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Daniel Moraes
EDITORIAL
O repórter Geneton Moraes Neto face a face com Mailer: sensação de fim de uma era
Crepúsculo de um rebelde
A
os 83 anos, o escritor americano Norman Mailer sofre na pele e na alma as mazelas do tempo: quase surdo, apoiado em duas bengalas e com um pigarro persistente que faz sua voz “soar como a de Richard Nixon no fim da vida”, o velho rebelde que protagonizou ao longo das últimas décadas memoráveis movimentos de insatisfação social, como os protestos contra a guerra do Vietnã, confessa-se um “conservador de esquerda”. Entretanto, com o portentoso narcisismo atenuado pela velhice, é capaz de analisar de forma lúcida, se bem que melancólica, o formidável embate nos meios culturais pelos corações e mentes entre a cultura literária e a cultura televisiva, já vencido, segundo ele, pela televisão. A reportagem de capa desta edição traz material exclusivo de Geneton Moraes Neto, que assistiu a uma desencantada palestra proferida por Mailer para uma magra platéia, no último inverno de Nova York, e dele ouviu a confissão de fé de quem acredita na reencarnação como instrumento de Deus para melhorar as criaturas. Essa dimensão pessoal de uma das grandes vozes da contestação americana do século 20 é complementada pela análise da obra literária do autor de Os Nus e os Mortos por Daniel Piza, para quem Mailer é o caso de escritor que após uma grande
estréia não consegue mais sustentar o padrão, deixandose tomar pelo narcisismo e engolfando-se na impossibilidade de organizar sua variedade de interesses e recursos numa obra consistente e duradoura. A decadência física do escritor norte-americano e sua proximidade do fim levam ao outro tema explorado pela Continente neste número: a Morte. Tema filosófico pela própria natureza, para Camus, é o problema fundamental da filosofia e, para Montaigne, um obstáculo à felicidade. Já Heidegger vê o ser humano como um ser-para-a-morte. Tema inescapável para o homem, foi também explorado no cinema e na literatura, entre outras artes. Até hoje, a imagem cinematográfica da morte mais famosa está no filme O Sétimo Selo, do cineasta sueco Ingmar Bergman, protagonizada pelo ator Bengt Ekerot. Na literatura, serviu de leitmotiv para as narrativas e poemas do atormentado escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Para uns, é ela que dá sentido à vida; para outros, é justamente o contrário: transforma a vida num completo absurdo. De toda discussão, contudo, fica uma pergunta: se a morte é a única certeza que temos na vida, por que nossa tendência a encará-la como uma tragédia? • Continente julho 2006
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CONTEÚDO Imagens: Reprodução
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Norman Mailer, um “conservador de esquerda”
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Morte: o maior problema filosófico
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CONVERSA 04 Gus Van Sant comenta sua obra e o cinema gay
CAPA 12 Norman Mailer, amargurado, constata a derrota da Literatura 19 Entre o narcisismo e a desordem, um brilhante projeto falhado
LITERATURA
ESPECIAL 58 Morte: a maior questão filosófica 64 O sentimento trágico de Unamuno 66 A morte personalizada no cinema 68 As obsessões mórbidas de Edgar Allan Poe
MÚSICA 70 A música sacra brasileira, hoje 74 Agenda Música
22 Shakespeare na realidade brasileira
DESIGN
26 A fealdade como categoria estética contemporânea 30 Defeito: um grande lançamento, nos dois sentidos 32 Os Lusíadas em quadrinhos: futurismo 34 Prosa: uma mulher no ritmo das estações 37 A poesia de José Inácio Vieira de Melo 38 Agenda Livros
78 A arte brilhante de Clementina Duarte
ARTES 44 A arte em movimento de Jesús-Rafael Soto 52 Agenda Artes
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FOTOGRAFIA 82 Uma antropologia do artesanato pernambucano
REGISTRO 90 Uma instigante viagem pelos meandros da Língua Portuguesa
CONTEÚDO
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Fotos: Divulgação
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Clementina Duarte e o brilho de suas jóias
90 Língua Portuguesa em museu ultra-moderno
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Nossa tenebrosa vida em sociedade
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 40 Oficinas literárias podem fazer um escritor?
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 50 A volta do cearense Antônio Bandeira
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 54 Comida da terra da Copa do Mundo
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 57 Resposta de um mestre a um todo-poderoso
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 A perplexidade diante da morte
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Nossa democracia, tão perto do retrocesso Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente julho 2006
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CONVERSA
GUS VAN SANT
“Hollywood está indo atrás de diretores reconhecidamente gays” Premiado diretor americano, em entrevista exclusiva, comenta seu sucesso em Cannes e revela o aquecimento do mercado mundial de filmes de temática homossexual Kleber Mendonça Filho
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cineasta americano Gus Van Sant, 56 anos, voltou a Cannes no último festival, três anos depois de ganhar a Palma de Ouro por Elefante, e ter participado, no ano passado, com Last Days, outra adaptação livre de um fato (os últimos dias de Kurt Cobain, líder da banda Nirvana). Desta vez, já gozando de enorme prestígio junto à biosfera selecionada que é o mundo Cannes e da crítica francesa, Van Sant terá seu primeiro filme, o pouco visto Mala Noche, lançado na França comercialmente (em outubro). Curiosamente, o cinema de Van Sant não se restringe a abordagens “de gueto”. Filmou em 1995, com Nicole Kidman, o instigante e amargo como fel Um Sonho Sem Limite (To Die For), sobre o culto americano à idéia de celebridade, e entrou para o time de diretores hollywoodianos trabalhando para a Miramax em Gênio Indomável (Good Will Hunting, 1997), sucesso de público e filme ganhador de Oscar (roteiro e ator/ coadjuvante para Robin Williams). Nessa entrevista, feita em Cannes, Van Sant opina sobre o impacto que Brokeback Mountain pode ter tido na percepção de temas gays no cinema atual, lembra do que significou fazer Mala Noche, há 21 anos, e tenta entender o peso de uma Palma de Ouro. Continente julho 2006
Vendo Mala Noche, em Cannes 2006, filme que foi essencialmente exibido em circuitos alternativos nos anos 80, veio-m me à mente Brokeback Mountain, que, em 2006, conseguiu sair do chamado “nicho gay” e conquistar um público insuspeito nos multíplices do mundo. Qual a sua percepção do filme de Ang Lee? Houve conquistas? Sim, claro que houve. Até hoje, e olha que já se passaram 30 anos, pois foi em 1975 que a chamada “política gay” de São Francisco começou a, de fato, existir e ganhar voz, fazer uma diferença não apenas como política, mas como conquista social, e isso teve um impacto fortíssimo na comunidade gay americana, talvez até mesmo na idéia de ser gay no resto do mundo. Com toda certeza, a década de 70 foi a década que testemunhou o aparecimento da homossexualidade num sentido, digamos, “acima da terra”, uma vez que antes ela existia no subterrâneo e era socialmente clandestina. Já naquela época, por volta de 1975, existia uma cobrança por filmes que trouxessem um ponto de vista gay, que retratassem a gay life (vida gay), a homossexualidade de uma maneira normal, da mesma forma que estavam também sendo feitos filmes que retratavam outros grupos sociais, ambientados em comunidades negras, ou asiáticas, dentro dos Estados Unidos. Engraçado que, quando eu mesmo olho para os meus filmes, não me vejo como uma
Kleber Mendonça Filho
Ganhar em Cannes não faz exatamente um efeito em Hollywood, pois existe a noção de que "filmes de arte ganham a Palma de Ouro" e poucos chegam a ser lançados nos EUA
CONVERSA
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daquelas pessoas que queriam finalmente ver essa tal naturalidade nas abordagens da homossexualidade no cinema, uma vez que meus filmes são sempre sobre personagens desesperados, dotados de algum tipo de patologia, ou sociopatia. Meus filmes eram meio que incômodos para os que queriam ver na tela gente gay normal. O que eu realmente estou querendo dizer é que esse tal filme que a chamada maioria gay sempre quis ver ainda não foi feito. Brokeback Mountain certamente não foi esse filme, nem nunca seria, infelizmente. O que eu acho que o filme de Ang Lee é, possivelmente, é uma narrativa sobre um relacionamento homossexual entre dois homens que foi exibida para grandes platéias, tornando-se um grande sucesso. Nesse sentido, deu um passo à frente e eu diria que, talvez por causa de Brokeback Mountain, esse ano, a temática gay pode ser vista como aquecida comercialmente. Percebo isso nos que fazem Hollywood, os agentes/empresários têm ido atrás de diretores reconhecidamente gays, procurando idéias, roteiros, aceitando projetos com essa embalagem temática..
Fotos/Divulgação
Pedro Almodóvar falou recentemente em Cannes de Brokeback Mountain que ele teria analisado a possibilidade de fazer o filme. A obra cinematográfica também lhe foi oferecida? Sim, creio que fui o primeiro diretor a ser cogitado, cheguei a trabalhar durante um ano e meio com essa idéia. No final das contas, eu não consegui o elenco que eu queria e fui perdendo gás.
Voltando ao Mala Noche, o que lhe chamou a atenção ao rever o filme em Cannes, 21 anos depois de tê-llo feito? Tematicamente, foi um filme difícil de “vender” como produção realizável e/ou viável por um diretor estreante? Na verdade, lembrei que tive muitos problemas com o preto e branco do filme, com aquele aspecto “baixo orçamento”, mas revendo-o agora, pareceu-me ok na tela, a imagem foi toda reprocessada. Isso, no entanto, é superficial, pois me veio à mente os problemas que tive, relacionados ao choque de gerações entre todos nós que fizemos o filme. Walt Curtis, bem mais velho que todos nós, tendo sua história filmada sobre a obsessão de um homem por um garoto mexicano, Johnny, e ele acaba ficando com Pepper. Isso foi algo que se traduziu bem para fora da tela através do próprio filme, e senti, na época, que muitas pessoas também rejeitaram esse aspecto doentio do filme, deprimente. É uma história trágica e carregada de sentimentos, em grande parte do próprio Walt, o que talvez explique o porquê de o filme não ter passado em muitos festivais “normais” na época, tendo ficado, em grande parte, restrito aos festivais de temática gay nos Estados Unidos, o chamado “gueto”. Isso o incomodou na época? Não sei se isso me incomodou, acho que aceitei normalmente o que acontecia com o filme que, para mim, era já muito bom. Não lembro agora, se eu enviei o filme para o Festival de Nova York, mas sei que Mala Noche passou em Berlim primeiro, e no New York Gay Film Festival. Na verdade, Mala Noche teve uma cota considerável de indiferença, não sei se por causa da história em si, talvez sim.
Cena de Broukeback Montain, que fez a temática gay tornar-se rendosa para Hollywood
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Você está voltando a Cannes três anos depois de ter levado a Palma de Ouro com Elefante, desta vez sem competir, mas com o primeiro longa da sua carreira, e que ganha tratamento de filme novo. Qual sua relação com festivais e prêmios? Prêmios são engraçados, pois não há exatamente uma lógica, é impossível afirmar que “tal filme vai ganhar” ou “tal filme vai perder”. A relação com o júri é íntima demais para que exista uma lógica.
CONVERSA
Mala Noche, primeiro filme de Van Sant, foi exibido em Cannes e entra em circuito na França
Se Mala Noche estivesse aqui como um filme novo, em competição, quem sabe se ganharia alguma coisa? No entanto, algo que observo, e talvez a minha vitória aqui em Cannes explique isso, é o fato de o cinema, ou a percepção de cinema, vir, pelo que eu vejo, em ondas. A Palma de Ouro mudou alguma coisa na sua carreira, seja no sentido de maior liberdade, ou mais recursos financeiros? Pergunto isso porque depois de Elefante, que foi lançado no Brasil, Last Days (2005), que também esteve na competição em Cannes, permanece inédito nos cinemas brasileiros. Mudou. E Mala Noche, como meu primeiro filme, feito 20 anos atrás, é um bom exemplo. O filme estará sendo lançado na França e é inegável que o peso da Palma de Ouro valida, de alguma forma, essa obra. Sinto também um efeito positivo em projetos futuros, tendem a ser mais fáceis. Tudo isso, claro, em relação ao mercado internacional. Em relação a Hollywood, não há exatamente um efeito, pois existe a noção de que “filmes de arte ganham a Palma de Ouro”, e os poucos que chegam a ser lançados nos EUA não fazem o tipo de dinheiro que interessaria a Hollywood. Pulp Fiction (1994) foi uma exceção, e talvez existam uma ou duas outras, mas Elefante não deu dinheiro nos EUA. Como cineasta respeitadíssimo pela crítica, em especial a crítica francesa, como descreveria sua relação pessoal e artística com a mesma?
Eu sinto que eu próprio preciso reinterpretar a crítica a partir do fato de que ela vem de um ponto de vista específico. Pode ser um ponto de vista industrial, como o da revista Variety, ou outro relacionado a algo que eu não consigo exatamente entender para início de conversa, ou mesmo dar ouvidos, mas que não deixa de ser válido, mesmo assim. Muitas vezes, eu acho até mesmo divertido, pois você passa a identificar um tipo de consistência em determinados críticos, até pelo fato de eles sempre detestarem o que você faz. Na primeira vez, pode até doer, mas depois fica até mesmo divertido. Sobre essa coisa do “doer”, ela vem principalmente da sensação de não estar sendo compreendido, o famoso “não foi isso que eu quis dizer”, e tenho um amigo, cujo filme passou aqui em Cannes (e cujo nome não vou revelar!), que reage muito mal em relação ao que a crítica talvez venha dizer sobre os seus filmes. Ele sente-se pessoalmente agredido, é como se fosse uma pequena morte. Tento falar para ele: “Não há nada que você possa fazer! Todos nós recebemos críticas negativas aqui e ali”. Estava até curioso para ler as críticas de Mala Noche na Variety e The Hollywood Repórter, mas não as li ainda. Acho que se alguém escrever coisas negativas sobre esse filme, eu provavelmente ficarei sentido. Esse primeiro filme não foi, de forma alguma, calculado. Seja lá que imagem Mala Noche construiu em torno da minha pessoa, essa imagem foi natural e refletia o que eu fiz no filme, que vejo como um filme muito pessoal. Por outro lado, e isso é interessante, aprendi com o tempo que o crítico escreve sem dó sobre o que acha de um filme. • Continente julho 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Isabelle Câmara e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Isabelle Câmara Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Renata Bezerra de Melo, Monique Lima e Diego Dubard Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Rubens Câmara Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE
Julho | 2006 Ano 06 Capa: Norman Mailer Foto: William Coupon/Corbis
Colaboradores desta edição: CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista.
CLAUDIO DANIEL é poeta, tradutor e ensaísta.
DANIEL PIZA é jornalista e editor executivo do jornal O Estado de S. Paulo.
EDUARDO CRUZ é jornalista.
GENETON MORAES NETO é jornalista, escritor e editor do Fantástico da Rede Globo.
GUILHERME MOURA ROCHA
DE
SOUZA é escritor.
KLEBER MENDONÇA FILHO é jornalista, cineasta e crítico de cinema.
JANILTO ANDRADE é professor de Literatura Brasileira e da Unicap.
KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema e cineasta.
PAULO POLZONOFF JR. é jornalista.
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Colunistas: ALBERTO
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CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala.
CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural.
FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão.
JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra.
Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco
MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim.
RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial
RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente julho 2006
CARTAS
Parabéns Oi, pessoal! Sou da cidade de Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro, e ainda não conhecia a Revista Continente Multicultural. Uma amiga aí do Nordeste me presenteou com um exemplar e fiquei encantada. Como educadora, a Revista será material de aprendizagem para os meus alunos, por abordar temas tão bons e editados de forma tão maravilhosa! Parabéns à equipe Continente Multicultural, parabéns ao Nordeste! Só mais uma coisinha: onde encontro a Revista, aqui, no Rio? Catarina Cobucci – Volta Redonda –RJ Surpresa Sou leitor da Revista desde a época de colégio, e sempre me surpreendo com as edições. Cada vez mais bonita, mais atraente. Textos inteligentes, imagens de qualidade inquestionável. A capa da edição "Cânone" está linda! Nela, o que mais me chamou a atenção foi o especial sobre Sigmund Freud; como amante e estudante de psicologia, quero agradecer por esse texto perfeito que me foi muito construtivo. Um abraço a todos. Henrique Brandão – Recife–PE
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Cinema 1 Bom, adorei a matéria “Nova safra de filmes pernambucanos” que fala sobre a região semi-árida e as memórias afetivas e imaginárias. Amo cinema e o nordeste, acho muito boa essa iniciativa dos filmes. Saudações a todos da redação. Helenna Pelussi – Recife–PE Cinema 2 Gostaria de elogiar a Revista Continente pela seção “Conversa” do mês de junho, que teve como personagem o cineasta Nelson Pereira dos Santos. Protagonista de épocas marcantes da nossa vida social e política e inspirador do Cinema Novo, ele é uma personalidade que deve ser valorizada. Além disso, é sempre bem-vindo um impulso para o cinema brasileiro que está em plena expansão, mas ainda carece da simpatia dos brasileiros. Maria Alcinda – Fortaleza – CE Críticos Gosto muito da Revista, mas tenho reparado que nos últimos meses está havendo uma insistência muito grande em assuntos com Harold Bloom. Exis-
tem outros grandes críticos, como Bernard Shaw e Karl Kraus, este só aparece numa das colunas “Sabores Pernambucanos” e, ainda, como sendo alemão, quando é, na verdade, austríaco. Andersson Luís – Recife–PE A simbologia do fogo Caros amigos, gostaria de saber como adquirir a edição da Revista Documento, que fez uma homenagem a Paulo Freire. Pretendo adquiri-la. Ainda é possível? Elisama Nota da Redação Você pode encontrar edições anteriores no setor comercial da Companhia Editora de Pernambuco, que fica na rua Coelho Leite, nº 530, em Santo Amaro – Recife – PE, ou pelo telefone: 81.3217.2581. Continente no Orkut A sugestão do leitor Charles Moraes, feita na comunidade do Orkut (http://www.orkut.com/Community.aspx?c mm=419023), foi aceita. A partir de agora as sugestões feitas no espaço, servirão como fontes de informação para as Cartas das próximas edições.
Novos ares
A Revista Documento sobre a Nova Poesia (edição nº 46) veio em boa hora. Já não agüentava mais respirar a “atmosfera de eternidade” dos imortais poetas (bons, sem dúvida), que são citados até a exaustão, sempre, em qualquer fonte informativa, ou roda de intelectualóides. Essa edição foi interessante, mas poderia ter anexado algum tipo de antologia - mesmo sumária - de sangue novo.
”
Airton Perrini – Recife –PE
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Sociedade aflita Quando o oportunismo imediatista é percebido como a regra do jogo, cada um se defende como pode
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oupa simples. Sapato tênis. O dinheiro dentro da meia para a possibilidade de o assaltante desejar levar também o tênis. Bolsa velha com uma surrada carteira de cédulas. Alguns cartões sem uso. Dez reais em dinheiro, com a finalidade de não frustrar totalmente o bandido. E algumas moedas numa bolsinha de pano para pagamento da passagem de ida, pois ia buscar seu carro numa oficina do tipo martelinho de ouro num bairro de periferia. Socióloga, aposentada do serviço público, estava pronta para a partida. Iria tomar o ônibus da linha 1232 que passaria a duas quadras de sua residência. Esses “adereços” de comportamento, fazem parte da nossa sociologia da sobrevivência e da adaptação às novas formas de convivência social de uma sociedade centrada no consumo e na fruição de experiências de curto prazo, aqui e agora. Fobia pessoal ou anomia social? A barbárie foi instalada? A natureza do homem mudou ou permanece a mesma, como defende o filósofo inglês John Gray. Nesse cenário de perplexidades, a racionalidade do mercado global atinge pessoas, instituições e nações em proporções similares. Foi-se, há muito, o tempo dos Doces Bárbaros, hoje os bárbaros não são doces nem as instituições são dóceis. A tragédia da insegurança de que foi vítima a cidade de São Paulo ilustra bem o cenário de dominação da violência. No mundo do crime, agredir, assaltar, extorquir, matar ... faz parte do negócio. No mundo globalizado, com a dialética de raízes financeira, comercial e de pretensa responsabilidade fiscal, todos querem igualmente levar vantagem. O setor financeiro alcança lucros extravagantes. O Governo acelera o aumento da carga tributária, aperta as categorias funcionais mais frágeis e retira direitos constitucionais pétreos. Os Poderes Legislativo e Judiciário conquistam pisos que na verdade são tetos; e as carreiras públicas, ditas estratégicas, avançam nos benefícios salariais.
Resultado: o dispêndio com pessoal continua a subir e a massa, que ficou de fora, continua levando a culpa. Nesse perde-ganha, ações egoístas individuais ou institucionais, acabam servindo de exemplo e balizamento para o comportamento social de muitos. Afinal, quem desejaria ser o Quixote ou o trabalhador ingênuo e mal pago, em meio a um bando de oportunistas de plantão?. Quando o oportunismo imediatista é percebido como a regra do jogo, cada um se defende como pode. Na síndrome angustiante de agarrar sua vantagem particular e o prazer aqui e agora, e ao transgredir as normas de uma convivência civilizada, as pessoas e instituições terminam criando um monstro coletivo, um tecido social hostil que se abate sobre suas vidas com a fatalidade inocente de uma catástrofe natural. Nessa cena, a torpeza das mentiras que presenciamos, da lei que não é respeitada, das conivências estabelecidas, das promessas que não são cumpridas, da justiça que não é feita e da impunidade que se estabelece, mostram que a iniqüidade e o oportunismo governam o comportamento geral. Para Eduardo Gianneti, o mal com que nos deparamos é resultado agregado de uma miríade de ações divergentes, cada uma minúscula em si mesma diante do todo social, mas que somadas ao longo do tempo são poderosas o suficiente para configurar o quadro de incerteza, de adversidade e de violência, que torna tenebrosa a nossa vida em sociedade. Ficção ou realidade? Civilização ou barbárie? Qualquer que seja o contexto, a história da socióloga nos mostra que as pessoas têm uma tremenda capacidade de adaptação. Todavia, mesmo com toda a precaução sistêmica, qualquer viagem, realizada nas condições em que a violência social e institucional se encontram na sociedade, tende a ter rumo desconhecido e, numa sociedade aflita, faz ainda a ficção transformar-se em realidade. • Continente julho 2006
Christopher Felver/Corbis
Nelson Provazi
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CAPA
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CAPA
NORMAN MAILER
“Sou um conservador de esquerda” Um dos grandes nomes da literatura americana do século 20 constata a vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária”, denuncia que os comerciais de TV estão destruindo o poder de concentração das crianças e diz que detesta o terrorismo porque as vítimas não têm tempo de se preparar para a morte. Por fim, uma surpresa: aos 83 anos, confessa-se devoto da reencarnação e se define como um conservador de esquerda Geneton Moraes Neto, de Nova York
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CAPA
Mailer (ao centro), preso em novembro de 1960 por haver esfaqueado a mulher, Adele Mailer, durante uma festa
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Acabou. O fim de uma época em que os escritores tinham uma voz ativa na sociedade foi decretado por um porta-voz insuspeito: um grande escritor. Nome: Norman Mailer. Sem qualquer alegria, ele constata que, hoje, um americano médio, “razoavelmente inteligente”, não seria capaz de citar o nome de três bons escritores contemporâneos. Adeus, meninos. E agora? Agora, vale a pena ouvir a palavra de Mr. Mailer. Eis o homem: o Grande Rebelde das Letras Americanas, o velho porta-voz das insurreições, o Eterno Dissidente, o “último ícone da literatura americana do século 20” caminha apoiado por duas bengalas. Os cabelos, desalinhados, clamam por um pente. Traja uma camisa laranja de mangas compridas. Uma jaqueta protege-o dos rigores do inverno. Primeira constatação: a longevidade – definitivamente – não vem de graça: o tempo cobra, ao Norman Mailer de 83 anos, o pedágio imposto aos octogenários que ousam desafiar a passagem dos séculos (quando Mailer nasceu, no último dia de janeiro de 1923, em Long Branch, New Jersey, a Primeira Guerra Mundial tinha acabado havia apenas cinco anos. Os horrores do delírio hitlerista, a viagem do homem rumo às estrelas, o rosto estilhaçado de John Kennedy em Dallas, a aventura americana no Vietnã, a rebelião dos jovens dos anos 70, todos estes temas que um dia ocupariam a pena do Mailer escritor ainda demorariam décadas para acontecer: eram apenas uma possibilidade escondida nas cartas de alguma cigana). Quando fala, o Grande Rebelde pontua as frases com um pigarro renitente. Quando ouve, fixa os olhos limpidamente azuis no movimento dos lábios do interlocutor – um esforço para Bettmann/Corbis
Geneton Moraes Neto
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CAPA
captar, no ar, as palavras que a quase surdez o impede de ouvir. “Eu estou ficando surdo a cada minuto” – confessa, sem esforço para disfarçar a ruína auditiva. “Estou ficando velho. Já não terei tanto tempo” – diria, pouco depois. “Desculpe o pigarro. O motorista me disse outro dia, sobre minha voz: “Você soa como Richard Nixon no fim da vida...’ “. Que ninguém se iluda com a aparente autocomiseração. O octogenário Norman Mailer provará já,já, que não lhe falta fôlego para disparar petardos verbais em todas as direções. (O Grande Rebelde me brindaria esta noite com uma confidência feita ao pé do ouvido – um pequeno prêmio concedido à minha impertinência. Assediado por fãs que pediam um autógrafo em exemplares do recém-lançado The Big Empty, o livro que reúne seus diálogos políticos com o filho John Buffalo, Mailer comete ali e aqui pequenas indelicadezas, facilmente perdoáveis quando se contam as décadas que já acumula sobre os ombros. Um leitor estende-lhe um bilhete. Mailer nem olha para o pedaço de papel: “Não posso ler. Não posso”. Quando outro fã dispara flashes a dois palmos de seus olhos, resmunga: “Gente de minha idade não pode encarar flash...” O desconforto diante do espocar dos flashes parece legítimo. Diante do assédio ao nosso personagem, recorro a um caso extremo de concisão. Pergunto a Norman Mailer se ele poderia se definir em uma só palavra – e escrevê-la na folha de rosto do meu exemplar. Não, não pode. Pega a esferográfica vagabunda para me presentear com um autógrafo, escrito em letra firme e legível. O assédio faz Mailer me confidenciar o que pensa dessas aparições: “São brutais, rudes e desconfortáveis”. Guardo o desabafo em meu gravador.) É inevitável: uma sensação de “fim de uma era” percorre a espinha dorsal de quem testemunha a aparição do Grande Rebelde das Letras neste início de noite gelado, no prédio que serve de sede à New York Society for Ethical Culture, no número 2 da rua 64, Nova York. Eis ali o escritor que, no auge dos anos 60, agitava os manifestantes que bradavam diante do Pentágono contra o envolvimento americano na Guerra do Vietnã. Hoje, apoiado por bengala e aparelhos para surdez, emite impropérios contra o presidente George Walker Bush para platéias não tão numerosas. Os manifestantes que antes lotavam as alamedas de Washington hoje se resumem a duas centenas de almas que enfrentam o frio do inverno nova-iorquino para ouvir, em tom reverente, a pregação antiestablishment do Velho Rebelde. O que terá acontecido? Onde estão as hordas de ouvintes? O próprio Mailer dá o diagnóstico: “Já não somos uma cultura literária. Somos uma cultura televisiva. Os escritores já não são tão importantes quanto antes. É o que digo, sem nenhum prazer”. Onde estão as equipes de TV da CBS, NBC, ABC, que não aparecem para documentar a pregação do Velho Lobo? A única equipe de TV presente é a de um canal francês. O repórter cede à tentação de anotar um paralelo cruel: é como se a inevitável decadência física de Mailer tivesse acompanhado a não tão inevitável perda de importância da figura do escritor numa sociedade dominada pelas imagens. As caixas de som espalham os acordes de canções militantes cometidas pelo John Lennon pós-Beatles, como “Power to the People”. Depois, a platéia é embalada pelos versos de Lennon
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Protesto coletivo em Washington contra a Guerra do Vietnã, na década de 60
em “Mother”, a canção que mereceria o Grande Prêmio Internacional de Concisão porque consegue resumir em duas frases tomos e tomos de tratados psicanalíticos: Mother, don’t go/ Daddy, come home: “Mãe, não vá embora / Pai, venha para casa”. Lá fora, uma solitária militante – que parece saída de uma passeata contra a Guerra do Vietnã – distribui panfletos anti-Bush. O alvo agora é a intervenção americana no Iraque. Quem enfrentou a neve das ruas pelo privilégio de ouvir a pregação do Grande Rebelde teve a sensação de que o sacrifício foi recompensado. A vitória da “cultura televisiva” sobre a “cultura literária” não é o único tema que ocupa as atenções de Mailer neste começo de século. A “lenda literária” (é assim que o jornal Village Voice se refere a ele) oferece aos ouvintes idéias originais sobre, por exemplo, a ligação que existe entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Dá uma explicação quase psicanalítica sobre o medo do terrorismo. Cria uma tese controversa sobre a influência que os intervalos comerciais das TVs exercem sobre a capacidade de concentração dos telespectadores. Dá o que falar. Faz provocações. Não escorrega no “rame-rame” da obviedade. Cumpre o papel que reservou para si desde que subiu ao palco literário: é um escritor que não se conforma em apenas escrever. Quer intervir. Intervém. A torrente verbal de Mailer incendeia a imaginação dos ouvintes. A ele, pois. A morte sem aviso prévio – Em vez de discursar sobre o óbvio desconforto que a ameaça de ataques terroristas espalhou sobre a sociedade americana, Mailer detecta um efeito pessoal provocado pela onda de medo: Detesto terrorismo porque uma das minhas idéias religiosas favoritas é a de que nós devemos estar preparados para a morte. Ser morto sem aviso é um ultraje à alma. Uma das piores coisas sobre o 11 de setembro é que ninguém estava preparado para um ataque daquele. Preparar-se para a morte é importante. Acredito que há alguma coisa depois da morte. O terrorismo é particularmente horrível porque estilhaça a noção de que você deve estar preparado para morrer. O Monumento Mailer estabelece uma surpreendente ligação entre o zelo pela língua e a sobrevivência da democracia. Vale a pena ouvi-lo: Acontece que a democracia é a mais delicada forma de governo. A mais delicada! Por esse motivo, demorou tanto a ocorrer na História. A democracia depende de que a linguagem do povo se torne mais rica e mais elevada ao longo das décadas e dos séculos. Depende de criatividade,
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Let them eat depleted uranium... ...Forever Cartum anti-Bush no site Radicalgraphics com os dizeres “Deixe-o os comer urânio enriquecido... ...pra sempre”
substância, boas instituições e alto desenvolvimento. George Bush é uma força que age negativamente sobre estes valores, porque ele reduz a linguagem. É um orador abominável. E enfatiza: – Quero insistir neste ponto: a democracia depende da beleza da linguagem. Depende do aperfeiçoamento – e não da deterioração da língua. Os Estados Unidos eram maravilhosos nos tempos de Franklin Roosevelt, porque ele falava tão bem. O pouco que pudemos ter de John Kennedy nos deu uma mostra de que ele, um homem inteligente, queria elevar o nível da inteligência na política e na América. Democracias são delicadas. Digo: o inglês só não sofreu um colapso e só não se partiu em pedaços ao longo das turbulências do século 20 porque um dia existiu William Shakespeare. Sem James Joyce, a Irlanda seria bem menos. Faço essas constatações não por ser um semitalentoso novelista, mas porque a linguagem é imensamente importante. Bush destrói a linguagem quando abre a boca. Em nome do terror, Bush cometeu crimes contra a integridade e a reputação do Estado. É o pior presidente dos meus 83 anos de vida. Isso significa um bocado, porque vivi sob Ronald Reagan. Uma dose de angústia e incerteza – O guerreiro Mailer avisa aos ingênuos que não há com escapar de dois sentimentos que se espalharam pelo planeta depois de assentada a poeira do desabamento do World Trade Center: Uma das exigências do novo século é que nós temos de conviver com uma dose de angústia e incerteza. O 11 de Setembro derrubou os dois mais reluzentes monólitos da economia americana, as Torres Gêmeas. Além de tudo, as Torres falavam da fálica hegemonia americana sobre o mundo. A dona-de-casa típica ficou desolada diante da assustadora possibilidade de que alguém pode trabalhar durante anos para formar uma família – e perder tudo em uma hora. A quem interessar possa, Mailer vai logo se declarando um “conservador de esquerda” – uma classificação que, admite, nem sempre é aceita por mentes habituadas a simplificações ideológicas: Pelo lado conservador, há instituições e valores que não devem ser desmentidos com uma piada. Metade da população mundial se enquadra na vida familiar. Se você não se enquadra, não ridicularize. Porque família é, sob vários aspectos, uma forma de arte.
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Norman Mailer, “demonizado” em traço do artista Joe Clardiello
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Mailer articula uma tese original sobre a televisão. Diz que a geração nascida e criada diante da luz azulada dos monitores de TV tem dificuldade de acompanhar raciocínios mais elaborados, porque toda história que a TV conta é interrompida de 10 em 10 minutos por comerciais: – Quando liam, as crianças de antigamente desenvolviam o poder de concentração, pelo prazer da narrativa. Em outras palavras: elas podiam seguir uma narrativa por horas. É quase como exercitar músculos: só que exercitavam a mente. Hoje, os equivalentes a essas crianças espertas vêem na TV narrativas que são interrompidas a cada sete ou 10 minutos por anúncios comerciais. Isso impede a continuação da narrativa. As crianças, então, ficam habituadas à idéia de que não são capazes de seguir nada que dure mais do que sete ou 10 minutos. Perdem o poder de concentração. Acontece com todos: se alguém se interessa por um programa, logo vem um comercial para afetar a concentração e a capacidade de pensar mais profundamente sobre o assunto. Por fim, o Grande Rebelde causaria uma nova surpresa, ao pronunciar uma profissão de fé na reencarnação: Eu acredito em reencarnação, porque acredito que Deus é o criador. Para mim, a idéia de que Deus existe faz mais sentido do que a idéia de que Deus não existe. A reencarnação é um dos instrumentos profundos que Deus usa para tornar melhores suas criaturas. Quando você morre, acredito que você é julgado, não para ir ao inferno ou ao céu, uma idéia que nunca fez sentido para mim. O que faz sentido é a idéia de que você renasce. Há, espera-se, uma certa sabedoria na escolha feita no renascimento. Neste momento, você é punido pelos pecados que cometeu ou é recompensado pelo que conquistou na vida. Ou seja: a vida tem um sentido, para Deus e para você, na maneira como você renasce. Você é premiado ou punido depois da morte. O Grande Rebelde agarra-se à ilusão do renascimento. É como se erguesse a bandeira branca e fizesse um aceno para o invisível, o incompreensível e o improvável. Os ouvintes consomem em silêncio reverente a inesperada profissão de fé de Mailer numa vida além da morte. É como se o homem de 83 anos olhasse para o fundo do despenhadeiro – e, finalmente, depois de tantos embates, tantos protestos, tantos prêmios, tanta glória, pudesse enxergar com clareza o que antevira numa passagem de Os Exércitos da Noite: “...Pois temos de ir até o final da estrada e alcançar aquele mistério onde a coragem, a morte e o sonho de amor nos prometem que poderemos, enfim, dormir”. •
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A armadilha do exibicionismo O escritor alcançou alguns grandes momentos, mas sua obra desigual revela um projeto falhado Daniel Piza
Alguns escritores se perdem porque fazem uma grandiosa obra de estréia e nunca mais conseguem sustentar o padrão; outros, porque se deixam tomar pelo narcisismo e passam a acreditar que seu talento natural e sua inteligência provocadora são suficientes para garantir alta qualidade à sua literatura; e há ainda os que não são capazes de organizar sua variedade de interesses e recursos numa obra que seja a suma do que observam e pensam. Norman Mailer é um curioso caso de combinação entre esses três tipos. É seguro dizer que, aos 83 anos, ele não cumpriu o que prometeu. Nascido em 1923, o escritor americano – de Long Branch, New Jersey – com passagem por grandes universidades, Harvard e Sorbonne, estourou com apenas 25 anos. Os Nus e os Mortos (1948), escrito na França e baseado em sua experiência como soldado na Segunda Guerra Mundial, é até hoje seu melhor Continente julho 2006
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Capas de edições brasileiras de livros de Mailer
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romance, pela mescla vigorosa de relato e imaginação. Vendeu e convenceu. No entanto, já nos livros seguintes, Barbary Shore (1951) e O Parque dos Cervos (1955), começou a mostrar os problemas que o caracterizariam, especialmente a verborragia egocêntrica, o estilo túrgido e autoreferente demais. Nova oportunidade de abraçar a grandeza surgiu quando, influenciado pelo jornalismo literário de Lilian Ross e pela tentativa de um “romance de não-ficção” feita por Truman Capote em A Sangue Frio (1956), Mailer passou a se dedicar ao jornalismo e ao ensaísmo. Em 1957, publicou The White Negro, que pode ser definido como um estudo da marginalidade. Mais determinante ainda seria Advertisements for Myself (1959), coletânea de reportagens e ensaios que teria grande influência sobre a nova geração, como o jornalista gonzo Hunter S. Thompson. Na volta ao romance, nos anos 60, faria sucesso, mas não de crítica; livros como An American Dream (1965) mostram sua dificuldade de criar uma trama narrativa, dotada daquilo que Flaubert chamava de “coerência interna” e de grandes personagens. Não por acaso, seu melhor livro de não-ficção surgiria em seguida, Os Exércitos da Noite (1968), em que novamente partiu de uma forte experiência pessoal – sua participação e prisão num dos protestos em Washington contra a Guerra do Vietnã. Sem este livro, Tom Wolfe, por exemplo – para citar outro vaidosíssimo escritor americano que oscila entre ficção e jornalismo –, não teria tido inspiração para produzir seu melhor trabalho, Os Eleitos (1979). Mailer atinge grandes momentos descritivos: “Não há lugar para desapontamento na prisão, exceto na própria cela. A prisão é frustração. É preciso ter cuidado para nunca acrescentar ao tonel profundo das frustrações intrínsecas da prisão as esperanças que podem ser destruídas”. Havia na prisão um mecanismo psíquico que Mailer notara: “Invariavelmente, os rumores de esperança eram sempre seguidos por rumores cruéis, logo substituídos por novos e esperançosos rumores. Um prisioneiro era um ioiô”. Esse hábito de se referir a si mesmo em terceira pessoa já foi tolamente comparado com o que fez Henry Adams no clássico A Educação de Henry Adams. A diferença é sintomática. Adams utilizou a estratégia para efeito de autodistanciamento, pois seu livro trata da inadequação de sua formação moral, sensível e intelectual para os tempos modernos, industrializados, acelerados; um
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A luta entre Ali e Foreman, no Zaire, em 1974, relatada por Mailer
Michael Brennan/Corbis
dos capítulos, “Silêncio”, é um prodígio de percepção de nossa pequenez diante do motor da história. Mailer não conhece o silêncio. Seus livros são sobre como ele está certo diante dos fatos, e os outros não. O exemplo quase patético dessa sua postura é seu livro A Luta, sobre Muhammad Ali, a quem claramente inveja por sua bravura elegante, mas a quem passa o livro todo tentando impor um discurso que é de Mailer. O livro se salva, de novo, pelos trechos descritivos, além da curta dimensão. Isso leva à questão da influência de Ernest Hemingway, mais um ficcionista com pés no jornalismo. Mailer o idolatrou mais que a ninguém. O machismo, a glamorização da força, a autoimagem do escritor-como-esportista-e-herói, tudo deriva do autor de Adeus às Armas (1929). Mas Hemingway começou buscando a concisão, a lapidação de um estilo que, embora objetivo e veloz, é também sugestivo e lida com temas como a solidão do indivíduo em face da natureza e da perda de Deus. Só mais tarde Hemingway se perderia em formas prolixas e tons orgulhosos. Foi neste que Mailer mais bebeu, em todos os sentidos do verbo. Ainda faria um livro marcante, A Canção do Carrasco (1979), outro “romance de não-ficção”, sobre um assassino confesso, Gary Gilmore – no entanto, sem o alcance de um A Sangue Frio. Dos anos 80 para cá, mergulhou em projetos cada vez mais pretensiosos e balofos, como uma trilogia abortada sobre o Egito, o thriller Homem que é Homem não Dança (1984) e longos equívocos como O Fantasma da Prostituta (1991) e O Evangelho Segundo o Filho (1997). Como ficcionista, jamais atingiu a capacidade de síntese de contemporâneos como Saul Bellow e Philip Roth e nem mesmo de John Updike, um de seus maiores inimigos; até Gore Vidal soube dosar o exibicionismo com senso de humor e reconstituição histórica. Mailer jamais aprendeu a lição de que o grande artista se revela também quando sai de cena. •
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A atualidade de Shakespeare Por que o gênio inglês continua intrigando, inspirando e gerando bons lucros para quem o vende? Olga de Mello
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m 2002, a escritora britânica, J.K. Rowling, criadora da saga infantojuvenil Harry Potter, tornou-se a pessoa que recebeu a maior quantidade de dinheiro em direitos autorais no mundo em 2002 – algo em torno de U$ 300 milhões, não apenas por seus livros, mas pelo lançamento do primeiro filme baseado nas aventuras do bruxinho. É de outra inglesa, a falecida Dame Agatha Christie, “mãe” de detetives de raciocínio agudo como Hercule Poirot e Miss Marple, o título de escritor de ficção que mais vendeu no planeta. Suas 78 novelas policiais tiveram 2 bilhões de exemplares publicados em 44 idiomas, o que garante a seus herdeiros quase U$ 4 milhões anuais apenas em royalties. Somas de encher os olhos dos leitores de best sellers, mas que não impressionam os admiradores do autor indiscutivelmente mais celebrado no mundo. Um levantamento da Revista Forbes, em 2004, estimou que herdeiros de William Shakespeare, caso existissem, teriam direito a uma renda anual mínima de U$ 15 milhões em royalties, calculando-se apenas um dólar por exemplar vendido e sem computar a quantidade adquirida por bibliotecas e escolas. Afinal, somente em território americano, naquele ano, haviam sido vendidos 657 mil títulos de Shakespeare. Um sucesso póstumo que dificilmente os crimes “cometidos” por Dame Agatha ou o universo mágico concebido por Rowling merecerão. Traduzido em 119 línguas, incluindo a linguagem de sinais e em Klingon – o idioma de alienígenas da série de televisão Jornada nas Estrelas –, o inglês William Shakespeare é o dramaturgo com o maior número de peças levadas para o cinema – mais de 350 versões fiéis ou baseadas em suas criações. Segundo o crítico Harold Bloom, Hamlet é a figura mais citada no Ocidente, superado apenas por Jesus Cristo. Bloom declara abertamente sua admiração pelo poeta que, além de criar palavras novas e expressões na língua inglesa, modificou a estrutura da dramaturgia ocidental e, de acordo com o crítico, inventou o que hoje consideramos a personalidade humana, dando relevância ao monólogo interior dos personagens, às reflexões e às emoções. Mesmo quem não compartilha da mesma devoção que Bloom devota a Shakespeare não pode negar sua popularidade. São incontáveis as montagens amadoras e profissionais de suas peças, em adaptações modernizadas ou tentando manter fidelidade à estrutura elizabetana. Por que um
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Caso existissem, os herdeiros do bardo inglês teriam uma renda anual de U$ 15 milhões em direitos autorais
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poeta morto há exatos 390 anos, que deixou uma obra de 154 sonetos e 37 peças teatrais completas, continua interessando a leitores de um século que mal têm tempo para assistir a encenações de seus dramas? “Shakespeare entusiasma porque fala de amor, de ódio, de paixões, de inveja, ciúme, do medo, da morte, do eterno, de tudo, enfim, que compõe o imaginário humano”, acredita Adriana Falcão, que acaba de escrever uma novela recriando a comédia Sonhos de uma Noite de Verão, que integra a coleção Devorando Shakespeare, da Editora Objetiva. O primeiro volume, já lançado, é Trabalhos de Amor Perdidos, recontado em prosa pelo cineasta
Jorge Furtado, um apaixonado por Shakespeare, que transpôs para a Nova York de hoje as aventuras de quatro homens que, no original, decidem isolar-se do mundo para dedicar-se aos estudos durante três anos, mas têm os planos frustrados ao conhecerem e se apaixonarem por quatro jovens. Adriana levou a ação de Sonhos de uma Noite de Verão para o carnaval de Salvador. No terceiro volume da série, que deve ser lançado no segundo semestre deste ano, Luís Fernando Veríssimo situará a trama de Noite de Reis em um salão de cabeleireiro em Paris, usando um papagaio como narrador, revela a gerente editorial da Objetiva, Isa Pessoa, idealizadora da Continente julho 2006
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coleção. A única exigência aos escritores foi que trabalhassem em cima de comédias, com algum “desrespeito criativo”, o que seria impossível se as recriações se calcassem em dramas, acha Isa. “A comédia permite a brincadeira sem ofender os puristas”, diz Isa Pessoa. Apesar da proposta de total liberdade para desrespeitar criativamente a obra do inglês, o convite deixou Adriana Falcão ressabiada. Seu conhecimento de Shakespeare era o de quem já havia assistido a algumas peças, lido alguns poemas, mas não tinha a menor pretensão de se apresentar como uma especialista na criação literária do Bardo. Animou-se com a idéia de juntar deuses gregos e orixás do candomblé em dúvida quanto à existência de vida terrena, brincando com elementos como o tempo, a sorte, as coincidências e o destino. “Sonho é uma peça alegre, que fala de amor, traição, ciúme, farsa, fantasia. As trocas de casais enamorados se encaixam perfeitamente nos relacionamentos fugazes estabelecidos no carnaval. Os amores de carnaval, são atualmente uma constante entre jovens que ‘ficam’, que namoram apenas durante uma festa, duram pouco e não deixam marcas profundas nos amantes. Parece muito com os feitiços que são lançados sobre os personagens do Sonho de uma Noite de Verão” , diz Adriana. A simples transposição da peça para os dias atuais era possível, porém Adriana quis criar um novo foco de interesse paralelo aos encontros e desencontros amorosos entre os casais. Assim, os deuses e seres fantásticos decidem misturar-se aos humanos, disfarçando-se com as fantasias que os mortais vestem durante o carnaval. Sem a menor solenidade, os personagens shakesperianos caem na folia e descobrem que os humanos são muito divertidos. “Para encarar o desafio de mexer em Shakespeare eu precisava, pelo menos, caminhar por um terreno seguro. Sonhos era a peça que eu mais coContinente julho 2006
nhecia dele. Gosto muito do texto, das armadilhas que os personagens criam uns para os outros, da leveza da história, que está inteirinha na adaptação. Quem leu, vai reconhecer a peça na novela. Quem ainda não leu o texto vai conhecer a história a partir de minha adaptação”, afirma Adriana. Jorge Furtado declarou publicamente sua afinidade
Ricardo III, de Shakespeare, em encenação contemporânea na Espanha
com Shakespeare ao usar um de seus sonetos como elemento da trama do filme O Homem que Copiava. O fascínio começou na adolescência, a partir da leitura de uma edição bilíngüe de 24 Sonetos, traduzidos por Ivo Barroso. As peças, a princípio, não o entusiasmaram até deparar-se com a tradução de Millôr Fernandes para Hamlet, que passou a considerar “o melhor livro do mundo”. Com a bardolatria já incorporada, escolheu recontar Trabalhos de Amor Perdido pois esta, ao lado de A Tempestade, Sonho de uma Noite de Verão e As Alegres Comadres de Windsor, é um das quatro peças cuja criação é creditada totalmente a Shakespeare. “A maioria de seus trabalhos baseou-se em crônicas, lendas, poemas e até em outras peças teatrais. Só o livro Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda, que reúne textos de 1577, serviu de base para 13 peças”, conta Furtado, que fez de seu romance um verdadeiro guia para a obra de Shakespeare, incluindo até a relação dos 900 personagens
LITERATURA Ao adaptar em romance a obra do autor inglês, Jorge Furtado (foto ao lado) preocupou-se em falar para quem nunca tinha lido ou assistido a uma peça de Shakespeare
Trabalhos de Amor Perdidos – Jorge Furtado – Coleção Devorando Shakespeare – Editora Objetiva, 248 páginas, R$ 36,90.
que têm nome nas peças do dramaturgo – grupos anônimos de soldados, elfos, fadas, espectros, nobres, serviçais, demônios, músicos, mascarados e mensageiros, que tomam parte nas encenações, são apenas listados, mas não citados individualmente. O didatismo se espalha por todo o livro, que tem um tom de almanaque, o que é proposital, informa Furtado. “Minha preocupação era em falar para quem nunca havia lido sequer uma peça de Shakespeare. Por isso, resumi os enredos de todas as peças citadas no livro, mesmo as mais conhecidas, como Hamlet. Deu muito trabalho, mas foi também uma desculpa muito boa para eu ler mais Shakespeare ainda, embora alguns especialistas possam vir a discordar de algumas informações que eu forneço”, conta. As curiosidades a respeito do poeta surgem por todo o texto de Furtado, que transformou o retiro para estudos dos jovens da peça original no encontro de estudantes estrangeiros que ganham bolsas de estudos para desenvolverem projetos sobre Shakespeare. No epílogo, ele discorre sobre a peça, a primeira a ser publicada com o nome de Shakespeare, em 1598, e que talvez tenha o primeiro final aberto no teatro ocidental, quando os casais apaixonados marcam um encontro para dali a um ano, uma inovação para a época, quando o período abordado em uma encenação teatral não deveria ultrapassar uma semana. A sonoridade do título em inglês, Love’s Labour’s Lost, também esconde o duplo sentido de “trabalhos de amor”, que seria um eufemismo para atividade sexual. Ao falar da paixão, a peça defende a tese de que o amor e o romance são mais importantes como experiência de aprendizado do que a ciência e o estudo, “satirizando ainda a linguagem empolada dos autores”,diz Jorge Furtado. “Shakespeare tinha a capacidade de divertir, compondo comédias com diálogos ferinos que são verdadeiros duelos verbais, enquanto busca a reflexão quanto a sentimentos humanos que nos angustiam. Se alguém quer falar em ambição, lembra-se de MacBeth, se pensar na ausência da figura paterna, recorda-se de Hamlet. Ciúme e inveja estão em Otelo. E nas comédias ele mostrava toda a sua irreverência, criando trocadilhos maliciosos, brincando com amigos e inimigos, citando-os em situações corriqueiras. Hoje, tudo que ele escreveu parece ser encarado – e encenado – como se fosse um texto sagrado, o que tira um pouco da espontaneidade das situações”, acredita Jorge Furtado. • Continente julho 2006
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O Feio na Literatura A entrada, na cena artística, das estéticas modernas e pós-modernas determina o “direito artístico à existência artística do feio” como categoria específica, propriamente estética Janilto Andrade
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ntre leigos e diletantes das artes, está enraizada a idéia de que arte e beleza, necessariamente, identificam-se; entende-se que toda arte é bela. Tal idéia implica a sua oposta: o feio é a negação da arte. Porém, “a arte não é necessariamente bela” (Herbert Read). E, à luz da moderna estética, o feio toma assento definitivo entre as categorias estéticas. Mais: a feiúra permanece feia em obras de arte que a tematizam, e nem por isso tais obras são feias. Feia seria uma obra malrealizada. A não ser assim, inexiste arte feia. Até que o feio venha a adquirir cidadania estética, a discussão teórica atravessa séculos, a começar na Grécia clássica. No sistema filosófico de Platão – nO Sofista, Continente julho 2006
por exemplo –, há referências negativas ao feio. Aristóteles foi o primeiro a admitir que não somente as coisas belas são objeto de representação artística, mas também as feias. Quanto a isso, Aristóteles é um moderno avant la lettre. Na Idade Média, o feio, quando representado artisticamente, lembra ao homem que a beleza é transitória; somente no sobrenatural o sujeito encontra a verdadeira beleza. O Renascimento começa a desdivinizar a beleza e a humanizar a feiúra. Ampliase, nas artes, a conquista do feio como categoria estética, intensificando-se essa prática com as inquietações históricas registradas nas fases barroca e romântica. Mas, leia-se Kant, autor do mais importante tratado de
Nelson Provazi
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estética do século 18 – A Crítica da Faculdade do Juízo –, e ver-se-á que perdurava a convicção de que “o feio ocorre na arte quando é belamente representado”. O ideário platônico da beleza deitara raízes profundas na cultura ocidental, entrando em franco declínio apenas a partir da modernidade, uma vez que os artistas desse período da história da cultura passam a explorar o feio como temática predominante em suas obras. Cabe antes aos artistas que aos estetas a percepção de que o feio da vida não pode ser convincentemente presentificado nas obras de arte, se belamente representado. Urge continuar feio, ao ser representado artisticamente. Abrem-se, de par em par, as portas para a entrada, na cena artística, das estéticas modernas e pós-modernas – Expressionismo, Dadaísmo, Conceitualismo, Pop etc. –, que determinam, com sua prática, o direito artístico à existência artística do feio como categoria específica, propriamente estética. A fealdade – lembra o esteta Adolfo Vázquez – existe na arte porque existe no mundo real. Cabe ao artista, não tentar salvá-la embelezando-a, mas mostrá-la com sua condição própria. Portanto, a partir do momento em que entra na arte, já não é uma fealdade
imediatamente real ou natural, mas, sim, produzida ou criada, através de técnicas e de qualidades formais. Tema recorrente na literatura pós-moderna, a feiúra comparece à cena estética do teatro literário trajada, freqüentemente, de loucura e de degradação moral e sexual, como se os sentidos fossem à desforra sobre o espírito (Gilles Lipovetsky). Por exemplo, as dramatis personae do americano Jonathan Franzen ilustram a desafeição que, hoje, rege laços familiares: “(Gary) estava falando palavrões na frente dos filhos, ‘Caralho, Caroline! Fica aí falando merda! Eu vou sair para podar a porra da sebe, caralho!’ ” (As Correções). Com o rótulo realismo urbano, tipificam-se autores do continente sulamericano cujas obras mimetizam a feiúra da paisagem de violência e degradação contemporâneas das nossas grandes cidades. Ícone dessa tendência, o colombiano Efraim Medina Reyes – Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin – põe às escâncaras essa realidade: “Doem meus olhos de tanto procurar sua imagem no vazio para bater uma punheta. Não é patético? (...) Sinto a dor dentro de mim (...) Vomito até cuspir sangue e então abaixo a tampa e o rodamoinho de água engole toda a imundície e a dor fica menor...” Na ficção Continente julho 2006
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LITERATURA brasileira de agora – embalada ao som de balas perdidas e Cabe antes aos artistas que aos estetas sob a luz de semáforos que regem perigosos cruzamentos a percepção de que o feio da vida não pode –, os textos narrativos têm como epicentro as metrópoles ser convincentemente presentificado nas obras com seus dramas insolúveis. Nossos autores – cujas de arte, se belamente representado. Urge contipersonagens falam uma língua crua, sem “filtros” – nuar feio, ao ser representado artisticamente tematizam a vida de sujeitos esmagados pelo abismo social gerador de uma onda de crimes e de um clima de pavor tais que fariam Dante situar o seu inferno no caos nudado em linguagem áspera e pornográfica, transsocial urbano que se vive neste país. Esse abismo é muito muda-se em mimese artística. Em feio artístico. É estilete feio. Daí, como poderia brotar uma literatura cuja cortante, assustador. categoria estética fosse a beleza? A literatura dos autores cujas lunetas assestam a esse J. R. Duran/Divulgação charco é um puxão para dentro da poética do feio. É Ivana Arruda Leite: prova terminante de que o feio não precisa deixar de ser tela pintada na ausência de feio para ser, na obra de arte, mímese poética da própria luminosidade fealdade social. Se essa literatura é feia, é que a realidade não é nada bela, principalmente a realidade brasileira, que tem origem nas chagas sociais abertas, desde as nossas raízes, pelo fosso que separa a vida nababesca de alguns e a penúria da maioria. Diferentemente de crônicas midiáticas, que, de fora, têm fotografado a precariedade dos marginalizados da sociedade contemporânea e, ad nauseam, no-la têm exibido, a poética (do feio) desses autores radiografa, através de suas personagens, em positivo, a perversão da secular (des)organização social em que temos vivido engolfados; e, em negativo, o resultado anti-humano dessa perversão. A fala de Darluz, personagem de conto homônimo, de Marcelino Freire: “Vendi a Beatriz no farol Nossos escritores de agora trazem para suas desar- (...) Para nunca mais, como um vento. Para nunca mais, ticuladas histórias todo o contingente de zumbis humanos como um esquecimento. Cicatrizo tudo, entende? Meu que atestam a derrocada do ideário humanitário de corpo está vacinado (...)” é metáfora com que o autor, de civilização ocidental. Inscrevem uma experiência literária um lado, radiografa as entranhas do mal-estar de inúmecujo experimentalismo poético é a transfiguração mi- ras semividas que perambulam por calçadas e avenidas mética das tragédias da periferia das metrópoles ou dos das nossas frias metrópoles e, de outro, revela os (des)caseus centros em lastimável decadência. Constroem um minhos da sociedade brasileira, resultantes da mesquidocumento literário da chacina promovida pela socie- nhez e da indigência das nossas elites tupiniquins. Essa dade pós-moderna, que, ao se fluidificar, liquefaz a con- tela pintada na ausência de luminosidade, radiografada em vivência humana e as suas condições sociais. É a velo- contos de Ivana Arruda Leite, integrante da “geração cidade, não a durabilidade que interessa. Nem mesmo os 90”, tem borrões assim: “...o puto (...) depois de me deisentimentos, nem mesmo a sexualidade estabelecem co- xar toda babada, me dará uns trocados e me largará na municação entre os indivíduos. Para personagens de es- calçada à espera do ônibus” (Em Minha Tia, na Sala, de critores como Rubem Fonseca, Gilvan Lemos, Marce- Camisola). lino Freire, Marçal Aquino, Ronaldo Bressane etc. – a Participar de tal espetáculo pode provocar, às vezes, lista seria interminável – sentimentos e amor tornaram- certa inquietação. Marca registrada da “geração da teise, também eles, objeto de consumo, valor-de-troca – mosia”, a escrita pornográfica desses autores brasileiros usa-se e joga-se fora. Amor e sexo, opina Marcos Flamí- joga o leitor num redemoinho de expressões imorais (?) e nio Peres, “acabam sendo outra carnificina”. Na reali- de falas indecentes (?). No entanto, quem é do ramo das dade, tudo isso é muito feio. Na literatura, esse feio, des- letras sabe que uma discussão a respeito do emprego do Continente julho 2006
J. R. Duran/Divulgação
LITERATURA
Marçal Aquino e Marcelino Freire: um puxão para dentro da poética do feio
palavrão em literatura não seria questão de moral, mas de verossimilhança ou inverossimilhança textuais. E cultuar o palavrão pelo palavrão é resvalar para o trash. Não dá para negar que, em alguns momentos, a mão de alguns desses autores pesa e a escrita fica grossa. Todavia, em outros, o palavrão é uma necessidade imposta pela própria engrenagem textual e pela realidade tematizada. Se a vista do leitor pára, apenas, nos termos chulos, escapar-lhe-ão – parece-me – outras construções de linguagem e de pensamento também agressivas, e que traduzem a visão de mundo dos autores dessas narrativas. Uma leitura que tirasse os palavrões despiria de muitas narrativas parte significativa da sua dramaticidade. O nível social de Rita e Noronha, personagens de Vingança dos Desvalidos, de Gilvan Lemos, justifica o nível da sua fala, na explosão dos seus conflitos: “– Cai fora, seu cretino filho da puta... – Você ainda me paga, sá puta sem-vergonha”. O pólo da tensão dramática do conto “Vovô”, de Marcelino Freire, inscreve-se na penosa contingência do envelhecimento, intensificandose com o desnudamento do asco com que alguns familiares tratam o velho: “Vovô precisa morrer (...) Cadê os filhos desse porra? Cadê a família, a dinheirama? A saúde frondosa?”. No conto “O anão”, de Rubem Fonseca, a fala da enfermeira, ao ver suas intimidades com um paciente ameaçadas por uma fisioterapeuta estranha ao hospital, traduz sua realidade sociocultural e seus anseios afetivos; diz ela à terapeuta: “Ninguém faz caridade para um bancário desempregado, porra, gritou Sabrina (...) faz o que você quiser com o dinheiro que aquela puta (a ricaça que atropelou o paciente) lhe deu, mas aqui você não entra mais (...).” E o narrador: “(depois) Sabrina veio pra cima de mim e nós fodemos (...)
nós bancários somos muito tesudos”. Às personagens desses contos aplica-se o oportuno comentário de Fabrício Carpinejar a respeito da sexualidade, leitmotiv de um significativo quantum das narrativas de autores brasileiros contemporâneos: “O sexo (...) não significa intimidade, mas a pura falta dela. O sexo não influencia a solidão; produz um estouro animal”. Leia-se o conto “Jantar em família”, de Marçal Aquino. O contista constrói um mito cujas ações ilustram o relaxamento de princípios absolutos e intangíveis que permearam a estrutura familiar. A escrita pornográfica, que dá conta do diálogo das personagens, depõe de uma prática de linguagem típica da cultura pós-moderna, e que perpassa o falar de todas as camadas sociais. Os filhos (de Vítor) assim se referem ao anunciado casamento do pai: – Mauro: “O velho é foda, hein? Viu só que gatinha ele arranjou?” – André: “Ela é uma garota de programa.” – Mauro: “Você pirou, André?” – André: “Uma prostituta de luxo.” – Mauro: “Puta que pariu, André.” – Mauro: “E tem mais: eu já transei com ela.” Que escritura traduziria o nível da fala que permeia relações familiares dessacralizadas pelo tudo pode da pósmodernidade? Que outra poética traduziria melhor realidades tão presentes, tão surpreendentes, e que não deixam de ser inquietantes? O estatuto de uma obra literária assenta em convenções, não em características da própria obra (Bernard Mouralis); assim, convém revisar o paradigma que (quase) limita nossos juízos aos modelos da tradição letrada, ditados, sobremaneira, pelos modelos literários europeus. Ou confinamos tais obras no universo das contraliteraturas, salvando nossa poética moralizante? • Continente julho 2006
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LITERATURA
A saga da escravidão
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Estréia de Ana Maria Gonçalves, com Um Defeito de Cor, é um fenômeno literário, por vários motivos Paulo Polzonoff Jr
enho diante de mim Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Olho para ele, depois de ter virado a última página, e não paro de me espantar. O livro é um fenômeno. Uma raridade em se tratando de literatura brasileira, asfixiada por um mercado nada profissional e geralmente alheio às boas-novas, ainda que esdrúxulas. Pena que os leitores, ocupados com a idéia de uma nova geração de autores ou ainda às voltas com o último livro ilegível do nome da vez, não tenham tempo para se debruçar sobre o romance. Esdrúxulo, sim. A começar pelo tamanho. Um Defeito de Cor tem quase mil páginas. Algo que é corriqueiro na literatura inglesa ou americana, mas não aqui. Exceto por teses da USP, cheias de gráficos e citações, não consigo me lembrar de nenhum romancista que tenha tido fôlego para tanta história. Também nós, brasileiros, nos rendemos à idéia medíocre da concisão que, em geral, só serve mesmo para mascarar a falta de imaginação. Mas as boas esquisitices do livro não param por aí. Um Defeito de Cor é escrito por uma mulher. E a literatura brasileira de gênero é marcada por um apego demasiado às questões
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LITERATURA íntimas e à psicologia de cozinha. Ana Maria Gonçalves, porém, escreve como um escritor desprovido desta redução horrível, que considera que todas as mulheres brasileiras escrevem sonolentamente como Clarice Lispector. Por fim, a última das estranhezas: Um Defeito de Cor é um romance histórico. Wilson Martins disse, certa vez, algo de que jamais me esqueci: romances históricos geralmente são um sinal de falta de imaginação. É provável que, ao se aventurar pela história de Um Defeito de Cor, o crítico paranaense, do alto de seus 80 anos, tenha de rever este conceito. O que não falta a Ana Maria Gonçalves é imaginação. E pesquisa. O romance é fruto de uma pesquisa meticulosa, que reconstrói com vivacidade o período da servidão no Brasil. Não é objetivo do romance, mas ele acaba por destruir algumas imagens consolidadas que o leitor porventura possa ter da escravidão. Imagens consolidadas, é claro, pela adaptação para a telenovela ou cinema, de histórias que tratam do assunto, em geral tiradas de romances românticos. Mas, afinal, de que fala Um Defeito de Cor? Ele conta a vida, em primeira pessoa, de Kehinde, desde sua infância algo idílica no interior da África, passando pelo tráfico, até seu estabelecimento como escrava e, depois, como personagem influente na sociedade daquele tempo. A vida de Kehinde, neste caso, é recheada por outras vidas, e a autora não se furta ao trabalho de esmiuçar a personalidade das dezenas de personagem que cruzam o caminho da ambiciosa protagonista. É, possivelmente, o mais importante romance sobre a escravidão jamais escrito no Brasil. O mais completo. O mais abrangente. E um dos mais bem-escritos. Ana Maria Gonçalves não padece de um dos defeitos da prolixidade: o descuido. Nada disso. As frases de Um Defeito de Cor são polidas com esmero. Preocupada em contar uma caudalosa história, ela não descuidou da forma. Mais do que um romance interessante, é um romance bem-escrito. Uma verdadeira aula para aqueles, mesmo velhos, que engatinham na arte de contar histórias. Defeitos, o livro os têm. Mas nada que o comprometa. Considero a opção pela primeira pessoa (é Kehinde quem conta a própria história) um equívoco. Até pela riqueza de detalhes, o livro ficaria muito melhor se fosse escrito na terceira pessoa. Aliás, os detalhes, sobretudo os lingüísticos, chegam a incomodar. A opção pelas notas de rodapé explicando cada termo africano é plenamente dispensável. Nada, porém, que prejudique o trabalho consistente e emocionante de Um Defeito de Cor. Pena é perceber que o livro está fadado, na maior parte dos casos, a um canto remoto da estante. As mil páginas do romance não são algo que se deva ignorar. Até porque o tamanho impressiona mais numa época em que grandes nomes da crítica, como o americano Harold Bloom, decretam a falência da literatura, que encontrou um inimigo poderoso e, ao que tudo indica, invencível: a imagem. A pergunta que se faz é simples: quem, hoje em dia, tem tempo e paciência para se dedicar à leitura de um livro deste porte? Ana Maria Gonçalves, ao que tudo indica, não pensou nisso. Pelo contrário, em entrevista, ela afirmou que o livro tinha quase o dobro do tamanho. Ainda que escreva na contramão do que exige o mercado editorial brasileiro, a escritora faz bem: dá de ombros para a mediocridade da literatura brasileira e, assim, acaba mostrando que, à margem dos umbigocêntricos ou dos discípulos de Rubem Fonseca, temos uma literatura farta e, mais importante ainda, temos histórias para contar. Mesmo que, para elas, faltem leitores capazes. •
Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves, Record, 952 páginas, R$79,90.
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idéia é ousada e o resultado, estimulante. Durante seis meses, o cartunista e artista gráfico Lailson de Holanda Cavalcanti se debruçou sobre o épico Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, obra canônica da literatura portuguesa que, como todos sabem, trata das viagens de descobrimentos marítimos do império português, em fins do século 15 e início do século 16. Do trabalho, emergiu o que ele chama uma “encenação” do grande poema, isto é, sua reprodução em arte seqüencial (história em quadrinhos), dando um salto de 1.000 anos. Para tornar a leitura instigante para as novas gerações (idéia bancada pela Editora Nacional, a mesma que foi fundada por Monteiro Lobato, em 1925), Lailson situou a
Camões em quadrinhos Editora Ibep-Nacional lança íntegra dOs Lusíadas com ilustrações de Lailson, adaptando o épico português para o século 26 história no ano 2500, transformando as caravelas em naves espaciais, os argonautas em astronautas e as ilhas oceânicas em asteróides espaciais. Tudo se passa naquele futuro remoto, quando “desafiando os deuses, o Almirante Vasco da Gama enfrenta perigos em asteróides e planetas”, relatados ao rei pelo Registrador KMOS 1572, em que foi implantado o DNA do maior poeta da Lusitânia. O detalhe crucial é que os livros ilustrados mantêm, na íntegra, o texto camoniano, ao contrário das adaptações correntes, enquanto as ilustrações mis-
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LITERATURA
À esquerda, a esquadra galáctica de Vasco da Gama
turam o épico à ficção científica. Para facilitar a leitura, Lailson produziu o que chama intertexto, pequenas intervenções em que se busca a continuidade e a fluência da obra. Para diferenciar esses excertos em prosa, no estilo das HQs, o autor optou por utilizar um fundo de cor diferente, dentro de tradicionais “balões”. Resta saber se os leitores entenderão essa pista semiótica, o que é plenamente factível, vez que são habituados à linguagem gráfica. Ao que se propõe, como obra paradidática, é um trabalho oportuno e valioso. Neste primeiro volume, recém-lançado, estão os Cantos I, II, III e IV dOs Lusíadas, estando programada a publicação do restante do poema em outros volumes, a serem lançados em breve. Lailson é pernambucano, durante 27 fez charges diárias no Diario de Pernambuco, teve trabalhos publicados nO Pasquim, Veja 28 Graus, Florida Review, Bundas, Miami Herald e Jornal do Brasil. É autor dos livros O que Vier Eu Traço (1981), Democracia pra mim É Grego (1984), Cartas de Pindorama (1989) e o Livro do Bom Humor (2005), entre outros. •
Acima, as Nereidas em traço erótico
Os Lusíadas 2500, volume 1, Cantos I, II, III e IV, Luís Vaz de Camões, ilustrações, adaptação e intertexto de Lailson de Holanda Cavalcanti, IbepNacional, 192 páginas, R$ 32,00.
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CONTO
Vagas Estações de Aura Nagib Jorge Neto
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inverno era mais forte, surgia de repente, gerando a sensação de angústia, desassossego, que crescia em qualquer lugar, época ou momento. Assim inesperado, com nuvens sombrias, o inverno nublava o encanto da chuva, do verde da paisagem, dos encontros e buscas. Era então um instante ou fase de tormento e Aura existia insegura, imprevisível, passageira de uma arca ameaçada, navegando sem horizonte nas águas do dilúvio da vida. Mas naquela manhã, de céu azul, Aura chegou sorrindo, no rosto uma alegria unânime, que dançava na menina dos seus olhos, enquanto o vento ondulava seus cabelos. Eis a primavera – e com a graça da estação das flores, distante do inverno, ela colheu uma rosa imaginária, enfeitou os cabelos. Estava feliz, bonita, sem sinais de tempo chuvoso, frio, amargo. – Teu astral está ótimo. Que houve? – Estou bem. Agora não há mais, acabou o romance. Sabe da história, não!? No princípio pintou um alumbramento, noite de festa, alegria. Homem bonito, atraente, Aura buscou o encontro, morsegando, brigando com a timidez, até que chegaram rosas, juras de amor, calor e suor de corpos. Pleno verão, certeza de eterno encanto, Aura enfrentou ameaças de inverno e embarcou na nave que seguiu iluminada, com promessa de vida a dois para sempre. As rosas chegavam todo dia, mas o Comandante da nave tinha lá seus ímpetos, disfarces, e Aura virou prisioneira do ambiente luminoso, florido, sentindo a opressão do outono, no corpo e na alma. Devagar, lenta, a estação foi desfolhando Aura, atormentada pela brisa que desfazia seus verdes sonhos. Árvore com meia vida, ela andou algum tempo a pisar em folhas amarelas, alaranjadas, porque assim era a vida – haja renúncia, nada de sair da nave sozinha, sem rédeas, sem seu cavaleiro. Inevitáveis os momentos de incerteza, explosões e brigas, coisas que o Comandante enfrentava como ondas passageiras, aguardava a calmaria. Daí o verão voltava com longas carícias, junção de corpos, gemidos, sussurros, aconchego e expressão de ternura.
CONTO
– A vida vinha em ondas como o mar, disse Aura, citando o poeta Vinicius de Morais. – Também entre tapas e beijos, como diz uma música de agora, da moda. Não era verdade? Não havia mar nenhum. Aura olhou o lago, as águas em movimento, a brisa agitou seus cabelos, trouxe lembrança de ondas violentas, de fúria, agressividade, tentativas de vencer a insegurança, sua timidez ou simplesmente o fantasma da submissão. Mas não ia longe, apenas tornava irado o Comandante, sempre senhor da força para conter sua raiva, ora com grosseria, ora com ternura. – Minha vida está uma merda, sabia? – A minha também. Não enche, ouviu? – Quer saber de uma coisa? Vá pro inferno, pô! Ia embora, nunca mais, mas logo era subjugada, depois acariciada, e tudo acabava na cama, horizontal, vertical, distensão, sono, sonhos. Em meio ao sono, mudou de posição, acordou perplexa, a faca brilhando, cravada no colchão. Sem voz, assustada, ficou encostada na parede, enquanto o Comandante da nave mantinha-se com aspecto furioso, também heróico, satisfeito. – Ainda mato você, sua vagabunda! Aura sentiu o ruído de folhas secas, a desesperança do outono, e a sensação de andar sobre um vasto lençol de folhas, temendo as serpentes, os espinhos. Vida que segue, árvore desnuda, frágil, pulou da nave, cuidou de suas raízes lá fora. Então ganhou liberdade, direitos, menos outra estação, pois o outono persistiu, atenuado por lampejos de verão, anseios de volta ao cenário do tempo renegado. – Não é mais assim. – Não é bem isso? Ou talvez, quem sabe? Ela ficou meditativa, melancólica, mas depois surgiu outra fase, nuances de primavera, seguido de curto verão. O homem da nave, hábil e sedutor, voltou às rosas, com encontros e pedidos de perdão. Não, não era possível, paixão, loucura, talvez amor demais, que se desfez com a vinda de outro companheiro. Este se fez habitante de Aura mulher, fêmea, limitado ao estreito campo do seu bendito ventre, fruto de prazer e amor. Havia sexo, até orgasmo, mas nada da atração, do sentimento de posse, domínio do antigo Comandante. – Que diabo, só isso! Outra loucura? Não era tanto assim, contudo, naquele universo, Aura não se sentia exatamente uma pessoa, gente, mas rigorosamente um objeto sexual ou algo parecido. Belo companheiro, quase sempre distante, desaparecia de vez em quando. Ou chegava em alvoroço, animal no cio, como se amor fosse apenas a entrega na hora do desejo do macho. Nada de rosas, nem carícias, exceto a mão sobre o ventre, o fruto, a posse. Preconceito, repressão, complexo de frigidez? Nada a ver. Afinal não era só isso que queria, aliás nenhuma mulher; logo não podia durar uma relação assim, só na base da fêmea, do macho. – A égua dá coice, reage ou foge do garanhão. – Pois é, imagina. E a gente? Apesar da brisa, do calor, do sol de verão, Aura voltou ao inverno. Agora era o trivial do trabalho, do salário, da crise do país. A falta de horizonte, no caso, atormentava sua existência, pois sonhava crescer – como gente, profissional. Mas havia a rotina, a ociosidade ou trabalho inútil, que atrapalhava a existência da mulher, da fêmea. Aí o cerco se fechava, com desencanto, frustração, mais a clássica trindade: trabalho, casa, fim de semana. Nada de novo, pois, e o tempo passando, a idade correndo, ansiedade, sufoco.
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CONTO
Ela tocou em imaginárias rugas, partiu carregando imagens de inverno, impressões de primavera, traços de outono. Demorou a voltar à margem do lago, mas quando reapareceu havia luz em todo o seu corpo. Outro Comandante, esse um enigma: não tinha paradeiro, nunca se sabia onde estava, logo o encanto podia trazer mais um inverno, outono, tirando a graça dos encontros, dos sonhos. – Haja pressa, hein? – Enquanto durar, tudo bem. Aura lembrou que o encontro, tão esperado, foi uma conversa simpática, terna. As coisas não aconteceram direito, tarde de muito calor, também inibição, e o grande momento ficou para depois. Quando veio, com toda intensidade, Aura sentiu que havia enorme diferença nas palavras, gestos, toques e retoques. Naquela tentativa, era gente, mulher, fêmea, pessoa, e não apenas um corpo, ventre e fruto. Ergueu-se rápida, andou leve como uma garça, entrou no banheiro. No regresso, estava insinuante, parecia despida, no rosto a expressão de gozo, de orgasmo. Era mulher total, absoluta, assumida no corpo esguio, no rosto sensual, nos cabelos soltos, castanhos. No olhar, na face, a imagem contagiante, que se refletia na espuma da cerveja – dá pra entender? – e Aura tocou no outro copo, timtim. Hora de sentir, interagir, os copos se uniram, também ventre, frutos, fantasia de nudez e cumplicidade de orgasmo. – O amor renasce. – Belo, divino. Mas durou pouco. O Comandante sumiu com sua nave, nunca mais tocou em seu ventre, terra de seu encanto. Aura ainda anda com lembranças, presente e passado, fantasia ou realidade, vez em quando convivendo com todas as estações. Assim mutante, alegre, triste, inquieta ou com esperança, é passageira da aventura existencial de cada dia. – Tem jeito, dá pra agüentar esse banzeiro? – Quem sabe? Parece que ninguém. Mas cada estação tem sua beleza, há sempre frestas para buscas, encontros. – Ou não há. É tudo vago, incerto, observou Aura. • Nagib Jorge Neto é jornalista, escritor, nascido no Maranhão e radicado em Pernambuco. Publicou O Presidente de Esporas, contos, A Fantasia da Redenção, romance, As Três Princesas Perderam o Encanto na Boca da Noite, novela em estilo cordel, Elogio da Resistência e A Literatura em Pernambuco, ensaios, entre outras obras.
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Vinde, minhas éguas, luzindo na imensidão! No ritmo de vossas ancas é que se inaugura a saga do meu império e os nomes do meu nome: Cavaleiro de Fogo, Centauro Escarlate.
O teu centauro te espera, monta em seu dorso e vê o mundo pelos olhos da esfinge: és o enigma, não o decifrador. A gente se enche de calo, a gente pensa que sabe, a gente se desespera até, mas não abre mão de estar aqui. O teu centauro te espera e o mundo é tudo o que a gente percebe: é só sair por aí descobrindo o que nunca vai ser teu.
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Vinde, minhas éguas, vosso faraó vos espera! Puxem meu carro de fogo pelos céus dos êxtases, harmonizem vossas forças e me conduzam, em galope soberano, pelos reinos dos encantos.
Evangelho
Centauro escarlate
Harém
POESIA
E quando for noite alta e os acordes de uma aquarela luzirem dentro de teu espírito, deixa o centauro que habita em ti galopar, galopar, galopar e transcender a ti e as tuas explicações. Há de existir um lugar onde os teus mistérios possam descansar.
Os pés de algaroba da minha infância são os setenta e dois livros da Bíblia. Os galhos de palma pinicados a facão: pão e peixe, multiplicação e milagre. Eu vi, plantado no meio do Sertão, o profeta Isaías – totem investido de fé, erguer os braços em louvor do verde e proclamar a sua verdade de mandacaru. Aquele pé de pau-ferro frondoso é um Cristo pregando o milagre da seiva às suas folhas, anunciando a primavera e o milagre das bagens e das flores. Assim se apresentava a vida: cheia de vontade de se ramificar. A piaba trazia no âmago Jonas e a baleia, e esse era todo mistério e toda doutrina.
Poemas de
José Inácio Vieira de Melo A infância do centauro Eu venho do caos primordial. Percorri as searas da escuridão (caminhos que não sei).
Fantasma de barro, preciso de um amálgama e que teus olhos me afirmem.
Desse tempo sem memória nasce a consciência dos dias (como não sei, invento).
Sou um centauro escarlate e galopar na infância é a minha metafísica.
José Inácio Vieira de Melo é alagoano, radicado na Bahia. É poeta e jornalista. Publicou os livros Códigos do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A Terceira Romaria (2005). Organizou Concerto Lírico a Quinze Vozes – Uma Coletânea de Novos Poetas da Bahia (2004). É co-editor da Revista Iararana e colunista da Cronópios. Estes poemas fazem parte do livro inédito A Infância do Centauro. Continente julho 2006
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AGENDA/LIVROS Zenival
Os invisíveis Homens assombrados pelo fantasma do “facão”, pendurados em trens apinhados, sempre atrasados. Mulheres se exaurindo sobre tanques e fogões, evitando os olhos pidões dos filhos. Medo da polícia, raiva, vontade de matar o feitor. Rádios ligados em alto volume. Filas . Sussurros e boatos nos banheiros da fábrica, saudades de terras distantes, noites maldormidas, olhos sonados, alojamentos e pensões sujos. São esses os cenários e personagens, raros na nossa Literatura, que afloram dos contos de Roniwalter Jatobá, nesta nova edição das Crônicas da Vida Operária. Crônicas da Vida Operária, Roniwalter Jatobá, Lazili Editora, Coleção Letra de Bolso, 80 páginas, R$ 12,00.
Vidas subterrâneas Contos de Flávio José Cardoso refletem mundo fatalista das minas catarinenses
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s 13 narrativas que compõem Guatá se passam na região mineira de Santa Catarina, onde é explorado o carvão. O autor, Flávio José Cardozo, assume completamente a condição regionalista de seu texto, com o sentimentalismo localista e o telurismo inesquivável que daí advém. Cardozo constrói personagens inusitados, fatalistas, valentes, tanto mineiros quanto de outras profissões e origens. O gigante tropeiro Cilião Palheta destaca-se por não aceitar brigar no corpo-a-corpo, preferindo resolver as coisas na bala, tendo matado dois de uma só vez. A velha prostituta que tem como atrativos apenas a magreza, mas que, no pequeno compartimento onde mora, consegue fazer fila de espera de homens rudes e ávidos por sexo. Os dois meninos que se unem pela discussão sobre uma bola de futebol, e mesmo depois da briga de seus pais, que resulta na morte de um deles, ainda continuam a jogar juntos. A mortandade generalizada de crianças, objeto do texto “Asas”, cuja causa é atribuída às águas cheias de veneno, utilizadas pelos moradores da vila de Guatá. A qualidade literária deste trabalho revela-se na boa dosagem de humor que contém, quando se pensa na vida subterrânea nas minas, e na conseqüente exploração encetada pelas multinacionais em termos de jornada e salários. Curiosa neste livro é a inter-relação entre histórias e capítulos que, mesmo com a repetição de alguns personagens, não logra formar um romance. Fica a dúvida sobre o gênero a que se filiam os relatos, mas a grande aproximação se dá em relação ao conto. As narrativas, após o seu término, dão uma ligeira impressão de inacabamento, como se fossem textos que prosseguem sem, na verdade, prosseguirem. (Luiz Carlos Monteiro) Guatá, Flávio José Cardozo, Editora Record, 304 páginas, R$ 30,00. Continente julho 2006
Corpo e História “O corpo foi esquecido pela história e pelos historiadores”. Com essa constatação, Le Goff e Truong empreendem uma minuciosa análise sobre a forma como a Idade Média encarou o corpo e flagram um paradoxo. É quando a prevalência do cristianismo como religião oficial impõe uma ética do corpo atormentada que, ao mesmo tempo em que reprime e rechaça, glorifica e exalta. Oscilando entre a Quaresma e o Carnaval, o Medievo controla a sexualidade, diaboliza a mulher, reprova a máscara, a luxúria e o riso, mas sob uma tensão que se manifesta em retornos a cultos pagãos. Uma História do Corpo na Idade Média, Jacques Le Goff e Nicolas Truong, Civilização Brasileira, 210 páginas, R$ 34,00.
Crônicas duradouras
Em seu primeiro livro de prosa, as crônicas de Outras Brevidades, o poeta José Mário Rodrigues revela-se dono de perfeito domínio do gênero, alcançando, como ressalta o pintor José Cláudio, autor das ilustrações, uma tragicidade discreta, a “consciência de que Saturno devora impiedosamente seus filhos”. Dividido em três estações, traz reflexões do viver, textos crítico-intimistas sobre outros poetas recifenses e assuntos da atualidade tratados como realidade sempre fugaz e etérea. Na crônica “O Medo” consegue, com precisão e brilho, externar o sentimento de toda uma comunidade. Outras Brevidades, José Mário Rodrigues, Comunigraf Editora, 178 páginas, R$ 20,00.
Retratos do Rio Pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor, membro da ABL aos 29 anos, autor de teatro, tradutor e jornalista carioca, João do Rio fez da cidade maravilhosa o seu mundo literário. No Rio de seu tempo, viu, anotou e comentou, com simpatia, curiosidade e ironia a atmosfera social, o estilo de vida da época. Neste livro, uma amostra característica e variada de seus trabalhos. São crônicas, fragmentos e contos, entre estes, o curioso “O Homem da Cabeça de Papelão”, que não conseguia mentir e, era prejudicado por isso. Outros tempos... (Luiz Arrais) João do Rio, Uma Antologia, organização: Luís Martins, José Olympio Editora, 192 páginas, R$ 22,90.
AGENDA/LIVROS
Sortilégios da palavra
Entre a Mentira e a Ironia reúne quatro artigos de Umberto Eco, em que o semiólogo italiano discorre sobre a mentira e o exagero, a partir de Cagliostro, “o eterno arquétipo do homem sem qualidades”; de “Os Noivos”, de Manzoni, no qual demonstra como as pessoas “humildes” evitam disfarçar a realidade tal como os poderosos costumam fazer; do humorismo de Campanile, em que leitor e personagens tornam-se cúmplices de ironias e inverdades; e encerra com o personagem de história em quadrinhos Corto Maltese, de Hugo Pratt, tudo num contínuo exercício de desvelamento dos sortilégios da narrativa. Entre a Mentira e a Ironia, Umberto Eco, Record, 128 páginas, R$ 27,90.
Discursos claros Olhares Plásticos traz artigos e entrevistas publicados originalmente na Revista E, do Sesc São Paulo, todos em torno das artes plásticas. O prefácio é de Marcelo Coelho, em que ressalta a disponibilidade de artistas como Nelson Leirne, Maria Bonomi e Renina Katz para novas experiências, e a autenticidade de um crítico como Olívio Tavares de Araújo que não nega a necessidade de amor nos que se envolvem com a criação e a apreciação da arte bem como o repúdio aos discursos herméticos muito usados em artes plásticas: “O discurso ininteligível constituiu uma milenar estratégia de exclusão e domínio”, revela. Olhares Plásticos, Vários Autores, Lazuli Editora, 112 páginas, R$ 20,00.
Barra pesada A narrativa curta brasileira está sob o domínio da violência. A estrada aberta por Rubem Fonseca quase nenhum autor novo deixou de percorrer. Este livro, sob o título Contos Cruéis, traça um painel desta tendência. Além de autores consagrados, entre os quais se destacam o já citado Fonseca e Roberto Drummond (os dois melhores da coletânea), e a confirmação do talento de Luiz Vilela, Caio Fernando Abreu, Nelson de Oliveira e Ivan Angelo, há boas revelações como a cearense Tércia Montenegro, o paraibano Auturo Gouveia, o mineiro Sérgio Fantini e a paulista Maria Alzira Brum Lemos.
Perfil de poeta
Em João Cabral de Melo Neto: O Homem sem Alma, José Castello procura fazer uma biografia intelectual do poeta pernambucano
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ntre 7 de março de 1991 e 6 de abril de 1992, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto concordou em receber o jornalista, crítico e escritor José Castello em 21 sessões de entrevista, desde que, acordo firmado antecipadamente, não se tocasse em aspectos de sua vida pessoal. Cabral, na casa dos 70 anos, aposentado, quase cego e sofrendo de depressão, foi-se revelando, entretanto, um homem frágil e assustado ante a perspectiva da morte, contrariando sua imagem de homem ríspido tanto na escritura quanto no comportamento. A tônica do livro, no entanto, está no levantamento de uma biografia intelectual que Castello conseguiu montar, investigando as amizades do poeta, suas leituras e, por último, mas tão importante quanto, os lugares onde morou. Sua intensa e ininterrupta ligação com o Nordeste de João Cabral de Melo sua infância encontra um forte correlato Neto: O Homem sem em cidades espanholas onde o poeta atuou Alma & Diário de Tudo, como diplomata, mas também é marcante José Castello, Record, sua vivência na África, na Inglaterra e em 272 páginas, R$ 39,00. países da América Latina. Acompanha a edição um diário de bordo, no qual Castello registrou suas impressões pessoais e os aspectos mais íntimos das conversas tecidas com o poeta e sua mulher Marly de Oliveira. É uma parte importante deste livro e a mais melancólica, pelo que revela da decadência física e psicológica de um poeta que deixou como testamento uma poesia viril, forte e marcante. (MP)
Poesia árabe
O rock dos anos 80, a literatura marginal, as histórias em quadrinhos e o cinema são as referências do escritor brasiliense Lima Trindade no livro de contos Todo Sol Mais o Espírito Santo. Dividido em três partes: a primeira trata da infância, a segunda da fantasia e do absurdo, e a terceira do humor. Seus personagens são pessoas fortes, lutando contra um exterior banal, indiferente ou opressivo. Passando pela dor do crescimento e a perda da inocência, ora são ignorados, ora massacrados, mas não desistem, continuam procurando uma maneira própria e legítima de se ligar à vida.
Há um conjunto de poemas árabes pré-islâmicos chamados de Poemas Suspensos. Diz a lenda que, durante a peregrinação a Meca, havia uma feira em Ukaz, onde acontecia um concurso de poesia. Dez dos poemas premiados foram bordados com fios de ouro sobre um manto de púrpura que ficou suspenso sobre a Caaba, grande pedra negra sobre a qual se construiu uma “casa” cúbica, e local sagrado. O carioca Alberto Mussa, apaixonado pela cultura árabe, traduziu estes poemas, cada um atribuído a um poeta de personalidade totalmente distinta. O que se revela na maneira como tratam a forma poética chamada cassida, seqüência de versos que seguem uma única rima e um único metro. A temática também é fixa e deve seguir um roteiro, através do qual se expõe a típica ética beduína. O resultado surpreende, numa poesia totalmente diferente do que estamos acostumados a ler.
Todo Sol Mais o Espírito Santo, Lima Trindade, Ateliê Editorial, 168 páginas, R$ 25,00.
Os Poemas Suspensos, Tradução de Alberto Mussa, Record, 212 páginas, R$ 28,90.
Contos Cruéis, organização de Rinaldo de Fernandes, Geração Editorial, 420 páginas, R$ 48,00.
Pessoas fortes
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
As oficinas dos sonhos “Aprendi muito com meus mestres, mais com meus companheiros, mais ainda com meus alunos.” Do Talmude
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Irã preparando-se contra a invasão dos Estados Unidos, o Iraque usando homens-bombas contra o mesmo invasor, o Brasil mergulhado numa guerra civil, uma guerra que o governo “não ousa dizer o nome”, e eu, aqui, falando de coisas da paz, como a cultura estética. Ainda sou do tempo das Belas Letras, a alcunha multissecular mais conhecida da Gramática, da Eloqüência e da Poesia. Eram tempos renascentistas, em que a narrativa de ficção em prosa (romance, novela, conto) ainda não tinha se firmado, apesar de Cervantes. Mas, algo se vem pintando em nosso horizonte de navalhas, que guarda algum sabor das corporações medievais dos artesãos, estratificadas em mestres e aprendizes. Assis Brasil tem um site que “discorre sobre o gênese das oficinas”, mas prefiro não o ver. Gosto de errar sozinho. Ou acertar, quem sabe, os caminhos malandros de Deus? Estou procurando entrar num tema atual, a proliferação das oficinas literárias no país. Não são cursos, conforme reportagem da jornalista Cristina Zarur, para o suplemento Verso & Prosa, de O Globo (01.04.06). As oficinas são grupos de candidatos, ou não, a escritor, sob o estímulo de um escritor veterano. Meio corporativista (e quem não é?), sou favorável a tudo que signifique difusão e valorização da literatura. Nunca participei de uma oficina por capricho pessoal. Mais de uma vez pronunciei-me impedido de participar de academias de letras (hoje faço parte de uma, a de Artes e Letras do Nordeste
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– uma amável conspiração de amigos) porque não são colegiados formais reivindicativos. Volto às oficinas literárias, repetindo: sou favorável a todas elas. Cristina Zarur diz que esse tipo de grupo foi criado nos Estados Unidos, nos campi acadêmicos e, depois, espalhou-se pelo mundo. No Brasil, o grupo apareceu na década de 60, também nos meios universitários. Graças a Deus, aquelas de que tomei conhecimento estão bem longe do conspirativo mundo acadêmico. Elas são um mundo diversificado, mas embora desenvolvam os valores da diversidade de estilos e da livre criação, um pouco da estética do animador (o escritor veterano) fica certamente pairando no ar. Nas minhas raras tentativas de tradução, notei, sempre, que a minha visão estética-formal, e não a do traduzido, sempre se impunha. Assim é a relação entre mestre e aprendizes das novas oficinas. É humano. Na curta e rica reportagem de Cristina, há um box que informa sobre a existência de uma oficina bem simpática, na Paraíba. Trata-se do Clube do Conto, que funciona na praça de alimentação de um shopping em João Pessoa. A reportagem fala de um grupo reunido com xícaras de café e bolo, melhor seria muita cerveja e salgadinho. O Clube começou pela internet, com o poeta paraibano (gostaria de conhecê-lo) Antonio Mariano de Lima criando uma espécie de “corrente”: um convidado ao debate atraindo outro, até que a necessidade do contato levou todo mundo para as reuniões do Clube do Conto. A escritora Maria Valéria diz que o Clube
MARCO ZERO
“não tem líder, nem mestre”, mas eu duvido da existência de qualquer grupo humano sem um líder, mesmo um grupo anárquico, informal, primário ou afetivo. Não seria o líder do Clube quem mais nega a sua existência? Mas, espontâneo e sem regras estatutárias, ele tem produzido muito, desde 2004. Basta citar que já editou duas antologias de contistas paraibanos. Ainda mais perto de mim está a oficina literária que o escritor Raimundo Carrero criou e hoje é uma entidade consolidada em Pernambuco. Nela, os aprendizes dispõem de um mestre que derruba todas as distâncias que a condição de veterano e premiado escritor poderia inspirar. Bom humor, informalismo, camaradagem, eis o clima que sua oficina transpira. Senti, na reportagem de O Globo, um enorme tom de simpatia pela atividade do escritor consagrado que se distribui com os aprendizes e com todo mundo. Recentemente, as oficinas ganharam espaço on line, e Carrero nos informou que está obtendo bons resultados. Outra experiência reportada com simpatia por Cristina Zarur é a Estação de Letras, no Sudeste, comandada pela incandescência de Suzana Vargas, a quem admiro. Entrevistada, ela disse uma grande
verdade: “por trás de um grande escritor há um grande leitor”. Se eu não tivesse me danado a ler tudo que chegava às minhas mãos, principalmente romances, eu teria me livrado desse garrote na garganta que é escrever. O ensino das técnicas narrativas é um dos objetivos de sua oficina. Tanto as técnicas da narrativa quanto as técnicas do poema podem ser ensinadas. O que as oficinas de Carrero e Suzana não fazem é dirigismo literário, é tentarem ensinar a criar, isto depende do potencial de cada jovem ou adulto que pretenda ser um escritor, isto é, um artista da palavra. O segredo da criação está na vida do criador, como um misterioso pecado. Fiz parte do que hoje se chama Grupo de Jaboatão, de certa maneira um embrião da chamada Geração 65, de Pernambuco. Na cidade de Jaboatão, eu e mais uns quatro amigos que tentavam a poesia, reuníamo-nos irregularmente num bar, e entregávamos, para ler, uns aos outros, os últimos poemas. Chamávamos a esses encontros de “Hora da Verdade”. Depois de cada um ler silenciosamente os textos dos outros, elegia a melhor tentativa e, a seguir, pegava outro poema, e, na cara, ia dizendo: “isto não presta”. Isso era uma oficina, nos idos de 60? Uma proto-oficina? Não sei, mas ficou na lembrança. • Continente julho 2006
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ARTES Imagens: Reprodução
Soto, “dentro” de uma de suas obras
Movimento e ilusão Inspiradas no trabalho de Piet Mondrian, obras do venezuelano Jesús-Rafael Soto oferecem movimento e ilusão de ótica Sara Correia
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ARTES
“M
eu ponto de partida foi o desejo de fazer o trabalho de Mondrian se mover”. Assim afirmou, certa vez, o artista plástico venezuelano Jesús-Rafael Soto (1923-2005). Suas obras, que rompem os limites da tela estética com efeitos óticos e com movimentos, oferecem uma visão cronológica e conceitual, nomeando-o mestre da arte cinética. São obras que sugerem este movimento ao trabalho abstrato do pintor holandês Piet Mondrian (1872-1944); o neoplasticismo em movimento. As pinturas de Mondrian marcaram o surgimento das vanguardas nas artes-plásticas nos anos 20 (século 20). Consistem de variações de figuras em ângulos retos, compostos com as três cores primárias: vermelha, azul e amarela, além do branco e do preto. Para Mondrian, a chamada nova idéia plástica – a arte moderna consiste na execução do plasticismo abstrato – deveria encontrar sua expressão na abstração de forma e cor, na linha reta e na cor primária claramente definida, e representa verdadeiras relações estéticas. As obras de Mondrian influenciaram artistas radicados na América Latina, engajados desde a década de 40 em pesquisas que se relacionavam com anseios de mudança da forma, distanciando-se da representação, como fazia a arte figurativa. Daí surgiram os movimentos como o Concretismo e o Neoconcretismo, na década de 50, no Brasil. Durante os anos 50 e 60, artistas de todo o mundo buscavam meios de expressão que falassem das coisas de maneira rápida, volátil, fluida e dinâmica. Jesús-Rafael Soto, mestre da arte cinética, representa bem esta safra de artistas. Suas obras fazem experimentos com as formas, dando-lhes uma vibração diferente.
Quadrado Virtual Branco e Preto (1982), relevo
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ARTES Imagens: Reprodução
Ao lado, Cinco Grandes Varetas (1964), madeira, metal e acrílico. Abaixo, Esfera Theospacio (1989), alumínio
Trabalho intitulado Cinco Grandes Varetas (1964, madeira, metal e acrílico), de Soto, reflete a combinação de figuras geométricas de maneira indefinida, transmitindo ao espectador uma sensação de instabilidade visual. Soto reforça essa sensação ao adicionar à superfície materiais (no caso, tiras de metal e de acrílico) que criam planos e sugerem ao trabalho um certo volume. Vinte e cinco obras de Soto estiveram expostas ao lado de 13 trabalhos de artistas brasileiros, seus contemporâneos, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Nomes como Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica, Amílcar de Castro, Sergio Camargo, Arthur Luiz Pizza, Willys de Castro e Franz Weissman, que tiraram suas inspirações artísticas dos conceitos de arte construtiva, abstrato-geométrica e cinética, tal qual Jesús Soto. Soto: a Construção da Imaterialidade teve curadoria de Paulo Venâncio Filho, que contou com a aprovação do próprio artista na concepção e seleção das obras mais importantes. Ao entrar na galeria, um enorme conjunto de varetas de alumínio com mais de três metros de altura forma uma espécie de cilindro, chamando a atenção e enchendo o visitante de curiosidade. Esfera Theospacio (1989, alumínio, 332x255 cm) tem suas varetas simetricamente separadas e pintadas nas cores branca, amarela e cinza, formando figuras geométricas quando vistas à distância. Pendurada no teto e distante apenas alguns centímetros do chão, a obra oferece uma infinidade de gravuras refletidas no chão por meio do jogo de luzes da galeria. Sem dúvida, uma das principais peças da mostra: o objeto e suas imagens derivadas. Esfera Theospacio faz parte do grupo de trabalhos de Jesús Soto chamados penetráveis. Além de fazer obras que brincam com o olhar do espectador, Soto passou a pensar em obras onde as pessoas pudessem entrar. Em torno de 1957, ele começou a se dedicar a esse tipo de trabalho. Ao procurar novos espaços, passou a ampliar a sua zona de ação e realizar obras que permitem a participação do espectador, que pode usar todos os seus sentidos. No caso de obras como Esfera Theospacio, essa interação se dá colocando o espectador dentro dela, assim a pessoa que entra fica imersa em espaço e tempo diferentes. Pode-se entender por que Soto gostava de chamar essas peças de “obras envolventes”.
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Espiral (1955), madeira, metal, esmalte e plexiglás
Jesús Soto tocava violão e, por conta disso, levou para as artes plásticas algumas características do instrumento e do ato de tocar. Além dos planos intercolocados que dão a sensação do movimento, ele usa muitas cordas e fios que, com um simples soprar, fazem movimentos e formam gravuras Jesús Soto tocava violão e, por conta disso, levou para as artes plásticas algumas características do instrumento (e do ato de tocar). Além dos planos intercolocados que dão a sensação do movimento, ele usa muitas cordas e fios que, com um simples soprar, fazem movimentos e formam gravuras, levando à ilusão de ótica. Quadrado Virtual Branco e Preto (1982, madeira, varetas, fios e relevo, 101x101x27 cm) e Pequeno Negro e Violeta (1974, madeira e metal, 102x102x33 cm), por exemplo, se sopradas, oferecem uma verdadeira dança das varetas que, em movimento e ao se transparecerem com o fundo listrado, levam o espectador a uma viagem de ilusão com os olhos. Espiral (1955, madeira, metal, esmalte e plexiglás, 50x50x30 cm) e Trapézio (1957, madeira, metal, esmalte e plexiglás, 60x60x22 cm) não possuem movimentos diretos, como as varetas balançadas em outras obras, mas oferecem um jogo de movimentos mais curiosos ainda. Justamente por isso. Ambas são constituídas de figuras pintadas (linhas, curvas, traçados) ou coladas, interpostas umas sobre as outras e que, ao simples caminhar do visitante, vai mudando de figura. Além da curiosidade imposta com os jogos de movimentos, as obras oferecem a sensação de estarmos diante de inúmeros emaranhados dessas linhas, curvas e traçados, emitindo outros reflexos em plena agilidade.
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Ambivalência Caracas (1982), madeira, metal e acrílico. Na outra página, Penetrável (1997), tiras de pvc e ferro pintado
Trabalhos de Jesús-Rafael Soto como Ambivalência nº 27 (1982, nadeira, acrílico e metal, 260x310x17 cm), Ambivalência Caracas (1982, madeira, metal e acrílico, 157x156x16,07 cm) e Ambivalência Dezembro (1993, madeira, acrílico e metal, 164,3x334x16,7 cm) são os que mais se assemelham à obra de Mondrian. Trata-se de telas quadradas ou retangulares feitas com peças coloridas, coladas e interpostas a um fundo listrado ou liso e que, à distância se assemelham às pinturas chamadas Composição, de Mondrian. Mas Soto oferece algumas diferenças (e peculiaridades): a sensação de movimento das imagens, causado pelas sombras, e o jogo feito com as cores vivas e os tamanhos das formas abstratas, dão a sensação de aproximação ou distanciamento. Jogos e efeitos em espaços, esvaziamentos e sombras. É como se a obra estivesse viva para o espectador. Jesús-Rafael Soto nasceu em 1923, em Ciudad Bolívar, Venezuela, e morreu no ano passado, em Paris. Aos seis anos, já pintava cartazes para o cinema da cidade onde nasceu. Com 24 anos, após ter terminado seus estudos em belas artes, foi nomeado diretor da Escola de Belas Artes de Maracaibo. Em 1951, ao viajar para Paris, Soto conheceu obras de Mondrian e de outros artistas e, a partir daí, deu vida aos primeiros trabalhos utilizando-se de repetição e progressão. Ainda na década de 50, deu início aos trabalhos cinéticos e passou a utilizar materiais como plexiglás, plástico transparente e resistente (origem aos penetráveis). Nos anos 60 surgiram as idéias para os penetráveis quando, na Bienal de Veneza de 1966, envolveu o pavilhão onde expôs com tiras metálicas com as quais havia iniciado seus trabalhos, em 1958. Em 1967 Soto elaborou o seu primeiro penetrável, que faz parte de uma série de obras de arte ambiental. Ele participou de várias exposições, entre elas cinco Bienais de São Paulo (5ª, 7ª, 22ª, 23ª e 24ª) e duas Bienais de Veneza (31ª e 33ª). Em 1973 foi inaugurado o Museo de Arte Moderno Jesús Soto, em sua cidade natal, que reúne não só trabalhos seus, mas também obras de 130 artistas de várias nacionalidades. • Continente julho 2006
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A voz própria de Antônio Bandeira A galeria Pinakotheke devolve ao público a obra de um dos pintores brasileiros que mais se impuseram no cenário internacional de meados do século passado Imagens: Divulgação
Abstração, 1951
A
exposição que a galeria Pinakotheke (Rio de Janeiro) inaugurou, no final de maio, devolveu ao público artístico carioca a obra de um dos pintores brasileiros que mais se impuseram no cenário internacional de meados do século passado, o cearense Antônio Bandeira. Nascido em Fortaleza, onde integrou um grupo de intelectuais e artistas que renovaram a vida cultural da cidade, em pouco tempo Bandeira chamava a atenção da crítica para seu incontestável talento. Em 1945, transfere-se para o Rio de Janeiro e logo depois para Paris, onde descobre o caminho de sua arte. Na verdade, isso ocorre em boa parte por ter ali conhecido o pintor alemão Alfred Otto Wolfgang Schulze, que se assinava Wols, radicado na França onde se Continente julho 2006
tornara precursor do que mais tarde se conheceria como abstracionismo lírico; essa tendência pictórica em breve se imporia nos principais centros artísticos do mundo. Mas, naqueles anos, em Paris, Wols era um artista marginal que, com manchas e traços, inventava uma nova linguagem pictórica, plena de significações e tensões subjetivas, como reveladora do inconsciente insondável. Junto com o jovem Antônio Bandeira e o poeta Camille Bryen, criou o grupo Banbryols (palavra formada com sílabas dos nomes dos três) e que durou pouco tempo. A única exposição do grupo realizou-se em 1948, na Galerie de Deus Îlles, em Paris, sob o título de La Rose des Vents. Conforme escreveu o crítico Jacques Lassaigne, foi então que, pela primeira vez, a crítica falou em peinture des tâches
TRADUZIR-SE
(pintura de manchas), que daria nome, mais tarde, ao tachismo. Pouco depois, suicidava-se Wols, “o último dos grandes pintores malditos”, no dizer de Lassaigne. Foi nessa nova linguagem inventada por Wols que Bandeira se inspirou para criar sua própria pintura, que também se apoia em manchas e traços, mas impregnada de um lirismo e de uma leveza própria à sua maneira de sentir e criar. É esse universo imaginário, nascido da junção mágica de elementos abstratos, que redescobrimos nas obras expostas na galeria Pinakotheke. Se levarmos em conta que há 20 anos não se fazia uma exposição das obras de Antônio Bandeira, esta mostra de agora há de oferecer ao público a oportunidade de redescobrir este pintor de tanto talento e de tão delicada poética. Cabe aqui perguntar como se insere a pintura de Antônio Bandeira no quadro da arte brasileira daquela época e de sua significação atual. Para responder a tais questões, devemos verificar o que ocorria na arte brasileira precisamente na época em que Bandeira e Wols, em Paris, desintegravam a linguagem figurativa da pintura e a reinventavam a partir de seus elementos essenciais e espontâneos, quase inconscientes. No Brasil da década de 1940 e durante a década seguinte ocorria uma virada radical nas artes plásticas com a descoberta, pelos artistas brasileiros, da arte concreta do grupo de Ulm, liderado por Max Bill. E essa arte, que se caracterizava pela objetividade construtiva, pela recusa à emoção e ao improviso, situava-se, portanto, no polo oposto ao nascente tachismo de Bandeira. Na França, mesmo, o informalismo de Wols era uma novidade, já que explorava um caminho diferente do que percorriam pintores como Soulages, Mathieu ou Staël. Antônio Bandeira se engajara nessa mesma busca, mas à sua maneira, inventando um novo idioma pictórico, menos denso talvez, mas em compensação mais lírico e otimista. Nesta exposição, essa diferença fica patente
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sobretudo nos trabalhos de pequenas dimensões – têmpera e nanquim sobre papel – onde linhas e pontos coloridos criam verdadeiras minigaláxias, seres novos do universo gráfico-cromático. Se compararmos os trabalhos de Antônio Bandeira com os de outros pintores daquela época, verificaremos a contribuição original que ele trouxe à pintura não-figurativa. Senão, vejamos: Soulages compõe seus quadros com largas pinceladas negras que pretendem, por assim dizer, anular o acaso, afirmar a fatalidade do gesto pictural; Fautrier, por sua vez, rasga a pasta colorida com violência, excluindo da expressão qualquer intento sutil. E o próprio Wols nos leva à subjetividade dramática e obsessiva,
Abstração, 1964
que parece desagregar-se em manchas e pinceladas. Enquanto isso, Bandeira se vale de elementos simples e minúsculos – como a explorar a dimensão molecular da matéria – para inventar novas estruturas visuais, em que o mundo material parece perder a obscuridade, o peso, a própria materialidade: transmuda a percepção visual em sonho. A hegemonia da arte construtiva não se manteve durante muito tempo no Brasil nem muito menos em âmbito internacional, onde o tachismo se impôs quase que instantaneamente, já no final da década de 50. Esse fato favoreceu o reconhecimento da pintura de Antônio Bandeira que, na verdade, não se ajustava à realização veloz e “cega” da pintura tachista. Por isso mesmo, com voz própria se fez ouvir pelas galerias e museus do mundo inteiro. • Continente julho 2006
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AGENDA/ARTES
Imagens: Divulgação
Marulho, de Cildo Meireles
Cildo Meireles 8 instalações revelam momentos exemplares da produção do artista no museu Vale do Rio Doce
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odas as idéias, todos os contextos, num rejunto estético muito visceral. O carioca Cildo Meireles, um dos artistas plásticos mais destacados do mundo, não economiza esforços para criar obras nada usuais, mas bastante convidativas. Os melhores momentos de suas produções estão expostos no Museu Vale do Rio Doce, em Vitória-ES. Intitulada Babel, a mostra traz como âncoras as obras Marulho (1997) e uma nova versão de Babel (2001). Esta última, inédita no Brasil, consiste em uma torre, de 5 metros, composta por centenas de rádios – de épocas e modelos diversos – sobrepostos em círculos, ligados e sintonizados em diferentes estações de emissoras AM e FM. A utilização do som aparece também em Marulho; um píer de madeira que avança sobre uma sala, forrada de livros abertos, em cujas páginas encontram-se imagens de mares distintos. Aí, ecoa a edição sonora da palavra água gravada em 80 idiomas. “Os dois trabalhos estão unidos a uma das mais fortes características do homem, que é a vontade de chegar a Deus”, revela
o artista. Mais seis obras complementam a exposição, que, de acordo com o curador, Moacir dos Anjos, foi desenvolvida com o objetivo de impor ao visitante uma negociação do espaço com a obra. “Não apenas o espaço físico, como acontece em Cantos, mas também o espaço geopolítico”. Babel, de Cildo Meireles. Até 7 de setembro no Museu Vale do Rio Doce (Antiga Estação Pedro Nolasco, Argolas, Vila Velha – ES). Tel: 27. 3246.1443
No país de Alice
O Desejo se Faz Caminhando, de Alice Vinagre
Desejo ou o Caminho se Faz Caminhando. Até 15 de julho na Galeria Mariana Moura (Av. Rui Barbosa, 735, Graças, Recife-PE). Tel: 3421-3725
É em meio a muitos labirintos que a artista plástica paraibana, radicada no Recife, Alice Vinagre, se encontra. De espelho, de livros, com cortinas, eles são o foco de sua construção e estão espalhados pelas salas da Galeria Mariana Moura. Intitulada Desejo ou o Caminho se Faz Caminhando, a mostra conta com três instalações, uma pintura e um vídeo. A idéia é proporcionar uma experiência tátil ao visitante, que deve sair do plano da contemplação para se enredar nos corredores feitos de cortinas brancas, alocados na entrada da Galeria; nos reflexos de
espelhinhos que podem ser iluminados com uma lanterna, pendurada lá, à disposição do público – representa o processo de autoconhecimento –, ou mesmo no labirinto de livros distribuídos no chão, que funcionam como paredes de saber. Todos os labirintos estão lá para serem interpretados. A artista lembra, inclusive, que na Idade Média, os europeus católicos que não podiam chegar a Jerusalém faziam uso dos labirintos para representar essa impossibilidade. Essa é a primeira individual da artista desde 2002 e fica em cartaz até o dia 15 de julho.
Natureza em pose Depois de passar por Montevidéu, Buenos Aires, Córdoba, Lima e Santiago, a exposição Giorgio Morandi e a Natureza-Morta na Itália chega ao Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Trata-se de uma breve panorâmica da natureza-morta na Itália, onde as obras de Morandi, um dos mais importantes pintores europeus do século 20, dividem espaço com mais 24 pinturas, assinadas por artistas contemporâneos seus, entre os quais, Giorgio de Chirico, Fortunato Depero, Gino Severini, Afro e Carlos Carrà. Cada um a seu modo, os pintores, protagonistas do anos 40, 50 e 60, possuem em comum o fato Continente julho 2006
de terem dedicado atenção especial à criação de naturezas em pose, ou stilleven, em holandês. Sob curadoria de Maria Cristina Bandera e Renato Miracco, a mostra ainda segue para a Pinacoteca do Estado de São Paulo. A iniciativa é da Embaixada da Itália e do Instituto di Cultura de São Paulo. Natura Morta (1935), de Francisco Di Cocco
Giorgio Morandi e a Natureza-Morta na Itália. Até 23 de julho no Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília DF. Informações: www.bb.com.br/cultura
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
A muito especial culinária da Alemanha
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maior espetáculo da Terra continua, em todas as televisões. Junto com essa Copa do Mundo, entra em nossas casas também um pouco da Alemanha – castelos, monumentos, florestas, festas, cidadezinhas perdidas no tempo, grandes metrópoles, sua gente e também, o que nos interessa por agora, sua culinária. Apesar de não tão conhecida quanto a de seus vizinhos França e Itália, as mais importantes gastronomias do mundo, ela é muito especial – feita de pratos sempre fortes e muito generosos. Como entrada, sopas – tomadas indiferentemente, no almoço ou no jantar, dependendo do clima. O frio é quem manda. Entre elas Leberknödelsuppe (consommé servido com bolinhos de fígado), Kartoffelsuppe (de batatas, temperada com manjerona e rodelas de salsicha), Linsensuppe (de lentilhas, acompanhada com lingüiças), de grão de bico, aspargos, alho-porró, flocos de aveia e cevada. Também sopas doces, à base de vinho branco e cereja. Além daquela bem diferente, feita de ovo, açúcar, creme de leite, canela, pimenta, sal e, por incrível que pareça, cerveja. As refeições, quase todas, são à base de carnes invariavelmente suculentas (saftig). De boi e de vitelo – assada, guisada, marinada (Sauerbraten, com molho agridoce e purê de maçã), ensopada, moída (Schnitzel), recheando massas (Maultaschen) ou como ingrediente na preparação de cozidos (Pichelsteiner). De caça também, sobretudo javali, coelho e veado. E aves – galinha, pato, peru e ganso (inclusive Martinsgans, recheado com castanhas e maçãs). Mas campeão, em todas as regiões, é mesmo o porco – assado (Schwartenbraten), guisado ou defumado. Até porque, em tempo de economia de custos própria da globalização, na panela tudo dele se aproveita – língua, costeleta, paleta, colchão, joelho (Eisbein), estômago (Saumagem). Há mais de 1500 tipos diferentes de embutidos (Wurst), no país. Desses, 780 são salsichas. Variando no tipo, a
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depender da região. Para a fabricação desses embutidos, usam tripas naturais (de porco, boi, carneiro). Ou colágenos comestíveis (retirados do boi, entre o couro e o pêlo). A cor avermelhada que quase sempre apresentam vem do nitrito, uma espécie de sal usado como aditivo para conservá-las. O recheio é feito com carnes variadas. De porco – Currywurst (a mais apreciada delas), Frankfurter(defumada), Murenberger(com ervas aromáticas); de vitelo – Weißwurst (de cor bem branca); ou de boi – Bockwurst (bem crocrante e com muito alho). Essas salsichas e lingüiças podem ser divididas em três grandes grupos – Rohwurst (fermentados, como o salame), Brühwurst (cozidos, como as salsichas e os frios) e kochwurst (patês). Junto vem molho de tomate ou mostarda – clara, escura, de cremona (com sabor doce), misturada com raiz forte. Dependendo do gosto do freguês. Principal acompanhamento, para todos esses pratos, é sempre batata. Com ou sem casca. Cozida, assada ou frita. Inclusive Kartoffelklöße (em bolinhos), Kartoffelpuffer (panquecas que podem ser servidas com molho doce ou salgado) e Kartoffelsalat (uma salada temperada com pepinos em conserva, cebola e maionese). Outros acompanhamentos de prestígio são: aspargo, cenoura, nabo, espinafre, cebola frita, purê de ervilha e Apfelmus (purê de maçã). Além de repolho, que por lá é encontrado de quase todas as cores: servidos ao natural, em conserva ou no famoso chucrute (Sauerkraut) – picado, temperado com sal e deixado alguns dias para que fermente e adquira um leve sabor azedo. Também muito apreciado é o uso de geléias de frutas, acompanhando os assados. A cozinha alemã é também muito rica na panificação. São 1200 tipos de biscoitos e mais de 300 pães, para quase todos os gostos. Esses pães têm como base aveia, centeio, trigo, água, fermento e sal. Podendo ainda levar nozes, amêndoas, passas. E temperos, como gergelim ou cominho (Kümmel). De igual somente a camada exterior, que deve ser
sempre bem crocante. “Não existe pão de verdade fora da Alemanha” – escreveu em seu diário o marxista berlinense Bertold Brecht. Naquele tempo estava exilado nos Estados Unidos, fugindo do Nazismo. Depois voltou a fazer teatro em sua própria terra, mas essa já é outra história. Entre ditos pães, destaque para o Pumpernickel – bem escuro, feito com cereais prensados à base de centeio, aveia e um extrato de malte típico da região da Westfália. E o Brötchen, que vai mudando de nome dependendo da região em que é feito – Semmel, Wecke, Schirippe, Schusterjunge, Plennigmuggel. Quem andar por lá e quiser provar, com tantos nomes complicados, melhor só apontar com o dedo. A Alemanha é também o maior fabricante de queijos do planeta – seguido por França, Itália e Holanda. Entre esses queijos Schalskäse(de ovelha), Allgäuer, Bergkäse, Handkäse, Emmentaler. Com a ida de imigrantes para a Alemanha, também chegaram por lá receitas desses queijos, logo incorporadas à culinária local – inclusive Gouda e Tilsiter – ambos de origem holandesa; e Limburger, belga. Sendo muito apreciadas pastas, feitas com esses queijos, Quark (com cebolas, pápricas e ervas) e Handkäs(com cebola, vinagre e azeite). Os mosteiros incentivavam camponeses a fazê-los, emprestando caldeirões e outros utensílios. Em troca de alguns queijos prontos, claro. Que como dizia Fernando Pessoa, um português que nunca andou por aquelas bandas, “romantismo sim, mas devagar”. A cozinha alemã, apesar de tantos gostos, se revela especial, sobretudo, na confeitaria. Em sorvetes, pudins, cremes, biscoitos, doces e geléias de ameixa, maçã, morango, cereja e nozes (Weisse Nürnberger). Tortas – Käsetorte(de ricota) e Apfeltorte (de maça coberta com farofa de manteiga e açúcar). Bolinho frito recheado de creme – Berliner, bem parecido com nosso “sonho”. Ou bolos como o Schwarzwälder, recheado com cereja, especialidade da Floresta Negra. Ainda, segundo a tradição, servido obrigatoriamente no Natal, o Baumkuchen – rocambole de massa levedada à base de farinha, fermento, leite, açúcar e gordura, recheado com uma mistura de manteiga derretida, açúcar, canela, maçãs fatiadas e passas. Outras sobremesas de prestigio são Rote Grütze – gelatina, frutas, suco de frutas, vinho; e Strudel – outro rocambole, esse de massa muito fina, quase transparente, com recheio à base de frutas, especialmente cereja, ameixa, nozes, passa, canela e açúcar. Mais famoso de todos esses Strudels, bom lembrar, é o Apfelstrudel, feito com maçã ácida. Faltando só falar no Bavaroise – pão-de-ló recheado com frutas e creme feito com ovos, gelatina, creme de leite e
licor. Que recebeu esse nome, claro, por ter sido criado na região da Bavária. Foi Carême, um dos maiores cozinheiros franceses, quem apresentou a receita ao mundo. Sendo, em seguida, adotado pela culinária francesa – o que justifica ter, o nome, essa pronúncia afrancesada. Mas não é famosa, a Alemanha, só por sua comida. Também o é, claro, nas bebidas. “Hora de comer, comer; hora de beber, beber”, dizia Ascenso Ferreira (em “Filosofia”). Depois completaria: “hora de vadiar, vadiar; hora de trabalhar, pernas pro ar que ninguém é de ferro”. Mas aí, decididamente, já estava pensando não em aplicados alemães, mas nos engenhos e nas praias nordestinas. Para começar, e por mais estranho que possa parecer, água (Wasser). Mineral ou medicinal. É a nova moda, por lá. “O esnobismo da água tomou o lugar do esnobismo do vinho” – escreveu Udo Pini, em seu Manual do Gourmet. E Marcus Del Monego, mais famoso sommerlier do país, dedicou, recentemente, livro à refinada combinação da água com os pratos. São mais de 30a tipos, para todos os gostos – sendo mais pedidas Gerolsteiner, Appolinaris e Fachinger. Também vinhos. O Schöpple (um copo de vinho) está, invariavelmente, em todas as mesas de restaurante. Sobretudo os brancos, feitos com uva Riesling, da região de Rheingau. Antes da II Guerra, eram os mais caros da Europa. Mas esse conceito foi abalado com a má fama das garrafas azuis (que escondiam impurezas), feitas só para exportação de vinhos como o Kröver Nacktarsch e o Liebfrauenmilch. Por falar neste, bom lembrar que o título não quer dizer, como correntemente se pensa, “leite da mulher amada”. Liebfrau, em alemão, quer também dizer “Nossa Senhora”. E milch é forma arcaica de dizer “monge”. O título refere apenas um vinho produzido por monges da Igreja de Nossa Senhora. Tanto que, no rótulo, se vê apenas o rosto de Maria com seu Filho no colo. Só agora os vinhos alemães começam a recuperar seu prestígio, em marcas como “Mirtelrhein”, “Blauer Spätburgunder”. Além dos tintos, que conquistam o exigente mercado internacional – merecendo, inclusive, referências elogiosas no novo guia de vinhos Gault-Millau. Mas preferência nacional é mesmo cerveja e chope. A Alemanha é considerada a terra da cerveja. Mesmo não tendo, esta bebida, nascido lá. Já eram conhecidas desde a Mesopotâmia. Nas margens do Nilo, escravos bebiam cerveja enquanto construíam pirâmides. São mais de 5.000 marcas, produzidas por 1.350 fabricantes registrados. Cada alemão bebe, em média, 114 litros por ano. O país perde Continente julho 2006
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Titular/Leo Caldas
SABORES PERNAMBUCANOS
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SABORES PERNAMBUCANOS
apenas para a Irlanda, com 125. Para manter sua qualidade, em 23 de Abril de 1516, o duque Guilherme IV da Baviera decretou o Reinheitsgebot (Lei da Pureza). A partir de então, apenas quatro elementos são permitidos em sua fabricação – água, cevada (malte), levedo (fermento) e lúpulo (que dá o amargor da bebida). Mas hoje, bom lembrar, a legislação já deixa substituir cevada por trigo, aveia ou centeio. Passando esse 23 de abril a ser, por isso, o “dia da cerveja”. Comemorado com festas. Quase feriado nacional. No mercado, são muitos os tipos – inclusive Leichtbier (cerveja menos calórica, light) e Diätpils (Pilsen dietética). Antigamente, mais popular na Alemanha era a Schwarzbier (cerveja preta), hoje perdendo prestígio para as claras. A Pils, no Brasil conhecida como Pilsen, é agora a mais consumida, servida em copos que imitam tulipas. E famosa, também, pela coroa cremosa de espuma. Cada lugar tem sua preferência. Em Hamburgo, a Pilsen Holsten; em Berlim, Berliner-weizen(de trigo, com baixo teor alcoólico, que quase não faz espuma e, estranhamente, é sempre tomada com auxilio de canudo); em Warstein, a Warsteiner (encorpada e muito amarga); em Dortmunder, Dortmunder (de baixa fermentação e pouco amarga); em Munique, Hofbräu (muito amarga); em Bitburg, Bitburger (dourada, seca e aromática); em Hannover, Lindener e Gilde; em Düsseldorf, Altbier – mais escura e mais amarga, tomada sobretudo no verão. Na região da Baviera, reina a Weissbier – à base de trigo, branca, de alta fermentação, com aroma floral, sempre servida em copos grandes de meio litro. A Märzen é fabricada em março e maturada para ser consumida em setembro e outubro, na Oktoberfest. Em Colônia, Kölsch (seca, levemente frutada – servida em strangen (copo cilíndrico, fino e de base chata, de 200 ml). Recusá-la, por lá, é ofensa grande. Por fim, dizer só que, na época de Natal, quando o inverno é mais rigoroso, pede-se Bock (com alto teor alcoólico) – bock em alemão é bode, em razão do que a cerveja tem esse simpático animal no próprio rótulo. Nessa Copa, os alemães vão se empanturrar de cerveja. É mais do que certo. Na Copa do copo, já são campeões. Desde antes já se sabia disso. Curioso é que essas cervejas, por lá, são servidas quase à temperatura ambiente. A famosa e popular cervejinha “estupidamente gelada” é invenção de brasileiro. Ein Bier, bitte(uma cerveja, por favor). Depois dos jogos, portanto, é muita cerveja para comemorar, se ganhar. E muita cerveja para esquecer, se perder. Cerveja é o que vale. Afinal, como diria o grande filósofo popular Adoniran Barbosa – “nós viemos aqui para beber ou para falar de futebol?” • Continente julho 2006
APFELSTRUDEL
INGREDIENTES (para 3 strudels): MASSA: 300g de farinha de trigo, 1 gema, ½ colher de chá rasa de sal, 2 ½ colheres de sopa de óleo de milho, 150 ml de água morna, óleo de milho (para untar a massa), 100g de manteiga derretida (para pincelar a massa na hora de ir ao forno), açúcar de confeiteiro para polvilhar. RECHEIO: 3 kg de maçãs (pequenas e ácidas), suco de dois limões, 300g de farinha de rosca, 200g de manteiga, 150g de manteiga derretida, 300g de açúcar, 1 colher de sopa de canela, 100g de passas pretas, 80g de nozes. PREPARO: MASSA: peneire a farinha, junte gema e sal. Junte óleo e, aos poucos, água morna. Trabalhe a massa, até que incorpore a farinha e fique elástica. Forme uma bola, unte com óleo e deixe descansar por 30 minutos. RECHEIO: derreta a manteiga (200g). Junte farinha de rosca, misture e deixe esfriar. Descasque e corte as maçãs em lâminas finas. Regue com limão. Reserve. – Volte a trabalhar a massa. Divida em 3 partes, uma para cada strudel. Cubra a mesa com um pano de prato e polvilhe esse pano, com trigo. Coloque nele uma parte da massa. Vá abrindo, inicialmente com o rolo e depois com os dedos, até ficar bem fina (quando seja possível ler um jornal, através dela). Repita depois a operação com as outras partes. – Pincele a massa com manteiga derretida. Divida os ingredientes do recheio em três. Coloque 1/3 de farinha de rosca sobre cada massa. Coloque também, por cima, 1/3 de maçãs, 1/3 do açúcar, 1/3 de canela, 1/3 de passas, 1/3 de nozes – para cada strudel. – Enrole cada strudel com a ajuda do pano. Aperte. Coloque em assadeira untada. Pincele os strudels com a manteiga derretida. Asse por 25 minutos, em forno quente. Retire do forno, polvilhe com açúcar de confeiteiro.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
A resposta do mestre Graciliano Ramos à figura todo-poderosa
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embro-me muito bem (a memória de elefante é um dos meus tormentos) da primeira vez que vi de perto Lourival Fontes, o chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) na ditadura do Estado Novo: foi no começo de dezembro de 1939, na Livraria José Olympio, quando a editora ainda era na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, quase esquina com a avenida Rio Branco. Numa manhã, antes do almoço, eu conversava, ou mais ouvia do que conversava, nos fundos da livraria com mestre Graciliano Ramos, quando de repente o romancista olhou firme, duro e enfastiado em direção à porta e disse: – Lá vem o homem! Vai começar o festival de salamaleques! O homem era Lourival Fontes. O terno branco, a
gravata discreta e de laço bem dado, os sapatos luzidios, tudo nele parecia “nos conformes”, como diria o saudoso José Cândido de Carvalho. Mas o fato é que também tudo na todo-poderosa figura me pareceu desajeitado, deselegante, a dar a impressão de desleixo. – Lá vem o homem! – sibilava Graciliano, o cigarro já quase apagado entre os dedos de unhas encardidas pela nicotina de anos e anos. Vejo Lourival Fontes aproximar-se de Graciliano – que nem sequer se ergueu da cadeira para retribuir o cumprimento do figurão. Mas o figurão não se dava por achado: – Como vai, mestre Graciliano? E a resposta ríspida, seguida de uma baforada de cigarro: – Como me deixam! •
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ESPECIAL
O muro antes do abismo A ruptura moderna com o pensamento religioso e o aristotélico teve papel libertário. No entanto, não são poucos os que estão tratando de rever os excessos cometidos em nome da relatividade e da subjetividade Fábio Lucas
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o meio de uma peça que rodou o país mais de uma vez, o diretor e ator Jorge Fernando promove a suspensão do riso, ao perguntar à platéia: “Qual de nós, nesta sala, será o próximo a morrer?” O público disfarça, alguns sorriem sem graça, outros fazem de conta que o assunto nem é com eles. Enquanto Jorge Fernando exalta a mensagem que não é nova, mas persiste recusada: “Viva a morte!” O dia marcado para cada um reserva-nos o lugar comum onde todos se dissolvem na mesma massa primordial de átomos que se dispersam e se acham. É o desfecho da breve aventura consciente num planeta isolado, encravado no vácuo, entre deuses que se revezam na solidariedade e na guerra de seus filhos sobre a Terra. A morte encerra o mistério e a resposta, e de seu inescapável horizonte os vivos se nutrem, na esperança que pede mais tempo, ou à espera do esquecimento. A comédia da vida pára quando se defronta com a tragédia da morte. Mas por que morrer é trágico? Todos somos filósofos na hora em que o pensamento é mais inútil. O falecimento do outro transforma o inferno sartriano em parada obrigatória, na busca de um significado que a morte parece atirar para longe. Aliás, Sartre resumiu bem, a este propósito, que a morte é aquilo que retira da vida qualquer significação. E por que será que é ali, na sensação iminente do abismo, que mais meditamos a seu respeito?
Para o filósofo francês André-Comte Sponville, a morte é o pior dos fracassos Continente julho 2006
Montaigne acha que a morte pode ser uma solução para todos os males
Um dos entrevistados para o curta-metragem Os Arquitetos do Mar, exibido durante a última edição do Cine PE, é provocado acerca do futuro. Com simplicidade de dar inveja a um grego antigo, o homem respondeu: “O futuro? Eu não sei como tudo começou, também não sei como vai terminar.” Uma postura que é receitada por filósofos atuais, como o francês André-Comte Sponville, seguidor de Espinosa, Montaigne e Epicuro. A noção clássica epicurista de que a morte não nos atinge – pois quando estamos vivos ela não existe, e quando ela chega, somos nós que não existimos mais – é tomada por Montaigne como obstáculo à felicidade. Para Sponville, é o maior dos fracassos, que apaga todos os outros, e que faz do luto um dever diário de luta contra a realidade – com a realidade, já que não se permite a fuga, que nada resolve. Ainda por cima, porque se morre a cada segundo, desde que se nasce: ela é destino, e não acaso. De acordo com o alemão Martin Heidegger, o homem é um ser-paraa-morte, a exibir rugas na pele, e a conter a deterioração da vida tanto nos ossos como existencialmente, na constituição ontológica. O mesmo Montaigne vê a morte como chance de cura, na possibilidade aberta pelo suicídio. Seria “a receita para todos os males”, porque depende apenas de nossa vontade. Nisto Montaigne recorda ainda os antigos, estóicos ou epicuristas, que enxergavam no suicídio menos o motivo existencialista identificado por Albert Camus – “o problema fundamental da filosofia”, segundo ele – e muito mais uma solução. Para os estóicos, o suicídio era a mais livre e racional forma de morrer do filósofo, uma espécie de ápice depois de longa trajetória. Para o hedonismo epicurista, Continente julho 2006
O Triunfo da Morte (c. 1560), quadro de Pieter Breughel, o Velho
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poucas são as razões para se abandonar voluntariamente a vida, porém a sabedoria advoga não haver o que temer na morte, e que “não há necessidade de se viver no império da necessidade”. Sponville esclarece que Epicuro jamais pregaria o suicídio, mas que o admite. A morte voluntária, como desejo efetuado, é um tema filosófico que concerne, como a eutanásia, à liberdade. “A permanente possibilidade do suicídio torna a vida inteira voluntária: não se pode escolher ter nascido, nem ser mortal, mas, sim, viver por mais ou por menos tempo, continuar ou não a viver. É nisso que a idéia do suicídio faz parte do arsenal do homem livre”, escreve o francês no livro Impromptus – cujo título, na tradução brasileira, lembra a auto-ajuda, com o nome de Bom-Dia, Angústia! Epicuro também escreveu que a morte, sendo a privação da sensibilidade, não representa nada para o ser humano. Mas para a filosofia – ou mais simplesmente, para a consciência e o pensamento – vale reconhecer que surge um embotamento na perspectiva da morte, como se a vida não fosse capaz de se extrair de seus limites, de se olhar fora de si. O absurdo apontado pelos existencialistas é o absurdo do vivente que, mal se acostuma ao real, é forçado a admitir: terá, logo, logo, que renunciar a ele. Nem a constatação de ser breve e, por isso, dever ser aproveitada (resumida na expressão latina carpe diem, algo como “a vida é curta, curta a vida”), nem tampouco o consolo de que
somos um milagre que passa do pó ao pó, são capazes de liberar o peso da realidade que definha enquanto o tempo individual se gasta. Por mais que os gregos nos bradem sobre a leveza da morte – como em Sócrates, para quem a filosofia seria o exercício de morrer e de estar morto – não deixamos de pensar nela como algo trágico, de pensar a morte como o essencialmente impensável. Pode-se associar este comportamento a um sinal dos tempos. Octavio Paz debitou à sociedade de consumo o pânico pela idéia da morte, observando que o desejo de “curar” a morte exprime um desejo prometeico cuja obsessão criou um hedonismo viciado, oposto ao hedonismo epicurista, defensor dos prazeres, sim, mas com plena aceitação dos limites da vida. Ainda segundo Paz, o esquecimento da morte é uma prova da morte do indivíduo, no esmaecimento das vidas individuais provocado pela sociedade de massas. A vida é uma totalidade que inclui a morte, e se nos recusamos a contemplá-la, recusamo-nos a contemplar a vida. Na mesma linha, Sponville enfatiza que ser homem é ser mortal, na solidão do corpo, “prisão do prazer e do sofrimento”, e não dá para pensar na vida sem encarar a morte. Uma só é bela porque a outra é amarga. A noção espinosista da vida como esforço constante e fonte de prazer se choca diretamente contra o muro existencialista diante do abismo da morte. De uma ou outra maneira, com vertigem ou resignação, a queda irá definir, pondo a termo, a vida que se viveu. • Figura da Festa do Dia dos Mortos, celebrada no México, sempre a 2 de fevereiro
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Agonia e finitude em Unamuno Conflito e vida, em oposição à harmonia e morte, são o fulcro do pensamento unamuniano Eduardo Maia
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a filosofia, na literatura e até na ciência, a morte é uma preocupação que acompanha a humanidade desde do começo das civilizações. A capacidade adquirida no processo evolutivo de elaborar raciocínios abstratos fez do homem o único animal sobre a terra que tem a capacidade (e a maldição) de reconhecer o fato inexorável de sua finitude. Grandes pensadores em todas as épocas se ocuparam do tema: em uma passagem célebre, o Sócrates platônico caracteriza a morte como um “sono sem sonhos”; o escritor argentino Jorge Luis Borges, por sua vez, comparou a morte com o sono – todas as noites morremos para renascer a cada novo dia; já Flaubert escreveu que “a morte talvez não tenha mais segredos a nos revelar que a vida”. Destacarei aqui, neste Especial da Revista Continente Multicultural sobre o tema “Morte”, o pensamento de um filósofo em particular, Dom Miguel de Unamuno, por acreditar que sua vida intelectual e pessoal foi uma permanente e agônica meditação sobre a morte. Não se trata de um pensador de orientação estóica – como o foi Sêneca –, que tenha buscado a sabedoria da resignação frente à perspectiva da aniquilação total. A atitude vital e intelectual de Unamuno pode ser colocada no extremo oposto: “A vida, desde o seu principio até o seu término, é luta contra a fatalidade de viver, luta de morte, agonia. As virtudes humanas são tanto mais altas quanto mais profundamente se originam deste supremo desespero da consciência trágica e agônica do homem”. As disputas íntimas e sociais constituem em Unamuno a entranha mesma da vida, a concretização e o encontro da verdadeira estatura pessoal por cada indivíduo: “Vivam de tal maneira que o morrer seja para vocês uma suprema injustiça”. Conflito e vida, em oposição à harmonia e morte são o fulcro do pensamento unamuniano: “A vida é luta (...) o que mais une os homens uns aos outros são nossas discórdias. E o que mais une cada um consigo mesmo, o que faz a unidade íntima de nossa vida, são nossas discórdias íntimas, as contradições interiores de nossas discórdias”. O estado de harmonia total, de paz perene, é o lugar da morte: “Só se fica em paz consigo mesmo, como Dom Quixote, para morrer”. O personagem de Cervantes foi o modelo literário, filosófico e, principalmente, ético de Unamuno.
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A insistência do homem Miguel de Unamuno na afirmação da sua individualidade – do seu eu – vem da constatação de caráter pré-existencialista de que, apesar de todas as teorias políticas, antropológicas e filosóficas, o homem concreto é o único que existe verdadeiramente. “Eu, eu, eu, sempre eu! -dirá algum leitor-; e quem és tu? Para o universo, nada; para mim, tudo”. A existência humana toma a sua significação e finalidade na realização de cada vida individual, na batalha cotidiana de cada homem de carne e osso com o seu entorno e, principalmente, na luta íntima e incessante que a da própria consciência de si mesmo. “O homem concreto é o sujeito e o supremo objeto ao mesmo tempo de toda filosofia”. Tome-se, por exemplo, um conceito como o de “angústia”; todos compartilhamos dessa idéia geral do que tal palavra significa, mas, de fato, o que verdadeiramente existe não é essa angústia universal idealizada, mas a angústia que cada homem, individualmente e intransferivelmente, pode sentir; a angústia de um indivíduo concreto numa determinada situação e momento é a verdadeira angústia. A postura do filósofo foi a de pensar esse homem palpável e sensível, ao invés de investigar serena e abstratamente, “um conjunto de pensamentos vazios de alma, de entidade carnal e espiritual”. Para Dom Miguel de Unamuno, o afã de imortalidade está em cada homem. Nossa essência é a de permanecer “sendo”, numa negação peremptória e constantemente ao possível nada, ao “não-ser”. Para o filósofo Julián Marías, “Unamuno viveu para a morte; voltado sempre para ela, antecipando-a, angustiado pela necessidade de perduração, de imortalidade, não do nome somente, mas da pessoa e da carne”. O terrível para Unamuno, continua Marías, é que “a aniquilação não significa se encontrar frustrada a fé em outra vida, mas o não encontrar; não que se passe algo horrendo, mas, o que é infinitamente mais angustioso pensar, que não passe nada.”. Uma coisa é se preparar e estar cheio de coragem para afrontar qualquer coisa na hora da morte, mas e se não há nada para se enfrentar? Aí está o sentimento trágico para Unamuno: na possibilidade de que a mais dura tragédia seja a de que não haja tragédia – não haja nada. “Tremo – dizia – ante a idéia de ter que me desgarrar de minha carne; tremo mais ainda ante a idéia de ter que me desgarrar de todo o sensível e material, de toda substância”. Em uma de suas principais obras literárias, Niebla (Névoa), Unamuno faz com que seu protagonista, Augusto Pérez, dirija-se ao próprio autor: “Pois bem, meu senhor criador Dom Miguel, também o senhor morrerá, também o senhor, e voltará ao nada de que saiu... Deus deixará de lhe sonhar! Morrerá o senhor, sim, morrerá, ainda que não queira!” •
O escritor e pensador espanhol Miguel de Unamuno
Capa do livro Del Sentimiento Trágico de la Vida, de Unamuno Continente julho 2006
A morte mais popular da “Sétima Arte” está num filme de Ingmar Bergman. Mas, a mais expressiva é apresentada numa obra de Fritz Lang, ainda na época do cinema mudo
O ator Bengt Ekerot no papel da Morte, no filme O Sétimo Selo
Fernando Monteiro
Duas mortes cinematográficas R
esponda rápido: o nome Bengt Ekerot lhe diz alguma coisa? “Não” – será a resposta mais provável de quase todo o mundo, excluindo-se aqueles sujeitos (os cinéfilos) que sabem até quem é o apache caindo, espetacularmente, numa daquelas cenas do ataque à diligência de Stagecoach (ou seja, o dublê e também diretor de segunda unidade, Yakima Cannut). Cultura inútil? Pode ser, mas isso já foi a melhor maneira de impressionar muita gente, como faz Rubem Ewald Filho com o joguinho de identificar cenas de velhos filmes em desfile, por segundos, nas madrugadas do Oscar. Vamos, então, responder sem mais delongas: Bengt Ekerot é o ator que faz o papel da Morte em O Sétimo Selo, um dos filmes mais aclamados do sueco Ingmar Bergman. Nesta altura, você certamente já se lembrou do rosto branco de cera, sob o sinistro capuz da figura que joga xadrez com o cavaleiro medieval vivido por Max Von Sidow. Nascido em 1920 e falecido em 1971, Ekerot se tornou, em virtude da ampla divulgação do filme de 1957, talvez a Morte mais popular da “sétima arte”, como imagem-símbolo de Det Sjunde Inseglet, uma das obras-primas indiscutíveis do realizador hoje retirado na ilha de Faro. E agora que você já sabe quem é BE, chegou a hora de dizer que aquela sua composição hierática e irônica – uma Morte disposta a debochar dos muitos adiamentos propostos por todos aqueles com quem ela marca encontro – não foi a primeira nem a melhor personificação da “Indesejada” no cinema, pois, antes, um ator alemão já compusera uma “Odiada das Gentes” ainda mais assustadora (e humana)... Estou me referindo ao excelente Bernhard Goetzke, escolhido por Fritz Lang para viver a “morte cansada” do seu filme Der Müde Tod (A Morte Cansada, 1921), uma produção de baixo Continente julho 2006
orçamento que o mestre do Expressionismo cinematográfico transformou num dos títulos mais memoráveis da idade muda. Nome de proa da escola alemã, Lang se destacou dos colegas Murnau, Pabst, Wiene e Wegener, pelo lado mais “humanista” do que estetizante, ao usar o cinema com um acento intimista, que o distinguia dos outros e, ao mesmo tempo, levava seus filmes mais longe, como metáforas de antecipação (Metropolis) ou fundamente baseadas na tradição fantástica do folclore alemão. A Morte Cansada é um exemplo disso: tem estreitas ligações com os contos populares germânicos, sem deixar de mão a alegoria da sociedade alemã saída da derrota na Primeira Guerra. Desde 1914, havia se adensado o clima escapista, decadente e de insegurança, gerado pelo fim do império austro-húngaro, numa Europa martirizada pela última das guerras entre “cavalheiros” aparentemente dispostos a decretar o fim de todas as guerras. Os contos de Hoffmann devem ser evocados, de imediato, como atmosfera de Der Müde Tod, com mais a idéia – cinematograficamente original – de trazer a Morte, no começo dos anos 20, para “estrelar” uma produção que também faria eco aos pesadelos kafkianos, então só conhecidos de Max Brod e da noiva do rapaz tcheco tristonho (a quem Otto Maria Carpeaux chegou o ser apresentado, em Praga). Não alarguemos demais, entretanto, a vista sobre o cenário largo e os personagens daquele fim de era. Fiquemos, por ora, na Áustria e na Alemanha pré-Hitler, com essa “Morte” convocada, pelo gênio de Lang, para aparecer nas telas, bem menos maligna do que se esperaria ao vê-la em “carne e osso”. Do que trata esse filme, hoje restrito às exibições em cinematecas? A história é a de um misterioso senhor chegado que chega a uma vila perdida nos Alpes. Ele é a Morte – cansada de si mesma – que resolveu comprar um terreno vizinho (não poderia ser diferente) do cemitério. Ali, o sombrio estrangeiro faz construir um muro imenso, ao redor da nova “morada”. Aparentemente escondida dos aldeões, ele descansa no seu retiro, até deparar, certo dia, com um casal em lua-de-mel. O rapaz desperta a atenção do “anjo negro”, o qual decide levá-lo num “passeio”. Ao perceber que seu marido não reaparece, a noiva vai até o limite das portas do cemitério, onde uma procissão de almas está entrando. O seu amado se encontra entre elas, mas não pode vê-la. Em desespero, a jovem busca a ajuda de um alquimista local, que lhe recorda a passagem da Bíblia onde se afirma ser o amor “mais forte do que a morte”. Assim influenciada, ela decide se suicidar de modo a poder ir pedir, à própria “Ceifadora”, o marido de volta. O que se vê, a partir daí, é um jogo de três histórias paralelas – ao modo de Intolerância, de Griffith – e como resultado da entrevista com a Morte, no seu “escritório” (uma impressionante sala atulhada de velas que são, na verdade, as precárias vidas das almas). A moça terá três chances de derrotar a “Inimiga”, unicamente com a força do sentimento humano, de maneira a provar a tal supremacia do amor. Só diante disso, a “Tenebrosa” poderá consentir em devolver o marido dessa heroína típica da íntima colaboração de Fritz Lang com a roteirista Thea von Harbou (sua esposa). Lil Dagover foi a jovem atriz escolhida para o papel da decidida esposa germânica, com o acréscimo das três personagens diferentes, nos episódios passados no Oriente Médio, em Veneza e na China. Lil já havia aparecido no clássico de Robert Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari (1920). Mas, no filme de Lang, quem domina a cena é Bernhard Goetzke, “a morte cansada”, criatura mais do que exausta de provocar o sofrimento e a dor, pela definitiva separação das pessoas etc. Talvez por isso é que aflora, na máscara inesquecível composta pelo ator, o traço de uma sutileza não incluída na “Morte” bergmaniana encarnada por Bengt Ekerot: a esperança de se ver, afinal, derrotada. • Continente julho 2006
Edgar Allan Poe
A morte como leitmotiv O escritor norte-americano foi um mórbido e obsessivo cultor do tema tanto em seus poemas quanto em seus escritos em prosa Alberto Oliva
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e for dada a um homem eloqüente e talentoso uma vida de tragédias e incertezas, como serão suas palavras? Ralph Waldo Emerson uma vez escreveu: “O talento só não basta para fazer o escritor. Deve haver um homem por trás do livro”. Certamente há um homem por trás de contos como “A Máscara da Morte Escarlate”, “O Gato Negro”, “A Queda da Casa de Usher” e de poemas como “Annabel Lee” e “O Corvo”. O homem é Edgar Allan Poe, crítico infame, homem atormentado por um passado que modelou sua obra, sombrio e transcendental, respeitado como um dos mais famosos e controversos escritores da literatura mundial. Por obras como “O Corvo”, considerado um dos mais conhecidos poemas de todo o Ocidente, ele assumiu seu lugar junto a mestres como William Shakespeare e Mark Twain no imaginário popular. Porém nos círculos literários, as reações à obra de Poe sempre foram ambivalentes. Escritores franceses, principalmente Charles Baudelaire, já o ovacionaram como dono de um gênio elevado. No entanto, houve reações negativas por parte do novelista americano Henry James que disse que “o entusiasmo pela obra de Poe é o sinal de um período primitivo da reflexão”. Continente julho 2006
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Edgar Allan Poe no traço de Luiz Trimano
Poe acreditava que o estranho era um ingrediente essencial da beleza, e por isso sua obra é frequentemente exótica. Suas histórias e poemas são protagonizados por aristocratas introspectivos e atormentados, personagens que parecem nunca trabalhar ou socializar, apenas se escondem em castelos medonhos e sombrios decorados simbolicamente por tapetes e cortinas que escondem o mundo real de sol, janelas, paredes e chãos. As salas secretas revelam bibliotecas centenárias, estranhas obras de arte e ecléticos objetos orientais. Os aristocratas tocam instrumentos musicais ou lêem livros antigos enquanto lamentam tragédias, sendo elas freqüentemente a morte de entes amados. O tema da morte na vida, como ser enterrado vivo ou levantar do túmulo como vampiro, aparece em muitas de suas obras, incluindo “O Barril de Amontillado”, “Ligeia” e “A Queda da Casa de Usher”. Mas os curiosos cenários criados por Poe não são meramente decorativos. Eles refletem o interior agoniado e funesto das psiques de seus personagens. Eles são expressões simbólicas do subconsciente, e, logo, são centrais em suas obras. Os versos de Poe sempre foram bastante musicais e estritamente métricos. Seu mais bem-conhecido poema, durante sua vida até os dias de hoje, é “O Corvo”(1845). Nesse arrepiante poema, traduzido por Machado de Assis, o atormentado e insone narrador, que está lendo e lamentando a morte de sua “extinta Lenora” à meia-noite, é visitado por um corvo (um pássaro que come carne morta, logo, um símbolo da morte) que fica imóvel em cima de uma porta repetindo o famoso refrão do poema, “nunca mais”. A obra termina numa memorável imagem de morte na vida: “E o Corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e fora Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais!” Grande parte da popularidade de Poe se deve também ao fascínio dado à sua peculiar e afligida vida. Abandonado pelo pai, quando ainda estava amamentando, sua mãe morreu de tuberculose antes de ele completar três anos de idade. Seu irmão William morreu jovem e sua irmã Rosalie foi declarada insana. Anos depois, parcialmente devido à sua própria petulância, Poe brigou e se distanciou para sempre de seu pai adotivo, John Allan, que o retirou da Universidade de Virginia por causa de dívidas de jogo. Em 1836, com 27 anos, ele se casa com sua prima Virginia Clemm, de 13 anos de idade, atitude que já foi interpretada como uma tentativa de ter a vida familiar estável que sempre lhe faltou. Em 1842, Virginia rompe uma artéria e vive como uma inválida até morrer de tuberculose cinco anos depois. Enquanto assistia a lenta morte de sua mulher, Poe se afundava cada vez mais no alcoolismo, doença que o acompanhou e acabou causando a sua morte em 1849. Rufus Griswold, inimigo que Poe curiosamente escolheu para ser o carrasco de seu trabalho, escreveu seu obituário que começa assim: “Edgar Allan Poe está morto. Ele morreu em Baltimore antes de ontem. Sua morte chocará muitos, mas poucos a lamentarão. Muito conheciam o poeta pessoalmente ou por reputação. Ele tinha muito leitores na América e nos países europeus, mas quase nenhum amigo. Se sua morte for lastimada, será porque com ela o mundo literário perdeu uma das mais brilhantes, porém insuportáveis estrelas.” • Continente julho 2006
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MÚSICA
A música sacra brasileira hoje
Compositores contemporâneos continuam a se dedicar à criação de missas, réquiens e outros ofícios religiosos de inspiração tão profunda quanto as da época de D. João VI Carlos Eduardo Amaral
O maestro Clóvis Pereira compôs, em 1978, uma majestosa Grande Missa Nordestina
Alexandre Severo/JC Imagem
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erguntar sobre as principais referências da música sacra brasileira sempre resulta em ouvir nomes do período colonial, como Padre José Maurício Nunes Garcia, Lobo de Mesquita, Manoel Dias e outros de Minas e do Rio, em maior escala. Pesquisadores ainda acrescentam estudos de alto nível e descobertas de obras perdidas ou não catalogadas ao acervo já existente. Por influência da formação católica da época e sem a presença de uma música popular – que estava longe (no tempo) de encontrar sua identidade e longe (no espaço) dos centros de ensino musicais, quase todos religiosos – não poderia ser diferente. Os compositores se aperfeiçoaram na vertente sacra e deixaram peças de qualidade comparável às de grandes mestres europeus do Barroco e do Classicismo. Após a independência, a formação de músicos se renovou com a vinda de profissionais do exterior. A ópera foi ganhando espaço, notoriamente com Carlos Gomes, e as encomendas de obras sacras pelas classes altas diminuiu, como explica o maestro paulista Marcos Câmara: “A tradição musical sacra, no Brasil, deveu-se muito mais às exigências da corte do que à necessidade real dos compositores. Tanto é que, com o início da república, poucos compositores dedicaram-se profissionalmente ao gênero. Henrique Oswald (1852-1931) talvez seja o mais indicado como legítimo compositor de obras sacras brasileiras, embora eivado de tradição européia”. Esse adormecimento da religiosidade na música pósrepublicana foi quebrado por peças esporádicas. Marcos
Câmara destaca peças do paulista Mozart Camargo Guarnieri (1907–1993), como Em Memória de Meu Pai, para coro misto à capela e a Missa Diligite, para coro, solistas, órgão e orquestra, além de uma Ave Maria do mineiro Fructuoso Vianna (1896 – 1976), para voz solista e teclado (órgão ou piano), composta em 1966, em virtude do casamento de sua filha mais nova, Anna Maria Vianna. O maestro ressalta as colaborações em maior escala de Heitor Villa-Lobos (1887–1959) a essa época: a Missa de São Sebastião, para coro a três vozes à capela, o coral O Salutaris, e uma bela Ave Maria, entre outras. Mesmo sendo boêmio e impetuoso, nada introspectivo portanto, deixou valiosas contribuições, que revelam seu valor a partir de comentários como o de um frade amigo e complacente, após a morte do compositor carioca: “Não importa (se Villa-Lobos chegara a receber ou não a extrema-unção). Quem criou a Missa de São Sebastião está liberto de todos os pecados”. No século 20, as mensagens de verdade e perenidade da alma – e a liberdade de expressão instrumental e vocal da música católica romana e protestante – se adequaram a reflexões tão contingentes quanto às do Réquiem de Guerra (War Requiem, 1961), do britânico Benjamin Britten, sobre as destruições deixadas pela Segunda Guerra Mundial, ou a ritmos populares e folclóricos, como a Missa Crioula (Misa Criolla, 1964) do argentino Ariel Ramirez, construída em cima de melodias e ritmos dos Andes e dos Pampas, incluindo o uso do espanhol em lugar do texto originariamente latino. Continente julho 2006
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MÚSICA Reprodução
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Até nossos dias, os textos dos salmos, dos provérbios, das orações diárias, e mesmo o das serenas missas fúnebres, continuam a fornecer um material vasto para os compositores, desmistificando que a música sacra é necessariamente música antiga Villa-Lobos, extrovertido e boêmio, com a Missa de São Sebastião “teria se liberto de todos os pecados”
No Brasil essa amplitude também se fez presente e permitiu um ressurgimento de novas obras, desde a década de 1980. São exemplos as missas em estilo armorial, de Cussy de Almeida, Clóvis Pereira e Capiba, e o semiherege Réquiem Contestado (1993) de Eli-Eri Moura. O compositor paraibano fala sobre o surgimento da peça: “A idéia de escrever um réquiem estava em minha mente desde 1991, quando faleceu meu sobrinho Franklin Moura e eu morava no Canadá, realizando mestrado. O Réquiem foi escrito em 1993, quando já estava de volta ao Brasil, especialmente para o Coral Universitário da Paraíba, e estreou no mesmo ano”. No Réquiem Contestado, os acréscimos do poeta W. J. Solha interferem na recitação do antigo texto litúrgico e criticam incomodamente a súplica ao Poder Divino, mas dão uma trégua no final da peça, embora em tom de resignação, de destino irremediável. O Credo vira literalmente um Non Credo, por exemplo, e o Confiteor (Confesso a Deus) opõe o coro, que clama Mea culpa, ao solista, que acusa “Por Tua culpa” e contesta: “Amar a Deus? Quem conhece o ser humano sabe que não tem nada de secreto o fato de que ninguém ama por decreto”. Eli-Eri Moura conta que a obra não é uma missa fúnebre convencional: “A idéia de Solha era fazer uma ópera ou musical, daí a existência de personagens que afloram no seu texto. Porém as limitações forçaram a realização da obra na forma que está hoje. Note-se que, apesar do nome, a peça não é uma missa de réquiem no sentido tradicional, mas um oratório com referências à Missa Latina e ao Réquiem”. É preciso dizer que formas musicais que eram sacras até no próprio nome, em sua Continente julho 2006
origem, passaram a usar textos profanos a partir do período romântico, em particular a cantata e o oratório. Em tempo, Eli-Eri Moura, em contraste com o parceiro Solha, compôs obras sacras genuínas, entre elas dois salmos, o recém-estreado Cordel da Paixão de Deus, com letra de Tarcísio Pereira, e uma Missa Breve, cujo texto é do mesmo W. J. Solha. Ritmos nacionais, diga-se regionais, integraram-se à música ritualística a partir da década de 1970, através de três composições sem paralelo: a Grande Missa Nordestina (1978), de Clóvis Pereira, a Grande Missa Armorial (1981), de Capiba, e a incompleta Missa Sertaneja (19711973), de Cussy de Almeida. A primeira, majestosa; a segunda, dançante; e a terceira, com um cravo à Vivaldi. Mas as três unem uma orquestração clássica de câmara ao baião, ao xote e outras variantes marcadas por triângulo e zabumba. Cussy de Almeida realizou uma incorporação mais abrangente de ritmos ao elaborar sua Missa do Descobrimento, estreada em 2001 e que abre com um solo de berimbau ineditamente registrado em partitura. Nessa Missa, o Kyrie (“Senhor, tende piedade de nós”) é uma dança de escravos congos; o Gloria apresenta temas de rabeca e um aboio; o Credo traz um toque de trombetas dos índios jurupari e uma cantiga de cego; o Sanctus é um maracatu; o Benedictus mostra uma dança de caboclinhos; e o Agnus Dei é uma bem caracterizada modinha, a cargo de um solo de bandolim. O maestro e violinista justifica sua criação: “O que primeiro me motivou a escrever a missa com a temática escolhida foi a tentativa de reparar um equívoco que
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Amaral Vieira (à esquerda) e Eli-Eri Moura incursionaram com consistência pela música sacra
cometi há cerca de 40 anos, quando comecei a trabalhar com a música de raiz. Ainda jovem me deixei influenciar por terceiros e passei a acreditar que a única música brasileira de origem era tão somente aquela vinda do sertão e que no passado nos foi trazida pelo elemento branco da Península Ibérica. Com o passar dos anos, reconsiderei esse pensamento, afinal somos uma nação miscigenada através de um tripé racial muito bem definido: o índio, o branco e o negro. E como tal não é possível dissociar essas três raças da nossa formação, tanto étnica como cultural”. Até nossos dias, os textos dos salmos, dos provérbios, das orações diárias, e mesmo o das serenas missas fúnebres, continuam a fornecer um material vasto para os compositores, desmistificando que a música sacra é necessariamente música antiga (bi ou tricentenária, no engano dos mais leigos). Marcos Câmara dá a dimensão do potencial de expressividade: “A composição sacra pode ser dividida em três categorias: súplica, agradecimento e exaltação. A arte musical é capaz de expressá-las de diversas maneiras, desde a sinceridade do canto coletivo à capela (sem acompanhamento de instrumentos) até a grandiloqüência coral-sinfônica”. Fora o estímulo transcendente, o financeiro ou institucional desencadeia bons resultados. A encomenda de novas obras não é mais feita por nenhuma corte ou
membro da nobreza, mas pode ser tomada pela iniciativa privada ou pelo poder público. Em 1997, o então prefeito do Rio, Luiz Conde, solicitou peças inéditas a cinco compositores diferentes, que resultaram no Concerto de Louvação, durante a terceira vinda do Papa João Paulo II ao Brasil. Dos nomes mais atuantes da música erudita nacional, destacam-se sobretudo três membros da Academia Brasileira de Música. O carioca Ernani Aguiar, autor de diversas peças sacras, compôs a obra coral brasileira mais gravada até hoje, o Psalmus CL. O paulista Almeida Prado, católico praticante, estreou O Rosário de Medjugorje em 1987. Amaral Vieira, um dos compositores brasileiros mais premiados, reproduz a ambientação das grandes missas barrocas e românticas, como no Te Deum (1984) e no Stabat Mater (1988). Outras cinco músicas suas foram premiadas pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Amaral Vieira diz, porém, que não cria peças religiosas há algum tempo: “Nos últimos cinco anos não compus obras sacras. Neste ano tenho duas encomendas de obras, uma do Brasil e outra da França. Uma obra para piano e orquestra tem estréia em São Paulo, em novembro deste ano, e a segunda, um concerto para piano e coro, estréia em março de 2007 na França. Não são obras sacras”. • Continente julho 2006
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Jovens levam música erudita ao Interior Chesf patrocina turnê da Orquestra Sinfônica Jovem de Pernambuco, do Conservatório Pernambucano de Música
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Conservatório Pernambucano de Música permanece discreto e sóbrio em seu reduto na Av. João de Barros, na Boa Vista; firme no propósito de catequese musical. Uma novidade, no entanto, surgiu para reciclar, mesmo que sutilmente, essa atmosfera tradicional e conferir maior visibilidade ao trabalho da instituição. Acostumados a realizar concertos pontuais em igrejas, teatros e auditórios de livrarias, a Orquestra Sinfônica Jovem (OSJ) do CPM, sob o patrocínio da Chesf, experimenta, pela primeira vez, uma vivência profissional e sai em turnê remunerada, levando a música instrumental a municípios do Agreste pernambucano, caso de Bezerros e Garanhuns e, ainda a outras cidades nordestinas: Olinda, Maceió, Campina Grande, Natal e Fortaleza. Intitulado Circuito Sinfônico Chesf, o projeto prevê 14 concertos até novembro. São duas temporadas; a Agreste toma os meses de junho, agosto setembro e novembro, incluindo oito concertos, enquanto a Nordeste acontece num intervalo da primeira programação; durante o mês de outubro Na programação estão obra de alguns dos maiores nomes da música erudita internacional, como Mozart, Beethoven, Schubert, Tchaikosvsky e Villa-Lobos, além dos pernambucanos Clóvis Pereira e José Siqueira. A OSJ possui toda estrutura de uma orquestra sinfônica profissional. A cada apresentação, violinos, violas, violoncelos, flautas, clarinetes, trompas, trompetes, fagotes, contrabaixo, flautas, clarinetes, oboés, trombones, tuba e percussão se harmonizam sob o comando de 70 jovens, escolhidos, através de testes, entre os mais de mil estudantes do Conservatório. São necessários pelo menos cinco anos de estudo sério para ingressar no conjunto, o que tem se refletido no virtuosismo das apresentações. O espetáculo da OSJ, funciona como um imã para ampliação do público apreciador. "Estamos aproveitando a oportunidade para realizar execuções especiais para as crianças no Agreste, com o objetivo de cativá-los", informa José Renato Accioly, um dos maestros da Orquestra e
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professor do Conservatório. Sérgio Barza, também professor do Conservatório, é o outro regente. O projeto tem o mérito de garantir aos jovens a continuidade do estudo musical e o aperfeiçoamento profissional. "Quando a adolescência vai chegando ao fim, muitos estudantes se vêem obrigados a abandonar o estudo da música para se alocar no mercado de trabalho convencional. O Circuito aparece como alternativa, visto que os instrumentistas estão, graças ao patrocínio da Chesf, recebendo cachê pelas apresentações", detalha Accioly.
Programação Circuito Sinfônico Chesf Turnê Agreste: 25/8, Bezerros - Matriz de São José, 18h30. 26/8, Garanhuns - Teatro do Centro Cultural, 16h00. 22/9, Bezerros - Matriz de São José, 18h30. 23/9, Garanhuns - Teatro do Centro Cultural, 16h00. 24/11, Bezerros - Matriz de São José, 18h30. 25/11, Garanhuns Teatro do Centro Cultural, 16h00 Turnê Nordeste: 6/10 - Teatro Deodoro, Maceió - 20h30. 7/10 - Igreja da Sé de Olinda - 20h30. 8/10 - Teatro Severino Cabral, Campina Grande - 19h. 9/10 - Auditório da Escola de Música da UFRN, Natal - 20h30. 11/10 - Teatro José de Alencar, Fortaleza - 20h30. Serviço: Conservatório Pernambucano de Música (Av. João de Barros, 594, Boa Vista, Recife - PE). Fone: 81. 3231.3315 / 3421.9285
AGENDA/MÚSICA Voz e violão Jussara Silveira e Luiz Brasil em Nobreza retomam o voz e violão numa época onde samplers, teclados e efeitos estão por toda parte. O que poderia ser um estranho no ninho musical se apresenta como uma opção mais intimista e sofisticada e bem longe do clima barzinho. O álbum com 13 faixas bom gosto passeia por compositores consagrados como Vanzolini, Chico Buarque, Caetano Veloso, Lupicínio Rodrigues, Djavan, Moraes Moreira e há espaço para os contemporâneos Carlinhos Brown e Zé Miguel Wisnik. A dupla esta entrosada Luiz Brasil é mais do que um mero acompanhante. As faixas “O Sol Enganador (Tango Russo)” e “Baião de quatro toques”, dois momentos sublimes desse CD que se não inova, tem muita qualidade. Nobreza. Biscoito Fino, preço médio R$ 28,90
Conexão Joyce é uma das artistas brasileiras mais respeitadas no exterior, Dori Caymmi é um dos mais respeitados compositores e arranjadores da segunda geração da bossa-nova. Joyce e Dori chegam com o CD Rio – Bahia, ironicamente gravado em São Paulo, com música brasileira voltada para o mercado estrangeiro, o CD feito em 2005, para as gravadoras Far Out, de Londres, e JVC, de Tóquio. Os autores dividem os vocais e boa parte das composições, destas se destacam a faixa-título “RioBahia”, composta pela carioca, e a bela “Fora de Hora” parceria do baiano com Chico Buarque e cantada por Joyce. É samba com elegância para inglês (e japonês) ver. Rio – Bahia. Maianga Disco, preço médio R$ 25,00.
Tom e Mangueira Lançado em1991, esse No Tom da Mangueira reúne 14 faixas do que Hermínio Belo de Carvalho chamou de “hinário” da lendária escola de samba do Rio. Reúne músicas sobre a lendária escola ou compostas pelo pessoal da velha guarda, além de Noel Rosa, Herivelto Martins, Grande Otelo e um time de intérpretes, eclético, que vai do portelense Paulinho da Viola e Benito de Paula, Caetano, Chico, Ney Matogrosso, Gal, Raphael Rabello, Alaíde Costa, além claro de Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus. Tom Jobim entra em duas faixas e no título. No Tom da Mangueira, Jobim Biscoito Fino, R$ 28,90.
Quinteto Brasilianos, o novo CD de composições do bandolinista Hamilton de Holanda, é uma parceria da Biscoito Fino com o Selo Brasilianos. O disco tem músicas da lavra de nomes importantes da nossa história artística, como Pixinguinha, Milton Nascimento e Hermeto Pascoal, executadas por Daniel Santiago, violão; André Vasconcellos, baixo elétrico; Márcio Bahia, bateria, e Gabriel Grossi, gaita, que se juntam ao próprio Hamilton para formar o Hamilton de Holanda Quinteto. São cinco solistas, cada qual em sua especialidade e todos têm seus espaços, seja no traçado do violão em “Pedra da Macumba”, a leveza da bateria de Márcio em “Pra Você Ficar”, o solo de gaita em “Pra Sempre” ou o som profundo de baixo em “Valsa em si”. Além das composições do próprio Hamilton, há uma versão jazística de “Procissão” de Gil e um novo arranjo para “Trenzinho do Caipira” de Heitor Villa-Lobos. A música que dá título ao disco é um baião que lembra Milton Nascimento nas mudanças de andamentos e ritmos. Brasilianos é um manifesto pela musicalidade e uma tentativa de anunciar um movimento da música instrumental brasileira, que se espraia entre o popular e o erudito. As músicas podem ser executadas por um simples assobio, ou por um quinteto.
Brasiliano. Biscoito Fino, preço médio R$ 28,90
Violão & Violão O violonista Marcus Tardelli lança seu primeiro CD, Unha e Carne, interpretando seu amigo Guinga. O álbum privilegia as várias faces de um compositor que compreende as manifestações populares brasileiras. A variedade de ritmos e técnicas impressiona: há valsa, choro, baião, frevos tudo composto por Guinga, que abriu mão de gravar um disco no violão para ouvir suas músicas tocadas pelo amigo e acertou. A indubitável qualidade de Tardelli como arranjador fica clara em faixas como “Capital”, “Dichavado” e “Cheio de Dedos”, choros com arranjos cheios de swing. A pequena apresentação de três choros que finaliza o disco cria a sensação de que, apesar de contar com apenas um violão, o som é de uma orquestra. Tardelli compreende a sofisticação sonora das manifestações populares do Brasil e impõe, com autoria e propriedade, aspectos de música clássica. Unha e Carne. Biscoito Fino, preço médio R$ 28,90. Continente julho 2006
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A arte de Clementina Colar em ouro branco, diamantes e esmeralda (1990)
Criadora de uma jóia tipicamente brasileira, a designer Clementina Duarte conquistou o mundo com seu trabalho ímpar Marco Polo
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que seria a jóia brasileira? Seria uma mistura do desejo de adorno dos vários povos que nos formaram, buscando as mais belas formas. E como seriam as formas? Busquei na arquitetura antiga os traços da nossa mais verdadeira expressão, o Barroco, e na arquitetura moderna, de Oscar Niemeyer, a síntese e a beleza do moderno. Nossas jóias seriam também exuberantes, registrando a natureza, com seus frutos, suas folhas, suas ondas e os desenhos na areia da praia.” Para a designer pernambucana Clementina Duarte, autora da declaração acima, a decisão de criar uma jóia brasileira – como já existia uma arquitetura brasileira, um mobiliário brasileiro, uma pintura e uma escultura brasileira – foi o ponto de partida para seu sucesso. Sucesso este que já dura mais de 40 anos, tendo recebido alguns dos mais importantes prêmios de sua área, como o de Melhor Desenho de Jóias da 1ª Bienal Brasileira de Design, o 1o Prêmio da 11ª Bienal de São Paulo e o Fine Jewellry Designer, de Nova York. Como se não bastasse, há 20 anos o governo brasileiro oferece objetos e jóias da designer a visitantes oficiais, como o Imperador do Japão, o Rei da Espanha, as rainhas Elizabeth II, da Inglaterra, e Silvia, da Suécia, além das primeiras damas dos Estados Unidos, da Rússia, de Portugal e de muitos outros países.
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Essa trajetória está registrada no livro Clementina Duarte – A Arte e o Design da Jóia Moderna Brasileira, sob coordenação editorial da norte-americana Cynthia Uninnayar, que reúne depoimento da própria artista e textos de personalidades que escreveram sobre ela e sua obra, como Gilberto Freyre, Oscar Niemeyer, o escritor Joaquim Falcão, o arquiteto português José Sommer Ribeiro, a arquiteta francesa Charlote Perriand, o presidente da Academia Brasileira de Letras, escritor Marcos Vinicios Vilaça, a jornalista paulista Adélia Borges e o crítico de arte Casimiro Xavier de Mendonça. O livro, bilíngüe em português e inglês, traz também capítulos especiais sobre jóias personalizadas, jóias esculturais, jóias recriadas, jóias do cotidiano e um registro das primeiras jóias criadas por Clementina. É complementado com uma cronologia da designer, bibliografia com 160 artigos publicados em jornais e revistas do Brasil e do mundo e 300 fotos de jóias e objetos criados pela pernambucana. Clementina Duarte começou a criar jóias para si mesma em 1966, quando, através de uma bolsa de estudos, viajou para a França a fim de estagiar nas cadeiras de Estética, História da Arquitetura Medieval e Design, num curso dirigido por Jean Prouvé. Um dia, o professor notou uma jóia que ela usava e perguntou quem a tinha desenhado. “Ao dizer que era criação minha, ele imediatamente procurou convencer-me de que era tão importante o trabalho que havia feito, que deveria seguir profissionalmente esse caminho”, conta ela. No alto, a artista. Abaixo, pulseira de ouro (1982)
Brincos em ouro branco, diamantes e turmalinas (2004)
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DESIGN Clementina passou um ano elaborando uma coleção que foi exposta na Galeria Steph Simon, no Boulevard Saint Germain, em Paris, galeria esta que editava os mais inovadores designers da Europa, como Charlotte Perriand e Le Corbusier. E foi lá que Pierre Cardin conheceu o trabalho da brasileira, imediatamente convidando-a para desenhar uma coleção exclusiva para ser lançada durante o seu desfile Primavera/Verão de 1967. Com um começo tão auspicioso, a designer começou a arrebanhar prêmios e a ser convidada para representar o Brasil em exposições na Itália, nos Estados Unidos e na Inglaterra, entre outros países. Ao longo de seu trajeto, Clementina Duarte desenvolveu algumas vertentes no seu trabalho. Uma que destaca é composta das jóias personalizadas. São trabalhos que lhe dão um particular prazer, por interagir com a pessoa para quem a jóia está sendo criada. Transcendem, por isso, o papel de simples objeto de adorno, passando a exprimir em sua última forma a personalidade, a energia da pessoa para a qual foi feita. Além de serem peças únicas, de alta joalheria. Outra vertente de destaque está nas jóias esculturais, nas quais Clementina exerce seu conhecimento do barroco brasileiro. São criações em pérolas, ouro, diamantes e esmeraldas, onde Conjunto de colar e brincos em ouro, rubis e diamantes (2000)
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DESIGN
“Busquei, na arquitetura antiga, os traços da nossa mais verdadeira expressão, o Barroco, e, na arquitetura de Niemeyer, a síntese e a beleza do moderno”
Coleção Espaço, colar e brincos em ouro branco e amarelo (1985)
se pode dizer que a artista “consegue perfeitamente combinar o sonho de ser princesa com a realidade de ser mulher”. Tanto que, ao representar a jóia brasileira nos Emirados Árabes, com uma coleção de jóias esculturais, foi convidada para confeccionar as jóias de casamento da princesa S. H. Shamma Bint Zayed Al Nahyan. Algumas vezes Clementina é procurada para aproveitar alguma jóia herança de família como matéria-prima para uma jóia nova. Procurando preservar os elementos da jóia antiga e contextualizando-a num design moderno, numa fusão quase mágica, que acaba valorizando os dois estilos. Por outro lado, ao pesquisar o comportamento da mulher moderna, no trabalho e no lazer, Clementina Duarte preocupou-se em criar mais uma vertente para seu trabalho: as jóias do cotidiano. Confortáveis, práticas, de linhas simples, mas elegantes, já são consideradas clássicas dentro do seu leque de criações. Em todas estas vertentes, Clementina Duarte mantém a qualidade verClementina Duarte – A Arte e o Design da tiginosa que levou Niemeyer a imaginar como ficariam lindas as suas jóias Jóia Moderna Brasileira, edição de nos pescoços e colos das mulheres pintadas por Modigliani. Um ver- Cynthia Uninnayar, Athalaia Gráfica e Editora, 270 páginas, R$ 150,00. dadeiro sonho de artista. • Continente julho 2006
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FĂŞmeas MĂŁos Fotos de Camila Targino
Uma iconografia do artesanato em Pernambuco
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êmeas Mãos é o nome de um documentário que apresenta fotografias sobre o cotidiano dos artesãos em Pernambuco. Sua maior característica é priorizar imagens do artífice, na relação com a natureza que o circunda, distanciando-se das imagens estereotipadas da produção do artesanato, veiculadas constantemente pelos meios de comunicação de massa. A grande maioria das fotografias – captadas entre 2001 e 2006 – focam o semi-árido pernambucano, nas regiões onde o artesanato tem uma projeção importante para as comunidades, constituindo-se na sua principal fonte de renda. Foram visitadas as seguintes cidades com especialidades de artesanato: Sertão: Ibimirim: madeira; Petrolina: madeira e barro; Sertânia: madeira; Tacaratu: tear manual. Agreste: Bezerros: papel machê; Cachoeirinha: aço e couro; Caruaru: barro; Limoeiro: bordado ponto cheio; Orobó: "frivolité" (tipo de renda); Passira: bordado ponto cheio; Poção: renda renascença; Riacho das Almas: cipó. Zona da Mata: Aliança: bordado com lantejoula (para vestes de maracatu); Lagoa do Carro: tapete; Timbaúba: tear manual; Tracunhaém: barro; Zona Metropolitana do Recife: Pina, Beberibe e São José: bordado e costura no Carnaval. •
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Exposição Fêmeas Mãos. Fotografias de Camila Targino. A partir de 6 de Julho de 2006. Local: Nova sala de exposição do Museu da Cidade do Recife (Forte das Cinco Pontas). A exposição é resultado do incentivo do Prêmio BNB de Cultura (Banco do Nordeste do Brasil).
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
O lampejo da morte Dos mais pobres aos mais poderosos, dos mais simples aos mais sábios, em qualquer tempo, sofremos a mesma perplexidade e incerteza
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izem que existe fidelidade entre os casais de cisnes e que quando morre um deles, o outro não demora muito tempo vivo. Não é um achado comum no reino animal. As mães defendem seus filhotes, e há relatos de alces que se entregam à mira dos rifles dos caçadores, para proteger as manadas. Fomos pródigos em atribuir sentimentos de lealdade e servidão aos bichos, em elegêlos como símbolos de qualidades humanas. O bode simboliza a força vital, a libido, a fecundidade. A tartaruga a regeneração, a estabilidade e o conhecimento. O corvo é considerado de mau agouro, pode atrair desgraça. O boi é um símbolo de bondade, de calma, de capacidade de trabalho. A águia é a rainha das aves, Continente julho 2006
substituta ou representante das mais altas divindades. E o tigre só comporta sinais negativos, as idéias de poder e ferocidade. Cada povo criou uma mitologia própria em torno dos animais, celebrando-os em cultos e adorações. Atribuíram coragem, lealdade, argúcia, inteligência, honradez, mesquinhez e covardia aos seres que os livros de zoologia classificam de irracionais. Em alguns povos, os feitos heróicos das tribos são prerrogativas animais. Personagens míticas ora adquirem forma humana, ora retornam ao estágio animal, na forma de jabuti, raposa, onça, ou o que seja. No clássico Ramayana, o mais famoso relato épico da Índia, um dos heróis centrais da narrativa é um macaco, Ranuman.
ENTREMEZ
A mitologia e o imaginário em torno dos animais remontam ao tempo em que vivíamos próximos deles, caminhando atrás das manadas, caçando ou esperando que algum morresse, para nos alimentar. A Epopéia de Gilgamesh, poema mais antigo de que se tem registro, relata o ardil usado para separar o herói Enkidu das gazelas com quem ele vivia, comendo, dormindo, e transando. Passados milênios, desgarrados da natureza e do sagrado, já não somos capazes de imaginar o quanto fomos próximos dos outros animais. Esses que exterminamos a cada dia, até que não reste nenhum para contar a história. A intimidade que nos fazia quase iguais, a ponto de nos confundirmos nas fabulações e nas lendas, com o passar do tempo mostrou sutis diferenças. Imagine um pequeno agrupamento humano seguindo de perto uma manada de antílopes. Imagine que um dos antílopes se machuca e morre, mas a manada prossegue, em busca de água e pastagem. O semelhante é deixado para trás, sem lamentos, sem pranto, sem honras funerárias. Imagine que num outro dia, num tempo em que a média de vida humana era de 20 anos, um dos velhos da tribo nômade adoece e morre. A marcha cessa, os membros da tribo gritam, a companheira do morto arranca os cabelos e cobre a cabeça de cinza. Quatro rapazes são despachados para acompanhar a manada e não perdê-la de vista, enquanto as outras pessoas preparam os rudimentos de um funeral. Cavam um buraco na terra, enterram o corpo enrijecido, e ao lado dele depositam seus poucos pertences: a lança, o arco, as setas, um colar de pedras. O trajeto para a consciência da morte talvez represente o grande passo na evolução do homem, o que mais o diferenciou na escala animal. Retornemos bem mais longe nessa caminhada em rebanho, ao instante em que um primeiro homem, ou um rudimento do que seria um homem, contempla seu semelhante caído, e tenta que ele se mova ou emita um som. Nada. Há bem pouco, esse que agora já não se move, subia em árvores, atirava pedras num antílope, brigava por um pedaço de carne. Nada. O companheiro se agita, tenta mover as mãos do morto, enfia o dedo em sua
boca. Nada. Pela primeira vez, desde que esses homenzinhos ocupam o planeta, um deles tem a consciência de que algo que foge ao controle e à vontade aconteceu: a morte. Ele tenta comunicar sua descoberta aos outros, simbolizá-la. Uma dor que difere do sofrimento físico se insinua dentro dele, mas ele ainda não sabe o que ela significa. O bando parte. Nosso primeiro homem consciente da morte caminha e olha para trás. O companheiro não se move e isso o incomoda. O corpo permanece estirado no chão, do mesmo modo que o antílope. A manada segue em frente, insensível. Nosso herói se inquieta, teme prosseguir. Um novo conhecimento se insinua nele. Difere da técnica de produzir fogo, do manejo do arco, da coleta de um fruto. Nosso herói foi iniciado na subjetividade da morte. Estamos nos primórdios da história do homem. Ele já pergunta por que deixamos de ver, de ouvir, de caminhar, e de falar. Elabora imagens sobre a morte, tenta representá-las. Surgem rudimentos de cidades, aumentam os agrupamentos e as questões se alargam. A morte é para sempre, ou apenas transitória? Teremos uma outra vida depois dessa, num lugar longe daqui? As perguntas se transformam em representações na pintura, na poesia, na música, no teatro e na dança. Surgem a arte e a filosofia. Fundam-se as religiões, elaboram-se os conceitos de alma e espírito. O melhor registro da história do homem se fez em urnas funerárias, em covas rudimentares, potes de argila, túmulos luxuosos ou pirâmides. Suspeitando que do outro lado da morte poderiam necessitar dos bens que possuíam na terra, os homens criaram rituais de sepultamento. Alguns levavam junto consigo o navio, o cavalo e as armas. Outros se enterravam com esposas, escravos, animais de estimação, roupas, jóias e mobílias. Dos mais pobres aos mais poderosos, dos mais simples aos mais sábios, em qualquer tempo, sofremos a mesma perplexidade e incerteza. A pergunta que se fez o nosso herói primitivo continua sem resposta. O caminho da morada do outro lado só possui o desenho de ida. Perdeu-se o traçado da volta. Desde muito o procuramos em vão. • Continente julho 2006
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Marcelo Pereira: estréia consistente
Próxima estação: nossa língua Uma viagem pelo Museu da Língua Portuguesa revela muito sobre a formação da nossa identidade por meio das mais diversas e avançadas mídias Eduardo Cruz
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Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em 20 de março passado, na Estação da Luz, em São Paulo, primeira instituição totalmente dedicada ao idioma de um país, é um museu vivo de uma língua viva com toda a modernidade do século 21, com novas formas de relacionar seu acervo com o público. O conteúdo é instigante e vasto e nos fala e mostra muito sobre linguagem, a história da língua, os inúmeros idiomas que ajudaram a formá-la, tudo através das mais diversas mídias. Não se faz uma visita através da visão de uma sucessão de objetos e textos afixados às paredes: o visitante é convidado a interagir com as palavras, construir frases em uma verdadeira viagem sensorial e subjetiva pela língua, através de filmes, audição de leituras e diversos módulos interativos.
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Logo na entrada, no térreo, está instalada a Árvore da Língua, criada pelo arquiteto e designer Rafic Farah. Nas folhas são projetados os contornos de vários objetos e suas raízes são formadas por diversas palavras. A instalação tem o toque final com o mantra, composto por Arnaldo Antunes, que brinca com as palavras “língua” e “palavra” ditas em vários idiomas. Começando pelas raízes, você vai ler palavras com seis mil anos de idade, provenientes do indo-europeu, tataravô do nosso português. Subindo pelo tronco, as palavras em movimento, enquanto você também é envolvido pela música “Língua Palavra”. A Estação da Luz era a primeira visão de São Paulo dos imigrantes que chegavam de trens vindos do Porto de Santos e hoje continua a abrigar, diariamente, sotaques vindos de todas as partes do país. O museu foi
Luciano Bogado/Divulgação
Divulgação
REGISTRO
Pelos vários pavimentos do Museu empreende-se uma viagem lúdica pela língua portuguesa
instalado no prédio acima da plataforma, onde, no início do século 20, funcionavam os escritórios da companhia férrea. O projeto arquitetônico é de Paulo e Pedro Mendes da Rocha, pai e filho, pela primeira vez trabalhando juntos. A museografia leva a assinatura de Ralph Appelbaum, que tem em seu currículo o Museu do Holocausto, em Washington, e a Sala de Fósseis do Museu de História Natural, em Nova York. Sotaque dos escravos – Em um exercício da palavra vamos tentar dar uma pequena idéia do que é uma visita a esse fantástico museu. Nossa primeira parada é no Auditório que fica no terceiro piso, ali com recursos audiovisuais, vamos conhecer a origem da linguagem e das línguas, da multiplicidade das línguas do mundo e do fenômeno específico do português do Brasil, essa língua tropical e mestiça. O visitante assiste a um filme criado por Antônio Risério e dirigido por Tadeu Jungle onde estão misturados, Pelé, Chaplin, Gandhi, Clementina de Jesus e Cazuza, entre outros. O filme de 10 minutos é exibido sobre um telão que se revela como uma grande porta basculante que abre caminho para o próximo ambiente, a Praça da Língua. A Praça da Língua é uma antologia visual, ou um verdadeiro “planetário da língua”, composto de imagens
e áudio. Essa antologia da literatura brasileira – escolhida por José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski – durante 20 minutos apresenta textos de alguns dos maiores romancistas e poetas em todos os tempos, evidencia o processo de criação na nossa língua. Textos de autores como Gonçalves Dias, Machado de Assis e Oswald de Andrade são misturados a letras do cancioneiro popular. Imagens e palavras são projetadas no teto, reforçando a idéia de um planetário. Pisam-se nas palavras, os textos são refletidos no chão, num imenso círculo feito de vidro escuro. A antologia é ouvida na voz de narradores como os cantores Chico Buarque e Zélia Duncan e os atores Matheus Natchtergaele e Gero Camilo, entre muitos outros. Esse mesmo espaço conta com uma arquibancada que também poderá ser utilizada como palco para apresentações de peças e palestras. Dali seguimos para o segundo pavimento onde está a Grande Galeria. Nela iremos encontrar os filmes que mostram a língua portuguesa no seu cotidiano. É composta por um grande painel (tela de 106m com projeções de imagens e trabalho sonoro), uma espécie de mural em movimento, “revelando que a língua é a argamassa do país, a tecnologia das tecnologias”. São 11 filmes, de seis minutos, que tratam dos temas: cotidiano, música, relações humanas, culinária, natureza e cultura, raiz lusa, Continente julho 2006
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REGISTRO religiões, festas, carnaval, futebol e danças. Eles foram produzidos pela TV Zero, Magnetoscópio e Já Filmes. São 40 projetores conectados a computadores e que entre as exibições formam uma imagem única, como liquefazendo a parede e mostrando o que ocorre por trás dela, a chegada na gare de um moderno trem. Depois teremos os oito totens que formam as Palavras Cruzadas. Cada um deles dedicado às influências das línguas e dos povos que contribuíram para formar o português do Brasil. Ali o visitante pode interagir e descobrir a origem de muitas palavras usadas até hoje no vocabulário dos brasileiros. São duas lanternas dedicadas às línguas africanas, sendo uma para quicongo, quimbundo e embundo e a outra ao ioruba e eve-fon. Duas outras dedicadas às indígenas (tupinambá e línguas de hoje). E ainda uma para espanhol, uma para inglês e francês, uma dedicada às línguas dos imigrantes e, a última, o Português pelo mundo. As curiosidades são muitas, e entre as selecionadas
pelo professor Aryon Rodrigues está “jaguar”. Poucos sabem que o nome imponente dado ao carro de fama é de origem tupi. Segundo a professora Yeda Pessoa de Castro, a principal responsável pela incorporação das influências africanas é justamente a “mãe preta”. “A ama de leite, empregada, cozinheira e mucama era responsável pela criação dos filhos dos senhores de engenho. Assim, o vocabulário das gerações seguintes foi enriquecido com vários termos africanos”. A professora Yeda nos explica ainda o que distanciou a forma de falar entre portugueses e brasileiros. Diz que o Brasil “acabou adotando o sotaque dos escravos. Isto é, as vogais são sempre pronunciadas, o que torna a fala mais clara e de fácil compreensão. Já os portugueses pronunciam cada vez menos as vogais, o que dificulta o entendimento para quem não está acostumado”. Yeda de Castro dedicou sua tese de doutorado a essa questão e acrescenta que o português falado no Brasil está mais
Totens mostram, interativamente, contribuição das línguas indígenas ao vocabulário brasileiro
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Luciano Bogado/Divulgação
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Juan Guerra/Divulgação
Luciano Bogado/Divulgação
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Detalhe da exposição Grande Sertão: Veredas, organizada por Bia Lessa (foto ao lado)
próximo da estrutura prosódica, isto é da pronúncia do português antigo. Continuando nossa viagem de conhecimento pelo museu, iremos mergulhar em uma história que começa em 4.000aC. Chegamos à Linha do Tempo da História da Língua Portuguesa. Esse último espaço da exposição é formado por três linhas paralelas: a linha da língua portuguesa, a linha das línguas africanas, e a linha das línguas ameríndias. A partir do século 16, as três linhas se fundem em uma única: a Linha do Português do Brasil. Durante o percurso, o visitante é estimulado a aprofundar seus conhecimentos nas telas interativas e a assistir aos vídeos que ajudam a contar essa história do idioma falado no país. O museu também conta com espaços lúdicos. É assim com o Beco das Palavras, sala com jogo eletrônico interativo que permite brincar com a criação de palavras e, ao mesmo tempo, aprender sobre a etimologia dos termos usados atualmente. O Grande Sertão – O primeiro piso abriga a área de exposições temporárias, os terminais multimídias, o corpo de reflexão da instituição, os escritórios de gestão do conteúdo, as atividades educativas e a programação da entidade. E é lá que está a grande exposição temporária. A primeira é uma mostra comemorativa dos 50 anos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. A diretora teatral Bia Lessa assina a concepção e a curadoria da
mostra, num espaço também interativo e com efeitos cenográficos. Bia criou sete caminhos, cada um deles correspondente a um personagem (Riobaldo, Diadorim e o Diabo tem as suas trilhas) ou um aspecto do livro. O que fascina é que essa é uma exposição sem fotos ou imagens, é construída com palavras. A ambientação procura “recriar” o sertão: o chão é de cimento e as janelas são abertas para a luz natural. Não há a preocupação de mostrar, didaticamente, textos e imagens de Guimarães Rosa. A idéia é fazer o público mergulhar no livro e na revolução de linguagem que ele provocou. O público tem o prazer de ouvir uma participação especialíssima – uma gravação com trechos do livro narrados pela cantora Maria Bethânia. O Museu da Língua Portuguesa é um espaço democrático. Basta ver seu público eclético nas enormes filas que têm se formado para a sua visitação. Ali se encontram escritores e acadêmicos, estudantes, donas de casa, jovens descolados e se ouve por ali todos os sotaques e gírias, dessas que dão novos sentidos a palavras conhecidas. Ali as noções de “língua culta” e de “erro e acerto” não foram uma preocupação na elaboração da exposição permanente, que trata a língua como um patrimônio dinâmico, em transformação constante. •
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Bem-comum, mal comum (1) A segurança da nossa democracia, há muito questionada, nunca esteve tão perto do retrocesso
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ois choques representativos na vida política brasileira foram a Revolução de 1930 e o Golpe de 64 – também chamado de revolução de março de 1964 pelos militares. Um despertar de consciência política, entre tantas, como a passagem de fases rebeldes nas idéias, ideologismos na literatura, religião do povo, especificamente nas cabeças dos jovens de duas épocas distintas espalhadas na educação e costumes coloniais ainda em voga na disciplina paternalista de então. E, com uma série de inquietações, analistas políticos e religiosos daquelas décadas se alternaram, em sua maioria, uns ao dirimirem o que nem de longe conceberiam ou haviam pensado e outros que se esqueceram do que aprenderam na prática com a arte política, sem, no entanto, acompanharem as teorias do cientificismo político de pensadores e historiadores. Seria, por acaso, uma subordinação aos princípios de uma geração que se desiludira da República, como escreveu em 1932 o pensador católico Alceu Amoroso Lima, normatizando teses que ainda hoje se mostram atualíssimas. Misturadas, óbvia e principalmente, em certos pormenores dos segmentos sociais que enchem uma vida extensa de inúmeros confrontos ideológicos no país e uma fome mágica interna dos governantes de nunca largarem o poder, adoçando ou salgando regimes de toda sorte tiranos, confundindo-nos em seus jeitos de fazerem política num país de proporções geograficamente complicadas. A República, imponente, apagou a Monarquia, imácula e salvadora, ornando um novo Século 20 de esperanças numa política de liberdade sem libertinagem – uma democracia até hoje, outro século de um iniciante terceiro milênio, bamba e ao mesmo tempo insólita, embora bem mais astuta e mais sólida do que outrora, se percebermos como a mesma é falada e suscitada com uma tranqüilidade preocupante pelos políticos corruptos. Rouba-se com liberdade. Mente-se com regularidade oficial. Falam ao público, através da imprensa
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escrita, falada e televisada, com um cinismo fácil de achar que todos têm o direito de dizer o que querem perante uma platéia de eleitores abismados e revoltados diante tal espetáculo. E apregoam – leia-se os governistas de cada gestão – que é por isso que vivemos numa segura democracia, como se democracia fosse um salvo-conduto para toda sorte de descalabros durante seus mandatos, a partir de declarações de quaisquer desses políticos sem consciência, sem ética, sem dignidade, sem-vergonha. O que é a política? É a ciência e a arte do bemcomum. E três elementos foram, nessa definição, detectada e estudada por especialistas como Alberto Tôrres, seguindo as pegadas ensaístas de André Gide, muitas vezes contradizendo-o. Pois bem, os elementos encontrados são eles: a Sociedade, o Estado e o Governo. E assim, cada um deles refletirá na constituição do tema de cada um dos três capítulos doutrinários sobre o grande entrave da política. Já não posso, hoje, entender um país como o Brasil haver abstraído essa definição de sua própria realidade por princípios concretos. Acredito, sim, que a política, no modelo para o qual é usada pelos seus "missionários" – caudilhos, em respeitada minoria –, de uma sociedade cuja população se verga ao vandalismo e à falta de educação como linha-mestra de se fazer uma grande nação, para Monteiro Lobato, "com homens e livros". Tudo em nome de bem-comum. Onde ficou a política como arte do bem-comum? A segurança da nossa democracia, há muito questionada, nunca esteve tão perto do retrocesso, visto os governantes colocarem em prática a desordem institucional no seio da sociedade, o que a análise das exigências dos princípios determinam. Os políticos só pensam no individualismo, nunca no estatismo pelo bem do coletivo. É o mal comum se instalando sobre nossa liberdade. •
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