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EDITORIAL
A fragmentação das identidades
O
mundo contemporâneo é por si só um universo de provocações e questionamentos que colocou em xeque muitos ideais e preceitos. Talvez, a identidade cultural seja um desses aspectos que entraram na pauta de maneira inevitável. A globalização, a circulação ágil de informações e o avanço da tecnologia estreitaram os vínculos, subverteram as fronteiras e criaram uma situação em que não é mais possível pensar em pureza quando se fala de cultura, mas, sim, de hibridez. Stuart Hall, em seu livro A Identidade Cultural na PósModernidade, apresenta uma suposta evolução nas concepções de identidade. A primeira a ser analisada seria a do sujeito do Iluminismo, tido como um indivíduo dotado de razão, com um centro interior que existiria desde do seu nascimento e permaneceria o mesmo ao longo do tempo. Depois, já na modernidade, estaria o sujeito sociológico, cuja identidade (núcleo interior) seria determinada pela sua relação com as outras pessoas. No mundo contemporâneo, está o sujeito pós-moderno, formado, não só por uma única identidade, mas por várias, muitas vezes contraditórias. As identidades – sejam elas de raça, classe, gênero,
etnia, nacionalidade – estão fragmentadas, as fronteiras foram diluídas e o lugar fixo de referência já não existe mais, daí a crise identitária do sujeito contemporâneo. Essa nova condição está exposta em muitos vieses da vida cultural, política e social. Na tentativa de repercutir as discussões a esse respeito, esta edição abre suas páginas para artigos que relacionam o problema identitário com outras questões não menos importantes: a perigosa aproximação entre identidade e nacionalismo, a construção dos estereótipos, os reflexos das identidades fragmentadas no cinema e na arte contemporânea. A questão de identidade também chega à música popular pernambucana. Em 1991 surgia o Movimento Mangue, que misturava música regional com os sons da vanguarda pop, numa mistura mutuamente criativa e revitalizante. Hoje, passados mais de 10 anos, uma nova tendência parece estar se impondo no que já é classificado, por uns, como a cena Pós-Mangue: uma maior autonomia de postura, através de uma música desvinculada do regionalismo, ao contrário, cosmopolita e experimental. Até que ponto tal atitude reflete a identidade pernambucana na atualidade? A discussão está aberta. • Continente outubro 2006
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CONTEÚDO Divulgação Reprodução
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O papel do silêncio no cinema
12 As identidades
culturais no mundo contemporâneo
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Paulo Lins desfaz mitos da vida de bandido
50 A inevitável relação da dança com novas tecnologias 54 Agenda Cênicas
CAPA 12 Identidade cultural: ferida do contemporâneo
ARTES
15 Quando a identidade se confunde com o nacionalismo 17 Os estereótipos femininos da brasilidade 20 O cinema periférico: identidades e diferenças 22 A arte contemporânea e a questão da identidade
56 Em livro, a obra de Corbiniano Lins 61 Catálogo mostra parte da Coleção Marcantonio Vilaça 63 Agenda Artes
LITERATURA
66 O Barroco na arte de Eduardo Araújo
24 A eterna presença de Helena de Tróia 30 O debate alemão sobre Günter Grass 34 A ficção de Vicente Franz Cecim 35 Dois poemas inéditos de Carlos Nejar 36 Agenda Livros
PERFIL
TRADIÇÕES ESPECIAL 74 Remanescentes negam fim do Movimento Mangue 78 Bandas dissonantes levantam suas bandeiras 81 Rejeição ao "ufanismo regionalista" 84 Profissionalismo é a tônica
42 Gay Talese, o criador do Novo Jornalismo
MÚSICA
CINEMA
88 A maior professora de música do século 20 92 Agenda Música
46 Filme autoral tem o silêncio como cúmplice
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CONTEÚDO
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Flávio Lamenha
As obras de Corbiniano Lins catalogadas em livro
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Cena movimentada: o francês Spleen no Festival do Coquetel Molotov
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 O arco-íris do futuro se apresenta incolor
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 38 Barroquismo de Vieira não era ornamental
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 64 Brasilidade deu a Di uma linguagem própria
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 68 Os vários modos de corte da carne bovina
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 71 Cineasta brasileiro só não sabe fazer filme
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 86 Ninguém mais enche de silêncio seu coração
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Quando Médici foi processado Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente outubro 2006
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CONVERSA
PAULO LINS
“Há muita lenda em torno da vida de bandido” Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, fala do Estácio – tema de seu novo livro –, das lendas em torno da vida de bandido e de sua experiência como roteirista de cinema Olga de Mello
P
assar em frente a um dos muitos botequins no bairro carioca do Estácio era uma aventura apavorante para o menino Paulo Lins na década de 50. Quando saía sem a companhia – e a proteção – de um adulto, atravessava correndo para a outra calçada, a fim de evitar os bares, onde, segundo sua mãe, “só tinha bandido e vagabundo”. Levou tempo até descobrir que os malandros que a mãe apontava eram Nélson Cavaquinho, Cartola e outros bambas, que ficavam nos bares conversando, bebendo e criando obras-primas da MPB. Foi no Estácio que Paulo Lins nasceu, há 48 anos. E é o Estácio, em épocas diversas, o cenário e o eixo de seu novo romance, que será lançado em 2007. Ter um bairro como elemento central de outra história, quase dez anos depois da publicação de Cidade de Deus, não assusta Paulo Lins. O novo romance vai destacar o papel cultural dos sambistas negros, que sofriam a discriminação racial e cultural no início do século 20. No bairro, vivia Ismael Silva, o fundador da Deixa Falar, a primeira escola de samba. O livro tem duas narrativas paralelas, uma contada na primeira pessoa, na época atual, outra – em terceira pessoa – mostrando os primórdios do samba. De um período anterior virão contos sobre a África e a escravidão, através dos relatos dos personagens. A costura entre todos esses tempos é a pesquisa de mestrado da protagonista, uma jovem que faz um estudo de literatura comparada dos sambas da década de 20 e os do bloco Cacique de Ramos, da atualidade.
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Há quem diga que o segundo romance é o mais difícil para o escritor do que toda a sua obra. Como o senhor está enfrentando esta pressão? Na verdade, este é o meu primeiro romance, ou melhor, a primeira proposta de romance que eu fiz, muitos anos atrás. Cheguei a botar alguma coisa no papel muito antes de Cidade de Deus. Queria juntar o samba, a umbanda e a história do negro no Brasil. Então, a idéia é antiga. Mas, aí, comecei a trabalhar na pesquisa da (socióloga) Alba Zaluar na Cidade de Deus. Fui chamado porque eu conhecia os moradores, tinha crescido ali. Ouvia histórias, recordava outras. Então, acabei sendo convencido a escrever sobre o crescimento da violência e a formação daquela comunidade. Agora, retomei minha primeira história. Por isso nem dá para sentir medo da segunda obra. Para ser mais preciso, este será meu terceiro livro, pois o primeiro foi Sob o Sol, de poesias. Como em Cidade de Deus, o novo romance terá uma linguagem reproduzindo a forma de falar de cada época em que a história se passa? Pensei que uma linguagem mais acessível, bem fiel à maneira como o povo falava, atrairia aquela população que eu mostrava ali, atingiria mais aquele público que estava sendo ali retratado. Não foi isso que aconteceu. O livro foi lido pelos consumidores habituais de livro, a classe média e a elite. Os pobres só se viram depois, com o filme. Nesta história de agora eu teria muita dificuldade em recriar a linguagem dos anos 30, precisaria inventar
Divulgação
Meu pai queria sair do aluguel, por isso nos mudamos para a Cidade de Deus, que parecia mais uma estrada empoeirada, mas tinha mato, rio. Fui morar na roça, subir em árvore, brincar o dia inteiro com a molecada, a melhor das infâncias
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CONVERSA uma linguagem oral, inventar um idioma próprio. Ia diferente para quem pode estudar, o ensino sempre traz ficar muito Guimarães Rosa, então, optei pelo uso do algo de bom. Até uns cinco atrás, eu sempre me encontrava com ex-colegas de colégio da Cidade de Deus. coloquial, com algumas gírias. Quase todos tiveram que trabalhar muito cedo. Hoje, há A história vem de suas experiências como morador campanhas para manter as crianças na escola, mas é raro do Estácio? encontrar projetos sociais que não privilegiem o aprenNa verdade, ele vem do medo que eu sentia dos sam- dizado profissionalizante. O Centro de Estudos e Ações bistas. Quando eu tinha cinco, seis anos, minha mãe me Solidárias da Maré (uma ONG que há nove anos manpedia para comprar pão ou ir à farmácia e mandava que tém, entre outras atividades, curso pré-vestibular para eu tomasse cuidado, ao passar pelos botequins, por causa estudantes em 16 comunidades, no Rio de Janeiro) é um dos malandros. No que eu chegava na rua principal, a dos poucos a dedicar-se essencialmente a estimular os Maia Lacerda, tirava os tamanquinhos dos pés, para não meninos pobres a fazer faculdade. Quem vai para a unicorrer risco de ter qualquer contato com a malandragem. versidade sempre melhora de vida. Eram sambistas de primeira linha, mas eu não sabia. O O sistema de cotas seria uma forma de modificar a Estácio era o centro nervoso do samba. Eu queria contar um pouco daquele Estácio, queria falar sobre o bairro, a situação atual? As cotas dão oportunidade aos estudantes pobres de música e os negros no Brasil. Mostrar um Brasil ainda mais difícil para o negro do que o país que conhecemos disputarem essas vagas e temos visto que boa parte desse agora. O samba começou a se popularizar na década de alunos, quando ingressam na universidade, têm exce20, mas sambista não tinha o mesmo status que hoje em lente desempenho. Mas devemos lembrar que muito dia, não. A valorização começou bem mais tarde, em antes do sistema de cotas ser sequer imaginado, negros e meados da década de 60. O preconceito contra o negro e pobres já vinham seguindo carreiras nas Ciências Husuas manifestações era aberto. Ninguém respeitava um- manas e Magistério, desprezadas pelas elites por serem banda. Havia perseguição da polícia que, não raro, en- de baixa remuneração. A elite se concentrou nas Ciências quadrava todos por vadiagem. Se até hoje o negro é Exatas e na Medicina. Eu mesmo fiz um curso menos perseguido, imagina há 40 anos. procurado, Letras. Se havia defasagem no meu conhecimento, a faculdade se encarregou de suprir. E depois Por que sua família saiu do Estácio, bairro central do de formado, eu virei classe média. Classe média baixa, Rio, para a Cidade de Deus, na época classificada como mas classe média. zona rural? Foi o sonho da casa própria. Meu pai queria sair do aluguel, por isso nos mudamos, numa trajetória diferente dos outros moradores da Cidade de Deus, que haviam sido removidos de favelas no Centro. Para mim foi uma festa. A Cidade de Deus parecia mais uma estrada empoeirada, mas tinha mato, rio. Fui morar na roça, subir em árvore, brincar o dia inteiro com a molecada, a melhor das infâncias Sua formação foi diferente dos outros meninos da Cidade de Deus? Muito, pois não precisei ajudar a sustentar a família. Minhas irmãs mais velhas completaram o secundário e foram trabalhar. Eu pude fazer Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E a vida é muito Continente outubro 2006
Para Paulo Lins, foi o filme, não o livro, que botou a Cidade de Deus no mapa do planeta
Fotos: Divulgação
O escritor acha que o surgimento do livro, do filme e de músicos como Seu Jorge contribuiu
Como a sua vida mudou depois do lançamento de Cidade de Deus? O livro foi bem recebido, mas nem chegou perto do sucesso do filme, que teve mais do que a boa direção do Fernando Meirelles – um elenco extremamente talentoso. Foi o filme que botou a Cidade de Deus no mapa do planeta. Até hoje eu estranho, porque o livro acabou sendo lançado em 30 países, teve mais de 25 traduções. Aí, estou na Finlândia participando desses lançamentos e vem uma pessoa falar que leu a minha história. Tudo isso me levou a deixar o Magistério, os convites foram surgindo, outros tipos de trabalho também. Logo depois que o livro saiu, Cacá Diegues me chamou para colaborar no roteiro de Orfeu. Depois, veio o filme e eu ia para o set, oficialmente para acompanhar as filmagens, mas gostava mesmo era de conviver com aquela garotada. Gosto de criança, sinto saudades do Magistério, porque sala de aula rejuvenesce. O reconhecimento da chamada cultura da periferia veio a partir de Cidade de Deus? Naquele momento estavam surgindo o Afroreggae, o Rappa, Seu Jorge. Não havia música vinda das comunidades. Hoje, o pessoal está se expressando e entrando no mercado, que antes existia muito distante da manifestação da periferia. Certamente houve uma inclusão cultural da periferia depois de Cidade de Deus. No entanto, a inclusão social e econômica não acompanharam essa inclusão cultural. Continuamos um país sem profissionais liberais
negros, o que só vai se modificar com um investimento político maciço em educação. A educação também levaria alguns meninos pobres a evitarem envolvimento com a criminalidade? A educação acaba é com a segregação do mercado de trabalho, traz oportunidades melhores para cada um. Há muita lenda em torno da vida de bandido, que não tem charme algum, é difícil, perigosa. Existem famílias inteiras vivendo do tráfico, mas isso não é tão comum quanto se imagina. A imensa maioria dos moradores de comunidades não se envolve nem é conivente com o crime, mesmo conhecendo os bandidos desde crianças. Entra para essa vida quem não tem nenhuma oportunidade de emprego, está abaixo da linha da miséria e, mesmo assim, somente até uma determinada idade. Ninguém vira bandido depois de adulto. Como é viver da escrita? Em 2004, fiz o roteiro de Quase Dois Irmãos, com Lúcia Murat. Atualmente, tem o romance, mas além dele estou trabalhando no roteiro de Beirando a Maré, que Lúcia Murat deve começar a rodar este ano, e A História de Dé, de Breno Silveira, cujas filmagens serão em 2007. A literatura é um ofício muito solitário. Roteiro é divertido, muda o tempo todo, tem muita gente para mexer. Ou é a locação que fica muito cara ou é o ator que não acha sua fala verossímil. É bom porque se trabalha em equipe, embora seja arte de segunda. Roteiro é treino, filme é que é jogo. • Continente outubro 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Jaíne Cintra e Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Paulo de Tarcio Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
Outubro | 2006 Ano 06 Capa: Images.com/Corbis
Colaboradores desta edição: ANGELA PRYSTHON é professora da Pós-graduação em Comunicação da UFPE e doutora em Teoria Crítica e Estudos Hispânicos e Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. BETÂNIA UCHÔA CAVALCANTI-BRENDLE
é arquiteta, PhD em História e
Conservação Urbana e Professora do Mestrado de Arquitetura da Fachhochschule Lübeck, Alemanha. BRUNO NOGUEIRA é jornalista e mestrando em Comunicação Social. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista. CRISTIANA TEJO é coordenadora de Artes Plásticas da Fundação Joaquim Nabuco e curadora do Programa Rumos Artes Visuais 2005/2006 do Instituto Itaú Cultural. DANIEL PIZA é jornalista e editor-executivo do jornal O Estado de S. Paulo. JULIO CAVANI é jornalista. MARCELO COSTA é jornalista. OLGA
DE
MELLO é jornalista.
PAULO HENRIQUE AMORIM é jornalista. PAULO POLZONOFF JR é jornalista. RENATA BEZERRA
DE
MELO é jornalista.
RONALDO BRESSANE é redator-chefe da revista Trip, editor, escritor e autor de Céu de Lúcifer (Azougue, 2003). SIMONE JUBERT
é jornalista e mestre em Comunicação Social – Mídia e Cultura –
pela Universidade Federal de Pernambuco.
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente outubro 2006
CARTAS Gostaria de elogiar a matéria "A Arquitetura e a Cidade", da edição de setembro desta revista. São raras às vezes em que uma matéria sobre arquitetura é feita com seriedade em revistas de cultura, ainda mais quando não se trata da badalada arquitetura contemporânea. A arquitetura é uma expressão cultural/artística das mais nobres, e possui uma carga de significados singular, por tanto, faz por merecer o espaço normalmente destinado por Continente a ela. Surpreende-me, nessa matéria, o raro domínio do autor sobre o tema, e sua iniciativa de propor o modelo renascentista como inspiração para o renascimento da cidade contemporânea, tão esgotada estética e socialmente pelo movimento moderno. Parabéns à revista!
“ ” Diogo Barretto, Recife-pe
Fervo
Paixão Li a última edição que um amigo trouxe-me de Pernambuco e me apaixonei. Luciano Viana, São Paulo-SP Votos Muito obrigado por enviar-me a revista Continente Multicultural. Um verdadeiro regalo. Parabéns a você, aos editores e colaboradores dessa revista cheia de vida e inteligência. Desejo a todos os melhores votos de sucesso contínuo em seu excelente trabalho. Nelson Pereira dos Santos, Rio de Janeiro-RJ Moda Muito interessante a abordagem da Revista Continente Documento, edição 49, sobre a moda. Diferentemente das publicações usuais sobre o tema, a Continente conseguiu dar uma visão ampla da história da moda, seus principais nomes, sem esquecer de teorizar. Para o crescente número de estudantes de moda do Recife e do Brasil, a Revista é uma ótima introdução, despertando reflexões necessárias para aqueles que trabalham e estudam esse fenômeno. Muito importante também destacar que a moda não se limita ao vestuário. Atua em todas as áreas. Além do conteúdo, a diagramação está linda. Parabéns. Carla Monteiro, Recife – PE Gullar Aos editores, parabéns pela publicação dos textos elucidativos do poeta Ferreira Gullar. Denize Torbes, Rio de Janeiro – RJ Arte Nos últimos meses, o crítico Ferreira Gullar vem levantado questionamentos em relação à
arte contemporânea. Gullar não é, podese dizer, um apreciador dessa arte. Em agosto, outra matéria ressaltou a posição contrária à arte dos dias de hoje. Quando eu começava a pensar que a Continente estava desprestigiando os bons artistas contemporâneos, deparei-me com a matéria sobre o SPA das Artes. Creio que, como em qualquer período, a contemporaneidade produz obras boas e ruins. Resta a nós, saber diferenciá-las, apesar da ausência de regras e preceitos. Jorge Almeida, São Paulo – SP Popular Gostaria de dizer que eu adoro a Revista de vocês, acho que ela é importantíssima para garantir que as manifestações populares fiquem sempre na mídia. Anaís Suassuna, Recife – PE Aprimoramento Quero elogiar o conteúdo e qualidade da Revista Continente Multicultural. Sei que muitos iguais a mim não costumam se envolver com política, apesar de estarmos inseridos nela. Aproveito este momento político para pôr as minhas leituras em dia. Aqui deixo o meu agradecimento, pois durante esse meu aprimoramento universitário, vocês serão minha fonte de atualização cultural. Jamais deixarei as artes, a volta será gloriosa. Quero também manifestar a alegria pelo primeiro número da Revista Ciência em Rede – mais uma vez acertaram na "mosca". Parabéns! Fernando Matos, Recife – PE Contraponto Por mais uma vez, o nosso colunista fez uma excelente análise do cenário po-
lítico, fazendo valer recortes do passado. Achei muito pertinente o fechamento do artigo: "Todas em nome de Deus". Ao meu ver, só com fé nele poderemos visualizar um cenário diferente. Dadas as circunstâncias que estão evidentes no nosso país. Sterfferson Cabral, Recife – PE Erratas Na edição nº 69, da Continente Multicultural: a)na matéria "Maldito, uma vírgula",o nome do autor é Dafne Sampaio. b)Fellipe de Andrade Abreu e Lima, autor da matéria “Arquitetura e Renascimento”, é arquiteto, urbanista e mestre em Arquitetura – mas não é professor da UFPE. c)O endereço eletrônico do portal de artes Plásticas Dois Pontos, publicado na Agenda Artes, foi alterado para www. doispontos.art.br d)Na mesma edição, em “Conversa”,p.7, a foto é de Roberta Mariz. Na capa da Revista Continente Documento, edição nº 45, "Paulo Freire", há a informação de que o educador foi candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 1973; na realidade, foi em 1993. No editorial, consta que ele recebeu 34 títulos de DHC (Doutor Honoris Causa); de fato, foram 39.
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
A nova (des)ordem Coisas impensáveis são feitas e proclamadas por pessoas que não mais dispõem de guias sociais para as suas ações
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pesar de não terem vivido essa época, muitos jovens curtem as lembranças dos anos 60 e 70, quando as relações sociais eram muito mais saudáveis e o futuro se desenhava com as cores do arco-íris. Atualmente, a moral dos anos 60 e 70 está sendo flexibilizada pela agressividade das relações econômicas e pelas conseqüências sociais dessa permissividade transformadas agora em violência. Naqueles anos, a barbárie era enfraquecida pelos limites da civilização. O Estado protegia a cidade, o cidadão e a cidadania. Hoje convivemos com um estado de anomia social que limita nossa convivência e nos impede de ver um futuro mais auspicioso. O Estado não tem mais condições de nos proteger contra a violência. O cidadão mantém a liberdade física, mas a cidadania encontra-se aprisionada. Eric Hobsbawm tem defendido que a convulsão atual dos conflitos relacionados à violência não deve ser considerada como um fenômeno ideológico, mas basicamente pelo colapso da ordem política representada pela fragilidade dos Estados em preservá-la e pelo esfacelamento de velhas estruturas de relações sociais. Nesse contexto, a sociedade e, mais particularmente, a juventude engendram novos padrões de relacionamento social para os quais não existem mais regras e limites de comportamento plenamente compreendidos e aceitos pela ordem cultural ainda predominante. A massa de informações que é processada simultaneamente por todas as camadas da sociedade tem mensagens que são assimiladas indistintamente, sem nenhuma compatibilidade com a realidade econômica de seus grupos sociais. Todos desejam atingir o máximo de seus níveis de consumo, cada vez mais no curto prazo. A padronização de desejos e expectativas criadas pelo processo de mídia de massa não apresenta nenhuma compatibilidade com as diferenças intrínsecas existentes entre os diversos estratos da sociedade. Os paradigmas utópicos de felicidade geral caem por terra. A felicidade a alcançar é a individual...
É claro que isso explica o colapso explosivo da ordem social nas cidades e mais particularmente na periferia delas. Nestes ambientes, uma nova cultura de massa é gerada com linguagem e comportamento social próprios. Coisas impensáveis são feitas e proclamadas por pessoas que não mais dispõem de guias sociais para suas ações. Os costumes, as tradições e as convenções sociais não têm mais força para conter os excessos. Os limites não são estabelecidos, até porque as gerações – por manterem níveis restritos de convivência – não mais se comunicam com eficiência. E pouquíssimos sabem o que significa nesse cenário a coisa certa. O que se sabe é apenas a coisa pessoal e própria de cada um. Nesse sentido, no dialeto jovem, o mundo continua girando, a catraca continua rodando e, certamente, a pantera continua levando tapas. Para Ortega y Gasset, em Rebelião das Massas, a civilização construída pela espontaneidade social acaba sob o império das massas, e quando não há conhecimento histórico para a compreensão dos pilares que sustentam a civilização, o retorno à barbárie é uma ameaça real. Sob tais circunstâncias, deve-se esperar um declínio na civilidade que temos como referencial e um crescimento da barbárie não compreendida. Diante desse ponto de inflexão social, o que torna as coisas piores agora e no futuro é o constante desmantelamento das defesas que a civilização do iluminismo havia erguido no passado contra a barbárie. Na realidade, passamos a nos habituar com o desumano. Aprendemos a tolerar o intolerável e nos acomodamos a uma realidade social repleta de carências e cheia de ausências. A palavra “política” provoca um silencio gritante. O arco-íris do futuro se nos apresenta inteiramente incolor. Ao purgarmos essa nova ordem coletiva, caminhamos indignados, mas com uma intrigante conformação, esperando que algum milagre aconteça nas nossas vidas e compreendamos melhor a teia de complexidade que é a realidade, porquanto nas nossas míopes visões tudo isso não passa de uma (des) ordem geral. • Continente outubro 2006
Identidades:
feridas e poros A identidade cultural não pode ser relacionada com fronteiras fechadas, pureza e autenticidade, ela continua se refazendo no contato mútuo com várias culturas Daniel Piza • Ilustrações: Nelson Provazi
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ssim como nenhuma etnia é pura, de acordo com os geneticistas, nenhuma identidade cultural tem fronteiras fechadas. A cultura sempre foi e continua a ser feita no diálogo e no atrito entre culturas. Isto é, a cultura só existe no plural. Não tem um RG único e indivisível. Pode-se falar numa identidade cultural brasileira, mas não se pode isolá-la das outras que a formaram ou contra as quais ela se formou. Mesmo em tempos da chamada globalização, que na verdade tem muito mais do que 17 anos (se pensarmos na queda do muro de Berlim, de 1989) ou 61 anos (no fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945), as identidades continuam a se refazer no contato mútuo, sem haver nem soberania imperial nem dissolução total. A cultura brasileira, se não por alguns de seus nomes e movimentos, mereceria ser mais estudada pelos antropólogos da mondialisation, termo que os franceses usam para descrever a interpenetração crescente das culturas em função da mídia e da economia. Muitos de seus principais espelhos, de seus focos de identidade, foram assimilados de outras culturas: o futebol veio da Inglaterra, mas ganhou aqui ares de brincadeira, de improviso, que os ingleses até hoje não conseguem imitar; o samba é filho do maxixe e neto da polca, que veio da Europa, ganhou percussão e mais tarde foi ainda se misturar Continente outubro 2006
com jazz, para não lembrar o quanto Tom Jobim bebia em Chopin; a telenovela nasceu no México, mas aqui trocou parte do melodrama por humor e atualidades; e assim por diante. A cada uma dessas importações, havia um fiscal da alfândega ideológica cobrando respeito à “autenticidade” da cultura nacional, aquela que alguns, só para fugir da Europa, foram buscar até nos tupinambás (que viviam num país que nem se chamava Brasil e que nem nação era). E o Brasil recebeu japoneses, libaneses e muitos mais e continuou a ser o Brasil. Ou melhor, tornou-se um país diferente de si mesmo em muitos aspectos, como o adulto da criança que um dia foi, mas sem deixar de ser diferente dos outros em aspectos ainda mais essenciais. Quais aspectos? Quais os suportes principais disso que chamamos de identidade, por falta de melhor palavra? Óbvio: a língua, o território e a tradição comum criada neles. Em qualquer lugar do Brasil a que você chega, sabe que está no Brasil. Durante anos certas cor-
rentes intelectuais pregaram que o problema da cultura brasileira é sua falta de identidade; esse é o menor dos seus problemas. O “sentimento de origem” mencionado pela antropologia é partilhado do modo mais imediato e intuitivo pelas pessoas que foram criadas aqui. Costume, cor e caráter de um povo podem mudar muito de geração em geração, mas a língua continua a dar a liga. Não importa quantos sotaques tenha, não importa quantos estrangeirismos adote. Mas falar em identidade como normalmente se fala – como se fosse uma esfera isolante entre as culturas – só leva a equívocos. Como o caso brasileiro demonstra, e como pesquisadores como Stuart Hall mostram, há uma série de contradições nesse discurso. E isso vale não só para as identidades nacionais, mas também para as identidades de gênero, “raça” (conceito cientificamente inválido, repita-se), classe social ou idade. Se são da natureza da cultura a comunicação e a reflexão, então qualquer forma de expressão implica uma abertura, um potencial Continente outubro 2006
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CAPA Reprodução
Cena do filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade: o caráter brasileiro em pauta
de transcender gêneros. É assim que uma tradição se cria: pela eleição temporal daquilo que se fez de mais pertinente e duradouro; ou seja, mais capaz de transcender o ambiente em que se está, os valores e conceitos herdados de seu círculo de relações. O artista, ao falar da aldeia, fala para o mundo; se for um grande artista, fala do mundo. O ensaísta, ao ler a sociedade de seu tempo, tenta de alguma forma produzir um distanciamento crítico em relação a ela, em relação ao que lhe foi inculcado na infância. A própria complexidade do processo batizado de globalização é um exemplo. A história da humanidade é marcada por interferências culturais, desde os tempos dos impérios chinês, romano ou persa. Movimentos europeus como o Renascimento, o Iluminismo, o Romantismo e o Modernismo foram assimilados, confrontados e enriquecidos por todas as partes do globo. O que aconteceu foi que a partir da segunda metade do século 19, com a explosão dos meios de comunicação instantâneos ou mais velozes – do telégrafo ao cinema, do telefone ao avião –, a dimensão se tornou muito maior, em múltiplas direções. A própria idéia de “centro e periferia” começou a ser relativizada, ainda que intelectuais socialistas brasileiros continuem a lidar com essa dicotomia em pleno século 21. De meados do século passado para cá, as distâncias foram ainda mais encurtadas pela televisão e Continente outubro 2006
depois pela internet. Foi a partir disto que a palavra globalização passou a se tornar um mantra... global. Os analistas se dividiram diante dessa nova intensidade de trocas econômicas e culturais (e a economia cada vez mais interage com a cultura): de um lado, viram uma espécie de mare nostrum da democracia capitalista, como se o fenômeno central fosse a adoção desse regime pelo mundo todo com diferenças pouco relevantes e atritos de breve solução; do outro, viram uma implosão das soberanias, um convite às guerras, uma perda das identidades e de todas as formas de estabilidade emocional. Não é preciso dizer que tais previsões falharam: a história não terminou, tampouco o progresso em seu sentido mais humanista. Os profetas, quer otimistas quer pessimistas, sempre falham. Volte ao exemplo brasileiro: por aqui se dizia que a abertura econômica e a bolha digital iriam liquidar a soberania e, portanto, trocar a cultura nacional pelos invasores alienígenas que tomavam TV, Rádio e tudo o mais nos anos 80; ou então se defendia a idéia de que, por exemplo, sendo o cinema brasileiro inferior ao de outros países, não havia necessidade de protegê-lo ou fomentálo e que instituições como o Ministério da Cultura eram anacronismos. Bem, de lá para cá a produção cultural brasileira só tem crescido, e os artistas que mais atraem público são os locais; e isso aconteceu em parte por causa de instrumentos de incentivo e sobretudo do avanço democrático. No lado da oferta, a mesma coisa: antes não ouvíamos canções do Cabo Verde, nem líamos tantos autores árabes, nem assistíamos ao cinema tailandês. Decididamente, a globalização não é uma via de apenas duas mãos. De modo análogo, mas muitas vezes sem os esquematismos de sociólogos e economistas, as artes também passaram a debater as questões da identidade, a expressar seus traumas e potenciais. Escritores das mais diversas origens e radicados em países como a Inglaterra começaram a produzir uma literatura sobre os choques culturais em grandes cidades. O cinema, idem. Nas artes visuais, é raro você ir a uma bienal internacional e não encontrar um vasto repertório de metáforas sobre um mundo em que estilos de vida se contrapõem. O corpo, principalmente, é visto como a última fronteira também derrubada do senso de identidade fixa: a memória é um mistério, a psique é um território de incertezas. Como podemos ter segurança do que é “superior” ou “inferior” em termos de culturas nacionais? As feridas estão abertas. Os poros, também. •
CAPA
Identidade e nacionalismo A vida cultural de um povo alimenta-se de mudanças e conflitos com outras culturas Eduardo Cesar Maia
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defesa de uma identidade nacional pura, inviolável e imune a influências externas não passa de uma utopia (melhor: uma distopia) despropositada. O processo constante e cada vez mais acelerado de comunicação e intercâmbio entre os mercados de todos os países – independentemente de ideologias, religião ou porte econômico –, e o fluxo de bens culturais avançam num sentido de negação das fronteiras nacionais. Tal fenômeno, irreversível na opinião da maioria os intelectuais, é o que se costuma chamar de globalização. Os defensores dessas formas de identidades coletivas nacionais, étnicas ou mesmo de uma simples localidade, como uma cidade ou um bairro, acreditam que esse processo pode conduzir ao esgotamento das culturas oriundas dos países de economia menos desenvolvida: as características regionais, as tradições, costumes e padrões de comportamento que determinariam a identidade desses povos estariam condenados ao esgotamento e à dominação pelos bens culturais dos países hegemônicos. É inegável que o incessante fluxo de informações por todo o globo realmente está dando um novo formato às diversas culturas, mas isso não significa necessariamente uma perda. Numa perspectiva Continente outubro 2006
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CAPA Owen Franken/Corbis
Loja da McDonald's no Kuwait: sinal da globalização
mais otimista, pode-se argumentar que a cultura não é um cárcere, um sistema fechado de valores invioláveis. A vida cultural de um povo, pelo contrário, alimenta-se de mudanças e conflitos com outras culturas. Apenas nas sociedades primitivas e nos Estados sumamente autoritários com tendências nacionalistas é que a cultura é encarada como um campo de concentração, uma condição imutável. É como se os indivíduos estivessem condenados a permanecer dentro desse conjunto de valores culturais, sem nenhuma possibilidade de interferência pessoal. Tomemos como exemplo histórico o alvorecer e a conformação daquilo que hoje chamamos “mundo ocidental”, com o florescimento da civilização helênica. Tal caso pode servir de exemplo de como o intercâmbio entre culturas pode influenciar positivamente o desenvolvimento técnico e cultural de um povo. Sabe-se que a condição geográfica da Grécia, de orografia montanhosa e infértil, levou seus habitantes à exploração marítima de suas extensas costas, com a navegação comercial, possibilitando assim um contato e um intercâmbio cultural que, segundo historiadores, conduziu a uma progressiva muContinente outubro 2006
dança de mentalidade, com a relativização das visões de mundo locais limitadas, propiciando a reflexão filosófica. É inegável que os gregos se aproveitaram do contato com o Oriente Próximo para ampliar seus conhecimentos, principalmente matemáticos e astronômicos. A visão da pluralidade humana pelo contato com outras civilizações foi, para a Grécia, um motor do pensamento e não um castrador identitário. A origem etimológica da palavra cultura remete ao ato de cultivar o espírito, aprimorar-se, reduzindo a própria ignorância através do conhecimento da diversidade e pluralidade do mundo. A cultura não é um lugar, não se encontra em determinada situação geográfica verificável com um mapa e uma régua. A defesa de uma identidade cultural nacional no sentido de que todo o autóctone é sempre um valor e todo o forâneo, um desvalor, é simplesmente uma manipulação ideológica abstrata e sem fundamentação histórica. As ligações afetivas pessoais ao local de nascimento, às tradições, às religiões e a certos valores herdados da comunidade em que se está inserido são, a princípio, naturais e positivas. No entanto, uma política que pretenda, partindo da defesa desses valores, menosprezar ou mesmo censurar a possibilidade de compartilhar dos bens culturais externos, é uma política autoritária e xenófoba. Isso significa, nos dias de hoje, que, para um país proteger sua cultura, deveria preservar-se da competição internacional e dos “males” da globalização. Os defensores de tais políticas afirmam que, se os governos deixassem a identidade do seu povo à mercê das regras do capitalismo amoral, haveria uma deteriorização pela invasão de produtos culturais estrangeiros, uma colonização cultural, perpetrada através do poder da publicidade das empresas dos países mais poderosos. No Brasil, país em que essas políticas de “proteção” aos bens culturais nacionais têm bastante força, parece ainda mais abstrusa a definição do que venha a ser essa identidade. Falar de cultura brasileira ou patrimônio cultural brasileiro é se referir a uma miríade de influências de várias partes do mundo que constituíram (e seguem constituindo) e influenciaram (e continuam influenciando) a história, os costumes e os valores vivenciados de diversas formas por indivíduos profundamente diferentes que habitam esse país. Além de se tratar de uma entidade abstrata confusa, a noção de identidade cultural nacional leva muitas vezes a uma legitimação da censura, do dirigismo cultural e a subordinação da vida cultural e artística a uma doutrina política: o nacionalismo. •
CAPA
Identidade e estereótipos Os estereótipos que fazem parte da definição de brasilidade são uma herança do colonialismo e criam um ideal preconceituoso de mulher brasileira Mariana Oliveira
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m tempos de globalização, é realmente necessário buscar elementos para diferenciar-se. E a alternativa para muitos brasileiros que vivem fora do país é vestir-se com aquilo que temos de mais diferenciado do resto do mundo, que é repetido seqüencialmente na mídia: tropicalidade, simpatia, malandragem, alegria, calorosidade, musicalidade. Tais características que já fazem parte do imaginário nacional e internacional vêm sendo cultivadas há anos e compõem o estereótipo básico da brasilidade. Positivo em alguns momentos, mas geralmente carregando um tom depreciativo, essa “essência” da identidade nacional produz uma representação muito peculiar da mulher brasileira. Talvez a vertente mais forte que permeia esse ideal de brasileiro seja o exotismo. Mesmo hoje, depois de todo o avanço no acesso à informação, há estrangeiros que têm uma visão restrita do Brasil, muito ligada ao primitivismo, ao indianismo. A persistência de idéias desse porte é, sem dúvida, um ranço colonial, um ranço que compõe o pós-colonialismo. O exótico pode ser entendido como uma forma de se relacionar com a alteridade, uma “estética do diverso”, embora alguns pesquisadores, como Igor de Renó Machado, doutor pela Unicamp, não entendam o exotismo como um projeto de apreensão da alteridade, “mas como projeto hegemônico de dominação cultural do Outro que Continente outubro 2006
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CAPA Gustavo Azeredo / Ag. O Globo
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Sensualidade e exoticidade são características que compõem o estereótipo da mulher brasileira
fixa e essencializa diferenças que não são fixáveis, além de produzir representações 'exóticas' dos povos colonizados ou dominados”. Os estereótipos compõem um mito. Como deixou claro Edward Said, em seu livro Orientalismo, a imagem que se tem hoje daquilo que seria o Oriente não corresponde à realidade, trata-se de um Oriente “orientalizado”. A dualidade Oriente/Ocidente é igual àquela existente entre colonizador/colonizado. Parte do discurso sobre a cultura brasileira foi gerada pelos centros, institucionalizados e divulgados pelo mundo. O harém e suas odaliscas estão em pé de igualdade com as escolas de samba e suas mulatas. Figura-se, dessa forma, o mito do exótico. O processo de exotização nada mais é do que uma exacerbação, solidificação e essencialização de um Outro, quase sempre tido como inferior. Portanto, como afirma Homi Bhabha, em seu livro O Lugar da Cultura, o uso do estereótipo é uma das maiores armas do colonialismo. “O estereótipo sempre deve estar em excesso daquilo que pode ser provado empiricamente e construído logicamente”. Dessa forma, os jogadores de futebol e sua malandragem junto às mulheres bonitas, espontâneas, exibidas e liberadas sexualmente formam o par estrutural a partir do qual são representados os brasileiros. Porém, as mulheres são representadas de maneira mais pejorativa, como prostitutas, uma vez que carregam o estigma do sexo e o Continente outubro 2006
da malandragem. Para perceber melhor essa diferenciação entre os gêneros, basta pensar na figura do Zé Carioca, ideal do brasileiro malandro, que sempre se dá bem. Quando o jogo se inverte e se trata do feminino, há sempre uma mulher seminua dançando de forma insinuante. Além de todas as questões vinculadas ao preconceito direcionado à mulher, o caso é agravado pela nacionalidade ou pelo posicionamento periférico. Segundo a pesquisadora Luciana Pontes, que desenvolveu um trabalho sobre as mulheres brasileiras na mídia portuguesa, a erotização da mulher está muito relacionada com as questões de subordinação racial e de classe social. A sexualização da mulher periférica não é novidade. Desde que os primeiros portugueses chegaram ao Brasil, Caminha já descrevia as índias como objetos de desejo e fazendo parte de um Éden; Albert Eckout as pintou com primor. Tempos depois, Gilberto Freyre deixava claro na obra Casa Grande & Senzala o papel vinculado fortemente ao âmbito sexual exercido pelas negras e índias, enquanto as portuguesas eram reservadas a funções que condiziam com a moral e os bons costumes. “A negra corrompeu a vida sexual da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana, realizou-se através da escrava índia”.
CAPA Reprodução
As odaliscas e haréns pintados pelo francês Ingres são representações ocidentais da mulher oriental
Dentro dessa lógica, é com a mulher do Outro que se pode fantasiar, subverter as regras sociais, levar a erotização ao limite. Da mesma forma que existe essa exotização da mulher brasileira, vendendo uma imagem ligada ao samba, à corporalidade, existe em relação às orientais uma idealização acerca do que seria um harém, como atesta Fatema Mernissi, em seu livro O Harém Ocidental (sem edição no Brasil), no qual a autora afirma que a idéia que temos do funcionamento de um harém é totalmente distinta da realidade. Com o tempo, esse modelo de mulher brasileira criado e idealizado pelos colonizadores foi sendo mantido e reafirmado pela mídia como estratégia de marketing. Novelas, como Gabriela, Cravo & Canela, tornaram-se sucessos internacionais, reproduzindo personagens brejeiras, atrevidas, que carregam uma exoticidade e uma sexualidade à flor da pele. Os estereótipos tornaram-se estratégias de marketing. Até bem pouco tempo, os catálogos turísticos brasileiros expunham, além das suas belezas naturais, a naturalidade das suas mulheres como atrativos. Como os números do turismo sexual começaram a inflar, passou-se a ter um pouco mais de cuidado com esse tipo de publicidade. Segundo Luciana Pontes, há uma associação natural feita pelos portugueses entre as mulheres brasileiras e o sexo, vinculação também propagada e divulgada pelo
país e por seus habitantes. “A mercantilização do local, da História, da paisagem, das performances culturais e mesmo da corporalidade dos habitantes é realizada através de um processo de marketing que explora a especificidade local, construindo uma imagem do Brasil em torno de elementos como o ‘à-vontade’, o ‘calor humano’ brasileiros enunciados nas autorepresentações”, explica. Há uma aceitação generalizada dos estereótipos pelos próprios brasileiros como se eles de fato fossem a melhor forma de representar o país. Parte das brasileiras que se aventuram a viver fora do país termina se apropriando dessas características, mesmo que elas sejam depreciativas, como estratégia de diferenciação. A aceitação dessa “identidade” passa a funcionar como uma moeda de troca. Oferece-se a imagem que quer ser comprada, produzindo um ciclo de retroalimentação, no qual se repete e se divulga aquilo que já faz parte do imaginário internacional sobre o Brasil, aquilo que quer ser visto e comprado. Há uma necessidade de reconhecimento. Para Heidegger, a ausência seria equivalente à morte. É a angústia dessa inexistência que faz com que o sujeito tome consciência de si. A invisibilidade é insuportável, quiçá pior, porque é um existir sem ser visto. Daí a eterna busca pelo reconhecimento. Melhor ser visto como exótico, do que não ser visto. • Continente outubro 2006
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Identidade e cinema O cinema periférico contemporâneo concebe a identidade nacional com uma roupagem “globalizada”, tornando-se parte do establishment Angela Prysthon
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sucesso recente de algumas cinematografias nacionais ou regionais faz com que lembremos muito vividamente dos anos 60 e dos movimentos culturais que refletiam as profundas transformações pelas quais o mundo estava passando na época. Das novas ondas aos novos cinemas, passando pelos neo-realismos e cinemas livres, especialmente a partir do final dos anos 50, o cinema passou a ser fortemente marcado pela política, pelo engajamento, pela dissidência, pela opção pelas “margens”. Desde uma personagem como a adolescente da classe operária inglesa Jo (Rita Tushingham), de Um Gosto de Mel (A Taste of Honey, Tony Richardson, 1961), que engravida de um marinheiro negro e emula um “casamento” com um jovem estudante gay, até o judeu Ariel (Daniel Hendler), de O Abraço Partido (El Abrazo Partido, Daniel Burman, 2004), com a sua vontade de se tornar “polaco”, passando pela denúncia dos filmes mais explicitamente políticos como A Chinesa (La Chinoise, Jean Luc Godard, 1967) ou Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e chegando à representação da política das minorias contemporâneas ou de culturas e histórias silenciadas. Num certo sentido, ao longo de todas essas décadas, o conceito de Terceiro Mundo e o radicalismo associado a ele foram sendo transpostos ao cinema (alguns cineastas e teóricos ainda usam o termo “Terceiro Cinema” para se referir ao cinema dos países não-desenvolvidos ou ao cinema feito às margens da estética hollywoodiana). Entretanto, é evidente que o atual interesse pelas cinematografias periféricas não pode ser completamente equacionado ao espírito da contracultura e do cinema dos anos 60. É importante sublinhar o que há de distinto na inclinação corrente pelos discursos identitários no cinema Continente outubro 2006
CAPA contemporâneo. É possível enumerar (de modo talvez panorâmico) algumas características do que era antes chamado de Terceiro Cinema e que agora podemos chamar de world cinema ou cinema periférico. Há uma busca explícita pela inserção no mercado de cultura mundial. Tal inserção está, de certo modo, garantida pelo espírito do tempo, um momento bem propício no qual a cultura e as identidades periféricas não apenas passam a ser percebidas pela cultura central, como passam também a ser consumidas; o ponto em que a diferença cultural passa a ser encarada quase como estratégia de marketing. É evidente também a forte inclinação para o passado. Que muitas vezes parece ser o sinal de uma nostalgia, o sintoma de uma saudade cultural. Como também pode ser a explicitação de um diálogo dessa tradição com a modernidade, pode ser a subversão da idéia de identidade nacional, tendo em vista um cosmopolitismo excêntrico. Esse cinema apresenta, num direto contraponto com a cultura yuppie, consumista e frívola de um primeiro pós-modernismo dos anos 80, uma tentativa de rearticulação com a tradição, e afirma constantemente as narrativas da nação, mas procurando subverter noções fechadas sobre identidade. O passado, a tradição, a História passam a ser material fundamental dessa produção. Tais opções sugerem um segundo pós-modernismo cinematográfico ligado ao Terceiro Cinema ou ao cinema periférico, em oposição ao preexistente nos anos 80. Um pós-modernismo marcado pelos princípios de “recuperação”, de “reciclagem”, de “retomada” da identidade, da tradição, da história e de um certo autoexotismo em oposição ao gosto pelo estrangeiro, pelo cosmopolitismo tradicional, pelo discurso internacionalista do pósmodernismo da década anterior. Nesse sentido, vão sendo definidas “modernidades periféricas”. O cinema contemporâneo se volta para a documentação do pequeno, do marginal, do periférico, mesmo que para isso se utilize de técnicas e formas de expressão de origem central, metropolitana, hegemônica. Ou seja, a “diferença”, a história e a identidade periféricas, tal como representadas pelo cinema contemporâneo, tornam-se peças constitutivas da tentativa de integração ao modelo capitalista global. A idéia de articulação periférica e da identidade nacional com uma roupagem “globalizada” nesses filmes não só faz parte do establishment, como mostra de forma muito clara o funcionamento do mercado cultural globalizado. A cidade desenhada pelo “novo” Terceiro Cinema pouco tem a ver com os clichês recorrentes (um exemplo muito
interessante está na forma como Buenos Aires é representada no filme Felizes Juntos, do chinês Wong Kar Wai. A idéia aqui foi subverter o olhar, foi mostrar uma tradução asiática da América Latina. Cosmopolitismos periféricos ao pé da letra.). E é precisamente através de imagens urbanas pouco usuais e da opção estética pelo pequeno, pelo detalhe, pelo discurso identitário, pelo periférico que os filmes constroem uma representação alternativa, mais plena de nuances e mais complexa do mundo contemporâneo. Remontando, em certa medida, à temática do Terceiro Cinema original (desvalidos, subalternos, excluídos), porém sem deixar de privilegiar os aspectos técnicos do cinema (a maior parte da produção contemporânea periférica tem imagem e som comparáveis às Divulgação
O filme argentino O Abraço Partido, de Daniel Burman, faz parte da atual cena de cinema periférico
grandes produções do cinema mainstream), o cinema periférico contemporâneo estaria atualizando o discurso do terceiro-mundismo (ou seja, uma maneira pós-moderna de falar da subalternidade, do periférico), retirando dele o tom politicamente engajado explícito, a “estética da fome” e a técnica propositadamente limitada. Enfim, vislumbramos não somente a mera atualização da temática política ou da estética engajada pelo audiovisual praticado hoje em dia. É possível delimitar de modo bastante abrangente uma estética cinematográfica contemporânea - uma estética da identidade e da diferença - , uma espécie de dominante cultural que também poderia ser diretamente associado a outras esferas da cultura. • Continente outubro 2006
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Identidade e arte A atenuação do sotaque artístico na arte contemporânea é fruto da liberdade de acesso a influências e informações múltiplas e não a uma imposição de parâmetros alienígenas Cristiana Tejo
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á consenso entre os teóricos da atualidade no que diz respeito à supressão do espaço pelo tempo em nossa sociedade. Propagandas de telefonia móvel, de internet sem fio, de aparelhos portáteis apregoam as maravilhas de um nomadismo cada vez mais irrestrito. Entretanto, como bem pontua Zygmunt Bauman, em Globalização – As Conseqüências Humanas, essa situação de fluxo incessante, de falta de fronteiras e barreiras, é realidade para uma ainda pequena parcela da população mundial. Simultaneamente, a outra banda, a maioria, vivencia uma localidade amarrada. São os impedidos de se mover, a quem leis e proibições de imigração são imputadas. “Os habitantes do primeiro mundo vivem no tempo; o espaço não importa para eles, pois transpõem instantaneamente qualquer distância... Os habitantes do segundo mundo, ao contrário, vivem no espaço. Um espaço pesado, resistente, intocável, que amarra o tempo e o mantém fora do controle deles”, diz Bauman. As transformações no tempo e no espaço operam outras sensibilizações. Identidades flutuantes e fundamentalismos e identidades recrudescidas são faces da mesma moeda. A mudança estrutural pela qual o mundo está passando desde o final do século 20 transforma dia a dia as sociedades modernas. Ela fragmenta as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. O duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no Continente outubro 2006
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CAPA
A Mulher, tinta industrial sobre madeira, Emmanuel Nassar, 1989
mundo social e cultural quanto de si mesmos – ocasiona fissuras nos posicionamentos do passado e gera uma “crise de identidade” para o indivíduo, expressão já bastante corrente ultimamente. As transformações econômicas, sociais, políticas, tecnológicas e culturais, muitas vezes sintetizadas na noção de globalização, fragilizam todas as respostas fundamentadas anteriormente sobre o conceito de nação e de pertencimento, exigindo novos posicionamentos em relação à formação cultural. É interessante notar que, entre os anos 80 e 2000, a ampliação do circuito hegemônico, a dinamização da comunicação e a complexificação das relações culturais e sociais no âmbito internacional atualizam a interpretação do nacional não só no Brasil, é claro, e forçam uma revisão de dicotomias que estão tornando-se obsoletas. Outro aspecto que merece atenção é a crise da centralidade no Ocidente. Esses entrecruzamentos vão gerar estremecimentos, em que o lugar em que se está mostra-se sempre movediço. Por vezes somos o centro; em outras situações, periferia. Essa não-localização por meio de categorias íntegras produz uma estrutura deslocada, que seria, segundo Stuart Hall, “aquela cujo centro é deslocado, não sendo substituído por outro, mas por uma ‘pluralidade de centros de poder’ ”. Obviamente que Pernambuco não é o único lugar a ser influenciado por essas transformações, mas é um dos poucos que vem tirando proveito da descentralização, ao se transformar num dos centros mais importantes de Arte Contemporânea do Brasil. Se, há uma década, a resposta à globalização ganhava força sob a bandeira da pernambucanidade, hoje observamos que as reações estão se complexificando, assim como a própria globalização, e geram uma produção artística diversa e efervescente, além de massa
crítica que tem interlocução local e nacional e ganha ano a ano espaço no restrito circuito institucional brasileiro. As peculiaridades da arte contemporânea de Pernambuco não são óbvias e em meio a uma seleção de artistas, como num salão de arte, por exemplo, praticamente não há possibilidade de se descobrir a procedência. Ao contrário do que normalmente se pensa, a atenuação do sotaque artístico pernambucano é fruto da liberdade de acesso a influências e informações múltiplas e não a uma imposição de parâmetros alienígenas. Numa época de solidificação de redes de artistas e da internet como arquivo universal, a divisa entre lá e cá perde espessura. É neste ambiente de livre troca de idéias e de procedimentos que a geração 2000 está se formando. Estas condicionantes pioram a produção? Teríamos como mensurar isso? Não esqueçamos que a arte responde a seu tempo e que cada geração emerge respondendo a uma dada realidade. Importante revermos, portanto, a noção de localidade e de pertencimento, longe dos estereótipos e de apreensões fáceis. O cosmopolitismo é o desejo de se envolver com o Outro, e de se dissolver na paisagem cultural de sociedades diferentes. É se sentir em casa em todos os lugares, buscar aproximações com o entorno local. As referências culturais não devem ser uma barreira para o diálogo e troca, mas um propulsor. Diferentemente do turista ou do localista amarrado, que ao viajar ou se deparar com o diferente se defende não abrindo mão de seus hábitos e de suas verdades, o cosmopolita harmoniza influências. O sistema das artes, apesar de primar pela pluralidade, pende para um rechaço de discursos regionalistas, pois eles não permitem diálogos, apenas monólogos... • Continente outubro 2006
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A Paixão por Helena A experiência totalizante da leitura da Ilíada num universo multimídia e a verdadeira descoberta do "Humano" Paulo Henrique Amorim
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az pouco tempo, Hades e uma ressonância magnética informaram-me que, depois de uma cirurgia, eu seria obrigado a ficar duas semanas de molho. Imediatamente me perguntei que livro deveria ler nas duas semanas – desses que você só lê quando fica doente. Guerra e Paz? Talvez eu me decepcionasse, dada a minha paixão por Ana Karenina. A Montanha Mágica? Seria uma influência direta de Susan Sontag. Eu acabara de ler uma conferência – “Literature Is Freedom” – que Sontag fez na Alemanha, em 2003, ao receber o prêmio literário Friedenspreis. Ela tentou demonstrar o que a América perde ao se distanciar da Europa: No book has been more important in my life than (The Magic Mountain). Mann e Sontag talvez não fossem a melhor companhia para quem sai do hospital. Achei melhor ler a Ilíada. Nenhum livro foi mais importante na minha vida do que a Ilíada – é o que provavelmente direi quando “não” for receber um prêmio literário na Alemanha. Anos atrás, comprei em Nova York um audiobook com a tradução de Robert Fagles da Ilíada, com narração do fantástico ator inglês Derek Jacobi, e uma introdução imperdível de Bernard Knox. Ficou naquele ponto da estante em que estão os livros que você jamais lerá ou ouvirá... Agora, chegou a hora. E fiz um exercício fascinante. Ler a Ilíada numa tradução em português e, em seguida, “reler” ou ouvir a ver são de Fagles, na voz e interpretação de Jacobi.
Mimmo Jodice/Corbis
Detalhe de Cabeรงa de Helena, 1807,, por Antonio Canova, grande escultor do Neoclassicismo
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LITERATURA Foi uma viagem emocionante. A descoberta de um mundo novíssimo, muito perto de mim, o mundo dos homens como eu. Entre a cólera de Aquiles, o filho de Peleu – o início do poema –, e os troianos enterraram Heitor, o domador de cavalos, a última frase do poema, aí está, sim, A Invenção do Humano, que Harold Bloom tentou atribuir – apenas – a Shakespeare. Era como se a anestesia me alucinasse e eu lia e relia – e ouvia – trechos da Ilíada como se passasse por uma experiência multimídia: Aquiles, Heitor, Helena, Hécuba, Agamenon, Príamo, Menelau, Nestor, Páris, Pátroclo, Ulisses, Ájax, Diomedes, Andrômaca – eu os imaginava numa ópera: Wagner, Verdi, Puccini, Schoenberg, Berg. Ou quem sabe num oratório como o Édipo Rei, de Stravinsky, em que Jessye Norman faz a Jocasta alucinada? E se Agamenon fosse Dom Vito Corleone? Helena ficará para sempre como Rossana Podestà? E Heitor, o Hamlet freudiano de Laurence Olivier? E Príamo, o rei que se ajoelha aos pés de Aquiles, o matador de seu filho? Não é Príamo o Rei Lear andrajoso, enlouquecido, à espera de Godot, que eu conheci, em pessoa, no Lincoln Center, encarnado em outro ator inglês memorável, Christopher Plummer? Num instante de delírio menos intenso, corri à biblioteca para ver se encontrava alguma coisa que pudesse me reembarcar para Tróia. Lá estava, num canto do lado esquerdo, na quarta prateleira de baixo para cima, onde deveriam ficar os ensaios literários, How to Read a Põem, de Edward Hirsch. Ele conta que se iniciou na “poesia da dor” numa manhã de outubro em que ventava muito e leu o Livro XVIII da Ilíada. Antíloco, filho de Nestor, veio dar a Aquiles a notícia de que Heitor tinha acabado de matar Pátroclo, o maior e mais fiel amigo de Aquiles. Pátroclo morreu com a armadura que pertencia a Aquiles. Naquele instante, os troianos lutavam sobre o corpo nu de Pátroclo: He spoke, and the black cloud of sorrow closed in Achilleus. In both hands he caught up the grimy dust, and poured it over his head and face, and fouled his handsome countenance, and the black ashes were scattered over his immortal tunic. And he himself, mightily in his might, in the dust lay at length, took and tore at his hair with his hand, and defiled it. (Tradução de Richmond Lattimore.)
And he himself, mightily in his might!!! Bem ao lado de Hirsch, encontrei Helena de Tróia – O Papel da Mulher na Grécia de Homero, de Cláudio Mello e Souza, Lacerda Editores, 2001. Imagens: Reprodução
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Ulisses e as sereias, como numa ópera
LITERATURA É um livro excepcional. Irretocável. O trabalho de um jornalista culto, escrupuloso, que atingiu o objetivo de abrir as portas de Homero para o leigo e transformar essa leitura numa experiência que se repetirá pelo resto da vida. Mello e Souza não teve “a pretensão de escrever um livro erudito”: “A minha grande preocupação foi a de relacionar, com a maior clareza possível, os dados já conhecidos, para que os estudantes de hoje não encontrem, de início, as mesmas dificuldades que passei a ter, desde o dia em que li Homero pela primeira vez, há mais de quarenta anos.” Não se trata, porém, de um livro pueril: “O meu cuidado constante foi o de descomplicar sem vulgarizar”. Mello e Souza dá a impressão de que leu tudo. As referências bibliográficas são um guia precioso. E, como ele próprio é um poeta de qualidade – recomendo Passageiro do Tempo, editora Nova Fronteira, 1985 –, recolhe as citações com apuro e, muitas vezes, faz a tradução, sempre elegante. Vejam como Helena, desencantada com Páris, que a levou para Tróia, responde à ordem da deusa Afrodite de que fosse ter com Páris (Ilíada, Canto III): – Vá para perto de Páris, renuncie ao caminho dos deuses, não volte mais ao Olimpo; console-o sem parar, proteja-o, até que ele faça de ti sua mulher ou sua escrava”. – Por mim, não irei – isto seria indigno – arrumar e compartilhar a sua cama. Todos os troianos, pelas minhas costas, me recriminariam. E eu já tenho, em meu coração, dores infinitas. A deusa ordena, de novo, com veemência, e Helena cede. Veja a qualidade da tradução (e a genialidade de Homero): “Ela (Afrodite) disse e amedrontou Helena, filha de Zeus. Ela foi, abaixando seu véu de uma alvura fulgurante, em silêncio; e nenhuma troiana a viu partir. Diante dela, caminhava a divindade...”(4) Ou quando localiza a tradução de Oscar Mendes de um poema de Edgar Allan Poe, inteiramente seduzido por Helena (que Homero, aliás, jamais descreveu como era fisicamente): “Tua beleza, Helena, faz pensar nesses barcos de Nice que, por mar perfumado, levavam, docemente, outrora, o viajor cansado e doente ao seu nativo lar. Quanto oceano sulquei, desesperado! E em teu nobre perfil, na flava coma, no encanto pela náiade imitado, volto à Grécia gloriosa do passado e ao esplendor de Roma.” Outra rara virtude do livro de Mello e Souza é que ele não tenta empurrar a sua opinião goela abaixo do leitor. Hoje, qualquer repórter de quinta, de Brasília, tem opinião sobre tudo; a imprensa brasileira tornou-se uma imprensa de colunistas, e aqui se sepultou aquela máxima do jornalismo americano, em que o leitor diz ao jornalista: Give me the facts, I'll provide the opinion (“Dê-me os fatos, que eu entro com a opinião”). Mello e Souza é jornalista de outra categoria. Homero existiu ou não existiu? Foi ele quem “escreveu” a Ilíada e a Odisséia? Helena era uma adúltera, vulgar, que sonhava em ir ao Castelo de Caras; ou uma mulher altiva, esposa exemplar – como na Odisséia –, impelida pelos deuses aos braços de Páris e, por isso, obrigada a destruir navios? Foi sempre uma agente grega infiltrada em Tróia? Como explicar a cumplicidade com Ulisses, quando ele fez uma incursão secreta a Tróia e ela o reconheceu, depois de despi-lo?
Detalhe de ilustração da Guerra de Tróia
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LITERATURA (Odisséia, Canto IV) Até troianos poderosos seriam capazes de inocentá-la. Como Príamo, o pai de Páris: “Para mim, tu não és a responsável, e sim os deuses, que excitaram esta deplorável guerra com os aqueus”. Helena é lenda ou mito? Mortal ou imortal? Problema seu. Mello e Souza oferece ao leitor todas as hipóteses, os melhores autores e as melhores citações. Você escolhe o caminho. Você aprende logo que é muito difícil atribuir valores na Grécia, determinar o certo e o errado. Gregos e troianos têm razão, acho eu. Agamenon e Aquiles têm razão. Agamenon e Clitemnestra têm razão. E Electra mata Clitemnestra. Antígona e Creonte têm razão. Ela, a razão da moral. Ele, a do Direito e do Estado. Morrem Antígona, o filho e a mulher de Creonte, que, no fim, “esmagado pelo destino”, pede: “Levai-me imediatamente, escravos, para bem longe, pois não sou mais nada”. Na Grécia, era um risco buscar a verdade obcecadamente. Ao descobrir que matara o pai e casara com a mãe, Édipo encerrou a investigação que o levou à verdade e agiu: “...tirou das roupas dela (de Jocasta, a mãe/mulher) uns broches de ouro que as adornavam, segurou-os firmemente e sem vacilação furou os próprios olhos”. Verdade ou mentira? Certo ou errado? É complicado, como demonstra o poeta W.H. Auden, na introdução à antologia The Portable Greek Reader, em tradução de Mello e Souza: “O mundo de Homero é insuportavelmente triste porque nada transcende o momento imediato. Alguém está feliz ou infeliz, alguém ganha ou perde, finalmente alguém morre. Isto é tudo. Alegria e tristeza são apenas o que a pessoa sente em um dado momento. Não há outro sentido além disso. Eles vão e vêm, não apontam para nenhuma direção, não muda nada. É um mundo trágico, mas um mundo sem culpa porque a falha trágica não é da natureza humana, menos ainda uma falha de caráter individual, mas uma falha na natureza da existência”. Por essas e outras, como diria Nietzsche, que começou a vida como professor de filologia grega, foi que o homem precisou de Platão e do cristianismo, a versão populista do platonismo (segundo Nietzsche.). No livro Cinco Prefácios para Cinco Livros Não Escritos, Nietzsche exalta a deusa Éris, na verdade as duas deusas Nietzsche exaltou a deusa Éris e a Éris, segundo ele, “um dos mais notáveis competição pensamentos helênicos, digno de ser gravado no portal de entrada da ética helênica”. Por quê? Porque “uma delas”, segundo Hesíodo, “conduz à guerra má e ao combate, a cruel!... a outra, porém, foi posta por Zeus como algo bem melhor. Ela conduz até mesmo o homem sem capacidade para o trabalho”. Nietzsche gosta dessa Éris dupla, boa e má. E principalmente porque ela provoca a disputa, a competição, já que, para ele, o homem grego é invejoso. Para Auden, do herói homérico se dirá: “Ele conseguiu o que nós não conseguimos”. E como se reforçasse Nietzsche e a idéia do espírito de competição, Auden acha que “hoje, o que há de mais parecido com o herói de Homero é o piloto de um avião de caça”. Imagens: Reprodução
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LITERATURA Com a ajuda de Mello e Souza, fui longe com a Ilíada, como se vê. O interessante é que Homero acaba a Ilíada antes do fim da Guerra de Tróia. E por isso nos obriga a outra viagem alucinante através dos tempos. A Guerra de Tróia foi no século 13 ou no século 12, a.C.; Homero a “escreveu” por volta dos séculos 9 e 8. Mas a Guerra de Tróia só acaba, de fato, na Eneida, Livro II, de Virgílio, no ano 30 a.C. Enéas explica a Dido como Tróia caiu. E ali se conhece o fim apavorante de Laocoonte e os filhos, devorados pelas duas serpentes, que se aproximaram “alongando sobre o mar seus imensos anéis”. Laocoonte, como Cassandra, tentou explicar aos troianos que o cavalo deveria ficar fora das muralhas de Tróia. E os dois tiveram um final infeliz – como Tróia. E Ulisses, o mais astuto de todos? (Habermas chega a dizer que, para Adorno, Ulisses seria o primeiro Iluminista!) Homero conta na Odisséia como Ulisses volta a Ítaca e aos braços da fidelíssima Penélope – a anti-Helena. Mas não conta como Ulisses morreu (Homero gostava de finais bruscos). É preciso viajar até o ano 1308 da Era Cristã, ao Canto XXVI, da Divina Comédia. Dante, que provavelmente não leu Homero, colocou Ulisses no Oitavo Círculo do Inferno, o dos Maus Conselheiros, na companhia dos Hipócritas e dos que semeiam a discórdia. Ali, sabe-se que Ulisses não ficou em Ítaca (Penélope devia ser uma chata!). Voltou com os amigos ao mar “em busca da virtude e da sabedoria”. E diante de uma montanha (Gibraltar?) “mais alta do que qualquer outra que tivesse visto antes”, e antes que pudesse chegar a terra firme (América?), submergiu, until the sea was closed over us, na tradução do poeta americano W. S. Merwin. Todas essas considerações devem ser inúteis, diante da beleza de Helena. Em As Troianas, de Eurípides, Menelau, o marido traído, promove o julgamento de Helena. Hécuba, viúva de Príamo e mãe de Páris, faz uma das mais brilhantes acusações da história da dramaturgia de tribunais. Só não é mais convincente do que Gregory Peck em To Kill a Mockingbird. Helena defende-se como pode – argumentos rasos expostos com inteligência. O próprio juiz, Menelau, anuncia que vai condená-la: “As súplicas desta mulher não me comovem. Determino a meus soldados que a levem logo para a nau em cuja popa será reconduzida à força para a Grécia”. Hécuba desconfia: “Não seja a nau a mesma que te levará”. “Por quê?”, pergunta Menelau. “Hoje ela é mais pesada do que antes?” Hécuba: “Haverá sempre amor no coração do amante!” Hécuba tinha razão. Como se sabe, Helena reaparece gloriosa na Odisséia como a mulher do rei Menelau. Não se deve navegar na mesma nau que leve Helena à Grécia. Diz Homero, na tradução de Mello e Souza: “...a seu lado (de Menelau) deita-se Helena, de longa túnica sem mangas, magnífica entre as mulheres”. “Rapidamente, Helena se cobre de véus de alvura resplandecente; depois, chorando lágrimas de ternura, deixa o seu quarto.’ “O que distinguia Helena”, segundo Mello e Souza, “era a sua alucinante beleza, que alegrava os deuses, transtornando os homens e deslumbrando os poetas.” (Por que será que as adúlteras – Helena, Capitu, Ana Karenina, Madame Bovary – dão grandes personagens?) Mello e Souza encerra o livro com Marlowe, em Tragical History of Dr. Faustus. Fausto pede a Mefistófeles para ver Helena pelo menos uma vez. Encantado com o que vê “...dela se despede... e morre feliz”: "Was this the face that launched a thousand ships, and burnt the topless towers of Illium? Sweet Helen, make me immortal with a kiss”. •
Busto de Homero
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Colita /Corbis
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A confissão de Günter Grass O Prêmio Nobel alemão, espécie de reserva moral do país, confessa em seu livro autobiográfico haver pertencido à SS nazista e desencadeia tempestade de críticas Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle, de Lübeck
“E
u fui membro da Waffen-SS”, a revelação do escritor Günter Grass na entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine que precedeu o lançamento em setembro último de seu livro de memórias Beim Häuten der Zwiebel (Editora Steidl) ainda sem título em português (“Descascando a cebola”), abalou o mundo literário e político europeu, repercutindo em vários países. Häuten em alemão significa, literalmente, despelar. Ao “despelar” a cebola, encontramos sempre outra camada embaixo, e mais outra e mais outra. A retirada destas diContinente outubro 2006
versas camadas é para Grass o simbolismo da revelação de fatos de seu passado distante, espinhoso e delicado, até então inadmissíveis e de que só agora ele se liberta. É um livro de memórias dolorosas que trazem de volta os últimos anos da guerra, de um jovem que, como muitos outros de sua geração, viveu e acreditou cegamente no pesadelo nazista. No capítulo “Die Haut unter der Haut” (A pele embaixo da pele) ele descreve o começo da guerra, quando tinha então 12 anos. Lembra-se dos discurssos do “Führer”, dos filmes de propaganda de Goebbles, dos
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Günter Grass no lançamento de Descascando a Cebola
Polonês em Danzig (cena que ele retrataria depois no filme O Tambor). Em casa, sua mãe e toda a família se calam. O jovem Grass também não pergunta mais pelo tio e é como se ele nunca tivesse existido. A primeira vergonha. Por que não perguntou mais pelo Tio Franz? “Não perguntei porque de repente tinha deixado de ser criança e somente as criancas fazem perguntas importantes, ou me calei com medo da resposta?” Neste momento Grasss diz que sua infância terminou. Grass se apresentou voluntariamente para a “U-Booten”, a unidade de submarinos da marinha, aos 15 anos, mas não foi aceito. Segundo o historiador Bernd Wegner em entrevista ao jornal Die Zeit, o alistamento na tropa de AFP Photo DDP/Marcus Brandt
bombardeios da guerra, dos heróis dos submarinos e dos pilotos militares condecorados e de como se sentia um cavaleiro das cruzadas lutando contra inimigos imaginários, defendendo a “Vaterland”. Cego para tudo que acontecia, não percebia o escalamento da crueldade e injustiças constantes perpetradas pelo regime de Hitler. Não tinha conhecimento dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau nem da prática da exterminação em massa, mas todos sabiam do campo de Stutthof nas proximidades de sua cidade natal Danzig (hoje Gdansk, Polônia). E a cegueira continuava. Via-se como um vingador queimando hereges e bruxas. O Tio Franz, primo de sua mãe, é morto pelos nazistas, defendendo o Correio
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LITERATURA AFP Photo/Reprodução
Hitler cumprimenta jovens membros da tropa de elite SS, em 1937, ao lado de Heinrich Himmler, chefe da Gestapo, a polícia secreta nazista
elite nazista “Waffen-SS” (SS significa em alemão “Schutzstaffel” ou esquadrão de proteção) no início da guerra era voluntário e restrito aos jovens maiores de 17 anos e de pura origem ariana. Porém, nos últimos meses entre 1944 – 45 ela estava recrutando indiscriminada e obrigatoriamente jovens, estrangeiros e velhos. Por ter se apresentado voluntariamente para a marinha, Grass recebe dois anos depois a convocação da “Wafen SS” e é enviado para a “Division Frundsberg”, uma clássica e forte divisão de elite com 19.000 homens. Lá vê pela primeira vez as insígnias em letras rúnicas do uniforme da SS, sem perceber, afirma, que estava ingressando na maior organização criminosa da Segunda Guerra, na polícia nazista que sob o comando de Himmler era temida mesmo dentro do exército alemão e conhecida pela sua notória brutalidade, pelos infames massacres de comunidades inteiras como os de Oradour sur Glane e Sant'Anna di Stazzema e pelos extermínios nos campos de concentração. Somente no tribunal de Nüremberg, afirma Günter Grass, após ouvir o depoimento de Baldur von Schirac, líder da Juventude Hitlerista, ele passa a acreditar nos crimes horrendos perpetrados pelo nazismo. Grass esteve na “Waffen-SS “entre fevereiro e março de 1945, três meses. Foram necessários 60 anos para exorcizar esta culpa que segundo ele: “Caiu sobre mim como uma desgraça”. Continente outubro 2006
A mídia transformou o caso Günter Grass num escândalo moral e político e muitos jornalistas e críticos literários o bombardeiam feroz e desrespeitosamente na tentativa de desacreditar sua obra literária que muitos não leram, e dilacerar seu passado e percurso político que o tornaram a consciência da geração do pós-guerra na Alemanha. Dela vem a especulação irresponsável que aposta num golpe publicitário da editora, ou na estratégia de Grass de proteger sua candidatura ao Prêmio Nobel que veio em 1999, e que não teria se concretizado, argumentam, caso ele tivesse exposto esta fase de sua vida. Grass declarou recentemente: “Eu espero que alguns críticos agora leiam atentamente meu livro”. A obra literária de Günter Grass não está em julgamento, ela permance intocável. A revelação tardia vem no momento em que ele finalmente escreve suas memórias de infância e adolescência. “Isto me pressionou muito. O meu silêncio de todos esse anos é a razão porque eu escrevi este livro. Isto tinha que ser colocado para fora”, desabafa Grass em entrevista ao jornalista Frank Schirrmacher do Frankfurter Allgemeine em 12 agosto passado. Expondo episódios de sua vida e reconhecendo publicamente suas culpas, ele revira feridas que talvez nunca possam cicatrizar. Vão doer para sempre. Como ainda dói na Alemanha o passado nazista, que sistema-
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A obra literária de Günter Grass não está em julgamento, ela permance intocável. A revelação tardia vem no momento em que ele finalmente escreve suas memórias de infância e adolescência ticamente é discutido em documentários de televisão, filmes, programas de debates, nas escolas, jornais, livros e revistas. A confrontação crítica com o passado nazista foi a maneira que a sociedade alemã encontrou para exorcizar os demônios do nacional socialismo, lidar com uma realidade histórica monstruosa e construir uma sociedade democrática, aberta e tolerante. Neste processo, que ainda continua, a obra literária de Günter Grass foi fundamental, como também seu engajamento político contra o totalitarismo, a xenofobia e o nacionalismo. Sua voz bradou alto contra a guerra do Vietnã, contra a tirania de Bush, contra a Guerra do Iraque, e continuará, diz ele, quando achar necessário. A crítica jornalística séria questiona não o fato de Grass, aos 17 anos, ter pertencido por três meses à SS, nem as circunstâncias que o levaram e a muitos de sua geração, como o papa Benedito XVI, a fazer o mesmo, mas o silêncio e a confissão tardia deste passado espinhoso, delicado e difícil de admitir para si mesmo e para o mundo inteiro. Grass trabalhou esta verdade amarga, – silêncio ou “erro” como muitos o chamam, durante 60 anos em sua obra literária e militância política e agora o tornou público. O mais problemático é a acusação de falso moralista, já que Grass sempre atacou violentamente seus opositores, sem ter seu próprio passado revelado. Na avalanche de recriminações ferozes, irônicas e algumas ofensivas que eclodiram na Alemanha em agosto, Grass recebeu também apoio de personalidades de todo o mundo, como Salman Rushdie, John Irving, Ralph Giordano, Mario Vargas Llosa, Christa Wolf, entre outros, e leu publicamente seu livro pela primeira vez no teatro “Berliner Ensemble”, em 4 de setembro, para um auditório de 600 pessoas. Grass declarou sob aplausos: “Eu nunca pensei que os críticos literários pudessem argumentar tão abaixo de seus próprios níveis”. •
Trecho Grass recebe a convocação para viajar para Dresden. No caminho, entre sirenas de alerta de bombardeio muda várias vezes de estação e pela janela vê os escombros da guerra. Ruas inteiras com casas destruídas ou em chamas que durante o bombardeio da noite foram consumidas pelo fogo. Em Dresden, ele recebe uma outra nova ordem de convocação para ir a Neustadt e só então é informado que foi recrutado para um campo de treinamento da “Waffen-SS” em algum lugar distante na floresta da Boêmia. Segue-se um trecho do relato do capítulo “Wie ich das Fürchten lernte” (literalmente, “Como eu aprendi o medo”): “Eu via a Waffen-SS como uma unidade de elite. (...) A dupla letra rúnica no colarinho do uniforme não era imoral para mim. (…) Para o menino, que se via como homem, seria importante lutar numa divisão de prestígio: senão na divisão de submarinos cuja resposta da convocação especial nunca veio, então como fuzileiro na divisão de tanques “Jörgs von Frundsberg” (...) A “Waffen-SS” me parecia um pouco européia: na divisão lutavam juntos no front oriental voluntários franceses, flamengos e holandeses, muitos noruegueses e dinamarqueses, até mesmo suecos neutros, numa batalha de defesa, como se dizia na época, para libertar o Ocidente da enchente bolchevista. (...) O que aceitei com o orgulho estúpido de minha juventude, depois da guerra quis silenciar pela vergonha que cresceu dentro de mim. Sim, o peso permaneceu e ninguém pôde aliviá-lo. (…) Eu sei que terei que viver com isto o resto da vida.”
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FICÇÃO
Nós que brincaremos com as sombras no caminho das estrelas Vicente Franz Cecim
Primeiro foi a Estrela, que nos cegou sem fúria Depois, foram os choros de todos nós, homenzinhos sem luz, sós no escuro, nós, as crianças do Nada. Mas depois tudo ficou bem, foi ficando bem: vieram os animais, na intimidade do escuro, se roçando em nós. E fomos voltando a sentir alegria. Principalmente quando os nossos entes queridos começaram a renascer, retornando da terra E pais e tios e avós antiqüíssimos se chegando, primos com cheiro brando de terra, nos falando música, flautas através dos seus ossos tão antigos afinados pelo pó. Me cheguei a um tio meu, Oniro, morto-esquecido de cem cem mil anos, aquelas sombras ao nosso redor: – Tio, eu disse. E ele: – , invisivelmente – Tio, o que foi essa Estrela que nos cegou e ao mesmo tempo nos deu a luz de rever tanta coisa boa antiga: animais novamente cheirando homens, mortos retornando com ossos de flautas? E ele: – , invisivelmente ainda também a sua voz. Mas depois aquela voz veio e disse: –É o renascer, meu filho, das coisas perdidas. É a pata em tua face. É o som sem som das coisas, ouve: a música muda. É a ternura sem palavras: a única que conta Psiu. Porque foste dado às sombras Continente outubro 2006
Seguimos, então, nós três, pelo caminho. Amando mais os animais em que montávamos. Pesavam em nós o Ouro, o Incenso e a Mirra. Mas finalmente entendíamos que pesavam muito mais no lombo dos nossos animais calados. Então, lançamos fora as dádivas, toda a carga amorosa. E chegamos lá de mãos vazias Jamais fui tão bem recebido em minha vida Ah a minha primeira lágrima, diante do olhar bovino, na manjedoura, de um dos simbólicos animais mansinhos Ah, por que não queimamos naquela mesma noite, a noite da Sua segunda vinda, da nossa Segunda chance, no fogo das Sombras, a Coroa e os Espinhos • Vicente Franz Cecim nasceu e vive na Amazônia, em Belém do Pará. Suas obras estão reunidas sob o título Viagem a Andara, o Livro Invisível. Em 1988, os sete primeiros livros visíveis de Andara lançados pela Iluminuras, em volume único, receberam o Grande Prêmio da Crítica da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Os novos livros de Andara estão reunidos nos volumes: Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo, 1994), Ó Serdespanto (Íman, Lisboa, 2001) e K O Escuro da Semente (Ver o Verso, Maia, Portugal, 2005). e-mail do autor: andara@nautilus.com.br
LITERATURA
Dois poemas inéditos de
A combustível
memória
Carlos Nejar
A história do mundo é casa de andares, com um só vivente, o vento. Passeia suas chinelas nas escadas turbulentas. E a escuridão não sabe de onde vem ou vai. Nem minha carga de água. O que passa é o que fica. E as imagens saem das gavetas de incaicos armários. Buscam completar-se ou se desfazem. As invenções são falcões junto ao sótão; as guerras. trovoadas; o amor, felinos relâmpagos na cama. Depois a história recomeça na varanda dos sentidos, ou na sala. Pedras rústicas Guardam palavras indecifráveis E bisontes. E a história humana é a passagem do vento sobre as ervas. E a passagem das ervas pela pedra. Com o teto encoberto. O que toca o pergaminho, toca a intimidade das letras ardendo. No vento a história é combustão. E é vento, atrás da porta, o paraíso.
Antielegia
da perda Tudo o que o amor viveu, se chora num só dia. E choramos o mundo que não chora, não sabe mais chorar. e se chorasse ao menos, poderia consolar-se. Não, não há disfarce sequer para a alegria. E nem ela consegue preserva-se. O que o amor viveu, basta um instante, para todo ruir e sem vôo de ave, é vacilante o sol, rompe-se o céu. Não há terror como o que já se deu, antes de acontecer.
Carlos Nejar nasceu em Porto Alegre, RS. Membro da Academia Brasileira de Letras, publicou os livros Sélesis (1960), O Campeador e o Vento (1966), Canga (1971), O Poço do Calabouço (1974), Árvore do Mundo (1977), O Chapéu das Estações (1978), Os Viventes (1979), Livro de Gazéis (1984), Memórias do Porão (1985), entre outros.
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AGENDA/LIVROS Família maldita No romance Caim, Márcia Denser relata a história de uma família tradicional paulistana com seus conflitos, misérias, alegrias, tristezas, conquistas e derrotas. A autora consegue prender a atenção do leitor justamente pela inteligência dos diálogos, em tom de uma rememoração que não cede espaço à pieguice ou ao passadismo, mas a uma visão centrada no real que absorve o poético. O livro culmina com a pressa de uma das personagens em dirigir-se ao hospital para o trabalho de parto, para o nascimento daquele que poderá vir a redimir a maldição da família. Caim (Sagrados Laços Frouxos), Márcia Denser, Record, 144 páginas, R$ 32,00.
A fala da galera
Poética desenfreada Novo volume das obras de Roberto Piva ratifica uma poesia delirante e o culto ao corpo
A
caba de ser lançado o volume 2 das Obras Reunidas de Roberto Piva, Mala na Mão & Asas Pretas. Piva vem trabalhando desde os anos 60 uma poesia que envolve o delírio, a transgressão e o culto ao corpo. Tem como poetas mais aproximados os franceses Rimbaud, Baudelaire e Lautréamont. Dos brasileiros, rende homenagem a Murilo Mendes, Jorge de Lima e Oswald de Andrade. São quatro livros publicados entre 1976 e 1983, que reúnem parte substancial da sua poesia, e nos quais ele não se esquiva em assumir a utilização de drogas, o homossexualismo desenfreado e certa peregrinação visionária noturna por São Paulo. Suas formas revelam o gosto pelos poemas espaciais, pela fragmentação da sintaxe e pela inventividade a todo custo, pagando o preço de tornar-se às vezes incompreensível, como em Quizumba (1983). A obra contém ainda três manifestos, onde ele investe contra o consumismo da sociedade exageradamente massificada e contra o conservadorismo em suas formas mais presentificadas, atirando tanto na esquerda como na direita, em católicos quanto em evangélicos. Dispara no manifesto “O Século XXI me dará Razão” contra a “civilização cristã & ocidental com sua tecnologia de extermínio & ferro-velho”, com seus “poetas babosos” e seus “literatos sedentários”. Contudo, ao pregar um anarquismo utópico e hedonista, deixa entrever sua clara opção por um individualismo baseado numa política da sexualidade do corpo e para o corpo. E é esta a grande sacada de sua poesia: tendo como palco a cidade de São Paulo, manter-se sempre em alerta a todas as ocorrências da intervenção cultural e a todos os praticismos políticos, sociais e existenciais da humanidade. (Luiz Carlos Monteiro) Mala na Mão & Asas Pretas, Roberto Piva, Editora Globo, 176 páginas, R$ 38,00. Continente outubro 2006
A história dos jovens suburbanos das grandes cidades ainda pode render textos como Faca na Garganta. Hermes Leal traça um roteiro das andanças e curtições de uma galera preocupada apenas em transar, ingerir drogas leves ou pesadas e dançar nas festas feitas para os descolados da hora e do lugar. No livro, não há nenhum parágrafo sem a presença da gíria ou do dialeto urbano, que só entende quem faz parte da tribo. Para o leitor fora deste circuito, pode parecer um tanto incompreensíveis tais vivências, mas elas estão aí e se repetem gerações afora. Faca na Garganta, Hermes Leal, Geração Editorial, 186 páginas, R$ 29,00.
Cartas a um Jovem Escritor Nesta interessante obra, Vargas Llosa escreve a um aspirante a romancista e responde às suas dúvidas: como se chega a ser um escritor? De onde saem as histórias que os grandes escritores narram? É possível falar da liberdade e da responsabilidade do escritor? Utilizando sua vasta erudição e experiência, ele aborda todos os temas que interessam aos que desejam responder ao chamado de uma vocação que, além de talento natural, exige esforço e constância. Cartas a um Jovem Escritor, Mario Vargas Llosa, Alegro Editora, 181 páginas, R$ 29,20.
Traições e heroísmos Nem Santos nem Anjos é um romance escrito a partir do ponto de vista de uma mulher, Kristýna Pilna, uma dentista de meia-idade, divorciada e depressiva, nascida no dia da morte de Stalin, e que “sempre quis viver uma vida diferente da que vivo”. Seu pai morreu, o exmarido agoniza, a filha, cantora de uma banda punk chamada Os Filhos do Diabo é viciada em heroína. Sua voz narrativa sobressai e, somada ao olhar da filha rebelde e do namorado, bem mais jovem, em quem não confia, forma um painel de três gerações de uma nação em transformação. (Luiz Arrais) Nem Santos, nem Anjos, Ivan Klíma, Record, 336 páginas, R$ 46,00.
AGENDA/LIVROS Flávio Lamenha
Vida cigana Muita gente, quando criança, ao ver um circo, certamente sonhou em fugir de casa e se agregar a ele para levar uma vida aventureira e exibir-se fazendo malabarismos, enfrentando feras, voando no trapézio ou deslumbrando com magias. Pois neste romance mexicano ocorre o contrário. Um anão com idéias megalômanas, uma mulher realmente barbada, um mágico com problemas de identidade e mais meia dúzia de seres “tipicamente circenses” almejam largar a vida cigana e se estabelecer numa cidade, passando a exercer profissões corriqueiras, como as de médico, jornalista, agricultor ou, até mesmo, puta. Santa Rita do Circo, David Toscana, Casa da Palavra, 224 páginas, R$ 37,00.
Poetisa pernambucana Márcia Cavendish Wanderley
Poesia, mulher e morte Primeiro livro de poemas de Márcia Cavendish faz referência às trágicas Sylvia Plath, Anne Sexton e Emily Dickinson
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árcia Cavendish Wanderley tem grande interesse pelo papel da mulher na literatura. Pernambucana, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974, ao lado do marido, o poeta e tradutor Jorge Wanderley, falecido em 1999. Márcia é autora de livros que envolvem sociologia, antropologia e literatura. Em A Voz Embargada: Imagens de Mulher em Romances Brasileiros e Ingleses no Século 19, Márcia faz comparação entre a linguagem do homem e a representação que eles fazem da mulher no século 19 no Brasil, na obra de Machado de Assis e José de Alencar; e a representação que a mulher fez de si mesma na Inglaterra, através de Charlotte e Emily Brontë. Em Presença Feminina na Literatura Brasileira pós-64, relaciona o momento histórico com a produção que as mulheres começaram a fazer dentro da área literária. Em seu primeiro livro de poesia, O Terceiro Jardim, Terceiro Jardim, Márcia conta um Márcia Cavendish pouco de sua história, seus senti- Wanderley, Editora da mentos e dedica poemas a três Palavra, 46 páginas, mulheres com histórias duras de vida R$ 23,00. e mortes trágicas – Sylvia Plath que se suicidou inalando gás de cozinha; Anne Sexton, que inalou monóxido de carbono até tirar sua própria vida, em 1974; e Emily Dickinson, que compôs cerca de 1.600 poemas e morreu de uma infecção nos rins. Passar da linguagem racional e metódica do texto acadêmico para a poesia foi um desafio. Essa caminhada, segundo a poetisa, começou com Jorge Wanderley, seu “iniciador no mundo da poesia e do amor, onde até hoje permaneço em feliz convivência, apesar de seu desaparecimento”. (Diego Dubard)
Arte na rede
Com o subtítulo de “Aberturas Contemporâneas”, este livro estuda a forma como as estruturas midiáticas pós-modernas não só dessacralizaram o espaço das artes como dessacralizaram a própria arte, hoje espalhada por todos os recantos da vida, esperando apenas que o artista a eleja. Mostra também como a obra de arte está envolvida na mesma rede que comporta programas de TV, internet, galerias, revistas, outdoors e museus, todos, elementos destituídos de hierarquia e interagindo de forma intensa. Embora voltado particularmente a educadores, é livro útil a quem quer entender arte contemporânea. Mídia e Arte, Alexandre Dias Ramos, Editora Zouk, 128 páginas, R$ 23,00.
Brocado de seda Um excelente exemplo do método de transcriação (tradução criativa) de Haroldo de Campos. Comparando o belo resultado final na recriação desta peça-poema, uma clássico do teatro nô japonês, com suas fontes, podemos avaliar melhor o talento de Haroldo. Por fontes, temos, no mesmo livro, a tradução literal da peça, por Darci Yasuco Kusano e Elza Taeko Dói, mais a explicação dos ideogramas utilizados no poema, mostrando como cada um, mais que uma palavra, é um conceito. Vemos como HC vai recriando este brocado de seda em suas cintilações sonoras, semânticas e visuais. Haboromo de Zeami, Haroldo de Campos, Estação Liberdade, 128 páginas, R$ 28,00.
Sem assovios
Os autores deste livro pesquisaram em jornais, registros médicos e policiais, a visão que a sociedade brasileira teve do homossexualismo, de 1870 a 1980. Classificados em “invertidos” (os que já nasceram com tendências) e “pervertidos” (os que mudaram depois), foram tratados ou como doentes ou como criminosos, sendo freqüentemente recolhidos a manicômios e prisões. O nível de ignorância chegava a tal ponto que certo médico afirmava que se poderia reconhecer facilmente um homossexual porque, tal como as mulheres, não saberia assoviar. Frescos Trópicos, James N. Green/Ronald Polito, José Olympio, 196 páginas, R$ 27,00. Continente outubro 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Sal, corrupção, Vieira “Em Roma tudo está à venda" Salústio (86? 35 a.C.)
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empre gostei do padre Antonio Vieira. Era um guerrilheiro da fé, no sentido medieval, e defensor dos índios, dos judeus e dos negros. Conheceu a cadeia e combateu, em Roma, a Inquisição, este pecado capital da Igreja Católica. Foi perseguido pelos fazendeiros do Maranhão. Em coragem e bravura intelectual ombreava-se com o padre José Agostinho de Macedo, que fez a única tradução das Odes de Horácio que consegui ler. Agostinho fez um milhão de inimigos e vivia a desancar Camões, ninguém sabe por quê. Portugal foi o berço de alguns padres brabos e literariamente brilhantes. Quanto a Vieira, veio para o Brasil aos seis anos de idade. Seu barroco europeu está misturado com a sintaxe e a semântica do Brasil seiscentista. O que deve ter trazido do berço foi a bravura e a inquietude que marcaram sua longa vida. Apontou sua pena contra Nassau, o invasor, contra tudo que era opressão. Tenho em mãos, da coleção de livros raros da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco, excelente antologia dos Sermões de Vieira, belamente encadernada e que, além do “Sermão de Santo Antonio”, traz outra peça famosa: o “Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”. Do ponto de vista estético, sempre gostei mais do primeiro. O “Sermão de Santo Antonio” é dedicado “À miserável província do Brasil”. Ele o inicia com a frase de Cristo “sois o sal da terra”, dita no “Sermão das Oito Aventuranças” (Mateus, 5). Vieira entende, e nisto está Continente outubro 2006
com a razão, que o Salvador não estaria dando um recado à população em geral que o ouvia, mas aos pregadores, aos que levaram a sua mensagem ao povo. Sou obrigado a transcrever uns trechos para justificar a metáfora do sal como a fé dos pregadores: “O efeito do sal é impedir a corrupção. Mas como a terra (Brasil) se vê tão corrupta como está a nossa (...), qual será, ou qual pode ser a causa dessa corrupção?”
Vieira, como todo retórico expressivo, faz um jogo paralelístico, cujo núcleo, respondendo a pergunta, é este: “Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa ‘salgar’, ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra, ou porque a terra não a (se) deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, não querem receber, (...)”
E assim segue ele colocando em seu jogo o sal, os pregadores e os ouvintes, e forçando a capacidade lógica do ouvinte de ontem e do leitor de hoje. Se traduzirmos a metáfora sal por fé, corrupção por pecado e pregadores por políticos, e retraduzirmos fé por ética e mantivermos corrupção, agora no sentido de fraude, de avanço às receitas públicas, cairemos no Brasil deste ano de 2005, do 3º milênio, bem distante do século 17, do 2º milênio. Se Antonio Vieira, um padre, um grande missionário, de uma religiosidade bem próxima à medieval, andava mais preocupado com o pecado, a heresia e os costumes de sua época, hoje andamos encurralados por
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políticos criminosos, que roubam o dinheiro público, oriundo dos impostos que pagamos. Nossa luta é dentro de um Brasil secular, dominado pelo capital financeiro, às vezes pelas armas e sempre pelos políticos corruptos. Muito longe daquele Brasil inocente, “província miserável” do século 18. O sal é a ética que não vinga no mundo político, o sal que não salga, impedindo a corrupção/podridão. Seus pregadores seriam, no caso, os políticos, que “dizem uma coisa e fazem outra”. Uma alteração semântica nas metáforas de Vieira, e ele se deslocará no tempo, mas não no espaço. Há, embora poucos, pregadores ou políticos honestos, que embora preguem uma “verdadeira doutrina que lhes dão (aos ouvintes), não querem receber”. O nosso padre, certamente, esteve muitas vezes em tal situação e, talvez, por isso admirava tanto o seu conterrâneo de além-mar, Santo Antonio. Este santo começou a mortificar-se ao sentir que “as praças” não mais queriam ouvi-lo. Resolveu, imaginem meus milhões de leitores, ir fazer sua pregação diante do oceano. À medida que pregava, iam surgindo nas águas milhares de peixes, de todos os tamanhos, com as cabeças emersas, para ouvi-lo.
A partir da descrição desse episódio, Vieira dá continuidade a seus sermões fazendo comparação entre os peixes e os homens, daí porque este sermão é também chamado “Sermão dos Peixes”. Por uma série de razões, gosto do barroquismo de Vieira. Por não ser ornamental, como o de boa parte dos poetas barrocos, mas repleto de metáforas visuais conteudisticamente precisas, das dicotomias e demais recursos barrocos que em sua prosa funcionam lógica e esteticamente. O barroco de Vieira deu vazão a sua tumultuada vida, não só no campo religioso, mas nos maiores episódios políticos e sociais de sua época. Linguagem ou vida a seu modo tumultuadas. Segundo Afrânio Peixoto, a prosa nunca tivera “desde Aristóteles e Quintiliano, mestre mais eloqüente”. É considerado até hoje um dos maiores mestres da língua, mas falava 7 idiomas indígenas e, diferentemente de uma grande parte das ordens religiosas, que eram escravocatas, defendeu os índios, os judeus e os negros, como já nos referimos anteriormente. Aos 89 anos, 50 no Brasil, morreu o grande jesuíta. Seu sucessor, no Brasil, foi com todas as honras, Frei Caneca, fuzilado com 46 anos. Vivesse mais, ombrearia com Vieira, ou não? • Continente outubro 2006
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PERFIL
Talese, que maneja os personagens como trunfo, é ele próprio um personagem
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Divulgação
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GAY TALESE
A arte de escrever devagar Jornalista a quem se atribui a invenção do Novo Jornalismo é a antítese da imagem do repórter apressado e na sua lendária lentidão reside a qualidade de um texto meticuloso Paulo Polzonoff Jr., de Nova York
O
caríssimo terno sob medida, o rosto cheio de ângulos, a fala fácil e interessante: Gay Talese está no púlpito improvisado no meio da Strand Bookstore. Para uma platéia de 50 nova-iorquinos e um curitibano, corajosos o suficiente para enfrentar o calor do final do dia, ele fala sobre seu mais recente livro, A Writer's Life (Uma Vida de Escritor). Considerado o mais importante escritor de não-ficção americano e um dos inventores do que se convencionou chamar de Novo Jornalismo, tudo o que Talese diz a respeito da nobre arte de contar o que acontece no mundo ganha contornos de palavra sagrada. É mais ou menos isso. Talese nasceu numa casa de imigrantes italianos na pequena cidade de Ocean Park, em Nova Jersey, em 1932. Ele começou a escrever no jornalzinho do colégio, como colunista de esportes. Do alto dos seus 74 anos, Talese poderia se descrever como um predestinado. A Writer's Life, porém, é quase um atestado de que na carreira do jornalista valeu mesmo a persistência: durante seus anos de escola, a disciplina na qual menos se destacou foi justamente o inglês que o tornaria rico e famoso. Anos mais tarde, tentou estudar nas melhores faculdades norte-americanas – em vão. Recebeu nada menos do que 20 recusas e só foi aceito na desprestigiada Universidade do Alabama porque seu pai era amigo de um professor influente por lá. Depois deste começo algo conturbado, a carreira de Gay Talese deslanchou. Em meados da década de 50, ele foi contratado pelo departamento de esportes do jornal The New York Times. Trabalhou apenas 10 anos na redação, durante os quais conseguiu imprimir uma marca bastante pessoal em um trabalho até então marcado pelo anonimato. O que fazia a diferença nos artigos de Talese era seu apego às pessoas. Tanto que passou nove anos escrevendo vários artigos sobre um mesmo e apaixonante personagem: o lutador de boxe Floyd Patterson, famoso por ser um dos maiores perdedores da categoria peso-pesado. Os personagens são o maior trunfo de Gay Talese como jornalista. Ele soube como poucos se aproximar das mais diferentes pessoas, desde celebridades a trabalhadores braçais, passando por esportistas e criminosos. O segredo, ele conta: a indumentária. “Foi uma coisa que minha mãe ensinou: vestir-se bem para causar uma boa impressão. Se vou entrevistar alguém, vou de terno. Isso mostra o quanto eu me importo com o que ele tem para me contar e também como eu me importo com minha carreira e minha reputação”, disse.
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Joel Silveira nos anos 40: precursor do Novo Jornalismo
O problema de Talese com o jornalismo diário é que ele demandava uma pressa irrazoável para alguém que se define menos como jornalista e mais como escritor. Na década de 60, portanto, ele deixou o New York Times para se dedicar a escrever livros-reportagens e longos perfis para revistas que se dispusessem a pagar bem. A troca valeu a pena. Talese virou best-seller internacional justamente com a história do clã Ochs, que desde o início do século 20 controla o jornal onde ele, Talese, trabalhou por uma década: o New York Times. Durante os anos 60 e 70 Talese escreveu suas mais famosas reportagens. Entre elas, o estonteante perfil de Frank Sinatra escrito para a elegante revista Esquire, em 1966. Na verdade, o perfil de Sinatra é um relato enorme de uma não-entrevista com o cantor dos belos olhos azuis. Até hoje, Sinatra Está Resfriado é considerada a peça fundadora do tal Novo Jornalismo. Aqui talvez valha um esclarecimento aos leitores brasileiros sobre esta história de Gay Talese ser considerado o pai de Novo Jornalismo, a famosa e arriscada mistura entre reportagem e ficção, com o uso deliciosamente generalizado de impressões subjetivas e descrições psicológicas dos personagens. Sem querer soar um tolo patriota, o fato é que sabemos que, no Brasil, o Novo Jornalismo já estava bem maduro quando Talese escreveu o perfil de Sinatra para a Esquire. Ora, Joel Silveira não fez outra coisa que não Novo Jornalismo de primeira qualidade em sua cobertura da Segunda Guerra Mundial. E muito antes disso, ao escrever a respeito do casamento dos Matarazzo e sobre a tertúlia literária das dondocas cariocas contra o conflito na Europa. Questões de paternidade à parte, o fato é que Gay Talese acumulou um best-seller depois do outro. O segundo deles foi Honor Thy Father, ao que me consta publicado no Brasil sob o título Honrados Mafiosos, que conta a história de um mafioso que só entrou no crime porque seu pai assim o quis – e por causa disso ele acabou na prisão pelo resto da vida. O livro até hoje causa controvérsia. Talese sempre é questionado sobre as implicações éticas de ter convivido com a Máfia durante os anos de pesquisa. Ao que ele responde com muito bom senso: “Eu tenho minha própria opinião sobre estas coisas. Mas, quando estou pesquisando, me importa entender o que o outro pensa e sente a respeito. Não faço juízo de valor nestas horas. Tento é compreender o outro em toda a sua complexidade”, afirma. Um dos orgulhos de Talese é ser um escritor lento. Tanto assim que, desde a década de 70, ele lançou apenas dois livros: A Mulher do Vizinho, uma história da promiscuidade americana depois da Revolução Sexual dos anos 60, e Unto the Sons, uma história de seus antepassados italianos. A razão para tanta demora (em média 10 anos, entre pesquisa e redação) é o cuidado extremo do jornalista, não só no que se refere à apuração dos fatos, mas também na escultura de um estilo que se faça reconhecível. Companhia das Letras/Divulgação
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PERFIL
Sua demora ao escrever se tornou uma lenda – e também uma piada no mercado editorial americano. Tanto que seu livro de memórias demorou nada menos do que 14 anos para vir à tona. Talese é um escritor meticuloso. E o tempo e o dinheiro que acumulou com a publicação de seus bestsellers anteriores o tornaram ainda mais excêntrico neste sentido. De certo modo, A Writer's Life é uma história não só da vida de Talese, mas sobretudo desta sua dificuldade de escrever com a rapidez exigida hoje em dia. Todos os dias pela manhã ele desce ao andar inferior de sua casa na Rua 61 e, por quatro horas, tenta escrever e escrever. Depois sai para almoçar ou para jogar um pouco de tênis. Quando volta, já no final da tarde, relê o que escreveu. E, não raro, joga tudo fora. Por incrível que pareça, A Writer's Life é também a história de uma vida de fracassos. Claro que Talese fala sobre suas mais famosas reportagens, mas é interessante perceber como ele se estende quando o assunto são as histórias que não se transformaram num texto. No meio do caminho entre Talese e um assunto havia ou um editor mal-humorado ou mesmo um personagem que não quis falar. A Writer's Life é, de certa forma, a história do que poderia ter sido, mas não foi. Às vezes o próprio jornalista é que se concentrou numa história errada. Talese começa contando que, em 1999, ele assistiu à final da Copa do Mundo de Futebol Feminino, entre China e Estados Unidos. A China perdeu na disputa de pênaltis. Talese achou que um perfil da atleta chinesa que perdeu o pênalti decisivo daria uma boa história. Ofereceu-a a um editor, que recusou a oferta. Por conta própria, decidiu ir para a China e contar a vergonha por que teria passado a atleta. Para sua surpresa, porém, acabou por descobrir que, depois de uma ou duas semanas, ninguém na China se lembrava mais do pênalti decisivo. A atleta não foi hostilizada nem tampouco responsabilizada pela derrota do time. Ao contrário, recebeu até palavras de incentivo do presidente. A Writer's Life, portanto, pode ser lido como a história da persistência (que sempre anda de mãos dadas com a teimosia, vale dizer). Tenho repetido com algum enfado que a vida, quando observada de um ponto no presente, sempre nos dá a impressão algo ridículo de determinismo. É interessante que Talese desfaça esta idéia. Por mais que ele seja um homem de sucesso, sua vida profissional foi, na maioria dos dias, uma seqüência de frustrações e fracassos. Felizmente, com momentos de brilhante realização. •
Capas de livros de Talese: um estilo reconhecível
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Quando o silêncio fala mais alto Diante da profusão esquizofrênica de pixels e decibéis dos filmes atuais, o cinema autoral resiste e encontra no silêncio um cúmplice Marcelo Costa
Amelie Sourget/ Beateworks/Corbis
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pesar de pouco mais de um século de existência, o cinema já atravessou profundas transformações na sua maneira de ser feito e pensado, mas também revelou alguns traços impressos em sua composição genética, sujeitos apenas a pequenas mutações adaptativas. Segundo Jean-Claude Carrière, autor de mais de 50 roteiros de filmes, e colaborador de Buñuel, “o cinema ama o silêncio... nasceu silencioso e continua a amar o silêncio”. Se por um lado o fim do cinema mudo representou um encalhe para o desenrolar da linguagem cinematográfica – tendo em vista a supervalorização do texto em detrimento da imagem, cujo entendimento independia de um idioma particular –, com a sonorização, surgiu a oportunidade de se aprofundar na intimidade mais reservada das personagens. O suspiro, o sussurro, a pulsação ganharam vida nas telas para expressar os estranhos sentimentos que permeiam o ser humano e mobilizar as mais diversas experiências sensoriais, até então incompatíveis com a declamação do teatro tradicional e a literatura. Utilizando-se de um famoso comentário de Sacha Guitry “O concerto que vocês acabaram de ouvir é de Wolfgang Amadeus Mozart. E o silêncio que veio depois também é de Mozart”, Carrière ilustra a idéia de que a arte se desloca de um espaço vazio para outro, através de fios invisíveis entre signos chamativos demais. Daí a importância do não-dito, do não-mostrado – o equivalente ao subtexto do teatro – e a necessidade de dominar esses espaços, de escutá-los para melhor povoá-los. Nesse sentido, o cinema revelou alguns mestres que fizeram da sensibilidade de ouvir o silêncio e destruí-lo sua marca maior. Mensageiro de forte conteúdo existencialista, o Através do Espelho, Luz diretor sueco Ingmar Bergman pontuou seus filmes com de Inverno e O Silêncio formam a trilogia de ausências e sussurros que nos permitem absorver a densa Bergman, que traz o silêncio como elemento temático atmosfera proposta, e as inúmeras pauladas conferidas em imagens e diálogos contundentes. Sob incessante sensação de angústia, Bergman desenvolve um cinema de conflitos internos, de questionamento da fé e de profunda análise das relações humanas, sobretudo as familiares, algo prefigurado no também nórdico Carl Th. Dreyer, especialmente em A Palavra (The Ordet, 1950). Sua filmografia é uma prova de coerência temática e cinematográfica. Seus filmes são longos suspiros e o silêncio parece extrapolar a barreira sonora e se expressar nas belas imagens, fotografadas por Sven Nkvist, até ser irrompido por um novo grito, também imagético. Para tornar ainda mais explícita essa relação, Bergman concebeu a Trilogia do Silêncio, composta por Através do Espelho (Sasom I en Spegel, 1961), Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, 1962), e O Silêncio (Tystnaden, 1963), filmes que traziam sua marca autoral – já consagrada por o Sétimo Selo (1956) e Morangos Silvestres (1957) – e o silêncio como elemento temático e estético. Voltaria a manuseá-lo com maestria, em obras-primas como A Hora do Lobo (1968) e Gritos e Sussurros (1973); esta, talvez, a mais ilustrativa da alternância sonora como vertigem sensorial.
Fotos: Divulgação
Segundo Jean-Claude Carrière, autor de mais de 50 roteiros de filmes, e colaborador de Buñuel, "o cinema ama o silêncio... nasceu silencioso e continua a amar o silêncio"
Cena do filme Encontros e Desencontros, de Sophia Coppola: o cinema autoral da atualidade dialogando com o silêncio
Em outra célebre trilogia, a da Incomunicabilidade – formada pelos excelentes A Aventura (L'Aventura, 1960), A Noite (La Notte, 1961) e O Eclipse (L'Eclisse, 1961) – o diretor Michelangelo Antonioni consolidou sua linguagem narrativa, centrada no não-dito, na incomunicabilidade humana. Com um andamento lento, entediante para muitos, sua obra pode passar a sensação de que pouca coisa, ou mesmo nada acontece. De acordo com o próprio cineasta italiano, seus filmes acontecem no interior das personagens, no não-verbalizado, nas experiências subjetivas e muitas vezes incomunicáveis. Daí o ritmo lento, que remete ao tédio da vida, e os grandes espaços desabitados, também presentes em Passageiro: Profissão Repórter (1975), um verdadeiro estudo sobre o nada e o vazio. Algo semelhante havia abordado Luchino Visconti em Morte em Veneza (1966) e mesmo Fellini, o mais extravagante dos diretores italianos, em A Doce Vida (La Dolce Vitta, 1952). Uma das mais difíceis e gratificantes experiências de cinefilia é assistir a Andrei Rublev (Andrei Rubliov,1966), filme do russo Andrei Tarkovski. Nele somos levados ao extremo, algo semelhante a dançar sem música, numa jornada solitária do personagem em busca da fé. Mas, como afirmou
Guitry, na citação referida por Carrière, o silêncio também faz parte da composição e à personagem de Tarkovski só lhe resta a sua companhia. Se em A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, 1966) – cujos ecos podem ser ouvidos na obra-prima Vá e Veja! (Idi I Smotri, 1985) de Elem Klimov – ele remetia à angústia e ao abandono, em Solaris (1972) ele reaparece como ilustração da perda, da ausência interna. Esta obra funciona como uma “resposta” a 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, que também tem no vácuo sonoro e nos ruídos personagens importantes, embora com outro significado – a sensação de vazio diante da imensidão do espaço –, compondo talvez o mais virtuoso espetáculo audiovisual já realizado. Assim, diante da curta história do cinema, o silêncio esteve sempre presente como seu amante apaixonado e inseparável: de Chaplin e Buster Keaton a Jacques Tati, que retomou com genialidade a linguagem gestual em plena era dos filmes falados, ele pode dizer bem mais que inúmeras palavras. Seja como composição de uma atmosfera, a modo dos western spaghetti de Sergio Leone, que propunha uma valsa sigilosa da morte, ou como instrumento de comoção, vide a célebre cena de pantomima em O Boulevard do Crime (1945), ele conferiu ao cinema a singularidade de
CINEMA transitar entre os sentimentos e sensações mais íntimas apenas com os ruídos que ultrapassam o limiar auditivo ou mesmo com a ausência desses. Hoje, o cinema obedece, mais do que nunca, à lei mercadológica e é pensado quase estritamente sobre a lógica comercial. Se nas décadas de 50 e 60 os grandes estúdios americanos se debruçaram sobre os roteiros, contratando grandes escritores – Faulkner, Fitzgerald, Steinback – para escrevê-los em produções de grande apuro técnico, mas de pouca identidade e autoria, essa situação só se agravou. Na era da indústria cinematográfica, da distribuição maciça de Hollywood, os filmes estouram na tela como fogos de artifício, em cores e sons que tendem à espetacularização, numa profusão esquizofrênica de pixels e decibéis. A imagem tomou, então, um caráter superficial e pouco humano e o desenvolvimento de novas tecnologias sonoras propiciaram a infantilização de cineastas que parecem deleitar-se com seus novos brinquedos. A sétima arte virou um meio, e não um fim, e enfrenta um grande entrave no seu desenrolar semiológico, como linguagem. Entretanto, como uma flama que tremula, mas não apaga, o cinema autoral resiste, e enquanto existir terá no silêncio um cúmplice, um instrumento capaz de torná-lo
mais humano e vívido. Embora com toques do cinismo da pós-modernidade, ele pode ser ouvido nos filmes sobre o tédio de Jim Jarmursch, em Encontros e Desencontros de Sophia Coppola; com um quê de Jacques Tati no finlandês Um Homem sem Passado e em Intervenção Divina, do palestino Elia Suleiman; na obra dos iranianos Abbas Kiarostami e Majid Majidi e nos filmes dos irmãos Dardenne; como um sopro de melancolia em Dolls de Takeshi Kitano e Para Sempre Lilya de Lukas Moodysson, ou mesmo no desfecho do cult Amor à Flor da Pele de Wong Kar Way. Recentemente, o cineasta austríaco Michael Haneke, de Código Desconhecido e A Professora de Piano, lançou Caché, obra que o consolida como maior manipulador do silêncio do cinema contemporâneo. Enfim, para Carrière um belo momento num estúdio de filmagem é quando o engenheiro de som vai gravar o silêncio: “a luz vermelha se acende e todas as portas se fecham; tudo se paralisa, atores e técnicos ficam imóveis, prendem a respiração… Após dois ou três minutos, ele agradece a todos, os sons voltam lentamente, todos se preparam para a próxima cena”. Criou-se o silêncio; absoluto, único. Diante disso, e após toda essa parafernália de palavras, só resta calar. •
O ritmo lento, que remete ao tédio da vida, no filme Morte em Veneza, de Luchino Visconti
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Foto: Marcelo Lyra/Divulgação
Bailarinos seguem os ditos do computador, em oficina do Festival de Dança do Recife
No ritmo dos computadores Pesquisadores e bailarinos constatam a inevitável relação da dança com as novas tecnologias Christianne Galdino
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ez pessoas, computadores e algumas telas de projeção entram em cena, como um cardápio de surpresas diante de um público desconfiado, porém faminto. O pesquisador italiano Armando Menicacci apresenta as regras do jogo e o espetáculo começa. Mas o que vemos ali está bem distante do que aprendemos a chamar de dança e muitos passos à frente do futuro que um dia imaginamos. A performance Tchan ran é o resultado de uma residência criativa realizada no Recife, e comandada por Menicacci, em parceria com o programador de informática francês Christian Delécluse. O computador gera uma série de gráficos em tempo real baseados nas partituras de movimento criadas pela coreógrafa norte- americana, Anna Halprin; e os improvisadores, cada qual vestido com uma cor, reagem dançando, aos desenhos projetados nos telões, às músicas e as luzes, pré-selecionadas e combinadas ao vivo entre Menicacci, Delécluse e o pernambucano Saulo Uchôa, responsável pela iluminação. Apesar dos ares de novidade, esta relação entre a arte do movimento e as ditas tecnologias teve seus primeiros sussurros flagrados há muito tempo. Em 1956, o bailarino Maurice Béjart já realizava, em Paris, experimentos coreográficos com as esculturas móveis do artista plástico húngaro, Nicolas Schöffer. Depois vieram as frutíferas conversas entre vídeo e dança, inauguradas na década de 60, que deram origem a um gênero de produção batizado de videodança. As pesquisas continuaram, explorando miscigenações de corpos dançantes e robótica, para, em seguida, chegar às interfaces com a computação. “Alguns pensadores contemporâneos dizem que o computador nos distancia do nosso corpo e afasta as pessoas, mas isso não é verdade. Além de ser um eficiente instrumento de análise de movimentos e de melhorar a consciência corporal dos bailarinos, a tecnologia digital amplia as possibilidades de criação”– afirma Menicacci. Somos naturalmente condicionados aos gestos cotidianos e os gestos nascem invariavelmente das sensações. Se quisermos construir um novo repertório de movimentos, temos que experimentar novas sensações e é aí que entra a significativa colaboração da tecnologia. O corpo, matéria-prima da dança, precisa destes estímulos múltiplos, gerados tecnologicamente para produzir sensações diferentes do habitual, sair do gestual comum, e, conseqüentemente, escrever movimentos com este novo vocabulário que a dança encontrou. Já não existe espaço para dicotomia homem-máquina. E as fronteiras entre os fazeres artísticos estão cada vez mais esfaceladas. O espectador saiu definitivamente da cômoda posição de voyeur e foi lançado no meio do campo cada vez mais expandido da arte. Estas são as idéias unânimes norteadoras de todos os trabalhos de dança e novas tecnologias ou, como prefere a pesquisadora baiana Ivani Santana, da dança com mediação tecnológica, mediação utilizada em processos de criação, em sistemas pedagógicos e nas mais variadas pesquisas. Guiada pelo fascínio de misturar a dança com outros saberes, a bailarina Ivani Santana encontrou nas novas mídias motivação para iniciar, em 1994, uma pesquisa artística que Continente outubro 2006
O pesquisador italiano Armando Menicacci trabalha a dança aliada ao uso dos computadores
se tornou pesquisa acadêmica em 1996 e, desde então, o eixo de todas as suas criações, articulando teoria e prática. Em 2005, Ivani criou o que chama de uma dança telemática. Os bailarinos de Versus atuavam em dois espaços diferentes: um em Salvador e outro em Brasília, enquanto a música, composta por Didier Guigue com o programa Log 3, era executada em João Pessoa. O público assistia presencialmente, em Brasília, ou pela internet. Videodança, instalações interativas, espetáculos imersivos, dança telemática são bons frutos desta promissora alquimia entre corpo e tecnologia, mas a interação, o proposto hibridismo, não é garantia de qualidade e nem sempre funciona. “Existem trabalhos interessantes e sofisticados tecnologicamente, mas com uma dança antiga, o que, para mim, é uma incoerência. Pesquisar a dança com mediação tecnológica não é apenas pesquisar softwares, mas junto com isso, rever as configurações da dança, explorar no corpo as novas demandas provocadas
por estes sistemas tecnológicos”– argumenta Ivani Santana. A produção brasileira desta “nova dança” ainda aparece timidamente e as razões para isso, na opinião de Menicacci, podem ter sido geradas por preconceitos em relação aos custos dos equipamentos. “Alguns sistemas de sensores e captura de movimentos (motion capture) são realmente muito caros, mas há programas direcionados aos trabalhos corporais disponíveis para download gratuito em vários sites. E, além disso, um computador com webcam é suficiente para realizar pesquisas e experimentações de dança e tecnologia”– esclarece o professor italiano. Mestre das invenções – Quebra de limites, exploração de novas tecnologias, diálogo permanente com as outras artes, tudo isso nos remete a Cunningham, o pioneiro no uso de computadores relacionado à dança. O espírito revolucionário e vanguardista deste coreógrafo,
Fotos: Marcelo Lyra/Divulgação
A performance Tchan ran: resultado da residência criativa comandada por Menicacci no Recife
CÊNICAS 53 atualmente com 87 anos de idade, começa a se manifestar muito antes de suas experiências com a tecnologia da informação, ainda na década de 40. Cunningham viveu uma parceria pessoal e artística com John Cage, de 1942 até a morte deste em 1992. A estrutura não-métrica da música de Cage pode ter sido um fator importante a permitir que a coreografia dele se afastasse das estruturas dramáticas convencionais. Cunningham vê o famoso “princípio da sorte”, inspirado no I Ching, adotado por ambos, como sendo o que permitiu transcender os limites de suas motivações individuais para descobrir novos métodos coreográficos. Esse uso do acaso não pode ser confundido com improvisação. Em mais de seis décadas desbravando os caminhos internos do corpo e “fuçando” novidades para compor sua técnica, Merce Cunningham passou por alguns estágios bem definidos: “Nos anos 40, a separação entre música e dança; nos anos 50, o uso do acaso (chance operation); nos anos 70, a dança para vídeo e Divulgação filme; nos anos 90, o uso do computador (Dance Forms). E eu colocaria como uma quinta fase a colaboração com os artistas digitais Paul Kaiser e Shelley Eshkar (Motion Capture), do grupo Riverbed Media, levadas ao palco na coreografia Biped (1999), onde impressionantes e gigantescas holografias dividiam a cena com os bailarinos” – explica sua discípula brasileira Gícia Amorim, que criou junto com Bergson Queiroz o Projeto Cunningham, em São Paulo. Liberdade de expressão, ausência de regras rígidas, percepção e utilização espacial diferenciada, experimentações com novos suportes midiáCunninghan (centro), um dos pioneiros em unir dança e tecnologia ticos levam muitos bailarinos ao Merce Cunningham Studio, em Manhattan. O carioca Marcelo Nigri está lá desde março de 2005, e é o único brasileiro atualmente participando do Programa de Treinamento Profissional do estúdio. “Eu estava decepcionado com as produções de dança contemporânea, com a ausência do público nos espetáculos e sem enxergar perspectivas de desenvolvimento profissional. Quando conheci o trabalho do Cunninghan, senti que acabara de encontrar um caminho”– comenta Nigri. Fica claro aqui que chegamos ao futuro e, de repente, tomamos um susto com as transformações da arte e, principalmente, do movimento, que nossos próprios corpos produzem. Ser público não é mais ficar “na janela” e isso implica um novo ângulo e muita responsabilidade. A dança se apresenta de outras formas, dialoga com tecnologia e exige a nossa participação ativa. Mais que isso, exige a reformulação dos nossos conceitos e, para começar, podemos arrancar os rótulos, bagunçar as gavetas que criamos para defini-la e pensar, invocando Cunningham mais uma vez, que a “dança é o exercício espiritual na forma física”. • Continente outubro 2006
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AGENDA/CÊNICAS
Amor no Capibaribe O espetáculo infantil O Amor do Galo da Madrugada pela Galinha D'Água traz vários personagens do carnaval pernambucano Tiago Melo / Divulgação
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o estilo pierrot e colombina, um galo encanta-se por uma galinha e os dois começam a namorar, mas a terrível correnteza e poluição do Rio Capibaribe a leva para longe de seu amado. Essa é a trama principal da peça O Amor do Galo da Madrugada pela Galinha D'Água, que estréia dia 07 de outubro, no Teatro Valdemar de Oliveira. Na procura por sua namorada, vários personagens do carnaval pernambucano aparecem em cena para ajudar o Galo: o Rei e Rainha do Maracatu, o Boi-Bumbá, o Elefante de Olinda e a Cabra Alada, além de seres fantasiosos que ganham personificação das ruas, bairros e praças do Recife: o Senhor Boa Viagem, a Rua da Concórdia, a Rua Nova e a Praça da Independência. Características de bichos e humanos permeiam todas as figuras. A fábula é mostrada em meio à alegria do próprio carnaval, trazendo também temas polêmicos, como a triste realidade de crianças que vivem pelas ruas da cidade e a destruição que o bicho homem faz ao meio ambiente. Ainda abre espaço para homenagear Enéas Freire, fundador do Bloco Galo da Madrugada, e o grande compositor Capiba. Com a direção musical de Demétrio Rangel, o espetáculo tem um repertório eclético – cantado e tocado ao vivo –, com Teatro Valdemar de Oliveira (Praça Oswaldo Cruz, s/n, Boa Vista), 07 muito frevo, ciranda, manguebeat, afoxé, maracatu, e, claro, ba- de outubro a 26 de novembro, sempre às 16h30. Ingressos: ladas românticas. O texto e a direção geral são de Samuel Santos. R$ 5,00 (valor único). Informações pelos telefones: 81. 3222.1200
Concurso Jean Genet
O Grande Circo Místico Fotos:Divulgação
No dia 07 de outubro, o Teatro Ribalta será palco para a estréia da peça O Grande Circo Místico, texto de Geane Oliveira, inspirado no poema homônimo de Jorge de Lima. A encenação aborda as realidades sociais sob a lona do circo, um ambiente nada convencional, onde os personagens retratam intensamente as relações da sociedade contemporânea. Dirigido por Nina Almeida, ganhadora do prêmio de melhor direção no II Festival de Teatro Estudantil de Pernambuco, em 2004, o espetáculo tem produção de Susana Costa e figurino assinado por Xuruca Pacheco.
O Concurso de Montagem Teatral Jean Genet , promovido pela Fundarpe, representa um contundente incentivo à criação teatral pernambucana e, simultaneamente, um merecido reconhecimento da influência de Genet na nossa dramaturgia. Entregue pela Fundação no mês de setembro, o laurel consiste na entrega de R$ 20 mil e a pauta do Teatro Arraial para a montagem do texto As Criadas. O contemplado foi o grupo de cênicas Companhia de Repertório, do Recife, que já encenou a peça Neuroses (foto), no mesmo local. Estreando dia 13 de outubro no Teatro Arraial, o espetáculo legitimará a obra mais notória do homenageado Jean Genet, um clássico da dramaturgia universal.
Teatro Ribalta (Rua das Pernambucanas, 65 – Graças), de 07 de outubro a 12 de novembro às 18h. Informações: 81.3231.4884
Teatro Ribalta (Rua das Pernambucanas, 65 – Graças), de 07 de outubro a 12 de novembro às 18h. Informações: 81.3231.4884.
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ARTES
Fotos: Hans Manteuffel/ Divulgação
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Namorados, gesso, 1952.
Na página ao lado: Recife de Janeiro a Janeiro, serigrafia, 1974; maquete para Mascate, alumínio, 2005; Xangô, serigrafia, 1970
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ARTES
CORBINIANO Livro mostra por inteiro a obra e a personalidade do artista olindense de temperamento avesso às badalações Homero Fonseca
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esde adolescentes, aquelas mulheres esguias, de curvas voluptuosas, nos encantavam. Em muitas ruas, praças, largos e pátios externos de edifícios do Recife deparávamo-nos com elas. Com suas pernas longas, peitos pequenos, bundas colossais, elas povoavam nossas retinas e incorporavam-se à paisagem de uma maneira que nos parecia não ser a cidade a mesma sem suas figuras hieráticas e lascivas ao mesmo tempo. Eram esculturas de concreto – e depois de alumínio – cujo autor desconhecíamos à época. Ainda nesse tempo, durante uma estada forçada em Fortaleza (era 1965), acompanhamos uma tremenda polêmica em torno de uma estátua de Iracema, fincada na praia do mesmo nome. A então provinciana capital do Ceará se dividia entre os que aplaudiam a obra e os que a rejeitavam. Estes últimos eram capitaneados pelo radialista Cid Carvalho, dono de um vozeirão e de uma enorme audiência, que tinha o hábito de comentar as notícias com estardalhaço. Exaltado como se estivesse participando de uma discussão sobre questão de Estado, o famoso jornalista vocalizava a posição dos conservadores, inconformados com a “modernidade” da obra que, segundo vociferava no ar, “tinha a cintura nos peitos e os peitos no pescoço”. No substrato da discussão, percebi algum laivo de bairrismo, pois os opositores referiam-se com freqüência ao fato de o autor ser um pernambucano. Foi quando ouvi, pela primeira vez, o nome de Corbiniano Lins. (Em tempo: a Prefeitura de Fortaleza ou o Governo do Estado, que havia contratado a obra, manteve-se firme e a obra-prima continua até hoje na Praia de Iracema, definitivamente incorporada ao patrimônio cultural cearense.) Continente outubro 2006
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Iracema, concreto, 1965: polĂŞmica em Fortaleza
ARTES 59
Voltando ao Recife, liguei o nome do escultor que havia involuntariamente causado a celeuma em Fortaleza às mulheres de nossas praças e ruas. Isso porque, prestando atenção nas peças, descobri o nome do autor inscrito nelas. Pois, se dependesse de promoção ou divulgação, Corbiniano teria permanecido muito mais tempo desconhecido para mim. Seu temperamento retraído e sua aversão à fatuidade, alinhados à propensão da mídia ao espalhafatoso, tornaram-no figurinha difícil no álbum das nossas artes. E no entanto, esse artista nascido em Olinda, em 1924, há mais de 50 anos produzindo esculturas, serigrafias, desenhos, gravuras; premiado várias vezes; participante de mostras importantes no Recife, em São Paulo, no Rio, Estados Unidos, Europa e Argentina, é autor de uma obra pessoal valiosa. Usando materiais como concreto, alumínio, arame ou poliesteno, Corbiniano modelou figuras (mulheres, principalmente) que foram se despojando ao longo dos anos: inicialmente de contornos mais agressivos, em que os contrastes criavam desproporções acentuadas, foram sofrendo uma certa moderação, até adquirirem os contornos esguios e fluidos de hoje, revelando um caminho de despojamento e simplificação, conforme ele próprio enunciou ao crítico Weydson Barros Leal.
Acima: Figura em movimento, alumínio, 2003; Gravuras, xilogravura, 1968; Composição, alumínio, vidro e ferro, 1965.
Ao lado: Painel em arame, 1998
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ARTES
Corbiniano em seu ateliê. Abaixo: Pescando caranguejo, alumínio, 1990
É Weydson quem assina o texto poeticamente derramado do livro Corbiniano Lins – Um Olhar sobre sua Arte, recém-lançado no Recife e que supre uma lacuna, ao mostrar a obra e o artista em sua totalidade. Nele, Corbiniano está inteiro, com suas figuras de mulheres, vaqueiros, pescadores, brincantes, xangozeiros e suas raras abstrações. Um capítulo à parte é o dedicado às serigrafias, de álbuns lançados há anos e não mais reeditados, onde mulheres negras de seios empinados, dançantes de frevo e bumba-meu-boi, participantes de cultos afro-brasileiros e outras figuras de nosso imaginário estão traçadas em cores quentes, num transbordamento de tropicalidade. Deixando entrever um pouco do próprio processo criativo do artista, no uso de maquetes de barro inicialmente e, atualmente, de protótipos de isopor, o livro é uma ode ao escultor, em que o crítico-poeta confessa: “Até agora não consegui não gostar de uma obra de Corbiniano”. Sentimento hoje certamente generalizado, passados tantos anos da ingênua polêmica de Fortaleza, num tempo em que os conservadores ainda se escandalizavam com “a arte moderna” – o que soa tremendamente anacrônico nesses tempos de performances e instalações. O que permanece e eleva é a obra de Corbiniano, sobre a qual o crítico Ruy Sampaio (1973), citado por Weydson, enxergou “um luxuriante acento do mais pervertido barroco” na linguagem austera do escultor olindense. •
Corbiliano Lins – um Olhar sobre sua Arte, Weydson Barros Leal, 136 páginas, Artes-escultura, R$ 40,00.
ARTES
Universos simbólicos
Fotos: Divulgação
Canibal e Nostalgia, fotografia digitalizada, Adriana Varejão, 1998
O livro Invenção de Mundos – Coleção Marcantonio Vilaça reúne em sete arranjos simbólicos, criados por aproximações provisórias entre as obras, parte da coleção do marchand Mariana Oliveira
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um momento em que o Recife vive um período de efervescência na divulgação, exposição, articulação e valorização da produção de arte contemporânea local e global, em dias do SPA das Artes, há pouco tempo da inauguração da Bienal de São Paulo, concretiza-se também a documentação, há muito tempo necessária, de boa parte do acervo do marchand pernambucano Marcantonio Vilaça, falecido em 1999. O livro Invenção de Mundos – Coleção Marcantonio Vilaça foi organizado por Moacir dos Anjos, que através de suas escolhas e opções, criou um fio condutor para apresentar a diversidade temática e de suportes dessa coleção que figura, sem dúvida, na lista das mais significativas do país.
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ARTES
Fala Comigo, Olha para Mim, alto falante, holofote, fio elétrico, camiseta, Pedro Cabrita Reis,1994
O livro tomou como base as seleções de curadoria realizadas em exposições nos últimos anos na Galeria Marcantonio Vilaça, no Centro Cultural Banco Real, entre 2003 e 2005, e no Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha, Espírito Santo, em 2004. Através do trabalho curatorial, foi possível fazer associações, inventando mundos carregados de discursos, sem excluir a possibilidade de reconstruir agrupamentos ainda não imaginados. A obra apresenta, assim, sete universos distintos (Vestígios, Sombra, Informe, Instável, Figura, Construtivo, Geração), todos compostos por obras que vão da pintura à instalação, das raízes populares ao cosmopolitismo. É uma profusão de mundos, de discursos, que sempre podem ser rearrumados de maneiras variadas, como uma colcha de retalhos. Foi uma gravura de Samico, presente dos seus pais, quando tinha 15 anos, que plantou a semente da coleção construída ao longo dos anos por Marcantonio Vilaça. Ainda bastante jovem, percorreu as principais galerias do país, burilando seu olhar sofisticado e adquirindo peças de artistas, cujos trabalhos, muitas vezes, ainda não eram reconhecidos no meio artístico. Seu interesse pela arte ia além da mera compra de obras, ele tinha um interesse real pelos artistas contemporâneos, pelos seus processos de trabalho, adquirindo obras de caráter polêmico, que se distanciavam
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dos cânones e do hermetismo. Com esse envolvimento especial, pouco comum aos colecionadores, Marcantonio passou a atuar na área, na tentativa de aproximar sua coleção e obras relevantes ao público. Foi assim que ele se tornou galerista e abriu, em 1989, a Galeria Pasárgada Arte, no Recife, movimentando a cena artística recifense e abrindo espaço para os novos talentos. Em 1992, depois do fechamento da galeria no Recife, o marchand inaugurou, junto com Karla Ferraz de Camargo, a galeria Camargo Vilaça, que se aproveitou do crescente interesse pela arte latino-americana para apresentar ao mundo a produção brasileira. Esse trabalho direto com a propagação da arte contemporânea brasileira demonstra a preocupação de Marcantonio Vilaça em revelar a produção contemporânea e integrá-la ao panorama artístico mundial. O livro Invenção de Mundos – Coleção Marcantonio Vilaça pode ser entendido como uma ação que torna realidade seu desejo de dar destino público à sua vasta coleção. Como conta Moacir dos Anjos, no texto de abertura, Walter Benjamin considerava o colecionismo uma maneira de renovar o mundo, de inaugurá-lo de novo a cada aquisição realizada. Marcantonio Vilaça inaugurou vários mundos, vários territórios livres, nos quais as obras da sua coleção podem interagir de maneiras diversas. •
AGENDA/ARTES
"Carta para um diário íntimo"
Fotos: Divulgação
Mostra homenageia Leonilson, artista expoente da Geração 80
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a década de 80, o artista visual cearense Leonilson Bezerra fez parte da geração de nomes que revolucionaram o meio artístico nacional com a retomada do prazer da pintura, e se tornou um dos grandes expoentes da arte brasileira contemporânea.Nos primeiros anos da década de 90, firmou-se com uma obra contundente, expressando como ninguém os dramas e as angústias do homem moderno. Deixou uma obra autêntica na qual buscou incansavelmente a intensidade poética individual. A partir do dia 12, o Centro Cultural Banco do Nordeste – Fortaleza reviverá o talento e o rigor construtivo do artista, com a abertura da exposição Leonilson em Fortaleza, que reúne uma série de 35 trabalhos realizados por ele na capital cearense. A mostra, quase autobiográfica, traz desenhos, gravuras, pinturas, plantas de arquitetura, cartas e estamparias, que permitem ao público o acesso a um importante acervo
Diálogos com Lygia Clark Os diálogos de Lygia Clark com a arquitetura de Oscar Niemeyer caracterizam a exposição Abrigo Poético. A mostra, que propõe um desligamento dos elementos tradicionais da pintura do século 20, foi escolhida para reabrir o MAC (Museu de Arte Contemporânea de Niterói), depois da reforma de toda a sua iluminação. No mesmo momento em que comemora 10 anos de suas atividades, o museu representará um lugar visionário de confluências entre a imaginação circular do arquiteto Niemeyer e os vôos poéticos deixados por Lygia. A artista legitima os traços do seu trabalho ao propor processos e ambientes de criatividade compartilhados, sem limites sociais ou psicológicos, através da experimentação sensorial dos mais diversos materiais. Abrigo Poético – Diálogos com Lygia Clark. Até 04 de dezembro, no Museu de Arte Contemporânea de Niterói – MAC. Informações: 21.2620.2400
pertencente a vários colecionadores e amigos do artista. A maioria dos trabalhos é inédita e ressalta – assim como toda a sua obra – a presença da escrita e de uma constelação de elementos que traduzem autoridade. Segundo o curador Maurício Coutinho, cada peça da exposição foi construída “como uma carta para um diário íntimo, discípulo de um ideal romântico malogrado, e movida pela compulsão de registrar a sua interioridade” Leonilson em Fortaleza. Até 29 de outubro, no Centro Cultural Banco do Nordeste-Fortaleza. Informações: 85.3464.3108
Desvelo no MAMAM Rosângela Rennó é hoje uma das mais destacadas artistas contemporâneas brasileiras. Parte da sua rica produção artística vai ocupar as salas do MAMAM, neste mês. Na mostra, Rosângela Rennó apresenta uma série de trabalhos feitos entre o final da década de 80 e a década atual, permitindo ao visitante um contato ampliado com sua obra. Tais criações sugerem estabelecer entre si atritos e associações simbólicas e desvelar, uma vez mais, o que as fotografias não mostram. Exposição individual de Rosângela Rennó. Até 12 de novembro, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife – PE) Informações:81.3232.2188
Simultâneas
Os artistas plásticos Aslan Cabral, Ana Lu e Fabiano Marques expõem alguns de seus trabalhos na Fundaj – Casa Forte pelo Projeto Trajetórias 2006. Na mostra, Aslan Cabral utiliza a fotografia para expressar a “morte” e surpreende o público com apresentações performáticas remissivas ao tema. Ana Lu também usa a força expressiva da fotografia no seu trabalho Jogo da Memória da Minha Vida, no qual a lembrança individual da artista passa a ser coletiva e a interação do espectador com a obra é inevitável. Já Fabiano Marques utiliza como suporte o jogo de xadrez. A interação entre platéia e obra, nesse caso, não só é uma conseqüência, mas um elemento primordial para o desenvolvimento da exposição. Exposição Trajetórias 2006. Até 15 de outubro, nas Galerias Baobá e Massangana (Av. Dezessete de Agosto, 2187, Casa Forte Recife – PE). Informações: 81.3073.6691 Continente outubro 2006
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Di Cavalcanti, pintor brasileiro O pintor encontrou apoio na reinvenção da brasilidade, que caracterizou o nosso modernismo, voltada para a busca de identificação com o país e sua cultura
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exposição de Di Cavalcanti, realizada no espaço cultural da Caixa Econômica, no Rio de Janeiro, sem dúvida alguma surpreendeu a quem ainda não tenha tido oportunidade de ver, reunidas num mesmo espaço, tantas obras desse artista, que foi um dos pioneiros da moderna pintura brasileira. Nem todos sabem que, em l922, foi ele um dos inspiradores da Semana de Arte Moderna e quem lhe deu esse nome. É verdade que, naquela época, o jovem Di ainda não inventara a sua própria linguagem pictórica e mal esboçara o universo imaginário que nos legaria com suas telas de marcante originalidade. De fato, o que importava, acima de tudo para os jovens modernistas, era romper com o passado, por ser essa a condição primeira para inventarem a arte nova do Brasil, sonho que alimentavam com entusiasmo. O Brasil que haviam herdado era ainda, para eles, a expressão da dependência e do colonialismo cultural, representada pelo academicismo artístico, do qual necessitavam libertar-se. Na verdade, já alguns pintores, como Eliseu Visconti, tinham rompido com a arte acadêmica, adotando a linguagem impressionista. Mas também essa linguagem esgotara e havia sido repelida pelas novas vanguardas européias que insuflaram a rebeldia em nossos jovens artistas.
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Falei da originalidade da pintura de Di, mas tampouco ela surgiu de repente, já que as primeiras obras estavam marcadas por uma mistura de primitivismo e ressonâncias cubistas, mais especificamente da influência picassiana. Não obstante, mesmo nessas obras iniciais, já se percebe uma temática diferente, mais carioca e sensual, se o comparamos com outros pintores modernistas. Para a invenção de uma linguagem própria, Di Cavalcanti encontrou apoio na reinvenção da brasilidade, que caracterizou o nosso modernismo, voltada para a busca de identificação com o país e sua cultura, distinguindo-se dos europeus mais voltados para questões preponderantemente estéticas.Uma das linhas de força das vanguardas européias do começo do século 20 era o interesse pelo lado selvagem da vida, seja fora, seja dentro do indivíduo, e de que a arte se tornou a expressão. Já no Brasil, onde a arte vigente, naquela época, era expressão da cultura da elite social e cultural, a tendência foi redescobrir o Brasil primitivo, também selvagem, mas ingênuo. Em lugar de descer no subconsciente, como fizeram os expressionistas, os nossos modernistas voltaram-se para o Brasil ignorado, anterior à civilização industrial. É
TRADUZIR-SE
Reprodução
Mulheres de Pescadores, de Di Cavalcanti, óleo sobre tela, 1963
nisso que a pintura de Di Cavalcanti difere de seus companheiros de revolução artística, pois ele se volta para o Brasil urbano e suburbano contemporâneo e busca na mulher mulata a expressão de uma nova concepção de beleza em contraposição à da arte acadêmica, que retratava a mulher branca e sofisticada. Di descobre uma nova Vênus: mulata, de lábios carnudos, seios bastos e quadris pronunciados. Essa descoberta alimentou sua pintura por longos anos e emprestou-lhe uma marca característica. Ele se tornou conhecido como “o pintor das mulatas”, o que era verdade, mas vinha carregado de certo tom “folclórico”, de uma visão superficial, que não tocava o fundo da questão: a escolha da mulata como tema, por Di Cavalcanti, obedecia tanto a uma identificação erótica com ela como à necessidade de manifestar seu inconformismo em face dos padrões de beleza feminina. Assim, ele a recriou na figura da mulata e a transformou numa referência plástico-temática da moderna iconografia brasileira. Di, ao mesmo tempo em que descobria um caminho próprio para sua pintura, fazia dessa descoberta a expressão de uma nova concepção de beleza feminina, que substituía, não apenas cânones artísticos do passado, por novos, mas também o valor social da mulher mestiça
como inspiradora do amor simples e sensual. Por tudo isso, Di Cavalcanti se tornou o pintor da mulata, o poetapintor dessa musa erótica do povo. É verdade, no entanto, que, na sua pintura, essa figura feminina, se não é mero símbolo sexual ou pitoresco, tampouco é o tema único de seus quadros. Pode-se afirmar, sem exagero, que não são menos importantes, como criação pictórica e expressão artística, as paisagens e natureza mortas, que ele concebeu com a mesma entrega e a mesma qualidade artística. Talvez, muitos dos admiradores da arte de Di, fascinados por seus retratos femininos, não tenham apreciado com a necessária atenção a beleza das outras obras dele, de expressão menos óbvia. A verdade, porém, é que, quando se tem oportunidade de apreciar as diferentes fases de suas paisagens, percebe-se o quanto era ele um pintor consistente, vigoroso e imaginativo. Mas não só. Cumpre, para encerrar este comentário, chamar a atenção para uma qualidade fundamental de sua obra: a atualidade de sua pintura, a força nova e intensamente presente, de uma expressão pictórica sem truques, fundada nas qualidades essenciais da pintura. • Continente outubro 2006
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TRADIÇÕES
A arte do requinte e do sagrado Eduardo Araújo comemora 10 anos fazendo releitura do Barroco por meio de santos e mobiliário Renata Bezerra de Melo
Fotos: Renata Bezerra de Melo
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E Artista é apaixonado pela arte sacra do período Barroco
ncanto é coisa que as palavras não exprimem. A paixão pelo estilo Barroco, que tomou conta dos príncipes e nobres da Europa dos séculos 16 e 17, arrebatou também os sentidos de Eduardo Araújo. É assim, indescritível, a relação de intimidade do artista com o mobiliário rococó, as filigranas, as boiseries (molduras) e arabescos. Adentrar em sua “casa-ateliê” significa ausentar-se abruptamente da realidade contemporânea e dar uma volta em tempos remotos. É testemunhar o período da Contra-Reforma da Igreja Católica, quando uma riquíssima e monumental decoração foi impressa em templos e mosteiros com o objetivo de encher os olhos dos fiéis. O sagrado estava em todos os cantos. “A arte sacra vem servindo de pretexto para o meu trabalho. Como o Barroco é um período riquíssimo das artes, acaba sendo receptível a várias técnicas. Tenho, a partir daí, a prerrogativa de aplicá-las de uma forma mais ampla", explica Eduardo. Pelas mãos dele, relíquias (cristaleiras, cama e poltronas, por exemplo), freqüentemente relegadas pela maioria das pessoas à condição de “coisa velha”, ganham novos e clássicos contornos, exibindo um refinamento estético digno dos palácios e igrejas europeus. “Trata-se de uma releitura do Barroco. Podemos designar como Neobarroco”, adianta. Além do trabalho com cada peça, Eduardo é um artesão que cuida de cada detalhe da ambientação. Suas habilidades plásticas incidem em cada recanto do seu apartamento, atento às mais rígidas proporções. É como se tudo precisasse ser infinitamente modelado, reconstituído, matizado. A começar pelas paredes, todas muito trabalhadas, revestidas de marmorizações. As boiseries, espécies de molduras empregadas como remate das marmorizações, refinam o aspecto solene da decoração. “Pode observar: a sanca em poliuretano, os santos e a decoração das paredes, revestidas, simulando mármore; está tudo sintonizado. Os tons se complementam nos olhos de quem vê”, esclarece. Nada está ali por acaso, de forma aleatória. Os motivos se entrelaçam. O mobiliário rococó é característico. Na cama, à Luís XVI, predominam as linhas femininas. “É superdetalhada, similar a um bolo de noiva. Porque foi por volta do século 17 que a mulher começou a conquistar representação na sociedade”, rememora. O ambiente é sóbrio. Não apenas o conjunto de móveis, mas ainda os santos reinam majestosos; mantos ondulares, resplendores elaborados e expressões bem-definidas.. São Jorge, Nossa Senhora da Conceição, o Menino Jesus e Nossa Senhora da Boa Viagem são apenas algumas das inspirações. As peças normalmente variam de 20 a 60 centímetros. O
TRADIÇÕES
Eduardo Araújo em sua casa-ateliê
material original é o gesso. Após camadas de tinta, aplicação de betume para conferir aspecto envelhecido, folheações, marmorizações, metalizações (que atribui o aspecto de exposição ao tempo), entre outros tratos, o resultado é um efeito óptico que surpreende. As imagens aparentam ser de madeira, pedra ou resina. As pigmentações endossam conceitos subliminares, peculiares à “época”. O dourado reina majestoso. “Tem uma conotação celestial, de valor, de grandiosidade. Dentro do Barroco, representa o sagrado”. Eduardo decifra a gama, que normalmente ocupa a paleta. “O azul, o vermelho, o branco e o dourado são cores características do Barroco. O vermelho, por exemplo, é uma forma de resgatar a culpa da igreja pela Inquisição, pelo sangue derramado. O roxo faz menção ao luto”. Uma Pietá que repousa sobre o móvel na sala de estar chama a atenção pela expressividade dramática. Uma lágrima “viva” cai delicadamente dos olhos da virgem. As sinuosidades da peça esbanjam perfeição de matizes, riqueza de detalhes. E o roxo do vestuário, claro, ratifica o luto. “É preciso o mínimo de conhecimento para se deter no que o Barroco oferece”, ressalta. E complementa: “Os móveis franceses são versáteis (utilitários) e belos
(ornamentais). Foram concebidos para serem enfeitados, folheados a ouro. Esta cristaleira tem mais de 100 anos. Veja como sua estrutura é leve. Ela parece repousar ‘sobre a ponta dos pés’. Passei um ano restaurando”, inebria-se. O móvel teve não só o acabamento renovado, através de pátina e marmorização, mas, ainda, sua estrutura restaurada. Eduardo se encarrega de tudo. Perfeccionista, trata meticulosamente de cada etapa do processo criativo. O folheamento a ouro dos santos, por exemplo, é um exercício de paciência, no qual o artista submerge-se sem o menor sinal de pressa. Passa talco nas mãos (para a folha não grudar) e com uma pinça vai deitando delicadamente a folha de ouro. “Ela é tão fina quanto a asa de uma borboleta. É preciso muito cuidado”, observa e avisa: “São tantos os processos, que o resultado final fica muito distante das primeiras pinceladas. É um procedimento de trompe l'oeil (engana olho)”. Aí está a justificativa para a preferência pelo trabalho solitário. “É bem provável que uma pessoa que desconheça as técnicas se impaciente e logo questione como ficará a forma pronta, ao ver o santo em gesso levando as primeiras camadas de tinta”. A mão firme larga traços perfeitos nos mantos. “É o Caminho do Céu. São traços ondulares, finos, como que reproduzindo um labirinto”. O capricho se reflete na assinatura. É preciso um olhar mais preciso para detectar que ela está ali, em meio ao “Caminho do Céu”. O nome e sobrenome aparecem desenhados, seguindo os contornos da técnica, confundindo-se, propositalmente. Faz exatos 10 anos que Eduardo assinou sua primeira mostra individual, utilizando a arte sacra como mote. De lá para cá, o artista acumula mais de 80 exposições em espaços públicos, culturais e centros de compras. Para comemorar a década de exploração do Barroco, a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) abriu o seu Espaço Cultural a uma exposição de santos barrocos de Eduardo. A mostra, além de celebrar o aniversário de carreira, testemunha, mais uma vez, a condição humana, que atesta o prazer do mundo e dos sentidos, mas não deixa de submetê-los às exigências de uma realidade mais elevada. • Continente outubro 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Os cortes das carnes (Carne de boi III, final) "Como em turvas águas de enchente Me sinto a meio submergido Entre destroços do presente Dividido, subdividido, Onde rola, enorme, o boi morto. Boi morto, boi morto, boi morto. Manuel Bandeira (“Boi Morto”)
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São muitos os jeitos de cortar as carnes do boi. Dependendo de sua localização, elas podem ser macias ou duras. Macias são as do lombo traseiro, por se movimentarem menos – filé-mignon, contrafilé, bisteca, alcatra, patinho, lombo paulista, coxão mole (chã-de-dentro), coxão duro, maminha. E mais duras, as dianteiras. Em contrapartida, mais irrigadas, gordurosas e suculentas – acém, peito, paleta. Só que já não há mais, hoje, carnes duras como no tempo de nossos avós. Ao menos desde 1969 – quando chegou ao Brasil a técnica de “maturar” a carne. Um método natural de amaciamento, usando suas próprias enzimas. Para tanto, congela-se essa carne a zero graus, por 30 dias. Depois embala-se a vácuo, para que não apareçam microorganismos. Nas pernas, responsáveis pelo movimento do animal, ficam basicamente os músculos. Os cortes mudam de país a país. Entre nós, os mais comuns são: Filé-mignon – macio, suculento e de pouca gordura. Alguns gourmets o consideram “sem graça”. Seja como for, é sempre o prato mais caro de qualquer cardápio. Da França nos vieram cortes com nomes que variam, de-
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Arquivo Continente Multicultural
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pendendo da espessura da carne. Bem grossos são Chateaubriand, homenagem ao gordo escritor e diplomata francês (séc. 18) François René, Visconde de Chauteaubriand – famoso, entre outras coisas, por ter dito que “um escritor original não é aquele que não imita ninguém, mas aquele que ninguém consegue imitar”. Esse corte é criação de seu chef, Montmireil, que lhe preparava o prato enquanto seu patrão escrevia Memórias de Além-Túmulo. Um pouco mais finos são Tournedos. E mais finos ainda, Medaillon. Alguns pratos, usando esse filé-mignon, acabaram famosos. Entre eles um que Taillevent ensinava no Le Viandier (séc. 14) – o filé au poivre (à pimenta) – tostado na manteiga, flambado com conhaque e acrescido de grãos de pimenta verde e molho rôti. E de um filé en croûte (crosta), envolto em massa folhada. Os ingleses copiaram essa última receita, trocando só de nome – Filé à Wellington, homenagem ao primeiro Duque de Wellington, Arthur Wellesley, aquele que derrotou Napoleão em Waterloo (1815). Na culinária, como na televisão, (quase) nada se cria, (quase) tudo se copia.
SABORES PERNAMBUCANOS Contra-filé – fica encostado ao filé-mignon. Separado dele apenas por vértebras lombares. É carne macia, redonda, firme e de paladar bem-acentuado. Para os franceses é faux-file (falso filé) ou entrecôte. Para os ingleses, steak. Cortado com o osso em “T”, que separa as duas carnes (contra-filé e filé-mignon), se converte em T-bone steak. Alcatra – macia, de pouca gordura e com ótimo sabor. Fica localizada no quarto traseiro, medindo cerca de 80 cm. Há, na alcatra, três tipos distintos de corte – miolo de alcatra, maminha e picanha. Do miolo se retira baby beef, top sirloin e tender steak (o mais nobre, com apenas 150g). Maminha, menos macia, também conhecida como “rabo da alcatra”. Mas fama quem tem mesmo é a picanha – forma triangular, boa camada de gordura, pesando entre 1 kg e 1 ½ kg. O que lhe faz diferente de todas as outras carnes é ser, ao mesmo tempo, saborosa (como toda a alcatra), suculenta (por ser “marmorizada”, cheia de veios de gordura) e macia (por se encontrar na anca, início do lombo do animal). As fibras da picanha correm em diagonal – razão pela qual deve ser cortada sempre perpendicularmente a essas fibras. O hábito de comer picanha, no Brasil, tem apenas 30 anos. E ganhou fama sobretudo quando assada - no forno ou na brasa (churrasco). O melhor pedaço é a pontinha – tanto que, reza a lei do churrasqueiro, esse pedaço fica sempre com ele. Bisteca – a chuleta dos gaúchos. É formada por carnes que vão da 5ª à 13ª costela. Curiosamente, faz mais sucesso fora do Brasil. Na França é côte de boeuf (quando servido com osso) ou noix d'entrecôte (sem osso). Na Inglaterra é standing rib. Com ela também se faz o roast beef. Segundo István Wessel, esse rosbife, para valer a pena, deve conservar todo o suco em seu interior. A receita é simples: retire da geladeira pelo menos duas horas antes de preparar; tempere a carne com pimenta (moída na hora), mostarda em pó e molho inglês; quando for ao forno, coloque sal. Esse forno deve estar, então, na temperatura máxima. Quando a carne estiver tostada por fora, retire do forno e deixe esfriar por 20 minutos. Em seguida, volte ao forno, agora só em 180º, por mais 20 minutos. Aconselha-se servir assim que sair do forno. Ou então frio. Os americanos utilizam a bisteca como padrão de referência para classificar uma carcaça – US prime (a melhor), US Choice ou US Good. Lagarto – localizado no lombo do boi, no Norte e no Nordeste do Brasil, o corte acabou chamado de “paulista”. Lombo Paulista. É o grande desafio dos cozi-
nheiros, por se tratar de carne sem muito gosto. Nada contra os irmãos de São Paulo, claro. Como artifício para torná-lo mais saboroso, usa-se fazer bem-passado, com molho ferrugem e recheado com lingüiça. Como o que dá para rir, dá para chorar, e embora modesto no sabor, é ótimo para fazer carpaccio – nesse caso, antes, coloca-se no congelador, para só depois ser cortada, crua, em lâminas muito finas. Patinho – também chamado de noce (Itália), noix (França), dió (Hungria). Envolve o fêmur na parte anterior, começando à altura do joelho. É carne para mil e uma utilidades. Com esse patinho fazemos almôndegas, hambúrguer e picadinhos. Os libaneses usam para fazer quibe; os húngaros, goulash; os italianos, spezzatino; os franceses, boef bourguignon e paillard – fatia fina de carne ligeiramente batida, grelhada sem condimento, salgada e apimentada depois de pronta. Invenção de Paillard, famoso chef parisiense do século XIX. Músculo – ideal para caldos, sopas, ensopados e cozidos. O músculo fatiado com osso (e muito tutano, dentro do osso) é também chamado de “chambaril”ou “osso-buco” (o prato é de origem italiana, e acabou freqüentando os cardápios do mundo inteiro). Músculo é também usado para fazer sopas – nesse caso, e se quiser evitar lipídios e colesteróis, escolha sem osso (sem tutano e, portanto, de menos gordura). Se ainda assim preferir usar esse osso, então se valha dos mais porosos (de costela e alcatra). Falando em sopa, e só para lembrar, entre ingleses é famosa a oxtail soup (sopa de rabo de boi), com receita que veio da França (queue em hochepot), trazida por imigrantes foragidos da Revolução de 1789. A receita está no livro de Menon La Cuisinière Bourgeoise (1774). Costela – também chamada de pandorga, assado, costelão ou ponta de agulha. É peça grande e dura. Prepará-la requer cuidados especiais e sobretudo paciência. Nervos e peles não devem ser removidos, por ajudar a conservar seus sucos. No churrasco, deve ser assada com sal grosso, bem longe da brasa, durante horas. No final do preparo, recomenda-se colocar a carne bem perto da brasa, para rapidamente aquecê-la até a temperatura ideal e ganhar cor. Em Minas, é feito um ensopado de costela de boi magro com alho, cebola, louro, pimenta malagueta e pedaços de mandioca cozida, conhecida ali pelo nome de Vaca Atolada. Vitela – é carne de novilho de vaca leiteira, com menos de seis meses de idade. Na França é veau, na Inglaterra, veal. Há, basicamente, dois tipos de vitela: a de leite (abatida entre 15 e 20 dias) e a de confinamento Continente outubro 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS (abatida entre 4 e 6 meses). Tem consistência macia, cor bem clara e sabor mais suave que a carne de boi. É, também, menos gordurosa. Pode ser encontrada em diversos cortes: pá, carré, costelinha, pernil, peito. O vitelo de búfalo, chamado de babybúfalo, é especialmente apreciado por ser macio, suculento e de textura bem firme. Coxão mole ou chã-de-dentro – ótimo para bifes. Esse prato os ingleses juram ter inventado (Beefsteak). Mas, para azar deles, receita exatamente igual apareceu um século antes, na primeira edição do livro de Domingos Rodrigues – Arte de Cozinhar (1680): “tomarão um lombo e o farão em talhadas muito delgadas e as frigirão em toucinho, meio fritas e depois lhe botarão pimenta e uma pequena colher de farinha torrada, quatro gemas de ovos de sorte que engrosse o caldo, o qual há de ser de duas colheres. Vai à mesa sobre fatias”. E tão loucos são por bifes, esses ingleses, que beefeaters – (comedores de bife) é apelido dado aos soldados que fazem a guarda da Torre de Londres. Com os portugueses aprendemos a fazer um “bife a cavalo”, com ovo estrelado em cima, mais parecendo um olho, e por isso no sul do Brasil também conhecido como “bife à Camões” – em referência ao fato de ter o poeta português perdido um, em luta com mouros de Mazagão. Desses portugueses nos veio também o “bife à Marrare”, alto, passado na manteiga, acrescido de creme de leite, sal e pimenta (criado no Café Marrare, das Sete Portas) – mais conhecido, no Brasil, como “bife a café”. Sem contar o “bife acebolado”, que virou prato obrigatório em nossas mesas – sempre acompanhado de feijão, arroz, farofa, batata. Nesse festival de receitas não falta, mesmo, em Portugal, um “bife à brasileira” – feito na chapa e servido com molho grosso. Não é homenagem dos patrícios à terra que descobriram, assim se chamando apenas por ser servido no tradicional bar e café “A Brasileira” do Chiado, em que passava noites e sofria a fazer versos o poeta Fernando Pessoa. Também famoso, ente nós, é o “bife à milanesa” (passado no ovo e na farinha de rosca, antes de fritar). Provavelmente ninguém o conhece com esse nome, em Milão. Como ninguém, na Inglaterra, sabe o que é molho inglês. Nem, na França, o que é “pão francês” ou “fritas francesas”. Tivemos aqui três artigos sobre os sabores do boi. Só se espera que, neste caso, não valha a regra - um é pouco, dois é bom, três é demais. •
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RECEITA: FILÉ RECHEADO Sérgio Lobo/Divulgação Sebrae
INGREDIENTES: 600 g de filé limpo, sal e pimenta a gosto, manteiga. PREPARO: ·Abra o filé no sentido do comprimento, fazendo um bife grande. Tempere com sal e pimenta. ·Aqueça a manteiga, no fogo, e passe ligeiramente a carne, até que os dois lados fiquem dourados. ·Coloque recheio (ver as sugestões, abaixo) na carne, e enrole como rocambole. Amarre com cordão e prenda os lados com palito. Deixe na geladeira até a hora de servir. ·Então divida a peça em pedaços grossos (3 dedos) e doure os dois lados de cada pedaço na manteiga. Coloque rapidamente no forno (5 minutos). ·Regue com molho e sirva imediatamente. ·Acompanhe com batatas passadas na manteiga e salpicadas com salsinha. MOLHO: 250 g de caldo de frango, 250 ml de creme de leite, 40 g de manteiga trufada, roux (30 g de manteiga e 30 g de trigo misturados). ·Leve o caldo de frango para ferver. Junte creme de leite. Deixe reduzir, em fogo lento. Junte o roux (manteiga misturada com trigo). Bata até engrossar. ·Na hora de servir, acrescente a manteiga trufada e tempere com sal e pimenta. RECHEIO I: 120 g de cogumelos shiitake frescos, 120 g de champignon, 120 g de funghi porcini, 30 g de alho picado, ½ cebola ralada, 50 g de manteiga sem sal, sal e pimenta a gosto, 100 ml de creme de leite fresco. ·Corte o cogumelos em tiras. Hidrate os funghi porcini em água morna e corte também em tiras. ·Doure a cebola e o alho na manteiga. Junte os cogumelos. Refogue-os até que fiquem bem-cozidos. Acrescente creme de leite, sal e pimenta. RECHEIO II: 1 queijo Brie , tomates secos. Pique o queijo e o tomate seco. RECHEIO III: Espinafre, queijo gorgonzola, creme de leite. ·Pique o espinafre e refogue na manteiga. Junte queijo e creme de leite.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Esclarecimentos à praça
1.
CARECE DE FUNDAMENTO O QUE ANDAM ESPALHANDO POR AÍ A RESPEITO DAS MINHAS RELAÇÕES COM A SENHORA JULIA ROBERTS. PURA FOFOCA. SOMOS APENAS BONS AMIGOS.
2.Engraçado: sempre que preciso do meu anjo-da-guarda, ele está dormindo. 3.Ultimamente, dormindo (e, por conseqüência, sonhando), tenho sido um prato cheio para Freud. 4.Grita a propaganda da televisão: “Ligue já!”, “Compre já!” – Jamais ligarei, jamais comprarei. 5.Nesta quadra da vida, já posso dizer que conheço a miséria humana. 6.Para que se saiba como ando em matéria de amizades, basta dizer que já perdi de vista o meu amigo mais próximo. 7.....E, no mais, é como dizia o falecido arquiteto, pintor e ruralista Flávio Carvalho, numa entrevista que me deu em 1952: “O agricultor é o trouxa da nação” 8.Cineasta brasileiro sabe tudo (ou diz que sabe) de cinema. Só não sabe fazer filme. 9.Aluno relapso, o Brasil está sempre repetindo de ano. 10.De Pablo Neruda : “A primavera é inexorável”. • Continente outubro 2006
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Cordel do Fogo Encantado
Alexandre Severo/JC Imagem
Pos Mangue A nova cena musical recifense Mais de 10 anos depois do aparecimento do manguebeat, outros tipos de sonoridades começam a ter espaço, apostando na diversificação de influências e realizações Simone Jubert
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ESPECIAL
“P
ós-mangue?” Ao ser perguntado sobre o termo pós-mangue, para definir a atual cena musical recifense, o vocalista da Nação Zumbi, Jorge Du Peixe perguntou: “Pós? E não existe mais Mangue?”. A pergunta é pertinente. O termo pós nos oferece a idéia de um sepultamento ou, na melhor das hipóteses, algo que ficou para trás. E, na verdade, o que o release de Fred 04 – que acabou sendo tomado como Manifesto – sugeria desde sua primeira versão, como a diversidade de interesses e circulação de conceitos pop, talvez só esteja mesmo sendo posto em prática nos dias de hoje. Pode soar totalmente anacrônico, dizer isso depois de todo hype-mangue, mas não é. Quem viveu no Recife e Olinda na época, sabe que em cada esquina havia, sim, uma banda, uma manifestação, uma oficina de reco-reco, o que fosse. O Mangue havia crescido e tinha repercussão nacional, mas o conceito do que era Mangue havia se descolado de sua forma original e, ao invés de uma defesa pela diversidade, o que se via era uma defesa do fator regional. Fator esse que estava bastante presente na sonoridade de bandas como a Nação Zumbi e Mestre Ambrósio, mas que não representava o todo que acontecia na cidade. Com a morte de Chico Science tudo se agravou, e o que não faltou foi gente pra copiar a fórmula sonora de sua banda. Apesar da existência de grupos como Devotos do Ódio e Faces do Subúrbio (que não possuíam o carimbo do regionalismo, mas que já estavam legitimados dentro
do circuito, sinalizando a inclusão das periferias), o Mangue passou a ser associado, principalmente, às fusões feitas entre música de raiz e black music, ou música eletrônica, ou guitarras distorcidas. Overdose de Regional – Da última metade dos anos 90 para os primeiros anos 00, a combinação guitarra + alfaia se proliferou rapidamente, e de festivais maiores a pequenos concursos em colégios, o caráter regionalista estava massivamente presente. Bandas que cantassem em inglês, ou que não fizessem alguma fusão que as pudesse classificar como Mangue, geralmente, eram escanteadas do circuito e faziam algo à parte do que estava sendo noticiado na cidade. A rua do Apolo e depois a rua da Guia, no Recife Antigo, chegaram a ser reduto de encontro daqueles que não se encaixavam ou não queriam ser encaixados no Mangue, e a Non Stop, festa que reunia de indies a clubbers, viu os primórdios do que hoje é considerado pela imprensa como a cena indie da cidade. Também existiam lugares como o Pocoloco em Olinda, e o Bar do Orlando, no Alto José do Pinho, local onde se tocava predominantemente punk rock. Acontece que quem realmente estava ligado ao início do manguebeat conseguia enxergar, dentro do mesmo sistema, bandas completamente distintas em suas influências e aspirações. A idéia do Mangue como ecossistema diversificado parecia não valer mais naqueles dias, em que as veias musicais da cidade estavam congestionadas de tanta afetação regional. E o que havia era uma grande quantiJoão Z/Divulgação
Banda Profiterolis: pós-rrock experimental
ESPECIAL Arquivo Continente
Arnaldo Carvalho/JC
Chico Science, o começo
Ortinho, um misturador de tudo
dade de artistas que quiseram se engajar e pegar carona na história, fazendo pipocar cópias e mais cópias do que já existia no cenário musical. Era a forma mais fácil de render uma nota no jornal, um espaço em festival local, ou público certo e ávido por ouvir Mangue. Diversificando – Com o tempo, as cópias foram sumindo e desinchando o cenário musical da cidade. Mais de 10 anos depois do aparecimento do manguebeat, bandas diretamente influenciadas pelo Mangue continuaram existindo, mas em número menor. Outros tipos de sonoridades começaram, aos poucos, a ter mais espaço e a dividir melhor as páginas dos cadernos de cultura dos jornais locais. Em 2002, a Rádio Universitária AM, manteve durante seis meses, na faixa das 20h, uma programação eclética, feita por estudantes de comunicação. Programas como o Pedreira, que trazia clássicos do rock dos anos 50 a 80, o Hora Jazz, o 2.0, onde os entrevistados escolhiam o repertório musical, o Baile Black e o Coquetel Molotov começaram a despontar. O novo coordenador da rádio extinguiu os programas e, deles, só o Coquetel Molotov sobreviveu e até acabou virando festival. O No Ar: Coquetel Molotov já se encontra em sua terceira edição, e em seus palcos já tocaram bandas completamente distintas, de Mombojó a Chambaril, de Backin Ball Cats Barbis Vocals a Mellotrons, de Profiterolis a Badminton. Contribuições – Demorou um pouco, mas, no começo dos 00, o Mangue começava a ser absorvido pela cidade da forma como havia sido concebido, enaltecendo a idéia do “faça você mesmo” e apostando na diversificação de in-
fluências e realizações. O conceito, por mais que não fosse utilizado e até negado pela nova geração, influenciou e modificou a forma como se faz música e como a música circula atualmente na cidade. Segundo o produtor musical José Guilherme Allen, a contribuição do Mangue à cena atual é grande. No fim dos anos 80 e começo dos anos 90, a cidade estava completamente parada, e o Mangue conseguiu quebrar isso, de alguma forma. “O mais importante é essa história da identificação com a possibilidade de se fazer algo na cidade, tanto para quem estava participando na época como para quem veio depois. Na minha geração, as nossas referências de bandas eram de muito longe: Ramones, a cena de Seattle, Smiths, Sonic Youth, no máximo uma banda no Rio, e, no Recife, quase não tinha banda. Daí, de repente, você começou a gostar da música de um cara que morava na mesma cidade que você”, conta. Ter como referência essa cena próxima e local influenciou bastante uma geração de novos músicos. Foi o que aconteceu com os integrantes do Mombojó. O Mangue é influência confessa e faz parte de sua formação musical. Samuel Vieira, baixista do grupo, afirma que esse período foi decisivo: “Eu ia muito pro Maluco Beleza, pras periferias quando rolava o Acorda Povo, sem falar nos shows de Sheik Tosado, Eddie e Matalanamão. Era o som que era feito aqui que me interessava”. Mesmo assumindo a influência, o Mombojó soa local não por letras que exaltem a terra ou façam citações ao lugar de origem. A questão local hoje se concentra de uma forma indireta e numa relação diferenciada com a música, com a informaContinente outubro 2006
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ESPECIAL ção e sua circulação, fruto de um período específico, mas que estende seus benefícios e agruras até os dias de hoje. José Guilherme Allen também aponta outros benefícios que o período trouxe: “Essa geração que está aí já é uma galera que cresceu com Abril pro Rock, shows em botequim, bandas locais com discos gravados e toda uma cena já gerada. É uma outra espécie de relação. Quando gravei minha segunda fita demo com os Dreadful Boys, o grande mérito do cara que produziu era ter trabalhado com o Roupa Nova, e ele não tinha muita referência do que a gente queria fazer. Isso acontecia de forma geral. Nos discos de diferentes bandas era comum ouvir o mesmo som de bateria, de guitarra, de reverb, o mesmo tudo. Hoje em dia, como a cena se diversificou, e as pessoas passaram a conhecer e ouvir mais coisas, você tem na cidade pessoas
especializadas em produção fonográfica, que sabem como traduzir aquilo que o artista quer em som”. Das agruras ou a institucionalização da “brodagem” – O termo brodagem (advindo de brother, irmão, em inglês) caracteriza bastante o mercado musical pernambucano atual. Amigo jornalista que consegue uma notinha no jornal, amigo designer que faz a arte do álbum, amigo que cobra pouco pela produção do disco. Essa prática sempre existiu, desde os primórdios do mangue, “algo como uma mão lava a outra”, conta Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi. Mas com o crescimento e diversificação da produção criativa, aliados a um mercado que ainda caminha a passos de formiga, o que assistimos é a institucionalização da brodagem. Bandas que não têm como se sustentar sozinhas no mercado e se aliam a outras bandas, ou a
Muito além do coquetel molotov de maracatu A sonoridade contemporânea da urbe entrepontes inclui bandas tão diversas quanto Barbis, Chambaril, Variant, Volver, Eta Carinae, Parafusa, Rádio de Outono, Profiterolis, Mellotrons, Vamoz! e Superoutro Ronaldo Bressane
DJ Dolores já usufrui de sucesso internacional
Chris Von Ameln/Folha Imagem
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ESPECIAL amigos produtores, designers, jornalistas e publicitários, cada um fazendo o que pode por um preço amigável ou até mesmo de graça. Artistas e produtores sempre dependendo da bondade de conhecidos. “A brodagem é bonita de se ver, mas dinheiro, que é bom, nada”, disse Carlos Montenegro, guitarrista das bandas Profiterolis e Chambaril. “Um dos legados do Mangue, hoje, é o mínimo de infra-estrutura para se produzir música localmente. Só que o público que foi criado naquele período ainda não tira dinheiro do bolso para que os produtores enxerguem o que é feito aqui como algo viável comercialmente. Então, como se sabe que aqui não dá pra viver só de música, meio que acaba se perpetuando uma mentalidade retirante, porque se sabe que em São Paulo, que é uma
cidade maior, há público para tudo, e, às vezes, acaba sendo um meio de se profissionalizar mais rapidamente”, afirma. Com a Nação Zumbi foi assim. Lúcio Maia conta que houve um momento em que era mais do que necessário ir para São Paulo: “Nossa música cresceu muito e a gente sabia que precisava ir atrás das coisas, ir pra onde a grana circulava, para poder levar a história pra frente”. Em Caranguejos com Cérebro – o release, aquele que virou Manifesto – diz que “para os cientistas (os mangues) são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza”. Agora já sabemos que o campo é fértil e se mostra cada vez mais diversificado, só nos falta atrair o último quesito. Ou seja, ainda nem somos tão mangues assim – o que dirá Pós. •
R
terceiras se agruparam em novas formações. Derivados do mangue, porém com aspectos dissonantes, nomes consistentes levantaram suas antenas, dando tintas inovadoras à lama. Ingrato o trampo deste periodista – que não espera nada do centro, se a periferia está morta (pois o que era velho no norte se torna novo no sul) – o de editar, classificar, escolher o que é mais representativo do som pós-M Mangue. Isto posto, aos leões. História em círculos – Insaciavelmente curioso, o disc-jjóquei sergipano Hélder Aragão poderia se confortar em ser um “músico de músicos” – aquele tipo de artista tão informado que é mais manancial para os pares que matéria para fruição. Mas com Aparelhagem e Contraditório, provou que dance music pode (deve) ser ginástica para o cérebro sem descuidar dos quadris. Premiado no Brasil e prestigiado na gringa, o trabalho de DJ Dolores reúne atonalismos, samba-ppunk, brega paraense, hip hop balcânico, vocais árabes, jungle e até, creia, ritmos regionais pernambucanos. “Se sou pós-m mangue? Mas no Recife tudo é pós-m mangue!”, desafia ele, via MSN, ao desnorteado repórter. “Mangue era o nome das festas que a gente fazia...”, conta Hélder, responsável pelo design da capa de Da Lama ao Caos e dos cartazes dos eventos mais bacanas de Recife, nos earlies 1990. “Ninguém pensava em manifesto não – aquilo era só uma brincadeira que fizemos pra reunir mais gente nas festas!”, desvenda o produtor, enquanto finaliza a mixagem de uma faixa de seu próximo álbum, em que homenageará ninguém menos que Wolverine.
ótulos, tarjas e etiquetas, impressionantes esculturas de lama. Lamentável trabalho (trabalho, ô ô, trabalho trabalho) o de um jornalista, a se fantasiar de Adão para extrair do caos da linguagem definições, escolhas, nomes. O último movimento cultural do país inconteste, genericamente chamado Mangue – marca registrada com logotipo a postos: uma antena fincada no antro de caranguejos elétricos – completa 15 anos. Um nome surgido para dar a letra de festas, primórdios dos anos 1990, e levado às páginas de jornal por seus próprios artífices – músicos e jornalistas, Chico Science, Fred Zero Quatro e Renato L –, sob a forma manguebit, e divulgado na mídia sob outra alcunha, o manguebeat. Tão mutante e escorregadio quanto a lama, a moda, matéria-pprima e espelho da cultura pop, levou o Mangue à corrente sangüínea da música brasileira, contaminou-aa, diluiu-sse e... que barato fica, passada a onda? Dos coletivos pernambucanos que venderam caro a deglutição do mainstream, seguem inabaláveis no fluxo as torres gêmeas do gênero, mesmo depois de abatidas pelo atentado que levou Science: Nação Zumbi, em plena turnê de Futura, o álbum número seis, e mundo livre s/a, lançando também o sexto trabalho, Bebadogroove. À parte essas bandas seminais, de 1991 a 2006 o som da Mauricéia conquistou asseclas pelo Brasil e pelo mundo, sentiu o refluxo do mar de novidades, viu bandas se criarem, subirem e sumirem – algumas, não citaremos nomes, se foram no caô do clone da manguecoisa; segundas se desfizeram na malemolência de seus princípios; e
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Marcílio Kimura/Agência Folha
Felipe S, da Mombojó, a banda que mais se destaca na cena atual
Ovni pré-pós – Liderada pelo carismático Ortinho, a banda Querosene Jacaré era uma das formações mais esquizofrênicas do Mangue – mix de hardcore e rock setentista, mas também forró e coco. Esse último gênero caiu na cabeça do ex-percussionista da QJ, Cinval, e nunca mais foi o mesmo (tampouco Cinval). Um dos mais prolíficos artistas do Recife, Cinval lança hoje uma caixa com três horas de som, Anthology, reunindo 49 canções extraídas de 15 (!) álbuns. Sem se arvorar a rei da cocada, Cinval reinventa um dos gêneros mais primitivos do Brasil, adicionando-lhe fartas doses de groove gringo e tecno low-tech. Dançante, sua música é baseada em rimas nonsense e loops hipnóticos – quando você está quase decifrando o que é, já era, perdeu-se na espiral do coco-grude cinvalesco. Outra praia – Bonsucesso Samba Clube tem pedigree: Rogerman e Berna são emigrados da lendária Eddie, banda surgida no estouro Mangue, até hoje aí, mandando brasa. Menos rock que aquela, tem um pé no drum'n'bass, outro no funk e, como não poderia ser uma banda liderada por um baixista, é guiada por um caminhão de levadas quebradas. Dub, reggae, dancehall, salsa, son y otras caribenidades dão a maresia desse som, em que a marcante percussão separa e prepara a alternância freqüente de atmosferas – do sombrio ao Continente outubro 2006
sereno, sempre com leveza, porém. Habituada às subidas e descidas de Olinda, Rogério, Berna, Tchê, Raphael, Gilsinho e Édipo cometeram em seu segundo álbum, o excelente “Tem arte na barbearia”, esse belo hino à preguiça e à serendipity que é “Ah, quem dera”. Sha-la-la-la-la sem dó – Num show, no Sesc-Pompéia (SP), às três da manhã, apontei a histeria das meninas que urravam a cada meio-gingar do falso tímido Felipe, o vocalista da Mombojó, para meu amigo Alexandre Matias, também jornalista, e puxo o jogo da etiqueta: “Os Beatles latino-americanos ou Los Hermanos do Recife?”. Cutuca que cutuca, chegamos juntos à resenha: “Eles são o Radiohead do iê-iê-iê!”. Quase, ou melhores, posto que uma década mais novos que os geniais ingleses e muitas mais que o rei Roberto Carlos, entanto com idêntica segurança – tanto na escolha de sonoridades esquisitas e na mudança súbita de climas quanto no descaramento de soltar um desbragado “sha-la-la-la-la”. Curiosidade: metade da banda, aos 12 anos ainda, tocava numa formação de nome Play Damião, graça colada pelo folclórico Ortinho. Sem medo de mexer no reino da alegria, estabelecido pelo primeiro álbum, com Homem-Espuma, atropelaram a síndrome-do-segundo-disco. Com seu peso e criatividade, são das raras bandas autorizadas a precisar (e
ESPECIAL poder) salvar o mundinho pobre do pop brasileiro. Duvida? Ouça “Tempo de carne e osso” – anuviada pela voz da diva paulistana Céu – e vá buscar seu kleenex. Boas-novas – Sem contar grupos como o hip hop Faces do Subúrbio e a punk Devotos ou o crooner percussivo Otto (ex-mundo livre s/a), na cena de Pernambuco desde antes do Mangue até hoje enviando novas pauladas, há pencas de bandas aparecendo – mesmo que não identificadas à estética Mangue – e é, como já disse, sempre injusto
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resumir os nomes. Muito além do coquetel molotov de maracatu+funk, a sonoridade contemporânea da urbe entrepontes inclui bandas tão diversas quanto Barbis de Olinda, Chambaril, Variant, Volver, Eta Carinae, Parafusa, Rádio de Outono, Profiterolis, Mellotrons, Vamoz!, Superoutro, Astronautas, Mula Manca e a Triste Figura... isso sem falar em projetos paralelos de bandas como Los Sebozos Postizos e Maquinado (Nação Zumbi) e Del Rey (Mombojó). Quem tiver ouvidos, que ouça. •
Flavio Lamenha
A vez e a voz da invenção Bandas que não fazem referência sonora aos sons regionais, ao contrário, têm visão musical cosmopolita, impõem-se graças ao talento Julio Cavani
A Bad Minton apresentando-se no Festival Coquetel Molotov
ode parecer estranho que não toque tambores e nem trate do Brasil nas letras a única banda pernambucana em oito anos a assinar contrato com uma gravadora com estrutura de distribuição nacional. Mas a Mombojó, que também viajou para a Europa e entrou na programação do Tim Festival, é assim. De onde ela veio, existem mais. Por causa desses e de outros exemplos, a discussão sobre que música se sobressai no Recife depois do manguebeat se torna, no mínimo, legítima. O Recife sempre teve bandas com o perfil criativo da Mombojó, mas talvez o momento delas seja o hoje. São músicos cuja experiência artística pessoal não envolve ligar seu nome explicitamente ao lugar onde vivem, ou mesmo que o façam sem discursos estéticos deliberados, e que não se prendem a gêneros de estilo, às vezes chegando a ser anárquicos. Também não necessariamente tratam do social em seus versos e demonstram pouca, com exceções, preocupação com a própria imagem na mídia. Exemplos de artistas nesse contexto: Ahlev de Bossa, Chambaril, Hrönir, Profiterolis, Embuás, Conceição Tchubas, 3ETs Records, Le Bustier em Décadence, Diversitrônica, Geladeira Metal, Surpresa de Uva, Rádio de Outono, Thelmo Cristovam, Superoutro, Academia da Berlinda, Backin Ball Cats Barbis Vocals, Recife Combo de Improviso, Grilowski. Se nenhum desses nomes é conhecido do grande público, tanto faz para os que carregam a maioria deles. Melhor ainda, caso não se enquadrem nos padrões de expectativa de qualidade convencionais. “Não quero ser o mais vendido e nem quero falar só em seu ouvido”, diz uma letra da Mombojó, que sinaliza para essa independência em relação a lógicas convencionais de mercado. Mas até que alguma repercussão eles já obtiveram. O Festival Coquetel Molotov, por exemplo, que já abrigou metade delas, este ano recebeu tanta atenção de algumas das publicações de maior tiragem do Brasil, como a Folha de S. Paulo, quanto o Abril Pro Rock e o RecBeat. O potencial do projeto também foi percebido pelo Diario de Pernambuco (“consolida cena alternativa”) e pelo Jornal do Commercio (“apontar os novos rumos que a música pop do Recife anda precisando”). Todo esse possível fenômeno, entretanto, pode não ser particularidade pernambucana. Por outro lado, também há a hipótese de vir como uma resposta a um ufanismo regionalista, distorcido e excludente em seus processos de afirmação cultural. A expressão bumba-meuovo chegou a ser usada para atacar esse comportamento pernambucanóide. Quando o dinheiro e a política Continente outubro 2006
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ESPECIAL
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De cima para baixo: Le Bustier en Décadence, Barbis e Parafusa
eleitoral entram no processo, o engessamento de idéias se torna inevitável, em um movimento que chegou perto de banalizar a própria bandeira do Estado de Pernambuco. Surgiu na cola de uma coerente e honesta valorização das raízes, inicialmente presente no trabalho de grupos como Mestre Ambrósio e Nação Zumbi, honrada em uma segunda fase imediata formada por nomes como Cordel do Fogo Encantado e Orquestra Santa Massa. Tudo também pode ser resultado de uma busca pela diferença, na lógica da geração que sempre nega a anterior para sentir que está fazendo algo novo. Na década de 90, era difícil, por exemplo, não afirmar uma identidade local para se destacar em meio à consolidação inicial da
Tom Cabral/JC Imagem
Maciel Salu, presença forte do regionalismo
globalização – momento bem diferente do rock brasileiro musicalmente internacionalista dos anos 80. Isso vale para qualquer centro urbano periférico do mundo e manifestou-se também em outros países. A nova produção musical experimental estaria sintonizada com as questões da contemporaneidade, como aterritorialidade e descentramento do sujeito. Algum tipo de amadurecimento entre os músicos também pode estar sendo estimulado, pois eles deixariam de afirmar discursos para se concentrarem na consistência dos processos de criação em si mesmos. Seriam os jovens que assistiram a uma segunda fase do mangue e possuem uma visão mais distanciada de tudo o que ocorreu em seu entorno. É possível que estejam ampliando o debate sobre a cultura, pois temas como a solidão e a busca por prazer são mais fortes em suas realidades que as manifestações folclóricas. O mangue, que também proporcionou uma melhor estruturação técnica do meio local e despertou auto-estima, defende uma independência de criação. Nunca foi apenas pela representação de ícones que os mangueboys se notabilizaram, mas ainda pela maneira particular de trabalhar imagens e sons vindos da própria terra e de fora. A Nação Zumbi, felizmente, costuma ser entendida como uma banda de rock e não de música regional. Nos discos da Mundo Livre, as faixas costumam ser totalmente diferentes umas das outras e vão do samba ao puro punk rock. Há 10 anos, dizia-se que o Recife vivia uma “cena musical”. Essa expressão não funciona para hoje, pois o que se vê são vários movimentos paralelos, cada um com
seu próprio público. Novas bandas surgem todos os dias. Os artistas do folclore nunca estiveram tão bem, apesar de ainda enfrentarem problemas sociais. Eles gravam mais discos e fazem turnês pelo exterior com freqüência nunca antes vista. Músicos que participaram direta e indiretamente do manguebeat, como Otto, Siba, DJ Dolores e Eddie, assim como a própria Nação Zumbi, também se encontram no auge de suas carreiras. Da mesma forma, as bandas de gênero também atraem multidões para os seus eventos. Elas também produzem suas experimentações específicas dentro dos limites do estilo adotado, com exemplos ao menos no reggae (Variant TL, Tonami Dub, Hajah), no metal (Scream, Sick Sins, Fiddy), no brega (Kelvis Duran, Vício Louco, Tanga de Sereia) e no hip hop (Êxito d'Rua, Zé Brown), entre outros. Um novo regionalismo, que mal se encaixaria nesse rótulo, também toma forma, amadurecido com fusões inéditas e processos de composição ousados, testados por artistas como Azabumba, Forró Rabecado, Silvério Pessoa, Erasto Vasconcelos, Isaar, Alessandra Leão, Tiné, Cordel do Fogo Encantado, Renata Rosa, Gaspar Andrade, A Roda, Zé Cafofinho, Ortinho, Maciel Salu e Júnio Barreto. Sempre é bom lembrar que se torna precipitado, arriscado e pouco recomendável teorizar sobre algo que ainda está acontecendo. Apenas os anos devem confirmar o que se sobressai ou não esteticamente. Por enquanto, contudo, pode-se tentar, pelo menos, enxergar onde se estaria mais próximo da utópica independência criativa. Thelmo Cristóvam que o diga. • Continente outubro 2006
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Bandas já têm acesso a novas tecnologias
O fim do amadorismo Graças à internet, aos festivais, ao interesse da mídia nacional, ao surgimento de estúdios, técnicos e produtores, as novas bandas já começam em patamar profissional Bruno Nogueira
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ensar nos principais pontos da profissionalização das bandas, de certo modo, remete a um processo natural do avanço de certas tecnologias. O acesso a ferramentas de gravação e prensagem, por exemplo, são cada vez mais acessíveis. Mas o mercado fonográfico no Recife tem postura precoce. Uma que caminha algumas etapas à frente do que acontece no restante do país; muitas com características que são muito próprias da região. Isso acontece porque, desde o primeiro festival Abril pro Rock, há 14 anos, a Região Metropolitana do Recife passou a construir sua própria cadeia produtiva, com todos os elementos que compõem a mesma. O evento deu uma proporção maior à maneira como se consome música na cidade. Lojas de discos, festas noturnas, programas de televisão e de rádio foram afetados – mesmo que de maneira indireta – por esta necessidade de fazer a produção local transitar em várias camadas. O Recife tem, até o momento e contando com o palco pop do carnaval, nove festivais de música. O já citado Abril pro Rock se une ao RecBeat, NoAr: Coquetel Molotov, PréAmp, Pátio do Rock, Porto Musical, Festival de Verão e Cultura Independente. Tantas oportunidades forçam um refinamento nas bandas que querem passar nessa peneira e ter alguma visibilidade. Por isso, ter um disco apresentável não é mais a etapa final para definir uma banda bem-inserida nas novas cenas. É apenas o primeiro passo. Hoje, os grupos já Continente outubro 2006
contam com a própria assessoria de imprensa, produção musical e de palco, roadies (ajudantes de palco), entre outros figurantes. Os estúdios de gravação também foram envolvidos e viraram selos de qualidade para um trabalho. Um extremo que representa bem esse quadro é a história da banda Carfax, formada em 2005 por ex-integrantes de outras bandas – uma história que se repete com freqüência –, encabeçada pelo casal Marcelo Pompi e Iana Reckman. “Gravamos uma demo, ainda sem banda, e parti para o sudeste, para divulgar e conseguir patrocínio”, explica Pompi. A Carfax tem seu próprio palco. Segundo o vocalista, são “cinco microfones, kit de microfones para bateria, pedestais, duas caixas de grave, caixas de médio/agudo, quatro retornos, um praticável de bateria, mesa de som com 12 canais, equalizadores, amplificadores, efeitos, 18 canhões de 1000 watts e outros itens de iluminação”. Este tipo de articulação já permite, por exemplo, que as bandas de Pernambuco negociem distribuição nacional com empresas como a Tratore e Distribuidora Independente – especializadas em entregar os discos pelo territorial nacional – sem estarem necessariamente envolvidos com algum selo ou gravadora. É o caso de bandas como a Eta Carinae, Eddie e Bonsucesso Sambaclube. Esta necessidade de se profissionalizar atingiu as bandas num ritmo muito mais acelerado que todo o restante da cadeia produtiva do Estado. Apesar da grande quantidade
ESPECIAL de festivais que acontecem, não existem válvulas de escape suficientes para que as bandas se sustentem na cidade. Falta o cotidiano. O Recife não tem casas de shows de médio porte e com boa (ou mesmo qualquer) estrutura de som; além de um público interessado em pagar pelas apresentações e discos da produção local. Como conseqüência, a maioria dos grupos acaba se mudando para cidades como São Paulo, onde conseguem preencher um calendário mensal de shows em casas diferentes. A imprensa também não acompanha este ritmo. Na maioria das vezes, os jornais só dão espaço para uma banda, quando está já está com o disco gravado, shows agendados ou legitimada pelo público do sudeste. Foi o caso da Mombojó, que quebrou o hiato de seis anos sem um artista da terra com contrato assinado com gravadora. Só depois de ganhar destaque em São Paulo e no Rio de Janeiro, é que a mídia local passou a prestar atenção no trabalho deles.
Carfax: rock, samba e soul
A nova mediação – Durante o Porto Musical de 2006, uma das frases mais repetidas pelos profissionais que vieram ao evento era a de que “Pernambuco é ouvido muito mais fora, que dentro do Estado”. Apesar de contar com cerca de 18 estações de rádios FM's regulamentadas, nenhuma delas faz execução pública dos gêneros próximos do rock de produção independente. A maior parte da programação é preenchida com lambadas, forrós eletrônicos e generalizações do novo brega. Sem o suporte do meio mais tradicional para difusão musical, as bandas passaram a usar a Internet como novo
mediador entre seu trabalho e o público. “É impressionante o que algumas bandas de emocore conseguem só com os fotologs (álbuns virtuais de fotos); alguns shows têm público lotado, só com divulgação feita nesses sites”, comenta o responsável pela página do RecifeRock na Internet, Guilherme Moura. O RecifeRock foi o primeiro a identificar essa carência digital. “Notei que os jornais sempre falavam das mesmas cinco bandas, quando tinham muitas outras se apresentando nos fins de semana”, lembra Guilherme, que é arquiteto. Hoje, além dos sites das bandas – alguns com suas próprias rádios online –, o Recife conta com pelo menos seis sites específicos. “A internet amplifica as notícias para outras praças”, reforça o designer Leo Antunes, responsável pelo endereço CircuitoPE.org. “Hoje, 50% do site conta com a audiência de pessoas do sudeste”, completa. O Circuito é um dos que têm atualização freqüente de Divulgação conteúdo mais variado, como blogs (diários virtuais), podcast (rádio), galeria de fotos e de vídeos. A parte escrita das coberturas de eventos é feita pelo próprio público, que escreve e dá notas para questões que vão de estrutura a preço das bebidas. A internet também reconfigura o conceito de cadeia produtiva. Com suas músicas disponíveis em licenças como o Creative Commons (onde o artista diz o que pode ou não ser feito com sua obra, dando, por exemplo, liberdade para distribuição e remixes), as bandas passaram das etapas das lojas de discos e casas noturnas, chegando direto à casa do público interessado. O espaço virtual também trabalha noções de cena que não tem limites geográficos. Antes de lançar o primeiro disco, com apenas algumas músicas gravadas em estúdio, bandas podem se comunicar diretamente com outras do mesmo gênero, fechar shows e turnês. Na lista de discussão “Nordeste Independente” (hospedado pelo site Yahoogroups), por exemplo, produtores e bandas acertam programações inteiras de seus festivais sem nunca se falar por telefone ou ver uma foto da banda, apenas com a música em formato MP3. Este dialogo ainda permite uma constante troca de experiências, fazendo eco de um processo cada vez mais rápido de profissionalização. • Continente outubro 2006
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
E mesmo assim continuamos escrevendo O escritor busca comunicar-se com seu público. Uns de forma serena e outros, desvairados, correm atrás de quem os leia, ou escute, ou aplauda
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possível que eu tenha me apropriado da lenda, e contado como se fosse minha. Freud se refere a essa apropriação, no livro sobre os sonhos. Uma paciente relata uma história que ouvira de um amigo, e ao narrá-la é como se falasse de si mesma. Freud escuta, elabora, e também conta a história como se fosse dele. Dizem que o chinês Lao Tsé, que viveu no século VI antes de Cristo, abandonou a vida na corte quando completou 40 anos de idade. Recolheu-se à floresta até os 80 anos, e nesse tempo de ascese e meditação escreveu o Tao Te King, livro que é a base do pensamento e da educação chinesa, junto com as obras do filósofo Confúcio. Lao Tsé, fiel ao Taoísmo que ensina que pelo não-agir tudo é agido, entrega o seu manuscrito a um guarda de fronteira, nada fala sobre ele, nada recomenda, e vai embora. Por conta desse misterioso não-fazer ou não-interferir, que tudo realiza e resolve, o livro cumpriu seu destino, virou ensinamento para milhões de pessoas, e chegou até nós. O contista mineiro Francisco Mendes, quando lhe narrei a lenda, perguntou-me quem é o nosso guarda de fronteira. A quem nós entregaremos os manuscritos ao abandonarmos a floresta? Eis a metáfora do escritor. Porque ninguém mais “enche de silêncio o coração e contempla isento de desejos o incessante vaivém do mundo”. O escritor busca comunicar-se com seu público. Uns de forma serena e outros desvairados correm atrás de quem os leia, ou escute, ou aplauda. Ao mesmo tempo em que precisa do exercício silencioso da criação, de estar sozinho trabalhando, o mundo cobra cada dia mais que ele chegue ao limite de sua resistência, cumprindo uma maratona de conferências, enContinente outubro 2006
trevistas, artigos, uma exposição do corpo e da alma para ser visto, não esquecido, lido, cortejado. Já não existem florestas, nem guardas. Poucos sobrevivem ao novo enigma da esfinge: preserva-te e serás esquecido ou mostra-te e serás devorado. O prazeroso ou atormentado exercício da escrita tem pouco a ver com o giro pelo mundo, à cata de leitores. Pouco a ver com a caça aos prêmios. “São nuvens de palavras / meu tormento. / O peito em desejo, / sempre aberto: / fogo estranho que reluz / na noite escura / de São João da Cruz. / Nuvens: / rebanho de pensamentos. / Sopra do céu um vago lamento, / como um risco de luz, / na noite escura / de São João da Cruz.”* Escreveu o poeta Everardo Norões, que escolheu o exílio dentro da poesia. Os artistas que não assinaram suas obras, anônimos sem temor ao esquecimento, “se ergueram às alturas sem desejos, e encheram de silêncio o coração”. Talvez esses, talvez, tenham conhecido a alegria de criar pela mesma razão porque respiram, pulsam e amam. Criar para viver e viver para criar. E só. E tanto. “Rolar dentro de si / como a pedra no poço. / Do arco do corpo / desencadear o sopro. / Avistar / onde o olhar não alcança: / ler os passos de Deus / dentro da dança.”* Também escreveu Everardo Norões, de dentro do seu exílio. Buscar uma medida exata do que significa a criação na arte. Há diferenças no fazer e no criar? Ou tudo é um mesmo esquecimento de si? O artista popular Raimundo Aniceto, da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, do Crato, no Ceará, deu-me uma lição que nunca esqueci. Fui visitá-lo numa véspera da festa de Santo Antônio. Ele se arrumava para a noite que passaria sem dormir, tocando e dançando. A esposa cozinhava o jantar e o olhava
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de vez em quando, enternecida. Eu fazia perguntas sobre a música que ele tocava, sobre a dança, a história da banda. Vasculhava lá dentro dele para descobrir as pistas de um gênio do povo. Acredito que os meus elogios e as perguntas o incomodavam. Raimundo parecia indiferente à personificação do artista que eu traçava para ele. De repente, levantou-se da cadeira, me chamou, e eu o acompanhei até um quarto de porta fechada. Ele abriu a porta e mostroume o interior do cômodo. Não compreendi. Pensei que me mostraria alguns instrumentos raros, que confeccionara e tocava. Não. Ele apontou sacos de arroz, feijão e milho empilhados uns sobre os outros. Eu plantei e colhi tudo isso, falou-me sorridente. Bela lição que jamais esqueci. Todos os ofícios são sagrados, e o escritor não é mais que o padeiro, nem o carpinteiro, nem o pintor de paredes. Deus não prefere o músico ao pescador, como preferiu o Abel que pastorava ovelhas ao Caim que cultivava a terra. “O sábio tudo realiza, e nada
considera seu. Tudo faz, e não se apega à sua obra”, escreveu Lao Tsé. Talvez por isso tenha deixado os seus originais nas mãos de um desconhecido, sem importar-se com que destino teria. O guarda não era um editor renomado, não programou lançamento, não traçou planos de mídia, não inscreveu o livro em concurso literário. E mesmo assim ele fez carreira, vive há dois mil e seiscentos anos. Mas isso é uma lenda, e não existem guardas de fronteira como os antigos. O poeta busca a medida entre o ato solitário da criação e o mundo que o ignora ou traga. “Dessoletro-me sozinho Neste canto de sala. O vulto vem e espreita. Mais nada...”* * Everardo Norões, no livro A Rua do Padre Inglês. • Continente outubro 2006
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Nadia Boulanger foi mestra dos brasileiros Cláudio Santoro, Almeida Prado e Camargo Guarnieri
MÚSICA
Nadia Boulanger, a mestra dos mestres Nenhuma mulher foi tão procurada por seu conhecimento como a francesa que se tornou a maior professora de música do século 20 Carlos Eduardo Amaral
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História da arte dos sons e silêncios, até poucas décadas atrás, não tinha registrado uma pessoa que possuísse credenciais de tanto peso ao mesmo tempo quanto: ter alunos do porte do russo Igor Stravinsky, do americano Aaron Copland, do brasileiro Camargo Guarnieri e do argentino Astor Piazzolla; ser diretora do maior conservatório estrangeiro da França; ou ser selecionada no Prêmio de Roma, o mais cobiçado do universo da música. Mas tais credenciais não foram mais impressionantes do que a rica personalidade de Nadia Juliette Boulanger (1887 – 1979), a mulher que mais influenciou compositores em todos os continentes. De uma família ligada à música, sua avó paterna, Juliette, era cantora e casou com Frédérick, um violoncelista premiado no Conservatório de Paris. Daí nasceu Ernest, que foi aluno da mesma escola e ganhou o cobiçado Prêmio de Roma em 1835. Veio a ser professor do conservatório e apaixonou-se por uma aluna, a princesa russa Raissa Michetskaya. Dessa união nasceram Nadia e Lili (Marie-Juliette Olga). Nadia tirou o segundo lugar do Prêmio de Roma em 1908. Lili levou o primeiro prêmio em 1913, com 20 anos de idade, sendo a primeira mulher a conseguir o feito na categoria de composição musical. Nadia era professora da caçula, o que ajudou na conquista da láurea. As duas caminhavam para um brilhante carreira na composição, porém uma pneumonia crônica definitivamente vence Lili em 1918. A irmã sente a morte, reflete sobre o futuro e praticamente deixa de escrever. “Desisti de compor porque escrevia uma música que até não era ruim, mas não tinha utilidade. Minha ambição era ensinar”. Para ajudar a formação de novos compositores e perpetuar a memória de Lili, cria a Fundação Memorial Lili Boulanger, que admite alunos desde 1939 por concurso. Desde 1965, a seleção fica a cargo dos Amigos da Associação Lili Boulanger, que adotou o nome de Nadia após sua morte. Seu nome também foi incorporado pela Fundação, que promove um concurso anual de canto e piano e oferece bolsas de estudo a jovens talentos até hoje. O método de ensino de Boulanger era convencional: incluía harmonia tradicional, leitura de partitura ao piano, tipos de contraponto e o trivial solfejo. Ela também esperava que seus pupilos memorizassem os dois livros do Cravo Bem Temperado de Bach e aprendessem a improvisar fugas como ele. Era considerada dona de uma personalidade intensa e generosa, de um ouvido e memória perfeitos e de uma disciplina apurada. Aaron Copland (1900 – 1990) reforça esse testemunho: “Nadia Boulanger sabia tudo que havia para se saber sobre música; conhecia a mais antiga e a mais moderna, antes de Bach e depois de Stravinsky, e o sabia inconscientemente. (...) Mais importante para o florescimento do compositor do que o conhecimento técnico de Mademoiselle Boulanger era o jeito dela de cercá-lo com um ar de confidência (percebi que o inverso, sua desaprovação, tinha um efeito aniquilador)”. Continente outubro 2006
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O minimalista Philip Glass foi um dos seus alunos
Nadia Boulanger, Koussevitsky, e Aaron Copland, seu pupilo americano mais conhecido
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Boulanger preferia ser tratada como “senhorita” – em tempo, não há relatos de casos amorosos seus. O magistério da música deu-lhe plena realização, ao longo de seus 92 anos: “Nunca penso em idade. Não tenho tempo; eu trabalho. Retiro? Não sei o que é isso. Ou se trabalha ou não se pode trabalhar – o que seria a morte”. E assim ela ensinou até a velhice lhe tomar a visão e fazê-la ficar em cadeira de rodas, cerca de dois anos antes de falecer. Não há igualmente registros exatos de quantos “pupilos” teve, mas se sabe que ela foi a primeira mulher a reger diversas orquestras, como a Filarmônica de Nova York, a Sinfônica de Boston, a Philadelphia Orchestra, nos Estados Unidos, a Hallé Orchestra de Manchester e a Sinfônica da BBC na Inglaterra. Copland foi o pupilo americano mais conhecido, com quem manteve correspondência durante mais de 50 anos. O Conservatório Americano de Música de Fontainebleau colaborou para a maior parte de seus alunos serem dos Estados Unidos. Entre os pupilos do Conservatório se encontram Robert Russell Bennett, Leonard Bernstein, Elliott Carter, Philip Glass e Burt Bacharach, o pianista e arranjador de Marlene Dietrich. Virgil Thomson (1896 – 1989) tentou definir numa frase jocosa o que era a Mademoiselle: “Uma poderosa e infiltrada escola de graduação numa só mulher, cuja lenda conta que toda cidade americana tem duas coisas: uma loja five-and-dime (equivalente a nossas ‘1,99’) e um pupilo de Boulanger”. Seus alunos, porém, vinham de todas as partes do mundo. Astor Piazzolla (1921 – 1992) foi se aprimorar com ela em 1954 e terminou mandado de volta a Buenos Aires, mas pela sensibilidade de Nadia. O gênio portenho contou que ela pediu para que tocasse dois tangos. Ele o fez, sendo o segundo tango de sua própria autoria. Aí veio a admiração: “Enfim ouvi Piazzolla, depois de um ano. Chega de aulas: você já tem seu caminho. Vá compor, crie um grupo, faça seus arranjos e nunca mais deixe de ser esse Piazzolla”. Ele admitiu que a partir daí começou sua carreira. Egberto Gismonti atestou esse tino de Boulanger à criatividade dos alunos ao reproduzir as palavras que ela lhe disse em Paris, 1969: “Sr. Gismonti, vá agora para casa e permita-se a irresponsabilidade a que vocês brasileiros têm direito”. Ele explicou o significado: “A irresponsabilidade é deixar que o ato criativo seja uma freqüência na sua vida. Se isso é utópico? Tomara, mas que seja necessário ao cotidiano”. Outro brasileiro, Almeida Prado, contraria a visão de pedagoga exemplar da francesa. Recentemente, Almeida Prado revelou que seu convívio com Mademoiselle não foi pacífico: “Ela era horrivelmente exigente. Ela me maltratava, me humilhava muito diante dos outros alunos. Fazia isso porque me achava genial. Ela disse
Nobert Millauer/ AFP
Boulanger foi a primeira mulher a reger a Orquestra Filarmônica de Nova York
isso numa carta à minha mãe. E por isso ela me punia. Não achava isso certo. Era uma mentalidade do século 17. Uma vez, eu havia acabado de compor duas obras dificílimas, estava cansado, e ela me colocou no piano para ler uma partitura de Beethoven. Eu errei. Então ela me disse: ‘Você está há três anos comigo e ainda não sabe nada? ’ ” Isso o levou a querer voltar ao Brasil. Para compensar o peso das palavras e adiar a viagem, ela lhe concedeu uma bolsa. Almeida Prado ficou mais um ano, mas convencido de não ser mais um aluno da Nadia Boulanger. Essa história não mudaria a visão de Copland, se ele a ouvisse. O americano, por exemplo, sempre guardou a lembrança da estréia de sua Sinfonia para Órgão e Orquestra, em janeiro de 1925. A peça foi encomendada por Boulanger, mesmo sabendo que Copland nunca ouvira uma obra orquestral sua sendo executada e não tinha idéia de como soaria. O público ficou incomodado com os acordes da Sinfonia e Walter Damrosch, o maestro da ocasião, comentou para o público ironicamente, após as últimas notas, que o compositor em mais cinco anos estaria cometendo um assassinato, se seguisse naquela linha. Na verdade os assinantes da orquestra queriam uma palavra de apoio a seus ouvidos e Damrosch percebeu isso. Copland, que estava presente e
do lado dos pais, ficou surpreso, mas com a certeza de que Boulanger gostou da obra. Tanta afinidade transparece em um perfil que traçou de sua mestra, útil para os curiosos em saber sobre Mademoiselle Boulanger. Segundo Copland, ela tinha altura mediana, feições agradáveis e emanava desde jovem uma espécie de entusiasmo objetivo. Usava sapatos de salto baixo, uma longa camisa negra e pince-nez, que contrastavam com sua brilhante inteligência e seu vivo temperamento. Como todo professor marcante, Boulanger deixou lições que perduram pela vida dos alunos. Philip Glass (1937) contou uma delas: “Por que é que um compositor soa da maneira que se faz soar? Foi uma das coisas que aprendi quando estudei com Nadia Boulanger, que foi uma grande, grande mestra... O que ela ensinava era estilo. Estilo é um caso especial de técnica. Técnica é algo geral que todos podemos aprender, o estilo que levamos a uma peça é a maneira como usamos a técnica. Dessa forma, em um compasso de qualquer compositor, podese reconhecer imediatamente quem ele é, e essa predileção por trabalhar de certa maneira se torna identificável com a personalidade e a alma do compositor”. Com certeza centenas de músicos identificariam sem pestanejar uma alma, dona de um grande estilo de ensinar na França do século passado. • Continente outubro 2006
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AGENDA/MÚSICA Foto: Divulgação
Louvre no Recife "Les Musiciens du Louvre" apresentam-se no Recife e Salvador
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undado em 1982, pelo regente Marc Minkowski, o grupo “Les Musiciens du Louvre” se insere na renovação da música clássica antiga na França e é considerada uma das mais importantes orquestras da Europa. Com repertório dedicado aos séculos 17 e 18, caracterizase por interpretar o mais fielmente possível as músicas barrocas francesas e as obras de Haendel. O repertório do grupo conta ainda com interpretações impecáveis – por seu rigor de estilo e seu respeito aos textos – de obras de Bach, Lully, Rameau, Stradella, Gluck e Charpentier. Marc Minkowski nasceu em 1962, é fagotista de formação e recebeu os títulos de Cavaleiro do Mérito e Oficial das Artes e Letras. O grupo françês se apresenta no Teatro Castro Alves, em Salvador, dia 22/10 e no Teatro de Santa Isabel, no Recife, dia 26/10. As apresentações serão iniciadas às 21 horas, com peças de Haydn e Mozart no programa.
Informações: Consulado-Geral da França – 81.3465.3290
Estudantes em Minas Seguindo a melhor tradição dos festivais mineiros de música clássica, a Associação Cultural Casa de Música de Ouro Branco promove a 3ª Semana de Música de Ouro Branco, de 06 a 14 de outubro. O evento oferece 20 oficinas de instrumentos, canto, musicalização e regência e 350 vagas para estudantes de todo o país. Alunos do Recife, João Pessoa, Salvador e Fortaleza marcam presença todos os anos em busca de aperfeiçoamento técnico e intercâmbio de idéias com nomes do Brasil e do exterior. Neste ano, os destaques são o premiado violonista Fábio Zanon, o trompetista pernambucano Nailson Simões, o maestro português Osvaldo Ferreira e o violinista alemão Theodor Findell. O público terá oportunidade de ouvir dois concertos por dia com entrada franca, na interpretação da orquestra formada pelos professores e na de grupos convidados, além de palestras sobre saúde e música, e aprendizagem e ensino. Informações: 31.3742.3553 / e-mail: casademusica@uaivip.com.br Continente outubro 2006
Refinamento em dobro Desde seu lançamento, Piano a 4 Mãos merece ser mencionado como um registro ímpar na interpretação pianística brasileira a dois. Escolha de repertório, qualidade de som e excelência de execução justificam essa referência. Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini dedicaram a mesma sensibilidade a compositores nacionais e europeus, como na clássica “Ma mère l'oye”, de Maurice Ravel, em “Dolly op. 56”, de Gabriel Fauré, e nas “Variações Sérias”, de Ronaldo Miranda. Até mesmo nas reduções orquestrais, a exemplo das obras dos espanhóis Isaac Alberniz e Manuel de Falla, a atmosfera original é mantida, com a devida leitura de filigranas. Completam o repertório, peças de Oiliam Lanna, Calimerio Soares e Aylton Escobar. Celina Szrvinsk e Miguel Rosselini – Piano a 4 mãos, produção independente, R$ 26,00. Pedidos: celinaszk@hotmail.com
Armorial cearense Todos os grupos de orientação armorial se empenham na pesquisa das ligações entre a música antiga e a nordestina. E há 20 anos não tem sido diferente com o Grupo Syntagma, de Fortaleza, formado por flautas doces e transversas, cravo, viola da gamba, violão, percussão antiga e coro. No CD Miracula, essa formação possibilita o mesmo colorido a peças quadricentenárias e de compositores contemporâneos da terra, como Tarcísio Lima e Liduíno Pitombeira, fundador do grupo. Na Suíte Russana de Pitombeira, para cravo solo, as melodias sertanejas ganham um ar genuinamente barroco e parecem tocadas por violas dedilhadas. Luiz Gonzaga também tem espaço com “Asa Branca” e “Estrada de Canindé”. Grupo Syntagma – Miracula, produção independente, R$ 22,00. Pedidos: novaisporto@uol.com.br
Violão premiado Lançado há quase oito anos, Concerto à Brasileira rendeu a primeira indicação ao Grammy de CD erudito nacional; ganhou o prêmio Açorianos e continua entre os mais divulgados no sul do país. Daniel Wolff, primeiro doutor em violão do Brasil, interpreta a peça-título, de Radamés Gnatalli, ao lado da Orquestra de Câmara da Ulbra, regida por Tiago Flores. O violonista dá voz também a sua Três faces de Ernesto, sobre temas de Ernesto Nazareth, e a duas obras do músico amazonense Gaudêncio Thiago de Mello: Amadeste e A hug for Ayla. O americano Gary Dranch encerra o disco como solista da primeira gravação mundial do Concerto para Clarinete e Cordas de Daniel Wolff. Concerto à Brasileira – Daniel Wolff, Antares Música, R$ 26,00. Pedidos: daniel@danielwolff.com.
AGENDA/MÚSICA Samba na Lapa Revelação do samba carioca, Teresa Cristina e o Grupo Semente ganharam o reconhecimento do público e da crítica devido à qualidade de suas composições e pela interpretação da obra de Paulinho Carioca nos bares da Lapa no Rio de Janeiro. O novo disco, O Mundo é meu Lugar, foi gravado em CD e DVD (ao vivo) durante um show realizado no Teatro Municipal de Niterói. O álbum conta com músicas já conhecidas na voz de Teresa Cristina, como “Gorjear da Passarada”, “Eu Sou Assim”, “Coração Imprudente”, além de músicas de Chico Buarque como “Meu Guri”, Gonzaguinha com “Perna no Mundo”. Além do show (no DVD), também encontramos um documentário contando sobre a vida da cantora, sua infância na Zona Norte, apresentações surpreendentes na Lapa e sua relação com a Portela. Ao Vivo – O Mundo é meu Lugar, Teresa Cristina e Grupo Semente, DeckDisc, preço médio R$ 25,00.
Timbre e ritmo No Meio da Banda, terceiro CD do carioca Augusto Martins, toma o nome de uma composição da poetisa Elisa Lucinda e é marcado pela referência a imagens líricas, como um “jardim de vaga-lumes pra te iluminar” e “um par de palavras pra te agasalhar”. Augusto Martins possui os ingredientes imprescindíveis a um bom cantor: timbre definido, senso rítmico, afinação e gosto apurado para a seleção de repertório que reúne inéditas de compositores como Fátima Guedes (“Sublime”, em parceria com Eduardo Gudin), Fred Martins (“A Lei”), e Moacyr Luz (“Cavaleiro das Marés”, também com versos de Pinheiro). A participação de outros artistas, como João Donato, Moacyr Luz, Fred Martins e Otto apenas abrilhantam o disco. No Meio da Banda, Augusto Martins, Rob Digital, preço médio R$ 20,00.
Trovadores PE na França – Cantadores na Terra dos Trovadores foi apresentado no Cine PE , conta as andanças de dois cantadores, buscando disparidades, semelhanças e a origem da música de improviso na França. A história da dupla Edmilson Ferreira e Antônio Lisboa é antiga: cantam juntos desde 1995. Em 2001, foram selecionados para realizar 12 apresentações na França. O intercâmbio faz parte do trabalho da instituição européia que realiza pesquisa e preservação da cultura occitane. Quatro anos depois, Antônio e Edmilson voltaram à França para uma nova turnê. O diretor Ricardo Mello aproveitou esse retorno para registrar esse encontro de cantadores e trovadores em documentário que chega agora em DVD. PE na França, Auçuba, preço médio R$ 20,00.
Nove de Frevereiro
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ntonio Nóbrega apresenta o segundo volume em CD do seu projeto, Nove de Frevereiro, que faz homenagem aos 100 anos do frevo. Se no primeiro Nóbrega buscou resgatar as origens do ritmo-símbolo do carnaval pernambucano, este Volume 2 imagina o frevo para o futuro e traz composições de grandes nomes e novos talentos, inclusive com quatro músicas escritas pelo próprio Nóbrega. Nove de Frevereiro – Volume 2 é repleto de bons nomes e boas músicas. Participam Clóvis Pereira, Maestro Duda, Edson Alves fazendo arranjos para composições de Capiba, Getúlio Cavalcanti, Edgard Moraes e toda uma boa safra de músicos e compositores de frevo. Destacamse as músicas “Florilégio”, um pout-pourri que conta com “Madeira que cupim no rói”, de Capiba, “Evocação nº1”, de Nelson Ferreira, “É de fazer chorar” de Luís Bandeira entre outras que figuram ano após ano nas ladeiras de Olinda e ruas do Recife durante a festa de Momo. Para aqueles que apreciam a história de Pernambuco e do frevo, o CD vem acompanhado de um livreto sobre o ritmo pernambucano. São histórias, um pequeno catálogo com nomes importantes do frevo e um pequeno ensaio fotográfico de Pierre Verge. Nove de Frevereiro – Volume 2, Antonio Nóbrega, Independente. Preço médio R$ 30,00.
Maracatu carioca Os cariocas da Lapa, Santa Tereza e Ipanema já não se espantam com desfile de maracatu em suas ruas. Há nove anos, um grupo de rapazes e moças, assumidamente influenciado pela música produzida nos mangues recifenses, criou a batucada miscigenada do Rio Maracatu. Agora, com produção de Pedro Luís, parceiro do grupo, para a Rádio MEC, vem a ser lançado o seu primeiro disco, intitulado Lapadas. É um instigante registro do maracatu de sotaque carioca, misturando alfaias, caixas e gonguês a bateria, baixo, cordas e até flauta. Esse aggiornamento do marcatu vai de Capiba, Chico Science, Lenine, Maciel Salu a composições autorais, além de incorporar toadas dos maracatus Leão Coroado e Estrela Brilhante. O resultado é excelente, demonstrando que a música de raiz, em diálogo com a contemporaneidade, sobrevive em sua inteireza. Lapadas, Rio Maracatu, Rádio MEC, preço médio R$ 25,00. Continente outubro 2006
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
O processo de Médici O general Emílio Garrastazu Médici, no remoto ano de 1935, ano da Intentona Comunista, transgrediu as normas
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s subterfúgios do ciclo do poder militar brasileiro armazenaram firulas e segredos intrigantes, mas não tanto. Pois, quando da abertura e anistia ampla geral e irrestrita detonada pela canseira dos adeptos da caserna, muita coisa veio à tona, mister algumas requererem condenações, senão deplorarmos a exploração atual de fatos e feridas reabertas em função do extremismo descabido e infantil dos ditos ideólogos de ponta de calçada, tanto da semimorta esquerda quanto da direita. Não se deve rever a história com partidarismo ou passionalmente relembrando queixas e buchas através dos tempos. A curiosidade por episódios nunca revelados tende, algumas vezes, às pessoas realçarem os que interessam beneficentemente e a minimizarem outros que tocam na vontade ou nos sentimentos. É preciso que sejam relatados sem a sumária absolvição do sabe-tudo nem com a fobia política acusatória, tipo consumatum est, tão em moda em países carentes de educação para os seus povos, como no nosso. A imparcialidade credita o historiador. No poder civil de hoje, diagnosticado de democracia, por exemplo, fantasmas da conduta de diversos homens tidos como sérios na nossa República afloram, quando remexidos por denúncias anônimas ou pelo desvendamento da historicidade política através de pesquisadores enfurnados nas teias enviesadas dos arquivos públicos, das fundações, das organizações jornalísticas e Diários Oficiais. Letras miúdas e envelhecidas por lancinantes fungos predadores são lupadas com paciência. Notícias e atos pinçados com olhos de ourives nos levam a passados escondidos. Quem imaginaria, durante o longo regime militar instalado no Brasil em 1964, haver um presidente empossado, general de quatro estrelas, que já fora denunciado, no início de sua oficialidade, em grave infração prevista no código da própria instituição? Pois bem, o general Emílio Garrastazu Médici, quando em remoto 1935 – ano da Intentona Comunista –, jovem capitão, transgrediu as normas, muito bem-acompanhado pelo então major Ney dos Santos Braga, depois Ministro de Estado: “Vistos e relatados estes autos, deles se verifica que o Dr. Promotor da 2ª Auditoria da 3ª Região Militar ofereceu Continente outubro 2006
denúncia contra o 1º Tte. João Francisco Duarte, o major Ney dos Santos Braga; capitães Newton O'Relly de Souza, Emílio Garrastazu Médici, Hugo Garrastazu e tenente Nilton Barbosa, atribuindo ao primeiro o crime de peculato, definido no artigo 166 do Código Penal para a Armada, extensivo ao Exército, e aos outros o de falta de exação no cumprimento do dever, previsto no art. 1º do Decreto nº 4.988, de 8 de janeiro de 1936, combinado com o art. 170 do dito código, sendo a denúncia recebida, aguardada a apresentação dos denunciados para o início da formação da culpa”. O processo foi instaurado e guardado em gavetas coniventes por longos 10 anos, reinaugurando, sem tormento, o baú do esquecimento proposital até a prescrição. Em 16 de maio de 1945, reunido o Supremo Tribunal Militar: Gen. Silva Júnior, Presidente; Dr. Cardoso de Castro, relator; ministros J. Bulcão Vianna, Manoel Rabello, Azevedo Milanez, Heitor Varady, Pacheco de Oliveira e Edgar Facó, acordam conceder a ordem de habeas-corpus para o fim de não serem os pacientes requerentes, majores Emílio Garrastazu Médici (promovido de posto ainda subjudice) e Ney dos Santos Braga, constrangidos na sua liberdade em conseqüência do dito processo, atendendo à extinção da punibilidade pela prescrição - os fatos narrados na denúncia datam de 1935. A prescrição da ação penal já se havia verificado ao tempo do oferecimento da denúncia, pois o seu prazo é de dois anos nos crimes da falta de exação no cumprimento do dever – Código Penal Militar de 1891 (Ac. 15/1/36 – H.C. 7.599 – Jurisprudência Diário da Justiça XVI – 246 – Ac. 4/5/36. Idem XVI – 255 – Ac. 15/5/36. Idem XVI – 279 e outros). O citado habeas-corpus requerido ganhou o nº 21.484, e a decisão foi publicada no Diário da Justiça (apenso ao nº 203), no sábado 8 de setembro de 1945. Na implantação da linha mais que dura em seu governo, o presidente Médici cassou, entre outros, o deputado pernambucano Edson Moury Fernandes. Explosivo e já portador de complicações cardíacas, foi poupado de tomar conhecimento desse fato pelos filhos, por carta anônima, visto o mesmo querer detoná-la publicamente e ser preso. Vejam o que acontecia nos porões das casernas. •
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