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Marco Borgreve, Warner/Divulgação
A obsessão dos grandes artistas
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EDITORIAL
Trio Beaux-Arts: Antonio Meneses (violoncelo), Menahem Pressler (piano) e Daniel Hope (violino)
história do violoncelista Antonio Meneses, se nada tem de rocambolesca, é a mais perfeita demonstração dos caminhos seguidos por um jovem talento até se tornar um virtuoso. Considerado um dos maiores instrumentistas da atualidade, este pernambucano do Recife tem uma trajetória em que o “dom” para a música foi temperado por uma grande obstinação, que o fez se transferir para a Alemanha, aos 16 anos, a fim de estudar. Indagado pelos repórteres da Revista sobre as dificuldades para um adolescente em decorrência dessa mudança para um país tão diferente, revelou que os problemas – a solidão, a falta de dinheiro, a distância da família – eram irrelevantes, porque tinha uma meta – “tocar bem o violoncelo”. É essa obsessão, cremos, que faz de um garoto com vocação musical um verdadeiramente grande intérprete. E isso pode ser aplicado a todos os ramos da Arte, na infalível fórmula em que a grande obra é produto da inspiração na razão direta da transpiração. No caso de Meneses, além dessa determinação inflexível, a própria escolha do instrumento deu-se, não por um acaso, mas pela sagacidade do seu pai, o trompista Flávio Meneses, para quem o Brasil tinha uma tradição de pianistas e músicos de sopro, mas era deficiente na área de cordas. E assim o pequeno Antonio, aos 10 anos,
abraçou-se com o instrumento maior que ele próprio e estudou-o com o afinco necessário para dominá-lo plenamente. Hoje, integrando o conceituado trio Beaux Arts e em pleno apogeu de uma carreira de solista consagrado no mundo inteiro, Meneses participou da última Mimo – Mostra Internacional de Música de Olinda e será o homenageado do Festival Virtuosi do Recife, no próximo mês. Num momento iluminado de sua vida, em que se volta cada vez mais para autores contemporâneos brasileiros, prepara-se para comemorar, ano que vem, seus 50 anos com uma série de apresentações por todo o Brasil. Por todos esses fatos e atributos, Antonio Meneses é o tema de capa da Continente Multicultural. No dossiê Especial deste mês, a Revista aborda a questão de como o movimento romântico foi refletido nas artes, nas ideologias e na cultura como um todo. Como explica Daniel Piza em seu artigo, “o termo romântico ganhou muitos sentidos nestes pouco mais de 200 anos que se passaram desde que o Romantismo surgiu nas artes”. Hoje utilizamos corriqueiramente a palavra para dizer que alguém é sentimental, nostálgico ou sonhador; mas, por trás de todas esses significados, há uma história rica e conflituosa que tentamos apresentar de forma plural nas páginas desta edição. • Continente novembro 2006
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CONTEÚDO Mimo/Divulgação
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Mostra Internacional de Música de Olinda: espaço para Meneses
Divulgação
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40 A arte sob o tacão da ditadura argentina
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CONVERSA
CINEMA
04 A literatura radical de João Gilberto Noll
60 Neste mês, Luchino Visconti completaria 100 anos 64 Germano Haiut interpreta judeu amargurado no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias
CAPA 12 Como Antonio Meneses chegou ao topo 16 Violoncelista prepara comemoração dos 50 anos 20 Referência para a nova geração de músicos brasileiros 22 Agenda Música
LITERATURA
ESPECIAL 66 Os ecos do Romantismo 70 Os radicalismos do movimento romântico 74 A palavra na música
24 Em coletânea, a poesia visceral de Herberto Helder
CÊNICAS
28 Os 30 anos do Sísifo de Marcus Accioly 30 Agenda Livros 32 Prosa: uma mulher bebe e convive com seus fantasmas 34 A poesia engajada da mexicana Gloria Gómez Guzmán 35 A persistência do independente jornal Rascunho
78 Carlos Carvalho inaugura espaço próprio 82 O segundo volume das Memórias da Cena Pernambucana 84 Agenda Cênicas
ARTES 40 Artes plásticas sob a ditadura argentina 45 Agenda Artes
ARQUITETURA 48 A presença mediterrânea nas colônias portuguesas
FOTOGRAFIA 50 Os acervos artísticos dos cemitérios Continente novembro 2006
REGISTRO 85 Registro da visita de Charles Darwin ao Recife e Olinda
HISTÓRIA 90 Registro visual do Recife de 1852, por Emil Bauch
TRADIÇÕES 92 O novo cordel: temáticas gays e pelejas por e-mail
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Reprodução
Divulgação
CONTEÚDO
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Simone Spoladore e Michael Joelsas no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias
Romantismo: a vitória da imaginação
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 Não tiramos partido de nossa multiculturalidade
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 36 J.K. Rowling (quem diria?) ganhou mais do que Madonna
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 46 Cícero Dias imprime à pintura sua marca pessoal
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 56 Do leite de loba ao leite de vaca
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 59 Quando quero visitar alguém, sempre dou um jeito de não ir
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 As mil e uma noites árabes aconteceram no sertão nordestino?
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 A Revolução Praieira como inspiração Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente novembro 2006
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CONVERSA
JOÃO GILBERTO NOLL
“Na minha literatura acesso insólitas figurações carnais” Não há limites para a literatura de João Gilberto Noll: mesmo tabus como o incesto são explorados de uma forma radical, por trás da aparente banalidade dos enredos Luciano Trigo
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leitura de cada um dos 24 contos de A Máquina de Ser, o 14º livro de João Gilberto Noll, é uma experiência-limite. Os personagens de Noll são essencialmente solitários, vivem a meio caminho entre o que é vivido de fato e o que é imaginado, sonhado ou fantasiado. Por isso não há limites para a literatura de Noll: mesmo tabus como o incesto são explorados de uma forma radical, por trás da aparente banalidade dos enredos. O leitor tem a chance de mergulhar em pequenos instantes de vidas absolutamente comuns, numa viagem que revela o absurdo inerente à condição humana. Em meio à ação impensada de se despir das luvas e atirá-las ao chão, um personagem pode estar se livrando um pouco de si próprio. Na garganta de um cadáver, palavras que jamais serão ditas coagulam. Um cego se perde entre ilusões de tato e seus exercícios diários de reconstituição da realidade. Ao despencar de uma grande altura, um homem sente suas últimas idéias se tornarem pastosas e escorrerem definitivamente para fora de sua cabeça. E uma mulher vive seu dia com tal intensidade que chega a escorrer sangue de seu corpo na hora de dormir. Mas a principal personagem das histórias de João Gilberto Noll é a linguagem em si. Um bom exemplo disso é o conto “Em nome do filho”, que começa com as palavras de um médico a um tempo frias e terríveis: “O seu filho entrou em óbito”. Dita desta forma, a notícia demora mais para surtir seu efeito devastador. O pai prefere ver o corpo do filho morto a ter que se referir a ele no passado, tempo verbal que será adiado ao máximo.
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A disposição temática dos contos reunidos em A Máquina de Ser contempla uma diversidade de narradores e atmosferas cujo encadeamento confirma e, ao mesmo tempo, renova a habilidade que o autor tem de surpreender – e desestabilizar – seu leitor, na medida em que revela novas, profundas e inesgotáveis possibilidades de ser. Em A Máquina de Ser, João Gilberto Noll mostra que a verdadeira literatura desequilibra os leitores. Você teve uma breve experiência trabalhando em jornal, quando morou no Rio. Isso ajudou ou prejudicou a sua escrita? Trabalhei em jornais em meus primeiros anos de Rio. Com uma aguda sensação de que não era exatamente aquilo que eu queria da vida. Tinha uma obsessão exagerada com esse negócio de ser escritor. Dentro desse quadro, no entanto, tirei muito proveito da redação jornalística, proveito para a minha atividade de ficcionista. Aprendi que era preciso evitar qualquer palavra supérflua. Que era preciso extrair o excesso de conectivos, desses termos cuja existência se define fora da semântica, termos cujo registro vive na ciência da filologia, em cânones abstratos, como as conjunções, preposições, os pronomes. Enfim, nunca ninguém viu um DE passeando com seus filhos e tal... Por exemplo, a incidência dos “ques” deveria ser reavaliada, para que o leitor captasse da língua o seu melhor, a polpa semântica, com os adjetivos e, principalmente, substantivos. Se bem que eu, pessoalmente, não tenha nada contra os adjetivos, pois existem momentos, na prosa
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Escritor gaúcho João Gilberto Noll
de ficção, que só estes conseguem dar conta do recado. Às vezes num romance você não consegue nomear seriamente o que quer que seja, sobrando assim apenas um naipe de atributos. Acho até que essa política do texto enquanto menos, do recato no uso do adjetivo é uma coerção machista, cujo padrinho maior foi Hemingway. As plumas e ouropéis ficam para Lezama Lima. Pois é, toda essa consciência da administração da superfície do texto me veio do jornalismo. Independente disso, lembro que tive companhias extraordinárias nas redações, como a de Torquato Neto... Lembro muito bem da crista baixa da redação no dia seguinte ao suicídio dele. De uma certa forma, sua morte representava um pouco o fim da nossa juvenília hedonista, sob os tacões da ditadura militar.
Que expectativas você tinha da vida e da literatura quando lançou seu primeiro livro, O Cego e a Dançarina, 25 anos atrás? Em que medida essas expectativas se realizaram (ou se frustraram)? Tenho a impressão de que se deve relativizar essa história de realizações e frustrações. Até onde vai uma... onde inicia a outra? Como disse há pouco, sou um homem de idéias fixas. Tudo o que construí em termos literários veio da sensação obsedante de que eu só me sentiria inteiro com um trabalho nessa linha. Mas, ao mesmo tempo, depois de algumas décadas em que você persegue o seu objetivo ficcional, você é obrigado a admitir que ficou paralisado em tantos outros campos da vida! E isso traz uma tristeza, mas traz também uma certeza de que tudo que é humano é Continente novembro 2006
CONVERSA assim mesmo conflitivo e provisório, e que é melhor obra de arte, pois sabíamos que viver nossa juventude naquele período era o equivalente a percorrer um mundo seguir e assobiar... paralelo, apenas suspenso nas horas do trabalho. Ah, eu Você já declarou que foi influenciado pelo pensador chegava nas redações sempre cheio de experiências para Herbert Marcuse. Nesse sentido, a sua ficção se alinha contar. Era tão bom... Eu perdi um pouco disso, do com um certo espírito contracultural? cálculo novidadeiro para atrair meus colegas de geração. É verdade. Justamente nessa época de jornalismo, Mas nunca é tarde, trago ainda um background no vivi com muito ardor a atmosfera da contracultura. Fui assunto... Eu voltava de olheiras das farras... e entrava na freqüentador, por exemplo, das dunas da Gal (a Costa, redação pronto para escrever sobre o novo espetáculo de mesmo!) nos domingos de manhã, na praia de Ipanema, Zé Celso, Gracias Señor. quase Arpoador. Ali se reuniam os então chamados desExiste hoje uma contracultura? Ou até a rebeldia, na bundados. Naquela época, para mim, Gal era a mais linda das brasileiras. Chegava às areias com seu jeito “dis- vida e na literatura, foi codificada e incorporada à dinâtanciado”, o mesmo do palco. Eu costumava fazer para- mica do consumo? Acho que nessa pergunta já pulsa a resposta. Sim, a lelos entre sua arte e o distanciamento crítico de Brecht, pode? A desdramatização possível de uma diva tropical. situação mudou. De onde vem então a justificativa para Vi nove vezes o show Vapor Barato, um espetáculo justa- o “sim”, pelo menos para alguns teimosos da minha gemente dessa baiana, com direção de Wally Salomão. Vi ração? De um certo pendor para a experimentação, tanto nove vezes porque eu entrava no teatro com a minha na literatura como nos amores e convívios. É acreditar na permanente, pois era jornalista do caderno de espetáculos força dos mistérios, e ainda suando frio, feito um colegial. e cultura e tinha feito várias matérias sobre o evento. Es- É o espanto genuíno, enfim. É fazer jus à árdua diligênplêndido! Para mim, o melhor show dos que eu já vi aqui cia das válvulas cardíacas, e mandar ver, não é? ou lá fora. Sensualíssimo! Foi um estupendo contraponto Nesse sentido, seus livros, que falam de pessoas auà estética de Bethânia, que na altura brilhava em outro tenticamente “desadequadas”, espetáculo. Bethânia, puro Gal Costa, para outsiders, pessoas à margem drama, totalmente teatral. E Noll, a mais linda dos padrões, sofrem a conGal ali, misto de um improdas brasileiras corrência de uma literatura vável casamento entre João falsamente outsider, que glaGilberto e Janis Joplin: Jomoriza o anti-hherói, mas no ão, todos sabemos dele; fundo reforça os valores viJanis, uma cantante expresgentes? Ser outsider ficou mais sionista, com mais esgar difícil? canoro do que melodrama. Essa era a Gal, trabalhada Eu nem sei muito bem o pela morbeza de Wally. que seja ser outsider. ParodianMorbeza, uma palavra que do um pouco Vinícius, aquele Wally adorava usar, mesmo que diz sou não é. E a força que sob o sol de Ipanema. do abandono não tem nome. O mórbido, então, eu diria, Qual é o grande tema dos era o tempero da luz No contos reunidos em A Mámeio disso eu lia muito quina de Ser? O que eles têm Marcuse, sim. E o que me em comum? ficou dele é a visão de que a arte de um modo geral é Eles falam de um ser que negação ao que é, ou seja, ao mira o horizonte, rufla as asas, estado das coisas. Aliás, naantes do último vôo que lhe quele tempo nem precisávapoderá representar o fim ou mos falar em negação na um novo ciclo. E, de fato, enAgência Tyba
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CONVERSA
Reprodução
“O que me ficou de Marcuse é a visão de que a arte de um modo geral é negação ao que é, ou seja, ao estado das coisas”
Marcuse (de cabelos brancos), guru da contracultura dos anos 60
tre os contos existem mil variações sobre esse tema: alguém vivendo um instantâneo tardio e ao mesmo tempo inaugural, mesmo sabendo que não disporá mais de tempo para desfrutar dessa epifania já sustentada por varizes. O incesto está presente em alguns contos. Explique sua atração por esse tema. É a primeira vez que alguém me diz que tenho uma atração pelo tema do incesto. E, de fato, só em A Máquina de Ser lembro agora ter pelo menos dois contos com esse tema.O que que eu acho? Não sei. Sei que me sinto atraído de um modo geral por relações obscuras, completamente à parte do olhar de terceiros. Relações fora das matrizes familiares, domésticas, senhoris. Olha eu aí seguindo ainda o encanto das morbezas, viu? Ainda bem que me flagrei. E, claro, me espantei! Por exemplo, num dos contos de A Máquina, irrompe um amor sensual numa irmandade religiosa primal. Os dois formam o casal que foge da ceia e se enfurna pelo Jardim das Oliveiras. Sim, tem o pai, em outro conto, que transa no escuro com alguém que mais tarde se revelará sendo a própria filha. Acho esses momentos, atávicos, belos, talvez pelo sentido transgressivo, certo? Agora, responder o que revelo de minha própria vida ao escolher cenas assim, confesso que não sei. Na minha literatura, meio sem querer, costumo acessar insólitas figurações carnais. Talvez esteja aí um dos meus últimos pendores para a juventude. Ou um dos primeiros pendores da velhice?
Você acredita em psicanálise? Já fez? O inconsciente da literatura é o mesmo inconsciente da psicanálise? Ou a análise pode prejudicar a atividade criativa, na medida que “resolve” conflitos que eram canalizados para a escrita? Já fiz tratamento psicanalítico, sim, nos meus tempos de Rio, para talvez dar adeus à minha vivência de contracultura sem levar muitas seqüelas. Quero dizer, para eu enfim colocar um pouco mais de realidade na juvenil cota de prazer. Esse tratamento foi um dos grandes responsáveis pela minha imersão na literatura. Me tirou das formulações abstratas relativas à escrita, me fazendo sentar diante da máquina de escrever. Em poucos meses escrevi O Cego e a Dançarina. Levei o livro ao psicanalista e não voltei mais. Não sei te responder sobre se o inconsciente psicanalítico e o artístico são os mesmos. Em princípio acho que sim. Nesse sentido, não é coincidência que Freud tenha lido por exemplo as sinais de Leonardo. Agora, o emprego que a psicanálise e a arte fazem do inconsciente são de fato diferentes. O pensamento científico quer dizer alguma coisa com seu deciframento do poder vulcânico ou raquítico da mente. Já o poeta, segundo Octavio Paz, não quer dizer nada, ele simplesmente diz. Eu falava que a psicanálise foi importante para eu aderir de corpo e alma à literatura, porque eu sempre tive dificuldades de encarar o mundo real, palpável. Através do tratamento fui me encaminhando para me administrar com pelo menos um terceiro olho pragmático. Só assim pode-se drenar um tanto do dia para a escrita. Muitos personagens do livro são esmagados pela realidade, pelo cotidiano. É esta a condição humana hoje? Onde estaria a felicidade? Os meus personagens exibem um traço esquizóide. Há sempre um descompasso entre o seu mundo de dentro e o de fora.Muito comumente a atmosfera interna sufoca seu quinhão social. Evidente que aqui eu não estou querendo compor um quadro clínico. Sim, não estou querendo desenhar um horizonte canônico para funcionar como alternativa ao meu protagonista. Não tenho interesse maior por psiquiatria. Não sou cronista da loucura de ninguém nem de uma geração. Vejo nessa minha gente algumas metonímias, quase situações insulares ilustrativas do abandono urbano. • Continente novembro 2006
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente
Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Jaíne Cintra e Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Paulo de Tarcio Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
Novembro | 2006 Ano 06 Capa: foto de Hans Manteuffel
Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUERÔA é jornalista. ANDRÉ
DE
SENA é doutorando em Literatura pela UFPE, onde desenvolve uma
tese intitulada "Visões do Ultra-romantismo". ARNOLDO GUIMARÃES
DE
ALMEIDA NETO é músico e mestrando em Teoria da
Literatura pela UFPE. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS HAAG é jornalista. DANIEL PIZA é jornalista. DARIO SOTELO é diretor artístico e regente da Orquestra de Sopros Brasileira e professor de Regência Instrumental do Conservatório de Tatuí. DIEGO RAPHAEL D'AZEVEDO CARREIRO
é doutor em Teoria da Literatura pela
Universidade Federal de Pernambuco. FERNANDO GUERRA é arquiteto, membro do IAHGP e professor da UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros, e cineasta. LUCIANO TRIGO é jornalista. LUÍS AUGUSTO REIS é doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. MARIANA CAMAROTTI é jornalista. MÔNICA VASCONCELOS é arquiteta. Há cinco anos realiza pesquisa nos cemitérios brasileiros do século 19 e início do século 20, juntamente com o prof. Antonio Motta, da UFPE. RODRIGO PETRONIO é escritor e autor de Transversal do Tempo (ensaios), História Natural , Assinatura do Sol e Pedra de Luz (poemas).
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente novembro 2006
CARTAS Pós-mangue Gostei de ver o especial sobre a cena pernambucana na revista nº 70. Os repórteres deram uma visão muito jóia do que está acontecendo na cidade em termos de música. Vocês estão de parabéns ao contemplar novos públicos. Continuem assim. Luciano Carvalho, Recife – PE Pós-mangue II Faz tempo que esperava uma matéria como essa. Adoro a Revista, mas, muitas vezes, acho que vocês se centram em músicos, artistas, escritores mais conservadores. A música produzida pelos jovens pernambucanos merece todo o destaque. Vamos dar espaço aos novos talentos. Margarida Ribeiro, Recife – PE Helena Quero parabenizar a edição de imagens e a diagramação da matéria sobre Helena. O texto bem pessoal do Paulo Henrique Amorim trouxe o leitor para próximo daquela que é possivelmente a grande musa da História. A Helena que abre a matéria é maravilhosa, como tudo que Canova faz. Muito bom gosto. Marcos Rocha, Brasília – DF 11 de setembro Gostei das matérias que vocês publicaram sobre os ataques terroristas nos EUA. Como sou louca por cinema, senti falta de comentários a respeito de outro filme que aborda a mesma temática. Vôo United 93 conta a história do avião seqüestrado pelos terroristas que não conseguiram atingir o alvo. A abordagem é completamente diferente e menos patriótica que As Torres Gêmeas de Oliver Stone. Carla Silvino, Fortaleza – CE
Arquitetura
11 de setembro II A Revista de setembro trouxe um tema que inevitavelmente estava em alta, naquele mês: os atentados terroristas contra as torres gêmeas, em Nova York. Ao ver a capa, imaginei que vocês trariam matérias diferentes e mais profundas que aquelas que vi nos jornais diários e revistas semanais. Não que o material esteja ruim, mas creio que desta vez vocês não conseguiram se diferenciar, como usualmente fazem. Falaram do péssimo filme de Oliver Stone, de um livro comentado por todos, com uma análise boa, mas que não merece a usual festa que faço quando recebo meu exemplar. Francisco Torres, São Paulo – SP Boulanger A Continente sempre me surpreende. Confesso que nunca havia ouvido falar da mestra Nadia Boulanger. Nunca pensei que nomes tão relevantes da música como Philip Glass, Almeida Prado, Astor Piazzolla pudessem ter passado pelas mãos de uma mesma professora. Obrigado por proporcionar-me informações desse nível. Armando Barreto, Salvador – BA Gay Talese Mais uma vez tenho que tirar o chapéu para elogiar a Continente Multicultural. Como estudante de jornalismo, encantou-me o pefil de Gay Talese, publicado na última edição. Hoje, sobrecarregada de trabalho, nossa classe não tem como trabalhar o texto com apuro. Uma pena. Mas há esperança! Rodrigo Furtado, Natal – RN
Moda Como aluna do curso de moda não me contive em escrever a vocês para elogiar o belo trabalho realizado na edição de setembro, da Revista Continente Documento. Nós que fazemos parte do meio sentimos sempre um grande preconceito. Moda e futilidade caminham juntas na cabeça de muita gente. A Continente conseguiu mostrar que a moda é muito mais que a roupa que você usa. É um fenômeno do mundo em que vivemos hoje e merece ser estudada da mesma maneira que muitas outras áreas do campo das ciências humanas. Parabéns! Anita Vasconcelos, São Paulo – SP Paixão Li a última edição que um amigo me trouxe de Pernambuco e me apaixonei. Luciano Viana, São Paulo – SP Votos Muito obrigado por enviar-me a Revista Continente Multicultural. Um verdadeiro regalo. Parabéns aos editores e colaboradores desta Revista cheia de vida e inteligência. Desejo a todos os melhores votos de sucesso contínuo em seu excelente trabalho. Nelson Pereira dos Santos, Rio de Janeiro – RJ Errata A peça As Criadas, resultado do Concurso de Montagem Teatral Jean Genet, está em cartaz até o dia 12 de novembro no Teatro Arraial (Rua da Aurora, 457, Fone: 3134. 3012), e não no Teatro Ribalta, como foi publicado na agenda cênicas, da edição 70, outubro/2006.
“
Gostaria de elogiar a matéria "A Arquitetura e a Cidade", da edição de setembro desta revista. São raras as vezes em que uma matéria sobre arquitetura é feita com seriedade em revistas de cultura, ainda mais quando não se trata da badalada arquitetura contemporânea. A arquitetura é uma expressão cultural/artística das mais nobres, e possui uma carga de significados singular, portanto, faz por merecer o espaço normalmente destinado por Continente a ela. Surpreende-me, nessa matéria, o raro domínio do autor sobre o tema, e sua iniciativa de propor o modelo renascentista como inspiração para o renascimento da cidade contemporânea, tão esgotada estética e socialmente pelo movimento moderno. Parabéns à Revista! Diogo Barretto, Recife – PE
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Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes
Mama África Educação é importante, mas a cultura é o que realmente importa
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odos falam da riqueza da nossa diversidade cultural e das potencialidades econômicas dos nossos traços culturais, mas o que a realidade mostra é que ainda não tiramos partido de nossa multiculturalidade. Não conseguimos transformar esse patrimônio cultural em progresso e bem-estar principalmente para a maioria. Dizer-se misturado puro com todos os predicados exaltados por Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre, como resultado da nossa miscigenação, faz-nos um povo alegre e de extrema cordialidade. Essa sociabilidade excessiva deixa patente a influência das origens multirraciais que permitiu a Sérgio Buarque de Hollanda atribuir ao brasileiro a característica de homem cordial. Atualmente, esses traços chocam-se naturalmente com o pragmatismo dos valores da dinâmica dos novos modelos globalizados do desenvolvimento econômico. A experiência brasileira demonstra que todas as iniciativas de estabilidade econômica e de combate a pobreza, inclusive a ênfase neoliberal na economia de mercado e no pluralismo político, têm sido úteis em graus variados, mas não produziram os níveis de crescimento esperados, nem tampouco a justiça social. Além da ineficiência das ações dos governos e da essencialidade da educação, um dos aspectos a serem colocados em discussão é a peculiaridade dos traços culturais que não agregam valores comerciais às nossas riquezas multiculturais e ao nosso patrimônio imaterial. Para o brasileiro, a amizade está acima dos negócios e considera-se descortês, em uma discussão de negócios, ir direto ao assunto. O brasileiro tem uma necessidade insaciável de comunicação e prefere a cordialidade interpessoal ao conteúdo. Esta, uma das principais razões da ineficiência das burocracias, na medida em que as pessoas preferem o contato pessoal com os chefes, acreditando eliminar a frieza da comunicação burocrática. Em função da natureza da harmonia que o brasileiro mantém com o tempo, poupar para o futuro é menos prio-
ritário do que o consumo imediato. "Deus é brasileiro". O carnaval é o maior evento da terra. O futebol é paixão nacional. Por todas essas características, pode-se dizer, a despeito das dificuldades econômicas e sociais, que, tal como a africana, a cultura brasileira é uma das culturas mais humanitárias do planeta, no significado emocional e sentimental do termo Num país multicultural como o Brasil, que agrega grupos étnicos – a exemplo das colônias japonesa e alemã – que têm um melhor desempenho do que outros, apesar de operarem no mesmo ambiente econômico, pode-se observar como a cultura que incorpora hábitos, atitudes, costumes e valores sociais de origem condiciona o comportamento desses grupos. Sob esses aspectos, fica claro que valores culturais tradicionais explicam certos níveis de pobreza, de autoritarismo e de injustiça social que ainda predominam em grandes segmentos da nossa sociedade. A exploração do nosso patrimônio imaterial tem sido inepta pela leniência de atitudes e pela não-agregação de valor aos nossos produtos sociais. O desafio desse Brasil multirracial é conseguir preservar os nossos valores culturais e desenvolver uma educação que consiga transformar nossa rica diversidade e nosso patrimônio cultural em produto capaz de gerar riqueza e progresso econômico. Explorar nossa diversidade cultural não é necessidade, é requisito, é demanda. Na nova sociedade do conhecimento, os principais motores do desenvolvimento são o trabalho e a criatividade dos indivíduos. Nesse sentido, para sobreviver e crescer nesse ambiente, é preciso que se promova uma educação sustentada numa base cultural que provoque uma nova atitude em relação à vida. Uma nova postura diante dos desafios da realidade global será decisiva para o crescimento pessoal, ou a derrocada coletiva. O caráter cordial e solidário do povo brasileiro é importante. A educação é fundamental, mas, com certeza, a cultura é o que importa. Sendo assim, pela riqueza da nossa diversidade cultural, salve Mama África. • Continente novembro 2006
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Montagem sobre foto de Hans Manteuffel
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Um violoncelista no topo do mundo Renovação de repertório e maturidade de execução são a chave do sucesso de Antonio Meneses mundo afora. Ele garante que um dia voltará a Pernambuco Carlos Eduardo Amaral
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ntonio Meneses sempre está de passagem – esteve em Olinda em setembro, quando tocou na Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo); estará no Recife em dezembro, na nona edição do Virtuosi. Se olharmos sua biografia, chegaremos à conclusão de que estar de passagem é sua rotina e que ele só não é um andarilho autêntico porque não vaga ao acaso: vai ao encontro de todos os que querem ouvi-lo tocar. É mais fácil, então, pensar que ele é um trovador que não canta com palavras, mas com a alma, a alma do seu violoncelo. O filho do trompista Flávio Meneses nasceu no Recife, mas com um ano de idade se mudou para o Rio de Janeiro. Seu pai foi chamado pela Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal. Viajou antes, sozinho, para os acertos do novo emprego e da nova residência, mandou buscar a família e foi botando os filhos para estudar instrumentos de cordas à medida que foram crescendo, pois achava que havia pianistas e músicos de sopro em excesso no Brasil. Arbitrariamente escolheu o cello para Antonio, quando este completou 10 anos. Quatro irmãos de Antonio tocam na Orquestra Petrobrás Sinfônica; só o cellista seguiu carreira solo. Nunca chegaram a formar um grupo profissional, mas na juventude brincavam em casa de “grupo de câmara”. A brincadeira era reflexo de uma dedicação que perdura até hoje, dentro de uma rotina de estudos que tenta manter. Mesmo com a vida intensa, previsível para um profissional de seu quilate, desenvolve idéias novas e se mobiliza para compensar uma carência notada por ele, a do repertório violoncelístico nacional. Esse é seu projeto mais importante na atualidade. A primeira das encomendas a compositores brasileiros estreou em 2004, no 7º Virtuosi: o Concertino em sol maior para violoncelo e cordas, do caruaruense Clóvis Pereira, que foi ouvida novamente na última Mimo. No final do primeiro semestre promoveu a primeira audição mundial dos Comentários musicais para as Suítes de Bach. E estão a caminho obras de Marco Padilha, Edino Krieger e Marlos Nobre, além de outra de Clóvis Pereira, sobre temas de Luiz Gonzaga. O compositor carioca Guilherme Bauer aponta uma omissão de outros músicos egressos do Brasil e que Meneses tem compensado com sua iniciativa: “Os nossos grandes intérpretes, residentes no exterior, não ocupam um espaço significativo na divulgação do nosso repertório. Ele vem se destacando ultimamente como uma exceção”. Em 2004, Meneses decidiu gravar novamente as seis Suítes para violoncelo de Bach, depois de 10 anos. A primeira gravação ficou restrita ao mercado japonês e nunca foi relançada – virou relíquia. Para concretizar esses dois últimos planos, a retomada das Suítes e os respectivos Comentários, simplesmente usou o telefone: “Entrei em contato com eles e perguntei: ‘Querem’? Não lembro qual foi a primeira obra encomendada, mas eu sabia que ia tocar as Suítes de Bach no Rio e em São Paulo e tive um estalo, então pedi a seis compositores que cada um escrevesse um pequeno comentário sobre o que era a obra de Bach e o que é a música brasileira”.
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CAPA Meneses assinou embaixo do resultado: “Foi interessante porque a maior parte deles escolheu se utilizar e me lembrar das minhas raízes pernambucanas, com uma pequena idéia ou um pequeno tema. Marlos Nobre fez uma obra que é bastante nordestina, o Almeida Prado se utilizou só de uma idéia. Foi uma experiência da qual o público gostou muito. Essas obras quebram um pouco a monotonia de só música barroca. E um dos (outros) projetos que eu tenho é de gravar essas músicas”. Se forem liberados incentivos financeiros, é mais outra realização de Meneses em 2007, na qual embarcará junto seu Alessandro Gagliano de 1730. A parceria com Marlos Nobre é antiga, diz o próprio acadêmico: “O Antonio Meneses é algo extraordinário no panorama musical do Brasil. Desde pequeno, ao vencer o Concurso de Jovens talentos da Rede Globo, organizado por mim em 1974, no Rio, ele era mais que uma promessa. Partiu logo para o exterior, ciente de que no Brasil não havia professores para ele”. Certo é que até grandes mestres o procuram. Por intermédio de um amigo violinista, Menahem Pressler, pianista e fundador de um dos trios mais tradicionais da Europa, o Beaux Arts, chamou Meneses em 1999 para integrar o conjunto. Mesmo com muita reserva, por conta dos concertos e outros compromissos de que teria de abrir mão, aceitou o convite. Todo ano são 15 concertos, que incluem há algum tempo peças feitas especialmente para a tríade formação, bem como o hall tradicional de peças românticas. É preciso a cada ano um reencontro e uma retomada dos ensaios – o novo violinista do grupo é britânico; Menahem, americano; e Meneses mora na Basiléia, Suíça. Aliás, para ser coerente, já não mora, passa por lá.
Ouça e curta Algumas gravações antológicas de Antonio Meneses: Johannes Brahms: Concerto para violino e Concerto duplo – Deutsche Grammophon, 1993 Antonio Meneses até hoje é lembrado por ter feito essa gravação do Concerto duplo para violino e violoncelo com Anne-Sophie Mutter sob a égide de Herbert von Karajan. Ele revelou certa vez que o regente alemão o escolheu para gravar essa obra e o Dom Quixote de Richard Strauss – que está disponível em outro CD – porque estava em início de carreira discográfica. Os demais violoncelistas que Karajan procurou tinham uma interpretação pessoal demais para seu gosto, levando-o a imprimir seu padrão de execução num intérprete mais novo. De fato, para quem é fã de Brahms, por ser um compositor preciso e de passionalidade contida, a presente gravação é ideal (concepção que Meneses frisa em refutar). Ambos os discos fazem parte da série Karajan Gold, da gravadora germânica. Cellissimo – Pan Classics, 2002 O disco traz um dos melhores repertórios de Meneses, eclético e bem escolhido. Destaque para compositores ibero-
americanos: o espanhol Manuel de Falla, o argentino Alberto Ginastera, o português radicado no Brasil José Guerra Vicente, o catalão Gaspar Cassadó e os paulistas Francisco Mignone e Camargo Guarnieri. A mesma expressividade dedicada àqueles é encontrada nas peças russas; escute-se a conhecida Canção hindu, de RimskyKorsakov, Orientale, de César Cui, e Valsa sentimental de Tchaikovsky. O CD é uma pequena viagem de volta ao mundo, onde predominam peças emotivas ou cantabili, a exemplo de uma canção judaica de Ernest Bloch ou de uma habanera de basco-francês Ravel. Sempre ao piano, o suíço Gérard Wyss. Villa-Lobos: Obras para violoncelo e piano – Solaris, 2002 Um dos pontos altos de Antonio Meneses nos últimos anos. Com o acompanhamento preciso de Cristina Ortiz, ele dá a devida atenção à Pequena suíte, em seis movimentos, à Sonata nº 2, e a cinco peças isoladas: Sonhar, Prelúdio nº 2, Capricho, Elegia e Berceuse. Mas o ponto alto são mesmo as últimas faixas do CD. O lirismo do Canto do cisne negro justifica porque a obra é uma versão brasileira do Cisne de Saint-Saëns, no Carnaval dos Animais. E nos três movimentos das Bachianas Brasileiras nº 2, nada da gama
de cores da versão orquestral se perde, seja no indolente e sensual Canto do Capadócio, seja no ponteado Canto da nossa terra, seja no sempre empolgante Trenzinho do Caipira. Outras recomendações As Seis suítes para violoncelo de J. S. Bach – Avie Records, 2004 Desde que Pablo Casals descobriu as partituras das suítes, todo violoncelista se impõe o desafio de tocá-las. É uma meta de autotranscendência interpretativa que Meneses já encarou duas vezes. Esta é a segunda gravação. Villa-Lobos: Concertos nº 1 e 2 para violoncelo e orquestra e Fantasia para Violoncelo e Orquestra – Auvidis Valois Com a Sinfônica da Galícia e o maestro Victor Pablo Perez, Meneses registra a famosa Fantasia de Villa-Lobos, mestre em peças de estrutura livre para cello. Os concertos não soam magistrais, mas poucos foram os solistas que lhes deram atenção, ao ponto de gravá-los em CD.
Divulgação
Herbert Von Karajan regeu Meneses tocando Brahms
Hans Manteuffel
Marlos Nobre: um toque nordestino em Bach para
Essa imagem de benquisto, sobretudo por seu trabalho, é atestada por instrumentistas, maestros e compositores de sua terra. A pianista Elyanna Caldas resume: “Não o conheço pessoalmente, conheci o seu pai, mas o considero um dos maiores violoncelistas da atualidade e um orgulho para Pernambuco”. Marlos Nobre reforça: “É hoje um exemplo para todos os músicos e instrumentistas jovens brasileiros, uma prova de que talento só é bom, mas insuficiente: ele tem de se aliar ao esforço para a aquisição de uma técnica em nível mundial. Meneses é o nosso maior instrumentista ao lado do Nelson Freire, em nível internacional”. Antonio Meneses chegou ao Beaux Arts Trio por uma recomendação: “Na época, eu estava muito ocupado com minha carreira, tinha acabado de ganhar uma posição como professor na Universidade Superior de Frankfurt e o convite aconteceu por acaso. Havia dois músicos jovens do trio que estavam saindo, que não queriam mais. Os empresários do trio contataram um violinista que podia querer e o Menahem Pressler disse: 'Se for essa pessoa, ele pode escolher qualquer violoncelista, que ele é um grande músico e uma pessoa em que eu confio plenamente'. Na época, eu era muito amigo desse violinista e ele me telefonou um dia dizendo que tinha recebido o convite e o estendeu a mim”. O que falta mais a Meneses? “A Ordem do Mérito Cultural lhe cai bem”, responde com ânimo o maestro paulista Coelho de Moraes. “Representativo no violoncelo e na música, remete ao mundo uma imagem de talento e competência brasileiros, sem par. O desenvolvimento da cultura brasileira nunca precisou tanto de expoentes como Meneses. Pena que a mídia maior não preste atenção nessas glórias. Pernambucano, o que já demonstra ser um forte de nascença, Antonio Meneses é um dos grandes nomes na atualidade musical do planeta. É um dos grandes do Brasil.” •
Hans Manteuffel
Meneses e o maestro Rafael García, no Virtuosi
“As dificuldades não são importantes” Com obstinação e simplicidade, Antonio Meneses vai chegando aos 50 anos com uma única preocupação: estudar ainda mais o violoncelo Carlos Eduardo Amaral
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r morar no Alemanha aos 16 anos, submetendo-se a uma rotina pesada de estudos que lhe valeu posteriormente os primeiros lugares mais importantes que conseguiu (o do Concurso Internacional de Munique de 1977 e o Tchaikovsky de 1982) e tentando dominar uma língua difícil, não foi nenhum problema nas próprias palavras do violoncelista pernambucano Antonio Meneses, que visualizou seu futuro como solista e hoje dedica sua vida mais do que nunca a esse propósito. Ao ser perguntado sobre quantas horas “ensaia” por dia, ele corrige de imediato: “Você quer dizer quantas horas eu estudo”. E entre os mais diversos convites para atuar com orquestras por todo o globo, há tempo para atuar em concertos solo, dar aulas particulares, integrar bancas de concursos e festivais, cumprir uma série de concertos com o Beaux Arts Trio e programar os eventos dos seus 50 anos de idade, em 2007.
CAPA Meneses tem uma fé clara no seu didatismo. Não se furta às responsabilidades e dificuldades que lhe aparecem numa partitura ao mesmo tempo em que professa um eterno entusiasmo. Rejeita rituais de entrada no palco e não tem predileção por nenhuma obra em especial, dedicando-se à que está executando no momento. Também não valoriza a divinização dos “registros definitivos” de peças e explica que o instrumentista idealmente tem de fazer o público achar a genialidade daquilo que ouve. Segundo ele, não existiria então “A interpretação do Meneses”, porque as próprias releituras podem transcender as interpretações passadas. Sendo assim, é natural que ele diga que as obras universais ganham esse status não somente pela sua qualidade, mas quando diversos instrumentistas a adotam e exploram novas peculiaridades que estão contidas nelas. Como foi essa sua mudança para o exterior aos 16 anos? Meu professor (Antonio Janigro) era italiano, morou anos em Zagreb (capital da Croácia), mas, quando fui conhecê-lo, já não estava em Zagreb já fazia muito tempo. Estava dando aulas na Alemanha. Ele morava em Milão na época, mas dava aulas em Stuttgart e fui estudar com ele lá. Você teve alguma dificuldade para se adaptar por lá? Olha, dificuldade sempre existe. Mas você quando é jovem, tem uma maneira diferente de ver as dificuldades. Para passar por isso você tem que ter uma meta muito certa na sua vida, e a minha meta era tocar bem o violoncelo. Então as dificuldades não eram importantes, elas não eram relevantes. O que era relevante para mim eram os meus estudos, todo o resto resolvia-se de alguma maneira. Eu tinha pouco dinheiro, eu morava em lugares feios, não tinha apoio dos familiares de perto, estavam todos muito longe. Tudo isso era parte da minha vida com 16 anos. Era parte da minha vida um pouco a solidão também, mas não eram coisas importantes. Passando de sua juventude para 2007. Como está a sua agenda? Bastante cheia. Eu vou andar, como sempre, pelo Brasil. Já estou programando algumas apresentações interessantes, mas para mim o fato mais marcante que vai acontecer ano que vem é que eu completo 50 anos. Estou organizando já alguns eventos aqui no Brasil para comemorar essa data e quero organizar alguns concertos no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte, lugares que têm sido muito importantes para mim nos últimos anos, tocando com músicos que têm sido importantes para mim também. Fora isso, tem turnês pelo mundo inteiro. Vou tocar nos Estados Unidos, na Europa, recebi um convite do maestro (Isaac) Karabitchevsky para tocar com a orquestra dele lá na França (Orquestra Nacional do Vale do Loire)... E gravações? Tenho feito gravações e estou planejando algumas novas. Não gosto muito de falar em gravações porque são coisas que a gente planeja e algumas vezes não dá certo, por diversas razões. A última que fiz foi agora, há alguns meses – gravei obras para violoncelo e piano de Robert Schumann e Franz Schubert – e o CD deve ser lançado até o fim do ano. Existe alguma peça ou músico com que(m) você gostaria de trabalhar junto? Eu não penso nesses termos. Procuro ter uma visão panorâmica da música. Vejo o que é necessário, vejo as pessoas que me procuram e as oportunidades que aparecem. E dessa maneira vejo o que vou preparar para fazer nos próximos anos. Uma coisa que quero fazer mais é apresentar obras de compositores brasileiros vivos. Eu tenho feito melhor ainda, contatando esses compositores e pedindo para que escrevam novas obras. Tem essa do Clóvis Pereira (o Concertino em Sol Maior), que tenho tocado freqüentemente. Uma outra obra pronta é do Edino Krieger
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CAPA que já está escrita e vai ser estreada ano que vem. Tem outra que está sendo escrita, de um compositor de Campinas chamado Marco Padilha. Então esse é o plano que eu tenho. De estar em contato com os músicos de minha geração. Antes eu estava preocupado demais com o repertório tradicional e não dedicava tanto tempo a esses compositores, não que eu não continue estudando as peças mais tradicionais, mas eu descobri que eu gosto mais de estar em contato com os compositores da minha geração. Nessa sua rotina de viagens, você tem conseguido manter uma rotina de estudos? Sim, eu tento o máximo possível, porque para mim é muito importante. Tem dias em que não se consegue pegar no instrumento. É viagem, atrasos, conexões, entrevistas. Existem dias assim, mas eu tento sempre começar o dia cedo com meus estudos de violoncelo que é uma coisa sagrada. Quais os nomes promissores do violoncelo para o futuro? A técnica do violoncelo evoluiu muito nos últimos 20, 30 anos. Existem muitos talentos bons surgindo em todos os continentes, e talentos que são aproveitados. Agora, quem vai ser isso eu não sei, só o tempo pode dizer. Por mais que você tenha contato com grandes talentos, a história de cada um é diferente. Você pode se deparar com o maior talento, apostar nele e daqui a alguns anos ele se interessar por aviação, uma coisa completamente diferente. Você já foi regido por grandes nomes, inclusive por Mstislav Rostropovitch (consagrado maestro e violoncelista russo que encomendou importantes obras para o instrumento no século 20). Em que ocasião isso ocorreu e com quais obras especificamente? Ele interferiu ou deu conselhos na sua interpretação? Com Rostropovitch eu toquei uma vez. Na verdade foram vários concertos dentro de uma série, em Washington, onde ele tinha na época uma orquestra. Eu toquei com ele as Variações sobre um tema rococó, de Tchaikovsky, que na verdade é o cavalo de batalha dele. E foi muito simpático comigo, porque ele podia simplesmente reger, foi um momento muito importante para mim. Ele fez um ou dois pequenos comentários, mas aceitou totalmente a minha interpretação. Qual obra de compositor brasileiro você acha que está em um nível mais universal, no patamar de um Concerto de Elgar ou Dvorak? Se você me pergunta especificamente para violoncelo, especificamente, até agora, nada. Tem o que é muito amado no repertório de violoncelo que são as Bachianas (Brasileiras) de Villa-Lobos, que são obras muito sinceras e muito brasileiras, mas é até um pouquinho de covardia comparar obras de compositores do século 20 brasileiros com esses compositores do século 19, porque eles têm uma maneira totalmente diferente de se expressar. Mas mesmo em exploração técnica, diálogo com instrumentos etc., você acha que nenhuma obra para violoncelo entraria em um repertório internacional para ser tocada regularmente? Continente novembro 2006
Mstislav Rostropovitch em concerto em Nimes, França
Lefranc David/Corbis Kipa
CAPA Uma coisa que acontece muitas vezes é que uma obra tem que ser tocada bastante, o intérprete tem que entrar na obra de tal maneira que, às vezes, uma vez, duas vezes que ele toque não são suficientes para que ele tire toda a riqueza musical que ela tem. Digamos a “Sonata”, de Almeida Prado, por exemplo, eu acho uma obra fantástica, até agora só eu toquei. Mas outros violoncelistas, se tiverem interesse, podem tirar mais ainda da obra, ou que eu no futuro, tocando mais e mais, quem sabe ela possa se tornar uma obra universal e aí todos se interessam. Mas é necessário um músico como Rostropovitch, que foi capaz disso. As obras foram escritas para ele e ele foi capaz de dar vida a elas. Não é apenas a obra que tem que ser boa, o intérprete tem que mostrar que ela é boa para o público: “Essa obra não é só boa, ela é genial”. Ele tinha a capacidade de fazer isso e eu quero começar a fazer, ser capaz de que uma obra que é inusitada e totalmente nova seja ouvida com aquele ouvido de que “essa aqui é uma grande obra”. Você fez uma segunda gravação das Suítes, de Bach, em 2004 e chegou a dizer que essa nova gravação em comparação aquela que você fez no Japão, é uma síntese do seu trabalho. Por que essa nova gravação seria uma síntese? Porque passaram-se os anos e você continua a trabalhar, a aprender e estudar. Mas não deixa de ser um momento, da mesma maneira que o momento da primeira gravação existiu. Era como eu via a obra, e, se eu gravar daqui a 10 anos, vai ser diferente. Não existe isso de “a interpretação do Meneses”. Você tem algum ritual antes de entrar no palco? Não. Antes de entrar no palco, a única coisa em que eu penso é sobre minha responsabilidade e o nervosismo. Que é uma coisa que se o artista não sente é porque não é um artista. Porque ele vai representar uma obra, não existe um ritual, mas, sim, uma dúvida de se eu estou bem para representar essa obra, se estou fazendo jus a ela. Há alguma peça que você tenha mais prazer em tocar hoje, seu atual cavalo de batalha? A princípio, não. Toda vez que você entra para tocar uma obra, tem que crer que aquela é a melhor obra. Se você não consegue entrar no palco com esse pensamento, não vai tocar com todo o entusiasmo necessário. E você tem que ser a obra, você é a obra. E também não pode pensar que se tornou rotina. Como você vê o distanciamento entre população e música clássica? É importante levar a boa música erudita para todos, eles tem que ter ao menos uma vez na vida o direito de ouvir aquilo e decidir se é aquilo de que ele gosta ou não. Porque se de mil apenas dois, três, 10 gostam, são 10 a mais. E tão importante como levar a música é levar a educação musical para as pessoas. É a mesma coisa com um quadro: se você colocar uma pessoa que não conhece na frente de um Monet ou um Picasso, para ela aquilo não vai passar de uns rabiscos. A educação é fundamental para as pessoas conhecerem a arte e a cultura. •
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Influência sobre as novas gerações Como Meneses tornou-se referência e exerce grande influência junto às novas gerações de violoncelistas brasileiros Dario Sotelo Em 1977, Antônio Meneses, com 20 anos, ganha o Concurso de Munique, cinco anos depois recebe o primeiro prêmio no Concurso Tchaikovsky. Ao chegar ao Brasil, estas notícias causam grande impacto nos meios profissionais musicais. Fora dos grandes centros, poucos eram os músicos que sabiam da brilhante carreira que o então jovem violoncelista desenvolvia na Europa, desde que foi convidado por um dos melhores professores do mundo, Antonio Janigro, para integrar suas classes em Düsseldorf e Stuttgart nos anos 70. Na Europa, estes prêmios levam o jovem brasileiro a realizar importantes gravações com a Filarmônica de Berlim, sob a regência do maestro Karajan. O mundo inteiro quer saber quem é este jovem Meneses e no Brasil as gravações são ouvidas agora não só por profissionais, mas por estudantes de música, e não só de violoncelo, como referência musical e profissional até então não alcançada por outro músico de cordas. Devemos, neste momento, enfatizar que a escola de violoncelo nem sempre foi muito respeitada e teve sua história desenhada por grandes figuras como Iberê Gomes Grosso, no Brasil, Aldo Parisot nos Estados Unidos, além de outros nomes. Ao reconhecer esta influência, principalmente
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National Gallery, Londres/Corbis
nos anos 80 e 90, gostaríamos também de reconhecer a importância de todos os grandes violoncelistas e professores, tanto brasileiros quanto os estrangeiros que se radicaram no Brasil, e tem contribuído para a existência de profissionais de altíssimo nível em muitos lugares do Brasil. Ao tomar contato com estas gravações vindas do exterior, muitos jovens passam a buscar novos caminhos para sua formação como bons instrumentistas e a ter uma perspectiva para aperfeiçoar sua técnica e sua música, direcionando seus esforços para além de se tornarem bons músicos de orquestra, também atuarem como solistas e cameristas. A partir deste momento, Meneses estabelece uma forLa Barre e outros músicos, 1710 te relação com o Brasil, vindo com freqüência como convidado solista das principais orquestras brasileiras, realizando em muitas ocasiões master classes com jovens que buscavam em sua figura de ídolo violoncelista a inspiração e o entusiasmo para o aperfeiçoamento de sua técnica, sempre com base na música, caminho escolhido pelo próprio Meneses. A influência de Meneses também se dá por sua abordagem tanto do repertório tradicional quanto do repertório de compositores brasileiros. Impulsiona outros profissionais a abordagens cada vez mais comprometidas, de concertos solistas a obras de câmara. Estes profissionais passam também a abordar o repertório brasileiro de forma a colocá-lo no mesmo nível de execução técnico-musical do repertório tradicional, documentando estas obras em CDs que passam a ter o reconhecimento internacional, como, por exemplo, as obras de Villa-Lobos para violoncelo e piano e seus concertos com orquestra. A abordagem do repertório se dá também do ponto de vista interpretativo. Todo o movimento de interpretação historicamente informada realiza uma grande revolução na interpretação de obras de compositores, principalmente do período barroco e clássico, permitindo também o reconhecimento e valorização de obras antes desconhecidas. Plenamente integrado e informado deste novo direcionamento interpretativo, Meneses grava tanto as Suítes de Bach quanto concertos do período pré-clássico e clássicos, com sonoridade e fraseado que influenciam o jovem violoncelista para a busca de uma sonoridade e fraseado mais objetivas, propostas musicais sem os vícios musicais vindos dos grandes violoncelistas da primeira metade do século 20. Ainda sobre o repertório, Meneses tem inspirado outros músicos a dedicar seu tempo e esforço musical, tocando no Brasil e exterior, obras de compositores brasileiros. Além de todo o repertório tradicional brasileiro para violoncelo e piano, violoncelo e orquestra e obras para solo, muitos compositores nacionais têm escrito obras dedicadas a ele, estas obras têm recebido execuções em sua atuação nos palcos e festivais do mundo. Ele está agora envolvido no projeto Suítes Brasileiras, que trata de encomendas a compositores do Brasil para obras para violoncelo, que serão devidamente documentadas em CDs em projeto patrocinado por grande instituição nacional. Hoje no Brasil, é tradicional o Festival Internacional de Violoncelos, que acontece no início do mês de agosto, no Rio de Janeiro. Este evento, além de trazer grandes nomes internacionais, faz desfilar em seus palcos de concertos muitos profissionais que, na metade dos anos 80, souberam que um brasileiro era reconhecido mundialmente por sua competência musical, tornando-se hoje uma das maiores referências da arte do violoncelo no mundo. •
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AGENDA/MÚSICA Foto: Divulgação
Choros e Piazzolla em alto estilo Uma das melhores orquestras de câmara do país investiu na faceta mais “clássica” da MPB e no mestre do novo tango, casando na música o que o futebol insiste em rivalizar. A Orquestra de Câmara da Ulbra, regida por Tiago Flores, teve a mesma competência para obedecer às ríspidas e originais marcações rítmicas de “Las Cuatro Estaciones Porteñas” e “Melancólico Buenos Aires” e executar com melódica agilidade conhecidos chorinhos num pout-pourri de “Brasileirinho”, “Tico-tico no fubá” e “Apanhei-te cavaquinho”. Os arranjos ficaram a cargo de Arthur Barbosa – cujo “Frevo” fecha o disco e se junta a peças de Hubertus Hofmann e Sérgio Rojas e a “Lamentos”, de Pixinguinha. Orquestra de Câmara da Ulbra, Antares Música, R$ 25,00. Pedidos: www.antaresmusica.com.br
Versatilidade a três
Método francês para flauta doce Semana de eventos divulga publicação e obras para o instrumento
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om larga experiência de pedagogia instrumental, a professora Laurence Pottier vem ao Recife especialmente para o lançamento da versão brasileira de seu método para flauta doce soprano, que foi traduzido para o português pela professora Daniele Cruz, do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco, e impresso pela Editora Universitária. Ambas tocarão juntas no lançamento do método, dia 18, na Livraria Cultura. Dois dias depois, Pottier fará uma demonstração prática da aplicação do método no Conservatório Pernambucano de Música. Poderão participar não só professores de flauta doce, mas qualquer interessado – a demonstração inclui a realização de um laboratório com crianças a fim de demonstrar os princípios metodológicos. Com a passagem do Dia da Música, 22, a professora realizará um recital comemorativo, acompanhada pelo pianista Fernando Müller. O programa constará de obras barrocas e modernas, incluindo partituras brasileiras. Esse concerto no dia de Santa Cecília é promovido pela Aliança Francesa do Recife em parceria com a UFPE. Depois de 10 anos, será a oportunidade de o público recifense voltar a conferir a performance de Laurence Pottier, que encerra sua estadia com master classes dirigidas a alunos avançados no Departamento de Música da Universidade, de 22 a 24 deste mês. Pottier é professora titular da prefeitura de Paris, ensina no Conservatório Nadia e Lili Boulanger e participa regularmente de festivais na França e no Brasil.
Livraria Cultura, dia 18 de novembro, às 17h. Entrada franca. Informações: 3268.1564/8826.5495. Continente novembro 2006
O que há em comum entre os estilos do americano Stanley Silverman, do gaúcho Daniel Wolff e do argentino Astor Piazzolla? Nada mesmo, a não ser o estudo e a interpretação que os integrantes do Musitrio dirigiram a cada obra do CD. Catarina Domenici no piano, Rodrigo Bustamante no violino e Rodrigo Alquati no violoncelo se adaptam sem hesitações às exigências do sincopado “In Celebration”, de Silverman, do penetrante “Trio” de Wolff e das engenhosas “Quatro Estações Portenhas” de Piazzolla. O trabalho rendeu três indicações Prêmio Açorianos convertidas em dois troféus. Execução segura de três compositores de música arrojada, mas totalmente acessível aos ouvidos. Kinematic – Musitrio, Antares Música, R$ 26,00. Pedidos: www.antaresmusica.com.br
O que é um fagote? Com licença!… pede espaço para apresentar pela primeira vez no Brasil uma seleção única de músicas destinadas ao instrumento que, apesar de ser chamado de “palhaço da orquestra”, é peça fundamental em toda sinfônica: o fagote. A seleção vai do clássico ao jazz, passando por tangos, peças infantis, chorinhos e maxixes. O catarinense Hary Schweizer interpreta obras de Chiquinha Gonzaga, Achim von Lorne, Villa-Lobos, Benedetto Marcello e outros, incluindo a peça-título, de Julio Medaglia, e uma inédita de Tom Jobim escrita especialmente para fagote. Mais valor tem o CD quando se sabe que Schweizer é a única pessoa na América Latina que fabrica os próprios instrumentos – e os utiliza nessa gravação. Hary Schweizer – Com Licença!…, produção independente, R$ 25,00. Pedidos: hschweiz@yahoo.com.br
AGENDA/MÚSICA Encontro dos Mestres do Choro Os floreios da flauta de Altamiro Carrilho, a destreza no cavaquinho de Waldyr Azevedo e o improviso do Zimbo Trio são um recorte da antológica apresentação de 1977, agora em CD. Ouvir Pixinguinha e Ernesto Nazareth deixa de ser trivial, quando as notas saem daqueles três. Da mesma forma é escutar a interpretação dos próprios autores, como Raul de Barros no trombone e Abel Ferreira no sax e na clarineta, ou a erudita Eudóxia de Barros dando seu toque popular no “Brejeiro” de Nazareth ao piano. A apoteose é quando todos (Carlos Poyares no lugar de Eudóxia), se reúnem no “Improviso sobre o choro brasileiro”, passeando por peças como “Brasileirinho”, “Sai da frente” de Abel Ferreira e “Urubu malandro”, de João de Barro e Lourival Carvalho. Encontro dos Mestres do Choro, Biscoito Fino, R$ 22,00. Pedidos: www.biscoitofino.com.br
Sivuca, sempre em forma
Depois de dois Prêmios Tim seguidos (Melhor arranjador em 2005 e Melhor Solista em 2006), Sivuca surpreende de novo ao tocar obras suas e da inseparável companheira Glória Gadelha ao lado de 11 conjuntos instrumentais paraibanos – de quinteto de cordas a big band – em Terra Esperança. Sem prejuízo do virtuosismo inabalável na sanfona, sua faceta de compositor sinfônico e arranjador se evidencia em todas as peças, incluindo a inédita “Doce canção de Nélida”, dedicada à escritora Nélida Piñon. Entre os convidados do CD estão o Quinteto da Paraíba, a Camerata Brasílica, a Metalúrgica Filipéia e o Quinteto Latinoamericano de Sopros. Excelente registro para o grande público, que mostra um Sivuca muitíssimo além de “Feira de Mangaio” e “João e Maria”.
Em busca da identidade
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ram é uma banda paulista que está na estrada desde 2002. Chega às lojas agora o seu segundo álbum, intitulado de Seu Minuto, Meu Segundo. Com influências bastante claras de bandas como Radiohead e Coldplay, esse segundo trabalho é um passo na formação da identidade da banda. A comparação a bandas do porte de Los Hermanos ajudou o grupo, num primeiro momento, mas para seguir na estrada é preciso imprimir a sua marca. Na busca por essa identidade própria, o segundo álbum traz bastantes distinções do primeiro, Gram (2004). Fernando Falvo (bateria), Marcello Pagoto (baixo), Luiz Ribalto e Marcos Loschiavo (guitarras) e Sérgio Filho (vocal e teclados) produzem um som que mistura rock e MPB, em total sintonia com os nomes contemporâneos do rock and roll. Enquanto no primeiro disco as guitarras distorcidas reinavam absolutas, em Seu Minuto, Meu Segundo há um tom mais melancólico, mais suave, priorizando o violão em detrimento da guitarra. Um trabalho mais maduro, introspectivo, em que cada letra e arranjo foram bem idealizados. O álbum, um CD/DVD, na mesma mídia, traz clipes das músicas e imagens do grupo no estúdio, um verdadeiro making of do momento de criação. Além disso, o interessante design gráfico da capa e do encarte (feitos pelo vocalista Sérgio Filho) comprova o cuidado com que todo o disco foi realizado. Impossível classificar as faixas entre MPB e rock, mas possível ouvir com prazer as melodias híbridas do Gram. Seu Minuto, Meu Segundo, Gram, Deckdisc, R$ 40,00.
Mistura
Aquarela do Samba é uma coletânea de sambas, gravada em 2003, e que chega agora ao mercado pela Desk Disc. O CD reúne sete nomes do samba interpretando suas canções: Monarco, Nelson Sargento, Dona Ivone Lara, Xangô da Mangueira, Wilson Moreira, Walter Alfaiate e Luiz Carlos da Vila. Cada autor canta suas canções, sem muitas inovações ou raridades. É a raiz do samba cantando samba de raiz, clássicos como “A.M.O.R. Amor” (Walter Alfaiate), “Quando Eu Vim de Minas” (Xangô da Mangueira), “Quintal do Céu” (Wilson Moreira/Jorge Aragão), “Escravo da Dor” (Dona Ivone Lara) e “O Show Tem Que Continuar” (Luiz Carlos da Vila).
O trabalho de estréia de Marcelo Caldi mostra composições inspiradas que englobam erudito e popular. Caldi é pianista, acordeonista, cantor, compositor e arranjador e lança o CD Nesse Tempo pelo selo Delira Música. Seu currículo conta com trabalhos ao lado de Chico Buarque, Zélia Duncan e Elza Soares. Em seu próprio trabalho, Marcelo assina 13 composições. Marcelo Caldi apresenta seu elegante piano em ritmos brasileiros com forte influência da música argentina. A mistura pode ser sentida claramente desde a primeira faixa, não por acaso batizada como “Fuga de Buenos Aires”. A mistura de culturas também aparece em uma sonata com três peças. O CD ainda traz outras faixas batizadas como “Valsa” e “Xote”, este apresentado com uma sonoridade moderna e surpreendente. O teclado se encontra com o triângulo e a zabumba em uma saudável variação de andamentos. A música “Sua Ceia”, sua tela ganhou letra de Mauro Aguiar e a interpretação de Zélia Duncan.
Aquarela do Samba, Vários, Deckdisc. R$27,00.
Nesse Tempo, Marcelo Caldi, Delira Música. R$ 24,50.
Terra Esperança – Sivuca, Kuarup, R$ 25,00. Pedidos: www.kuarup.com.br.
Voz da Velha Guarda do Samba
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Primavera
O canto da terra Jardim do Palácio de Bussaco, próximo a Coimbra, em Portugal
A Editora Girafa lança no Brasil Ou o Poema Contínuo, obra poética reunida do português Herberto Helder, um dos mais importantes e subversivos autores da língua Rodrigo Petronio
LITERATURA
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iante do paradoxo em que redundou a tradição do novo defendida pela arte desde o começo do século 20, podemos crer que uma das mais legítimas expressões da arte moderna seja a crítica da própria modernidade, entendida em termos iluministas como uma apologia do progresso, como queria Octavio Paz. Desse modo, não é de se estranhar que a melhor arte produzida sob a égide dessas crenças encarnasse uma das mais interessantes experiências de limite de que temos notícia: deslocando o lugar institucional da literatura para zonas cada vez mais excêntricas, tal experiência não deixa, por sua vez, de produzir um saudável sentimento de regresso a nossos instintos mais elementares. Não há propriamente evolução, mas reconquista de zonas de sombra, até então camufladas; não há em nenhum momento progresso, mas linhas de fuga que nos devolvem às camadas mais originais da existência, que tinham sido esquecidas, em suma, àquele sentido da terra de que nos fala Nietzsche. A sensação desconcertante que temos diante da poesia de Herberto Helder não se deve a outro motivo. Ao se desviar conscientemente do cânone e de tudo o que a comodidade do gosto nos oferece em sua inércia, ela nos reintegra à raiz do canto e à sua nascente mais antiga. E sendo uma poesia impura, não deixa de ser uma poesia inaugural. Porque se a civilização transformou as suas questões mais candentes (o sexo, a morte, o sonho, a loucura, o sangue, o sagrado, o incesto) em tabu para poder sobreviver, deslocou o desejo de seu objeto e o traduziu em lei e cultura, valores e instituições, Helder vai em busca da nomenclatura primeira dessas potências e faz delas a matéria-prima de sua alquimia, que devora a essência e cospe quaisquer resquícios civilizados que obstruam a razão selvagem que nos habita. Tudo nela é moderno, porque parte da ingenuidade necessária para que o canto destrua a literatura. Tudo nela é novo, porque regressa ao in illo tempore , no qual o mundo foi criado. Tudo nela abrange as zonas mais perigosas de nossa experiência com a linguagem e de nossa imersão no mundo. A argila, o leite, o pão, o amor, a terra, a água, a fonte, a loucura, o sexo, a estrela, o céu, o trigo, a criança: estamos diante de uma espécie de mistério batismal. A nomeação do mundo emerge com tal transparência que se diria que o poeta, na condição de demiurgo, o cria naquele exato momento. Mas cria com ele também, é importante frisar, um mundo à imagem e semelhança da poesia: a violência com que a alma se traduz em carne, o corpo volitivo e vivo leva o mundo à boca, os bichos se espalham como religião sobre a vida, a antropofagia nos irmana integralmente a todas as coisas, o sangue volta a circular pelas árvores, pedras, rios, vento e barcos. Não há seguimento ou cisão, porque neste tempo não se reflete, não há razão privativa. Há apenas analogias, contigüidade, aderência, imantação. Não temos a consciência apartada do corpo e tampouco vamos ao céu em nossa ascensão, mas, sim à terra, a única que nos santifica e salva. Essa vocação à ancestralidade já vem esboçada desde os títulos de alguns livros do autor. Flagramo-la já em A Colher na Boca e Poemacto, ambos de 1961, em Húmus, de 1967, e em Antropofagias e Vocação Animal, de 1971, no longo poema Cobra, de 1977, e até nos seus trabalhos mais recentes, como Do Mundo, de 1994. Ela está dispersa em quase toda sua obra, e pode ser
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A poesia de Herberto Helder conclama a uma sagração da vida
vista como um dos eixos de sua poética. Tal proposta artística, na verdade, está em consonância com um movimento muito interessante da poesia portuguesa das últimas décadas, que é a causa da maturidade e da altíssima qualidade que esta poesia atingiu, ímpar dentro do cenário mundial. Como bem observou em uma entrevista António Ramos Rosa, outro nome de proa da língua portuguesa, a figura de Fernando Pessoa criou uma situação ambígua. Se por um lado ninguém quer diminuir sua importância, por outro muitos poetas resolveram assumir o caminho oposto ao do autor de Mensagem. Contra a heteronímia e a dispersão do eu em máscaras poéticas, vão partir em busca de uma inaudita integração entre as palavras e as coisas, e propor uma identidade radical entre a sensação e a linguagem, entre o conceito e a experiência, em uma redução fenomenológica poucas vezes vista. Ora, é interessante notar como, além de Helder, essa busca da unidade linguagem-mundo como superação da aporia poema-máscara colocada por Pessoa é percebida na obra de outros autores, por caminhos os mais diversos possíveis. Mais: pode
ser vista até como um fio condutor de boa parte da poesia portuguesa desde a década de 50. Seja na perspectiva mítica de Ruy Belo ou na ontologia poética finíssima do próprio Ramos Rosa, seja na poesia visceral noturna de Luis Miguel Nava e Al Berto ou na poesia solar de Eugenio de Andrade, seja nas finas tessituras de Fiama Hasse Pais Brandão ou na poesia telúrica de Rosa Alice Branco, onde essa opção estética vem expressa desde seu significativo título de estréia, Animais da Terra, de 1988, até a publicação de Da Alma e Dos Espíritos Animais, de 2001. A mesma premissa se descortina: a reconquista da terra e da unidade entre o tato e o sentido. Se cantar é existir (Dasein), como queria Rilke, é também e acima de tudo participar da cosmogonia incessante da terra, compartilhar do canto com todas as demais criaturas que a habitam. Essa é a premissa ética, o devir radical que a regenera e renova, quando nela nos imiscuímos para poder transfigurar a morte em beleza. Não por acaso, em uma abordagem brilhante a partir dos conceitos e imagens da alquimia, a escritora e pesquisadora Maria Lúcia Dal Farra aponta a primavera como um dos leitmotivs determinantes na poesia de Helder, além dos elementos que mencionei acima, entre
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Fotos: Reprodução
outros. Ela simboliza sempre a ressurreição que se dá após o aniquilamento, ocasionado pelo amor. Também não por acaso a primavera se relaciona à morte e à criança (a inocência), e é uma das supremas manifestações da loucura. A despeito da difundida obscuridade das imagens excêntricas da poesia de Helder, nesses elementos sinalizados pela estudiosa temos a sua tradução mais cabal e transparente. Em A Visão Dionisíaca do Mundo, um texto de juventude, Nietzsche nos lembra que a primavera é a estação emblemática de Dioniso. Não só ele, mas também Walter Otto e Carl Kerényi, dentre os maiores estudiosos do mito. Chama sua embriaguez de pulsão da primavera. Sendo ele um arquétipo da vida indestrutível, só o é porque quebra todo principium individuatinois, destrói nossa unidade individual para nos mergulhar no caldo vital mais amplo da vida infinita e indeterminada, a zoe dos gregos, e dele nos resgatar transfigurados. Paradoxalmente, quanto mais próximos da terra e quanto mais distantes da nossa individualidade, mais próximos da redenção. Quanto mais desenraizados da alma, mais eternizados na terra. Quanto mais imersos na matéria que nos modela, mais próximos da graça que nos liberta. Poeta órfico e dionisíaco, que chamou para si a maior de todas as responsabilidades ao inscrever a poesia naquela zona fronteiriça onde ela já passa a ser uma mescla de sacerdócio, demiurgia e maldição, Herberto Helder segue o lema dos antigos: o poeta se destrói cantando. Não é obra utópica, mas atópica, sem lugar, refratária a quaisquer gavetas críticas e mesmo a definições políticas e ideológicas. Por isso, eu poderia encerrar dizendo que ele é um dos maiores poetas vivos em atividade. E basta. Doce ilusão. Alheio também ao cânone, às representações públicas, a prêmios, medalhas e, sobretudo, à estupidez polida dos meios intelectuais, tal reconhecimento seria quase uma ofensa, como o é a tentativa de domesticar um animal selvagem. Para muito além da letra, a poesia de Herberto Helder conclama a uma sagração da vida, mais do que a uma consagração do texto. Ao fazer do corpo o próprio verbo, da pulsão da terra a sua obra e ao unir mapa e mundo em uma só linha contínua, ela engana o leitor que, ao ler o poema, pensa ler poesia, quando, na verdade e em última instância, o que ele lê é a própria vida. •
Poeta busca superar a aporia poema-máscara, de Pessoa
Rosa Alice Branco, cuja poesia telúrica também procura outro rumo
Ou o Poema Contínuo, Obra Poética Reunida 1961–1994, Herberto Helder, Editora Girafa, 536 páginas, R$ 49.90. Continente novembro 2006
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Uma epopéia do século 20 Lançado há 30 anos, o consagrado longo poema de Marcus Accioly é um épico brasileiro Diego Raphael D'Azevedo Carreiro
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m 28 de dezembro de 1975, o Diario de Pernambuco publicava, com nota introdutória do poeta e ensaísta César Leal, a íntegra da então intitulada Poética do Realismo Épico, na qual o poeta pernambucano Marcus Accioly proclamava, ao longo de XXXI Títulos, a morte da lírica e o renascimento de uma “época-épica”, após constatar, em diálogo – via de regra subversivo – com autores tão diversos quanto Yevtushenko, Francis Ponge, Maiakovski, Kafka, Carlos Drummond de Andrade, Marinetti, Tristan Tzara, André Breton, Aníbal Machado, Augusto e Haroldo de Campos, Mário Chamie, entre inúmeros outros, o caráter cada vez menos subjetivo da prática poética moderna. A divulgação da Poética pelo Diario de Pernambuco servia, até certo ponto, a um fim estratégico: justificar a publicação, levada a cabo no ano seguinte, de Sísifo, poema épico em 10 cantos nos quais Accioly punha em revista a tradição épica ocidental, de Homero a Cassiano Ricardo, de Virgílio a Jorge de Lima, lançando mão, além de formas estróficas consagradas, como a oitava rima boccacciana, o soneto, o terceto dantesco e a sextina, de recursos até então inovadores num poema épico, como, por exemplo, o poema concreto, a poesia práxis, o poemaprocesso, o linossigno, entre outros, cujas potencialidades poéticas eram, por sua vez, reavaliadas.
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Talvez, como escreveu Nelly Novaes Coelho, destinado a ser a “verdadeira epopéia do Homem do Século 20”, Sísifo se constitui numa tentativa bemsucedida de metaforizar a condição do homem (= Sísifo) no mundo (= montanha) enquanto artífice do poema (= pedra). Valendo-se de um discurso fragmentário e, por vezes, paródico-intertextual, a metaepopéia de Accioly, de acordo com Anazildo Vasconcelos da Silva, encerrava o ciclo poético moderno e inaugurava a expressão épica pós-moderna, o que se constata a partir da variedade temática e estilística da obra, denunciadora da intenção do autor não apenas em alcançar – ou esgotar – o máximo de suas habilidades poéticas, como também em se apropriar, via lembrança e recordação, do passado próximo e do passado distante, característica marcante da obra de arte pós-modernista. A retomada de estilos os mais diversificados pode ser verificada desde o Canto Primeiro, em cujos poemas iniciais Accioly recorre a estrofes “eruditas” e “populares”, como a oitava rima – utilizada por poetas como Boccaccio, Luigi Pulci, Boiardo, Ariosto, Torquato Tasso, Camões, Santa Rita Durão, Byron etc. –, a terza rima – forma estrófica consagrada por Dante na Divina Comédia, mas não de invenção sua – e a sextilha, a mais utilizada pelos cordelistas.
Foto: AE
Poeta pernambucano Marcus Accioly
Convém assinalar, nesse passo, que muitos poemas gráficos de Sísifo são ora oitava-rimas, ora septilhas – estrofes de sete versos, também muito utilizadas pelos cordelistas –, ora quartetos desmembrados, o que nos permite concluir que nada no épico de Accioly é fortuito. Muito pelo contrário, tudo nele é resultado de um projeto bem delineado e executado: reconquistar o passado no presente, para lançá-lo ao futuro, propósito confirmado pelo próprio autor que, no Título IV, artigo 4º, 3º parágrafo de sua Poética do Realismo Épico, afirma: “Tal concepção (a de que o tempo deve ser tocado por inteiro) dá a idéia de uma pessoa que, caminhando nos anos, vem do passado, com uma máquina fotográfica à mão, tira uma fotografia do presente e segue para a revelação do futuro”. Não se deve estranhar, por essa razão, poemas como os dedicados a James Dean e Walt Disney, situados, respectivamente, no Canto Sétimo e no Canto Oitavo. Se, a princípio, essas personagens parecem pouco poetizáveis – sobretudo num poema de tema tão “clássico” –, logo se percebe a intenção do poeta em inserir certos elementos da cultura de massa com o objetivo de incluir à fruição do poema a maioria do público, inclusive o mais “culto”. Não à toa, vai, num átimo de tempo, de James Dean a James Joyce e deste a Dylan Thomas, ou de Walt Disney a Omar Kháyyán e deste à Bíblia e a Shakespeare.
Sísifo, não resta dúvida, é um poema de vanguarda – Accioly já afirmou, em mais de uma ocasião, que a sua poética oscila sempre entre o erudito e o popular, a tradição e a vanguarda, a loucura e a lucidez –, não, porém, de um vanguardismo estéril, excludente e novidadeiro. Almejando o todo, Sísifo recusa o esteticismo e o formalismo vanguardista do modernismo tardio e adere à mescla de estilos pertencentes a várias épocas e níveis de cultura, o que o faz ter um alcance social mais amplo do que as obras modernistas. Publicado há redondos 30 anos, Sísifo está a merecer uma segunda e mais que justificada edição, seja por sua legítima importância histórica, seja pela inequívoca qualidade literária que o coloca entre os mais belos poemas da literatura brasileira, sobretudo numa data tão especial quanto esta, a qual pode ser explicada pelo próprio Accioly que, nas “Notas para o leitor”, escreve sobre o significado do número 30 em Sísifo: “Há uma correspondência com Nel mezzo del camin di nostra vita que, na Comédia, representa a idade de 35 anos e, em Sísifo, 30. Tal concepção atesta um novo ciclo poético entre a obra que precede (a média idade de 35 anos na Idade Média ou a idade média de 30 anos na modernidade) e a que procede. So here I am, in the middle way, having had twenty years. T. S. Eliot, Four Quartets – East Coker”. • Continente novembro 2006
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AGENDA/LIVROS Alta tensão
Valsa tradicional Romance do gaúcho Charles Kiefer segue compasso bem comportado
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informe publicitário da editora Record refere – sobre o autor de Valsa para Bruno Stein – que “o estilo de Charles Kiefer lhe rendeu comparações com William Faulkner”. Bem, só se foi em outros livros desse gaúcho cuja compassada “valsa”, em nova edição, está mais próxima da música ao longe de Érico Veríssimo do que do grande autor de Luz de Agosto e Palmeiras Selvagens. A luz é muito mais para mortiça neste romance de Kiefer, lançado há 20 anos como narrativa perfeitamente “doméstica”, na tradição riograndense de histórias bem contadas, que fluem fora da "selvageria" dos escritores rebeldes aos cânones da ficção já meio engessada, desde quando Gustave Flaubert pôs o ponto final na história da infeliz Emma Bovary. O tempo passou – e não impunemente para a velha arte que Charles Kiefer professa (neste livro, pelo menos) sem nenhuma desconfiança da “máquina de narrar” em pane há mais de meio século. Ele passa ao largo, neste Valsa, de tudo que já estava muitíssimo fraturado há 20 anos, e segue na tradição gaúcha de “contar”, de fabular para quem queira ouvir música compassada e conhecida, sem sustos. Se o leitor gosta de acompanhar os mínimos gestos, os diálogos rotineiros e os sentimentos e pensamentos "organizados" pelo gasto narrador onisciente, aqui está um romance que se lê com prazer de remanso, de preferência numa rede e com chimarrão esfriando etc. Poderá, então, acompanhar – sem percalços nem surpresas – o final da vida de um velho oleiro descendente de alemães, ao lado da família e dos empregados da sua fábrica artesanal de tijolos, um homem interessado por modelar "estatuetas" de barro e também atraído pela nora madura, Valéria, apaixonada por ele. Se a gente fizer que acredita nisso, o romance funciona. Se não, até a valsa desafina em meio aos semitons de uma narrativa tão eficiente quanto previsível – como no dejá vu da cena em que o sogro surpreende a nora nua, no banheiro, na casa convenientemente esvaziada dos membros da numerosa família Stein. Tão numerosa quanto os que, de faca em punho, seguem cortando fatias do bolo velho do livro de histórias dos homens. (Fernando Monteiro) Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer, Record, 238 páginas, R$ 36,00. Continente novembro 2006
Livro de estréia da italiana Randa Ghazy, Sonhando a Palestina nos introduz no mundo da guerra árabe-israelense. Ao diálogo em alto volume, onde os personagens falam como se estivessem brigando o tempo todo, soma-se a necessidade imperiosa de se defender do inimigo. E ali floresce uma solidariedade tão radical quanto o absurdo da própria guerra. A autora toma o partido dos palestinos. E mostra como é o modo de vida cotidiano num país invadido e vilipendiado, e como o amor e a amizade podem aflorar sem reservas entre as pessoas, mesmo em situações extremadas de perigo, morte e violência. Sonhando a Palestina, Randa Ghazy, Record, 206 páginas, R$ 29,90.
Saldos de 1964 A dispersão e o abandono dos propósitos políticos da esquerda são os assuntos do romance Faz Que Não Vê, de Altamir Tojal. Estes temas têm voltado com bastante freqüência na literatura brasileira. A luta armada nas cidades e áreas rurais deixou ausências inexplicadas e um saldo de mortos, aventura e mistério ainda não devidamente contabilizados. Muitos sobreviventes, na volta do exílio e já bem mais maduros, aderiram ao mundo do trabalho e abraçaram a causa do "ganhar dinheiro". Sem mais pudor de desfrutar das benesses do capital, adaptaram-se perfeitamente aos meandros do neoliberalismo. Faz Que Não Vê, Altamir Tojal, Garamond, 200 páginas, R$ 29,00.
Ainda o Medievo Em A Civilização Feudal, Jérôme Baschet, da Universidade de Chiapas, no México, estende os estudos dessa fase histórica até as terras americanas e destaca a importância do “sistema eclesial” (em contraposição ao foco excessivamente genérico no Cristianismo). Baschet salienta a “dinâmica medieval” para concluir que nas caravelas européias viajavam juntos “uma selvagem intolerância e o amor ao próximo, a esperança da razão e a ameaça da barbárie”. A Civilização Feudal: do Ano Mil à Colonização da América, Jérôme Baschet, Globo Livros, 584 páginas, R$ 59,00.
Encruzilhada do tempo Em seu 11º livro, o premiado escritor baiano Antônio Torres mostra o acerto de contas entre Totonhim e suas memórias da cidade natal, Junco, com o fim da trilogia iniciada há três décadas com Essa Terra – já em 23ª edição – e O Cachorro e o Lobo. Na primeira noite de sua aposentadoria, deprimido, abandonado pela mulher e filhos, está sozinho no mundo e se sente perseguido pelas histórias e amigos. Suporta tudo, menos a falta do que fazer em São Paulo. O romance se passa apenas na cabeça do personagem, que entre sonho e vigília revisita sua vida inteira. (Luiz Arrais) Pelo Fundo da Agulha, Antônio Torres, Record, 224 páginas, R$ 34,90.
AGENDA/LIVROS
Poesia vital A poetisa russa Marina Tsvetáieva tem seus poemas traduzidos e lançados em português
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screvendo na língua nativa, mas também em alemão e francês, a russa Marina Tsvetáieva (1892 – 1941) produziu uma extensa obra – teatro, cartas, memórias, ensaios e poemas –, apesar de uma vida curta e cheia de dificuldades. Órfã de pai e mãe, casou-se antes dos 20 anos, com um oficial do Exército Branco. Teve o marido condenado à pena máxima; uma de suas filhas foi condenada a oito anos de trabalho forçado; a outra morreu de inanição; foi exilada, vivendo em vários países e, no auge da invasão nazista, se suicidou. Agora, sob o título Indícios Flutuantes, com prefácio, seleção e tradução de Aurora Fornoni Bernardini, está sendo lançada em português uma coletânea de seus poemas. Aliás, de seus magníficos poemas. Marina Tsvetáieva tem a capacidade de em poucos versos surpreender e emocionar. Sua linguagem exclui todo e qualquer ornamento desnecessário para se concentrar no miolo do que tem a dizer. E ela tem o que dizer, como nos versos Indícios Flutuantes, “Jovens, árvores, constelações, nuvens, Marina Tsvetáieva, donzelas, – /A Deus no Juízo Supremo Martins Fontes, 148 juntos responderemos, Terra!” Este sentipáginas, R$ 36,50. mento de comunhão com os outros e com as coisas da natureza é reflexo de uma profunda paixão pela vida e pelo mundo: “O que aos outros não é preciso – tragam para mim! / Tudo há de queimar em meu fogo!” Infelizmente, viveu num mundo extremamente conturbado.(MP)
Em busca do quadro perdido Esquecido por quase 200 anos, o pintor italiano Michelangelo Caravaggio foi redescoberto e revalorizado e hoje é visto como um gênio tão importante quanto seu homônimo de sobrenome Buonarotti. Nascido em 1571, foi um mestre do claro-escuro, tendo utilizado pessoas do povo como modelos. Sua vida, curta e atribulada, foi pródiga de brigas, prisões e, até mesmo, de um assassinato. No livro O Quadro Perdido, o jornalista norte-americano Jonathan Harr conta como foi descoberto um quadro de Caravaggio que se julgava perdido. Ele acompanha minuciosamente a trajetória de Sir Denis Mahon, um historiador de arte, inglês, e um dos maiores especialistas no pintor, da pesquisadora italiana Francesca Cappelletti, e do restaurador também italiano Sergio Benedetti, que, cada um por um caminho diferente, ajudaram na descoberta do quadro na sala de jantar de uma residência de jesuítas, em Dublin, Irlanda. A narrativa é fluente e envolve o leitor na curiosidade, paciência e persistência daquelas pessoas apaixonadas pela arte de Caravaggio. (MP) O Quadro Perdido, Johathan Harr, Editora Intrínseca, 292 páginas, R$ 44,00.
Outro mundo O que aconteceria se Hitler tivesse ganho a guerra? Um dos mais talentosos escritores de ficção científica, o norte-americano Philip K. Dick parte desta idéia para construir um grande romance: O Homem do Castelo Alto. Autor de obras altamente imaginativas, algumas das quais foram transportadas para o cinema – Blade Runner e Minority Report, entre outras –, Dick, nesta narrativa, afasta-se dos temas habituais da FC, como naves interplanetárias, alienígenas etc, para centrar-se nas questões humanas. Seus personagens esforçam-se para viver com alguma dignidade num mundo altamente hostil e perigoso. O Homem do Castelo Alto, Philip K. Dick, Editora Aleph, 304 páginas, R$ 44,00.
Arte de andar
O ensaísta e poeta norte-americano H. D. Thoreau é mais conhecido por livros como A Desobediência Civil e Walden, este último, relato de sua experiência morando na floresta, longe dos homens e da sociedade. Neste livro, no entanto, encontramos um belíssimo texto louvando o hábito de caminhar, precedido de uma apresentação também muito interessante, assinada pelo escritor e jornalista Roberto Muggiati, sobre a arte de andar e sobre grandes andarilhos. O livro faz parte da coleção Sabor Literário, que reproduz textos pouco divulgados de escritores famosos, entre eles Virginia Woolf, João do Rio e Nathanael Hawthorne. Caminhando, H. D. Thoreau, José Olympio, 126 páginas, R$ 25,00.
Filosofia do ser O filósofo italiano Nicola Abbagnano aborda, neste livro, publicado originalmente em 1942, a temática do existencialismo, corrente filosófica que teve grande repercussão mundial nos anos 50 e 60, principalmente a partir do francês Jean-Paul Sartre. Abbagnano dá sua contribuição no debate desta filosofia centrada na existência humana, afastada das abstrações para indicar ao homem a responsabilidade de criar seu próprio destino. Dividido em sete partes vê a filosofia como existência e a existência como substância, como problema, como liberdade, como história, e em relação à natureza e à arte. Introdução ao Existencialismo, Nicola Abbagnano, Martins Fontes, 176 páginas, R$ 34,00.
Poesia vária
Na virada do século muitas antologias de poesia foram publicadas no Brasil, todas gerando debates por suas inclusões e exclusões. Esta antologia elaborada pelo crítico Manuel da Costa Pinto não deve escapar a este destino. Porque deixa de incluir bons poetas como Alberto da Cunha Melo. E porque inclui Caetano Veloso, um compositor em cujas letras há belos achados poéticos, mas sem que possam ser chamadas, formalmente, de poemas autônomos. De qualquer jeito, traz um apanhado de boa parte dos poetas “ativos de 2000 para cá”, sem discriminar tendências. Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século 21, Manuel da Costa Pinto, Publifolha, 384 páginas, R$ 39,90. Continente novembro 2006
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CONTO
maya alberto lins caldas
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ebi demais: muito mesmo: é hoje queu apanho: porque bebi: porque não fiquei em casa: porque tou chegando depois da hora: porque tou aqui: na rua: nessa chuva: esperando quem me mostre caminho: só porque bebi: mas tava sozinha: como se não pudesse ta com alguém: depois de tudo: mas tava sozinha: como tem sido minha vida inteira: sozinha: exatamente sozinha: aqui ou em casa: sozinha: somente sozinha: bebi pouco: mas sou fraca com bebida: basta dois: três copos: às vezes copo de qualquer coisa: e lá tou eu bêbada: sozinha e bêbada: ela vai pensar que tava com outra: muitas horas lá em casa ela começou a me ver nos braço de outra: fazendo com outra o que ela não permite queu faça com ela: fica olhando pela janela: como se fosse bicho: fervendo: coisa de raiva: de ódio: queimando por dentro queu sei: imaginando como se tivesse visto: sabe como é queu sei?: porque eu mesma vivo assim: me arrasto pelos dias: mas não fiz por mal não: não saí pra chegar tarde: não saí pra beber: não saí pra me vingar: é ela quem não me dá valor: não sou capaz de fazer isso com ninguém: primeiro com ela: sei que ela só dá valor pra mulher da rua: não sou mulher da rua não: tou aqui nessa hora e bêbada mas não sou: não sou mesmo mulher da rua: tou na rua e bêbada mas não sou nunca fui nunca vou ser mulher da rua não: tou nessa chuva: nessa escuridão: esperando com medo mas não pense que sou mulher da rua não: tou bêbada: mas não sou mulher da rua não: me arrumo inteira: o cabelo bem cortado: e me perfumo: me visto com a roupa mais bonita: pinto as unhas: desenho a boca: o melhor sapato: olho bem pintado: mas ela não me vê: pra ela nunca tou bonita: de verdade mesmo nem existo: mas ela agora mesmo: nesse momento: nesse momento: ta na janela: rosnando: mordendo a madeira: do mesmo jeito queu faço esses anos todos: não sei por que mas mesmo sem me ver ela pensa que é meu dono: que não tenho sentimento: queu não sinto nada: queu não quero nada: queu não desejo nada: queu sou uma coisinha morta: uma coisinha só: uma coisinha qualquer: não sou mulher da rua não: mas sou mulher: tou bêbada: mas sou mulher: não sou da rua não ainda assim mulher: e vou ser sempre mulher: ela nunca diz nada: se tou bonita: se tou atraente: se me deseja: se tou mais mulher: ela me bate como se bate num homem: nunca como se bate em mulher: ela não me vê como mulher: como coisa somente dela: me bate como se bate em homem: nem como mulher eu apanho: tou bêbada: é verdade: mas sou mulher: mas ela Continente novembro 2006
CONTO
é a única que não sabe disso: tamos a vinte anos juntas: vinte anos!: pode?: não é uma hora: um dia: uma semana: um mês: um ano não: não!: são vinte anos!: é tempo demais pra qualquer um: mas pra mim são vinte minutos: pra ela não: são quarenta: oitenta: mil anos: pra ela!: pra mim não!: pra mim são vinte minutos: mas ela não me dá valor: por mais queu faça: ela não me dá valor: já passei fome: frio: humilhação: mas ali: do lado dela: é como se nada tivesse importância: só a vida da gente: que o mundo se foda!: que os olhos dos outros vão pra merda!: vão falar? que a língua deles vá pra puta que o pariu!: preciso da bondade de ninguém não porra!: que a bondade vá pra casa do caralho!: ali do lado dela!: era pra ser maravilhoso: sempre cuidei da minha vida: sempre ajudei: ali do lado: mas ela não me dá valor: não me dá mesmo: não me vê: não vê meus peito: minha pele depois do banho: nem meus sonho: minha boca: nem dos meus carinho ela dá conta: nem minha bunda: nem minhas coxas: ou meus pés ou minhas mãos: nem o meu fogo ela vê: ela me vê como bicho de casa: desses que a gente se acostuma: e depois não vê mais: como se fosse de propósito: de má vontade: de ruindade mesmo!: tem muito tempo queu sei disso: não foi dum tempo pra cá que ela deixou de me ver: não! não!: ela nunca me viu!: é como se eu fosse uma sombra: dela: coisa dela: desse jeito: mas ela não me vê: como se tivesse vergonha: como seu fosse a vergonha dela: meu desejo fosse a vergonha dela: minha presença: meu amor: meu desejo: fosse tudo a vergonha dela: tava esperando minha irmã mas ela não veio: pedi bebida: fui tomando devagar: como se não tivesse pressa: os homens vinham sentar comigo: eu dizia que tava esperando meu marido: porque assim eles entendem: ali bebericando: pensando a vida: bebendo bem devagar: porque não sou mulher da rua não!: tou assim bêbada mas não sou não: você sabe o que é ver o sonho da gente ali no meio da rua com outra?: dói muito: dói demais: é muito ruim: parece que tão arrancando tudo de dentro da gente: primeiro uma coisa gelada no estômago: um peso: o corpo formigando: meio paralisado: tudo devagar: como se fosse mentira: parece pesadelo: depois fogo: muito muito amargo demais: vai tomando conta: roendo estraçalhando o corpo todo: queimando a alma: fugi!: fugi mesmo!: não fiquei pra brigar não: pra tomar o que é meu: meu: muito meu!: ou o que devia ser meu: não! não!: fugi mesmo: corri pra casa: fui chorar sozinha: sozinha: sozinha como sempre: sozinha com aquele peso!: com aquele queimor!: com aquele gelo!: com aquela amargura!: com aquele desespero!: com aquelas lágrimas todas!: e sozinha!: sempre sozinha!: e a gente termina assim: sendo igual a todo mundo: dizendo o que todo mundo diz: vivendo o que todo mundo vive: isso é o mal!: essa é a merda: essa vida: de qualquer maneira: não é da gente: não é verdade?: dizendo o que todo mundo diz: vivendo o que todo mundo vive: isso ninguém ensina: nunca!: dum lado ou do outro: ninguém nunca diz nada: a gente que se lasque sozinha: isso é o mal: essa sim é a merda!: sei não: não posso: não tenho mais força pra fugir dela: força pra fugir de mim: tou bêbada: no fim eu mesmo destruí minha vida: não consegui fazer ela feliz: nem eu mesma fui feliz: mas foi desse jeito: como quem olha do muito alto: e fica tonta e fica sem saber o que sentir: assim foi minha vida!: não fui feliz: mas quem é?: talvez seja assim mesmo!: injustiça e solidão no meio do mijo e da merda: e a morte pra lugar nenhum: no meio dessa desgraça é ir levando levando: que não sou besta: tou bêbada: é verdade: mas hoje quando tiver apanhando vou fechar os olhos: vou pensar em tudo que foi bom: sempre é bem melhor assim: mesmo quando nunca foi: não é verdade?: nem podia ser: • alberto lins caldas é autor de oralidade, texto e história (loyola, são paulo, 1999), babel (revan, rio de janeiro, 2001), nas águas do texto (edufro, porto velho, 2001) litera mundi (edufro, porto velho, 2002), oligarquia das letras (terceira margem, são paulo, 2005). Continente novembro 2006
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Poemas de
Gloria Gómez Guzmán aguaje
teríamos que falar daqueles anos em que tudo parecia recém-inaugurado e jovens os homens e doces as mulheres que éramos saltávamos os muros a vida era uma bandeira vermelha e essas coisas então sim chovia a época sobre papoulas éramos os donos do futuro e essas coisas teríamos que contar-lhes como amamos como o sonho estabeleceu seu reino entre nós deixar bem claro que estivemos palavra desde mãos sujas tentando derrubar o muro teríamos que dizer que somos os sobreviventes de uma década fodida
saldodo
milênio bem-aventurados os que esperam sem esperança porque eles construirão o paraíso que nos é possível
ainda há quem recomende prudência quando ardem no céu inteiros os destinos pessoais de todos mas ainda haverá entre os nossos alguns que ignorando certamente rindo vão e vejam e vençam para fazer viver em nossos ventres o latido imenso da luz
aguamar com minha vida fiz um poema sem rima quase sem medida tentando um ritmo de época que me moveu e me pôs no centro da canção tremendo viva e feroz quase feliz
Gloria Gómez Guzmán nasceu em Tampico, Tamaulipas, México. Publicou: No Eran la Epopeya de Estos Años Nuestros Días (UNAM – Punto de Partida, 1981); Litoral sin Sobresaltos, (Praxis – Dosfilos – UAZ, 1987); El Sermón del Arenque, (CECAT – PCF – ATE – AQC); Poemas (1977–1992, CECAT, 1998); Aguamala y otros Poemas, editado em 1998.
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LITERATURA
Literatura em flagrante O jornal curitibano Rascunho completa seis anos de existência colocando em discussão a literatura brasileira atual, com independência e ousadia Marco Polo
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onsiderado unanimemente por escritores, críticos literários e intelectuais como o melhor (e maior) jornal literário do país, o Rascunho está completando seis anos de existência. Com periodicidade mensal e tiragem de cinco mil exemplares, tem quatro cadernos: os dois primeiros, dedicados à literatura brasileira, com resenhas, críticas, artigos, ensaios e entrevistas; o terceiro, abordando escritores estrangeiros; o quarto, divulgando contos e poemas de brasileiros consagrados ou estreantes. Duas características, marcas registradas da publicação, fazem sua diferença: privilegiar as resenhas e críticas sobre o que está sendo lançado e dar total liberdade a quem escreve, a fim de proporcionar o debate e, às vezes – por que não? –, a polêmica e até o escândalo. Nesta última categoria estão o violento ataque à obra do poeta e ensaísta pernambucano Sebastião Uchoa Leite e a reação destemperada do escritor gaúcho João Gilberto Noll a uma crítica negativa ao seu romance Lorde. Rascunho nasceu de uma proposta do jornalista Rogério Pereira para a criação de um caderno mensal de oito páginas, encartado no Jornal do Estado, de Curitiba, Paraná. Hoje, autônomo, o jornal é distribuído em todo o Brasil. Entre seus colaboradores fixos estão nomes como Nelson de Oliveira, Fernando Monteiro e José Castello. O respeito com que o jornal é tratado pode ser medido pelo fato de escritores como Dalton Trevisan, Affonso Romano de Sant'Anna, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Fabrício Carpinejar, Luiz Ruffato, Ivan Junqueira e Miguel Sanches Neto já terem lançaram textos inéditos em suas páginas.
Rogério Pereira lendo sua cria
Segundo Rogério Pereira, “tudo aconteceu muito naturalmente. Sempre digo que o Rascunho é um jornal em construção. No início, éramos 10 pessoas. Com o crescimento do jornal, as pessoas começaram a levar a sério aquela aventura. Começamos a ganhar credibilidade. Isso foi muito importante para a consolidação do jornal no cenário nacional. O “mercado” viu que a empreitada era séria. O mesmo aconteceu com a linha editorial. Eu sempre deixei bem claro que o Rascunho seria (e ainda é) um amplo palco para discussões, sempre respeitando as opiniões divergentes. A natureza do Rascunho é abrigar as mais diversas opiniões, mesmo que elas não agradem às “estruturas literárias”, ao mercado, aos escritores. O Rascunho não surgiu para agradar, mas para discutir. Mantemos a nossa independência a todo custo, mesmo que isso acarrete alguns problemas. A independência é primordial para a sobrevivência do jornal.” • Continente novembro 2006
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Discos, livros e euros “O gênio é uma revelação de Deus.” Calderón de la Barca (1600 – 1681)
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i, na Gazeta Mercantil de 29 de setembro deste ano, uma notinha sobre as últimas classificações do Guinness e estava lá a cantora pop Madonna no cume do show-business, em 2004, quando ganhou cerca de 40 milhões, no câmbio atual, algo em torno de R$110.400.000,00, naquele ano, sendo considerada a “cantora mais bem paga do mundo”. No campo da literatura, mais precisamente da literatura temporária, ou best-seller, quem mereceu o Guinness foi a romancista J.K. Rowling, ganhando em direitos autorais mais do que Madonna (quem diria?), nada menos que 51,3, isto mesmo, 51,3 milhões de euros. Não julgo Madonna como cantora, pois não sou crítico musical, nem faço críticas à série Harry Potter, pois só falo sobre a ficção que leio, e, nesta idade, só leio Kafka, literatura que desafia a eternidade. Se aplicarmos a fórmula de Goethe de que só vale a pena escrever para um milhão de leitores, Rowling tem todos os motivos de digitar seus romances, sejam eles de alta ou baixa literatura. Quanto à Madonna, agradam-me seu corpo e sua voz, cacofonicamente por razões que a própria razão desconhece (perdoemme meus milhões de leitores, por esse lugar-comum pasqualino). Neste planetinha com seis bilhões de habitantes e mídia simultânea, as esferas do show -business e do esporte geraram verdadeiras deuses e musas, com bilhões de fiéis, mais aclamados que os deuses do Olimpo, na primeira pátria da inteligência, a antiga Grécia. As entidades sagradas de nossos dias invadem corações mentes de milhões de jovens, têm uma vida cheia de glórias, mas depois estão muito longe de alcançar os 2.800 anos dos deuses aos quais a poesia de Homero deu rosto e grandeza. Voltando à Rowling e seus milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, em diversas línguas, é possível acreditar que ainda será lembrado nos próximos 50 anos. Mas é impossível prever até quando será lido e celebrado Shakespeare. Já se disse que o autor de Hamlet foi, sozinho, a empresa que mais empregou gente no mundo, nos últimos quatro séculos. Homero, Virgílio, Milton, Torquato Tasso, Camões, cada um deles, quantos milhões de exemplares de suas obras foram ou estão sendo publicadas em nosso planeta? Poetas do tempo de Jesus Cristo, como o magnífico Horácio, que renovou a estética greco-romana, influiu poderosamente no chamado classicismo europeu, hoje têm suas odes expostas nas livrarias de todos os países do Ocidente e em alguns do Oriente. No entanto, seu público é restrito. Um dos seus princípios estéticos, docere cum delectare, foi
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MARCO ZERO
vulgarizado entre nós como a expressão “juntar o útil ao agradável”. Na verdade, Horácio defendia a função didática da poesia. Um poema politicamente engajado estaria dentro dessa classificação. João Cabral de Melo Neto, que renovou a poética em língua portuguesa, é provável que estenda sua influência sobre as poéticas de outros países, porque tempo a sua poesia terá pela frente. Sua visão da poesia certamente se imporá pela sua originalidade, sem fazer o uso, como é comum, de imprecisão da metáfora: “exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização de estruturas verbais”. Enquanto os discos de Madonna e os livros de J.K. Rowling vão saindo aos milhões e suas autoras ou deusas temporárias gozam uma gigantesca fortuna, a obra de João Cabral já transpôs a ilusão do tempo e toma a trilha da eternidade. Quando falo de best-seller no âmbito da poesia, sempre me lembro da glória passageira do poeta J. G. de Araújo, cujos livros foram, para alguns jovens poetas, na
segunda metade dos anos 50 e primeira metade dos 60, uma espécie de ponte para a poesia moderna, por fazer uso do verso livre coloquial e de fácil dicção. Nunca mais li nem ouvi mais nada sobre aquele poeta, o primeiro e único best-seller da poesia brasileira. A convivência com o mundo da literatura me convenceu de que nenhum dos poetas ditos eruditos conseguiu viver decentemente com os direitos autorais advindos de sua obra poética, no país, até agora. O primeiro livro de Cabral, Pedra do Sono, teve apenas 250 exemplares, pagos por seu pai. E dali para diante, a saída maior de seus livros deveu-se à indicação de seu nome nos cursos de pré-vestibular, nas cadeiras de Letras, nas universidades. O mesmo não se poder dizer da nata dos violeiros-repentistas do Nordeste. Há repentistas que compraram fazendas, casa e apartamentos na capital. De acordo com o seu prestígio, cobram um cachê alto em suas apresentações e têm ao seu dispor dezenas de festivais com prêmios razoáveis. Mas, claro, que estão a anos-luz dos 51 milhões de Rowling. • Continente novembro 2006
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ARTES
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Boca Falando, de Carlos Filomía: a volta da liberdade
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ARTES
Exatos 30 anos depois de instalada a ditadura na Argentina, quadros e esculturas da época são um documento da dor e da indignação de um povo Mariana Camarotti, de Buenos Aires
A arte dos que não estavam no poder
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m 1976, a Argentina entra em um buraco negro da sua história: a ditadura militar, uma das mais duras do continente latino-americano e que deixou um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos. O horror estava nas ruas e nos porões. A censura calava e castigava todas expressões culturais e políticas contrárias ao regime. Mas uma delas, as artes plásticas, curiosamente não foi tolhida. Os militares achavam que os quadros e esculturas não ameaçavam a ditadura, pois comunicava apenas a uma elite. Por esse motivo, as artes plásticas do país vizinho são uma memória viva, um retrato fiel da opressão, silêncio e intolerância vividos naquele período que se estendeu até 1983. Exatos 30 anos após o golpe, as pinceladas e expressões das esculturas ainda comovem pelas caras de dor, gritos de indignação, desejo de liberdade e luta por justiça dos que não estavam no poder. “A arte dessa época é centrada em duas experiências. A do corpo humano como motivo central, um corpo deformado, sofrido, fragmentos de corpo. E a matéria, que seriam objetos relacionados à ditadura e que, junto com o corpo, dramatizam a obra”, explica Maria Teresa Constantin, crítica e historiadora da arte. Constantin é também curadora da mostra Corpo e Matéria – Arte Argentina entre 1976 e 1985, que está sendo realizada em Buenos Aires no Espaço Imago e reúne obras de 29 artistas produzidas pouco antes, durante e logo após a ditadura. “A arte sofre um golpe muito forte, uma grande mudança, com a ditadura. Ela sai das ruas, onde estava a censura, e passa a ser realizada apenas nos ateliês. Com isso, é retomada a arte tradicional, que são as esculturas, pinturas, xilogravuras e desenhos”, diz ela. Uma das obras mais expressivas desse período é a escultura de Juan Carlos Distéfano, feita em 1977. Chamada de Nu. O mesmo em outros lugares, a peça é um corpo de uma mulher encolhido no chão e com uma cara de medo olhando para alguém que estaria de pé. A mensagem de repressão é direta, e o título contextualiza a ditadura argentina com as que tomavam países como o Brasil e o Chile durante as décadas de 60 e de 70. Continente novembro 2006
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Acima, Engendro, de Alberto Heredia. Ao lado, Tango, de Carlos Alonso: crítica à hipocrisia da elite
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Uma outra escultura que chama a atenção é a Engendro, feita por Alberto Heredia em 1975, ano em que a repressão já era sentida pela sociedade. O artista construiu um corpo em tamanho real enfaixado dos pés à cabeça, inclusive a boca e os olhos, e preso atrás de uma grade. Heredia produz também a série chamada Tronos, em que os mesmos corpos enfaixados não têm cabeça, o que pode ser relacionado com a falta de possibilidade de expressão da sociedade. Os quadros não são menos diretos no relato da rotina de tortura, desterro e morte vivida na época. Auto-exilado na Europa e com uma filha desaparecida em Buenos Aires, o pintor Carlos Alonso, um dos mais importantes do período, passa à tela a sua experiência. Faz duas séries marcantes. Na Tango (1975), mostra um casal dançando o principal baile do país sempre em meio a sangue e a partes do corpo humano penduradas no salão. A tela é uma crítica à hipocrisia da elite da época. Já na série Carne de Primeira (1977-1979), Alonso pinta pedaços de carne que fazem alusão a corpos humanos recém-abatidos. Perto, um homem bem-vestido e com as mãos sujas de sangue. Antes dos anos de chumbo, nos anos 60, a arte argentina acompanhava uma tendência latino-americana de envolvimento da arte com a política. Motivados pelos movimentos sociais, a revolução cubana e a militância, os artistas fazem instalações em vez de quadros. A arte começa a ser experimental e atravessa os limites de museus, galerias e ateliês. O ano de 1968 é o cume dessa tendência. Convidado para participar de uma mostra experimental, Pablo Soares não faz um quadro e, sim, um texto, que cola na porta do espaço cultural. O texto diz que a arte precisa estar fora dali e suas palavras são um marco nas artes plásticas do país. Soares, junto com outros artistas engajados, como Juan Pablo Renzi e Luis Felipe Noé, fazem a mostra Tucumán Arde, mostrando a pobreza dessa província dependente da produção da cana-de-açúcar. Os pintores e escultores
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elaboram instalações utilizando os números de um estudo sobre a miséria da região, sacos de açúcar e trabalhadores rurais. Esses mesmos artistas, chamados de primeira geração e com cerca de 50 anos na época da ascensão dos militares, reduzem muito sua produção a partir de 1976, ano do golpe. Eles se dedicam à militância e abandonam a arte, já que essa não podia mais ser feita nas ruas. Fazem alguns quadros de paisagem ou interiores, mas as obras não estão diretamente ligados com a ditadura. A relação que Constantin faz com a ditadura é justamente esse silêncio e distanciamento que eles têm que atravessar e que está refletido nas pinturas. Um exemplo disso é o mesmo Carlos Alonso, que pintou a série Carne de Primeira e, depois, começa a se dedicar aos estudos de História da Arte no exílio. O artista mergulha em técnicas e passa a pintar quadros semelhantes aos de Van Gogh e Renoir, distanciando-se dos quadros de protesto feitos anteriormente. “Ele precisava agüentar de alguma maneira e a forma encontrada foi mergulhar na História da Arte para entendê-la e contestá-la”, diz a curadora. Uma segunda geração, com idade entre 20 e 30 anos na época do golpe, aprende a fazer arte nos ateliês e elabora quadros e esculturas bem comprometidos com a luta pela volta da democracia. Esses artistas buscam um refúgio na arte, uma forma de se expressar, já que os protestos nas ruas estavam proibidos. Com um irmão perseguido e refugiado no Brasil, Julio Flores pinta quadros com silhuetas humanas feitas com fumaça de velas, como os da série Casais (1980) e Mulher (1981). “A mensagem é de deterioração e desaparecimento dos corpos”, diz Constantin. Um outro quadro muito simbólico é Desaparecimento (retrato do meu pai) (1981), que mostra uma mesma cara de homem assustado repetida três vezes na tela. A arte comprometida podia ser exposta e apreciada pela sociedade graças a um pequeno grupo de galerias argentinas, que se alternavam entre a realização de exposições e criação de prêmios concedidos aos artistas militantes.
Carne de Primeira, também de Carlos Alonso: alusão às torturas e mortes
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Paisagem, de Diana Dowek
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“As galerias formam uma rede, um circuito, em que os artistas tinha um espaço garantido para mostrar suas obras. Prêmios que antes eram contestados voltam a ser entregues. Além disso, os artistas voltam a se apresentar nos salões de arte”, conta Constantin. A crítica da época também não sofre censura e podia comentar o que era produzido nos ateliês. A arte argentina, durante a ditadura, mostra um ciclo de ascensão e queda dos militares não apenas através das mensagens dos quadros, mas também das suas dimensões, cores e tipo de expressão das personagens. Nos primeiros anos de chumbo, as esculturas e pinturas têm dimensões pequenas e trazem poucas cores. Os anos vão passando e as obras de um mesmo artista ganham caras de monstros, cores vivas e mensagens de esperança e justiça. Ana Eckell, por exemplo, começa pintando em pequenas dimensões um corpo encolhido no chão em cores pastéis (A seus Pés, 1976) e passa a pintar painéis como Cabeça Tomada (1983), que mostra pessoas sendo golpeadas na rua. Quando a ditadura cai e os militares começam a ser julgados pela justiça, a artista pinta o painel A Caixa (1985), uma alusão à caixa de pandora. Com figuras com expressões de medo que lembram Guernica, de Pablo Picasso, o quadro de Eckell mostra a surpresa e horror de uma sociedade ao conhecer mais sobre o que acontecia nos porões da repressão. Com a democracia, a arte volta às ruas e mantém seu cunho político e social. O artista Carlos Filomía, que durante a ditadura tinha espalhado cartazes por Buenos Aires apenas com a imagem de um olho, agora espalha novos cartazes, dessa vez com a imagem de uma boca falando. Era a liberdade que voltava aos argentinos. As obras pós-ditadura, além de terem dimensões grandes, contam o que aconteceu durante os sete anos do poder militar e rendem homenagem aos desaparecidos e mortos. Julio Flores, que havia pintado corpos com a fumaça de velas, elabora 30 mil silhuetas em tamanho real, recordando e dimensionando a soma de desaparecidos. Os corpos são utilizados em um evento da associação das Mães da Praça de Maio, que reúne até hoje as mães das vítimas. “A arte argentina é um documento indiscutível da ditadura. É possível contar a história através dela, mostrando o que acontecia com a sociedade em cada época e como os as obras dos artistas evoluíram em cada fase da história desse período.” •
AGENDA/ARTES
José de Moura em panorâmica Sob o título Oráculos, o artista realiza uma grande exposição no Museu do Estado de Pernambuco
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artista plástico pernambucano José de Moura está realizando uma grande exposição no Museu do Estado de Pernambuco – MEPE. Sob o título Oráculos, ele exibe 72 quadros em pastel, óleo, técnica mista e cerâmica. Dono de um estilo particular, José de Moura cria em seus quadros uma fabulação em que realidade e sonho, razão e delírio se intercambiam sem que um elemento se sobreponha ao outro, pelo contrário, criando uma identidade diferenciada. Umas vezes crítico, outras irônico, transmite, contudo, uma certa ternura e, quase sempre, uma visão bem-humorada da vida. O pintor é, também, um excelente colorista, usando sabiamente uma paleta luminosa, a ponto de utilizar pó de ouro e pó de prata para conseguir os efeitos pretendidos, sem cair no meramente decorativo. Nesta mostra, pela quantidade dos trabalhos, o visitante terá a oportunidade de conhecer a obra de José de Moura em verdadeira panorâmica. Uma chance que não deve ser desperdiçada. Exposição Oráculos. Museu do Estado de Pernambuco (Avenida Rui Barbosa, 960, Graças – Recife – PE). Informações: (81) 3426.5943.
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Fotos: Divulgação
Trajetórias 2006 O Projeto Trajetórias 2006 tem continuidade com as exposições individuais e simultâneas dos artistas Cinthia Marcelle e Gaio, nas Galerias Baobá e Massangana, respectivamente. É a primeira vez que ambos os artistas expõem no Recife e trazem à cidade trabalhos recentes. Cinthia apresenta uma instalação (foto) com objetos, fotografias, escultura e um vídeo Unus Mundus: Confronto que abrem caminho para a construção de narrativas. Gaio reúne uma série de trabalhos que são alinhavados sob o tema Arquitetura Invisível. Os artefatos e as imagens sugerem o nomadismo da vida contemporânea e o enternecimento de fronteiras geográficas. Exposição Trajetórias 2006. Cinthia Marcelle – Galeria Baobá e Gaio – Galeria Massangana: até 19 de novembro de 2006. Av. Dezessete de Agosto, 2187, Casa Forte – Recife – PE. Informações: (81) 3073. 6692.
Olinda e a arte Olinda, a primeira Capital Brasileira da Cultura, já é reconhecida pelo seu carnaval, artesanato, sítio histórico e gastronomia, mas é com a inserção do projeto Olinda Arte em Toda Parte no calendário cultural da cidade que ela também se consagra pelo rico cenário artístico que produz e representa. A sexta edição da mostra congregará ateliês e outros espaços numa imensa galeria de obras, aberta gratuitamente aos visitantes. Serão 300 artistas plásticos – entre eles, nomes conhecidos nacionalmente como Samico, José Cláudio (foto) e Guita Charifker. Olinda Arte em Toda a Parte – de 23 de novembro a 3 de dezembro. Informações: (81)3429.1750.
Vigas e Ferros 40 vigas de ferro e três peças de mármore de Carrara: essa é a surpreendente arte proposta na exposição Camiri, de Nelson Felix. Uma única obra de 30 toneladas que será abrigada no espaço do Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha (ES) e se recusa a ser identificada como apenas uma grandiosa escultura. O trabalho, segundo seu criador, carrega sentimentos, afetos, características próprias e particulares. A mostra se situa entre uma presença material e uma ação invisível do artista e propaga-se no tema da eclíptica. Camiri – Até 11 de fevereiro de 2007, no Museu do Vale do Rio Doce. Antiga Estação Pedro Nolasco s/n – Argolas/ Vila Velha – ES. Informações: (27) 3246.1443. Continente novembro 2006
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A aventura pictórica de Cícero Dias Além dos lugares–comuns em que tem incidido a crítica ao apreciar a obra de Cícero Dias, como a influência do russo Marc Chagall, existem outros artistas de vital importância na sua produção, como o espanhol Pablo Picasso
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ão, no início, as aquarelas. Uma delas: um antebraço gigante em proporção com as demais figuras ocupa o espaço em diagonal, à beira de um rio; sobre os dedos da mão, um casal minúsculo com uma criança; no alto do antebraço, duas figuras que lembram estátuas de mármore; no primeiro plano da tela, flores e, ao fundo, sobre montanhas, um céu azulescuro e um sol vermelho. Pouco ou nada do mundo real que conhecemos. Mas esta aquarela não é exceção na série que Cícero Dias pintou entre os anos de 1920 e 1930, com uma audácia inventiva, uma liberdade e uma fantasia que não tem similares na arte brasileira. De muitos anos, conheço algumas dessas aquarelas do artista pernambucano mas, pela primeira vez tenho oportunidade de vê-las em tão grande número, como neste volumoso catálogo da exposição que se realizou há pouco no Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Aliás, de acordo com informação de Waldir Simões de Assis Filho, curador da mostra, nunca tantas obras de Cícero Dias foram reunidas numa só mostra. De fato, a exposição abarcou, além dessas aquarelas do início de sua carreira, pinturas das diferentes fases do artista, realizadas até 1990. Na introdução do catálogo, o curador aponta os lugares-comuns em que tem incidido a crítica ao apreciar a obra de Cícero Dias, sendo o primeiro deles detectar a influência do russo Marc Chagall sobre o pintor brasileiro. Efetivamente, à primeira vista, as aquarelas de Cícero Dias, com figuras que voam, coisas, pessoas e bi-
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chos em dimensões desproporcionais, fazem-nos lembrar o universo onírico de Chagall. Não obstante, se levam em conta as datas em que foram realizadas, custa crer que no Pernambuco daquela época a pintura chagalliana fosse já conhecida, tanto mais que não se dispunha de recursos gráficos e fotográficos que permitissem a difusão em larga escala das obras pictóricas. Ainda assim, se de algum modo eventual Cícero tivesse tomado conhecimento de alguma obra de Chagall, disso não teria resultado uma imitação, mas uma recriação, pois é inegável a originalidade das aquarelas concebidas pelo pintor brasileiro. O conhecimento efetivo, não superficial das obras dos dois artistas, logo revela as diferenças que as distinguem, sendo, talvez, a principal delas, o caráter dinâmico, solto e livre das figuras e das composições sempre inusitadas das aquarelas de Dias, em contraposição às obras de Chagall, mais controladamente construídas, em que pese à natureza onírica de sua pintura. Uma influência facilmente detectável sobre Cícero Dias é de Picasso, e surge nas obras realizadas após sua ida para a Europa, na década de 1940. Essa influência se verifica principalmente nas figuras de mulher, que sofrem violentas deformações, típicas do expressionismo picassiano, chegando mesmo ao uso de certas soluções gráficas idênticas. Mas, ainda aqui, a inventividade do pintor brasileiro consegue afirmar-se, no conjunto da composição, no colorido e na exploração dos jogos de luz e sombra. Essa é uma fase de passagem para a etapa seguinte,
TRADUZIR-SE Arquivo Continente
Visão Romântica do Porto do Recife, Cícero Dias, 1930, óleo sobre cartão, 124 x 228 cm
quando Dias recupera plena autonomia criadora na realização de composições, cuja temática são formas vegetais, brasileiras, tomadas aos canaviais de Pernambuco. Outra vez, a inventividade do pintor permite-lhe criar um universo próprio, valendo-se do vocabulário geométrico. Trata-se, por assim dizer, de uma geometria “vegetal”, que se distancia do vocabulário geométrico de algumas tendências da época. A linguagem geométrica vai ser explorada por Cícero Dias, durante várias décadas, no curso das quais explora distintas possibilidades que aquela linguagem lhe oferece. Das composições iniciais, desta fase, mais abertas e espontâneas, passa a outras, mais construídas em que a motivação vegetal desaparece inteiramente, dando lugar à construção geométrica pura, limpa de alusões subjetivas e reminiscências do mundo natural. Pode-se falar, neste caso, de um processo gradativo de distanciamento das fontes autobiográficas, da experiência vivida, para alcançar uma autonomia maior da invenção plástica e cromática, livre de qualquer referência ao mundo exterior e à subjetividade individual. É uma pintura que, de certo modo, busca atingir os arquétipos de uma realidade platônica, essencial. De novo, Cícero Dias imprime à pintura sua marca pessoal, que o distinguirá dos demais artistas que, naquele
período, no Brasil e fora do Brasil, exploraram a linguagem abstrato-construtiva. Se a pintura concreta, por exemplo, fundava suas composições na exploração metódica das energias do campo visual, Cícero Dias, pelo contrário, ignorava todo e qualquer método, toda e qualquer teoria, para improvisar suas composições geométricas; o caráter construtivo, decorrente da própria linguagem geométrica, era contrabalançado por certa concepção arbitrária da estrutura do quadro, ausente da maioria das obras dessa tendência. Mas, se alguém pergunta, qual das fases de Cícero Dias mais me agrada, mais me toca, diria que não é a sua fase geométrica, ainda que reconheça em várias daquelas obras a mão sensível do grande pintor. E o próprio Cícero Dias não se limitou, naquele período, a esse tipo de linguagem, chegando mesmo a abandoná-la nos últimos anos de sua vida. Numa virada inesperada, ele retorna à pintura figurativa, ao mesmo mundo de sonho que nos revelou nos anos primeiros de sua carreira de pintor. Só que, agora, a irreverência e a arbitrariedade expressiva, que caracterizaram a fase das aquarelas, dão lugar a uma composição mais previsível e a um sentimento poético e romântico, que se manifesta tanto na concepção das figuras e das cenas, como no colorido doce e sentimental. • Continente novembro 2006
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Imagem: Wagner Santos/ Kino.com.br
Santuário de Bom Jesus do Matosinho, em Congonhas do Campo, Minas Gerais
Presente do Mediterrâneo
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rlando Ribeiro – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, interessantíssimo trabalho em sociologia histórica – nos revela a idéia da formação das cidades portuguesas e testemunha a influência do Mediterrâneo sobre as suas estruturas. Vê-se, portanto, de uma maneira geral, que o quesito defesa assume uma prioridade na escolha do sítio, do local. No litoral, por exemplo, as baías mais fechadas ou uma colina que se destaca nas elevações das encostas são sempre bons locais de povoamento, e se constituem em inúmeros exemplos das civilizações mediterrâneas. Certamente, a escolha de um sítio mais elevado que dominasse lá em baixo os alagados (ou os estuários) e mais os inúmeros e difíceis caminhos tortuosos por terra,constituíramse em uma característica sempre presente nas cidades Continente novembro 2006
Civilizações mediterrâneas influenciaram a construção das colônias portuguesas Fernando Guerra
portuguesas e, de resto, como afirma José Luiz Menezes, em todas as suas colônias. Diante de agradáveis escolhas, a população cria determinados costumes – de linguagem – como a cidade-alta ou a cidade-baixa, ou ruas e becos irregulares, tortuosos, íngremes e estreitos, curiosamente chamadas de rua direita, largamente utilizadas na nomenclatura das cidades. Também incorpora termos e expressões de objetos de culto, de piedade e da fé religiosa da população às ruas, largos e lugarejos urbanos, como Rua da Matriz, Rua da Fé ou Largo do Rosário etc. Benedito Lima de Toledo faz uma observação importante ao revelar que os caminhos terrestres eram sempre os mais difíceis, característica essa dos povos que viviam constantemente na defensiva – os portugueses não cuidaram, na verdade, do sistema
ARQUITETURA de comunicação por terra e isso era constatado em seu próprio território. A vocação portuguesa para o mar foi, assim, conquistada naturalmente, com as suas cidades dominando portos e estuários e defendidas pela altura dos outeiros, criando uma gente de pescadores navegadores e comerciantes que, além do Mediterrâneo, passaram a conhecer outros mares, revelando um insuspeitável desejo de conquista. Na maior colônia portuguesa, já no século 16, nós vamos encontrar algumas povoações como Salvador, Olinda, Rio de Janeiro, Igarassu, Vila Velha (Itamaracá) e mais tarde, no século 18, as cidades mineiras de Ouro Preto, São João Del Rey, Tiradentes, Congonhas, todas implantadas à maneira portuguesa: em elevações magníficas e sem um plano prévio disciplinador, gerando as ladeiras íngrimes e tortuosas, acolhedoras e românticas, emolduradas pelo casario que se enfileira agarrando-se às encostas. Com vistas às novas conquistas marítimas e econômicas, assunto propagado em toda a Europa nos séculos 15 e 16, Portugal, afirma B. L. Toledo, “cria um programa de construção naval visando produzir navios de grande porte capazes de resistir aos riscos dos grandes oceanos”. Já em 1240, muito antes, portanto, do século das grandes navegações portuguesas, surgem os primeiros navios de “alto bordo” que configuravam um relativo progresso em relação à sua própria armada e lhe proporcionava uma certa competitividade junto às outras nações européias bem mais aperfeiçoadas na navegação à vela. Portugal, portanto, evolui e habilita as suas técnicas de construção naval ao longo de dois séculos, criando em suas fileiras hábeis carpinteiros que sempre viajavam com a armada – conhecedores de madeiras de melhor qualidade –, fato este que será de grande importância para a arquitetura da sua colônia. Um hábito português de linguagem que seria transmitido à colônia como uma qualidade de conhecimento era o termo madeira de Rei, arrolado às espécies mais nobres que passaram a ser protegidas por lei real, sendo chamadas, portanto, de madeira de lei em todo o Brasil. Concluíram, portanto, os lusitanos que se essas madeiras serviriam para as maiores embarcações que atravessariam os longínquos mares e oceanos, certamente poderiam ser usadas pelas suas qualidades em suas novas edificações, garantindo-lhes, dessa forma, uma estabilidade duradoura.
No Brasil, a construção naval portuguesa teve alguma expressão nos séculos 16 e 17 com os jesuítas, a exemplo do irmão jesuíta Francisco Dias (1538 – 1633) que, além de arquiteto, era excelente piloto naval, navegando as costas brasileiras naquela época, por quase meio século. Um outro quesito na história portuguesa dar-se-á com o uso da pedra (em Portugal) – especialmente o granito em todo o norte do país –, uma tradição que atravessava séculos, sendo na arquitetura popular as suas formas mais primitivas e os maiores exemplos de suas necessidades. Em uma expressão felicíssima, Aldo Rossi costuma chamar de “civilização do granito” devido, sobretudo, ao excessivo uso da pedra naquela região, em todas as suas construções. Lugares como Castro Laboreiro, Monção, Melgaço, Barcelos, Braga, Guimarães, no extremo norte do Minho ou em Vinhas Bragança, Vila Flor, Carrazeda e Vila Real na região do Douro até Viseu e Linhares em Beira Alta, usa-se tanto nas casas da fidalguia rural, em seus detalhes requintados dos cunhais, das cercaduras, das cornijas e arremates de escadarias, a exemplo do Solar de Mateus em Vila Real, como em extensos muros que separam propriedades. Esse gosto e costume lusitano chegaram ao Brasil no período colonial e certamente, não foi apenas por intermédio da arquitetura erudita, mas, também, pelas mãos dos mestres de campo, dos canteis populares, que transformam a arquitetura vernacular em belos e ricos exemplares. Silvio Romero, baseado em Herculano, nos revela uma seqüência na ordem de ocupação da península, após os homens da caverna: os iberos, os fenícios, ligures, os gregos, os celtas, os cartagineses, os romanos, os suevos, os godos, os árabes que, incontestavelmente, deixaram inúmeras edificações isoladas ou conjuntos arquitetônicos no acervo cultural de Portugal. Particularmente, os árabes legaram, além de centenas de monumentos, inúmeras técnicas construtivas, procedimentos e costumes, ainda hoje utilizados na Espanha, em Portugal e em diversos outros países. O uso da taipa, por exemplo, largamente aplicada na península, revelou-se como uma técnica bastante difundida em todo o Brasil, tanto na arquitetura fidalga quanto na popular. Na região sul de Portugal – no Alentejo e no Algarves – podemos encontrar a influência moura em inúmeros edifícios ricos em arabescos, monumentais em ostentação. • Continente novembro 2006
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A morte em imagens
O mês de finados sugere um olhar sobre as imagens dos cemitérios que, apesar de representarem a dor, mostram também a eterna busca pelo belo Texto e fotos por Mônica Vasconcelos
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Figura feminina procedente de Milão, Itália, com influência da estética nouveau, em túmulo de 1925. Cemitério do Araçá, São Paulo
spaços urbanos com localização quase sempre privilegiada, em função da expansão das grandes cidades, os cemitérios abrem um enorme leque de possibilidades de pesquisa entre as quais a observação de seus acervos artísticos que incluem obras de artesões anônimos ou artistas reconhecidos. Das mãos hábeis de mestres canteiros portugueses, emergem relevos repletos de simbolismos importados do período anterior a laicização que remetem à inexorabilidade do tempo e lembram de forma explícita e contundente a fugacidade da vida. São ampulhetas e globos alados, tochas acesas em posição invertida, ossos e caveiras, foices, machados, morcegos, corujas, representações fito-mórficas de oliveiras, louros, papoulas ou flores de lótus. Com o passar do tempo “a morte se ameniza”, os relevos tomam forma tridimensional e parecem buscar os céus nas asas de românticos anjos que nos confundem em femininas metamorfoses. Na transição para o século 19, a morte perde a conotação “mórbida”, artistas franceses e italianos dão vida aos diáfanos véus das figuras femininas e florais de estética nouveau. O mármore abre espaço para o bronze que perdura até quase meados do século. Décadas e décadas de arte exposta a céu aberto que parece lembrar, de forma sutil e delicada, que, assim como na vida, a todos aqueles que se dispuserem a olhares isentos de perda, dor e sofrimento, restará, também na morte, e sempre, o consolo da eterna busca do ser humano pelo... “belo”. •
Anjo que compõe conjunto escultórico procedente de Firenze, Itália, autoria de Guazzini, 1903. Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro
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Monumental jazigo-família do final do século 19 do Barão e Baronesa de Mecejana; possui representação realista do casal encomendada previamente pelos próprios titulares do túmulo a uma marmoraria italiana. Cemitério de Santo Amaro, Recife
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Conjunto escultórico pertencente ao jazigo-capela erigido em memória de Clarice Índio do Brasil, procedente de Pietrasanta, Itália, autoria de Luca Arrighini, provavelmente na década de 1920. Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro
Representação zoomórfica em túmulo importado de Portugal sob rubrica de Francisco Salles, Lisboa, 1858. Cemitério do Campo Santo, Salvador
Entre cruzes e capelas, protótipo de representação de anjo que se repete em alguns cemitérios visitados. Cemitério do Araçá, São Paulo Continente novembro 2006
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Protótipo de representação infantil recorrente em alguns cemitérios visitados. Cemitério São João Batista, Rio de Janeiro
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SABORES PERNAMBUCANOS
Reprodução
Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Do leite de loba ao leite de vaca "Que mãe já soube dizer o que sente quando a boca da criança lhe morde o bico do peito e o leite jorra do seio?" Isadora Duncan (Memórias)
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ubiu aos céus Silvio Procas, rei de Alba Longa – mais antiga província da região do Lácio, bem no centro do que hoje conhecemos como Itália. O trono, por direito hereditário, deveria ser ocupado pelo primeiro de seus dois filhos – Numitor. Só que, por força da cobiça, acabou esse trono indo para aquele que era mais moço e mais sanguinário – Amulius. Para garantir esse reinado, matou Lauso, o filho homem de Numitor. E obrigou a outra filha do irmão, sua sobrinha Rhea Siluia, a fazer voto de castidade. Não contava era com as artimanhas do amor. E então deu-se que essa virgem vestal se apaixonou pelo deus Marte. Dessa união profana nasceram Romulus e Remus. Amulius os mandou matar. Por piedade, ou temor aos céus, decidiram os assassinos colocar aqueles gêmeos numa cesta, depois jogada no Rio Tibre (Tevere). Que o destino lhes desse fim. Por graça dos deuses, não se afogaram. Ao fim do terceiro dia, encalhou aquele cesto frágil em uma figueira. As crianças foram encontradas e amamentadas por loba cheia de leite, ainda triste pela perda dos filhotes. Depois o pastor Faustulus as levou para casa e deles cuidou sua esposa, Acca Larentia. Experiência não lhe faltava, dado ter já 12 filhos. Cresceram os dois entre pastores. Mais tarde, informados de sua própria história, mataram Amulius, entregando o trono ao avô Numitor. E fundaram povoado que teve como seu primeiro rei Romulus, exatamente no local em que foram encontrados pela loba. Em seu louvor deram, mais tarde, à cidade que ali prosperou, o nome de Roma. Romulus acabou convertido em um deus guerreiro – Quirino. A figueira (ficus ruminalis), em árvore sagrada. E a loba, em símbolo de Roma. Essa velha lenda romana acaba aí. Como toda lenda que se preze, então viveram todos felizes. Para sempre. Não foi bem assim. Acostumado a matar, e para evitar conspirações, logo Romulus assassinou seu irmão Remus – reproduzindo a maldição de Caim e Abel. Povoou a cidade com bandidos, assassinos, refugiados e escravos. Faltando mulheres, buscou-as na cidade vizinha de Sabina – em episódio que passou a ser conhecido como o do “rapto das sabinas”. Escapou dos punhais amigos, mas não de sua sina. Morrendo Romulus, pelas mãos dos deuses que afrontou, em meio a uma
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tempestade. Para isso servem as lendas. Para dar um pouco de romantismo à história. Dessa lenda nos interessa o leite daquela loba que alimentou os gêmeos. De leite todos os mamíferos se alimentam – mamífero vem de mama. Já leite é palavra que vem do latim lactis (seiva). A palavra se manteve, nas línguas latinas – latte (italiano), lait (francês), leche (espanhol). Mas não nas línguas anglo-saxônicas, inspiradas estas pelo indu meolc (ordenhar) – donde milk (inglês) e melki (alemão). Seu valor foi sempre cantado, em prosa e verso. No Alcorão, Maomé diz ser “dádiva de Deus aos homens e aos animais evoluídos”. Canaã, a Terra Prometida por Deus aos hebreus, é lugar onde “mana leite e mel” (Êxodo, 3,17). A princípio era alimento considerado sagrado – por vir do próprio corpo, logo depois do parto. Durante muito tempo foi apenas isso, alimento de recém-nascido. E remédio. Hipócrates, pai da medicina, recomendava aos gregos dois cálices de “leite da mulher que tiver filho varão” para curar insônia e variação de humor. Galeno, bem depois dele, aconselhava compressas de leite para diminuir tumores e cicatrizar feridas, em seus tratados de anatomia. No Portugal dos 1400, o próprio Rei D. Duarte, “O Eloqüente”, aconselhava “leite quente, todos os dias, para evitar a peste”; além de revelar fórmula, aprendida com seus antepassados, para “dor d'olhos” – “leite de mulher parideira na quantidade suficiente para encher uma casca de noz”. Tudo bem documentado no Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte. Aos poucos, as qualidades desse leite foram ganhando prestígio, entre adultos, como bebida revigorante. E vieram subprodutos seus. Como o transporte dessa bebida, por longas distâncias, levava a que esse leite coalhasse, assim nasceram coalhadas, manteigas e queijos. Depois vindo esse leite a ser também usado na culinária, como ingrediente na fabricação de pratos doces e salgados. A escolha do leite, nos primeiros tempos, dependia menos do gosto e mais do animal disponível no curral. O homem foi experimentando vários deles. Primeiro o de cabra. Egípcios deixaram, nas pirâmides, receita de queijo e de pão (feito com esse leite, misturado à farinha de lótus e água). Homero faz referências a um leite ordenhado pelo ciclope
SABORES PERNAMBUCANOS Polifemo, antes de ter o seu único olho (situado bem no meio da testa) vazado por Ulisses (Livro IX da Odisséia). Ferido Ulisses, aconselha-o Nestor, o mais velho dos príncipes que assistiu ao cerco de Tróia, que “sente, beba e rale queijo de cabra no vinho e coma muita cebola”. Fenícios atravessavam as Colunas de Hércules (Gibraltar) trocando esse leite (e mais bronze, vidro, jóias, moveis, tecidos) por estanho. Aproveitaram para ensinar ao povo ibérico receitas de muitos queijos. Depois veio leite de égua – para os romanos, o mais saudável de todos. Tomado puro. Usado na pele e nos cabelos, como tratamento de beleza. Ou misturado a ervas e frutas, no preparo de bebidas revigorantes. Mas era privilégio só de nobres. Que a gente simples do povo, durante muito tempo mais, continuou usando o bem conhecido leite de cabra. E também o de ovelha. Com eles faziam papas, polentas e bolos – sobretudo o lactarium opus (leite, farinha, mel e frutas), receita referida por Plínio, o Velho, em sua História Natural, mais importante livro de ciência natural da sua época. Em seguida ganhou prestígio o leite de mula, exaltado pelo historiador Heródoto – que o aconselhava aos soldados, antes de combates. Sem esquecer, também, o leite-de-camela, que estava em receita de doce deixada pelo nosso Heródoto. Só bem mais tarde, e aos poucos, foram sendo substituídos todos os outros leites pelo de vaca. Ao invadir a Península Ibérica, comandados por Tarik, trouxeram os mouros com eles grandes invenções. Em todas as áreas – arte, arquitetura, indústria (azulejo, de azeite, de tecido), agricultura (técnicas de irrigação, moinhos de água), geografia (mapas), navegação (bússola, astrolábio, caravelas). Mas, sobretudo, na culinária. Com eles vieram, nesse campo, palavras que usamos até hoje – abóbora, açúcar, acepipe, alcachofra, alface, arroz, azeite, azeitona, laranja, limão. Plantaram oliveira, amendoeira, arroz, algodão, laranja, limão, maçã, melão, tangerina e cana-de-açúcar. Ensinaram técnicas avançadas de fazer queijo, coalhada e manteiga, usando leite de vaca. E ensinaram, sobretudo, a usar leite fresco para cozinhar arroz e fazer papas, pães e bolos. Sem esquecer a grande novidade que foi usar leite azedo em sopas, cremes, caldos e sobremesas com mel. Aos poucos virou moda, na Europa, servir leite puro acompanhando as refeições. Esse leite era o de vaca. D. Sebastião foi recebido em Alcoutim, (1573), pela marquesa de Vila Real, com “tigelas de leite acompanhando arroz doce (cozido no leite), beilhós e pastéis de ovos e marmelos” – segundo Francisco de Sales Loureiro (Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve). Depois desapareceu, na batalha de AlcácerQuibir, em 4 de agosto de 1578 – mas essa é outra história. Em seguida, inventaram os franceses novos jeitos de tomar esse leite. Primeiro (1680) o adicionaram ao chá, invenção que causou grande transtorno aos metódicos ingleses, obrigados a refazer seus serviços de prata que passaram a ter
também leiteira. E também o misturaram ao café (1700) – hábito que conservamos até hoje, em nossas mesas. Sem esquecer que esses mesmos franceses inovaram também na preparação de queijos. De todo tipo. E tantos são os queijos inventados por eles que gostam de dizer ser possível, na França, comer pelo menos um queijo diferente em cada dia do ano. Em verdade, são 452 tipos catalogados. Ao Brasil trouxe o colonizador português ovelha, cabra, égua, burra e sobretudo vaca. As primeiras chegaram, à Capitania de São Vicente, em 1534 – trazidas por D. Ana Pimentel, esposa de Martim Afonso de Souza. Não mereciam grande assistência. Segundo John Mawe, naturalista inglês que aqui viveu por 10 anos (1808-1818), “as vacas eram ordenhadas sem regularidade, recebiam fracas rações e eram, geralmente, consideradas um estorvo; o uso do leite de cabra era mais generalizado” (Viagens ao Interior do Brasil). Sendo o gado então usado sobretudo como transporte – nos “carros de boi”. Uma grande novidade. Índios não tinham o hábito de tomar leite. Escravos africanos também não. Para eles, era “bebida de criança”. Preferiam coalhada. Mas passou-se a usar aquele leite na preparação de muitos pratos da terra – com abóbora, batata ou farinha. Também leite de burra, como remédio, no tratamento de crianças anêmicas ou tuberculosas. O hábito se conserva no sertão ainda hoje. A amamentação também obedeceu a modas. Durante séculos, mães abastadas não amamentavam seus filhos. Transferiam a tarefa para escravas – “amas-de-leite”. Pobres mulheres, quase todas negras, condenadas a abandonar seus próprios filhos para que não tivessem o leite diminuído. Nesse ofício não se usando nossas índias – que continuaram mantendo seus filhos atados ao corpo, por todo o dia, amamentando-os sempre que tivessem fome. Aquelas “amas-deleite”, para que não lhes faltassem sustança, eram alimentadas fartamente com caldo de galinha, gemas de ovos, queijos, amêndoas, pinhões. Por acreditar ser o colostro (líquido amarelado e opaco, segregado logo depois do parto) prejudicial à saúde das crianças, recém-nascidos eram alimentados só com leite de animal – tomado diretamente em suas tetas, ou colocado na boca com ajuda de um chumaço de algodão. Por volta do século 18 foi usado, pela primeira vez, um bule de vidro, com bico bem comprido. Na ponta desse bico adaptavam esponja, forrada de linho ou camurça furada. Nasciam, assim, as primeiras mamadeiras. Aos poucos passou esse leite a ser largamente usado na culinária. Primeiro, apenas na preparação de pratos doces. A mais antiga referencia a essa prática, em Portugal, nos vem de um estranho doce feito com alho-poró, em 1367 – “porrada de leite, e pão com porros”, transcrita por Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo (1798), em seu “Elucidario das palavras, termos e phrazes, que em Portugal antigamente se usaram, e que hoje regularmente se ignoram: obra indispenContinente novembro 2006
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SABORES PERNAMBUCANOS sável para entender sem erro os documentos mais raros e preciosos que entre nós se conservam. Publicado em beneficio da litteratura portugueza, e dedicado ao Príncipe Nosso Senhor”. Leite aparece, também, no mais antigo livro de culinária portuguesa, o da Infanta D.Maria (1538 – 1577), em um “caderno dos manjares do leite” – onde estão registradas sete receitas: pastel de leite, leite cozido, tigeladas de leite, tigeladas de leite de D. Isabel de Vilhena, beilhós de arroz. Além do primeiro prato salgado que usou leite, o manjar branco – “tomareis o peito de uma galinha preta e pô-la-eis a cozer sem sal, senão na água tal, e há-de ser não muito cozida, porque se possam tirar as fêveras inteiras; e depois de tiradas, deitá-las-ão numa escudela de água fria, e daí fá-las-eis em fios, porque os mais delgados são melhores. E para este peito é mister um arrátel de arroz muito bem limpo e lavado e seco, e limpo com um pano e pisado e peneirado com uma peneira de seda, e uma canada de leite deitada no tacho e sete onças de açúcar...”. Domingos Rodrigues, chefe de reis, no seu Arte de Cozinha (1680), além de muitas outras receitas – tigeladas de leite, arroz-doce, fruta de seringa, torta de arroz – transcreve uma receita diferente do manjar branco: “depois que um peito de galinha estiver meio cozido, desfiado, e desfeito em um tacho com a colher, deitem-lhe duas canadas de leite, dois arráteis de açúcar, e arrátel e quarta de farinha de arroz, e mexendo-se tudo muito bem, ponha-se a cozer...”. Em Portugal, Lucas Rigaud, cozinheiro francês de D. Maria I, a “louca”, lançou O Cozinheiro Moderno (1780), com todo um capítulo dedicado ao leite. Recomendava usar de vaca, “o melhor e o mais agradável ao gosto”. Além de receitas de cremes de pasteleiro, queimado, meringado, de aletria, de abadessas, manjar branco, pudim à inglesa, pudim de pão, pudim de arroz, sopa de leite. E, mais, sopa de almôndega à parmesã – “tomem um peito de perdiz, outro de galinha, quatro lombos de coelho, tudo cru, e façam um picado que depois se pesará num gral a que juntarão, depois de pisado, um bocadinho de miolo de pão molhado em leite...” Outros livros importantes vão aparecendo, com diferentes maneiras de usar esse leite. A Arte do Cozinheiro e do Copeiro (1822), autor desconhecido, traduzido para o português pelo Visconde de Vilarinho de São Romão, traz 10 receitas de legumes, quatro de carne, três de peixe, duas de ovos, um molho bechamel, uma sopa de leite e um prato de macarrão. Além das famosas “batatas reduzidas a polme” – “tomai batatas brancas das melhores, assai-as do borralho, debulhai-as e fazei-as passar no passador de buraquinhos. Deitai-as numa cassarola com suficiente manteiga fresca, pimenta e sal. Mexei a miúdo, e deitai-lhe leite pouco a pouco, sobre um fogo muito brando”. O Cozinheiro dos Cozinheiros (1870), atribuído a Paulo Plantier, vem com receitas de arroz com leite, arroz doce ou de leite, biscoitos de Continente novembro 2006
leite, manjar branco, pães-de-leite e pudim de leite. Além de leitão recheado e tordos ao gratin, peixe-rei frito no azeite com leite, batatas à camponesa, sopa de cebola com leite, molho bechamel. E, mais sopa de ravioli – “faça-se com ovos frescos e farinha na preparação de seis ovos para 1 quilo de farinha, uma massa consistente. Estenda-se com o rolo até ficar o mais delgado possível, e deite-se-lhe em cima, em distâncias iguaes, na metade do seu comprimento, um recheio composto de peitos de aves, leite, queijo parmezão ralado, gemmas de ovos, borragem branca, e temperado com pimenta, canela e noz moscada...” Nada disso provaram Romulus e Remus. Pior. Segundo historiadores, nem o tal leite de loba conheceram. Sendo os gêmeos, em verdade, amamentados pela própria Acca Larentia, mulher do pastor Faustulus. Devendo-se, a versão romântica da lenda, a ser essa bela mulher, amante dos prazeres da carne, mais conhecida como lupa (loba) – em latim, prostituta. Também em Roma, a mais antiga das profissões. E já que de Roma e de leite falamos, impossível não lembrar La Dolce Vita (de Fellini) – com Anita Ekberg tomando banho vestida, na “Fontana de Trevi”, enquanto Marcelo Mastroianni tenta achar leite para um gato encontrado por ela, na rua. Ou Boccaccio 70, com música de Nino Rota (“Bevete Piú Latte”), que toda uma geração cantou – “beba mais leite, produto italiano, o leite faz bem, a todas as idades”. Conselho seguido pelo pistoleiro Shane, em Os Brutos também Amam (de George Stevens); que, num bar cheio de bandidos, em vez de whisky, pede... leite. • RECEITA: PUDIM DE LARANJA INGREDIENTES PUDIM: 1 litro de leite, 100 g de farinha de trigo, 500 g de açúcar, cascas raladas de 4 laranjas, 15 gemas CALDA: Zesto (casca de 1 laranja, sem a parte branca, cortada em tiras), 2 xícaras de açúcar, 1 xícara de água, 1 cálice de Cointreau. PREPARO ·Caramele forma (de buraco) com 3 xícaras de açúcar e um pouco de água. Reserve. Em vasilha funda, misture farinha e leite. Junte açúcar e as cascas raladas das laranjas. Acrescente as gemas peneiradas. Mexa bem. Passe em peneira fina. ·Coloque tudo na forma caramelada. Asse em banhomaria, no forno médio, por 45 minutos, aproximadamente. Deixe esfriar, desenforme e regue com a calda. ·Para a calda – coloque açúcar em uma panela e vá mexendo, até que derreta completamente. Junte água, zesto e Cointreau. Misture e deixe ferver, até obter uma calda rala. ·Sirva bem gelado.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Fechando para balanço 1 NEM NO ÍNDICE Quando me perguntaram qual o lugar que,no meu entender, aquela Excelência lá de Brasília iria ocupar na história, não vacilei: - Creio que nem no índice onomástico... 2 DOU UM JEITO DE NÃO IR Se há uma coisa que detesto é ler jornal que já foi lido antes.Lá em casa, quando acordo mais tarde e vejo que alguém já andou folheando os jornais do dia, resmungo, praguejo baixinho e mando comprar outros na banca da esquina. Outra coisa que me mexe com os nervos é receber visitas inesperadas. Quando quero visitar alguém, previno com pelo menos seis dias de antecedência. E sempre dou um jeito de não ir. 3 BURRICE DE FORMIDANDAS PROPORÇÕES Pode parecer mentirinha, mas trabalho melhor quando estou cansado. Quanto mais cansado, mais a cabeça funciona. Se durmo demais, acordo pesadão, cinzento, com vontade apenas de voltar a dormir. E minha natural burrice ganha formidandas proporções. 4 FECHADO PARA BALANÇO Tantas bobagens que eu poderia ter feito e, tolamente, não fiz. E tantos acertos. • Continente novembro 2006
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Cinema de um mundo perdido Em novembro, Luchino Visconti, cineasta italiano, mestre do realismo mais cru e do mais sublime melodrama, completaria 100 anos Carlos Haag
Rocco e Seus Irmãos (1960): o cinema americano demorou uma década para conseguir reproduzir a violência de Visconti
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este mês, ele completaria 100 anos. Um olhar apressado sobre a forma de seus filmes dá a impressão de que ele teria 200 anos; se, no entanto, se observar, com cuidado, o conteúdo de sua obra cinematográfica, a impressão é de que ele nasceu ontem e está falando de nossos problemas. Essa contradição é chave para se entender Luchino Visconti (1906-1976), aristocrata e marxista, mestre do realismo mais cru e do mais sublime melodrama, filho de pai nobre e mãe burguesa, amante de homens e mulheres, criador do cinema moderno em seu pioneirismo neo-realista com “Obsessão” (1942) e, ao mesmo tempo, autor de filmes longuíssimos, obras-primas de reconstituição de épocas passadas, cuja decadência ele via com empatia e desgosto. Em todas essas dicotomias, foi um navegador solitário que afetou o cinema com sua passagem, embora seu curso quase sempre tenha sido paralelo ao da história do cinema. Quando O Leopardo ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em Reprodução/ AE 1963, houve vaias na platéia. Afinal, aqueles eram tempos em que Jean-Luc Godard reescrevia a linguagem do cinema. Como se podia homenagear aquele épico-operístico que, na aparência, se mantinha à distância da vanguarda? O que muitos não viram é que ele, o mais completo diretor de todos os tempos, embora se visse como um classicista, chegara em seus filmes a muitas das mesmas conclusões formais que seus colegas avançadinhos da época, ainda que com métodos diferentes. Era um tirano em cena, descrito por atores como um “senhor medieval de chicote em mão”; porém, tinha humildade ao falar de sua arte: “Prefiro descrever as almas solitárias, os destinos esmagados pela realidade. Eu só retrato personagens cuja história conheço bem. Talvez, em cada um de meus filmes exista um outro, escondido. Meu filme mais verdadeiro, jamais realizado, seria sobre o Visconti de ontem e de hoje.” Sua vida, efetivamente, daria um filme viscontiano. Nascido em Milão, em 2 de novembro de 1906, “na mesma hora em que a cortina do Scala subia para uma nova récita”. Teve uma mãe que lhe deu uma educação de rigor militar, profundamente religiosa, embora tenha aberto seus olhos para o teatro e seus ouvidos para a música desde cedo. Era uma fascista convicta casada com um nobre homossexual que odiava Mussolini e se separou da mulher para construir uma aldeia “medievalesca” onde reuniu jovens camponeses. Antes, porém, a futilidade e a alienação. Passou anos envolvido com a criação e a montaria de cavalos e ao viajar para a Alemanha voltou fascista convicto. Foi preciso a doçura de Paris, no contacto com o cineasta Jean Renoir, para abrir seus olhos para o cinema e o Luchino Visconti, apesar de não pertencer à vanguarda, marxismo e um contato mais íntimo com um belo fotógrafo louro, muitas vezes chegava às mesmas conclusões formais que seus colegas em seus filmes Horst, para abrir seu espírito para o homossexualismo. Teve uma longa lista de amantes, entre eles, o seu assistente, Franco Zefirelli, mas tinha horror de que soubessem de que gostava do “amor que não ousa falar o nome”. Tanta discrição levou Maria Callas, com quem trabalhou no Scala, a se apaixonar inutilmente por ele, sem perceber que perdia o seu tempo com Visconti. A diva sofreu. Na França, bebeu vinho e a estética francesa realista e a vanguarda socialista soviética. A Itália, já sob Mussolini, vivia uma febre de filmes inconseqüentes nos moldes de Hollywood. Curiosamente, o filho do Duce, Vittorio, reuniu um grupo de jovens cinéfilos, entre os quais De Sicca, Rossellini, De Santis e Continente novembro 2006
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Fotos: Divulgação
O filme O Leopardo de Visconti ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1963
Antonioni, todos de esquerda, em torno de uma revista, Cinema, que deveria arejar a estética cinematográfica fascista. Aos 40 anos, inicia sua carreira de cineasta com Obsessão, que antecipa em cinco anos o neo-realismo italiano. Vira comunista de carteirinha, mas, sem filmes para fazer, dedica-se a renovar a cena teatral italiana, ainda presa aos dramalhões do século 19. Em 1948, em período eleitoral, a pedido do Partido Comunista Italiano, que sabia do poder político do cinema, roda A Terra Treme, primeira parte de uma trilogia sobre a miséria siciliana. Visconti usa pescadores locais em vez de atores profissionais e já revela a sua maestria futura na escolha dos ângulos e na beleza das cenas, em que o corpo humano tem um papel fundamental. Luchino inaugura o cinema ao mesmo tempo estético, político e de grande sensualidade. Em Belíssima, faz uma pintura amarga do meio cinematográfico e inicia uma lenta crítica aos métodos da estética neo-realista. Um convite da companhia italiana Lux, especializada em cinema-espetáculo, leva Visconti, em 1954, a seu novo caminho com Senso (Sedução da Carne), o seu primeiro filme grandioso com cenários de época. Surge a estética viscontiana no uso da cor, dos cenários preciosos e da câmera descritiva que percorre, saboreando, salas, quartos e salões, integrados, de forma notável, aos personagens, em suas roupagens, falas pausadas e gestos sutis e cheios de significado.
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A referência ao passado vira uma marca viscontiana, explorada ao máximo em Rocco e seus Irmãos, de 1960, outro grande painel familiar, desta vez retratando as mazelas contemporâneas italianas, com a mudança de um grupo de pessoas do Sul miserável para Milão, o Norte maravilha de progresso e modernidade. Paradoxalmente, o tema é, como em Senso, o Rissorgimento, a unificação italiana que gerou uma nação una e dividida pela luta de classes, evidenciada, no filme, pelo ódio com que o personagem de Alain Delon, transformado a contragosto em pugilista, revela ao surrar seus adversários no ringue. O cinema americano demoraria uma década para conseguir reproduzir a violência de Visconti em Rocco, o enterro formal do neo-realismo italiano. Depois de Rocco, deu-se ao luxo de fazer filmes mais próximos da sua personalidade e angústias pessoais. São obras que mostram mundos perdidos, a decadência e o declínio das elites, conformadas em perder o jogo para a História e para a ascensão das classes burguesas e sua modernidade industrial, corrupta e redutora. O príncipe de Salinas (O Leopardo – 1963) é um dos poucos personagens não patéticos da última fase viscontiana, traz também o tema da morte, da velhice, da decadência não apenas de uma classe, mas do corpo. É o cinema das ruínas: palácios apodrecidos, praças de Veneza empesteadas. Elas mostram o seu amor e seu desgosto, pois Visconti amava tudo aquilo que, como marxista, queria ver destruído.
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Assim, o seu caráter de 200 anos ou de nascido ontem. Muitos desprezam a longueza de filmes como O Leopardo ou Ludwig (1972), sobre o rei louco da Baviera e seus castelos extraídos de óperas de Wagner. A resposta para isso está justamente no compositor alemão, o idealizador da “obra de arte total”, que Luchino pretende recuperar num registro crítico. Visconti adotou a relação do “tempo que vira espaço” do alemão: é preciso emergir o espectador na atmosfera de cada cena em vez de fazê-lo correr de cena para cena. Sem essas “cenas supérfluas” não existiria o universo viscontiano. Prova maior dessa estética que mergulha diretor e público no universo que se quer dissecar é Os Malditos, de 1969, passado nos primeiro anos do nazismo e um notável comentário sobre o tremor de 1968. O filme mostra outra família em pedaços, uma elite que segue à risca uma frase de Hitler: Visconti desenrola um novelo de estupros, traições, assassinatos, incesto, revelando a ordem de um mundo em franca destruição. São zooms que desorientam o espectador, envolvendo os personagens numa atmosfera de alienação total, onde os cenários mudam rapidamente, como a realidade da ascensão nazista. A melancolia de O Leopardo cede vez à histeria, não sem antes ter passado pela neurose em Ludwig, filme claustrofóbico sobre um monarca maluco que usa seu poder para, na contramão, se esconder do mundo em meio a uma arquitetura que seria usada por Disney para construir o seu paraíso de conto-de-fadas. Depois de lamentar, em O Leopardo, massacrar, em Ludwig, desorientar, em Os Malditos, a câmera e a cenografia de Visconti vão vagarosamente dissolver o universo de seu personagem, no caso, o músico envelhecido que se toma de paixão por um jovem efebo numa Veneza tomada pela peste. Morte em Veneza (1971) é o retrato da decadência de uma classe que se destrói ao encontrar a beleza que tanto procura. No livro de Thomas Mann, há humor, forma encontrada pelo escritor para aliviar essa sua “encarada” consigo mesmo. No filme, o clima é de tragédia patética. A beleza, afirma Luchino, tem elementos demoníacos e é preciso estar pronto para isso. Se não, é a morte. O belo perturba e contamina, como a sífilis adquirida pelo protagonista na juventude com uma prostituta (cena tirada de outro livro de Mann, o Doutor Faustus). Sua penúltima obra, Violência e Paixão (1974), é realização de um homem doente que reuniu seus amigos fiéis. Um professor vive recluso em seu apartamento e vê, com prazer e horror, sua vida ser invadida por uma família de maldade. Quase um êmulo de Visconti, o professor sente um prazer masoquista em ser humilhado pelos jovens. Paralisado por um derrame ele teve tempo ainda de fazer O Inocente (1976), pouco antes de morrer. A obra é algo tediosa, adaptação de um livro de D'Annunzio, autor que ele não apreciava e era o oposto de Verga, a força-motriz de sua entrada no cinema. “Nós, os velhos cineastas, já falamos tudo o que tínhamos a dizer. No meu caso, de Obsessão a Os Malditos. Acho que posso me dar o luxo de tocar em temas mais privados”, disse numa entrevista em 1970. O resto é silêncio, como diria o personagem favorito de Luchino quando criança, Hamlet. •
Em Morte em Veneza (1971), um dos seus últimos filmes, retrata a decadência de uma classe e se aproxima mais da sua própria realidade
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O ano de Germano
Germano Haiut contracena com o garoto Michel Joelsas no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias
O ator pernambucano Germano Haiut se transforma no angustiado judeu Shlomo no longa O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, do diretor Cao Hamburger Mariana Oliveira
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hlomo é um solitário judeu, sobrevivente do holocausto, que vive no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, em plena década de 70. Sisudo, rígido e introspectivo, vivia uma rotina regrada, trabalhando como zelador na sinagoga do bairro, até a chegada do garoto Mauro (Michel Joelsas). É esse o sério personagem a quem o ator pernambucano Germano Haiut dá vida no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (estréia 3/11), do diretor Cao Hamburger. Haiut, com sua simpatia e bom humor, passou por um longo processo de construção do personagem, que culminou numa elogiada atuação. O nome de Germano chegou a Cao Hamburger através de uma pernambucana que lembrou de um ator amaContinente novembro 2006
dor, recifense, pai de uma amiga, com uma grande experiência no teatro local, que tinha alguma prática com o iídiche, língua utilizada na comunidade judaica, onde o filme tomaria corpo. Haiut estranhou, num primeiro momento, que o cineasta viesse buscar no Recife o papel adulto mais relevante do filme, quando há um imenso grupo de judeus no sul do país. Depois de todos os testes, o papel terminou sendo seu. Para viver o amargurado judeu, Germano mudou-se por uns tempos para um hotel simples do bairro do Bom Retiro, onde deveria isolar-se do seu mundo e adentrar no universo de Shlomo. “Independentemente do filme, eu fiquei muito feliz com o que eu fiz. Foi, para mim, uma espécie de ano sabático. Pela primeira vez eu me isolei da minha vida para viver aquilo. Eu tive a
CINEMA possibilidade de avaliar o que é uma angústia. Como exercício de vida foi uma experiência fenomenal”, afirma. Ele brinca, dizendo que O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias foi seu penúltimo filme. Resta saber qual será o último. Germano (mesmo tendo trabalhado em alguns longas anteriormente) pôde vivenciar intensamente, pela primeira vez, uma experiência cinematográfica de grande produção, já que sua experiência de atuação centra-se na interpretação teatral. No set de filmagens, nos primeiros dias, teve que se conter para não impostar a voz, prática comum nos palcos. Outro desafio para o ator foi o uso do iídiche. Segundo ele, que não foi alfabetizado nessa língua, desde a morte do seu pai, há muitos anos, não praticava seu vocabulário em iídiche, fortemente coloquial e popular. Durante as gravações, Germano atuou quase sempre ao lado Michel Joelsas que, assim como as outras crianças do filme, não era ator, numa proposta consciente do diretor de unir crianças talentosas, atores pouco conhecidos (caso do pernambucano) e atores globais (Caio Blat, Simone Spoladore). O longa – que ganhou o prêmio de melhor filme no júri popular no Festival do Rio 2006 – conta a história do garoto Mauro, que, em 1970, é deixado pelos pais, que saem de "férias". Algo inesperado acontece com seu avô, e o menino é acolhido por Sholmo, iniciando um exercício de convivência, entre a solidão do garoto, deixado pela mãe e pelo pai, e do velho senhor, exilado nas suas lembranças. De pano de fundo: a Copa de 70, que marca, em muitos momentos a temporalidade do filme, já que os pais prometeram voltar para a Copa; a ditadura militar e os moviFotos:Divulgação
O diretor Cao Hamburger grava cena com Simone Spoladore
mentos estudantis em prol da liberdade; e a convivência pacífica entre os imigrantes italianos e judeus, residentes no Bom Retiro. Mesmo remetendo a esses aspectos variados, não é um filme sobre futebol, nem sobre a comunidade judaica no Brasil, nem sobre a convivência das diferenças, nem tampouco sobre os anos de chumbo da ditadura militar. É um filme terno sobre a vida de um menino que viveu o ano de 1970 de forma especial. “É uma história sobre a superação de uma criança, num momento do Brasil em que fica muito claro como a vida, muitas vezes, é muito dura e nessa dureza você pode encontrar alegria e poesia”, define o diretor. O roteiro original traz traços autobiográficos, memórias da geração que foi criança durante os anos de chumbo. A primeira inspiração veio do livro infantil Minha Vida de Goleiro, de Luiz Schwarcz, que relata a vida do autor, de família judaica, que se mudou para o Brasil e teve sua infância dominada pelo futebol, pelos jogos de botão e brincadeiras nas ruas. Apesar de tantos elementos, o foco central é a história pessoal do garoto. Durante as gravações, o filme era chamado apenas de Goleiro, depois é que a produção chegou ao nome final, diante do qual é impossível não fazer referência a Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, de Emir Kusturica, que também aborda a solidão e o exílio de uma criança abandonada involuntariamente pelo pai, numa situação política delicada. "Um filme sobre os vários tipos de exílio", lembra Cao Hamburger. É apenas no final da história que o garoto Mauro entende o que significa um exílio. Para ele, estar exilado seria estar atrasado, estar ausente. •
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O Beijo, Francesco Hayez, 1859, Milão, Pinacoteca de Brera
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As boas incertezas românticas O termo romântico foi mudando de concepção de acordo com as circunstâncias de cada época Daniel Piza
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termo romântico ganhou muitos sentidos nestes pouco mais de 200 anos que se passaram desde que o Romantismo surgiu nas artes. No uso corriqueiro, tem dois significados. Um é aquele embutido numa frase do tipo “Ah, ele é muito romântico” ou “Ele é o último dos românticos”, querendo dizer que o sujeito é nostálgico, que se ilude facilmente, que fica sonhando com algo que jamais terá na realidade. É um uso comum nos assuntos do comportamento, como relações amorosas, ou nos esportes, em que um bocado de comentaristas passa os dias a lamentar a “era de ouro” que se foi (para eles, todas as “eras de ouro” ficam no passado). O outro significado é mais positivo: refere-se a uma pessoa idealista, que não se deixou levar pelo cinismo, que não é escrava da rotina prática. Este vemos com freqüência na política, na ideologia, como nas tentativas de preservar palavras como “utopia” (ainda que não em seu sentido original, de “lugar inexistente”). O curioso é que observar essa ambigüidade do adjetivo romântico é um gesto que deve muito ao Romantismo, aquela bicentenária corrente de idéias e imagens. Foi na análise da poesia romântica, aliás, que o grande crítico inglês William Empson desenvolveu a tese dos Sete Tipos de Ambigüidades, em que mostra a variedade de recursos para criar duplo-sentido na combinação de palavras e cenas. Outro grande crítico, o americano Charles Rosen, Poetas Românticos, Críticos e outros Loucos, notou justamente num capítulo sobre Empson que a linguagem dos primeiros autores românticos – como os poetas ingleses Wordsworth e Coleridge – se aproxima da religião e tem uma curiosa ambivalência em seu entendimento da natureza. Há a defesa de uma comunhão da mente com a natureza, comunhão que seria uma transformação do indivíduo e, por extensão, da sociedade; ao mesmo tempo, essa natureza é um local de conforto, de consolo para o fracasso do sonho revolucionário, da impossibilidade da realização social de uma utopia. Como se vê, mesmo no romantismo inicial, de teor mais religioso, há aquela dupla percepção do romântico como alguém nostálgico e idealista ao mesmo tempo.
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The Slave Ship (O O Navio de Escravos), 1840; Museu de Arte de Boston
Para entender o surgimento do Romantismo é preciso lembrar a perspectiva política, moral e cultural da época. Não foi por acaso que o Romantismo começou na Inglaterra, onde sempre se desconfiou de sistemas salvacionistas. Ele foi subproduto de uma situação histórica produzida pela Revolução Francesa, que começara defendendo valores iluministas – liberdade, igualdade, fraternidade – e terminara num novo regime autoritário, de medo e injustiça. Nesse contexto de reconhecimento da necessidade de renovação e desencanto relativo às suas tentativas foi que o Romantismo propôs uma arte que resgatasse a subjetividade, obscurecida pelos esquemas supostamente racionalistas, e também apontasse para uma mudança coletiva, baseada mais na imaginação e no comportamento do que numa organização social. O Romantismo não pregava o individualismo, no sentido de egoísmo, mas como porta para uma comunicação superior – o sublime. Daí a importância do contexto moral. Como notaram analistas como Mario Praz, a figura feminina – simultaneamente angelical e diabólica – é decisiva para o imaginário romântico. Com as primeiras iniciativas de mulheres Continente novembro 2006
no campo das idéias e das ações públicas, o patriarcado do Antigo Regime estava abalado, e os próprios conceitos universalistas do Iluminismo pressupunham que elas deveriam deixar a posição submissa. A vertigem de temor e fascínio que a personagem da mulher liberada evoca é recorrente nas histórias românticas de Hoffmann a Poe. É como se elas, por sua capacidade de geração da vida, tivessem um contato menos mediado com as forças naturais, que de certa forma assustava e ensinava os homens que sobre elas escreviam. O repertório do Romantismo é marcado pelo jogo de contrários entre carne e espírito, natureza e cultura, e busca superá-los; só que não pretende que nessa Xanadu haja apenas alegria e triunfo, livres de melancolia e consciência. Tudo isso se projetava no próprio uso da linguagem pelos românticos, que era ao mesmo tempo altissonante e fragmentária, transcendente e irônica. Tratava-se de abandonar o discurso do século 18, em que predominavam a comédia de costumes, a sátira política ou filosófica e o romance picaresco, e retomar uma carga emocional mais direta e ambiciosa, sem abrir mão da noção das complexidades da condição humana. Por isso, evidentemente, o
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O Romantismo foi assimilado e transformado em uma ideologia que seria o fundamento de novas propostas utópicas como o marxismo, o nacionalismo moderno, até mesmo o nazismo retorno a Shakespeare. (Até hoje muitas das interpretações de Shakespeare são aquelas estabelecidas pelos românticos, que deram a ele o status de gênio maior que não tivera por quase dois séculos.) Não se pode reduzir o Romantismo a um movimento em defesa do sentimentalismo, do irracionalismo, como se fez por algumas correntes realistas na segunda metade do século 19. Autores como Flaubert e Machado de Assis perceberam esse equívoco e sempre defenderam – em ensaios e na própria ficção – a pertinência de certas percepções românticas, as quais conjugaram ao estilo realista. É claro que o Romantismo, nas artes como na vida, foi (ou deveria ter sido, já hoje tanta gente ainda se comporta romanticamente no mau sentido) ultrapassado por essa crença excessiva nos poderes da subjetividade, por esse otimismo rousseauniano que procura uma pureza do indivíduo anterior ao seu contato com a civilização (o que explica o romantismo das artes e idéias brasileiras até hoje, mas esta é outra história). Especialmente francesa das Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe, na Alemanha e na França o Romantismo foi assi- Edição traduzidas por Baudelaire milado e transformado em uma ideologia que, como notou o ensaísta Isaiah Berlin, seria o funé um conceito indissociável da noção de ambivalência damento de novas propostas utópicas como o marxismo, legada pelos românticos. A diferença é que deixou de o nacionalismo moderno, até mesmo o nazismo. O con- lado a promessa utópica. Em Kafka, por exemplo, é ceito romântico de “essência”, por exemplo, foi dominan- justamente por precisar tanto de esperança que o ser te durante muito tempo no pensamento ocidental, e humano mata a esperança. ainda segue vivo em muitas filosofias. O Romantismo continua forte, no entanto, porque Já obra de Keats e Baudelaire, os dois maiores fala alto a características da natureza humana que supoetas românticos, fica um patamar acima das demais peram contextos históricos e até mesmo morais, como justamente por fundir à intensidade romântica um o valor da imaginação, a necessidade do desprencerto distanciamento clássico. Também o Modernis- dimento, a impossibilidade de substituir a experiência mo é uma espécie de revisão do Romantismo, uma por suas simulações. Ironicamente, é do próprio Rotentativa de superar a objetividade ilusória do Realis- mantismo que pode vir uma reação inteligente ao mo redescobrindo o fragmento e a imprecisão do emocionalismo do “entretenimento” contemporâneo. estilo romântico. Não que seja o lamento da “totalidade Chega de finais felizes em novelas e filmes. Um brinperdida”, como dizia Edward Said; modernidade, porém, de à boa incerteza romântica. •
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O Ultra-romantismo Os artistas ultra-românticos anteciparam as discussões sobre a angústia do homem moderno e seu desejo de redescobrir uma natureza original, longe de toda artificialidade
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André de Sena
Viajante Diante do Mar de Nuvens (1818), Caspar David Friedrich; Hamburgo, Kunsthalle
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iterária e filosoficamente, o contraditório período conhecido como Romantismo, que se inicia em finais do século 18, na Europa, e vai até às duas últimas décadas do século 19 – já espalhado por todo o mundo –, poderá ser estudado sob os mais diversos prismas. Dentre eles, há o caso de certas obras que tendem a valorizar e intensificar algumas das principais características românticas, constituindo um estudo à parte, a exemplo daquelas, onde o mal-estar de viver, a melancolia, o fatalismo e um desespero, que muitas vezes irá beirar o niilismo, estarão presentes não apenas enquanto base, mas como motivos fulcrais do construto literário. São estas obras que a crítica posterior qualificaria de ultra-românticas, graças à intensificação de alguns dos postulados românticos, a saber: o subjetivismo, a idéia do artista aparReprodução tado da sociedade (que tem sua origem nas obras de Jean-Jacques Rousseau e no movimento pré-romântico alemão do Sturm und Drang) e, principalmente, um novo estado de espírito, melancólico e nostálgico, já evidente em inúmeras obras do pré-romantismo inglês e alemão, os quais destoarão claramente do cânone neoclássico, preponderante em todo o território europeu desde o Renascimento. Mas a melancolia ultra-romântica diferirá da de outros períodos históricos? É de se notar que, ao longo da História, como um deus de duas faces, ora a melancolia será exaltada, ora temida. No quarto século antes de Cristo, quando os gregos ditavam a estética do mundo ocidental, a melancolia era tida como uma doença sagrada, por Aristóteles, mas foi definida por Hipócrates como um excesso de bile escura – um dos quatro humores que regeriam o corpo humano – capaz de engendrar uma loucura semelhante a do herói Ájax, que destroçou um rebanho pensando tratar-se de um exército inimigo e se suicidou, após um momento de lucidez seguido por outro de letargia melancólica, como foi descrito na peça Ájax Furioso (450 a.C.), de Sófocles. Para a Idade Média cristã, a melancolia constituirá uma manifestação demoníaca, assimilada ao pecado, de cujos efeitos não estariam livres nem mesmo os santos. Na Renascença, há uma espécie de reabilitação da melancolia, agora fonte de criatividade, tomada muitas vezes sob a forma alegórica. Para a época racionalista do Iluminismo, a melancolia será novamente caracterizada como uma “doença do espírito”, e rejeitada como um entrave ao pensamento. Será apenas em fins do século 18 e no século 19, quando se dá o Romantismo e, com ele, o mal-do-século, que a melancolia será definitivamente reabilitada enquanto motivo artístico e servirá de ferramenta para um retorno à natureza, às ruínas, paisagens crepusculares e noturnas, ao interior e subjetividade dos próprios escritores e artistas. Se o Romantismo, reflexo de uma nova ordem social, centrou-se na glorificação do particular, do singular, do íntimo, daquilo que diferencia uma pessoa da outra, o Ultra-romantismo irá avançar ao ponto de o autor se tornar um solitário efetivo, não raras vezes confundindo vida e obra, que, em última instância, encontrará na morte a única possibilidade de transcendência e eternidade. Segundo a fórmula do jovem Luckács da Teoria do Romance, o “romantismo da desilusão” seria caracterizado por uma inadequação da alma à realidade: “a alma é mais ampla e vasta do que todos os destinos que a vida esteja em condições de lhe oferecer”. Dessa forma, mesmo com
Goethe, autor do Werther, romance que gerou uma onda de suicídios na Europa
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Abadia no Bosque de Carvalhos (1809), Caspar David Friedrich; Berlin National Galerie
configurações particulares em cada país, na Inglaterra, o tédio seria cantado sob a forma do spleen byroniano; na França, o mal-du-siècle dos heróis René e Atala, de Chateaubriand e do Oberman, de Étiene Pivert de Sénancour; na Alemanha, o weltschmerz do jovem Goethe autor do Werther, romance que gerou uma onda de suicídios reais por toda a Europa e dos contos ultra-românticos de Wilhelm Hauff, entre dezenas de outros exemplos. Em língua portuguesa, desde Bernardim Ribeiro e Rodrigues Lobo que o romance português vinha explorando uma melancolia patológica, a oscilar entre o pessimismo confessado e os desejos de um contentamento e de uma satisfação sempre longínquos e inalcançáveis, até culminar no ultra-romantismo de Camilo Castelo Branco e Soares de Passos. No Brasil, o maior nome do ultraromantismo seria Álvares de Azevedo, poeta morto precocemente, aos 20 anos de idade, que iria preferir registrar situações de dor e de melancolia, e ambientes que lembravam a nebulosidade nórdica, mesmo num país tropical (as ruas desertas de São Paulo, os crepúsculos
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nas florestas, a noite com seu cortejo de donzelas pálidas e desfalecidas), ao invés dos temas nacionalistas utilizados pela geração romântica anterior, formada por Gonçalves Dias, Manuel de Araújo Porto Alegre e Gonçalves de Magalhães. Álvares de Azevedo, ao lado de outros jovens autores do século 19, como Bernardo Guimarães, Aureliano Lessa e Junqueira Freire, irão abrir um novo capítulo na história do romantismo brasileiro, onde à superabundância de sentimentos corresponderá sempre o contraste com o “vazio” desolador do real. O herói ultra-romântico, dessa forma, será um ente problemático típico do romance moderno. Como o Oberman, clássico do mal-do-século francês, escrito por Sénancour em 1804, será um homem jovem, marcado por um profundo “mal de existir”: com 20 anos, desencantado de tudo, será consumido por um tédio incurável, a ponto de deixar Paris para ir viver nas “sublimidades” das montanhas. Em busca de uma idéia de absoluto que o mundo das convenções burguesas não poderá jamais preencher, passará a
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viver ao mesmo tempo como um dândi na cidade e um eremita, no campo. Sua única ação efetiva será a literatura – meio para chegar à própria interioridade, através da redação de memórias e impressões de desalento, apatia, pulsões mórbidas, sentimento de vazio. A incompreensão da sociedade face ao artista moderno do século 19, fará com que este se isole do mundo, optando por viajar a regiões ermas (Rousseau, Sénancour, Walpole, Gray), buscar os excessos da boêmia (Lautréamont, Hoffmann, Musset), serpentear a loucura (Nerval, Cowper), ou afugentar-se numa atitude de verniz aristocrático e satanista (Byron). Alfred de Vigny irá inspirar-se na história verídica do poeta Chatterton, que se suicida aos 17 anos, em 1770, após ter sido descoberto que os poemas que afirmava ter encontrado, de autoria de um bardo do século 15 (Thomas Rowley), tinham sido na realidade compostos por ele, e simboliza todo o descontentamento dos artistas frente à nova lógica do mundo capitalista. Também encarnarão este drama o Joseph
Delorme (de Sainte-Beuve), o Antony (Dumas), o Célio (Musset), o Julien Sorel (Stendhal), entre tantos outros. A literatura ultra-romântica, mesmo com certo exagero compreensível, marcou época ao fazer a exaltação da individualidade, que estava acorrentada pelas normas do espírito iluminista, as quais valorizavam o bom senso cartesiano e a uniformidade da razão, numa concepção mecanicista do universo que “achatava” o indivíduo, toda a sua singularidade e irracionalismo. Dessa forma, o Ultra-romantismo irá antecipar as discussões sobre a angústia do homem moderno e seu desejo de redescobrir uma natureza original, longe da artificialidade e dos contrastes de uma sociedade despersonalizada e cruel. Este diálogo trágico do homem com o universo deveria ainda encontrar um forte eco na produção literária da modernidade, desabrochando no modernismo de Baudelaire e no existencialismo literário de Jean-Paul Sartre e Albert Camus. • Continente novembro 2006
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A música e a palavra A música se aproxima do ideal da arte romântica por seu desligamento da linguagem conceitual Arnoldo Guimarães de Almeida Neto
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o contrário da poesia, a música no Romantismo continuou ligada ao Classicismo como se fora uma continuação dele. A procura por novas maneiras de representação não desligou a música do quesito formal tão caro à arte clássica. A mudança do estilo entre os dois períodos acontece, sobretudo, na sintaxe e na semântica, ou seja, no interior da obra e no que ela pretende comunicar. Um novo vocabulário instrumental e harmônico surge para expressar o sentimento dessa nova geração que busca em Haydn, Mozart e Beethoven o seu modelo formal e de técnica, mas busca na interação com outras formas de expressão, essencialmente na literatura, o ideal da mudança. A sinfonia continuou desenvolvendo-se na tradição deixada pelos três grandes sinfonistas da escola vienense, a música instrumental tomou grandes proporções em todos os gêneros principalmente as formações camerísticas de toda natureza e a música para piano, instrumento que teve grande desenvolvimento neste momento. Entre as características do movimento romântico, estava uma busca pela beleza “estranha”, certo distanciamento do real pelo fantástico, o mítico e o inatingível. Sob esses aspectos, a música, e principalmente a música puramente instrumental, passou a representar a mais romântica das artes por seu desligamento com o mundo concreto.
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Por outro lado, a música vocal tem um florescimento não menos importante com a valorização de um gênero já existente, mas extremamente apreciado pelos românticos, o Lied. É uma das formas mais difundidas de música vocal, chegando a um desenvolvimento onde várias vozes podiam participar da composição, um bom exemplo é o Lied D 920 de Schubert, Ständchen, para mezzo-soprano e um coro composto por vozes femininas com acompanhamento de piano, que é o principal instrumento deste tipo de composição nesse primeiro momento do Lied oitocentista. Schubert, Brahms, Schumann e Hugo Wolf são os principais compositores deste gênero. Uma das características do Lied é não explorar o virtuosismo vocal com o intuito também de preservar o texto sobre o qual monta a obra, o piano desempenha um papel importante que vai além do simples acompanhamento, estabelecendo um verdadeiro “diálogo” tornando-se tão expressivo quanto a própria voz. Há uma aproximação da música com a literatura que é característica do Romantismo e se dá através de duas vias; a da música vocal representada pelo Lied e pela ópera, e pela música programática. Se a música é o ideal da arte romântica por seu desligamento da linguagem conceitual e a poesia desse período pretende exprimir qualidades musicais no texto, então temos na música programática o ideal das aspirações românticas para as duas expressões, não é por menos que a modalidade mais popular desse gênero é conhecida por poema sinfônico. Esse gênero é um tipo de música instrumental associada a um texto, ou a uma idéia, como o Assim falou Zarathustra de Richard Strauss que tenta ilustrar as idéias filosóficas do texto de Nietzsche. Descreve ou mesmo narra em sons o seu conteúdo, ou seja, há um programa preexistente à música. A idéia da música com programa é uma tomada de consciência sobre as afinidades entre o conhecimento poético e a expressão musical. Encontramos exemplos anteriores ao século 19, As quatro estações de Antonio Vivaldi conciliam elementos descritivos com exigências da música pura, cada concerto (estação) acompanha um soneto explicativo remetendo a partes correspondentes na música e o concerto para flauta R439 nº2 intitulado La Notte (A noite), impressões sobre a noite com intenso poder descritivo. Beethoven é o precursor da música com programa nos oitocentos, e também de outras práticas que encontraram resposta durante todo o Romantismo, a Sinfonia
nº6 pastoral (Op.68), que tinha como título: A sinfonia pastoral ou recordação da vida no campo, que ele depois acrescenta indicações ao programa sugerido pelo subtítulo de cada andamento com o intuito não de estabelecer uma relação com imagens, e, sim, com sensações. Mas são os seus continuadores que contribuirão para o desenvolvimento do gênero enquanto arte romântica que terá prática até o limiar do século 20. Ao mesmo tempo a (jovem) crítica e os teóricos, principalmente na segunda metade do século 19, dividiam-se entre os partidários da música absoluta e da música integrada a outras artes. Eduard Hanslick foi um grande teórico desse momento e um antiwagneriano inflamado, defendia a música absoluta, aquela totalmente livre de elementos extra-musicais, ou seja, a música enquanto arte autônoma não deveria prender-se a nenhuma expressão, e nem deveria levar-se em conta enquanto manifestação psicológica e do intelecto do compositor, apenas a obra musical em si deve ser considerada. Do outro lado ficam Wagner, os seus seguidores e os que defendiam a idéia hegeliana da unidade de todas as artes. O drama wagneriano está baseado no principio da Gesamtkunstwerk (obra de arte total), e a qualidade da interação da música com o texto é indiscutível, o mecanismo do leitmotiv (motivo condutor) foi a forma encontrada para manter essa interação e, por conseguinte, com o drama, sua ligação com as personagens e com a ação passa a ter uma forma de música descritiva também, pois participa da narrativa tanto quanto o texto, mas com certa independência. Wagner participa da evolução do Lied com os WesendockLieder que tem a orquestra como acompanhamento ao invés do piano, inaugura uma nova fase onde Gustav Mahler é o maior representante e que, como Beethoven na 9º Sinfonia , utiliza o recurso da musica vocal com coro e solistas na maioria de suas obras. Já no século 20 encontramos ainda reminiscências do romantismo do estilo tardio que conservam a prática da música programática e do Lied. As primeiras obras de Arnold Schoenberg como A Noite Transfigurada, sobre um poema de Richard Dehmel e o poema sinfônico Pelléas et Mélisande bem ao estilo de Richard Strauss e o grandioso GurreLieder. Apesar de se situar no limite do esgotamento das possibilidades harmônicas, ainda mantém uma ligação com a tradição romântica de interagir com as palavras, completando o que lhe falta com o som. • Continente novembro 2006
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O lugar do encenador
Carlos Carvalho, um dos nomes mais expressivos do teatro contemporâneo em Pernambuco, inaugura espaço próprio, com montagem baseada em dois contos de Hermilo Borba Filho Luís Augusto Reis
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Elenco de 2 x Hermilo, peças baseadas em dois contos de Hermilo Borba Filho, que estreiam em novembro e dezembro
Fotos: Marcelo Lyra/Divulgação
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xistem países, sobretudo na Europa, onde os encenadores que obtêm reconhecimento pela qualidade e pela consistência de seus trabalhos são convidados a ocupar, como diretores artísticos residentes, os teatros geridos pelo Estado, e às vezes também alguns teatros privados. No Brasil, diferentemente, mesmo entre os criadores teatrais renomados, poucos conseguem conquistar a tranqüilidade de trabalhar por um período prolongado num local devidamente equipado onde possam desenvolver, ou aprofundar, uma proposta artística continuada. Embora se saiba que no campo da criação estética o acesso a boas condições de trabalho não seja garantia alguma para a qualidade dos resultados, é preciso perceber que um encenador sem um teatro à sua disposição – para ensaios, para experimentos e para a construção de um diálogo constante com seu público – assemelha-se, em certa medida, a um professor sem sala de aula, ou a um médico sem hospital, ou ainda a um chef sem restaurante. Portanto, não é surpreendente observar que, salvo uma ou outra exceção, os expoentes do teatro contemporâneo, dentro e fora do país, são artistas que trabalham, há muitos anos, em seus próprios espaços. No Recife, todavia, não é incomum um encenador ter que conceber um espetáculo sem sequer saber ao certo onde seu trabalho será apresentado. Por vezes, mesmo em montagens que se propõem profissionais, faz-se necessário improvisar locais de ensaio, em horários esdrúxulos e incertos. Além disso, em geral, os grupos só têm acesso ao palco do teatro em que cumprirão temporada dois ou três dias antes da estréia; e nessas poucas horas os encenadores mal poderão ensaiar: estarão mais preocupados em acertar a iluminação, o cenário, e as tantas outras questões técnicas próprias de uma produção teatral. Cansado dessa realidade, Carlos Carvalho, um dos artistas mais produtivos da cidade, decidiu se lançar de corpo e alma na criação de um novo local, onde pudesse dar vida a seus projetos. Assim, há alguns meses, alugou um antigo sobrado localizado na Travessa do Amorim, nº 66, no Recife Antigo, bem em frente à entrada do estacionamento do Paço Alfândega. “Este ano comemoro 40 anos de teatro, e esse lugar é o presente que sempre desejei. Não podia morrer sem ter meu próprio espaço de trabalho. Sei das muitas dificuldades que enfrentarei – meu contador fez de tudo para me dissuadir –, mas vou em frente, buscando parceiros e procurando contribuir para o teatro da região", diz ele, orgulhoso de seu novo desafio.
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De pronto, ainda sem patrocinadores, e contando apenas com uma contribuição financeira (R$ 15.000,00) da Fundação de Cultura do Recife, tratou de iniciar a reforma do prédio, onde antes funcionavam escritórios comerciais, tentando, a despeito da limitação de recursos, dotá-lo da infra-estrutura necessária para começar a funcionar como teatro. No primeiro andar, além de um pequeno bar, encontra-se uma sala de espetáculos capaz de se moldar às necessidades de diferentes tipos de montagens, podendo assumir diversas configurações de platéia, chegando a acomodar em torno de 150 pessoas. No segundo andar, espaço para seminários, oficinas, palestras e aulas regulares de dança e teatro. Por causa desse perfil artístico-pedagógico, Carlos Carvalho resolveu batizar o espaço com o nome de Centro de Pesquisa Teatral do Recife – sem ligar para as inevitáveis comparações com o famoso Centro de Pesquisa Teatral (CPT), comandado há mais de 20 anos por Antunes Filho, sob os auspícios do SESC de São Paulo. Trajetória – Mais conhecido hoje em dia como encenador, Carlos Carvalho se iniciou no teatro como ator, ainda adolescente, sob a rigorosa (e carinhosa) orientação de sua professora, a saudosa atriz Rute Bandeira, integrante do elenco do Teatro Popular do Nordeste (TPN), grupo dirigido por Hermilo Borba Filho. “Garoto, ainda, eu ia ver as peças do TPN, lá no teatrinho da Av. Conde da Boa Vista, e ficava fascinado por tudo aquilo”, relembra. Não por acaso, percebe-se, em muitos de seus trabalhos, um claro alinhamento aos ideais preconizados por Hermilo nos anos 60: um teatro
A montagem A Gloriosa Vida e o Triste Fim de Zumba sem Dentes (2001) também foi uma adaptação de um conto (“O Traidor”) de Hermilo Borba Filho
erudito, mas inspirado nos espetáculos populares; um teatro engajado na luta contra as injustiças, porém jamais dirigido por motivações político-partidárias. Esse legado hermiliano, decerto, também é resultado de sua longa convivência com Fernando Augusto Gonçalves, Nilson de Moura e Luiz Maurício Carvalheira, entre 1977 e 1985, anos em que fez parte, como ator, do Mamulengo Só-Riso, de Olinda, grupo muito sintonizado com os ensinamentos de Hermilo. “Embora ultimamente não venha trabalhando de forma exclusiva com bonecos, minha passagem pelo Mamulengo Só-Riso deixou marcas fortes na minha cena: sempre aparece algo de teatro animado nas peças que dirijo”, explica. Antes, contudo, ainda no final dos anos 60, e no início dos anos 70, trabalhou com outro importante encenador recifense: José Francisco Filho, que também reconhece, hoje, como um dos seus mestres. De José Francisco, além do domínio da linguagem cênica, herdou a inquietação e a liberdade de opções estéticas. De fato, seus trabalhos recentes atestam que ele tanto pode se aproximar do armorialismo de Ariano Suassuna, como em Fernando e Isaura (2002), ou se distanciar completamente das raízes de nossa cultura regional, como em suas duas montagens de textos do espanhol Fernando Arrabal: O Arquiteto e o Imperador da Assíria (2002) e A Bicicleta do Condenado (2003). Sobre essa variedade de interesses, diz: “Me criei no ambiente da rua Chacon, em Casa Forte. Toda a vida fui, portanto, vizinho do querido professor Ariano Suassuna. Mas isso não me impede de ter, ao mesmo tempo, uma profunda admiração por Jomard Muniz de Britto, por exemplo, que sempre questionou a arte armorial”.
Um outro importante aspecto que o distingue dos demais diretores teatrais de maior destaque na cidade é o fato de Carlos Carvalho não pertencer ao mundo acadêmico. Ele não é professor universitário; não fez graduação em Artes Cênicas; tampouco é um pesquisador, stricto senso, do tipo que produz ensaios, dissertações e teses. Isso não significa, no entanto, que ele seja um encenador meramente intuitivo. Pelo contrário, interessa-se pela teoria tanto quanto pela prática. E no âmbito teórico também se recusa a seguir uma única linhagem de pensamento estético-ideológico: conhece Eugênio Kusnet, Bertolt Brecht, Eugenio Barba, Hermilo Borba Filho, Stanislávski, entre outros, e aproveita de cada um aquilo que lhe parece mais relevante. 2 x Hermilo – Desde O Duelo (1994), espetáculo criado a partir do universo literário de Guimarães Rosa, percebe-se que Carlos Carvalho tem demonstrado uma crescente disposição para investigar as relações entre o texto e a cena. Em As Sombrias Ruínas da Alma (2005), por exemplo, trouxe ao palco a escrita em prosa de Raimundo Carrero. Anteriormente, com A Gloriosa Vida e o Triste Fm de Zumba sem Dentes (2001), havia dado forma teatral ao conto “O Traidor”, de Hermilo Borba Filho, alcançando um dos melhores resultados artísticos de sua carreira. Agora, amparado pelo Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife, inaugura seu Centro de Pesquisa com outro espetáculo baseado na literatura de Hermilo. Dessa vez, adapta os contos O Palhaço e O Peixe, dois contundentes exemplares da brilhante produção desse autor palmarense, escritos na plenitude de sua maturidade artística, pouco antes de seu precoce falecimento, em 1976. Para essa nova produção, intitulada 2 x Hermilo, à exceção do premiado ator Gilberto Brito, Carlos Carvalho conta com um elenco de jovens atores, alguns deles revelados em cursos que ministrou recentemente. Como já acontecia em alguns de seus últimos trabalhos, a música, utilizada como um recurso épico, torna-se um elemento essencial da montagem. Mas as canções, desta vez, foram compostas por ele próprio, e arranjadas por Kleber Santana, que assina a direção musical do espetáculo. Mas as comemorações de seus 40 anos de carreira – 23 como encenador – vão além da enorme satisfação de poder inaugurar sua “nova casa”. Neste segundo semestre de 2006, Carlos Carvalho afirma ter recebido outro presente: foi convidado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) para dirigir a peça A Ratoeira, de Agatha Christie, um dos maiores sucessos de bilheterias
Carlos Carvalho e o seu Centro de Pesquisa Teatral do Recife (ao fundo): local para colocar em prática seus projetos
do teatro mundial – em cartaz em Londres por muitas décadas, ininterruptamente. “Me sinto muito honrado pelo convite. Fazia tempo que o TAP não trabalhava com um diretor de fora de seus quadros. Foi para mim uma grande alegria e um precioso aprendizado poder trabalhar com atores como Geninha da Rosa Borges, Reinaldo Oliveira, Renato e Wanda Phaelante, e todo o elenco do TAP. Além de grandes seres humanos, eles são excepcionais no que fazem.” Assim, neste final de ano, o público recifense tem uma excelente oportunidade para conhecer melhor o trabalho desse importante criador do teatro local. Afinal, por meio desses dois novos espetáculos, tão distintos entre si, Carlos Carvalho revela um pouco mais de seus múltiplos talentos e reafirma, de forma madura, a amplitude de seu horizonte artístico. • 2 X Hermilo (Mucurana (15 nov.), O peixe e O Palhaço Jurema e os peixinhos dourados (Dez.) Centro de Pesquisa Teatral do Recife – Travessa do Amorim, 66 – Recife Antigo Sextas e sábados às 20h,e domingos às 19h, Informações: 3083.0600. A Ratoeira, de Agatha Christie – Teatro Valdemar de Oliveira Informações: 3222.1200. Continente novembro 2006
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Imagens: Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana
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O ator João Ferreira, em cena, no espetáculo O Melhor Juiz, o Rei (1968), do grupo Teatro Popular do Nordeste
Memorial do teatro pernambucano O segundo volume do projeto Memórias da Cena Pernambucana relembra com saudade os dias de ribalta, mas se repete ao trazer os velhos chavões e lamúrias dos depoentes Alexandre Figueirôa
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uando comentamos, aqui mesmo, nas páginas da Continente Multicultural, o lançamento do primeiro volume do projeto Memórias da Cena Pernambucana, não nos foi difícil destacar e louvar a importância da iniciativa de Leidson Ferraz, Rodrigo Dourado e Wellington Júnior para a história do teatro no Estado. Todavia, não deixamos de observar, na ocasião, os riscos de tal empreitada pelo que ela tinha de memorialista, podendo, em alguns casos, servir apenas para os depoentes, sem nenhum distanciamento crítico, relembrar com saudade os dias da ribalta. Pois bem, com este segundo livro (Memórias da Cena Pernambucana 02, R$ 10,00, mcenape@uol.com.br) da série tal impressão se renova. Se por um lado, acompanhando os depoimentos dos atores, encenadores e produtores da cena local, temos, mais uma vez, a oportunidade de reviver momentos de real relevância da nossa produção artística, por outro nos deparamos, aqui e acolá, com a repetição de velhos chavões e lamúrias que em nada contribuem para traçar um panorama mais denso do fazer teatral em Pernambuco. É inquestionável o mérito da trajetória de grupos e companhias do quilate do Teatro Popular do Nordeste (TPN), fundado por Hermilo Borba Filho; do Grupo Feira de Teatro Popular de Caruaru, capitaneado por Vital Santos; da Aquarius Produções Artísticas e do Grupo de Teatro Bandepe, e não deixa de ser interessante acompanhar, neste segundo livro, as contribuições que os mesmos nos legaram, seja no conjunto das montagens realizadas ou na experiência pessoal de alguns de seus integrantes. Sem querer desprezar de forma alguma os demais personagens desta vasta história – haja vista que, mesmo em grupos de menor importância, é possível extrair exemplos comoventes de dedicação ao teatro (basta lembrar do talento de Socorro Raposo e Augusta Ferraz) –, em termos de desvendamento ou construção de uma efetiva memória capaz de estabelecer uma linha evolutiva da arte dramática como ela se desdobrou nos palcos, certas lembranças não servem para muita coisa. Elas apenas descortinam um olhar eivado de ressentimentos que não oferecem aos leitores e às novas O espetáculo Auto das Sete Luas de Barro (1979), realizado pelo Grupo Feira de Teatro gerações curiosas em conhecer a produção Popular, de Caruaru local um quadro real dos acontecimentos. Ler sobre a metodologia de trabalho de Hermilo Borba Filho, contada por Leda Alves e analisada por Luiz Maurício Carvalheira, quando eles pontuam o quão superficial é a impressão geral dos que não tiveram a oportunidade de ver o TPN atuando, deixa evidente que temos aí uma contribuição real a esta reconstrução da cena local. Também a consolidação de um projeto de profissionalização para a realização teatral em Pernambuco, observadas por Marcus Vinicius e Paulo de Castro ao relatarem o processo de produção da Aquarius e a conseqüente criação de uma associação de artistas e técnicos em espetáculos, é algo que realmente está revestido de interesse histórico. Contudo, não podemos afirmar o mesmo, por exemplo, quando Moisés Neto, um artista e intelectual atuante até os dias de hoje, queixa-se dos jornalistas recifenses, no início dos anos 90, acusando-os de pseudo-críticos e de cobrarem para as encenações de então um padrão idêntico ao teatro praticado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na verdade, o que os novos críticos do período – não comprometidos com os grupos não aceitavam era o uso repetido da falta de recursos financeiros para justificar espetáculos ruins e montagens medíocres de pseudo-diretores, sobretudo, numa cidade que já tinha consolidado uma cena teatral com repercussão nacional, construída exatamente pelo Teatro do Estudante de Pernambuco, pelo TPN, pelo Teatro de Amadores de Pernambuco e nomes como Clênio Wanderlei, Valdemar de Oliveira, Ariano Suassuna, Barreto Júnior e Hermilo Borba Filho. Apesar desses senões, vale a pena ler este Memórias e aguardar os dois volumes restantes que completarão a série. • Continente novembro 2006
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AGENDA/CÊNICAS Fotos: Divulgação
Calunga Divindade, soberana, feiticeira, mãe e filha, simultaneamente. Condutora de seda e madeira do Maracatu. Um corpo que, atento e cuidadoso com suas influências, seu berço e seus mortos, atribui força maior ao seu espelho, seu reflexo no rio. Essa é a envolvente performance Calunga, um solo de Viviane Madureira (ex-Grial e ex-Balé Popular do Recife) que estréia dia 2 e segue em temporada de quinta a domingo por todo mês de novembro, sempre às 20h no Poço das Artes. Poço das Artes (Rua Antônio Virtrúvio, 113 – Poço da Panela – Recife – PE), Ingresso R$ 3,00 (preço único). Informações: 81. 3266.4633.
Nelson homenageado O 9º Festival Recife de Teatro Nacional faz uma homenagem a Nelson Rodrigues e tem como tema central a dramaturgia moderna
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iálogo entre textos teatrais e debates culturais da contemporaneidade – é o que pretende estabelecer o 9º Festival Recife de Teatro Nacional que tem como homenageado o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues e traz como tema Dramaturgia e Pós-Dramaturgia: Modernidade e Palavra. Além da programação de oficinas e espetáculos locais e de outros Estados, o evento realiza o seminário temático Nelson Rodrigues e a Cultura Brasileira com a participação de vários estudiosos da obra rodriguiana de todo o país. No palco, as atrações são espetáculos como A Falta que nos Move ou Todas as Histórias São Ficção, da Cia. Vértice (RJ), Mire e Veja e Reis de Fumaça, da Cia do Feijão (SP) e Uma Flor de Dama, do Grupo Parque de Teatro (CE). Do cenário local, uma das produções teatrais que pode ser conferida é o espetáculo resultado do Projeto Aprendiz em Cena, do Centro de Formação e Pesquisa das Artes Cênicas Apolo-Hermilo, dirigido por Viviane Bezerra, Hilton Azevedo e Cláudio Lira; é inspirado nas crônicas de Rodrigues, extraídas das obras A Cabra Vadia e Óbvio Ululante e que fará a abertura tradicional do festival no dia 8 no Teatro Hermilo Borba Filho. O Festival acontece entre os dias 8 e 20 de novembro com programação descentralizada pelos teatros e comunidades das regiões político-administrativas do Recife. Informações pelo site: www.recife.pe.gov.br
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Ópera e outros contos Com texto do premiado Newton Moreno, que levou o Shell e o Prêmio APCA de Melhor Autor em 2004, Recife sedia a estréia nacional de Ópera, o mais novo espetáculo do dramaturgo pernambucano. Assumidamente um gay play, é uma adaptação de quatro contos de Moreno que abordam e expõem com humor e sensibilidade questões ligadas à homossexualidade. A peça será encenado como um melodrama; uma micro-ópera pós-moderna, fragmentada e metalingüística. Ópera cumpre temporada de 2 a 5 de novembro e depois volta a estar em cartaz de 23 a 26 do mesmo mês. Volta ao palco durante todo o mês de janeiro, sempre aos sábados e domingos, às 20h no Apolo. Teatro Apolo (Rua do Apolo, 141 – Recife Antigo – Recife – PE). Informações: 81.3224.1114.
Ariano no Rio "O mundo é dos mais espertos". Seguindo esse ditado popular, cinco atores e um músico dividem o palco e dão vida a personagens aventureiros do Sertão, no espetáculo a Inconveniência de Ter Coragem. A magia, farsa, musicalidade e gestos grotescos são os ingredientes que garantem o riso da platéia. No final, a astúcia e a esperteza perdem a supremacia para a inconveniente audácia. Com texto de Ariano Suassuna e direção de Fábio André, conta ainda com o apoio do mamulengueiro Mestre Tonho. Teatro Glauce Rocha (Avenida Rio Branco, 322 – Centro / Rio de Janeiro – RJ) dia 17 de novembro às 19h30. Informações: 21. 2220.0259.
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Imagens: Reprodução
REGISTRO
Darwin no Recife Breve memória pessoal da estadia e da passagem do irritadiço Charles Darwin por Recife e Olinda Fernando Monteiro
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stamos quase no fim de 1882, e ele morreu no quarto mês deste ano – segundo leio num jornal inglês de abril, amassado de muitas mãos. O nome é o mesmo, e a mesma é a profissão, ou a ciência do seu saber, quando aqui esteve. Refiro-me ao insigne Mr. Charles Robert Darwin, que me pagou para alugar e arrear dois burros, de modo a levá-lo até os ermos de Olinda. Ainda era jovem, embora impaciente como um velho ranzinza. Passageiro no HSM Beagle (quer dizer, mais do que passageiro, pois era um estudioso a bordo do veleiro), a mim foi confiado como um sábio de pouca idade, viajando cercado de respeito e tratado com grande deferência pelo capitão Fitzroy. Então, não há como errar: foi ele mesmo que o comandante do navio confiou aos meus cuidados, no passeio de estudos que quis fazer na nossa Província o cientista falecido no meio de tanta controvérsia sobre a sua tal “teoria evolucionista” (também, para mim, escandalosa), acerca da suposta origem comum da humanidade e de animais de quatro patas, pelo que ouço falar neste rincão de Pernambuco – onde desembarcou, acho eu, na segunda semana do agosto chuvoso de 1836.
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Eu não fui sempre este velho (de boa memória, entretanto) que fica encostado no cais, sem trabalho e sem gosto de vê-lo a ser feito, de qualquer jeito, hoje, pelos jovens fortes como eu era, quando podia botar aquele inglês no braço, para que não se sujassem as suas botas finas nos quintais encharcados. Homem curioso e teimoso como ele eu nunca vi. E rico – pelo que me pareceu, tão logo desceu a escada do Beagle, cortesmente escoltado pelo comandante, que me disse: “Fica aos seus cuidados esta cabeça valiosa para o mundo”. Podia ser valiosa, mas era já bastante calva – e queimada do sol no tombadilho do veleiro rápido e afeito aos mares mais distantes do mundo, no qual sua conversa devia ser apreciada à mesa do honorável capitão (um descendente direto do rei Charles II). O Charles que foi entregue a este brasileiro de pés nus, era, entretanto, também aristocrata, neto de médico e, pelo que estou sabendo por via de jornais ingleses – que eu aprendi a ler sem professor, ou tão somente de ir perguntando e catando as palavras – um celebrado (ou celerado?) naturalist. Naturalistas devem ser, suponho, naturalmente malhumorados como aquele inglês – o mais mal-humorado que eu conheci embarcado em navio comum da marinha mercante ou em barco elegante como aquele Beagle (bigle, cão lebreiro, espião), nave de investigação, viajando com o objetivo de aprimorar a cartografia do mundo e obter descrições de recursos naturais aproveitáveis para posterior exploração, se é que me entendem. Hoje estou sabendo com quantos paus se faz uma “jangada” daquelas, à cata de observar não só as coisas da Continente novembro 2006
natureza, “as formações geológicas – conforme me explicou o próprio Darwin – em ilhas e continentes cheios de fósseis e organismos vivos”. Seja como for, ali estava o sujeito seco, um cientista moço e já venerável, naquela altura muito (ilegível, no manuscrito original) pelo fato do barco ter sido obrigado a parar no Recife, na viagem de volta. “Ventos contrários nos impediram de seguir direto para as ilhas de Cabo Verde”, deu-se ao trabalho de me explicar, condescendente debaixo do guarda-sol, a meio caminho de Olinda. Antes de chegar lá nos montes de casario branco, teve a falta de tato de ir falando mal do que lhe fora dado ver, até então: “Achei a cidade detestável por toda parte, essa é a verdade, meu rapaz. As ruas estreitas, malcalçadas e imundas; as casas, altas e lúgubres”... Meu rapaz. Como se ele fosse muito mais velho do que eu! Sujeito pedante. Teria nascido quando? Em 1808? Em 1809? Se muito, em 1810, fazendo as contas do que me contou, naquela ocasião, sobre haver sido mandado para a Universidade de Edinburgh, a fim de estudar medicina, aos 16 anos... “Não concluí o curso – lembro da sua boquinha irônica a recitar mais para si o passado recente de fedelho, depois enviado (também fez questão de informar) para estudar artes na Universidade de Cambridge e, posteriormente, tornar-se um ‘cavalheiro a serviço de Deus’ ”, sabe-se lá o que isso quer dizer, na paróquia reformada dos súditos de Sua Majestade e chefe da Igreja inglesa... “Formei-me há cinco anos (embora eu nada houvesse perguntado), e, aí, embarquei no veleiro, e por isso não vejo a hora de voltar para a Inglaterra”. E olhou-me,
REGISTRO surpreso (acho que estivera divagando para a própria mente, sendo eu um vazio completo à sua frente). “Não sei por que estou a lhe contar tudo isso. Quanta umidade, meu Deus!, e que clima ruim para a saúde”... Eu estava alheio, por assim devo dizer, àquelas queixas, misturadas com as reminiscências (palavra bonita) numa linguagem que o mister tentava fazer compreensível (ele tinha habilidade para línguas), uma grande cabeça e uma grande capacidade de resmungar em muitos idiomas, de maneira que eu também não via a hora de devolvê-lo ao seu navio saudoso das friezas da Europa. O brasileirinho aqui fazia que estava entendendo tudo das palavras ainda agora se desenrolando na minha cabeça, como uma fita vermelha do chapéu de alguma moça, levado pelo vento. E o passeio poderia ter terminado ali, nos mangues que separam o Recife da valorosa Olinda, mas o homem queria porque queria subir lá, a fim de ganhar acesso a alguma colina não cultivada, onde desejava subir para “poder examinar do alto (foi o que disse) a região toda”. Assim, retomamos a marcha debaixo da chuva fina, e foi na velha Olinda que o inglês armou aquela confusão dos diabos, tentando atravessar as hortas de pelo menos duas casas, julgando que era do seu direito de estudioso o acesso livre e imediato pelo meio das propriedades onde chegamos a encontrar até uma jovem casta (eu suponho), bem à vontade, a qual tomou, coitada, um susto daqueles!, o visitante ficando rubro até à raiz dos cabelos (toda uma linha ilegível, no manuscrito original) no meio do que surgiu, portanto, aquele alfacinha da Vila, os bigodes eriçados e enfurecido nos altos tamancos da raiva, por ver o jovem e nervoso Charles Robert ali plantado (...) mais do que nunca irritadiço (sem razão, ao meu ver), a brandir o guarda-chuva no meio das bananeiras molhadas.
“Do que o senhor está rindo?” – ele parou para me perguntar, trocando o tratamento para o tom formal que resolveu me dispensar durante todo o percurso de volta, no lombo dos burrinhos pacientes como esse senhor Mr. Darwin parece que se agora tornou, diante das reações à tal “teoria da Evolução”, exposta no seu livro (que ainda não li, nem quero ler). Sei apenas o que foi escrito em alguns jornais que me chegam, depois de meses e meses lidos e relidos por tripulações como a do New Beagle, sobre as “Espécies”, ele desenvolve “a idéia da variabilidade delas (cito de cabeça ainda boa), a partir da hipótese das atuais terem possuído antepassados comuns, em face das conclusões a que chegou, após longas viagens com a finalidade do exame da ocorrência de processos biológicos semelhantes em áreas geográficas e com seres vivos diferentes” etc. É o que dizem, tão somente (e cá eu não confio em nada que esteja fora do conhecimento que Deus aprova e permite que se espalhe nos quatro cantos da terra cheia de ingleses pacientes e impacientes). De modo que é isto: eu conheci o personagem no centro da discórdia ainda viva, o professor que chamam de “evolucionista”, de boca torcida, digo, ele também, um ricto de desprezo pelas “nações de escravos”, no canto dos lábios secos, talvez virgens de bebida. Não sei se alguém, aqui, ainda se lembra de Charles Robert Darwin como eu me lembro, dele e do capitão (o vice-almirante Fitzroy também era Robert), sendo a diferença maior entre os dois o fino trato deste último, um fidalgo de alma acima de tudo. Ao primeiro, talvez sobrasse o saber – enquanto lhe faltava o tato, na mesma medida, ou, quem sabe, a delicadeza e, com certeza, a paciência. Virtudes que, hoje, são as mais importantes para mim, aos 69 anos, na mesmíssima cidade que o jovem sábio detestou tanto quanto eu detesto a sua teoria da nossa comum (e mais remota) ascendência, macacos me mordam... • Continente novembro 2006
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Faça as malas e vá embora Em 23 palavras, Vargas Llosa deixa transparecer o mal-estar de alguns intelectuais da América do Sul em relação aos paises de origem e culturas
“– N
ão seria o escritor que sou sem os anos que vivi na Europa. Felizmente a vida me premiou convertendo-me num cidadão do mundo.” Não fui eu, e, sim, o peruano Mário Vargas Llosa, quem proclamou essa dívida com a Europa. Estou no reduzido número de escritores que nunca moraram fora de seu país, uma moda crescente nos dias atuais. As duas frases de Llosa não podem ser lidas separadas. Quando ele afirma que se não tivesse vivido na Europa não seria o escritor que é, não nos assegura se é um bom ou mau escritor. Diz apenas que, por felicidade, foi premiado e converteu-se num cidadão do mundo. A segunda frase é conseqüência da primeira, e concluímos que foi graças a ter morado na Europa que Mario Vargas Llosa tornou-se um bom ou mau escritor e um cidadão do mundo. Ele também não afirma que quem não nasceu ou morou na Europa não será um cidadão do mundo. Mas torna claro que, para ele, um peruano, a cidadania e o livre trânsito pelo mundo se dão a partir de sua residência na Europa. Em 23 palavras, Vargas Llosa deixa transparecer o malestar de alguns intelectuais da América do Sul em relação aos países de origem e culturas. Llosa poderia mencionar seus conterrâneos poetas que, mesmo morando no Peru, fazem poesia de alta qualidade. Mas, talvez ele os desconheça. O escritor argentino Julio Cortázar viveu na França e se naturalizou francês. Intelectuais protestaram contra essa deserção, quando a Argentina precisava afirmar seus valores artísticos. Em meio às ditaduras militares que se multiplicavam no nosso continente, uma das formas de resistência era acreditar numa cultura latino-americana própria, um ideário que negava a supremacia dos padrões europeus. O também argentino Jorge Luis Borges negou qualquer contribuição de negros e índios à literatura argentina. Segundo ele, devíamos nossa formação à cultura ocidental européia. Borges residiu na Suíça e na Espanha, e proferiu conferências em universidades de todo o mundo. Será necessária essa permanência longe de casa, para um artista produzir uma obra significativa? O poeta americano Walt Whitman, autor de Folhas de Relva, nunca morou longe dos Estados Unidos. Em 1855, ele escreveu no prefácio da primeira edição das suas Folhas: “A prova de um poeta será que seu país o absorva tão afeiçoadamente quanto ele o absorveu”. Todos lembram a repetida afirmação de que o poeta para cantar o mundo deve primeiro cantar a sua aldeia. O projeto de Whitman era cantar a América e sua gente, e terminou cantando todos Continente novembro 2006
ENTREMEZ
os homens do planeta, “a terra e o mar, os animais, peixes e pássaros, o céu do firmamento e os orbes, as florestas, montanhas e rios...”, porque acreditava num poeta ideal “capaz de incorporar a grandeza, estranheza e diversidade de seu país, de sua gente, de sua natureza.” Segundo Borges, Whitman tomou a infinita decisão de escrever um livro que fosse todos os livros, e ele o fez na perspectiva da América em expansão, acreditando que a matéria da poesia era para todos, e não para poucos sábios. Até mesmo nos indivíduos mais simples e analfabetos reconheceu um frescor e uma inconsciência indescritíveis, capaz de humilhar e ridicularizar o poder do gênio mais nobre e expressivo. Vargas Llosa toca na questão dos paises pobres, com pouco acesso aos bens de cultura, mesmo em tempos globais. Será possível construir uma obra significativa sem girar pelo mundo, como fizeram Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade? Todas as
experiências do homem são de algum modo análogas, esteja onde ele estiver. Num ensaio sobre a narrativa oral, Walter Benjamin classifica os narradores em viajantes e sedentários. Os primeiros percorriam o mundo, e contavam suas histórias quando retornavam para casa. Os segundos ouviam os relatos, e depois de remoê-los como os ruminantes, contavamnos para outros ouvintes, adaptando-os à realidade local. Dessa maneira os conhecimentos se difundiam, viravam patrimônio de todos. A oralidade virou escrita, que virou cinema, que virou televisão, que virou Internet, que virou..., que virou... As mil e uma noites árabes aconteceram no sertão nordestino? Ou foram os Irmãos Grimm que coletaram as suas histórias nas noites sertanejas? Já não é possível responder, tão permeáveis se tornaram as fronteiras. A ponto de eu poder afirmar: felizmente, a vida me premiou com tantas informações que, mesmo não tendo morado na Europa, me converti num cidadão do mundo. • Continente novembro 2006
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HISTÓRIA
O Recife de 1852, por Emil Bauch Importante coleção de vistas coloridas do Recife e Olinda em litografias surge agora em edição conjunta da Companhia Editora de Pernambuco – Cepe – e Instituto Ricardo Brennand Leonardo Dantas Silva
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or volta de 1852, o artista alemão Emil Bauch registrou em 12 magníficas cromolitografias aspectos diversos da paisagem urbana das cidades do Recife e Olinda; esta última, retratada na lâmina de número 12: uma tomada da primitiva capital vista possivelmente da igreja de Nossa Senhora do Monte (séc. 16). Esta importante coleção de vistas coloridas do Recife e Olinda surge agora graças à edição conjunta patrocinada pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe – e Instituto Ricardo Brennand, detentor das lâminas originais, devendo estar à disposição do público interessado neste mês de novembro. O álbum original, produzido no início da segunda metade do século 19, se deve à habilidade do artista Emil Bauch (Hamburgo 1823 – Rio de Janeiro, c. 1890), ao qual se refere José Roberto Teixeira Leite: “Tendo completado sua formação artística entre 1842 e 1844 na Academia de Belas Artes de Munique, Bauch chegou ao Brasil em 1849, residindo inicialmente em Continente novembro 2006
Salvador antes de se transferir para o Recife, cidade na qual se demorou três anos e cujos principais aspectos fixou numa série de esplêndidas cromolitografias executadas na Alemanha por F. Krauss e reunidas no álbum Souvenir de Pernambuco, publicado em 1852. Transferindo-se em seguida ao Rio de Janeiro, nessa cidade abriu um primeiro ateliê em 1857, e em 1869 fundou com Henri Nicolas Vinet uma aula de paisagem que funcionou até 1872. Das Exposições Gerais de Belas Artes participou por três vezes – em 1859, 1860 e 1872 –, conquistando nas duas primeiras medalhas de prata e medalha de ouro, e tendo-lhe sido concedido na última o hábito de Cavaleiro da Ordem da Rosa, o que demonstra o altíssimo conceito em que era tido”. A relação completa do conjunto, denominado Souvenir de Pernambuco, pela ordem numérica, é a seguinte: 1 – Entrada do Porto de Pernambuco; 2 – Rua da Cruz; 3 – Largo do Corpo Santo; 4 – Alfândega; 5 – Rua do Crespo; 6 – Largo do Theatro e Palácio do Governo; 7 – Ponte da Boa Vista; 8 – Largo da Matriz da Boa Vista; 9 – Caes (sic) da Ponte
Reprodução
D'Uchoa; 10 – Ponte do Manguinho; 11 – Ponte Pênsil de Caxangá e 12 – Olinda. As 12 lâminas da coleção têm, em média, 290 x 540 mm que, incluindo as respectivas molduras, apresentamse com 390 x 635 mm. Segundo Gilberto Ferrez, todas elas “foram desenhadas por um hábil artista litógrafo, que transpôs para a pedra desenhos executados com meticulosidade fotográfica, retratando aspectos do Recife, Olinda e arredores. O colorido é delicado e todas as estampas nos encantam à primeira vista”. Depois de confirmar ser as estampas de Emil Bauch impressas na Alemanha, ou na Suíça, observa Ferrez: “O desenho da parte arquitetônica da cidade é fiel e meticuloso, porém de traços duros; já os personagens e animais, que tanto relevo dão a estas estampas, são bem observados e com naturalidade. Uma hipótese explicaria esta diferença de estilos: o pintor teria copiado de daguerreótipo ou fotografias toda parte arquitetônica”. A presença de Emil Bauch no Recife é registrada pelo Diario de Pernambuco, em sua edição de 5 de janeiro de 1852, ao publicar o seguinte anúncio: “Emil Bauch retratista de Hamburgo tem a honra de recomendar-se ao respeitável público desta praça e província, prometendo executar com prontidão e perfeição toda e qualquer obra de arte. Quem quiser utilizar-se dos seus préstimos, é rogado dirigir-se à casa de sua residência, na Rua do Trapiche Novo nº 15, 3º andar”. Por essa época vivia o Recife um notável surto de progresso iniciado no governo de Francisco do Rego
Barros, depois Barão, Visconde e Conde da Boa Vista, que governou Pernambuco entre 1837 e 1844, e teve como diretor de Obras Públicas o engenheiro francês Louis Léger Vauthier, autor do projeto do Teatro de Santa Isabel e de outros edifícios públicos e particularidades. Por tal clima de progresso iniciado no seu governo, mereceu Francisco do Rego Barros, de F. A. Pereira da Costa, o seguinte elogio: “A nenhum outro administrador como Francisco do Rego, deve tanto Pernambuco”. O Recife possuía então uma população estimada em 72.000 habitantes. É desta época o surgimento da Associação Comercial de Pernambuco (1839); a Sociedade de Medicina (1841); o Palácio do Governo (1841); a conclusão das obras do serviço de abastecimento de água da Companhia do Beberibe (1846); inauguração das linhas de transporte urbano para Olinda e Apipucos (1847); criação da Associação dos Artistas Mecânicos e Liberais (1841); inauguração do Teatro de Santa Isabel (1850); do Gabinete Português de Leitura (1851); do Cemitério Público de Santo Amaro (1851); do início das obras da Estrada de Ferro Recife – São Francisco; transferência da Faculdade de Direito de Olinda para o Recife (1853), bem como de outras novidades que antecederam a iluminação pública a gás carbônico (1859); inauguração da Casa de Detenção do Recife (1856); visita da Família Real do Brasil (1859) e outros melhoramentos urbanos que marcaram a segunda metade do século 19, muitos dos quais registrados nas lâminas do álbum de Emil Bauch. • Continente novembro 2006
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TRADIÇÕES
O cordel não é mais o mesmo A literatura de cordel continua viva, adaptando-se às novas formas de mídia e divulgação Astier Basílio com a juventude Fotos: Reprodução
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olhetos com prefácios e apresentações, alguns com temáticas gays, academias de letras de cordel, pelejas feitas através de e-mail, comunidades de desafio no orkut, tudo isto faz parte das mudanças na literatura de cordel do século 21. O cordelista Manuel Monteiro, pernambucano de Bezerros, radicado há décadas em Campina Grande, é da época em que se cantava folheto em feira. Sua vida e obra serão tema de um documentário, em fase de gravação pelo projeto DocTV 2006, da TV Cultura, feito na Paraíba. “Em 1956 eu vendia meus cordéis no Mercado de São José, no Recife. Eu falava para garis, camelôs, carroceiros, pescadores, enfim, para pessoas mais simples”, relembra. Monteiro disse que o máximo que chegou a vender em uma “rodada” foram 60 cordéis. Naquela época, a média de faturamento mensal dele era de mil folhetos. O cordelista considera que hoje se vende muito mais do que no passado. Como exemplo, Monteiro cita que, recentemente, em uma simples exposição feita após um curso sobre cordel vendeu 300 exemplares em apenas uma hora.
cordelista conta que alguns colegas vem seguindo seu exemplo. “Como o cordel está sendo trabalhado em sala de aula, como um título paradidático, tem de vir com aditivos explicativos, pois alguns estudantes não tem nenhuma informação preliminar." Idelette Muzart-Fonseca dos Santos da Universidade Paris X Nanterre, na França, embora confesse não ter visto esse tipo de folhetos, afirma que “o preconceito que ainda está associado à literatura de cordel leva a absurdos deste tipo. Uma vez que livros considerados “sérios” são editados deste modo, certos editores de cordel podem pensar que a “canonização” de uma obra depende de sua apresentação”.
Os "imortais" populares – No lugar do chá das cinco, um prato de baião de dois. É assim que são regadas as reuniões mensais que ocorrem na terceira segundafeira do mês da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, fundada há 18 anos, cuja sede fica no Rio de Janeiro. As normas de funcionamento são comuns a qualquer outra academia. “A ABLC vive dentro dos princípios e moldes da Academia Francesa de Letras e da Academia Brasileira de Letras", destaca o presidente. SePréfacios e o "novo cordel" – Manuel Monteiro gundo Gonçalo Ferreira, a instituição já editou, por conta informa que foi ele quem introduziu há alguns anos a própria, mais de mil títulos, além de manter um site no ar utilização de apresentações e prefácios nos folhetos. O (www.ablc.com.br). Continente novembro 2006
TRADIÇÕES
Comunidade “Desafio de Cordel”, dedicada exclusivamente às pelejas virtuais
Gonçalo relata que existem academias de cordel em outras cidades nordestinas, como Campina Grande, Caruaru, Crato, Fortaleza. Perguntado sobre o fato da existência de uma academia de cordel ser algo de característica elitista, Ferreira diz que a questão da palavra elite é muito própria de cada um. “Não é a elite que está aqui, mas quem alcançou uma qualidade necessária em seu trabalho. Um balconista, se tiver a qualidade necessária, pode assentar em uma cadeira. Nossa academia é uma academia popularíssima.” Manuel Monteiro acredita que quem chama a ABLC de elitista é mal-informado. “As Academias são um sintoma do ‘novo cordel’ ”, opina. Já o pernambucano Jorge Filó mantém uma postura mais crítica em relação ao fenômeno. “Acredito que a arte popular também seja erudita. Quanto à assimilação de alguns aspectos, a destacar os de natureza puramente aristocrática, eu não concordo. Essa coisa de toga e de ser imortal, está ultrapassada até para os eruditos”. De acordo com Idelette Muzart, as academias parecem uma continuação do movimento de associações representativas dos cantadores, que se iniciou enquanto associações profissionais e foi importante a partir dos anos 70 e 80. “Mas se as associações visavam a defesa dos homens e de seus direitos a um pagamento decente, inclusive a aposentadoria, as academias tendem a impor normas e virar órgãos reguladores da profissão, o que representa a pior herança possível da academia criada na França por Richelieu, com este mesmo intuito". Pelejas virtuais e cordel gay – De acordo com Jorge Filó, mais de 10 pelejas escritas a quatro mãos pela internet já foram lançadas no formato impresso, inclusive uma de sua autoria, escrita com o conterrâneo Mauro Machado. Bráulio Tavares e Klévisson Viana foram outros que lançaram mão deste expediente. No site de relacionamentos orkut, existem várias comunidades dedicadas à literatura de cordel. A comunidade “Desafio de Cordel” chama a atenção por ser dedicada exclusivamente às pelejas. Criada pelo poeta e músico de Minas Gerais “Seu” Ribeiro, a comunidade, em 4 meses de criação, já publicou nada menos que 150 desafios virtuais.
O perfil dos cordelistas também mudou muito. Ícone da poesia marginal, o poeta paulistano Glauco Mattoso se enfronhou no universo da poética oral nordestina e passou a ser um cultor contumaz da literatura de cordel. Já publicou, em 2004, Peleja do Ceguinho Glauco com Zezão Pezão, no formato tradicional do cordel, além do livro O Trovador Moteloso (100 leitores, 2003), com glosas fesceninas e pornográficas a motes da tradição nordestina. “Não é preciso ser japonês para fazer haicai, nem inglês pra fazer limerick. Não foi o nordestino que inventou a sextilha nem a décima. Portanto, é questão de domínio técnico somado ao meio cultural, mas não necessariamente o território da seca ou do cangaço. Eu, como sou adepto da técnica, me sinto mais à vontade entre os cordelistas que entre os pedantes subdrummondianos ou entre os robotizados pós-concretos”, avalia. Para Glauco Mattoso, na aparência, a temática do cordel até se moderniza e se urbaniza, mas o espírito da poesia popular continua moralista, enaltecendo a bravura dos “heróis” e censurando o comportamento dos “antiheróis”, entre estes a chamada “bicha escrota”, identificada com o “boiola”, o “baitola” ou o “xibungo”. “Já vi muito abecê das bichas, muito horóscopo das bichas em forma de cordel, mas sempre para achincalhar. Acho que estou inovando, sim, pois assumo meu lado masoquista, como a Cega de Cabaceiras, e me declaro ‘xibunguista’ ”. Ao contrário dos “cabras-machistas”, que se vangloriam de sua virilidade, Glauco Mattoso afirma que se vangloria de sua inferioridade, como xibungo e como cego. “Quer coisa mais politicamente incorreta, mais anti-heróica? Não é o cordelista caricaturando a bicha: é a bicha cordelista dando a cara para pisar!” • Continente novembro 2006
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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
A Revolução Praieira Mirem-se, pois, no exemplo dos revoltosos liberais praieiros – sem derrotismo
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última luta libertária pernambucana apaga 156 velinhas no dia 7 de novembro. Conveniente se faz rememorá-la, não como uma revolução socialista, incentivada, sem querer, pelo arquiteto Louis Léger Vauthier, divulgando o movimento francês, Quarante-huitard (conhecido como inspirador) – do qual foi simpatizante –, mas como um levante legítimo nativista contra o monopólio comercial dos portugueses em nossa terra, desde 1822 ignorando e vilipendiando nossa soberania. Liderados pelas oligarquias conservadoras dos Cavalcanti e dos Rego Barros – cujo maioral era o Conde da Boa Vista (governante e engenheiro responsável pela modernização do Recife em 1840) –, senhores de engenho que traficavam escravos e os massacravam na mão-de-obra canavieira. “Quem não era Cavalcanti era cavalgado”, bradava ironicamente o Padre Carapuceiro, através do seu jornal, acordado pelo Diário Novo, periódico depois arraigadamente favorável aos nativos insurretos, sendo contrariado pelo Diario de Pernambuco, ortodoxo na defesa da igualdade pátria de nossos descobridores. Embora cada qual militasse em seu respectivo campo político, as duas famílias enganavam todo mundo com querelas arrumadas, entendendo-se muito bem nas caladas das noites conjuradas aos maus tratos que dedicavam às camadas bestas, então menos favorecidas. Em 1842, numa cisão pela disputa do poder local, e repelentes ao mando arbitrário dos conservadores, os verdadeiros liberais fundaram o chamado Partido da Praia (evocando a rua da Praia, onde se concentrava a atividade comercial dos portugueses). Os liberais eram os praieiros, e os conservadores, baronistas ou guabirus. Por volta de 1846, pressionado pela bancada liberal pernambucana na Câmara Geral, o governo imperial nomeia o baiano Chichorro da Gama para presidir a Província e combater o “Gótico Castelo” – assim denominado o feudo dos senhores de engenho. Porém, o primeiro ensaio rebelde aconteceu nos dias 26 e 27 de junho de 1848, num confronto eclodido justo na rua da Praia, reduto dos lojistas portugueses, entre os liberais abraçados ao povo, e os detentores do cartel mercantil que tutelava a vida proletária, esta sem dinheiro nem acesso político. Continente novembro 2006
Esse conflito causou muitas vítimas e danos nos estabelecimentos dos mesmos – episódio denominado popularmente de “mata-mata-marinheiro” (vindos do mar, assim eram apelidados os portugueses). O clima, tenso, fez com que inúmeros “patrícios” corressem a abrigar-se em corvetas da marinha imperial surtas no porto – a família de Oliveira Lima (que nem havia nascido), encontrava-se entre os refugiados. E a troca de insultos não parou. Aos sete dias de novembro de 1848, com o ataque invasor dos praieiros ao Engenho Mussupinho, cercanias do Rio Formoso, rebentou para valer a luta armada, seguida da tomada quase simultânea de Goiana, Igarassu, Jaboatão e outras paragens litorâneas pelos liberais, tendo como pontobase as matas de Catucá, nos longes de Beberibe. A 2 de fevereiro de 1849, aporta no Recife o primeiro navio a vapor brasileiro, Dom Affonso, vindo da Europa, despejando tropas fortemente armadas e comandadas pelo general José Joaquim Coelho, com ordens expressas da Corte para aqui escalar e debelar o movimento a todo custo. Esse contingente, juntando-se à cavalaria da milícia local de prontidão, impediu a incursão revoltosa da coluna chefiada por Pedro Ivo, vinda dos Afogados, de ocupar a sede do governo, onde o então presidente Manoel Vieira Tosta coordenava a resistência, dando vivas a D. Pedro II. Essa coluna foi quase toda dizimada pelos fuzileiros navais desembarcados, obrigando os poucos sobreviventes a recuarem para as terras de Água Preta – Pedro Ivo, posteriormente rendido e preso foi recambiado para o Rio de Janeiro, morrendo em 1850, quando, por mar, seguia para a Europa. Foi um massacre total imposto pelas tropas imperiais com centenas de mortos e feridos – somando-se o combate a outra coluna dos irredentos detidos na Soledade, onde o deputado e desembargador, Joaquim Nunes Machado, antes contra a sedição, acabou perdendo a vida atingido por uma bala na cabeça. Este pequeno registro é para que não percamos o bonde do passado. Mirem-se, pois, no exemplo dos revoltosos liberais praieiros – sem derrotismo. •
Ivan Wasth Rodrigues
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