Continente #069 - 11/09

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Divulgação

EDITORIAL

Filmagens de Torres Gêmeas, de Oliver Stone, em cartaz este mês no Brasil: concessão ao fervor patriótico vigente nos EUA

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Tristes tempos novos

o tratar de temas políticos, eventualmente, a Continente Multicultural procura ir além dos movimentos conjunturais, cuja cobertura tem grande freqüência na imprensa noticiosa, e tenta enfocar fenômenos mais duradouros, sob a ótica de disciplinas diversas e com um viés marcadamente pluralista. Assim fazendo, cremos respeitar a inteligência do leitor, um ser capaz de, com base nas informações e argumentos expostos, formar suas próprias convicções. É o caso desta edição. Na reportagem de capa, são abordadas as conseqüências do atentado de 11 de Setembro nos Estados Unidos, há exatos cinco anos. O ato bárbaro e suas decorrências certamente marcarão esse início de século 21. Infelizmente, se as coisas mudaram, como preconizaram os que, no calor do ato terrorista, diziam que “o mundo nunca mais será o mesmo”, foi para pior. É o que constata o jornalista Daniel Piza, em análise serena dos fatos. Nos EUA, nos meios culturais, dois produtos díspares acabam de vir à luz: um livro de Lawrence Wright, que rastreia uma história de humilhação na raiz do ódio islâmico, e o novo filme do até então “maldito” cineasta Oliver Stone, efusivamente festejado pela direita norte-americana. O Especial desta edição debruça-se também sobre

uma questão de candente relevância: a persistência das ideologias na América Latina, onde a batalha pelos corações e mentes das pessoas acirra-se com a chegada ao poder, em vários países, de lideranças que, em graus variados, desafiam os interesses do Grande Império do Norte. Autores de variadas tendências foram consultados pelos jornalistas Fábio Lucas e Eduardo César Maia para esmiuçar essas questões. Mas o cardápio editorial da Revista está tão variado como sempre, trazendo do perfil do maestro Duda, pernambucano considerado um dos maiores arranjadores do mundo, às experimentações formais de mais um SPA das Artes, aproximando criadores e público em vários locais do Recife. Entre entradas, principais e sobremesas, o leitor poderá saborear a poesia concisa de Lenilde Freitas e a prosa dissonante do cearense Jorge Piero, o espetáculo de dança Fervo, todo baseado na coreografia do ritmo pernambucano, a música refinada do songbook de Itamar Assumpção e um lançamento editorial de grande envergadura na área de História pela Cepe – a versão fac-similar do Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, de Sebastião de Vasconcelos Galvão, obra pela primeira vez reeditada, além de outros acepipes. Bom proveito. • Continente setembro 2006

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CONTEÚDO Divulgação

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O ator Nicolas Cage encarna bombeiro-herói em Torres Gêmeas

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Cristina Machado faz intervenção urbana no SPA das Artes

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CONVERSA

TRADIÇÕES

04 Teórico Ben Shneiderman vê na informática um

58 O artesanato matizado de Henriqueta Targino

"Novo Renascimento"

CAPA 12 O 11 de Setembro e suas conseqüências: mau começo de século 16 Torres Gêmeas, um Oliver Stone domesticado 22 Escritor americano traça correlação entre humilhação e terror

LITERATURA 24 Camilo Cela, intelectual orgânico do franquismo 28 César Leal ganha o "Machado de Assis" da ABL 30 O legado de João Alexandre Barbosa 32 Pedra de Luz, de Rodrigo Petrônio, dialoga com tendências 34 A prosa dissonante de Jorge Pieiro 36 A poesia concisa de Lenilde Freitas 38 Agenda Livros

ARTES 42 Versão 2006 do SPA das Artes mais livre e mais próxima do público 49 Agenda Artes

ARQUITETURA 54 Urbanismo e estética no Renascimento Continente setembro 2006

MÚSICA 64 Ideologias na América Latina: mito e identidade 67 Vargas Llosa, uma visão neoliberal do continente 72 Eduardo Subirats: para além da igualdade 74 Noam Chomsky vê algo de novo no Hemisfério

MÚSICA 78 Songbook celebra Itamar Assumpção, o radical da MPB 81 O forró performático de Cylene Araújo na Europa 83 Agenda Música

PERFIL 84 Maestro Duda, o mestre arranjador pernambucano

CÊNICAS 90 Espetáculo Fervo faz releitura contemporânea do frevo 92 Agenda Cênicas

HISTÓRIA 93 Cepe reedita Dicionário Corográfico em versão fac-similar


CONTEÚDO

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Reprodução

Reprodução

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As relações entre arquitetura e cidade no Renascimento

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Evo Morales, presidente da Bolívia: as ideologias estão de volta

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Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Política aquém das necessidades humanas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 40 Quintana, transformador do pesado no leve

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 50 A Arte como reinvenção da vida

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 60 Bumba-meu-boi e churrasco

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 63 Por que Rubem Braga não ia a concertos de violino

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Entre o pensamento e as fórmulas prontas

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 A palavra dos famosos compõe nossa tradição oral Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente setembro 2006


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CONVERSA

BEN SHNEIDERMAN

"Tecnologia só interessa se melhora qualidade de vida" O guru da computação, Ben Shneiderman, lança no Brasil livro que prega uma nova relação entre as pessoas e a tecnologia Luciano Trigo

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erdadeiro guru das pesquisas sobre interação entre computadores e seres humanos, Ben Shneiderman é professor de Ciência da Computação da Universidade de Maryland e autor de diversos livros, entre eles Designing the User Interface: Strategies for Effective Human-Computer Interaction – a bíblia dos web-designers. Na contracorrente de boa parte da comunidade científica ligada à informática e à inteligência artificial, ele acredita que a tecnologia só faz sentido quando melhora a qualidade de vida. É o que ele afirma em O Laptop de Leonardo – Como o Novo Renascimento já Está Mudando a sua Vida, livro que toma Leonardo da Vinci como musa inspiradora para o que chama de “Nova Informática”. Shneiderman demostra que, quando se combina a ciência com a arte e a estética – como fazia o gênio renascentista – é muito mais fácil vislumbrar experiências de mais sucesso e satisfação com as tecnologias da informação e da comunicação. “A informática de hoje versa sobre aquilo que os computadores podem fazer, a nova informática versará sobre aquilo que as pessoas podem fazer”, afirma Shneiderman, que acredita estarmos vivendo um novo Renascimento – ou “Renascimento 2.0” – graças às inovações tecnológicas focadas no usuário, e não mais na máquina. Estas inovações estão causando um grande impacto, sobretudo em quatro áreas: comércio, saúde, política e educação, como ele explica nesta entrevista exclusiva. Ao longo de cada capítulo, Shneiderman propõe e analisa aplicações práticas do princípio básico da Nova Continente setembro 2006

Informática a diversos aspectos da vida em sociedade. Na área da educação, por exemplo, mostra como os softwares e a internet podem ser aplicados a um tipo de aprendizado mais qualificado, menos focado em cobranças, no qual cada aluno é estimulado a desenvolver suas habilidades. Num tempo em que os sites de busca já são manejados com desenvoltura por crianças que acabaram de ser alfabetizadas, não faz sentido, segundo Shneiderman, a escola continuar exigindo dos estudantes a memorização de um amontoado de datas e nomes de heróis nacionais. O computador assumiria o encargo do acúmulo desta cultura enciclopédica, servindo, também, como uma ferramenta para o desenvolvimento da criatividade e da interatividade com os colegas de classe ou de outras escolas e universidades. O estilo de vida de Da Vinci serve de inspiração para o capítulo sobre comércio on-line, em que Shneiderman defende a teoria de que o sucesso dos bons negócios na rede está atrelado a duas tendências: a personalização controlada pelo comerciante e a customização controlada pelo cliente. A idéia de customização também norteia o capítulo sobre política, em que o autor imagina sites comunitários que sirvam para administrar projetos e áreas de um município, e portais para acompanhamento das atividades dos políticos, para que o eleitor observe quem cumpriu suas promessas de campanha e abra debates com a equipe de um senador, prefeito ou deputado, aumentando a transparência e diminuindo a corrupção – o que, desnecessário dizer, seria muito útil no Brasil.


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Os pesquisadores de tecnologia para computação apresentam cada vez mais estudos focados no usuário. Fico feliz de constatar esse deslocamento de foco


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CONVERSA O Laptop de Leonardo sugere novas formas de utilização dos computadores e da internet. O que o senhor entende por “Nova Informática”? A idéia-chave da Nova Informática é deslocar o foco do que os computadores são capazes de fazer para o que as pessoas são capazes de fazer. Se dermos mais atenção às necessidades humanas, isso certamente trará inovações dramáticas e benefícios para muitas pessoas, inclusive em questões sociais. A usabilidade universal, novas ferramentas que estimulem a criatividade e aplicações mais úteis para os computadores poderão melhorar enormemente a qualidade de vida das pessoas.

integração de diferentes pontos de vista pode nos ajudar a construir um futuro melhor. Quais são as experiências bem-ssucedidas, em curso , nesse sentido? São aquelas que investem na qualidade da experiência do usuário, por um lado; e na expansão do universo de pessoas que podem compartilhar essa experiência, por outro. Nas últimas décadas, assistimos a uma explosão de novas tecnologias que deixavam o ser humano em segundo plano. Isso já está mudando. Na internet, por exemplo, estamos superando um primeiro estágio, no qual as pessoas usavam a rede basicamente para coletar informações, para um segundo estágio, quando a rede vira uma estrada de mão dupla – e uma ferramenta para a comunicação e a criatividade. Sites de grande alcance, como o Youtube, o Flickr, o Digg, sem falar no grande sucesso da Wikipédia, são exemplos disso. Eles estimulam a atividade criativa e ao mesmo tempo conquistam uma audiência gigantesca. Muitos jovens encontram ali um meio de expressão de sua criatividade.

Qual é o público-aalvo do livro? São os leitores em geral, com algum interesse em entender o futuro das tecnologias da informação e da computação. Mas espero que o livro influencie também os profissionais da área, de forma a pensarem sempre na melhoria da qualidade de vida das pessoas, ao desenvolverem seus produtos. Muitos projetos centrados apenas na tecnologia foram caríssimos e não deram certo, porque tinham metas irreais e inadequadas – e isso gerou O comércio (e-ccommerce), a educação (e-llearning), a irritação e frustração nos usuários, que ainda perdem muito tempo com produtos que não funcionam, sistemas política (e-ggovernment) e a saúde (e-hhealthcare) são as áreas que caem ou interfaces confusas. Nós não somos obriga- mais afetadas por essas mudanças. Fale sobre o impacto dos a aceitar a tecnologia como ela é, temos que lutar para dessas mudanças na vida das pessoas. aprimorá-la. Fazer o computador ajudar as pessoas é Em meu livro, eu analiso como Leonardo da Vinci muito mais importante do que tentar fazer com que ele resolveu questões ligadas a cada uma dessas áreas – e reproduza habilidades humanas – como falar, por exem- aplico as suas idéias ao nosso tempo. Por exemplo, na plo, o que durante muito tempo foi uma meta inútil. saúde já é possível pensar num sistema universal, de Por que Leonardo da Vinci? Leonardo é meu herói. Ele pode ser considerado a musa inspiradora da Nova Informática, na medida em que o espírito renascentista equilibrava valores humanos e visões tecnológicas. Já vencemos a batalha dos gigabytes; agora precisamos focar na qualidade de vida dos usuários de computadores. Leonardo trabalhava com um conhecimento unificado, que combinava arte, ciência, estética e engenharia. O mundo moderno fragmentou o conhecimento, como explicou muito bem o escritor e cientista inglês C.P. Snow no livro As Duas Culturas. Eu acredito que a Continente setembro 2006

O Laptop de Leonardo, Ben Shneiderman, Editora Nova Fronteira, 288 páginas, R$ 39,90. Auto-retrato de Leonardo da Vinci


CONVERSA

Escolas e bibliotecas também vêm promovendo acesso à rede de um número cada vez maior de pessoas

forma que todo o histórico médico de cada indivíduo seja acessível a qualquer hospital do planeta. É claro que isso envolve questões relativas à privacidade, que precisam ser discutidas. Mas as vantagens serão enormes, não somente para os pacientes individualmente, mas também para as pesquisas clínicas, pois esse sistema trará informações sobre a proliferação de epidemias e a eficácia dos tratamentos. Em seu tempo, Leonardo foi um estudioso brilhante da Anatomia – e já antevia a criação de bases universais de informação médica. Na política, a multiplicação de comunidades virtuais já começa a mudar o processo de formação de consensos e a agilizar as formas de controle da atividade governamental. As urnas eletrônicas também já são uma realidade em muitos países, inclusive no Brasil. Na educação, o conceito fundamental do e-learning é que os alunos passam a interagir de modo a desenvolver projetos úteis para a comunidade fora da escola. Como professor, tenho observado que cada vez mais grupos de estudantes trabalham em projetos ambiciosos e bem-sucedidos fora da sala de aula – e muitas vezes continuam trabalhando nesses projetos depois que o curso acaba. Sobre as vantagens do comércio eletrônico, nem é preciso falar. Cada vez mais as inovações tecnológicas nos aproximam de um cenário de ficção científica. Até que ponto as pessoas são receptivas ao fato de a tecnologia afetar uma parcela tão grande de suas vidas? As pessoas aderem a essas inovações na medida em que estas tecnologias trazem benefícios práticos, sem causar problemas ou dificuldades. Quando isso acontece, o indivíduo se adapta às inovações mais ambiciosas. Na verdade, a tecnologia já é parte integrante do nosso coti-

diano – das fibras sintéticas das nossas roupas aos remédios que tomamos. Como a comunidade científica ligada às pesquisas em inteligência artificial reagiu ao livro, que prega um foco maior nas pessoas que nos avanços teconológicos? Já começo a perceber uma mudança de mentalidade nas comunidades ligadas à inteligência artificial. Elas estão descobrindo rapidamente que o design da interface com o usuário é um ponto fundamental para fazer com que as pessoas se envolvam com os novos produtos. Os pesquisadores apresentam cada vez mais estudos focados no usuário. Fico feliz de constatar esse deslocamento de foco, isso é maravilhoso. Num país como o Brasil, onde a inclusão digital ainda engatinha, como as pessoas pobres podem se beneficiar dessas mudanças? Mesmo nos países em desenvolvimento, os computadores estão ficando cada vez mais baratos e amplamente acessíveis. É claro que muito ainda precisa ser feito, mas estamos no caminho certo. Centros comunitários com computadores públicos e acesso gratuito à internet já são uma realidade. Escolas e bibliotecas também vêm promovendo acesso à rede de um número cada vez maior de pessoas. Dentro das próprias comunidades carentes, os computadores podem ser compartilhados por muitas famílias. O acesso e a usabilidade universais têm que ser a meta, para que os benefícios da tecnologia se estendam a todos – mesmo as camadas mais pobres da população. A tecnologia não deve ser mistificadora nem exótica –, mas compreensível, controlável e prazerosa. • Continente setembro 2006

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Jaíne Cintra e Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Paulo de Tarcio Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Setembro | 2006 Ano 06 Capa: montagem sobre foto de AFP/Humbert Michael Boesl

Colaboradores desta edição: ÂNGELO MONTEIRO é poeta e professor de Filosofia da Arte e Filosofia da Literatura da UFPE. BRUNO BRITO é jornalista. DAFNE CORREIA é jornalista. DANIEL PIZA é jornalista e editor executivo do Jornal O Estado de S. Paulo. DELMO MONTENEGRO é poeta. EDUARDO GRAÇA é jornalista. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. FELLIPE

DE

ANDRADE ABREU

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LIMA é arquiteto e urbanista, mestre em Arquitetura e

professor da UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros. GUILHERME MOURA ROCHA é escritor. LUCIANO TRIGO é jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Vigílias, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. OLIVIA MINDÊLO é jornalista. RENATA BEZERRA

DE

MELO é jornalista.

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente setembro 2006


CARTAS

Conto

O conto "Vagas Estações de Aura", publicado no nº. 67, mês de julho, escancarou portas e janelas, sacudiu sentimentos e vivências, emoções cheirando a mofo. Nagib Jorge Neto me foi apresentado assim, como uma visita inesperada, que chega sem ser convidada, com um vinho raro debaixo do braço, um buquê de alegrias e reflexões insuspeitas. Reaviva, então, desejos soterrados na enxurrada da racionalização e suas necessidades – reais ou não –, e nos contamina com uma vontade desembestada de alongar a conversa, de esquecer os relógios, de mandar as responsabilidades para as cucuias. Enfim, adorei o estilo, também. Muito prazer.

Miriam Carrilho, Recife – PE

Cangaceiros e caubóis Venho parabenizar a Revista Continente Documento pela qualidade da edição dedicada ao assunto "Cangaceiros e Caubóis", com texto claro e objetivo, sem deixar de penetrar fundo no lado histórico, sociológico etc. Dispensável, apenas, o apêndice colado ao corpus da análise de Fernando Monteiro – nada lhe acrescentando e, pior, vazado em linguagem quase chula, sob a assinatura de José C. Targino. Donato Assis, João Pessoa – PB Paulo Freire Quero, antes de tudo, parabenizar a Revista pelo capricho, bom gosto e dedicação visível com que é feita. Gosto demais dela e a compro sempre que posso. Li a de Paulo Freire (Continente Documento, edição nº 45, maio 2006) com muito interesse, pois foi por causa das suas idéias que coloquei meus filhos para estudarem no Instituto Capibaribe e fiquei surpresa com tudo o que ele significou para a pedagogia, não só brasileira como internacional. Faz tempo que quero enviar esse e-mail, mas acho que agora é o momento mais propício para isso. Também tenho grande admiração por Ariano Suassuna (guardo a edição de agosto/2002 com carinho). Gostaria de externar meu interesse em ver alguma edição desta impecável Revista em homenagem a um grande escritor pernambucano: Raimundo Carrero. Taciana Lemos Valença de Abreu, Recife – PE O Feio na Literatura Achei interessante a matéria. É mesmo um tema que me chama a atenção: o feio, o grotesco, o belo o sublime. Simone Campos, Rio de Janeiro – RJ

Brincantes Parabéns por essa iniciativa. Fiquei muito feliz em saber sobre o “tombamento” dos 12 brincantes pernambucanos! Que o Brasil todo saiba disso!!! Ananda Machado, Rio de Janeiro – RJ Olinda Uma revista de muito bom gosto, em especial a Continente Documento (nº 42/2006), traduziu em poucas páginas a mágica que é Olinda. Estão de parabéns pela iniciativa. Quanto aos autores, que riqueza de escrita! Contagiou-me, não pude parar de ler antes de chegar ao final. Enéas Cantarelli Júnior, Olinda – PE Morte Achei interessante a abordagem filosófica da "Morte", desmistificando-a como algo necessariamente trágico. É uma visão muito importante de ser mostrada, principalmente em tempos tão materialistas. Débora Freitas Baía, Recife – PE Livro 7 A matéria “Na Trincheira das Idéias”, da Revista Continente nº 66, me trouxe uma nostalgia confortável. A história do livreiro Tarcísio Pereira, que, por sinal, se confunde com a da tradicional Livro 7, merece mesmo atenção especial. Não apenas porque a livraria esteve, durante cinco anos, no Guinness Book, como a maior livraria do Brasil. Mas, acima de tudo, pela forma como movimentou a vida cultural recifense. Maria Joana, Recife – PE

Plano diário Parabéns pela Revista! Tenho alguns exemplares que servem de apoio para o meu engrandecimento como pessoa e como profissional. É base para meu plano diário. Conceição Moura, Recife – PE Cabeceira Mais uma vez venho apresentar meus cumprimentos pela qualidade gráfica e conteúdo da Continente. Estou com o exemplar nº 43. Ela deveria estar na cabeceira de todos os brasileiros, seja pelo que mostra de Pernambuco, ou porque é um exemplo do que deveria estar sendo em relação à cultura popular. Desejo que essa Revista assim continue , augurando à sua direção e todos que nela militam votos de continuidade e amplo sucesso. Wremyr Scliar, Porto Alegre – RS Erratas Na edição nº 47 da Revista Continente Documento (“Cangaceiros e Caubóis”), a foto (página 14) com a legenda: "Igreja barroca em Minas Gerais, berço da Inconfidência", se refere ao "Museu da Inconfidência", antiga casa de Câmara e Cadeia. Na matéria "Jovens levam música erudita ao interior" (Continente Multicultural, nº 68, página 82), José Siqueira (1907–1985) é citado como pernambucano, mas ele foi paraibano, de Conceição. E na matéria “Os labirintos da antiarte”, a artista nas fotos é Ana Montenegro e não Ana Monteiro, como está.

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

A arte da política A práxis política jamais conduzirá ao atendimento de todas as necessidades humanas

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o mundo soviético, desenvolveu-se a politização da arte no sentido de se fazer a propaganda com fins estritamente políticos. Na Alemanha nazista, instituiu-se a estetização da política. Para Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, “a política era a mais elevada e mais compreensiva de todas as artes” e por isso os políticos tinham a missão e a responsabilidade de moldar, a partir da “massa bruta”, a imagem sólida e plena da nação. Na Itália fascista, Benito Mussolini declarou que a política era a arte suprema, a arte das artes, a divina entre as artes, porque trabalhava sobre a matéria mais difícil, posto que estava viva: o homem. No Brasil dos dias de hoje e de ontem, ainda que vivendo sob instituições democráticas sólidas, as idéias propagadas nas campanhas políticas estão impregnadas pelos mesmos mecanismos utilizados naquelas experiências totalitárias. Instrumento da arte política, o marketing vem sendo continuamente exercitado como produto das ações dos governos, sendo transformado num importante recurso de gestão pública. A sedução das massas através de argumentos mais emocionais do que racionais (populismo, discursos messiânicos, apelo nacionalista, chauvinismo cultural etc.) é, nas campanhas eleitorais brasileiras, o modus operandi comum a todas as legendas e ideologias. J.H. Robinson afirma que o ser humano, apesar do seu aparente desenvolvimento, tem uma mentalidade que é ainda do homem das cavernas, apenas recoberta de uma fina camada do que chamamos de espírito civilizado. Em tempos de crise, também vivemos em um mundo dicotômico: do sim ou do não, do pró ou do contra. Ou seja, nesse estado permanente de guerra, seja pela sobrevivência, seja pelo consumo desmedido, o espírito natural do homem torna-se predominante. Esse estado de perigo faz ressurgir nossa mentalidade selvagem: o que nos ajuda é bom, o que não o faz é mau. É assim que surgem as palavras e os símbolos como tábuas de salvação.

Serge Tchakhotine, no livro de tradução atribuída a Miguel Arraes, A Mistificação das Massas pela Propaganda Política, especifica com base na psicologia social aplicada os quatro impulsos inatos que são condicionados por bases afetivas, a saber: 1) o impulso da combatividade, refletindo tudo aquilo que se relaciona ao domínio social ou político, tal como a luta pelo poder e pela dominação; 2) o da nutrição, que diz respeito a tudo aquilo que se relaciona com as vantagens econômicas e materiais; 3) o da sexualidade, relacionado a tudo o que sensibiliza a alma humana e nela penetra. Isso diz respeito a toda manifestação que provoca diretamente uma excitação erótica. Como exemplo veja-se que no passado as canções e o culto fálico eram empregados em procissões como meio de influenciar psicologicamente as massas. Na revolução francesa, a Deusa Razão foi representada por uma bela atriz conduzida em procissão seminua pelas ruas de Paris. Quanto à utilização do impulso sexual sob a forma sublimada, Tchakhotine cita a alegria, o amor elevado, as canções populares, as danças, a exibição de mulheres bonitas como personificação de ideais a serem perseguidos. O quarto e último impulso, o da maternidade ou paternidade, constitui tudo o que se manifesta sob a forma de piedade, preocupação com o outro, amizade, previdência, mas também indignação e cólera. O filósofo Isaiah Berlin em seus ensaios mostra que, apesar de toda a arte e ciência para influenciar pessoas, não pode haver jamais uma solução política que incorpore toda a complexidade e as contradições da natureza humana – nem no plano individual, nem no coletivo. A práxis política jamais conduzirá ao atendimento de todas as necessidades humanas, infelizmente. Assim, nem a arte da política, nem tampouco as artimanhas científicas do marketing, jamais vão fazer os governos cuidarem de forma adequada da felicidade dos indivíduos porque nenhuma instituição humana tem esse poder. Não obstante, a anestesia das promessas e dos discursos falaciosos não duram para sempre mas duram sempre. • Continente setembro 2006


Hubert Michel Boesl/ AFP


Os atentados à inteligência A resposta à violência do atentado de 11 de Setembro, em que pesem os argumentos "filosóficos" por trás das agressões, não tornou o mundo melhor, pelo contrário Daniel Piza


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CAPA Vale a pena relembrar alguns dos comentários mais comuns emitidos logo depois que aqueles dois aviões perfuraram as torres de Manhattan e as converteram numa confusão de ferragens derretidas, poeira, desespero e mortes. A fumaça nem tinha baixado e as assertivas já eram lançadas. Analisá-las é importante não só porque dá uma idéia de como as primeiras reações são emotivas e unilaterais, mas também porque não raro são essas primeiras reações que acabam dando o tom das medidas que as autoridades em todo o mundo determinam em seguida. “O mundo nunca mais será o mesmo” foi uma das frases mais repetidas. Ela tem um jeito acaciano, porque nada mais óbvio do que deduzir de um acontecimento desse porte, inédito, que vá ter desdobramentos significativos no futuro breve. Por outro lado, em muitos aspectos o mundo ainda é o mesmo ou então regrediu. Um exemplo de regressão: durante a Guerra Fria, a política externa americana considerava que qualquer coisa era melhor do que o comunismo, inclusive “cultivando” ditadores sanguinários como Saddam Hussein; troque comunismo por outro “ismo”, islamismo ou terrorismo, e a política será a mesma. Mais um exemplo: muitos povos do Oriente Médio voltaram a pensar nos EUA como “Grande Satã”, epíteto cunhado por Khomeini durante a revolução iraniana de 1979. Reprodução

Osama bin Laden: physique du role ideal para os roteiristas da chamada realpolitik– barbudo e sombrio como um profeta do mal

Continente setembro 2006

Descrição que se banalizou nos primeiros dias depois de 11/9/2001 foi também a de que “o inimigo não tem rosto”. Em pouco tempo ele teria um rosto: Osama bin Laden, o líder da Al Qaeda. E ele tinha o physique du role ideal para os roteiristas da chamada realpolitik: barbudo e sombrio como um profeta do mal, vivendo em cavernas no deserto como se num cenário préhistórico û a imagem da barbárie, em suma. Com falas de John Wayne, o texano George Bush II clamou por sua captura “vivo ou morto”. Muitos membros da organização terrorista caíram, como cartas de baralho – assim como o Taleban, que a acobertava com o domínio do poder no Afeganistão –, mas não o rei de espadas, Osama. Terceiro bordão nascido dos escombros do World Trade Center: “O gigante está com o orgulho ferido”. Afinal, era o primeiro ataque ao território americano desde Pearl Harbor, e os prédios eram o símbolo da pretensão da superpotência e da síndrome nova-iorquina de “cidade número 1 do mundo”. Famosos da velha esquerda, como Stockhausen – que a julgou “a maior obra de arte já feita” –, Maradona, Susan Sontag e outros, comemoraram e nem sequer fizeram a ressalva da compaixão pelas vítimas inocentes. No canto oposto do ringue, os falcões neoconservadores que cercavam Bush reagiram exatamente assim, como representantes de um gigante ferido, tomados pela “hybris” de agir como deuses em relação aos destinos alheios. Em vez de diminuir, o orgulho só aumentou e, com ele, os tempos do big stick, da política de distribuir porretes nos inimigos e tanques aos amigos. O que ninguém previu logo depois dos atentados foi a escalada de ataques armada pela Casa Branca. Contando com o fervor patriótico da população e o rebaixamento crítico da imprensa, o governo Bush conseguiu convencer a maioria de que Saddam estava por trás da Al Qaeda e que defenestrá-lo do poder no Iraque significaria maior segurança para os Estados Unidos e, por


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tabela, mais democracia e liberdade para o mundo ocidental. Muitos analistas acreditaram numa ou na outra justificativa. Pessoas que antes não se sentariam juntas a uma mesa de cantina, como o então premiê italiano Silvio Berlusconi e o ex-socialista crítico inglês Christopher Hitchens, soltaram um uníssono: “Nossa civilização é superior; logo, tem o direito de devolver a agressão da forma que bem entender”. Ou seja, era mais ou menos como justificar a cabeçada do maestro Zidane no peito do brucutu Materazzi. Os defensores dessas medidas têm alguns argumentos. Dizem que não dá para ficar passivo diante de um comportamento como o de redes terroristas e Estados fundamentalistas que manipulam o antiocidentalismo – a rejeição mais ou menos generalizada no mundo islâmico a valores como feminismo, consumismo e liberdade de expressão – e o transformam, ao menos, em complacência quanto a seus atos e atentados. É preciso agir, mesmo que os países da Europa e instituições como a ONU hesitem. A impunidade seria mais encorajadora do que o conflito. Os defensores do revide, seja-qual-for, também dizem que parte dos objetivos já foi atingida. Excluir do poder um homem como Saddam, por exemplo, já é algo a celebrar, embora tenha sido necessário mentir para a opinião pública sobre seu arsenal. E mais importante para os planos bushistas: já se Reprodução

passaram cinco anos do atentado e os EUA não voltaram a ser atacados. Abrir mão de um pouco de liberdade em nome da segurança – o argumento “filosófico” dos conservadores – valeu a pena. No entanto, três anos depois da invasão ao Iraque, o saldo é bem diferente do prometido. O país segue em guerra civil e não faz a mínima idéia do que seja viver em democracia e desfrutar dos direitos de um cidadão livre. A ocupação não causou um efeito dominó positivo sobre a região, uma onda de conversão aos regimes republicanos, seculares e pluralistas do Ocidente. Pelo contrário: mesmo em eleições, forças fundamentalistas agressivas como o grupo Hamas, na Palestina, e o líder Ahmadinejad, no Irã, saíram vitoriosas. No Líbano, o Hezbollah cresceu de novo, provocou os israelenses e levou o troco, deflagrando mais uma guerra na região. O ódio aos EUA e a Israel, hoje, é praticamente uma coisa só – e não tende a arrefecer tão cedo. Quanto à segurança, pergunte sobre ela aos habitantes de Londres, Madri, Bali e diversos outros lugares que foram vítimas de atentados gravíssimos. Será preciso outro desastre em solo americano para ver que o mundo não melhorou? A ofensa do ineditismo, a necessidade de expiação e a tradição belicista impulsionados pelas primeiras reações ao 11 de Setembro ditaram uma seqüência de agressões desmedidas, de efeitos contestáveis a curto, médio e longo prazos. Para o século 21, imaginávamos a possibilidade de construir um mundo multipolar, aberto e pacífico, em que crenças na religião e na pátria não fossem confundidas com instrumentos de discriminação e xenofobia. Quando um país que deveria valorizar com mais ênfase o seu legado de liberdade, cidadania e imigração passa a se apoiar em seu lado sombrio, apenas sombras serão produzidas. É hora de a humanidade evoluir da dicotomia entre a lei de talião (violência se paga com violência) e a demagogia cristã (ofereça a outra face) e, em nome do coração, demonstrar mais razão. •

George W. Bush: como um John Wayne, proclama “Procura-se vivo ou morto” o rei de espadas da Al Qaeda, sem sucesso até agora

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Stone e o mito do her贸i americano Novo filme de Oliver Stone, o "cineasta maldito" de JFK e Platoon, surpreende pela abordagem sentimental dos her贸is do World Trade Center e 茅 aclamado pela direita norte-americana Eduardo Gra莽a, de Nova York


Divulgação

Set de filmagens de Torres Gêmeas: apenas um filme sobre heróis e emoções


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“Eu me vejo como um simples dramaturgo do cinema. Sempre quis dramatizar a vida, contar histórias. Algumas eram mesmo políticas, como JFK , mas poderia lhe dizer que aquela é, também, uma história de detetive” Oliver Stone

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astidores do Festival de Cinema de Chicago. Nicholas Cage aproxima-se de Oliver Stone e pergunta, sem mais rodeios: “Meu caro, como é que nós nunca trabalhamos juntos?”. O diretor, espirituoso, não perde a deixa: “E você me faria um preço camarada?”. Cage sorri. Meses depois ele estava debruçado sobre o roteiro de Torres Gêmeas, o filme de Stone que procura contar, a partir do resgate de dois policiais nova-iorquinos dos escombros do World Trade Center, a história do 11 de Setembro de 2001. Um filme, de acordo com todos os envolvidos na produção, apolítico. Como se tal objetivo fosse possível. Os brasileiros que forem aos cinemas, a partir do dia 28 de setembro, a fim de se reencontrar com o diretor de JFK ficarão desapontados. Nas Torres Gêmeas de Stone não há tempo para metáforas, digressões, teorias conspiratórias. O filme não pretende ir além da experiência, das sensações, do choque que os norte-americanos viveram naquele dia fatídico. Aqui não há nem mesmo o aspecto documental, mais rígido, utilizado por Peter Greengrass em seu Vôo 93. Torres Gêmeas se passa quase que exclusivamente no chamado Ground Zero. E é centrado na história – real – dos policiais John McLoughlin (Nicholas Cage) e Will Jimeno (Michael Peña), duas das últimas vítimas a serem retiradas com vida dos escombros do World Trade Center, e de suas famílias. Cabelo esgarçado, um terno cinza que destoa de sua camisa lilás, Stone se confessa exaurido. Na suíte do Hotel Regency, em Manhattan, ele trata das surpresas da Copa do Mundo de Futebol antes de encarar o repórter. E, seguindo a receita de seu ator principal, vai direto ao ponto: “Francamente, acho que há um equívoco fundamental na análise das pessoas sobre o que venho fazendo nos últimos 30 anos. Eu me vejo como um simples dramaturgo do cinema. Sempre quis dramatizar a vida, contar histórias. Algumas eram mesmo políticas, como JFK, mas poderia lhe dizer que aquela é, também, uma história de detetive, à maneira de um Rashomon, de Kurosawa, ou de um Z, de Costa-Gavras. Nixon e Alexander eram biografias. O ponto é que nunca me considerei um cineasta político. Não é que não goste do termo. Mas não sou um polemista. A própria definição de cinema engajado – engagé – passa longe de meu trabalho. Ela se aplica a um Costa-Gavras, a um Rossi, a um Pontecorvo, quem sabe até mesmo a Goddard. Nunca estive lá. Sempre fui um pensador livre, pouco ortodoxo, radicalmente independente”. Em Torres Gêmeas, é bom que se lembre, os dois personagens principais não têm a mais vaga idéia da motivação por trás do atentado. Não se fala de Al Qaeda, de Osama bin Laden, de guerra santa. Nem se vê a imagem dos aviões


CAPA adentrando os arranha-céus. A perspectiva é sempre subjetiva, de dentro dos prédios. As figuras do presidente George W.Bush e do então prefeito de Nova York Rudy Giuliani, virtual candidato republicano à Presidência em 2008, no entanto, aparecem na tevê, de forma compungida. “Olha, é possível contar a história do 11 de Setembro de muitas maneiras. Pode-se contar do ponto de vista dos árabes, do de Bush. Torres Gêmeas é a história que eu quis contar. Diria que Torres é mais hollywoodiano, por exemplo, do que o Vôo 93 de Greengrass, um filme que, aliás, adorei. Aqui queremos estabelecer uma conexão entre o público e os policiais e suas famílias, em uma abordagem, diria, mais tradicional, à la Frank Capra”, segue Stone. Depois de duas horas de projeção, é óbvio que Stone faz mais do que isso. Não são apenas os dois policiais que são resgatados, mas suas famílias, e a crença nos valores mais caros da classe média norte-americana. Aqui, não se louva apenas a coragem dos heróis ianques, mas sua honra e seu Deus. Se este é um raio-x “capriano” da América do século 21, a harmonia e a união nos momentos mais difíceis, a transmutação da tragédia em mito refundador da sociedade norte-americana são, no mínimo, conformistas. Em uma das cenas mais fortes, o personagem de Michael Pena vê Jesus Cristo lhe estendendo a mão para oferecer uma garrafa de água mineral. Em outra, um fuzileiro naval deixa sua igreja evangélica a fim de perseguir sua missão – ajudar a resgatar vidas na agora destruída Lower Manhattan. Ao fim do filme somos informados de que o personagem é real e que ele fez parte das invasões tanto do Afeganistão quanto do Iraque. Rosto sério, olhos semicerrados, Nicholas Cage não sorri sequer um momento durante a meia hora de entrevista. Conta que o filme foi uma resposta às “minhas preces”. Que queria muito fazer algo que inspirasse as pessoas, que ajudasse outros seres humanos. “Espero termos atingido aqui este objetivo, e com o maior respeito às famílias que, de certa maneira, tiveram de revisitar aquele horror. Não sou um ser político e acho que contar a história de John é uma maneira de todos nós nos purificarmos, de curarmos nossas feridas. Digo mais: se eu começar a falar dos aspectos políticos do pós-11 de Setembro serei injusto com o filme”, diz. Talvez Cage já temesse o que as primeiras projeções de Torres Gêmeas para platéias selecionadas parecem sugerir: este é, também, o filme da reabilitação nacional de Oliver Stone, de seu reencontro com a América Profunda. O odiado cineasta de JFK vem sendo saudado pela direita mais raivosa dos EUA como seu novo campeão. “Este é um dos filmes mais pró-EUA, mais pró-família jamais feitos. Saímos

“Este é um dos filmes mais pró-EUA, mais pró-família jamais feitos. Saimos dos cinemas agitando a bandeira nacional e cantando ‘God Bless America’” Carl Thomas, comentarista conservador da rede Fox

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Stone dirige Nicolas Cage: “algo para inspirar as pessoas” Na página ao lado, cenas do filme

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dos cinemas agitando a bandeira nacional e cantando ‘God Bless America’”, diz o comentarista conservador da rede Fox, Carl Thomas. Presidente do ultra-direitista Media Research Center e comandante do moralista Parents Television Council, que reúne mais de 400 mil pessoas, Brent Bozell considerou o filme “uma obra-prima que deve ser vista por um batalhão de americanos. Stone fez mais do que um filme, criou uma peça artística que nos lembrará para sempre do amor, da fé e do patriotismo que são o cerne de nosso país”. Bozell confessa que ficou muito surpreso e feliz, pois esperava de Stone “uma narrativa exaustiva e denuncista, na linha Bush-é-o-resposável-pela-morte-de-milhões”. Não há sinal de Michael Moore nas Torres de Stone, muito menos concessões às muitas teorias conspiratórias que sugeriam uma ligação de Washington com os terroristas. “É claro que estou ciente de que as conseqüências do 11 de Setembro foram muito piores do que aconteceu naquele dia. Tivemos muito mais mortes, o terrível ataque à Constituição e às liberdades civis, sem falar no fato de que vivemos sob o domínio do medo. Estamos pagando um imenso preço por conta de nossas reações ao ataque. Mas esta é outra história. Torres é sobre o resgate destes dois homens daquele inferno. E mesmo o fuzileiro naval que expressa seu desejo de vingança oferece uma reação emocional, e não política”, diz Stone.


CAPA O diretor gosta de lembrar que, ao contrário do que reza a lenda, sempre foi atacado pela esquerda mais dogmática: “Aqui nos EUA, pelo menos, sempre fui atacado pela igreja da esquerda. Eles me atacaram duramente pelo que acreditavam ser o excesso de violência em Scarface e Midnight Express. Nos anos 90, pela primeira vez, a direita, muito organizada, resolveu também me esculhambar. Havia então uma estratégia de repetição, de pregação, muito perigosa. Repetia-se tanto que JFK era um ‘filme esquerdista’ que a maioria das pessoas acreditou. Recebi cartas de protesto e acho que, ali, entendi finalmente a natureza do jogo político norteamericano. Ninguém sabe fazer propaganda neste país como a extrema-direita. Talvez eles sejam 500 ou 1.000 indivíduos, mas conseguem levar sua voz adiante. Foi assim que Bush se elegeu em 2000. Eu o conheci em 1998, e ele parecia ser um fenômeno restrito aos círculos mais conservadores. Seu discurso era radical, mas em menos de dois anos ele conseguiu ser aceito pelo mainstream, graças a este fenômeno”. Não deixa de ser irônico ler, agora, o editorial do jornal mais direitista do país, o Washington Times, defendendo entusiasticamente o filme de Stone. “Mas o importante é a história destes dois homens, dos policiais! Quando li o script, quis conhecê-los pessoalmente e isso me fez um bem enorme, sabia? Eu queria que o público apenas se deixasse levar pela emoção. Mais nada.”, diz o diretor, ecoado por Cage: “Juro que não tivemos sequer uma conversa sobre o aspecto político do 11 de Setembro. O tempo todo pensávamos apenas em ser o mais realista possível. O que há de mais bonito nas Torres Gêmeas é o fato de que, para sobreviver, aqueles dois homens tiveram de se transformar em um só”. Ainda em 2001, em um outro festival de cinema, o de Nova York, poucas semanas após o ataque às Torres, em uma mesa-redonda chamada “Fazendo Filmes Que Marcam”, alguém da audiência perguntou a Stone como seria um filme seu sobre o 11 de Setembro. Ele respondeu que certamente seria algo que lembrasse A Batalha de Algiers, o clássico do engajado Gillo Pontecorvo, um filme que mostrasse como o terrorismo do novo milênio funcionava na cabeça de árabes e norte-americanos. Disse ainda mais – ‘que se ele fosse filmado de modo realista, sem a busca de um herói, teria um resultado ainda mais fascinante’. Cinco anos depois, Torres Gêmeas é, curiosamente, a exata antítese desta descrição. •

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Terror e humilhação Livro do jornalista e acadêmico americano Lawrence Wright explica as raízes do ódio muçulmano e tenta responder à pergunta: o terrorismo é inevitável?

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m dia antes de Torres Gêmeas de Oliver Stone estrear nos cinemas americanos, um outro thriller sobre o atentado de 11 de Setembro de 2001 invadiu as livrarias da cidade. The Looming Tower – Al-Qaeda And The Road to 9/11, do jornalista Lawrence Wright, ainda sem editora no Brasil, já é considerado pela crítica a mais importante análise sobre a teia de eventos que levaram o ataque ao centro do império. Repórter da revista New Yorker, professor da Universidade Americana do Cairo, no Egito, e um dos nomes mais respeitados do Centro de Direito e Segurança da New York University (NYU), Wright escreve para um leitor que busca, cinco anos depois de terroristas sauditas explodirem um Boeing 767 na torre norte do World Trade Center, entender o que de fato aconteceu naquele dia e se haveria uma maneira de se prevenir outros atentados. O terrorismo que nos cerca é inevitável? Para responder a esta pergunta, Wright nos transporta para os subúrbios de capitais árabes, penetra na vida isolada das mesquitas da Europa Central, apresenta-nos à busca desesperada pela ordem tanto nos rincões pobres do Paquistão quanto nos subúrbios ricos e vazios do meio-oeste americano. Wright nos apresenta a John O’Neill, o comandante do FBI em Nova York, personagem shakespeariano, que trabalhou até o último segundo para desmantelar a Al-Qaeda e que acaba perecendo justamente no ataque às Torres. E a um outro Osama Bin-Laden, baixote, humilhado e destratado pelos revolucionários afegãos, que não conseguem entender como um “guerrilheiro pode ser tão fraco de saúde, tão preguiçoso’’. Continente setembro 2006

Curiosamente, na semana em que Wright viu seu livro ser consumido às pencas nas livrarias da cidade, Nova York recebeu a notícia de que um novo ataque – de proporções semelhantes aos do 11 de Setembro e que em tudo lembra a sofisticação da Al-Qaeda – fora desbaratado pela polícia britânica. Desta vez, aviões que fazem a rota Grã-Bretanha/Estados Unidos (as duas principais potências engajadas na reforma, pela força, da geopolítica do Oriente Médio) explodiriam no Atlântico, produzindo uma carnificina comparável à queda das Torres. A intensificação da violência nos últimos cinco anos vem se caracterizando como algo mais complexo do que um “choque das civilizações”, na visão simplista dos


Kenny Braun - Divulga;’ao

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Wright aborda o perigo da co-existência do fundamentalismo islâmico apoiado por estados religiosos radicais com sua contrapartida cristã, apoiada por um status quo de extrema-direita, fantasiado de “democracia evangelizadora”

conservadores norte-americanos. The Looming Tower bate fundo no perigo da co-existência do fundamentalismo islâmico apoiado por Estados religiosos radicais como o Irã e o antigo Talibã com sua contrapartida cristã, apoiada por um status quo de extrema-direita, fantasiado de “democracia evangelizadora”. Um dos personagens mais fascinantes deste estudo impressionante da miséria de idéias do mundo contemporâneo é Sayyid Qutb, principal ideólogo do que os republicanos de Washington agora chamam – em uma referência à Segunda Guerra Mundial, à luta contra o totalitarismo e ao ataque aos judeus – de “fascismo islâmico”. Wright nos conta que Qutb escreveu quase toda a sua obra a partir da sua experiência como visitante-convidado da Universidade do Colorado, em 1940. E de seu horror aos excessos e preconceitos de uma sociedade que parecia destinada a engolir o mundo por meio de sua crença em uma superioridade ética que, no entanto, não se comprovava na prática. Diante de seus escritos, Osama, escreve, é um “teólogo amador”. Wright tem horror ao fundamentalismo islâmico. Mas não tem medo de afirmar que suas raízes estão em uma experiência profunda de humilhação. Não apenas as classes

mais baixas, mas mesmo os que têm acesso à educação sentem na pele as privações da ocupação, termo que um norte-americano comum, assim como um brasileiro, que nunca viveu a sujeição diária, a necessidade de se obedecer ao estrangeiro, ao estranho, para sobreviver, não pode compreender com exatidão. “Os líderes da Al-Qaeda se revelaram, muitas vezes, amadores incompetentes que tinham de se reerguer depois de cada um dos muitos revezes que sofreram. Mas a organização que eles criaram tinha apenas um único objetivo em mente e permaneceram fiéis a seu objetivo. No caso do 11 de Setembro, os conflitos burocráticos e rivalidades entre CIA e FBI, sua falta de profissionalismo mesmo, jogaram contra uma inegável vantagem que os EUA tinham sobre os seus adversários e que poderia ter impedido a catástrofe”, escreve, por e-mail, Wright, no dia em que agentes britânicos impediram mais um ataque terrorista aos EUA. Mas, então, um novo 11 de Setembro pode ocorrer a qualquer momento? The Looming Tower não termina aqui em Nova York. Não por acaso, o cenário, em março de 2002, é a fronteira do Afeganistão com o Paquistão. (Eduardo Graça) • Continente setembro 2006


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em dúvida, é incontestável a grandeza de Camilo José Cela – como escritor. Esse espanhol da Galícia foi um prolífico autor de cerca de 100 livros, entre os quais dois alcançaram ficar na seletíssima lista dos 10 maiores romances do século 20. E são, de fato, nada menos que obrasprimas: A Família de Pascual Duarte, impactante narrativa publicada em 1942, e o romance-rio A Colméia, largo painel sobre a Madri do pós-Guerra Civil. Para mais, Cela foi o ganhador do Prêmio Nobel de 1989, o que sempre quer dizer alguma coisa (apesar de algumas nulidades literárias terem sido distinguidas com o galardão sueco, cobiçado como nenhum outro no mundo das letras). Nada disso, entretanto, está no foco do nosso assunto aqui. Não se trata de reavaliar a criação do galego – que conheci pessoalmente, em 1982 –, sua genialidade como fabulista de novelas, contos, teatro, ensaios, roteiros cinematográficos, livros de viagem e até “dicionários” (como o divertido O Rol dos Cornudos), mas de rever o varejo da história pessoal que, às vezes, nem é tão “varejo” assim. Neste caso, por exemplo, um escritor genial se diminui como homem, ao ser exposto, após a morte, no pior da sua biografia. O assunto dói. Na península traumatizada pelo ditador Francisco Franco, já doía quando Jordi Gracia publicou um estudo brilhante (premiado com o Anagrama de Ensaio) sobre “a resistência silenciosa” dos intelectuais espanhóis nos anos 40. Ali se erguia a ponta de um tapete espesso de questões geralmente varridas para debaixo das consciências. Por exemplo: teria havido verdadeira e efetiva “resistência’ à ditadura, por parte de alguns nomes de largo prestígio?...

O gênio dedo-duro Documentos comprovam o papel de delator, entre os intelectuais, exercido durante o franquismo pelo grande escritor Camilo José Cela Fernando Monteiro

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Colita /Corbis

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LITERATURA

Foi assim que 42 nomes de comunistas viram-se identificados entre os redatores dos manifestos que Cela também subscreveu – no melhor estilo do delator de baixa patente cabo Anselmo Entre os intelectuais do primeiro time, Ortega y Gasset se retraiu ao máximo, no seu mundo do pensamento distante das armas abandonadas pelos ex-guerrilheiros, no caminho de fuga dos Pirineus, enquanto seu amigo Pedro Salinas (poeta dos maiores de Espanha) e Juan Ramón Jiménez – outro Nobel ibérico – apenas alinhavam com o comum propósito “liberal” das esquerdas esfaceladas em bandos e frentes precárias. Salinas chegou a criticar, com certa acidez, o que seria o “espernear” de Rafael Alberti, marinheiro da liberdade cuja consciência inflamada seguiria vendo Franco como fascista, em todos os “momentos” posteriores do franquismo. Ao poeta exilado, nenhum Pérez de Ayala seria capaz de enganar com os dourados do elogio apelativo para os meandros da história (una reviviscencia de la España de Carlos II etc.). A medida de uma descrição dessas, se não for a da pura abjeção, sem dúvida que torna menos graves posições como a de Gregorio Marañón, resolvendo optar pela velha aceitação do la realidad como es, de maneira a permanecer na pátria, mesmo com a pouca liberdade concedida pelo poder central (como foi também opção do filósofo Julián Marías, recentemente falecido). Avançando dos anos “quentes” – do ferro em brasa na pele dos torturados da Guarda Civil – para defrontar a ditadura bem instalada na colméia madrilenha dos anos 60, os primeiros insurgentes não são escritores e artistas, mas mineiros “de folga” em Astúrias. Só depois, e em face da dura repressão aos operários, é que vieram protestos dos intelectuais, em manifesto espionado por ordem dos mesmos “falsos militares sentados nos cafés” das antigas canções republicanas. E quem espionou, como um quinta-coluna reles, enquanto os esbirros da Dirección General de Seguridad se encarregavam da juventude inquieta e dos operários de mala cara? Continente setembro 2006

Imagens: Reprodução

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O Generalíssimo Francisco Franco em retrato grandiloqüente

Camilo José Cela. A resposta veio agora, em Disidencia y Subversión: la Lucha del Régimen Franquista por su Supervivencia (1960-1975), de Pere Ysás, um livro no qual se retira de Camilo a confortável máscara de diretor de revista supostamente antifranquista (Papeles de San Armadans), para substituí-la pelo cabeçote de surpreendente colaborador do aparelho de segurança de Franco, na calada da noite das cartas e outros papéis vergonhosos. Alistado no Exército Nacional durante a Guerra Civil, essa escolha lhe fora perdoada, digamos, com mais o beneplácito da dúvida a respeito de um jovem que mal combateu (Camilo foi logo ferido, na frente de batalha) e que, depois, viria a se tornar funcionário público infelizmente lotado na divisão de censura. Nesse organismo da ditadura, o futuro prêmio Nobel ficaria responsável pela vigilância de publicações religiosas e algumas outras de menor importância. Nada muito edificante, para um começo de biografia, porém quase inofensivo se comparado com o que acaba de revelar a obra de Ysás, pesquisador da Universidade Autônoma de Barcelona que foi em busca da vigilância exercida contra a primeira associação de escritores dissidentes (cuja reunião inaugural já estalara de discórdia, com Cela abandonando o recinto cheio de protestos do seu vozeirão de ator improvisado). Pere Ysás seguiu na pista das ligações perigosas do descendente de espanhóis e ingleses, nascido Camilo José Cela Trullock, em Padrón – antiga província romana –, no dia 11 de maio de 1916. Abre aspas: um tio seu – Raimundo Cela, hábil gravador – emigrou para o Brasil, vindo viver na capital cearense, enquanto seu avô desistiu do Recife e retornou para a Galícia (segundo me relatou o próprio Camilo)... Prosseguindo: para mim, é muito desagradável estar escrevendo sobre este assunto, porque admiro o escritor e até fui um dos seus defensores – nos debates do jornal


LITERATURA El País, em janeiro de 2002 –, por ocasião da morte do Marquês de Iria Flavia. Uma boa parte dos espanhóis que condenavam a atuação de Cela como “censor” havia se manifestado, então (junto com aqueles que ridicularizavam, ainda, o título de nobreza recém-outorgado pelo rei Juan Carlos, na comemoração dos 80 anos do controverso “Don Camilo”). Ter sido “apenas” censor, por comparação, é bem diferente do que acaba de ser revelado: Camilo Cela tinha também ligações – leia-se: desde o início da carreira – com o general Manuel Fraga e outras autoridades. O livro de Ysás atesta que tais ligações se mantiveram e até se estreitaram, a partir de 1963, quando Fraga se tornou ministro e teve, no escritor, um “informante” privilegiado das reuniões da associação, sobre a qual ele se reportava não diretamente ao militar (é claro), mas a um dos diretores do Ministério da Informação. Foi assim que 42 nomes de comunistas (além de outro tanto de “simpatizantes” do partido, na ilegalidade) viram-se identificados entre os redatores dos manifestos que Cela também subscreveu – no melhor estilo do delator de baixa patente cabo Anselmo, aqui entre nós. Uma correspondência datada de 17 de outubro de 1963 nos mostra Camilo a fazer recomendações dos intelectuais que seriam recuperables, a partir de uma sua sugestão muito manhosa: montar um plano editorial – “financiado por fondos reservados” – com a finalidade de patrocinar edições das obras dos recalcitrantes (e, com efeito, pouco depois algo parecido apareceu “forrado” de 20 milhões de pesetas para a cooptação dos intelectuais). Se isso não fosse bastante – ponderava o autor de Mazurca para Dois Mortos –, sempre se poderia subornar a raça diretamente, com dinheiro vivo, sem apelar para a adulação das vaidades. Cela chega a nomear os mais receptivos a isso, e também os O poeta Rafael Alberti, “medrosos” (Pedro Laín Enpor Idígoras tralgo seria um destes), além dos dissidentes de maior e de menor convicção, de acordo com características pessoais que o romancista detalha com a sua conhecida agudeza psicológica – aqui ao serviço não

da arte literária, mas da sabujice ocupada com “relatórios” torpes. Algumas das pessoas citadas – inclusive como “subornáveis” – seguiriam confiando na sua alta amizade, no seu desprendimento e “tenebrismo” apenas no terreno literário. Estavam enganadas. O que os documentos pesquisados por Ysás vieram mostrar é a face de um homem maculado pela visão predadora, com seu brutalismo típico tomado ao pé da letra na hora de se relacionar com os outros e, muito mais gravemente, com os amigos e colegas. Na sua obra artística, tal “visão” torna especialmente doloroso o martírio de Pascual Duarte, por exemplo, de um modo que fazia pressupor todo um universo moral, em contraposição (ou no lugar do vazio de crença e piedade que ficamos autorizados a supor, agora, pela prova material da “colaboração” indigna – para dizer o mínimo). Do mesmo modo, ao fim da ceia, em San Camilo, 1936, o universo autofágico poderia ser indicativo da máxima ironia aplicada à rotina da Espanha do final da guerra, mas sabemos, nesta altura, que toda a aura político-absenteísta desenrola parte do disfarce do fundo de uma alma cruel, dentro e fora das páginas. Cela não se comportou com a franqueza do compositor andaluz Manuel de Falla – para lembrar um católico tão fervoroso quanto um tanto decepcionado, mais tarde, com o Caudilho “pela Graça e Vontade de Deus” etc. Sua posição também não foi a do poeta nacionalista Luiz Rosales, protetor de Federico Garcia Lorca na inútil hora da fuga da morte às mãos do pelotão de carabineiros gritando viva a la muerte!, como sinistra epígrafe dos anos negros da Espanha de Cervantes de joelhos diante de “Generalíssimo” de bota pesada. Um dos grandes de Espanha, no campo da literatura, Camilo José Cela comportouse da forma mais lamentável, na arena política, e a divisa do seu título de marquês – concedido por um rei formado por um tirano – soa agora irônica, sobre o túmulo no interior da Galícia de névoas e fumaças: Aquele que resiste, ganha. • Continente setembro 2006

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LITERATURA O poeta e ensaísta

César Leal e a sombra de Tirésias O Prêmio Machado de Assis, da ABL, dá reconhecimento a César Leal, que chega à mais plena maturidade artística sem perder a força irradiante que lhe moveu a juventude Ângelo Monteiro

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om Dimensões Temporais na Poesia e Outros Ensaios, César Leal atinge seu ápice enquanto poeta-crítico. Agora com o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra, recebe o mais que merecido reconhecimento. Destacando-se como poucos na atualidade, na clássica definição de poeta-crítico, surpreende em César Leal a diversidade de rumos que sempre marcou sua trajetória artística, quer na poesia, quer no ensaio. A mais conhecida das direções em seu fazer poético é a que ele estabelece entre poesia e ciência, tomando como modelo Lucrécio. A segunda se sustenta na tese de Bernardo Silvestre, no século 12, que vê na marcha das constelações o modelo mais aproximado da criação poética. Uma terceira poderia ser a relação entre poesia e numerologia, ressaltando-se o caráter cabalístico como algo implícito à própria criação. Mas talvez o vértice da questão esteja no dramático debate, que remonta a Platão, entre filosofia e poesia. Ou da existência ou não de uma poesia filosófica. Por isso não é muito comum ver harmonizar-se num mesmo poeta as intuições oriundas do plano científico e do plano existencial. Em César Leal coexistem os dois tipos de intuição; e as imagens cósmico-científicas, ao Continente setembro 2006

ultrapassarem o mero cientificismo, se casam com outras advindas de um fundo inconsciente e onírico, sem que haja perda ou quebra das raízes metafísicas de sua poesia que, em consonância com as maiores vozes do seu século, se acham fincadas no solo profundo da modernidade. Tomando como exemplo o seu livro O Arranha-Céu e Outros Poemas – lembrando, por vezes, a voz misteriosa de um Jorge Guillén, face às claridades excessivas de um João Cabral, – vem confirmar as conclusões mais importantes a que chegou a estética contemporânea, para as quais o objeto estético não é apenas um artefato dotado de uma autonomia cega diante dos demais âmbitos da realidade. Ao depararmos com uma poesia plena de vitalidade, como a de César, ainda quando inseparável de uma reflexão de ordem filosófica, concordamos com o grande esteta espanhol Alfonso López Quintás que, em sua oposição ao “dizer-coisa”, ao “poema-coisa”, à “existência coisificada”, à “vida sem significação”, afirma: “a obra de arte é a encarnação sensível destes âmbitos criados pelo artista em diálogo com a realidade”. Por isso diz-se que a obra de arte é mais uma obra “nascida” do que “feita”, assim como o processo de criação se


LITERATURA assemelha mais a uma “geração” do que a uma “fabricação”. Sua origem leva o sinal do mistério, como sucede com o nascimento de um ser vivo”. Poeta em constante metamorfose, para quem há sempre que se distinguir entre “estilo” e “maneira”, César Leal atribui um peso igual tanto ao sonho quanto à vigília, como sugere em poemas como “Sonho e Vigília”: “então para quem ama/ as artes da linguagem/ voz que se ouve no sonho/ diz ao poeta que fale” – ou em “Tirésias”: “assim quem bem trabalha/ os desenhos do sono/ lapida com mais arte/ o diamante do sonho”. A realidade da poesia, feita mais de imponderáveis que de descrições objetivas das coisas, se encontra em César Leal um crítico vigilante, a cuja lucidez se desvelam os aspectos mais espinhosos tanto da técnica quanto da estrutura de um poema, encontra também um cultivador de abismos que não desconhece o quanto de evanescente e incapturável, está na raiz da experiência poética. Há em O Arranha-Céu, – em sua engenhosa construção numerológica, prática – um poema de grave significação para o entendimento do fenômeno poético, que traz por título “A Força das Águas”, e em que estabelece a relação entre o fluir da realidade, representada heracliticamente pelas águas, e o peso e a permanência da pedra, que parece nos trazer a idéia de Parmênides de “o coração inabalável da verdade bem redonda”: “sei que as pedras são ásperas/ mas se deixam tratar, / até mesmo preciosas:/ rubi. Diamante, opalas”(...) “As esculturas de água/ ninguém pode possuir/ seu gelo se desfaz:/ se torna águas a fluir”. A essência da poesia está justamente no seu poder de condensação de tudo que é rarefeito e fugidio na realidade. E é esse poder de condensação que faz do poeta, mais do que um sonhador, um criador do seu próprio sonho; um Tirésias sempre disposto a auscultar os anseios desconhecidos do Édipo que há em todo homem em busca de sua própria alma. O poeta, tal novo Édipo, “quer ir sempre ao fundo da questão” tanto dos homens quanto das coisas, e adivinhar-lhes, por trás de todas as sombras, a luz ainda ignorada. Outro poema do livro detém um alcance ainda mais amplo de ressonâncias estéticas quanto à essência fundamental da linguagem, quando a vê como uma árvore em que algo subjaz – a alma – à teia comunicacional de seus

significados: a “ramagem”: “Se há corpo e alma no homem/ a alma é uma imagem/ – imagem que se oculta/ na fronde da linguagem, / quando o vento é passado/ a fronde volta à altura:/ a fronde só se inclina/ enquanto o vento dura,/ por isso na linguagem/ não se mostra sem luta/ tal imagem das almas/ que na planta se oculta”. (“A Alma”) Essa “alma” é a “imagem” que se oculta, e não se desvela, sem luta, ao poeta, na árvore não só da Vida, mas do Conhecimento, que é a “linguagem”. A idéia da linguagem como “imagem” do real – no seu caráter mais elevado de mímesis – torna inseparável a “técnica” da “arte”. Embora possa haver técnica sem arte, não há arte sem técnica, como César nos faz ver em “A Imagem”: “para escrever o poema/ é preciso uma imagem/ – imagem clara ou escura/ contanto que nos fale/ e diga ao pensamento/ que o poema a se fazer/ precisa de palavras/ exatas como laser/ capaz de retirar/ uma lesão da artéria/ (sem ofender o vaso)/ o Vaso que se opera”. O real pode ser captado sem rasuras, sem que se lhe fira nenhuma artéria. Essa “imagem” pode ser “clara” ou “escura”, por se abrir não só aos aspectos harmoniosos, porém obscuros e caóticos do homem e do mundo: entretanto terá que assumir concretude estética sob pena de evolar-se em bruma e nada. Para que uma “imagem” seja realmente “concreta”, necessita de chegar, pela técnica, à “linguagem” e atingir, dessa forma, o estatuto de arte. César Leal é um dos poucos poetas, no Brasil, preocupados com a teoria da literatura e, especificamente, com a teoria da poesia: nele o crítico é poeta, mas o poeta é também um esteta. Perito exegeta dos poetas mortos, tal exigência crítica, sendo-lhe congenial, aponta para uma necessidade de ordem interior e, portanto, criadora, do que para função meramente didática. Não por acaso a tradição o habita no seio da modernidade, ao invés de ser um lugar prévio para sua condição de poeta. Ele é portador de convicção ao denunciar em “Vozes e Nomes”: “Vozes de muita fama/ se julgaram seguras:/ vieram outras mais fortes,/ mais limpas e mais puras”. E por ser portador dessa convicção, poderá afirmar: “Talvez nem nomes fiquem,/ há tantos ruídos no ar: / só as linguagens fortes/ verão outras passar”. Como só as linguagens fortes ficarão, César Leal, com certeza, chegou à mais plena maturidade artística, sem perder a força irradiante que lhe moveu a juventude, justificando-se plenamente, no apogeu do seu itinerário, estes versos de Lao-Tse: “Todas as coisas florescem,/ mas cada uma retorna à sua raiz”. • Continente setembro 2006

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João Alexandre (1937-2006) João Alexandre teve uma presença seminal na cultura

O legado do crítico João Alexandre Barbosa diz que nem tudo do projeto do futuro ficou perdido no passado pernambucano

brasileira como crítico e editor

Delmo Montenegro

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embrar da trajetória intelectual de João Alexandre Barbosa (1937–2006) é lembrar também de fatos terríveis de nossa história cultural recente. Do êxodo forçado a que foram submetidos – em conseqüência do golpe militar de 1964 – nomes como Gastão de Holanda, Aloísio Magalhães, José Laurênio de Melo, Osman Lins, Paulo Freire, Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite, Jorge Wanderley e o próprio João Alexandre. A violência com que tudo isto ocorreu gerou um fosso e um trauma irremediável na nossa cultura, um desvio no curso natural de nossa história. Ficamos com a sensação de um futuro partido, de um Pernambuco que poderia ter sido, mas não foi. Para os protagonistas desta tragédia, a providência lançou seus dados. Para cada um deles, uma sorte. A de João Alexandre Barbosa o transformou num dos intelectuais mais festejados deste país. Após a saída de Pernambuco, radicou-se com sua família em São Paulo (SP). Lá obteve grande destaque dentro da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada (onde fez parte do grupo que iniciou o departamento, ao lado de Antonio Candido, Roberto Schwarz,

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Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci Júnior e Teresa Pires Vara), depois foi diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Ocupou também os cargos de presidente da Edusp (onde operou uma revolução na linha editorial, transformando a Editora da USP numa das mais significativas do país) e de pró-reitor de Cultura e Extensão Universitária. Como crítico literário, foi autor de estudos seminais sobre João Cabral de Melo Neto, Paul Valéry e José Veríssimo. Entre suas principais obras estão A Tradição do Impasse: Linguagem da Crítica e Crítica da Linguagem em José Veríssimo (Ática, 1974), A Metáfora Crítica (Perspectiva, 1974), A Imitação da Forma: uma Leitura de João Cabral de Melo Neto (Duas Cidades, 1975), Teoria, Crítica e História Literária em José Veríssimo (LTC/EDUSP, 1978), Opus 60 (Duas Cidades, 1980), A Leitura do Intervalo (Iluminuras, 1990), A Biblioteca Imaginária (Ateliê Editorial, 1996), Entre Livros (Ateliê Editorial, 1999), Folha Explica João Cabral de Melo Neto (Publifolha, 2001), Alguma Crítica (Ateliê Editorial, 2002) e Mistérios do Dicionário (Ateliê Editorial, 2004). Apesar de tudo, ele sempre esteve presente em Pernambuco. Não só ele, mas toda a sua família. Nos anos 90, tive a oportunidade de conhecer Ana Mae Barbosa (a esposa de João – uma das maiores especialistas do mundo em Arte-Educação), aqui mesmo no Recife, participando de uma reunião com Paulo Bruscky, Jomard Muniz de Britto e Sebastião Pedrosa a fim de discutir a criação de uma representação regional da Anpap (Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas). Tive também o prazer de conhecer a filha dela e de João, Ana Amália, numa reunião com Noêmia Varela que

visava transferir parte do acervo de Ana Mae Barbosa sobre Arte-Educação para a Escolinha de Arte do Recife. Seu filho, Frederico Barbosa, um dos nomes mais importantes da poesia brasileira contemporânea, vem regularmente ao Recife apresentar cursos e palestras. À frente da Coleção Alguidar, da Editora Landy (SP), da qual é o editor, Frederico Barbosa tem publicado diversas obras significativas de autores pernambucanos – vide o caso de A Regra Secreta de Sebastião Uchoa Leite e Geografia Íntima do Deserto de Micheliny Verunschk. João Alexandre Barbosa, o crítico, não tinha medo de perscrutar o novo. Nos últimos anos, trouxe duas contribuições importantíssimas que traçaram algumas das diretrizes mais fortes da nova literatura de Pernambuco. Refiro-me ao seu empenho direto para a publicação pela Ateliê Editorial (SP) de Angu de Sangue de Marcelino Freire (que se tornaria um dos principais nomes da ficção brasileira dos anos 90) e a belíssima apresentação que compôs para o livro Geografia Íntima do Deserto da estreante Micheliny Verunschk. João foi também uma figurachave para divulgação do livro de Micheliny e ajudou a colocá-lo na lista dos 10 finalistas do prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2003. Mesmo à distância, João Alexandre Barbosa, o crítico maior de João Cabral de Melo Neto, o companheiro de viagem de Jorge Wanderley e Sebastião Uchoa Leite, parecia nos dizer que nem tudo do projeto do futuro ficou perdido no passado. Que Pernambuco também pode encontrar hoje o seu espaço de invenção. E que as inteligências continuaram e continuarão sempre, mesmo à revelia, subterraneamente, amorosamente atuantes. • Arquivo

Paulo Pinto/AE

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Divulgação

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O poeta paulista Rodrigo Petrônio

Diálogo com a poesia ocidental

Em seu terceiro livro, lançado pela editora A Girafa, o poeta e ensaísta Rodrigo Petrônio referencia grandes nomes da tradição literária Luiz Carlos Monteiro

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poesia feita pelos que hoje são os mais jovens busca se insurgir com alguma cota de novidade ou originalidade. E isto é uma prática corrente que atravessa os tempos, mesmo para aqueles poetas que têm a província ou a região como centro de referência, embora se saiba também que a internet vem destruindo as fronteiras culturais entre povos e países. É uma rebelião que se insinua sem o sacrifício dos mortos antigos, e que tenta privilegiar ou, em caso oposto, repudiar os modismos da hora. Nesta trama veloz e engenhosa, os novos poetas apegam-se ainda à pós-ética das velhas vanguardas, ao espírito futurista da velocidade mental e automatizada, ao urbanismo dos prédios, favelas e vias expressas do modernismo e ao percurso concreto-visual de uma sociedade dominada pela publicidade. Fazendo uma opção manifesta, em boa parte de seus poemas, pelo diálogo com importantes poetas ocidentais de variada tendência e inclinação estético-literária, é que aparece agora o terceiro livro de Rodrigo Petrônio, Pedra de Luz, pela editora “A Girafa”, de São Paulo. A abrangência de sua poesia envolve de Dante Alighieri a Arthur Rimbaud, de García Lorca a Octavio Paz, de Antonio Ramos Rosa a Herberto Helder. Ao trabalhar Continente setembro 2006


LITERATURA

a terza rima no poema “Contemplação”, Petrônio expli- ceitual com texto de Ferreira Gullar a respeito de “frucita a sua posição de inconformismo diante do complexo tas podres”. Antonio Ramos Rosa mostra-se presente formalístico que delimita os passos do homem-poeta: “A em por um “Movimento Livre”, tanto pela sugestão percepção que nele ainda persiste/ Em perseguir as vocabular de “animal” para substituir ou significar sombras de uma gruta/ E a filtrar por seu conceito triste// “homem”, quanto no sentido de que o humano poderia A vida fenomênica que luta/ No turbilhão indômito das vir a ser retirado de sua cegueira e estagnação, de sua formas/ Rebeldes a tudo o que executa// A argúcia à circunstância de submissão e conformismo num Porrevelia de suas normas/ E quer encerrar nas margens da tugal anteriormente cerceado e dominado politicamente, e ainda pela crença na força da palavra como perrazão/ Tudo que nega a lógica e a transforma”. Além de efeitos surreais reconhecíveis como o uso de suasão e remissão social. Certa fuga do edipianismo metáforas delirantes e não raro violentas, Pedra de Luz desenha-se subterraneamente em “A Criança e seus traz uma gama de outras sugestões estéticas. No poema Caprichos”, poema particularmente violento e desa“Ruínas Circulares” dialoga com poetas locais adeptos brido: “Abro seu crânio com bastões de ferro./ Esmiou simpatizantes do movimento surrealista, a exemplo de galho seus dedos com golpes de taco./ Vazo seus olhos Cláudio Willer, Floriano Martins ou Roberto Piva. O com um cabo de vassoura./ Maldita seja a noite repeautor transita desde o dístico revelador e que fecha seu tida/ E a repetição do amor que prolifera pelo quarto/ discurso em si mesmo, passando pelo soneto tradicional Onde eu nunca deveria ter sido gerado./ Hoje estou de (que somente os bons poetas sabem articulá-lo e escrevê- volta àquele ventre escuro./ E de suas fendas vejo o sol lo), até culminar no verso longo e sem amarras da escrita nascer compacto.” Rodrigo Petrônio expressa a visão de quem capta a automática, que se aproxima bem mais à prosa poética. As chamadas associações livres são utilizadas exaustiva- vida urbana em toda a sua plenitude, no seu concreto e mente, o que pode fazer com que um ou outro leitor na sua paisagem de grama, nuvens e árvores, nos seus desanime de ir até o final dos poemas maiores. Contudo, metais e nas suas limitações grupais e de gueto, onde não se perde nada em cultivar os dois lados desta poesia: “Cidade” e “Um País Inédito” são típicos desta vercerto cerebralismo e sua racionalidade extremada, de de- tente. Em certos instantes, assume uma gravidade talrivação filosófica cética e niilista, ou o recurso da intuição vez incompatível com o espírito novo e rebelado de sua pelo simples prazer de fruir um poema bem-construído obra. Um tom solene que o leva a empregar uma linguae arquitetado, com o requinte das atitudes radicais e gem até certo ponto preciosista e em estado de dicionário, segundo o poema cabralino. O que não arrojadas. parece constituir grande defeito ou Essa poética abre-se, assim, a escontradição, pois já existe em seu texto truturas formais diferenciadas, conteúuma dissociação implícita daquele podos flexíveis e temáticas extremamente pular demagógico e tradicionalista, que abertas. No campo da contenção forprolifera nos meios culturais e literámal e minimalista, os intervalos prorios. E ainda pelo fato de não se perporcionados pelos poemas curtos mitir fazer concessões ao pensamento fornecem brechas para o culto de uma banalizado e veementemente simplista, poesia mais concisa, menos derramada nem a valores de retrocesso e conserou desenfreada. O dístico “Liberdavadorismo, e assim afastar-se e não de”, por exemplo, não se esquiva em compactuar com tais valores que semlembrar os estragos de mortes causapre aparecem ou se ocultam, o poeta das pela recente ditadura brasileira: persiste na tentativa de acerto ético e “Certo ou errado/ Nenhum deles tem Pedra de Luz, Rodrigo Petrônio. existencial nas atitudes individuais e volta”. Na esteira dos conteúdos polísociais de homem-animal imerso na ticos, “Natureza Morta”pode repre- Editora A Girafa, 272 páginas, R$ 35,50. sua experiência cotidiana. • sentar uma divergência temática e conContinente setembro 2006

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CONTO

Mesas com réquiem O corpo o corpo a cor o pó" (Sandro Dalpino) Jorge Pieiro

sorriso no coração do silêncio Uma bacia com frutas sobre a mesa. As cores em podridão, em andamento. Uma janela ao fundo. Lá fora, o verde esmaecido. Um cavalete. Uma tela ainda em branco. Silêncio. Houvesse a tela, uma janela, um cavalete, alguma vida, nem que fosse uma bacia com frutas, talvez concorresse a uma parede a natureza-morta. No entanto, ali existiram, restaram apenas a mesa e o silêncio. As cadeiras todas já partiram, remendadas, quebradas, partidas. Ficou apenas o silêncio. O que se fez depois de tantas injúrias, de tantas recomendações, de desgraças, de tantas mentiras, de tantas ameaças. Sua puta! Melhor teria sido a morte no laço, na forca das entranhas da tua mãe! Vá embora daqui! Que o diabo te carregue! Morra, meu pai, morra. Que o remorso me persiga com esse prazer… Parem com isso! A louca aqui sou eu! Cala-te, tu não me faças devolver-te às entranhas… .As paredes? Onde estavam as paredes? O cheiro, aquele cheiro? Aproximou-se. Apenas a mesa. Entre, os abismos. Um metro, vinte anos. Abriu a bolsa, o batom. Dois passos, o sonho renovado. Abriu as pernas ao silêncio dobrado sobre a mesa. Aquela natureza-morta. Continente setembro 2006


CONTO

ou jogando com as mordaças Nada apagaria aquela sensação de água evaporando-se do olho do peixe. A consciência do erro, outrora ausente, revelava-se. Carne de joelho magoado na fricção do asfalto. Não deveria ter aceitado o convite. A janela olhando para o céu, para o mar, para nada. Choveria, ali uma lágrima, se não resistisse, querendo parecer montanha de ferro, alma de ferro, soluço soprado para o alto. O escritor não era boa bisca, alertaram, ela não acreditou. Na mesa do escritório, a pilha de oitavados coloridos. Vermelho, amores difíceis. Amarelo, em conquista. Verde, prontas para amar. Sentiu-se em perigo. Continuar a travessia? Sentiu-se cilada. Embaralhou os papeizinhos antes que ele chegasse. Um a um, buscou mecanicamente o nome dela. Ali estava. Descobriu-se pior que ele. Saiu do escritório. Na sala, um Debussy digitalizado acenava com acordes dispersos. Logo, o escritor entraria por aquela porta corrediça. A rosa que traria, úmida, seria da mesma cor do lenço, ainda seco de pavor. À distância, e entre as duas velas ainda apagadas, ela resolveu se vingar. Bebeu um gole profundo de mistério. Ao chegar, com a mão erguida para o ar, o escritor a encontrou sorrindo. O seio jazia sobre a mesa posta.

Jorge Pieiro nasceu em Limoeiro do Norte (CE). Publicou Ofícios de Desdita (novela, 1987), fragmentos de panaplo (contos, 1989), O tange/dor (poemas, 1991), Galeria de Murmúrios (ensaio, 1995), neverness (poemas, 1996) e Caos Portátil (contos, 1999). Fez parte das coletâneas Geração 90 – Manuscritos de Computador (São Paulo: Boitempo, 2001) e Geração 90 – os Transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003). Co-edita a revista Caos Portátil – um Almanaque de Contos.

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POESIA

Poemas de

Lenilde Freitas o peixe

recomeço

Nada o peixe na lua espelhada na água. Impele, leve como num sonho, seu bojo vazio. Alheio à coruscante dádiva – que ele sabe breve – enxágua seu longo silêncio no fundo do rio.

No aquário o peixe reaprende a nadar: sob as escamas guardou o mar.

O Nada não deita sombra.

porque é assim

madison

Lá vai a louca de minha rua caminhando nas extremidades afiadas do mundo

Acumuladas umas sobre as outras as folhas de outono sepultam para sempre este novembro. O vento balança o mundo e um galho despenca do mais alto dos dias na concavidade do nada. Para onde é levado o tempo morto? Que deus guarda em sua caixa de minúcia a nossa memória? Ah, vizinho de angústia, que fará o ontem com este instante que é nosso hoje, quando nos formos amanhã?

Anda no escuro a louca de minha rua Nenhum raio de sol tira das trevas essa mulher que passa Cuspindo a alma que sente sair da boca cheia de saliva Na areia da razão cuspo também – o instante, a aflição e a lucidez de estar viva.

esquecimento

Acumuladas umas sobre as outras as folhas de outono dormem.

Licenciada em Letras, fez Especialização em Literatura Brasileira e, agora, cursa o Mestrado em Teoria da Literatura na UFPE. Publicou seis livros: Grãos na Eira, Tributos, Espaço Neutro, Cercanias, Esboço de Eva e Desvios. Recebeu o prêmio do Concurso Internacional de Poesia, patrocinado pelo Trinton College, de River Grove (Illinois, Estados Unidos). Continente setembro 2006


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AGENDA/LIVROS O solitário Campos de Carvalho é um caso único na literatura brasileira. Esse mineiro de Uberaba, autor de apenas quatro livros (na verdade, seis, mas os dois primeiros foram renegados por ele), falecido em 1998, é dono de uma dicção tão própria que o torna uma espécie de solitário no mundo das letras nacionais. Também pudera: “A vida é a sós – e, o que é pior, também a morte” era uma de suas divisas. Seus romances A Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz Sutil (1961), A Chuva Imóvel(1963) e O Púcaro Búlgaro (1964), são de difícil classificação, situando-se entre o surreal e o absurdo. Desse escritor pouco lembrado a coleção Sabores Literários da José Olympio acaba de publicar Cartas de Viagem e Outras Crônicas, que saíram no antigo Pasquim. O que nos dá o prazer de saborear pérolas como as constatações “Londres, sim, é uma cidade londrina!” e “o único defeito de Paris é ter parisienses” ou observações agudas sobre a vida, sempre revestidas de humor, como “Nasci entre fezes e urina, o que aliás ocorre com todo mundo” e “Só é doido quem não é”. Por que esse escrevinhador brilhante produziu tão pouco? Ele próprio explica: “Tenho uma facilidade enorme de escrever e por isso mesmo é que tenho tão poucos livros publicados”. (Homero Fonseca) Luciana de Francesco

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O buraco da burca Livro de norueguesa sobre o Afeganistão expõe os perigos da facilidade

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m velho missionário português observou que, após uma semana na China, alguns tolos escrevem um livro sobre o país, enquanto os mais sagazes, mesmo depois de um mês lá, no máximo escrevem um artigo ou proferem cautelosa conferência sobre a pátria de Confúcio; quanto aos mais sábios, após um ano entre os chineses, não escrevem nada nem se animam a fazer conferência nenhuma. O Afeganistão não é a China, mas a jornalista norueguesa Arne Seierstad bem que poderia ter se acautelado da mesma maneira com relação ao ex-domínio do Talibã. Ao contrário, depois de um ano vivendo com uma família afegã (saindo de “seis semanas com os comandantes da Aliança do Norte” – o que não é lá uma grande credencial, convenhamos), resolveu escrever sobre um livreiro de Cabul e a sua família dominada pelas rígidas regras muçulmanas, principalmente sob os talibãs decididos a tornar o país mais parecido com o mundo tribal dos primeiros séculos de triunfo do Islamismo do deserto (não confundir com o das capitais refinadas, como Damasco e a hoje destruída Bagdá). A jovem do norte da Europa produziu um livro até interessante (por exemplo, no capítulo sobre um carpinteiro que furta alguns cartões da livraria de “Sulthan Khan”), porém nublado pelo olhar feminista sobre uma civilização complexa demais para o crivo dos nossos reducionismos de ocidentais. O buraco é mais em baixo – ou mais em cima. Arne Seierstad teve um pouco de pressa demais, ao gerar esse “campeão nas listas dos mais vendidos do New York Times”, conforme alardeia a bela capa da tradução brasileira do livro, lançado há pouco mais de um ano depois da “experiência” afegã (com direito a burca e tudo) de miss Seierstad. Também sob o signo da pressa, nossas editoras estão lançando livros assim – para pegar carona comercial nas crises internacionais. Por isso, já vem aí, assinado pelo próprio “Sultan Khan” (nome verdadeiro: Shah Mohammad Rais), Eu Sou o Livreiro de Cabul. (Fernando Monteiro) O Livreiro de Cabul, Arne Seierstad, Editora Record, 2006, 320 páginas, R$ 45,90. Continente setembro 2006

Cartas de Viagem e Outras Crônicas, Campos de Carvalho, José Olympio, 126 páginas, R$ 25,00.

Vozes representativas Os rumos da poesia brasileira, depois dos movimentos surgidos entre 1960 e 1990, teriam alcançado um ponto máximo de dispersão: com a dissolução dos antigos grupos, os poetas destacam-se agora pela forma individual de relacionar-se com os grandes nomes do nosso modernismo, com a cultura urbana – ora popular, ora erudita – e com as tradições mais remotas da poesia. Salgado Maranhão, Antônio Cícero, Adriano Espínola e Marco Lucchesi foram os nomes escolhidos por Domício Proença Filho para compor uma pequena, mas representativa amostra dessa diversidade. Concerto a Quatro Vozes, Domício Proença Filho (Org.), Editora Record, 192 páginas, R$ 34,90.

Navalhante

“Narrativa navalhante com feição de aforismo e diário de prestidigitador doada em texto tripartido e numerado para um inconveniente catecismo: o que não apresenta respostas. Mais. Aquele cuja eternidade se mede por pesadelos”. É com estas palavras que o poeta Inaldo Cavalcanti procura definir este novo livro do poeta e contista Francisco Espinhara, um dos líderes do Movimento de Escritores Independentes, de Pernambuco. O livro é uma coletânea de textos curtos, meio narrativos, meio meditativos, em que o escritor revela mais uma vez seu talento para tirar a pele das conveniências e exibir o nervo por trás do gesto fácil. Bacantes, Francisco Espinhara, Interpoética, 76 páginas, R$ 10,00.


Estórias do sertão Escritor baiano toma Guimarães Rosa como personagem para, em linguagem áspera e econômica, falar dos ermos do sertão

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este seu novo livro, o escritor baiano Aleilton Fonseca estabelece um diálogo com Guimarães Rosa, em forma de interpelação, tendo como eixo deflagrador os 50 anos de Grande Sertão: Veredas. O texto é repleto de “causos”, conversas e lendas nos ermos do sertão. O leitor experimentado reconhece, logo às primeiras páginas, a presença de um Rosa subliminar, ocultado apenas para aqueles que não leram sua obra ou mesmo parte dela. Certas narrativas funcionam como pequenos contos, pois obedecem a uma disposição linear começo-meio-fim. Algumas delas são exemplares, como é o caso da narrativa 25, “A Vingança de Nenzinho”, sujeito que apanha, é humilhado e desonrado por Zé de Zabé e guarda um tremendo rancor até o dia em que vê o inimigo implorando por Nhô Guimarães, socorro, à beira de um rio, para que Aleilton Fonseca. salve seus filhos e mulher da corren- Editora Bertrand Brasil, 174 páginas, teza e do afogamento inevitável. R$ 29,00. Nenzinho salva somente Zé de Zabé , para que este sinta mais fundo a dor da perda da família, e se despede realizado pela vingança sem derramamento de sangue. O tom dessas narrativas jamais se afasta da ambientação rural, da fala popular e característica dos sertões brasileiros. A linguagem é dura, áspera, extremamente econômica, pois mesmo na extensão de determinadas histórias, pouco há de desnecessário ou abundante, da gordura que muita vez acompanha certos discursos.(LCM)

Cristais e lâminas É impressionante como numa obra tão curta – cinco magros livros escritos entre 1966 e 1996 – a poetisa paulista Orides Fontela tenha feito um percurso tão coerente e de tanta qualidade. Já em Transposição, de 1969, estão presentes o apuro técnico, a concisão, a dicção cristalina e o viés metafísico, características que acompanharão a escritora ao longo de Helianto (1973), Alba (1983) e Rosácea (1986). Já em Teia (1996), a tudo isso se acresce um aumento do experimentalismo e, também, da matéria sangüínea e pulsante, como se a proximidade da morte fizesse a escritora focar mais a vida em sua inteireza. Esta é a primeira vez em que a obra completa desta mulher tão atormentada foi finalmente compilada num único volume, em edição impecável, o que proporcionará ao leitor a oportunidade de apreciar de uma vez todo alto vôo de sua poética. Uma poética em que sua condição terrena se redime em luz de estrelas, cristais e lâminas de aço. (Marco Polo) Poesia Reunida, Orides Fontela, Cosacnaify, 376 páginas, R$ 55,00.

AGENDA/LIVROS Delírios Os contos aqui reunidos faziam parte do primeiro livro de Nelson de Oliveira e estavam na gaveta há 15 anos. Demonstram, entretanto, que desde o início este escritor já era dono de seu ofício. Não há hesitação nem frouxidão nesta prosa em que personagens e situações cotidianos são de repente transformados em delírio, com intensificação das mudanças de situação e uma falta de hierarquia entre o que é real e o que é pesadelo. Destaque para o conto que dá título ao livro, juntamente com Senhora aos Domingos e Os Antepassados, os Porcos. O último conto, O Irmão Brasileiro, tem um vago clima de filme de ficção científica. Algum Lugar em Parte Alguma, Nelson de Oliveira, Record, 288 páginas, R$ 41,90.

Sexo reprimido

Mesmo operando no espaço-tempo nordestino, o escritor Gilvan Lemos extrapola o simples regionalismo. Neste livro, formado por três novelas, em sua costumeira linguagem clara, direta e sóbria, além dos diálogos plenos de naturalidade e expressão, trata dos dramas de gente comum que, de repente, se vê envolvida em circunstâncias inesperadas. A primeira história fala de um português que mantém uma pensão e uma mercearia: com sua família, seus hóspedes e outras pessoas, ele entra numa espiral de surpresas. Homossexualismo e sexualidade reprimida, que pode eclodir em violência, são alguns dos ingredientes. A Era dos Besouros, Gilvan Lemos, A Girafa, 192 páginas, R$ 25,00.

Rastros de Sade Passeando entre a Literatura, a Filosofia e a História, a professora universitária Eliane Moraes procura resgatar a originalidade da imaginação do Marquês de Sade, tentando desamarrá-lo das interpretações simplistas e já tornadas clichês. O que interessa a ela é a arquitetura erótica de seus romances, com seus devassos e debochados personagens, formando sociedades secretas de libertinagem em castelos de aspecto noir. Ela também retoma o rastro que o “divino marquês” deixou no pensamento ocidental, dos surrealistas aos libertinos em geral, e em personalidades tão diferentes quanto Octavio Paz e Rolland Barthes. Lições de Sade, Eliane Robert Moraes, Iluminuras, 160 páginas, R$ 35,00.

Estética oriental

O artista japonês Kazuaki Tanahashi faz uma arte sui generis. Com um pincel de cabo longo e grandes pêlos moles, cria desenhos (ou pinturas) com uma única pincelada. São quadros minimalistas em que explora os respingos, as voltas, as manchas, a velocidade e a pressão. Uma arte zen, próxima da caligrafia, feita com a naturalidade e necessidade de uma respiração. Ao longo deste livro, além dos exemplos de pintura, ele faz uma série de observações que vão da seriedade meditativa a um humor iconoclasta: uma de suas atitudes é defender uma estética da preguiça. O Coração do Pincel, Kazuaki Tanahashi, Bertrand Brasil, 160 páginas, R$ 32,90. Continente setembro 2006

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Quinta, Quintal, Quintana “Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido com um cavalo” Mário Quintana Alberto da Cunha Melo

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a passada e angustiante década de 60, eu trabalhava na extinta loja de departamentos, Mesbla. No intervalo das duas horas para o almoço, eu lanchava um sanduíche de queijo com “vitamina” de banana e corria para a Biblioteca Pública Estadual. Entrava no setor de periódicos, com seus grandes cinzeiros redondos, de miolo de madeira de lei, acendia meu Continental e abria o Correio do Povo, de Porto Alegre, para ler especialmente a página de Mário Quintana, Caderno H. Durante os dois ou três anos em que trabalhava na Mesbla, havia esse meu encontro estreito com Quitana, o poeta que amava os grilos e as ruas silenciosas. A admiração pelo homem e pela obra começou naquele tempo. A poesia que ele nos oferece faz lembrar-me do que diz Huberto Hodhen, em seu livro Filosofia da Arte, em que considera o processo artístico o ato de transformar o pesado no leve. A leveza da linguagem quintaniana faz com que a poesia guarde uma estreita consangüinidade com a família espiritual em que estão Juan Ramón Jiménez (Espanha), Rabidranath Tagore (Índia) e Adelmar Tavares, entre nós. Mantendo a métrica silábica, nos sistemas isossilábico e heterorítmico, isto é, poemas mantendo a mesma métrica, mas não os mesmos ictos, nos seus primeiros livros, ele resolve alterná-la com textos de prosa lírica, verso livre e poemas com um ou dois versos (monossílabos e dissílabos). Mas sinto até remorso em falar em elementos estruturais, ao comentar uma poesia que é tão asa de passarinho, tão fímbria de nuvem. As comparações que, por acaso, fizer da poesia de

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Mário Quintana com a de outros poetas tem apenas o objetivo de situar a sua linguagem como uma pista para leitores que, ainda, depois de publicar muitos belos livros, estão no pecado venial de desconhecê-lo. Quintana é originalíssimo em sua poesia, e as possíveis semelhanças com outros são pontuais, pois os achados culturais, às vezes, coincidem perifericamente. Certa vez, o poeta Manuel Bandeira, que sabia das coisas, chamou Murilo Mendes de “o bicho de seda da poesia brasileira”, isto é, tirava tudo de si. Se na época em que disse isso, tivesse lido, atentamente, a obra de Mário Quintana, seu amigo, teria identificado o segundo bicho de seda. Leiam este poema de Canções, no seu primeiro quarteto: “Em cima de meu telhado,/ Pirulin lulin lulin,/ Uma anjo, todo molhado,/ Soluça no seu flautim.” Isso tem fragrâncias de Henriqueta Lisboa ou algo de pó de mármore de Cecília Meireles. Lembra-me, também, um quadro de Lasar Segal. Ah, lembra-me momentos delicados de Vinicius de Moraes e Murilo Mendes. Ah! Lembra-me Poesia, esse monstro de pelúcia, esta ausência de espaço e ausência de tempo, como o Infinito e a Eternidade, no sermão do profeta Rohden. Isto não é uma exegese da poesia de Mário Quintana, mesmo porque eu só tenho dele uma antologia, mas o registro dos 100 anos de nascimento de um brasileiro dos pampas, que viveu de e para a literatura. No mais, era um celibatário que podia fazer suas farras, sem waterloos domésticos, morava solitário em pensões e hotéis, onde costumava escrever a partir da meia-noite, para não ser interrompido por visitas. Quando saía a caminhar por


MARCO ZERO

ruas e praças, a alma de Porto Alegre o acompanhava. Mesmo depois de interromper as farras, ainda visitava os bares, os últimos templos da poesia, para tomar café. Eu tenho um amigo que ficou impressionado com uma frase de Quintana, que foi republicada em sua antologia 80 Anos de Poesia. É bem estranha, e dá muito que pensar: “Os verdadeiros poetas não lêem os outros poetas./ Os verdadeiros poetas lêem os pequenos anúncios dos jornais”. A arte seria algo imanente em todas as criaturas humanas, mas só poucos conseguem atualizála; entre esses poucos podem estar os desempregados, os perdidos. Dentro dessa perspectiva, concordo com o poeta. Mas se pretende que a miséria é determinante do surgimento dos verdadeiros poetas, é claro que não concordo. Ao prefaciar o livro Os Melhores Poemas de Mário Quintana, de 1983, o crítico Fausto Cunha denominou-o

de “último lírico”. Concordo com a alcunha, embora considere lírica toda poesia não épica, não narrativa e que não é necessariamente individualista, confessional e melopaica. Mas, Quintana, além de lírico foge a qualquer classificação, como a de parassimbolista ou surrealista lírico. Isso é da natureza dos poetas autênticos, como Cruz e Souza, por exemplo. Sua poesia, apesar de hermética, deixa brechas de racionalidade, resultando numa linguagem de expressão emotiva e consensual. É uma linguagem-bombom, que dissolve lentamente o seu mel: “Os grilos abrem frinchas no silêncio./ Os grilos trincam as vidraças negras da noite.” Como os poetas velhos de seu tempo, iludiu-se com as glórias acadêmicas e candidatou-se três vezes, sem sucesso, para a Academia Brasileira de Letras. Essa academia e as outras deveriam mudar seus estatutos e eliminar deles as aberrações que lhes impôs um dos seus fundadores, o abolicionista Joaquim Nabuco, tornando-as órgãos cooptadores de políticos, militares, médicos e qualquer celebridadezinha das crônicas sociais, e fechando as portas para grandes escritores ou grandes poetas, como Mário Quintana. Continuariam a editar livros, mas, ao invés de serem máquinas de efemérides, deveriam transformar-se em entidades reivindicativas, em defesa do escritor, mas nunca partidárias. Perdoem-me, meus milhões de leitores, em deter-me tanto nas academias, mas o escândalo que foi a não-aceitação de Quintana e de outros escritores verdadeiros deve sempre ser lembrado, tristemente registrado nos anais da literatura brasileira. O mavioso grilo dos pampas cantou muito, publicou uns 50 livros de gênero variado, predominando a poesia. Foi um grande tradutor de autores como Proust e Virginia Woolf. Há poetas que devem ser lidos pela manhã, outros à tarde e outros à noite. Quintana se devia ler o dia inteiro. Deixou uma poesia leve, atlética, solar, que são formas de ser profundo em poesia. • Continente setembro 2006

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ARTES Fotos: Canal 03/Divulgação

Performance Isolante, de Amanda Melo, no SPA 2003

Arte

contemporânea em interface com a cidade

Semana de Artes Visuais do Recife (SPA das Artes) chega à quinta edição como um evento consolidado que investe na experimentação e na aproximação da arte com o espaço urbano Olívia Mindêlo

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ARTES

Enquanto bienais, salões, museus e galerias legitimam a arte contemporânea por meio de um rigoroso discurso crítico da curadoria, que muitas vezes até distancia a obra do espectador, eventos como a Semana de Artes Visuais do Recife (o SPA das Artes) procuram fazer um movimento contrário, mais experimental, próximo do público e um pouco mais livre de amarras estéticas e conceituais. A iniciativa, que consolida sua quinta edição em vários pontos da cidade entre os dias 10 e 16 deste mês, não tem a intenção de negar a importância do papel das instituições para a produção atual, até porque tem o aval e o suporte da Prefeitura do Recife, mas desde o início se coloca como uma alternativa muito menos formal e mais democrática, tanto para os artistas quanto para o público, de se produzir, pensar e consumir arte no ambiente urbano. “A gente queria criar um evento sem o recorte dos salões, cada vez mais restritos à entrada de artistas convidados. A idéia foi, de início, mapear a produção na cidade e, além disso, promover um evento em que as pessoas que não têm acesso aos poderosos curadores pudessem participar livremente para expor seus trabalhos”, conta Maurício Castro, artista plástico e um dos fundadores do SPA das Artes, em 2002, junto com outros criadores e gestores públicos da época, como Rinaldo da Silva, José Paulo, Fernando Augusto e Fernando Duarte. Foi a partir de um compromisso político, portanto, que se foi moldando o perfil do SPA, hoje um espaço em que cabem tanto idéias mais complexas quanto manifestações visuais espontâneas, como é o caso das grafitagens, intervenções com cartazes do tipo lambe-lambe ou pinturas nos muros da cidade, expressões imbricadas à linguagem urbana da publicidade, do design, do quadrinho. Essa produção independente, proveniente também da periferia, está sempre no SPA de alguma maneira. Não mais naquele ideal um pouco ingênuo de que todos participam, até porque o evento costuma repetir alguns artistas e dispõe hoje de uma seleção para a concessão de bolsas, a chamada Semanada de Incentivo à Produção. No entanto, não deixa de ser a iniciativa de artes visuais mais aberta da cidade, os próprios não selecionados podem expor seus trabalhos, desde que disponham de condições financeiras para tal. Por fim, a Semana das Artes ainda consegue manter a prática de abrigar uma pluralidade de suportes: desenhos, pinturas, instalações, vídeoarte, xilogravuras, publicações, grafites e, sobretudo, intervenções urbanas e performances, que se tornaram uma marca do evento. Se não se figuram mais uma novidade na tal tendência desmaterializante da obra de arte contemporânea (Paulo Bruscky fazia isso na década de 70), as intervenções visuais e sonoras, assim como as performances, cumprem talvez o maior mérito do SPA: transformar a rotina da metrópole através de ações e idéias que investem na interface com a cidade, com os transeuntes,

Grafitagem A Família Oxente, de Derlon Almeida de Lima, no ano passado

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ARTES

Fotos: Canal 03/Divulgação

dando-lhes acesso direto às artes visuais feitas atualmente. “O evento aposta no experimentalismo e na liberdade de criação do artista. É mais aberto à participação e, ao fluir em espaços não-institucionalizados e alternativos da cidade, acaba desmistificando esse jargão chamado arte contemporânea”, acredita Rodrigo Braga, artista plástico e coordenador geral do SPA desde o ano passado. Longe dos espaços fechados e consagrados de arte, é em ruas, avenidas, parques e pátios do Recife, especialmente do Centro, onde o SPA constrói sua principal vitrine, seu amplo palco de exposição cujo foco é a urbe. “Eu gosto do SPA porque é um evento bem aberto, faz a arte contemporânea, que muitas vezes é chata e hermética, ficar perto das pessoas e da cidade”, reforça Lourival Batista, o Cuquinha, artista que já armou um varal de roupas de uma margem a outra do Rio Capibaribe e amarrou com cordas a Ponte Duarte Coelho com a da Boa Vista, em duas edições passadas do evento. A exceção e novidade este ano é a existência na programação do SPA do prédio da antiga Western, na Praça do Arsenal, no Recife Antigo, que vai servir de

Politicagem no Recife, intervenção urbana de Malysse e Novaes, no atual SPA Continente setembro 2006

abrigo para algumas obras e ponto de encontro do evento. É lá onde vão estar ancorados trabalhos como o da paulista Kika Nicolela, selecionada pelo concurso da Semanada para trazer o vídeo-instalação Face a Face, obra que convida o espectador a gravar respostas a cinco perguntas sobre o amor, que serão editadas e, a cada dia, transformadas numa nova versão de vídeo a ser projetado no local. Apesar de necessária a iniciativa de haver uma casa como referência, visto que o SPA sempre tendeu a uma certa dispersão, é ainda no espaço público que os participantes, artistas jovens na maioria, voltam suas energias para a Semana de Artes Visuais do Recife. Não é à toa que dos 27 artistas pernambucanos e de outros Estados escolhidos para receber as bolsas este ano, 20 estarão fora de quatro paredes para mostrar seus trabalhos, seja em cartazes nos muros, projeção de imagens em prédios de uma avenida movimentada ou numa ação performática, que geralmente explora o estranhamento e suscita espanto, curiosidade ou até repúdio por parte dos espectadores. “Fazer uma performance num museu não tem muita graça, porque as pessoas ali são intelectualizadas e já


Intercâmbio é fundamental

Marcelo Coutinho em Restifo, performance no Hospital Psiquiátrico da Tamarineira, em 2005

O

que torna a Semana de Artes Visuais do Recife um acontecimento consolidado hoje, nacionalmente, não é apenas o fato de levar às ruas e espaços alternativos experimentos de arte contemporânea, mas também por promover intercâmbio com convidados de fora e fazer circular conhecimento, através de oficinas, palestras, bate-papo com os artistas e de iniciativas louváveis, como a distribuição do Mapa das Artes do Recife e da Revispa, publicações feitas pela iniciativa, que serão lançadas no coquetel de abertura do SPA, no dia 10 deste mês. “A importância maior do SPA é aglutinar, ainda que no espaço curto de uma semana, todos aqueles que, de um modo ou de outro (artistas, críticos, curadores, pesquisadores, galeristas, público), contribuem para a formação do campo das artes visuais em Pernambuco. Além disso, o evento promove a rara oportunidade de troca de experiências não só com parceiros locais, mas também com aqueles que vêm de outros Estados ou países para participar do evento”, ressalta Moacir dos Anjos, curador e diretor do Mamam – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, parceiro do SPA desde o início. Nesta edição, entre outras atividades, o museu está responsável pela vinda da renomada artista carioca Rosângela Rennó, que fará uma palestra no local, e pela residência artística da francesa Christine Laquet, que está desenvolvendo um site specific, com instalação e pintura, no Mamam do Pátio de São Pedro (anexo do Mamam), para ser apresentado na semana do evento. Além dela, integram a lista de convidados estrangeiros, uma novidade desta edição, a jovem curadora mexi-

cana Daniela Pérez, que palestrará sobre intervenções urbanas na América Latina e na Europa; o espanhol Davi Barro, trazendo mostra de vídeo de artistas contemporâneos portugueses; os franceses Erick Samakh, Guillame Stagnaro, cada um ministrando uma oficina, e os conterrâneos do Grupo Dardex, que vão participar do Papo de Artista, no dia 12, junto com Lourival Batista (PE) e Yuri Firmeza (CE) – este conhecido por sua atitude intrigante (ele já fez toda a imprensa cearense acreditar na existência de um artista imaginário). Todos eles vão apresentar trabalhos de intervenção urbana, ainda uma surpresa para o evento. Outra presença interessante na edição deste ano é a do grupo carioca Chelpa Ferro, pela primeira vez no Recife. Um dos expoentes da arte contemporânea brasileira, o trio formado pelos artistas Luiz Zerbini, Jorge Barrão e pelo editor de cinema Sérgio Mekler já passou por eventos como a Bienal de São Paulo, em 2002 e 2004, e a Bienal Internacional de Veneza, em 2005. Eles foram convidados pela organização do SPA para encerrar o evento, na festa do Saldão, realizada no último dia com projeção em vídeo do resultado da edição deste ano. O grupo fará show performático, que trabalha a poética visual e sonora misturando barulhos do cotidiano e tendências musicais diversas, passando pelo rock até o gênero eletro-acústico, com experimentação de instrumentos inusitados. A apresentação é uma espécie de instalação sonora e sensorial, que trabalha a linguagem multimídia e apela para todos os sentidos, inclusive o olfativo.


ARTES conhecem o que seja a proposta. Na rua, apanham-se muitas surpresas. Eu gosto desse movimento, de fazer com que pessoas como o amolador de alicate, o camelô, o ambulante, vejam. Mesmo que não identifiquem como uma proposta estética, aquilo vai mexer com eles de alguma maneira, principalmente se for uma imagem forte”, analisa a pernambucana Amanda Melo, artista que protagonizou, no SPA 2003, uma das performances mais marcantes da história do projeto, intitulada Isolante. Nua e enrolada da cabeça aos pés com fita adesiva preta, ela propôs uma relação com os transeuntes fazendo um percurso a pé pelos arredores do Pátio de São Pedro, no Bairro de São José. A idéia rendeu a ela o 2º lugar no Prêmio Chamex de Arte Jovem 2004, através do qual pôde mostrar o mesmo trabalho em Londres, na Inglaterra. Este ano, a artista, uma

Rodrigo BragaDivulgação

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Izidório Cavalcanti na performance Sagrado Coração de Izidório

Artistas que participam do SPA através das Semanas de Incentivo à Produção Izidório Cavalcanti (PE) Sagrado coração de Izidório (performance) O artista caminha pela Av. Guararapes e outras ruas do centro do Recife, exibindo um coração de boi, aberto no peito, até chegar ao altar das igrejas do entorno. Dia 11, às 7h; 13, às 14h, e 15, às 20h. Christina Machado (PE) Invocação – artérias II (intervenção urbana/performance) Artista convida o público a ter a imagem de um coração de Leonardo Da Vinci impressa no corpo, através da serigrafia. Antes da ação, ela cola cartazes da imagem pela cidade. Dias 11 e 12, colagem dos lambelambes no Pátio de Santa Cruz e no Pátio de São Pedro. Dias 13 e 14, interação (mesmos locais). Soraya Fonseca (PE) A Casa do Bicho (intervenção urbana/performance) Artista ocupa uma das três jaulas dos macacos do Parque 13 de Maio no horário em que os animais são recolhidos para serem alimentados. Com uma placa indicativa "Bicho-homem", a obra instiga o público a refletir sobre as nossas semelhanças e diferenças. Dia 12, das 8h30 às 14h30, no Parque 13 de Maio, Boa Vista. Maicyra Leão (DF) Experimentos Gramíneos 1 (performance) Vestida com uma roupa feita de pedaços de grama artificial, a performer deita num Continente setembro 2006

pequeno gramado próximo a uma área de circulação intensa de pessoas. Janaina Barros (PE) Doce Arte (performance) A artista fabrica bolos coloridos e recheados e dispõe fatias numa grande mesa forrada na rua com toalha branca e guardanapos carimbados. Um garçom serve a obra gratuitamente. No Mamam do Pátio de São Pedro, no encerramento do SPA. Shima Bukuro (PE) Habitat: pro Labore, Labor Adictu 1 (performance) O artista provoca discussões através de um personagem viciado em trabalho. Dia 11, às 7h; 13, às 14h, e 15, às 20h, em locais movimentados da cidade. Bruna Rafaella (PE) Ação performática s/ título Cinco placas de espelho são arremessadas do Edifício Western. Após o choque de cada placa no chão, atores aplaudem a ação. O som será captado e reproduzido em Cd. No Edifício Western. Tereza Neuma (PE) Olho Mágico (intervenção sonora) Rádio-novela transmitida numa FM do Recife, durante cinco dias do SPA, traz abordagens, em capítulos expressos, sobre a invasão de privacidade. De 10 a 15.

Junior Pimenta (CE) Frontaria (intervenção urbana) Intervenção em fachadas de prédios, com aplicação de módulos pintados pelo artista sobre caixa de ovos. Bruno Faria (SP) Aula 1 Duchamp (intervenção/instalação) Em loja de conserto de TV, o artista faz uma intervenção com um vídeo histórico sobre o vanguardista francês Marcel Duchamp. O vídeo é exibido em vários televisores simultaneamente no local. Rodrigo Lourenço (RS) Gravura (intervenção urbana) Fixação de 150 pôsteres impressos a partir de três matrizes de xilogravura e serigrafia em locais públicos e privados na cidade do Recife. Glatt Fairy (PE) Lounge Áudio Visual (intervenção urbana) Intervenção no viaduto Ulisses Guimarães, com aplicação de painéis de grafismos pintados à mão. O trabalho remete a astros do rock, alto-falantes, teclados, mecânica, eletrônica, conexões, cabos de ligação. Malysse e Novaes (SP) Politicagem no Recife (intervenção urbana) Artistas simulam a candidatura a uma campanha artística, em que Malysse é adversária de Novaes. Os candidatos colam cartazes lambe-lambe em vários bairros com imagens, caretas e gestos que fazem alusão a um período pré-eleitoral.


ARTES Canal 03/Divulgação

Experimentos Gramíneos, performance de Maicyra Leão

Virgínia de Medeiros (BA) Sonhos Explícitos (intervenção urbana) A artista grava em áudio relatos de sonhos eróticos de pessoas que circulam em diferentes locais do Recife e os transforma em uma série de vídeos, com outras imagens. TV Primavera (PE) Cinema Vertical (intervenção urbana) Em prédios da cidade, grupo faz projeção de imagens que mudam de forma e disposição e constroem diferentes sentidos pictóricos. Na parede do Edf. Canadá, na Avenida Conde da Boa Vista. Gabriel Mascaro e Izukaeru (PE) Galo da Madrugada (intervenção urbana) O anúncio de um falso acontecimento público nas rádios comunitárias da Boa Vista revela o surgimento de um outro Galo da Madrugada no SPA das Artes. O projeto reúne ainda performance da banda Os Imbuás e documentário audiovisual. De 10 a 15, intervenção sonora na Av. Conde da Boa Vista. Dia 16, na Av. Guararapes, com performance da banda e outras surpresas. Flávia Pinheiro (PE) Tudo que é sólido desmancha no ar (intervenção urbana) Intervenção busca dialogar com a contemporaneidade através da utilização/não-utilização dos espaços urbanos enquanto espaços coletivos. Camila Mello e Manuella Eichner (RS) Mergulho no Recife (intervenção urbana) Duas artistas do ateliê coletivo Mergulho, de Porto Alegre, realizam intervenções urbanas que envolvem produção de publicações, vídeos, montagens fotográficas, distribuição de fitas K7 (com

das selecionadas do programa nacional Rumos Artes Visuais 2006, do Itaú Cultural, não vai levar nenhuma proposta para apresentar no SPA. Quem volta a participar do evento, através de bolsa da Semanada, é outra artista que está na lista do Rumos 2006 a também pernambucana Tereza Neuma. Pela segunda vez, ela leva ao SPA uma intervenção sonora, com inserção de voz em rádios FMs da cidade. A obra chama-se Olho Mágico e se propõe a discutir a invasão de privacidade, através de simulações de trotes telefônicos em forma de rádionovela, com capítulos que serão inseridos diariamente na programação de emissoras locais na semana do SPA. Para a artista, ações como essas geram um estranhamento típico da arte feita na atualidade. “É legal, porque provoca uma reflexão no sujeito”, reitera.

conversas sobre arte contemporânea) e outros registros para serem publicado no blog www.corpoliquido.nafoto.net. Roda de Fogo (PE) Mundo Lambe (intervenção urbana) Trabalho espalha xilogravuras em lambelambe pela cidade como forma de atrair o público com uma linguagem popular. O projeto apresenta nas ruas suas produções em grafite, lambe-lambe, colagens e poesia visual. RE:Combo (PE) Neutralidade (intervenção urbana) A criação de um grande "jogo" de tabuleiro trabalha a construção de um ambiente onde é explorado o conceito da falta de neutralidade, convidando os visitantes a deixarem interferências "penduradas" nos barbantes. Todos os dias do evento, no Edifício Western.

Adélia Klinke (RS) Exposição de Pintura (desenhos) Trabalhos sobre papel com diversas abordagens e diferentes materiais, como tinta acrílica, aquarela, lápis aquarelado, bastão de nanquim, bastão de aquarela etc. Todos os dias do evento, no Edifício Western. Bruno Vieira (PE) Revista Redes (publicação) Revista gratuita que traz trabalhos inéditos de seis artistas contemporâneos: Sílvio Tavares (PE), Chico Fernandes (RJ), Lais Myrna(MG), Letícia Cardoso (SC), Arthur Leandro (AP) e Ticiano Monteiro(CE). Distribuição nos equipamentos do SPA. Grilowsky (PE) FIC-SCI (publicação em CD-book) Conto de ficção científica que explora motes como teletransportação, emulação, guerras bacteriológicas, nucleares, desilusões amorosas e violência. Acompanhado por trilha sonora que amplia a percepção para uma condição imagética/sonora da palavra.

Larissa Ferreira (BA) Intransinto (performance, vídeo e instalação) A obra usa a projeção de imagens por um VJ, propondo uma exploração de casualidade e instantaneidade, na confluência entre corpo, arte e novas tecnologias. Todos os dias do evento, no Edifício Western, Praça do Arsenal, Recife Antigo.

Soma3 Design (PE) Cromossoma (publicação) Um zine de arte gráfica a ser publicado e distribuído durante o SPA 2006. Distribuição no Edifício Western.

Kika Nicolela (SP) Face a Face (vídeo-instalação) Obra convida os visitantes a gravarem em vídeo respostas a cinco perguntas sobre o amor. Após as entrevistas diárias, o material é editado e, a cada dia, uma nova versão do vídeo é projetada. Todos os dias do evento, no Edifício Western.

Gregório Vieira e Henrique Koblitz (PE) Fusão (publicação)r Divulgação de produções gráficas existentes no Recife e criação de um circuito com artistas de outros estados. Distribuição gratuita nas ruas e nos espaços envolvidos com o evento, bem como em bibliotecas públicas. Continente setembro 2006

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ARTES Roberta Guimarães-Imago/Divulgação

Intervenção urbana Invocação - Artérias II, de Christina Machado

Partilha da mesma opinião a já consagrada artista pernambucana Christina Machado, que participa pela terceira vez consecutiva do evento (segunda com bolsa). Tudo começou em 2004, quando a artista viu o SPA como uma oportunidade de expor sua necessidade de compartilhar com o público da rua a performance O que você faria se estivesse em meu lugar?, a primeira de sua trajetória. Durante mais de três horas, o movimento performático da artista se mostrou quase uma catarse: destruir e enterrar vaginas de barro. Desta vez, Christina entra com um trabalho mais leve e interativo, o Invocação – artérias II, apresentado em julho passado no Festival de Inverno de Garanhuns. Carregando um carrinho equipado com tinta vermelha e a imagem de um coração feita por Leornado da Vinci, a performer convida o público do Pátio de São Pedro e do Pátio de Santa Cruz a ter o desenho impresso no corpo, através da serigrafia. “A idéia é fazer as pessoas se renovarem, enchendo-as de energia”. Outras ações ousadas aos olhos do espectador comum prometem mexer com a cidade. É o caso da performance Sagrado coração de Izidório , de Izidório Cavalcanti (PE), que vai percorrer a Avenida Guararapes, no Centro, e igrejas do entorno com um coração de boi sangrando no peito. Já Soraya Fonseca (PE) vai ocupar uma das três jaulas dos macacos do Continente setembro 2006

Parque 13 de Maio no horário em que os animais são recolhidos para serem alimentados, com a intervenção A Casa do Bicho. Maycira Leão, de Brasília, vai se esconder num gramado público, trajando roupa feita com grama artificial, e pedir à população para aguá-la, em Experimentos Gramíneos 1. Gabriel Mascaro (PE), por sua vez, vai anunciar diariamente nas rádios comunitárias da Avenida Conde da Boa Vista um falso acontecimento de um Galo da Madrugada no SPA, que culminará numa performance no último dia do evento, um sábado. Eles são alguns dos artistas que compõem o grupo de selecionados para a Semanada de Incentivo, elegidos por uma comissão julgadora formada por Luiz Camilo Osório, doutor em filosofia pela PUC do Rio de Janeiro e crítico de arte do jornal O Globo; Maria do Carmo Nino, professora de artes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e curadora, e pelo próprio Maurício Castro, hoje afastado da coordenação do SPA. Vale lembrar que a Semanada serve de apoio e termômetro. O elemento surpresa, que eclode de trabalhos inesperados na programação, sempre vem como um tempero especial num evento experimental e cheio de “riscos” como esse, às vezes chamando até mais atenção do que alguns selecionados. Há de se aguardar outras “loucuras” vindo por aí. •


AGENDA/ARTES

Quatro décadas de arte

A

quatro décadas de carreira do artista plástico Gilberto Salvador serão compiladas em uma exposição de suas principais obras tridimensionais. A mostra Reflexões Visuais acontecerá nos meses de setembro e outubro, na Fiesp (São Paulo), e promete enlevar o público com uma atrativa arte contemporânea alocada no chão, teto e paredes do espaço expositivo. Serão cerca de 35 peças, algumas com mais de dois metros de altura e acabamento em resina de última geração, pretensas a compendiar mais de 150 momentos – entre exibições, bienais e salões – da rica produção artística de Gilberto Salvador que estará na ocasião comemorando 60 anos de idade. Esse será um dos grandes eventos de São Paulo em 2006 e acontecerá paralelamente à Bienal. Participações como a da III Jovem Arte Contemporânea do Museu de Arte da USP, em 1969, devem ser relembradas com a exibição de algumas peças

Mostra Reflexões Visuais compila as principais obras de Gilberto Salvador

especiais, nas quais o artista sempre foi fiel à expressão emocional, capaz de coagular o instante presente juntamente a um sentimento atemporal. Inovador e intuitivo, Gilberto garante continuar sustentando sua produção com o teor de que o artista que estiver sincronizado com o mundo ajuda a empurrá-lo para frente.

Fotos: Divulgação

Reflexões Visuais. De 19 de setembro a 29 de outubro. Galeria de Arte do Sesi do Centro Cultural Fiesp, São Paulo.(Av. Paulista, 1313, São Paulo – SP). Informações: 11. 3146.7405 www.sesisp.org.br

Fora de série Prometendo promover através de suas obras uma visão reformulada do passado e construir um diálogo permanente entre a arte e a contemporaneidade, Roberto Lúcio apresenta, este mês, na galeria Forma, a exposição Fora de Série. O artista plástico , afeito a eleger temas para desenvolver suas criações em série, decidiu apresentar nessa mostra inéditas experimentações que tenham sido executadas entre as seqüências das suas composições artísticas precedentes. Fora de Série. Abertura: 24 de Maio de 2006. FORMA ( Av. Cons. Aguiar, 597 Boa Viagem, Recife PE ) Informações: 81.3326.7744

Exposição autobiográfica No ano em que comemora 40 anos de sua produção, o artista plástico Eudes Mota realiza na Amparo 60 uma exposição de caráter autobiográfico, legitimada pela exibição de esculturas em madeira, pinturas e outros trabalhos alusivos à trajetória de sua vida e carreira. A mostra, intitulada Espólio, cujo sugestivo unívoco é “herança”, permanecerá em cartaz do dia 05 de setembro a 06 de outubro e reunirá cerca de 20 peças, nas quais são traduzidos elementos do cotidiano e da memória do compositor. A exemplo, as instalações designadas Palmatórias e Escapulários que configuram reminiscências de sua infância, momento em que Eudes já ensaiava um processo de criação artística. Espólio. 11 de setembro a 14 de outubro. Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92 A, Pina – Recife). Informações e Agendamento de Escolas: 81. 3325.4728

Dois pontos O cenário artístico pernambucano será contemplado no dia 04 de setembro com o lançamento do Portal Dois Pontos (www.doispontos.org.br) que abrigará textos, discussões e trabalhos remissivos às artes visuais do Estado. O Portal Dois Pontos propõe a convergência de todas as instâncias dessa arte através da participação de professores, alunos, críticos e visitantes em geral. O site será diariamente enriquecido com reflexões e considerações de todos os agentes e envolvidos na rede de produção criativa contemporânea. Exposições, debates, opiniões e registros de obras legitimarão a interação democrática desse meio artístico tão vivo e rico, mas carente de espaços midiáticos que o defendam, abriguem e consolidem. Portal Dois Pontos – Arte Contemporânea em Pernambuco: www.doispontos.org.br. Festa de Lançamento: segunda, dia 04 de setembro de 2006.

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Arte-invenção A arte nasce para reinventar a vida, fazer-nos viver uma vida outra sem pagar o preço da realidade, já que, nesta, tudo acaba e é irreversível Reprodução

N

Glorificação do Reinado de Urbano VII, de Pietro Cortona, Palácio Barberini, Roma 1633/39

ão é verdade que a arte seja a expressão ou a revelação da realidade: ela é a invenção de um mundo imaginário que pode ou não valer-se de dados reais. Mesmo uma pintura realista ou fotográfica não é o retrato ou cópia fiel da realidade, por maiores que sejam os fatores de verossimilhança que contenha. Tomemos como exemplo uma paisagem: ainda que o coqueiro nela pintado pareça com um coqueiro real e a água do riacho dê a impressão de fluir, a simples desproporção entre o tamanho da tela e o tamanho da paisagem retratada já faz da paisagem pintada uma imagem “irreal” da primeira. O mesmo se pode dizer de um romance que pretenda retratar determinado momento da sociedade, uma vez que a história que conte, ainda que verossímil ou inspirada em fatos acontecidos, jamais será a expressão exata daqueles fatos, sem

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esquecer que o propósito do romancista é sempre criar uma obra literária, que terá, portanto, que obedecer a exigências estéticas, de estilo e narração, visando ganhar o interesse do leitor. Se Dostoiévski fosse se ater a retratar pessoas reais, jamais teria criado personagens como Raskolnikov ou Aliocha. Em nenhum lugar e em época alguma houve pessoas ou ocorreram fatos como lemos nos romances. Por isso mesmo nos encantam, por nos fazerem viver uma outra vida, plausível, ora mais intensa ou mais dramática ou mais sutil e comovente. É como se fosse a vida real, mas não é. “A arte nasce, quando viver não é suficiente para exprimir a vida”, escreveu André Gide. Na verdade, ela nasce para reinventar a vida, fazernos viver uma vida outra sem pagar o preço da realidade, já que, nesta, tudo acaba e é irreversível. A arte nasce porque a vida não basta.


TRADUZIR-SE

Temos que partir do fato de que as linguagens são intraduzíveis entre si e, portanto, nenhum discurso traduzirá o mundo real. Falará dele, aludirá a ele, tentará expressá-lo, mas, como se trata de realidades distintas, linguagens distintas, o discurso resulta sempre uma metáfora da realidade que descreve, se falamos do discurso descritivo. O artista, já sabendo, nem o tenta; de saída inventa na obra o que seria, no máximo, um equivalente do real. Isso, pressupondo-se que o poema tenha por tema a realidade – um fato, uma pessoa, uma paisagem –, mas pode simplesmente ser um discurso que se inventa e inventa seu tema. Seria justo, por exemplo, dizer que a pintura da Renascença é uma expressão mais fiel do real do que a pintura gótica, por ter criado o espaço tridimensional? Não seria. A perspectiva renascentista é uma invenção, uma construção intelectual do espaço, uma metáfora que, embora imite a profundidade do espaço natural, não incorpora a sua complexidade. É, de fato, uma técnica capaz de criar, sobre a tela bidimensional, a ilusão da profundidade, dispondo os objetos segundo a partir de um ponto de observação teoricamente situado no horizonte – o ponto de fuga. Essa organização geométrica nos induz a perceber os objetos numa relação ideal que lhes imprime uma aura encantatória. Trata-se, portanto, de uma visão idealizada do real, uma invenção. O mesmo pode-se dizer do Barroco, que inventou um outro modo de organizar o espaço, desta vez imprimindo-lhe um dinamismo virtual, ausente do espaço renascentista, que privilegia o equilíbrio estático. O Barroco, ao contrário, privilegia o desequilíbrio e a assimetria. Alguém terá algum dia se defrontado com um cenário real semelhante ao teto de uma igreja barroca? Nunca, e exatamente porque o Barroco foi inventado para nos dar

o que não existia antes, para tornar mais excitante o universo humano. Há quem estabeleça relação entre a criação do estilo barroco e a teoria de Copérnico, que revolucionou a concepção cosmogônica que tinha a Terra como o centro do universo. Com a visão copernicana, o universo se tornou excêntrico, instável, pois desde então a Terra estava em movimento em torno do Sol. Pode ser que tal teoria esteja efetivamente na base da concepção barroca, mas esta, de qualquer modo, não a expressa, ainda que tenha se inspirado nela para inventar uma nova linguagem artística. Tampouco se deve excluir, dentre as possíveis fontes do Barroco, a perturbação da Europa sacudida por guerras , o triunfalismo religioso da Contra-Reforma, como também o mundo turbilhonante da burguesia emergente, um conjunto de fatores que comprometa a estabilidade social. É assim que a arte nos ajuda a construir nosso mundo imaginário, a partir de idéias e experiências, de mudanças operadas na vida social, na política, na economia, na ciência e na própria arte. Mas não existe uma causalidade direta entre as diferentes esferas da atividade social e a criação artística. Na verdade, trata-se de uma interação complexa, impossível de determinar e definir, em que o artista atua, ele mesmo, ora intuitivamente ora conscientemente, mas não com o propósito de simplesmente retratar ou reproduzir na obra o que experimentou na vida ou bebeu na cultura: de fato, encontra ali estímulos para construir uma realidade outra, em que a materialidade do mundo e o significado das idéias transcendem os seus limites. Para consegui-lo, tem o artista, de acordo com sua personalidade, com seu talento e sua necessidade, que, muitas vezes, levar à exasperação a linguagem da arte, vale dizer, violentar o que se tem como a verdade do real. • Continente setembro 2006

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V

A Catedral de São Pedro, no Vaticano, é um exemplo do forte investimento da Igreja, dos duques e dos príncipes na arquitetura

oltemos ao século 15. Um século de magníficas transformações em todos os campos do conhecimento humano. Estas transformações estão mais relacionadas com os dias de hoje do que imaginamos. Nossas concepções religiosas, nossa visão positivista do conhecimento, nossas relações de afeto, e muitas outras características de nossa cultura foram moldadas pelo conhecimento surgido no Renascimento Italiano. Por que o Renascimento Alemão, Francês ou Ibérico não marcou profundamente a História? O fato principal é que apenas a Itália, com suas repúblicas principescas e pequenos reinos que não estavam envolvidos em guerras nem sofrendo com invasões, rica com o comércio marítimo, continha as condições necessárias para oferecer aos estudiosos as ferramentas da evolução científica. A difusão do saber, incentivada pelos duques e príncipes da época, tinha um aliado fundamental: os papas, que estavam incentivando a difusão e tradução dos textos gregos e latinos, antes fechados nos conventos e mosteiros por toda a Itália. Esta difusão do conhecimento atingiu os eruditos da época, pessoas que podiam financiar tradutores e tinham uma educação que lhes permitia ler e escrever em latim e grego. O desenvolvimento deste período culminou com a divulgação do livro impresso, por volta de 1450 com a tipografia de Johann Gutemberg, Schöffer e Fust, na cidade de Magonza; possibilitando a difusão do livro em todos os campos científicos.

A Arquitetura e a Cidade No Renascimento, arquitetura e cidade eram vistas como algo indissociável, de forma que a qualidade estética e espacial dos edifícios era dependente da qualidade urbana e vice-versa Fellipe de Andrade Abreu e Lima


Foto: Carolina


ARQUITETURA Nos idos de 1452, período de difusão dos primeiros suas dimensões e formas; além do estudo dos materiais livros impressos, um dos maiores “gênios” da Teoria da para a construção e dos serviços necessários para o funciArquitetura, Leon Battista Alberti (1404 – 1472), onamento de uma cidade ideal. Para deixarmos claro, espublica o primeiro tratado de arquitetura do tes tratados de arquitetura descrevem desde as medidas e Renascimento, intitulado De Re Aedificatoria. Este proporções das colunas dos edifícios até a forma e convolume, escrito em latim clássico e dedicado ao seu dições geográficas da cidade. Todas estas especificações amigo pessoal desde a universidade, o Papa Nicolau V estão nestes três tratados de Alberti, Filarete e Martini. Com um florescimento de saber tão grande pelos (Tommaso Parentucelli de Sarzana), consagrou-se como o segundo tratado de arquitetura escrito em toda a humanistas italianos, o “homem” se torna referência para história da humanidade. Diferente do primeiro tratado si mesmo. O antropocentrismo renasce das cinzas. As proporções do corpo humano de Vitrúvio, chamado De são seguidas pelos matemáticos Architectura Libri Decem, o e arquitetos que descobrem no De Re Aedificatoria é um número 0,618 (em grego), um compêndio que trata a cidade padrão único que rege toda a e a arquitetura como entes natureza. O Homem Vitruviano inseparáveis. A qualidade de Leonardo da Vinci, uma estética e espacial dos edifídas mais difundidas imagens cios é, para Alberti, dependo Renascimento, demonstra dente da qualidade urbana e esta relação entre a ciência e o vice-versa. L. B. Alberti, um “homem”: este como sendo dos maiores humanistas de uma manifestação da harmonia todos os tempos, comparável universal, da natureza, da vida, a Leonardo da Vinci, era poenfim, de Deus. eta, filósofo, literato, tradutor, Durante os séculos 15 e 16, pintor, arquiteto e, como bom outros tratados de arquitetura humanista clássico, um “exítiveram repercussão. Neste rol mio atleta” – de acordo com podemos citar Sebastiano suas próprias palavras. Além Serlio (1475–1554) que disso, estudou na Unipublicou o Tutte L'Opere d'Arversidade de Bolonha, leis, chitettura et Prospettiva, dividiretórica, física e matemática, e do em sete livros e publicado já havia estudado o Trivium e Imagem do De Re Aedificatoria de Leon Battista Alberti, 1485 e 1550 separadamente entre 1517 e o Quadrivium, em Veneza. Ele diz no seu tratado que, “mente e corpo formam 1550, e Andrea Palladio (1508 –1580), que publicou o renomado I Quattro Libri della Architettura em 1570. juntos a beleza, e a cidade é o reflexo desta perfeição”. O homo encyclopaedicus romano tornou-se o uomo Também atingiram relevância histórica os tratados de universalis do Renascimento. Alberti foi o primeiro de Giacomo Barozzi da Vignola (1507–1573), autor de uma série que inclui outros dois arquitetos tratadistas que Regola delli Cinque Ordini dell'Architettura em 1562, que vêem Arquitetura e Cidade juntas: Antonio di Pietro traduzimos para se tornar o primeiro tratado de Averlino (1400 – 1465), conhecido como Filarete, e arquitetura do Renascimento editado no Brasil e Francesco di Giorgio Martini (1439 –1501). Seguidores Vincenzo Scamozzii (1552–1616) que escreveu Dell'Idea desta cultura empreendida por Alberti, Filarete publicou dell'Architettura Universale em 1615. O texto de Palladio, considerado a Summa Classica o Trattato di Architettura em 1464 e Giorgio Martini o Trattati di Architettura, Ingegneria e Arte Militare em pela maneira inovadora com que são mostrados os meados de 1470. Estes dois tratados de arquitetura desenhos e plantas dos edifícios, não mais engloba a envolvem tanto a construção de edifícios, templos e cate- Cidade no projeto de Arquitetura. Palladio, da mesma drais quanto os locais onde devem ser construídas as ci- forma que seu hodierno amigo Serlio, mostra, no seu dades, onde devem se localizar as ruas e avenidas nestas, tratado, os edifícios desenhados sem a devida inserção no Fotos: Reprodução

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ARQUITETURA

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Fotos: Reprodução

que não há “saber” sem o espaço urbano e sem a “poder”. devida relação com a O espírito do capitaliscidade. Percebe-se que ao mo surge com a sua “ética” longo de um século desde a bem antes do que se imapublicação do De Re Aediginava. A arquitetura de ficatoria, a cultura da teoria qualidade que conhecemos da arquitetura mudou. Os e visitamos em Florença, tratados passaram a aborVeneza, Roma e Paris, são dar apenas os edifícios, e fruto de enormes investinão mais consideravam a mentos da Igreja, dos duCidade como um ente inques e príncipes. Eles perseparável de suas obras guntaram e a Arquitetura construídas. Que causas respondeu. O Coliseu condicionaram esta fragRomano, a Catedral de São mentação? É preciso não Pedro no Vaticano, a Praça confundir causa e conSão Marcos em Veneza e seqüência, como de cos- O Homem Vitruviano, segundo Leonardo da Vinci tantas outras arquiteturas tume. Causa latet, vis est urbanas são respostas muito boas e muito caras. notissima, como escreveu Ovídio na obra Metamorfose. Dos Séculos 17 ao 19, antes do surgimento da Lembremos que o desenvolvimento científico culminou na especialização das profissões, no surgimento arquitetura moderna nos anos de 1920, muitos outros da engenharia das máquinas, das fortificações tão usa- livros ou “tratados” surgiram como uma panacéia, na das no novo mundo do além-mar, da engenharia militar tentativa de retomada da harmonia que houve entre a e da conseqüente difusão dos livros que ensinaram estas Arquitetura e a Cidade durante o Renascimento. Nos ciências novas. Estas transformações foram respostas dias de hoje, onde a Arquitetura encontra-se em cheque dadas aos anseios dos detentores de reinados – patronos e sem responder às demandas de uma sociedade de todas as descobertas científicas – que precisavam fragmentada, os tratados do renascimento podem nos proteger suas cidades das invasões que começavam a se ensinar a considerar novamente a Arquitetura e a Cidade intensificar. O foco dos tratados sai da arquitetura e como ente único, inseparável e indivisível. A falta de relação entre as obras de Arquitetura e o espaço da Cidade, passa para o campo estético-arquitetônico e, Cidade é um dos maiores problemas das cidades há posteriormente, repousa no campo da arquitetura muito tempo. Precisamos aprender com a militar. Este caminho que foi percorrido pela História da Arquitetura para construirmos um “ciência arquitetônica” durante o Renasfuturo onde a Cidade dignifique os cidadãos cimento demonstra que o saber responde às que nela vivem. perguntas que lhe são feitas, ou melhor,

Fotos: Reprodução

Imagens do Tratado de Andrea Palladio, 1570. A arquitetura sem contemplar a cidade

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Fotos: Roberta Mariz

Cerâmica singular Henriqueta Targino, paraibana radicada no Recife, afirma-se como artesã com expressivas esculturas de médio e grande porte Renata Bezerra de Melo

T

udo é inusitado nas criações da artista plástica Henriqueta Targino. A começar pela “casaateliê”; uma visível exceção entre os típicos “ateliês” existentes por aí. A organização surpreende, tudo é muito bem distribuído. Esculturas figurativas de médio e grande porte marcam fortemente presença na sala-de-estar. E é agradável a presença delas ali, como se estivessem inseridas na proposta de ambientação do apartamento. São cabeças de homens, mulheres e bonecas, modeladas em cerâmica, apoiadas em suportes de formas geométricas diversas. Os olhos, pouco demarcados, sem maiores detalhes, meio borrados, tiram a sensação de vigilância, que poderia resultar da presença das imagens. Os tons terra, com predomínio da ferrugem e do ocre dão um ar de sobriedade às figuras e à

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decoração, por conseguinte. Em volta da mesa de jantar, elas se fazem companhia, passam intimidade. Parecem ter sido moldadas à semelhança da personalidade da própria Henriqueta. O peso, a força e elaboração das esculturas contrastam sensivelmente com o jeito de ser introspectivo, delicado e despretensioso da artesã. Por outro lado, coincidem com a segurança que ela conserva e deposita na construção de cada “modelo”. “Me encontrei na cerâmica. Sempre fiz trabalhos manuais, pintava telas. Mas, na cerâmica, sinto muita facilidade”. A artesã quase não usa o torno. Tudo é feito à mão. De pente de cabelo à tampa de caneta, as ferramentas são as mais sugestivas possíveis. “Esse retalho de vestido de crochê mesmo foi usado para dar relevo a uma peça, ficou belíssimo”, pontua.


Arquivo pessoal

Henriqueta domina a arte da cerâmica

Henriqueta é sossegada e, é assim, com muita paciência, que experimenta, tenta, retoca, refaz cada detalhe de suas criações. Os arranjos são bem artesanais. Modela o barro, levanta a peça, aguarda que seque, lixa, lava, pinta; surpreende-se com o resultado. Os efeitos não são precisos. Diversos fatores interferem no processo: o tipo de argila, as características da queima, a temperatura, a duração. “Você pensa numa cor e, após a queima, a peça pode sair com uma tonalidade totalmente diferente do que foi imaginado”. Há apenas 5 anos, ela decidiu manusear o barro com afinco. Já domina a técnica com habilidade de mestre. “Gosto de fazer, mas não de aparecer”, ressalta. Por isso é uma relativa novidade no mercado de artes em cerâmica. Foi descoberta. A versatilidade de suas peças encontrou respaldo no gosto de profissionais da decoração, arquitetura e até da moda. “Mônica Guimarães levou umas peças para a Artefacto, loja de decoração, e a Clara B, de moda feminina, misturou as roupas com minhas esculturas no lançamento da coleção de inverno”, conta. E se entusiasma: “Fiquei surpresa com os resultados obtidos na Fenneart. Vendi 87 peças na primeira edição”. Na última Feira Nacional dos Negócios do Artesanato, em julho deste ano, Henriqueta conquistou a admiração do escritor Ariano Suassuna, que adquiriu uma escultura. “É para mim uma coisa lou-

TRADIÇÕES

vável, personalidades como o exgovernador Jarbas Vasconcelos, que é grande apreciador de arte, o governador Mendoncinha e o próprio Ariano reconhecerem o valor do meu trabalho, visto que não me esforcei para aparecer.” Por mais que a cerâmica seja um arte tradicional, o trabalho de Henriqueta se distingue. Pode-se dizer que é singular. “Aqui, tudo vira tudo. Meu filho trouxe um pedaço de madeira para casa; fiz umas incisões ao longo da peça, inseri uns ganchos, o acabamento ficou por conta da cabeça em cerâmica sentada no topo do tronco. Virou um cabideiro”. Ela investe nas mais variadas interferências. Do barro cru, saem não apenas peças decorativas, mas também utilitárias. Para conferir singularidade às esculturas, alumínio, chapa de ferro velha, palhinha, madeira, varão, ferro, couro, parafuso, pedrinhas, resplendores, tudo é insumo a ser imprimido no barro. “É um trabalho de pesquisa. Quando a peça está secando e não me agrada, vou lá e altero até atingir o resultado desejado.” São vários os acabamentos permitidos. Meticulosamente, Henriqueta matiza cada personagem, delicia-se, vivencia cada nova experiência. Amassa o barro com os dedos, determina o percentual de óxido necessário para se atingir o pigmento esperado. Ornamenta suas figuras em instantes únicos. A precisão é uma constante. “Essa peça, aqui, não vai ser vendida porque um lado saiu assimétrico em relação ao outro, consegues ver?” Só a própria Henriqueta identifica tamanho detalhe de imediato. Tanta cautela explica o valor de cada escultura, de cada peça utilitária. Vitrificadas com óxido, elas exibem um moderado brilho. “Prefiro a coisa mais fosca”, revela a artífice. Ao fim de seqüenciadas incursões pela argila, expressões tristes, moderadas e felizes aparecem revestidas, cada uma, de exclusivo charme. São irreplicáveis, conforme intenção da própria Henriqueta. • Continente setembro 2006

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SABORES PERNAMBUCANOS

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Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Bumba!, meu boi (Carne de boi, II e III) “Lá em cima daquela serra, passa boi, passa boiada, passa gente ruim e boa, passa minha namorada".

Leo Caldas/ Titular

(Quadrinha popular, citada por Guimarães Rosas, em Sagarana)

Bumba-meu-boi: tradição do folclore nordestino

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eu-se que Mãe Catirina teve desses desejos estranhos que toda grávida tem. O seu foi de comer língua. E tanto infernizou Pai Francisco, seu bom (e paciente) marido, que este acabou tendo que sair de casa para encontrar a bendita língua. Mas, por lhe faltar recursos e disposição para ir mais longe, acabou matando o primeiro boi que encontrou – logo um de estimação de seu patrão. Descoberto o sumiço do animal, este ficou furioso. Tanto que, esclarecida a autoria de tão ignóbil afronta, obrigou o dito Pai Francisco a trazê-lo de volta. Pajés são chamados para ressuscitar o animal. E, depois de muita reza, o boi acabou mesmo levantando e, em pé, passando

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a dançar, alegremente, a dança da vida. Assim nasceu o “Bumba-meu-boi”, nos engenhos de açúcar do Nordeste, num tempo em que ainda não havia televisão. Resultado das influências das culturas de nossas três raças – o índio, o negro e o branco. Aos poucos, foi ganhando força nos agrestes e nos sertões do Brasil todo. “Bumba!” é interjeição onomatopaica que indica batida, pancada, queda – “bate (chifra) meu boi!”, assim dizia-se naqueles primeiros tempos – Bumba!, meu boi. Quem assiste, fica batendo pé, numa roda, imitando as invocações daqueles pajés. A cena lembra essas pequenas arenas dos interiores da Espanha, destinadas a corridas de touros. A música vem de orquestra rude, meio


SABORES PERNAMBUCANOS improvisada, feita quase sempre de zabumba, ganzá, maracá e pandeiro. Nas roupas, destaque para golas e saiotes de veludo preto bordado e chapéus com fitas coloridas. O boi, principal figura do auto, é de tamanho natural, armado em madeira coberta por veludo bordado. Prende-se à armação uma saia colorida, de chita barata. Fica dançando uma dança esquisita, em que roda e roda, como se estivesse tentando alcançar seu rabo. Quem sustenta o peso da armação, tendo ainda a obrigação de dançar, é chamado de “miolo do boi” – ofício nobre, mas de pouco reconhecimento, que de fora ninguém lhe vê a cara. É o “mais puro dos espetáculos populares nordestinos”, segundo mestre Mário Souto Maior. E o “de maior significação estética e social”, completa Renato Almeida (História da Música Brasileira). A primeira referência a esse “Bumba-meu-boi” está em artigo do padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, de 11 de janeiro de 1840, no jornal O Carapuceiro. A festa recebe, em cada lugar, nome diferente: em Pernambuco, Maranhão, Rio Grande do Norte e Alagoas manteve-se como “Bumba-meu-boi” mesmo; no Ceará é “Boi-de-reis”; Bahia, “Boi janeiro”; Amazonas e Pará, “Boi-bumbá”; Paraná e Santa Catarina, “Boi mourão”; Rio de Janeiro “Folguedo-de-boi”. Fazendo-se suas apresentações de meados de novembro até Dia de Reis (6 de janeiro). Sempre em torno do Natal – até porque nasceu o Deus menino, precisamente em uma manjedoura. No adagiário popular, “boi” é homem feio, “boi-manso” é marido enganado, “pé-de-boi” é quem gosta de trabalhar, “pegar boi pelo chifre” é enfrentar situação difícil, “apanhar que só boi ladrão” é levar muita pancada, “carro diante dos bois” é avançar na conversa, “boi olhando pra palácio” é quem não entende o que vê ou ouve, “engolir um boi e se engasgar com um mosquito” é quem se aperreia por pouca coisa, “dar um boi para não entrar e uma boiada para não sair” é de quem gosta de brigar. Personagem importante de nossa cultura popular e profunda está presente nos interiores do Nordeste em cordéis muito conhecidos – como O Romance do boi da mão de pau, O boi espácio, O boi liso, A vaca do Burel ou O Rabicho da Geralda. E, também, na nossa literatura clássica – “Boi Morto” (Manuel Bandeira), “Bumbameu-boi” e “A Pega do Boi” (Ascenso Ferreira), “Memórias do Boi Serapião” (Carlos Pena Filho), “O Boi de Barro” (Mauro Mota), “Touro Andaluz” e “Alguns Toureiros” (João Cabral de Melo Neto). Euclides da Cunha descreveu um estouro da boiada nOs Sertões. O mesmo fez João Ubaldo Ribeiro, em

Já Podeis da Pátria Filhos. Guimarães Rosas escreveu sobre “Conversa de bois” e “O burrinho pedrês” Sagarana. Boi e vaqueiro estão em quase todos os aboios e músicas de nossos interiores. E, mais recentemente, também nas vaquejadas – em que o boi deve ser derrubado no meio de duas listras brancas, pintadas com cal. E só quem já foi numa sabe a emoção de ouvir a frase, gritada, “Valeu boi!”. Forte na cultura, esse boi tem presença importante em nossa culinária. A carne pode ser assada, guisada, grelhada, frita, ensopada e defumada. Crua também – hábito que chegou, no Nordeste, há bem pouco tempo. É usada crua, por exemplo, no carpaccio – prato italiano feito para servir como entrada. Foi criado no Harry's Bar, de Veneza, por seu próprio dono – Giuseppe Cipriani. Acabou ganhando fama. Tanto que chegou a ser celebrado por Ernest Hemingway, em Na Outra Margem, Entre as Árvores. Segundo Cipriani, a receita surgiu por conta de dieta da robusta condessa Amália Nani Mocenigo, sua cliente, proibida por seu médico de comer carnes fritas, assadas ou cozidas. Então concebeu Cipriani finíssimas fatias de carne crua, acompanhadas de molho à base de mostarda, azeite de oliva e molho inglês. Ganhando o prato seu nome em homenagem ao pintor Vittore Scarpazza Carpaccio (1525) – por conta de retrospectiva de sua obra, exibida nessa época em Veneza. Carne também crua, só que moída, está presente em outro prato de sucesso – o steak tartare. Temperada com sal, pimenta, cebola, salsa, alcaparra, azeite, molho inglês e mostarda, tudo enrolado, em forma de bife alto, com cavidade no meio onde é colocada uma gema crua de ovo. Tem esse nome por reproduzir hábito de nômades bárbaros da Ásia (tártaros), que se alimentavam basicamente de carne crua. Carne de boi é ingrediente principal do churrasco – nascido nos pampas, região do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. Prato feito para ser saboreado com amigos. E quem quiser fazer bem-feito, deve observar alguns cuidados importantes. O primeiro é o de nunca usar carne congelada. Carnes magras que me perdoem, mas, parafraseando Vinicius, gordura é fundamental. Ao menos no churrasco. Para dar sabor, claro. “O que não significa que se deva comê-la”, aconselha Wessel. Na hora de acender o fogo, evite combustíveis (como querosene) que deixam seu cheiro na carne. Espere com calma até que as chamas desapareçam e o carvão fique em brasas. Melhor grelha que espeto (por rasgar a carne, nem sempre no sentido das fibras). Sele a carne (tostando por fora), para que conserve o suco, temperando sempre Continente setembro 2006

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com sal grosso. Se forem marinadas, regue com o molho do tempero, durante o preparo. Deve-se começar a assar a carne na parte mais quente da churrasqueira; e, depois, continuar assando na parte mais longe da brasa, até atingir o ponto. Picanha, maminha, alcatra e fraldinha demoram menos no fogo, enquanto costela e cupim pedem mais tempo. Prefira sempre facas afiadas – para que a carne, ao corte, não perca sumo. Nunca apague labaredas do fogo com água – melhor cinzas do churrasco anterior ou areia da beira do fogo. Ao separar a carne, seja generoso e calcule 400 g por pessoa. No churrasco, como na vida, é sempre melhor sobrar que faltar. Como acompanhamento, farinha de mandioca, salada de maionese com batata; também cebola, berinjela, abobrinha, pimentões grelhados e molho vinagrete. E mais batata ao natural, sem maionese, de preferência assada em papel alumínio em meio às carnes. Normalmente se começa o churrasco com as carnes brancas (coxa, sobrecoxa, coxinha da asa [tulipa] de frango), temperadas com sal, pimenta branca moída na hora, manjericão. Depois, lingüiça e costelinha de porco, marinada com 1 garrafa de vinho branco seco, água, 3 colheres (de sopa) de mel, sal e pimenta do reino. Só então começa, verdadeiramente, o churrasco – picanha, maminha, fraldinha, miolo de alcatra, contra-filé, costela, bisteca. Carne de boi está presente em muitos outros pratos de sucesso como – filé com batata frita, bife de todo tipo (ace-bolado, à milanesa, de panela), rosbife, costela assada no bafo, língua cozida no vinho, isca de fígado acebolado, fritada, mal-assada, pimentão recheado com carne moída, almôndega, chambaril com pirão, cozido, ossobuco com polenta, mão-de-vaca, rabada, panelada, carne-de-sol com farofa de bolão, charque desfiada com purê de jerimum, arrumadinho de charque, paçoca. Feijoada, também, junto com feijão e porco. Na Europa, virou moda um outro tipo de carne. Chamada pelos espanhóis de lídia (entre nós “lida”, luta) – carne do boi morto em touradas. São consumidos hoje, por lá, cerca de 8 milhões de quilos anuais dessa carne. As touradas ainda acontecem na Espanha, Colômbia e no México. Além de Portugal, onde o boi não é sacrificado. Mas a alegria do boi português dura pouco – que vai depois ao açougue, do mesmo jeito. Na arena o animal morre, lentamente – debilitado por hemorragia causada pelas banderillas cravadas em seu dorso pelo toureiro, e por longas lanças do picador a cavalo. Findando esse espetáculo, quando o toureiro enfia sua espada mortal ao Continente setembro 2006

alto do pescoço do touro. Abatido, o animal é puxado por 3 cavalos e conduzido a um açougue, onde recebe choque térmico para amaciar a carne. É que o touro, estressado por lutar pela vida, fica com a sua musculatura enrijecida. Todas as receitas, com essas carnes, levam vinho jerez para torná-las mais macias – especialmente rabada, língua, entrecôte. Por lá, essa tourada é comparada a um balé. Uma arte. Para nós, quase barbárie. Tão nobre, sendo o ofício de toureiro, que Federico Garcia Llorca dedicou a um deles seu mais famoso poema “Pranto para Ignácio Sanches Mejías” – que morreu “às cinco em todos os relógios, às cinco em sombras da tarde”. Faltando agora falar dos cortes dessa carne. Mas isso fica para a próxima coluna, última dessa pequena série de três. • RECEITA: COSTELA ASSADA Leo Caldas/ Titular

INGREDIENTES: 4 kg de costela de ripa, 1 pimentão, 2 cebolas, 2 tomates, coentro, cebolinha, azeite, vinagre, água, sal, pimenta. PREPARO: · Tempere a carne, de véspera, com todos os temperos. ·Dia seguinte, coloque tudo na panela de pressão. Quando esta panela começar a apitar, conte 50 minutos. ·Tire a carne da panela, coloque em assadeira, regue com o molho coado e leve ao forno para dourar. ·Sirva com purê de macaxeira, de jerimum e de batata-doce.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Numeradas (ou: o dia em que Rubem Braga me disse que “violino faz tossir”)

1.

Para os deslumbrados cronistas dos nossos jornalões, o próprio umbigo parece ser o grande assunto nacional. 2. Posso estar errado, mas alguma coisa me diz que quem tem vinte milhões de dólares no Brasil pode mais e manda mais do que quem tem duzentos milhões de dólares nos Estados Unidos. 3. José Aparecido de Oliveira ( que costuma dizer que sou “a coisa mais antiga do Brasil”) ligou aqui para casa no dia do meu aniversário e reclamou: – Joel, você já viveu demais. Começa a dar na vista... 4. A prova de que não sou um autor popular está no fato de que nunca surpreendi no ônibus alguém lendo um livro meu. 5. Durante a guerra, na Itália, sempre que eu convidava Rubem Braga para beber “bom vinho italiano”, a resposta era sempre a mesma: – Você está cansado de saber que não bebo vinho nacional! Outra vez, em Roma, convidei-o para assistir a um concerto na Academia Santa Cecília, no Tastevere. E ele: – Não vou. Violino me faz tossir... • Continente setembro 2006

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ESPECIAL

Revolução: mito e identidade Hoje, é necessário repensar, frente a essa nova realidade global, o significado das palavras “resistência” e “revolução” na realidade latino-americana Fábio Lucas

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ESPECIAL

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Nelson Provazi

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nde o presente se espreme entre as feridas malfechadas do passado e o legado utópico de personagens que apontaram para o futuro, o tempo é igualmente prisioneiro, escravo, refugiado e mendigo. Na América Latina, a sombra da história não deixa o céu. Mas será que a história mesma, além do tempo, não seria por estas bandas uma ilusão? A realidade é obra do imperialismo tardio, ou fardo, a esta altura, de nossa responsabilidade? De onde vem a nossa caricatura? Entre a utopia do jovem Che e o pragmatismo da nova esquerda continental, uma palavra repetida é “resistência”. Herança de ideal mítico e traço-de-união entre os povos, a palavra de ordem pode estar começando a tomar novos contornos. “Num mundo em que é impossível não participar do mercado global, a noção de ‘resistir’ terá que ser repensada em linhas supranacionais”, defende o cientista político Bruno Martins Carvalho, da Universidade de Harvard, lembrando que o próprio Che Guevara acabou virando ícone pop na praça global. Por enquanto, a chamada globalização neoliberal é o principal alvo da resistência. “Diferentemente da utopia que pregava o socialismo, ou seja, uma ruptura com o capitalismo, hoje no discurso da esquerda predomina um chamamento à resistência a uma vertente do capitalismo que seria radicalmente excludente”, avalia o professor de História e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Luiz Fernando Ayerbe. “Já não se questiona a exploração inerente ao sistema, mas a expulsão de trabalhadores desse sistema”, diz Ayerbe. A mudança que suaviza o discurso antigo não agrada tanto assim. “A esquerda de hoje deixa muito a desejar”, critica a argentina Amália Inês, que é professora de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e mora há 40 anos no Brasil. “A resistência que existe hoje, e sempre existiu, é produto das necessidades dos povos latino-americanos, e de uma consciência maior que permite aos Continente setembro 2006


ESPECIAL cidadãos lutar por seus direitos”. Para Bruno Carvalho, a desilusão que de certa maneira varreu o continente nas últimas décadas é responsável pela valorização da cidadania: “Qualquer resistência deve começar conosco. Não faz sentido repassarmos essa função para os nossos governos. Nós é que temos que resistir às promessas de candidatos cujos discursos não correspondam aos seus comportamentos, por exemplo”. O ideal revolucionário por trás da noção de “resistência” vem das guerras e movimentos de independência que se inspiraram na Revolução Francesa, e ganhou características continentais após experiências no México, na Bolívia, em Cuba ou na Nicarágua. Será que a idéia de revolução que liga setores sociais, políticos e intelectuais latino-americanos é um ponto de convergência que denota alguma identidade? “Eu particularmente não acredito na existência de uma identidade latino-americana, dada a diversidade de histórias e realidades. Mas, certamente, o tema da revolução contra um inimigo interno e externo comum teve e tem o efeito de trazer para essa diversidade uma perspectiva unificadora”, responde o professor Luiz Fernando Ayerbe, da Unesp. “Seu significado, no entanto, é mais político e conjuntural. Ao mesmo tempo em que inclui os seus simpatizantes, a revolução social exclui na sua utopia os seus opositores. Ou seja, não combina com uma identificação de caráter regional que tenha como norte a América Latina no seu conjunto”, ressalva. A professora Amália Inês tem opinião semelhante. Segundo ela, o ideal revolucionário nas nações latinoamericanas foi pintado pela história oficial. “A identidade, se existe, tem outros valores que a sustentam, como o de ser antes de mais nada mestiços, não de sangue, mas de culturas”. O cientista político Bruno Carvalho chama a atenção para o fato de que essa identidade nasce contraditória, uma vez que o termo América Latina teria sido cunhado por Napoleão com o intuito de expandir a influência francesa na região. Além disso, “em parte, a idéia de revolução integra a história oficial dos países na medida em que os movimentos de independência em geral tinham caráter revolucionário”. No rastro da colonização, os heróis locais, por sua vez, tiveram o seu papel na consolidação ideológica da resistência. “O ideal revolucionário também se relaciona com certas heranças místico-messiânicas (por exemplo, Reprodução

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Che Guevara e Fidel Castro: companheiros da Revolução Cubana

em Canudos) e com um anseio de justiça arraigado em diversas tradições populares”, aponta Carvalho. Poderíamos pensar que estamos, aqui, no ventre do populismo – outro traço freqüentemente descrito como parte essencial de nossa identidade conjunta. “O termo populismo é carente de rigor analítico e tende a ser utilizado de forma ideológica, para desacreditar certos processos”, adverte Luiz Fernando Ayerbe. “O apelo ao apoio popular, adaptando discursos de diferentes platéias, exacerbando expectativas sobre a capacidade individual de uma liderança, de um partido ou de um governo de resolver os graves problemas que atingem um setor da sociedade, um país ou a própria humanidade, permeia a prática dos políticos dos diferentes espectros, conservadores, progressistas, de esquerda ou de direita. A busca sistemática, utilizando muitas vezes sofisticados instrumentos de marketing, de captar os sentimentos das massas para obter apoios para cruzadas de caráter local, nacional, regional ou global, seja contra a pobreza, o imperialismo ou o eixo do mal, não é patrimônio de uma região.” Do plano simbólico ao mundo real, a utopia e a propaganda se fundem, a fim de “transformar a sociedade em todos os seus aspectos” – segundo a definição de revolução de Eric Hobsbawn. É assim desde a França, e para a América Latina, sobretudo, desde o Manifesto Comunista, sem esquecer de Cuba. De acordo com Emir Sader, a revolução cubana atualizou a idéia revolucionária no continente, tornando-a aparentemente viável. Talvez estejamos agora no refluxo do mito: a realidade, se não desfaz, reconstrói o símbolo, iluminando o que a propaganda utópica costuma esconder. Quem sabe a desilusão faça parte da História, e a libertação da América Latina passe pela reformulação da idéia de liberdade. •


ESPECIAL

A América Latina de Mario Vargas Llosa Escritor peruano tem uma visão bastante peculiar de quais são as virtudes e os pecados da política latino-americana Eduardo Cesar Maia

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L.C. Leite/Folha Imagem

á faz parte da cultura política na grande maioria dos países latinoamericanos, principalmente em ambientes universitários, o discurso que afirma que todos os nossos males são frutos de maquinações perversas de uma entidade metafísica maldefinida denominada neoliberalismo. Tal falácia, para o escritor e jornalista peruano Mario Vargas Llosa, consiste em atribuir-se ao liberalismo todas as misérias e desigualdades que, de fato, assolam essas terras. A explicação para o atraso político e social dessas nações estaria relacionada justamente a razões de natureza oposta à agenda liberal, como enfatizou Roberto Campos: “o nacionalismo, que teve sua importância na fase de formação das nacionalidades, foi tomando um caráter ideológico isolacionista e protecionista e começou a ser um entrave às transações econômicas e à importação de tecnologias. O populismo, que criou o monstro da burocracia assistencialista custosa e ineficiente. A insistência no estatismo resultou no que se pode chamar de Estado Empresarial, que esquece suas obrigações naturais e se intromete de forma danosa na esfera das atividades privadas”. Por fim, e para legitimar sua opinião de que nunca houve uma hegemonia de políticas liberais na América Latina, Vargas Llosa cita a abrangente adoção do estruturalismo econômico que, obliterando o componente monetário da inflação, levou à permissividade no âmbito das políticas monetárias e fiscais, gerando pressão inflacionária endêmica e eventual hiperinflação. Políticas de cunho efetivamente liberal, com redução da participação do Estado nas atividades privadas, seriam, segundo Vargas Llosa, somente ensaiadas (e timidamente) a partir da década de 90. Vargas Llosa: alguns casos latino-a americanos O Peru – Em 1987, frente às medidas políticas do governo aprista de Alan García Peres, Vargas Llosa se perfila como líder político, encabeçando os protestos oposicionistas. Dá início assim à sua carreira política e se apresenta como candidato à presidência do Peru em 1990. Não obstante a derrota nas urnas, é a partir deste momento que decide utilizar-se, de forma sistemática, da sua verve jornalística para

Mario Vargas Llosa: escritor, jornalista e militante político

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ESPECIAL combater o que ele considera como “idéias entraves”, quer dizer, valores equivocados que estariam impregnados culturalmente e que serviriam somente como instrumentos de manipulação ideológica. Em artigo publicado após todos esses acontecimentos, Vargas Llosa traça um painel da recente história política peruana, com a finalidade de enumerar erros e acertos de seus opositores. Em relação ao populista Alan García, Vargas Llosa mantém a visão de que o ex-presidente (agora no cargo novamente) foi o principal culpado, junto aos movimentos terroristas Sendero Luminoso e Túpac Amaru, pelo desmoronamento da democracia peruana. “O país parecia estar se desintegrando”, com essas palavras o intelectual peruano se referia à hiperinflação, à queda vertiginosa dos salários, ao desaparecimento da poupança e de todas as outras formas de investimento, à quarentena do país pela comunidade financeira internacional, às múltiplas falências e ao dinossauro em que havia se transformado todo o setor público, “ineficiente e corrompido”, que queimava todos os re-

cursos estatais. Recentemente, nas últimas eleições, surpreendeu a todos o fato de Vargas Llosa apoiar García contra o nacionalista Ollanta Humala, com a ressalva de que se trata de uma opção pelo menor entre dois males. Já durante o governo do seu maior adversário político, Alberto Fujimori, Vargas Llosa admite uma certa modernização do país, no sentido de uma maior integração às regras do capitalismo internacional. Apesar de todos os indicativos de progresso, as políticas de Fujimori não significaram, no entender de Vargas Llosa, um caminho seguro num processo de desenvolvimento sustentável, equivalente, por exemplo, ao do Chile. Ainda admitindo que os avanços econômicos foram sensíveis, Vargas Llosa mostrou um total repúdio à natureza autoritária e prepotente, baseada na força militar, do Governo Fujimori: “Se o congresso é uma farsa, o poder judiciário é uma instituição desvalida e maltratada que perdeu boa parte de suas atribuições diante do onipotente foro militar e em cujos tribunais (secretos, intangíveis e mascarados) se distribui a verdadeira justiça”. Neste caso, Mario Vargas Llosa reafirmou sua crença na idéia de que o importante é que com a economia cresçam também “a liberdade, a proteção aos direitos humanos, a soberania individual, as oportunidades de trabalho, assim como a proteção jurídica”.

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Fidel Castro (acima) é o modelo de líder político para os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales Continente setembro 2006

A Venezuela – Um dos alvos mais freqüentes das diatribes jornalísticas de Vargas Llosa é o líder populista venezuelano Hugo Chávez: “sua política, ainda que perversa e inimiga do progresso e da modernidade, tem uma lógica firme e uma tradição muito sólida, na América Latina, em particular, e em todo o Terceiro Mundo, em geral. Chama-se populismo e é, há muito tempo, a maior fonte de subdesenvolvimento e empobrecimento para a humanidade; e, ainda, o obstáculo maior para a constituição de sistemas democráticos sãos e eficientes nos países pobres”. Em nome da “justiça social” e contra o “imperialismo norte-americano”, Chávez empreendeu expropriações de terras, reservou ao Estado 51% das sociedades mistas e instituiu um centralismo asfixiante e uma planificação burocrática do sistema produtivo do país; transformou as empresas


ESPECIAL Reprodução

privadas e o mercado em bodes expiatórios de todos os problemas. Cuba e seu ditador são, obviamente, o modelo de excelência para Hugo Chávez, que se considera um discípulo e um “continuador”, na América Latina, da “obra” de Fidel Castro. É indiscutível que a democracia que existia na Venezuela antes de Chávez padecia de sérios problemas. E o que aconteceu depois foi fatídico, mas não foi novidade nenhuma para quem conhece a história política da América Latina. “Decepcionados com uma democracia incapaz de satisfazer as suas expectativas e que às vezes piora sua qualidade de vida, amplos setores da sociedade voltam os olhos para um demagógico ‘homem forte’, que aproveita essa oportunidade para ficar com todo o poder e instalar um regime autoritário.” O que torna a Venezuela um caso diferenciado na América Latina são suas reservas petrolíferas. À época do presidente Carlos Andrés Pérez, o Governo venezuelano contava com 85 bilhões de dólares provenientes do alto preço do petróleo no mercado internacional. Todo esse potencial foi desperdiçado graças ao centralismo e ao intervencionismo estatal. A corrupção, em primeiro lugar, inevitável num estado de ingentes proporções e a nacionalização, na qual “o caminho pra o êxito econômico não passava pelo mercado – os consumidores –, mas pelas mordomias, privilégios e monopólios”, acabaram por minar a sustentação democrática do país. Os subsídios a alguns bens de consumo eram o reflexo mais claro do populismo: até mesmo a água era subsidiada, e a gasolina era a mais barata do mundo – o preço ao consumidor ficava abaixo do custo de levá-las aos postos. A Venezuela se converteu, em um ano, no maior importador mundial de uísque escocês. Quando o preço do petróleo caiu vertiginosamente, os efeitos foram imediatos: o governo foi forçado a liberar os preços, e a inflação chegou a níveis estratosféricos. O povo, aturdido, não sabia o que fazer. Houve um princípio de caos social, inclusive com saques em massa a supermercados. Foi o momento ideal para o aparecimento de um “salvador” – o tenente-coronel Hugo Chávez, com o discurso de que o mal do país estava nos corruptos partidos políticos que deveriam ser suprimidos. Para completar, elaborou uma Constituição que lhe outorgava

Hugo Chávez prega que é possível conciliar uma economia ao mesmo tempo “planejada” e “de mercado”

amplos poderes e que lhe tirava da frente os obstáculos institucionais: “A nova Constituição é um emaranhado que reflete a confusão ideológica de que o comandante Chávez faz gala em suas aplaudidas pregações: a economia será “planejada” e “de mercado”, serão considerados traidores os empresários que não reinvistam seus lucros no solo pátrio. Fica 'proibida a usura e o aumento indevido de preços' (...). Por que razão esta meticulosa Constituição não proíbe também a pobreza, a doença, a masturbação e a melancolia?" O Chile – O caso chileno é o contraponto aos dois anteriores e aos demais países latino-americanos. O fato de ter obtido um grande êxito econômico durante uma ditadura militar faz com que Vargas Llosa trate o caso chileno com cuidado e muitas advertências: “Uma ditadura não é nunca, em nenhum caso, justificável”. A ampla rede de privatizações bem realizadas (inclusive, e principalmente, a previdenciária) colocou o Chile num caminho sustentável de desenvolvimento. Com o fim da ditadura, a economia não perdeu o rumo e vem Continente setembro 2006

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ESPECIAL mantendo algumas diretrizes (com maior ou menor ênfase): implementação de uma disciplina fiscal rígida por parte do Estado; reorientação dos gastos públicos para os programas sociais; reforma tributária visando à simplificação da estrutura de arrecadação; liberalização do mercado financeiro, com o fim dos empréstimos a taxas subsidiadas a setores e empresas específicos; taxas de câmbio unificadas e competitivas; liberalização do comércio, reduzindo o grau de proteção e extinguindo as reservas de mercado; abertura para o financiamento externo direto; política consistente de privatizações de empresas públicas; e desregulamentação para estimular a abertura de novos negócios. É evidente que essas foram somente diretrizes, com níveis diferentes de implementação e sucesso. Apesar de tudo, para Vargas Llosa, o valor democrático não pode ser separado dos valores de liberdade e, portanto, a ditadura chilena não deve ser tomada como exemplo, pois, como toda ditadura, a de Pinochet recorria à força e à violação dos direitos humanos para submeter seus opositores. Em relação a esse ponto, Vargas Llosa faz uma comparação inevitável entre Fidel Castro e o ex-ditador chileno: “Qualquer pessoa medianamente informada sabe que, ainda que de distintos signos ideológicos, ambos os personagens são responsáveis por indizíveis abusos contra os mais elementares direitos humanos, o que deveria traduzir-se em uma idêntica condenação por parte da comunidade internacional democrática”. O Brasil – É verdade que grande parte da intelectualidade politicamente correta da América-Latina continua achando que a palavra “liberal” está carregada de más intenções e impregnada de interesses escusos. Mas também é correto dizer que já há algum tempo idéias e atitudes basicamente liberais começaram também a contaminar tanto a direita como a esquerda, no “Continente das Ilusões Perdidas”. Sobre o recente quadro político brasileiro, Vargas Llosa

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"Na América Latina os corruptos devem ser mais castigados" O escritor peruano Mario Vargas LLosa está convencido de que o movimento populista, "promovido por Hugo Chávez com enxurradas de petrodólares", não irá muito longe Entrevista a Ramón Almánzar, para Listín Diario, Santo Domingo (República Dominicana) Continente setembro 2006

Por que o populismo está ganhando força na América Latina? Isso atesta o fracasso das democracias nesses países? É verdade que a democracia tem sido ineficiente em muitos lugares. A razão é que as reformas feitas foram incompletas ou foram socavadas pela corrupção. Mas onde as reformas foram realizadas de forma autêntica, genuína, os resultados se mostraram ótimos. O caso de Chile deveria ser mais lembrado. Ali essas reformas deram certo, a democracia está funcionando, o país está progredindo em todos os sentidos. O Chile é uma prova clara de que a democracia pode ser o marco para criar melhores condições de vida, mais oportunidades para os cidadãos. O grande problema hoje é que todos esses movimentos, radicais, antidemocráticos, autoritários têm, graças ao comandante Hugo Chávez, um grande promotor.


ESPECIAL

Cena do filme Salvador Allende, que conta a história do socialista deposto pelo general Pinochet

Será um fenômeno duradouro? Os casos populistas, antidemocráticos, são a exceção à regra. Parece-me muito difícil que possa prevalecer o sistema que Hugo Chávez promove – um sistema tão absolutamente anacrônico, tão em contradição com o que é a modernidade, com o que é o progresso. Creio que é uma anomalia que não deve durar mais do que dure a bonança excepcional que a Venezuela tem neste momento graças ao preço do petróleo.

acha evidente que Lula e sua equipe não tomam (e muito menos denominam) suas diretrizes econômicas como “liberais”, mas o fato é que essas são medidas já preconizadas há muitos anos, por exemplo, pelo consenso de Washington ou pelo Fundo Monetário Internacional, tendo sido largamente implementadas nos países desenvolvidos já há décadas. Não é o caso de reconhecer o Brasil como um país autenticamente liberal, e muito menos neoliberal – para tanto seria necessária uma diminuição drástica do intervencionismo estatal, do estado empresarial, da carga tributária e, principalmente, seria primordial a existência de uma legenda partidária realmente comprometida com a filosofia liberal. A perspectiva de Mario Vargas Llosa sobre o futuro da América Latina é bastante otimista: o fato da Esquerda começar a adotar de forma abrangente no Continente uma série de diretrizes de cunho liberal – ainda que disfarçando com uma retórica de negação –, é sinal, para o intelectual peruano, de que houve um amadurecimento político, como o que aconteceu na Europa. Outro dado importante é que também a direita latino-americana, em alguns países, parece ter amadurecido – trata-se do aparecimento de uma direita “civilizada” que já não pensa que a solução para todos os problemas nacionais seja transformar o governo em um quartel e que compreende a importância de fazer funcionar as instituições democráticas. •

corruptos continuam enchendo os bolsos. É fundamental em um sistema democrático o poder judicial. É a instituição-chave na democracia.

Por que é tão difícil distribuir a riqueza mais eqüitativamente na América Latina? É um problema de estrutura que põe uma parcela muito grande da população totalmente fora do que é a economia moderna. Não há sistema de educação, por exemplo, que permita aos que estão mais abaixo na pirâmide ter oportunidades de melhorar sua sorte, Já se falou que a corrupção é um mal cultural dos que lhes permita competir por vagas no mercado. A latino-aamericanos... frustração dessa gente gera um rechaço ao sistema Não, os outros têm um sistema muito mais difícil democrático, que acaba servindo como arma ao disde roubar sem serem castigados. Aqui se rouba muito curso demagógico. Por isso essas reformas são imporporque no fim não acontece nada e os políticos tantes. • Continente setembro 2006

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ESPECIAL

EDUARDO SUBIRATS

“A igualdade não é o nosso problema” Entrevista a Fábio Lucas

O espanhol Eduardo Subirats é autor de uma série de ensaios sobre teoria da cultura, crítica do colonialismo, estética das vanguardas e filosofia moderna. Entre outros: Da Vanguarda ao Pósmoderno (Sâo Paulo, 1984); Los Malos Días Pasarán (Caracas, 1992); El Continente Vacío (México, 1995), Linterna Mágica (Madrid, 1997), Culturas Virtuales (México, 2001), Una Última Visión del Paraíso (São Paulo, 2001; México 2004), y Memoria y Exilio (Madrid 2003). Seu último título publicado foi Violencia y Civilización (Madrid, 2005). Subirats foi professor de Filosofia, Estética, Arquitetura, Literatura e Teoria da Cultura nas universidades de São Paulo, Caracas, Madri, México e Princeton; atualmente está na New York University. Até que ponto os países latino-aamericanos são vítimas da exploração do “capital internacional”, e até que ponto são responsáveis por seu próprio destino? Em primeiro lugar, o que historicamente distingue a América, todas as Américas, é um poder colonial genocida e o cristianismo como sua cabeça espiritual. Claro, há uma fundamental diferença entre a América do Norte e a do Sul, que é a distinção entre o feudalismo contra-reformista ibérico e a Europa reformista e ilustrada. Esta diferença é a que configura as idiossincrasias “latinas”, e as distingue do imperialismo protestante e ilustrado. Mas esse é um contexto histórico distante. Como traduzi-llo para a sociedade moderna? O que define essa “modernidade” filosófica e politicamente é a Ilustração e a Revolução, no sentido mais amplo da palavra, no sentido em que Maimonides é um “ilustrado”, e o é Bacon, mas também o é Marx e Freud. E são revoluções modernas tanto a Independência norte-americana quanto a Revolução Soviética. Esta simples definição é a chave da segunda grande diferença que separa as culturas ibéricas e ibero-americanas do mundo anglo-saxão. Nas culturas ibero-americanas nem houve reforma humanista do pensamento, nem filosofias ilustradas, nem tampouco revoluções modernas triunfantes. O “capital internacional” é responsável pelas misérias que sofremos? Claro que é responsável. Veja o escândalo da Repsol: seus agentes corporativos roubavam o gás da Bolívia da mesma maneira que seus avôs roubavam o ouro. A destruição das economias locais no México, sob o peso das corporações a que Fox deu sinal verde, obedece ao mesmo princípio colonial que foi utilizado por Pizarro, quando destruiu os sistemas de irrigação dos Incas para obrigar aos Continente setembro 2006


Arquivo Continente

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Bolívar e Fidel Castro reproduziram as mesmas estruturas autoritárias herdadas do colonialismo ibérico

camponeses a trabalhar para o seu interesse. Isto é o co- às sucessivas manifestações de milhões de mexicanos lonialismo de ontem e o de hoje, sem o qual não se pode contra a fraude nas urnas levada a cabo por uma ultraentender nada do que acontece ao Sul do Rio Bravo. direita extremamente corrupta. Esta crítica à lógica da colonização, eu estabeleço no meu A utopia revolucionária exerce influência sobre o polivro El Continente Vacío (O Continente Vazio). pulismo que, dizem, ressurge no continente? A desigualdade é um fator determinante para a deCreio que sim: ali onde as revoluções sociais latinobilidade do sentimento de identidade entre os povos la- americanas chegaram ao poder, o caso de Bolívar, no sétino-aamericanos – apesar dos mitos comuns de resistên- culo 19, e o de Castro, no século 20, são os grandes paracia, libertação e autonomia? digmas, mas acabaram por reproduzir as mesmas estruA igualdade era o lema revolucionário da Marselhesa turas autoritárias herdadas do colonialismo ibérico. Duas e da Internacional. Não é nosso problema. Nosso proble- são as principais razões para esta regressão. Uma, a auma foi definido muito bem por um dos grandes huma- sência de uma sociedade civil democraticamente artinistas latino-americanos do século 20: Josué de Castro. culada – as sociedades latino-americanas estão dividas Entre seus maravilhosos livros, há um que recomendo: etnicamente, economicamente e socialmente. O segundo Geopolítica da Fome. Dezenas de milhões de humanos na motivo é que essas revoluções anticoloniais foram sempre América Latina mal sobrevivem hoje sob este destino feitas com o apoio militar do imperialismo anglo-saxão, politicamente programado. O neocolonialismo dos ban- que escolhia seus líderes, como recorda Eduardo Gacos mundiais, que negam e disfarçam este problema, é leano em sua magnífica obra, As Veias Abertas da América genocida. E a política cultural das universidades globais, Latina. que o ignoram, é cúmplice deste genocídio. O desenvolvimento que não chega é outra marca em Podemos dizer que a tradição latino-aamericana é: es- nosso imaginário? tado forte, capitalismo fraco e democracia instável? A doutrina do progresso, logo suplantada pela do Não. É um estado subalterno e dependente, um capi- desenvolvimento, é apenas a metáfora neocolonial da talismo fundamentalmente colonial e uma persistente re- promessa do reino dos céus com a qual já se havia colosistência social contra a fome e o autoritarismo político – nizado a alma e o corpo dos habitantes históricos da das “Diretas Já”, que puseram fim à ditadura no Brasil, América Latina. • Continente setembro 2006


ESPECIAL

Rumo à integração O pensador Noam Chomsky observa com otimismo os últimos acontecimentos políticos na América Latina Guilherme Moura Rocha

“O que está acontecendo é algo totalmente novo na história do hemisfério” propõe Noam Chomsky, lingüista aclamado pelo New York Times como o mais importante intelectual da atualidade. “Desde a colonização européia que os países latino-americanos estão isolados um dos outros, sempre sendo administrados para o benefício da força imperial. Pela primeira vez na história a América Latina está atingindo um grau de independência e de integração.” A desigualdade social na América Latina sempre foi evidente. Desde as grandes conquistas que há uma pequena elite politicamente ativa de um lado e uma grande maioria pobre e marginalizada do processo político-decisório do outro. Sempre fomos colônias exportadoras de matérias-primas. As elites sempre foram voltadas para o poder colonial. Era para lá que enviavam o capital. Era lá onde tinham suas segundas casas. Era para lá que mandavam seus filhos para estudar. Todo o sistema de transporte tinha por fim atender o objetivo básico da exportação de recursos naturais. A integração interna da América Latina era quase inexistente e isso aparenta estar finalmente mudando. A aproximação entre a Venezuela, Cuba e Bolívia não deixa de ser uma forma de integração. O Mercosul é outro. Espera-se que a entrada recente da Venezuela no Mercosul possa constituir uma nova era para o bloco comercial. Pela primeira vez a população indígena está politicamente ativa. O líder cocalero Evo Morales foi eleito presidente na Bolívia. Há também uma significante parcela da população do Equador e do Peru lutando por uma nação indígena. Até os anos 80, os EUA podiam agir com mais desenvoltura para prevenir “desenvolvimentos indesejados” na América Latina, muitas vezes pela violência; apoiavam golpes militares ou mesmo invadiam nações. Atualmente, dois significativos mecanismos de controle da América Latina, a ameaça militar e a estrangulamento econômico, estão enfraquecendo. O último ato de violência foi em abril de 2002, quando, “em nome da democracia”, os EUA apoiaram um golpe militar para derrubar o governo eleito da Venezuela. Após se encontrar com os conspiradores do golpe diversas vezes em Washington os EUA (a administração do presidente George Bush) foram o primeiro e único país do hemisfério a reconhecer os golpistas encabeçados por Pedro Carmona, presidente da associação empresarial da Venezuela. Hugo Chavéz voltou ao poder em menos de 48 horas, graças Divulgação

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Noam Chomsky acredita que aderir às regras neoliberais leva os países ao fracasso econômico

a uma numerosa e barulhenta manifestação popular aliada a uma parcela dos militares, especialmente jovens oficiais. Para Chomsky, os países da América Latina não reconheceram nem apoiaram os golpistas na Venezuela porque, “justificavelmente, eles não têm mais interesse em ter seus governos eleitos postos abaixo por militares”. Noam Chomsky argumenta que tudo isso não impede que os EUA continuem a pautar sua política por métodos agressivos. Na América Latina, o número de bases militares americanas aumentou. A cada ano, a presença de soldados americanos cresce na região e o treinamento de oficiais latino-americanos é cada vez mais comum. A opção militar não foi de maneira alguma abandonada, mas não é tão óbvia como era antes. O estrangulamento econômico também está mais difícil de ser aplicado, sobretudo nos países com maior potencial econômico. O caso mais interessante foi provavelmente o da Argentina. A Argentina foi o ícone do FMI e com base nas suas imposições terminou como um dos piores desastres econômicos da História. Após o colapso, e violando as regras do Fundo, rompeu com a instituição e tem tido um bom nível de crescimento desde então. A Bolívia provavelmente o

fará também. Este país passou 25 anos seguindo rigorosamente as políticas do FMI. A renda per capita é agora menor do que 25 anos atrás. A lista de fracassos econômicos do FMI é extensa. Por exemplo: seguindo as “assistências” estruturais do FMI, o continente africano teve sua renda per capita reduzida em 23%. Apenas um país se safou do desastre: Botswana. Seu segredo? Mandar o FMI passear. É importante salientar que, nos últimos 25 anos, os países que aderiram às políticas neoliberais do FMI praticamente não tiveram desenvolvimento, enquanto países que ignoravam essas regras cresceram e se desenvolveram. Os países do leste asiático são bons exemplos disso. O caso mais dúbio é o do Chile, país de maior desenvolvimento na América do Sul, contestavelmente associado ao êxito neoliberal de livre mercado, pois é imprescindível levar em consideração o fato de o maior exportador do país ser uma empresa estatal de extração de cobre, nacionalizada por Salvador Allende. Chomsky diz que correlações como essas não são comuns na economia e afirma que “aderir às regras neoliberais tem sido associado ao fracasso econômico e sua violação associada ao sucesso”. • Continente setembro 2006


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MÚSICA

Fotos: Vânia Toledo/ Divulgação

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Maldito, uma vírgula! Três anos após sua morte, o compositor paulista Itamar Assumpção é alvo de um livro que deixa bem claro como sua música segue fundamental para o Brasil, mesmo que ainda pouco conhecida

Itamar Assumpção, em 2003, pouco antes de sua morte no mesmo ano, aos 53 anos

Dafne Correia


MÚSICA

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oi difícil de acreditar. Surpreendente também. Mas no final de 2005 uma música do compositor paulista Itamar Assumpção, o “maldito”, entrou com destaque na trilha sonora da novela Belíssima de Sílvio de Abreu, um dos maiores sucessos do horário nobre da TV Globo. “Dor Elegante”, parceria com o poeta curitibano Paulo Leminski, surgiu para o grande público pela voz de Zélia Duncan, uma das mais ardentes divulgadoras da obra de Itamar, e certamente a com maior entrada no mundo das TVs e rádios. Só que, ironia do destino, Itamar não estava aqui para ver. Morto por um câncer em 2003, aos 53 anos, Itamar fez de sua vida música e também fez música em vida, música popular brasileira, mas não foi reconhecido como deveria. No entanto, seu rock de breque , como gosta de definir o parceiro Luiz Tatit (ex-Rumo), ganhou o reforço de um livro em dois volumes intitulado Pretobrás – Por Que Eu Não Pensei Nisso Antes? O Livro de Canções e Histórias de Itamar Assumpção (Ediouro, 2006). Organizado por Luiz Chagas, também guitarrista de Itamar em muitas ocasiões, e Mônica Tarantino como um misto de songbook, biografia, coleção de depoimentos e galeria de imagens, os dois livros põem os pingos nos “is” de uma carreira dolorosamente independente e radicalmente brasileira, além de revelar um vasto cancioneiro que é muito maior que seus oito discos. O lançamento dos livros, em julho, no Itaú Cultural de São Paulo, teve como apoio uma exposição de objetos, vídeos e músicas de Itamar, com destaque para uma letra inédita (“Maldito vírgula”). Itamar Assumpção nasceu em 1949 na cidade paulista de Tietê e depois se mudou para as paranaenses Arapongas e Londrina, onde conheceu os irmãos Arrigo e Paulo Barnabé. A chegada em São Paulo, cidade que lhe deu régua e compasso, aconteceu em 1973, quando já tinha descartado as profissões de jogador de futebol e ator. A estréia em palcos paulistanos só foi acontecer em 1978 para, três anos depois, Itamar lançar seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, Eu, onde despontaram as músicas “Fico Louco” e “Nego Dito”. Neste seu primeiro trabalho, Itamar já mostrou traços que carregaria e refinaria em todas suas composições posteriores: a expansão do “eu” dentro da canção, isto é, suas músicas comportam uma imensa variedade de falas, vozes e línguas, muitas vezes sobrepostas; uma inquietação constante com a música e a cultura brasileira; a ironia afiada como navalha; o lirismo pulsante e uma mistura pessoal do rock de Jimi Hendrix, do atonalismo de Arrigo Barnabé e da tradição musical popular negra de figuras como Ataulfo Alves (homenageado em Ataulfo Alves por Itamar Assumpção –

Fotos: Jo

rge Éder

/ Prensa

Três/Div

ulgação

Paulo Leminski, parcerias e amizade com Itamar

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Fotos: Mila Maluhy/Divulgação

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Nos camarins do SESC Pompéia, reunião de cantoras que dão voz às canções de Itamar

Pra Sempre Agora, de 1995), Clementina de Jesus e Milton Nascimento. Sempre com alguma dificuldade, os discos de Itamar foram se sucedendo. Vieram Às Próprias Custas S/A (1982), Sampa Midnight – Isso Não Vai Ficar Assim (1985) e Intercontinental! Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!! (1988), todos envoltos pela busca de uma moderna canção popular brasileira, em faixas como “Batuque”, “Prezadíssimos Ouvintes”, “Navalha na Liga”, “Sutil”, “Maremoto” e “Zé Pelintra”. Na virada da década de 80 para 90, Itamar deixou de lado sua fiel Banda Isca de Polícia para reunir – e tutelar, afinal era personalidade forte que exigia dedicação total de seus músicos à sua música – uma banda exclusivamente feminina, a Orquídeas do Brasil. Surgiu assim Bicho de 7 Cabeças (1993) com 33 músicas em três LPs e, para muitos, o auge de seu refinamento como compositor, afinal foram nestes discos que surgiram canções como “Milágrimas”, “Noite Torta”, “Vê se me Esquece” e “Vou Tirar Você do Dicionário”. Cinco anos depois apareceu um disco que seria o primeiro de uma nova trilogia, Pretobrás – Por Que Eu Não Pensei Nisso Antes, e uma nova série de canções fortes como “Cultura Lira Paulistana”, “Vida de Artista”, “Dor Elegante” e “Abobrinhas Não”. Mas, em Continente setembro 2006

2000, apareceu-lhe um câncer no intestino. Itamar seguiu fazendo shows, um sempre diferente do outro, as músicas sempre novas. Entrou ainda outra vez em estúdio, ao lado de Naná Vasconcelos, mas o disco Isso Vai Dar Repercussão(2004) só saiu um ano após sua morte. Itamar Assumpção foi ídolo de poucos. Um marginal sem opção de fuga. Quando aparecia em jornal, tinha que carregar o fardo de ser “maldito”. TV? Só em suas próprias músicas. O compositor de vez em quando tocava em rádios, invariavelmente por vozes femininas. Vozes de Ná Ozzetti, Ney Matogrosso, Cássia Eller, Mônica Salmaso, Ceumar, Rita Lee e Virginia Rosa, além de Zélia Duncan. Mas Itamar também foi cantado por Alzira Espíndola, Jards Macalé, Branca di Neve, Suzana Salles, a irmã Denise Assunção e muitos outros e outras. Seu legado musical também pode ser visto em ação no trabalho da banda paulistana Dona Zica. Tendo como integrante sua filha mais nova, Anelis Assumpção, a banda jogou Itamar em mais um liquidificador de vozes, ritmos, poesias e referências das mais diversas. Estas e outras vozes continuarão perpetuando Itamar Assumpção rumo ao futuro. Talvez ele esteja lá esperando. Talvez já esteja noutra. •


MÚSICA

Mensageira da cultura pernambucana Cylene Araújo, a cantora das 50 horas de forró, mostra o folclore nordestino na Europa e completa 25 anos de carreira Diego Dubard

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evar manifestações da cultura popular nordestina, em especial pernambucana, para outros lugares no Brasil e no mundo. Esta é a missão que a cantora, compositora, dançarina, produtora de eventos e pesquisadora em cultura Cylene Araújo tomou para si em seu projeto Pernambuco de todos os ritmos, um seminário performático que se propõe a apresentar parte da cultura nordestina. Dividido em dois focos, o seminário conta com uma visão da história e contextualização dos ritmos e uma demonstração musical que inclui caracterização de cada uma das manifestações com figurinos tradicionais. Durante a performance a palestrante-cantora mostra o forró, o xote, o xaxado, o coco de roda, a ciranda, o frevo e o maracatu. A iniciativa da apresentação partiu da própria Cylene, que juntou em duas malas os sete figurinos, viajou para Portugal e ofereceu o seminário às universidades em Lisboa e Leiria. A escolha de nossos descobridores para serem os primeiros a receber o espetáculo se

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MÚSICA

deu pela herança e influência da cultura européia em várias das nossas manifestações folclóricas, resquícios da colonização e como um dos pilares da construção de nossa identidade cultural; pelas facilidades da língua; e por ser a porta de entrada da Europa. Com 25 anos de carreira na música, Cylene Araújo ficou conhecida como “a cantora das cinqüenta horas de Forró” após entrar para o livro dos recordes em 2000, quando em uma apresentação em São Paulo apresentou um repertório com mais de 600 canções. Pernambucana de Vertentes, iniciou a vida artística ainda criança como jurada mirim no programa Catavento, da TV Jornal, no Recife, e meses assumiu o papel apresentadora no mesmo programa. Em 1981, gravou um compacto simples que vendeu 50 mil cópias e deu início a uma discografia que conta com 16 trabalhos, o último comemorativo do jubileu de prata da carreira. Além da música popular, Cylene envereda pelas letras e Ritmos pernambucanos viram história infantil na produção de evennos traços da portuguesa Ana Vale tos artístico-culturais. Conta com quatro livros publicados, o primeiro chamado Loba Solitária, publicado em 1992, reúne poesia e contos. O mais recente, Dona Duda, a Primeira Cirandeira do Brasil, é uma biografia que busca resgatar a memória e a tradição da ciranda em Pernambuco, sua formação e importância na cultura do Estado. Produziu o show de 50 anos de carreira de Chiquinha Gonzaga, o Encontro Nordestino de Sanfoneiros no Recife e participou do projeto do Centenário de Nelson Ferreira. Uma múltipla artista que representa o folclore pernambucano e acredita na mudança através da cultura. Tem projetos para retornar à Europa com o seminário performático Pernambuco de todos os ritmos ainda em 2006, para continuar a divulgar Pernambuco, o Nordeste e o Brasil. • Continente setembro 2006

Com 25 anos de carreira na música, Cylene Araújo ficou conhecida como “a cantora das cinqüenta horas de Forró” após entrar para o livro dos recordes em 2000, quando em uma apresentação em São Paulo apresentou um repertório com mais de seiscentas canções

Cylene em traje de maracatu rural, um dos destaques do espetáculo Pernambuco de Todos os Ritmos


AGENDA/MÚSICA Mozarteando A Azul Music lança em boa hora – no ano em que se comemora em todo o mundo o 250º aniversário do nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart – o terceiro CD da série de sonatas do compositor, empreendida pela pianista Clara Sverner. Neste volume estão as Sonatas 310, 311, 330 e 331, suficientes para dar uma cabal demonstração da perfeita junção entre a genialidade do mestre indomável de Salzburgo e a competente versatilidade da intérprete brasileira. Da quase brincadeira do alegre fraseado musical do primeiro movimento da Sonata 311 à abissal melancolia do “Andante Cantabile com Espressione”, da 310, Clara passeia com absoluta desenvoltura pelas larguíssimas fronteiras mozartianas, tão eficazmente quanto nas suas conhecidas incursões ao chorinho. Mozart – volume 3, Clara Sverner, Azul Music, preço médio R$ 15,00.

Inteligência e sensibilidade

Anterior ao mangue beat e persistindo depois dele, há um pequeno grupo de cantores pernambucanos que pode ser reunido sob uma mesma característica: a fidelidade a uma MPB atemporal e elegante. São eles Geraldo Maia, Gonzaga Leal e, agora com novo CD nas lojas, Henrique Macedo. Em Por Nada, Macedo (que assina todas as composições em parceria com o letrista Paulo Marcondes) consegue o que Aristides Guimarães, outro talentoso músico conseguiu em disco recente: ser sofisticado com o mínimo de recursos. Da canção lenta em tom romântico ao ritmo trepidante em clave sarcástica, Henrique desfila impávido, com sua voz afinada e de timbre agradável, acompanhado por músicos excelentes. Disco imperdível para quem acha que música deve conter em doses iguais inteligência, competência técnica e sensibilidade. (MP)

Parcerias O percussionista Joaquim Abreu se juntou à soprano Andrea Kaiser e ao clarinetista Paulo Passos para lançar dois álbuns com repertório erudito contemporâneo: Materiales e Joaquim Abreu & Paulo Passos. Os CDs fazem parte do projeto Música Contemporânea Brasileira para Clarinete, Percussão e Canto, e conta com o patrocínio da Petrobras através do Prêmio Petrobras de Música. Materiales é dedicado a obras nacionais, compostas nas décadas de 70 e 80 para soprano e grupo de percussão. A maioria delas foi escrita no início dos anos 80 para o Grupo Percussão Agora, um dos homenageados. Andrea Kaiser e Joaquim Abreu convidaram percussionistas de grande renome para a parceria, como Elisabeth Del Grande, Ricardo Righini, Ricardo Bologna e Nelson Carneiro. O CD contém obras de Willy Corrêa de Oliveira, Jaceguay Lins, Almeida Prado e Ernst Widmer. Já o CD Joaquim Abreu & Paulo Passos conta com composições brasileiras especialmente compostas para clarinetes e percussão. Os compositores são L. C. Csekö, Roberto Victorio, Paulo C. Chagas e Flo Menezes. Uma nova apresentação para música erudita contemporânea que introduz novas tecnologias na música clássica. Destaque para “Jogos”, onde há um pequeno duelo entre clarinete e xilofone, “Colores”, de Flo Menezes, e um réquiem eletroacústico composto em memória do poeta Philadelpho Menezes. Joaquim Abreu & Paulo Passos e Materiales, preço médio de cada R$ 18,00.

Música Medieval no século 21

Foram mais de duas décadas de pesquisa para que Altay Veloso pudesse criar a ópera Alabê de Jerusalém. Em tempos de multiculturalismo, a obra se apresenta como um projeto ambicioso, baseado no tripé das raízes afro-judaico-cristãs, cujo enredo traz o relato de um africano (Alabê) que conviveu com Jesus Cristo. O DVD – que conta com a participação de intérpretes do porte de Ivan Lins, Sandra de Sá, Lucinha Lins, Elba Ramalho – foi filmado durante as gravações do CD duplo homônimo, em estúdio. Apesar da perceptível qualidade musical, a ausência de uma grande produção, característica de uma ópera, no que se refere às imagens, deixa o resultado final um pouco cansativo, com mais de quatro horas de duração e imagens locadas quase em sua totalidade num estúdio.

Em Na Trilha do Novo Mundo, o Grupo Carmina transita entre os séculos 12 e 16 para reavivar o som medieval, renascentista e barroco que chegaram aqui com os descobridores. Nos oito séculos anteriores ao descobrimento da América, a Península Ibérica viveu uma fase de esplendor cultural e grande tolerância religiosa: ibéricos, árabes, judeus e africanos conviviam em harmonia. Foi a música criada nesse caldeirão cultural que desembarcou no Novo Mundo. Este CD do Grupo Carmina deve ser saudado não só por sua grande qualidade musical, mas também por nos dar a oportunidade de conhecer parte da pré-história da música do Brasil. Dividido em jornadas, como um auto medieval, é um CD surpreendente, capaz de apresentar e representar várias escolas musicais, como uma das Cantigas de Santa Maria, do século 13, que sobrevive até hoje num canto de reisado brasileiro. (DD)

Alabê de Jerusalém, Avatar Produções, preço médio R$ 39,60.

Na trilha do Novo Mundo, CPC – UMES, preço médio R$ 15,00.

Por Nada, Henrique Macedo, Independente, R$ 17,00.

Alabê em DVD

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Maestro Duda é reconhecido como um dos 10 melhores arranjadores brasileiros vivos

O mestre dos arranjos Saxofonista, regente, compositor e, principalmente, arranjador aclamado, o maestro Duda receberá homenagem na próxima edição do Projeto Virtuosi Bruno Brito

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econhecido, em 1992, como um dos 10 melhores arranjadores brasileiros vivos pelo Projeto Memória Brasileira, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o maestro Duda, 70 anos, começou sua carreira de forma bem modesta no distante ano de 1945. Tinha, então, apenas 10 anos de idade e era o responsável por carregar a maleta de partituras da banda de música Saboeira pelas ruas da sua cidade natal, Goiana, na Zona da Mata Norte, a 63 km do Recife. Naquela época, em cada município do interior, era comum haver mais de uma banda e as famílias dividiam-se em torcidas. Em Goiana, havia a Saboeira e a Curica. “Nas apresentações, a Saboeira tocava uma música e a Curica tocava outra. Ninguém se retirava para não perder a batalha musical. Até havia brigas por causa da rivalidade. Era preciso desligar a iluminação pública para dispersar os músicos e o público”, revela.

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Arquivo Pessoal

Somente aos 12 anos, o garoto José Ursicino da Silva, já conhecido como Duda, apelido de família, começou a tocar de fato na Saboeira, seguindo os passos do pai e do avô. Seus primeiros instrumentos foram o saxofone e a clarineta. Além de se dedicar à atividade musical, o adolescente também passou trabalhar em uma barbearia. Enquanto não estava fazendo a barba de algum freguês, ele aproveitava para compor. Desse ócio criativo, surgiu seu primeiro frevo, batizado de “Furacão”. “Nas horas vagas, eu comecei a fazer o frevo. O regente Alberto completou a música com os outros instrumentos e inseriu no repertório da Saboeira. O nome “Furacão” veio de um filme que estava passando no cinema da cidade”, recorda. A segunda façanha dele em Goiana foi quebrar a rivalidade entre a Saboeira e a Curica, juntando os jovens músicos das duas bandas, constituindo, assim, sua primeira orquestra. “Os mais velhos tentaram impedir, mas conseguimos ensaiar no clube do Santa Cruz de Goiana e ainda fizemos uns bailes com o nome de ‘Manhã de Sol’ “. Em 1950, um dos seus companheiros da “Manhã de Sol”, Mario Mateus, veio para o Recife integrar a Jazz Band Acadêmica de Pernambuco. Assim que apareceu uma vaga de saxofonista, Duda foi convidado pelo amigo. Depois de alguma discussão familiar, aceitou o convite. E passou a morar na própria sede da Jazz Band, na rua Esmeraldina Bandeira, bairro das Graças. Dessa época, passou a conviver com músicos como o maestro Guerra Peixe. “Guerra Peixe me deu um conselho que guardo até hoje. Ele disse: – Escreva a música com a caneta e, se errar, faça o erro virar o acerto! – Deixei o lápis de lado”. Para evoluir musicalmente, Duda ouvia jazz, principalmente os trabalhos de Stan Getz e Charlie Parker, além de acompanhar a carreira de músicos brasileiros, como a do saxofonista Cipó. Aos 18 anos, Duda conquistou o segundo lugar no Festival de Música Carnavalesca da Câmara Municipal do Recife com o maracatu “Homenagem à Princesa Isabel”. Em 1960, ingressou no Curso de Música Sacra e Regência da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, onde aprendeu a tocar oboé. Dois anos depois, estava na Orquestra Sinfônica do Recife, tocando corne-inglês. O maestro Duda também conviveu com outro mestre do frevo: Nelson Ferreira,

Acima, o maestro Duda no começo da carreira. Abaixo, Nelson

Reprodução

Roberto Pereira

PERFIL

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Roberto Pereira

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diretor artístico da gravadora pernambucana Rozenblit na década de 1960. Na Rozenblit, Duda foi auxiliar de Ferreira, convocando músicos e fazendo arranjos. Apesar de inúmeras parcerias registradas em álbuns que contam uma parte da história da música brasileira, ironicamente o maestro Duda tem apenas um disco gravado com músicas de sua autoria. É o álbum Os Frevos de Duda, viabilizado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, em 2004. “Recebi R$ 23 mil. É muito pouco para fazer o disco. Os músicos tiveram que tocar de graça”, desabafa. O repertório do álbum é todo de composições dedicadas aos membros de sua família (filhos, netos e bisnetos). Todos ganham uma música ao nascer. “Ao ver a criança, fico imaginando qual é a música que é a cara dela”, explica. Em seu único disco, há 13 frevos de rua que foram compostos dessa forma. Entre frevo-canção, de bloco e de rua, o maestro Duda prefere este último estilo, que é puramente instrumental e deve ser executado por uma orquestra de metais. Com esse gênero, ele já conquistou muitos prêmios. O primeiro, em 1971, com “Quinho”, dedicado ao seu filho, no Festival da Rede Tupi. Depois, com “Marilian”, dedicado à neta, no Festival de Música Carnavalesca da Prefeitura do Recife em 1979. À espera de um novo patrocínio, o maestro Duda pretende lançar um segundo álbum, com uma amostra de sua obra erudita, marcada pela inserção de ritmos nordestinos, como a ciranda, o maracatu e o frevo. Para o repertório desse novo disco, foram escaladas as composições “Suíte Nordestina”, “Tributo a Charlie Parker”, “Suíte Brasil”, “Coletâneas”, “Suíte Pernambucana de Bolso”, “Suíte Recife”, “Música para Metais Nº 1”, “Concerto para Trompete”, “Suíte Recife” e “Suíte Monette”. A obra erudita do maestro Duda segue a linha de trabalho iniciada pelo compositor Heitor Villa-Lobos, quando este resolveu explorar os elementos indígenas, africanos e ibéricos, extraindo uma fusão original. CoinMaestro Duda, em cidentemente, ao ser indicado como um dos sua casa, melhores arranjadores vivos no Projeto Metrabalhando com as mória Brasileira, o maestro Duda teve seu


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arranjo para “Bachianas Brasileiras Nº 5”, de Villa-Lobos, gravado no álbum Arranjadores em 1992. Além desse reconhecimento, mais dois trabalhos do maestro Duda merecem destaque pela projeção nacional que obtiveram. O prêmio MPB Shell de melhor arranjo entre 60 músicas apresentadas em 1980, com o arranjo da música “Rio Capibaribe”, do Quinteto Violado. E o reconhecimento do Ministério da Educação que elegeu, como melhor espetáculo do ano de 1996, a Ópera-Boi Catirina, na qual o maestro foi diretor musical e regente entre 1994 e 1997, atendendo ao convite de Fernando Bicudo, diretor e idealizador do projeto. Em meio a uma agenda cheia de compromissos, nunca faltou tempo para ensinar o que sabe aos filhos, netos e bisnetos e a outros músicos. “Fui professor do Conservatório de Música de Pernambuco. Já regi a Orquestra Paraibana de Música Popular e dirigi, por seis anos, a Banda Sinfônica da Cidade do Recife. O que sei vou repassando nas orquestras que regi e nas que criei”. Nas aulas informais, não poderia faltar a lição sobre arranjos. “Para ser bom, deve ser criativo, ter uma boa distribuição e boa sonoridade. Isso tudo conta”. Entre os músicos que foram alunos da Orquestra do Duda, há professores de música de universidades federais e artistas consagrados como é o caso do saxofonista Spok e do cantor e compositor Lenine. O maestro, no entanto, faz uma ressalva. “Quem organizava tudo era Mida (Cremilda), minha esposa. Ela sempre se dedicou e cuidou de cada músico como se fosse um filho nosso”. No dia 25 de maio de 2005, o casal celebrou seus 40 anos de união, oficializando o casamento que educou várias gerações de músicos. Pela enorme folha de serviços prestados à música pernambucana e brasileira, o maestro Duda será o homenageado do Projeto Virtuosi que será realizado no mês de dezembro de 2006. No Teatro de Santa Isabel, onde o projeto é realizado, o público terá a oportunidade de conferir uma síntese da carreia desse magnífico músico. •

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Depoimentos sobre o Maestro Duda Rafael Garcia – Maestro e organizador do Projeto Virtuosi “As composições do Maestro Duda são de uma clareza e de uma inteligência fantástica. Seus trabalhos lembramme as obras da Escola Russa em sua tradição de incluir temas folclóricos em peças clássicas, como fez Tchaikovsky. Neste ano, o Maestro Duda vai ser o homenageado do Projeto Virtuosi” Jarbas Maciel – Violinista e Musicólogo “Duda é um grande músico, porque ele é simultaneamente muito intuitivo e criativo. Os arranjos deles são belos e transparentes. Se você for um maestro e tiver que reger um arranjo de Duda vai perceber que a música é executada de forma natural” Spok (foto) – Saxofonista “Ele é uma das minhas principais influências no que escrevo e no que faço. Toquei durante quase quatro anos na orquestra dele e foi uma grande escola para mim. Minha música preferida é o frevo “Nino, o Pernambuquinho”, que regravei no meu primeiro disco. É a terceira faixa do álbum e é uma das preferidas do público”

Hans Maunteuffel/Arquivo Continente

Antônio Carlos Nóbrega – Cantor e compositor “Considero o trabalho do Duda muito representativo para o Nordeste, especialmente para o frevo que comemora 100 anos em 2007 e Duda é um dos responsáveis por essa longevidade junto com Levino Ferreira, Clóvis Pereira, Edson Rodrigues e José Menezes. As suítes dele também são representativas, a partir da inclusão dos ritmos nordestinos nos movimentos. Para mim, tamanha é a criatividade de seus arranjos que Duda acaba se tornando um parceiro do compositor e não apenas um coadjuvante” Marlos Nobre – Maestro “Eu tenho muita consideração pelo trabalho dele como arranjador. Duda é um excelente músico. Tem amplo conhecimento da parte instrumental, da orquestração, e, sem dúvida, é um especialista do frevo” Continente setembro 2006


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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Quando não existiam livros de auto-ajuda Pensar tornou-se uma atividade enfadonha, fora de uso, coisa de velho. As pessoas preferem as fórmulas prontas de auto-ajuda

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os tempos em que eu andava de gravador a tiracolo, entrevistando quem passava na minha frente, bati certa noite na casa de um brincante popular. O homem tocava e fabricava todos os instrumentos de uma banda cabaçal: pífaro, zabumba e caixa. Minto. Ele tocava, mas não fabricava os pratos, que eu mesmo comprei no Recife, e levei de presente para ele. Apesar de tratar-se de um músico, naquela noite – era noite – iríamos conversar sobre lobisomens. Vocês acreditam que duas pessoas conversem seriamente, por horas a fio, sobre lobisomens? Pois nós conversamos, não apenas naquela noite, mas em outras, também. Há algum tempo eu me dedicava a estudar a “lobisomidade”. Isso mesmo, a psicologia das pessoas que se transformam nesse ser notívago e sofredor, cumprindo um terrível fadário. Desculpem o fadário, mas na época eu escrevia assim, meio parnasiano. Francisco Aniceto tinha mais de 60 anos, discorria sobre várias ciências, embora lesse e escrevesse as palavras com certa dificuldade. Era um homem tão sábio, que todos o chamavam de Mestre. Foi conversando com ele que compreendi pela primeira vez que a sabedoria é um dom, a capacidade de pensar uma virtude, e que ambos independem da erudição e do nível de escolaridade. Sentados em bancos de madeira de canafístula e couro de boi, os dois interlocutores se mediam, como os violeiros repentistas antes de começarem um desafio. No arroubo de minha juventude – perdoem o arroubo e o excesso de juventude –, larguei a primeira pergunta. – Mestre Chico, o senhor já viu lobisomem?

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– Ver visível eu nunca vi, não. Mas dizer que existe, existe. Porque tudo o que se diz que existe, é porque existe. Levei uma rasteira, fiquei meio zonzo com a resposta. Então, o homem além de excelente músico era um filósofo?! – Desculpe, dá para explicar melhor? – O lobisomem é uma notícia, alguém que precisa cumprir o seu tempo. O sujeito está preso a uma maldição, ou um castigo. Digamos que ele é o sétimo filho homem de uma casa, ou cometeu a infelicidade de bater na mãe, ou vestiu uma camisa com sete nós pelo avesso, e espojou-se sete vezes numa encruzilhada, da direita para a esquerda, em noite de lua cheia. E a conversa prosseguia, com alguns arrepios e sustos, quando um cachorro latia ou passava correndo ao nosso lado. – Epa! Será um lobisomem? – Hoje ele não corre. Só de quinta para sexta-feira. A mesma mitologia de gregos e romanos, transmitida pelo rio de histórias que atravessa o mundo, chega aos povos mais distantes, adapta-se às particularidades, reinventa-se. – Mestre, e como é que se desencanta um sofredor desses? – Ah, com um punhal, que é frio! A bala da arma de fogo é quente, queima o sangue e ele não jorra. O sangue tem de escorrer, senão o bicho não volta à forma de homem. O desencantador chega perto do lobisomem e olha nos olhos dele. Desse modo, corre risco de se molhar no sangue contaminado, e virar um lobisomem


ENTREMEZ

também. É a condição. Sem risco não existe desencantamento. Foi sempre assim, desde o começo dos tempos. “Desde o começo dos tempos” era a fórmula mágica que nos ligava a um passado mítico. Por meio dela o Egito ficava na outra rua, a Mesopotâmia a dois passos, e a Índia depois da curva do rio. As distâncias geográficas encolhiam, tornavam-se insignificantes no passado comum do nosso mar de histórias. Francisco Aniceto morreu sem que eu perguntasse a ele pelas mães d’água, nossas sereias. Também não perguntei pelos carneiros dourados que aparecem ao meio-dia, nas pedras do sertão. Nem por uma infinidade de encantados. Perguntarei a quem por tudo isso? Já não são muitas as pessoas que enxergam o invisível, e falam dele com simplicidade. Há um excessivo culto ao real e ao hiper-real. Na literatura, no cinema, na televisão. Tudo precisa refletir a realidade. O pai de Francisco se chamava José Aniceto, e também era músico. Uma banda formada por um pai e quatro filhos. Tocavam e dançavam em casamentos, festas de santos, quadrilhas – onde chamassem, eles chegavam. Quando José estava bem velho, pertinho de morrer, quase sem dentes na boca, deixou o pífaro e passou para a caixa, um instrumento simples. Nas festas, a família executava uma peça em que cada um fazia um solo de dança. Os mais novos giravam em piruetas, com a zabumba na cabeça e um pé para cima. Eu olhava espantado, pensando no pobre velho. No dia em que essa história aconteceu, quando chegou a vez de José Aniceto dançar, ele largou o instrumento, deitou-se de bruços no chão, e agitou os braços e as pernas, como se lutasse com alguma entidade invisível. As pessoas riam, mangando do velho. Ele nem ligava. Só eu me ofendia com a falta de respeito.

Nem curti a festa. Desejava saber que dança era aquela. E soube de madrugada, quando levava pai e filhos para casa. Seu José brigava com a morte. Velho e sem forças, ele dançava para não ser levado. Só foi isso o que me relatou. E foi tanto que nunca esqueci. Há bem pouco tempo, a Natureza ainda não tinha sido empurrada para longe de nós. Um empurrão sem volta. E existiam homens ocupados em pensar e interpretar o mundo em que viviam. Não sou saudosista, nem romântico. Mas vez por outra procuro esses homens. Eles não são muitos. Pensar tornou-se uma atividade enfadonha, fora de uso. Coisa de velho. As pessoas preferem as fórmulas prontas de auto-ajuda. Melhor parar aqui. Ou vou falar mal do meu próximo ganha-pão! • Continente setembro 2006

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Bárbara Wagner/ Divulgação

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Iane Costa, Jaflis Nascimento, Calixto Neto e Lêda Santos, em Fervo

Do frevo ao Fervo

Depois de alguns meses de pesquisa sobre o frevo e sua origem, a coreógrafa Valéria Vicente traz aos palcos do Teatro Apolo o espetáculo Fervo Mariana Oliveira

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o ano em que o frevo comemora seus 100 anos de criação, não faltam manifestações reverenciando-o. A representação clássica, intrincada no imaginário popular, é a de passistas com sombrinhas e roupas coloridas dançando freneticamente, com alegria e fervor, para os turistas que visitam o Estado. Sem denegrir a forma tradicional, mas seguindo na contramão do que geralmente é feito, a atriz e coreógrafa Valéria Vicente resolveu resgatar elementos do frevo que usualmente passam despercebidos e construir um espetáculo de dança contemporânea que alia rasgos do frevo à violência. Apesar de já ter trabalhado bastante com frevo, sempre numa perspectiva mais popular, na pesquisa “Do Frevo ao Fervo” a proposta é utilizar o frevo como uma linguagem corporal forte que possa ser utilizada na construção de um espetáculo de dança contemporânea. “O frevo é uma técnica corporal desenvolvida durante este Continente setembro 2006

século, passando por várias gerações e camadas sociais, para estruturar uma forma de se mover. Uma forma muito rica, com diversas possibilidades que faz coisas incríveis com o corpo”, argumenta Valéria. Além de fazer essa ponte, entre uma dança ligada diretamente ao popular com a dança contemporânea, o projeto foi investigar ainda uma hipótese que, pela alegria e entusiasmo que rodeia o ritmo, poderia parecer improvável: os traços de violência no frevo. O desenvolvimento dessa pesquisa culminou com o espetáculo Fervo, que estréia no dia 14 de setembro, no teatro Apolo. Depois do primeiro insight, a coreógrafa convidou bailarinos e atores todos com relações bastante distintas com o frevo. O elenco e o grupo de pesquisa é formado por Jaflis Nascimento – filho de Nascimento do Passo –, Calixto Neto, Iane Costa e Lêda Santos. Desde fevereiro, eles estão debruçados numa pesquisa profunda, que tem o espetáculo apenas como um dos seus resul-


CÊNICAS 91

Hans Maunteffel/ Divulgação

tados. O primeiro desafio foi tentar encontrar uma forma de lidar com a violência o tempo não passou. Estamos de levar os movimentos do frevo para as coreografias bastante fincados no começo do século passado. Toda a contemporâneas. Foi preciso voltar ao período do surgi- trilha e o figurino estão ligados a essa questão de que estamento do frevo e constatar a existência de um momento mos entre o passado e o presente”, explica Valéria. A trilha sonora original, composta por Silvério Pessoa histórico peculiar. O fim do sistema escravista, a Proclamação da República e a ocupação das cidades criaram – ganhador do prêmio TIM de música brasileira 2006 – e Yuri Queiroga, expressa perfeitensões que geravam violência. tamente essa sensação de mistuA pesquisa demonstra que o frera de tempos, remetendo tanto à vo foi uma expressão direta desatualidade quanto aos primeiros se estado social. O ritmo foi criaanos do século 20. Segundo do nas ruas da cidade, por caValéria, era impossível trabalhar poeiristas (marginais na época), o espetáculo sem uma orientação em seus momentos de lazer, nos musical forte. “A trilha teria que desfiles das bandas militares. Esendossar o que estava sendo dito sas manifestações, algumas vena coreografia.” Por isso, fez-se zes, acabavam em violência, no necessária a construção de uma encontro de bandas rivais. Foi trilha que pudesse representar a dessa origem vinculada a uma concepção do espetáculo, mossociedade extremamente violenta trando que o frevo não tem que que o grupo encontrou um elo, ser visto obrigatoriamente de uma maneira de falar do momaneira tradicional, coisa que o mento igualmente violento que próprio Silvério já demonstrou vivemos atualmente. no seu disco Batidas Urbanas – Através de toda essa pesquiMicróbio do Frevo. Os elementos sa teórica e prática, eles começatradicionais do frevo dialogam ram a desvelar um outro lado do com os timbres dos samplers dos frevo, sem o usual olhar folclóriValéria Vicente faz a direção coreográfica do espetáculo efeitos eletrônicos. “Eu chamaria co, tentando perceber suas características singulares, como uma técnica específica que a trilha uma desconstrução do conceito tradicional do freabre várias possibilidades para expressão do corpo. A vo, assim como a coreografia”, define Silvério. O grupo Guerreiros do Passo, que trabalha o frevo partir da identificação desses rasgos, o grupo começou a investigar os possíveis elementos violentos do frevo. Se- de uma maneira tradicional, fará a abertura do espetágundo Valéria Vicente, num primeiro momento, a busca culo, apresentando ao público, antes dessa desconstrução pareceu um pouco sem sentido, já que usualmente o que é Fervo, a referência original. Mesmo com a estréia ritmo está vinculado à alegria, ao entusiasmo, mas a do espetáculo, que recebeu o prêmio Klaus Viana, e conta retrospectiva histórica possibilitou o encontro dessa sutil com o patrocínio dos Correios, a pesquisa vai continuar relação. “Não é que o frevo seja violento. Ele tem ele- com uma atuação prática junto aos passistas, registrando mentos de violência.” Em Fervo, a alegria, a eletricidade a cena do frevo na cidade. Outro objetivo do projeto é coe a inventividade são invadidas sempre pela tensão, pelo meçar a trabalhar uma versão de Fervo para ser apresentada na rua. Ao mesmo tempo, até março do próximo medo e pela agressão. Um dos pontos mais explorados em Fervo é o caráter ano, o projeto vai gerar um outro espetáculo, dessa vez improvisador do passista, isso dentro de uma estrutura um solo da coreógrafa, premiado pelo Itaú Cultural, básica que dá forma à atuação dos bailarinos. Trata-se de chamado Pequena Subversão, que também trata do frevo, brincadeiras com o frevo que, no seu desenrolar, vão for- mas dessa vez se afastando da questão da violência, mais mando pontos de tensão entre os quatro bailarinos, ge- centrada na forma de articular o corpo. • rando situações de agressão, medo e fragilidade. O espetáculo tenta mostrar como nós ainda lidamos com a vio- Fervo. De14 a 29 de setembro, no Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife), quintas às 20h e sextas-feiras às 21h. lência da mesma maneira que acontecia há 100 anos. “A Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia). Informações: 81.3224.1114 concepção geral está ligada à idéia de que talvez na forma Continente setembro 2006


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AGENDA/CÊNICAS

Fotos: Divulgação

O Capataz de Joaquim Cardoso Companhia Fiandeiros de Teatro leva ao palco O Capataz de Salema, talvez a obra de maior cunho dramático de Joaquim Cardozo

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confronto entre o masculino e o feminino, opressor e oprimido, vida e morte, esse é o contexto dramático em que é encenado o espetáculo O Capataz de Salema, do escritor pernambucano Joaquim Cardozo e direção de André Filho. A obra foi publicada pela primeira vez em 1975 e narra a trajetória de três personagens com diferenças sociais explícitas. A cena se passa em um casebre à beira-mar, onde moram Sinhá Ricarda, uma senhora doente, e sua neta Luzia. A situação de miséria em que vivem contrasta com a de João, o Capataz, comandante dos pescadores que deseja casar com a jovem Luzia e oferecer-lhe uma vida melhor. A força dos elementos da natureza dominam, oprimem e regem o destino desses personagens. Aqui, o mar traz a morte e também a vida, alimenta e destrói sonhos, esperanças e possibilidades.

A Companhia Fiandeiros de Teatro considera a montagem dessa peça como um desafio, não só porque o texto foi escrito todo em redondilhas, mas sobretudo por ser, de toda a obra de Joaquim Cardozo, o de maior consistência dramática. O espetáculo conta com Daniela Travassos, Marinho Falcão, Manuel Carlos, Kélia Phayza, Paula Carolina e Charles Jadson no elenco e cumprirá temporada durante todo o mês de setembro e outubro, todas as sextas e sábados às 20 horas, no Teatro Joaquim Cardozo. O Capataz de Salema. Todas as sextas e sábados às 20 horas, todo o mês e setembro o outubro no Teatro Joaquim Cardozo (Rua Benfica, 157, Madalena, Recife). Informações: 81. 3227.0657 e 3226.0423

Orlando Silva por Tuca Andrada As glórias e dramas vividos por Orlando Silva, conhecido como “O cantor das multidões”, dono de timbre e afinação singulares, chegava a reunir 10 mil pessoas em suas apresentações, numa época em que televisão não existia. O artista conseguia parar cidades, onde muitas vezes era decretado até feriado para que o público pudesse vê-lo. Sua interpretação moderna encantou ídolos da época, como Francisco Alves, seu descobridor, e influenciou gerações – de João Gilberto a Caetano Veloso. A história é vivida por Tuca Andrada, ator pernambucano, que optou por não imitar Orlando Silva, preferiu reproduzir a dicção e emissão da época. Ainda assim, vem surpreendendo o público com sua transfiguração e verossimilhança física. O espetáculo, que já cumpriu duas temporadas em São Paulo e duas no Rio de Janeiro, esteve no Recife, ano passado, e volta agora encerrando a turnê. Conta com alguns dos 22 clássicos da música brasileira que imortalizaram Orlando, entre eles “Lábios que beijei”, “Nada além”, “Rosa” e “Carinhoso”. Texto de Antonio de Bonis e Fátima Valença, direção musical de Marcelo Neves, produção de Cláudia Marques, traz ainda no Continente setembro 2006

elenco Susana Ribeiro, Marcello Caridade e Marcelo Vianna. A peça ficará em cartaz nos dias 15 e 16 (sexta e sábado) de setembro, às 21h, no Teatro da UFPE e tem duração de 1h50.

Orlando Silva, O Cantor das Multidões. Teatro da UFPE, 15 e 16 de setembro às 21h, entrada (inteira) R$ 30,00. Informações: 21. 3816.2165 e 81. 3453.4344


LITERATURA

Monumento bibliográfico

Cepe lança edição fac-similar do Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco, uma raridade bibliográfica

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história e a fundação de cada lugar do ter- dos presidentes de província do Império, governadores de ritório pernambucano, a explicação de sua Estado na República e história da Diocese e Arquidenominação e notícia de sua vida evolutiva dioceses” – conforme detalha o próprio autor, informansão alguns dos aspectos desta obra verda- do, ainda, serem os volumes ilustrados “com retratos e deiramente extraordinária que é o Dicionário Corográfico, vistas diversas”. São 2.091 páginas, entre fac-símiles da edição original Histórico e Estatístico de Pernambuco, de Sebastião de Vasconcelos Galvão, recém-lançado pela CEPE – Compa- e textos introdutórios, de enorme relevância para os estunhia Editora de Pernambuco, empresa estatal responsável dos da História pernambucana. Essa iniciativa monupela publicação do Diário Oficial do Estado e da Revista mental soma-se a outras da Cepe, no sentido de reeditar Continente Multicultural. Seus quatro volumes vieram a obras de referência sobre o Estado de Pernambuco, como público nos anos de 1908, 1910, 1922 e 1927 e, desde a Coleção Restauração Pernambuco, de 2004, no marco das então, tornaram-se raridade bibliográfica, somente encon- comemorações dos 350 anos da retirada dos holandeses, trável em pouquíssimas e seletas bibliotecas, como destaca também organizada por Leonardo Dantas, incluindo as o jornalista e historiador Leonardo Dantas Silva, coorde- obras O Valeroso Lucideno v2, de Frei Manoel Calado; nador editorial desta segunda edição, de feição fac-similar, Diário de um Soldado, de Ambrósio Richshoffer, e Olinda Conquistada, do padre João Baers v1; História da Guerra onde assina uma elucidativa introdução. Além dos aspectos inicialmente mencionados, a exaus- de Pernambuco, de Diogo Lopes Santiago; Os Holandeses tiva obra de Galvão trata de uma gama vertiginosa de no Brasil, de Charles Ralph Boxer; O Domínio Colonial assuntos pernambucanos, dos filhos ilustres da terra à sig- Holandês no Brasil, de Hermann Watjen, e Fontes para a nificação dos termos indígenas em sua toponímia, da po- História do Brasil Holandês, de José Antonio Gonsalves de sição astronômica das cidades, vilas e povoações às di- Mello; e Folk-lore Pernambucano, de F.A. Pereira da Costa, mensões de seus territórios, do clima, salubridade, limites, a qual veio acompanhada de um CD-rom com a versão divisões administrativas, judiciais, eleitorais e eclesiásticas, digital dos 10 volumes dos Anaes Pernambucanos, do a natureza e o solo, os rios e serras, produção agrícola, mesmo Autor. A apresentação é do presidente da reinos da natureza, comércio, indúsDicionário Corográfico, Histórico e tria, vias de comunicação, “instrução e Estatístico de Pernambuco, Sebastião de Cepe, Marcelo Maciel, que ressalta o adiantamento moral e a história espe- Vasconcelos Galvão, reprodução fac- acurado esforço para a perfeita reprodução cial de administração dos donatários, similar da edição original, em quatro do Dicionário Corográfico, o que pode ser volumes, 2.091 páginas, R$ 200,00. comprovado pelos leitores interessados. • dos capitães generais governadores, Continente setembro 2006

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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

A língua dos famosos O interesse por frases de luminares, sejam espirituosas ou profundas, mas no geral erráticas ou piegas, é tão grande que revistas chegam a dedicar-lhes páginas inteiras

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uantas e tantas vezes nos deparamos com intelectuais resolvendo subverter a língua? Lembra o jornalista Eduardo Cruz, em matéria publicada no Suplemento Cultural da nossa Cepe Editora, que Glauber Rocha, por exemplo, andou uns tempos antes de sua morte recriando o falar e o escrever em sua inquietude verborrágica e subversiva. Outros tantíssimos o fizeram propositadamente , resultando em experiências estilísticas, ou de rebeldia bem-humorada. Se por um lado encontramos na tradição oral, ensinamentos, conjurações e frases de efeito, na literatura, primordialmente a barata (dita de rodoviária), também encontramos as salutares e oportunas frases dos famosos. O interesse por frases de luminares, sejam espirituosas ou profundas, mas no geral erráticas ou piegas, é tão grande que até revistas dadivosas de incensar as nulidades dedicam uma página inteira (pasmem) entre as dezenas de outras páginas de coloridas fotos de “fulana e seu novo namorado no aconchego de nossa ilha” para esse tipo de coletânea. A palavra dos famosos é algo que se assemelha às frases dos pára-choques ou dos ditos populares que compõem nossa tradição oral. Registrados para a posteridade, tornamse muletas de textos espirituosos e quiçá cartas de amor e abandono. Por certo, assassinas confessas escrevem muitas delas em páginas decoradas com bonequinhas hello kitty, mas isso são outras mazelas que nada têm a ver com o assassinato diário de nossa língua mater. Gostaríamos muito que a cultura fosse democratizada, o que nos pouparia de chistes e anedotas de professores e seus vestibulandos, todavia, para não perder a oportunidade, a piada e os amigos – como diria Fernando Sabino: “Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.” Estão vendo como é fácil cair na armadilha das citações? Principalmente quando se tem à mão uma de Millôr Fernandes dizendo que: “Democracia é quando eu mando

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em você, ditadura é quando você manda em mim”. E se você não concorda comigo, apenas saiba que pode estar lendo um texto que comunga das idéias de Mário de Andrade que registrava:“Escrevo sem pensar tudo o que o meu inconsciente grita. Penso depois: não só para corrigir, mas para justificar o que escrevi”. Os mineiros são craques nisso e assinam até provérbios como esse que diz: “Fevereiro tem 28 dias, é o mês em que as mulheres falam menos”. Pode ser politicamente incorreto, mas a cultura não mede moral ou temperatura. Na verdade, dizia Maurois, “cultura é o que fica depois de se esquecer tudo o que foi aprendido”. Voltando ao nosso terreiro real, estamos falando da língua do povo, ou como o nosso poeta maior Manuel Bandeira proseou, da deliciosa “língua errada do povo/ Língua certa do povo”. E foi no futebol que forjamos frases lapidares. Tivemos grandes contribuições que, mais que folclóricas, se transformaram em estigmas. Depois de muito pegarem no pé de nossos jogadores, eles passaram a ter aulas, assessoria e a se policiarem para cometerem “menos” besteiras! Evidente que isso desanimaria o saudoso Vicente Matheus, presidente do Corinthians Paulista, autor, pelo folclore, tradição oral ou traição da mídia das apoteóticas: “Quem sai na chuva é pra se queimar”, “faca de dois legumes” ou “agradecemos a Antártica por ter mandado as Brama”. Todavia o futebol, que nos frustrou com o hexa (o povo já sabe que é seis), inspirou o canarinho Jardel: “clássico é clássico e vice-versa”. Buscamos idem: a “pátria em chuteiras”, como queria Nelson Rodrigues e que dizia: “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos...” Porém, ninguém bateu a sabedoria do filósofo da bola, Neném Prancha: “O pênalti é tão importante que devia ser cobrado pelo presidente do clube”. Esses são os que falam gostoso o português do Brasil. •


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