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Pio Figueirôa
EDITORIAL
Antunes Filho, com o ator Lee Thalor (Quaderna) e elenco, dirigindo ensaio de A Pedra do Reino: personagem salta da estante para o palco
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Personagem mítico
Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vaie-Volta, como Macunaíma, de Mário de Andrade, ou Ulisses, de James Joyce, é um romance-tese. Se Andrade procurou definir o caráter nacional e construir uma língua brasileira e o irlandês apontou os caminhos para a prosa do século 20, desconstruindo a narrativa de tudo que veio antes e cujo ápice era Flaubert, Suassuna põe na boca de Quaderna, seu mítico personagem, o objetivo a que se propôs: “eu criei um gênero literário novo, o romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja!” Na realidade, Ariano vai além dessa meta nada modesta, lançando em forma de romance um manifesto estético e uma proclamação política. Não seria ocioso lembrar a história do autor como professor e ensaísta de grande erudição nos campos da história da arte e da estética. A personalidade polêmica do autor e a radicalização apriorística que o cerca e à sua obra (no caso dA Pedra do Reino agravada pelo fato de ser o tipo de livro muito citado e pouco lido) têm, em alguma medida, dificultado um debate menos passional, capaz de lançar luzes sobre a obra colossal, êmula de gigantes literários como Os Sertões e Grande Sertão: Veredas. Não foi à toa que figurou como único romance de
autor vivo na enquete da Continente sobre o cânone brasileiro (nº 66, junho/2006). Seu protagonista, dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna – uma metáfora do intelectual brasileiro, obcecado entre o picaresco e o épico –, está emprateleirado ao lado de Riobaldo, Policarpo Quaresma, Ponciano de Azeredo Furtado, Vasco Moscoso de Aragão e Capitu, na estante dos grandes personagens brasileiros. E ei-lo que salta, agora, das páginas do livro para o palco do teatro e a tela da TV, em empreitadas arrojadas dos diretores Antunes Filho e Luiz Fernando Carvalho. É sobre este salto acrobático a reportagem de capa desta edição. Outro destaque é o Especial sobre García Lorca, o poeta e teatrólogo andaluz que há 70 anos tombava nas barrancas de Sierra Nevada, tornando-se talvez a mais famosa vítima na Guerra Civil Espanhola. O autor de Yerma, Bodas de Sangue e Romanceiro Gitano, idealizador da La Barraca – o grupo ambulante que levava os clássicos do teatro espanhol para as cidades e as vilas –, não era filiado a nenhum partido, mas sua obra foi vista como uma afronta pelos fascistas que um dia interromperam um discurso do reitor da Universidade de Salamanca, Miguel de Unamuno, aos gritos de Muera la inteligencia! Viva la muerte!. Relembrar a morte do duende espanhol é prestar um tributo à Arte e à Vida. • Continente agosto 2006
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CONTEÚDO Divulgação
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Divulgação
Quaderna sai do livro e sobe ao palco
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Produtora Isabela Cribari, investindo no cinema pernambucano
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CONVERSA
ARTES
04 Autor de O Caçador de Pipas fala sobre literatura e a
50 Portas e becos sem saída da antiarte 52 Os caminhos de Ana Montenegro 55 Agenda Artes
realidade no Afeganistão
CAPA 12 A Pedra do Reino ganha os palcos pelas mãos de
FOTOGRAFIA
Antunes Filho 20 Luiz Fernando Carvalho: microssérie sem clichês 22 Ariano comenta as adaptações de sua obra
58 Um novo olhar sobre os velhos retratos do século 19
LITERATURA
ESPECIAL
66 A poética de Lorca na interação do passado com o presente 70 Os 70 anos da morte do poeta andaluz e mundial 73 García Lorca e o teatro moderno em Pernambuco
24 Freira paulista estréia com romance surpreendente 26 As vertentes urbana e rural na obra de Maximiano Campos 28 Música Possível firma Fabiano Calixto como poeta 30 Um conto de João Anzanello Carrascoza 32 A poesia luminosa de Márcia Maia 34 Agenda Livros
MÚSICA
CINEMA
REGISTRO
40 Os curtas pernambucanos ganham o mundo
86 Registros comerciais revelam parte da história
44 No fim da vida, Bergman se desencanta com a arte
78 Fatos marcantes na história dão mote à música erudita nacional
82 Agenda Música
do Estado
CÊNICAS
TRADIÇÃO
47 Festival de Dança aposta em formato conceitual 49 Agenda Cênicas
90 Mestres mundiais da cultura popular
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reúnem-se no Ceará
CONTEÚDO
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Reprodução
a& eir or M S.
as uls Av s a fi gra to Fo o çã ole s/C a g r Va
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Retratos do século 19, sob nova ótica
66 Há 70 anos Lorca
era fuzilado na Espanha de Franco
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A hora e a vez do populismo latino-americano
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 36 Um desconhecido mestre brasileiro
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 Quando o artista se torna a obra de arte
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 Há 20 mil anos já se valorizava a carne de boi
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 Lições de Vargas para a campanha eleitoral
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 84 Muitos sertões podem existir no mundo
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 O crucial problema político exige dignidade Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente agosto 2006
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CONVERSA
KHALED HOSSEINI
“A ficção deve tratar de coisas desconfortáveis” O livro O Caçador de Pipas, que mostra um lado surpreendente da realidade social do Afeganistão, tirou O Código da Vinci do primeiro lugar da lista dos mais vendidos e vai ser adaptado para o cinema Schneider Carpeggiani
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abul como a cidade próspera e cosmopolita dos anos 70. Esse é o pano de fundo e a grande surpresa do best-seller O Caçador de Pipas, do escritor afegão Khaled Hosseini, que entrou na lista de mais vendidos em 29 países e se tornou um fenômeno de vendas no Brasil. Um fenômeno de mercado tão grande que varreu O Código Da Vinci do primeiro lugar da lista dos mais vendidos nas livrarias brasileiras. Para o autor, mais que uma obra sobre o Afeganistão às vésperas da invasão soviética de 1979, esse é um relato sobre as conseqüências desastrosas de um triângulo amoroso familiar: o jovem Amir não aceita dividir a atenção do pai com o criado e amigo de infância Hassan e acaba envolvendo todas as pontas do triângulo numa grande mentira, que irá mudar o destino de todos eles. Estreante na literatura, Khaled, que até então trabalhava como médico na Califórnia, conversou com a Continente Multicultural sobre a adaptação do seu romance para o cinema, sobre a surpresa do sucesso e revelou como foi voltar para Cabul após quase três décadas de exílio.
Fiquei maravilhado com a recepção que o livro está recebendo, inclusive no Brasil, onde tem feito bastante sucesso. Acho que a resposta para sua pergunta é que, nas entrelinhas, seja em Cabul, Paris ou Rio de Janeiro, algumas emoções e experiências são universais. É possível ler O Caçador de Pipas a partir de duas perspectivas diferentes: como um romance sobre as inúmeras tentativas de um filho para resgatar o amor do pai, ou como um relato dos últimos momentos da monarquia do Afeganistão. Qual história você pensou primeiro em escrever? Para mim, essa história sempre foi sobre um triângulo amoroso envolvendo Amir, seu pai e seu criado. Isso era o mais importante da história, era o motor que fazia esse livro sair do lugar enquanto eu o escrevia. As observações sobre a monarquia, a guerra soviética ou sobre o Taliban são apenas o pano de fundo. Todos os acontecimentos políticos servem como um contexto histórico onde o leitor irá encontrar as provações e dúvidas de Amir.
Sua família se exilou nos Estados Unidos logo após a Sem qualquer especulação religiosa ou trama mi- invasão soviética, mais ou menos como acontece com o rabolante, O Caçador de Pipas foi a única obra que tirou seu protagonista Amir. O Caçador de Pipas seria uma auO Código Da Vinci do topo da lista de livros de ficção mais tobiografia disfarçada? vendidos no Brasil. Qual seria o “código” secreto de suA maior parte do enredo dO Caçador de Pipas é ficção. cesso do seu romance? Mas, como em geral ocorre na ficção, os autores esconContinente agosto 2006
Sophie Bassouls/Corbis
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CONVERSA dem fragmentos das suas próprias vidas nas narrativas. As descrições de Cabul durante os anos 70, as discussões políticas, a organização social, tudo isso é baseado nas minhas lembranças da época. As disputas de pipa e os demais jogos que aparecem no livro espelham como eu e meu irmão costumávamos brincar, assim como o amor de Amir e Hassan por filmes americanos, especialmente os de westerns. Provavelmente, as passagens que mais lembram minha própria vida se passam nos Estados Unidos, com Amir e Baba tentando reconstruir uma nova vida. Eu também cheguei aos Estados Unidos como um imigrante e me lembro claramente dos primeiros anos que vivi na Califórnia, dos poucos momentos felizes e da dificuldade de assimilar uma nova cultura. Meu pai e eu trabalhamos por um tempo no mercado de pulgas, onde havia inúmeros afegãos trabalhando; com alguns deles eu ainda tenho algum tipo de ligação hoje em dia. Mas a última parte, com Cabul dominada pelo Taliban, é completamente ficcional.
trar no governo até o fim da guerra soviética. E esse foi o meu ponto de partida para escrever o livro, para lembrar às pessoas que já houve um Afeganistão antes do 11/9, antes do Taliban e de Bin Laden. Eu recebo muitos emails de leitores surpresos em terem descoberto que, nos anos 60 e 70, Cabul foi uma cidade cosmopolita e com um enorme sabor avant-garde. Mesmo sendo a capital de um país religioso, Cabul foi uma cidade bem liberal.
Desses e-m mails que você recebe, há de afegãos exilados? Qual a reação deles em relação ao romance? As respostas dos afegãos têm sido bastante positivas. Costumo receber e-mails de amigos afegãos que gostaram do livro, que viram suas próprias vidas e lembranças na trama. É muito bom receber uma reação tão boa da minha própria comunidade. Algumas respostas, e quero frisar que são a minoria, são contra alguns temas levantados no livro, como racismo, discriminação e inferioridade étnica. Essas são questões delicadas no mundo afegão, mas que são importantes A condição de imigrante, as e não devem ser evitadas. O dificuldades que você precisou papel da ficção é tratar de enfrentar para assimilar uma nova questões difíceis, sobre temas cultura, como tudo isso influenciou sua maneira de desconfortáveis, que geram debate e, talvez, algum enescrever? tendimento. Acho que falar sobre assuntos que assomMetade de O Caçador de Pipas foi inspirado em ex- braram o Afeganistão por um longo tempo é imporperiências pessoais que vivi como imigrante aqui nos Es- tante, especialmente hoje. tados Unidos. E, devido à situação de exílio vivida por Em O Caçador de Pipas basicamente não há persominha família, eu acho que consigo escrever com algum nível de segurança e autoridade em relação à minha terra nagens femininos. Qual era o papel da mulher durante a natal, apesar de Salman Rushdie dizer que o espelho do época em que você crescia no Afeganistão? exilado está sempre partido. Eu venho de uma família educada, de classe média alta. Minha mãe era professora de história num colégio Para a maioria das pessoas, o Afeganistão de hoje está para garotas. A maioria das mulheres da minha família e atado à idéia de Fundamentalismo. Seria essa uma idéia do nosso ciclo de amizades trabalhava. Nessa época, as correta ou exagerada? mulheres eram personagens vitais na economia de CaPara mim, é uma vergonha escutar uma coisa dessas. bul, o que faz a tragédia do Taliban parecer ainda mais E, embora eu compreenda que esse tipo de pensamento dolorosa. é fruto de tudo o que tem acontecido recentemente no Você retornou a Cabul depois de 27 anos de exílio. A Afeganistão, sobretudo depois do 11/9, a verdade é que o Afeganistão, na maior parte do século 20, foi uma na- cidade que havia nas suas lembranças guardava alguma ção pacífica. O Fundamentalismo não começou a se infil- semelhança com a capital afegã que você reencontrou? Continente agosto 2006
Divulgação/Columbia
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Tráfego em Cabul Oriental, área duramente atingida durante a guerra Mujaheedin
Há um momento no meu livro em que Amir diz a seu guia: “Eu me sinto como um turista no meu próprio país”. Por uma grande parte da viagem, eu me senti desse mesmo jeito. No fim das contas, eu tinha estado longe por mais de um quarto de século. Eu não estava lá na guerra contra os soviéticos, na ascensão do Taliban. Não perdi nenhum membro do meu corpo em minas ou precisei viver num campo de refugiados. Havia certamente um elemento de culpa do sobrevivente no meu retorno. Por um lado, eu sentia que pertencia àquele lugar, onde todo mundo falava minha língua, e onde eu compartilhava a cultura. Por um outro lado, eu me sentia um outsider, cheio de sorte, mas definitivamente um outsider. O que eu encontrei foi uma cidade destruída. Havia um número chocante de viúvas, de órfãos, de pessoas mutiladas. Havia também uma abundância de armas pela cidade, uma verdadeira cultura de armamentos, algo que não faz parte das minhas lembranças lá dos anos 70. Até O Caçador de Pipas, você trabalhava como médico. Qual foi o momento em que você pensou “eu quero ser um escritor”? O curioso é que nunca houve um momento em que eu pensei, “quero ser um escritor”. Quando eu era muito jovem, como Amir em O Caçador de Pipas, eu escrevia pequenas peças e histórias. Pelo que me lembro, sempre fui fascinado em criar tramas. Mas até agora nunca havia pensado na escrita como uma profissão, apenas como um
hobby. Quando eu pensava que carreira seguir, escrever nunca aparecia na lista. Agora já tem dias em que eu me vejo como um escritor, especialmente desde que eu tirei uma folga da medicina. Já existe alguma trama em andamento para o próximo livro? Estou preparando um novo livro que vai se passar no Afeganistão, desta vez centrado nas afegãs. Enquanto o primeiro romance lidava com questões de raça, com classes sociais e religião, o novo, ainda sem título, vai falar do problema dos gêneros sexuais. Assim, os personagens principais são duas mulheres, que se tornam amigas devido a circunstâncias bem particulares. O trabalho está indo bem, espero que esteja pronto nos próximos meses. O Caçador de Pipas vai ser levado para o cinema. Você tem alguma voz ativa nessa adaptação? Em primeiro lugar, gostaria de dizer que tenho grandes expectativas em relação a esse filme. Sempre soube que para um autor não é fácil ver sua obra adaptada, mas um filme é uma mídia diferente e mudanças precisam ser feitas. Apesar disso, o script de Daniel Benioff (que também está escrevendo o roteiro de Wolverine), além de ser muito tocante, é bem fiel ao livro. Basicamente, eu trabalhei como consultor para o filme e fiquei bem próximo do diretor Marc Forster (de À Procura da Terra do Nunca). • Continente agosto 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Gilvan Felisberto e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras
Agosto | 2006 Ano 06 Capa: cena da peça A Pedra do Reino Foto: Pio Figueirôa
Colaboradores desta edição: ALEXANDRE BANDEIRA é jornalista.
ALEXANDRE FIGUEIROA é professor universitário e jornalista.
ÂNGELO MONTEIRO é poeta e professor de Filosofia da Arte e Filosofia de Literatura da UFPE.
CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista.
CARLOS HAAG é jornalista.
CHRISTIANNE GALDINO é jornalista.
DELMO MONTENEGRO é poeta.
FERNANDO MONTEIRO é autor de As Confissões de Lúcio e Grau Graumann, entre outros.
FERNANDO SILVEIRA é jornalista.
LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon;
Gestor Comercial Paulo de Tarcio
Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.
Supervisora de Marketing Ygara Kober
LUÍS REIS faz doutorado em Teoria da Literatura na UFPE.
Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
SCHNEIDER CARPEGGIANI é jornalista.
WEYDSON BARROS LEAL é poeta e crítico de artes plásticas.
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala.
CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural.
FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão.
JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra.
MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim.
RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente agosto 2006
CARTAS
Entremez
“
Adorei a crônica do mês de junho, do Ronaldo Correia Brito. E saber que ele é do Cariri, do meu Cariri, me deixou em muito orgulhosa. Parece que, para nós, a bênção é o bálsamo diário necessário, aquilo que nos torna imune a qualquer mal, a proteção dada pelos pais, todos os dias ao dormir, que tem um certo poder de nos transformar em anjos. Percebi-me em cada parte da história contada, como retirante que também fui, sozinha, em busca de estudos no Recife.
”
Alice Marinho, Fortaleza–CE
Entremez II Tão bom ver os outros escrevendo o que a gente sente! Gosto muito do que Ronaldo escreve na Continente! Maria Helena Berkers, Recife – PE Global x local Em primeiro lugar, quero declarar minha total admiração pela Revista Continente (tanto a Multicultural quanto a Documento). É um trabalho gráfico de primeiro mundo, com preço razoável (já foi melhor). As sessões sempre valorizam o elogio e a crítica (quando justificada) aprimora o trabalho. Sou um modesto professor e pesquisador de cultura popular, e vejo em artigos elementos que me fazem aprofundar o estudo por essa ou aquela questão publicada. Por que estou lhes escrevendo? Ao comprar o nº 67 (Continente Multicultural), vi em suas páginas artigos, em sua maioria, sobre estrangeiros e sua cultura; nada tenho contra os mesmos, mas sobre assuntos internacionais de cultura temos no Brasil e no mundo dezenas de publicações. A nossa Revista (como leitor é um pouco minha também) se diferencia pelo texto de brasileiros sobre o Brasil, principalmente divulgando assuntos pouco mencionados no Sudeste, sobre o Norte e Nordeste. É claro que é muito difícil pautar temas diferentes a cada número, mas esse sempre foi o grande “toque” da Revista. Luiz Fernando Viera, Rio de Janeiro-RJ
Escritores nordestinos Parabéns à equipe da Revista Continente Multicultural. Alegro-me ao ler uma revista de tão bom gosto. Textos bem elaborados, ilustrações de primeira qualidade. É realmente um continente de multicultura. Gostaria de saber mais sobre nossos escritores nordestinos. Evany Amaral, Camaragibe – PE Bloom Como sempre, a Revista Continente Multicultural e Documento estão de parabéns pela belíssima edição de maio, em especial, sobre Paulo Freire. Gostaria, entretanto, de fazer um breve comentário sobre a entrevista feita por Paulo Polzonoff com o crítico H. Bloom, no que tange a infeliz colocação do entrevistador quando disse “eu não acho que o senhor deva ler nenhum escritor brasileiro vivo. A literatura brasileira atual é muito pobre”. Por que esse desprestígio à produção nacional? Como ficam também os valores, em literatura, revelados e apresentados pela própria Revista Continente? E alguns dos seus colaboradores que também são escritores reconhecidos? Não têm valor? Seria prudente rever essa postura tão preconceituosa e pouco valorizadora da produção literária nacional. Suani Vasconcelos, Feira de Santana – BA
Bloom II Na conversa (Continente nº 65, maio/2006) com Harold Bloom, esta “jóia de destempero” de Paulo Polzonoff: “Eu não acho que o senhor deva ler nenhum escritor brasileiro vivo. A literatura brasileira atual é muito pobre”. Assim... é defender listas canônicas eternas de obras literárias; é defender um conceito de literatura que a vê isolada das cambiantes culturais. Admitindo-se que o artista é “antena da raça” (Ezra Pound), há, entre nós, sim, excelentes escritores vivos que captam os sinais da nossa realidade pós-moderna: nosso vazio, nossa apatia, nossa homogeneidade das aparências, nossa perversão social etc. Ora, Luiz Ruffato, João Gilberto Noll, Amílcar Bettega Barbosa (e muitos outros, bons!) estão vivos... E Nélida Piñon continua viva! Na poesia, Armando Freiras Filho, Nauro Machado, Alberto Cunha Melo (e muitos outros, bons!) estão vivos... Ferreira Gullar continua vivo! Naturalmente, há muitos vivos mortos... Assim como há muitos mortos vivos, e que deveriam estar somente mortos... Janilto Andrade, Recife – PE Erratas Por falha nossa, o autor da matéria “Edgar Allan Poe – a morte como leitmotiv” (edição nº67, julho de 2006, páginas 68 – 69) foi publicado incorretamente. Onde se lê Alberto Oliva, leia-se Guilherme Rocha de Souza. Na Revista Continente Documento “A Nova Poesia” (edição nº 46, junho de 2006), faz-se referência à coletânea poética Invenção do Recife (página 27) de que não foi realizada apenas com o apoio da Prefeitura do Recife; ela foi realizada pela própria Prefeitura.
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Populistas graças a Deus Os políticos populistas ou os que chegam ao poder pelo rompimento das instituições têm o que se poderia chamar de tentação autoritária
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a Rússia, desde os anos 50 do século 19, defensores de um “socialismo rural” construíram uma idéia romântica acerca dos camponeses e iam ao povo para incutir-lhe a consciência revolucionária e, em seu nome, fazer a revolução. Ganharam o nome de populistas e, apesar da vitória socialista, foram vistos como ingênuos, mas se agarrando às tradições da velha Rússia, pois não passavam de reacionários, mesmo com boas intenções. De outra parte, no continente americano, diferentemente da radicalização política russa, os populistas defendiam a propriedade da terra como forma de construção da riqueza e a democracia como forma de organização política. Apesar das diferenças, percebe-se a relação com a terra como elemento construtor da identidade coletiva em ambos os modelos de populismo. Esquecido da experiência russa e americana, o populismo latino-americano instrumentalizou-se no Brasil do pós- guerra como uma política clientelística, voltada para o eleitorado urbano. Para os seus mais importantes teóricos, o populismo é conseqüência de uma política de massas em momentos históricos de transição da sociedade agrária e tradicional para uma sociedade moderna e industrializada. O modelo de desenvolvimento apelidado de modernização conservadora foi resultado da aliança entre velhas e novas elites. Mudar para permanecer o mesmo foi a pedra de toque desse modelo populista de massas. E a história se repete: líderes carismáticos, reformas de faz-de-conta, instituições e partidos frágeis, esquerdas cooptadas – eis em linhas gerais o solo fértil para o populismo. Em muitos casos, o fenômeno populista foi facilitado pelo comportamento dos partidos ditos de esquerda que impuseram às classes sociais a mesma sujeição aos projetos de dominação das classes conservadoras. Em quase todas as eleições realizadas na América Latina, os novos líderes, sem exceção, estão à frente de governos ditos de esquerda ou populistas, usando inclusive a impopularidade dos americanos na região. Para Tom Shannon, se-
cretário de estado americano adjunto, o populismo é uma coisa natural nas democracias com instituições frágeis. Os políticos populistas ou os que chegam ao poder pelo rompimento das instituições têm o que se poderia chamar de tentação autoritária. E ela é fruto das grandes expectativas que são geradas e das promessas messiânicas. Os Governos Collor e Lula são exemplos. Segundo especialistas, os americanos não estão dando a atenção costumeira que deram à América Latina no passado: não há ajuda financeira nem tampouco prioridade política com relação aos problemas da região. Não vai haver uma nova Aliança para o Progresso nem tampouco dinheiro para comprar corações e mentes do povo latino-americano. Noutra dimensão, uma das críticas aos americanos relaciona-se com as estratégias da política econômica e social inspiradas pelo Consenso de Washington, que talvez tenha servido para o crescimento econômico, mas é um crescimento que não chegou às pessoas. A América Latina continua sendo a região do mundo com maiores desigualdades sociais, altos índices de pobreza e de desemprego, corrupção, e ineficácia nas privatizações. Este cenário mostra que as políticas implementadas pelos modelos neoliberais se esgotaram em si mesmas. O outro aspecto que fica claro é que a tradição populista no hemisfério e, particularmente no Brasil, é nacionalista, estridente e de visão estreita. A batalha mais fascinante que ocorre é entre a esquerda moderada e a populista. Os escombros da esquerda que se mantém no poder ama mais o poder do que a democracia e lutará para conservá-lo a todo custo, como vêm mostrando os fatos ocorridos no Brasil. O que a história deixa evidente é que o populismo foi tradicionalmente desastroso no passado e não há motivos para supor que deixará de sê-lo no futuro. No Brasil, esse embate também é evidente dentro dos próprios umbrais das esquerdas. Mas para enfrentar a realidade da desigualdade e da pobreza, todos os espectros políticos, sejam de direita ou de esquerda, baseados em fórmulas que deram certo em passado recente, fatalmente usarão nos seus discursos propostas populistas similares. Todas em nome de Deus. • Continente agosto 2006
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CAPA Personagem mítico de Ariano Suassuna chega aos palcos pelas mãos de Antunes Filho e à tela de tevê, pelas de Luiz Fernando Carvalho, em adaptações arrojadas
A volta de Quaderna Alexandre Bandeira
Antunes Filho dirige o ator Lee Thalor em ensaio da Pedra do Reino
Pio Figueir么a
Beto Oliveira/Folha Imagem
CAPA 13
CAPA Ele já trabalhou com alguns dos personagens mais fortes da Literatura e do Teatro. Sob sua direção, ganharam vida em montagens elogiadas shakespearianos como Ricardo III e Lady Macbeth; heroínas trágicas como Antígona e Medéia; ícones das histórias de terror e dos contos de fadas, como Drácula e Chapeuzinho Vermelho; preciosidades das letras brasileiras, como Augusto Matraga e Macunaíma. Não é pouca coisa, portanto, ouvir Antunes Filho dizer que Quaderna, o protagonista criado por Ariano Suassuna para o Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, é o personagem “mais rico, mais contraditório, mais profundo da nossa Literatura”. Uma tese que o diretor paulistano está mais do que disposto a provar, com sua adaptação para o teatro do romance de Suassuna (e de sua continuação, História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana), que acaba de estrear no Teatro Sesc Anchieta, em São Paulo. A peça é provavelmente o acontecimento do ano para o teatro nacional. Não só porque é “o novo espetáculo de
O diretor mistura influências suas, como o cinema de Fellini e Sternberg, e as próprias referências visuais de Suassuna para compor o espetáculo
Continente agosto 2006
Antunes Filho”, sempre aguardado, mas sobretudo porque desde 2005 o Romance d'A Pedra do Reino está no centro das atenções culturais do país, onde ainda vai ficar por um bom tempo. Explica-se: o livro, publicado em 1971 e considerado obra-prima desde então, passou mais de 20 anos fora do catálogo até ganhar uma reedição pela José Olympio, bastante celebrada, no ano passado. Agora, é adaptado para o teatro. E em junho de 2007 será transformado em série televisiva por Luiz Fernando Carvalho, espera-se que com o mesmo requinte e apuro técnico que têm marcado os outros trabalhos do diretor na Rede Globo. (Confira entrevista com Luiz Fernando Carvalho na página 20.) Duas adaptações dificílimas. Primeiro, porque se trata de uma obra colossal, 754 páginas condensadas numa peça de uma hora e meia e numa microssérie de cinco capítulos. E principalmente porque na mistura de epopéia, memorial, ensaio, romance policial, folhetim, poemas, folhetos de cordel e mais outros tantos gêneros da literatura universal que compõem A Pedra do Reino, aterse a um enredo como fio condutor pode se revelar limitante. Pio Figueirôa
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Leo Caldas/Titular
Anualmente, uma cavalgada e outras manifestações relembram A Pedra do o episódio dA Reino, em São José do Belmonte – PE
No centro de tudo está Quaderna. Ou Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, o Decifrador, Rei do Sertão, Imperador do Quinto Império do Brasil e Sumo Pontífice da Igreja Católico-Sertaneja, como prefere. É ele o narrador de uma epopéia que atravessa séculos e que tem suas bases fincadas do outro lado do oceano, com a partida de Dom Sebastião, rei de Portugal, para lutar contra os mouros no norte da África, no ano de 1578. Como se sabe, Dom Sebastião nunca regressou de tal viagem, morto em combate na cidade de Alcácer-Quibir, no Marrocos. As conseqüências de sua morte foram trágicas para Portugal: enfraquecida a dinastia de Avis, depauperada a nobreza devido aos gastos militares, os portugueses viram ascender ao trono um rei espanhol, Felipe II, marcando o início de um longo período, 60 anos, privados de uma nação soberana. O povo português se entregou então a uma crença impossível, último recurso ao qual se apegar: El-Rei Dom Sebastião voltaria, para restaurar a ordem perdida e redimir os sofredores. Surgia um mito. Em verdade, como já observou Câmara Cascudo, o mito sebastianista já estava presente em Portugal muito antes de Dom Sebastião nascer. “Quase todos os povos têm essa crença, e raro será o que não acredite no regresso de figura imortal para conduzir seu povo à glória mais alta”, escreveu o folclorista. Dom Sebastião teria sido apenas a encarnação mais apropriada, para o momento
histórico, do Messias, de um mito que existe desde que o homem é homem de fé. A narrativa de Quaderna começa onde o sebastianismo encontrou terreno mais fértil além-mar: os sertões do Nordeste brasileiro. O que sua história tem de fantástica, então, tem de assombrosamente verídica. Suassuna resgata aqui o episódio que ficou conhecido como “o massacre da Pedra Bonita”, em 1838. No município de São José do Belmonte, sertão pernambucano, um grupo de fanáticos liderados por um falso profeta, João Ferreira, reuniu-se numa comunidade em volta de uma formação rochosa com duas “torres” de pedra proeminentes, de 30 e 33 metros de altura. As duas torres seriam um castelo encantado, o castelo de Dom Sebastião, que apareceria no Sertão para salvar a população oprimida. Para que a profecia se realizasse, porém, eram necessários sacrifícios. Sessenta e sete vidas foram oferecidas – algumas, a contragosto – para lavar de sangue a Pedra do Reino, como passaram a chamar o local antes conhecido como Pedra Bonita, e fazer retornar o rei desaparecido: 30 crianças, 11 mulheres, 12 homens, 14 cães. E os sobreviventes ainda tiveram de enfrentar uma tropa de soldados da guarda nacional, enviados para acabar com o massacre. Certamente o mais macabro, João Ferreira não foi, entretanto, o único profeta de Dom Sebastião a aparecer em terras nordestinas. Quaderna, o narrador do romance Continente agosto 2006
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CAPA de Suassuna, se declara descendente desses profetas, que seriam os verdadeiros reis do Brasil, ao contrário dos imperadores “estrangeirados e falsificados da Casa de Bragança”. E ao narrar sua epopéia sertaneja – que ainda avança 100 anos no tempo para incluir os conflitos políticos entre a aristocracia rural e a burguesia urbana na Paraíba, a Revolução de 1930, o Estado Novo de Getúlio Vargas, um misterioso assassinato sem solução e o aparecimento de um cavaleiro tido como morto, que retorna para cumprir a profecia sebastiana – Quaderna parece acreditar que o próprio ato da narrativa lhe confere veracidade, como se construísse um “castelo literário”, redentor da Raça Brasileira. E isso é só uma breve, brevíssima e muito incompleta apresentação da obra que Antunes Filho se propôs a adaptar para o teatro. “É um poder de síntese que precisa ter, viu? Mas foram diversas fases [para se chegar ao texto final da adaptação], não foi de prima, não”, diz Antunes, que vem sonhando levar A Pedra do Reino ao palco há pelo menos 15
anos. Desde então, outros projetos do diretor, além de desacordos com o escritor Ariano Suassuna quanto à primeira versão do texto, adiaram esse momento. “Ele [Ariano] era muito intransigente naquela época, mas hoje ficou mais democrático. Eu também fiquei. Somos amigos. Houve só certas questões, que diziam respeito aos particulares do Ariano Suassuna, que criavam certa tensão, leve, ligeira.” (Veja a entrevista de Ariano à página 22 desta edição.) Era de se esperar que o escritor tomasse um cuidado extremado com aquela que ele próprio considera sua obra mais importante, a que ele salvaria da destruição, se lhe fosse dada apenas uma escolha. Entre os acontecimentos históricos em que Ariano se inspirou para escrever A Pedra do Reino está a morte do seu pai, João Suassuna, assassinado por motivos políticos. Representante da aristocracia rural da Paraíba, João Suassuna havia sido governador do Estado de 1924 a 1928, no que foi sucedido por João Pessoa, representante de uma burguesia urbana, inimiga do coronelato. Pessoa
A recepção da crítica à Pedra do Reino O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta forma, junto com A História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, as duas primeiras partes de uma trilogia que era para ser e que não foi. A terceira parte – Sinésio, o Alumioso –, Ariano Suassuna nunca chegou a publicar, e se um dia o fizer talvez não integre mais uma trilogia, e, sim, a famosa “obra magna” que o escritor há muito tempo está preparando, que vai reunir a maior parte dos seus escritos, peças, poemas, gravuras. Isso não prejudica a leitura dA Pedra do Reino, que se sustenta sozinha como um romance considerado fundamental por nove entre 10 críticos literários. “A grande qualidade desse livro não está em ser um bom romance picaresco”, escreve Wilson Martins. “Está em ser um excelente romance brasileiro.” Continua o crítico e historiador da literatura brasileira: “Para além das suas exterioridades farsísticas situa-se a sua substância profunda de romance social e político no sentido largo da palavra: é o romance de nossa Continente agosto 2006
vida pública nas décadas de 20 e 30, em uma vasta região nordestina, e vida pública como só pode sê-lo a brasileira, emaranhada em atavismos religiosos, em hábitos anacrônicos, em simplificações primárias, em rivalidades mesquinhas, em ódios de famílias, em violência incontrolável como forma de expressão, em imoralidade espontânea e em malícia orgânica”. O jornalista Millôr Fernandes coloca A Pedra do Reino “facilmente entre os 10 maiores romances brasileiros, incluindo aí Guimarães Rosa e excluindo Machado de Assis”. A afirmação de Millôr faz lembrar que nenhuma unanimidade resiste por muito tempo, e com A Pedra do Reino não é diferente. Recentemente, em entrevista concedida ao jornal literário Rascunho, de Curitiba (junho de 2006), o escritor pernambucano Fernando
CAPA era um nome que despontava no cenário nacional, e em 1930 teria sido candidato a vice-presidente da República, na chapa de Getúlio Vargas pela Aliança Liberal, não fosse por dois tiros desferidos por João Dantas, primo legítimo da esposa de João Suassuna, Rita de Cássia Dantas Villar Suassuna. Dantas tinha motivações pessoais para assassinar João Pessoa, mas no calor das disputas políticas da época um outro significado foi atribuído ao crime, o qual vinculava inevitavelmente o nome de João Suassuna. Como conseqüência, em outubro de 1930 as forças getulistas, com o apoio do Exército, aproveitaram-se do pretexto e deflagraram a Revolução que daria fim à República Velha e colocaria Vargas no poder. Naquele mesmo mês, João Suassuna seria morto. Nunca ficou provado se a ordem cumprida pelo pistoleiro Miguel Alves de Souza era de vingança à morte
de João Pessoa, mas para o menino Ariano, então com três anos de idade, importava era que seu pai – seu rei – tinha partido numa viagem para não mais voltar (João Suassuna foi morto no Rio de Janeiro). Perguntado, certa vez, se escrever A Pedra do Reino teria sido sua melhor vingança, Ariano Suassuna respondeu borgianamente: “Foi mais do que uma vingança. Foi uma forma de evitar o crime”. Antunes Filho tem ciência de que está lidando com questões delicadas e se mostra profundamente respeitoso para com o escritor paraibano. “Ele é uma glória. Eu vejo tão poucos artistas no mundo hoje em dia – no cinema, no teatro, na música, é tudo uma desgraceira – que quando encontro um, eu ajoelho e beijo os pés. Suassuna é uma dessas pessoas”, diz o diretor, para quem a definição “artista” dispensa adjetivos como “verdadeiro” ou
Monteiro fez uma crítica bastante dura ao romance. “Não sou, como o agora candidato a senador Ariano Suassuna, idiota o bastante para tentar propor uma mitologia para o Brasil (que nunca teve uma cultura autóctone) a partir daquelas idiotices sobre o Sertão da Onça Castanha, Malhada, sei lá, aquela coisa toda que forra a Pedra dele”, disse o escritor. Embora a crítica de Monteiro se refira mais às idéias do que à qualidade literária dA Pedra do Reino, é inegável que as duas coisas estão intimamente ligadas. Sobre essa relação entre ideologia e forma, o crítico e escritor paranaense Miguel Sanches Neto já apontou: “É uma obra de grande e vasta erudição nacional e estrangeira (principalmente ibérica), que contesta uma visão central de cultura e de política por meio de expedientes narrativos barrocos, investindo nos episódios secundários, sem valorizar um eixo e sem privilegiar o fechamento narrativo, e isso em dois momentos cruciais de centralização do poder no país: a ditadura Vargas (quando se passam as ações) e a militar (quando o livro foi publicado)”. Também se deve ressaltar que a magnitude da proposta de Suassuna, a de criar “uma mitologia para o Brasil”, de decifrar a raça brasileira surgida de outras raças – justamente o que desagrada a Fernando Monteiro –, é uma das maiores razões para o Romance d’A Pedra do Reino
ter recebido tamanha aclamação, aqui e fora do país. O pensador e escritor português António Quadros (19231993) chegou a definir Suassuna como “um dos maiores escritores de língua portuguesa deste século, talvez o maior dos vivos, porque nenhum outro terá ido tão fundo e tão longe, nessa descida-subida à lonjura próxima do nosso ser mítico, porque raros conhecemos, com tão extraordinário poder de criação, de imaginação e até de organização novelística, porque nenhum é tão brasileiro e ao mesmo tempo tão português e nenhum atinge, como ele, o nó de raízes das 'três raças saudosas' da cultura brasílica”. O sociólogo e escritor pernambucano Renato Carneiro Campos (1930-1977) foi outro que situava a criação de Ariano entre as maiores da literatura mundial. Para ele, Quaderna, o narrador-protagonista do romance, era “um palhaço da melhor tradição, parente de Plauto, Gil Vicente, Cervantes, Molière, Rabelais, Fielding, Mark Twain, Charles Chaplin”. Mais sucinto e poético, Carlos Drummond de Andrade comentava: “Escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre”. Como a vida de Ariano Suassuna continua, quem sabe essa graça não se repita quando, finalmente, o escritor levar a público a sua grande obra inacabada? (AB) Continente agosto 2006
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CAPA possível cânone brasileiro. “A peça é enternecedora. Tem um lado picaresco, mas também tem um lado dramático – eu penei muito durante os ensaios para encontrar esse equilíbrio. E o Quaderna... eu gosto muito do Macunaíma, do Policarpo Quaresma, de Diadorim, mas como personagem Quaderna é o mais rico, o mais contraditório, o mais profundo da literatura brasileira”, diz o diretor, que demonstra conhecer a obra de Suassuna como poucos. O que não é difícil: o próprio Suassuna costuma repetir em entrevistas que se considera um escritor de poucos livros e poucos leitores. Antunes concorda. “Não se leu A Pedra do Reino”, diz o diretor. “E não falo só do leitor comum, mesmo a crítica especializada. É fácil dizer uma ou outra frase a respeito do Suassuna, aquelas frases de algibeira, como se tem também sobre o Mário de Andrade, sobre o Oswald de Andrade. Mas na verdade é muito superficial o nosso conhecimento. As pessoas nesse país, eu vejo que elas ignoram quem é Quaderna! Conhecem as peças do Suassuna, que têm aquela certa brejeirice nordestina. “A Pedra do Reino”, não. “A Pedra do Reino tem sangue”. Antunes parece tomar como missão divulgar a obra e o personagem de Ariano, da mesma forma como, segundo ele, foi o responsável por fixar Macunaíma definitivamente no imaginário brasileiro. “Ninguém lia Macunaíma”, era um nome que aparecia em citações. Depois que eu fiz a peça (1978), aí divulgou. Eu espero fazer a mesma coisa com Ariano Suassuna. “Exagero ou Fotos: Divulgação
“autêntico”. “Por isso eu não gostaria que ele brigasse comigo, que não concordasse com alguma coisa da peça.” É por respeito a Ariano, também, que Antunes mede cuidadosamente as palavras ao falar sobre a adaptação da Pedra do Reino para a Rede Globo. Crítico notório da televisão brasileira, ele admite ter ficado chateado, a princípio, ao saber do projeto em andamento, mas que reconsiderou o fato como positivo. “Vai trazer publicidade para meu espetáculo, vai divulgar o Ariano Suassuna, vai divulgar A Pedra do Reino. Todo mundo lucra com isso”, diz. Sua análise seguinte, no entanto, denuncia uma irremediável desconfiança em relação à TV: “Eu não sou contra a televisão fazer coisas boas. Quando eles fazem Suassuna, aliás, eles têm um cuidado maior, um carinho, não se deixam levar pelo comércio. Mas isso só é feito duas vezes por ano, o resto é patifaria, item de alto consumo. E tem outra coisa: esse requinte e essa sofisticação eventuais me parecem de um formalismo exacerbado, empolado. Como se estivessem dizendo: ‘Isso aqui é a Globo fazendo coisa séria’. A gente vê pela luz, pelo enquadramento, por um certo tipo de tomada, que aquilo é ‘coisa séria’. Mas isso também é um estereótipo, não é? O estereótipo do sério.” Diferenças à parte, Antunes Filho prefere concentrarse no entusiasmo de estar lidando com uma das melhores obras literárias do país – a única de um autor vivo, dentre as 10 apontadas em pesquisa da Continente sobre um
“As pessoas nesse país ignoram quem é Quaderna! Conhecem as peças do Suassuna, que têm aquela certa brejeirice nordestina. A Pedra do Reino, não. A Pedra do Reino tem sangue”
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CAPA não, Macunaíma, a peça, é um marco inconteste do teatro nacional. Ela representa o rompimento do diretor paulistano com o teatro comercial – que ele fazia muito bem – e o início de sua reinvenção como um dos mais originais, corajosos e respeitados encenadores do país. Quem vai assistir a um espetáculo de Antunes Filho pode esperar uma erudição invulgar a serviço do teatro. Suas montagens são sempre precedidas por muito estudo – que o diretor também exige de seus atores – para que se encontrem os arquétipos subjacentes ao texto, o universal oculto no circunstancial. “Eu persigo os mitos, estou na cola deles”, diz Antunes. Expandido o alcance do texto, o diretor se vê livre para abusar de referências as mais diversas na concepção do espetáculo: o cinema, uma paixão assumida; as artes plásticas, de onde aproveita a sensibilidade para compor cada cena como um quadro; e mais o teatro oriental, mais a literatura, mais a psicanálise junguiana, mais as teorias modernas da física. Às vezes, ele mesmo reconhece que as conexões encontradas não são claras para o espectador. Mas, enquanto Antunes se mostra implacável ao reclamar dos críticos que tenham um mínimo de bagagem cultural – “não sabem das conexões, sentam na platéia, gostam ou não gostam como se fosse pipoca”, disse ele, certa vez –, ele tem a convicção de que o seu público, não raro jovens, entenderá suas peças mesmo que inconscientemente. “Todos nós temos a mesma legião de arquétipos “no nosso chip”, partilhamos do mesmo jogo, das mesmas regras. É por isso que todas as minhas peças, de uma maneira ou de outra, fazem sucesso”, diz ele. Nesse sentido, o Romance d'A Pedra do Reino" facilita o trabalho de Antunes por apresentar de antemão o seu terreno mitológico mapeado. É o próprio Suassuna quem ressalta, na figura de Quaderna, os arquétipos de Rei e Palhaço – aquele que personifica ordem e hierarquia, aquele que as transgride. O sonho utópico de Quaderna, que ele pretende materializar por meio de sua obra literária, é quase uma contradição em termos: uma monarquia de esquerda, entendendo-sse por esquerda, na concepção do narrador (alter-eego de Suassuna),
uma ideologia igualitária, socialista. A única solução possível para o paradoxo é que todos sejam reis, que Quaderna sejam todos. Visualmente, ao universo naturalmente forte de Suassuna, com seus brasões, suas cores carregadas de simbologia, suas iluminogravuras, Antunes Filho acrescenta suas próprias referências para montar figurinos e adereços: o cinema de Fellini e Sternberg. As obras de Picasso, Volpi, Guignard, Pancetti. O trabalho do grupo japonês Ishin-hhá, que desenvolveu um estilo de teatro original até na forma de andar (com passos ligeiramente fora do tempo, num “movimento não natural” que se aproxima do “falso naturalismo” antuniano). Nada disso, porém, se apresentará de pronto para o espectador quando as cortinas se abrirem: A Pedra do Reino começa com Quaderna em um palco escuro. “À medida que ele vai falando, vão acontecendo coisas”, diz Antunes. Uma escolha adequada para um personagem que se propõe a criar realidades por meio da narrativa. A ênfase na interpretação arquetípica do romance também resulta em outra escolha deliberada do diretor: nada de sotaque nordestino. “Não me preocupei com isso. É claro que existe uma sintaxe própria, que já vem do texto e que obriga a uma prosódia, uma certa pontuação que você é obrigado a seguir. Não dá para falar de maneira macarrônica. Mas será uma coisa natural, não fui eu que impus”, diz ele. O goiano Lee Thalor, que interpretará Quaderna no palco, concorda: “A preocupação maior do Antunes é com a palavra bem dita, que o público entenda a peça”. Mais do que se fazer entender, Antunes aposta no assombro. “Eu acho que vai cair o queixo das pessoas”, diz o diretor. “Vão pensar: ‘Quaderna? Que coisa é essa?’ Então vão querer saber mais, e vão perceber que a peça pode ser um mapa da mina para uma obra atualíssima, que fala das entranhas e das contradições deste país.” Um país que, depois de 20 anos afastado de uma das maiores criações da literatura universal, agora a vê voltar reencarnada em livro, teatro e televisão. • A Pedra do Reino – Em cartaz no Teatro Sesc Anchieta R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. São Paulo, SP. Temporada: de 21 de julho a 17 de dezembro. Continente junho 2006
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Luiz Fernando Carvalho dirigindo tomada do filme Lavoura Arcaica, da obra de Raduan Nassar
Nordeste sem clichês Diretor Luiz Fernando Carvalho prepara-se pela levar Quaderna para a televisão, numa leitura particular que, promete, fugirá dos estereótipos que têm marcado a imagem dos nordestinos
Aos 46 anos, o cineasta e diretor de TV Luiz Fernando Carvalho prepara-se para dar início, em 2007, a um projeto com o qual vinha sonhando há mais de 20 anos, o de "contar o país através de sua produção literária contemporânea", adaptando obras de autores representativos de cada Estado brasileiro para a televisão. Como abre-alas do projeto, batizado de Quadrante, O Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, será transformado em microssérie de cinco capítulos, com estréia marcada para 12 de junho. Outros autores já confirmados são o carioca João Paulo
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Cuenca, com o romance Corpo Presente; o amazonense Milton Hatoum, com Dois Irmãos; e o cearense Ronaldo Correia de Brito, colunista da Continente, com Faca. Carvalho já transformou Os Maias, de Eça de Queiroz em minissérie de TV e conseguiu agradar público e crítica, em 2005, com Hoje É Dia de Maria. Nesta entrevista, concedida por e-mail, Luiz Fernando Carvalho fala sobre A Pedra do Reino, sua relação com Ariano Suassuna, sua posição dentro da Rede Globo e sobre como o Nordeste costuma ser apresentado pela televisão.
CAPA Elenco e equipe técnica já estão Maria foi realmente um sucesso. definidos para A Pedra do Reino? Algum Pelo horário em que foi exibida, nome que o senhor já possa divulgar? jamais pensei que tivéssemos uma audiência tão boa. Em Os Pretendo trabalhar com atores que de Maias, tratava-se de buscar uma rescerta forma não pertençam ao modelo de piração e não um espetáculo circenescalação do Sudeste, que, no meu modo se. Toda e qualquer indústria nos ensina de sentir, privilegia sempre os rostos consaa subserviência a um único modelo grados em detrimento de tantos talentos que permanarrativo, uma espécie de estrada traiçoeira da necem escondidos pelo país. Minha equipe, em unanimidade, mas os limites cabem a cada um. No meu grande parte, também será formada por artistas do Nordeste, por talentos inseridos naquelas realidades. Não caso, ao contrário do que possa parecer, buscava uma vejo outro caminho senão este para o meu trabalho na TV: comunicação mais verdadeira entre o público e a atmosfera o de buscar um processo colaborativo, e não corporativo. da prosa do Eça. Não devo ter conseguido. A idéia de incorporar trechos de outros romances surgiu quando nos Ariano Suassuna conta em entrevistas que desde a foi pedido um número maior de capítulos, superior ao que década de 1960 recebeu convites para escrever novelas ou acreditávamos que Os Maias poderia proporcionar. No adaptar seus trabalhos para televisão, mas que sempre re- meu modo de sentir, tratou-se de uma grande derrapada. cusava. Até que, na década de 1990, o senhor (e mais tarde Já vendo com os olhos de hoje, depois da reedição que fiz Guel Arraes) conseguiu convencê-llo. Como fez para “do- para o DVD, posso lhe dizer que agora, sim! Agora me brar” o escritor? E como é sua relação hoje com Ariano? parece uma narrativa muito mais clara e forte, e talvez por Nossa convergência foi imediata. Faz 10 anos que nos isso até capaz de uma comunicação mais efetiva com o conhecemos. De minha parte, àquela altura, já conhecia público. toda a obra de Ariano e toda a produção armorial. Da Acredito que a expectativa do público televisivo hoje, parte dele, vieram também sinais de que acompanhava meu trabalho. Algum tempo depois me dediquei à sua diante de uma obra nordestina, esteja muito influenciada peça Uma Mulher Vestida de Sol (1994), adaptando-a para pelo trabalho de Guel Arraes com O Auto da Compadecida, um especial de TV – e com o qual Ariano, aos 70 anos, Lisbela e o Prisioneiro e O Coronel e o Lobisomem. São obras marcava sua estréia na televisão. Mas talvez não lhe tenha que, independentemente da qualidade, se assentam numa respondido exatamente. Quero dizer, minha cumplicidade visão mais cômica e regionalista do Nordeste, se com Ariano e sua obra data de muito antes, certamente comparadas, por exemplo, ao seu trabalho em Hoje É Dia desde os últimos anos de minha adolescência, quando senti de Maria, que me parece mais universal. Como apresentar uma necessidade inadiável de recuperar e completar o a obra de Ariano Suassuna para esse tipo de público? Minha leitura do universo de Ariano não entra em universo de sensações e imagens que tinha de minha mãe, a qual perdi muito menino; assim como, também muito conflito com a de nenhum outro realizador, seja ele de menino, Ariano perdeu seu pai, lá na primeira infância. teatro, cinema ou TV. Simplesmente será a minha leitura, Dentre tantos caminhos, enveredei em direção à sua obra mas que de certo modo reage à minha própria constatação como alguém que busca fazer daquelas leituras o seu de que a leitura que se faz do Nordeste tem sido repleta de caminho de volta. E assim, até hoje, sigo completando esta clichês. Na grande maioria das vezes, a forma como o colcha de retalhos de minha vida. Nordeste nos é apresentado tomou um rumo lamentável: em vez da diversidade étnica e estética, cultural, lingüística A minissérie Os Maias foi sucesso absoluto de crítica e e comportamental, mostra-se um empobrecimento geneteve baixa audiência. Como o senhor avalia esse trabalho, e ralizado que faz com que os nordestinos pareçam mecomo foram, nesse sentido, as experiências com Uma Mu- díocres e ridículos, numa ânsia obsessiva de ora os tornar lher Vestida de Sol, A Farsa da Boa Preguiça(adaptada da peça atração exótica, ora os igualar a padrões que não corde Ariano Suassuna) e Hoje É Dia de Maria? respondem às suas tradições e que nascem com a consoUma Mulher Vestida de Sol e A Farsa... foram especiais lidação dos valores da cultura de mercado. Esses “prode um único capítulo. Mesmo assim corresponderam dutos nordestinos” parecem obcecados em adquirir aceimui to bem às expectativas de audiência. Hoje É Dia de tação a qualquer custo. (Alexandre Bandeira) • Continente agosto 2006
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CAPA
“A Pedra do Reino é o meu universo”
Folha Press
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Ariano Suassuna comenta os percalços para adaptar seu romance para as linguagens do Teatro e do Cinema e se diz orgulhoso com o trabalho dos diretores Qual a expectativa do senhor sobre a adaptação do livro A Pedra do Reino para peça de teatro e para um seriado de televisão? Eu estou muito orgulhoso e muito contente. Eu sempre tive muito medo de uma adaptação dA Pedra do Reino, principalmente para o teatro, porque eu achava que o romance é muito grande e de dimensões muito complexas para se reduzir a uma peça de teatro. Mas Antunes Filho discordou de mim, para minha alegria, e decidiu fazer uma adaptação para o teatro o que me deixou muito contente. Já para a televisão é diferente, porque é um seriado tem uma amplitude maior. Vão ser cinco episódios de 45 minutos cada um, de maneira que dá tempo suficiente para exibir história toda. O senhor já teve as peças Uma Mulher Vestida de Sol e A farsa da Boa Preguiça adaptadas para especiais de televisão e a peça O Auto da Compadecida adaptada para série de televisão e depois filme. O que cada obra ganhou e o que cada uma delas perdeu quando passaram para a televisão? Nos três casos, os dois especiais dirigidos por Luiz Fernando Carvalho e o seriado e filme de Guel Arraes, eu gostei muito das adaptações. No caso de Uma Mulher Vestida de Sol nós fomos muito constrangidos pelo tempo reduzido. Era um dia só e em 45 minutos nós tínhamos que mostrar a tragédia que Uma Mulher Vestida de Sol é. Mesmo assim Luiz Fernando Carvalho fez um trabalho muito bonito. A mesma coisa com A Farsa da Boa Preguiça. Apesar da experiência de ter de cortar o texto, foi Continente agosto 2006
menos doloroso. Apesar de que talvez eu goste mais do trabalho que ele fez com Uma Mulher Vestida de Sol do que no de A Farsa da Boa Preguiça. Mas tenho a impressão de que ainda não avaliei muito bem, eu gosto muito dos dois trabalhos. Quanto ao seriado de Guel Arraes, houve algumas novidades, mas feitas com minha autorização. Ele me pediu para enxertar trechos de peças minhas no seriado. Ele tomou alguns episódios de O Santo e a Porca, A Pena e a Lei e A Farsa da Boa Preguiça e eu concordei. Ele também pediu licença para colocar cenas de clássicos, que foi o caso de Shakespeare e Molière. A história em que o coronel quer tirar o couro é de O Mercador de Veneza e aquela história do marido enganado que passa a ser traidor da mulher e que fica trancado fora de casa é de uma peça de Molière. Ele propôs essas mudanças e eu achei que ficou muito bem encaixado. Além disso, Guel tratou os personagens do padre e do bispo com uma dimensão religiosa mais profunda do que está na peça, onde eu tive de apresentar os personagens de modo mais esquemático. Lá ele dispunha de tempo e aproveitou o momento onde os dois são fuzilados junto com o padeiro, para dar uma dimensão dramática a eles que me agradou muito.
CAPA reiro, a peça estreou na televisão. Pois bem, eu andava na rua e a impressão que me dava era de que eu tinha escrito a peça em dezembro de 1998. Porque eu encontrava pessoas que nunca tinham ouvido falar de O Auto da Compadecida e que a partir daí começaram a conhecer e se interessar pela peça e até por outros trabalho meus.
O senhor foi consultado ou interferiu de alguma forma na adaptação do texto de teatro para o texto de televisão? No caso de Uma Mulher Vestida de Sol e A Farsa da Boa Preguiça eu fiz a adaptação e Luiz Fernando Carvalho fez o roteiro a partir dos meus cortes e da minha adaptação. No caso de O Auto da Compadecida a adaptação é do pernambucano João Falcão. Como o senhor vê a tendência de se explorar novas linguagens? Eu acho muito bom. As pessoas não têm acesso ao teatro – que em países como Brasil continua a ser uma atividade meio elitista –, já a televisão atinge muito mais gente. Eu vou lhe dar um depoimento pessoal. Eu escrevi O Auto da Compadecida em 1955, a partir daí a peça andou o mundo todo. Foi encenada aqui, na Europa, em Israel, em Cuba. Mas em 1999, em janeiro ou feve-
O senhor já declarou que A Pedra do Reino seria uma trilogia e lançou O Rei Degolado. O novo romance que o senhor está escrevendo completa esta trilogia ou virou uma obra mais ampla? Eu mudei muito de foco. Veja bem, quando eu comecei a escrever O Rei Degolado e publicar no Diario de Pernambuco na forma de folhetins, ia ser um livro em cinco partes como A Pedra do Reino. Eu só cheguei a publicar no jornal duas partes e em forma de livro uma. Depois que eu publiquei esta parte em livro que se chama Ao Sol da Onça Caetana eu percebi que eu tinha dado um erro de visão. Quando você lê A Pedra do Reino e depois lê essa parte de O Rei Degolado que foi publicada em livro você vai ver que o Quaderna que aparece nele é outra pessoa. É muito mais parecido com Ariano Suassuna do que com o próprio Quaderna de A Pedra do Reino. Isso foi uma das coisas que me desanimaram a continuar. Agora com a reedição de A Pedra do Reino eu comecei a reanimar e estou com vontade de parar com o romance que estou escrevendo e terminar A Pedra do Reino que ficou inconcluso. Qual o sentimento que o senhor tem com A Pedra do Reino? Eu já declarei isso várias vezes. Se um dia me dissessem que minhas obras seriam destruídas e que eu só teria direito de salvar uma, eu salvaria A Pedra do Reino porque é a minha predileta, é aquela na qual eu expressei, do modo menos incompleto que me é possível, meu universo interior, que todo escritor tem. Eu acho que tomada isoladamente é a obra que expressa esse universo interior. • Continente agosto 2006
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LITERATURA
O vôo das palavras Romance de estréia de Maria Valéria Rezende, freira paulista com vivência no Nordeste, surpreende por estrutura e invenção
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Luiz Carlos Monteiro
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romance O Vôo da Guará Vermelha, da escritora paulista Maria Valéria Rezende, traz a história de dois imigrantes nordestinos, o peão de obra que é também contador de casos, Rosálio, e Irene, mulher contaminada pelo vírus da aids e que sobrevive como prostituta numa cidade grande. O livro figura na coleção Fora dos Eixos, da editora Objetiva, que intenta, entre outras coisas, encontrar nos autores publicados uma diferenciação mais que simplesmente regional ou geográfica, um desempenho estético que deve aparecer como uma poética da reinvenção ou da criatividade. A titulação dos capítulos de O Vôo da Guará é feita através de uma combinação de cores que aparece no texto relacionada a algum fato relevante, a exemplo de “ouro e azul”, onde Irene “esquece o presente pensando no que virá, como quando se sentava à beira do rio da infância, ouro e azul refletindo o céu e o sol da manhã”. A disposição espacial dos 17 títulos forma, intencionalmente ou não, um poema visual iniciado por “cinzento e encarnado” e terminando em “azul sem fim”, além de cada capítulo abrigar, num tipo menor de letra, os relatos de Rosálio ou a transformação
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que ele faz de relatos de outras pessoas em novos relatos. No Vôo da Guará tudo se passa à maneira de uma longa conversa onde os assuntos ora são estimulados, às vezes afloram naturalmente, ora se interrompem para dar lugar à mudez, ao sono ou a outra atividade qualquer que não permita usar a fala. O percurso ficcional deste livro enseja uma tríplice ressonância, a conjunção fala-leituraescrita que quase nunca se rompe, embora se saiba que a ficção dialogada exige, obviamente, a anterioridade da fala, mesmo que tal oralidade tenha sido apenas pensada e imaginada por algum escritor em particular durante o seu processo de criação. Mas aqui também deve ficar o registro do atropelo que, em certos instantes, as palavras produzem entre si, confundindo os espaços da poesia e da prosa, misturando frases que não são versos com versos propriamente, colocados indevidamente fora da sua forma ou lugar. Rosálio da Conceição, filho enjeitado que até certo ponto da vida não tem nome próprio – atende por Curumim ou Nem-Ninguém – a partir de seu encontro com o Bugre, um sujeito que aparece na Grota dos Crioulos, ninguém sabe de onde, doente e precisando de
LITERATURA cuidados, e que após sua cura conta a Rosálio histórias retiradas de leituras de livros que carrega, como um tesouro, numa caixa de madeira. É desse modo que Rosálio fica obcecado por aprender a ler para aperfeiçoar os seus dotes naturais de contador de histórias. A tentativa de encontrar quem o ensine a ler o faz viajar bastante, correr mundo, frustrar-se, chorar, rir, ter esperança, trabalhar pesado em vários tipos de atividades e locais, desde a fazenda, passando pelo garimpo, o acampamento de sem-terra e canteiro de obras. Isso até encontrar Irene que vai, mesmo precariamente, atender a seus propósitos de alfabetizar-se e escrever num caderno as histórias que ele inventa. O palco inominado de contação das histórias ou casos escolhido por Rosálio é uma praça de uma grande capital, todas as pistas levando à crença de ser da Sé a praça e São Paulo a cidade: “Que agora já sei onde é o canto, aqui nessa cidade, que se parece com a feira que havia no interior, onde um homem bem falante pode ganhar seu dinheiro, honestamente, vendendo apenas suas palavras. Vou todo dia pra praça onde mais se ajunta gente, contar as minhas histórias. Desde que eu ouvi, um dia, um cantador numa feira, depois o homem da cobra falando, e o povo gostando, e a gente ouvindo o tlim-tlim das pratinhas numa lata, cada vez caindo mais, tive uma inveja danada e pensei que gostaria de viver daquele jeito, agora chegou a hora, sei que estou preparado”. Quando Irene duvida de sua capacidade para prender a atenção do povo, Rosálio arremata com o relato da sua experiência anterior: “Eu aprendi com o Gaguinho, de nome de pia Eustáquio, foi um grande amigo meu, que me mostrou que uma história, se for contada com jeito, palavra atrás de palavra, o corpo todo acompanhando, de modo que o outro escute inteiro com a cabeça, o coração e as tripas, pode até valer dinheiro, e vale mais que dinheiro”. A larga experiência de vida e trabalho com comunidades pobres no Nordeste e em outras regiões, o conhecimento da cultura e da educação popular, permitiram a Maria Valéria transpor para a forma impressa parte de suas vivências, embora isso não se reduza a um mero fator de manipulação dos personagens. Estes, na sua imensa pobreza, marginalidade e alijamento do mundo, se mostram, em várias passagens do texto, seres generosos e solidários, quando se pensa nas relações impiedosas, competitivas, predatórias e demasiado corruptas destes tempos (Irene, por exemplo, vende seu corpo para sustentar um filho pequeno e uma velha senhora que toma conta dele). Não se pode ficar imune ao desfecho do livro, quando Irene, na sua extrema fragilidade, é atacada brutalmente por um freguês e morre. E Rosálio, que a ama pelo que ela representou de definidor na sua vida, pois lhe trouxe o maior bem a que um homem pode aspirar, a capacidade de decifração do mundo através da linguagem, ensaia o seu adeus definitivo: “O homem lança ao quarto vazio um último olhar dolorido, uma das mãos apertando a alça de sua caixa, sua âncora nas ondas e correntezas da vida, que, com os livros e brinquedos que há anos vem carregando, leva agora uma camisa e um vestido coloridos, o seu chapéu de palhaço e um caderno todo escrito, a outra mão de mansinho puxando a porta empenada que não se fechará inteira, há de ficar entreaberta no coração de Rosálio, deixando passar os raios da pura luz que é Irene, depois de enterradas as sombras”. •
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O Vôo da Guará Vermelha, Maria Valéria Rezende, Editora Objetiva, 184 páginas, R$ 33,00.
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Divudlgação
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Tela de George Barbosa
Maximiano, cidade e campo
Lançamentos simultâneos de obras do escritor Maximiano Campos trazem duas vertentes de sua literatura, a urbana e a rural
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obra ficcional de Maximiano Campos (1941–1998) se situa no contexto humano e social do Nordeste brasileiro, subdividida entre narrativas que se passam no Recife, capital pernambucana, e histórias ambientadas nos engenhos da Mata ou em lugarejos do Agreste e Sertão. Um desempenho temático se estabelece neste passo, pois assim como a feição urbana se encontra presente e disseminada no conjunto dos seus mais de 10 livros, a vertente rural também se realiza nas relações de condicionamento e submissão do homem e da terra a circunstâncias peculiares e regionais como a seca, a violência e a opressão. Entre os inéditos deixados por Maximiano Campos, figurava o texto de Os Cassacos, concluído em 1968, e escrito pouco depois do livro de estréia, Sem Lei Nem Rei. Os Cassacos teve uma pequena edição em 2003, que passou praticaContinente agosto 2006
mente despercebida, e assim manteve de algum modo o ineditismo. Havia outros textos nas gavetas do autor, caso da novela A Multidão Solitária, escrita entre 1978 e 1994, e dos cinco contos inéditos já publicados em Na Estrada (2004). Os Cassacos pertence à configuração rural, a capital e outras cidades pernambucanas aparecendo no contexto apenas como referências de alguma situação, acontecimento ou deslocamento do personagem Rodrigo. Verifica-se que novos personagens vão aparecendo ou mesmo entrecruzando-se com os antigos, formando uma teia que também se comunica com outros livros do autor. Rodrigo dá a medida certa do narrador-personagem em primeira pessoa, conduzindo a ação do início ao fim, sem esconder misérias, derrotas ou avanços na sua inclinação de escritor que assume a pele temporária de senhor de engenho sem
LITERATURA vocação para a lida. Uma noite de insônia faz com que volte a escutar as histórias de Navieiro, ex-cangaceiro e vigia do engenho “Tranqüilidade”. Rodrigo exercita a sua capacidade de sonho e imaginação, para futuramente transformar toda essa oralidade em literatura escrita. Mesmo vivendo no engenho, transporta-se para a caatinga, para a experiência desafiadora dos cangaceiros. O capitão Antônio Braúna é um misto de Antônio Silvino (é Antônio também e seu bando é pequeno) e Lampião (que foi abençoado pelo Padre Cícero e recebeu deste a patente de capitão). Maximiano Campos absorveu a linguagem do povo da Mata pela vivência pessoal em terras da sua família. Seus numerosos e multifacetados personagens se removem e sobrevivem ao tempo e às circunstâncias inimigas, captados das camadas populares ou da elite, de segmentos de uma civilização em decadência (caso dos engenhos de cana-de-açúcar) ou em expansão (com a instalação das usinas). A ficção de Maximiano está repleta também dos costumes que perfazem as culturas locais, como as relações de trabalho num engenho, verticalizadas a partir do senhor, passando pelo administrador e o dono do barracão, até chegar aos trabalhadores. Aparece a questão religiosa, tripartida entre o candomblé (os ritos são conhecidos no interior também por “xangô”) e o protestantismo incipientes, tendo como tendência dominante o catolicismo. E ainda, o lado festivo da população, com as festas de calendário que contemplam padroeiros locais e feriados nacionais, com os mais diferentes tipos regionais de folguedos, danças ou quermesses. Não pode ser esquecida a diversidade da comida regional, tanto a partir de frutos e cereais da terra, como carnes de criações ou bichos do mato ou ainda dos tipos de peixe fisgados em rios e riachos. A Multidão Solitária se passa completamente no cenário urbano do Recife, embora haja personagens que apenas vão saltar de uma novela para outra. Filipe, que aparecia em Os Cassacos apenas nos pensamentos e cuidados de Rodrigo, por ser irmão mais novo, agora se mostra bastante à vontade na cidade que é seu verdadeiro habitat. Estabelece diálogos e relações de convivência com o louco jovem Dom Sebastião e seu pai Melquíades Navieiro, o mendigo maneta Pedro, o militante político Breno, a mulher Anália e o próprio Rodrigo, além de estudantes, policiais e desabrigados da chuva, todos personagens que são da cidade grande ou se adaptaram a ela , vindos do litoral ou do sertão. Filipe enceta junto a Breno uma discussão sobre política que vai questionar desde a posição pessoal de cada um,
até a comunicação de Breno sobre uma sua participação próxima na luta armada. Ele vai intervir num comício no Recife, após a morte de Breno, conseguindo marcar sua posição e atitude frente à escrita e a vida política daqueles dias. Os dois livros se complementam em suas diferenças e semelhanças flagrantes, notadamente no âmbito de conteúdos e formalístico. A Multidão Solitária é um livro todo embasado em diálogos dinâmicos e ações rápidas, prestando-se bem mais à contextualização urbana, cujo resultado se expressa na contenção vocabular e na sintaxe enxuta. A nudez de cenários deste livro contrasta com a descrição de cores, plantas e bichos, e com o verde exuberante do canavial presentes em Os Cassacos. Maximiano Campos exercita, na prosa de ficção, aquela “visão poética do real” proposta para ele por Ariano Suassuna no prefácio à coletânea de contos As Emboscadas da Sorte (1971). E é neste ponto que sua obra se afasta de um naturalismo renitente e que ainda teima em persistir na obra de muitos prosadores. Escritores mais ligados à prosa que à poesia, e que muitas vezes pensam estar trabalhando uma poética da ficção, quando apenas estão praticando um tipo de realismo diferenciado, que pode atender por nomes os mais diversos. E que também pode caracterizar-se pelo fato de não alcançar ser reconhecido pelo que seus executores pretensamente alardeiam como alguma espécie de novidade literária que não logra dizer seu nome. (Luiz Carlos Monteiro) •
A Multidão Solitária, Maximiano Campos, Editora Bagaço/Instituto Maximiano Campos, 208 páginas, R$ 25,00. Os Cassacos, Maximiano Campos, Editora Bagaço/Instituto Maximiano Campos, 249 páginas, R$ 30,00.
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Divulgação
Clave expressionista Delmo Montenegro
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Com Música Possível, o poeta Fabiano Calixto finalmente cristaliza anos e anos de experimentação com a linguagem e produz sua definitiva entrada no campo da literatura nacional
publicação do novo título de Fabiano Calixto, Música Possível, pela prestigiosa coleção Ás de Colete, das editoras 7Letras e Cosac Naify, pode ser encarada de duas maneiras. A primeira, como o reconhecimento, enfim, por parte de grandes editoras, de toda uma nova cena poética, eclodida em São Paulo, a partir do final dos anos 90 e que agora parece atingir a sua primeira maturidade artística. Nomes como Fabiano Calixto, Tarso de Melo, Eduardo Sterzi, Kleber Mantovani e Virna Teixeira, que despontaram através de publicações independentes como as revistas Monturo e Cacto, começam agora a ocupar o espaço que lhes é devido no cenário nacional. A segunda maneira tem a ver com o destaque dado nos últimos anos a vários jovens autores pernambucanos que, curiosamenContinente agosto 2006
te, são primeiro editados fora de Pernambuco e são pouquíssimo conhecidos no seu Estado de origem. Poderíamos citar pelo menos três exemplos notórios: Micheliny Verunschk – finalista do prêmio Portugal Telecom de 2003, com seu livro de estréia Geografia Íntima do Deserto, editado pela Landy (SP); Jussara Salazar – que publicou em 2005, o extraordinário Natália, pela Travessa dos Editores (PR); e Heron Moura – vencedor do prêmio Minas de Cultura de 1998 com o seu Vendedores de Sono e Outros Poemas, publicado pela Nankin Editorial (SP) e que acaba de lançar neste ano O Respirante, pela Coleção Guizos, da editora 7Letras (RJ). Este é o caso também do jovem poeta Fabiano Calixto, nascido em Garanhuns (PE), em 1973. Estrangeiro em sua própria terra, Fabiano atualmente reside em Santo
LITERATURA
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Fabiano Calixto está entre aqueles jovens autores pernambucanos que curiosamente são primeiro editados e reconhecidos fora de Pernambuco e pouquíssimo conhecidos em seu Estado
André (SP). Publicou Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000) e, em parceria com Kleber Mantovani e Tarso de Melo, Um Mundo só para cada Par (Alpharrabio Edições, 2001). Traduziu, com Claudio Daniel, poemas do dominicano León Félix Batista, reunidos no volume Prosa do que Está na Esfera (Olavobrás, 2003). Organizou, em parceria com André Dick, A Linha que Nunca Termina – Pensando Paulo Leminski (Lamparina Editora, 2004), livro-homenagem que reuniu ensaios, depoimentos, contos e poemas de mais de 40 escritores (entre os quais Haroldo de Campos, Eduardo Milán, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Rodrigo Garcia Lopes, Antônio Risério, Marcelino Freire, Glauco Mattoso, Claudio Daniel e Frederico Barbosa) a respeito da obra do grande bardo polaco-curitibano. Sua obra póetica, porém, só agora atinge a perfeição através deste Música Possível, onde Fabiano finalmente cristaliza seus anos e anos de experimentação com a linguagem e produz sua definitiva entrada no campo da literatura nacional. Realizando uma sintaxe angulosa, de entorses, choques e imagens fragmentadas, Calixto recupera e radicaliza a náusea, o asco e o seco da violência agônica drummondiana, desossando as páginas, suturando as frases com vírgulas, parênteses e finais abruptos. Veja a forte clave expressionista e urbana que permeia a música de poemas como “Sem título ou Fragmentos líquidos” (“réptil / este rio [espelho / de espasmos] rasteja / dentro de si. / este, ao sol desta hora / convulsiva. dia sem encanto / ou quina. / rio indigente / aborto / desta urbe. / (este, adeus à / pequena vila / que o esmerilha). / ... / o rio, / este, cadáver / líquido.”), “O morcego” (“cruza aberto e sonoro / um coalho de treva / na noite aberta / à cidade / [ausência de ambiente / nas pupilas] / inventa o vento / um caco de vidro / sangrando / o tempo / esqueleto-dialeto / desaparecendo / – romãs / desabam / virgens / maculadas”) e “Criança” (“rosto maquiado com / sombra. não a que / escapa-lhe ao corpo. / outra sombra, por dentro, / guache
de pranto / em cores-hematoma. / rosto sob o soco, / sob o esgoto da / aldeia. catedral densa / de cólicas. cela de névoas. / sóbrio como a pálida morte / dentro do dorso. um dentro / vazio. último estalo. [sol a pino]. / suspiro contido. útero de um tiro.”). Esta dicção severa, contudo, não transforma Música Possível num livro amargo, suas glicínias também surgem de forma caleidoscópica nas tramas vegetais de poemas como “Poema nº 18” (“[em Nice][em / Leningrado] [aos / quatorze do sete / de vinte e sete [aos / quarenta e sete] / Isadora adeus-se] / [os dois não sangüíneos / filhos: a foice mortal / das águas] [o poeta / proletário [filho dos / filhos de / Riazan] dos fios / linhos rubros / do pulso até os / dos dias – amor / tecendo o futuro – ex / pulso]”) ou “Arpejo” (“derrotada pela palavra / que molhou com mel / ela não mais acredita / em cerâmicas chinesas, dicionários, flamboyants etc. / mas quando se debruça [como as glicínias / seus azuis / à atmosfera ainda nua] / à janela / a contemplar a tarde / algo premeditado / entre as forças do universo / age / deflagrando uma geometria particular / a partir de seu dedilhado / ao antebraço”). Fabiano Calixto demonstra que, sim, uma outra música é possível dentro da nova poesia brasileira. •
Música Possível, Fabiano Calixto, Coleção Ás de Colete, Editora Cosac Naify, Co-edição: 7 Letras, 96 páginas, R$ 25,00.
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Cerâmica Ela estava no gramado, aguando as plantas, em frente à casa que dava diretamente na estrada por onde eu vinha. O sol da tarde figurava em seu rosto como se nele encontrasse a moldura perfeita, e a algaravia dos pássaros, pressentindo a noite iminente, me bicava a consciência. Seria como das outras vezes, eu apenas passaria dali e a fitaria e, enquanto estivesse sob a minha mira, ela me ocuparia toda a mente como uma pedra cortante, mas no momento em que ficasse para trás, substituída nos meus olhos pela fileira de eucaliptos, eis que o desejo de me enfiar, pleno, na sua sombra, cairia como uma árvore, tão afinada é a resignação quanto um machado. Mas a trava, que em mim vivia fechada, de repente se partiu, minhas pernas me moveram para outro rumo, e, se antes eu a via pelos vãos de uma cerca de arame farpado, agora a via entre moirões vazios, à espera de alguém que os ultrapassasse. Se calculava errado ou não, só me restava avançar; ao contrário de átila, e longe de ser uno, já me sentia mesmo dividido entre o que eu fora a vida toda e o passo que dava àquela hora; me cumpria então ser o homem a pisar no seu gramado, e eu floresceria a seus pés, embora não soubesse nada dela, senão que a via todas as tardes, ao voltar da olaria, sempre ali, como um sinal de que a máquina do mundo girava suas pás, indiferente à minha existência. Quando me aproximei, a relva que ela regara me molhou a barra da calça, o verde ondulou em meus olhos, e, tendo-a, tão fresca, ao alcance dos lábios, eu nada lhe disse, apenas a olhei como se olha uma vida, inteira, e, seguindo para a porta da casa que me chamava para cruzá-la, ouvi o rumor de suas sandálias atrás de mim, sabendo que se movia com o vento dos meus moinhos. Como um ulisses, meu corpo sabia mais daquela casa do que minha mente, e fui me levando pela escada à planta de cima, e encontrei o quarto eleito, onde o sol se infiltrava pela janela com displicência. Deitei à cama e esperei-a e, se ela entrou logo em seguida, pela primeira e única vez, sei que nela me entrei para sempre.
PROSA
João Anzanello Carrascoza
Ele vinha pela estrada de terra, a mesma que margeia o gramado de casa e segue pela linha de eucaliptos, e apesar de ignorar tudo de sua vida, eu sabia, como todo dia nasce do ventre de uma noite, que ele vinha da olaria. Não porque tivesse as mãos e o rosto sujos de alguma nódoa, mas porque eu podia ver, a cada tarde, quando daqui ele passava, que tinha o barro no jeito de se mover e era essa humanidade que me atraía. Eu molhava o gramado, e não estranhei a sua mudança de passo, era como uma planta que espera a sua água, e eis que, de repente, a cortina de chuva se deslocava em minha direção. Ao redor, o silêncio se escoava, em gotas, engolido pelo manancial que era o canto dos pássaros àquela hora de volta ao ninho, excitados pela escuridão que breve se instalaria. Continuei na rega, fingindo que não percebera sua alteração de rota, mas, como uma árvore à brisa, apesar do tronco rijo e inerte, todo meu ser se agitava, o que era galho em mim ondulava, e subia e descia à superfície o meu desejo mudo de sereia. Então ele saiu da estrada e se acercou de minha relva úmida, e eu pude captar o que a terra sentia a cada um de seus passos, a sua coragem resoluta, porque se o instante era de areia movediça para nós dois, foi ele quem o pisou primeiro, e me pareceu, ou foi meu olhar que depois ele atravessou seguindo para a porta de casa, que o sol ainda vivo e rastejante tentava morder seus pés no calcanhar, mas como a sombra de aquiles a barra da calça o protegia. Sem saber se havia alguém comigo, ou lá dentro, e, antes de subir as escadas à minha frente e deitar-se na cama, parou e me olhou de forma tão intensa com a sua vista verde, esculpindome de uma vez, como se tivesse a vida toda se habituado à minha argila. Fui ao seu encalço, as sandálias seguindo o mapa que ele desenhava no meu próprio terreno. E quando me deitei sobre ele, saí de mim, totalmente, como quem sai de dentro da pele, e atirei-me de lado feito uma roupa, para nunca mais deixar de ser a outra em que me transformei.
João Anzanello Carrascoza, paulista de Cravinhos, é escritor, redator de propaganda e professor. Publicou os livros de contos Hotel Solidão (1994), O Vaso Azul (1998), Duas Tardes (2002) e Dias Raros (2004). Tem histórias em várias antologias, como Cuentos Breves Latinoamericanos (1998), Geração 90: Manuscritos de Computador (2001) e Scrittori Braziliani (2003). Dos prêmios que recebeu destacam-se o Guimarães Rosa – Radio France Internationale e o Eça de Queiroz.
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POESIA
Poemas de
Márcia Maia solo de violino à contraluz da lua nova
en passant relembrar meio en passant a sua boca explorando minha pele na varanda
da casa a porta azul a sala imensa e cinza sólida pétrea prima o pórtico e a porta
um centímetro e mais outro lentamente como um mapa que de mim fosse fazer
mastro e velame marco a caixa do relógio barco que aporta à porta e o vidro da caixa
terminado o explorar da superfície e revistos um a um cada meandro
que o mundo em dois se cinda espelho norte em sul antes e após a porta um céu sob outro acima
sua boca em minha boca se detinha a buscar na umidade que era a minha os segredos do meu mar sem escafandro
anti-solar relógio em áureo-vítreo arco esgarça expõe encaixa aorta peito e porta
do oceano vinha em busca da planície para a mais funda incursão empreender à caverna aonde arde intensamente
a casa azul sem porta a sala imensa e cinza ar por matéria-prima o pórtico sem porta vento velame e marco a corda do relógio antes e após a porta um céu sob outro acima fídias gaudí e relógio em raro-ubíquo arco desfeito em vidro e caixa o tempo além da porta
o prazer que nos suscita essa ciranda se en passant passeia em mim a sua boca
emersão exíguoespelhoespaço espiralerguida entreadoreosalto feraencravada entreacórneaearetina
amormorrente entreapresaeoato alínguaodenteosangueagarra eumtigresuspensonoolhar
Márcia Maia é recifense. Publicou os livros: Espelhos (2003), um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas ( 2004) e em queda livre (2005). Edita os blogues tábua de marés (http://www.tabuademares.blogger.com.br) e mudança de ventos (http://www.mudancadeventos.blogger.com.br). Continente agosto 2006
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AGENDA/LIVROS G’dausbbah
Personagens na coleira Livro de contos do gaúcho Menalton Braff
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respira atmosfera densa de metáforas sombrias
ma atmosfera densa, mais sombria e represa que leve ou luminosa percorre os contos de A Coleira no Pescoço, 10º livro do gaúcho Menalton Braff. “Signo de Touro”, que também intitula a primeira parte da coletânea, perfaz-se em torno do súbito desaparecimento de Sebastião, deixando uma Clotilde viúva às vésperas de uma união jamais havida, e o seu retorno, também súbito, num domingo à tarde estigmatizado por “uma penumbra azulada e espásmica”, para marcar o casamento, assustando todo mundo como se fosse uma assombração inesperada, quando ninguém não mais sabia dele. As metáforas de Braff aproximam-se de referências visuais, tácteis ou auditivas feito um sol que se elastece ou recua ao ato imaginário de tocá-lo, ouvi-lo ou senti-lo como coisa viva, ilimitada e extrema, pulsante e onipresente. E assim também outros objetos e seres naturais ou viventes, simples ou complexos, revelam-se enriquecidos paradoxalmente na monotonia de uma rotina inesquivável. Um cão velho e rabujento mostra-se às vezes tão vivo e belo quanto outro ser que se exubera na formosura de sua compleição e delicadeza, no seu desempenho de lepidez e ludicidade. Em “O Rico Sorriso de Rita” (da segunda parte do livro, O Bezerro de Ouro), instaura-se um clima inusitado de tensão e perplexidade, quando Rita é demitida do emprego por não cumprir uma cláusula decisiva do contrato, ao não estampar um permanente sorriso no rosto para atender ao público. Cada conto aqui revela a radicalidade e o fatalismo irremissíveis de personagens ou de um personagem em particular, fazendo chegar a lume a inteligência de situações e enredos nem sempre permeados de clareza e visibilidade literais ou demasiado previsíveis. (Luiz Carlos Monteiro) A Coleira no Pescoço, Menalton Braff, Bertrand Brasil, 160 páginas, R$ 25,00. Continente agosto 2006
O nome complicado, um anagrama dos nomes Bush e Bagdá, introduz o leitor no universo poético de Alexandre Santos. O livro se propõe a questionar o imaginário e busca ser um épico contemporâneo nas palavras do autor. G'bausbbah narra a campanha de uma Besta que pretende se alimentar do mundo, conquistando-o. Expõe a contradição da busca pela liberdade que aprisiona, da democracia tomada à força e do amor fomentado pelo ódio. O livro traz, além dos poemas, a partitura de “Ode a Gomb”, música inspirada pela obra e textos que explicam e apresentam os poemas. G'dausbbah, Alexandre Santos, Edição do Autor, 205 páginas, R$30,00.
Crispim, a revista Depois de haver circulado nos corredores da UFPE por alguns anos em forma de fanzine, a Crispim, com o apoio da Editora Universitária, alcança as condições de que precisava para ampliar tanto seu público leitor quanto sua lista de colaboradores potenciais. O objetivo é fazer circular a poesia, seja sob nomes consagrados, como Rilke e Wordsworth em novas traduções, ou ainda pouco conhecidos, como Paulo Gervais. Além de poemas, traduções e contos, esse número traz entrevistas e ensaios, dois deles comemorativos: um sobre Ortega y Gasset e outro sobre Grande Sertão: Veredas. Crispim: Revista de Crítica e Criação Literária, 116 páginas, R$ 15,00. Contato: revistacrispim@gmail.com
O sexo no texto
Intervalo Lírico, do poeta paraibano Linaldo Guedes, é, na definição de Delmo Montenegro em sua apresentação, um “transespaço” em que a memória amorosa é tratada numa “apoteose sexual-textual” de extração cubista. Os poemas concisos estão impregnados de um lirismo de sensualidade quase crua, como nos versos de “Três movimentos para 1 só ato”, ou sugerida como em “Pássaro” (“um sexo/ espreguiça-se dentro do jeans://quer a liberdade/para ser aprisionado/por tuas mãos frágeis”). Intervalo Lírico, Linaldo Guedes, Dinâmica, 88 páginas. Informações: http://linaldoguedes.blog.uol.com.br/
Rato de biblioteca Amar o livro sobre todas as coisas. Este parece ser o mandamento principal do professor, escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto. Misto de crônica, ficção e livro de memórias, esta é uma obra que trata de um tema caro a todo bom leitor: a paixão pelos livros. É obra escrita com erudição, sensibilidade, humor e emoção. O autor narra como a partir de um livro ganho na infância – a Bíblia – conseguiu organizar sua biblioteca com livros comprados, doados, ganhos e, até roubados, como forma de herdar à força aquela biblioteca que lhe foi negada. (Luiz Arrais) Herdando uma Biblioteca, Miguel Sanchez Neto, Editora Record, 144 páginas, R$ 28,90.
Paixão pelos livros A Casa de Papel é uma incursão deliciosa pelo mundo secreto do amor ao livro raro
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is um livro que surge propondo os livros como personagens de uma narrativa, quando se volta a falar da “morte do livro” (supostamente decretada pela galáxia de Gates contra a de Gutemberg). A Casa de Papel, do argentino Carlos María Dominguez (lançado simultaneamente em 15 países), pode ser lido como uma pequena novela policial da bibliofilia, desde quando começa narrando como Bluma Lennon, uma bela professora de Cambridge, é atropelada na primavera de 1998. Ela acabava de comprar um velho livro de poemas de Emily Dickinson, e, após a sua morte, um colega e ex-amante recebe um exemplar de A Linha da Sombra, de Joseph Conrad, no qual Bluma escrevera uma estranha dedicatória. A partir daí, o narrador – também professor em Cambridge – irá cumprir um périplo, na busca do remetente do livro de Conrad (um livro com sinais particulares de uso etc.), A Casa de Papel, viajando a Buenos Aires, Montevidéu e Carlos Maria outros lugares, disposto a decifrar o enig- Domingues, Editora ma representado pelos dois livros, na sua Francis, 104 páginas, possível relação com a morte de Bluma. R$ 18,00. Pode parecer pouco – ou até mesmo não muito original - descrito assim, mas Dominguez faz de A Casa de Papel uma incursão deliciosa pelo mundo secreto do amor ao livro raro (e ameaçado), com ironia e poesia melancólica sobre a força de qualquer paixão, agindo sobre o destino geralmente medíocre das pessoas. É uma novela acima da média de mediocridade que atualmente se observa no continente (pós“realismo mágico”). (Fernando Monteiro)
Caldeirão cultural O escritor moçambicano Mia Couto está de volta com sua prosa poética (muito influenciada por Manoel de Barros), misturando ironia e crítica, presente e passado, realidade e alegoria, em seu novo romance, O Outro Pé da Sereia. Além do choque cultural e sincretismo religioso entre africanos, indianos e portugueses, o livro rememora a escravidão (sem escamotear que os próprios africanos a praticaram) e as missões cristianizantes dos jesuítas, carregadas de preconceito e prepotência. Apesar de enfrentar temas repletos de arestas, o livro mantém um tom leve e divertido, embora provoque um certo enfado o excesso de trocadilhos gratuitos (“bode respiratório”, por exemplo). Mesmo assim, é leitura que vale a pena, principalmente para brasileiros, cujo caldeirão cultural tem pontos de contato com o de outras ex-colônias portuguesas. (Marco Polo) O Outro Pé da Sereia, Mia Couto, Companhia das Letras, 336 páginas, R$ 43,00..
AGENDA/LIVROS
Festival de Livros no Recife Em sua quarta edição o Festival Recifense de Literatura, que elege como tema “A Letra e a Voz”, estará acontecendo entre os dias 16 e 27 deste mês. O tema escolhido realça a importância da poesia falada, aproveitando a comemoração dos 100 anos do frevo para também investigar a poesia que há nas letras de música. O evento se espalha por diversos pontos da cidade, como as bibliotecas públicas, mercados populares, praças, Torre Malakoff, Museu da Cidade do Recife e Livraria Cultura. Acentuando a idéia de diversificar os lugares onde se pode apreciar poesia, a Frevioca será transformada num Bonde Chamado Poesia e fará itinerância por diversos bairros, levando poetas e declamadores. Além das sessões de recitação, serão realizadas palestras, mesas-redondas, debates, seminários e oficinas. Alguns dos temas abordados são os 50 anos dos lançamentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e da 1a Exposição Nacional de Arte Concreta. O Festival homenageia, este ano, a escritora de livros infantis e editora Elita Ferreira, os compositores Raul e Edgard Moraes e o poeta Manuel Bandeira. 4o Festival Recifense de Literatura. Tema: “A Letra e a Voz”. De 16 a 27 de agosto.
Paris viva Existem casos em que um livro de reportagens pode ser melhor que um livro de literatura? No caso da norte-americana Janet Flanner, sim. A coletânea de crônicas jornalísticas que ela escreveu de Paris para a revista New Yorker revelam uma escritora vigorosa, capaz de traçar perfis definitivos em meia dúzia de frases curtas e saborosas, e dona de um apurado senso crítico na análise de problemas sociais e culturais. Convivendo com Gertrude Stein, Hemingway e Sylvia Beach (primeira editora do Ulisses, de James Joyce), Flanner disseca a Paris em que viveu, comentando crimes, ópera, política e moda. Paris Era Ontem (1925-1939), Janet Flanner, José Olympio Editora, 354 páginas, R$ 42,00.
Thriller angustiante
Embora ainda sofra o preconceito de certa crítica, a literatura policial tem revelado autores que estão bem acima dos esquemas mecânicos e personagens estereotipados de uma Aghata Christie, por exemplo. A escritora escocesa Val McDermid, em Um Corpo para o Crime é um destes autores. Neste angustiante thriller, ela trata de um assunto que provoca desconforto em qualquer pessoa: a violência sexual contra crianças dentro de uma sociedade fechada, em que todos se conhecem e qualquer pessoa de fora – mesmo que pretenda ajudar – é vista com desconfiança. Um Corpo para o Crime, Val McDermid, Bertrand Brasil, 506 páginas, R$ 55,00. Continente agosto 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Rohden,um sábio brasileiro Querer o dever é tornar o dever um prazer Huberto Rohden
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riança, ele era um contumaz caçador de pássaros, lagartos e borboletas, na fazenda da família. Não os matava, mas criava-os nos seus viveiros. Ainda muito jovem, deixou seus amigos da mata, entrou num colégio e terminou em um seminário católico. Deixou o catolicismo do clero após mais de duas décadas de sacerdócio, encurralado pela inveja e a calúnia. Seu nome: Huberto Rohden, nascido num então esquecido povoado de Santa Catarina, em 1894, e falecido em 1981. Durante toda a sua vida foi um leitor e um escritor possessos. Tornou-se poliglota e fez seminários em toda parte do mundo, onde lançou muitas das suas mais de 60 obras. Abandonou o clero mas não o verdadeiro Cristianismo. Seus estudos levaram-lhe a ser um dos maiores filósofos metafísicos e neoplatônicos do século passado. O respeito com que era recebido em qualquer Estado brasileiro e país do exterior deve ter assanhado uma grande inveja na parte podre do clero, que partiu para a mais funda das punhaladas, a calúnia. Acusaram-lhe de ter falsificado o imprimatur dos seus 25 livros até então publicados e, pior, devido às circunstâncias políticas, de ser aliado de Hitler. A campanha difamatória do clero, acumpliciada pela sua cúpula, no Brasil, caracterizou-se, mesmo, pela calúnia, este ataque criminoso que o grande romancista português, Camilo Castelo Branco, comparou com o carvão, que “quando não queima, suja”. Os grandes espíritos, similares ao de Rohden, são indelevelmente marcados pelas alegrias próprias de uma vida mística e pelos sofrimentos e perseguições mesquinhas surgidos em sua própria tribo. Afastado de seus Continente agosto 2006
caluniadores, ele passou a fazer grandes amizades com expoentes da ciência e da mística, em vários países. Quando esteve ensinando na Universidade de Princeton, nos EUA, tornou-se amigo de Albert Einstein, e tempo depois escreveu o livro Einstein. O Enigma do Universo, insatisfeito com a leitura de vários ensaios sobre a Teoria da Relatividade. Ao morrer, deixou inédito o livro Filosofia Univérsica, doutrina elaborada durante toda a sua vida e que ganhou consistência nos seus encontros com Einstein. Foi na década de 60 do século passado que travei o primeiro contato com a filosofia do mestre catarinense. Meu pai gostava de citar uma frase dele, meio trocadilhista, de que nunca me esqueci: “O mal que alguém me faz não é um mal porque não me faz mau, mas o mal que eu faço a alguém é um mal porque me faz mau”. Também gostava da crítica que Rohden fazia ao budismo radical, considerando que era impossível ser seguido à risca, exemplificando sobre o preceito de não matar nenhum ser vivo, com o fato higiênico necessário de se lavar as mãos com sabonete, o que ocasiona a morte de milhares de bactérias, que são inquestionavelmente seres vivos. Como, na minha cidade camponioperária, não havia biblioteca pública, nem livraria, comprei na Estação Central do Recife, numa antiga banca de revistas, dois livros de Rohden. Já não me lembro dos títulos nem do conteúdo, apenas de sua clara, semiclássica, metafórica linguagem, a de um escritor de verdade. Ele ficou no meu subconsciente durante muitos anos, e os escritores do meu meio não o conheciam, creio que somente o grande poeta Ângelo Monteiro poderia conhecê-lo, mas
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nessa época não lhe falei sobre o filósofo. Só neste século descobri outra pessoa que o admirava, Olavo de Carvalho. Em rápida conversa que tive com ele, atribuiu a pouca repercussão de sua obra à sua editora, a Alvorada. Entre os poucos livros de Rohden que possuo e que estão explícitos neste esboço biográfico, o que mais me interessou, por motivo pessoal óbvio, foi(é) Filosofia da Arte. Entre dezenas de definições que li sobre a Arte , a de nosso filósofo pareceu-me a mais precisa e mais estranha: “Arte é visão abstrata, manifestando-se em ação concreta”. Mas, para meu uso caseiro, tenho a pretensão de considerar os dois lados da moeda, acrescentando-lhe o lado oculto: “Arte é visão abstrata manifestando-se em ação concreta”, e visão concreta manifestando-se em ação abstrata. Explico-me. Ao passar pelo Parque 13 de Maio, aproximei-me de um grupo de fícus e fiquei impressionado com o relevo de seus troncos. Era a matéria viva retalhada e torcida demoniacamente. Mandei fazer
uma foto de cada um dos troncos daquelas árvores ancestrais, pelo grande fotógrafo, Assis Lima, e, com elas, fiz as 21 partes de meu poema. O problema é que não existe para Rohden ação abstrata. Prefiro não discutir, não posso questionar filosofia de gente grande. Dei, apenas, um exemplo, de como uma pequena definição do filósofo poderia gerar um congresso. Levando adiante a sua definição, ele defende que “a Arte consiste na faculdade de se visualizar em qualquer coisa individual um conteúdo universal, como também na capacidade de concretizar esse conteúdo universal abstrato em alguma coisa individual concreta”. Isso me faz lembrar de Blake: To see a world in a grain of sand. Já nesse complemento supõe-se a visão de uma coisa individual concreta, exprimindo o universal abstrato. Não compreendi muito bem suas reflexões sobre a vida depois da morte, embora até me contente com sua definição da morte: “Morrer é voltar da zona existencial para a zona essencial”. Ou seja, se morrermos, desapareceremos no Todo de onde provimos. Ainda bem, eu não suportaria viver eternamente. Mas essa, tenho a certeza, não é uma definição de Rohden para ser analisada tão superficialmente como eu o fiz. Os livros de Rohden me fazem parar em cada página, por uma provocação, uma beleza, uma reflexão. Gostaria de que todo mundo o lesse. Nas minhas horas de bom humor sinto vontade de dividir com ele meus milhões de leitores. Por falar em dividir, lembrei-me de um jogo vocabular seu, muito próximo à autodenominada poesia concreta. Numa referência que ele faz ao dualismo do monoteísmo clerical, que só reconhece a transcendência de Deus sobre as criaturas, ao invés da transcendência e da imanência divinas, como no monismo, o que levaria a um “Deus mutilado”, assim o escreve: (D)eu(s) • Continente agosto 2006
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Pernambuco filmando para o mundo Apesar das dificuldades enfrentadas por quem se arrisca na árdua tarefa de realizar filmes por estas bandas, os curtas locais concorrem em pé de igualdade com o que está sendo produzido por aí afora Alexandre Figueirôa
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produção cinematográfica em Pernambuco vive, hoje, sem dúvida, um momento especial. Além de longas-metragens nos festivais nacionais e internacionais, com inegável reconhecimento do público e da crítica especializada, uma excelente safra de curtas está ganhando as telas do país e do mundo e, apesar das dificuldades enfrentadas por quem se arrisca na árdua tarefa de realizar filmes por estas bandas, as obras concorrem em pé de igualdade com o que está sendo produzido por aí afora, e, melhor, não fazem feio. Dessa produção recente dois trabalhos são emblemáticos: Eletrodoméstica, de Kleber Mendonça Filho e Entre Paredes, de Eric Laurence. O curta de Kleber Mendonça, desde agosto de 2005, já participou de mais de duas dezenas de festivais, circulando em eventos internacionais considerados espaços de ponta para o formato – a exemplo do Festival Internacional de Clermont Ferrand, na França, e o de Karlovy Vary, na República Tcheca –, dois dos mais tradicionais e importantes festivais do mundo; e o filme de Laurence, também de 2005, já arrebatou 38 prêmios em festivais brasileiros, incluindo o de Melhor Filme em Gramado, e é, segundo a sua produtora Isabela Cribari, o curta pernambucano mais laureado de todos os tempos. Ele agora seguirá para uma carreira internacional e a expectativa é de conquistar novos troféus. Laurence é cearense, mas há quatro anos está radicado em Pernambuco e o seu filme foi todo realizado com recursos e equipe de produção composta por pernambucanos. A presença da produção local em tantos festivais, no entanto, não deve ser considerada o resultado de uma conjugação mágica ou sobrenatural. É, na verdade, fruto do esforço de uma geração que esbanja talento, criatividade e perseverança. É também herdeira de uma tradição que o Estado sempre demonstrou para a imagem em movimento desde o heróico e pioneiro Ciclo do Recife, nos anos 20, quando visionários como Ari Severo e Jota Soares realizaram 13 longas de ficção e inscreveram o cinema feito em Pernambuco na história do cinema mundial. Ela passa ainda pela intensa movimentação superoitista da década de 70, sem esquecer os nomes de Firmo Neto e Rucker Vieira que, sem grandes recursos, empunharam uma câmera e fizeram do cinema suas razões de viver. A fotografia
Jota Soares (com o megafone, à direita), um dos visionários do Ciclo do Recife. Na outra página, cena de Vinil Verde, de Kleber Mendonça Filho
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Eletrodoméstica, de Kleber Mendonça Filho, vem acumulando prêmios no exterior
de Rucker Vieira em Aruanda, do paraibano Linduarte Noronha, foi nada menos que uma das fontes inspiradoras do Cinema Novo, nos anos 60. Também nesta trajetória de lutadores incansáveis não podemos deixar de louvar a valentia de um Fernando Spencer, um dos documentaristas mais produtivos do cinema brasileiro, inspirador generoso e respeitado de todos os cineastas que hoje superam as barreiras da falta de equipamentos, de recursos financeiros, de escolas de cinema e se lançam na aventura de filmar. Foi com este espírito que Cláudio Assis, Marcelo Gomes, Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Adelina Pontual, Camilo Cavalcante, entre outros, determinaram para Pernambuco um novo panorama de sua produção audiovisual. O cineasta Léo Falcão, autor de dois curtas, Lugar Comum e The LastNote.com, ambos premiados no Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, e produtor dos filmes de Kleber Mendonça, afirma que a diversidade e a consistência de linguagem dos filmes pernambucanos chamam a atenção do público nacional e internacional. “Talvez seja reflexo da força cultural presente no Estado. Mas o fato é Continente agosto 2006
que existe uma força expressiva, sobretudo no que diz respeito às manifestações audiovisuais. Mesmo a quantidade de recursos não dando conta de tamanho potencial, o que se vê nas mostras nacionais é uma produção acima da média. Os comentários de críticos e espectadores são sempre nesta direção”. Esta força pode ser medida em filmes que, desde meados da década de 90, revelam um cinema pujante com traços autorais como é possível verificarmos nos trabalhos de Camilo Cavalcante, cujas obras chamam a atenção pela linguagem poética por ele adotada, a exemplo de História da Eternidade ou de documentários feitos com cuidadoso rigor, entre os quais podemos destacar os também premiados Simião Martiniano, o Camelô do Cinema, de Hilton Lacerda e Clara Angélica; Recife de Dentro pra Fora, de Kátia Mesel; ou Véio, de Adelina Pontual. Já Kleber Mendonça não consegue explicar as razões de Eletrodoméstica e Vinil Verde, outro trabalho seu de 2004 com um invejável currículo internacional, terem esta repercussão no país e no exterior. “Quando faço um filme, nunca sei se será de interesse, se irá viajar, se vai ganhar prêmio. São filmes muito pessoais, fei-
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Cena de The LastNote.com
tos dentro de casa, sobre questões muito pessoais, com visões pessoais. Se isso é de interesse para muitos, inclusive estrangeiros, para mim é uma alegria e sempre uma surpresa”. Mendonça considera que a carreira internacional de seus filmes é, até certo ponto, inédita em Pernambuco, e rara no Brasil. Segundo ele, 60% dos convites para participação surgiram de forma espontânea, pois curadores, consultores indicaram os filmes, quando o normal seria ele mesmo inscrevê-los em festivais e mostras. “A seleção em Cannes do Vinil Verde para a Quinzena dos Realizadores veio depois que os curadores o viram num DVD de filmes brasileiros. Eles pediram o filme e enviaram no e-mail a ficha de inscrição”. Ele acrescenta que não passa uma semana sem que cheguem pelo menos três novos convites para exibir os filmes, gerando para ele um enorme trabalho. O cineasta observa, todavia, que já seria o momento de o governo montar uma espécie de escritório para cuidar dos interesses do cinema pernambucano. “Sou eu como realizador que tenho que gravar DVDs, enviar cópias, pagar correio e sedex para que os filmes cheguem onde devem chegar. Dependendo do festival internacional,
a Agência Nacional de Cinema (Ancine) tem o programa de apoio, às vezes enviando cópias, às vezes pagando passagens. Essencialmente, no entanto, ter um filme de sucesso pode ser tanto uma alegria quanto uma fonte de doresde-cabeça por termos que arcar sozinhos com os custos da administração de um filme.” Para um tipo de produção cultural cujo retorno financeiro para seus realizadores é praticamente zero, o apoio público é fundamental, para que não se deixe escapar esta oportunidade de consolidação do Estado como pólo permanente de produção audiovisual, tanto de longas quanto de curtas. Os prêmios precisam ser ampliados e é preciso criar instrumentos de aperfeiçoamento profissional. As novas tecnologias estão despertando a curiosidade de talentos mais jovens que só têm como espaço para aprendizagem a atuação como estagiários em produções dos veteranos. “É da quantidade que surge a qualidade”, observa com pertinência João Júnior, da REC Produções. E se Pernambuco deseja continuar brilhando nas telas do Brasil e do mundo e transformar audiovisual numa atividade rentável, a hora é esta. •
Para um tipo de produção cultural cujo retorno financeiro para seus realizadores é praticamente zero, o apoio público é fundamental para que não se deixe escapar esta oportunidade de consolidação do Estado como pólo permanente de produção audiovisual tanto de longas, quanto de curtas
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Debaixo do céu vazio
Bengt Wanselius/Cortesia: Sony Pictures Classics
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Recluso, aos 88 anos, o cineasta sueco vê a arte de hoje, em todas suas manifestações – cinema, teatro, poesia, música etc. –, tomada por uma falsa vitalidade, levando a absolutamente nada Fernando Monteiro
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m seu retiro na ilha de Faro, o cineasta Ingmar Bergman acaba de completar 88 anos. Faro está cercada da desolação do Báltico, e, o aniversariante, da sua solidão de portas cerradas. Ainda é um homem vigoroso (apesar de insone na maior parte das noites), e permanece rijo também na vontade de se manter distante – muito distante – do mundo que o considera o maior cineasta vivo, ao lado de outro gigante, o nonagenário Michelangelo Antonioni (a respeito de quem Bergman é franco, agora, passado o tempo da diplomacia entre colegas: “Nunca fui muito fã dele. Tenho O Grito em vídeo; Deus, como é chato! Antonioni nunca aprendeu completamente seu ofício.”). Par do italiano na dupla que resta, de “monstros sagrados”, ou tomado como artista solitário na condição de “mestre dos mestres” da idade de ouro do cinema (enquanto arte), o fato é que o sueco não alimenta ilusões sobre a glória, vive uma vida relativamente modesta e quer o máximo afastamento dos anões liliputianos que ainda produzem livros, filmes e peças de teatro, num planeta populoso demais para o seu gosto. Estava no auge da fama quando resolveu deixar para trás a agitação de Estocolmo, os festivais europeus, as seduções do mundanismo e a convivência com seus pares, Continente agosto 2006
optando por morar na ilha descoberta, um dia, como locação para filmagens. Lá, mantém apenas algumas ligações afetivas (as atrizes – e ex-esposas – Liv Ullmann e Ingrid Thulin, por exemplo, que se tornaram “boas amigas”) de uma época definitivamente encerrada para quem hoje apenas medita, vê alguns filmes e, vez ou outra, vai rever os parentes que restam em Uppsala, a cidade onde nasceu (no dia 14 de julho de 1928) esse filho de um ministro luterano severo como o retratado na família – mais ou menos autobiográfica – de Fanny e Alexander, filme que o diretor chegou a anunciar como o seu “último”. Não foi. E Uppsala, com a solene universidade de mais de 500 anos, ganhou um mapa na parede da casa que Bergman comprou, longe deste insensato velho mundo. O que ele investiga, nesse documento da sua cidade natal? E o que faz, qual é a sua rotina, diante das neblinas do Báltico?
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Liv Ullman e Julia Dufvenius sob direção de Ingmar Bergman em Saraband, segundo ele, o último título de sua carreira
“Penso. Releio Strindberg, Ibsen e alguns outros. Tenho dificuldade para dormir” (nota: já sofria de insônia, antes de ir morar na ilha). “Ser insone, de qualquer modo, é o fardo do homem velho” – reflete, resignado. “Assisto alguns filmes (nota: sempre às três horas da tarde, e sempre velhos filmes que, por algum motivo, quer rever), numa cabine que um técnico amigo montou, no antigo celeiro. A vida é pouca para se fazer certas coisas, entre as quais incluo ler e reler Strindbeg (nota: volta a falar no dramaturgo, obsessivamente), admiração que mantenho desde a adolescência. Comecei a lê-lo aos 12, 13 anos. Primeiro, as peças de câmara, especialmente O Pelicano, que, lembro, me tocou muito, mesmo sem entendê-la bem. Foi mais o tom – de uma notável agressividade – que foi direto ao centro da minha sensibilidade de rapaz. Os textos de Strindberg estão no meu sangue.”
O último dos últimos – O verdadeiramente último filme da sua carreira (segundo garante) foi realizado há três anos, com base num texto de outra admiração da vida toda: Ibsen. Depois de um silêncio de anos, como realizador, ele quis adaptar um texto escrito por Ibsen em 1881 (“Espectros”), e o projeto – para a TV – resultou no longa-metragem Saraband, recebido, em 2003, como “um legítimo Bergman” – quando deveria ter sido saudado como “um quase Ibsen” (reclama, com um sorriso suavizando o maxilar, meio acavalado, de viking desejoso de ser cremado numa praia de Faro – caso a Suécia permitisse um funeral de pira de fogo para o seu supremo artista da tela). Recentemente, o metafísico de O Sétimo Selo – título “obrigatório” nas listas dos dez maiores filmes de todos os tempos – concordou em ser entrevistado, durante lonContinente agosto 2006
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CINEMA Vander Zwalm Dan/Corbis Sygma
Divulgação
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Liv Ullman, ex-mulher e atriz de vários filmes do diretor sueco
gas horas, para o documentário Bergman: Intermezzo, cujo título parece sugerir que o seu retiro não é mais do que uma “folga” do autor de filmes que resistem na sala escura das nossas mentes, nas cinematecas, nos DVDs e nos jornais e revistas que ainda perseguem o mito tanto quanto se mostram indiferentes a um Godard, surpreendentemente. Nota: Jean-Luc pode estar empenhado na produção semiamadora que for, hoje em dia, que isso mal será referido nas páginas dedicadas à cultura. Ingmar, entretanto, se voltar a filmar, será notícia celebrada em manchetes: “IB está dirigindo um filme sobre as abelhas da ilha de Faro!” Na ilha não existem colméias – e Bergman não pensa em filmar de novo. Nem em escrever ou dirigir uma nova peça de teatro. O solitário quer se manter calado na sua “Santa Helena”, como reiteração, inclusive, daquilo que já afirmou outras vezes: a arte se tornou num oco irremediável, em todos os quadrantes da terra. Deixemos que o próprio diretor de Morangos Silvestres o explique, num devastador texto que assombra pela visão de gelo, na sua finisterra: “Para ser totalmente sincero, hoje eu penso que a arte (e não só a arte cinematográfica) é insignificante. Literatura, pintura, música, cinema e teatro criam-se e nascem de si próprios. Fazem-se e desfazem-se novas mutações, novas combinações, e o movimento parece, visto do exterior, dotado de uma vida intensa – teimosia grandiosa que os artistas põem em ação para si, e para um público cada vez mais distraído. Em algumas raras ocasiões, o mundo dá a impressão de se importar com eles, e um artista pode ser castigado, a arte considerada perigosa ou Continente agosto 2006
Ingmar Bergman, em conferência de imprensa, em maio de 1998
a merecer ser abafada etc. No conjunto, contudo, a arte é livre, insolente, irresponsável, e, como acabo de dizer, o movimento é intenso, quase febril. Faz pensar (é o que me parece, pelo menos) numa pele de serpente cheia de formigas. A própria serpente está há muito tempo morta, devorada, privada do seu veneno, mas a pele mexe, plena de um ardor vital. Nesse pulsar externo, cada expressão artística exibe uma falsa vitalidade: o teatro parece-me uma velha gaiteira cuja época áurea já passou; a nova música dá a impressão de nos querer asfixiar num ar matematicamente rarefeito, enquanto a literatura parece transformada numa enorme montanha de palavras, sem significação profunda nem conseqüências perigosas. A verdade é que atualmente os homens podem recusar o teatro, pois vivem no seio de um gigantesco drama que não cessa de explodir em tragédias locais. Não têm qualquer necessidade da música, porque os seus tímpanos são constantemente agredidos por violentas tempestades sonoras, que atingem e ultrapassam a intensidade tolerável. Não têm qualquer necessidade da poesia, porque no seio da nova configuração do mundo transformaram-se em animais com funções determinadas, escravos de problemas de metabolismo sem dúvida interessantes, mas inexploráveis de um ponto de vista poético. A arte e até mesmo a religião mantêm-se vivas apenas por razões sentimentais, e como por uma delicadeza de pura convenção para com o passado, uma solicitude complacente que se curva diante dos cidadãos, cada vez mais nervosos, da civilização do ócio que criamos (talvez sem a querer?) sobre a terra quente e poluída, debaixo do céu frio e vazio.” •
CÊNICAS
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Encontros e deslocamentos Com atividades descentralizadas, o XI Festival de Dança do Recife aposta num formato conceitual, incentivando o plano formativo Christianne Galdino
O bailarino tcheco Zdenek Hampl é o
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studiosos, pesquisadores, curiosos e até mesmo os mais distraídos habitantes permanentes ou provisórios do local, podem constatar que o Recife é uma cidade que dança, a “arte do movimento” é uma realidade diária na capital pernambucana. Paradoxalmente, a relação das pessoas com as tantas vertentes desta manifestação artística permanece estacionada na superficialidade. É certo que a dança é uma arte do corpo, ou, como afirma a pesquisadora Helena Katz, “é o pensamento do corpo”, mas isso não exclui seus aspectos intelectuais, questionamentos e posicionamentos político-sociais. Faz-se urgente pensar a dança, incentivar reflexões e discussões sobre esse fazer, até mesmo para saber o que é feito, como é feito, por quê e para quê. Ouvindo o eco destas interrogações, o XI Festival de Dança do Recife, que acontece de 2 a 12 de agosto nos Teatro do Parque, de Santa Isabel, Apolo e Hermilo Borba Filho, além de invandir as periferias com atividades descentralizadas, aparece como um espaço para a busca de possíveis respostas, apostando em um formato conceitual e incentivando o plano formativo. “Investimento
em formação é o pensamento norteador do Festival, que, aliás, é uma das principais demandas da classe”, explica Arnaldo Siqueira, coordenador-geral do evento. O primeiro passo para dar este tom ao evento foi substituir a comissão que selecionava os trabalhos por um único curador, “alguém que conhecesse bem a produção local, nacional, internacional e tivesse experiência em curadorias”. Escolhido para esta missão, o cearense Ernesto Gadelha, coordenador de dança do Centro Dragão do Mar, em Fortaleza, e ex-curador da Bienal de Dança do Ceará, elegeu uma linha de trabalho, “que desse uma homogeneidade às diversas atividades do Festival e, ao mesmo tempo, conseguisse absorver a diversidade da dança pernambucana e seus intérpretes, boa parte dançando em outros palcos há muito tempo”. Desta maneira surgiu o tema Encontros e Deslocamentos, que perpassa as múltiplas atividades da programação e “pretende mostrar por onde está caminhando a dança no Recife e para onde está apontando”, com foco nos artistas que fizeram e fazem esta história, suas conexões com a realidade mundial, o diálogo com outras linguagens, as influências que sofreram e as marcas que vão deixando.
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Fotos: Divulgação
homenageado do XI Festival de Dan a do Recife
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CÊNICAS Esses encontros proporcionam um intercâmbio de quem nunca esteve no Recife com outros que nunca saíram, de artistas filhos da cidade que decidiram imigrar e outros que vieram de fora e resolveram ficar. Seguindo esta lógica, a coordenação geral do evento e a Secretaria Municipal de Cultura decidiram prestar homenagem ao bailarino e coreógrafo tcheco, radicado no Recife, Zdenek Hampl. Com formação na Universidade de Dança de Praga, em 1972, estava em turnê pela América Latina, com o elenco da companhia Lanterna Mágica de Praga, quando decidiu abandonar o grupo e se fixar no Brasil. Incialmente, passou uma temporada no Rio de Janeiro, atuando em montagens teatrais e trabalhando também na televisão, cinema e em espetáculos de dança. Chegou ao Recife na década de 80, mudando a história da dança na cidade com suas inovações e sendo precursor de uma época na qual se intensificaram as criações voltadas para a pesquisa de linguagem cênica. Na opinião de Ernesto Gadelha, nos últimos anos, o Festival deu um significativo salto de qualidade, o que aumenta o nível de exigência da curadoria. Atento às matrizes populares que marcam fortemente a dança local, Gadelha sabe que, em se tratando de Pernambuco, a dicotomia entre erudito e popular gera infindáveis polêmicas e acirradas discussões. Beneficiar equilibradamente os dois lados desta mesma moeda é o grande desafio do curador deste Festival que, como afirma Siqueira, “não é exclusivamente de dança contemporânea”. A inclusão do Festival no Circuito Brasileiro de Festivais de Dança, desde o ano passado, contribuiu para garantir à cidade do Recife um local de destaque no cenário nacional. Fazer parte do calendário oficial de dança do país possibilita ainda uma otimização de recursos, já que as negociações com convidados acontecem em rede. Por conta
Outras Formas, espectáculo de Ângelo Madureira que participa do Festival
disso, o Festival ganhou mais cinco dias na sua programação oficial, e muitos outros nas ações formativas que acontecem antes, durante e depois do período da mostra de espetáculos. No eixo teórico, haverá a realização do Seminário Dança e Novas Tecnologias, sob o comando do professor e doutor Armando Menicacci, da Faculdade de Dança da Universidade Paris VIII. Além das habituais oficinas das edições anteriores, o plano formativo traz duas novidades: uma residência artística, também coordenada pelo francês Menicacci, e um curso de vídeo-dança, ministrado pela equipe da ONG Alpendre, do Ceará. Os preços populares, as atividades descentralizadas e a gratuitadade de todas as ações formativas e teóricas revelam a preocupação dos organizadores com a democratização da cultura e do acesso às informações. Mas a classe artística, apesar de reconhecer a importância de um evento deste porte, critica a inexistência de políticas públicas municipais para a dança. “Este é apenas um ponto, apesar de bastate relevante, não pode ser a única ação política para a dança”– diz Marcelo Sena, bailarino, coreógrafo e um dos coordenadores do Movimento de Dança Recife. Marília Rameh concorda: “o que existe de ações é ainda pontual, abrange poucos bailarinos, a maioria independentes. Assim os grupos e companhias precisam fazer uma verdadeira mágica para sobreviverem”. A cidade que dança tem urgência em transcender os passos para “dar um passo à frente” e ocupar em definitivo um lugar, que já lhe pertence, no cenário artístico nacional. E o XI Festival de Dança do Recife é, sem dúvida, um excelente espaço para este avanço acontecer. O convite está feito. “ • XI Festival de Dança do Recife Informações: www.recife.pe.gov.br
AGENDA/CÊNICAS Jesuel Santana/Divulgação
Estudantes em cena
O espetáculo Pluft, o Fantasminha, que será encenado no Festival
4ª edição do Festival Estudantil de Teatro e Dança começa maratona de apresentações e revela talentos
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ela quarta vez, os estudantes pernambucanos vão poder atuar e mostrar sua veia cênica ao público. Grupos teatrais ligados a escolas públicas e privadas e cursos de teatro de todo Estado participam da 4ª edição do Festival Estudantil de Teatro e Dança. O evento, uma oportunidade para revelar talentos, traz uma programação bastante diversificada. Os estudantes vão encenar tanto musicais infanto-juvenis como Um Pequenino Grão de Areia, de João Falcão, Pluft, O Fantasminha, de Maria Clara Machado, quanto textos de renomados autores pernambucanos como Solte o Boi na Rua, de Vital Santos, A Maior Bagunça de Todos os Tempos, de Moisés Neto, O Segredo da Arca de Trancoso, de Luiz Felipe Botello. Os clássicos não vão ser esquecidos, as obras Quatro Vezes Molière e Médico à Força, de Molière, além de uma releitura da Valsa Nº 6 de Nelson Rodrigues, também serão encenadas no teatro Apolo. As apresentações de dança também passam por vários estilos (popular, afro, clássico e contemporâneo). Este ano, os homenageados são a produtora teatral e atriz Paula de Renor e o coreógrafo, diretor e bailarino Ubiracy Ferreira. Complementando o evento, vão ser realizadas oficinas gratuitas, como a de Escrita Dramática, com o dramaturgo, ator e diretor teatral Albemar Araújo. As premiações serão feitas nas categorias infantil e adulto: melhor espetáculo, diretor/professor, ator, atriz, ator e atriz coadjuvante, cenografia, figurino, maquiagem, coreografia, texto inédito de autor pernambucano. Nos espetáculos de dança, por sua vez, os troféus serão entregues nas categorias de melhor coreografia, coreógrafo, bailarino, bailarina, figurino.
Brasil Cantado
4ª edição do Festival Estudantil de Teatro e Dança, de 13 a 27 de agosto, no Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife), às 18h30 e 20h30. Ingressos: R$ 3,00 Informações: 3224 1114.
Divulgação
O Canto do Teatro Brasileiro I, espetáculo que só foi apresentado em Portugal, em novembro de 2005, chega ao palco do Teatro do Arraial. A performance do Grupo da Quinta transita entre a música e o teatro. Através de canções e fragmentos textuais de Calabar, Gota d’Água, Roda Viva e Ópera do Malandro de Chico Buarque de Hollanda; Arena conta Zumbi de Edu Lobo; Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, a peça desvenda o Brasil em seus aspectos históricos, políticos e socioculturais. Sob a direção musical de Kleber Santana, O Canto do Teatro Brasileiro I traz ainda textos de Rui Guerra, Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Pontes, a dramaturgia e encenação de João Denys e Rose Mary Martins. O Canto do Teatro Brasileiro I. 05 de agosto até 03 de setembro, sábados e domingos, no Teatro Arraial, (Rua da Aurora no prédio da FUNDARPE, Recife – PE), às 20h. Continente agosto 2006
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ARTES Imagens: Reprodução
Os labirintos da antiarte
Marcel Duchamp, um dos pais da antiarte
A performance é uma porta de fuga de muitos antiartistas, assim como algumas instalações são para outros. Tantas portas que, na maioria das vezes, dão num beco sem saída Weydson Barros Leal Continente agosto 2006
ARTES
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erreira Gullar não é uma unanimidade. Pode parecer óbvia a afirmação, mas não é. Ferreira Gullar não é uma unanimidade e isso é bom. Explico: para mim, a unanimidade é uma “casa de tolerâncias”, assim, no plural, de muitas. Direi de outra maneira: a unanimidade não é uma democracia, mas uma ditadura que, como aquela “casa”, encerra todos os credos, todos os crentes e também todos os idiotas que, como numa passeata francesa, não têm convicção alguma, mas gritam e depredam por nada. A unanimidade é uma passeata de concordâncias vazias. De antemão, aviso: sou partidário de Gullar. Estou com ele na linha de frente de quase todas as suas crenças. Em sua coluna “Traduzir-se”, publicada em fevereiro de 2006 na Continente Multicultural, Gullar escreveu um dos mais corajosos e esclarecedores artigos sobre arte contemporânea que li nos últimos anos. E posso dizer: um dos melhores que li até hoje. Queria tê-lo escrito. Quando terminei de ler, quis aplaudir de pé. O tema era a antiarte, ou, mais especificamente, a performance, essa porta de fuga de muitos antiartistas, assim como algumas instalações são para outros. Tantas portas que, na maioria das vezes, dão num beco sem saída. Indiquei o artigo de Gullar (“Impasse da antiarte”) para alguns artistas simpáticos às performances e instalações e, claro, a maioria torceu o nariz. Chamaram-no de radical. Eu também sou radical. Radical – como Gullar – em minhas convicções. Escrevo sobre arte, como ensinou Baudelaire, com paixão. E toda paixão é radical. Radicalismo não é reacionarismo, anacronismo ou preconceito, muito menos com os artistas que realizam performances e instalações. Assim como Gullar – e nem perguntei isso a ele – acho que há boas idéias no universo da arte performática. Há uma poética do corpo e do objeto que pode ser traduzida numa expressão condutora ou inquisidora de conceitos. Mas é raro, e como nem tudo é bom em pintura, nem tudo é bom em performance ou em arrumação de salas. Tem muita porcaria travestida de arte por aí. As bienais que o digam.
Ana Monteiro em cenas da performance Cansadapor algoerrado emmim
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ARTES Não é fácil fazer arte. E olha que, dito assim, pode até parecer. A frase é um lugar-comum, um verdadeiro clichê, quando se quer falar da verdadeira arte. Ocorre que, nas artes plásticas, as mil maneiras de se abordar um tema nem sempre convergem para o seu fim: a arte. Ou nem sempre é esse o objetivo. Às vezes, o objetivo não é revelar, traduzir ou transcender – como faz a poesia –, mas apenas provocar, complicar ou encobrir o vazio de uma idéia. Nos últimos 20 anos, tenho estado em galerias e museus de arte moderna e contemporânea, visitando exposições individuais e coletivas assim como inúmeros acervos. O que vejo, na maioria das salas de arte contemporânea, é monótono. Ou dá a sensação do já visto. O que hoje se proclama como idéia e conceito novos, através de instalações e performances, remonta aos
Ana Montenegro abre uma porta Na exposição/instalação/performance em que trabalha atualmente, a artista reúne pintura, fotografia e ação corporal Ana Montenegro é uma desenhista e uma pintora. Em seu universo de conceitos, ela constrói e desconstrói imagens e significados em busca de novas idéias. O corpo, como modelo ou premissa, é uma de suas ferramentas. Isto é sua arte. Na exposição/instalação/performance em que trabalha atualmente, ela reúne pintura, fotografia e ação corporal. E ali, em sua busca, ela intui o seu sentido. Seu corpo será o eixo central do trabalho, retratado em quadros, registrado em fotografias e movimentando-se em ações performáticas. Mas a pintura, mesmo que ela não queira, será seu coroamento, ou o elevado fio condutor que dará sentido a tudo. Vi fotos e filmes de suas últimas performances. Na primeira, a artista entra numa sala, tira a roupa, senta-se nua numa cadeira sob um refletor voltada para o público e fita-o, em silêncio, durante 1 hora. Após este tempo, levanta-se, veste a roupa e sai da sala. Isto é a obra. Na segunda, ela entra nua em uma sala vazia, senta-se no chão, encosta-se na parede e olha para
Performance Euser vida, de Ana Monteiro. A artista aborda o desconforto do corpo na sociedade contemporânea
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ARTES anos 20 do século passado, ou até antes, como lembrou Gullar em seu artigo. Objetos e instalações, com o objetivo de expressar a poesia do insólito ou do inesperado, do acaso das ruas e dos dias e suas infinitas possibilidades semânticas, em geral não dizem mais do que esses mesmos objetos encontrados ao acaso, lá na rua ou em qualquer lugar de minha casa. As instalações nos museus de arte contemporânea dizem menos que o acaso que me depara. Porque a poesia dos corpos e objetos nem sempre se sustenta na rearrumação de uma idéia ou de uma cena, às vezes se esgota em seu fortuito encontro, em sua descoberta casual. Eis o que as performances e instalações tentam recriar, sem sucesso, na maioria das vezes.
o chão durante 2 horas. Depois disso levanta-se e sai. Eis a performance. Numa terceira, ela entra nua num palco vazio e senta-se numa bacia cheia de mel para banhar-se durante uma hora. É só. Nada acontece. Eis o insólito. Ana Montenegro, quero lembrar, é uma pintora. Uma grande pintora. Mas confessou-me que não pinta um quadro há oito anos. É uma pena. Como performer, perde-se numa divagação niilista como quem quisesse refundar uma antiarte. Aquela que Gullar aponta em seu luminoso artigo. E a pintora tateia num labirinto de idéias que, talvez conduzidas sob outra linguagem – uma das linguagens da arte –, teriam um significado e um significante artísticos. Não é o que ocorre em suas performances. E a grande pintora se perde em seus conceitos de antiarte. É o beco. O que vejo agora nesse conjunto de processos reunidos por Ana Montenegro (pintura, fotografia e performance) transcende a simples nomenclatura de exposição, performance ou instalação. É tudo isso e é outra coisa. Ou melhor, é tudo isso e não é nada. Numa avaliação positivista, pode ser isso acrescido de tudo o que cada uma dessas linguagens pode agregar. Dessa forma, as fotografias serão parte de um idioma específico, como conjunções cujas ausências tornariam a comunicação inviável ou truncada. Sua pintura, por si só carregando uma atipicidade dentro da linguagem contemporânea – o que é o seu melhor –, seja por seus formatos, por sua temática ou seu desenho, será como um pano de fundo de todo o conjunto, um suporte melódico em que a expressão da performance talvez tome sentido. No fim, como sempre, a pintura poderá salvar tudo, e, com certeza, restará como único registro válido ou artístico de uma viagem incerta.
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ARTES Imagens: Reprodução
AM na performance Eucom oeu
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Não quero entrar na discussão do sentido epistemológico ou semiótico da expressão ou da funcionalidade da performance. Há quem se dedique a isso. Posso indicar uma estranha bibliografia. No entanto, não vejo esse tipo de expressão como parte da dança moderna ou do teatro. Mesmo uma dança onde a música fosse intuitiva, como a música do silêncio – ou a música que está dentro da cabeça de quem a aceita ou com ela interage. Observando a performance sob a ótica do teatro, tem-se ali apenas uma tentativa caótica de enredo a ser revelado ou contado – às vezes com apenas um gesto, ou sua imobilidade, que ainda pode ser comunicação. Contudo, se essa expressão teatral não estiver alicerçada num terreno poético ou conceitual com bases muito firmes, toda a idéia irá, como ocorre amiúde, se transformar num exercício gestual niilista ou absurdo, quando não infeliz, que talvez não satisfaça sequer a necessidade de expressão do artista. Quanto ao público – ou os 10 ou 15 presentes no museu ou galeria que os convidar para serem testemunhas –, levará para casa o estranhamento que será esquecido um dia depois. Eis porque, em muitos casos, esses artistas recorrem a músicas conhecidas, refrões, palavras gravadas e pronunciadas repetidamente, ou mesmo a frases ou palavras riscadas ou pintadas em corpos, objetos e paredes. Tentam pregar algo nos tímpanos ou na retina de seus espectadores. Ocorre que o gesto, na performance, não pode (e não consegue) ser um fragmento do teatro. Mesmo porque o teatro está muito acima de uma mera tentativa, e sua fragmentação implica em perda e incompreensão. O fragmento, em si, não tem sentido – como um fragmento da Mona Lisa não significa nada, pois deve buscar a completude do sentido no conjunto de uma expressão coerente e cognitiva. Ana Montenegreo ainda não terminou de pintar todos os quadros que irão compor sua multiexposição, que deverá ser inaugurada em breve, em São Paulo. Vi fotos e desenhos do que serão esses quadros. Realizados com a mestria de sua pintura que conheço, serão registros definitivos de seu novo trabalho. Quanto às fotos (realizadas pelo arquiteto e pintor Edgar Ulisses), permanecerão como um belo suporte de sua arte, ou seja, uma arte paralela dialogando com seus conceitos. A sua performance será esquecida, rapidamente, para o bem dela e de sua arte. Há alguns dias, descrevi o roteiro da nova performance de Ana Montenegro – que envolve um instrumento musical com o qual a artista se masturba até atingir o gozo –, e uma outra artista, defensora das expressões contemporâneas da arte e da antiarte, me fez a pergunta fatal: “Tudo bem, mas qual o sentido disso?” E eu fiquei, como um espectador do vazio, sem resposta. A mesma artista também leu o artigo de Gullar e ficou reticente. Lembro que Ferreira Gullar não é uma unanimidade. Mas hoje eu responderia àquela pergunta, citandoo: “Tais manifestações são expressão de um impasse em que se encontram muitos daqueles que, negando a obra de arte, não sabem o que pôr em seu lugar.”(WBL) •
AGENDA/ARTES
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Vuco-Vuco na galeria Obras de José Patrício expostas na Galeria Mariana Moura Fotos: Divulgação
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comércio popular das grandes cidades, repleto de seus materiais simples e baratos, no Recife, é popularmente conhecido como vucovuco. É justamente nesse conceito que o artista plástico José Patrício foi buscar inspiração para sua mostra homônima e inédita, na Galeria Mariana Moura. Além das obras formadas por botões de roupa costurados sobre telas, pintados com esmalte sintético, e da exibição do vídeo Camaleão, destacamse na exposição os dois múltiplos de 28 peças de dominós, um colorido e outro monocromático, que têm como suporte quadrados de madeira. Através dos seus trabalhos, o artista faz uma investigação sobre a apropriação de objetos cotidianos no universo artístico,
Desenho Espacial, de Felipe Barbosa
Geometria e nomes
O espaço da Galeria Amparo 60 abriga, este mês, duas mostras individuais de dois artistas cariocas, com obras que variam entre objetos e painéis. Felipe Barbosa traz ao Recife a exposição Geometria Descritiva, um jogo com a geometria dos objetos cotidianos, e Rosana Ricalde intitula sua mostra de Todos os Nomes e trata essencialmente das palavras. Em Geometria Descritiva, o artista reúne obras desenvolvidas nos últimos cinco anos. Na obra que empresta nome a exposição, são utilizados três livros de geometria encaixados, formando um icosaedro. Já as obras de Rosana Ricalde se baseiam nas palavras. O título da sua mostra vem de um dos trabalhos expostos, extraído do livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. Ela traz ainda as séries Auto-Retrato e Todos os Mares que também brincam com as palavras. Geometria Descritiva e Todos os Nomes Até 18 de agosto na Galeria Amparo 60 (Av. Domingos Ferreira, 92, Pina, Recife-PE). Informações: 81.3325-4728.
em substituição à invenção formal, “técnica”, introduzida há alguns anos por Marcel Duchamp e seu mictório. Porém José Patrício não segue à risca o conceito dos ready mades; a partir desses objetos, ele cria situações cromáticas, chegando à invenção formal. O artista mescla suas obras com os jogos, gerando sempre novas e inusitadas situações visuais. Vuco-Vuco. José Patrício. Até 16 de setembro na Galeria Mariana Moura. (Av. Rui Barbosa, 735, Graças, Recife-PE). Informações: 81.3421-3725. www.marianamoura.com.br
Mostra de bolsistas O jogo com os efeitos de luz na fotografia, sem fazer uso de manipulações posteriores, é o foco central das duas séries fotográficas do paulista Edouard Fraipont (Aparições) e do carioca Renan Cepeda (Pichações de Luz), expostas conjuntamente no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco. Os artistas se preocupam com os aspectos reflexivos levantados pela arte e propõem novas possibilidades de compreensão do suporte fotográfico. As séries são resultados das bolsas distribuídas no 46o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e já fazem parte do 47o Salão que fará um retorno às premiações da última edição. Essa é a primeira vez em que o Salão é aberto com trabalhos fotográficos. Casa de Farinha, de Renan Cepeda
Aparições e Pichações de Luz Até 13 de agosto no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (Rua 13 de maio, 157, Carmo, Olinda-PE). Informações: 3429-2587.
Estética da ausência
Invasões, de Bruno Vieira
O jogo com a ausência é um dos eixos das exposições que ocupam as galerias Baobá e Massangana, na Fundaj. As obras dos artistas plásticos Aline Dias (SC) e Bruno Vieira (PE) fazem parte da primeira mostra do Projeto Trajetórias 2006. A artista catarinense traz duas instalações (Carpet e Cubo de Poeira) que abordam a questão da presença e da ausência, uma obra que estará se desfazendo ao longo da exposição. Bruno Vieira também expõe duas séries: Projeto Degas e Invasões. No primeiro o artista criou um vídeo de 18 minutos, utilizando um trecho original de três. Em Invasões, o pernambucano tenta capturar, através da fotografia, a ausência e a presença da luz, trabalhando sempre com as sombras. Projeto Trajetórias 2006 (Aline Dias e Bruno Vieira). Até 13 de agosto, nas galerias Baobá e Massangana (Av. 17 de Agosto, 2187, Casa Forte, Recife-PE). Informações: 3073-6363. Continente agosto 2006
TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
O artista como objeto da arte A arte performática resulta de um abandono do trabalho que produz a obra – por exibir-se a si mesmo como obra Reprodução/Internet
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Foto da performance Transfixed, de Chris Burden, 1974
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m dos traços característicos do que se chama hoje de arte contemporânea é o exibicionismo (sem a conotação depreciativa que o termo acarreta), que a torna uma expressão típica do mundo de hoje, da sociedade do espetáculo. O artista deixa de produzir um objeto – a obra de arte – para promover happenings e performances; antes, predominavam as instalações que, embora não aspirassem à qualidade estética da obra de arte, ainda mantinham a pretensão de serem “obras”, ainda que efêmeras, o que veio desaparecendo gradativamente; hoje, predominam as vídeo-instalações que, como o nome indica, estão mais
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para o filme do que para a coisa material. Deve-se observar que as performances não são coisas de agora, pois já nos anos 60 tinham se tornado, senão as mais freqüentes, pelo menos as mais chocantes manifestações dessa tendência que é também chamada de arte conceitual. Neste momento em que escrevo, vem-me à lembrança o modo como trabalhavam os artistas medievais, anônimos construtores de obras magníficas, como as catedrais de Chartres ou de Colônia. Trabalhavam em equipe, sem que se distinguisse o pedreiro do escultor, realizando a obra comum que, esta sim, deslumbrava o
TRADUZIR-SE
público tanto por sua religiosidade como por sua beleza artística. Não se trata aqui de lamentar o fim dessa fase da arte, dessa relação entre o criador e o público, mas de assinalar a mudança ocorrida, pretexto também para uma reflexão sobre ela. Todos sabem que, com a Renascença, dá-se a separação entre o artesão e o artista, o que abriu novas possibilidades à criatividade, graças ao surgimento de condições propícias ao trabalho do artista individual e a expansão de seu talento. Destaca-se, a partir de então, a individualidade do artista, em função da obra realizada, seja como pintor, seja como escultor ou arquiteto. Essa tendência à realização do artista como individualidade criadora só se acentuará com o passar dos séculos, até chegarmos à época moderna, quando se dá uma ruptura drástica tanto nas relações do artista com a sociedade como nas suas relações com a própria obra de arte. Um fator importante nesse processo é o surgimento do mercado de arte, resultante das mudanças ocorridas na sociedade, com o poder crescente do capitalismo, como modo de propriedade e de produção. Concomitantemente, a Igreja perde a importância que tinha sobre a produção artística que, em função das referidas mudanças, afasta-se da temática religiosa. Essa desvinculação com o religioso e a vinculação com o mundo material determinarão a ruptura que assinala o nascimento das vanguardas artísticas do século 20. E aqui a nossa reflexão reata-se com a referência anterior à situação do artista da Idade Média. Agora, com o surgimento da sociedade industrial, o pintor, que continua artesão, entra em crise. O ready made, de Duchamp, é a expressão sarcástica dessa crise e o início de um processo que conduzirá ao abandono do objeto de arte, isto é, da arte como realização de objetos artesanalmente produzidos.
A solução para essa crise seria a adoção, pelas artes plásticas, das novas tecnologias, o que foi tentado (como Clavilux, de Thomas Wilfred; o aparelho cinecromático, de Abrahão Palatnik; as esculturas móveis de Shöffer etc.), sem grandes resultados, pelo fato de que o movimento mecânico é repetitivo. Tal limitação poderá ser superada pela alta tecnologia quântica que incorpore ao movimento o princípio da incerteza, isto é, a indeterminação, a imprevisibilidade. Por ora, a única expressão estética, nascida da tecnologia científico-industrial, é a fotografia e, como decorrência, o cinema, conforme já afirmamos aqui em artigo anterior. Desse ponto de vista, a arte performática de um Chris Burden ou da francesa Orlan, entre outros, resulta de um abandono do trabalho que produz a obra – por exibir-se a si mesmo como obra. No caso de Burden, que se crucificou na traseira de um fusca, pode se entender como desespero do não-fazer, resultando numa espécie de autoflagelação masoquista e exibicionista. Dentro do repertório exibicionista, temos desde o cara que se castrou em público até a performática que se deixou operar a vagina diante de uma câmera. Em face disso, exibir modelos desnudos, em meio a “cientistas” debruçados sobre larvas de moscas e magotes de sapos, parece brincadeira antiga. Mas que fazer a crítica diante disso? Que podem escrever os teóricos da arte, defensores da “evolução” estética, que tais manifestações significariam? Recentemente, participei de um debate sobre o tema e ouvi a leitura de um texto de umas 10 laudas, absolutamente incompreensível. Os defensores de tais manifestações como expressão artística não podem referir-se às qualidades estéticas – o que não é o caso –, perdem-se numa espécie de discurso delirante, onde a coerência e a clareza conceitual são o que menos conta. • Continente agosto 2006
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Adolfo Volk/Carte cabinet/Arquivo Família Werneck
Retratos brasileiros O desejo de lançar um novo olhar sobre os velhos retratos do século 19 é mote do livro Retratos Modernos, editado pelo Arquivo Nacional Carlos Haag
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Frederico Vrimond de Lacerda Werneck, Curitiba, 1890/1903
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m sua peça, Álbum de Família, escrita há exatos 50 anos, em meio a uma de suas sempre terríveis narrativas, Nelson Rodrigues colocou a relação entre teatro e fotografia: há um momento de paralisação e congelamento da imagem sempre que surge a personagem “o fotógrafo”. São fotos que mostram o casal, feliz, em suas bodas, a primeira comunhão da menina, um mundo imortalizado nas imagens como se fosse o real, mas que, ao longo do drama, será mostrado em suas entranhas por meio da infidelidade, do incesto, da loucura dos personagens, o avesso do que mostram as “fatias do real” da fotografia. “Na peça, ao unir teatro e fotografia, Nelson Rodrigues explicitou algo paradigmático em toda a sua dramaturgia, ou seja, seu trabalho com a origem da representação que não é ainda representação”, analisa a psicanalista da USP, Miriam Chnaiderman. “Também no teatro, o que está ausente é o que garante sua possibilidade. E o que, no teatro e na fotografia, está ausente, e, portanto, presente de forma absolutizante, é o real. Há apenas o real do que acontece, do que é presente. A representação torna-se comunhão. Não há mais necessidade nem de ilusão nem de realidade. Mais do que promover o real, o teatro e a fotografia o desarticulam”, completa. Criados na cultura do instantâneo, da máquina digital que nos permite apagar o que nos desagrada numa imagem, olhamos, sintomaticamente, os velhos retratos do século 19, de poses inflexíveis, com um certo ar de enfado. O desejo de que reavaliemos esse olhar impaciente é mote do livro Retratos Modernos (240 págs., R$ 80,00), editado pelo Arquivo Nacional, com organização de Cláudia Beatriz Heynemann. São 120 fotos de 52 fotógrafos brasileiros e estrangeiros, entre os quais Marc Ferrez, Juan Gutierrez, Insley Pacheco, Alberto Henschel, entre outros, produzidas entre a década de 1850 e os primeiros anos do século 20, período que marca a introdução e a divulgação da técnica fotográfica no Brasil. Como no Álbum de Nelson, são figuras que pretendiam imortalizar um momento em poses que, no início, obrigavam os clientes a se imobilizar por até 60 minutos, o tempo de exposição dos primeiros daguerreótipos. Hoje não vemos sentido nisso. “Mas, na época, um dos aspectos fundamentais da fotografia, e que seguramente informa a sua percepção no século 19, é que, à diferença de outras imagens técnicas, ela não é apenas uma maneira de ‘representar o mundo visível’, mas de ‘tornar o mundo visível’ ”, analisa Maurício Lissovsky, professor de História da Fotografia da UFRJ. O princípio dessas primeiras imagens é o da revelação da “imagem latente” e do projeto moderno de desvelamento do mundo, nos mesmos moldes da expansão imperialista da época. “A ruptura com essa ‘agenda do invisível’ oitocentista coincide com o desaparecimento da fotografia clássica e a emergência do modernismo e da fotografia do século 20”, nota Lissovsky. “O lugar do retrato burguês, e o tédio que sentimos diante deles, são a verdadeira prova da atualidade dessa questão”. Daí a genialidade de Nelson em mostrar como o nosso olhar é afoito sobre retratos que trazem marcas, hoje, ocultas. A familiaridade brasileira com a fotografia é impressionante: criada em 1839, por Louis Daguerre, chegou ao Brasil no ano seguinte, trazida por um abade que encantou um jovem, D. Pedro II: o monarca comprou o equipamento e até o fim da vida foi um entusiasta da fotografia. Em 1860, já havia se transformado numa febre nacional e ninguém Continente agosto 2006
Divulgação / Fox Filmes
FOTOGRAFIA
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FOTOGRAFIA
N. M. Parente/Carte de visite/Arquivo Virgílio Várzea
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Isidoro Leveque de la Roque, retrato de meados de 1880
S. Moreira & Vargas/Coleção Fotografias Avulsas
Abaixo, presidente Campos Sales, General Roca e outros no jardim do Palácio do Catete, 1899
que se prezava deixava de posar para um retrato. “Um deus vingador acolheu os desejos narcísicos da multidão burguesa e Daguerre foi seu messias”, criticava o poeta Charles Baudelaire. O problema da paixão era a sua redução à “arte de feira”, na contramão do que queriam os fotógrafos, para quem a sua profissão deveria ser igualada a dos pintores. “A fotografia é uma descoberta maravilhosa, uma ciência que atraiu os maiores intelectos e, ao mesmo tempo, uma arte que pode ser praticada por qualquer imbecil”, observou o célebre retratista francês Felix Nadar. “Todo o século 19 será, então, marcado por essa suspeita, pelo questionamento da fotografia como arte, e pelo esforço dos fotógrafos de imprimir ‘marcas’ na imagem que lhes conferissem valor de obra de arte”, analisa Lissovsky. O avanço da técnica só fará aumentar o dilema, com a possibilidade da reprodutibilidade dos retratos. Em 1854, o francês André Disdéri criou um processo de retratos de tamanho pequeno, elaborados sobre papel albuminado, em substituição às caras chapas de vidro do daguerreótipo. Baratos, apelidados de carte de visite, viraram uma coqueluche, ao permitir a auto-representação de grupos sociais para quem o retrato a óleo era um privilégio impensável. Assim, entre os gêneros de fotografia da época, o retrato é o mais difundido: cerca de 90% das imagens de então são no formato carte de visite. “Ele se transforma não apenas numa tecnologia, mas num dispositivo complexo, com profundas implicações sociais. Além do custo baixo, da possibilidade de se distribuir cópias pelos amigos e parentes, ele incentivava a formação dos álbuns de família em que imagens de casais, crianças e até mesmo escravos convivem democraticamente com fotos da família real”, conta Lissovsky. Para colocar ordem nesse mundo, entra em cena a personalidade do fotógrafo que queria que seu métier fosse reconhecido como arte. Nadar chegava mesmo a afirmar que fotografar era “assistir ao parto de uma
Pacheco/Carte de visite/Coleção Fotografias Avulsas Carneiro & Gaspar/Carte de visite/ Coleção Fotografias Avulsas
Maria Amália de Mendonça Corte Real (Viscondessa da Gávea), Rio de Janeiro, 1865/1872
Glicéria da Conceição Ferreira, 1870/1872
Pedro Gonçalves da Silva/Carte de visite/Coleção Fotografias Avulsas
aparência”. Afinal, cada retrato, fosse de uma personalidade ou de um pequeno-burguês irrelevante, deveria representar o caráter da sociedade como um todo. Para tanto, estabelece-se uma relação entre fotógrafo e fotografado, ou melhor, um jogo teatral. É preciso escolher a expressão emblemática do modelo e isso não era nada fácil diante de um pobre sujeito, amedrontado pela sessão fotográfica. A solução encontrada foi a conversação dirigida com o cliente, chance para o fotógrafo observar as várias reações do seu modelo e escolher a mais adequada e representativa. “O estúdio do retratista é um teatro social, onde o fotógrafo é, ao mesmo tempo, o diretor, exercendo autoridade magnética sobre seu modelo, mas também ator de infinitos talentos, capaz de representar todas as máscaras convenientes à vida em sociedade”, diz Lissovsky. O modelo, por sua vez, é o ator que segue as instruções de seu maestro, mas também um espectador, assumindo por simpatia os sentimentos e expressões por ele sugeridos, um curioso jogo de espelhos. Nesse movimento, a carte de visite vira um dispositivo social sutil, como bem entendeu, décadas mais tarde, Nelson Rodrigues. Capaz até mesmo de refletir o conflito essencial da sociedade brasileira do oitocentos, a escravidão. Os mesmos estúdios que tinham cenários com colunas gregas e eliseus ao fundo para os burgueses, mantinha um estoque cenográfico que permitia ao retratista simular a vida dos negros em suas ocupações servis. O dispositivo social, porém, podia funcionar de formas inesperadas. “Nas fotos, a ambientação escolhida reiterava a dominação, mas também podia exibir o papel do cativo dentro de sua classe. Na pintura, os negros apareciam como parte da paisagem. No estúdio do fotógrafo, podiam dar sentido à foto. Muitos encaravam a máquina e tomaram conta de seus retratos, transformando-se, assim, em sujeitos livres de suas imagens”, lembra Sandra Koutsoukos, da Unicamp. Nem todos, no entanto, aproveitaram o momento humilhante para revelar sua identidade, preferindo assumir a dos seus senhores e, nesse movimento, tentar esquecer a sua condição social. Muitos libertos juntavam dinheiro para fazer sua carte de visite, usando cartola e roupas à européia, a fim de guardar para a posteridade a ilusão da liberdade sem os estigmas da escravidão. Houve também quem usou a máquina para criar. Santos Dumont, por exemplo, comprou assim que pôde um sofisticado equipamento e pôs-se a fotografar pássaros em pleno vôo. Mas os álbuns de família imperavam. “O álbum de retrato consubstanciava o sonho de que, as características dos homens ‘notáveis’se reuniam numa ‘comunidade de semelhantes’, cuja existência assegurava a possibilidade de ‘progresso social’ ”, nota Lissovsky. “O enfado que sentimos diante dessas imagens é apenas um sintoma de quão distantes estamos hoje desse sonho. A mesma distância que separa o antigo Império Moral dos Notáveis da atual República das Celebridades Instantâneas”. A vida como ela sempre é. •
Retrato de menina, Salvador, 1882/1890
SABORES PERNAMBUCANOS
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Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
O Boi Voador (Carne de boi, I de III) Lembro apenas um boi triste, num lençol de margaridas que era um encanto do menino que alegre o tangia para as colinas coloridas...
Reprodução
Carlos Pena Filho (Memórias do Boi Serapião)
Boa Vista, Frans Post, Amsterdam, 1647
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o boi voou mesmo. Era um domingo sem nuvens e de sol forte, no Recife. Naquele último dia de fevereiro de 1644, seria inaugurada a primeira ponte das Américas. Sobre o rio Capibaribe. Com direito a projeto aprovado pelo Conselho dos XIX, na distante Amsterdã. Ligando o bairro portuário (depois, bairro do Recife) à Ilha de Antonio Vaz (depois, bairro de Santo Antônio) bem ao pé da Rua do Crespo (depois, 1º de Março - homenagem à vitória em Aquidabã, que marcaria o fim da Guerra do Paraguai). Construir uma ponte, ali, era importante para o desenvolvimento da cidade. Evitando os incômodos da travessia através de balsas, precariamente feita pela “Portada Balsa”. Mas não seria empreitada fácil. Começou com o pedreiro português Manuel Costa, mais 50 negros. Não deu certo. Acabou substituído pelo judeu Balthasar da Fonseca – que cobrou “240.000 florins e uma dádiva de 1000 patacas em espécie para sua esposa, no caso
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de vir a casar em terras recifenses”, palavras de José Antonio Gonsalves de Mello. Ainda assim continuavam os problemas. Que fincar estacas, em meio a tão largo rio, resultava tarefa enormemente complicada. E custosa. Ficaram suspensas, as obras, por quase dois anos. Acabou-a, com recursos próprios, o “Governador, capitão e almirantegeral” da Província, o Conde Johann Mauritius van Nassau-Siegen. Tinha 15 pilares de pedra (com três metros e sessenta de comprimento por dois metros e quarenta de largura), mais 10 pilares laterais, toda a armação em madeira, forte o bastante para que pudessem “atravessá-la a pé ou cavalgar por ela”, segundo frei Manuel Calado (O Valoroso Lucideno). Nas cabeceiras, dois arcos de pedra em homenagem a Santo Antônio e à Nossa Senhora da Conceição (padroeira de Portugal). No centro, ainda, uma parte levadiça para passagem de barcos. Valeu a pena. E tão bela ficou a ponte que sua inauguração deveria ser mesmo
SABORES PERNAMBUCANOS memorável. Foi então que Nassau “resolveu fazer brincadeira com os moradores, que entrou para sempre na memória coletiva do nosso povo. Para obter um maior número de pessoas pagando pedágio na ponte, o Conde anunciou que um boi iria voar”, lembra Leonardo Dantas Silva. E foi assim que o boi voou. E até virou música (de Chico Buarque e Ruy Guerra) – “Quem foi, quem foi/ Que falou no boi voador/ Manda prender esse boi/ Seja esse boi o que for”. O pedágio seria cobrado em porta especialmente construída para esse fim, sob o arco de Nossa Senhora. E passaram tantos por ela, naquela tarde, que se apurou a fantástica soma de 1.800 florins - para escravos e soldados, 1 stuivers (vigésima parte do florim); cavaleiros, 4; carros de bois, 7. Testemunha ocular, assim disse frei Manuel Calado – “Nassau pediu a Melchior Álvares emprestado um boi muito manso; o qual, como se fora um cachorro, andava entrando pelas casas; e o fez subir ao alto da galeria”. Em seguida mandou esconder o animal. E soltou balão coberto com couro de outro boi, amarrado em cordas finas sobre roldanas, tudo controlado por experientes marinheiros. “A gente rude ficou admirada”, ainda observou o frei. E Nassau feliz. Não foi idéia original. Há registro de eventos semelhantes em lendas gregas, hindus, iranianas e francesas. E, até, em festas religiosas – como o boi-de-São Marcos, comemorado em Portugal e Espanha (25 de Abril). Depois, em 11 de junho de 1649, a ponte seria palco de um desastre lamentável. Rompeu a corrente que sustentava a parte levadiça, matando várias pessoas. Inclusive da corte - como Balthazar Von Dartmont (membro do Conselho de Contas) e David Atsenborn (procurador da cidade). Mas disso não soube Nassau – que já, a esta altura, andava longe. Pouco depois da inauguração da ponte, despediu-se dessa terra que nunca considerou verdadeiramente sua. Do Recife onde vivia, no Palácio da Boa Vista, segue na direção da cidade que seus patrícios queimaram, ao chegar por aqui, Olinda. Passa por Itamaracá, e contempla o Forte de Orange, com esse nome batizado pelo próprio Nassau, em homenagem a um condado de sua família. Afinal chegando a Cabedelo (Paraíba), onde tomou o “Zuphen” – mesmo barco que o trouxera ao Brasil, em 1637. Completava-se o seu destino. Mas não foi como veio. Chegou em busca de fortuna, voltou com ela. Na bagagem, estimada em 2.600.000 florins, havia açúcar, pau-brasil, jacarandá e fumo. Além de toda a produção dos artistas que com ele vieram. Dizem até que chorou na despedida; quando, depois da salva de canhões, ouviu o hino “Wilhelmus Von Nassauven”. Em 1917, já no governo de Manuel Borba, foi reconstruída a ponte, agora em concreto. Recebendo então, e bem a propósito, o nome com que acabou lembrado por aqui – Maurício de Nassau.
A história culinária do boi começa bem antes das peripécias do nosso Conde. Primeiro vieram os auroques – mais pesados, mais peludos e mais ferozes que os bois de hoje. Seus primeiros registros, em pinturas rupestres, remontam à Mesopotâmia e ao Egito, mais de 20.000 anos atrás. Era tudo que o homem precisava, para sua sobrevivência: como ferramenta - ossos, cascos e chifres; como roupa e coberta – couro; e, como alimento - testículo, rabo, língua, músculo, víscera, costela, pé, leite e carne. Muita carne. A princípio crua. Mas a preferência por queimados já era, na natureza, comum a todos os carnívoros. Depois de incêndios, ainda hoje é assim, animais procuram por carnes que estiveram no fogo. Quando o homem dominou a técnica de fazer esse fogo, passou a cozinhar alimentos a qualquer hora. Uma grande conquista. Porque, assim, eram os alimentos mais fáceis de digerir. Menos nocivos à saúde. E, sobretudo, mais saborosos. No início, as carnes iam diretamente sobre a brasa. Com o tempo, aprendeu o homem a técnica de assar pelo calor: com espetos postos diretamente no fogo, usando “assadores dentados” que apoiavam melhor esses espetos; ou com espetos paralelos. Nascia, assim, os primeiros ancestrais de nosso churrasco. Mais tarde, compreendeu o homem a enorme conveniência de ter sempre à mão os alimentos. Passou então a criar e a plantar (8.000 a.C.). Os primeiros registros dessa atividade remontam à região do Crescente Fértil – atualmente Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Líbano, Síria e Turquia. Ali surgiram as primeiras aldeias (7.000 a.C.) e o registro das primeiras receitas – talhadas na pedra, em símbolos cuneiformes (1.500 a.C.). Dos animais domesticados os mais apreciados eram cachorro – como guarda e companhia – e boi – pelo seu tamanho, por se adaptar bem ao cativeiro e porque dele tudo se aproveitava. Sem contar que, usando sua força, podia o homem arar a terra. Algum tempo mais e perceberam esses primeiros povos que, além de preparar a terra, podia o boi também puxar grandes toras de madeira; e que, sobre essas toras, qualquer peso era transportado com mais facilidade. Essas toras foram aos poucos evoluindo. Nascia, assim, o primeiro ancestral da roda, maior de todas as invenções da civilização. Aos poucos, a figura poderosa do touro foi fazendo parte da cultura do homem. Como símbolo de força e de fertilidade. Em muitos povos da antiguidade, era adorado como um deus. Assim aconteceu em terras de Caldéia, Cartago, Egito, Fenícia e Índia. Os gregos tinham o hábito de dividir comidas e bebidas com os Deuses. Sócrates jogou um pouco de cicuta no chão (segundo Platão, em Fedro), antes de entregar sua alma ao destino. O gesto ainda hoje se repete, sobretudo nos bares da periferia, quando se reserva um pouco de cachaça “para o santo”. Também era assim Continente agosto 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS OSSOBUCO
com os animais imolados em sacrifício. Com pedaços dele deixados ao relento para os deuses. Heróis de Homero ofereciam grandes banquetes de carne assada. Como “Agamenon que ofereceu ao poderoso Javé um corpulento boi de cinco anos e convidou os principais capitães ao sacrifício. Despedaçada a rês, o fogo consumiu a porção do sacrifício e o resto foi cortado em grandes fatias que espetadas em pungentes ferros foram assadas e quando o fogo chamuscou a carne, a comeram” (Ilíada). Os romanos se empanturravam de carne de boi, em seus banquetes. Consta que Máximo, imperador romano (383 – 388), se servia de até 30 kg de carne por dia! Sobreviveu à obesidade mórbida. Mas acabou destronado e morto por Teodósio I – que, apesar de denominado “O Grande”, não o igualava na fome. Em Roma, foi ainda criada a inspeção sanitária e a regulamentação do comércio das carnes – tudo segundo o Estatuto de Impostos e Taxas, do Imperador Diocleciano (301 d.C.). E era tanto o consumo de carne, em Roma, que foi ali criado o respeitável e cobiçado ofício de “açougueiro” – com privilégios que variavam de acordo com o animal abatido. Por essa época, também se definiram regras rígidas para o abate – leitão aos cinco dias, cordeiro ao oitavo, vitela aos 30 (ou quando o rabo tocava o joelho) e ruminantes (incluindo o boi) quando tivessem todos os dentes. A degola, feita no solo, usava faca bem afiada. E sempre obedecendo ao Levítico – “porá sua mão sobre a cabeça do bezerro e o degolará”, derramado-se o sangue pelo chão. Carnes, por essa época, eram vendidas em mercados públicos, junto a outros alimentos. Que os açougues apareceram só bem mais tarde (1096) – na praça Châtelet (Paris), vendendo carne de boi, de vitela, de carneiro e de cabrito. E tão nobre era essa atividade que conseguiram os açougueiros franceses, do Rei Filipe I, que lhes concedessem a propriedade perpétua dos estabelecimentos em que trabalhavam. Depois esse Felipe acabou excomungado, por abandonar sua esposa e raptar a mulher do Conde de Anjour, mas essa é outra história. Diferentemente do dilema “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”, nesse caso não há dúvida – o açougueiro nasceu antes do açougue. Falou-se de bois que voam, de bois deuses, de bois retalhados em açougues. Faltou falar no principal. Dos sabores das carnes desse boi. Mas isso fica para a próxima coluna.” •
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Barbara Wagner
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Ossobuco com polenta preparado pelo chef Antonio Figueiras, do Matita Perê
RECEITA: OSSOBUCO COM POLENTA INGREDIENTES: 8 fatias de ossobuco (parte mais grossa do chambaril); 500 g de farinha de trigo; sal e pimenta do reino a gosto; azeite, o quanto baste para fritar; 4 colheres de sopa de manteiga; ½ cebola picada; 1 cenoura em fatias; 1 talo de salsão em fatias; 2 xícaras de vinho tinto; 1 lata de tomate pelado; 2 tabletes de caldo de carne; 1 ramo de alecrim; 1 ramo de tomilho; 3 folhas de louro; 2 ramos de salsa. PREPARO: · Misture farinha, sal e pimenta. Passe o ossobuco na mistura. · Aqueça o azeite e frite o ossobuco, dos dois lados. Retire da panela. E junte, na mesma panela, manteiga, cebola, cenoura, salsão. Acrescente o vinho e deixe reduzir. · Junte o caldo de carne, o tomate pelado levemente batido, as ervas e o louro. Retorne o ossobuco para essa panela. Adicione água, até cobrir a carne. · Deixe cozinhar em fogo brando, por 3 horas. · Sirva acompanhado de polenta.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Vai começar a campanha
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ntre meados de 1946 e princípios de 1950, Getúlio Vargas é, em Itu, Rio Grande do Sul, apenas o criador e o fazendeiro. São poucos os que o procuram e visitam. Mas toda essa paz de Vargas terminou no dia 19 de abril de 1950, quando, na estância São Vicente – de João Goulart – “foi obrigado” (como disse a filha, Alzira) “pelo entusiasmo dos manifestantes a dar o primeiro passo fatalista para a aceitação da candidatura à presidência da República”. A sorte estava lançada. E agora era preciso partir. Em meados de agosto, Vargas recebe de Porto Alegre os três ternos novos que usará na campanha eleitoral. É que engordara alguns quilos na longa estada na fronteira. O guarda-roupa, velho de quatro anos, já não lhe servia. Acordou mais cedo do que o costume, na véspera da partida. Demorou-se por alguns instantes, antes do sol nascer, sob o velho cinamomo, o olhar perdido na planura verde. Antes de tomar o carro que o levaria a Uruguaiana (onde um avião o esperava), despediu-se dos peões, um por um. Todos choravam. Nenhum daqueles que conviveram com Getúlio Vargas poderá dizer que o conheceu como de fato ele era. Vargas sempre manteve, ao redor de si, uma “terra de ninguém”, que jamais transpunha – e os outros não ousavam atravessar. Ao escritor Emil Ludwig, que o entrevistou, o próprio Vargas como que se definiu, ao declarar que nunca fez amigos dos quais não pudesse se afastar – nem inimigos dos quais não pudesse se aproximar. •
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O Duende de García Lorca Os 70 anos da trágica morte do poeta trazem novamente o debate sobre o valor desse artista versátil Ângelo Monteiro
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mesmo tempo escura como Las Soledades, de Gôngora, embora cheia de fulgurações, e clara como uma tarde de tourada ou uma canção cigana ao som de guitarras, pandeiretas e castanholas, é a poesia de Federico García Lorca. Transcendendo o Ultraísmo, tanto o espanhol como o latino-americano, o Criacionismo, o Hiper-Realismo e outros ismos do seu tempo, no quadro rico e complexo da geração 1927 – que reuniu nomes tão significativos como Rafael Alberti, Jorge Guillén, Pedro Salinas, Dámaso Alonso, Vicente Aleixandre, Luís Cernuda, Salvador Dalí e Buñuel –, Lorca se distanciou do caráter seqüencial e lógico do barroquismo conceptualista, em suas já clássicas nuances expressivas disseminadas em vários estilos e escolas (cuja constância se fez sentir, decênios depois, até em nosso João Cabral) e se aproximou, cada vez mais, do jogo de simetrias próprio da matriz gongórica do Barroco – de uma obscuridade ferida pela lucidez, ou de uma lucidez nimbada pelo mistério (que, também, iria marcar, no Brasil, a poesia de um Jorge de Lima): o que imprimiu um recorte plástico, quando não pictórico, à maioria dos seus versos – em blocos inteiriços ou volumes em cores – intensificados, ainda por cima, de um sutilíssimo sentido musical. A renovação da metáfora, inspirada, como vimos, nessa matriz gongórica, prolongada em novas ressonâncias, se associa, no poeta de Granada, à busca apaixonada das raízes andaluzas, desde as reminiscências do imaginário cigano até as formas estróficas e rítmicas, como o gazel e a cacida, herdadas da tradição árabe, ainda tão presente entre as sobrevivências de sua cultura. Entretanto não se pode compreender de maneira menos imprecisa García Lorca sem levar em conta o duende que havia nele, como podemos ler em seu fulminante ensaio, Teoria e Jogo do Duende, quando, após proclamar a primazia do duende sobre a lira e o anjo, afirma: “A vitória mágica do poema consiste em estar sempre enduendado para batizar com água escura a todos os que o miram, porque com duende é mais fácil amar, compreender, e é seguro ser amado, ser compreendido, e esta luta pela expressão e pela comunicação da expressão adquire às vezes, em poesia, caracteres mortais”. Continente agosto 2006
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Desenho de Federico García Lorca
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Em se tratando de uma poesia enduendada, os sentidos não lhe podem ser estranhos, mas constituem, antes, pontos de partida para a conjugação do logos poético com as emoções e com a inteligência. Dessa forma se esclarece a qualidade dramática dessa poesia que repercutiu, com a mesma força, – no grande dramaturgo que Lorca também era – em peças como Yerma e Bodas de Sangue; dramaticidade que deriva de sua própria condição dialógica em permanente intercâmbio, ora tenso, ora caloroso, entre os sentidos do poeta e os aspectos mais enigmáticos da realidade. Pois não sendo a arte do duende mero produto do aprendizado ou da perícia técnica – para assinalar a diferença que já Platão, no Íon, apontava entre o poeta possesso ou inspirado e o mero artífice do verso –, só o que corresponde ao seu apelo detém o poder de amalgamar, num só todo, os jogos da vida com os jogos da linguagem. Como o lirismo do poeta granadino se enraíza fundamente nos mitos de sua cultura – tendo como pano de fundo as duas linhas do portentoso Barroco espanhol –, quer em sua vertente cigana, quer em sua vertente mourisca, sem esquecer o cristianismo à maneira ibérica, é esse duende que exerce o verdadeiro papel demiúrgico em sua criação, fazendo com que um dos poemas do seu Divan de Tamarit, intitulado “Cacida da Rosa”, expresse, sob esse aspecto, mais que qualquer outro, a necessidade do êxtase e, portanto, de abertura ao coração do mundo: “A rosa/não buscava a aurora: /buscava outra coisa. /A rosa /não buscava nem ciência nem sombra, /confim de carne e sonho, /buscava outra coisa. A rosa /não buscava a rosa. /Imóvel pelo céu /buscava outra coisa”. Ora, essa busca que, por um lado, jamais se resolve na mera apreensão das realidades, por mais mágicas que elas sejam, por outro lado, permanecerá dilacerada num tempo que não conhece repouso, como nos célebres versos da estrofe inicial do “Romance Sonâmbulo”, que faz parte do Romanceiro Gitano: “Verde que te quero verde. /Verdes ventos. Verdes ramas. /O barco vai sobre o mar /e o cavalo na montanha. /Com a sombra na cintura /ela sonha na varanda, /verde carne, pele verde, /com olhos de fria prata. /Verde que te quero verde. /Sob uma lua cigana,/ as coisas já a estão mirando /e não pode ela mirá-las”. Tal atmosfera de insone expectativa, em que o poeta não passa de um instrumento de forças mágicas e divinatórias, perpassadas geralmente de um pathos trágico – porque no embate contínuo com seu tempo –, dá a medida exata de um canto que transcende a conjuntura datada dos estilos e das escolas: porque não é a ele próprio que seu canto se reporta, mas ao seu duende. Dotado de uma personalidade fascinante e irresistível, segundo os seus contemporâneos, em que se juntavam, além do poeta, o dramaturgo, o desenhista e o músico – voltados não somente para as classes cultas mas para as pessoas anônimas da sua amada Andaluzia –, essa fascinação e essa irresistibilidade teriam muito a ver, em sua arte, com sua inata faculdade de fazer com que todos os elementos de sua circunstância – personagens e paisagens, lembranças, aspirações e pressentimentos – se conjugassem numa unidade em que quase não se distinguem vida e obra; nelas estando presentes, portanto, os céus e a terra. Talvez o momento culminante de sua poética, sob esse ponto de vista, seja o poema para sempre inconcluso que é a “Ode ao Santíssimo Sacramento do Altar”, em homenagem ao compositor Manuel de Falla, do qual escolhemos esta estrofe: “É assim – Deus ancorado – é
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Federico García Lorca e Salvador Dalí: uma geração de artistas notáveis
assim que quero ter-te. /Pandeirinho de trigo para o recém-nascido. /Brisa e matéria juntas em expressão exata, /por amor desta carne que não sabe teu nome.” O poema não só evoca o mistério da transubstanciação eucarística, porém realiza uma verdadeira transubstanciação poética em que as palavras, imantadas por uma luz quase sobrenatural, se renovam sob o toque de um duende vivo – porque sagrado – que se apossa da linguagem. Pois se Deus se ancora na vida, também a vida se ancora na linguagem: a brisa e a matéria juntas – a inspiração e a dicção – à luz de uma Presença forte, ainda que invisível, impelem a carne, por amor, a buscar saber seu nome. Continente agosto 2006
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Federico García Lorca nos traços de Pablo Picasso
Além do Mito A poética de García Lorca na interação e integração do passado com o presente Eduardo Maia
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Este ano de 2006 é o ano de comemoração do 70º aniversário da morte do poeta e dramaturgo Federico García Lorca. As circunstâncias dramáticas e as motivações políticas que envolveram sua trágica morte durante a Guerra Civil Espanhola contribuíram para a formação e uma certa mitologia em torno da figura do poeta. Mas a permanência e pertinência das criações artísticas de García Lorca o fazem superar essa condição de “fetiche cultural” e asseguram seu lugar privilegiado entre os grandes nomes da poesia do século 20. Seus livros, peças dramáticas, conferências, desenhos e seus arranjos musicais continuam sendo amplamente lidos e estudados e seguem despertando o interesse crítico - sua fortuna crítica já reúne milhares de artigos, livros, teses, monografias e ensaios. A tendência musical foi a primeira que se desenvolveu no artista. Seu pai lhe deu de presente um piano de cauda e ele executava música clássica com o mesmo entusiasmo com que tocava temas populares. As primeiras composições poéticas de Lorca estão carregadas de musicalidade. Vê-se nelas uma visão muito plástica e pictórica do mundo, ordenadas por um ideal de harmonia fruto de sua vocação musical. Essas raízes artísticas, aliadas às impressões recolhidas de suas memórias de infância em Andaluzia foram seu primeiro manancial poético, além, obviamente, do conhecimento que tinha da tradição poética clássica. O cenário rural de sua infância em Fuentevaqueros foi aos poucos sendo substituído em sua poesia pelo fascinante ambiente urbano de Granada. A tradição da lírica espanhola está fortemente presente na poesia lorquiana e sua voz poética assume uma ressonância coletiva, que nele não parece ser um propósito conscientemente buscado, mas uma característica natural da sua maneira de ser e sentir o mundo. Apesar de ter atingindo um grande reconhecimento por sua obra muito cedo, García Lorca nunca deixou de buscar novas formas e temas para sua poesia. Muitos contemporâneos se referiam a ele com um poeta natural e espontâneo, “poeta pela graça e Deus”, mas ele sempre enfatizou, em oposição, que era “poeta pela graça da técnica e do esforço e de me dar conta absolutamente daquilo que é um poema”. A concepção poética de Lorca está presente em vários textos ensaísticos e de conferências suas. Na sua conferência “A imagem poética de Góngora”, ele escreveu: “um poeta tem que ser um professor dos cincos sentidos corporais: visão, tato, audição, olfato e paladar. Para ser dono das
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O poeta Góngora, uma das principais influências para Lorca, retratado por Diego Velázquez
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Ilustração de Garcia Lorca
mais belas imagens, tem que abrir portas de comunicação em todos eles (...). Todas as imagens se abrem no campo visual. O tato mostra a qualidade de suas matérias líricas, sua qualidade quase pictórica e as imagens que os demais sentidos constroem estão subordinadas aos primeiros”. Assim, para o poeta, as imagens são transposições sensitivas - um jogo entre os sentidos -, e a metáfora seria a “união de dois mundos antagônicos por meio de um salto eqüestre que a imaginação dá”. Federico García Lorca deixa como herança aos poetas do nosso tempo, além de sua grande obra, uma concepção de poesia profundamente marcada pela valorização da técnica e do trabalho rigoroso com as palavras - uma consciência do esforço que implica a realização plena da poesia. Faz-se necessária, portanto, uma releitura do poeta centrada nesse aspecto mais técnico e conceitual de sua obra. Federico García Lorca foi um renovador crítico da tradição e não um daqueles poetas de certa tendência “modernista” que desejavam simplesmente esquecer todo o passado, como muitos poetas atuais, que escrevem sem pensar no que foi feito anteriormente e mesmo sem pensar no que acontece no presente. As condições trágicas de sua morte, o fato de ter pertencido a uma minoria sexual e os motivos folclórico e populares de sua obra são apenas um detalhe dentro da vastidão da sua criação artística. Continente agosto 2006
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Lorca e o teatro moderno em Pernambuco A polêmica entre Hermilo Borba Filho e Valdemar de Oliveira sobre o valor do teatro de García Lorca Luís Augusto Reis
Em novembro de 1948, às vésperas da estréia de A Casa de Bernarda Alba, levada à cena pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), Hermilo Borba Filho e Valdemar de Oliveira, os dois principais responsáveis pela instauração da modernidade nos palcos pernambucanos, travam uma acalorada polêmica sobre o teatro de Federico García Lorca. Durante semanas, em suas respectivas colunas teatrais, Hermilo na Folha da Manhã e Valdemar no Jornal do Commercio, eles discutem principalmente se o Lorca dramaturgo conseguia, ou não, e até que ponto, se impor diante do Lorca poeta. Para Valdemar, à exceção de A Casa de Bernarda Alba, tragédia que lhe fora apresentada pelo próprio Hermilo, as peças do autor do Romanceiro Gitano, sem renunciarem “ao pitoresco, ao sortilégio dos cantos e à la montée du lyrisme”, terminavam servindo apenas como veículos para que o seu gênio de poeta se manifestasse. Esse seu ponto de vista, porém, não era uma novidade. Ele apenas reafirmava um raciocínio que já havia sido apresentado, em janeiro de 1947, em sua crítica à montagem de A Sapateira Prodigiosa, segunda produção do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), grupo fundado e dirigido por Hermilo Borba Filho. “Os rapazes do TEP escolheram sua segunda peça sem olhar as imensas dificuldades que, sob todos aspectos – e mormente sob o aspecto teatral – apresenta uma obra de Lorca /.../ não sendo erro afirmar que sua carga poética sacrifique seu 'tônus' teatral”, dizia então Valdemar, transparecendo um surpreendente apego a uma dramática mais rigorosa, da qual a melhor dramaturgia moderna pretendia se distanciar. Incondicional admirador e profundo estudioso da obra de García Lorca, Hermilo reage com veemência: “É uma pena que Valdemar de Oliveira não tenha mudado de opinião sobre o teatro de Lorca, preferindo considerar A Casa de Bernarda Alba como a sua única peça nitidamente teatral. Tal concepção estreita de teatro é uma herança acadêmica do théâtre de boulevard, da piéce bien faite à Scribe ou Sardou. /.../ Teatro, no sentido mais puro da palavra, é muito mais do que técnica”. É bem verdade que, em uma primeira apreciação, A Casa de Bernarda Alba, classificada pelo próprio autor como um “documental fotográfico”, podia parecer estar mais próxima de um teatro convencional, apoiado no Realismo-Naturalismo, especialmente quando comparada à inventividade poética de Bodas de Sangue, sua tragédia mais conhecida até então. Todavia, logo se perceberia que, como em suas outras peças, a suposta realidade de A Casa de Bernarda Alba é Continente agosto 2006
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Abaixo, grupo de teatro Sfumato, de Sófia (Bulgária), encena A Casa de Bernarda Alba
Geninha da Rosa Borges encenando Yerma
Acima, cartaz do espetáculo Yerma, de García Lorca, encenado no Recife
montada e desmontada por um simbolismo que toma o palco de forma integral, inundando-o com a transcendência da poesia, seja pelas palavras pronunciadas, seja pelas indicações cenográficas, pela iluminação, pelo figurino ou pela música. Afinal, foi na síntese do palco que Lorca, artista de tantas linguagens – do desenho, da música, do cinema, da dança, e, sobretudo, da palavra –, encontrou as condições ideais para se expressar plenamente. O teatro sempre foi, portanto, o seu mais perfeito habitat. Com o passar dos anos, fica evidente que Valdemar foi revendo sua opinião. O repertório do seu grupo revela um interesse inequívoco por autores que não se submetiam aos ditames do tal “tônus teatral”. Nos melhores anos do TAP, foram encenados textos ousados, de dramaturgos inovadores como, entre outros, Thornton Wilder, Nelson Rodrigues, Pirandello, Georg Kaiser, Alejandro Casona, Maeterlink, Luiz Marinho, além do próprio Lorca, que teria mais duas peças montadas pelo grupo: Bodas de Sangue, em 1956, com direção de Bibi Ferreira; e Yerma, em 1978, dirigida e protagonizada por Geninha da Rosa Borges, a pedido do próprio Valdemar, pouco antes de seu falecimento em 1977. Política e Poesia – No Recife daquele ano de 1948, o debate prosseguia, acirrandose, com Valdemar afirmando que o teatro de Lorca despertava, sobretudo nos jovens artistas que o tomavam como “slogan revolucionário”, um interesse mais político do que propriamente artístico. Tal declaração deflagra uma imediata reação dos estudantes, a ponto de Galba Pragana, então presidente do grupo, ir aos jornais, para desafiar o diretor do TAP a provar a existência dos tais “interesses políticos” entre os componentes do TEP. No dia seguinte, Valdemar esclarece que havia se referido a um “interesse político, no sentido lato do termo”, sem querer aludir a atividades partidárias, subversivas ou não. “Político”, no modo como o grupo se posicionava diante da vida, com seus valores morais, éticos e religiosos. De fato, e isto o TEP de Hermilo e de Ariano Suassuna jamais escondeu, eles pretendiam, sob a inspiração da poética revolucionária de Lorca, renovar o teatro local, reaproximando-o do povo, trazendo à cena, de forma livre e inovadora, os cantos, as danças, as lendas, as cores e as dores de nossa gente. Havia, portanto, uma perfeita sintonia entre os ideais desses jovens artistas e o legado do poeta espanhol: em suas palestras, em seus ensaios e em sua coluna de jornal, Hermilo não perdia uma ocasião para citá-lo (“Um povo que não ajuda e não fomenta seu teatro, se não está morto, está moribundo”); poucos meses antes dessa discussão com Valdemar, o TEP inaugurara A Barraca, um palco móvel, de lona, que oferecia espetáculos gratuitos, no Parque 13 de maio – tentativa de repetir a experiência do teatro ambulante de Lorca, o famoso La
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O Teatro de Amadores de Pernambuco encenou as principais obras dramáticas de García Lorca
Barraca; no campo da literatura dramática, então, a influência foi definitiva: afinal, que outro autor conseguira, de forma tão bela e original, equacionar, como pretendia Hermilo e seus companheiros, região, tradição e modernidade? Região e Tradição – No início daquele ano, o TEP havia divulgado os resultados do seu “Concurso de Peças”: em primeiro lugar, uma tragédia rural, de amor, repleta do espírito de García Lorca: Uma Mulher Vestida de Sol, do estreante Ariano Suassuna, que até então era conhecido apenas como um jovem e rigoroso poeta. Quem preside os trabalhos da comissão julgadora é Gilberto Freyre. Além dele, atuam como jurados Hermilo, Valdemar, e os críticos Álvaro Lins e Luiz Delgado. No regulamento desse concurso, lia-se o seguinte: “Os autores deverão pensar alto e livremente, apresentando, de preferência, os problemas brasileiros, através de personagens e situações, sem medo ou vergonha deles e aproveitando os motivos humanos e telúricos regionais do Brasil”. Como se vê, no Recife, a busca por um teatro moderno, autônomo e de qualidade, uma determinação que não era apenas do TEP, de Hermilo, mas também, ao seu modo, do TAP, de Valdemar, ecoava fortemente as demandas levantadas pelo Regionalismo de 1926. E, nesse cenário, o teatro de Federico García Lorca, tão universal e tão moderno, embora impregnado das tradições de sua região, surgia como uma brilhante, e coerente, resposta a esse desafio. Assim, não era surpreendente que qualquer divergência entre Valdemar e Hermilo, no tocante às qualidades das peças de Lorca, rendesse um debate de tamanha intensidade. Afinal de contas, eles não estavam apenas discordando sobre o valor artístico de mais um dramaturgo; estavam, isto sim, discutindo um exemplo, ou melhor, um caminho que decerto ambos intuíam ser dos mais auspiciosos para o desenvolvimento do teatro em nossa região. No dia sete de dezembro de 1948, data da estréia de A Casa de Bernarda Alba, sob a direção de Valdemar de Oliveira, Hermilo Borba Filho trata de encerrar a controvérsia, saudando a montagem do TAP, da seguinte forma: “Hoje à noite, no Santa Isabel, representa-se uma peça de García Lorca. /.../ A sua poesia e o seu teatro têm uma mensagem, não no sentido estreito da palavra, e nem falamos de qualquer preocupação dirigida, mas uma mensagem tão grande quanto o mundo, mostrando que a arte tem uma finalidade: a de gritar pelos horrores da terra e a de cantar as belezas mais puras. /.../ É uma voz de poeta e de homem, ferindo os ouvidos acovardados, dando força a outros poetas caridosos e dando à poesia e ao teatro uma dignidade poucas vezes conseguida. /.../ O TAP presta, dessa maneira, um dos maiores serviços à causa da arte”. •
Acima, cartaz de Bodas de Sangue encenada na Venezuela
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MÚSICA
História musical Compositores desenharam em alguns de seus maiores painéis sonoros uma espécie de História Musical do Brasil Carlos Eduardo Amaral
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omo seria uma música que servisse de fundo à chegada de Cabral a Porto Seguro, a um episódio crucial da Guerra do Paraguai ou ao cotidiano de uma cidade colonial mineira e de uma grande capital atual? Conhecemos muitos quadros que ilustram livros de História e Geografia, lembrando de relance Eckhout, Pedro Américo e Portinari, mas como seriam recortes desse tipo em notas e pautas? Tendo nascido a partir de impressões pessoais ou de encomendas, obras que são uma aula sobre o país integram o repertório dos maiores compositores eruditos da nação, começando por Carlos Gomes e Villa-Lobos. O início da história do Brasil foi musicado por Heitor VillaLobos (1887–1959) em 1937, para o filme O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro. A trilha virou posteriormente uma série de quatro suítes, que descrevem as aventuras e as impressões dos portugueses na nova terra, uma festa na selva, a presença da música dos mouros e o perigo de uma cascavel. A quarta suíte é tida como um ponto alto da obra de Villa-Lobos: retrata a procissão para erguer a primeira cruz na costa da Bahia e a celebração da primeira missa. O ápice do ritual é o encontro do texto latino nas vozes masculinas do coro com as vozes femininas cantando em tupi-guarani, em meio a uma rica moldura da percussão.
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Foto: Roberta Mariz/Agradecimrento: Cláudio Almeida
Reprodução
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Cartaz da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, que estreou mundialmente no Teatro Scalla, de Milão, em 1870.
Essa atmosfera de cruzamento das culturas índia e branca também se repete na Sinfonia nº 10 Sumé Pater Patrium (1952) de Villa-Lobos, estreada no quarto centenário da cidade de São Paulo, em 1954. A letra inclui trechos em tupi-guarani e parte do Beata Vergine de José de Anchieta. Já famoso na Itália por suas óperas, Carlos Gomes (18361896) escreveu um oratório (ópera sem parte cênica) sobre a descoberta da América, destinada a um concurso que escolheria uma peça a ser apresentada em Chicago em 1892, numa exposição em comemoração aos quatro centenários da chegada dos espanhóis. Colombo não foi escolhida nem caiu no gosto do público, mas é um registro seguro da maturidade artística do compositor campinense. Dentre suas óperas, O Guarani (Il Guarany, 1870) e O Escravo (Lo Schiavo, 1887) são as criações que têm relação direta com sua pátria. Em O Guarani sabe-se que a união do elemento índio com o branco é a base da trama, onde Peri aceita se converter ao cristianismo para se casar com Ceci, e D. Antônio de Mariz, pai dela, o batiza. Já em O Escravo, dedicada à Princesa Isabel, os índios atuam no papel de dominados pelo elemento branco, mas por um único motivo: não desagradar D. Pedro II, que estava bastante pressionado pelo movimento abolicionista e era o benfeitor de Carlos Gomes.
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MÚSICA Renata Mello/Tyba Imagens: Reprodução
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Guerra-Peixe e Mozart Guarnieri buscaram inspiração na cidade de Ouro Preto, para compor seus trabalhos
Villa-Lobos, com sua mulher Arminda Neves e o cônsul brasileiro em Nova York, no Teatro Ziegfeld, em 1948
A vida do Brasil Colônia tem duas grandes obras a título de amostra, uma delas do fluminense César GuerraPeixe (1914-1993): Museu da Inconfidência, de 1972. Após uma visita seis anos antes, Guerra Peixe imaginou quatro cenas nos principais ambientes ao célebre museu de Ouro Preto e deu-lhes vida numa suíte que se tornou sua obra de concerto mais popular. A Entrada solene é curta e dá lugar a um episódio bem-humorado sobre uma cadeira de arruar. Ela passaria através das vias da então Vila Rica, levada por escravos que zombam do seu dono sem que ele veja os gracejos. A terceira visão – triste e apagada – é a do Panteão dos Inconfidentes, onde estão guardados os restos mortais de revoltosos que lutaram do lado de Tiradentes. A quarta é despertada pelos objetos dos escravos usados em Minas e na África: os restos de um reinado negro, que ora são lembrados por um tema heróico (afirmando as lutas em Minas), ora por uma melodia saudosa (remetendo à origem africana). E a suíte se fecha magistralmente retomando as notas da Entrada. Outra grande obra que remete à escravatura é do paulista Francisco Mignone (1897–1986) e tem uma trama muito familiar aos pernambucanos: o balé coralsinfônico Maracatu de Chico-Rei (1933). O argumento da obra foi criado por Mário de Andrade em torno de uma tradicional apresentação de maracatu de baque solto, apenas transportando o lugar da ação do Recife até Ouro Preto, então Vila Rica. No balé, Chico-Rei era um escravo – líder de sua tribo do outro lado do Atlântico – que conseguiu comprar sua liberdade e a de quase todos os seus súditos que vieContinente agosto 2006
ram com ele trabalhar em Minas Gerais. Faltavam apenas mais seis serem libertos. E assim a corte de ChicoRei desfila em Vila Rica, com a dança das mucambas (amas), dos príncipes, dos macotas (mestres de terreiros), do rei e da rainha, até chegarem à praça principal da cidade, onde os senhores brancos recebem o pagamento em ouro e soltam os escravos restantes. Ouro Preto ainda serviu de mote para outro belo quadro sonoro, desta vez de Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). A Suíte Vila Rica (1959) foi reestruturada a partir da trilha composta para o filme Rebelião em Vila Rica, de 1958, de Renato e Geraldo Santos Pereira. Embora o filme seja baseado num fato do período colonial, o roteiro gira em torno de uma disputa política interna de um colégio em 1945 e a música adquiriu existência independente. Do período monarquista, o melhor retrato talvez seja A Retirada da Laguna (gravada em 1972), de Guerra Peixe, que usou uma orquestração simples e precisa e temas memoráveis para reproduzir o drama do pior recuo brasileiro na Guerra do Paraguai, descrita num clássico relato de Visconde de Taunay. Identifica-se claramente a caminhada das tropas para o pantanal, a fim de invadir a fazenda Laguna, no lado paraguaio; as inesperadas inundações, que sitiaram as tropas, trouxeram fome, peste e morte, e dificultaram a travessia dos rios com a artilharia pesada; a cavalaria de Solano López incendiando Laguna; a morte do Guia Lopes e o regresso dos sobreviventes. A suíte em 10 movimentos, de Guerra Peixe, é referência involuntária e de menor escala do que se pode chamar de “música bélica”, cujos maiores exemplos vêm
MÚSICA
A Guerra do Paraguai é outro acontecimento histórico que inspirou a composição de algumas músicas
da Rússia: a Abertura 1812 (1880) e a Marcha Eslava (1876), de Tchaikovsky (1840–1893), e a cantata Alexander Nevsky (1938) de Sergei Prokofiev (1891–1953), que ainda escreveu os menos conhecidos Ivan, o Terrível (oratório, 1942), e Tenente Kijé (suíte, 1933). Alexander Nevsky e Ivan, o Terrível são trilhas dos filmes homônimos de Sergei Eisenstein. Na própria época do Império, até mesmo o Hino Nacional foi reinventado, e com bastante brilhantismo. A Grande Fantasia Triunfal Sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Louis Moreau Gottschalk (1829–1869), até hoje conquista ouvintes, independente de seu uso ufanista em horário político. É uma das poucas versões legalmente aceitas do Hino. O detalhe é que Gottschalk era um mulato andarilho vindo do sul dos Estados Unidos, filho de um judeu inglês com uma haitiana. Foi outro protegido de D. Pedro II e dedicou a obra, a exemplo de O Escravo de Carlos Gomes, à Princesa Isabel (A son Altesse Imperiale Madame la Comtesse d'Eu). Da era republicana, a influência mais notável vem do aniversário de fundação das principais cidades e se traduziu no gênero orquestral mais consagrado, a sinfonia. O Rio de Janeiro merece de antemão uma ressalva; foi cenário de inspiração para dois compositores populares: Francis Hime e Tom Jobim (este em parceria com Billy Blanco) – suas sinfonias só possuem a pretensão de imitar uma forma erudita. São Paulo foi louvada na citada Sinfonia nº 10 de Villa-Lobos e na Suíte Quarto Centenário (1954) de Camargo Guarnieri. Guarnieri celebrou também o seu Estado – na Sinfonia nº 05 (1977) e no curto choro de câmara Flor do Tremembé (1937).
Brasília ganha no número de homenagens. Deu nome à Sinfonia nº 02 de Guerra Peixe, a uma do português José Guerra Vicente (1907–1976), à nº 07 do amazonense Cláudio Santoro (1989–1919) – as três de 1961 – e à Sinfonia nº 04 (1963) de Camargo Guarnieri. Pernambuco tem duas cidades em títulos de obras armoriais: Santa Cruz do Capibaribe, de Jarbas Maciel, e Cipó Branco de Macaparana, de Cussy de Almeida. Recentemente, os 500 anos do Descobrimento promoveram um boom de novas peças nunca visto antes. O Ministério da Cultura encomendou sinfonias inéditas a cinco nomes de destaque: Edino Krieger, Jorge Antunes, Almeida Prado, Egberto Gismonti e Ronaldo Miranda. A Prefeitura do Recife, através da Sinfônica do Recife, promoveu o único concurso em vista da ocasião, que deu o primeiro lugar ao cearense Liduíno Pitombeira. Isso tudo sem contar a quantidade de obras avulsas que surgiram. Os patrimônios naturais e históricos completam esta pinacoteca musical brasileira. A Floresta do Amazonas (1958), Amazonas e Uirapuru (ambos de 1917), de Villa-Lobos, e Quadros Amazônicos (1942), de Francisco Mignone contemplam a maior floresta do mundo. Villa-Lobos, além disso, aprofundou o cenário selvagem em obras como os Choros escritos para orquestra ou formação de câmara (do 6 ao 12), enquanto Festa nas Igrejas (1940), voltando a Mignone, é celebrada pela ambientação que faz das igrejas de São Francisco, em Salvador, de Rosário do Ouro Preto, do Outeirinho da Glória, no Rio, e de Nossa Senhora de Aparecida. • Continente agosto 2006
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AGENDA/MÚSICA
Jovens levam música erudita ao interior Chesf patrocina turnê da Orquestra Sinfônica Jovem de Pernambuco, do Conservatório Pernambucano de Música
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Conservatório Pernambucano de Música permanece discreto e sóbrio em seu reduto na Av. João de Barros, na Boa Vista; firme no propósito de catequese musical. Uma novidade, no entanto, surgiu para reciclar, mesmo que sutilmente, essa atmosfera tradicional e conferir maior visibilidade ao trabalho da instituição. Acostumada a realizar concertos pontuais em igrejas, teatros e auditórios de livrarias, a Orquestra Sinfônica Jovem (OSJ) do CPM, sob o patrocínio da Chesf, experimenta, pela primeira vez, uma vivência profissional e sai em turnê remunerada, levando a música instrumental a municípios do agreste pernambucano, caso de Bezerros e Garanhuns, e ainda a outras cidades nordestinas: Olinda, Maceió, Campina Grande, Natal e Fortaleza. Intitulado Circuito Sinfônico Chesf, o projeto prevê 14 concertos até novembro. São duas temporadas; a agreste toma os meses de junho, agosto setembro e novembro, incluindo oito concertos, enquanto a nordeste acontece num intervalo da primeira programação; durante o mês de outubro. Na programação estão obras de alguns dos maiores nomes da música erudita internacional, como Mozart, Beethoven, Schubert, Tchaikosvsky e Villa-Lobos, além dos pernambucanos Clóvis Pereira e José Siqueira. A OSJ possui toda a estrutura de uma orquestra sinfônica profissional. A cada apresentação, violinos, violas, violoncelos, flautas, clarinetes, trompas, trompetes, fagotes, contrabaixo, flautas, clarinetes, oboés, trombones, tuba e percussão se harmonizam sob o comando de 70 jovens, escolhidos, através de testes, entre os mais de mil estudantes do Conservatório. São necessários pelo menos cinco anos de estudo sério para ingressar no conjunto, o que tem se refletido no virtuosismo das apresentações. O espetáculo da OSJ funciona como um imã para ampliação do público apreciador. “Estamos aproveitando a oportunidade para realizar execuções especiais para as crianças no Agreste, com o objetivo de cativá-los”, informa José Renato Accioly, um dos maestros da Orquestra e
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professor do Conservatório. Sérgio Barza, também professor do Conservatório, é o outro regente. O projeto tem o mérito de garantir aos jovens a continuidade do estudo musical e o aperfeiçoamento profissional. “Quando a adolescência vai chegando ao fim, muitos estudantes se vêem obrigados a abandonar o estudo da música para se alocar no mercado de trabalho convencional. O Circuito aparece como alternativa, visto que os instrumentistas estão, graças ao patrocínio da Chesf, recebendo cachê pelas apresentações”, detalha Accioly. (Renata Bezerra de Melo)
Programação Circuito Sinfônico Chesf Turnê Agreste 25/8, Bezerros – Matriz de São José, 18h30. 26/8, Garanhuns – Teatro do Centro Cultural, 16h. 22/9, Bezerros – Matriz de São José, 18h30. 23/9, Garanhuns – Teatro do Centro Cultural, 16h. 24/11, Bezerros – Matriz de São José, 18h30. 25/11, Garanhuns – Teatro do Centro Cultural, 16h. Turnê Nordeste 6/10 – Teatro Deodoro, Maceió – 20h30. 7/10 – Igreja da Sé de Olinda – 20h30. 8/10 – Teatro Severino Cabral, Campina Grande – 19h. 9/10 – Auditório da Escola de Música da UFRN, Natal – 20h30. 11/10 – Teatro José de Alencar, Fortaleza – 20h30. Serviço: Conservatório Pernambucano de Música (Av. João de Barros, 594, Boa Vista, Recife – PE). Fone: 81. 3231.3315 / 3421.9285
Vládia Lima/Ag. Balão
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AGENDA/MÚSICA O erudito do popular Capiba, Clóvis Pereira e Maestro Duda evocam os nossos carnavais, são deles inúmeros frevos que todos os anos movem milhares de pessoas pelas ladeiras de Olinda e ruas do Recife. Em A Música Erudita de Compositores Populares Pernambucanos, somos apresentados à outra face desses mestres. O projeto registra em CD peças inéditas e nunca antes executadas à altura de seus compositores. Realizado durante o VIII Virtuosi – Festival Internacional de Música de Câmara, pela Orquestra Sinfônica Virtuosi, formada especialmente para o Festival por músicos brasileiros e do exterior e regida pelo maestro Rafael Garcia. O CD duplo traz grandes composições que revelam o erudito refinado desses compositores bipolares. A Música Erudita de Compositores Pernambucanos. Virtuosi Sociedade Artística, distribuição dirigida.
Samba Paulista
Se quando se fala de samba temos a imagem de um fundo de quintal carioca, quando ouvimos o samba do CD Osvaldinho da Cuíca Convida – Em Referência ao Samba Paulista e suas citações a São Paulo somos carregados pelas vizinhanças paulistas e suas peculiaridades. Osvaldinho coloca em cada faixa não somente referências explícitas daqueles que formaram as bases do samba paulista como Tuniquinho, Geraldo Filme, Seu Carlão, Madrinha Eunice, Dionísio Barbosa, mas ao mesmo tempo resgata parceiros esquecidos: Nelson Gaya e Luiz Vagabundo. Paulistano nascido no Bom Retiro, Osvaldinho da Cuíca se cercou de outros convidados em seu disco, além de Aldo Bueno, como Quinteto em Branco e Preto, da nova geração, Demônios da Garoa e de Jair Rodrigues.
100 anos de Frevo Em nove de fevereiro de 1909, o Jornal Pequeno de Recife escreveu pela primeira vez a palavra frevo. Quase 100 anos depois o mais conhecido gênero musical pernambucano recebe um presente de Antônio Carlos Nóbrega, um estudioso apaixonado das manifestações culturais brasileiras, sobretudo do frevo, que antecipou as comemorações do centenário do ritmo pernambucano com o lançamento do CD Nove de Frevereiro. Nóbrega traz composições representativos do gênero em suas três vertentes: frevo-de- bloco, com suas letras e melodias que misturam saudade e evocação; frevo-canção, que anima os salões; e o frevo-de-rua, executado a céu aberto nas tradicionais comemorações do carnaval. Nove de Frevereiro é o primeiro de dois CDs do projeto homônimo, o segundo será lançado em setembro. No primeiro, Nóbrega resgata a trajetória do universo frevístico, desde seus formadores até as gerações mais contemporâneas. O artista evoca grandes nomes como Nelson Ferreira, Capiba, João Santiago, Toscano Filho. Não é um álbum autoral, mas Nóbrega dá sua contribuição ao frevo, convidando novos compositores para dar arranjo ao antigo repertório. Outra mudança importante é a inserção do violino do músico em várias canções. Nove de Frevereiro. Antônio Carlos Nóbrega, independente, R$30,00
O Guarani
Troco é o primeiro EP do grupo pernambucano Profiterolis e traz canções que falam sobre relacionamentos e a observação da vida. A Profiterolis se define como uma banda de canções que faz música pop filtrando códigos que já existem na música popular do Brasil e de fora, com alguma pegada de rock, e tentando homenagear de algum jeito aquele som mais redondo do soul. A banda foi batizada com o mesmo nome de uma sobremesa italiana: Profiteroles – duas ou três bolas de sorvete de creme entre carolinas cobertas por calda de chocolate quente. Uma mistura interessante de ritmos e sabores, mas que não agrada a todos os públicos.
Nos começos de sua adoção no Brasil, o violão era segregado dos salões, onde reinava o piano, e esgueirava-se pelas ladeiras e becos, pontuando as modinhas de mulatos e sararás. Talvez por isso muitas composições eruditas do século 19 e início do 20 não tenham recebido escritura para o popular instrumento. É o caso da ópera O Guarani, de Antônio Carlos Gomes, sucesso mundial desde seu lançamento, no Teatro Scala, de Milão, em 1870. O grande violinista Turíbio Santos cobre parcialmente essa lacuna em seu último CD, justamente com o mesmo título da peça do compositor campinense, apresentando uma versão esplêndida da famosa protofonia (abertura). No repertório está também a “Suíte Quilombo”, de Gomes; o magnífico “Batuque”, de Henrique Alves de Mesquita, e composições bem mais conhecidas de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga. A interpretação elegante e sóbria de Turíbio é complementada pelo violão-base de Leandro Carvalho que se mostra à altura do mestre.
Troco, Bazuka Discos, preço médio R$ 8,00.
O Guarani, Delira Música, preço médio R$ 27,00.
Osvaldinho da Cuíca Convida – Em Referência ao Samba Paulista, Rio8, preço médio R$16,90.
Sobremesa?
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
A invenção do sertão O sertão é como Deus definido por Hermes de Trimegisto, uma circunferência cujo centro está em todas as partes e a periferia em nenhuma
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que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam, desconheço”. A frase de Santo Agostinho que me chegou através do escritor argentino Jorge Luis Borges, mais parece um aforismo de Guimarães Rosa: O que é o sertão? Se não me perguntam, eu sei; se me perguntam desconheço. Segundo o dicionário Houaiss, o sertão é uma região agreste, afastada dos núcleos urbanos e das terras cultivadas, em especial a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do gado, e onde permanecem tradições e costumes antigos. Para Câmara Cascudo o sertão é o interior, como o definiram os cronistas Fernão Mendes Pinto, o Padre Antonio Vieira e o escrivão Pero Vaz de Caminha. O sertão dos bandeirantes paulistas situava-se na Serra do Mar ou além dela, em florestas atlânticas, onde eles grilavam índios, procuravam ouro, pedras preciosas, e caçavam animais de peles comerciáveis. Capistrano de Abreu lamentava que a história brasileira tivesse ficado apenas no litoral, não adentrasse os interiores, os sertões. Os primeiros mapas desenham um Brasil costeiro. Só mais tarde, com os avanços da colonização e o trabalho dos exploradores, seguindo os cursos dos rios, chega-se ao Brasil profundo, misterioso como os oceanos que os navegadores temiam singrar. Os ingleses traduzem sertão como backlands, terras de trás. Olhando o mar e o litoral, tudo o que está às costas seria sertão. Esse primeiro significado valia para as terras gerais do Brasil. A palavra sertão ainda não fora reinventada pelos escritores, poetas, pintores e cineastas. Ainda não ganhara os limites geográficos que hoje a situa em zonas mais áridas, sobretudo nordestinas. Cascudo escreveu que “o nome fixou-se no Nordeste e no Norte, muito mais do que no Sul. O interior do Rio Grande do Sul não é sertão, mas poder-se-ia dizer que sertão era o interior de Goiás e de Mato Grosso.” Para Guimarães Rosa, ele se situa nos gerais de Minas. Há algo que sentimos como sendo o sertão. Talvez ele nos transmita um apelo, o mesmo que Rudyard Kipling ouviu em relação ao Oriente. – “Se ouvires o apelo do Oriente, já não ouvirás outra coisa”. Se ouvires as vozes sertanejas, já não escutarás outras vozes. Nem enxergarás outras perspectivas, como um cearense a quem subiram num prédio alto de São Paulo e pediram que dissesse o que avistava, e ele respondeu: O Crato. O sertão habita em nós, mesmo quando já não o habitamos. O sertão é
ENTREMEZ
como Deus definido por Hermes de Trimegisto, uma circunferência cujo centro está em todas as partes e a periferia em nenhuma. O sertão é a essência, o miolo, o cerne. É marca de ferro que nos queima e não se desfaz. O sertão é o silêncio das pedras, as ausências. O sertão não existe, é pura invenção dos poetas. O sertão é anterior ao descobrimento. Ele já se fundara em Creta, na Grécia Antiga, o berço da civilização ocidental, no culto ao touro, na arte de domar a rês. E em Israel com o seu legado da Escritura Sagrada. O Oriente e o Ocidente se juntaram no sertão, sedimentaram os costumes depurados na Península Ibérica, através da presença moura e judaica. Mas é através dos artistas que o sertão se reinventa. Cada um deles cria o próprio ferro de marca, o sertão pessoal que vira patrimônio de todos. José de Alencar e a etnologia do sertanejo. Euclides da Cunha e o sertão da Guerra de Canudos. Guimarães Rosa e o sertão de todas as veredas. Ariano Suassuna e o sertão armorial da Pedra do Reino. Graciliano Ramos e as vidas secas num sertão realista. Raquel de Queiroz e o sertão da estiagem de 1915. Jorge Amado e as cores das desigualdades sociais. Glauber Rocha solta Deus e o Diabo na terra do sol. O cinema do ciclo do cangaço fixa os estereótipos de um regionalismo que a televisão irá explorar de forma grosseira e vulgar. Surgem caricaturas de trajes e falas, os coronéis, as sinhás, os vaqueiros que não são cowboys. Retratam a miséria, os mandacarus e chique-chiques, os despotismos, a sanha dos cangaceiros. O sertão por essas lentes é um mundo sem épica, de tragédias sem sentido trágico. Não possui a dignidade de um faroeste americano, do cinema de John Ford, John Huston ou Roberto Leone. À margem desse poderoso mundo da comunicação, os poetas, violeiros, cordelistas, aboiadores, contadores de história, xilogravadores, ferreiros, artesãos do couro, bordadeiras, romeiros, brincantes dos autos populares, e muitos outros artistas populares do mundo sertanejo de meu Deus continuaram produzindo uma arte que se liga à tradição universal, que realiza o milagre de reunir o que se criou no Oriente e no Ocidente. No sertão, origens e tempos se misturam. O aboio, que chama para o curral o gado de semente indiana, lembra o canto de um muezim muçulmano. O sertanejo habita uma casa de arquitetura portuguesa. Come o pão em que o trigo foi substituído pelo milho de lavra indígena. Acende um cigarro de fumo da terra, e põe na cabeça um chapéu de palha com trançado africano. Dentro de casa, a esposa vê televisão, e o filho pequeno brinca num vídeogame. E o homem nem imagina que nele deságuam civilizações e saberes. Repara na tarde “que tem qualquer coisa de sinistro como as vozes dos profetas anunciadores de desgraça”, e num vaqueirinho que testa o aparelho celular, buscando sintonia com o mundo. • Continente agosto 2006
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REGISTRO
Acervo com registros comerciais revela parte da história do comércio, da indústria e da sociedade pernambucana e ajuda a construir a memória coletiva regional
Imagens: Reprodução
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Passado a limpo no presente
Fernando Silveira
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História é um fenômeno em constante transformação. Segundo o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Antonio Paulo Resende, doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), toda pesquisa histórica parte de questões formuladas no presente. Então, se o presente muda, o passado também. “Os tempos históricos estão sempre se transformando e em constante diálogo. Não há nada estático na História”, explica Resende. Essa afirmação se reflete, por exemplo, no trabalho que está sendo realizado pela Fundação Gilberto Freyre. Trata-se da catalogação de milhares de documentos que estavam guardados numa sala da Junta Comercial do Estado de Pernambuco (Jucepe), referentes ao comércio pernambucano, desde meados do século 19, quando foram fundados os Tribunais do Comércio. Um verdadeiro acervo histórico de registros de comércio contendo, inclusive, toda a estrutura burocrática dos Tribunais de Comércio (Junta, daquela época), conta Gilberto Freyre Neto, Superintendente da Fundação Gilberto Freyre e coordenador do projeto. A Fundação foi convidada a examinar o acervo, para tentar identificar a potencialidade cultural e histórica do conteúdo desses registros. O que se viu foram registros comerciais de fábricas centenárias como a Pilar, de empresas de navegação que aportavam por aqui, de bancos, empresas seguradoras, registros de marcas e patentes, e até contratos antenupciais e escrituras para a autorização do trabalho feminino. Estes dois últimos denotam que havia uma sólida estrutura social patriarcal e com forte cunho machista. Continente agosto 2006
No acervo da Jucepe, há o registro de diversas marcas de biscoitos comercializados no século 19
A soberania masculina mencionada acima aparece de maneira evidente, por exemplo, numa Escritura Antenupcial datada de 18 de julho de 1889, celebrada entre Joaquim Olinto Bastos e Francisca Carollina Meireles, na qual, os pactuantes (cônjuges) optam pela não-ccomunhão dos bens já adquiridos antes do matrimônio e dos bens e rendimentos que vierem a obter depois. Entretanto, a administração tanto dos bens quanto dos rendimentos do casal fica sob responsabilidade do marido. Em caso de morte da esposa, todos os bens serão herdados pelo homem e, em caso contrário, a mulher receberia apenas 10 contos de réis, independentemente do tamanho da fortuna conquistada durante o casamento. Outro contrato curioso é um Instrumento de Escritura de Autorização para Comerciar, também datado no final do século 19. Neste, o Sr. Thomas José de Melo concedia autorização para a esposa, dona Sophia Isabel Lucas de Melo, exercer a função de comerciante. Mas as decisões referentes ao comércio teriam que passar pela anuência do marido. No acervo estão registrados contratos sociais como o firmado entre Delmiro Gouveia e Hermann Lundgren Cia, para a venda de peles de cabras e bodes – em 04 de janeiro de 1888. A origem de estabelecimentos comerciais e de produtos aparece no sem-nnúmero de registros de marcas e patentes como as Pólvoras Lundgren, Armazém de Espíritos (do ramo de bebidas), Farmácia dos Pobres, Viana & Leal (transformada posteriormente em Vianna Leal), Fortunato Russo, Padaria Central, Biscoitos Confiança, entre tantos outros. É interessante notar que a forma de datar tais contratos ressaltava a força do catolicismo advindo das convicções religiosas do império lusitano. Antes da data propriamente escrita, o texto trazia a seguinte frase: (...) “Após o ano do nascimento de nosso senhor Jesus Cristo, em 18 de julho de 1889...” Num primeiro momento, apenas 1% dos registros considerados mais significativos serão indexados. São aproximadamente 600 contratos. Essa pequena parte dos cerca de 60 mil registros será usada na composição de um portfólio para a captação dos recursos para conclusão do projeto. “O acervo é um solo fértil para pesquisadores das mais diversas áreas”, chama a atenção o professor Resende. Nele será possível viajar na evolução do design através das transformações de logomarcas – como as do Diario de Pernambuco, Restaurante Leite, Fábrica Confiança, entre outras – que fazem parte da vasta gama de registros iconográficos. Muitas marcas, com o passar das gerações, foram ganhando outras formas, detalhes, cores etc.
TRADIÇÕES
REGISTRO
Para Freyre Neto, os registros de comércio têm relevante valor histórico-cultural para a pesquisa sócio-cultural. Ao se debruçar no conteúdo do acervo em questão, o pesquisador poderá investigar, entre tantas outras coisas, se existia de fato uma base industrial forte na região e com relações comerciais no resto do Brasil e na Europa. Há uma infinidade de informações que estarão disponíveis numa página na internet, que será desenvolvida para a divulgação e difusão das informações. Estas vão desde atas, estatutos e correspondências da presidência dos Tribunais e da Junta, passando pela relação dos serviços administrativos, até os próprios registros comerciais, falências, escrituras, marcas e patentes e os curiosos contratos antenupciais. A exemplo dos estatutos, pode ser encontrado o documento assinado pelo então Presidente do Governo Provisório do Brasil, General Manoel Deodoro da Fonseca, que aprova o regulamento oficial do Banco de Pernambuco, em 09 de janeiro de 1890. Outro documento, desta vez assinado por Ruy Barbosa, à época Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e Presidente do Tribunal do Thesouro Nacional, trata da aprovação dos estatutos do Banco Emissor de Pernambuco, em 21 de outubro do mesmo ano. Já uma carta rubricada pelo Presidente Floriano Peixoto aprova a reforma dos estatutos da Companhia Industrial de Comércio de Estiva, em 1894. Para que tudo isso seja organizado, um rigoroso padrão metodológico empregado no trabalho da equipe (composta por um designer e seis biblioteconomistas) é obedecido. No Livro de Registro de Sociedade, por sua vez, encontra-se carta original de D. Pedro II, datada de 07 de dezembro de 1883. Nela, o imperador concede à Companhia de Seguros da Prússia a autorização para funcionar no Império com uma agência na então província de Pernambuco. A aprovação da reforma dos estatutos da Companhia de Seguros Utilidade Pública da Cidade do Recife, a autorização concedendo empréstimo à Companhia de Trilhos Urbanos do Recife, Olinda e Beberibe; bem como a liberação para o funcionamento da Sociedade Auxiliadora de Agricultura são temas abordados em transcrições de cartas do Imperador D. Pedro II, encontradas em diversos volumes. E ainda há muito a ser revelado. Enfim, o acervo guarda uma infinidade de registros sobre os mais variados contratos. São informações garimpadas e valiosíssimas para a história regional, que serão desfrutadas, posteriormente, por quem tiver interesse e, sobretudo por pesquisadores da comunidade acadêmica como um todo. Contribuindo sobremaneira para a construção e preservação da história e da memória coletiva pernambucana. •
Marcas de biscoitos da Fábrica Pilar. Na outra página, descrição e marca do Tonico Vegetal Japonez (segundo grafia da época)
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TRADIÇÕES
Mestres do Mundo no sertão cearense Homens e mulheres do povo, portadores ativos das tradições, verdadeiros guardiões do saber coletivo, reúnem-se no Ceará num espaço de troca de experiências e aproximação com a juventude Ronaldo Correia de Brito
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rio Jaguaribe é conhecido como o maior rio seco do mundo. Isso não quer dizer que ele não possua águas. Possui. Só que elas correm apenas no tempo das chuvas. No restante do ano, ele é apenas um caminho arenoso. Seguindo o curso desse rio, os colonizadores entraram Ceará adentro, chegando ao sertão. Que sertão? O Estado do Ceará é quase todo um deserto, uma ferradura que se abre para o mar, formada por três maciços de serras – chapadas do Araripe, do Apodi e de Ibiapaba – e no meio da ferradura, o sertão, que não possui a exuberância molhada dos Gerais de Guimarães Rosa, mas impressiona pela vastidão, pelo silêncio, pela solenidade das pedras. As pastagens do alto, médio e baixo Jaguaribe alimentaram rebanhos de gado, tornando o Ceará um grande produtor e exportador de carnes. Foi o ciclo do couro, de prosperidade econômica e cultural. Criou-se uma épica sertaneja, registrada na literatura oral, na cantoria dos bardos violeiros, nos cordéis, nos autos populares, e em romances cantados nas feiras. O sertão com sua mitologia própria, alimentada pelas guerras entre famílias poderosas, ávidas por mais terras, lembra um cenário bíblico, e uma Grécia do período heróico. As gestas dos cavaleiros encourados, dos cangaceiros e bandos ciganos foram mais tarde substituídas pelos dramas sociais do romance de 30 e do cinema novo.
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A mudança na forma de representação desse mundo isolado, coincide com o início do abandono do campo, com os ciclos migratórios para a Amazônia, São Paulo, Goiás, Brasília, e outros recantos. A partir da década de 50, os campos se esvaziam de suas gentes. As terras se esgotam, os pastos quase não existem, o desmatamento agrava a natural desertificação. As fazendas de gado decaem, o plantio de algodão e as indústrias de beneficiamento entram em falência com a praga do bicudo, a agricultura de subsistência não sobrevive às crescentes estiagens, a cera de carnaúba não é suficiente para competir com os derivados do petróleo. A frágil economia nordestina entra em falência, perde espaço no mercado interno, vira o retrato da fome, do analfabetismo, da indigência. No cinema, na literatura e na música essas mazelas servem de inspiração aos artistas, de Graciliano Ramos a Portinari. Mas felizmente as secas repetidas e o descaso político não esgotam o veio d'água da cultura popular, surgida em meio às agruras nordestinas. Nascida de uma primeira fricção entre ibéricos, índios e negros, ela mostra a força de nossa herança antropofágica, assimila, rumina e aprimora as culturas a que tem acesso, numa permanente mobilidade. Resistência em meio às ditaduras, não toma partido político nem religioso, apesar das manipulações que sofre. É livre no seu curso e discurso, cômica, dramática, satírica, anda com as próprias pernas, reinventa-se a cada obstáculo. É nela que o Estado finalmente enxerga uma saída para as mazelas sociais de boa parte das populações. De que maneira? Reconhecendo e promovendo o que foi mantido à margem, tratado como primo pobre, filho indesejado.
Fotos: Jr. Panela
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Mestre Piauí do Boi de Reisado
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TRADIÇÕES
A Orquestra Carnaubeira é formada por meninos e meninas que mostram que as lições dos mestres foram bem aprendidas
Promover a educação e a cultura é a única saída para os países em desenvolvimento, o caminho para se reverter a desigualdade social. Não são necessários rios de dinheiro gastos de uma única vez, mas investimentos contínuos, uma política educacional que não dependa de humores e favores. O fluxo educativo não pode lembrar as águas do Jaguaribe que enchem e secam à mercê do clima. Tanto o rio, como a educação, necessitam ser perenizados. Há dois anos se realiza no Ceará o Encontro Mestres do Mundo, reunindo homens e mulheres do povo, que não possuem o saber acadêmico, mas são pessoas de notório saber. Chamados também de patrimônio imaterial, termo em moda na sociologia e na antropologia, segundo o coordenador do encontro, Oswald Barroso, “o Mestre é um portador ativo da tradição, que guarda a memória de um saber coletivo, mas não se restringe a repeti-la. Ele inova e desenvolve a herança a ele repassada. Portanto, não se trata apenas de um guardião, ou de um preservador da cultura, mas de um criador e inovador. Nele se condensam saberes, alguns milenares, trabalhados pela coletividade através dos séculos e renovados constantemente por outros Mestres como ele”. A proposta do II Encontro Mestres do Mundo é de aproximar mestres das mãos (bordadeiras, ceramistas, xilogravadores etc.), mestres do corpo (de bumba-meu-boi, reisado, maneiro-pau, congada etc.), mestres do sagrado (penitentes, rezadeiras, profetas da chuva etc.), mestres dos sabores, da oralidade e da música para troca e repasse de conhecimentos, sobretudo aos mais jovens. Se os jovens não se reconhecerem na cultura que os mais velhos guardaram e reinventaram, tudo estará perdido.
TRADIÇÕES
A Orquestra Carnaubeira, de Russas, formada por meninos e meninas com idade próxima aos 14 anos, é a prova de que as lições dos mestres foram bemaprendidas. O grupo comove platéias com um instrumental de flautas, percussão, guitarra e baixo elétrico, executando composições próprias, que dialogam com a música armorial de Antonio Madureira, com a banda cabaçal dos Irmãos Aniceto, com reisados e maracatus. Fica evidente nossa vocação antropofágica, nossa capacidade de incorporar sons e tendências musicais, da tradição à vanguarda. Os espasmos do guitarrista e do baixista lembram os de um roqueiro. Nada mal que eles se imaginem metaleiros, zabumbeiros, ou pifeiros. A cultura é dinâmica, um bem coletivo que pode ser usado por qualquer um, da maneira que bem-quiser. Os brinquedos de tradição popular não discriminam idade. Num mesmo auto, cantam e dançam velhos, homens maduros, jovens e crianças. Nunca vi um adolescente em crise de identidade porque representa uma Catirina, travestido em mulher. Num Reisado, todas as hierarquias sociais estão representadas, e o menino que começa brincando com oito anos, no rabo da fila a que chamam de contra-coice, pode ascender um dia ao lugar de Mestre, ou Mateus ou Rei. Essa ascensão é puramente didática, depende do talento e do empenho em apreender. Quando pediram ao Mestre Aldenir que referisse à personagem mais importante do Reisado, ele citou várias. O folguedo possui a generosidade de colocar as pessoas no mesmo nível de importância. Dentro dos grupos de brincantes perpassam a ética e o afeto, bens de grande valia nas sociedades tradicionais, tão ausentes nas sociedades contemporâneas. Daí a importância de encontros como esse, reafirmando valores esquecidos, pondo jovens e velhos numa mesma roda de corpo, cantando, dançando, falando e ouvindo. A Usina 2 Produções, que realiza o evento, computa números: cerca de 900 brincantes e mestres, 40 grupos participantes, dois palcos em cada cidade, 200 empregos diretos, ocupação da rede hoteleira, mobilização das prefeituras das cidades, orçamento de meio milhão de reais. Tudo isso parece bem pouco diante dos resultados alcançados. A festa, não é outro o nome, possibilita a reapropriação dos espaços urbanos para a cultura e o lazer, o encontro com os mestres da tradição popular, que sempre existiram, mas as pessoas já nem viam, e a reflexão sobre os valores da sociedade globalizada. Mestre Sebastião Chicute, Mestre Miguel da Banda Cabaçal, Mestre Antonio Pinto Rabequeiro, Mestre Piauí do Boi de Reisado, Mestre Zé Pedro do Reisado de Couro, Mestre Gilberto Calungueiro do Teatro de Bonecos, Mestre Raimundo Aniceto, Mestre João Mocó do Bumba-meu-boi, Mestra Margarida Guerreiro, todos foram diplomados mestres, com direito à comenda e salário vitalício. Importância pequena, mas significativa. Reconhecimento público pelos serviços prestados à cultura do Ceará. Todos eles poderiam estar dentro das universidades repassando conhecimentos. Mas as universidades ainda não legitimaram esses saberes, porque eles não são acadêmicos. Não faz mal, porque fora desses espaços, universidades livres se arregimentam a cada dia, em torno de maracatus, e bois, e reisados, e seus velhos Mestres. Basta ter olhos para ver. E pernas para andar por dentro de canaviais, pontas de ruas de cidades do interior, periferias de cidades grandes. Onde existe um Mestre, forma-se uma roda de aprendizes. •
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Num Reisado, todas as hierarquias sociais estão representadas, e o menino que começa brincando com oito anos, no rabo da fila a que chamam de contracoice, pode ascender um dia ao lugar de Mestre, ou Mateus ou Rei
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Bem-comum, mal comum (2) O crucial problema político somente será resolvido quando seus seguidores práticos esbanjarem um mínimo de dignidade
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m virtude da maleabilidade da arte usada em quaisquer segmentos, a primeira exigência para repormos a atividade política no nível mais alto, onde ela sempre deveria estar, é que ela traduza, através de seus operadores, uma ação consciente e fundamental na vida de um povo como um todo, e não apenas numa classe mínima – a elite econômica e financeira que infelizmente rege o País. Em seguida que se estabeleçam bases sólidas (ou pelo menos quase bastantes críveis) dessa atividade para que brotem objetivos planejamentos e diretrizes respeitadas. Entretanto, o que vemos constantemente nessas ações – ilações costumeiras transformadas em promessas vãs pelos políticos brasileiros – são as influências burguesas como as concepções próprias da vida, os defeitos herdados dos erros do passado e o caráter duvidoso convenientemente emprenhado em grande parte no consciente de nossos homens públicos. Pois que tudo que se planeja é arranjado por acordos, idéias ou doutrinas, geralmente em benefício dos mesmos e seus áulicos mais próximos. Por vezes, estendem um pouco das sobras de migalhas, do que deveria ser do bem comum, para dividirem com o pobre povo marginalizado (sem falar da classe média, hoje mais pobre do que Jó) que só crê em Deus, nas aflições de fé e nos passeios contritos em filas comportadas das procissões de suas oportunas padroeiras – venerando suas auras de madrinhas. Portanto, parece-me que o problema político exige uma reposição primordial, concordando em significativa parcela de entendimento com Alberto Tôrres, em suas bases ideológicas, contundentemente doutrinárias, para que as atitudes práticas não sejam simplesmente utilitárias, mas ditadas com consideração filosófica. O crucial problema, tanto político como de seus acessórios relevantes para com a governabilidade de um país, tais o econômico ou o pedagógico, somente será resolvido quando seus seguidores práticos esbanjarem
Continente agosto 2006
um mínimo de dignidade em seus atos pelos quais lutam ou postulam na vida em geral – sobretudo na pública, a oficial de sua agarrada carreira. O Estado deveria, seriamente, não só promover como reger a sociedade no caminho desse ilusório bem comum. Essa alusão bem-enaltecida do Estado como regente da sociedade presta-se a um entendimento estatista, em contradição formalíssima aos princípios da doutrina e prática da política. Lembramos que J. Gredt, em seu livro, onde põe suas teses sobre os elementos filosóficos aristotélicotomistas, pelos idos de 1929, defendia a sociedade – leia-se o povo em todas as suas classes sociais – como “A união moral de muitos em busca do bem comum”. O Estado não pode mandar o povo fazer o que eles mandam. O povo, sim, pela sua manifestação eleitoral é quem dita as suas necessidades, promovendo uma acentuada exigência na gerência do seu dinheiro – o tesouro nacional e suas reservas patrimoniais. O Estado, pois, nada mais é do que delegado do povo e seus dirigentes são funcionários pagos pelo povo – mesmo eleitos pela vontade popular. E, por oportuno, o poder de autoridade é fixado dentro dos limites da Lei Eterna e da Lei Natural, seguindo o catecismo filosófico de São Tomás de Aquino. Aí surgiu, silencioso, um liberalismo soberano que deu força ao povo, embora combatido por intelectuais católicos, visivelmente inseridos como tema prioritário de uma campanha insone de Jackson de Figueiredo, desde o tempo em que o liberalismo individualista tinha abafado os próprios germes do cristianismo de sua geração, na reação fascista contra o comunismo soviético – visto então como uma sadia afirmação do bom senso político. A vontade geral foi desprezada, antes pelo getulismo, depois militarismo e hoje, pelo advento do neoliberalismo, argamassado pelo lulismo petista tirânico. PS: Vem aí meu novo livro: Malvada Política – um mal comum real, há muito tempo. •
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