Continente #072 - A voz da periferia

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Reprodução

EDITORIAL

Campanha das Nações Unidas: “Você está tão indiferente que ainda não percebeu que esta foto está de cabeça para baixo?” Anúncio da Leo Burnett Publicidade Ltda.

O discurso novo e contundente da periferia

H

á algo de novo no reino da indústria cultural brasileira. O hip hop, o rap, o funk e seu batidão saltaram das páginas policiais para as capas dos cadernos culturais. Além da música, a literatura e o cinema abrem espaço para o discurso novo e contundente que brota das entranhas da vasta periferia onde vive a maioria dos brasileiros. O fenômeno envolve aspectos complexos, indo além do terreno cultural propriamente dito para adentrar nos campos da ideologia, da sociologia, da economia. E começa a ser estudado em esferas acadêmicas e a ocupar, fragmentariamente, espaços na imprensa “de elite”. O antropólogo Luiz Eduardo Soares, co-autor de Cabeça de Porco com o rapper MV Bill, adverte: “A periferia nos diz: vejam, ouçam, sintam. O abismo que nos divide pode ser atravessado se soubermos inventar as pontes certas; mas sem estas pontes, o abismo pode nos devorar a todos, levando consigo a utopia de um Brasil justo e civilizado”. São questões que provocam discussões candentes, envolvendo estética e política. A antiga e simples “cultura da malandragem”, estudada pelo mestre Antonio Cândido em célebre ensaio, um retrato do Brasil semi-urbano das primeiras décadas do século 20, cedeu lugar a uma realidade multifacetada em que a periferia de hoje ergue sua voz e, o que é mais importante, cria seu próprio espaço de produção de cultura, cujo mercado extrapola os limites territoriais e de classe. Não à toa, a onipresente Rede Globo, sempre antenada com o mercado, ocupa sua grade de programação das tardes dos sábados com o programa Central da Pe-

riferia, apresentado por Regina Casé e tendo como consultor o antropólogo Hermano Vianna, engajado no diálogo entre “o Brasil oficial” e “o Brasil real”. É esse mundo pulsante, de onde se alçam ao “estrelato” nomes como o próprio MV Bill, o escritor paulista Ferréz, a funqueira Tati Quebra-Barraco, a cantora e atriz Negra Li, Marcelo D2, Racionais MC, o tema de capa desta edição. Há 80 anos, um grupo de nordestinos, liderados por Gilberto Freyre, contrapunha ao Movimento de Arte Moderna deflagrado em São Paulo, o Movimento Regionalista. Este é o tema da matéria Especial deste número. Classificado apressadamente, por má fé ou desconhecimento, de retrógrado, na verdade o Regionalismo nordestino não se contrapunha ao Modernismo, apenas não concordava com a postura “futurista” de se destruir o passado, como inútil e impróprio. Serenados os ânimos das primeiras horas de enfrentamento, já é possível ter-se uma leitura serena do movimento, fazendo justiça ao seu projeto civilizatório. Esta edição marca o sexto ano de publicação da Continente Multicultural. Editada pela Cepe – imprensa oficial de Pernambuco, a Revista apoiou todas as manifestações culturais pernambucanas e abriu espaço para a produção contemporânea mundial. Jornalistas e autores locais e de todo o mundo colaboraram para que se atingisse o padrão gráfico e editorial que lhe é característico. A todos, e especialmente aos leitores, nosso muito obrigado. • Continente dezembro 2006

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Divulgação

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CONTEÚDO

JC Imagem

Michael Ackerman/Agência VU/Divulgação

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Agência VU insiste na maturação da fotografia contra a precipitação

12 Bailes funk

representam também um contradiscurso

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CONVERSA

MITOLOGIA

04 Christian Caujolle critica a banalização da imagem e

57 Vercingétorix, herói francês, matriz de Astérix

aponta crise de credibilidade

CAPA 12 A estética contundente da periferia

ARQUITETURA 60 O predomínio do individualismo

CINEMA

16 O dilema imaginário entre arte e crime 18 Estereótipos da favela na literatura 22 O contradiscurso do rap, funk e hip hop 24 Periferia recifense: "Hoje não tem novela"

Kieslowski 72 Por que escritores se dão mal como roteiristas

LITERATURA

CÊNICAS

25 Um olhar sobre a cidade invisível 28 Enfim, as obras completas de Joaquim Cardozo 32 Catrâmbias!, a linguagem inventiva de Evandro Affonso Ferreira 34 Prosa: a mulher predadora 36 A poesia elegante de Antônio Botelho 38 Agenda Livros

76 O Recife produz espetáculos de dança de qualidade 79 Uma análise técnica de Meyerhold e a cena contemporânea 81 Agenda Cênicas

ARTES 46 A obra eloqüente de José Carlos Viana 52 27ª Bienal de São Paulo foca convivência e território 54 A terceira edição da Paralela 56 Agenda Artes

Continente dezembro 2006

68 Lançadas em DVD obras do cinema-poesia de

MÚSICA 84 Chinês Tan Dun estréia nova ópera em Nova York 88 Quinteto Violado completa 35 anos 89 Saiu o Dicionário Houaiss de Música Popular 90 Agenda Música

ESPECIAL 94 O projeto civilizatório do Regionalismo 98 Graciliano Ramos e sua visão do regional 100 Contatos e divergências com o Modernismo


CONTEÚDO

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Divulgação

Roberta Mariz

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José Carlos Viana: figuração expressiva

68 A Fraternidade é Vermelha: último filme de Krzisztof Kieslowski

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

Colunas

CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 11 A importância da palavra escrita

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 40 Os modos de administrar a cultura

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 44 A descoberta da cor ao ar livre

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 Vasilhames de leite de outros tempos

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 Nada há tão execrável como a guerra

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 92 Celebrações natalinas de antigamente

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 102 Grandes nomes de Pernambuco Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente dezembro 2006


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CONVERSA

CHRISTIAN CAUJOLLE

“Devemos parar de falar de foto digital. Isto não existe” Defendendo a impressão do tempo e a maturação no lugar da precipitação das novas tecnologias, o fundador da Agência VU analisa o novo papel da fotografia profissional no mundo da informação Camilo Soares

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elebrando 20 anos da agência francesa VU, definida como uma “agência de fotógrafos”, Christian Caujolle, fundador e diretor artístico, representa hoje uma referência no mundo da fotografia pela exigência gráfica e ética que conseguiu sustentar durante décadas de trabalho, que conta também o período em que foi editor de fotografia no jornal Libération, criado por Jean-Paul Sartre. Ex-aluno de grandes nomes da cultura francesa, como Michel Foucault, Roland Barthes e Pierre Bourdieu, Caujolle faz um retrato da atual banalização do uso da imagem pelos meios de comunicação e de sua conseqüente crise de credibilidade na mídia impressa e on line.

fotos, a Agathe Gaillard, onde ia irregularmente, mas tive a sorte de encontrar grandes fotógrafos em 1976, como Kertesz e Cartier-Bresson. O senhor também foi aluno de personalidades tais quais Michel Foucault, Roland Barthes e Pierre Bourdieu. Foram três professores excepcionais. Roland Barthes, encontrei-o em seus seminários. Cheguei a fazer suas fichas de leitura quando ele trabalhava sobre a fotografia. Michel Foucault foi meu professor em Vincennes. Como nós dois estávamos ligados ao cotidiano Libération, viramos amigos, muito ligados até o fim. Ele escreveu muito pouco sobre fotografia, mas são textos indispensáveis pra alguém que quer compreender alguma coisa de fotografia. Pierre Bourdieu, eu o conheci depois da Saint Cloud, quando comecei uma tese de doutorado com ele sobre a prática familiar da fotografia. Mas não dei seguida. Entendi que não era para mim. Parti para o Libération. Tive sorte que não havia ninguém que escrevesse sobre fotografia. Virei jornalista. Em 81, fui finalmente engajado em tempo integral no Libération. Normalmente, deveria trabalhar meio expediente escrevendo no caderno cultural e meio no serviço de fotografia. No final, fazia dois tempos integrais.

O senhor foi aluno da École Normale Supérieure de Saint-C Cloud. Em vez de seguir carreira acadêmica, fez nome trabalhando com editoração de fotografia. A fotografia entrou na minha vida através da mídia impressa. Foi importante, também, quando era estudante, o encontro com o fotógrafo Jean Dieuzaide da geração de 50. Eu o conheci por acaso. Um professor passou, como exercício, fazer um perfil de alguém e eu o escolhi. Viramos amigos depois. Foi em sua casa que comecei a ver fotografias enquadradas que não eram fotos de família. Vi, por exemplo, o Paris à noite de O contato com eles deixou marcas em seu trabalho? Brassai. Tinha 19 anos, a fotografia era até então para mim apenas reproduções em cores de paisagens. Claro que sim. Os três eram bem diferentes, seja na meQuando cheguei a Paris, havia apenas uma galeria de todologia, seja nas concepções. Em comum, o interesse Continente dezembro 2006


pelos signos, coisas significativas na sociedade, podendo ser ou não visuais. A única coisa importante era a produção de significado. Isso que dizer um repúdio ao decorativo. Há também os desdobramentos sociais e políticos em torno da imagem, o que é hoje mais atual do que era na época, há 30 anos. Evidentemente, não é uma influência mecânica, mas é verdade que eu tenho tendência a desconfiar de qualquer imagem demasiadamente sedutora. Eu tento sempre questionar sobre o significado, o modo de utilização, das conseqüências dessa utilização no cotidiano. Mesmo o formato da impressão e a moldura de uma fotografia devem ser discutidos, pois provocam significados. Acho essa discussão extremamente necessária. Isso vem de minha formação. A revista Life recusou as fotos de André Kertesz, alegando que elas falavam muito. Essa ainda é uma orientação preponderante? Escutamos, ainda, clientes que dizem “é muito bonito, mas isso é arte, não é para a imprensa. Nosso leitor não entenderá”. É um grave desprezo pelo leitor. Hoje, há uma tendência global, que é acentuada por grandes estruturas e pelo digital, de haver um repertório de imagens mais ou menos equivalente na maioria das publi-

cações. Isso é o que Bourdieu chamava de imagem média. A seleção feita nos bancos de imagem é feita de forma que um maior número de pessoas possa utilizá-la. Assim, precisa-se de uma foto que não seja muito isso nem muito aquilo. Não pode, por exemplo, ser fora de foco. A cor deve ser realista... Antes de tudo, deve ser em cores e não em preto-eebranco. Sim, tem que ser sobretudo em cores. Mas conseguimos convencer um certo número de publicações. Há algumas que considero muito boas na exigência. O novo Time Magazine é excelente, o Newsweek é correto. Há revistas como Mare, na Alemanha, especialista em mar, de grande exigência. Télérama, na França. Na Itália, os suplementos de jornais são de grande qualidade. Na Polônia, o Gazeta, em Moscou, o UniOP, na Espanha, La Vanguardia. Mas são cada vez mais raros. De qualquer forma, não alimento ilusões. Nós não temos a vocação de ser majoritários. No entanto, acho que temos o dever de estar sempre alertas para identificar novas escrituras. Temos que continuar a explicar que o que pode salvar a mídia impressa, num mundo onde a televisão e a internet são os vetores principais de informação, é o tipo de imagem Continente dezembro 2006


CONVERSA

Fotos: Agência VU/Divulgação

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Denis Darzacq observa o lugar do homem na cidade

Cor e cidade são matérias para o fotógrafo chinês Aniu

Como competir com a digital? utilizada. Para que eu compre o Libération de manhã é A digital se tornou uma possibilidade suplementar de necessário que eu encontre nele imagens diferentes das escolha para o fotógrafo. Quando um profissional parte quais vi na véspera na TV ou na internet. hoje para o Líbano e decide trabalhar em digital é para Na era da tecnologia digital, quando tudo pode ser transmitir o mais rápido possível e, de certa maneira, lumodificado, retocado, traficado, qual é o papel da foto- tar contra a televisão. Aquele que vai continuar a trabagrafia nos meios de informação? lhar com o filme, parte com um projeto a longo prazo. Primeiramente, acho que devemos parar de falar de Penso em Stanley Greene, que trabalhou 10 anos na fotografia digital. Isto não existe. Há de um lado a fo- Tchetchênia. Acho que a fotografia terá sempre uma tografia, técnica inventada no século 19, e de outro uma função. Continuamos a fazer imagens. Mas é verdade nova tecnologia, nem um pouco baseada nos princípios que os 170 anos, nos quais a fotografia foi dominante, da fotografia, que também produz imagens digitais. Essa acabaram. tecnologia está em sintonia com a fascinação pela veloApesar da tendência do mercado pela velocidade do cidade no mundo contemporâneo. Isso permite aos amadores e profissionais difundir suas imagens de forma rá- digital, a Agência VU propõe uma fotografia assombrada pela memória. Como traduzir isso esteticamente? pida e eficaz. Se olharmos a indústria da informação, saberemos O senhor acha que a fotografia clássica, com filmes de que existem grandes estruturas como a AFP, a AF, a sais de prata, vai desaparecer? Reuters, que trabalham em digital, que têm muitos Mesmo que o digital tenha se tornado a tecnologia bons fotógrafos e que transmitem imediatamente. Saque produz hoje o maior número de imagens, não é por bemos desde o começo que, se fizermos a mesma coisa, isso que a fotografia vai desaparecer. Quando a fotografia já perdemos, pois eles têm maiores recursos, vão mais apareceu, a pintura não desapareceu. Algumas profissões rápido e possuem sistemas de assinaturas com jornais. da pintura desapareceram, como o miniaturista, que fazia Se um de nossos fotógrafos quer ir a Beirute, pergunretratos, ou os pintores históricos. Alguns setores da tamo-nos sempre: para quê? Aí é que definimos a questão de significados e afirmamos pontos de vista. fotografia também são questionados hoje pelo digital. Continente dezembro 2006


Stanley Greene aplica memórias do Vietnã na Tchetchênia

José Ramón Bas utiliza a fotografia como suporte de expressão plástica

Quando Stanley Greene foi para o Iraque, levou consigo lembranças da Guerra do Vietnã. Encontramos esses traços em suas fotos sobre o novo conflito. Talvez seja porque a política americana não evoluiu muito desde então. Penso que a fotografia terá sempre a função de memória e de ponto de vista. Outro conceito que a Agência VU defende é que a fotografia não é uma linguagem universal. Não é uma posição contraditória para uma agência internacional de fotografia? A fotografia não é universal por uma razão extremamente simples, é um tipo de imagem pouco precisa. Esquecemos que a fotografia é apenas formas organizadas no interior de um quadro retangular ou quadrado. Se eu mostro uma foto de certa fruta de uma vila do Laos sem dizer o que é, as pessoas não saberão o que estão vendo. É preciso explicar, pois eles nunca viram aquela forma. A mesma coisa com personagens. Se eu mostro para um francês o retrato do ministro da Justiça sueco e não digo quem é, ninguém vai saber de quem se trata, e não é a foto que vai dizer. Por isso, não é uma linguagem universal. O que ela pode ter de universal não é na transmissão de uma informação, mas na transmissão de certas emoções ligadas à estética. Mesmo assim, há coisas que culturalmente são bem específicas e diferentes

na cultura asiática, africana, latino-americana ou mesmo no interior da Europa. As percepções não serão as mesmas. Acho que todo mundo pode achar bela uma imagem, mas não é isso que a faz uma linguagem. A universalidade da fotografia está ligada a outra idéia falsa, de que a fotografia é a verdade. São dois erros fundamentais de leitura impostos pela forma na qual a imprensa utiliza as imagens. Qual a importância do estilo? O perigo é se parodiar a si mesmo. Quando não se imita os outros. Peguemos alguém que é o contrário do estilista, Kertesz, que foi o melhor. Ele explorou todas as direções. Quando ele encontrava algo, partia logo para outra coisa. Cartier-Bresson tinha uma admiração profunda por ele. Efetivamente, o estilo geométrico de Bresson era pertinente na época em que era publicado, pois era diferente dos outros fotógrafos. Hoje, devido à quantidade de imagens em circulação, penso que mais importante do que o estilo é a adequação à maneira de tratar o tema, que pode ir da atualidade até coisas extremamente íntimas. É como na pintura. Já não se pode mais falar de estilo, mas de projeto. Já era o caso de Picasso. Se olharmos Picasso do começo até o fim, não há apenas um estilo, há uma pesquisa que evolui. Por isso é que falamos em fases diversas, o que não impede que Picasso seja perfeitamente reconhecível. • Continente dezembro 2006


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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert

Diretor Industrial Samuel Mudo

Continente

Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Jaíne Cintra e Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Paulo de Tarcio Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Dezembro | 2006 Ano 06 Capa: Renata Mello / Tyba

Colaboradores desta edição: ADRIANA

DE

FÁTIMA BARBOSA ARAÚJO é doutoranda em Teoria da Literatura pela

UFRJ. ALEXANDRE BANDEIRA é jornalista. ALEXANDRE FIGUERÔA é jornalista. ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA é professor do Departamento de Letras da UFPE. CAMILO SOARES é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS HAAG é jornalista. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista. DANIEL PIZA é jornalista. EMANUEL ARAÚJO é artista plástico e diretor do Museu Afro Brasil. FELLIPE

DE

ANDRADE ABREU

E

LIMA é professor, tradutor, escritor, arquiteto e

urbanista e mestre em Arquitetura e Urbanismo. FERNANDO MONTEIRO é escritor autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros, e cineasta. GUILHERME MEDEIROS é professor assistente da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Brasil) e doutorando na Université Blaise Pascal – ClermontFerrand II (França). IVANA BENTES é pesquisadora de comunicação e novas mídias, professora do Programa de Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ e finaliza a pesquisa “Imagens das Favelas no Audiovisual Contemporâneo”. KÁTIA AUGUSTA MACIEL é jornalista e estuda cinema em Londres. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO COSTA é jornalista. MARIA

DO

AMPARO PESSOA FERRAZ é escritora associada da União Brasileira de

Escritores e mestre em História pela UFPE. RENATO L é jornalista.

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente dezembro 2006


CARTAS Nível internacional Parabéns pelo alto nível da Revista Continente. É minha primeira leitura todas as vezes que vou ao Recife. A Revista tem nível internacional e bem reflete o alto nível cultural da terra pernambucana. Nilo Roberto Aragão Santos, Brasília – DF Cena Alexandre Figuerôa gosta de polêmicas e isso é bom. Mas vou me lembrar de esquecer o nome dele, quando um dia contar a história da imprensa em Pernambuco. Não vai fazer a mínima falta. Não é isso que ele insinua? Não sou amigo e nem conheço os autores da série Cenas Pernambucanas, mas como diretor do Instituto Memorial Pernambuco, preocupado em preservar e registrar a nossa história, considero importante tais iniciativas, embora discorde do método utilizado pelos autores, deixando muita gente de fora. Se tal registro não fosse feito (e espero que a série continue) ficaríamos sem registro. Povo que não tem memória, não tem futuro. Figuerôa é um bom jornalista, mas agora deu um fora: dizer que o livro, por ser memorialista, só serve aos autores. Não. Serve para mim, que não participei daqueles processos e para meus colegas e outras gerações. Antônio Gomes, Recife – PE Turismo Quero parabenizá-los pelo conteúdo da Revista Continente Turismo, edição nº1,porque mostra a beleza que Pernambuco tem, suas belezas naturais que atraem qualquer turista que vem visitar Pernambuco, parabéns! Micheline Gregório dos Santos, Recife – PE

Identidade

Pós-mangue Não entendi. Como alguém pode falar de Mangue ou Pós-mangue, quando o termo é relacionado à música produzida em Pernambuco, sem citar a banda Cordel do Fogo Encantado, que apesar de sertaneja, transpira pernambucanidade e universalidade, em sua música, sendo assim, do sertão, do mangue, do mundo? Jorge Filó, Recife – PE

Arte argentina Muito bonita a matéria sobre arte argentina de Mariana Camarotti. Interessante perceber como foi a produção artística desse país durante o período ditatorial. A arte pode e deve ser vista dentro do universo político. O que produzimos reflete sempre, direta ou indiretamente, aquilo que produzimos. Parabéns! José Augusto, Natal – RN

O encenador Vocês me trouxeram uma grata surpresa na edição de novembro. Saber que Carlos Carvalho vai abrir seu espaço, deixou-me feliz. As artes cênicas em Pernambuco precisam de iniciativas como essa para movimentar a cena local. Para abrir esse belo projeto, na-da melhor, realmente, que adaptar obras do nosso grande Hermilo Borba Filho. A ansiedade já me consome. Sorte ao espaço e a Carlos Carvalho. Que os pro dutores culturais da cidade tomem essa iniciativa como exemplo. Cristiano Bruno, Recife – PE

Grande Sertão A melhor edição da Continente Documento ficou realmente impecável. Destaco o extenso texto de Lourival Holanda. Um trabalho que nos faz lembrar que os cadernos literários saem apenas uma vez por semana e em alguns jornais do país. E mesmo assim não dão espaço para grandes análises de várias páginas. Ricardo Paiva, Recife – PE

A morte em imagens Bastante pertinente o ensaio fotográfico de Mônica Vasconcelos, com imagens de cemitérios. É importante enxergar a beleza que os elementos da morte podem carregar. Não é sem razão que os cemitérios de Paris são tão visitados por turistas. Em Buenos Aires, milhares de pessoas visitam o túmulo da imortal Evita. Precisamos entender que a morte não está eternamente ligada ao feio. O ensaio demonstra que unir morte e beleza é mais que possível. Judite Rocha, João Pessoa – PB

Onde? Séria, diversificada, equilibrada editorialmente, a Revista Continente Multicultural conseguiu, suponho, ir além de sua proposta inicial. Vocês estão de parabéns mesmo pelo belo trabalho. Há, no entanto, um problema: não consigo achar um exemplar da Multicultural em São Paulo. Procuro nas melhores e mais bem-estruturadas bancas da avenida Paulista e, infelizmente, nada. Como e onde achar por essas bandas de cá, essa que, hoje, talvez seja a melhor Revista cultural do país? Marcos Rocha Andrade, Guarulhos – SP Resposta Em São Paulo, a Revista Contiente Multicultural está à venda na Fnac da Avenida Paulista, nº 901.

Mais uma vez a Continente Multicultural me surpreende. Caminhando pela cidade dou de cara com a edição de outubro que traz na capa a questão da identidade no mundo contemporâneo. O que para alguns pode parecer um tema velho, para mim parece um tema completamente atual. Hoje, boa parte dos questionamentos giram em torno da questão identitária. Parabéns à Revista por acertar o foco mais uma vez, publicando artigos que tratam desse problema em vários universos. Clara Ribeiro, Recife – PE

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

Continente Continente dezembro junho 2006 2003

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CONTRAPONTO 11 Carlos Alberto Fernandes

Verba volant scripta manent* A importância da permanência da escrita

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enhuma cultura ou ciência ou arte ou pensamento moderno pode ser separado, quando mais significativo, de revistas que os anunciem, revelem, registrem, comentem, como órgãos intermediários, que são, entre o jornal e o livro. A importância da revista como expressão e veículo, e não apenas antecipação, de renovação de cultura – inovação artística ou literária ou científica – é de importância agora imensa. Mas vem de longe. Quem pode separar o desenvolvimento da cultura brasileira das revistas em que escreveram Machado de Assis, Castro Alves, Taunay, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Romero, Eduardo Prado, João Ribeiro, Clovis Bevilacqua? Grande parte do desenvolvimento cultural do Rio, ou de S. Paulo ou do Recife, em particular, do Brasil, em geral, está em revistas. (...). Quem considerar luxo dispensável ler revistas de cultura corre o risco de tornar-se inatual. A revista – vá o acacianismo – se antecipa cada vez mais ao livro. O desenvolvimento da cultura – filosófica, sociológica, científica, literária, artística –, sua dinâmica, sua atualização, suas antecipações, seus experimentos, seus arrojos projetados sobre o futuro, diga-se, mais uma vez, que estão, há mais de século, ligados na Europa, como nas Américas, a revistas. Mesmo as efêmeras têm sido atuantes. Mesmo as destinadas a pequenos públicos, dos chamados de elite, têm sido consideravelmente influentes. A revista Kosmos não pode ser esquecida dentre as que contribuiram para o desenvolvimento da cultura brasileira. Nem podem ser esquecidas a Revista Nova (São Paulo), a Província do Rio Grande (Porto Alegre), a Revista do Nordeste (Recife), Klaxon. Várias outras revistas dos mais diferentes feitios deveriam ser recordadas. Revistas católicas, revistas espíritas, revistas políticas, revistas de províncias, revistas da corte e depois da capital federal. Revistas comovedoras, revistas insurgentes, revistas comerciárias, revistas artísticas, revistas de mestres, revistas de estudantes, revistas literárias, revistas científicas, revistas técnicas, revistas efêmeras, revistas duradouras. Várias delas concorreram para acentuar tendências, vindas de várias fontes, na cultura e na vida dos brasileiros. Algumas surgiram, entretanto, para contrariar tais tendências. Ou para alterá-las. Essas revistas não existiram em vão

ou no vácuo. Corresponderam a anseios, a necessidades, a exigências, a urgências da gente brasileira: de grupos ou de subgrupos dessa gente. Sua história é parte da história intelectual, em particular, e parte da história social, em geral, dos brasileiros. Há revistas que se extinguem – ou perdem o prestígio –, constituindo-se suas coleções em verdadeiras preciosidades. A já referida Revista Brasileira, da fase José Veríssimo, é uma delas. Atlantic Montly é outro exemplo. La Revue, de Jean Finot, é ainda outro exemplo. Mais dentre as brasileiras: a Revista da Língua Portuguesa. A Revista Americana. A dedicada a assuntos internacionais sob a direção de Osvaldo Trigueiro. Isto sem nos esquecermos da famosa Review of Reviews, de Londres, de que o Barão do Rio Branco se serviu para, através de artigo assinado pelo próprio Steal, fazer propaganda da atuação de Ruy Barbosa em Haya; ou de La Chronique Medicale, de Paris – um primor no gênero – ou da revista do Museu Goeldi, na fase magnífica do próprio Goeldi, diretor do famoso museu brasileiro. Preciosidade é também a já referida Revista de Portugal da fase de Eça. Entretanto, dou este testemunho: conhecidas que são minhas atitudes e idéias – as quais me tornam inclassificável como liberalóide, mas também como reacionário –, fui já convidado para colaborar na revista marxista em língua inglesa Science and Society. Minha colaboração foi publicada tal como a enviei. E não tardaram seus diretores a solicitarem de mim nova colaboração. O que me parece um bom exemplo, da parte de diretores de revistas de hoje a diretores de jornais e a diretores de casas editoras do tipo mesquinhamento intolerante a que acabei de referir-me." Utilizamos esses fragmentos – escritos por Gilberto Freyre em Brasil Açucareiro, Rio de Janeiro, 1973, em comemoração ao sexto ano de vida da nossa Revista, pois, “As palavras voam, a escrita permanece”. • Continente dezembro 2006


CAPA

Pio Figueirôa

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Mano Brown, dos Racionais MC’s: “Seu filho me imita”

A CULTURA


CAPA

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Manifestações da periferia – como o rap, o funk e o hip hop – invadem o “centro”, questionando a própria relação entre essas esferas sociais e levantam complexas questões estéticas, culturais e políticas Carlos Haag

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m 2004, Chico Buarque de Holanda, entusiasmado com a vitória de seu candidato, afirmava: “O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Outros podiam não conhecer, mas ele sabe exatamente o que é aquilo, não há de esquecer. O Lula não tem o direito de ignorar isso”. O presidente reeleito pode até ter, ao longo do seu primeiro mandato, se esquecido da voz do rap, mas, hoje, esse conhecimento não é mais um privilégio seu. “A novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. Ela se cansou de esperar a oportunidade, que nunca viria, de fora, do centro. Antes, os políticos diziam: ‘vamos levar cultura para a favela’. Agora, a favela responde: ‘Qualé, mané! O que não falta aqui é cultura. Olha só o que o mundo tem que aprender com a gente!”, analisa o antropólogo Hermano Vianna. Os “mapas”, hoje, mostram a periferia no centro. “A periferia nos diz: vejam, ouçam, sintam. O abismo que nos divide pode ser atravessado, se soubermos inventar as pontes certas; mas sem estas pontes, o abismo pode nos devorar a todos, levando consigo a utopia de um Brasil justo e civilizado”, concorda o também antropólogo e ex-ssecretário Nacional da Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares. “A estética da periferia, digna deste nome, se realiza como resistência à degradação e à desumanização, cuja fonte mais voraz é a violência, tanto a do Estado, via polícias, quanto a praticada pelos traficantes, que impõem seu despotismo obscurantista”, completa o coautor de Cabeça de Porco, ao lado do rapper MV Bill. Já não é mais novidade que o hip hop, o rap, o funk e seu batidão, saltaram das páginas policiais para as capas dos cadernos culturais. O que antes era “entreouvido” no quarto da empregada pelos patrões, freqüenta o ipod dos filhos e, pasmem, é atração para toda a família nas tardes de sábado da Rede Globo no programa Central da Periferia, apresentado por Regina Casé, que apresenta, além do funk carioca, o forró eletrônico cearense, o tecnobrega paraense, o arrocha baiano, o lambadão cuiabano e uma impensável tchê music gaúcha.

DA PERIFERIA


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Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo (1960)

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O antropólogo Luiz Eduardo Soares: “O abismo pode nos devorar”

Para além do biquinho preconceituoso de alguns críticos musicais, a estética da periferia não assusta mais ninguém e há mesmo discussões sobre os limites da exposição excessiva que podem pôr a perder a força dessas manifestações, produzidas na tal “periferia” para a periferia, sem passar pelo centro. Nesse caso, não há como se falar em embromação da indústria cultural. O que se coloca em questão, aliás, é a força independente dessa cultura antes vista como marginal. “É a possibilidade de existência de grandes fenômenos de massa fora da cultura de massa oficial. Com a nova realidade tecnológica, a produção de discos, por exemplo, é facilitada. O sujeito sai vendendo CD num carrinho de pipoca. Antes, não havia como se fazer sucesso nacional sem a intermediação da gravadora tradicional, da rádio, do estar na mídia de massa”, explica Vianna. “No Nordeste, há uma banda, Limão com Mel, que tem um DVD feito em película, com eles chegando de helicóptero etc. E tudo circula em camelôs. Se a televisão demorar para se dar conta disso, talvez se descole da realidade. Eu não vejo na TV aberta, que se elitizou, as coisas que vejo na rua.” Continente dezembro 2006

O mais surpreendente é o pouco tempo de vida desse fenômeno que se espalhou não apenas pelos nossos ouvidos, mas pelo “dialeto” falado pelos jovens, por suas roupas e “atitudes”. “Problemas com a escola eu tenho mil/ é inacreditável, mas seu filho me imita./ No meio de vocês ele é o mais esperto/ ginga e fala gíria/ Esse não é mais seu, tomei, cê nem viu/ entrei pelo seu rádio, fiuuu...subiu”, como resumiu Mano Brown, do Racionais MC's. Para o pesquisador Micael Herschmann, do Núcleo de Estudos e Projetos em Comunicação da UFRJ, foi a histeria da mídia sobre os “arrastões” cariocas de 1992 que despertou na sociedade, em especial nos jovens, o desejo de conhecer a periferia da qual só conheciam estereótipos negativos. “A partir daquele momento, o hip hop e o funk adquirem uma nova dimensão, colocando em discussão o “lugar do pobre” no debate intelectual e cultural do país”, explica o professor. Já em 1960, Carolina de Jesus, em Quarto de Despejo, avisava: “Eu sei que as pessoas não gostam da favela, mas precisam dela.” “Funk, hip hop e outras manifestações, apesar das diferenças, são redes sociais que promovem, pela esfera cultu-


CAPA implicações éticas de se falar em nome daqueles que sofrem, em vez de dar condições para que eles falem. Eles, lembremos, são mais de 80 milhões de brasileiros. A questão central, o maior dilema, da estética da periferia é justamente a visibilidade dessa massa, ao mesmo tempo imensa e “invisível” dos centros urbanos. “Tornarse visível é importante, mas essa visibilidade deve se dar no contexto do discurso que se deseja propor. Já que me tornei uma figura famosa, passei a ser uma referência, minhas palavras não me pertencem, mas têm uma repercussão coletiva”, reconhece o rapper. Assim, é preciso tomar cuidado com o tom paternalista da mídia, o olhar estereotipado que os veículos teimam em ter sobre as manifestações da periferia, bem como se precaver contra a superexposição, que leva à vulgarização e à tão criticada “adequação” da rebeldia que alguns consideram um preço justo a pagar pelo espaço conseguido nas televisões e nas revistas. “Só fui ao Faustão depois que me garantiram 45 minutos no ar para falar e não só cantar. Não podia recusar a chance de falar com 90 milhões de brasileiros. Não se trata, portanto, de ir contra a mídia, mas de negociar com ela, questionando os espaços que nos são dados tradicionalmente”, avisa MV Bill. Deixar de ser “invisível” ganha sentido, quando se trata da defesa da construção de uma imagem da periferia pela própria: a favela vista de dentro da favela, sem efeitos especiais.

O rapper MV Bill usou o Programa do Faustão como tribuna

Domingos Peixoto/ Ag. O Globo

ral, formas não tradicionais de fazer política. Trazem indícios de uma vitalidade social, sinalizando a emergência de um cidadão que está menos mobilizado pelas formas tradicionais de representação política e mais pelo consumo de expressões culturais e de espetáculos veiculados nos meios eletrônicos”, analisa Herschmann. Que não se confunda esse prazer estético com alienação: MV Bill não levou Lula para o morro para conversar com a comunidade sobre seus problemas? “É como se acompanhássemos, no imaginário social, a desfiguração social da sociedade bem-humorada, estabelecendo um novo retrato do Brasil, marcado pela pluralidade e por fraturas sociais profundas”, avalia o pesquisador da UFRJ. É a “dialética da marginalidade” em substituição à “dialética da malandragem”, de Antonio Candido. Se o malandro conseguia, com sua ginga, usar suas habilidades para superar diversidades e, no fim, negociar seu pertencimento à sociedade, o marginalizado não tem essa opção. “A ‘dialética da marginalidade’ representa essa nova forma de relação entre as classes sociais. Não se trata mais de reconciliar diferenças, mas de ressaltá-las, recusando-se a aceitar a promessa improvável do acordo entre o pequeno círculo de privilegiados e o universo em expansão dos excluídos”, observa o professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, João César de Castro Rocha, que adverte para as

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CAPA E sem censuras. “O ataque contínuo isolou o funk cada vez mais para dentro das favelas, para o apoio dos movimentos armados dos traficantes. Foi literalmente isto: o poder público, a mídia e os entendidos em cultura popular fizeram todo o possível para entregar o ouro (o ouro cultural feito nas favelas) para o bandido. A música teria continuado independente, se o asfalto, por puro preconceito contra o ‘som de pretos e pobres’ não tivesse tentado destruir a cultura que os favelados estavam criando por eles mesmos”, acusa Vianna. “Agora todo mundo se espanta com os funks proibidões, que fazem apologia do crime. É a colheita do que foi plantado”, completa. “Nem sempre a periferia é o lugar da verdade, da inovação, da libertação. Às vezes, é o espaço da reprodução acrítica dos modismos vendidos no mercado cultural. Portanto, evitemos idealizações, que são a contrapartida dos preconceitos. É preciso

separar o que é o joio-lixo cultural do que é o trigo da criatividade. Porque a real estética da periferia é plural e heterogênea e, mesmo variando a qualidade das vozes e dos gestos, há aí um tesouro precioso e vivo”, adverte Luiz Eduardo Soares. Colocar as mãos nele, porém, só nos termos da comunidade, defende MV Bill, para quem só é válida a visibilidade cultural adquirida, a inclusão social conquistada na marra com o talento, e não a ganha em troca de concessões. “Sem que o centro nem notasse, a periferia não esperou que lhe apresentassem as novidades, mas inventou novas culturas que podem vir a indicar caminhos para o futuro do centro, em vez do pânico diante do crescimento incontrolável da periferia. Afinal, não é mais o centro que controla a periferia, mas ela que, agora, inclui o centro que, excluído da festa, se transforma em periferia da periferia”, explica Vianna. Difícil vencer velhos hábitos, por pior que

o crime da arte contra o crime Argumento de que mais vale um favelado cantando música ruim do que roubando carros é contestado Alexandre Bandeira

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e todos os argumentos em favor do desenvolvi- jovens das periferias são criminosos em potencial. Os mento da arte nas periferias, um é particularmente fatos invalidam a idéia. “O tráfico nas favelas cariocas é uma minoria. Hoje em Vigário Geral deve haver 30 insidioso: que a arte é a melhor arma contra o crime. A premissa do argumento é aparentemente sólida. pessoas no tráfico, ou menos”, diz o antropólogo Num ambiente sem segurança, sem educação de quali- Hermano Vianna. É o mesmo que afirma Sueli de Lima, dade e sem perspectiva de crescimento econômico, o jo- arte-eeducadora que montou o projeto Casa das Artes, na vem vê no crime o único meio de mudar logo de vida, de Mangueira e na Vila Isabel, quando diz que não se sente obter os bens materiais com os quais sonha, de outra for- competindo com o crime. “ (O tráfico) é um mundo ma inatingíveis. Portanto, escolas de cinema, de música, sedutor, onde se ganha dinheiro, mas somente quem não de circo e de fotografia nas comunidades mais pobres tem nenhuma alternativa vai querer entrar”, diz ela. O contribuem para oferecer uma alternativa e para “abrir a que vale dizer: a miséria extrema pode levar alguém ao cabeça” do jovem, que, ilustrado, passa a reconhecer ou- crime; apenas viver numa comunidade pobre, não. “Parece que a pessoa da periferia é uma pessoa com tros valores além do consumismo fugaz. O primeiro perigo do raciocínio está no falso necessidades especiais”, diz Hermano Vianna. "Ela determinismo que ele pode suscitar: deixados à mercê, os precisa de oportunidades, mas da mesma forma que um


CAPA Avançado de Estudos Culturais da UFRJ. Ou, nas palavras de Nega Gizza, rapper irmã de MV Bill: “A participação numa rede de rap mudou não apenas a minha percepção do funcionamento da sociedade, como também o lugar que passei a ocupar nas relações com o poder a partir do reconhecimento do meu trabalho”. Cada conquista, porém, traz novos desafios, nota Ilana. “Da ocupação do mercado de consumo à capacidade de influir em escala no processo de inclusão social; do domínio efetivo dos espaços públicos à consolidação de estruturas que não sejam erigidas em torno de interesses personalistas; da necessidade de uma afirmação transformadora baseada em estratégias não assistencialistas à democratização do acesso às fontes de recursos públicos e privados.” Daí, não é só Lula que não tem o direito de ignorar a voz do rap, do funk, do hip hop. Os ouvidos precisam estar todos abertos. •

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eles seja. “É comum se falar em cultura como arte e acúmulo de conhecimento, enquanto o significado antropológico da palavra é ser sinônimo dos modos de vida de um povo e, portanto, ser produzida por todas as pessoas em sua interação”, avalia a pesquisadora da PUC – RIO, Heloísa Buarque de Holanda. Para a professora, a periferia costumava ser lembrada apenas pelas ausências, pelo que não tinha. Agora, aos poucos, a olhamos pelo parâmetro da presença, a cidade sob outra perspectiva. “Vamos revitalizar o centro”. Contra quem? Como se os espaços urbanos não tivessem mais vida e necessitassem da civilização outorgada. “É no vácuo do poder público, burocratizado e ineficiente para atender as demandas das parcelas excluídas da população que proliferam os movimentos político-sociais que vão dar vazão às manifestações estéticas da periferia urbana”, avalia Ilana Strozenberg, vice-coordenadora do Programa

Hermano Vianna adverte: “O tráfico é minoria”

garoto de classe média que sonha em fazer cinema também precisa.” Para Vianna, o discurso da arte contra o crime é uma forma equivocada de captar recursos. “Você trabalha com o medo da elite. É como se você dissesse: me dá um dinheiro aí para esse garoto batucar alguma coisa, senão ele vai te assaltar”, diz ele. É também um discurso que vai contra a maioria das produções nascidas na periferia. No cinema, na música, na literatura, se a violência urbana está presente como pano de fundo, o foco está em histórias de superação, de dignidade. “Mais de 90% dos filmes querem mostrar o

lado bom de viver numa determinada comunidade”, diz Christian Saghaard, da Associação Cultural Kinoforum (SP), que todo ano organiza festivais de cinema de periferia do Brasil. Oferecer arte para combater o crime seria, além de tudo, de uma ingenuidade embaraçosa. O ator e cineasta Leandro Firmino da Hora, morador da Cidade de Deus, no Rio, é o primeiro a admitir que, se o objetivo do jovem é “viver pouco, mas viver bem”, o tráfico não encontra rivais. Uma escola de cinema simplesmente não tem como colocar o tênis caro no pé de ninguém. “No máximo, pode estimular uma escolha pessoal do jovem que quer fazer cinema.” E é aí que reside a maior insídia daquele argumento: no campo da escolha pessoal. Quando aplaudimos um programa de TV, que apresenta um menino cujo destino quase certo de criminalidade foi evitado por meio da arte, estamos pensando muito pouco da educação moral que a família e a comunidade deste menino lhe ofereceram para que tomasse suas escolhas. Sua virtude não era forte o bastante até a ação civilizatória da arte. Sem hipocrisia: a arte “pode” endireitar um “espírito torto”. Mas nem só de espíritos tortos se faz a periferia, nem é esta a principal função da arte. • Continente outubro 2006

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favelas fantasia A inglesa Claire Williams pesquisa sobre a representação literária da favela, entre o estereótipo e a desmistificação Kátia Maciel, de Londres

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pesquisadora inglesa Claire Williams , da Universidade de Liverpool, especialista em literatura lusófona, vem fazendo desde 2003 um levantamento dos livros publicados tanto no Brasil quanto no exterior sobre as favelas brasileiras. Ao ler o romance de Paulo Lins Cidade de Deus (2003), Claire começou a pensar na questão da autenticidade da literatura disponível sobre a favela. Ela foi buscar respostas tanto em livros de autores nascidos e criados em favelas (Carolina Maria de Jesus, Ferréz, Lins) quanto em clássicos de autores estrangeiros (Claude Lévi-SStrauss, Jean Baudrillard), literatura de viagem (Paul Rambali, Ana Tortajada), relatos jornalísticos e sociológicos (Caco Barcellos, Zuenir Ventura) e em incursões ficcionais (José Eduardo Agualusa, Martins de Oliveira, Patrícia Melo, John Updike) sobre as favelas brasileiras. Como a maioria da literatura existente trata de favelas do Rio de Janeiro, as realidades de outras partes do país não puderam ser incluídas. A pesquisa, portanto, aponta tanto para limitações como para conquistas dos autores em narrar a favela e, sobretudo, em desmistificá-lla.


Como as favelas brasileiras vem sendo representadas na literatura? As primeiras representações literárias das favelas começaram no jornalismo, no começo do século 20, pelos relatos de João do Rio e Benjamin Costellat. Eles não tinham medo da favela, eram motivados mais pela curiosidade de ver como era a vida entre os imigrantes internos que vinham em maioria do Nordeste do Brasil para o Rio de Janeiro e São Paulo. A favela ganhou também uma imagem romantizada no naturalismo de Jorge Amado em Jubiabá (1935) e em outras representações como no famoso filme Orfeu Negro, de Marcel Camus (1959), ou nas pinturas modernistas de Tarsila do Amaral. Esse romantismo está ligado à nostalgia dos tempos em que as favelas eram ainda rurais, com quintais e animais domésticos. Tempos vistos como de uma pobreza mais inocente e honesta, antes da evolução do crime organizado e da corrupção. Na literatura publicada nos últimos cinco, seis anos, os relatos são marcados pelo voyeurismo, pela violência, fascinação pelo exótico e pela romantização do crime. Agora há também um movimento de mudança da invisibilidade da favela em que autores assumem o papel de “embaixadores”. Como é o trabalho desses “autores-eembaixadores”? Alguns tentam quebrar estereótipos e mostrar que na favela há corrupção, mas também há pessoas instruídas, trabalhadores honestos. Outros exploram o fato de que através da glamorização promovida pela mídia os jovens envolvidos com o tráfico se sentem “valorizados”. Esses autores culpam a televisão, a mídia em geral por essa distorção de valores. Mas o fato é que a fascinação pelo mundo do crime e a curiosidade em saber o que está acontecendo nas favelas tem mantido os criminosos como uma presença constante na vida do resto da sociedade brasileira, e também garantido o interesse pelos livros e filmes sobre a favela tanto no Brasil como na Europa. Qual a imagem da favela que está sendo criada e reproduzida nesses livros mais recentes? Há livros muito sérios, estudos antropológicos e sociológicos, como O Mito da Marginalidade (1976) da americana Janice Perlman, Cidade Partida (1994) de Zuenir Ventura, e também o trabalho de autores como Ronaldo Alves (que tem um livro de contos-m memórias chamado O Bandido de 1997) e Júlio Ludemir que buscam retratar os bons e os maus, que lembram com nostalgia de festas e feiras na comunidade, falam dos moradores que trabalham e vivem decentemente nas favelas. Mas nos romances de Lins e Ferréz a presença da violência e a ameaça das drogas são o que marca mais, então há o perigo desses livros reforçarem os estereótipos – aquilo em que o leitor comum, influenciado pelo medo, quer acreditar. Como você avalia o impacto dessa literatura no Brasil e no exterior?


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Cena do filme Cidade de Deus: Fantasy Favelas tem como mote a vulnerabilidade da cidade frente ao “perigo” do morro

No Brasil tanto Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, como Cidade de Deus, de Paulo Lins, tiveram imenso sucesso quando foram publicados. O livro de Carolina vendeu 90.000 exemplares em seis meses, em 1960, e foi traduzido em 13 línguas. O romance de Lins recebeu elogios de um dos mais prestigiados críticos literários do país, Roberto Schwarz e, adaptado para o cinema, alcançou um público internacional. Mas, infelizmente, são poucos os livros de ficção brasileira traduzidos para o inglês. Inferno e quase todos os romances de Patrícia Melo já saíram em inglês, mas Cidade de Deus demorou anos para ser publicado em Portugal e só no ano passado saiu em inglês pela dificuldade de traduzir as gírias. E também há o problema de que a cultura ocidental está cada vez mais focada na imagem: muitos jovens preferem ir ao cinema em vez de ler o livro em que um filme foi baseado. Mas eu acredito que a literatura tem contribuído para informar e conscientizar leitores para uma mudança de atitude em relação às pessoas da favela como vem acontecendo, em proporção maior, na música, através da poesia poderosa do rap de grupos como Racionais MCs e MV Bill. Porque você entitula a sua pesquisa de Fantasy Favelas? Me refiro às representações de favelas imaginárias que encontrei em vários livros que pesquisei. Essas Fantasy Favelas podem ser desde favelas estereotipadas, onde só há sujeira, meninos descalços carregando pistolas, basicamente o filme Cidade de Deus ao vivo, mas sem entrar na ação, até favelas ficcionais em livros que imaginam o que poderia acontecer caso os criminosos decidissem dominar a cidade. Nessas favelas ficcionais o tema central é o da vulnerabilidade da cidade. Como essa questão da vulnerabilidade é tratada nas favelas ficcionais? Continente dezembro 2006

Esses livros retratam, como diz o cineasta Murilo Salles, “a vingança da favela”. Essa “vingança”, na verdade, já está acontecendo no cinema, na literatura, na TV e na cultura em geral. É o fato de que a favela está se infiltrando na cultura e atingindo a classe média no seu ponto mais vulnerável, pois os jovens de todas as classes estão consumindo a cultura que vem da favela, admirando, incorporando essa cultura às suas vidas. E qual é o futuro imaginado nessas representações ficcionais da favela? Dois livros que analisei recentemente, A Noite dos Favelados (1984) do brasileiro Martins de Oliveira e O Ano em que Zumbi Tomou o Rio (2002) do angolano José Eduardo Agualusa imaginam uma guerra apocalíptica na zona sul do Rio de Janeiro no futuro. Nos dois textos, jovens empresários politizados, vivendo em favelas, organizam uma revolta contra os elites. Ítalo, o nobre protagonista do livro de Martins de Oliveira, até escreve um manifesto pedindo direitos para os favelados, exigindo urbanização e igualdade social. Os revolucionários do livro de Agualusa incluem um rapper, um jornalista e um ex-combatente do exército angolano. Nos dois romances, as revoluções fracassam ao confrontar o exército brasileiro, o que leva a concluir que “não há finais felizes” – título do penúltimo capítulo de O Ano em que Zumbi Tomou o Rio. Porém, há esperança: depois da chacina que põe um fim à utopia da revolução, uma ativista negra chega a candidatar-se à prefeitura, indicando uma possível mudança nas relações inter-raciais. Em A Noite dos Favelados, o resultado do "genocídio" imaginário é uma "desfavelização" e uma migração até o Nordeste para trabalhar na agricultura, deixando os morros do Rio verdes! Tentando prever o futuro das favelas na cidade do Rio, os dois autores concluem que as coisas vão piorar antes de melhorar.


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Há algum livro que você pesquisou que se distancia dessa visão apocalíptica? Eu li Sorria, Você Está na Rocinha (2004) de Júlio Ludemir, que considero uma reportagem ficcional porque a trama não é tão importante como o cenário. A favela que Ludemir retrata é uma sociedade com uma estrutura hierárquica muito forte, onde existem várias empresas e negócios de sucesso. Assim ele desmistifica o estereótipo da favela habitada só por bandidos, mandando em “otários” honestos e pobres. A descrição que ele faz do turismo de favela e da exploração dos estrangeiros é muito interessante, e também o fato de um dos protagonistas do romance ser homosexual assumido, sobrevivendo num ambiente muito machista. Como as mulheres são representadas nesses livros? As personagens femininas em quase toda a literatura da favela são estereotipadas: ou malandras interessadas só no dinheiro do bandido mais poderoso ou mães aflitas preocupadas pelo futuro dos filhos. Freqüentemente, uma mulher é o pretexto para uma briga violenta ou vítima de uma crise de ciúmes. Uma autora que escreve a perspectiva da mulher é Conceição Evaristo, que tem uns contos fortes publicados na revista Cadernos Negros e um romance: Ponciá Vicêncio, de 2005. Apesar dos estereótipos, você acha que essas narrativas estão desmistificando a favela? Acho importante que os escritores continuem publicando e que o público continue comprando e lendo. Assim o mito da favela será pouco a pouco desvendado e o estigma de viver numa favela eliminado. Por exemplo, o livro Cabeça de Porco (2005), uma coleção de textos do sociólogo Luiz Eduardo Soares, do rapper MV Bill e do empresário Celso Athayde é tão pessoal, convincente e comovente que praticamente força o leitor à ação social. Outro exemplo, com a publicacão de vários textos nos números especiais da revista Caros Amigos ("Literatura Marginal" I, II e III), Ferréz está incentivando as pessoas da periferia a escrever contos, poemas e raps. A que conclusões você chegou com essa pesquisa? Eu queria ver a variedade de narrativas sobre a favela e a mensagem por trás dessas narrativas. E essa mensagem é o medo, a ameaça, o processo orgânico que se materializa no fato de que a favela cresce sem controle. Por outro lado, a grande função do estudo dessas narra-

Na foto do alto, o escritor Ferréz, autor de textos sem estereótipos sobre a realidade da periferia. Acima, Julio Ludemir, autor da reportagem ficcional Sorria, Você Está na Rocinha

tivas é justamente desmistificar o conceito de favela. Mostrar que essas “realidades” retratadas muitas vezes são realidades construídas, imaginadas, como por exemplo, no trabalho da intelectual paulista Patrícia Melo que imaginou uma favela carioca no romance Inferno (2001) e que, segundo Ferréz, se limitou a reproduzir vários estereótipos – das escolas de samba, dos evangélicos, do professor de ginástica, entre outros. O que você pretende fazer com o material pesquisado? Eu planejo sistematizar os resultados da pesquisa num livro sobre representações e discursos da favela que será a primeira publicação em inglês sobre esse tema. Há muitos livros “técnicos” sobre as favelas, mas uma publicação, assim, de coletânea de discursos sobre a favela não há. • Continente dezembro 2006


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Alexandre Belem/ JC Imagem

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A música e imagem de "protesto" criadas por jovens vindos das favelas e periferias funcionam hoje como um contra-discurso em ascensão Ivana Bentes

A politização da estetica mtv ´ E

Tati Quebra-Barraco: funk hipersexualizado num contexto neofeminista

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sintomático que a novidade na representação da pobreza e os novos discursos sobre ela surjam no campo da música e do videoclipe, com mais agilidade na leitura desse novo contexto urbano e global do que no próprio cinema ou na universidade. A cena rap e hip hop se tornaram referência para entender a cultura urbana hoje. Internet, MTV, Centros de Cultura na periferia deram visibilidade a esses novos sujeitos do discurso: rappers, esqueitistas, grafiteiros, MC’s, militantes do hip hop brasileiro foram personagens constantes na mídia e nas telas. VJs negros, figuras como Primo Preto, Thaíde, o VJ Rodrigo, destaques a grupos como Racionais MC's, Pavilhão 9, Rappa, Xis, Rappin’Hood, Lady Rap, Marcelo D2 , MV Bill, Sabotage, Gog, Câmbio Negro, entre outros, surgem como portadores de um outro discurso político e de comportamento... Uma outra novidade na cena hip hop e funk: um discurso “neofeminino”, uma sensibilidade feminina que não passa pelo discurso tradicional feminista militante, mas pela exposição de subjetividades dilaceradas, como na música de Nega Gizza ou no rap de Lady Rap, Negra Li, podendo chegar ao funk hipersexualizado de Tati Quebra-B Barraco. Nessa politização do discurso de forma pessoal e subjetiva destacamos a figura e a performance pública de um músico e ativista carioca, MV Bill, que usa o videoclipe como manifesto político e de “descrição” quase etnográfica, reinventando o discurso e a estética do cinema político contemporâneo, como em Falcão: Meninos do Tráfico.


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Quando o rapper MV Bill canta em ritmo hipnótico sua canção de guerra, “Soldado do Morro”, falando na primeira pessoa, torso nu, um cordão de ouro no pescoço, uma arma pendurada no ombro e um tênis “de marca” no pé, capitaliza numa só postura a rebeldia juvenil em estado puro, a moda, a virilidade, a “atitude” rapper e hip hop vendida no mercado, e o mais legítimo discurso político, numa síntese que aponta para o novo contexto do ativismo político, pós-MTV e internet. Uma música e imagem de “protesto” criadas por jovens vindos das favelas e periferias e que funcionam hoje como um contra-discurso em ascensão disseminado nos meios de comunicação de massa. MV Bill brinca com os discursos tradicionais e se autointitula MV, mensageiro da verdade, podendo se apresentar encarnando um traficante-pensador, como no polêmico videoclipe Soldado do Morro, premiado pela MTV brasileira em 2001 e acusado de fazer apologia ao crime. Agressividade juvenil, traduzida não apenas nas letras das músicas, na moda – gorros enterrados na cabeça, “manos” e tatuagens no estilo “Carandiru” –, mas encarnada num discurso comunitário e coletivo carregado de legítima ira social, que exige e canta mudanças. Da moda ao ativismo, da “atitude” à música e ao discurso político, vemos emergir esses novos sujeitos do discurso, que saem dos territórios reais, morros, periferias, guetos e ascendem à esfera midiática, trazendo o germe de um discurso político renovado, fora das instituições tradicionais: o Estado, o partido, o sindicato, o movimento estudantil etc. e próximos da cultura urbana jovem – música, show, TV, internet, moda. O videoclipe atinge nesse momento um outro estatuto, de discurso urgente. Em Diário de um Detento (filmado em 16mm, 1998) , dos Racionais MC's, a canção fala do cotidiano de um presidiário. O videoclipe, também premiado pela MTV em 1998, coloca o vocalista Mano Brow no papel de um presidiário, as músicas são narrativas roteirizadas e o videoclipe é como um pensamento visual, dirigido por Maurício Eça. A questão decisiva é que a TV brasileira e o videoclipe podem recolocar na mídia questões significativas e repolitizar o cotidiano de jovens formados não só pela televisão, mas pelas novas mídias, internet e videogame.

No videoclipe há espaço para o diálogo com artistas visuais experimentais, que circulam apenas em centros culturais, galerias, bienais e museus, que podem sair do gueto da arte. Nos melhores momentos, o videoclipe incorporou a estética e atitude surrealista, as experimentações das vanguardas e agora o “documental” (Falcão, de MV Bill, que acabou sendo exibido na televisão aberta, de forma sensacionalista. Suas imagens chocantes e escandalosas – não sobre o poderio do tráfico, mas sobre a fragilidade dos meninos – provocaram uma crise política e institucional). A televisão dá essa visibilidade e mostra seus limites: os “objetos” se tornam sujeito do discurso, a experimentação rompe as fronteiras do gueto artístico, a política pode ser pensada no cotidiano. Mas também pode cair no sensacional e no sensacionalismo. A mudança decisiva é a dimensão política dessas expressões culturais urbanas e estilos de vida vindos da pobreza e da violência, forjadas na passagem de uma cultura letrada para uma cultura audiovisual e midiática. Talvez uma política inteligente de Estado devesse necessariamente incluir essas experiências culturais que explodem nos grandes centros: música, videoclipe, televisão, teatro, vídeo produzidos em parceria com as favelas e vitalizando as periferias, “culturas” periféricas que se afastam do impulso meramente assistencialista e afirmam uma “qualidade” político-estética (como vem demonstrando o rap, o hip hop e o funk brasileiro). Esses novos sujeitos do discurso na música, na literatura (o escritor Paulo Lins, Ferréz e os demais intelectuais e artistas saídos da periferia) destituem os tradicionais porta-vozes da cultura e, mais do que isso, disputam o mesmo espaço, aparecem como apresentadores de TV, VJs, passam de “objetos” a sujeitos do discurso, outra novidade irônica que acaba com qualquer “paternalismo” remanescente. A periferia luta por visibilidade, daí a TV aberta e a MTV brasileira serem lugares importantes dessa conquista simbólica, lutam para obter o copyright sobre sua própria condição e imagem, numa tentativa de politização original da cultura do entretenimento. •

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Hoje não tem

novela !

Em bairros periféricos do Recife diversas articulações consolidam um intercâmbio capaz de levar à formação de uma rede envolvendo toda a periferia Renato L

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uarde o preconceito em casa. Esqueça no trabalho os velhos clichês. Descole uma arma quente e faça em pedaços aquela imagem pré-fabricada. Só assim você será capaz de (re)descobrir o óbvio ululante: a periferia – seja como conceito , seja como espaço social mapeado – é sempre mais complexa que suas encarnações na mídia. Pernambuco não é exceção a essa regra. Aqui, a bronca nem sempre é pesada e o brega não reina solitário nos becos e vielas. Tomemos como exemplo o Coque. 140 mil hectares, 40 mil habitantes, apenas duas ruas saneadas. É periferia, está claro, mas geograficamente fica no centro do Recife: suas fronteiras lambem a Casa da Cultura, a Avenida Agamenon Magalhães, a Rua Imperial. Desde o final dos anos 60 – quando o lendário Galeguinho buscou abrigo por lá e acrescentou o “do Coque” a seu apelido de sicário – faz parte do “eixo do mal” definido pela classe média. Um lugar de defuntos, rajadas de tiros e viciados em crack. Sem futuro. A verdade não é bem essa. Basta visitar a rua Catalão numa das noites em que ressoa o aviso “hoje não tem novela!”. Não se trata de um sinistro prenúncio de tiroteio: é apenas uma banda de rock que se prepara para tocar em plena calçada – na falta de lugar para ensaiar, o jeito é incomodar os vizinhos. A maior parte dessa rapaziada é ativista do Arrebentando Barreiras, um movimento que Continente dezembro 2006

congrega os artistas e produtores culturais da comunidade. No início do ano, eles aprovaram no Funcultura a gravação de uma coletânea em CD. A previsão é que o disco chegue às lojas no primeiro semestre de 2007. Movimentações semelhantes também ocorrem em bairros como o Ibura, Jordão, Peixinhos e Alto José do Pinho. Mais: as diversas articulações consolidam um intercâmbio capaz de levar à formação de uma rede envolvendo toda a periferia. Pode ser um contra-ataque eficaz à violência simbólica exercida pela mídia e outras instituições sobre tais comunidades. A música desfaz o estigma de “morada da morte” – para citar o pesquisador Alexandre Simão de Freitas, da UFPE. E interrompe, assim, o círculo vicioso do “reforço de estereótipos, rebaixamento da auto-estima, aumento da criminalidade”. Redes do tipo podem, ainda, enriquecer o debate em torno de fenômenos “da hora” como o funk carioca e – outra vez – o brega. Em vastos círculos da intelectualidade, qualquer crítica a essas subculturas é reduzida a um mero preconceito de classe média. DJ Marlboro e Saia Rodada passam, no entanto, de vítimas a vilões numa conversa com a moçada das articulações. São eles que ocupam a programação das TVs e das rádios. Simbolizam a falta de diversidade. O inimigo a ser vencido. Nada a ver com a visão Regina Casé da periferia... •


Uma cidade invisível As pessoas que se aglomeraram e construíram uma cidade como o reflexo de suas identidades. Cabe aos incomodados mudar de lado Maria do Amparo Pessoa Ferraz

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cidade se expandia. E a cada dia, eu podia divisar do jardim da minha casa a mudança na paisagem do lado leste. A névoa não me impedia de enxergar tanta mudança naquela parte alta da cidade. Na parte antiga, onde eu morava juntamente com meus pais, meus irmãos e irmãs, minha avó materna e duas tias avós, de há muito não havia novidade. Tudo era absolutamente igual todos os dias. As pessoas viviam suas vidas regulares, retilíneas, rotineiras, repetitivas. Nada lhes alterava o percurso que de alguma forma – que eu não entendia – estava traçado em suas mentes e que se confirmava a cada novo dia. Naquela parte da cidade, as ruas tinham nomes que identificavam a razão de existirem, e que eu conhecia desde a mais tenra idade. Não havia aventura em caminhar naquelas ruas sempre iguais. A rua Preta era preta, a rua Branca era branca, a rua do Bem era florida e tinha a direção leste-oeste, de forma que o sol a iluminava o dia todo, definindo-lhe um único percurso todo previsível. Já a rua do Mal cruzava à altura de todas as esquinas da rua do Bem. Todas suas vertentes se chamavam igualmente Rua do Mal, embora se diferenciassem bastante e – para meu espanto – todas eram cheias de atrativos: tinham sol e sombra, aclives e declives, muitas cores alternadas, sons distantes. Nada ali era estável. Diziam que aquela primeira aparência visível na esquina era enganosa. O caminho do desconhecido era o mal em si. Quem tinha se aventurado por suas trilhas não tinha voltado. O que mais poderia sugerir o perigo senão a quebra da estabilidade e da previsibilidade que só a rua do Bem garantia? Os mais velhos sempre alertavam que percorrer qualquer uma daquelas derivações era caminhar para um lugar sombrio, feio, cheio de lodo, lama, lixo, destruição, perigo de vida e até mesmo cães raivosos. Seria sempre difícil de achar o caminho de volta.


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LITERATURA Engraçado é que nunca ouvi ninguém ao menos especular que talvez as pessoas não voltassem porque não lhes interessasse mais voltar. Eu pensava isso, mas não ousava dizê-lo a ninguém. Eu achava estranho que existisse naquele lado da cidade apenas uma rua do Bem e tantas ruas do Mal. E, também, como podiam ser tão bonitas e convidativas aquelas esquinas comuns da rua do Mal com a rua do Bem? Havia também a rua das Certezas. Nela, existiam muitas edificações sólidas, de tempos remotos. Nada as destruiria. Seus moradores cuidavam para que as fachadas daqueles prédios permanecessem limpas, pintadas sempre de novo, impecáveis. Mas as casas eram na maioria das vezes silenciosas. De lá de dentro não se ouviam sons, vozes – gritos, nem pensar –, mas às horas determinadas acontecia diariamente para os transeuntes a renovação dos votos das Certezas. Entre os lemas de que me lembro – que seus moradores pregavam – estava o DO CONVENCIMENTO PELA REPETIÇÃO ou O TEMPO A TUDO DÁ REMÉDIO ou A FÉ REMOVE MONTANHAS ou CANTAR ESPANTA OS MALES. E a rua da Alegria? Lá se era alegre porque se era alegre. Será que me fiz entender? E a rua da Tristeza? Tão estranha! Estava sempre vazia e só a víamos de longe. Da rua do Bem não havia acesso para a Rua da Tristeza, a qual só cruzava com a rua do Mal. Ali parecia que nada era mais previsível que fazer o caminho da rua do Bem.

Ao mesmo tempo, para mim, o Bem da rua do Bem não me parecia tão Bom; seu azul do céu era uma tortura porque era único, não podia existir céu cinza, rajadas de nuvens vermelhas do crepúsculo, auroras prateadas de luz. Lá, só o céu azul era sinal de estabilidade, uma estabilidade que me parecia a própria morte. Se o Céu era assim, para que tanta renúncia se o nada era a tranqüilidade? A mudança era a causa do pavor. Um pavor que tornava qualquer cenário feio. Comecei a construir o sonho de um dia ir àquela parte nova. A via que interligava as duas partes da cidade era cheia de desvios e praticamente nela se caminhava às cegas. Outra hipótese era escalar a colina. Que temeridade! Até que um parque de diversão local propiciou a chance de se atingir o alto através de um balão. Não tive dúvidas. Habilitei-me. Cumpridas as formalidades, lá estava eu dentro da cesta de um balão. Logo ganhei altura e gostei da visibilidade de que ali dispunha, era capaz de ver muitas pessoas no solo, embora olhasse para os lados e visse poucos companheiros e companheiras de aventura. No balão, eu podia me deslocar por uma área muito maior – inimaginável, fazer aquele percurso a pé. À frente, me deparei com os morrotes que separavam a parte antiga da parte nova da minha cidade, e para não colidir com as minhas primeiras barreiras fui obrigada a jogar os sacos de areia da minha infância que no passado tinham me servido de ligação ao chão. Agora, precisava me desfazer dos meus guardados. Uma a uma fui deitando fora minhas lembranças, minhas certezas. Ganhava altura e


LITERATURA cada vez tinha melhor visibilidade das pessoas lá embaixo presas ao chão, e a cada despojamento do meu passado percebia que se tornava impossível voltar ao ponto de partida. É incrível como expandi minha compreensão das pessoas, a ponto de entender esta ironia da visibilidade que o afastamento proporciona, em muito, à distinta vista que se tem – sei lá do quê – quando estamos próximos ou somos parte dela. A sensação de solidão foi inevitável. Eu tinha partido para o desconhecido, e a emoção mais forte que tive foi de continuar vendo o conhecido, mas não estar mais lá para interagir. Mas, confesso que, ainda hoje, nas minhas reflexões, relembro os mitos da rua das Certezas. E me ponho a comparar os destinos provisórios que vivemos eu e alguns antigos moradores que foram criança comigo na parte velha da cidade. Lá onde mora o meu passado jurássico. Morto e extinto, sem nenhuma chance de renascer. Havia então de descobrir meus companheiros de viagem da vida. Pessoas que também se ausentaram da cidade previsível. Cheguei ao território atrás das sombras que via lá de onde estava na parte antiga da minha vida. A incerteza, o desconhecido. Alertaram-me tanto, que este é o pavor da existência. Estou agora andando por essas ruas indecisas, não há definição de onde começam nem onde acabam. Às vezes, nesta parte da cidade, um mesmo trecho tem nomes diferentes para distintos moradores. O trecho que é lembrança do início de um ciclo de felicidade para

uns pode ser de infelicidade para outros. E me parece engraçado que já para outros moradores deste lado da cidade – nova para mim – seja o seu stablishament mau e para outros, inversamente, o stablishament bom. Outro grupo de moradores comemora, com a visão do mesmo trecho, o fim da tristeza e outro se ressente de que ali está o fim da alegria. Estou aprendendo. Aqui cada um constrói seu mito. Parece-me um aprender sem-fim andar por estas ruas incertas. Ver edificações tantas que alteram de sentido à medida que mudam os olhos de quem vê. Tudo é um poliedro de muitas faces. A contemplação desse lugar fez ruir cada certeza, cada expectativa. Quase toda fé. Uma música toca alto. Cuidado! Pode ser uma grande comemoração com muita gente alegre reunida para ser feliz. Mas, aqui, até eu ter olhos para descobrir, posso estar caminhando para uma reunião de protesto, onde a música ensurdecedora tem por fim anestesiar os sentimentos de alegria. A música é o chamariz de pessoas tristes que vão ali para se alhear de suas próprias vidas, e o que menos querem é se defrontar com o que as faz se ressentirem. Hoje, diante de tanta incerteza, eu tenho medo das certezas que habitam no lado velho da minha cidade onde nasci e vivi. E não sei se são distintas as partes da mesma cidade ou são distintas as pessoas que nelas habitam. Parece-me, às vezes, que foram as pessoas que se aglomeraram e construíram uma cidade como o reflexo de suas identidades. Cabe aos incomodados mudar de lado. •

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LITERATURA

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Reler Joaquim Cardozo A Editora Nova Aguilar lança as obras completas do poeta Joaquim Cardozo, organizadas por Everardo Norões Artur Ataíde e Eduardo Cesar Maia

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crítico literário, ao que parece, é o neurótico por excelência. O passado, para ele, nunca está sepulto, resolvido. Exemplo concreto, entre outros, é o do nosso modernismo na lírica: quando o arranjo de nomes e obras que o constitui está prestes a ser arquivado, alguém resolve perguntar “– E Joaquim Cardozo?”, e vem a nova recaída. Com ela, novas hierarquizações e oposições, novos traços distintivos entre as várias poéticas, podem surgir, modificando o aclaramento mútuo entre as obras, bem como entre elas e a cultura em geral. A obra de Cardozo acolhe várias tendências. Nela é possível rastrear, por exemplo, a inclinação drummondiana para a poesia chã e para a forma quase sempre auto-irônica e reticente de encenar a tristeza, as paixões e outras formas de grandeza; as marcas da infância e da terra natal; a metáfora abstrata de engenheiro; a frase natural em que, inesperadamente, floresce o afeto (como em Bandeira); a aproximação à poesia popular; o surrealismo. O que há de mais inconfundível, no entanto, talvez esteja em poemas como “Arquitetura Nascente & Permanente” e “Aparição da Rosa”, em que aqueles elementos vêm formar um tecido complexo de sensações, matizações afetivas e sonhos, mas sem outro fim que não um “fruto esplêndido e vazio”: o poema pelo poema. Essa espécie impura de orfismo, além de outras experiências, é o que nos aguarda na edição das obras completas a sair em breve. Confira, a seguir, a entrevista do jornalista Eduardo Cesar Maia com Everardo Norões, organizador das Obras Completas de Joaquim Cardozo.


LITERATURA Sabe-sse que as classificações são formas de simplificar a realidade. Não obstante, como você enquadraria a obra poética de Joaquim Cardozo dentro do contexto modernista brasileiro? Na apresentação que fiz da obra de Joaquim Cardozo, que será publicada pela editora Nova Aguilar, em co-edição com a editora Massangana, mencionei que já no seu primeiro poema, “As Alvarengas”, publicado em 1924, na Revista do Norte, ele já inovara em todos os sentidos, tanto do ponto de vista do tratamento da temática regional, como na utilização de novos recursos formais. A análise desse poema foi feita pelo crítico Fernando Py, que identificou como inovações a utilização da adjetivação dos substantivos e a inversão de categorias gramaticais. De fato, toda a poesia de Joaquim Cardozo deve ser observada como resultante de um contínuo processo de renovação. Ele era um homem aberto não apenas às experiências poéticas, mas a todas as conquistas da inteligência humana. É por isso que o chamei de homemuniverso. Joaquim Cardozo pode ser considerado como um de nossos últimos grandes humanistas.

vanguardismo destruidor e negador de toda tradição. Você concorda com essa visão? O texto de Carlos Drummond de Andrade é um dos mais interessantes e clarividentes escritos sobre o poeta Joaquim Cardozo. Trata-se de um prefácio feito pelo já consagrado poeta mineiro ao primeiro livro de Joaquim Cardozo, editado em 1947, quando o poeta pernambucano completou 50 anos. A publicação desse livro, intitulado Poemas, foi uma iniciativa dos amigos de Joaquim Cardozo. Antes disso, ele era um poeta de “tradição oral”. Aos cinqüenta anos, não tinha livros publicados. Os jovens poetas conheciam sua poesia apenas de ouvido. Segundo Félix de Athayde, essa era a forma de homenagem de sua geração a Joaquim Cardozo: “sabê-lo de cor, de cordis e salteado.” A modéstia e a personalidade introspectiva de Joaquim Cardozo de fato o preservaram do modismo literário, aquilo que Drummond chamou de vanguardismo destruidor e negador de toda tradição. Na sua opinião, quais seriam os motivos para que a obra de J. Cardozo não esteja nos cânones oficiais brasileiros? Joaquim Cardozo nunca cuidou da divulgação de sua obra poética, nem de seus trabalhos de engenheiro calculista, que não foram poucos. Quase todos os seus livros foram editados por iniciativa de terceiros. Também na arquitetura brasileira, apesar de ser bem considerado entre seus pares, o nome dele é relativamente pouco lembrado. Ora, a arquitetura moderna brasileira certamente teria dado um passo bem menor, se não tivesse contado com a genialidade de Joaquim Cardozo. No entanto, quem visita o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, observa que seu nome é pouco citado nos créditos. Para pessoas como ele, o reconhecimento nunca é imediato. Além disso, obras de vanguarda, como as obras de autoria de Joaquim Cardozo, na poesia como na matemática, às vezes precisam de tempo para serem assimiladas pelas novas gerações.

Em que nível se deu o contato dele com os expoentes do modernismo literário brasileiro? Em 1923, Joaquim Cardozo esteve no Rio de Janeiro durante cerca de três meses, onde assistiu à primeira exposição do pintor Di Cavalcanti. Não há registro de que tenha tido outros contatos. Depois, regressou ao Recife, reencontrou seu amigo Benedito Monteiro, estabeleceu contato com José Maria de Albuquerque e Melo (da importante Revista do Norte) e com o poeta Ascenso Ferreira, tornou-se assíduo freqüentador da Esquina Lafayette, local predileto da boêmia literária. Permaneceu no Recife até 1939, quando foi expulso durante o governo de Agamenon Magalhães. Mas Pernambuco tinha, de certa forma, seu próprio movimento “modernista”, do qual o próprio Joaquim Cardozo fazia parte, juntamente com intelectuais como Gilberto Freyre, José Maria de Albuquerque Melo, Vicente do Rego Monteiro, Como Cardozo concebia a relação entre poesia e Cícero Dias, Ascenso Ferreira e outros. Além disso, Joamatemática? Era dessa relação que derivava seu rigor quim Cardozo era poliglota (consta que conhecia cerca de 15 línguas) e tinha acesso a revistas e livros estran- poético? geiros, o que lhe permitia acompanhar de perto tudo o O rigor característico da matemática está presente em que acontecia no mundo em matéria de vanguarda. toda a obra de Joaquim Cardozo. A relação entre a Física e a Poesia é um dos aspectos de seu longo poema Em depoimento, Carlos Drummond de Andrade “Trivium”. A ligação entre sua Poesia e a Matemática afirmou que o fato de Joaquim Cardozo ter uma perso- provavelmente ainda será objeto de pesquisas mais pronalidade introspectiva o salvaguardou de uma atitude fundas. Para que isso aconteça, seria oportuno reunir a típica do primeiro modernismo no Brasil – a de um biblioteca de Joaquim Cardozo, que ele, em vida, doou à Continente dezembro 2006

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Imagens: Reprodução

Joaquim Cardozo, por Di Cavalcanti

zendo medições de terras). Saíram de Tramataia, de Cabedelo, de Palmares, para povoarem sua poesia e o palco de seu teatro moderno e universal. No entanto, nem a poesia nem o teatro de Joaquim Cardozo se conformaram aos limites do “regionalismo”. Observa-se que no seu teatro foram incorporados elementos do teatro de vanguarda europeu, ao lado de outros que têm sua origem no teatro nô japonês.

O que representou artisticamente a Revista do Norte e qual foi o papel de J. Cardozo nessa publicação? A Revista do Norte foi, na época, uma das revistas literárias mais importantes do Brasil. Ela revelou grandes talentos da década de 20. Nela Joaquim Cardozo publicou seus primeiros poemas e, como excelente desenhista Universidade Federal de Pernambuco, cujos livros estão que era, foi autor de algumas vinhetas, ilustrações e hoje dispersos entre as bibliotecas dos vários depar- capitulares da revista. tamentos da Universidade. É importante essa reunião O contato com o poeta Ascenso Ferreira teve uma para a compreensão do conhecimento de Joaquim Cardozo, porque em sua obra é impossível dissociar Ma- grande repercussão na obra do poeta. Quais foram as conseqüências artísticas dessa relação? temática, Poesia, Filosofia, Teatro ou Lingüística. A amizade entre Joaquim Cardozo e o poeta Joaquim Cardozo publicou um único conto, “Bras- Ascenso Ferreira parece curiosa, porque eram pessoas sásvola”. Qual o valor dessa pequena obra e de que forma muito diferentes. Mas para ambos foi muito importante. Em 1926, os dois viajaram a Palmares, ela se relaciona com o resto da sua produção artística? “Brassávola” foi seu único conto publicado. Mas foi para assistirem a uma apresentação de bumba-meu-boi. possível reunir 12 contos escritos por Joaquim Cardozo. No ano seguinte, em 1927, Joaquim Cardozo desenhou Existe uma relação entre o conto “Brassávola”, e os a capa e as ilustrações para Catimbó, o primeiro livro outros contos de Joaquim Cardozo, com a sua poesia. É publicado pelo poeta Ascenso Ferreira. Os dois tinham o que considero a conjugação do onírico e do real numa grande interesse pelas manifestações da cultura popular. equação poética perfeita, que é uma das características Uma das conseqüências importantes dessa relação pode fundamentais de sua obra. Por exemplo, o “trem”, per- ser considerada o fato de Joaquim Cardozo ter tomado sonagem central de seu “longo e lento poema sobre o como referência para sua peça de teatro mais conhecida, destino e situação espiritual da espécie humana”, como O Coronel de Macambira, a versão do bumba-meu-boi escreveu Maria da Paz Ribeiro Dantas sobre “Trivium”, coligida por Ascenso Ferreira. Essa versão foi é o mesmo trem da narrativa “Na Estação”. A leitura de publicada em 1944, nos números 1 e 2 da revista Arquisuas narrativas ajuda a compreender o sentido de sua vos, da Prefeitura do Recife. Suas obras como desenhista e ilustrador têm, ainda, poesia. Em Joaquim Cardozo tudo se completa. valor artístico? Restaram poucos desenhos de Joaquim Cardozo. De que forma a obra de Joaquim Cardozo se relaciona com as manifestações da cultura popular que Com apenas 15 anos de idade, ele começou a fazer charges para o Diario de Pernambuco. Depois, ilustrou a ele conheceu? O Nordeste (e particularmente o Recife) é matriz de Revista do Norte. Teria sido um grande artista plástico, se onde brotou, cresceu em direção ao Universo, a obra lite- tivesse se dedicado. Seus textos de crítica de arte, publirária de Joaquim Cardozo. Alguns de seus poemas, e cados na revista Para Todos, revelam elevado conhecitambém alguns personagens de seu teatro – como os da mento sobre as artes plásticas. Um pequeno trabalho que peça O Coronel de Macambira – desertaram da longínqua escreveu sobre Rembrandt é, a meu ver, uma das meBaía da Traição (onde Joaquim Cardozo trabalhou fa- lhores coisas escritas sobre o pintor holandês. Continente dezembro 2006


LITERATURA Pampulha o segundo grande movimento da arquitetura moderna brasileira. De fato, é a partir do êxito do projeto de Pampulha que a equipe de Niemeyer foi solicitada, pelo então presidente Juscelino, a conceber Brasília. No entanto, antes de conhecer Niemeyer, Joaquim Cardozo já havia participado do primeiro movimento da arquitetura moderna no Brasil, na década de 30, ocorrido em Pernambuco. Esse movimento tinha à frente o arquiteto Luís Nunes e dele também fazia parte Burle-Marx, que projetou quase todos os grandes jardins do Recife. Joaquim Cardozo esteve presente em todas as etapas importantes da arquitetura moderna do Brasil. Quais foram os motivos e quais foram as conseqüências artísticas da mudança de Joaquim Cardozo para o Rio de Janeiro, nos anos 40? Em 1938, em pleno Estado Novo, Joaquim Cardozo foi detido duas vezes por motivos políticos, e liberado no mesmo dia. Era acusado de ter participado da comissão organizadora da Aliança Nacional Libertadora, de ter sido candidato na chapa “Trabalhador, ocupa Teu Posto” e de ter assinado manifesto contra a Lei de Segurança Nacional. Em 20 de junho de 1938, sete dias após sua última detenção, Joaquim Cardozo embarcou com destino a Lisboa. Visitou Portugal, foi à França, cruzou a Espanha em plena guerra civil. No ano seguinte, no final de 1939, convidado para ser paraninfo da turma de concluintes da Escola de Engenharia, pronunciou discurso extremamente crítico. O discurso provocou sua demissão “a bem do serviço público”. A demissão de Joaquim Cardozo foi assinada por Gercino Pontes, então secretário de Viação e Obras Públicas do governo Agamenon Magalhães. Foi assim que, no dizer de Rodrigo Mello Franco de Andrade, “o meio pernambucano perdeu, em proveito do Brasil, um de seus valores mais genuínos e puros”. Logo depois, em 1940, Joaquim Cardozo integraria a equipe do IPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico) e fixaria residência definitiva no Rio de Janeiro. A partir daí, seu nome iria se afirmar cada vez mais, tanto no mundo das letras, como no da arquitetura e da engenharia.

Qual a participação de Joaquim Cardozo no projeto de Brasília? Entre os projetos mais complexos que calculou podem ser citados os edifícios do Congresso e da Catedral de Brasília. O ensaio do professor e arquiteto pernambucano Geraldo Santana, intitulado Presença de Joaquim Cardozo na Arquitetura Brasileira, inserido na fortuna crítica da obra de Joaquim Cardozo, que será brevemente lançada, é uma brilhante exposição sobre a importância de sua participação na construção de Brasília e em outros projetos importantes.

Como Cardozo lidou com o episódio do desabamento no Pavilhão da Gameleira (do qual foi calculista) que matou muitos operários, em fevereiro de 1971, em Minas Gerais? Sobre o episódio da Gameleira, o depoimento mais comovente sobre Joaquim Cardozo é o de Evandro Lins e Silva, que foi seu advogado no processo e era um dos juristas mais brilhantes do Brasil. Ele escreveu que o destino o unira a Joaquim Cardozo numa hora de ansiedade, tormentos e aflições. Joaquim Cardozo, segundo ele, era homem sem malícia, frágil, que não estava preparado para enfrentar “a perfídia e a astúcia de adversários sem escrúpulos, nos embates desgastantes de um procedimento legal”. O episódio da Gameleira foi, sem dúvida, o início do fim do grande poeta. Paradoxalmente, concorreu, também, para formar em torno de Joaquim Cardozo e de A relação entre Cardozo e Oscar Niemeyer foi sua obra uma espécie de corrente que acabou por tornar descrita pelo jurista Evandro Lins e Silva como uma ainda mais vivo o seu legado de homem-universo: corrente simbiose perfeita, “um encontro entre o Rio Negro e o da qual fizeram parte Pelópidas Silveira, Paulo Cardozo, Solimões”. Quais foram os frutos desse encontro? Geraldo Santana, Audálio Alves, Paulo Bruscky, Maria da Os maiores frutos do encontro entre Niemeyer e Joa- Paz Ribeiro Dantas, Maria do Carmo Pontes Lyra, José quim Cardozo são o conjunto da Pampulha, em Belo Mário Rodrigues, César Leal, João Denys Araújo Leite e Horizonte, e Brasília. Joaquim Cardozo considerava Fernando Py, entre outros. • Continente dezembro 2006

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Foto: AE

Cáspite!, leitor Catrâmbias!, novo romance de Evandro Affonso Ferreira, consolida autor mineiro entre os construtores de uma prosa cuja essência é a inventividade Luiz Carlos Monteiro

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xistem algumas obras na literatura que não toleram o leitor desatencioso, indiferente ou distraído. Este é o caso de Catrâmbias!, livro mais recente do mineiro Evandro Affonso Ferreira, que já publicou, com o mesmo espírito de inventividade, outros quatro livros de ficção. O primeiro deles, Grogotó! (2000), contendo textos de extrema economia verbal, trazia mais de 70 contos minimalistas. Um destes minicontos, “TaediumVitae”, por exemplo, representa muito bem certa tendência da escrita urbana que privilegia uma visão enviesada e veloz da cidade, talvez numa herança oswaldiana ainda bastante latente. Em pouquíssimos vocábulos são expostas as misérias e a crueldade do cotidiano, com expressões seriadas e entrecortadas pela desesperança: “Desempregado, time caiu pra terceira divisão, artrite cada vez pior, senhorio no encalço, dor intermitente no peito, geladeira vazia, mulher com caroço esquisito no seio esquerdo, filho drogado, xi, mais essa, válvula da descarga quebrou”. Logo após Grogotó! segue-se Araã! (2002), o primeiro romance, tendo como personagem central o vendedor de livros Seleno Selser, que aparece como um simulacro humano estigmatizado pela dor e solidão após a morte de sua mulher. Na história de amor, traição e morte envolvendo Menelau e Helena, ambientada no século 21, objeto da prosa entre séria e delirante de Erefuê (2004), um narrador em primeira pessoa faz-se presente o tempo todo. Enquanto espera o resultado do seu julgamento, Menelau discorre Continente dezembro 2006


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em tom de monólogo subliminar e subterrâneo sobre sua retomado recorrentemente. E aqui, para as numerosas real e sombria circunstância num tribunal que poderia interjeições, vale tanto a imprecação quanto o júbilo, a estar localizado em qualquer recanto do planeta: “Dia repulsa ou a alegria, a dúvida ou o temor. Assim, este vulcânico apre sendo cozido a fogo lento estou sim puh ficcionista tem o dom de retirar do limbo e do marasmo seja como for melhor ficar aqui enquanto posso no as palavras e expressões mais loucas, alopradas e delirancorredor deste Fórum hã logo-logo trancafiado dez tes. A septuagenária que se interna num hospício por quinze anos talvez numa cela mondongueira qualquer vontade própria constrói a sua fala interna com alta compondo quem sabe desesperadas endechas; meu dosagem de ironia, humor, ceticismo e, principalmente, a futuro puh se encaixa feito luva dentro delas sombrias recordação permanente dos fantasmas que a assolam, utopias deles Huxley-Orwell;(...).” Em paralelo, os transformado tudo isto em “traquinices aliterativas”. jurados reúnem-se e travam verdadeiras discussões Esta “narradora hamletiana”, na expressão de Alcir filosóficas e eruditas que fogem às vezes à decisão da Pécora, renuncia à culpa que aflige a tudo e a todos que sentença de Menelau, acusado do afogamento do a cercam, por uma boa bacia de jabuticabas: “Muitos maioria talvez são atraídos de modo amante de Helena. Os 10 jurados irresistível por casas carros luxuosos trazem à tona uma gama de citações viagens barcos cousalousa; para esta de clássicos greco-romanos, elaboranvelha de lana-caprina aqui nada do um roteiro considerável de aforisinfunde mais prazer que ploft nham mos, sofismas e subversões a partir da nham nham este fruto esférico roxocultura literária de todos os tempos. negro de polpa alva doce huummm”. O (anti) modelo temático-formal Ela mostra o grau de dissimulação de dos livros de Evandro Affonso faz que se vale para despistar até o próprio lembrar, em muitos pontos, a ficção filho e eleger os personagens a que se joyciana. A técnica do “monólogo amolda e que gosta de imitar: “Filho interior”, que encontrou sua aplicação o-don-to-lo-gis-ta está chegando apre máxima em Ulisses, logrou promover pobre-diabo azamboado aquele pensa um deslocamento psicológico comque velhustra dissimulada aqui hã esplexo do mundo e da história para a trabuleguice só hã pensa que não mente do homem e o personagem "Catâmbrias!", Evandro Affonso Ferreira, posso catrâmbias! responder por mique este encarna. No Finnegans Wake Editora 34 Letras, 80 páginas, R$ 25,00. nha própria existência eh-eh simula– que sugere uma aproximação maior ções à maneira de Ulisses Hamlet à prosa de Evandro – todos os diferentes símbolos e idiomas importam no resultado Tristão quejandos”. Evandro Affonso Ferreira faz parte de uma final. A simples letra isolada, a palavra de significado intrincado ou implícito e a expressão mais obscura e de linhagem de autores que elegeram o trabalho de invendifícil decifração caracterizam o itinerário circular e con- ção e recriação da linguagem como meta literária e priofiguram também a velocidade, o andamento e a tônica de ridade estética. Dentre tantos outros, podem ser lembrados um Osman Lins, um Guimarães Rosa, e, inventividade que o perpassam. Catrâmbias! pode remontar a palavras de sonoridades referido em outro lugar pelo próprio Evandro, graças à aproximadas como caramba, catraia, caraca, carcaça, tenacidade e ao rigor no emprego das palavras, Gracicaranha, catrevage, câimbra. A utilização interjetiva liano Ramos. Ao desancar a linearidade da prosa – e, freqüente neste autor introduz-se em meio às constru- em conseqüência, a estética referendada e aceita pela ções frásicas ou como palavras isoladas ou repetidas no história literária oficial –, Evandro Affonso faz emergir mesmo parágrafo ou em outros parágrafos do livro (“xi”, o homem em todas as suas mesquinharias, doenças e “ixe”, “hum”, por exemplo). Tais frases encontram-se misérias mais íntimas, mas também em toda a sua capaintercaladas quase sempre pelo sinal de ponto-e-vírgula, cidade de convivência até mesmo com os seus inimigos mostrando que o discurso pode ser interrompido ou velados, explícitos ou mais próximos. • Continente dezembro 2006

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PROSA

Predadora Lúcia Bettencourt

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mboscada no fundo da sala ela não perdia de vista quem entrava. Seu corpo se perdia entre outros corpos, igualmente sarados, igualmente vestidos com tênues transparências e vagas tessituras. Seus olhos é que denunciavam sua condição de fera, de fera à espreita, à espreita porque faminta. Avaliava as possíveis presas. Tinha fome, mas era seletiva, não abatia qualquer caça. Queria-os suculentamente imaginativos, capazes de sucumbir às fantasias, pois os mais literalmente machos não reagiam bem aos seus ataques fulminantes. Queria-os não muito jovens, pois a seiva se espalhava prematuramente e deixava-a insatisfeita e expectante. Queria-os com um brilho de inteligência no olhar, pois a ciência de serem vítimas aguçava o prazer do abate. Quando o viu chegar, sabia que era chegada a sua hora de atuar. Observou-o com os olhos de tigresa tranqüila e sábia. Umedeceu os lábios, sensualmente, sem pressa. Jogou o cabelo para trás, enquanto calculava quantos passos havia entre ela e a vítima. Ele se sentou, e era bom que estivesse de frente para ela, pois o abate assim era mais interessante. Ela se levantou. Terminou a bebida com um único gole. Deu o primeiro passo. Ele já havia percebido seu movimento, e isso era bom. Ela podia se demorar, ele esperaria. Continente dezembro 2006

Nos passos calculados ela chegou até a vítima. Sem saber como se comportar, ele a olhava admirado, ligeiramente desconfortável. Ele ainda não sabia, mas suspeitava seu destino final. Ela, zombeteira, olhava para ele, que era um pouco mais velho do que tinha calculado, um pouco menos pujante do que seria ideal, mas que tinha sido o eleito da noite. Outra vez, umedeceu os lábios. Ele se levantou, obedecendo a uma ordem não formulada. Ela se aproximou mais um passo. Ele sorriu. Ela ganhara. Agora tudo era uma questão de metodologia. Com mão insuspeitadamente forte, imobilizou o pulso de sua vítima, puxando-lhe a mão até à boca e fazendo-o introduzir os dedos entre seus lábios, dois apenas, o indicador e o médio. De olhos bem abertos e espantados, ele não esboçou uma reação firme o bastante para detê-la, apenas enrijeceu um pouco o braço, tentando puxar a mão para trás, para fora da caverna úmida onde a língua, experiente e sinuosa, percorria os dedos escolhidos, enquanto a boca sugava, deixando-o cada vez mais vulnerável ao próximo ataque. Os olhos de caçadora experiente avaliavam todas as reações da presa, e seu instinto lhe dizia quando dar o próximo bote. Como uma tigresa, foi direto à jugular, no caso, um volume ainda discreto que crescia em seu baixo


PROSA ventre. Ele gemeu. Ela gemeu mais alto, parando de sugar os dedos dele que agora se moviam, tentando capturar a língua, dominá-la. Sempre segurando seu pulso, empurrou a mão dele para o seu decote, e empurrou-a para dentro, provocante e enérgica, rodando em volta do mamilo endurecido, demonstrando os movimentos que queria que ele fizesse. Ele obedeceu ao comando, meio desajeitadamente, desacostumado que estava de ser comandado. Os dedos úmidos pressionaram o mamilo que perdia o aspecto de fruta agreste e se distendia, sedoso e firme, demonstrando toda sua excitação. Afoitamente, sentindo sua masculinidade se expandir, ele pretendeu tomar as rédeas da ação. Com a mão livre segurou as ancas da fera que o atacava e fez menção de puxá-la de encontro a si, procurando beijá-la. Ela não se furtou, mas mostrou claramente quem dominava, recebendo os lábios dele em sua boca entreaberta e fincando os dentes na carne macia da língua que se atrevia a penetrá-la. Ele gemeu de dor, retraiu-se, ela puxou-o de volta, sugou-lhe a língua dolorida, e esfregou-se nele, agitada pelo sabor de sangue. Com a coxa abriu caminho entre as pernas dele e imobilizou-o contra a parede. Os olhos de sua vítima percorreram o recinto, verificando se os observavam. Achandose protegido pela penumbra, ele se entregou, dócil e obediente. Seu corpo desequilibrado se mantinha ereto graças ao apoio da parede, enquanto ela pressionava os seios túrgidos contra seu peito arfante, ao mesmo tempo em que roçava sua coxa, subindo e descendo a perna entre as dele. Quando parou de beijá-lo foi para mover sua boca em direção à orelha incauta, e para lambê-la, penetrá-la. Seus próprios dedos se haviam intrometido pela boca indefesa e ainda dolorida da vítima, obrigando-a a aceitar três dedos que se dividiram, experientes, um pelo meio, sobre a língua febril e ligeiramente inchada, os outros pelas laterais, próximos aos dentes e às gengivas, estufando-lhe ligeiramente as bochechas. Com o instinto da fera que sabe quando sua presa já não pode mais reagir e começa a arrastá-la para o covil, ela percebeu o momento exato para retirar sua coxa, que o mantinha de pernas afastadas, permitindo que ele recuperasse o equilíbrio para obrigá-lo, resoluta, a caminhar para a porta do banheiro. Lá dentro, apoiando-se contra a pia, ela empurrou a porta com um dos pés enquanto puxava-o de encontro a si com a outra perna. A luz, muito mais forte ali do que no salão, deixou-o perceber que ela estava sem calcinhas, mas que usava meias, presas por ligas, antiquadas, mas eficientemente eróticas.

Com uma violência domada, ela se impacientava contra as roupas dele, abrindo a fivela de seu cinto, puxando para baixo seus jeans e sua cueca, deixando-o sem mobilidade, mas com o sexo desimpedidamente ereto. Ela não permitiu que ele a despisse, e, curvando-se, quase se ajoelhando frente a ele, abocanhou-o, empurrando-o de encontro à garganta que se contraiu e expulsou-o. Ela insistia no movimento e ele começava a destilar um líquido salgado quando ela parou abruptamente e, com a ajuda da própria vítima, desfechou-lhe o golpe de misericórdia, deixando que ele penetrasse seu sexo quente e pulsante, viscosamente odorífico como uma fruta madura. Ele se sentia esvair, totalmente dominado pela mulher que o cavalgava com perícia, sem deixá-lo impor o ritmo que preferia. Ela acelerava e diminuía suas investidas, prolongando o seu prazer, até que, impaciente, com gemidos guturais que pareciam nascer muito lá dentro, seu corpo perdeu o ritmo e foi sacudido por espasmos que pareciam debilitá-la. Ele quis se aproveitar do momento para impor sua vontade, mas a predadora, saciada, já o encarava com olhos indiferentes. Com um safanão, libertou-se das mãos dele, que a procuravam. Procurou as toalhas de papel e enxugou-se, sem se preocupar em manter sua graciosidade felina. Deu um toque no baton, que borrara, ajeitou os cabelos com os dedos, relanceando os olhos pelo banheiro, para preparar sua retirada. Saiu ligeira, numa espécie de movimento lateral, inesperado. Ele tentou alcançá-la, mas os jeans enrolados em suas pernas quase o fizeram tropeçar. Só teve ânimo para fechar a porta do banheiro com o trinco, e deixou-se cair sentado sobre a tampa do vaso. Tinha que recuperar seu amor próprio, sua atitude de macho, mas sentia-se esgotado, usado, e, o que era pior, abandonado. Sabia que ela não voltaria. Com água fria, lavou o rosto, examinando-se no espelho. Sentia o corpo doer das posições a que ela o obrigara. Com a língua de fora, descobriu as marcas que os dentes da fera deixaram e que começavam a inchar e latejar. Seu coração começava a voltar ao ritmo normal, depois do galope de seu abate. Bochechou e cuspiu, e deixou-se ficar curvado sobre a pia, vendo a água se escoar num torvelinho. Intimidado, ele receava sair para um mundo onde seu lugar já não estava mais assegurado. • Lúcia Bettencourt é carioca. Graduada em literatura pela UFRJ. Armazena no currículo experiência como professora na Faculdade Notre-Dame, em Yale. É vencedora de alguns prêmios literários, como o I Concurso Osman Lins de Contos com A Cicatriz de Olímpia. Com o livro A Secretária de Borges venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2005, na categoria contos. Continente dezembro 2006

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36 POESIA

Ilustração: Delano

Poemas de

Antônio Botelho o sobretudo Um homem é sobretudo Um sobretudo vazio. Abre-se o elmo e, sem nada, Caminha a armadura desabitada. Um homem é sobretudo Um sobretudo vazio. Atrás do rosto não há nada Somente uma palavra.

mosaico Na loucura de um deus me recomeço. No fragmento de um deus me recomponho. Na ambição de um deus me estilhaço. Na vertigem de mim sou sempre o mesmo. Na voragem do ser procuro o outro. No corpo de um eu sou sempre raro. Cansado de ser um sou sempre vários. Perdido em meu amor fui circunflexo. Demitido de mim fiquei percalço. Na ternura de um deus me sublevo: Na solidão de morrer me decomponho Nas vagas desse mar que subverto.

Apenas – angustiado –, O homem é um sobretudo A vestir-se de tudo E a andar sozinho.

brasão

O irmão que nunca tive hoje adormece Nos olhos de um verão que o envelhece. Diviso-o, rubro, sangrando pelas ruas Plantando em cada morte a sorte sua. Observo que em sua carne sem herança Blasfema a febre e a desesperança. E mesmo sendo nunca o irmão procura O amor que no amar jamais perdura. Na ternura de um tempo redimido Vislumbro a solidão de um ser banido Onde a tez da saudade fere a rima Do coração que à fera traga e abriga. O irmão detenho morto e redivivo No rosto carmesim deste domingo.

Antônio José de Oliveira Botelho nasceu no Recife/PE. Em 1994, com o livro O Terceiro Tigre, foi o vencedor do Concurso Mauro Mota de Poesia, promovido pelo Governo do Estado. Neste segundo livro, O Círculo das Sombras, Antônio Botelho dá continuidade a um processo criativo visceral e extremamente consciente, que aborda temas universais.

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AGENDA/LIVROS Política má Em Malvada Política, de Rivaldo Paiva, a política é apresentada satiricamente como ciência e a arte do mal comum, chamando o autor a atenção para o círculo vicioso dos escândalos, numa perspectiva mais crítica que ideológica. Sua análise baseia-se nos pensadores Alceu de Amoroso Lima e Alberto Torres, abrangendo questões como religiosidade, ética, humanismo e nacionalismo. Ao contrário do racionalismo acadêmico, Paiva incorpora a subjetividade na interpretação dos fatos.

Volodya, o Terrível Biografia de Lênin que se pretende definitiva traz preciosas informações, mas peca pela idiossincrasia

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nova biografia de Vladmir Ilich Ulyanov, conhecido na intimidade familiar por Volodya, escrita pelo inglês Robert Service, membro do St Antony's College e especialista em Rússia, é simultaneamente muito boa e muito ruim. Não há dúvida de que fornece o mais completo retrato de Lênin, abrangendo um conjunto riquíssimo de informações sobre a vida pessoal e política do ditador soviético somente tornadas acessíveis após abertura dos arquivos do Kremlin, no rastro da derrocada do regime no início dos anos 90. É impressionante a massa de dados manejada pelo biógrafo, da qual emerge a figura extraordinária do homem cuja importância para o século 20 foi inegável, para o bem e para o mal. São preciosas as narrativas sobre sua ascendência remotamente nobre e judaica, suas relações familiares, seu perfil de desportista, sua formação intelectual (ficamos sabendo que A Cabana do Pai Tomás, o melodramático libelo contra a escravidão nos EUA, deflagrou no adolescente russo os primeiros sentimentos de injustiça e indignação), seus conflitos retumbantes com companheiros e adversários, seus dilemas políticos e ideológicos, sua relação conjugal com Najda Krupskaya e seu caso com a militante francesa Inessa Armand. Por outro lado, a aversão de Service ao personagem biografado é um verdadeiro escolho a quem se aventurar a navegar nas águas tormentosas do seu texto. Suas análises políticas, se bem que baseadas em extensa documentação, são simplistas. Ao tentar interpretar psicologicamente o personagem, mantêm-se num nível pedestre (por exemplo, atribui ao desejo de vingança de Lênin pela morte do irmão Alexander sua motivação político-ideológica), apelando até para linguagem rasteira, beirando o chulo, como “queridinho da família”, “política de aliança safada” etc.). Uma pena que Service, apontando sempre a fúria de Lênin, tenha sido tão furioso. (Homero Fonseca) Lênin – A Biografia Definitiva, Robert Service, Difel, 630 páginas, R$ 79,00. Continente dezembro 2006

Malvada Política, Rivaldo Paiva, Cepe, 280 páginas.

Personagem plural O grande fator de diferenciação do romance Os Malditos, do gaúcho Paulo Wainberg, é exatamente a construção do personagem principal na primeira pessoa do plural. Assim, a história do assassinato da personagem Jussara atravessa todo o livro, num monólogo interminável do homem anônimo com seus “outros eus”. Este clima se estabelece desde o início, conforme ele mesmo enuncia: “Éramos vários em um. Ou um em vários”. O fato de fazer parte de uma “classe”, a dos malditos, ou seja, a daqueles que nunca riem, é outra constatação importante nesta narrativa. Os Malditos, Paulo Wainberg, Bertrand Brasil, 144 páginas, R$ 24,00.

Galinhas voadoras Os contos e microcontos presentes em O Vôo Noturno das Galinhas, de Leila Guenther, trazem uma carga de inusitado e estranheza que se reflete, sem aparente contradição, no estilo leve, na extrema concisão e nas formas de se dizer o mesmo com novas e outras palavras. A autora não recorre àquele minimalismo que se quer engraçado ou arrojado, mas que às vezes não chega ao cerne da escrita. E, por isso mesmo, não logra funcionar como fruição estética simplesmente ou como expressão literária autêntica e inventiva, que define e consolida os bons ficcionistas e poetas. O Vôo Noturno das Galinhas, Leila Guenther, Ateliê Editorial, 104 páginas, R$ 22,00.

Somos o que vivemos O russo Tolstoi é autor de grandes obras, tanto em importância como em tamanho, como Ana Karenina e Guerra e Paz. Porém um de seus livros mais significativos é a novela, que não tem mais de 80 páginas, A Morte de Ivan Ilitch, que recebe nova tradução de Boris Schnaiderman – que também traduziu as obras de Dostoievski – diretamente do russo. Nesta obra Tolstoi conta as dores e angústias dos últimos três dias de Ivan Ilitch, um juiz de conciliação. Mais do que um livro sobre a morte em si, esta pequena obra-prima discute como viver. (DDd) A Morte de Ivan Ilitch, Leon Tolstoi, Editora 34, 92 páginas, R$ 22,00.


AGENDA/LIVROS

Simples e sofisticado Livro de crônicas de Manuel Bandeira mostra que o poeta não é bom apenas nos versos

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uem só conhece a poesia de Manuel Bandeira não sabe o que está perdendo. Em sua prosa, escrita quase sempre num tom de conversa íntima com o leitor, aparentemente simples e despretensiosa, o pernambucano destila sua inteligência aguda, sua sensibilidade apuradíssima e sua vasta cultura. É o que se pode constatar neste Crônicas da Província do Brasil, primeiro volume de uma coleção em que a Cosacnaify pretende reeditar toda a obra em prosa do poeta. Na primeira parte do livro, em textos sobre as cidades coloniais brasileiras, Bandeira, que queria ser arquiteto, sonho frustrado pela tuberculose, derrama seu grande conhecimento do assunto, sem prejudicar a fluidez da leitura. Na segunda, o autor se dedica aos tipos populares da Lapa e outros bairros do Rio de Janeiro, numa mistura de retrato psicológico e contação de casos, com um toque de lirismo e ficção. A terceira parte extrapola a “província” e vai se focar em nomes famosos da cultura internacional, como Charles Chaplin, Marcel Proust e Elizabeth Barret Crônicas da Província Browning. Ao lado de Carlos Drummond do Brasil, Manuel de Andrade, Rubem Braga e Fernando SaBandeira, Cosacnaify, 320 páginas, R$ 48,00. bino – entre outros grandes nomes da crônica brasileira –, Manuel Bandeira deixou um legado que até hoje é lido com prazer e proveito. Simples, mas sofisticado; coloquial, mas preciso; é um legado que não se esgota. O livro traz capa dura com três versões, com fotos de Pierre Verger, Marcel Gautherot e Alce Brill. A organização é de Julio Castañon Guimarães. (Marco Polo)

Um livro de alta qualidade Clássico da literatura mundial e considerado um dos mais importantes livros do século 20, O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, há muito tempo fora de catálogo, tem lançamento cuidadoso da Nova Fronteira, comemorativo dos 40 anos da editora. O livro se passa pouco antes da Primeira Guerra Mundial e retrata a decadência dos valores ocidentais na virada do século. Numa prosa muito bem-humorada, o autor traça um vasto painel da Europa, através de Ullrich, o personagem-título do romance. Recheado de tramas paralelas e digressões filosóficas, o livro conta as três tentativas do “herói” de se tornar um homem importante: como militar, como engenheiro e como matemático. O militarismo, a técnica e o cálculo, representados por aquelas profissões, símbolos da competência humana, revelam, na verdade, o poder autodestrutivo da humanidade, através da guerra. Apesar do número de páginas, O Homem sem Qualidades é um romance inacabado. Musil trabalhou em sua obra-prima durante 15 anos, até o dia de sua morte. (MP) O Homem sem Qualidades, Robert Musil, Nova Fronteira, 1280 páginas, R$ 74,90.

O ser feminino Hera, Cleópatra, Cinderela, Catarina de Médici, Teresa de Ávila, Isadora Duncan e Simone de Beauvoir são algumas das entidades que marcaram a presença feminina na história do mundo. É a partir delas que a escritora mexicana Martha Robles faz, em Mulheres, Mitos e Deusas, um mapeamento da intervenção de mulheres excepcionais – verdadeiras ou mitológicas – na construção da própria humanidade. Intensas, desafiadoras, predestinadas, ora enaltecidas ora demonizadas, levaram ao extremo seu destino, tocando a profundeza do ser e se eternizando como exemplos – do que deve ou não ser imitado. Mulheres, Mitos e Deusas, Martha Robles, Editora Aleph, 446 páginas, R$ 59,00.

Segredos dos ícones

O autor de O Ícone, o francês Jean-Yves Leloup, professor de Filosofia e Teologia, quer mostrar que, ao mesmo tempo em que se pode fazer uma leitura estética, e também teológica e litúrgica dos ícones, é também possível uma leitura antropológica. Ele quer, com isso, levar o leitor a compreender como estes artefatos religiosos de origem russa foram concebidos, como também mostrar que cada elemento que o compõe tem uma funcionalidade simbólica. O livro é fartamente ilustrado com ícones do século 14 ao 19, contrapostos a obras sacras da cultura ocidental, a fim de melhor iluminar suas características. O Ícone – uma Escola do Olhar, Jean-Yves Lelolup, Editora Unesp, 160 páginas, R$ 90,00.

Junção poderosa

O contista pernambucano Augusto Ferraz tem uma imaginação frondosa e um texto seco, junção poderosa que resultou no excelente livro Amor, Planta Carnívora, o sétimo do autor. Elogiado por gente do quilate de Ênio Silveira, Hermilo Borba Filho e Ivan Junqueira, entre outros, Augusto constrói personagens que têm carne, sangue e alma em estórias onde o delírio às vezes invade a realidade e a substitui. Sua narrativa, aparentemente natural, na verdade esconde uma hábil manipulação das palavras, para que elas revelem uma série de sentidos ao mesmo tempo. Coisa de escritor de verdade. Amor, Planta Carnívora, Augusto Ferraz, Edições Bagaço, 194 páginas, R$ 25,00.

Tatuagem total

Se, até certo tempo atrás, a tatuagem estava reservada a marinheiros e presidiários, hoje ela tomou conta da moda e é rara a pessoa que não tem uma tatoo. Vendo não apenas a tatuagem mas também os piercings como mensagens do corpo a jornalista Leusa Araujo escreveu este livro que não só rastreia as primeiras manifestações desses enfeites já no “homem de gelo”, que viveu há 5200 anos, como parte para interpretar os modos de usar, símbolos, tatuados famosos até as modernas tribos e estilos que proliferam entre os jovens. Tatuagem, Piercing e outras Mensagens do Corpo, Leusa Araujo, Cosacnaify, 86 páginas, R$ 49,00. Continente dezembro 2006

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Como regar a cultura "O bem cultural é um bem de uso. Ele existe porque existe uma demanda. A renda dos artistas pode crescer, embora sua produtividade física não cresça. O seu trabalho é um fim e não um meio." Celso Furtado (1920 – 2004)

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filósofo Olavo de Carvalho, a quem muito admiro como pensador e não como político, porque vê comunista infiltrado até em creche infantil, é contra a existência de ministérios ou órgãos estatais congêneres destinados ao apoio financeiro à cultura. Cultura em seu sentido estético, decorrente do conceito de estética de Alexander Baumgarten (séc. 18). Mas, foi seguindo esta conceituação que o presidente De Gaulle criou, no governo francês, em 1958, o Ministério da Cultura. E fez mais: nomeou como titular um grande escritor, André Malraux. Entre os muitos que hoje possuem Ministério da Cultura, estão a França e a Grécia, berços de civilizações. Como um estímulo ao próximo ministro da Cultura e aos futuros secretários da cultura dos governos estaduais recém-eleitos do Brasil, é oportuna a transcrição de um trecho da conferência de Melina Mercouri, grande atriz e ministra da Cultura da Grécia, no Institute for Contemporary Arts, Londres, em 1983: “Concentramos nas capitais a maioria de nossos teatros, cinemas, museus e orquestras. Fora das capitais estão os despojados, os privados. E, privando-os, ficamos também privados. Com pouco estímulo para criar, as forças potenciais não se desenvolvem e permanecem inativas. Recebendo os retalhos da expressão cultural, emudecem e silenciam a sua própria expressão. Uma Continente dezembro 2006

prioridade de nosso programa de governo é a descentralização”. O interessante é que Melina disse essas verdades na Inglaterra, país que não tem Ministério de Cultura, mas os Arts Centers. Não sei quantos e quais países do mundo possuem ministérios da Cultura. A internet sabe. Consultem-na aqueles que estão interessados, entre meus milhões de leitores. O Ministério da Cultura no Brasil foi criado em 1985, de acordo com o Decreto 91.144. O terceiro titular da pasta foi o grande economista Celso Furado, o que mais marcou, e positivamente, aquele Ministério. Nas suas primeiras declarações, revelou que na Europa a Economia da Cultura era tida como um ramo da Economia, há tempos, e discutida como disciplina acadêmica. Divulgou, em suas palestras, como ministro, a necessidade de desenvolvimento daquela disciplina no país como base para os projetos ministeriais. Na linha de ação que começou a aplicar, em sua gestão, procurou “valorizar a dimensão econômica dos projetos, na medida em que atividades culturais devem ser observadas como um processo de produção”, disse ele no mesmo ano em que foi empossado. Em sua curta passagem pelo Ministério da Cultura (mar. 1986 – jul. 1988), sob seus auspícios é assinada pelo Presidente Sarney a primeira lei de incentivo à cultura, que tomou o nome do signatário, Lei Sarney, e que no governo Collor,


MARCO ZERO

o Átila brasileiro, quando reformulada, tomou o nome do secretário de cultura, Sérgio Rouanet, a Lei Rouanet, até hoje. Mesmo depois das mudanças do ministro Gilberto Gil, uma delas, talvez a mais importante, na visão do técnico do MinC, Juca Ferreira, a “idéia de pôr em prática a política de descentralização, para além do Sudeste”, o dinheiro público não chega às cidades desmonitorizadas. Apesar de ser sempre defendida pelos produtores culturais que atuam nas capitais ou áreas metropolitanas, a Lei Rouanet é seriamente acusada de distorções pelo respeitado consultor e especialista em patrocínio e comunicação empresarial, Yacoff Sarkovas, numa entrevista à Cláudia Amorim, no Jornal do Brasil, em 27 de outubro de 2003. Apesar das mudanças realizadas pela gestão Gilberto Gil, as críticas continuam atuais neste final de 2006. Uma das mais contundentes é a que acusa as leis de incentivo de perverter o sistema de patrocínio, pois empresas que patrocinariam manifestações culturais com seu próprio orçamento deduzem agora o patrocínio do imposto a pagar, fato que se universalizou entre as empresas que investiam em cultura. Para Yacoff, o gover-

no se abstém de ter uma política cultural, já que repassa as verbas (impostos a pagar) para as empresas repassarem aos produtores. Crítica desse teor só poderia ser contestada a contento por Celso Furtado, iniciador do sistema e um dos maiores economistas do terceiro mundo. Gilberto Gil já declarou não aceitar ser ministro da Cultura no segundo mandato. E o mundo dos projetos culturais aguarda, com ansiedade, o nome do novo ministro. A vitória de Eduardo Campos, em Pernambuco, vai trazer de volta o Movimento de Cultura Popular (MCP) e mais a consciência de que a cultura gera arrecadação, emprego e renda. Os críticos da oposição questionam a implantação de um sistema (MCP) que foi criado em maio de 1960, no princípio do mandato de Miguel Arraes, como prefeito do Recife, para os dias de hoje. Ora, basta atualizá-lo. Problemas na educação e na cultura nunca faltarão. O MCP de Paulo Freire e Abelardo da Hora, como filosofia de ação, não passou. Basta escolher, para reativá-la, seus atuais e grandes seguidores, pois tudo revive, tudo refloresce. • Continente Continentedezembro . dezembro, 2006 02

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Redescoberta da cor No Impressionismo dá-se a ruptura com o passado, graças à descoberta da cor ao ar livre, da cor como resultado da vibração da luz solar sobre a superfície das coisas

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ode-se dizer que, de algum modo, a cor é uma descoberta da pintura moderna. Dito assim, parece que a pintura não usava a cor, o que seria afirmar o absurdo. A pintura tem cor desde que o homem do paleolítico a revelou como expressão na parede das cavernas. Se é assim, não terá sentido dizer que foi a pintura moderna que a descobriu. Mas tem. Tem porque a cor nunca desempenhou, antes, na pintura, a função que passou a desempenhar, depois do Impressionismo. Neste caso, então, em que consiste a diferença? Seria praticamente inviável examinar como a cor funcionou em cada momento, ao longo de quase vinte mil anos de pintura, mas não é preciso. Basta nos determos em alguns momentos da arte para justificarmos a nossa tese. Partamos dos afrescos do fim da Idade Média e já teremos um modo específico de usar a cor, determinado pela natureza mesma da tinta utilizada pelo artista e da técnica de realização da obra: pigmento dissolvido em água e clara de ovo constituía a têmpera, de que o pintor se valia para pintar sobre o barro fresco do muro. Essa técnica, essa tinta determinaram o estilo pictórico do afresco que, por exigir rapidez na execução, não possibilitava o acabamento (o fini) e as nuances. Tais recursos vão surgir com a invenção do quadro de cavalete (de tela ou madeira) e da tinta a óleo. Tanto a pintura a fresco como a pintura a óleo do Renascimento estão voltadas para a criação de cenas ou retratos, uma linguagem figurativa que se iria Continente dezembro 2006

transformar através dos séculos seguintes, com o Maneirismo, o Barroco, o Neoclássico, o Romantismo, o Realismo e, finalmente, o Impressionismo. Se, em cada dessas “escolas” artísticas, a cor teve expressão diferenciada – mesmo na obra de cada artista individualmente –, no Impressionismo dá-se a ruptura com o passado, graças à descoberta da cor ao ar livre, da cor como resultado da vibração da luz solar sobre a superfície das coisas – à plein air –, muito diferente da cor de dentro de casa, da pintura feita no ateliê. Como em tudo o mais, a cor dos impressionistas dá início a uma nova relação do pintor com a linguagem pictórica. Como se deu isso? É impossível determinar todos os fatores envolvidos nessa mudança, mas dois, pelo menos, podem ser destacados: conceber a pintura como resultado imediato das sensações cromáticas experimentadas ao ar livre, e a descoberta da cor como fenômeno físico proveniente da vibração da luz sobre a superfície das coisas. Tais fatores fazem do ato de pintar uma experiência do momento presente, fenômeno perceptivo mais que tudo, desvinculado de qualquer assunto, de qualquer conotação literária, histórica, religiosa ou mítica: a pintura como captação do presente, do aqui e agora. Trata-se, portanto, de uma redescoberta da cor como fenômeno autônomo, experiência única e nova, que influirá no futuro da pintura. Sucede que o processo artístico – como todos os demais – não se faz linearmente nem na plena consciência de seus agentes. Essa descoberta da cor ocasionará con-


Divulgação

Ato circense, Thomaz Iannelli, 1986, óleo sobre tela, 60 x 80 cm

cepções cromáticas diversas e aparentemente contraditórias, no Simbolismo e no Fauvismo, o primeiro descobrindo-a como parte de uma linguagem natural e mística, cuja correspondência simbólica seria o som, e, no Fauvismo, como retorno às fontes da expressão subjetiva, anteriores à racionalidade. Tais constatações estão na origem da teoria que Kandinsky expôs em seu livro Do Espiritual na Arte (1912), em que fala da cor como expressão autônoma, que se basta a si mesma, independentemente do que represente. Os seus primeiros quadros abstratos – Improvisações – são a manifestação inicial, na prática, dessa teoria. No Fauvismo, como no Expressionismo, dá-se o descolamento da cor do objeto, não pela eliminação deste, mas pelo uso arbitrário com respeito à realidade natural: um rosto verde, cabelos vermelhos, montanhas róseas ou árvores de tronco azul. A cor ainda está, aí, ligada à representação figurativa, mas já revela a autonomia que vai fazer dela uma linguagem em si mesma. Mas em que consiste isso de tornar-se a cor uma linguagem em si mesma? Depois que a cor se libertou da condição natural que fazia dela a cor do objeto, abriu-se a possibilidade de ela afirmar-se como uma expressão em si mesma, uma linguagem em que ela, a cor, cria seus próprios objetos, suas próprias formas: em vez de partir do mundo objetivo para inventar o quadro, pintado conforme as cores naturais, ou mesmo, como faziam os expressionistas, violentando essa relação cor-objeto, o pin-

tor agora entrega-se a criar o universo que a cor sugere, como o fez Kandinsky, nas suas já citadas Improvisações. Como a cor é a pasta que adere ao pincel, o mover do pincel gera formas, sejam meras manchas ou traços que nada representam, apenas nos encantam com seu cromatismo e seus ritmos coloridos. Não foi por acaso que deu o nome de Improvisações àquelas primeiras manifestações dessa autonomia da cor que, ao longo dos anos, criaria um novo universo semântico e estético. Um dos pintores que melhor exploraram essas novas possibilidades da cor foi, mais tarde, o brasileiro Thomaz Iannelli, cujas obras estão atualmente em exposição na galeria Soraia Cals, no Rio de Janeiro. Basta olhar qualquer dos quadros desse artista para, de imediato, perceber-se que é a cor que o inspira, que é dela que parte para criar suas obras. Por isso mesmo, tem ela, a cor, o papel determinante de tudo o que ocorre no processo de elaboração do quadro: seja um marrom que se derrama, na tela, entremeado de tons escuros, como um rumor; seja um azul que se esgarça, deixando ver o fundo branco e se muda em verde ou verdes, donde se vão formando as figuras, planas, inacabadas, porque são garranchos, manchas, que viram figuras, quase como faz o musgo nos velhos muros; figuras que são também cor, variações da cor, fantasias cromáticas e gráficas que o pintor, brincando, metamorfoseia em palhaços, crianças, pipas... • Continente dezembro 2006


Imagens: Reprodução


ARTES

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omo se poderia explicar o que aconteceu com a obra sobre papel na arte brasileira? Qual seria a origem do preconceito a respeito da fragilidade do papel? Teria este preconceito surgido por razões climáticas? Seria o papel mais vulnerável a fungos, à alcalinidade? Seria o uso do vidro uma espécie de impedimento que se impõe entre a obra, o colecionismo e o mercado? Ou seria isto um reflexo da história cultural do país com relação a sua memória? Lembro aqui, por exemplo, o dia em que o então ministro da Fazenda Ruy Barbosa ordenou a queima de todos os documentos em papel referentes à escravidão, com o objetivo de livrar o Estado de possíveis indenizações por perdas e danos. Enfim, essas são perguntas à espera de respostas que possam justificar, pelo menos no âmbito das artes plásticas, por que os avanços da arte sobre papel, no Brasil, permanecem num estado quase total de esquecimento e abandono.

A eloqüente figuração de José Carlos Viana Em nova série de desenhos, colagens e pintura sobre papel o artista pernambucano mostra a força do seu talento Emanoel Araújo Fotos: Roberta Mariz

O artista em seu ateliê. Na página ao lado, Pega Mosca X Star

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Há!-H Ho! X Ho!-H Há!

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Onde está, por exemplo, o reconhecimento aos movimentos de gravura de São Paulo a partir da maestria do ateliê de Lívio Abramo? De lá surgiram artistas como Evandro Carlos Jardim, Maria Bonomi. Por que não lembrar, ainda, mestres do desenho e da gravura, como Marcelo Grassmann, Octávio Araújo, Aldemir Martins, Gerda Bretanhe, Odetto Guersoni, o extraordinário Carlos Oswald, primeiro gravador puro brasileiro, ou os movimentos nascidos na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, com o grande Oswaldo Goeldi, um revolucionário da gravura e do desenho expressionista e intimista, e seus muitos alunos, como Adir Botelho e Ivan Serpa. Ou o Atelier do Museu de Arte Moderna, de onde surgiu a grande força da renovação da gravura nacional, através de artistas como Isabel Pons, Fayga Ostrower, Anna Letícia, Rossini Perez, Roberto Delamonica. Cito ainda a turma: Marilia Rodrigues, Thereza Miranda, Edith Behring, Assunção Souza, os movimentos regionais da Bahia, centrados nas figuras de Mario Cravo e Henrique Oswald, professores da Escola de Belas Artes, de onde surgiram nomes como Juarez Paraíso, Hélio Oliveira, Sônia Castro e Calazans Neto. Também o Núcleo de Gravura de Olinda, o Clube de Gravura de Porto Alegre e Bagé, liderados por Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves, ou o que se produziu no Paraná, com Poty Lazzarotto. Inexplicavelmente, toda essa arte sobre papel continua no limbo do esquecimento e da falta de memória, este mal do brasileiro.


ARTES Tudo isso não para explicar, mas para introduzir a obra de um rebelde pernambucano, chamado José Carlos Viana. Mário de Andrade, do alto de sua lucidez, escreveu o mais belo ensaio sobre o desenho até hoje publicado no Brasil, onde ele diz que o desenho é por natureza um “fato aberto”. Pois a arte de José Carlos Viana é mesmo uma obra aberta, num diálogo constante, de ponto e contraponto, com a pintura. O suporte nem sempre é o papel, já que Viana é muitas vezes um pintor sobre tela, mas ele se vale com recorrência da colagem como mais um meio plástico de resolver espaços e texturas, numa contemplação de novos meios para expressar o drama de sua linguagem. Digo drama porque seu desenho nem sempre parte livre da cor, mas propõe soluções plásticas para abrigar essas formas gráficas, figurativas, ora com humor caricatural, ora como figuração dramaticamente expressionista. Mas o desenho de José Carlos Viana propõe mais, como um comentário escrito, onde a figura substitui a palavra, e por isso é necessário deter-se diante dele como quem busca a reciprocidade de um discurso, onde as perguntas são respondidas no silêncio plástico da obra, onde a resposta é sempre do próprio espectador. A obra de José Carlos está impregnada de sua vivência pernambucana, americana e européia. Como pernambucano e homem do Nordeste, certas características lhe são peculiares, sobretudo com a tradição da arte praticada no Recife, com a imagética de artistas modernistas, como Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, José Cláudio – para citar alguns responsáveis pela renovação da arte em Pernambuco.

Manhã de Sol X Atlântico

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ARTES

O Portal X Céu/Inferno Na outra página, Eva X Eu

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Mas José Carlos pertence a uma geração intermediária, entre esta e a mais nova. Há que se notar que o artista foi um pouco negligente com sua produção durante o tempo em que esteve no serviço público ligado à arte. Talvez até esse distanciamento tenha sido responsável pela força com que a produção desta sua nova suíte se revestiu, caracterizada pela multiplicidade de significados coletados na cultura popular e erudita de sua terra. Tecnicamente, estes grandes desenhos são impecáveis, tanto pela complexidade de idéias como por seus efeitos gráficos. A figura, por exemplo, ora feminina, ora masculina, aparece desenhada com certo poder de sedução, às vezes erótica, às vezes sinuosa e insinuante. É possível até detectar um certo machismo na representação masculina, nítido no apelo explícito da bacanal de falos e corpos entrelaçados como uma caligrafia. Seu desenho é um freqüente turbilhão de idéias, às vezes pelo realismo fantástico ou pelo lúdico erotizante, muito pouco sutil, mas finamente representado no meio dos labirintos de espaços negativos, e que parecem tornar-se janelas abertas para expressar esse turbilhão de idéias. Idéias agonizantes de um mundo que nasce do corpo da mulher, larga em entorso, como se dali nascesse a própria figuração, que se completa com as colagens, texturas e cores. A cor, às vezes de um pintor, corre livre e transparente, numa tentativa de abrir aqueles espaços para sua eloqüente figuração. Como bom nordestino, e consciente dessa submissão, ele faz surgir os símbolos, os mitos, a verdade e os sonhos do inconsciente banhado pelo sol ardente, com a luz e o calor da sua terra. •



ARTES

Convivência e território na arte

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Pintura do sulafricano Mustafa Maluka

Reunindo 118 artistas de diversos países do mundo, a 27ª Bienal de São Paulo tem por tema Como Viver Junto Marco Polo

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tema título da 27ª Bienal de São Paulo, “Como Viver Junto”, remete a dois elementos inescapáveis: convivência e território. Estes elementos estão presentes em quase todas as obras dos 118 artistas que integram a mostra e, embora cada um procure tirar partido desta dualidade à sua maneira, há uma certa unidade na exposição, que se divide basicamente em três grupos: vídeos e fotos, instalações e objetos, pinturas e desenhos. A utilização da questão territorial pode não ser notada num primeiro contato com a obra. Como no caso da instalação da sul-africana Jane Alexander. Dentro de duas cercas de arame um híbrido de pássaro e ser humano nos olha com expressão perplexa. Não tem asas ou braços, como se tivessem sido decepados. Entre as duas cercas há um fosso coalhado de foices e terçados. A simbologia parece ser tão simples quanto didática, representando qualquer tipo de violência que “corte as Continente dezembro 2006

asas” de um ser vivo: prisão, repressão, censura etc. Neste caso, a informação que vincula cada artista a um lugar torna-se um problema para o trabalho apresentado, pois, ao se explicar que esta obra é emblemática do apartheid e que as machetes foram usadas para matar negros, termina-se reduzindo seu alcance, transformando-a em ilustração de uma época. Época de horror, que não deve ser esquecida, é claro, mas superada por sabermos que o apartheid não mais existe, enquanto estamos submersos no horror diário aqui e agora dos assaltos, miséria etc. Um caso oposto, em que a territorialidade explícita nas obras e na nacionalidade do artista reforça o trabalho, está nos quadros em grandes dimensões do também sulafricano Mustafa Maluka. Os jovens bonitos, saudáveis e arrogantes retratados são rodeados e banhados em cores vivas que remetem tanto ao colorido das vestes e pinturas tribais africanas quanto ao mundo da pop art. São pessoas que podem estar em qualquer rave ou “boate” de


ARTES 53 qualquer metrópole do mundo. São como heróis globais de uma comunidade orgulhosa. Uma artista que utiliza a questão do pertencer a uma territorialidade a partir de uma clave diferente é a cubana Ana Mendieta, levada para os EUA ainda criança para para ser criada num orfanato. Ela registra em vídeo performances em que procura integrar magicamente seu corpo à MãeTerra, em rituais simples, mas belos, que relacionam pulsões de vida e morte, bem como a necessidade de se ligar a algum lugar, comum entre exilados. Questões de convivência, aliadas à tentativa social de insuflar autoestima nos outros, fazendo com que se sintam artistas, ainda que apenas por um momento, estão presentes nos trabalhos dos grupos Eloísa Cartonera, de Buenos Aires, e Long March Project, da China.O primeiro, ensinando a catadores de lixo como transformar papelão e papel em livros; o segundo, mostrando às comunidades como exercitar a prática de recortar imagens em papel colorido. São trabalhos que suscitam, logo de cara, duas perguntas: 1) Isso é arte ou artesanato? 2) Estas distinções ainda importam? Um trabalho, todavia, que parece sintetizar uma utopia proposta pela Bienal (outro lado seria a crítica pessimista ao caos real) é Doçura, de Meschac Gaba (Benim): uma grande maquete do Recife, em açúcar, incrustando em sua topografia monumentos-símbolos de grandes cidades internacionais como Sidney e Barcelona, Paris e Nova York, assim como da capital brasileira. Como se estivesse propondo uma globalização afetiva, uma corrente de cordialidade e harmonia entre todas as cidades do planeta. •

Acima, video da cubana Ana Mendieta. Abaixo, instalação do beninense Meschac Gaba

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Imagens: Divulgação

Colhendo Papel na Ventania, osgemeos, 2006, tinta spray e látex acrílico sobre madeira

Olhar Plural Em sua terceira edição, a Paralela firma seu espaço e usa individualidade aproveitando a efervescência artística da Bienal Mariana Oliveira

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o século 19, o Salão de Paris era a grande referência do mundo das artes. Havia uma comitiva de juízes que selecionavam os artistas que deveriam estar na exposição e rejeitavam aqueles que não consideravam suficientemente competentes para tanto. Foi o desencanto e a organização desses "rejeitados" que deu origem ao famoso Salon des Refusés, espaço reservado àqueles que não tiveram lugar na mostra oficial. Não foi a rejeição, mas, sim, a organização de artistas e das 12 principais galerias de São Paulo que deu origem à Paralela 2006, exposição que, como o nome aponta, acontece simultaneamente e paralelamente à Bienal de São Paulo, da mesma forma que o Salão dos Recusados abria suas portas junto ao salão oficial de Paris.

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Sem buscar nem a oposição, nem a complementação, a Paralela, como explica a curadora Vitória Daniela Bousso, segue seu caminho independente, tendo como proposta, nesta terceira edição, a descuratorialização, numa exposição sem tema específico, em que cada artista expõe aquilo que crê representar o melhor da sua produção. "Não me oponho ao recorte da Bienal, apenas acho que a arte deve operar a partir da polifonia, da multiplicidade de olhares, ações e procedimentos", destaca. A ausência de uma temática fechada para mostra deixa a sensação de que se caminha num território livre (tema da Bienal de 2004), já que, como afirma a curadora, não é possível, atualmente, enunciar as tendências da arte contemporânea. “Se quisermos ser abrangentes, é preciso apostar na diversidade tendências e propor um olhar plural”, diz. Dentro dessa sinfonia de vozes de mais de 140 artistas de todo Brasil, os suportes utilizados são os mais diversos: da videoarte à pintura, da instalação à fotografia. Otávio e Gustavo Pandolfo, osgemeos, bastante falados este ano, apresentam uma pintura em spray e látex acrílico sobre madeira, bem dentro do estilo que estão firmando, composto por personagens de cabeça amarela, misturando grafitagem e pintura à arte popular. O carioca Mauro Piva traz sua contribuição também no campo da pintura, com a obra O Hábito. Fazendo um mix entre o vídeo e a performance, José Roberto Aguilar expõe NakedMute Dance, um mixed media em que três mulheres nuas executam suas performances, em vídeos, exibidos em telas colocadas rente ao chão. O já consagrado Vik Muniz participa da exposição sem obras feitas de chocolate ou de recortes de revista. Young Girl Sewing, produzida este ano, faz parte da sua Pigment Series. Instalações, a exemplo da de Henrique Oliveira, composta por tapumes, e de Iran do Espírito Santo, formada por aço inoxidável, teflon e alumínio, ocupam boa parte do espaço de 11 mil metros quadrados destinados à exposição, reforçando a idéia de fazer obras com materiais inusitados. Aproveita-se também dessa tendência Tadeu Jungle que montou uma série de fotografias de imagens femininas, do estilo Valentino ao estilo Yves Saint Laurent, feitas em areia. Dois pernambucanos marcam presença na mostra, José Patrício e seus dominós, e Paulo Meira com o seu Marco Amador, dois auto-retratos, nos quais está acompanhado de uma mulher e uma hélice, apresentada junto às fotos na Paralela. •

Young girl sewing, after Vilhem Hammershoi, print Vik Muniz, 2006, c-p

NakedMuteDance, José Roberto Aguilar, 2006, mixed media (video e performance). Abaixo, Série Tapumes, Henrique Oliveira, 2006, instalação


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AGENDA/ARTES

Índios, os primeiros

Fotos: Divulgação

Provocar a reflexão sobre o universo indígena é a sugestão da exposição Índios: os Primeiros Brasileiros

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exposição Índios: os Primeiros Brasileiros, que será realizada no Museu da Cidade do Recife, sugere a reflexão sobre o imaginário coletivo acerca das comunidades indígenas do Nordeste. Composta por três espaços distintos – o mundo colonial , o universo indígena e o Brasil contemporâneo – a mostra será acompanhada por outras atividades culturais como, uma feira de artesanato, exibições audiovisuais etnográficas, debates e performances de toré. Tendo em vista que os museus das capitais nordestinas e acervos indígenas tornaram-se secundários ou foram substituídos por material arqueológico, esse trabalho propõe resgatar uma interpretação mais fiel da identidade cultural. Em sua primeira fase, a exposição situa o visitante no processo de construção de uma colônia portuguesa e desvela a multiplicidade da presença dos índios nesse momento embrionário do Brasil. Os objetivos gerais são descomprometer a imagem indígena de uma visão estereotipada, trazendo sua diversidade real e suas manifestações culturais concretas; e, ainda, permitir o distanciamento de estigmas e preconceitos com os quais operam as representações eruditas e populares. Índios: os Primeiros Brasileiros. No Forte das Cinco Pontas, Museu da Cidade do Recife, de 7 de dezembro de 2006 a 11 de fevereiro de 2007. Informações: (81) 3224.8492

Portfólio de Rodrigo Braga Obeliscos O Projeto Portfólio, realizado pelo Itaú Cultural, apresenta auto-retratos do artista Rodrigo Braga. Instituidor de um universo poético particular, ele constrói as suas imagens em uma espécie de ritual de comunhão entre o seu corpo e elementos da natureza. O trabalho, pela primeira vez exposto em São Paulo, já foi apresentado em diversos Estados brasileiros e em alguns países europeus. A mostra transita entre a performance, a fotografia e a escultura e é resultado de uma fobia social desenvolvida pelo fotógrafo que, de alguma forma, desembocou nas soluções artísticas que usa até hoje. Portfólio – Rodrigo Braga. Até 21 de janeiro, no piso térreo do Itaú Cultural na Avenida Paulista, 149 – Estação Brigadeiro do metrô. Informações: (11) 2168 .1776

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Obelisco: monumento edificado como marco de um local, geralmente em grandes dimensões, feito em pedra e fixado no solo. Na obra do artista Márcio Almeida essa definição vai mais além: ele é leve e se desloca, marca territórios, passeia por muitas cidades, países e conta variadas histórias. Eis a proposta da exposição Habite-se, na Amparo 60 Galeria de Arte, com 20 expressivas fotografias, tradutoras de diferentes olhares sobre o mesmo tema. A pedido do artista, alguns amigos fotografaram obeliscos em lugares que lhes fossem importantes. O resultado é um trabalho repleto de visões individuais do mundo e ao mesmo tempo cheio de desejos comuns. Surge, então, o questionamento sobre o porquê da escolha dos locais, como praças, restaurantes ou mesmo um pau-de-arara. Segundo o artista, “o trabalho fala pouco e pergunta muito mais”. Habite-se. Até 9 de dezembro de 2006, na Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92 A, Pina – Recife). Informações: (81) 3325.4728


Reprodução

Vercingétorix, o protótipo de Astérix "Nós estamos em 50 antes de Cristo e toda a Gália está ocupada pelos romanos... Toda? Não! Uma pequena aldeia habitada por irredutíveis gauleses resiste ainda e sempre ao invasor" Guilherme Medeiros

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ssa é a abertura de todos os episódios de As Aventuras de Astérix, o Gaulês, quadrinhos criados por René Gosciny e Albert Uderzo em 1959 e que contam até hoje mais de 30 títulos publicados, além de adaptações para o cinema e cinema de animação. São histórias que apesar de ficcionais estão repletas de referências históricas. Geralmente muito bemhumoradas, as aventuras de Astérix são sempre acompanhadas por Obélix, pelo druida Panoramix, criador da poção mágica que os torna invencíveis, principalmente diante dos invasores romanos, e pelos demais gauleses irredutíveis que habitam a pequena aldeia que resiste tenazmente ao poderio do Império Romano. O herói dos quadrinhos é inspirado em um personagem histórico que, malgrado sua trajetória de vida marcada por uma vitória efêmera e principalmente pela derrota, ocupa lugar de destaque tanto no panteão nacional quanto na mentalidade popular francesa e isso, diga-se de

passagem, de “maneira unânime tanto à direita quanto à esquerda”, no dizer de André Simon, um especialista no assunto, autor entre outros títulos de Vercingétorix e a Ideologia Francesa (Vercingétorix et l'Idéologie Française). Chefe gaulês nascido na Auvergne – região central da atual França, chamada Arverne em gaulês –, em 72 a.C. e executado em Roma em 46 a.C. Era filho de Celtil, chefe dos Arvernos, um dos vários povos celtas que se estabelecem por volta do século 5 a.C. por toda a Europa. O seu nome, Vercingétorix, significa em gaulês “grande rei dos bravos”. Sendo um nobre, recebeu os ensinamentos da escola dos druidas, que tinha como método de ensino a transmissão dos saberes ancestrais por meio da poesia e dos versos. Júlio César, à frente das legiões romanas, invade a Gália Transalpina ou Ulterior com estratégias de conquista bem precisas. Sendo antes de mais nada um diplomata, o procônsul prefere ganhar a confiança dos gauleses ao Continente dezembro 2006


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MITOLOGIA

Personagem Asterix, o gaulês, foi calcado no herói Vercingétorix

invés de os combater diretamente. É assim que distribui títulos de “Amigos de César” aos chefes gauleses mais influentes. No entanto, as lideranças não demoram a perceber que a diplomacia de César tinha como principal objetivo a submissão dos gauleses ao poder romano. Assim, os até então amigos se transformam em inimigos. Várias batalhas se sucedem então e Vercingétorix lidera uma coalisão dos povos gauleses, sendo eleito “rei dos Arvernos” em 52 a.C., ano no qual impõe uma importante derrota às legiões romanas lideradas por Júlio César diante de Gergóvia, a cidadela dos Arvernos, próxima à atual cidade de Clermont-Ferrand, no centro da França. Essa vitória mítica, imposta ao soberano romano, entretanto, não tem efeito duradouro, pois nesse mesmo ano as legiões romanas destroem a cavalaria gaulesa nas proximidades da atual cidade de Dijon, levando Vercingétorix a se retirar para a cidadela gaulesa de Alésia com aproximadamente 800.000 homens. Lá eles são cercados pelas legiões romanas e sitiados durante dois meses. Vencidos pela fome, Vercingétorix dirige-se ao vencedor para a rendição formal, quando ocorre a famoso episódio da deposição das armas aos pés de César. Essa cena é descrita pelo próprio Júlio César em seus Comentários sobre as Guerras da Gália (Commentarii de Bello Gallico). Entretanto, um outro historiador antigo – que mesmo escrevendo alguns séculos mais tarde, teria tido acesso aos arquivos romanos –, o grego Dion Cassius (155-235), nos dá uma versão um pouco diferente para o fato. Ele conta que, após a derrota, não tendo sido Vercingétorix nem aprisionado, nem ferido, poderia ter fugido, mas tendo a esperança de contar ainda com a amizade que o havia unido a César em outros tempos, esperava obter um acordo. Por conta disso, apresentou-se pessoalmente diante do procônsul sem utilizar, como seria de costume, um embaixador para a formalização da paz. César, então, põe a ferros o rei dos Arvernos, que é levado para Roma, onde entra humilhado como troféu de guerra no rito usual das entradas triunfais dos césares ao retornarem vitoriosos das campanhas de conquista. Continente dezembro 2006

Reprodução

Vercingétorix é mantido prisioneiro durante vários anos até ser degolado na prisão em 46 a.C. Terminava assim a resistência gaulesa. A Gália Transalpina passou a ser mais uma província do território romano e as populações celtas foram absorvidas pelo império. Assim, Thomas Lepeltier no seu artigo intitulado “Como Vercingétorix tornou -se um herói nacional” (Comment Vercingétorix devint un héros national) nos indica que até o século 18 o Reino da França baseava a sua mitologia fundadora em Clóvis, o primeiro soberano dos francos. É com a Revolução Francesa (1789) que o personagem histórico de Vercingétorix vai ser apropriado pelo Terceiro Estado como seu mito fundador – lembrando que a sociedade francesa estava então politicamente dividida em três Estados: Nobreza, Clero e Povo – em contraposição ao mito fundador franco. A referência aos ancestrais gauleses torna-se um elemento de retórica primordial no combate contra a aristocracia. Desta forma, o Terceiro Estado faz remontar as suas origens à época pré-romana, aos gauleses que resistiram às invasões romanas até serem vencidos e que, com a queda do Império, teriam sido novamente usurpados por novos invasores, desta vez as tribos germânicas, das quais descenderiam os integrantes da nobreza. A expressão “nossos ancestrais os gauleses”, cunhada nessa época, soava como um desafio, uma chamada ao combate, nas violentas polêmicas dos primeiros anos da Revolução, no dizer de Lepeltier. É também esse autor que nos faz pensar sobre essa escolha, mostrando que haveria outros exemplos de chefes gauleses talvez mais adequados a esse papel, como é o caso de Brennus, que chegou a invadir Roma e pilhá-la em 390 a.C. Entretanto, na visão de André Simon, o exemplo de Vercingétorix pareceu falar mais alto, pois a imagem que se construiu ao longo dos tempos foi de um caráter nobre, capaz de realizar um auto-sacrifício para poupar justamente o povo de maiores privações. É assim que a derrota bélica de Alésia passou a ser lida como uma vitória moral, simbolizando aqueles que mesmo vencidos são vencedores em caráter e em espírito.


Franck Guiziou/AFP

MITOLOGIA

mostram a dicotomia a que Já no século 19, sob está exposta essa “essência Napoleão Bonaparte (1769– irredutível francesa” (a poção 1821), a expressão perde a mágica dos druidas) no munsua virulência combativa, ao do contemporâneo. O que mesmo tempo em que se cada um deles representa nesfazia menção aos ancestrais se enredo? Obélix, um aficciofrancos, não mais como uma nado pela caça do javali, um referência aristocrática, mas gourmand inigualável, que não exaltando sua lealdade e troca os seus javalis – pobravura, que serviam tamdemos ler a sua cozinha de bém para valorizar as origens origem – por quase nada, que da França. É assim que o adora as iguarias e as bebidas patriotismo passa a se inspirar em todas as ocasiões, sempre indiferentemente nos gaucom as emoções à flor da pele, leses e nos francos, sem que a Estátua em homenagem a Vercingétorix, em Clermont-Ferrand representa a França mais trapreferência por uns ou por dicional, mais profunda, mais camponesa, somando-se a outros seja revestida de um caráter político. Em todas essas discussões o personagem Vercingétorix isso que não precisa nunca mais beber da poção mágica, não aparece ainda como o centro das atenções, muitas ve- pois tem em si os seus efeitos permanentes. Por outro lado, Astérix, apesar de ter os gostos muito zes se evoca outro chefe gaulês, Brennus. É no contexto político e bélico do final do século 19 que o mito de parecidos com os de Obélix, apresenta sempre um caráter Vercingétorix se impõe unanimemente, pois entre os acon- mais curioso em relação ao mundo. Perspicaz ao extremo, tecimentos dessa época encontramos a tomada de Paris sem perder sua grande generosidade, representa o aspecto pelas tropas prussianas, após a destruição dos exércitos inquiridor e desafiador da inteligência, capaz inclusive de diálogos diplomáticos com os seus inimigos mais viscerais, franceses. Foi então nessas condições que a imagem de Vercin- os romanos. Representa o aspecto da alma francesa aberta gétorix começou realmente a se impor como o valoroso ao mundo exterior, inquiridora e diplomática. No entanto, guerreiro que fez o auto-sacrifício para salvar a pátria em é bom frisar, apesar de todos esses talentos, Astérix precisa perigo. Essa imagem do chefe gaulês atingiu um sucesso renovar sempre suas forças, infundindo-se de suas raízes tão grande que todos os partidos políticos se apropriam mais profundas, a poção mágica que o torna invencível. Assim, vemos que o mito continua pulsando. Depois dela em meados do século 19. Entretanto, como nos das discussões seculares sobre sua ascendência, se dos afirma Thomas Lepeltier, parece-nos que o mito perdeu um pouco da sua característica política hoje em dia, a francos ou dos gauleses, os próximos desafios que se cofigura de Vercingétorix continua a veicular uma carga locam para a França do século 21 são o assumir a sua ideológica por meio dos quadrinhos. O “herói” Astérix composição multicultural e multiétnica – discussão acirranão apresenta as características visíveis – ou físicas – da depois da crise dos subúrbios e das passeatas nos deparidealizadas para um herói. Baixinho, um pouco franzino, tamentos do ultramar em 2005 – e o papel que o país com longos bigodes, ele parece mais o anti-herói, sempre deverá desempenhar no cenário mundial. Assim, não é acompanhado por Obélix, ao ponto de alguns críticos de estranhar José Bové, com seus longos bigodes à acharem uma injustiça que apenas o nome de Astérix moda camponesa francesa, combatendo os gigantes multinacionais dos transgênicos e fast-foods. Com que apareça no título. A sintonia entre Astérix e Obélix e o papel que eles armas? Com queijos e o velho e bom vinho franceses. representam no contexto das suas aventuras ficcionais nos Voilà la France! • Continente dezembro 2006

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O ofício da Arquitetura – uma crítica no século 21 O ofício da arquitetura teve uma trajetória cujo foco foi, em alguns momentos, proporcionar contribuições relevantes à sociedade, mas hoje vive uma fase de predomínio do individualismo

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Fellipe de Andrade Abreu e Lima


ARQUITETURA No Renascimento, a Arquitetura era uma ferramenta de evolução social

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tualmente, observamos uma fragmentação social, política e cultural desde as pequenas cidades até as maiores metrópoles do mundo. Salvo poucas exceções, todos os países estão enfrentando problemas de ordem social, com guerras civis, concentração de capitais e enormes diferenças educacionais entre as diversas camadas da população. A atuação política, desde a Europa Oriental, passando pelos autoritarismos orientais e chegando à América Latina, está plena de corrupção e demagogia. A cultura, que deve ser uma força de unidade nacional, fragmenta a sociedade e cria classes cada vez mais distintas. Neste contexto, devemos nos perguntar qual o papel da “Arquitetura” enquanto ofício e qual deve ser a postura da classe profissional dos arquitetos e urbanistas. Para exemplificar a importância da atuação dos arquitetos perante esta questão, tomo como referência o arquiteto alemão Walter Gropius (1883 – 1969), um dos ícones da vanguarda arquitetônica do século 20, considerado entre os próceres desta época aquele que mais ostensivamente se preocupou com a racionalidade e a relevância social da prática arquitetônica. Gropius, um dos idealizadores da Escola de Arquitetura Bauhaus (Alemanha), enfatizou o papel transformador da arquitetura, fazendo ressurgir um discurso doutrinário que visava à resolução de problemas sociais e políticos. Ainda neste século, seguindo esta mesma ordem de raciocínio, um dos mais famosos historiadores da arte, o suíço Siegfried Giedion, dizia que: “Toda a arte autêntica tem por tarefa criar um acesso, uma chave para o mundo”. Com efeito, a arquitetura, enquanto arte, cria teorias transformadoras que surgem, de tempos em tempos, para melhoria do mundo. Contudo, não raramente, é manipulada pelo sistema político. Por conseguinte, o papel da arquitetura como catalisador das transformações sociais se inverte, tornando-se mais um elemento de força de estagnação social. Voltemos um pouco à história do ofício da arquitetura para demonstrarmos que houve vários momentos em que esta ciência deu contribuições relevantes à sociedade, e outros, em que não passou de uma ferramenta de um sistema autoritário de dominação. Na Grécia e Roma Antiga, os arquitetos eram homens detentores de conhecimento matemático e astrológico, o que os capacitava para a construção de grandes edifícios. No período medieval, entre os séculos 5 e 15, os poucos arquitetos de que se tem conhecimento eram “construtores” manuais, ou seja, mestres-de-obras que haviam tido alguma orientação de outro mestre. O conhecimento era transmitido oralmente. Apenas no Renascimento, com as enormes transformações ocorridas em todos os campos do conhecimento, a tradição oral perde espaço e surgem as academias. A arquitetura se especializa e cria sua própria base epistemológica. Durante este período, percebemos que o arquiteto supera o magister operis medieval, criando as relações entre estética e ciências naturais para a produção arquitetônica. Surge assim, o ofício arquitetônico propriamente dito, como meio de transformação da sociedade. Continente dezembro 2006

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ARQUITETURA

O movimento moderno na arquitetura, surgido em meados de 1900, teve como fim mais nobre reinterpretar uma forma de vida que provém do nosso tempo ou que o nosso tempo exige. Mas, será que estas idéias se materializaram? Será que a arquitetura tem respondido às demandas sociais? A resposta é enfaticamente negativa. A arquitetura não descobriu maneiras adequadas de conceber o habitat social, nem mesmo de fazer transformações na estrutura urbana nas cidades modernas e contemporâneas. Resta-nos saber quais os motivos que inibem a eficácia desta classe profissional. Como ser um arquiteto e urbanista, se temos, contra nós, leis urbanas que não favorecem a qualidade do espaço público? Mas há indícios de uma luz no fim do túnel, como atestam as idéias de Gropius. O movimento moderno ousou democratizar a habitação, ultrapassando barreiras seculares em prol de uma sociedade mais igualitária. A ideologia do movimento moderno na arquitetura teve, pelo menos no seu início, a audácia de suplantar as estruturas do sistema político da época, apresentando soluções que visavam responder às demandas sociais. Ademais, após diversos fracassos urbanos em todo o mundo, Anatole Kopp, autor de um livro sugestivamente intitulado Quando o moderno não era um estilo e, sim, uma causa, fez-nos lembrar que os construtivistas e os funcionalistas dos anos 20 acreditavam que a história lhes reservara uma missão; para realizá-la, eles aceitaram riscos que a imensa maioria de seus colegas não soube ou não quis aceitar. Ao contrário do que pensa uma maioria, a arquitetura não é forma deturpada de uma imaginação ou uma disciplina que projeta de acordo com as necessidades técnicas construtivas. A arquitetura é, sobretudo, a transformação da sociedade através do ambiente, da construção. É uma religião, na medida em que materializa uma cultura ou um desejo social. Nesse sentido, podemos citar Karl Marx, que via nas vanguardas artísticas de sua época, incluindo as arquiteturas, um reflexo da sociedade existente, e que essas eram os instrumentos de uma revolução sem armas.

Bairro popular Törten, em Dessau (Alemanha) – 1927. Influência da Escola Bauhaus e do teórico e arquiteto Alamão Walter Gropius


A arquitetura atual, ferramenta de um sistema autoritário, está criando segregação social e prejudicando a qualidade urbana

Hans Manteuffel

Neste contexto, literatura sobre a arquitetura moderna menciona que há relações de causa e efeito nas manifestações sociais e políticas dos meios “progressistas”. Lúcio Costa, criador do plano piloto de Brasília, fez alusões explícitas à função de transformação social da arquitetura. Ao longo da história do ofício da arquitetura, percebemos os estilos que priorizam a melhoria do espaço se sobressaindo, na tentativa de estabelecer uma consonância entre a arquitetura e a sociedade. Infelizmente, sempre há “obstáculos epstemológico-sociais” que reduzem nossa arte-ofício ao “rés do chão”, e o resultado são vis construções, despidas de racionalidade. O maior objetivo da arquitetura, melhorar o ambiente e adequá-lo às conjunturas históricas, sociais e culturais vigentes, confina-se à resposta de um repressor sistema dominante. Corroborando com esta idéia, de dar a todos as condições de moradia e vida digna, o arquiteto Le Corbusier defende as unités d’habitation mínima. A função social do arquiteto é claramente evidenciada quando são apresentadas soluções para os problemas de habitação, transporte, lazer e reformas urbanas. Entretanto, a força transformadora da arquitetura é usada para burlar leis estáticas que regem o processo de adensamento e para a criação de

soluções indesejáveis que prejudicam o espaço urbano. Neste embate entre o poder do capital e a sociedade, assistimos à derrocada da qualidade urbana. O capital imobiliário, amontoando famílias sobre famílias em condomínios fechados, é mais importante que espaços de convívio público. Nós, arquitetos e urbanistas, somos responsáveis pela criação de castas sociais, de preconceito e de segregação. Não estamos criando uma nova “casa-grande” vertical e forçando os “escravos” a criarem suas senzalas nas beiras dos rios ou nas encostas? A trajetória do ofício da arquitetura desembarcou no individualismo arquitetônico atual. Cada vez mais os arquitetos projetam obras sem valor artístico. Os edifícios são esculturas gigantes que olham para si mesmas e dão as costas para a coletividade. Os muros segregam o espaço urbano e os condomínios fechados festejam o aumento nas vendas. Os arquitetos estão plantando a segregação social e não percebem que são escravos de um sistema autoritário. Estamos criando nossas próprias senzalas e não nos damos conta. O pensador sueco, do século 17, Axel Oxenstierna, disse uma vez: Videbis, fili mi, quam parva sapientia regatur mundus. É difícil admitir, mas ainda hoje ele tem razão! • Continente dezembro 2006


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Os antigos vasilhames (leite, final)

I

mpossível esquecer os vasilhames de leite deixados na porta de casa, manhã bem cedinho - pequenos, robustos, de vidro grosso e transparente, com figuras em alto relevo de uma vaca ou apenas a palavra leite. Ainda ouvimos, na imaginação, a voz forte e algumas vezes rouca do leiteiro anunciando a chegada desse leite, num atropelo de palavras. Tanto que “falar como o preto do leite” é, até hoje, falar demais. Pelos cotovelos. Só não se entendia era o que ele dizia. Tão diferente de alguns pregões do passado. Como o dos vendedores de pitomba, repetindo sempre “Pitomba! Olha a pitomba! Chora menino pra chupar pitomba!”; ou o da “Macaxeira, bahia, cozinha na água fria, dona Maria!”; ou, ainda, o do vendedor de coisas da cozinha, amarradas nas costas – “vassoura, espanador, vasculhador, toalha de angola, ciscador, colher de pau, raspa-coco e grelha”. Mas impossível, também, esquecer o trabalho que o leite dava, naquele tempo. Como o de ser fervido, logo que chegava – por não ser engarrafado corretamente e pelo “batismo” quase inevitável que sofria, nas vacarias dos bairros. Sem contar que nesse ferver, de preferência três vezes, transbordava da panela e sujava o fogão todo. Mas esse passado passou. Os antigos vasilhames são, hoje, peças de museu – substituídos que foram por saquinhos plásticos, caixas de papelão ou latas, tudo cuidadosamente arrumado nas prateleiras de padarias ou supermercados. Também o preto do leite perdeu-se na

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memória. E a própria palavra leite, hoje, não anda mais sozinha. Vindo sempre acompanhada de complemento – pasteurizado, ultrapasteurizado (UHT), esterilizado, tipo A, B ou C, integral, desnatado, semidesnatado, homogeneizado, sem lactose, enriquecido, aromatizado, achocolatado, condensado e, mesmo, evaporado. A poesia perdeu-se no tempo. Durante muito tempo, o leite foi grande transmissor de doenças. Por ser consumido ao natural. Sem nenhum tratamento. Assim foi até quando o cientista francês Louis Pasteur (1822 – 1895) descobriu uma técnica para eliminar seus microorganismos – em sua homenagem denominada “pasteurização”. Consistia em elevar a temperatura do leite a 72º/ 75º C, durante 15 segundos; para, logo depois, resfriá-lo a 2º / 5º C. Um processo que se fazia sem alteração de sabor, aspecto ou teor dos nutrientes desse leite. Ainda com a vantagem de torná-lo mais puro. E, sobretudo, permitindo que pudesse ficar guardado na geladeira, por até dois dias. Uma grande conquista. Esse leite, assim pasteurizado, pode ser de três tipos: A (de controle mais rigoroso, embalado na própria fazenda); B (embalado na indústria, longe da fazenda onde foi recolhido); ou C (como o B, só que tendo maior numero de microorganismos e menor concentração de gordura). Com o tempo as técnicas de conservação desse leite foram evoluindo. Veio a ultrapasteurização (UHT – ultra high temperature), sendo o leite tratado em temperaturas ainda


SABORES PERNAMBUCANOS Imagens: Reprodução

mais elevadas (145º), por dois a quatro segundos, e depois resfriado (5º). Garantindo a eliminação de todos os microorganismos, é certo, mas perdendo, no processo, alguns nutrientes. Sua maior vantagem é poder ser guardado fora da geladeira (antes de aberto, claro), por mais tempo – razão pela qual recebeu também o nome de Longa Vida. Vem em embalagem especial (Tetra Brik ou Tetra Pack), hermeticamente fechada. Invenção, em 1952, do sueco Ruben Rausing, são 6 camadas protetoras - duas de plástico, uma de alumínio, outra de plástico, outra de papel, e uma última por fora, novamente usando plástico. Outra técnica de conservação é a Esterilização – submetendo o leite a variações térmicas ainda mais fortes, após o que é embalado hermeticamente e novamente aquecido. Mas nele se perdem ainda mais as suas qualidades – cor, cheiro, sabor, nutrientes. Considerando a quantidade de gordura, leite pode ser: integral – mais gordo (com, no mínimo, 3% de gordura, em 100 ml); semidesnatado (variando entre 0,6% a 2,9%); desnatado (mais magro, no máximo 0,5 %). Quanto mais gordo o leite maior a formação de natas. A princípio essas natas eram obtidas com o leite em repouso – levando a que suas partículas de gordura, mais leves que o restante do líquido, subissem à superfície. Depois, com a industrialização, passaram a ser usadas centrífugas que separam a parte gorda do resto do leite. Nascia assim, aos poucos, o creme de leite. Pelas mãos dos franceses, que o usavam em quase todas as suas receitas – sopas, molhos, gratinados, cremes, caldos, sorvetes, musses, bavaroise de frutas, pudins, bolos, pavês, tortas e doces. Quanto mais gordura tiver o leite, bom lembrar, melhor será o creme de leite. Da França nos vem o campeão, o crème fraîche, com 60% de gordura. Da Inglaterra, frozen cream, half cream, single cream, spooning cream, soured cream, clotted cream, UHT cream e whipping cream, todos com no máximo 55%. No Brasil, temos o fresco (em garrafas de plástico, com 35%), o ultrapasteurizado (em caixinhas, com 30%) e o pasteurizado (em lata com 25%). Leite homogeneizado, sem nata, se faz em equipamento de alta pressão que fraciona sua parte gorda, distribuindo uniformemente a gordura. As invenções não param por aí. Até leite quase sem lactose existe – salvação dos que têm intolerância a essa substância (por apresentarem deficiência na produção de uma enzima, a lactase). Sem falar da grande novidade que são os leites enriquecidos com vitaminas (A, D, B6, B12, C, E, ácido fólico, nicotinamida), cálcio, ferro, fibras, ômega 6 e ômega 3. Havendo até leites com sabor de chocolate, morango, café, baunilha. Para todos os gostos. Leite condensado, como tantas outras invenções, nasceu por acaso. Deu-se que o americano Gail Borden, em 1856, tentava um jeito de facilitar o transporte e o armazenamento

do leite. Influenciado pelos trabalhos já na época bem conhecidos de dois franceses. De Denis Papin (1710), inventor da marmita (dita “de Papin”), esterilizada no vapor com válvula de segurança – que permitia guardar ingredientes cozidos em depósitos de vidro hermeticamente fechados. E de Nicolas Appert (1810), autor da famosa obra L’Art de Conserver, pendant plusiers annés, toutes les substances animales e végétales, que ensinava técnica de conservar alimentos por longo tempo. Teve, então, a idéia de desidratá-lo. E notou que, antes de ser transformado em pó, esse leite condensava. Surgiram assim, ao mesmo tempo, leite em pó e leite condensado – duas grandes invenções da culinária. Não lhes deram importância, por essa época. Cinco anos depois, começou a Guerra de Secessão Americana. E esses leites foram muito úteis. Por serem fáceis de transportar e sobretudo por se conservarem, nas latas, por muito tempo. Borden ficou rico. Leite condensado começou também a ser fabricado em Cham (Suíça), a partir de 1867, pela fábrica Anglo Swiss Condensed Milk Co. – do também americano Charles A. Page. Na cidade vizinha de Vevey estava um concorrente seu, a Société Nestlé. Mas o Dr. Henri Nestlé tinha, por essa época, preocupações apenas humanitárias. Queria encontrar solução para o problema da desnutrição infantil. Depois de muita pesquisa, afinal encontrou uma fórmula simples e eficiente – a farinha Láctea. Aproveitou e, depois, também ficou rico. O produto chegou ao Brasil em 1876. Continente dezembro 2006

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SABORES PERNAMBUCANOS Mais tarde, em 1905, as duas empresas acabaram se fundindo com um só nome – Nestlé. Tinha, como produto de maior prestigio, aquele leite condensado. Sucesso global. No rótulo, tinha o desenho de uma moça carregando baldes de leite, vestida com traje típico de camponesa suíça. A marca variava, dependendo do lugar – “Milkmaid” (EUA), “La Laitère” (França), “La Lechera” (Espanha), em todos esses casos significando sempre “vendedora de leite”. Para o resto do mundo, era apenas “Condended Milk – Milkmaid brand”. Assim chegou ao Brasil. Em 22 de janeiro de 1890 O Estado de S. Paulo trazia, entre seus classificados, um anúncio discreto – “desembarcou no Brasil, e está à venda a varejo e a grosso, na drogaria São Paulo, na rua São Bento, um novo produto – o ‘Condended Milk – Milkmaid brand’ ”. A dificuldade em pronunciar o nome acabou levando o povo a chamá-lo só de “a lata da mocinha” – referência óbvia à ilustração da camponesa. Por volta de 1921 começou a ser fabricado em Araras, interior de São Paulo. Já então com o nome de “Leite Condensado Marca Moça”. Depois, “Leite Condensado Moça”. Mais um pouco, “Moça – leite condensado”. Até ser, apenas, “Moça”. Aqui chegou como bebida. Devia ser então misturado com água, antes de oferecido às crianças. Mas, em pouco tempo, acabou entrando sobretudo na preparação de sobremesas – pudim, doce-de-leite, beijo, brigadeiro, cajuzinho, cocada, canjica, arroz-doce, cobertura e recheio de bolo. Em 1934, chegaram as primeiras geladeiras. Com elas, aquele Leite Moça passou a ser usado também na preparação de sorvetes, musses, cremes gelados. Depois também outros equipamentos modernos de cozinhas – fogão a gás, freezer, panela esmaltadas e de pressão, formas de alumínio e refratários, e, mais recentemente, o forno de microondas. Mas essas são outras histórias. Certo é que Leite Moça revolucionou a doçaria brasileira. Por permitir grande economia de tempo, na preparação dos pratos. Depois da Nestlé, outras marcas também chegaram ao mercado – Glória, Mococa, Parmalat (latte de Parma). Mais recentemente também uma versão light, menos gorda. E um leite evaporado – menos usado e mais difícil de ser encontrado. É leite que tem sua água evaporada em 50%. Na aparência espesso, quando batido em batedeira triplica de volume. “Ideal” (essa é também a marca de leite evaporado mais conhecido) para fazer sorvete e musse. Leite é produto de mil e uma utilidades. Usado até como remédio. Tira mancha roxa, olheira, espinha e cravos (compressa de nata de leite de vaca); sardas (esfregar limão com leite); acalma a tosse e afrouxa o catarro (tomar leite queimado); elimina lombriga (inalar o vapor do leite fervendo - lombrigas sentem o cheiro e saem). Mas pode ser também, segundo a lenda, veneno – quando misturado com melancia e manga. Uma crença utilitariamente difundida por donos de fazendas, especialmente quando a safra de fruta Continente dezembro 2006

era grande. E pouco o leite. Outra lenda é a de que nunca deve ser tomado depois da cachaça – que talharia o leite no estômago, provocando dores e mal-estar. Não durou muito, essa crença. Com cachaça e leite condensado aparecendo misturados em drinks famosos – como “Leite de onça” e “Leite de camelo”. Com o vinho fará bem ou mal, segundo outra lenda, dependendo da ordem em que for tomado – “vinho depois do leite, saúde. Leite depois do vinho, veneno”. Por falar em vinho, bom lembrar que “Liebfraumilch” não é, como se diz, “leite da mulher amada”. É só vinho feito pelos “Monges de Nossa Senhora”. Em que Liebfrau é Nossa Senhora, e milch, forma arcaica (em alemão) da palavra monch, em português monge. Leite, hoje, é já parte de nossa cultura: “Chorar o leite derramado” é se arrepender. “Tirar leite de pedra” é (quase) conseguir o impossível. “Tirar leite de vaca morta” é explorar o outro. “Esconder o leite” é ter e fingir que não tem. Faltando só falar nos subprodutos do leite - coalhada, iogurte, queijo. Mas isso fica para outro artigo. Por fim, só lembrar que aquela faixa luminosa de estrelas, cortando o céu de fora a fora, é conhecida como Via Láctea, “caminho de leite”, era assim chamada pelos gregos antigos. Essa faixa é a visão que temos de nossa própria galáxia, vendo-a por dentro. Galáxia, antes que esqueça, vem também do grego. E quer dizer “branco leitoso”. • RECEITA: MUSSE DE LIMÃO Foto: Mariana Oliveira

INGREDIENTES 1 lata de leite evaporado Ideal 1 ½ xícara de açúcar 6 colheres de sopa de suco de limão PREPARO · Coloque a lata de leite evaporado na geladeira até que fique bem gelada. · Bata esse leite, na batedeira, até que duplique de volume. · Junte o açúcar e o limão. Misture. · Coloque em recipiente que vá ao freezer, e decore com raspa de limão. · Retire do freezer na hora de servir.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

O cheiro da guerra

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uando as tropas de George Bush invadiram o Iraque, em 2003, o Fantástico me pediu que escrevesse um texto sobre a experiência de ter visto uma guerra. Eu vi, em 1944, na Europa. Não pode haver nada tão execrável quanto uma guerra. Quem participou de uma guerra, como é o meu caso, jamais poderá esquecê-la. Porque a guerra rouba tudo de você – principalmente, os anos. A guerra nos envelhece. Fui à guerra com 26 anos de idade. Passei somente onze meses lá. Mas é como se eu tivesse passado 20 anos. Quando voltei para casa, parecia que eu tinha 40 anos de idade. A guerra nos amadurece de uma maneira terrível. Outra coisa que jamais se pode esquecer de uma guerra é o cheiro que fica em nossas narinas para toda a vida. Eu senti: o cheiro da guerra é uma mistura terrível de sangue com óleo diesel. Mas o pior da guerra não é a frente de batalha propriamente dita, onde você fica de um lado e o inimigo de outro. O pior da guerra é o que ela provoca no caminho por onde passa. A guerra subverte todos os valores. Além de espalhar a ruína material, a guerra transforma os homens – principalmente os civis vencidos – quase em animais na luta pela sobrevivência. Vivi uma guerra. Posso dizer: o que a guerra nos tira, não devolve nunca mais. • (*) Trecho de O Livro das Grandes Reportagens, recém-publicado pela Editora Globo, com textos de José Hamilton Ribeiro, William Waack, Joel Silveira, Edney Silvestre, Luiz Carlos Azenha, André Luiz Azevedo, Fernando Molica e Geneton Moraes Neto. Continente dezembro 2006

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CINEMA

Fotos: Divulgação

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Kieslowski, pensador de imagens Paraíso, Inferno e Purgatório convivem no cinema-poesia do cineasta polonês Marcelo Costa

Irène Jacob e Jean-Louis Trintignant estrelaram A Fraternidade é Vermelha (1994), último filme de Kieslowski


CINEMA

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xímio pensador de imagens visuais e sonoras, Krzisztof Kieslowski foi alçado, após seus dois principais projetos – O Decálogo e Trilogia das Cores –, a uma espécie de redentor do cinema europeu em pleno marasmo cinematográfico desse continente. Construídos sob fotogramas de forte conteúdo poético, seus filmes se consumavam, sobretudo, no olhar do ser humano em meio aos movimentos dolorosos que a vida nos impõe. Nenhuma percepção em sua obra é única; os sentimentos jamais se isolam. Uma profusão sensorial toma o espectador num cinema permeado pela melancolia, que por vezes soa como uma ode à vida. Poucos diretores de sua geração expressaram tão bem idéias e sensações via delicado virtuosismo de imagens: os objetos em cena, o silêncio, as notas musicais e o acaso, ou destino, compõem obras simétricas que se justificam, dando-nos a percepção de que tudo está em seu devido lugar. Falecido há 10 anos, completos em março deste ano, o cineasta polonês é celebrado com o lançamento em DVD da Trilogia das Cores e de A Dupla Vida de Veronique, pela Versátil. Nascido em Varsóvia, a 27 de Junho de 1941, Krzisztof Kieslowski teve uma infância nômade, já que a família acompanhava o pai tuberculoso de sanatório em sanatório. Após várias tentativas, ingressou na renomada Escola Superior de Cinema, Televisão e Teatro de Lodz, por onde passaram grandes nomes do cinema polonês como Andrzej Wajda e Roman Polanski. Formou-se em 1969 e um ano depois entrou para a TV polonesa, onde, até 1988, dirigiu 20 curtas de ficção e documentários, além de três telefilmes. A estréia no cinema deu-se em 1976, com o longa-metragem A Cicatriz, censurado pela cortina de ferro polonesa. Movimentos grevistas, governo desfigurando uma região para a construção de uma indústria: Kieslowski lançava um olhar sobre o humano submerso pela burocracia estatal. Em seguida, filmou O Amador (1979), sobre a experiência cinematográfica de um trabalhador que comprara uma câmera para filmar a filha recém-nascida e é impelido a se tornar cineasta. Em conjunto, esses filmes permitem visualizar a engrenagem comunista e soam como amargos retratos de dias sem liberdade. Depois vieram O Acaso (1981) e Sem Fim (1984). Mas foi com O Decálogo (1988), composto por 10 episódios produzidos pela TV polonesa, referentes aos mandamentos bíblicos, que Kieslowski ganhou notoriedade e o reconhecimento mundial. A abordagem política cedia lugar para a análise da alma humana em dramas individuais. Em cada episódio, os personagens se deparam com um dilema moral e demonstram sua impotência diante do movimento da vida. Iniciado com uma obra-prima – o episódio correspondente ao mandamento “Amar a Deus sobre todas as coisas” – O Decálogo instaurava a morte como elemento fílmico, seja na sua consumação ou apenas rondando à espreita, mas nunca como o oposto da vida e, sim, uma parte integrante desta. Apesar de exibido na TV, tornar-se-ia entre os cinéfilos uma

Kieslowski foi um dos poucos diretores da sua geração que soube expressar muito bem idéias e sensações através de um delicado virtuosismo de imagens

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CINEMA Inspirada nas três cores da bandeira francesa, e conseqüentemente nos lemas da Revolução – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, a trilogia compilava elementos temáticos e suas qualidades de diretor de verve imagética das mais importantes obras da década de 80 e dois de seus episódios, o quinto e o sexto, seriam adaptados para o cinema em Não Matarás e Não Amarás. Em Não Matarás, Kieslowski teceu um forte libelo contra a pena de morte, mas sem esconder a face sórdida da alma humana. Com cenas de brutal violência, realizadas numa estética crua de filmagem, o filme argumenta que uma ação monstruosa não corresponde à monstruosidade de seu autor. A frase de Marx “Nunca desde Caim, punição alguma melhorou o mundo ou evitou que crimes fossem cometidos”, proferida no início do filme, dá a tônica da história. Com belíssimas seqüências inicial e final – uma marca O segundo filme da trilogia, A Igualdade é Branca, marca o retorno do diretor à Polônia, de Kieslowski – Não Matarás parece ter sua terra natal influenciado Lars Von Trier em Dançando no Escuro e Gaspar Noè em Irreversível. Já em Não Amarás, trilha sonora de Zbigniew Preisner. Esteticamente era o referente ao mandamento “Não atentar contra a castida- prenúncio do próximo e mais popular trabalho. Inspirada nas três cores da bandeira francesa, e de”, Kieslowski propõe uma jornada de voyeurismo – a associação à Janela Indiscreta de Hitchcock é inevitável –, conseqüentemente nos lemas da Revolução – Liberdade, amor, culpa e liberdade, ou falta desta: elementos que Igualdade e Fraternidade –, a trilogia compilava elementos temáticos e suas qualidades de diretor de verve reapareceriam na Trilogia das Cores. Após a queda do muro de Berlim, o cineasta polonês imagética. “Quando o comunismo caiu, esses temas foram eleitos para os próximos anos. Achávamos resolveu filmar na França. A Dupla Vida de Veronique (La liberdade uma palavra muito importante, Double Vie de Véronique, França/ Polônia, mas o que ela significa realmente?”, per1991) foi seu primeiro filme rodado gunta Piesiewicz, em referência ao primeiro fora da Polônia. Com reflexões sofilme da saga. bre espaço e temporalidade, o filme A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, trata da história de duas mulheres, França/ Polônia/ Suíça, 1993) é um convite uma polonesa em Varsóvia – Weroà imersão na alma torturada de sua pernika –, e outra francesa, em Paris – sonagem em sua tentativa de conviver com Verònique –, ambas interpretadas a perda. Julie (a excelente Juliette Binoche) por Irene Jacob, que apesar da perde o marido, um famoso compositor, e a distância sentem-se afetivamente filha num trágico acidente de carro. ligadas entre si. Se por um lado o Traumatizada, ela procura se libertar de filme perde um pouco de vigor, por tudo que lhe lembre o passado e, aos poucos, outro, mantém a beleza poética de tenta reencontrar a vontade de viver. Repleto de sua narrativa, regada pela soberba Continente dezembro 2006


CINEMA

Juliette Binoche em A Liberdade é Azul: imersão na alma torturada pela perda

espaços desabitados, o filme nos dá a sensação de choro engolido, irrompido apenas pela música presente como a lágrima não derramada por Julie, pontuando suas sensações e lembranças em momentos de cortante beleza. A melancolia se veste de azul para compor uma obra-prima. O segundo filme, A Igualdade é Branca (Trois Couleurs: Blanc, idem, 1993), marca um retorno de Kieslowski à Polônia. O tom adotado é mais ameno, mas não menos lírico. Com sutis doses de humor, ele revela a desigualdade presente nas relações humanas, decorrente da impossibilidade de comunicação e, portanto, da incompreensão. O filme funciona como uma estranha celebração à vida, algo partilhado pelo cinema do sérvio Emir Kusturica e por O Homem sem Passado de Aki Kaurismaki. Fechando a trilogia, no que seria seu último trabalho, A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, idem, 1994), retomaria alguns temas de sua filmografia – a metafísica e a atriz de Veronique e o voyeurismo de Não Amarás – e reuniria os elementos narrativos da trilogia, dando-nos a completa sensação de coesão, de uma obra que não deve ser vista isoladamente. Consolidando a

estrutura da personagem estilhaçada que busca colar os cacos, o filme analisa a fraternidade de sensações e sentimentos existente entre os seres humanos, numa história sobre indiferença, redenção e compaixão. Kieslowski morreu em 1996, em pleno auge da carreira, vítima de um ataque cardíaco. Assim não pôde prosseguir com seu novo projeto: uma trilogia baseada na Divina Comédia. Com roteiros prontos, a idéia ganhou novos realizadores. Tom Tykwer, de Corra Lola, Corra, assumiu a direção do poético Paraíso (Heaven, Alemanha e EUA, 2002), uma fábula lírica sobre o amor, punição e sacrifício, cujo destino é o céu. O segundo episódio, Inferno (Hell, 2005), sobre desintegração familiar, foi dirigido pelo bósnio Danis Tanovic, do premiado Terra de Ninguém (No Man's Land, 1999), e o Purgatório ainda não foi realizado. De qualquer modo o cinema-poesia de Kieslowski sobrevive – na melancolia e beleza de imagens de Tirésia, do italiano Bertrand Bonello ou no lirismo dos filmes de Patrice Leconte – juntamente com a idéia de que paraíso, inferno e purgatório convivem neste turbilhão de sensações chamado viver. • Continente dezembro 2006

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O roteiro do roteiro O que significa o roteiro na complexa arquitetura de um filme e por que escritores famosos fracassaram em Hollywood

Divulgação

Fernando Monteiro


CINEMA

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as madrugadas da cerimônia de entrega do Oscar, espectadores do mundo inteiro vêem mulheres e homens praticamente desconhecidos subirem ao palco do teatro preparado para a festa da Academia hollywoodiana, a fim de receberem os cobiçados prêmios de “melhores roteiros” (original e adaptado). Depois, costumam sumir da faixa do tapete vermelho que prossegue sendo pisado por astros, estrelas e diretores. São os roteiristas – fundamentais para a indústria do cinema. Apesar disso, não sei de ninguém que tenha pedido o autógrafo a um roteirista premiado (minto: conheço um cinéfilo de Minas que guarda um livro assinado por Howard Koch, um dos autores do script de Casablanca). Seja como for, o quase anonimato de tais escritores não é motivo para se pensar que, na noite glamorosa, a Academia esteja a perder seu precioso tempo– curto para os agradecimentos a pais, esposas, maridos e cachorros – com a justa homenagem ao trabalho dos que lidam com o documento prévio que é a “hipótese de um filme”. Antes do mais, seria, o roteiro, a tal “hipótese” mesmo? E quando e quanto? As perguntas em torno dessa definição já clássica colocam a questão do que vem a ser, em essência, a espécie de “libreto” ou ponto zero – de partida literária – de uma obra cinematográfica, ou seja, de uma narrativa fundada na imagem, e que, portanto, por ela se resolve. De modo que a definição talvez não baste – na sua aparente simplicidade de linha reta entre dois pontos, isto é, entre a idéia (o argumento) e o resultado final projetado na tela que é a única coisa plana nessa questão. Ora, a roteirização, ou screenplay, pode ser muito mais do que a frase sugere, como definição mais ou menos redutora, por exemplo, para quem creia no chamado “roteiro de ferro” dos velhos tempos de Pudovkin – porque ainda existem diretores dispostos a seguir até as vírgulas escritas por eles próprios ou, mais freqüentemente, por ou-

tros. Férreo ou complacente, a categoria dos Robert Bolt (roteirista de Lawrence da Arábia) não mereceria sumir pelo caminho dos tapetes secundários, pós-Oscar. Injustiça? A vida-é-assim-mesmo? Ou, sem lamentações, por que não tentar abrir a discussão, visando a medir o quanto pesaria o filme escrito (que ainda não é o filme, lembremos) na construção tanto de uma obra-prima do nível de Citizen Kane quanto de uma porcaria como Olga? Afinal, no ano passado houve o reconhecimento – pela Academia sueca – da obra de um dramaturgo que é hoje reconhecido muito mais como roteirista do que como homem dos palcos. Harold Pinter conquistou o prêmio Nobel de Literatura pela sua contribuição ao teatro e também pelo seu trabalho no cinema, como autor do script de filmes artisticamente soberbos, dentre os quais bastaria lembrar O Criado, baseado na novela homônima (The Servant) de Robin Maugham, The Go-betweeen (novela do estranho L. P. Hartley) e A Mulher do Tenente Francês, o admirável romance de John Fowles que se transformou numa obra autônoma pós-adaptada, por Pinter, para as mãos do talentoso diretor Karel Reisz.. Uma coisa, pelo menos, esteja assente (e a carreira de Pinter – e outros – exemplifica-a claramente): o roteiro é o ponto de intersecção entre literatura e cinema, a ponte de passagem de uma linguagem para a outra, embora o segundo deva se afastar o mais possível da primeira, para tomar uma distância prudente do chamado “cinema literário”, ou filme não de cinema, mas de sobrevivência da palavra não só nos diálogos. Porque uma obra cinematográfica pode soar falsa justamente porque não se “livra” de todo e qualquer componente que não seja da sintaxe fílmica, como o sabe um Walter Salles e como nem o imagina um Jayme Matarazzo. O fato é que ambos os dois – como diria o filho de Maysa – partiram dele, o Roteiro. Isto é, Central do Brasil e Olga tiveram suas partidas no Continente dezembro 2006

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CINEMA texto (aquela “hipótese” inicialmente referida) criado para se tornar outra coisa, com o acréscimo dos meios narrativos que a sétima arte integra no seu corpus feito de outras, totalizadora e múltipla como ela nasceu das feiras livres de saltimbancos do teatro de sombras projetado pela lâmpada dos Lumière. (Nunca é demais lembrar: cinema não se resolve apenas como fotografia e movimento, nem dispensa a música, o som, mas junta tudo para criar a ilusão até de tridimensionalidade, no uso da volumetria, da profundidade de campo e do aproveitamento do espaço seja de um quarto ou seja de Monument Valley – amalgamando o micro e o macro, o primeiro e o grande plano, a palavra explícita e a palavra expressa pelos atores com as suas máscaras mudas.) Recapitulando: o filme, já sabemos, começa por ser uma idéia ou argumento, e então se torna um roteiro – como rascunho pré-existente ou protonarrativa para a qual nada deveria ser definitivo, em princípio. Essa é a primeira lição da história do roteiro – cheia de acidentes. Nela se afundaram firmes reputações – em Hollywood mais do que em qualquer outro lugar onde já se precisou contratar roteiristas. Lá, o cinema americano cumpriu – entre os escritórios e os estúdios de Los Angeles – a mais “profissional” das experiências, nesse cam-

po. Os produtores pioneiros da “Meca” californiana sugestionaram-se de que a sétima arte dependeria mais da escrita do que de qualquer outra coisa, e implantaram uma espécie de linha de montagem na qual os escritores seriam a cabeça da fábrica de “fitas” mais ou menos de duas horas voltadas, basicamente, para o entretenimento. E convidaram celebridades – desde os primórdios – para escreverem os filmes, na maioria das vezes adaptados de obras literárias. Escritores como Anita Loos (também atriz) assinaram, na fase muda, argumentos para desbravadores como D. W. Griffith, e nomes como William Faulkner, Aldous Huxley, F. Scott Fitzgerald e Nathaniel West vieram para Hollywood, contratados a peso de ouro, já na fase do filme sonoro e fartamente dialogado. Deu-se, entretanto, uma sucessão de fracassos nas adaptações feitas pelos gênios literários que, em geral, não sabiam adaptar ou escrever para a tela. Os melhores roteiros terminavam por ser os escritos – ou, ao menos, finalizados – por autores “menores” como S. J. Perelman e outros, ainda mais desconhecidos, cuja missão, inúmeras vezes, foi refazer todo o trabalho dos medalhões da literatura, trabalhando como roteiristas assalariados. Scott Fitzgerald tinha ótimo ouvido para criar diálogos que soavam naturais, mas revelava uma imaFotos: Reprodução

Tanto William Faulkner (E) como F. Scott Fitzgerald (D), apesar de grandes escritores, não se saíram bem na construção de roteiros para o cinema

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Divulgação

Cena de Cidadão Kane, cujo roteiro de Orson Welles e Herman J. Mankiewicz foi essencial na sua consagração como obra-prima

ginação estranhamente “amarrada” para conceber soluções dramáticas e cenas de comédia (principalmente nas adaptações: ele ficou encarregado, por exemplo, de Nada de Novo no Front, baseado na obra de Erich Maria Remarque – um dos poucos trabalhos que restaram com a sua assinatura, nos créditos da versão definitiva). Roteiros entusiasticamente confiados a Faulkner e Huxley resultaram em fiascos ou em esboços a partir dos quais profissionais recebendo um quinto dos seus salários trabalharam arduamente, até sobrar pouca coisa da contribuição dos “grandes”. Faulkner, por exemplo, foi roteirista daquela espécie de western egípcio, assinado por mestre Howard Hawks, que se chamou Land of Pharaos: uma coisa malcosturada, e que se suporta assistir apenas pela boa fotografia em technicolor, além de alguns toques do estilo, muito “americano”, do renomado diretor de Rio Bravo – baseado num conto – e Os Homens Preferem as Louras, baseado no livro de Anita Loos. Literatura é literatura, e cinema é cinema – tautologia que, aqui, parece separar duas águas que não são para se misturarem, no “rio” final das imagens emancipadas da

palavra. A linguagem de uma nem sempre se mostra redutível ao outro, como no caso daquela “obra-prima” trash em que resultou a adaptação do Ulisses de Joyce. O filme foi dirigido por Joseph Strick, e ainda bem que ninguém voltou a tentar a façanha – tão desaconselhável quanto levar o universo de Marcel Proust para a tela, conforme tentou o alemão Volker Schlondorff, responsável pelo “achatamento” do À la Recherche contra a parede unidimensional de apenas mais um filme de época tornado, em si próprio, tempo perdido. Os bons roteiristas rendem mais quando trabalham sobre argumentos concebidos diretamente para o cinema – parece ensinar a experiência de adaptações ruinosas (Guerra e Paz, Os Irmãos Karamozov, Moby Dick etc.) no meio daqueles raros filmes que nada ficam a dever às obras literárias originais (O Leopardo, Vidas Secas, O Céu que nos Protege etc.) . Porque um autor que escreve para o cinema deve fazer exatamente o contrário daquilo que faz a maioria dos geralmente improvisados roteiristas brasileiros. Mas isso já é assunto para a próxima edição desta Revista. • Continente dezembro 2006


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O Recife que dança Apesar de todas as dificuldades, começa-se a criar uma cena produtiva, mostrando que é possível produzir espetáculos de dança de qualidade sem precisar sair da cidade Christianne Galdino

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rrumar as malas já não é a hipótese mais provável aos bailarinos e coreógrafos profissionais de Pernambuco, ou pelo menos não é a única possibilidade para os que optam por uma carreira nessa área. O Estado, que sempre teve uma notória vocação para exportar talentos, também abriga persistentes grupos e companhias de dança, que, mesmo convivendo com o eminente risco de extinção, resistem, produzindo sólidos trabalhos, e elevando Recife à condição de pólo da dança. Na contramão das tendências contemporâneas, Pernambuco mantém ainda cerca de 30 grupos profissionais de dança em funcionamento, isso considerando apenas os mais ativos. A falta de apoio para manutenção, a dificuldade de circulação e o alto custo de montagens com elencos maiores não foram argumentos suficientes para fazer com que esses bravos sobreviventes se rendessem aos solos e duetos tão difundidos na cena atual da dança. É claro que estes formatos “concentrados”, assim como os projetos de artistas independentes, também têm sua importância, mas sem as companhias e grupos eles sequer teriam matéria-pprima para suas obras, visto que é lá que estes criadores vão buscar,

Continente 2003 Continente agosto dezembro 2006

na maioria das vezes, os intérpretes para dar vida às suas idéias. “O Recife respira dança 24 horas por dia. Para onde a gente olha, tem gente dançando”, afirma o diretor do Balé Deveras, Mika Silva. E, no caso particular da capital pernambucana, temos que falar de dança no plural, tal é a profusão de estilos disseminados por todos os cantos da cidade. Rogério Alves, por exemplo, trabalha com dança de salão, ou como ele prefere, dança a dois, e acaba de formar com sua partner Adriana Bandeira e mais dois casais de bailarinos, um clássico e outro de dança moderna, a Cia. Unione. A difusão dos produtos dançantes, com “selo recifense”, em larga escala, tirou o Estado das margens, incluindo-oo no mapa nacional da dança. Este reconhecimento chega em uma fase muito produtiva no sentido artístico e político, onde os criadores da dança pernambucana decidiram se organizar para fazer valer sua voz. Seguindo a lógica desse pensamento, surgiu em 2004 o Movimento Dança Recife que, desde então, de acordo com a coreógrafa da Cia. Vias da Dança, Heloísa Duque, “é a principal mola propulsora do crescimento da dança em Pernambuco, em todos os aspectos.”


CÊNICAS 77

Durante todo o ano de 2006, esse dançar evidenciou-sse. Quando o assunto é coreografia, já não cabe mais falar exclusivamente do eixo Rio-SSão Paulo, aqui também se faz dança com excelência de qualidade. E o resultado dos editais públicos é uma prova da efervescente produção dos grupos, companhias e artistas independentes de Pernambuco. Na opinião do coordenador de dança da Funarte, Marcos Moraes, “o Recife alcançou um estágio onde o desenvolvimento da dança se processa com rapidez, sempre construindo um diálogo fértil entre tradição e contemporaneidade, que é a marca registrada das produções de dança de Pernambuco”. O prêmio Klaus Vianna, iniciativa pioneira da Funarte/ Ministério da Cultura, que já havia premiado a montagem de Ilha Brasil – Vertigem, do Grupo Grial; o espetáculo Fervo, de Valéria Vicente e o Balé Deveras, com Daqui não Saio, Daqui Ninguém me Tira, agora contempla mais quatro companhias pernambucanas: o Grupo Experimental, a Cia. de Dança Artefolia, a Cia. Vias da Dança e a Compassos Cia. de Dança. Além de dois projetos da área de formação que não são da capital, um do Samba de Coco Raízes de Arcoverde e o Recife/Paralelo 8, do município de Moreno. Com esses incentivos, muitos grupos vão poder tirar da gaveta projetos antigos ou incrementar montagens mais modestas que já estavam “no forno”. Os próximos meses serão de colheita. Muitas estréias, circulação de espetáculos, temporadas. É o caso da Cia. de Dança Artefolia que, no próximo mês, vai colocar o Preto no Branco, trazendo para a cena a trajetória da movimentação do frevo. O ritmo, que comemora 100 anos em 2007, tem se mostrado uma inesgotável fonte de inspiração. Quando a gente pensa que já viu tudo, surgem projetos como o da Cia. Artefolia, revelando uma face até então oculta desta versátil dramaturgia física repleta de possibilidades que o frevo oferece. Um diálogo instigante entre erudito e popular, tradicional e contemporâneo “fala alto” nas cenas de Preto no Branco, deixando claro que pesquisa aprofundada e processo criativo fundamentado não são exclusividade das criações de dança contemporânea. Para construir o espetáculo Preto no Branco, a diretora da companhia, Marília Rameh, decidiu trabalhar paralelamente os laboratórios de criação e as oficinas temáticas de movimento. “Há muito tempo queria produzir um

Marcelo Lyra/ Divulgação

Coreografia Incoerência, apresentada pela Companhia Artefolia, em 2001

Continente dezembro 2006


CÊNICAS

espetáculo sobre o frevo, que o despisse dos estereótipos, dos formatos convencionais, porque percebi o quanto este dançar, as matrizes dessa movimentação davam margem para sua própria transformação. Quero falar do frevo como dança coletiva e expressão de uma coletividade”, explica Rameh, que explora vários planos e dimensões do espaço cênico no novo espetáculo. Em Preto no Branco, a Cia. Artefolia ganhou também interferências visuais assinadas pelo videomaker Breno César, ora como videocenário, ora como videodança. Anne Costa, Iane Costa, Tainá Meira, Andrey Caminha, Ramalho Júnior e Paulo Cristo são os intérpretes escalados para vestir e despir as peles deste frever, revelá-llo nu nas suas múltiplas e dinâmicas formas, colocando “o preto no branco” na história da construção desse dançar. Trilhando os caminhos da dança contemporânea, mas aproveitando sempre elementos da cultura popular urbana do Recife, o Grupo Experimental também se prepara para estrear o espetáculo Conceição dos Coqueiros. A música homônima, de Lula Queiroga, acendeu na coreógrafa Mônica Lira a vontade de tornar dança a tradicional Festa de Nossa Senhora da Conceição, realizada no Morro da Conceição, a cada dia oito de dezembro. “Fui à festa do morro pela primeira vez com todo o elenco do grupo em 2004 e fiquei encantada com o que vi, então decidi que este seria o tema da minha próxima pesquisa, do nosso novo espetáculo”, conta Mônica Lira, diretora do Experimental. No hall do teatro, os típicos tonéis para colocar velas e telões exibindo imagens sem som da ladeira que dá acesso ao Morro ajudam os espectadores a entrarem no clima. Lá dentro, no palco, os bailarinos-ppersonagens e os sons da festa. Mostrar as aparentes contradições, trazer as pessoas comuns, falar das relações do povo com o divino, estes são os focos da proposta do Experimental. O sincretismo religioso aparece na figura de iemanjá e as cenas finais revelam também o sincretismo cultural, que envolve todo aquele ambiente de orações emocionadas, promessas fervorosas, danças da moda e farras homéricas. A diretora volta à cena depois de cinco anos de árduo trabalho nos bastidores, faz uma participação especial em uma cena dedicada às mulheres e mães, ali representadas pela própria imagem de Nossa Senhora da Conceição. Para esta coreografia impregnada de simbolismo, ela terá a companhia da bailarina Ana Emília Freire, que acabou de retornar ao grupo e, também, a participação de Renata Lisboa, que há 13 anos fundou, com Mônica, o Experimental. Helijane Rocha, Renata Muniz, Maria Agreli e os estagiários Ramón Dias e Daniel Silva completam o elenco. Definitivamente, para o bem dos fãs e ídolos da dança pernambucana, chegou o tempo em que é possível fazer e ver dança de qualidade, sem precisar sair daqui... • Continente dezembro 2006

Hans Mauteuffel/ Divulgação

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Bailarinos do Grupo Experimental no espetáculo Zambo, reapresentado em 2003, durante as comemorações dos 10 anos da Companhia


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Ultrapassando a palavra A Folhetim/Ensaios reúne artigos de Béatrice Picon-Vallin, traduzida pela primeira vez no Brasil, sobre um dos grandes nomes do teatro do século 20, o encenador russo Vsevolod Meyerhold Alexandre Figueirôa

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Fotos: Divulgação

ivros teóricos de teatro são sempre bem vindos, sobretudo quando tais obras preenchem lacunas da bibliografia nem sempre tão atualizada, no Brasil, quando a questão gira em torno do pensamento sobre a estética teatral. A Arte do Teatro: entre Tradição e Vanguarda, Meyerhold e a Cena Contemporânea, coletânea de artigos de Béatrice Picon-Vallin, organizados por Fátima Saadi para a Folhetim/Ensaios – uma parceria do Teatro do Pequeno Gesto e editora Letra e Imagem –, é por isso uma grata surpresa. A autora é, entre outras coisas, diretora de pesquisas do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica) e professora de História do Teatro no Conservatório Nacional Superior de Arte Dramática de Paris, e suas pesquisas abrangem o teatro russo, as questões relativas à encenação, ao trabalho do ator e às relações da cena com as imagens, seja no cinema, no vídeo ou nas novas tecnologias. A obra, para o leitor brasileiro, tem, portanto, duplo sabor de novidade, pois é a primeira vez que Picon-Vallin é traduzida no país e por abordar um dos grandes nomes do teatro do século 20, o encenador russo Vsevolod Meyerhold, cujo trabalho deixou marcas profundas na História do Teatro. Meyerhold fez do ator o centro de suas pesquisas e foi um dos grandes reformadores da cena ao articular e confiar no trio ator-música-luz, redimensionando a ênfase dada ao literário da produção teatral das

Estudos de biomecânica de Meyerhold realizados no fim da década de 20, nos tetos de Moscou. Os atores são N. Kustov e Z. Zlobin


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CÊNICAS

Irmã Beatriz, de Maeterlinck, encenação de Meyerhold, Teatro Vera Komissarjevskaia, Petersburgo, 1906

primeiras décadas do século passado, quando prevalecia um teatro de texto em que o autor da peça ocupava o primeiro lugar. Com ele o teatro passou a ser classificado como a arte da composição, designação da crítica européia ao escrever sobre a encenação de O Inspetor Geral, de Nicolai Gogol, encenada em 1926. Nos artigos selecionados pode-se acompanhar o trajeto do encenador russo e o diálogo que ele estabeleceu com o pensamento de Edward G. Craig e Antonin Artaud, entre outros; assim como as principais experiências por ele realizadas, métodos de trabalho, os quais deixaram legado até os dias atuais. Meyerhold elaborou tanto métodos de atuação com estudos biomecânicos, para que o ator tome consciência do seu corpo no espaço da cena, quanto conduziu uma série de reflexões e experimentos de modo a demonstrar que para ele o autor do espetáculo não é apenas aquele que dirige, organiza, reúne, orquestra os elementos os objetos e os atores, mas “em primeiro lugar passa o escrito pelo fio da espada do olhar e depreende da peça a ser representada uma visão ao mesmo tempo precisa e sugestiva”. Entre os alunos de Meyerhold, vamos encontrar o cineasta Sergei Eisenstein (diretor de O Encouraçado Potenkin) o qual enfatiza a influência do antigo mestre na sua Continente dezembro 2006

realização cinematográfica. Foi com ele que Eisenstein aprendeu que o encenador-artista é um compositor de imagens, um apaixonado pela arte pictórica e a cenografia não é apenas a ilustração de um texto, mas uma visão que serve para pensar. A influência de Meyerhold em todas as artes visuais do movimento pode assim ser melhor compreendida, pois foi ele quem, já na década de 1910, percebeu a integração do cinema ao ato teatral, levando em conta o tratamento da luz acarretada pela riqueza de composição da imagem fílmica. E a atualidade de rever Meyerhold nos é confirmada na última parte do livro, pela entrevista feita por Béatrice PiconVallin com o Théâtre du Soleil, de Ariane Mnouchikine, realizada por ocasião da temporada do ciclo Os Átridas (Ifigênia em Áulis, Agamêmnon, Coéforas, Eumênides), em 1993, espetáculo em que as fronteiras das artes cênicas se tornam cada vez mais porosas. Exemplo prático, segundo Fátima Saadi, do jogo entre as diversas áreas de criação, “a obra de arte realizada em comum e que tem como horizonte a discussão e o respeito da vida coletiva e social”. • A Arte do Teatro: entre tradição e vanguarda – Meyerhold e a cena contemporânea, Béatrice Picon-Vallin, Fátima Saadi/ Editora Letra e Imagem, 144 págs, R$ 30,00.


AGENDA/CÊNICAS 81 Marcelo Lyra / Divulgação

Um natal com alma brasileira O Baile do Menino Deus é encenado pelo terceiro ano consecutivo no Marco Zero

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Baile do Menino Deus, de 23 a 25 de dezembro, às 20h, no Marco Zero (Bairro do Recife). Entrada franca. Informações: 3226.2366

oca de Forno! Forno. – Tirando o bolo! Bolo. – Jacarandá! Já! – Quando eu mandar! Vou! – E se eu não for? Apanha. Romã, romã. Quem aqui trouxer primeiro (Romã, romã)/ Uma pedra bem branquinha. (Romã, romã) Quem achar naquela areia. (Romaninha, romaninha)/ Conchas de água-marinha... Esses versos, que todos conhecem, fazem parte da trilha sonora da encenação Baile do Menino Deus, obra de Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antônio Madureira, que será apresentada gratuitamente na Praça do Marco Zero, de 23 a 25 de dezembro, às 20h. O espetáculo foge dos natais enlatados e ganha alma brasileira, sendo apresentado em espaço aberto do Recife e com as músicas cantadas ao vivo. Nessa versão, a novidade é a participação do cantor Silvério Pessoa e da cantora lírica Nadja Sousa como solistas, unindo o popular e o erudito, eles estarão acompanhados pela orquestra Camerata Stúdio de Música, e pelos corais Canto da Boca e Canto da Boquinha. Com o texto quase todo em rimas, a obra traz a essência do teatro com falas para atores, música e dança.

Cenas curtas

Capiba no palco

O Teatro Apolo será palco do Projeto Curta Cena III 2006 – III Mostra Teatral de Cenas Curtas de Pernambuco, uma programação diversificada e dinâmica que promete reunir as várias tendências estéticas do fazer teatral em Pernambuco. O evento reunirá 30 cenas de curta duração (10 minutos cada uma) das mais diferentes temáticas nas categorias adulto (sendo 24 cenas em três noites seguidas) e infantil (cinco cenas no dia 9). Em sua terceira edição, a mostra teatral reúne grupos de artistas veteranos e iniciantes e é uma ótima oportunidade de investigação/experimentação/criação dos artistas dentro de uma proposta cênica curtinha e com temática livre.

Um musical multimídia, com narração de divertidos causos, trilha sonora executada ao vivo e projeção de imagens em vídeo, permeado por músicas dos mais variados gêneros, calcado nos moldes das revistas brasileiras que tanto fizeram sucesso no início do século passado, Capiba: Madeira Que o Cupim Não Rói faz parte das comemorações dos cem anos do frevo e, sem dúvida, é uma forma diferente de reverenciar um artista que, para além de suas magistrais criações musicais, soube viver “um personagem” divertido como poucos. O espetáculo é uma realização da Paulo de Castro Produções e conta com a direção de Carlos Carvalho.

Mayza Backer/ Divulgação

Cena da peça O Homem, a Mulher e o Fim, da Hórus Visão Cênica

Curta Cena 2006 – III Mostra Teatral de Cenas Curtas de Pernambuco. Mostra Adulta: de 8 a 10 de dezembro, às 19h30. Mostra Infantil: dia 9 de dezembro, às 16h. Preço único: R$ 5,00. Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife). Tel. 81. 3224 .1114

Divulgação

Capiba: Madeira Que o Cupim Não Rói, Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Santo Antônio). De 1º a 3 de dezembro, às 20h. Ingressos R$10,00 e R$5,00 (estudantes e maiores de 65 anos). Informações: 81.3423.3186 Continente dezembro 2006


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A ópera chinesa universal de Tan Dun Compositor vencedor do Oscar de 2001 estréia novo espetáculo nos Estados Unidos com Plácido Domingo no papel principal

Nana Watanabe/Divulgação

Carlos Eduardo Amaral

Tan Dun é hoje o artista mais premiado da China contemporânea, embora ainda seja um nome estranho no Brasil

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MÚSICA

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clamado no lado de cima do globo, Tan Dun se transformou no artista mais premiado da China contemporânea, chegando a um degrau superior ao do escritor Ha Jin e do diretor de cinema Zhang Yimou, embora ainda seja um nome estranho no Brasil. Sua obra mais recente, a ópera O Primeiro Imperador, foi encomendada pela Metropolitan Opera de Nova York e vai estrear no próximo dia 21 naquela casa, com o próprio Tan Dun regendo a Metropolitan Orchestra e Plácido Domingo no papel principal. O compositor desta vez concebeu sua ópera com dois parceiros de peso: justamente Jin e Yimou. Yimou será o diretor cenográfico, enquanto Jin é co-autor do libreto, ao lado de Tan Dun. Ha Jin mora nos Estados Unidos desde 1985; é autor de A Espera (2001), Os Alienados (2003) e O Ensandecido (2003), entre outros. Já Zhang Yimou foi catapultado pelo Leão de prata de Veneza em 1991 com Lanternas Vermelhas. Daí seguiram dois Leões de ouro e dois prêmios em Cannes. Entre seus filmes mais conhecidos estão O Segredo dos Punhais Voadores (2004) e Herói (2002). O figurino é de Emi Wada, outra ganhadora do Oscar com Ran, de Akira Kurosawa. Herói é o prelúdio de O Primeiro Imperador. Tan Dun, que compôs a trilha do filme, avisa que a ópera será melhor

compreendida por quem tiver visto a película, pois é uma continuação dela. O Ocidente já havia conhecido a trajetória do último imperador da China, Pu Yi, através do filme homônimo de Bernardo Bertolucci. No entanto, dentro daquele país, as realizações do seu primeiro monarca são mais conhecidas. O Primeiro Imperador reproduz a história de Qin Shin Huang, unificador dos

Estados chineses e da língua do país e empreendedor da primeira etapa da Grande Muralha e dos soldados de terracota. Shin Huang desejava uma canção que exaltasse a si e aos grandes feitos de seu império, e se lembrou de Gao Jian Li, músico e amigo de infância, que morava na província de Yan. Qin então muda seus planos de guerra e designa o general Wang para submeter Yan e trazer-lhe Jian Li, em troca da mão de sua filha paralítica, a princesa Yue-yang. O general Wang captura Jian Li, mas este se recusa a compor a canção em virtude de sua mãe ter sido assassinada na guerra que arrasou sua terra e entra em greve de fome. As intrigas e surpresas começam quando a princesa diz a seu pai que vai alimentar o compositor e convencêlo a escrever o hino. Ela acaba se apaixonando e se entregando a ele; o amor que a invade faz com que volte a andar. O imperador é tomado de raiva pelo defloramento da filha e deseja matar o amigo de infância, mas desiste quando ele promete terminar a canção-exaltadora. Depois se enfurece de novo porque não se demove da idéia de casá-la com o general, conforme prometido. É obrigado a voltar atrás com a ameaça de suicídio dela, mas apela a Jian Li com o argumento de que o general Wang sucumbirá na batalha à qual foi encaminhado e então ele ficará livre para desposar a princesa. O músico concorda e termina a canção. A princesa Yueyang finalmente se mata com a perspectiva de virar esposa do general; este também morre, e a aparição dos fantasmas de ambos na cerimônia de coroação do imperador muda o curso do último ato. Divulgação

Tan Dun ganhou o Oscar pela trilha sonora do filme O Tigre e o Dragão (foto), em 2001

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Parnassus Productions/ Divulgação

Tan Dun, o tenor Placido Domingo e o diretor de cinema Zhang Yimou: todos envolvidos na realização da ópera O Primeiro Imperador

A Metropolitan Opera é conhecida por seu reper- se apresenta quando se vê uma execução ou uma entório pouco aberto aos compositores contemporâneos, cenação, pois Tan Dun adota muitas vezes performances, mas pelo visto o perfil vai mudar significativamente rituais e transfigurações de personagens. Não será o caso de O Primeiro Imperador, mas sua após a primeira audição da ópera da Tan Dun, onde gongos chineses e kotos, tambores ritualísticos, se jun- ópera Marco Polo, por exemplo, estreada em 1996 em tam a flautas baixo, violoncelos, tímpanos percutidos Amsterdã, confunde a cabeça de qualquer ocidental de com os nós dos dedos, e outras combinações híbridas de inteligência mediana, ao dividir o veneziano em dois personagens: Marco, o ente físico, representado por um instrumentos. O músico chinês, nascido em Hunan e ex-plantador meio-soprano (!?), e Polo, um tenor dramático, o lado esde arroz, reúne o melhor das tradições operísticas dos dois piritual do viajante. Eles primeiro atuam alternando lados do mundo. Atuou na ópera de Pequim durante a palavras, depois frases, até formarem um real dueto, e cada Revolução Cultural e, por conta da política maoísta, só teve parte trava contato independente com personagens contato com a música ocidental aos 20 anos de idade, ao diferentes. O outro único personagem de carne e osso da trama é Kublai Khan, um estudar no Conservatório Divulgação baixo. A Água, um soprano, de Pequim. Mudou-se encarna o respectivo elemenpara Nova York em 1986, a to da natureza em diálogo convite da Universidade de com o humano. Columbia. É curioso saber Três “sombras”, assim que a primeira ópera a que designadas, completam as assistiu no novo mundo foi dramatis personae de Marco Turandot, de Puccini (1858 Polo: uma se transmuta do – 1924) – estrelada por romancista Rustichello, escriPlácido Domingo –, cujo tor das histórias da lendária enredo se passa na China família Polo, ao poeta Li Tai imperial. Na música para cine- Cena do filme Herói, que funciona como um prelúdio da ópera O Primeiro Po, que viveu bem antes da saga do italiano (!). Outra ma, Tan Dun foi alavan- Imperador vive Sherazade; depois, Guscado pela trilha de O Tigre e o Dragão (2000), do diretor taiuanês Ang Lee, levando tav Mahler (!!); depois, uma rainha. A terceira sombra o Oscar no ano seguinte. Seguindo a mesma linha das interpreta Dante e Shakespeare (!!!). O enredo, por sua parcerias célebres, algumas cenas tiveram solos de vez, segue três planos distintos de evolução. O físico, onde Marco vai da piazza veneziana à Granvioloncelo escritos especialmente para Yo-Yo Ma. As obras de Tan Dun não são herméticas quando ouvidas; de Muralha, passando pelo Oriente Médio, Himalaia e discriminam de imediato sua raiz oriental aliada a uma Deserto de Góbi até encontrar Kublai Khan; o espiritual, orquestração muito diversificada, mesmo quando poucos onde a Água e as sombras atravessam as quatro estações instrumentos atuam simultaneamente. A complexidade através do Livro do Tempoespaço, simultaneamente à Continente dezembro 2006


MÚSICA viagem no plano físico; e o musical, traduzido pela interligação e textualização sonora dos outros dois planos. Não se preocupe, se não conseguir conceber os cenários, as melodias ou os entes: 1. os próprios textos explicativos sobre a ópera não se aprofundam muito nela; 2. a instigação do ouvinte será compensada. Seria mais fácil de entender Tan Dun se tivéssemos uma noção da visão de mundo taoísta, que norteia a concepção de suas obras – a personificação de elementos da natureza e seu diálogo com os homens denota isso. Daí que, se Marco Polo (mesmo causando uma ótima e profunda impressão) não for compreensível, pode-se voltar às obras mais populares, a exemplo da Sinfonia 1997, ou das trilhas de Herói e O Tigre e o Dragão. Caso contrário, encontrar-se-á uma obra vasta e típica de quem pensa através dos sons e compartilha isso com o ouvinte.

Os rituais sino-japoneses de preparação e consumo do chá adquirem um caráter transcendente em Chá: Espelho da Alma. Papel, cerâmica, pedras e água são usados aí como instrumentos solistas – a água é recorrente nesse aspecto. A Paixão da Água após São Mateus prestou um tributo a Bach, 250 anos depois da peça que parafraseia, onde os instrumentos que mais sobressaem são 17 taças grandes de água, em torno das quais se portam o coro, os cantores solistas e os demais instrumentistas. Tan Dun em particular não chega a ser uma pessoa inacessível – Pernambuco tem alguma esperança de recebê-lo no futuro. A pianista Ana Lúcia Altino, produtora do Virtuosi, entrou em contato com o compositor chinês e promete insistir em trazê-lo ao festival, numa próxima edição. E por falar nisso... •

Nana Watanabe/Divulgação

O músico chinês, nascido em Hunan e ex-plantador de arroz, reúne o melhor das tradições operísticas dos dois lados do mundo

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Quinteto Violado e Luiz Gonzaga em show no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro

35 anos de estrada e viola Quinteto Violado tem programação para comemorar três décadas e meia de existência

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Diego Dubard

m 2006, o Quinteto Violado comemora 35 cinco anos de carreira. Para celebrar a data os músicos recebem, em dezembro, dois convidados de peso, o ministro Gilberto Gil e a cantora Elba Ramalho, que despontou para o Brasil em um espetáculo com o Quinteto. O grupo se reuniu após uma viagem de Marcelo Melo, voz e violão, e Toinho Alves, voz e baixo, a Nova Jerusalém. Contagiados pelo ambiente, eles decidiram montar um espetáculo e formaram o Quinteto, que hoje conta com Dudu Alves, teclados, Ciano Alves, flauta e violão, e Roberto Medeiros, voz e percussão. A década de 70 foi um dos períodos mais criativos e produtivos da música brasileira. Do Tropicalismo, surgido da união de alguns músicos baianos, ao Udigrudi recifense de Aratanha Azul, Ave Sangria e Lula Côrtes, buscando uma nova identidade musical. É no contexto de renovação musical que o Quinteto Violado encontra espaço para mesclar música erudita e cultura popular. O resultado, três décadas e meia depois, coloca o grupo entre os grandes do Estado de Pernambuco. Desde que subiu ao palco pela primeira vez, em 20 de outubro de 1971, o Quinteto vem extraindo a harmonia e ritmos de manifestações populares, transformando em música que agrada ouvidos pernambucanos, brasileiros, europeus na França, Alemanha, Áustria, Bélgica,

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Fotos: Arquivo Pessoal do Quinteto Violado

O Quinteto Violado mescla música erudita e cultura popular

Portugal, Suíça, Itália e também na África, em Angola, Moçambique e Cabo Verde. A próxima parada dos músicos, pelo mundo, é na Galícia, Espanha, no dia 23 de dezembro. No repertório do grupo, estão retratadas as experiências pessoais e os fenômenos sociais, como a canção “Palavra Acesa”, lançada durante o regime militar, quando o Quinteto tornou-se nacionalmente conhecido. O grupo já tocou com Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Lenine, Gilberto Gil, Chico Science. Além das apresentações, os músicos também investem na preservação e registro das manifestações culturais através da Fundação Quinteto Violado, criada em 1997, e se propõe a ajudar no desenvolvimento da cultura nordestina. •


MÚSICA

MPB em sete mil verbetes Dicionário de Ricardo Cravo Albin, disponível na internet, ganha versão impressa, sob a chancela do Instituto Antonio Houaiss

Ricardo Cravo Albim, por Lula

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bdias dos Oito Baixos, Manezinho Araújo, Severino Araújo (da Orquestra Tabajara), a dupla caipira Abel e Caim, Jerry Adriani, o grupo punk Aborto Elétrico, os choristas do Abraçando Jacaré, Biquini Cavadão, os obrigatórios Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Noel Rosa, Chico Buarque são verbetes do Dicionário Houaiss Ilustrado de Música Popular Brasileira, recém-lançado pela editora Paracatu, do Rio de Janeiro. São mais de sete mil verbetes em cerca de 1.200 páginas, sob a assinatura de Ricardo Cravo Albin, musicólogo, crítico, pesquisador, produtor musical, cujo nome se confunde com a própria história da MPB. Desde 1995, Albin começou o trabalho hercúleo de catalogar quem é quem na música brasileira popular, com apoio da PUC – Rio. Em 2001, colocou na internet, no portal do Museu Nacional, cerca de 20 mil páginas, incluindo artigos críticos de numerosos jornalistas e estudiosos. Para resumir esse catatau e viabilizar sua publicação em forma de livro, o Instituto Ricardo Cravo Albin se uniu ao Instituto Antonio Houaiss, cuja equipe de lexicólogos, coordenada por Francisco de Mello Franco e Mauro de Salles Villar, trabalhou mais de um ano para compactar e reformatar as informações. O resultado é um dicionário enciclopédico, com informações compactas, fonte de referência primária para o público e ponto de partida para trabalhos mais profundos por parte de estudiosos. O volume é enriquecido com centenas de ilustrações produzidas por 20 cartunistas e artistas plásticos, reunindo nomes históricos, como Raul Pederneiras, J. Carlos e Nássara, e talentos contemporâneos da caricatura Dicionário Houaiss Ilustrado – Música Popular Brasileira, Ricardo e ilustração, com curadoria de Cássio Loredano. Ricardo Cravo Albim promete uma edição revista e ampliada, a cada Cravo Albin, Editora Paracatu, 1176 páginas, R$159,90. quatro anos. • Continente dezembro 2006

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I Virtuosi, più una volta Nona edição do Festival Internacional de Música de Pernambuco traz Antonio Meneses ao Estado pela segunda vez no semestre e homenageia Maestro Duda urante seis noites de dezembro, o Teatro de Santa Isabel volta a ser o ponto de convergência da música clássica no Brasil, através do IX Virtuosi, que mantém a tradição de apresentar um repertório ímpar, sempre incluindo os compositores mais celebrados no ano e primeiras audições nacionais ou mundiais. O concerto principal do dia 12, com o pianista coreano Hugh Sung, já mostra uma das novidades do evento: o Recital Visual – cada uma das obras executadas contará com projeção de imagens, culminando com Quadros de uma Exposição, de Modest Mussorgsky (1839 – 1881). E na peça infantil História de Babar, do francês Francis Poulenc (1899 – 1963) sobre texto de Jean Brunhoff (1899 – 1937), um narrador dividirá o palco com Sung. Outro atrativo é a realização de concertos no Salão Nobre do Teatro da primeira à penúltima noite, às 19h. Esses concertos têm programação exclusiva, sem repetição nos concertos do palco principal, como no próprio dia de abertura (12), quando o violista Rafael Altino relembrará Radamés Gnatalli (1906 – 1988) no Concerto para viola, junto com a Orquestra Jovem de Pernambuco. O pianista austríaco Matthias Soucek e a Sinfônica Virtuosi protagonizam Uma Noite Russa no dia 13, dedicada a obras de Tchaikovsky, Rachmaninoff e Shostakovitch com destaque para o Rach 2. Por sua vez, Shostakovitch terá um recital exclusivo no Salão Nobre na sexta, dia 15 (quarta noite), onde Rafael se junta a seu irmão violoncelista Leonardo Altino e à sua mãe, a pianista Ana Lúcia Altino. Logo em seguida, Maestro Duda será o sexto homenageado do festival em O Frevo como Música de Concerto, Catalin Rotaru, quando haverá a primeira audição mundial do Conmúsico que se certino para Viola e Orquestra de Cordas. O terceiro apresentou no último Virtuosi movimento, Lito no Frevo, é uma homenagem ao solista, Rafael Altino, “Lito” para os íntimos. Suíte Pernambucana de Bolso, Música para Metais II e Chora Brasil, esta a cargo do Quinteto Brasil, de João Pessoa, completam o repertório do homenageado, arraigado em ritmos nordestinos. A primeira parte desse concerto conta também com a participação dos franceses Deborah Nemtanu no violino e François Pinel e peças de Ravel e Liszt, entre outros. O dia 14 (terceira noite) marca a Memphis Connection, cujos solistas serão músicos convidados da Rudi Scheidt School of Music, fruto de convênio do festival com a Universidade de Memphis. Antonio Meneses aparece no dia 16 (quinta noite) e trava duetos com diversos convidados em Antonio Meneses &..., que finaliza com uma peça solo de Marlos Nobre. Meneses retorna na noite de encerramento com o Concerto nº 1 de Shostakovitch, ao lado da Sinfônica Virtuosi e do maestro Rafael Garcia. A orquestra ainda recebe outros cinco solistas, como o violinista Yehezkel Yerushalami, o contrabaixista Catalin Rotaru IX Virtuosi, de 12 a 17 de dezembro, no Teatro de Santa e o trompista Luiz Garcia, para uma promissora pièce Isabel. Ingressos: R$ 30,00 (frisas e platéia), de resistance. Seguindo a linha dos anos anteriores, R$ 20,00 (camarotes A e B) e R$ 10,00 (Salão Nobre) – master classes e concertos-aula enriquecerão a prograestudantes, aposentados e terceira idade pagam meiamação diurna, destinada a alunos de música de entrada, exceto para o Salão Nobre. Na compra de bilhete escolas do Grande Recife. (C.E.A.) para as seis noites, o desconto é de 20%. Continente dezembro 2006

Divulgação

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AGENDA/MÚSICA 91 Brasilidade e minimalismo Dimitri Cervo é um dos mais destacados compositores brasileiros da nova geração. Desde 1997 tem se dedicado à série Brasil 2000, que usa elementos rítmicos nacionais dentro da elaboração minimalista, num projeto de composição muito original. “Toronubá” é o nome do carro-chefe da obra do pianista e maestro gaúcho: uma peça vigorosa, de quase 10 minutos, para piano e oito percussionistas, interpretada pelo maestro John Boudler e pelo Grupo Piap. Em quatro faixas, Dimitri assume o piano solo; ouçam-se os “Temas para filme I e II”. Nas demais, ele divide a execução com convidados, como no tocante “Papaji”, com Alexandre Diel no violoncelo, e em “Aiamguabê, com trio de cordas, que variam a gama de sentimentos presentes no CD. Toronubá – A música de Dimitri Cervo, Antares Música, R$ 25,00.

Salada de sons San b apresenta seu primeiro CD, Insano, ao público pernambucano com uma interessante mistura MPB, samba e rock. O tempero do que poderia ser tão comum são os sopros de metais, gaita e sanfona que, espalhados nas 11 faixas do álbum, dão um toque caribenho em alguns momentos, flerta com o reggae e o regional em outros. O som de San b passeia por ritmos e contou, nesse CD, com a participação do Maestro Spok e seu sax, Flávio Guimarães introduzindo linhas de gaita e Elias Paulino no cavaco. Quando se aproxima da MPB, San b soa como Lenine, quanto mais se afasta dessa referência mais oferece ao público uma nova experiência musical. Destaques para “Na Feira” e “Blues de Cordel”. Insano, San b, Independente, R$ 19,00.

Além das Fronteiras O CD Além das Fronteiras do Universo é o resultado de um projeto com o cantor e compositor Maurício Cavalcanti com seu parceiro de criação, Marcello Varella. Juntos desde a década de 80, Maurício e Varella fizeram várias composições e com elas concorreram em vários festivais de música dentro e fora do Estado. Além das Fronteiras do Universo traz marchas de bloco, bolero, reggae, xote, baião com arranjos de novos e consagrados nomes da música pernambucana como Clóvis Pereira e Edson Rodrigues. Os arranjos receberam um toque diferenciado com a inclusão de instrumentos como violino, violoncelo, sax-tenor e clarineta. Além das Fronteiras do Universo, Maurício Cavalcanti, Independente. Preço Médio: R$ 20,00.

Algo de novo no ar

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segundo disco do violinista Nicolas Krassik dá gosto de ouvir, especialmente pelos arranjos originais. Com um repertório que mistura standards da MPB, como o choro “Murmurando” (Fon-Fon e Mário Rossi), o samba-canção “Último Desejo” (Noel Rosa) e o sambão “Deixa a Menina” (Chico Buarque) e obras autorais (estréia de Krassik como compositor), traz ainda de quebra a bem-sucedida incursão do quarteto carioca pela música nordestina, incluindo “Sanfona Sentida”, de Dominguinhos, com forte influência de Astor Piazzola. Vários dos parceiros de Krassik também assinam temas de tempero regional, como a faixa que dá título ao disco – “Caçuá” (João Lyra e Maurício Carrilho) e “O Casamento da Raposa” Gerson Filho) de claro toque armorial. Em “Bem Temperado” e “Arrumadinho” (Luiz Paixão), o violino cult de Krassik dueta com a rabeca do mestre popular pernambucano. Krassik, nascido na França e radicado no Rio há alguns anos, faz uma leitura personalíssima e arrepiante de um clássico como “Juízo Final” (Nélson Cavaquinho e Élcio Soares), onde a introdução ao chorinho é toda dedilhada em pizzicato, seguindo-se de um solo melancólico ao ritmo de uma batucada lenta e compassada. Memorável. O quarteto, formado ainda por Nando Duarte (violão de sete cordas), João Hermeto (percussão) e Fábio Luna (bateria e zabumba), cria neste disco um som novo, de grande apuro técnico, seqüenciando o anterior, “Na Lapa”, onde o predomínio foi do samba carioca com laivos de improvisos jazísticos. Agora, Krassik e seus parceiros relêem o Nordeste. É como se Stéphane Grappelli aprendesse a tocar forró. (Homero Fonseca) Caçuá, Nicolas Krassik, quarteto, Robdigital, R$ 25,00.

Osesp resgata Santoro No repertório desse CD dedicado na íntegra ao amazonense Cláudio Santoro (1919 – 1989), o maestro John Neschling e a Sinfônica do Estado de São Paulo unem peças concebidas com três décadas de diferença. A Sinfonia nº 4 da Paz (1953/54) dá exemplo da influência recebida do realismo soviético naquela década (Santoro era comunista). A beleza dos ritmos brasileiros prevalece na obra – particularmente no terceiro movimento, embalando o “Poema da Paz”, de Antonieta Dias e Silva, cantado pelo Coro da Osesp. Esse nacionalismo é contido na Sinfonia nº 9 (1982), clássica na estrutura e notadamente dissonante, mas dá vazão nas outras duas peças do álbum: o célebre “Ponteio” (1953), para cordas, e o “Frevo”, que foi composto para piano no ano do “Ponteio” e orquestrado no da Sinfonia nº 9 – uma breve e contagiante peça, onde metais e percussão se sintonizaram com piano, cordas e sopros sem nenhum artificialismo. Neschling e a Osesp mantêm a evolução nas gravações de compositores brasileiros, depois das sinfonias de Camargo Guarnieri e de obras de Francisco Mignone. Cláudio Santoro, Biscoito Clássico, R$ 25,00. Continente dezembro 2006


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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

O Anjo da Anunciação Eram tão simples as celebrações natalinas da minha infância, pobrezinhas como o Cristo que louvavam

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ão pensem que sou a heroína do filme E o Vento Levou, aquela que lembra o lugar onde nasceu e fica contente. Mas eu também já possuí uma fórmula de felicidade: bastava pensar no Natal que a tristeza ia embora. Pena que sobrou quase nada desse condão misterioso, da fórmula que usei com sucesso tantas vezes. Alguma coisa aconteceu nas engrenagens da minha varinha mágica. Talvez tenha se modificado o mundo ou eu mesmo. Quem sabe, os dois. Já não consigo acionar a alegria com a palavra Natal, da mesma maneira que os mágicos tiram coelhos da cartola pronunciando abracadabra, e a gruta de Ali Babá desvela seus tesouros com um abre-te sésamo. Eram tão simples as celebrações natalinas da minha infância, pobrezinhas como o Cristo que louvavam. Nada do corre-corre de hoje, das compras e presentes caros, ceias e bebedeiras. Minha avó paterna, Maria de Caldas, batia ovos numa tigela de barro, para os pães-de-ló de goma. Arrumava-os numa mesa com toalha de linho, e esperava a visita dos afilhados. Eles chegavam de noite para pedir a bênção, e recebiam um presente modesto, Continente dezembro 2006

quase sempre sabonetes embrulhados em papel de seda ou dinheiro dentro de um envelope. Comiam pão-de-ló, bebiam aluá de abacaxi, sentavam, conversavam. Os bolos de goma de Maria de Caldas eram dádivas ao Menino Deus. Dona Dália do Boqueirão, minha avó materna, nunca se esmerou na arte culinária. Seu presente para os netos era um pequeno presépio com as figuras confeccionadas por ela mesma, com a lã da ciumeira, que parece algodão. Ela fazia carneiros, bois, camelos, burrinhos, anjos e pastores, tudo com a lã sedosa e esvoaçante. O voar da pluma emprestava às figuras uma natureza celestial e etérea. Eu imaginava que os bichinhos fugiriam pelas portas e janelas da casa de minha avó, na noite de Natal, para uma festa no céu. Quem me levou para ver a brincadeira da Lapinha, pela primeira vez, foi Maria Luíza, uma engomadeira de roupas da nossa casa. Também foi ela quem me arrastou para olhar um preso enforcado, no porão da cadeia do Crato. As duas imagens, o sublime do pastoril e a violência da morte, se associaram dentro de mim, talvez porque a mesma mão de mulher me conduziu aos dois espetáculos.


Foto: Mariana Oliveira Ilustração: Sávio

ENTREMEZ

Qual das mãos eu segurava, direita ou esquerda, quando subi ao céu e desci ao inferno? Nunca saberei. Maria Luiza presenteou-me com as asas do anjo e as da borboleta. Já que eu não podia brincar na Lapinha, desejava possuí-las. Por que não preferi o pandeiro da cigana, ou o maracá da pastora, ou o cajado de José? Que vôos eu sonhava fazer? Não sei se exagero, mas os presentes de Natal me pareciam dádivas, porque as pessoas se ocupavam com eles. As três irmãs solteiras do alfaiate José de Rita gastavam o ano preparando a lapinha mais famosa do Crato. No primeiro de dezembro elas abriam as portas da casa, e mostravam a cenografia mirabolante. Imagine qualquer raridade, e ela estaria representada nas cenas do presépio. Exaustas, por 11 meses de trabalho, as irmãs sentavam em cadeiras, e se divertiam com os rostos assombrados dos visitantes. O único motivo de suas existências era encantar as pessoas. Outro dia, presenciei uma cena que despertou em mim a alegria natalina. Entrava na unidade de terapia intensiva do hospital em que trabalho, quando reparei numa paciente tocando a campainha, e pedindo acesso.

Pálida, com as pernas inchadas, ela vestia uma bata e tinha um soro instalado na veia. Entrei e esqueci a cena. Não sei quanto tempo se passou. De repente ouvi um canto solene, que fugia à realidade sonora de uma UTI. A paciente que chamou à porta cantava de olhos fechados, um canto religioso, tão alto que era impossível não escutá-lo em qualquer lugar. Louvava a Deus e celebrava a existência. Na sua frente, uma outra mulher respirava com ajuda de aparelhos. A cantora tivera alta da UTI, e conhecera na enfermaria a que agora se encontrava em coma. Viera cantar ao pé do seu leito, ajudá-la a curar-se. Ela que descera até o porão da morte, conhecia o caminho que conduz à vida. A segunda paciente também se curou. Está vivinha, contando a história que escrevo para vocês. Acredito no poder da ciência e da medicina. Também acredito na força do canto. O Natal tem essa magia. Soterrado pelo entulho do consumo, vez por outra é possível despertar a sua música. Como a voz do Anjo da Anunciação, ou a dessa mulher que venceu a própria morte. Feliz Natal! • Continente dezembro 2006

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Ilustração: Humberto Araújo

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Gilberto Freyre e José Lins do Rêgo: baluartes do Regionalismo

O projeto civilizatório do Regionalismo


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Movimento liderado por Gilberto Freyre, há 80 anos, propunha uma união de regionalismo, nacionalismo e cosmopolitismo, dentro de um projeto para o Brasil Anco Márcio Tenório Vieira

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1° Congresso Regionalista do Nordeste (desdobramento natural do Centro Regionalista do Nordeste, fundado em 1924, no Recife) foi aberto no dia 7 de fevereiro de 1926, domingo, às oito e meia da noite, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Recife, por um grupo de intelectuais, professores, médicos, arquitetos, políticos, empresários e profissionais liberais do Nordeste, sob a presidência de Odilon Nestor, presidente do Centro Regionalista do Nordeste, que ali também representava o governador de Alagoas, Pedro da Costa Rego, e foi encerrado cinco dias depois, no dia 11, com um almoço de confraternização. O mês e os dias do Congresso não foram escolhidos por acaso e, sim, quatro anos depois que uns tantos outros escritores e intelectuais, agora do sudeste do país, reuniram-se, entre 11 e 18 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, em torno do que ficou conhecido como a Semana de Arte Moderna. No entanto, entre a Semana de 22 e o Congresso de 26, parece que só o mês de fevereiro e o dia 11 são os elos de confluências. Como resumiu Mário de Andrade, a Semana de 22 tornou obrigatória “(...) a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Três princípios que versam sobre um mesmo objeto: o estético-artístico-literário. Tomando o Brasil pelo viés da unidade federativa, os três princípios acatam a modernidade como um valor em si, como a panacéia para os males seculares de um passado histórico-cultural que pouco tinha para oferecer para o almejado país do futuro. O Regionalismo de 26 também vai defender os preceitos da Modernidade, mas filtrados pelos conceitos de Região e Tradição. A diversidade profissional, etária e ideológica dos participantes do Congresso – Nestor de

Figueiredo, Moraes Coutinho, Octávio de Freitas, Amaury Medeiros, Gouveia de Barros, Alfredo Freyre, Samuel Campello, Aníbal Fernandes, Ascenso Ferreira, Joaquim Inojosa e, principalmente, Gilberto Freyre –, irmanava-se por um compromisso intelectual com o Brasil, em particular o Nordeste, e a concordância de algumas idéias norteadoras. Entre elas, as defendidas por Freyre e Moraes Coutinho. Este, no artigo “Pernambuco e o regionalismo nordestino”, publicado na revista Ilustração Brasileira, do Rio de Janeiro, em 1924, defendia um “federalismo regionalista” em contraposição ao “federalismo de decreto, que fragmenta, dissocia, desvirtua a unidade natural”. Tanto neste artigo quanto no Livro do Nordeste (edição comemorativa ao centenário do Diario de Pernambuco), organizado em 1925 por Freyre, encontramos as reflexões que irão balizar o Congresso de 26. Ante-sala do 1° Congresso Regionalista, o Livro do Nordeste já sinaliza para um dos pilares do pensamento gilbertiano: os conceitos de Região e Tradição. Conceitos que perpassam o texto de Morais Coutinho, quando lemos que “A verdadeira unidade nacional será a dos interesses, sentimentos e idéias entre regiões brasileiras autônomas e convergentes”. Onde se lê “autônomas” e “convergentes”, leia-se Região e Tradição. Não por acaso, Coutinho será incumbido, na sessão de abertura do Congresso, de apresentar os princípios do programa regionalista. Nesta, ele defenderá o regionalismo não como uma forma de separatismo, mas “(...) uma força, um movimento, no sentido da verdadeira e sincera federação brasileira”. Lembra ainda que “(...) regionalismo e nacionalismo, de um lado, e cosmopolitismo, de outro não se repelem: A inteligência dos homens é que incube a arte difícil de os harmonizar. Esta harmonia é possível.” Regionalismo, nacionalismo, cosmopolitismo (leia-se, modernidade): eis a difícil fusão conceitual que os regionalistas se propunham a solucionar sob a batuta de Freyre. Continente dezembro 2006

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ESPECIAL Para Freyre, só providos do conhecimento crítico desA diversidade dos temas debatidos pelo Congresso de 1926 caracteriza-o, dentro de um complexo Projeto Civi- se patrimônio sócio-cultural, é que os brasileiros deveriam lizatório, como a primeira grande tentativa interdisciplinar buscar no exterior as idéias que nos conduziriam para a de pensar, no século que nascia, o Brasil e, particularmente, construção de um Brasil moderno. Ou seja, a Modernio Nordeste, em todos os seus aspectos: estéticos, artísticos, dade seria antes uma ferramenta crítica para pensarmos os urbanísticos, sociais, antropológicos, históricos, religiosos, destinos da nação brasileira do que algo acatado como um políticos, econômicos e, principalmente, o ecológico. Um valor em si. Em Freyre, Tradição, Região e Modernidade são ecológico que encerra não somente a idéia de preservação, conceitos que não convivem separadamente, um precisa mas que se firma como o elemento que vai calçar o Projeto do outro para cumprir seu destino. Só assim, acreditava, Civilizatório. Todo esse preservacionismo crítico – matéria de de- estariam estabelecidos, através da conciliação entre o reImagens: Reprodução gional e o humano, a tradição e a zenas de artigos que Freyre publiexperimentação, os fundamentos cara no Diario de Pernambuco – paspara uma arte brasileira que, por sava pela tentativa de alinhavar os sua vez, aspirasse à universaliconceitos de Região, Tradição e dade. Mais: que se pudesse estaModernidade. Desde a criação do belecer as bases para um moderCentro Regionalista do Nordeste nismo e uma modernização que que a ordem do dia era discutir copassasse pelas reais necessidades mo as idéias modernas ou moderdo Brasil; as bases para que, nistas, advindas dos EUA ou da conclui Freyre, “(...) o Brasil, Europa, estavam sendo adotadas modernizando-se nas artes, nas acriticamente pelas elites brasileiras letras, nos estudos do Homem, na ao tempo em que se desdenhavam economia, em técnicas, em formas as boas experiências e soluções do de convivência, não se uniforpassado brasileiro nos vários cammizasse ou se estandardizasse pos do saber e do conhecimento. numa sociedade ou numa cultura Em outras palavras: o que sem profundidade, sem vertiFreyre e os seus companheiros do calidade e sem autenticidade: sem Congresso detectam é que o sentido nenhum nem de tradição modernismo estético-literário e a nem de região”. modernização técnico-econômica Ilustração do Livro do Nordeste Contraluz da Semana de 22, não estavam dialogando com os 26 busca não somente um projeto estético-literário para valores materiais e espirituais que constituíam os o Brasil, mas algo mais ambicioso: um Projeto Civiconceitos de Tradição e Região. É dessa forma que o Congresso de 26 defende o res- lizatório. Acatando a modernidade naquilo que ela tem gate crítico das “ricas” e “sugestivas” experiências estéticas de mais verticalizante, que é ser um instrumento para e culturais que foram produzidas, ao longo dos séculos, que o homem possa pensar criticamente o passado, o pelos agentes sócio-culturais que são formadores do Brasil. presente e quais caminhos trilhar no futuro, o Congresso Signos que traduziam a unidade cultural do País, a Regionalista irá definir muito da sensibilidade intelectual exemplo da língua, dos valores cristãos, da culinária, da e artística que irá se desenhar no Brasil pós-1930: a defesa de uma arte moderna que conviva ou mesmo se música, da arquitetura, da arte em geral. Dentro dessa unidade – que Gilberto Freyre denomina alimente do patrimônio histórico e artístico – seja ele de Tradição –, estão as manifestações sócio-culturais e material ou imaterial – legado pelas culturas formaestéticas que representam sua diversidade, as parti- doras do Brasil e a sua redefinição por regiões sóciocularidades que cada um desses signos foram tomando nas culturais, num permanente diálogo entre a unidade e a distintas formações sociais, econômicas e geográficas do diversidade. São temas que continuam na pauta do dia, a exemplo país: a Região. É a unidade dentro da diversidade, sem que uma não exclua a outra, e, sim, se complementem e se de pensar o desenvolvimento – um projeto de civilização para o país – sem se desdenhar do ecológico. • enriqueçam mutuamente. Continente dezembro 2006


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Angústia, o livro do desassossego Em Angústia, Graciliano Ramos. mais do que o Regionalismo, privilegia a análise psicológica Daniel Piza

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xatos 10 anos depois que o Movimento Re- consciência – ou inconsciência – do narrador, Luís, se entrelaça com o enredo, que é dinâmico e pertence gionalista foi lançado, Graciliano Ramos (1892a um contexto histórico, é admirável. Se parece 1953) publicou Angústia, seu terceiro livro, cujos 70 antecipar o nouveau roman francês, como penanos mereceram poucas lembranças na imprensa. sava Otto Maria Carpeaux, tem em relação a É seu romance mais psicológico, que passa mais ele um vigor narrativo, derivado de seu realismo tempo descrevendo o estado interior do protairônico e desencantado, jamais metagonista. O romance de estréia, Caetés, de fórico e pomposo; está mais próximo 1933, estava mais perto do que o regiode Dostoievski do que de um Robnalismo pregava: um painel em que a be-Grillet. descrição do ambiente é essencial, em que É, de certa forma, o livro que o tema parece mais importante que a Lima Barreto, autor da obra-prima linguagem. Em São Bernardo (1934), Triste Fim de Policarpo Quaresma, porém, a tônica psicológica já marca não conseguiu escrever depois depresença maior. É seu título mais la. Pois Lima Barreto não conseguia conhecido – ou pelo menos o mais se distanciar do personagem a não ser adotado em escolas – ao lado de Vidas pelo modo caricatural, enquanto em Secas, de 1938, em que volta à aborGraciliano Ramos há uma dissociação dagem regionalista, mas com tal força entre a escrita e as situações cênicas, sintética que, como nas histórias de como se ela não pudesse dar conta de Gogol, transforma as agruras de Fatodas as implicações dos fatos. Tal pegada biano nas agruras de ser humano. É oblíqua, seguramente, vem de Machado curioso pensar como em tão pouco tempo, de Assis (e Graciliano dizia que muitos esentre seus 41 e 46 anos, Graciliano ergueu a critores têm jeito; raros, como Machado, estrutura de sua obra. têm estilo), cujos traços já podem ser senAngústia, no entanto, não tem o mesmo prestidos em São Bernardo, especialmente na fitígio. Embora tenha algumas das páginas mais bem gura de Paulo Honório. Os livros escolares escritas da língua portuguesa praticada no Brasil, sua teimam em classificar Machado e Graciintensidade é tal que não cabe nas classificações disliano em nichos distintos e opostos, mas poníveis. Ao mesmo tempo que é profundamente não há poucas observações tão interesmergulhado numa realidade local, num microcosmo santes na literatura brasileira quanto a específico, e utiliza uma linguagem sem volteios linponte que liga essas duas margens. güísticos ou cortes sintáticos como os dos modernistas Luís, como Honório, é um turbilhão paulistas, o livro é muito moderno em sua visão da de ciúmes, mas a ele se acrescenta a voltagem natureza humana. A maneira como o fluxo da Continente dezembro 2006

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ESPECIAL do ressentimento. Odeia o que faz. Leva uma vida “monótona e estúpida” na burocracia de Maceió e tem uma incapacidade congênita para a vida na cidade. Gostaria de ser como o avô de nome de imperador romano, Trajano, conquistador e forte, mas teme ser como o pai, Camilo, frágil e submisso. Eis, como em Machado, o conjunto de características necessário para que desenvolva uma obsessão. Sente atração sexual quase doentia por Marina, cujo nome (com o qual faz anagramas, à maneira de Brás Cubas com Virgília) e cujo gosto por dinheiro também soam machadianos. Só que em vez do humor machadiano (“Marcela amou-me durante onze meses e quinze contos de réis”) há uma revolta interna indomável. Luís faz o que pode para seduzi-la, embora não tenham quase nenhuma afinidade sentimental, moral ou intelectual. Surge então o inimigo, Julião Tavares, literato, católico e rico, cujas posses e presentes mexem com os instintos da moça. Luís deplora que ela escolha homem por dinheiro; não lhe passa pela cabeça contestar seus próprios critérios para escolhê-la. Como é comum em Graciliano, Luís não sabe expressar sua indignação, não sabe canalizar as energias para reivindicar seus direitos ou romper com suas amarras. Vigia Marina e Julião como se quisesse o sofrimento. Começa a sofrer a desagregação mental: falta ao trabalho, bebe cada vez mais, anda a esmo pela cidade que não entende, mergulha em dívidas, passa a ter delírios. Um sinal da grandeza de observação de Graciliano: Luís segue tendo Em Angústia, Graciliano tem muitos momentos de lucidez, pontos de contato com Dostoievski mas justamente por estar tão perto ela continua a estar distante. “Com um pouco de método”, diz a si mesmo, poderia reajustar sua vida – mas o método nunca vem. Suas alucinações e memórias se confundem com as realidades que observa ao redor, campo e cidade se chocam, e com isso Graciliano faz o retrato de um mundo dividido entre a estável brutalidade rural e a brutal instabilidade urbana. O exterior se dissolve à medida que Luís, nostálgico de conceitos rurais como a honra, aquietado apenas no mundo fechado da repartiContinente dezembro 2006

ção, se sente impotente diante de seus fantasmas. E capaz, portanto, de realizar sua vingança, por um meio que só pode ser a violência. A narrativa é recheada de referências à visão. Imagens nebulosas, turvadas, confusas se tornam recorrentes – até mesmo a suposição de Marina praticando um aborto, abandonada como foi por Julião. Aqui o estilo – mais que o jeito – de Graciliano atinge, paradoxalmente, seus maiores poderes descritivos, superiores aos de um Camus: “Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem a nitidez. Tudo aquilo era uma confusão, em que avultava a idéia de reaver Marina.” Graciliano mimetiza a mente ameaçada de desconexão de Luís; simultaneamente, sem lhe tirar a credibilidade, dá ao que ele diz uma expressão muito eficaz. O uso de vírgulas acentua a falta de nitidez de seu olhar, mas a escolha aguda de substantivos e adjetivos permite que nos sintamos em sua pele e aceitemos seus ódios. O livro tampouco deixa de dar seus muitos recados: “Não existe opinião pública. O leitor de jornais admite uma chusma de opiniões desencontradas, assevera isto, assevera aquilo, atrapalha-se e não sabe para que banda vai” – da mesma forma que os articulistas podem dizer uma coisa ou seu oposto com igual convicção. Graciliano empresta um pouco de sua enorme integridade de caráter a Luís, sem deixar que pensemos que Luís não é o ser abjeto que é. Daí que o fim do livro esteja no começo, como se Luís fosse a cobra que se auto-consome. Esse é o segredo da literatura de Graciliano, da universalidade de seu olhar regional: o que o projeta para além do pitoresco é sua consciência do mal que o homem faz a si mesmo, é sua noção de como exterior e interior se confundem e, por esse motivo, não deixam que os desejos sosseguem. • Imagens: Reprodução

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Disputa esconde pontos de contato O modernismo do sul e o Movimento Regionalista Nordestino divergem devido ao forte veio futurista de destruição do passado, alardeado pelos paulistas e largamente refutado pelos nordestinos Adriana de Fátima Barbosa Araújo

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ma leitura do regionalismo nordestino consiste no entendimento de que ele está absorvido pela história literária brasileira como um movimento ligado ao tradicionalismo e ao passadismo que, afora seus expoentes renomados como José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, meteu-se em uma exploração excessiva da cor local. Isto certamente lhe dá grande valor, mas também lhe afeta a aura, ficando ele reduzido a uma tendência provinciana e estreita, ligada ao pitoresco. José Aderaldo Castello, em estudo de 1961, já apresenta uma outra leitura do Regionalismo. Leitura que o aproxima do Modernismo, principalmente no caráter que ambos os movimentos tiveram de renovação estilística como proposta reativa ao academicismo reinante nas letras brasileiras do início do século 20. Em 1923, chegava de volta ao Brasil depois de seis anos de estudo na Europa, Gilberto Freyre. Logo cultivou a amizade de José Lins do Rêgo, na época um jornalista de oposição quase panfletário, mas dono de uma prosa que brilhava. Os dois amigos muito jovens ainda estavam em fase de formação e tudo era para eles motivo de grande discussão. José Lins se rendeu facilmente aos ensinamentos de Gilberto Freyre que programava suas leituras. Na passagem de José Lins, transcrita a seguir, fica claro o mote da conversa que tinham os dois: “Começava assim a existir para mim um outro mundo, o mundo das idéias, o mundo das artes. O Brasil era o grande e constante motivo de Gilberto Freyre. Era o Brasil o que ele queria sentir de mais perto. O retorno do nativo assumia no seu caso um relevo dramático. É que lá de fora, nos seus estudos, nas suas saudades, nas suas pesquisas, o seu grande tema se tornara, no fim de seus cursos, a vida brasileira nos mais íntimos detalhes”.

O Recife de 1925 nos traços de Manoel Bandeira

José Lins do Rego foi um dos criadores do semanário Dom Casmurro, no qual veiculou voz contrária às idéias paulistas. Na mesma linha, Gilberto Freyre publica no Diario de Pernambuco a partir de 22 de abril de 1923, artigos numerados que chegariam a 100, nos quais denuncia a febre futurista de que sofriam os paulistas. Em 1925, Gilberto Freyre constrói uma publicação de comemoração do primeiro centenário do Diario de Pernambuco na qual pede a colaboração de artistas de diversas áreas. Surge o Livro do Nordeste, versado nos mais diferentes aspectos da vida nordestina daqueles últimos Continente dezembro 2006

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ESPECIAL

Fotos: Reprodução

100 anos (1825 – 1925). A seca, a medicina, a vida musical, teatral, literária e plástica, bem como a vida política e econômica. A vida do estudante, das cozinheiras, das festas, das janelas do Recife e de Olinda, o jornalismo. Tudo que é assunto encontra ali seu lugar. Gilberto Freyre publica três artigos: um sobre a pintura, outro sobre a cultura da cana e outro sobre a vida social no Nordeste. Manuel Bandeira publica pela primeira vez, a pedido de Freyre, “Evocação de Recife”. Esse esforço de caracterização da região a partir da vivência revela o lado de entusiasmo pela figura humana que movia o pensamento de Freyre naquela época e que o perseguiu em trabalhos subseqüentes. Vejamos o trecho a seguir, no qual Freyre explica essa tendência: “... a tendência atual (1940) na literatura brasileira, “no sentido da humanização” – salientada recentemente pelo sr. Almir de Andrade, ao lado do “brasileirismo” – vem, em boa parte, do Nordeste de 1923 – 1930, através de tentativas, de parte daqueles provincianos, de caracterização histórico-social da região; de crítica literária e de arte baseada no estudo das regiões e tradições brasileiras, e não inteiramente aérea ou puramente estética; e ainda, de realizações – estas verdadeiramente notáveis – no romance, na poesia, no conto, na pintura, no desenho”. A crítica que Gilberto Freyre fazia ao movimento modernista nesse momento não era dirigida apenas ao seu caráter futurista que implicava o repúdio da tradição, mas também à atitude desses artistas paulistas, estando à salvo os cariocas que com a sua Klaxon recebem elogios. Dos artistas paulistas, Freyre diz: “À parte duas ou três exceções notáveis, os ‘modernistas’ brasileiros endureceram-se diante dos assuntos brasileiros e do próprio

público nuns irônicos, nuns superiores, nuns humoristas, raramente atingindo o ponto em que o humorismo chega ao humor e alcança o próprio humorista. Foi essa atitude irônica e superior diante dos assuntos que fez dos melhores dentre eles, outros tantos Stracheys – em ponto menor, é claro. E por influência de tais Stracheys, o leitor brasileiro mais fino, desejoso de se tornar elite e de se identificar com o superior contra o inferior, foi desprezando os assuntos nacionais e regionais – pelos quais começara a interessar-se com o sr. Monteiro Lobato; e interessando-se apenas pelo brilho, pela audácia, pela originalidade, quando não da experimentação em si, dos experimentadores em prosa: poetas, críticos, cronistas, romancistas. Todos eles sutis, irônicos, trocistas”. Mesmo ainda bem armado para a disputa, Gilberto Freyre já salientava, a partir de seu grande amigo e colaborador mais fiel, José Lins, os pontos de contato entre os dois movimentos: “... José Lins do Rego exprimiu, em artigos e crônicas incisivas, a tendência para a conciliação do regionalismo literário ou artístico com o modernismo, tão característica da renovação intelectual e artística operada desde 1923, no Nordeste do Brasil”. Não prosperaram na época considerações dessa natureza. Elas só puderam ser feitas em momento bem posterior, já que o calor do embate nas décadas de 1930 e 40 apenas acirrava a questão, tornando emblemáticas as diferenças que muito depois ficaram reduzidas a detalhes que de modo algum apontavam para diferenciações profundas entre os dois movimentos. As circunstâncias belicosas do momento é que produziram essas fortes oposições. Afinal, o Modernismo em desenvolvimento em São Paulo disputa com o que seria chamado de Regionalismo

Plantação de café na São Paulo da década de 20

Continente dezembro 2006


ESPECIAL 101

Joaquim Inojosa, que defendia o Futurismo

nordestino a hegemonia no campo literário na década de 1930. Nessa disputa, o programa paulista apresenta grande força e facilmente ganha o poder de infiltração nacional, já que outras regiões literárias se definiram mais em consonância com as propostas paulistas do que com as dos nordestinos. José Aderaldo Castello faz uma leitura de Gilberto Freyre e de José Lins do Rêgo que vê para além dessa disputa superficial o sentido do modernismo profundo, que ambas as tendências gozam, uma vez que encenam um processo de revisão temática e renovação estilística, a partir de sugestões tomadas a escritores da era colonial, desde cronistas do século 16 até a observação direta da linguagem oral contemporânea. Então, para Castello, o modernismo do sul e o movimento regionalista nordestino grosso modo divergem num momento inicial devido ao forte veio futurista de destruição do passado alardeado pelos paulistas e largamente refutado pelos nordestinos. O que seria uma discussão pontual cresce para uma disputa calorosa que revolvia a superfície de um discurso que semeava a revisão temática e a renovação estilística. A crítica paulista resolve a questão dessa disputa a partir de uma explicação de base política e econômica

resumida na seguinte oposição de forças: a decadência do açúcar versus a expansão cafeeira. As argumentações de Maria Arminda do Nascimento Arruda e de Neroaldo Pontes de Azevedo se voltam para a idéia de que o regionalismo nordestino defende a tradição porque é nela que está localizada sua hegemonia, naquele momento perdida para os paulistas. Então, como numa tentativa de resgate desse passado de glórias e por uma necessidade de conservação, o grupo nordestino apela para o passado ao passo que o grupo modernista, num primeiro momento futurista, apresenta um caráter destruidor desse passado. Azevedo cita uma frase de Prudente de Moraes Neto que define bem as idéias paulistas nesse momento: “Basta não ser tradicional para ser ótimo”. José Lins do Rêgo e Gilberto Freyre lutam nos jornais contra a propaganda modernista feita por Joaquim Inojosa, divulgador das idéias paulistas em Pernambuco. Nessas disputas, muito bem contadas por Neroaldo Pontes de Azevêdo, o grupo nordestino se apega ao conceito de nacionalidade, pois, vê nos modernistas do sul um apego a idéias e valores importados. Aprofunda-se, então, a disputa entre passadistas e futuristas. Os nós problemáticos dessa disputa serão trabalhados e revistos em pormenor e detalhadamente neste estudo que pretende recuperar as idéias do regionalismo nordestino uma vez que trabalha com a hipótese de que nele se encontra uma dinâmica de pensamento e de idéias que estão em contato com uma perspectiva contemporânea. É como se munida de argumentações dos atuais estudos culturais fosse mais fácil compreender o que naquele momento foi tragado por uma disputa política e econômica. A partir da discussão desse panorama de idéias e valores antigos e modernos, este estudo vai se centrar na leitura das obras de ficção pelo viés da construção da personagem. A intenção é surpreender no/a retirante, figura emblemática do regionalismo nordestino, especialmente na sua construção diaspórica, o caráter partido e transitório de sua subjetividade. A identidade desterritorializada é marca de todo migrante. O que interessa nesse estudo é que na literatura brasileira esse tema sempre esteve presente não como pontos de vista excêntricos, mas como uma força literária realizada em grossa fatia da produção nacional. Sobretudo na década de 1930, quando a prosa regionalista nordestina ocupou um lugar de destaque nas letras nacionais. Esse trabalho empreende uma pesquisa que tenta rastrear para além desse momento a vitalidade dessa força literária na série literária brasileira. • Continente dezembro 2006


ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

Um pouco mais de história A história dos ancestrais pernambucanos, de fibra, é quase sempre desconhecida pela população

P

ernambuco, palco de lutas memoráveis e libertárias, pisado por nossos ancestrais de fibra, e brioso na consistência de berço cultural brasileiro, parece pouco conhecido pela maioria dos seus filhos detentores de cartéis econômicos e políticos. Não sabem quem foi Bernardo Vieira de Melo, nunca ouviram falar do grande Abreu e Lima, sequer perguntam por Frei Caneca ou Joaquim Nabuco – e esses são falados e comentados, homenageados, e nomeadores de vários marcos importantes do Estado e até de outros países. Imaginem se forçarmos a lembrança de um Cipriano Barata ou de um Manoel de Carvalho Paes de Andrade, nosso inconformado governador de 1824, que proclamou a Confederação do Equador, juntando quase todo o Nordeste à causa liberal sufocada pelo absolutismo imperial de Dom Pedro I? Estes são esquecidos mesmo, pois nunca tiveram atrelamentos oligárquicos. Por isso, Mathias de Albuquerque, a quem atribuí o continuador dos capitães das terras pernambucanas, em fevereiro de 1630, abandonou Olinda, recuando para o Recife ante o avanço das tropas holandesas de Loncq, para cuidar de salvaguardar os feudos familiares, deixando-a à sanha desmedida do Comte. Waendemburg. Este, após quadricular Olinda, ateou-lhe fogo em 1631, arribando, posteriormente, em busca de novas conquistas, facilitando-a lograr uma descrição amável e ao mesmo tempo maliciosa do Frei Manoel Calado, no seu Valeroso Lucideno, de 1648, arrecadando, com sua não rara e prazenteira espontaneidade, uma lírica e então saudosa afirmação do que restou daquele quadro da Villa de Duarte Coelho – antes da destruição, tanto tinha aquela terra de deliciosa como de pecaminosa, “pois o bom não ousara dizer”, como Balzac faria depois, “que o vício é sempre amável”, e ao pecado talvez se devesse grande parte do encanto de Olinda. Assim, em vante, depois de infelizes estocadas pela Parahyba e Rio Grande do Norte, o comandante estancou ante o já reforçado e temeroso general Mathias de Albuquerque Maranhão. Reflitamos então essa remota construção de fatos, sintetizados, obviamente, e chegaremos a conclusões, as mais polêmicas: de como a força instiga o Continente dezembro 2006

Ilustração: Zenival

direcionamento de uma política a belprazerosa façanha de “líderes”, pelos tantos que a conduziram, respeitando-se os tempos outros, a nossa distanciada civilização e o modus vivendi da época. Ou seja, para se defender o patrimônio, era o matar ou morrer, sem a preocupação quanto ao patriotismo – lembrando Maquiavel, que afirmava doer mais para o homem a perda do seu patrimônio do que a de um ente querido. O que falava alto era o dinheiro e o poder. Historiava o Frei Calado que as usuras e ganhos ilícitos eram coisas ordinárias, os amancebamentos públicos sem emenda alguma, porque o dinheiro fazia suspender o castigo, as ladroices, e roubos sem carapuça de rebuço; as brigas, ferimentos e mortes eram de cada dia; estupros e adultérios eram a moeda corrente; os juramentos falsos não se reparavam; os cristãos-novos seguiam a lei de Moisés, e judaizavam muitos deles, como bem mostraram depois que o holandês entrou na terra, circuncidaram-se publicamente e se declararam judeus; os ministros da justiça, como traziam varas mui delgadas, dobravam os delinqüentes em suas pontas, até receberem caixas de açúcar. Assim era justiça dos compadres e donatários. Era terra em que a própria justiça estava morta, dizia os senhores de engenho, e não havia quem a enterrasse, comentava Oliveira Lima. Vê-se, portanto, que ao longo do tempo, nada mudou muito. Apenas transformaram-se os meios, as formas e o manuseio de uma parcela de membros da Justiça através dos conchavos feitos aos cochichos de alguns políticos. Na base da troca. Da influência – o moderno lobby. Tudo dentro de um parâmetro de vestalidade. Empresário, que é bom, temos pouco, e precisa do apoio estatal. A maioria é ficção, e o pior: não científica. É gente soletrada em colunas sociais que apenas ganhou dinheiro. Só! Pernambuco vive da prestação de serviços – dizia, a rigor, o Pe. Lebret, há 40 anos. Não temos mais açúcar, o solo não é rico – nossos minerais são miseráveis. Vivemos do Vale do São Francisco que ainda tem uns 500 mil hectares não cultiváveis. Mas ainda tem jeito. Vamos nos levantar, sim, sinhô! Um feliz 2007 para todos... E tome história... •

Ivan Wasth Rodrigues

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