento em que, muitas vezes, o processo de criação e realização é mais importante que o resultado final
Linha # 1 (2002), de Luisa Cunha
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Acima, Happy Hours 2 (2005), de Bruno Pacheco Ao lado, Sem título (2005), de Jorge Queiroz
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Atuando em suportes mais “tradicionais”, há os dois últimos artistas. Apesar de trabalhar essencialmente com a pintura, Bruno Pacheco sugere o desenvolvimento da mesma em outros suportes, quebrando a distinção entre pintura e produção de imagens. Geralmente, o artista pinta a partir de fotografias, porém seu maior objetivo não é reproduzir o caráter realista da mesma, mas, sim, o caráter fotográfico da imagem fotográfica. Os vídeos, bastante utilizados por Pacheco, também aportam elementos para suas pinturas. Seus trabalhos encontram-se num ambiente exploratório, deixando dúvidas sobre sua proposta de erosão do pictórico, acompanhada de certa melancolia. Em Happy Hours 2, o artista se utiliza do símbolo do palhaço, recorrente na história da pintura, e deixa transparecer esse tom melancólico. Uma profusão de elementos, essa é uma boa maneira de descrever os desenhos de Jorge Queiroz. As peças do artista requerem mais que uma primeira mirada, exigem atenção à sua possível narratividade e tolerância ante sua dispersão. Seus desenhos formam redes de relações contraditórias, muitas vezes totalmente divergentes, que terminam despertando no espectador um enorme desejo de conectá-las. Apesar de trabalhar paralelamente com vídeo e pintura, o desenho é o grande locomotor de seu trabalho. Os outros dois suportes são sempre utilizados de formas relacionadas com o desenho, entendendo esse como modelo da prática criativa. Em suas obras, como ele mesmo afirma, apesar de ter um resultado concreto, há uma maior valorização do ato de desenhar do que da sua própria marca gráfica. Esse panorama demonstra a conexão da arte contemporânea portuguesa com as tendências gerais da arte na contemporaneidade. Há variedade de suportes (pintura, desenho, escultura, instalações, performances, vídeos), num momento em que, muitas vezes, o processo de criação e realização é mais importante que o resultado final. Nessa nova perspectiva, o público também assume um papel participativo, não só contemplativo, determinante para a finalização da obra, como no caso de Peça de Embalar, de Ricardo Jacinto. Uma arte pós-moderna, ou como prefere o filósofo Arthur Danto, uma arte pós-histórica, conceito que abarcaria melhor a pluralidade contemporânea. •
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inal da década de 40. Em Montenegro, pequena cidade distante 40 quilômetros de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, uma adolescente, que trabalhava com o pai na farmácia da família, sofreu um grave acidente que lhe deixou 70% do corpo queimado.O jovem doutor Antônio Estima, especializado em cirurgia plástica, foi chamado para atendê-la. O caso era desesperador, pois é sabido que queimaduras que atingem acima de 50% do corpo colocam a vítima em sério risco de morte. O doutor Estima, entretanto, dedicou-se fervorosamente a salvar a vida da jovem. Diariamente, após as consultas particulares em seu consultório, na capital gaúcha, viajava até Montenegro onde, após atendê-la, passava a noite. No seu esforço em restaurar o corpo da moça, o médico conseguiu convencer 45 pessoas a doarem pele para implantar na adolescente. Afinal, na época não havia bancos de pele para substituir tecidos necrosados. O período crítico, porém, foi ultrapassado com sucesso e, depois de algum tempo, o tratamento pôde ser feito com mais tranqüilidade, já no Hospital da Beneficência Portuguesa, em Porto Alegre. Essa é uma das histórias dramáticas que permeiam o livro Um Século de Cirurgia Plástica no Brasil – Mestres Vivos da Cirurgia Plástica e suas Escolas, do Detalhe de Vitória, do cirurgião plástico e artista Mário Augusto Amici Neutzling
Cirurgia com arte Livro de Moisés Wolfenson conta a história da cirurgia plástica no Brasil e mostra como a atividade exige, além de precisão científica, criatividade, sensibilidade artística e responsabilidade social Marco Polo Continente junho 2006
Fotos: Arquivo Pessoal MW
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Castelo (detalhe), do médico e artista Luiz Henrique Gomes
cirurgião plástico e escritor pernambucano Moisés Wolfenson. Resultado de uma pesquisa de cinco anos, o livro traça o desenvolvimento da cirurgia plástica em terras brasileiras, desde a fundação da primeira Escola de Cirurgia do Brasil, na Bahia, em fevereiro de 1808, e da segunda, em abril do mesmo ano, no Rio de Janeiro, ambas criadas pelo médico recifense José Maria Picanço, até a atualidade. Com um capítulo especial dedicado a Rebello Neto, tido como o pai da cirurgia plástica brasileira, o livro centra-se na trajetória de quatro mestres: o mineiro fixado no Rio de Janeiro, Ivo Pitanguy; o gaúcho Antônio Estima; o pernambucano Perseu Lemos; e o paulista Paulo de Castro. Os quatro, juntos, são responsáveis pela formação de 70 % dos 5000 cirurgiões plásticos em atividade no País. Um Século de Cirurgia Plástica no Brasil procura mostrar, também, como a atividade exige, além de precisão científica, muita criatividade, sensibilidade artística e – por último, mas não menos importante – responsabilidade social. Os mestres – Aos 34 anos, Antônio Estima sofreu o pior acidente que poderia acontecer a um cirurgião: teve os tendões da mão direita cortados por um vidro de janela. Atendido pelo maior especialista da época, o argentino Hector Marino, passou por diversas cirurgias e ficou dois anos impossibilitado de trabalhar. Quando voltou à ativa, graças ao seu talento e força de vontade, tornou-se a maior autoridade do País em cirurgias de mão. Já o autor do primeiro tratamento de impotência sexual masculina, com implante de silicone, em toda a América Latina, foi Perseu Lemos, um fértil criador de técnicas novas e aperfeiçoador de outras já existentes. Em 1971, aos 46 anos, deixou sua próspera clínica no Recife e foi para o Vietnã, então em guerra com os Estados Unidos. Fixou-se em Saigon, no Vietnã do Sul, treinando médicos e atendendo vítimas da guerra, incluindo habitantes da inimiga Hanói, queimadas pelo napalm (lançada pelos aviões norte-americanos), que entrava em combustão ao contato com a pele humana. O dublê de cirurgião plástico e jornalista, Paulo de Castro, foi um dos principais responsáveis pelo início da assistência médica aos menos
Meia Lua, do cirurgião e artista plástico Ronan Horta de Almeida
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ARTES favorecidos. Após escrever numerosos artigos sobre assistência social, juntamente com o médico pernambucano Durval da Rosa Borges criou a Sociedade de Medicina Social e do Trabalho e a revista Medicina Social. Foi também quem elaborou o projeto de instituição, em dezembro de 1966, em São Paulo, do pioneiro Hospital dos Defeitos da Face, do Sesi, que atendia gratuitamente pessoas sem recursos financeiros. Ivo Pitanguy, membro da Academia Brasileira de Letras e idealizador de diversas técnicas revolucionárias, colocou o Rio de Janeiro como um dos pontos centrais no mapa internacional da cirurgia plástica, tendo entre seus clientes personalidades de destaque de todas as áreas em todo o mundo. Seus discípulos hoje se espalham por 40 países, de Bogotá a Pequim, e ele é considerado o Pelé – ou seja, o talento máximo – da especialidade médica à qual se dedicou. Pitanguy vê similitudes entre a atividade do cirurgião plástico e o artista. Para ele, "como o pintor prepara suas telas, sua tinta, o escultor sua pedra, devemos preparar o ser antes de nele intervirmos. É através de uma teia de criatividade e cumplicidade, tecida entre o cirurgião e o seu paciente, que ambos alcançam o entendimento quanto ao resultado desejado". E acrescenta: "a cirurgia plástica encerra uma finalidade transcendente, que é a tentativa de harmonizar o corpo com o espírito, a emoção com a razão, visando estabelecer um equilíbrio interno que permita ao indivíduo sentir-se em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca". São esses apenas alguns dos aspectos de cada um dos quatro mestres biografados por Moisés Wolfenson em seu livro, mas que servem para realçar o caráter específico de cada um e importância de todos. A pesquisa, desenvolvida no livro, vai bem mais longe, com detalhes biográficos, especificações técnicas de suas habilidades, premiações, viagens, cursos que ministraram, casos exemplares em que atuaram, além de depoimentos dos discípulos ilustres. Moisés diz que quis fazer uma homenagem aos mais importantes cirurgiões plásticos brasileiros vivos. "Sou a favor das homenagens enquanto as pessoas estão vivas", diz ele, "Até porque podemos conversar com os homenageados e registrar a história enquanto está acontecendo".
Mulher Desconhecida, do médico e artista Romero Glasner
O autor – O recifense Moisés Wolfenson formou-se em Medicina em 1971, pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo feito especialização em Paris com Paul
Ivo Pitanguy, Antônio Estima, Perseu Lemos e Paulo de Castro
Bob Wolfenson
Fotos: Arquivo Pessoal MW
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Fotos: Arquivo Pessoal MW
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Restaurant Row Old Town (detalhe), do médico-desenhista Richard Boies Stark
Ao lado, Cafezal Prédio, do médico e artista plástico Aldir Mendes de Souza
Tessier, tido como um dos gênios da cirurgia plástica mundial. Fez cursos no México, na Argentina e nos EUA. Em Pernambuco, seu mentor foi Perseu Lemos. Autor de diversos trabalhos científicos publicados em revistas especializadas no Brasil e no mundo, é também poeta, tendo lançado os livros Paraíso Suspenso (1997) e Antiquário de Sonhos (2000). Como letrista é parceiro de compositores como J. Michilis e Nando Cordel, entre outros. Escreveu o livro Transformações – Arte e Cirurgia Plástica, no qual procura traçar paralelos entre a História da Arte e a História da Cirurgia Plástica Mundial – e brasileira, especificamente –, além de revelar médicos de todo o mundo que têm como atividade paralela o exercício das artes plásticas. Moisés Wolfenson é autor, ainda, do livro de crônicas Metamorfose – A Beleza ao Alcance de Todos, em que presta esclarecimentos sobre os diversos métodos de intervenções plásticas disponíveis para homens e mulheres. Segundo ele, hoje em dia a cirurgia plástica evoluiu de tal modo que a maioria das atuações médicas são feitas com anestesia local, em tempo curtíssimo e sem necessidade de internação. Isso quando não são feitas intervenções
Roberta Mariz
sem uso de bisturi, o que torna o tratamento mais rápido não só em sua execução quanto na recuperação do paciente. Com a crescente divulgação da prática, a cirurgia deixou de ser um privilégio das classes mais abastadas, tornando-se acessível praticamente a todos. Além do mais, boa parte dos profissionais dedicam um período da semana, ou do mês, ao atendimento gratuito a pessoas que não têm o menor recurso econômico, mas necessiO cirurgião tam de uma plástica corretiva. plástico e escritor Moisés Lançado no final do mês Wolfenson passado na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, e na Livraria Saraiva Mega Store, em Porto Alegre, Um Século de Cirurgia Plástica no Brasil terá lançamento este mês, no auditório da Fiesp, em São Paulo, e no Palácio das Princesas, no Recife. •
Um Século de Cirurgia Plástica no Brasil – Mestres Vivos da Cirurgia Plástica e suas Escolas, Moisés Wolfenson, Imagens da Terra Editora, 240 páginas. R$ 100,00.
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Rupturas A ruptura implica a rejeição ou o abandono da “sabedoria” conquistada. O retorno ao nãosaber é o fenômeno cíclico que injeta energia nova no processo artístico
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que o chulo acrescenta à nossa vida? O que a coisa primária, óbvia, mal realizada ou fácil nos acrescenta? Nada, claro. É preciso ter coragem de dizer que um óleo de Almeida Júnior, com sua mestria e apuro, a delicadeza do jogo de sombra e luz, de nuances e contraste cromáticos, só por preconceito estético pode ser desconsiderado. Ninguém realiza uma obra como essa sem mestria e talento. Estou me referindo à tela O Importuno, de Almeida Júnior, que foi exposta na mostra Erótica, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio. Sabemos que a arte muda nem sempre por razões artísticas, porque já não seja possível criar nada dentro daquela tendência ou estilo. Muitas vezes a arte muda porque algum artista dissente da linguagem estética em voga e propõe outro caminho, que pode resultar numa ruptura. Dou como exemplo Picasso, ao pintar Les Demoiselles d’Avignon, que significou um salto abrupto, inesperado, com relação à pintura de Cézanne, em cuja obra já havia um início de rompimento com a pintura presente, mas preservando a relação com a natureza. O quadro de Picasso rompe com tudo e, a partir dele, abriu-se um novo caminho para a expressão pictórica. Outro exemplo é o urinol de Marcel Duchamp, enviado para a exposição dos Independentes em Nova York, que pôs em questão a natureza mesma da arte tal como era concebida até então. Propôs como obra de
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Divulgação/Acervo Pinacoteca São Paulo
O Importuno, de Almeida Júnior
TRADUZIR-SE Reprodução/Acervo Continente
arte um objeto industrial, produzido em série, que questionava toda a arte fundada no trabalho artesanal e os valores estéticos resultantes da elaboração dessa linguagem. Quando se vê, numa mesma exposição, juntamente com aquela tela de Almeida Júnior, algumas outras de simplória concepção e pobre realização, a gente se convence de que, de fato, a arte não evolui, apenas muda – e às vezes muda para pior. Certamente, não pretendo lançar mão de trabalhos medíocres como argumento contra determinadas tendências, mas não resta dúvida de que a presença deles numa mostra seletiva, como esta a que me refiro, indica que a visão crítica preponderante reconhece qualidade artística em obras indiscutivelmente medíocres, especialmente se comparadas com outras, presentes na mesma mostra, em que o talento e o domínio técnico são evidentes. Caberia talvez a ponderação de que, por se tratar de uma exposição temática, as obras teriam sido escolhidas muito mais por se adequarem ao tema do que por sua qualidade estética propriamente dita. No entanto, aceitar semelhante argumento seria admitir como justo o critério que nivela por baixo a escolha das obras. Esse não é o caso, uma vez que, naquela mostra, os trabalhos realmente ruins constituíam exceções. Se, como observei antes, nem sempre a mudança, no campo da arte, significa obrigatoriamente melhora de qualidade, cabe refletir sobre o que significa na avaliação das obras. Num primeiro enfoque, deve-se reconhecer que, sem as rupturas, a arte se manteria repetitiva e conseqüentemente pobre, do que resultaria, inevitavelmente, o empobrecimento da produção artística. A ruptura, por definição, implica a rejeição ou abandono da “sabedoria” conquistada. É um recomeço, um retorno a certo não-saber que dará origem a uma nova elaboração da linguagem artística. Esse retorno ao não-saber é o fenômeno cíclico que injeta energia nova no processo artístico. Pode até ocorrer que os primeiros gestos de ruptura se esgotem ao consumá-la e não produzam nada de maior significação, mas podem abrir caminhos fecundos e inovadores. Por essa razão, não se devem julgar as obras senão pelas qualidades que incorporam, e essa avaliação sempre exige distanciamento no tempo. É o que se verifica ao rever o processo artístico e seus movimentos mais significativos; é quando então constatamos que muitas obras, que tiveram destaque no momento em que se deu a ruptura,
Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso
mais tarde se mostraram pouco consistentes, enquanto outras, criadas depois, incorporaram qualidades que não encontramos naquelas. Por isso mesmo, pouco importa se a obra se insere neste ou naquele movimento renovador; o que importa mesmo é que ela tenha alcançado a plenitude de expressividade que a define como obra de arte. Neste particular, Les Demoiselles d’Avignon é um exemplo raro. Se bem se observa, embora o rosto das figuras lembrem máscaras africanas, a atitude de algumas delas aludem às Les Baigneuses, de Cézanne, que foi sem dúvida a real fonte inspiradora do pintor espanhol. Essa conjunção de imagens díspares, nascidas de vertentes culturais muitos diversas, terá sido o elemento detonador, mas o que importa assinalar é que, apesar da ruptura drástica que ali se consumou, Picasso não perdeu de vista a necessidade de imprimir unidade e consistência àquele conjunto de elementos em conflito. Esse passar do tempo, que valoriza a arte verdadeira – e Les Demoiselles d’Avignon só reafirmou suas qualidades com o passar do tempo também – desmistifica os trabalhos cujo conteúdo era simplesmente chocar ou acompanhar a onda do momento. • Continente junho 2006
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AGENDA/ARTES
Tudo ao mesmo tempo Três exposições distintas e simultâneas ocupam os salões do Mamam
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ora Longo Bahia, Emil Forman e o coletivo Recombo realizam mostras simultâneas nos salões do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) até o dia 9 de julho. Expondo no Recife pela primeira vez, a paulistana Dora Longo Bahia monta uma poética visual embasada na realidade contemporânea – ritmo frenético, contatos fugazes e violência. Aparece então uma São Paulo “feia, deprê e agressiva” e um Rio de Janeiro marcado pelas belas paisagens. É através do tripé instalação interativa, pinturas e fotografias que Dora reproduz o clima retratado por pichadores, roqueiros e artistas de rua das metrópoles. A segunda opção no Mamam fica por conta de Emil Forman – Inventário. O artista, que faleceu em 1983, deixou – como o nome da exposição já anuncia – um levantamento fotográfico sobre sua mãe, Antonietta Clélia Rangel Forman, que é o destaque da mostra. De uma forma geral, a exposição consiste na grande instalação (2500 imagens de Antonietta), 22 fotografias e três séries de desenhos. Esta é a estréia de Emil no Recife, mas a instalação não é inédita. A obra inaugurou, em 1975, a Sala Experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O Recombo traz a réplica de uma metrópole com direito a barulho, cartazes lambe-lambes pelas paredes, imagens de paisagens, do céu e do chão. Esse é o cenário criado no Mamam pelo coletivo, que prega o copyleft, onde cada membro pode fazer o download de uma parte da música e recombiná-la pra criar uma nova. O grupo nasceu no Brasil em 2001 e conta com músicos, engenheiros de software, DJs, professores, jornalistas e artistas plásticos que combinam em eventos ao vivo (resampling) e em instalações os conceitos do dialogismo. Os sons provenientes do público do museu também serão captados em
Imagens: Divulgação
Outras Canções e, abaixo, Escalpo Carioca, obras de Dora Longo Bahia
tempo real e processados pelo software ViMus. A idéia é trazer as pessoas para dentro do museu. Ao mesmo tempo, bicicletas com caixas amplificadas e rádios tocando os ruídos do público do museu espalharão o museu pelas ruas do Recife. A curadoria é de Moacir dos Anjos. Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife – PE). Até 09 de julho. Fone: (81) 3423.2095
Festival Internacional de Humor e Quadrinhos 2006 Enquanto Jesus pregou o respeito, Maomé sugeriu que o mundo fosse submetido às regras de Alá a todo custo. O mote do FIHQ 2006 é exatamente a diferença cultural entre Ocidente e Oriente, resultante dessa dicotomia religiosa: porque as artes gráficas exprimem muito bem esse confronto de costumes; porque os quadrinhos norte-americanos diferem dos Kuaitianos nitidamente. Como peças-chaves nesse dialogismo, aparecem o consagrado ilustrador norte-americano Peter Kuper e o editor kuaitiano Naif AlMutawa. O primeiro vive em Nova Iorque, e tem trabalhos publicados regularmente em revistas como Time e Newsweek, além dos jornais Washington Post e New York Times. Já o segundo é Vencedor do Continente junho 2006
Prêmio de Literatura Infantil da Unesco (1997) e desenvolve uma série de super-heróis, cujos poderes têm origem nos 99 atributos de Alá. O FIHQ conta ainda com alguns dos principais representantes das artes gráficas brasileiras, a exemplo de Nani, a dupla Jal e Gual, Kleber Sales, entre outros. A programação inclui exposições, palestras, oficinas e debates. O Salão de Humor do FIHQ – 2006 irá premiar os melhores trabalhos em cinco categorias. Festival Internacional de Humor e Quadrinhos (FIHQ) 2006. Observatório Cultural Malakoff. Até 22 de junho. Mais informações: www.acape.gov.br/fihq2006.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
A “molecagem” de José Lins do Rego O dia em que virei “o maior orador de Sergipe...”
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osé Lins do Rego costumava fazer suas moQuis recuar, não consegui. Zé Lins ia me empurlecagens. Em 1950, Rafael Corrêa de Oli- rando para a beira do palanque. Fui obrigado a soltar veira me perguntou se eu gostaria de passar o verbo – logo eu, que detesto fazer e ouvir discurso. uma semana na Paraíba. Afinal, o que eu tinha a ver com a Paraíba e com a sua feroz política de rancorosos adversários? Já dava por – Fazer o quê? terminada a falação de quatro minutos quando novamente escuto a voz de Zé Lins, dessa vez vinda lá de – Dar uma mãozinha ao José Américo, é baixo, do meio da multidão: candidato a governador. Vou eu, vai o José Lins, outros. – Bis! Queremos bis! O sergipano é um Rui Barbosa! Bis! Pensei: uma semana de férias não é de se jogar fora. O coro, no princípio meia dúzia de vozes, foi Quatro dias depois, na Paraíba, eu já havia sido aumentando: compulsoriamente incorporado à caravana que estava acompanhando José Américo em sua turnê política – Bis! Bis! pelo Estado. Num dos comícios, em João Pessoa, eu estava ao lado do candidato quando, de repente, findo Não sei como consegui escapulir. Sei que estava o improviso de um dos oradores programados, vejo possesso. Procurei Rafael: José Lins do Rego apoderar-se do microfone, gritar o seu mote preferido, e nele se resumia a sua oratória – – Você viu a molecagem do Zé Lins?! “paraibano que não votar em Zé Américo é porque não tem vergonha na cara!” –, e logo em seguida, já E ele: com o microfone quase a me ferir os lábios, anunciar, com todo o seu vozeirão: – E você vai levar a sério? – E agora vai falar o jornalista Joel Silveira, o maior orador de Sergipe!
Não levei. Era melhor assim. • Continente junho 2006
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CINEMA
Visões do Interior Nova safra de filmes pernambucanos pode ser vista como viagens para a mítica e misteriosa região semi-árida das memórias afetivas e imaginárias Kleber Mendonça Filho
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m pouco mais de seis meses, foram lançadas três visões extremamente pessoais do interior nordestino, em três filmes loucamente diferentes entre si, de três diretores pernambucanos. Em ordem de lançamento, Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, A Máquina, de João Falcão, e, por último, Árido Movie, de Lírio Ferreira. Para a temporada 2006/2007, mais duas revisões do interior virão em Deserto Feliz e Baixio das Bestas. O primeiro é dirigido pelo paraibano radicado no Recife, Paulo Caldas, parceiro de Lírio na direção de Baile Perfumado, filme que remixou ainda um outro sertão, dez anos atrás. O segundo, de Cláudio Assis, que estreou urbano com Amarelo Manga (2002), mas agora prepara revisão da Zona da Mata. Os três filmes lançados recentemente podem ser vistos como viagens para a mítica e misteriosa região semi-áárida das memórias afetivas e imaginárias do burguês recifense intelectualizado. Gomes, Falcão e Ferreira nos dão visões externas dessa geografia específica, focadas em personagens forasteiros (quem sabe, eles mesmos) que olham para tudo aquilo com doses particulares de mistério, realismo, fantasia e/ou senso de perda. Revendo Árido Movie recentemente, voltaram à cabeça as imagens de Cinema, Aspirinas e Urubus e de A Máquina,
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resultando numa interessante (e muito estranha) sessão tripla imaginada. Gomes, que levou seu filme a Cannes 2005, releu o Sertão a partir das lembranças do seu tio avô, Ranulpho, deu enorme atenção aos dois personagens principais (um brasileiro, efetivamente o seu tio-aavô, e um alemão, vendedor de aspirinas), sofisticando o mito de João Grilo através de silêncios ali embutidos, de um sarcasmo rude que sugeria afinidade com um aspecto notável do filme: seu interesse pela quantidade de luz que entrava na câmera. Não só o carinho pelas memórias familiares está impresso ali, mas também as recordações de um cinema brasileiro do passado, daquela imagem mítica e esbranquiçada do mormaço, vistas num Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. É um filme simples, quieto, quase mono na sua eficácia, e que se mostra ciente de toda uma herança clássica do Cinema Novo. Na verdade, é um filme antigo, no sentido moderno do termo, e não deixa de ser curioso que, muito provavelmente, será este filme que, fechadas as contas, terá sido o mais visto desse trio pernambucano de releituras do interior, em termos de bilheteria (Aspirinas ultrapassou a marca dos 100 mil espectadores).
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CINEMA
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Cena de Baixio das Bestas, longa de Cláudio Assis, em
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CINEMA Já A Máquina (cerca de 50 mil espectadores, lançado com 70 cópias, sete vezes o número de cópias do lançamento de Aspirinas) reflete de maneira cristalina uma fase atual particular pela qual passa o cinema brasileiro, em especial na sua muito discutida relação de submissão comercial e estética à TV. Será certamente objeto de estudo, se já não o é. Há um posicionamento naturalmente associado à crítica de questionar filmes que evidenciam uma construção narrativa televisiva, num cinema que tem não apenas a cadência, a imagem e o tom de uma novela (ou especial da Globo), mas, principalmente, as ambições desse tipo de produto (comunicar? ser popular? faturar?). Curiosamente, o filme de João Falcão é uma obra pessoal, de um realizador que há mais de 20 anos trabalha com teatro, publicidade e televisão. Sua reinterpretação do interior é, objetivamente, trazida por um potpourri de estilos que refletem as suas raízes no teatro, propaganda e TV, transformadas no seu longa de estréia. A sua cidadezinha Nordestina, fictícia como a Rocha de Árido Movie, é cenográfica, artificial e mostrada pelo filme velozmente como se fosse uma agitada quermesse. Mais curioso ainda é observar que há paixão nesse longo especial, muito embora o resultado seja, para mim, uma visão estridente e ansiosa de um cinema feio, gestado na TV. Em termos de cinema, linguagem e vocabulário, há uma diferença abissal entre Aspirinas e Árido Movie de A Máquina, sendo ainda os filmes de Marcelo Gomes e Lírio Ferreira saudavelmente distantes entre si. No filme de Falcão, há ruídos de todas as cores, a palavra deseja falar mais que as imagens e, quando as imagens tentam falar, soam, em partes, soterradas de informação visual, ou simplesmente emudecidas. Em A Máquina, Nordestina e sua gente do interior são mostradas como fonte atemporal de ingenuidade estilizada via-distraída-condescendência para com todas as coisas interioranas. Dos três filmes, talvez seja A Máquina a visão urbana e sudestina mais forte para com o interior do Nordeste. Árido Movie, que estreou internacionalmente no Festival de Veneza, parece trazer o tratamento mais misterioso dos três, especialmente se o colocamos numa perspectiva de cine-bagagem histórica brasileira. Se há um realismo retrô-nacional em Aspirinas, ou um cinema eletrônico em A Máquina, Lírio Ferreira oferece uma abertura livre e completa para as possibilidades de se Continente junho 2006
fazer um filme no Brasil tendo o cinema universal como fonte confortável de possibilidades, preferindo não pedir uma benção clara e evidente ao Cinema Novo. Ele parece à vontade com as possibilidades do pop como elemento cinematográfico, sobrepondo-se ao arcaico via-estilo-alien-fashion que usa o CinemaScope para filmar não apenas enterros, mas também conversíveis, estradas e, um dos aspectos mais fortes do filme, seu grupo formidável de atores. Nos últimos 10 anos, e com a chegada das novas tecnologias, a imagem larga, que toma a tela inteira, virou moda no cinema brasileiro, mas poucas vezes o formato ganhou jogo tão interessante como aqui, em especial
CINEMA
Em `rido Movie, Giulia Gam é uma videasta paulista fascinada com o Sertão
na sua capacidade de sugerir um western nosso. É um filme de um pernambucano sobre um paulistano que volta às suas origens sertanejas. O Sertão é um interessante enigma para um bom número de personagens. O paulistano (Guilherme Weber), homem do tempo em rede nacional de televisão, reage a tudo com olhar estrangeiro, pois precisou voltar depois de anos para participar do enterro do seu pai (Paulo César Pereio), vítima de crime passional. Conhece na estrada uma videasta paulista (Giulia Gam), fascinada com aquele lugar agreste/sertão e
interessada pela figura de um velho líder místico que trabalha a água como elemento de fé. Carros-ppipa viram adereço de direção de arte no filme, que tem nas suas imagens de abertura tanto um copo com água como a água do mar que banha o Recife. O Sertão é também elemento de fascínio para três jovens burgueses da classe média pernambucana de corte alternativo (Selton Melo, Gustavo Falcão e Mariana Lima). Representam uma certa vocação pernambucana para a farra hard, e especial apreço pela macoContinente junho 2006
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CINEMA Gil Vicente/Divulgação
nha. De fato, para eles, a maior referência para o Sertão é a sua capacidade de produção da erva, numa espécie de mítico Shangri-la do THC. Eu não tinha gostado muito de Árido Movie da primeira vez que o vi, no Festival do Rio. Revendo-o, ficou claro que o filme cresce pelo que ele é, e não pelo que ele parecia ser. A frustração durante uma sessão de cinema vem sempre das ricas armações que um filme é capaz de lhe prometer, e, nesse sentido, Árido Movie é uma obra que se desenvolve a partir da sua incrível capacidade de ser pessoal, divertido e inconcluso na sua chapação. De fato, o filme parece ter na lógica interna da maconha uma das suas mais interessantes graças. Numa cena, personagens têm dificuldade de acabar suas frases, e o próprio filme mostra-se incapaz de concluir boa parte das suas idéias, e isso vai para a sua muito criticada conclusão. De qualquer forma, seria mais saudável o atual cinema brasileiro se tivesse bem mais desse tipo de afetação nem sempre bem-sucedida. Prostituição – Deserto Feliz e Baixio das Bestas estão em fase de pós-produção. Foram filmados quase que simultaneamente no Sertão, Zona da Mata e no Recife; o primeiro em dezembro e janeiro, o segundo em janeiro e fevereiro. Seus lançamentos estão sendo cogitados para o Festival de Brasília 2006, muito embora uma estratégia possível para o filme, dirigido por Paulo Caldas, seja Berlim 2007. Seu filme tem clara filiação alemã, sua trama Continente junho 2006
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começa no sertão de Petrolina, Pernambuco, e termina na própria Berlim. De toda forma, foi o primeiro longa de Assis, Amarelo Manga, que saiu premiado do importante festival alemão, em 2003. Seja como for, esperamos com interesse pela finalização dos dois longas. A exemplo de Árido Movie, os dois novos filmes também terão formato largo CinemaScope, representação especial da imagem de Pernambuco em tela de cinema. Conversando com os dois cineastas sobre suas intenções para com os filmes, percebe-se uma clara vontade de apresentar diagnóstico social do nosso hoje, através da geografia mudada pelo choque entre o velho e o novo, conceito presente em formatos totalmente pessoais e diferentes nos três filmes lançados recentemente por pernambucanos, Cinema, Aspirinas e Urubus, A Máquina, e Árido Movie, capitaneados por personagens que querem abandonar o interior. Em Deserto Feliz, temos a história de Jéssica (Nash Layla), uma menina de 14 anos que mora com a mãe (Magdale Alves, de Amarelo Manga e Árido Movie) e o padrasto Biu (Servílio de Holanda, do curta Entre Paredes, de Eric Laurence). Abusada sexualmente por ele, Jéssica verá no Recife uma fuga lógica e possível da sua vida sertaneja. No segmento de Deserto Feliz, filmado em Petrolina, e que tivemos a oportunidade de acompanhar, foi filmada uma região quase tão cheia de contradições quanto a própria capital, na costa. A pobreza contrasta com a riqueza da região, com vinhedos prósperos e prostíbulos de beira
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de estrada. “O filme é de ficção, mas foi feito e filmado como um documentário”, nos disse Caldas, em Petrolina. Numa cena importante – Jéssica faz um programa com um caminhoneiro, interpretado por Cláudio Ferrário, que a levará ao Recife –, “os dois fariam o programa na cabine do caminhão, mas achamos um quartinho ali atrás onde, na porta, está escrito ‘suíte presidencial – duplamente gostosa’. Usamos isso no filme”. No bairro de Boa Viagem, da capital pernambucana, a personagem continuará na prostituição e irá conhecer um alemão (Peter Ketnath, que defendeu o personagem estrangeiro em Cinema, Aspirinas e Urubus). Embora o próprio Caldas ainda não tenha estabelecido a linearidade, ou não-linearidade da sua narrativa, sabe-se que Jéssica irá para a Alemanha. As filmagens do terceiro segmento do filme, em Berlim, foram realizadas no último mês de março. Enquanto Caldas e sua equipe trabalhavam em Deserto Feliz, Cláudio Assis rodava Baixio das Bestas nos arredores de Timbaúba, Zona da Mata de Pernambuco. Durante o dia em que acompanhamos as filmagens (na verdade, o último dia dos trabalhos), ficou claro que, muito possivelmente, Assis trará para as telas uma das
visões mais inusitadas do interior dentro de sua abordagem tipicamente crua no filmar. Para o fotógrafo Walter Carvalho, “Baixio das Bestas será amarelo verde da cana”. Do universo urbano do primeiro longa, Assis parte agora para, ao que parece, uma análise sócio-cultural e humana da zona da mata moderna. “Um pouco como aconteceu com Amarelo Manga, Baixio das Bestas também é um filme – especialmente durante a filmagem – de núcleos”, nos sugeriu Dira Paes, também egressa da equipe de atores de Amarelo Manga. “Temos o núcleo dos agroboys, boyzinhos que dirigem pick-ups, temos as prostitutas, o núcleo do baixio, aqui na sede da usina. Cláudio faz um mosaico muito rico de gente, revelando o que, no cinema, a gente normalmente não vê. Em Amarelo Manga, tinha uma idéia muito boa, que era ‘só se ama errado’, e que eu acho que volta mais uma vez nesse filme”. Assis mostra-se, mesmo depois de findas as filmagens, um observador curioso do seu próprio filme. Parece querer saber se, ao final do percurso, ele, de fato terá um filme em mãos. “Oxe, e eu sei, é? Quero saber se terei, mas cinema é bem mais complexo e vivo do que esse tipo de certeza. Espero que tenha um filme sério, mas ainda vou ver”. •
Fotos: Divulgação/Camará Filmes/Fred Jordão
Cenas de Deserto Feliz, filme de Paulo Caldas que
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CÊNICAS
A alma por um fio Os bonecos, essas formas inanimadas que recebem almas emprestadas por um fio, metafórico cordão umbilical que os une aos seus criadores, merecem o palco de todas as atenções Moncho Rodriguez
É
fascinante o poder das marionetes, dessa arte teatral que cruza o espaço dos tempos, das histórias e das civilizações. A História do Teatro de Marionetes caminha passo a passo com a História da Arte e a do Teatro, reagindo e acompanhando os movimentos sociais, políticos e estéticos, na procura de novas formas de comunicar arte através da marionete. Esse teatro de bonecos, o brincar do mamulengo ou dos João Redondos que se espalham pelo Nordeste do Brasil, parece reafirmar que ainda estamos presos por fios invisíveis aos valores essenciais da Idade Média, onde a vida ainda é a antecâmara da morte e a preocupação do destino último pesa sobre todos os espíritos. É certo que a modernidade mascarou o fervor da fé, ocultou superstições e terrores, mas a Dança dos Mortos, a Divina Comédia, a última viagem do homem, o julgamento e salvação, ainda fazem do diabo vicentino, o Belzebu da Barca do Inferno, personagem protagonista na arte do teatro contemporâneo. Os valores desse medievo de sonhos e ficção ainda estruturam os dramas do teatro popular, as farsas e as comédias dos bufões, a ficção literária e dramatúrgica das melhores obras do teatro contemporâneo. Nesse universo do fabuloso, o teatro se faz celebração e festa. Então é importante reclamar que venham à cena esse teatro dos críticos e acutilantes bonequeiros populares, dos mestres herdeiros de Antônio José da Silva,
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O Judeu, os Gil Vicentes do Nordeste: Boca Rica; Zé Relâmpago; Chico Daniel; Augustos (de Sergipe e de Olinda), que venham e nos digam por que calam seus bonecos? Por que os deixam dormir e não se abrem as barracas, empanadas, tendas e teatros para que possam esgrimir suas armas, cacetetes e porretes, que mostrem as suas línguas ferinas de cartão e pano, que nos façam rir e exorcizar tantos demônios reais que nos atazanam? Quando materializamos nossos deuses e demônios em formas teatrais ou artísticas, podemos nos aproximar da verdade, mesmo que ela seja irreal. O universo onde vivem as marionetes, a ficção, determina a sua evolução e contemporaneidade. Recriam-se em função das estéticas e dos valores que cada cultura privilegia. Representam-se com mistério da fusão onde se mistura a ficção e a vida. Quem conta a história? O marionetista ou a marionete? Essa fusão entre o criador e a criatura, esse mundo que parece tão próximo do labirinto de espelhos, e aqui roubo a reflexão de Vargas Llosa, “onde tudo: personagens, forma artística, anedota, estilos, se desdobra e se multiplica em imagens que expressam na sua infinita sutileza e diversidade a vida humana”, transfigura de forma borgiana a marionete nu-
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CÊNICAS Imagens: Divulgação
Segundo Artaud, os bonecos são capazes de reintroduzir em cena o sopro do grande medo metafísico
ma ficção real onde a arte comove, a arte move, a arte revela no espelho a imagem de como nos idealizamos. Ao confrontarmo-nos com o mundo das marionetes, sentimos a nossa alma presa por um fio a um invisível manipulador do qual parece que queremos nos libertar. Um dia, num destes fantásticos acasos do teatro, tive a sorte de conhecer Zé Relâmpago. Um mestre bonequeiro do Rio Grande do Norte. Chegou ao Centro onde trabalhávamos para fazer uma demonstração, com seus 70 e muitos anos, estava quase surdo e isso lhe tirava a vontade de brincar. Vivia no abandono, lugar onde se desterram os mestres da tradição popular do Nordeste. Zé Relâmpago disse que queria vender a sua “família de bonecos”. Pediu-me que os comprasse, pois, assim, conseguiria um pouco de dinheiro para “tocar a vida”. Uma mala de bonecos, uma “família”, era como comprar o sonho, o irreal. Disse-lhe que sim. Alguns dias depois recebi a “maleta do sonho”. Esculpidos em madeira, toscos, quase que grotescos, tinham uma mistura de traços ibéricos, africanos e indígenas. As roupas de chita colorida, pintados com tinta de esmalte para madeiras, cores primárias, fortes. Os bonecos, quando me viram pela primeira vez, pareciam assustados. Ficaram estáticos. Olhos esbugalhados, bocas meio abertas, não disseram nada. – Mudos estavam, mudos ficaram. Tentei movê-los, animá-los. Coloquei um, e depois outro nos dedos, mas Continente junho 2006
não era o que eu tinha imaginado. Faltava-lhes algo. Não tinham vida, pareciam ter perdido toda a magia e encantamento... Cá comigo, ainda pensei: quem sabe foi a viagem, ou o cansaço ou mesmo a estranheza de quem se encontra assim, sem mais nem menos num lugar novo... desisti e guardei-os com todo o cuidado, com carinho. Lembrei-me do velho mestre Zé Relâmpago, de como eles viviam quando estavam nas mãos do velho bonequeiro, e foi então que caí na realidade: aquilo que eu tinha nas mãos, não eram os bonecos do mestre, o que eu tinha comprado eram pedaços de madeira esculpidos e pintados, a culpa era minha, tinha esquecido de pedir a Zé Relâmpago que não deixasse de mandar, junto, a alma. A sua força invisível, essa mistura de sagrado, mítico, sobrenatural, essa inquietante energia que emana da representação de um boneco ou marionete, levou Artaud, um dos maiores pensadores do teatro, a dizer que “sem corresponder a coisa alguma, mas inquietantes por natureza, são capazes de reintroduzir em cena o sopro do grande medo metafísico”. Medo e poder. Pelos seus significados na formação de tantos imaginários, essas formas inanimadas que recebem almas emprestadas por um fio, metafórico cordão umbilical que as unem aos seus criadores, merecem mais do que uma análise ou reflexão, merecem o palco de todas as atenções. •
CÊNICAS
Fios cruzados Projeto de intercâmbio entre Portugal, Brasil e Espanha pretende resgatar tradições do teatro de marionetes e bonecos, fazendo uma fusão de linguagens
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Barca de Gil Vicente vai cruzar o espaço do tempo e do mar. Içar velas rumo às terras do Nordeste. No mês de janeiro, iniciou-sse o projeto que partiu das Marionetes de Lisboa, capitaneado pelo bonequeiro e mestre José Ramalho e aportou em Aracaju. Ali, no Centro de Criatividade, que é dirigido pela pesquisadora e dramaturga Aglaé Fontes, desenvolve-sse um processo de pesquisa e parceria para a construção de uma co-pprodução, onde se reúnem criadores, bonequeiros, marionetistas e atores do Brasil, Portugal e Espanha. Com o mote de recriar o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, pretendem os co-pprodutores incentivar a recuperação de tradições do teatro de marionetes e bonecos, fazendo aqui uma fusão de linguagens, formas e expressões da tradição popular ao teatro contemporâneo e apresentar o resultado dessa encenação e pesquisa nos três países, na temporada de 2006. A origem deste projeto teve como ponto de partida o encontro realizado no final do ano passado com representantes do governo e da cultura de Sergipe e a Rede de Colaboração Cultural Ibérica dirigida pelo FIG de Palmela (Portugal). Sua proposta é incentivar o resgate de memórias e tradições populares, onde o Nordeste brasileiro detém e é, sem dúvida, um depositário privilegiado. Alargar a “Rede”, incluindo o Nordeste do Brasil, pode significar não apenas o resgate de memórias e tradições populares, mas também possibilitar a participação de jovens criadores nordestinos em projetos de intercâmbio e de formação artística e cultural. Cruzam-sse os fios das marionetes. Tecem-sse as redes visíveis no invisível universo do sonho…Que a Barca navegue, pois já é boa a maré. • Continente junho 2006
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AGENDA/CÊNICAS Fotos: Divulgação
Plataformas dançantes Segunda edição do Plataforma Recife de Dança Contemporânea faz da calçada o palco
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unho é o mês da quarta e última temporada do Plataforma Recife de Dança Contemporânea. Os espetáculos, apresentados sempre as quartas e quintas-feiras, no Teatro Arraial, trazem, na sua segunda edição, um diferencial na proposta cênica: apresentações no espaço externo do teatro – hall e calçadas. Em cartaz desde abril, o projeto já recebeu a Cia. Vias da Dança, Grupo Experimental, Cia. de Dança Fátima Freitas, Trupp Cia. de Dança, Kleber Lourenço, Patrícia Costa, entre outros. Nesta 4ª temporada – dias 7, 8, 14 e 15 de junho – se apresentam os grupos Etc. Dança Contemporânea, com o espetáculo “Entre 0 e 1”, sob direção de Marcelo Sena e Saulo Uchôa; a Compassos Cia. de Danças, com Comunhão, cuja coreografia e direção são de Raimundo Branco, e a Dante Cia. de Dança e
Teatro, com Encontros, de Black Escobar e Pedro Costa. No dia 13 de junho, acontece o segundo debate do projeto sobre políticas públicas para dança. O Plataforma é uma realização do Movimento Dança Recife e foi pensado como uma forma de sensibilizar o público, imprensa, poder público e artistas da dança para as necessidades políticas da área. Plataforma Recife de Dança Contemporânea – Ano II. Até 15 de junho, sempre às 20h, no Teatro Arraial (Rua da Aurora, 457, Boa Vista, Recife – PE). Informações: 81.3134.3012.
Susana Vieira revive Clarice Lispector Nada mais “Clarice Lispector” que a história de uma mulher à procura de sua verdade e de um sentido para a vida. Também não há nada que caracterize mais sua obra que a tendência à introspecção. E é exatamente esse o ponto de partida e de chegada do seu livro Água Viva que, adaptado à linguagem teatral, estréia no Teatro da UFPE nos dias 03 e 04 de junho. A peça narra o reencontro de uma mulher com ela mesma. Após um período de indagações, a personagem se reconcilia com a vida e passa a desfrutar, intensamente, todas as emoções possíveis, como paixões, sonhos, erotismo e desejos. Protagonizado por Susana Vieira, o espetáculo se passa em dois planos: o da realidade, no qual a escritora se apresenta em seu ateliê, escrevendo suas memórias e desfilando sonhos e fantasias, e no mítico – ao fundo da cena, dois bailarinos encarnam o alter ego da escritora e dançam as formas-pensamento criados por ela.
Água Viva. Dias 03 e 04 de junho no Teatro da UFPE (Av. dos Reitores, s/n, Campus Universitário, Recife – PE). Fone: 81.2126.8077/2126.8078.
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Neuroses Neuroses é um espetáculo formado por cinco esquetes de humor de jovens dramaturgos. Inéditos no Recife, os esquetes falam do cotidiano de pessoas comuns que manifestam as suas neuroses no dia-a-dia. Além dessa ligação, o que une as diferentes cenas é a linguagem dos quadrinhos, explorada nas suas mais diversas formas, desde os quadrinhos em preto e branco até os mangás japoneses. Sob a direção de Antônio Rodrigues, Neuroses traz textos de Rogério Mesquita (CE), Sérgio Roveri (SP), Antônio Rodrigues (PE), Yuri Yamamoto (CE) e Felipe Botelho (PE), que escreveu o texto final. Neuroses. Teatro Arraial (Rua da Aurora, 457 – Boa Vista, Recife – PE). Sextas e Sábados 21h e Domingos 20h, até 18 de junho. Ingressos: R$ 5,00 (preço promocional único). Informações: 81.3134-3012.
SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti Fotos: Adriana Calderoni / Ag. O Globo
Os sabores da Fußballweltmeisterschaft (Copa do Mundo) “Em futebol o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num corner bem ou mal batido, há um toque de sobrenatural”. Nelson Rodrigues
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uas bolas da marca Shoot, uma bomba de ar com pito, dois conjuntos de uniformes e um livro de regras – era quase tudo que havia na bagagem do jovem Charles William Miller, quando desembarcou no porto de Santos. Para desespero do pai, John Miller, um inglês sisudo que desde muito vivia por aqui. Tinha grandes planos para o filho. Dez anos antes, o havia mandado à Inglaterra - para estudar na Bannister Court Schhol, em Southampton. Mas esse filho gostava mesmo era de esportes. Naquele tempo, por lá, os preferidos da aristocracia eram equitação, caça e esgrima. Enquanto a gente simples se divertia jogando ruggby, cricket e sobretudo um jogo que acabou encantando Miller – o futebol. De volta, com toda aquela tralha, juntou amigos e ensinou esse jogo. A primeira partida oficial aconteceu em Várzea do Carmo, no distante 14 de abril de 1895. O São Paulo Railway (time de Miller) venceu a Companhia de Gás, por 4x1. Começava, ali, a história do futebol no Brasil. Uma história que nasceu não na Inglaterra, como pensam muitos; mas na misteriosa China, 25 séculos antes de Cristo – com registro em desenhos de soldados da mais antiga das dinastias, a Chang, disputando com pés e mãos o domínio de uma bola pesada, feita com ferragens e coberta com pele de animal. Depois uma evolução desse jogo surgiu na Itália medieval, o Calcio; chegando à Inglaterra só por volta de 1300, sendo pelos bretões então conhecido como Hurling. Depois veio seu nome óbvio foot (pé) + ball (bola). Literalmente, “pé-na-bola”. E logo se tornaria o mais popular esporte do planeta. Daí para a Copa do Mundo acabou sendo um pulo. A primeira, em 1930, foi disputada no Uruguai – campeão olímpico em 1924 e 1928. “Gol olímpico” vem daí – de ter sido o primeiro feito assim, com a bola Continente junho 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS do escanteio entrando no gol sem tocar em ninguém, numa Olimpíada. Os juízes demoraram para decidir se a jogada valia. O mesmo aconteceu com o primeiro gol de bicicleta – feito pelo baixinho Leônidas da Silva, na época center-foward do São Cristóvão. Seu apelido acabou dando nome a chocolate, ainda hoje bem vendido - o “Diamante Negro”. Nessa primeira copa, ficamos em 6º lugar. Em 1950, foi o desastre do Maracanã. Depois mudou tudo. Até a cor da camisa – que, de branca, passou a ser amarelinha. E o resto da história todo mundo conhece. Agora é na Alemanha, das Land der Dichter und Denker – terra dos poetas e dos pensadores. Foi lembrando Kant, Karl Kraus, Schopenhauer, Marx, Hegel, Nietzsche, Goethe, Brecht, Günter Grass, Einstein, Max Planck e companhia que Caetano Veloso (em “Língua”) disse: “está provado que só é possível filosofar em alemão”. Foi lá também que Johann Gutemberg imprimiu a primeira Bíblia, Kepler formulou as leis básicas do movimento planetário, Henning Brand descobriu o fósforo, Jacob Leupold construiu a primeira escala decimal, Klaproth descobriu o urânio, Robert Koch descobriu o bacilo da tuberculose, Marggraf extraiu cristais de açúcar da beterraba, Wilhelm Röntgen criou o Raio-X, Karl von Drais inventou a bicicleta, Gottlieb Daimler e Carl Benz construíram os primeiros carros e o alemão Michael Schumacher, em uma Ferrari italiana, bateu todos os recordes de Senna. Ali surgiu também a primeira furadeira elétrica, o primeiro fusca (por encomenda de Hitler) e, como não fosse pouco, as canetas Montblanc. Em 9 de junho o mundo ouvirá, mais uma vez, o belo hino alemão – com letra que reproduz a terceira estrofe da “Canção dos Alemães”, de August Heinrich Hoffmann, e melodia de Franz Joseph Haydn (“Hino do Imperador”). De compositores, aliás, essa terra generosa também está muito bem servida – Händel, Richard Strauss, Brahms, Richard Wagner, Hoffmann, Schumann, Carl Orff. Além dos divinos Bach e Beethoven. Beckenbauer até era chamado “maestro”, mas de música não entendia nada. A Copa do Mundo será jogada em 12 cidades. Na região leste estão Leipzig e Berlim – onde o Brasil fará sua primeira partida, contra a Croácia. Sua culinária bem condimentada recebe grande influência das cozinhas polonesa e tcheca. Como Currywurst (lingüiça com curry, a mais vendida da Alemanha), Sauerfleisch (carne com gelatina de peixe), Bulletten (almôndega), Helgolander Krabbensalat (salada de camarão Helgoland), Soleier (ovos em conserva, servidos em copos), Leber Berliner Art (fígado com fatias de maçã, cebola e purê de batata). E sobremesas como Dresdner Stollen (bolo de frutas polvilhado com açúcar de confeiteiro), Blechkuchen (panqueca de massa de bolo coberta por fruta da época), Welfenspeise (sobremesa que usa vinho com sabor de baunilha), Rote Grütze (sopa de frutas). Na região sul estão Nuremberg, Stuttgart e Munique – onde o Brasil fará sua segunda partida, contra a Austrália. Em volta da Floresta Negra está a mais sofisticada culinária da Alemanha. O guia Gault-Millau, de 2005, até elegeu como chef do ano um cozinheiro dali – Cristian Scharrer (Restaurante Imperial do Hotel Palace Bühlerhöhe, Baden-Baden) por sua “Lagosta com chutney de manga picante”. Como entrada sugere-se Brezel – pão delicioso que pode vir à mesa junto com o gorduroso Leberkäs (patê de carne moída). Também o
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tradicional Himmel und Erde (literalmente, “paraíso e terra”) – salsicha branca e salsicha escura, acompanhadas de purê de batatas temperadas com noz-moscada. Para quem preferir carnes, lembrar o enorme prestígio que têm por lá as caças – inclusive lombo de veado servido com maçãs, recheado com frutas vermelhas. Também Rheinischer Sauerbraten (rosbife estufado com vinho, molho agridoce, purê de maça), Spanferkel (leitão assado no espeto),Soester Wamme (guisado de tripas), Wammere mit Kren (carne de barriga de porco com rábano) ou Spaetzle (sopa de massa à base de trigo, que lembra o inhoque italiano), acompanhando o popular Gulasch (ensopado de carne, temperado com páprica e engrossado com creme de leite – acrescido de presunto, fígado, cogumelos e trufas passadas na manteiga). No reino das sobremesas, destaque para os sorvetes cobertos com calda quente de amora. Mais torta com semente de papoula, Apfelstrudel (rocambole com massa bem fina e recheio de maçã e canela), Schwarzwalder Kirschtorte (bolo Floresta Negra) e Kaiserschmarn (panqueca cortada em pequenos pedaços, polvilhada de açúcar e canela). Ou queijo Handkäes – de odor forte, feito à base de natas azedas. A região é também famosa pela Kirschwasser, uma aguardente feita com cereja. Em Munique se dá a maior festa popular da Alemanha – pelos da terra chamada Wiesn (prado). Quase o nosso carnaval. Com pouco sangue, pouco suor, e muita cerveja. A ela se deve ir fantasiado com trajes típicos da região. Prato principal ali é o Weisswurst (lingüiça branca), servida com Sauerkraut (chucrute). Para acompanhar, cervejas de todos os tipos – entre elas, mais nutritiva de todas, a Weissbier (feita de trigo), servidas em Mass (canecas de um litro). Essa festa começa numa pomposa cerimônia de abertura do primeiro barril, com o prefeito da cidade dizendo O’zapft is (foi sangrado). Vai de fins de setembro ao primeiro domingo de outubro – daí vindo seu nome, Oktoberfest. Em local conhecido como Theresienwiese – assim se chamando por ter havido lá, em 1810, uma corrida de cavalos em comemoração ao casamento de Ludwig (depois rei da Baviera) e Therese von Sachen-Hildburghausen. Trata-se apenas de singela (e estranha) homenagem a essa Therese, pois. Na região Oeste ficam Kaiserlautern, Frankfurt, Colônia, Gelsenkichen e Dortmund – onde o Brasil fará sua terceira partida, contra o Japão. A culinária ali é generosa, sobretudo aproveitando os peixes da água doce do rio Reno. Um mesmo rio e várias pronúncias: para celtas, Renos; para romanos, Rhenus; para as tribos germânicas, Rhein ou Vater Rhein (Pai Reno). Desses peixes, mais apreciados são truta, lúcio e perca, todos servidos sempre muito frescos, geralmente cozidos e regados com manteiga. Além das carpas (Karpfen – com molho de tomate). Têm também muito prestígio os arenques marinados, acompanhados de saladas de batatas e pepinos em conserva. Ou o famoso ragout – guisado ou ensopado feito com carnes, aves ou peixes em pedaços, cozidos em molho, vinho ou água, acrescido em algumas receitas de legumes ou cogumelos. Para completar, lingüiça Frankfurter Wurstchen acompanhada de Grüne Sosse (um molho verde feito com 7 especiarias), Rippche (costeletas de porco), Rievkooche (torta de batata gratinada), Rheinisch Sauerbraten (rosbife defumado), Maultaschen (pastéis recheados com espinafre) e o bem conhecido presunto Schwarzwälder Schinken. Tudo acompanhado de vinhos de suas 13 regiões produtoras –
SABORES PERNAMBUCANOS entre elas Rheingau, Pfalz, Rheinhessen e Mosel-Saar-Ruhr. De todo tipo. Até de maçã (Apfelwein). Mas, apesar da qualidade desses vinhos, a cerveja é de longe a bebida mais popular da Alemanha. Na região norte, onde o Brasil não jogará, estão Hannover e Hamburg. Ficam mais perto do litoral. Hamburg é o principal porto e a segunda maior cidade do país (a primeira é Frankfurt). Há por lá fartura de ostras, crustáceos e peixes (sardinha, atum, cavalinha, salmão, lúcio, perca, bacalhau, solha, arenque). Característica marcante da região é também a mistura de frutas às comidas salgadas, como sopa de cerejas e sopa de enguias (com cenouras, ervilhas, aspargos, ameixas e damascos secos). Prato típico é Kassler – costeleta de porco defumada com purê de maçã e chucrute acompanhado de bolinho de batata, toucinho e pão em cubos. Também Hamburger Pannfisch (feito com restos de peixe), Aalsuppe (sopa de enguia), Labskaus (mistura de carne, peixe, batata, cebola, beterraba e ovo frito). E Eisbein – joelho de porco com batata e chucrute. Podendo esses pratos ser acompanhados de aspargos, Spreewälder Gurken (pepinos) e Teltower Rübchen (variedade de nabo que só cresce nessa região). Em Hamburgo fica o Fischmarkt – um mercado à beira-mar onde pescadores, que voltam nos barcos com peixe fresco, se misturam a verdureiros e vendedores de bric-à-brac. Perto daí está Lübeck, capital do Martzapaen (marzipã), com receita que se mantém inalterada há 200 anos – dois terços de amêndoas doces (peladas e moídas), importadas de Veneza, um terço de açúcar, óleos aromáticos, clara de ovo. Sua massa, delicada, reproduz flores, bichos e monumentos; sendo por fim levada ao forno, para secar. Por falar em Hamburgo, só lembrar que o famoso e popular Hamburger não é invenção de alemão. Nasceu nos
Estados Unidos, onde ganhou nome de Hamburger steak (Bife de Hamburgo). Só que, na culinária de Hamburgo, não existe uma única receita que sequer remotamente possa lembrar esse sanduíche que, no preparo, se aproxima bastante do bitok russo. Mais provável é que esse Hamburguer tenha sido levado à América por imigrantes judeus russos, que se deslocaram em massa para lá no final do século 19. Entre eles Al Jonhson, que cantou Mamie de smoking e luvas brancas, no primeiro filme sonoro americano – O Cantor de Jazz. E terão esses russos preferido lhe chamar Hamburger steak, e não Bitok steak, por razões apenas de marketing. Já naquele tempo. Para vender melhor seu sanduíche aos americanos. Deu certo. Foi amor à primeira vista. Quem se aventurar pela Alemanha, na Copa do Mundo, vai escutar todos esses nomes complicados. Mas vale a pena aprender que seus sabores são muito especiais. Faltando só dizer que não apenas nós, brasileiros, vamos ter que pronunciar palavras e frases até estão desconhecidas, enrolando a língua. Que, no próximo mês de julho, serão os queridos alemães a dizer palavras com sabor amargo na boca – Brasilien Sechsfacher Weltmeister. Brasil Hexacampeão. •
RECEITA: TORTA FLORESTA NEGRA INGREDIENTES: PARA A MASSA: 100 g de manteiga, 4 ovos, 1 lata de leite condensado, 1 ½ xícara de chá de farinha de trigo, 1 xícara de chá de cacau em pó peneirado, 1 colher de sopa de fermento em pó PARA O RECHEIO E A COBERTURA: 6 colheres de sopa de licor de maraschino, 500g de creme chantilly, 1 xícara de chá de cerejas picadas, 300g de chocolate em raspas, cerejas inteiras para decorar, açúcar de confeiteiro para polvilhar. PREPARO: – Bata a manteiga na batedeira. Junte as gemas, uma a uma, e depois o leite condensado em fio. – Bata até obter um creme fofo. Junte trigo e cacau. – Bata as claras em neve e junte à mistura anterior. – Acrescente o fermento. – Coloque a massa em forma redonda de 25cm, untada com manteiga e polvilhada com trigo. Leve ao forno médio pré-aquecido por aproximadamente 40 minutos.
– Desenforme o bolo. Corte ao meio e umedeça com o maraschino. Recheie com parte das cerejas, chantilly e algumas raspas de chocolate. – Coloque a outra camada do bolo e cubra com o 0 restante. Cubra com raspas de chocolate. Decore com cerejas inteiras. Polvilhe com açúcar de confeiteiro. Continente junho 2006
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Pelo time do coração,
Torcer por um time no Brasil é uma forma de identificar-se pessoalmente e de situar-se em incontáveis tipos de relações sociais José Luiz Ratton Jorge Ventura de Morais Fotos: Carolina Pires
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s Ciências Sociais brasileiras já há algum tempo descobriram o futebol como tema de pesquisa relevante. Nos últimos dez anos, multiplicaram-se dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos e livros. Um dos tópicos em evidência na pesquisa acadêmica sobre o futebol diz respeito ao ato de torcer. Torcer por um time no Brasil é uma forma de identificar-se pessoalmente e de situar-se em incontáveis tipos de relações sociais. Por que torcemos por nossos times? Escolhemos nossas paixões clubísticas ou elas foram escolhidas por nossos pais? Muitas respostas podem ser aventadas: o ato de torcer na infância brasileira muitas vezes é uma forma de estabelecer uma ligação afetiva privilegiada com aqueles que admiramos ou amamos. Pode ser também uma forma de enfrentar – deslocando para um campo aparentemente distante – situações de conflitos familiares. Ou mesmo uma maneira de proteger-se na escola estabelecendo alianças em grupos de amigos. Existem outros tantos mecanismos pelos quais os seres humanos se tornam atleticanos ou cruzeirenses; rubro-negros, tricolores pernambucanos ou alvirrubros, Continente junho 2006
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colorados ou gremistas; flamenguistas, vascaínos, tricolores do Rio ou botafoguenses; corintianos, palmeirenses, são-paulinos ou santistas. Em nosso país, não pode ser desprezado o fato de que as crianças recém-nascidas são objetos de disputas anteriores ao seu nascimento. Pais, mães, tios, avós enfrentam-se simbólica e praticamente em disputas pela primazia na definição do time do novo membro da família. Da cor do lençol do berço à primeira camisa, da bola ao gorrinho, do chaveiro ao estojo, tudo é objeto de disputa e de aliança. O pai que antes do nascimento da filha prepara um pequeno enxoval com as cores e escudo do time do coração, o tio que veste a camisa do time adversário no sobrinho que dormiu na casa dos avós, o cunhado que dá ao marido da irmã a camisa do time que é oponente do seu são exemplos notáveis da importância do futebol na sociedade brasileira. Conflito, antagonismo, cooperação e reciprocidade são elementos fundamentais da dinâmica da atribuição e da escolha do time do coração e de constituição de identidades pessoais, familiares, grupais, regionais e nacionais. Continente junho 2006
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Nas manhãs de segunda-feira, toques dos celulares e buzinas dos carros reproduzem refrões dos hinos dos clubes, intermináveis programas de rádio e de televisão discutem nos mínimos detalhes os jogos do fim de semana, bandeiras são penduradas nas varandas como fossem castelos medievais
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FUTEBOL Ademais, tanto a sociabilidade de meninos e meninas (e é cada vez maior o número de meninas que se incorporaram a esta dinâmica que um dia já foi predominantemente masculina), quanto a de homens e mulheres adultas, não podem ser entendidas sem que localizemos em seu interior as inúmeras formas de torcer por um time de futebol. Não há como imaginar as relações cotidianas de amizade, de trabalho ou de vizinhança sem a presença pervasiva das preferências e vínculos de ligação com os clubes de futebol. A segunda-feira de manhã é um ponto de inflexão central na dinâmica das relações sociais no Brasil: é neste momento que garotos e garotas se reúnem para “tirar onda” com os colegas de sala quando o time “deles” foi derrotado e o “nosso” saiu vencedor. É na manhã da segunda-feira que colegas de trabalho aguardam a chegada do chefe para retribuírem – no campo ao mesmo tempo real e imaginário das rivalidades clubísticas – a sensação de inferioridade advinda das imposições hierárquicas organizacionais. Nas mesmas segundas, toques dos celulares e buzinas dos carros reproduzem refrões dos hinos dos clubes, intermináveis programas de rádio e de televisão discutem nos mínimos detalhes os jogos do fim de semana, bandeiras são penduradas nas varandas como se fossem castelos medievais, empregados de bares e restaurantes recolhem o lixo e a sujeira das comemorações e decepções da noite anterior. Mas não é apenas nos rituais cotidianos da vida ordinária que o futebol penetra. O brasileiro, quando morre, é enterrado envolto no manto sagrado do time pelo qual apaixonadamente torceu. Torcedores ilustres são velados nos saguões das sedes dos clubes. A árdua tarefa de compreender este país exige dos cientistas sociais um compromisso normativo e explicativo com a identificação dos múltiplos mecanismos relacionados à onipresença do futebol no interior das diversas formas de manifestação da sociabilidade brasileira. Não custa nada invocar o legendário treinador do Liverpool, Bill Shankly: “Futebol não é assunto de vida ou de morte, é muito mais importante do que isso”. • Continente junho 2006
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Comemora-se no mundo os 150 anos de Sigmund Freud, escritor injustiçado cuja influência na literatura moderna é fundamental Mário Hélio
Foi uma injustiça. Ele esperou um prêmio, que não veio. O Nobel. De Literatura. Como não reconhecer a genial recriação do mito de Édipo, a interpretação originalíssima da história de Moisés e dos sonhos de Leonardo da Vinci e de toda a humanidade? Mas Freud foi preterido. Talvez porque habitasse aquele raro país cujas fronteiras entre o literário e o não literário nunca são muito fáceis de delimitar. Por uma dessas curiosas peças que a estética prega na realidade, autores como ele e Marx, tão ateus e desprendidos de dogmas, conquistaram mais do que discípulos; têm, até hoje, devotos. No entanto, quando toda a ciência que inventaram fez água, virou pó, o que escreveram continua de pé devido à força quase orgânica da sua reinvenção dos homens e da sociedade, palavra por palavra. O que exprimiram ainda está vivo porque é boa literatura. Certa vez, Gilberto Freyre (outro cujas ciência e filosofia eram, na verdade, arte) indagou se Marx não seria um gênio literário desviado da sua vocação. O mesmo raciocínio, e talvez com maior razão, caberia usar para Freud. Este não só escrevia com sabor, exerceu como ninguém uma influência definitiva na forma das pessoas verem o mundo e traduzi-lo em linguagem. Além disso, teve no seu ciclo de amizade gente como Thomas Mann e Stefan Zweig. Sérgio Paulo Rouanet escreveu um livro admirável não sobre esses amigos escritores, mas os livros que leu e aprovou. É que Freud, há um século exato, fez, a pedido de um editor e livreiro, uma lista, uma espécie de “cânone” dos bons livros. O livro Os Dez Amigos de Freud comenta, uma a uma, essas obras que ele considerou boas, inclusive no sentido moral do termo. Os autores escolhidos por Freud foram estes: Multatuli, Kipling, Anatole France, Zola, Merejkovski, Gottfried Keller, Conrad Ferdinand Meyer, Macauley, Gomperz e Mark Twain.
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Freud nunca viu o seu retrato feito por Salvador Dalí À direita, o escritor Stefan Zweig, que apresentou Freud a Dalí em 1938
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Uma das situações mais curiosas na vida de Freud não se deu, entretanto, no seu contato com escritores, mas com um pintor surrealista (certamente o “ismo” da modernidade que maior influência sofreu da psicanálise). Por intermédio de Stefan Zweig, Freud conheceu Salvador Dalí, em 1938.Dalí desenhou um retrato tão perturbador de Freud que Zweig não teve coragem de mostrá-lo ao seu amigo e compatriota. O pintor só ficou sabendo disso depois da morte do escritor austríaco, que se suicidou – e também a mulher –, no Brasil, em pleno carnaval, na época da Segunda Guerra Mundial. “Unicamente, ao ler o final do livro póstumo de Stefan Zweig O Mundo de Amanhã, soube afinal a verdade sobre meu desenho: Freud jamais viu seu próprio retrato. Zweig me havia mentido piedosamente. Segundo ele, meu retrato pressagiava de uma maneira tão clara a iminente morte de Freud, que não se havia atrevido a mostrá-lo, temendo sobressaltá-lo desnecessariamente, sabendo que era vítima de um câncer.” Dalí considerava Freud um herói. Herói trágico. Como se disse a respeito de Rimbaud – que era “um místico em estado selvagem” –, o espanhol afirmou sobre Freud: “um místico às avessas”. Mas, ao desenhar o seu retrato a carvão, preferiu uma metáfora mais orgânica: o cérebro de Freud era, para ele, Dalí, “o caracol da morte terrestre. É, por outro lado, nisso onde reside a essência da constante tragédia do gênio judeu, privado para sempre desse elemento primordial: a beleza, condição necessária ao pleno conhecimento de Deus que deve ser de uma beleza suprema”. Freud não acreditava em Deus. Nem gostava de aniversários (mas apreciava presentes). Ao completar 74 anos nenhum presente o comoveu mais do que um poema em nome da sua cachorrinha Jofi. A brincadeira consistia em fazer um cão trazer versos pendurados no pescoço em homenagem ao aniversariante. Desta vez, mesmo ausente, Jofi mandou os “seus” versinhos por uma tartaruga. São estes: “Jo Fi que salta/ e pelas portas escapa/ escapole da correia/ e luta com inimigos/ que se estica na saudação/ lambe sua mão/ envia em anexo/ no dia seis de maio/ um símbolo/ que deveria indicar/ como ela quer mudar/ e ser mais bem-comportada/ quer mal se mexer/ quando portas são abertas/ não quer latir nem brigar/ correr ou saltar/ mal quer comer ou beber./ Assim fala Jo Fi de coração desolado/ triste porque estamos separados”. Todos os autores modernos, especialmente aqueles que centraram no sexo e nas motivações psicológicas mais profundas as articulações de suas obras, são freudianos na essência. Mesmo que não hajam lido uma linha sequer de seus escritos nem concordem com uma só de suas idéias; em suma, poderiam bem trazer ocultos nos seus pescoços versos ao mestre Freud. No caso específico da literatura, não há como discordar de Otto Maria Carpeaux: “sem a psicanálise não haveria literatura moderna”. Carpeaux, que também era austríaco, diz que “seria difícil compreender tão grande repercussão literária se não existissem relações preestabelecidas entre a psicanálise e a literatura”. Ele também lembra de autores que viam a psicanálise como uma espécie de romance ao mesmo tempo simbolista e naturalista e outros que consideraram o livro fundador de Freud A Interpretação dos Sonhos a mais estranha autobiografia já escrita. Entre as tantas frases, anedotas ou clichês biográficos atribuídos a Freud, uma se destaca, pois ele teria admitido: “os poetas antes de mim descobriram o inconsciente”. A constatação é não só exata, mas, no seu caso, sem que houvesse uma influência direta e comunicação ou subordinação de uma coisa na outra, é indiscutível que a literatura e a psicanálise trabalham com meios e resultados afins. Em alguns casos existe uma correspondência notável entre o psicanalista e o
ESPECIAL Peter Aprahamian/Corbis
escritor. Não seria difícil encontrar vários dos conceitos de Freud em um contemporâneo, como o dramaturgo Arthur Schnitzler, por exemplo, sem que nenhum dos dois tivesse exercido influência direta no outro. Se se entende a literatura como a arte de ver mais fundo, trazer à superfície tudo o que não está fácil à vista; e a arte de desentranhar, desencavar e desenterrar, mas também inventar uma história dos objetos, como o faz um arqueólogo, Freud usou esse método na elaboração de seus mitos, recontados e reexplicados à sua maneira, isto é, à luz da análise da psique. Freud tinha uma coleção de objetos arqueológicos, que alimentava com novas aquisições custeadas com os seus direitos autorais. Há uma cena famosa de sua biografia, em que ele e a poetisa norte-americana Hilda Doolitle (sua amiga e paciente a partir de 1933) se põem a contemplar e comentar com admiração uma estatueta da deusa Atena que havia “perdido” a lança (não por acaso o seu preferido entre os que pôde recolher ao longo do tempo). Se a criação da psicanálise fez com que o homem ultrapassasse a última fronteira da inocência, até as coisas deixaram de ser simples coisas, mesmo as de pura imanência. Ao contrário do que diz o senso comum, “uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa”: em psicanálise, uma coisa é quase sempre outra coisa. Os psicanalistas, como os escritores, sabem que um objeto nunca está morto nem estático, porque porta miríades de significados. Estão latentes ou ocultos à espera de que alguém – como Freud – veja numa “inocente” estatueta de Atena a bissexualidade. Como um Édipo condenado a decifrar enigmas eternamente, Freud encontrou um sentido para Atena e para muitas outras coisas. A sua obra, como a da literatura moderna, é um grande espelho de metalinguagem. Espelho de narcisos que, no íntimo, o seu estigma não é admirar a beleza
Mesa de Freud com sua coleção de objetos arqueológicos de arte
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O britânico Rudyard Kipling e o norte-americano Mark Twain, dois escritores do cânone pessoal de Sigmund Freud
ensimesmada, mas a própria fealdade, manifesta ou secreta. Autor que vivenciou as duas guerras mais terríveis da humanidade consigo mesma, insistiu, no entanto, na esperança (talvez por ser judeu). Apesar disso, o mundo que viu e analisou dá razão até hoje ao romeno E. M. Cioran, que, refletiu, elevou o pessimismo ao nível de uma das belas artes: “Em qualquer cidade onde o acaso me leva, me surpreende que não ocorram levantes diários, massacres, uma carnificina sem nome, uma desordem de fim de mundo. Como, em um espaço tão reduzido, podem coexistir tantos homens sem destruir-se, sem odiar-se mortalmente? Na verdade, eles se odeiam, mas não estão à altura de seu ódio. Esta mediocridade, esta impotência, salva a sociedade, assegura sua duração e sua estabilidade. De tempos em tempos se produz uma sacudidela que nossos instintos aproveitam; depois, continuamos olhando-nos nos olhos como se nada houvesse ocorrido e convivemos sem nos espicaçarmos demasiado visivelmente. Tudo retorna à ordem, à calma da ferocidade, tão temível, em última instância, como o caos que a havia interrompido. Mas ainda me surpreende mais que, sendo a sociedade o que é, alguns se hajam esforçado em conceber outra, diferente.” O poeta inglês W. H. Auden afirmou que se alguém quisesse escolher um autor que tivesse a mesma importância e a mesma relação que tiveram Shakespeare ou Dante com o seu tempo, o do século 20 seria Kafka. A favor de Freud deve-se não só adaptar essa afirmativa, mas também lembrar que Kafka representa a mais rica e complexa elaboração em literatura de todos os abismos tocados por Freud, a começar das famílias, todas máquinas doentes de produzir frutos sem futuro e sem cura. E a propósito disso, não há como discordar de Ernst Pawel (biógrafo de Kafka): “Todos os pais fracassam diante dos filhos e todos os filhos tecem o fracasso dos pais na trama de suas vidas. Essa foi a implacável mensagem de Freud, reescrita por seus discípulos, desde então, como um jovial cartão de visitas, que é o que sói acontecer aos profetas.” • Continente junho 2006
Não há como compreender o século 20 sem a “ciência da alma” e as imagens do cinema
A psicanálise foi o bom vírus que inoculou a imagem cinematográfica de profundidades secretas Fernando Monteiro O venerável Doutor Sigmund Freud fez, também, a cabeça do cinema. Para bem e para mal, a presença – direta ou indireta – da sua obra científica (tão importante quanto a de Darwin) permeia filmes tão diferentes como o faroeste O Último Pôr de Sol e o drama psicológico (segundo os rótulos simplificadores das locadoras) Doce Pássaro da Juventude. Talvez Dr. Freud esteja subjacente até na fixação de Mazzaropi por jegues e vaquinhas do interior paulista, mas isso é ir longe demais (ou de menos?), fazendo pouco da libido caipira ou dos meandros da idade pós-análise na arte cinematográfica (nossa pauta). Ou seja, Sigmund atrás das câmeras-divãs, como influência ou como assunto. De fato, ele é assim relevante – para o cinema que já encontrou a sua clínica aberta, numa Viena de senhoras histéricas abotoadas até o pescoço. Em linguagem leiga, Freud foi o pornôContinente junho 2006
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Montgomery Clift (à direita) interpretou o pai da psicanálise (à esquerda) no filme Freud Além da Alma (1962)
cientista que começou a desabotoá-las pelo chapéu de penas do pássaro (ainda mais doce e triste) da infância cheia de desejos inconfessáveis. O bom-mau doutor propunha, para começar, que todos os confessassem – e o cinema podia filmar o fundo e a forma dessas revelações médicoescandalosas. Simples assim? Não. É mais complicado. Porque, se há, na história da cultura, um antes e um depois do fundador de qualquer coisa, trabalhem com meia dúzia de marcas, faz favor: antes e depois de JC, antes e depois de Maomé, antes e depois de Gutemberg, antes e depois de HB (Henry Bell), antes e depois de CD (Charles Darwin) e antes e depois de SF, o criador da psicanálise. Esta começou com o mesmo ar meio “charlatão” do cinema – no qual assume o método antitraumas assume a visibilidade (nos sentidos literal e figurado) mais cabal, passado o tempo daqueles bisonhos irmãos Lumière exibindo o seu invento de feira de saltimbancos, entre Mulheres Barbadas e Houdinis não-psicanalizados. Desde essa simpática era primitiva, a arte do filme se tornou uma espécie de transcrição do mundo visual do inconsciente aflorado no sonho (um quase irmão siamês da realidade estranha da “sétima arte”). Irmãos e irmãs: no cinematógrapho, se dava o caso, perfeitamente, de se poder inverter a montanha, e descer seus sete patamares – para o abismo de cima da cabeça mergulhada na sombra que John Huston (o diretor menos freudiano de Hollywood) nos mostrou a ser investigada pelo jovem cientista vienense, em Freud Além da Alma (1962), estrelando o problemático ator Montgomery Clift no papel do doutor estreante, de barba negra como um Otelo teutônico. O filme é arrastado como um sotaque da Baviera, e Clift, a certa altura, achou que Huston estava querendo matá-lo, trancou-se no trailer e precisou do seu psicanalista para sair de lá, a fim de rodar as últimas tomadas dessa que não é, de modo algum, das melhores obras do realizador de The Misfists (1961). Como tentar compreender o século 20, sem a “ciência da alma” e a linguagem das imagens vinte-e-quatro-quadros por segundo? O cinema é uma ilusão, e a psicanálise é a sombra de uma sombra sobre as certezas do dia claro da mente do século 19 doente de doenças abaixo da linha-de-água do consciente. Um romancista como Joseph Conrad saberia do que estamos falando, olhando o movimento no interior da laguna das coisas não-ditas, na sua época de elegância a mascarar os males que hoje banalizamos. Como há romancistas pré-freudianos, o cinema iria se dotar de artistas pós-pós, isto é, com olho para a decifração do movimento interior – no intervalo entre as árvores.
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Compreenda-se: precisava vir o filme para a plena investigação do outro vazio, aquele onde pensamos que sabemos quem somos, entre gritos e sussurros, na noche oscura da alma do psicanalista avant-la-lettre que foi o místico San Juan de la Câmera – a cruz em que nos pregamos, sentados em poltronas, para assistir a obras que devassam muito mais do que entre lençóis de cama. Sem a psicanálise, o expressionismo cinematográfico teria que esperar para surgir, na Alemanha pré-Hitler, com o gabinete de um médico-monstro projetado na parede da tela da mente da centúria finalmente acordada para a vida insone debaixo do cotidiano pesadelo que disfarçamos – enquanto outros Adolphs talvez esperam, nos divãs, pelo psicanalista de plantão que os sistemas de seguridade social ainda não garantem. Sem a psicanálise, teríamos de esperar (quanto tempo?) pelo ciclo dos melodramas dos anos de 1950, distraidamente criado por cineastas laterais como Douglas Sirk e Curt Siodmack, para não falar do realizador dos filmes mais freudianos do cinema americano: o doido Sam Fuller, autor de Shock Corridor (1963), drama sobre um repórter bom que se passa por louco (para esclarecer um crime num hospício onde o mais grave paciente é o seu diretor). O filme, claro, é uma loucura, e não teria sido possível sem a máquina de fuçar na grama da vida americana, e sem a lente de aumento das neuroses ianques, agora chegadas ao ápice de depois de GB (a marca que faltava, da loucura medíocre no lugar das grandes doidices de antes). Nota: quem é “GB”? Claro que é ele, GWB (não leia “Great Western of Brazil”, mas George Walter Bush). Prosseguindo: uma beleza triste também não teria surgido, sem a psicanálise, dentro do bonde chamado desejo do cinema atraído pelas gatas em teto de zinco quente das pontes entre a manhã e a noite – enquanto sonhamos conosco, sem reconhecer cada um dos nossos diversos rostos. Joseph Von Sternberg, falso aristocrata e legítimo criador de fantasias freudianas (vide O Anjo Azul), dizia que o cinema era “a Arte do Rosto” – e não só por causa dos primeiros planos através dos quais penetramos na humanidade da Santa Joana de Carl Dreyer. O cinema é o mistério humano, e Freud foi seu “Sherlock” inspirador, munido da lente que, sim, ele transformou em periscópio na bruma da infância que não explica tudo – mas explica muito (“só Freud explica” – essa vulgaridade de piada que apenas explicita quão pouco sabemos do Sigmund da investigação de um desenho de abutre de Da Vinci, fora de todos os códigos do consumo). O cinema pôde continuar a investigação dos mitos e dos sonhos que remontam às primeiras inquietações humanas, desde quando o Nazismo forçou o exílio do Freud que acabava de escrever Moisés e o Monoteísmo, em 1935, para escândalo da comunidade judaica – para a qual uma idéia tão abstrata como a do “Deus Único” seria uma questão de raça (não analisável)?
Marlene Dietrich protagonizou O Anjo Azul, de Joseph Von Sternberg
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O cineasta Woody Allen, um diluidor das idéias psicanalíticas
A psicanálise se tornou, é verdade, a muleta barata de filmes de baixo orçamento que hoje são produzidos como entretenimento de massa – e também daqueles que consomem o biscoito, mais fino, das diluições de Woody Allen, bem copiadas de Bergman (que estava trazendo o pós-freudianismo para os seus elaborados roteiros, quando uma volta a mais do parafuso rodou o relógio do tempo, e fomos cair na banalidade da qual Ingmar se refugiou na ilha de Faro). Alguém se lembra de que o século de Freud só começou em 1918? Tudo, aliás, começou muito tarde, ou quase 20 anos depois do Novecento, e ainda é cedo para descrer, como descremos, ou para desacreditar, como desacreditamos, e para rir como agora começamos a rir (Freud explica?) das experiências herdeiras da clínica de Charcot – onde Sigmund aprendeu a lidar com as tais senhoras que lavavam as mãos, vigorosamente, sempre que tocavam nos próprios joelhos (o que era o de menos). O cinema é mais do que você pensa, porque se debruçou sobre pés, pernas e púbis angelicais e de demônios do sexo entre as colunas que não sustentam casas espelhadas como a que vemos em The Servant (1963), obraprima de Joseph Losey e um dos filmes mais plenos das histórias recorrentes de pesadelo. A psicanálise foi o bom vírus que inoculou a imagem de tais profundidades secretas (ou ela, a linguagem das imagens, talvez fosse boiar no raso dos irmãos que inventaram le cinéma, cheios de certeza no seu vaticínio célebre: “o que acabamos de inventar – le cinématographe – não tem futuro algum”). Bem, uns nascem Lumière, e outros nascem para a luz do que ainda vai ser. Foi o caso de Jung, que brigou com Freud que brigou com o círculo de Viena onde os primeiros filmes de Lang e Murnau se carregavam de significados extra Mabuse e Taboo, entre outras incursões de alemães (sempre os alemães) do cinema oculto de si mesmo. Este tem pouco a ver com a missão impossível das montanhas russas – se você saudavelmente preferir o eletrochoque do tratamento da realidade transfigurada etc., como no único filme brasileiro que teria interesse para o Dr. Freud: o atormentado Limite (1931) de todas as épocas e de todos os mares do inconsciente, onde nadamos na situação-limite desta obra única de Mário Peixoto, a qual permanece indecifrada para os brasileiros (ou, pelo menos, para aqueles que só conhecem a psicanálise das alusões caricaturais de Nelson Rodrigues, o pernambucano que teria fundido a cuca de Herr Sigmund)... De Caligari a Taxi Driver, o cinema seguiu, digamos, quase pelas mesmas veredas da ciência do doutor – com a vantagem de explicitar para além das palavras (“que importância tem isso? Tuas palavras servem a tua realidade; as minhas servem à minha. Se trocarmos as palavras, elas passam a não valer nada” – Ingmar Bergman, em Sonata de Outono), entre o dia e a noite, o claro e o escuro, o nascimento e a morte. E Sigmund Freud precisa nascer de novo, para vir psicanalizar a parte “cabeça” da arte do século. •
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Harold Bloom analisa Freud como escritor e sua obra psicanalítica como literatura Eduardo Maia
Em artigo recentemente publicado no Wall Street Journal, pela ocasião dos 150 anos de nascimento de Sigmund Freud, o polêmico crítico literário norte-americano Harold Bloom reafirmou seu ponto de vista sobre o que para ele permanece atual e importante na obra do pai da psicanálise: suas qualidades literárias. A ambição freudiana de que a ciência da psicanálise algum dia traria contribuições significativas à Biologia, para Bloom, não foi e não será concretizada. Antes de começar a criticar as opiniões de Harold Bloom, é importante que o leitor entenda que ele está discutindo Freud como escritor, e a psicanálise como literatura. Os dois pontos verdadeiramente polêmicos são, em primeiro lugar, a afirmação de que a verdadeira grandeza do médico vienense está em suas realizações como escritor; e, em segundo, a afirmação do crítico literário de que William Shakespeare seria o precursor da psicanálise. É evidente que a linguagem, na obra de Freud, assume um papel fundamental e imprescindível. O psicanalista Bruno Bettelheim destaca que o uso da língua alemã em Freud não é apenas Continente junho 2006
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A tragédia de Hamlet, Príncipe de Dinamarca, dirigida por Marti Maraden. Hamlet é interpretado por Tom Rooney
magistral, mas chega a picos poéticos (no sentido original: poiesis = criação). Outras figuras de relevo da língua alemã também observaram em Freud os dotes de um grande estilista do idioma germânico: Thomas Mann, por exemplo, escreveu que “na estrutura e na forma ele está aparentado com toda a grande ensaística alemã, da qual é uma obra-prima”. Hermann Hesse, por sua vez, exaltava Freud porque sua obra “é convincente graças às suas altíssimas qualidades humanas e às não menos elevadas qualidades literárias”. O próprio Freud afirmou mais de uma vez que os poetas (assim como outros artistas), capazes de falar através de metáforas sobre o conteúdo de seus inconscientes, sabiam, há tempos antes dele, o que ele viria descobrir somente depois de exaustivo trabalho de pesquisa. Em muitos de seus escritos, Freud meditou sobre grandes obras literárias e artísticas; citou várias vezes Sófocles, Shakespeare, Goethe, Dostoievsky e Schnitzler, entre outros, chegando a afirmar que eles sabiam tudo que era preciso saber acerca do inconsciente. Segundo Bettelheim, “tudo que ele (Freud) reivindicava para si mesmo era ter organizado esse conhecimento, tornando-o acessível como um meio de compreender o inconsciente não só de forma intuitiva, mas também explicitamente”. William Shakespeare, escritor que, segundo Harold Bloom, “inventou o humano”, teria sido o pioneiro das idéias psicanalíticas (e nesse sentido ele assumiria uma forma de “paternidade” sobre Freud) – as elaborações teóricas freudianas seriam essencialmente Shakespeare prosificado. Na visão de Bloom, a obra e a figura do dramaturgo inglês teriam obcecado Freud durante toda a vida, o que se refletiu em uma angústia causada pela influência de um intelecto superior a qualquer outro (superior inclusive ao do próprio Freud). Numa irônica inversão de papéis, Harold Bloom acaba por colocar Dr. Freud em um divã (ou num palco elisabetano) e diagnosticando-o como um caso incurável de “Complexo de Hamlet”. Para resumir rapidamente a opinião de Bloom, com suas palavras: “Shakespeare é o inventor da Psicanálise; Freud, seu codificador”.
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Livros em que o crítico Harold Bloom fala de Freud como escritor
A psicanálise seria, assim uma paródia redutiva do universo intelectual shakespeariano, porque o dramaturgo haveria criado uma espécie transcendental de psicanálise: “Quando suas personagens mudam, ou se obrigam a mudar ouvindo-se a si mesmas, profetizam a situação psicanalítica em que os pacientes são obrigados a ouvir-se no contexto de sua transferência para seus analistas”, escreveu Harold Bloom, e foi adiante: “Antes de Freud, Shakespeare era a nossa autoridade básica sobre o amor e suas vicissitudes, ou sobre as vicissitudes dos impulsos, e está claro que ainda continua sendo nosso melhor instrutor, e jamais deixou de orientar Freud”. Ao analisar as diversas citações de Freud relativas aos personagens Hamlet e Édipo Rei, Bloom chegou à conclusão de que houve uma tentativa por parte do psicanalista vienense de “mascarar” a influência shakespeariana em seu pensamento e que a complexidade psicológica de um personagem como Hamlet parece se encaixar com mais exatidão àquilo que Freud elaborou e acabou denominando “Complexo de Édipo”. Bloom não parece querer diminuir com tudo isso os méritos de Freud, muito pelo contrário. Para ele, “a teoria da mente desenvolvida por Freud, tão universal quanto inclusiva, deverá sobreviver à terapia psicanalítica, e parece tê-lo alinhado a Platão, Montaigne e Shakespeare, e não aos cientistas que ele, expressamente, buscava emular”. O crítico não quer afirmar com isso que Freud fosse primordialmente filósofo ou poeta, mas que sua influência para o mundo ocidental é comparável à de Platão ou Shakespeare, quer dizer, suas idéias teriam um alcance incalculável na conformação da nossa cultura. O grande triunfo de Freud estaria nessa influência disseminada: milhões de pessoas que nunca o leram têm, interiorizadas, categorias por ele inventadas, um fenômeno que persiste até os nossos dias. A linguagem de Freud parece já ter se incorporado à linguagem vulgar e acabamos por utilizá-lo mesmo sem nos dar conta disso. Id, Ego, Superego, que para Bloom são apenas “ficções úteis” ou “metáforas”, já são utilizadas pelas pessoas no dia-a-dia como dados da realidade. Apesar de toda a polêmica que as opiniões de Harold Bloom sobre o pai da psicanálise vêm gerando, o elogio que Freud recebe do crítico americano pode ser lido como um atestado de perenidade ao pensamento freudiano: Ele (Freud) ainda nos importa porque compartilha das qualidades de Proust e Joyce: perspicácia cognitiva, esplendor estilístico e sabedoria”. • Continente junho 2006
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Na trincheira das idéias O livreiro Tarcísio Pereira se prepara para lançar seu primeiro livro, contando a sua trajetória de batalhas na Livro 7, reduto para intelectuais, artistas, políticos e idealistas do Estado Marcelo Pereira
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em a pressa que aniquila o verso, o livreiro e editor Tarcísio Pereira se prepara com discrição, em surdina, para contar a história de uma paixão que não esmoreceu: os livros, razão de sua aventura pessoal e empresarial na Livro 7, que durante cinco anos pontificou no Guinness Book – o livro dos recordes – como “a maior livraria do Brasil”, nos anos 80. Tarcísio, no momento, lê biografias, memórias, correspondências e livros de assuntos afins. Em busca do tempo vivido, aprende lições deixadas na correspondência entre Marcel Proust com o seu editor Gaston Gallimard, figuras exponenciais da literatura francesa e mundial no início do século 20. Esta leitura reflete como se fosse um espelho, porque Tarcísio tanto pode se ver no papel do escritor memorialista de Proust como no do editor Gallimard… A aventura começa antes mesmo de o jovem estudante potiguar abrir a pequena loja de apenas 20 m², inaugurada na galeria do Edifício Amaragi, na Rua Sete de Setembro, e na qual cabia no máximo dois mil títulos em suas prateleiras – e tem o seu momento culminante quando a Livro 7 passa a ocupar o imenso galpão instalado no número 318 do mesmo endereço. Na Rua Sete de Setembro, Tarcísio viveu seu idealismo, pioneirismo e dias de glória. Guerrilheiro cultural, enfrentou os anos turvos da sombria ditadura militar transformando a Livro 7 numa trincheira da resistência intelectual e democrática na capital pernambucana. Duelou contra o dragão da inflação e o desvario dos planos econômicos, que terminaram por lhe custar um patrimônio inestimável formado não apenas por títulos e volumes de livros, mas também por um forte compromisso com a cultura e com o Recife que o acolheu. O imigrante judeu Jacob Berenstein foi o grande mestre de Tarcísio. Livreiro, que inaugurou em 1930 a primeira loja na Rua da Imperatriz Teresa Cristina. Por suas mãos, Tarcísio iniciou seu aprendizado na Livraria Imperatriz, no hoje distante mês de janeiro de 1964. “Homem simples, sem pretensões de ser um grande empresário, apenas livreiro. Jacob era uma figura humana de uma dedicação ao livro que conseguia passar esse amor aos seus colaboradores de uma maneira que o trabalho na livraria transformava-se num grande prazer e, para mim, em especial, num saudável laboratório”. É assim que Tarcísio se lembra do velho Jacob, comerciante experiente e persistente que começou vendendo livros como mascate, de porta em porta, e em 1956 teve que recomeçar praticamente do zero, depois que um incêndio destruiu a Livraria Imperatriz, hoje uma das maiores redes do Recife. Durante seis anos, Tarcísio se inteirou do ofício de livreiro no convívio diário na Imperatriz. O momento político era bastante difícil, com a repressão militar batendo à porta. Não poucas vezes, Tarcísio viu os militares fazerem busca de livros proibidos. Quem também fazia ponto na porta da livraria eram os militantes ultradireitistas da organização religiosa Tradição, Família e Propriedade (TFP). O jovem idealista saiu da Imperatriz em fins de 1969 com dois objetivos: prestar exames de vestibular e abrir uma livraria. “O bairro da Boa Vista era onde se concentravam as melhores livrarias do Recife e naturalmente era o meu alvo para abrir como projetava, uma pequena loja
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PERFIL Arquivo Tarcísio Pereira
Tarcísio Pereira e João Cabral de Melo Neto. Ao lado, o editor no seu novo empreendimento, a Livro Rápido
que a princípio seria especializada em literatura, artes, ciências humanas e sociais”, lembra Tarcísio. Depois de muita procura, encontrou a tal loja na galeria Amaragi. E no dia 27 de julho, o mês 7, de 1970, no 7° dia da semana, um sábado, surgia a Livro 7. Até mesmo o nome daquele edifício da Rua Sete de Setembro tem também sete letras. Neste espaço exíguo, os intelectuais de esquerda se encontravam. Tarcísio passou a promover lançamentos, que ganhavam espontaneamente espaço na imprensa. “Foi lá que Jarbas Vasconcelos, em 1971, lançou o seu livro sobre o trabalho na área da cana-de-açúcar. Nabib Jorge Neto lançou O Presidente de Esporas, que deu início ao movimento Mediarte, com Ivan Maurício. As noites de autógrafos com Hermilo Borba Filho, os torneios de xadrez, as exibições de filmes em Super 8 de Celso Marconi, Fernando Spencer e Jomard Muniz de Britto, as performances de Paulo Bruscky, os recitais com José Mário Rodrigues, Roberto Pimentel e a atriz Clenira Bezerra de Melo lotavam a galeria do prédio, para desespero do síndico. Esse foi o início da Livro 7, onde contei com a inestimável colaboração da minha irmã Suely Pereira, que depois de alguns anos fundaria com Murilo Continente junho 2006
Alves a Livraria Síntese”, relembra. Além deles, os irmãos João Maria e Ricardo Pereira também entraram para a empresa familiar. O casarão, em quatro anos, ficou pequeno para a livraria. Foi aí que surgiu, em 1978, o grande galpão na mesma rua, no número 329. E lá se foi a Livro 7 com a proposta de ser a maior livraria do Brasil. Não demorou muito para que fosse adquirido um grande terreno na Rua do Riachuelo para ser anexado ao galpão, tornando-se comprovadamente, a partir de 1993, a “maior Livraria do Brasil”, segundo o Guinness Book, em extensão de prateleiras e quantidade de títulos: 60 mil. “Com esse reconhecimento, a Livro 7 passou a ser uma atração. Turistas de toda parte vinham conhecer, fotografar e comprar naquela casa que Gilberto Freyre chamava de ‘uma pan-livraria’ e que Fernando Sabino batizou de “Maracanã do Livro”. Visitar a livraria tornou-se obrigação para o mundo artístico e intelectual. Conviver com toda essa gente virou rotina para todos nós que fazíamos aquela casa”, relembra Tarcísio, que tinha em seus cavaletes e prateleiras 60 mil títulos, distribuídos em cerca de 1.200 m².
PERFIL Roberto Pereira
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Tarcísio não media esforços para divulgar o autor nordestino, que sempre tinha um lugar de destaque logo na entrada da livraria. Apesar de todo este sucesso, o sonho acabou. E se a Livro 7 é hoje história e memória é porque foi solapada pelos temporais das instabilidades econômicas do país e sua crises. Com o desastroso Plano Collor, que deixou o país atônito, Tarcísio se viu com a corda no pescoço. Sem a Livro 7, a paixão pelos livros fez Tarcísio arriscar-se em mais uma empreitada: uma livraria virtual, a Livrosite, um achado em termos de trocadilho, uma vez que ele não poderia voltar a usar o nome Livro 7 legalmente. Tarcísio investia na venda à distância, por telefone ou internet. O empreendimento não vingou. Tarcísio não entregou os pontos: em 2002, ele topou uma nova parada: foi convidado pelo Grupo Elógica, de informática, para dirigir o projeto da Livro Rápido, com a qual viabiliza a publicação de autores independentes, imprimindo tiragens pequenas. Os livros são impressos num parque gráfico a laser, de acordo com o desejo e a ambição do freguês, em tiragens a partir de 20 exemplares, de acordo com a demanda. Com o bomsenso de sempre, Tarcísio orienta, dá sugestões com a experiência de quase cinco décadas no mercado livreiro. A Livro Rápido, se necessário, faz toda a parte de programação visual e preparação de texto da obra. Auxilia também na comercialização do livro, com a venda on-line e paga os direitos autorais pela venda dos livros. “Não devemos calcular o nosso nível cultural pela quantidade de livrarias”, ensina Tarcísio Pereira. “Toda cidade, antes de ter uma livraria, tem que ter no mínimo uma boa biblioteca para que haja formação de leitores. É preciso abrir as bibliotecas escolares para o grande público também nos fins de semana para que os trabalhadores tenham também o acesso à cultura e à informação. Isso é cidadania.” Para o escritor Raimundo Carrero, que viveu intensamente os anos da Livro 7, freqüentando suas rodas literárias, comprando ou autografando livros, “Tarcísio talvez seja o mais perfeito escritor de Pernambuco sem ser escritor. É que o seu comportamento de fornecedor de livros e de idéias nas conversas da Livro 7 fez dele uma espécie de gost-writer a soprar nos ouvidos de todos nós os temas, as histórias, os enredos. Tornou-se, assim, imprescindível. Não se podia iniciar um livro sem passar pela Livro 7, para abastecer a inspiração. Conversas, anotações, rascunhos. Tudo escrito na livraria e sob a tutela de Tarcísio”. A Livro 7 deixou muitas lições para Tarcísio Pereira. Ele deve guardar algumas mágoas ou trazer consigo cicatrizes guardadas no peito. Folião inveterado, ele extravasa com humor as mazelas da vida na anárquica agremiação carnavalesca “Nois Sofre Mais Nois Goza”, que há 30 anos arrasta multidão, saindo da mesma Sete de Setembro que viveu as glórias da Livro 7. • Continente junho 2006
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
A bênção do pai A fórmula não se referia ao Deus de nenhuma instituição religiosa, era apenas uma graça pacificadora, um sonífero sem droga
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o dia em que vim embora para o Recife senti um aperto no coração, a garganta travou, e os olhos encheram-se de lágrimas. Era lei na nossa casa que os filhos homens não podiam chorar. Eu tinha razões de sobra para abrir o berreiro: vinha para uma cidade grande e desconhecida, não tinha onde morar, nem matrícula eu havia feito no colégio. Tudo incerto para um menino de 17 anos que deixava a casa paterna, o paraíso verdejante do Cariri e sua gente acolhedora. Como na canção de Torquato Neto, minha mãe e meus sete irmãos me acompanharam até a porta. Abracei-os sem dizer uma única palavra, os dentes trancados. Se pronunciasse um singelo adeus, o açude represado de lágrimas romperia. Meu pai olhavame firme, vigilante. Com ele planejara largar a vidinha feliz, conhecer outro mundo, arriscar a sorte. Tínhamos um projeto em comum: eu me formaria em medicina, traria os irmãos mais novos para estudar no Recife e ajudaria a educá-los. Desde o ciclo migratório da década de 50, quando as fazendas sertanejas se esvaziaram dos seus moradores, meus pais compreenderam que não existia mais futuro no campo. Largaram o plantio de algodão, os criatórios de gado, as lavouras, e tomaram para si a tarefa de iniciar os filhos numa outra realidade. No que dependesse deles, todos nós freqüentaríamos a universidade. Sábia escolha do nosso pai, um homem que aprendeu a ler sozinho, e atravessou noites acordado, brigando com os enigmas do português e da aritmética. Por algum mistério que nunca desvendei, os livros eram objetos de fetiche na família, prestando-se verdadeiro culto aos tios letrados, homens sábios e faladores. Continente junho 2006
Foi meu pai quem me acompanhou até a garagem do ônibus, pois não existia rodoviária nesse tempo. Caminhava ao meu lado, solene e silencioso. Um carregador transportava na cabeça minha parca mudança, uma mala de couro e uma caixa de papelão amarrada com cordas de barbante. A mais franciscana pobreza. Não enxergava nada à minha frente, os olhos cegos de lágrimas. Lembrava a história que minha avó contava, dos três irmãos que abandonam o lar em busca de fortuna. A todos eles o pai perguntou na hora da despedida: – Você prefere muito dinheiro e minha maldição ou pouco dinheiro e minha bênção? Apenas o mais novo escolheu a bênção e pouco dinheiro, alcançando sucesso. Eu não podia despedir-me de meu pai sem balbuciar o adeus, e sem pedir a bênção. Precisava ouvir de seus lábios a fórmula protetora do “Deus te abençoe”. Atravessava a cidade a pé, com a sensação de que me empurravam para o desterro. Nunca um trajeto me pareceu tão longo. Chegamos, o carregador instalou as bagagens no ônibus, recebeu o pagamento e deixou-nos sozinhos com meia hora de espera e constrangimento. Foi uma eternidade. Meu pai apertou minha mão, o máximo de afeto permitido entre nós, não me olhou, de modo que nunca soube o que sentiu naquela tarde. Na família, não existiam trocas de afagos e confidências, apesar dos fortes vínculos que nos uniam. Apertei a mão dele, e consegui pedir a bênção sem chorar. Ele me abençoou e parti sozinho. Sozinho, eu chorei horas seguidas e tive a primeira de muitas consciências, uma delas a de que era senhor do meu pranto. As velhas fórmulas caíram em desuso, já não se pede a bênção a ninguém. Ah!, o poder mágico
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dessa invocação. Todas as noites, antes de dormir, escutava os irmãos gritarem dos seus quartos, para o quarto dos pais: “A bênção!”. Só calavam depois que ouviam o “Deus te abençoe”. As três palavras pareciam com o pano que nossa mãe estendia sobre as redes, nos protegendo dos respingos da chuva, na casa de telhado alto. A fórmula não se referia ao Deus de nenhuma instituição religiosa, era apenas uma graça pacificadora, um sonífero sem droga. Todos se aplacavam ao ouvir um “Deus te abençoe”. Chegaram os dias em que desprezei os costumes da família, virei o rosto para os velhos que cobravam o pedido de bênção, senti nojo das mãos descarnadas das tias, estendidas para que eu as beijasse. Morreu a geração de bisavós, depois caíram os avós, e já começaram as baixas nos tios paternos. Quando não restarem mais vivos na fileira dos pais, assumirei a linha de frente. Ninguém mais protegerá a minha retaguarda. Todos estarão depois de mim, ninguém mais antes de mim para abençoarme. Agora, sou eu a abençoar.
Por esses dias, meu filho mais novo viajou para estudar na Inglaterra. Achei que a minha história se repetia em condições diferentes e por uma estrada bem mais comprida. Conversei com ele sobre seus projetos para o futuro. Ajudei-o a comprar as passagens, o curso, o seguro-saúde, a arrumar a mala. Levei-o ao aeroporto na companhia festiva dos amigos, da namorada, e dos irmãos. Eu e minha mulher éramos as únicas pessoas graves na comitiva. Meu filho transpôs o portão de embarque, tudo estava certo, não faltava mais nada. De repente, ele voltou até junto de mim, me estendeu a mão e pediu: “A bênção, pai!” Pronunciei o “Deus te abençoe” e a ordem do mundo se refez, uma ordem em que se recompõem os elos com o passado, sem nenhuma culpa pelas formas que o presente assume. Não sei o que meu filho sentia, nem em que pensava quando me pediu a bênção. Talvez tenha lembrado a história dos três irmãos, a que minha avó me contava, e contei para ele. Todas as experiências do homem são de algum modo análogas, está escrito no Eclesiastes, o livro em que aprendi a ler, ajudado por meu pai. • Continente junho 2006
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AGENDA/MÚSICA Imagens: Divulgação
Jazz & Blues Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga ganha coletânea de CDs com o melhor de seis de suas edições
João Donato, homenageado da 6ª edição do FJ&BG
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m vez da balbúrdia geral, a tranqüilidade da serra. No lugar dos arroubos de Momo, os prazeres da música suave e bem elaborada. Pode parecer estranho, mas no período momesco, muita gente de todo país segue no contrafluxo das ruas e ladeiras coloridas e agitadas e sobe a Serra de Guaramiranga, situada num maciço de Mata Atlântica, no Ceará, para se deleitar durante o Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, evento que teve, este ano, sua sexta edição, João Donato, “o maldito”, como homenageado. E para acariciar os ouvidos saudosos, a organização do evento resolveu promover uma coletânea reunindo os seis CDs (um por ano) com o que de melhor o público do Festival ouviu. Nas 71 faixas dos seis CDs do Festival de Guaramiranga (2000 a 2005), está uma boa amostra da produção do jazz feito no Brasil. O jazz é um receptáculo universal, pois, sendo um modo de expressão musical, nele cabem contribuições do Japão, na Europa, na América Latina, na África. Desde standards de Duke Ellington, John Coltrane e Cole Porter, interpretados à risca (isto é, repetindo, com eficácia, a fór-
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mula original) até alguns experimentos interessantes, em que há uma saudável mistura com elementos locais, como no “Forró Voador” (Pádua Filho, 2000), em que a percussão sustenta um sotaque nordestino – os CDs são um caudoloso registro do jazz à brasileira. Também a faixa “Panelada” (Moacir Bedê, idem) consegue uma síntese instigante do jazz com o baião. Junte a isso as curiosas emulações de jovens brancos brasileiros com músicos negros americanos, inclusive no modo de cantar, em muitas faixas de blues. Chorinhos de Jacob do Bandolim dão uma dimensão perfeita das correspondências melódicas, harmônicas e rítmicas entre o gênero musical brasileiro e o norte-americano. Se historicamente as duas culturas correram paralelas (fontes africanas sincretizadas a expressões européias), após a bossa-nova a influência mútua é reconhecida e continua a interação. Nos encartes, alguns errinhos de informações sobre intérpretes, o mais hilariante o da faixa 4 do CD de 2003, quando uma voz de homem canta “You Are the One” e o crédito dá como vocal Fátima Santos. CDs do Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga (promocionais). Informações: www.jazzeblues.com.br
CDS
AGENDA/MÚSICA Carioca, homenagem a São Paulo
Ele é carioca e afirma isso não só no título do seu novo CD, mas em várias referências geográficas e sonoras. Mas, ao ser perguntado sobre o porquê do seu novo disco se chamar Carioca, Chico Buarque respondeu: “É uma homenagem a São Paulo”. Não é ironia: Carioca era seu apelido de adolescência, toda passada em São Paulo. Carioca é também o primeiro solo de canções inéditas, desde 1998. Quatro delas têm o cinema como inspiração: “As Atrizes”, “Ela Faz Cinema”, “Porque era ela, porque era eu”, do filme A Máquina, e “Sempre”, canção-tema de O Maior Amor do Mundo, próximo filme de Cacá Diegues. O álbum inclui ainda um DVD com o documentário Desconstrução, contendo o making-off do CD. Carioca. Biscoito Fino, preço médio (DVD+CD) R$ 54,90.
Alma sanfônica
Arte na barbearia O Bonsucesso Samba Clube está de volta. Tem Arte na Barbearia homenageia Isnar Colombo, figura ilustre e popular de Olinda, que é um misto de barbeiro, pensador, humorista, conselheiro e filósofo. Assim como em “Bonsucesso Samba Clube”, lançado em 2003, o segundo álbum traz um variado repertório que inclui música latina, samba de gafieira, ritmos nordestinos, reggae e ska, numa mistura alucinante de bits, samplers e efeitos. Mas neste novo trabalho, o grupo pegou mais leve na eletrônica e realçou a percussão. “Derrapar”, que abre o disco, tem um clima sossegado, reforçado pelo som da escaleta de Berna Vieira. Já a guitarra rascante de André Édipo está maravilhosa. Tem Arte na Barbearia. Independente, preço médio R$ 21,50.
Recado Mineiro
O poeta, compositor e produtor Xiko Bizerra é um incansável impulsionador do forró nas terras da nação de Seu Lua. Numa atitude quase quixotesca, ele lança mais um Forroboxote. O número cinco da coleção homenageia a sanfona e traz uma linha poética mais presente. Só que desta vez, ele ousou um pouco mais: além dos aboios, toadas, xotes e baiões, incluiu chorinhos, frevos e até um tango, que se justifica pelas similaridades entre o acordeão e o bandoneon. Um tiro arriscado. Mas, ponto para ele, que desafiou seu próprio rincão e se aventurou em novas trincheiras. Ponto também para apresentação do CD, feita numa bela caixa de madeira. Exemplo a ser seguido pelos produtores locais.
Toninho Horta, Zé Renato, Nicolas Krassik, Victor Bilgione, Simone Guimarães, Wagner Tiso, Fernando Brandt... gente do mundo que se encontrou nas paisagens melódicas de Minas Gerais para realizar um som bem mineiro, no CD Meu Recado, do grupo Cambada Mineira. Capitaneado por Flávia Ventura, Amarildo Silva e João Francisco Neves, o disco apresenta composições próprias e releituras do cancioneiro mineiro, como “Canção da América” e “Clube da Esquina II”. O álbum inclui ainda uma faixa-bônus com um programa interativo, incluindo o vídeo-clipe da música “Cateretê”.
Alma sanfônica. Independente, preço médio R$ 14,00.
Meu Recado. Rob Digital, preço médio R$ 22,80.
Berço do samba paulista Berço sagrado do samba paulista, o bairro do Bixiga, ocupado originalmente por negros quilombolas, depois por italianos e, hoje, por nordestinos vários, pode ser visto como um microcosmo da cultura brasileira. O CD Revista Bixiga Oficina do Samba é resultado do encontro do Teatro Oficina (Zé Celso Martinez), do Movimento Bixigão e da Escola de Samba Vai-Vai. O repertório inclui 22 sambas ligados ao Bixiga, incluindo canções de nativos, como Antonio Rago e Paulo Vanzolini, mas também de Zé Celso, Adoniram Barbosa (que dá nome a uma rua no local), de Henricão e Geraldo Filme, sambistas da Vai-Vai, e o poema “Moleque de Recife', de Solano Trindade. Quem não gostar desse disco, “ou é ruim da cabeça ou doente do pé”. CD Revista Bixiga Oficina do Samba. Atração Fonográfica, preço médio R$ 22,90.
Voa Azulão Nascido em 25 de junho de 1942, Azulão deve ter vindo com o forró nas veias. Seu primeiro long play foi lançado em 1964, pela memorável Rozemblit. De lá pra cá foram 24 (incluindo LPs, compactos e CDs), contando com o mais recente Solte o Azulão, primeiro com músicas inéditas. Com algumas composições próprias e participações especiais de Dominguinhos (no delicioso xote “Arte Verdadeira”: “Seu Dominguinhos muito obrigado/ Por ta cantando esse xote ao meu lado”), Marinês e Genaro, o disco é reverente ao gênero: os contagiantes arranjos incluem cavaquinho, violão de sete cordas, acordeão, trombone, tuba, flauta, contrabaixo e variada percussão. Solte o Azulão. Coreto Records, preço médio R$ 15,00.
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
As travessuras dos reis Nada é mais empolgante do que ser rei na cultura do futebol
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cada fugazes quatro anos, o mundo curva-se diante das travessuras dos reis do futebol. O encontro dos cinco continentes numa só Copa – de expectantes campeões. Mas, enfim, que reis são esses que enfeitiçam os milhões de aficionados do mais popular esporte da Terra? De onde buscaram a herança dessa inspiração invulgar de uma arte tão repleta de magia e encantamento? Nada é mais empolgante do que ser rei na cultura do futebol. O Brasil, por oportuno, é pródigo na matéria. Que o digam os Leônidas, Domingos das Guias, Zizinhos, Queixadas, Niltons e Djalmas Santos, Canhoteiros, Garrinchas, Gersons, Tostões, Zicos, Falcões, Romários, Rivaldos e Ronaldinhos, hoje e sempre capitaneados pelo espólio de genialidade do rei de todos os reis: Pelé. Como se sabe, o homem é o único ser devidamente polêmico. Há um ponto, contudo, que não admite nenhuma dúvida, nenhum sofisma. Do esquimó ao chinês, do russo ao alemão, do patagônio ao egípcio, do islamita ao judeu, todos acham que Pelé realmente foi o grande craque de todos os tempos, ditando escola para os jogadores do presente e os jovens atletas do futuro. Essa complexa e contínua nobreza dos reis. Reis com a bola – a bola diabólica, que em seus pés ganhou vida e transformou-se no mais importante referencial de todos os apreciadores do esporte bretão, num redemoinho de sonhos vitoriosos ou de infelizes finalizações de ilusões. Craques que passaram, craques inesquecíveis. A cada toque de altivez em seus mirabolantes toques na bola, inebriavam o povão de gerais e arquibancadas da vida, como se fossem criaturas de outros mundos. Nas suas simples gingas no gramado, dizia Nelson Rodrigues, há toda uma nostalgia de gafieiras eternas, tais os saudosos Didi e o Mané Garrincha de todos os seus joões fabricados, que diante de suas jogadas faziam os pinto-
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res e escultores experimentarem a alegria que só as obras-primas despertam. “É pura dança”, escreveu Vinicius de Moraes, “como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia, como um bailarino encadeado ao ritmo”, tal Paulo Mendes Campos. A Copa deste 2006 já arrefece o clima festivo no Brasil da bola – a bola que servirá aos passes conectados a duas vontades: daquele que dá e daquele que recebe. Pois bem, há exatos quatro anos, nesta mesma página, escrevi sobre “a bola da vez”, quando comparava o alvo (para o bem e para o mal) de cada pessoa, governante, enfim, das nações belicistas e hipócritas na defesa de qualquer marmelada, em nome de qualquer democracia, para poderem usar seus artefatos letais contra sempre os mais fracos. Uns terão sucesso, outros não, inadvertidamente invertidos os objetivos. Quanto ao clima de guerra geralmente latente no mundo, parece que quase nada mudou, salvo as traves da mira dos chutadores ou atiradores. São outras as bolas da vez. No terreno da bola viva, digo, da roda viva atual, Ronaldinho Gaúcho é a bola de todos os brasileiros para a nossa seleção, a do Tio Sam Bush II é o Irã dos aiatolás atômicos, que pelo seu lado colocou o esférico direcionado para Israel. E, pelo andor da carruagem, o Brasil de Lula lá virou pontaria séria dos Morales e Chávez, envergonhando o Brasil de todos nós cá patriotas com o abandono da nossa soberania – de bolas murchas. Portanto, melhor ficarmos com a emoção da marginalização – povão pacífico e ancho por gritos de gols – verdadeiro elitismo popular na alegria de viver. É por isso que o nosso Brasil para todos, e não “de todos”, continua sempre como a bola da vez de todas as Copas, agora, mais do que nunca, outra vez. Fiquemos com as bolas cheias e as travessuras dos nossos reis. •
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