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Renato Aguiar
EDITORIAL
Aguinaldo Silva mistura dois universos, literatura e tevê
O retorno do romancista
E
m 1961, o romance Redenção para Job causou sensação nos meios literários brasileiros. Principalmente ao se descobrir que seu autor, Aguinaldo Silva, era um garoto que ainda não completara 17 anos, de família humilde, nascido e vivendo em Carpina, na Zona da Mata pernambucana. Depois, viriam outros romances e novelas, como Cristo Partido ao Meio, Primeira Carta aos Andróginos, República dos Assassinos e O Homem que Comprou o Rio, confirmando o que parecia ser uma grande vocação de romancista. A partir do lançamento do seu livro de estréia, a vida de Aguinaldo Silva mudou. Veio para o Recife e tornou-se jornalista, atuando na edição local do Última Hora, de Samuel Weiner. O regime militar de 64 fechou o jornal e obrigou Aguinaldo, assim como vários outros companheiros de redação, a emigrar para o sudeste, passando ele a viver no Rio, como jornalista. Transformou-se num dos grandes repórteres policiais brasileiros, o que o levou, por acaso, à televisão, assinando o seriado Plantão de Polícia. A Literatura perdia um cérebro para a televisão, como acontecera com Dias Gomes, Manoel Carlos e outros. Autor de sucessos da teledramaturgia como Roque Santeiro (com Dias Gomes), Fera Ferida, Senhora do Destino, Tieta, Vale Tudo, Pedra sobre Pedra, A Indomada, Porto dos Milagres, Aguinaldo Silva parecia ter se rendido definitivamente aos encantos televisivos. Além de fama e
dinheiro, a teledramaturgia proporciona a um escritor alcançar os corações e mentes de dezenas de milhões de pessoas em todo o país. Quando se compara essa audiência com as tiragens acanhadas dos livros de ficção (mesmo os best-sellers estão a uma distância astronômica dessa recepção), compreende-se o seu fascínio. Mas parece que, nem por isso, o germe das letras fenece na mente dos vocacionados. É isto que celebramos, no retorno de Aguinaldo Silva à Literatura, com o thriller 98 Tiros de Audiência. Que, como o tema indica, não é ainda o abandono de uma forma de expressão e a volta definitiva a outra, misturando os dois universos (literatura e tevê). Até porque o escritor mantém seu contrato de novelista com a maior rede de televisão do país, mas anuncia um novo romance, “assim que acabar a próxima novela”. A crônica anunciada desta retomada literária é o tema de capa desta edição. Impossível também não registrar os 80 anos de Tom Jobim. Se estivesse vivo, o maestro faria aniversário no dia 25 de janeiro. Para marcar essa data, homenagens valorizam seu lado erudito e toda a influência do mestre Villa-Lobos; seu lado ecológico também é resgatado pelo Instituto Antonio Carlos Jobim. As críticas à bossa-nova feitas com base em argumentos políticosociológicos, como as de José Ramos Tinhorão, são discutidas, negando a idéia de que ela seria um “pastiche do jazz” . • Continente janeiro 2007
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Flávio Lamenha
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A arte desafiante de Ferrari
Instituto preserva memória de Lula Cardoso Ayres
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Crítico inglês revela aspectos inéditos da obra de
56 Grupo armorial de dança faz 10 anos 62 Piollin encena drama de Tchekhov 65 Agenda Cênicas
Machado de Assis
CAPA 14 Aguinaldo Silva, de volta às origens, lança romance 22 A tevê como devoradora de vocações
REGISTRO
LITERATURA
ESPECIAL
24 Um dom Juan boliviano e septuagenário 26 O novo livro de poemas de Almir Castro Barros 28 Romance focaliza a Revolução de 1817 30 Prosa: João Marombão e suas mulheres 32 Poesia: a voz suave de Hamilton Alves 34 Agenda Livros
76 Tom Jobim completaria 80 anos, este mês 79 As canções populares escondem as referências eruditas do compositor 82 Alguns críticos apontam a bossa-nova com o "pastiche do jazz" 84 Agenda Música
ARTES
CONTEMPORANEIDADE
38 As provocações de León Ferrari
90 A era do coletivismo digital
42 O encontro de Lampião e Lancelot
CINEMA 46 A nova safra de cineastas asiáticos 51 A produção profissional de roteiros
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70 Os tesouros do Instituto Lula Cardoso Ayres
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Os 80 anos de Tom Jobim
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Internet: a necessidade de separar o joio do trigo
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Colunas
CONTRAPONTO|Carlos Alberto Fernandes 13 Desconstruindo os sistemas de dominação hierárquica
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 36 Leis de incentivo fiscal beneficiam as elites das artes
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 44 O movimento na escultura de Alexander Calder
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 66 Sapotizeiro vive mais de 100 anos
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 69 O estilo morde-e-assopra de um colunista social
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Casamento virou pretexto para pessoas se exibirem
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Velhos e novos ratos querem roer nossas consciências Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente janeiro 2007
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CONVERSA
JOHN GLEDSON
“Capitu é talvez a mulher mais ousada que Machado criou” O crítico inglês John Gledson consegue uma proeza: revelar aspectos inéditos da obra de Machado de Assis, especificamente sobre sexualidade e feminismo Schneider Carpeggiani Ilustrações(Capitu): Gil Vicente
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rocurar um ponto de vista inédito na obra de Machado de Assis não é tarefa das mais fáceis. Mas é esse desafio espinhoso que move o inglês John Gledson, doutor em literatura comparada pela Universidade de Princeton e aposentado pela Universidade de Liverpool. Engana-se quem pensa que ele se debruçou na leitura machadiana para conhecer melhor a cultura brasileira. Certa vez questionado sobre as razões do seu interesse pelo autor de Dom Casmurro, Gledson respondeu: “Deve-se ler Machado não para compreender o Brasil, mas para ler grande literatura”. Gledson acaba de lançar mais um estudo sobre “o bruxo do Cosme Velho”, a coletânea de ensaios Por um Novo Machado de Assis, em que procura desvendar o legado machadiano por um ponto de vista inusitado, o da sexualidade. Nesta entrevista exclusiva para a Continente Multicultural, o professor descreve Machado como um dos precursores do feminismo, fala do seu patriotismo e volta a falar sobre a (suposta) traição mais famosa da literatura brasileira. Uma pergunta inevitável: quantas vezes o senhor teve de escutar “mas por que tanto interesse num escritor brasileiro?” Você está perguntando por que eu me interesso tanto num autor brasileiro? Bem, em boa parte é porque fiz minha carreira acadêmica estudando literatura e língua românicas, e brasileiras em especial. Vim ao Brasil pela primeira vez em 1970, para fazer uma tese sobre Carlos Drummond de Andrade. Mas aconteceu uma coisa que, aliás, não é única comigo – acabei interessando-me pelo Continente janeiro 2007
país também, e foi esse interesse em parte que me levou para Machado, além da queda que eu devo ter por autores irônicos, elusivos e alusivos. A grande ligação (entre Machado e o Brasil) para mim foi feita por Roberto Schwarz, em Ao Vencedor as Batatas (1977), que faz uma ligação estreita entre a estrutura social do país e os primeiros romances de Machado. O interesse no país e no autor foram crescendo lado a lado. Machado de Assis trouxe inegavelmente um semfim de inovações para a estrutura do romance. Na sua opinião, o fato de a sua obra ser em português foi decisivo para que ele não tivesse a aclamação de um Marcel Proust ou de um James Joyce? Essa falta de repercussão deve ser em boa parte resultado do status “periférico” de Machado e da língua portuguesa. A prova disso talvez seja que houve um momento, nos anos 50 nos Estados Unidos, quando se fizeram as primeiras traduções dos principais romances, em que a voz única de Machado, que não é nem Proust nem Joyce, é outro peixe, teve uma influência de técnica de romance, e de tom em alguns romancistas americanos, John Barth por exemplo. Mas foi um momento curto, e desde então não houve, que eu saiba, fenômeno semelhante. Há um excelente artigo de Daphne Patai, “Machado in English”, que está pedindo urgentemente uma tradução para o português, em que ela dá a medida do problema – nessa altura, nos fins dos anos 90, quando ela foi à livraria local dela, numa cidade universitária americana, tinha um exemplar de um livro de Machado, que tinha estado ano e meio nas prateleiras, e 17 de
O sexo em Machado é isso – não uma coisa separada do resto da vida, mas parte natural dela – e é por isso, paradoxalmente, que as pessoas não notam
Agência Estado
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CONVERSA
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CONVERSA Dostoievski, em várias traduções, com vários exemplares. Não sei se as coisas mudaram um pouco desde então, mas em todo caso o processo de “vender”, sim. Machado no exterior tem muito caminho a andar.
Reprodução
Um outro grande autor de língua portuguesa, contemporâneo de Machado, foi o português Eça de Queiroz. É possível fazer algum tipo de paralelo entre ambos? É claro que é possível fazer paralelos, ainda mais porque Machado comentou, negativamente, a ficção do Eça, num momento muito importante da carreira dele, pouco antes de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas há diferenças básicas. Eça é reconhecivelmente europeu, e portanto de um mundo até certo ponto familiar para um leitor de Balzac, ou Flaubert, além de ser, o que é óbvio, muito gostoso de ler, muito divertido sobretudo. Tanto é assim que Machado, justificavelmente ou não, o acusou de plagiar Balzac e Zola nO Crime do Padre Amaro. Machado, em contrapartida, pode ser frustrante – parece europeu, vem dessa mesma tradição, mas tem alguma coisa, difícil de definir, que não é desse “nosso” mundo. O humor dele é também mais elusivo, difícil de pegar, que o do Eça. Mas (na minha experiência pelo menos) “pega” mais, dura mais, até irrita mais que Eça.
O seu livro procura desvendar Machado de Assis a partir de um ponto de vista, na maioria das vezes, deixado de lado pela crítica brasileira, o da sexualidade. Qual seria a razão do silêncio em relação a esse tema? Na época de Machado, não devemos esquecer, a sexualidade andava solta nos romances naturalistas, franceses e brasileiros – A Carne, O Cortiço, Bom Crioulo e outros são todos dessa época. O diferente no caso de Machado é que o sexo está escondido – talvez não seja a palavra adequada, porque anda escondido mais ou menos como está escondido, disfarçado na vida diária, ainda mais nesses tempos “vitorianos” –, tem, por exemplo, um capítulo de Dom Casmurro, o 58, que é uma descrição, podemos dizer, do “processo” de masturbação, que entretanto não usa a palavra, nem olha direito para o próprio processo, que é descrito do ponto de vista do jovem mais ou menos envergonhado do que faz. O sexo em Machado é isso – não uma coisa separada do resto da vida, mas parte natural dela – e é por isso, paradoxalmente, que as pessoas não notam. No livro, dou bastantes exemplos da mesma coisa, alguns bem engraçados, vistos através da ironia machadiana. Sem dúvida, há outras razões para o silêncio da crítica, mas essa “obviedade escondida” é uma delas.
Ressaca na antiga av. Beira-Mar do Rio de Janeiro, imagem para os olhos de Capitu
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Seu estudo aponta Machado de Assis como um precursor do feminismo, pela maneira como ele retrata, e algumas vezes ataca, a figura da mulher, sobretudo em pontos como a vaidade. Como seria o feminismo machadiano? Em certo sentido o caso do feminismo é parecido com a sexualidade – é tão difuso na obra dele que as pessoas nem notam; e também, em parte, é porque Machado põe em cena a vida real do Brasil da época dele, uma realidade em que as mulheres, sobretudo as da classe média, tinham vidas muito limitadas – mas descrevê-las desse jeito é apenas honestidade e realismo, não implica que Machado aprove essa situação; não esqueçamos que ele escrevia para essas mulheres, em revistas femininas.
Foto: Marc Ferréz/Instituto Moreira Salles
CONVERSA Machado: sutil precursor de um feminismo à brasileira
Muitas vezes, por uma frase solta, por uma referência curta, por um narrador que se revela não-confiável (o caso mais óbvio é o Bentinho), vira-se a mesa, e o que parecia normal, subitamente mostra o lado opressivo e até meio enlouquecido dos homens ciumentos, “autoritários e voluntariosos” (palavras de um conto tratado longamente no livro, Capítulo dos Chapéus). Há alguns anos, Décio Pignatari publicou uma peça chamada Céu de Lona, que partiu da defesa de uma tese polêmica: que o abandono do romantismo inicial machadiano deveu-sse muito à postura da sua mulher, Carolina, que havia impregnado a literatura do marido de uma intensa ironia. O que o senhor acha dessa hipótese?
Como é que íamos saber se Pignatari tinha razão ou não? Não temos evidências, e aí as pessoas constroem seus castelos no ar. É um pouco como essas teorias loucas de que Shakespeare não existiu, era Christopher ressuscitado, Francis Bacon, o Conde de Southampton, sei lá... As pessoas não acabam de acreditar que Machado de Assis basta a si mesmo, era um sujeito mulato, gago, epilético, de classe inferior, tudo que quiserem, e ao mesmo tempo de uma inteligência e imaginação literárias fora do comum, e com uma coerência interna que falta ainda desvendar mais. O resto é perda de tempo. E com isso não estou subestimando Dona Carolina, sem dúvida, pelos retratos que temos dela, uma mulher sofrida, inteligente etc. Mas tenho uma forte suspeita de que essas “teorias” têm bases em preconceitos de raça, de classe, até de nação. Fiquemos no mais verossímil.
Ainda falando das mulheres de Machado, o senhor dedica um capítulo inteiro do seu livro a Capitu, a personagem feminina mais famosa da literatura brasileira. No seu texto, o senhor aponta que tentar explicá-lla pode ter como resultado “fazê-lla parecer menos notável do que é”. Capitu é assim tão fascinante, ou ela é uma construção dos devaneios de Bentinho? Por sinal, qual seria a sua visão da grande dúvida: houve ou não traição? Sobre a traição, já me pronunciei várias vezes, e tenho uma resposta pronta – nunca vamos saber, porque Machado construiu seu romance nesse sentido, para que não houvesse resposta certa à pergunta. Nesse capítulo do livro que você menciona, argumento que Capitu talvez seja a mulher mais ousada que Machado criou – a que com mais inteligência e força tenta quebrar as limitações de sexo e de classe que a limitam. “Beata! Carola! Papamissas!” não são palavras de uma pessoa que vai se deixar dominar pela família da qual, entretanto, ela quer fazer parte; os devaneios de Bentinho podem ter sua importância, mas ela escapa das suas redes o suficiente para se afirmar como pessoa independente. Continente janeiro 2007
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CONVERSA Um dos capítulos do seu livro retrata o patriotismo machadiano. Como era esse patriotismo? Que Machado era patriota não há dúvida, mas era um patriotismo, como ele diz, que é “outra coisa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas”. É uma coisa para ser tratada em detalhe, e dentro do seu contexto – por exemplo, não era republicano, era monarquista liberal, e um dos motivos dessa oposição à República, era o medo (justificado) de que o federalismo levasse ao que ele chama de “oligarquia absoluta”. Há outros detalhes curiosos – ele achava, por exemplo, que o tamanho do Brasil não era uma vantagem ou um motivo de orgulho, levava ao perigo da cisão. No ensaio que você menciona, dá para ver um pouco da complexidade e a profundeza do seu pensamento sobre o assunto. Machado de Assis é notório por sua “segunda fase”, a do realismo de Dom Casmurro e Memórias Póstumas. Qual o valor que o senhor atribui à fase romântica do autor, ela ainda merece ser lida? Claro que merece, mas depende um pouco por quem. A verdade é que a mudança entre, digamos, Iaiá Garcia e Memórias Póstumas é enorme, e a mesma coisa acontece nos contos. Existem obras anteriores interessantes e muito importantes – o ensaio “Instinto de nacionalidade”, por exemplo, a crítica ao Eça, muita coisa de fato, nos contos, nas crônicas, nos romances, na poesia. Mas precisamos de certa tolerância, senso histórico, reconhecimento da importância do contexto, para apreciar esse Machado – inclusive não sei – até que ponto é justo chamá-lo de “romântico”. Eu pelo menos acho uma palavra abrangente demais para dar conta da sua complexidade, até nessa época. O senhor aponta a biografia de Jean-M Michel Massa, A Juventude de Machado de Assis, como o melhor trabalho sobre a vida de Machado. Ano passado, o jornalista Daniel Piza escreveu uma longa biografia de Machado, bastante criticada. Em que Massa se diferencia dos outros biógrafos do escritor e o que o senhor achou do livro de Piza, o senhor chegou a ler essa obra? Sobretudo, o livro de Massa é seriamente pesquisado – foi aos arquivos, foi às fontes, e documenta tudo, como notas de rodapé, índice, tudo. Ele próprio menciona as dificuldades que enfrentou, e que fizeram com que ele se limitasse à juventude (o livro só vai até 1870, quando Machado tinha 31 anos). A biografia de Magalhães
Júnior, em quatro volumes, e posterior ao Massa, é fruto de muita pesquisa, uma mina de fatos, mas falta-lhe senso crítico. Sinto muito dizê-lo, mas concordo com boa parte das críticas à biografia de Daniel Piza. Há muito erro, e ele aproveita muito pouco os verdadeiros avanços que se fizeram na crítica nos últimos 20, 30 anos – fica, podemos dizer, no mesmo “papo” que Magalhães. Hoje, não podemos mais fazer biografia de Machado sem o aparato crítico, acadêmico até, que faz com que o leitor possa confiar no que o autor diz. Agora, não estou argumentando que seja uma tarefa fácil. Machado até é um assunto muito difícil – temos poucas cartas interessantes, nenhum diário, poucas anedotas fidedignas e reveladoras para conhecer o homem de dentro; temos uma obra completa ainda incompleta. Guimarães Rosa foi um autor que não teve muita sorte com tradutores, sobretudo para o inglês. Qual foi a sorte do Machado traduzido? Só posso falar da minha língua. A sorte de Machado em inglês é variada, com alguns desastres. O menos conhecido, e que tentei expor num ensaio para o 1º Concurso Internacional Machado de Assis, iniciativa do Ministério de Relações Exteriores, e que foi publicado agora, é a tradução de Gregory Rabassa de Memórias Póstumas de Brás Cubas, para a Oxford University Press, nada menos, e que é uma péssima tradução, sem meias palavras, descuidada, desajeitada, cheia de erros etc. A tradução anterior, de William Grossman, é bem melhor. Nem ousei abrir a nova tradução, também do Rabassa, de Quincas Borba. É uma grande pena. Quem quiser ver a prova, é só ler meu ensaio, onde desço aos detalhes, o único jeito de avaliar tradução. Para 2008, o centenário da morte do autor, estou fazendo uma antologia de contos, que espero ficará um pouco à altura dele. O que o senhor achou do artigo sobre Machado de Assis escrito por Harold Bloom e incluído no livro O Gênio? Bem, Bloom começa mal, elogiando as traduções de Rabassa, o que é quase uma prova de que não as leu. Sem dúvida é bom que Machado receba essa publicidade, mas é pena que Bloom faça uma divisão absoluta entre o país e o autor – Machado é “um milagre”, a prova da “autonomia do gênio literário”, que pode ocorrer em qualquer lugar – esse lugar qualquer sendo o Brasil. Em longo prazo, acho que esse tipo de avaliação, apressada e errada, não ajuda. Em curto prazo, tudo é útil. • Continente janeiro 2007
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Marcelo Maciel Diretor de Gestão Rui Loepert
Diretor Industrial Samuel Mudo
Continente Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editores Homero Fonseca e Marco Polo Assistentes de Edição Mariana Oliveira e Eduardo Maia Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Jaíne Cintra e Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Secretária Tereza Veras Gestor Comercial Paulo de Tarcio Supervisora de Marketing Ygara Kober Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Diretor: diretor@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
Janeiro | 2007 Ano 07 Capa (foto): Renato Aguiar
Colaboradores desta edição: ARNOLDO GUIMARÃES
DE
ALMEIDA NETO é músico e mestrando em Teoria da
Literatura pela UFPE. ASTIER BASÍLIO é jornalista e poeta. CAMILO SOARES é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CÁSSIA NAVAS é pós-doutora em dança pela ECA/USP, especialista em gestão e políticas da cultura pela UNESCO e pesquisadora/professora do Instituto de Artes/UNICAMP. CLÁUDIA CORDEIRO é professora de literatura brasileira. CRHISTIANNE GALDINO é jornalista. DANIEL WOLFF é violonista, compositor, arranjador, doutor pela Manhattan School of Music de Nova York e professor-adjunto da UFRGS. DELMO MONTENEGRO é poeta, tradutor, ensaísta, autor de Os Jogadores de Cartas (2003) e Ciao Cadáver (2005) e editor, junto com os escritores Fabiano Calixto, Marcelino Freire, Micheliny Verunschk e Raimundo Carrero, da revista de literatura Entretanto. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros, e cineasta. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. Paulo Henrique Amorim é jornalista. REGINA ZAPPA é jornalista. SCHNEIDER CARPEGIANI é jornalista.
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. CARLOS ALBERTO FERNANDES é economista, professor da UFRPE e diretor-geral da Revista Continente Multicultural. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente janeiro 2007
CARTAS 11
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Entremez Há algum tempo não o encontro, exceto com o produto dos seus devaneios de escritor sensível, produzindo beleza na carpintaria literária. Apreciei bastante este texto singelo e belo. Waldir Pedrosa Amorim, João Pessoa – PB
Aspectos culturais Considero a Revista excelente sob todos os aspectos culturais que aborda. Parabéns, continuem assim. Fernando Mendonça, Recife – PE Cascudo e os militares A Revista Continente Documento publicou, em agosto de 2006, uma edição especial sobre Luís da Câmara Cascudo, tratando da vida e obra do maior folclorista do Rio Grande do Norte. Uma edição belíssima, com ensaios escritos por três professores da UFRN. A Revista tem uma edição impecável, textos agradáveis e concisos, sem os "rames-rames" e elocubrações muitos comuns nos sítios acadêmicos do país. A publicação traz dois textos que registram a participação de Cascudo na Ação Integralista Brasileira, entre 1933/1937, as suas posições políticas conservadoras e a sua adesão ao regime militar instaurado em abril de 1964. Aqui, no tocante ao apoio aos militares, são necessários reparos ao texto intitulado "O conservadorismo político" (p.18), onde o autor diz : "É verdade que Cascudo não se manifestou explicitamente a favor do regime militar..." Não, quem assistiu e/ou tomou conhecimento de alguns acontecimentos pós-abril de 64, em Natal, quem freqüentou a Praça das Cocadas, no Grande Ponto, sabe muito bem que Luís da Câmara Cascudo se manifestou, explicita e publicamente, diversas vezes a favor do regime militar, em 1964, 1965 e anos seguintes. Luiz Gonzaga Cortez, Natal – RN Orgulho A Revista é sensacional. Sou pernambucana, mas moro em Manaus há um ano e meio, e faço questão de mostrar o trabalho de vocês a todos os amigos manauaras. Sou estudante de comunicação social e a Revista não deixa a desejar no quesito informação com pernambucanidade. Muito bom! Parabéns! Suzana Karla de Sá, Manaus – AM
Herberto Helder Herberto Helder: um animal de poesia selvagem? Guiado por faro raro na nossa crítica, porque sabe cegar o olho técnico pelo intuitivo, Rodrigo Petrônio percebe e enuncia o essencial sobre HH. E a frase com que ele encerra seu comentário sobre "Ou o Poema contínuo" fecha todas as saídas: dizendo que Herberto “engana o leitor que, ao ler o poema, pensa ler poesia, quando, na verdade e em última instância, o que ele lê é a própria vida”, abre-nos o poeta, o livro, o mundo. Por três longas tardes de convivência no Solar das Galegas, em Lisboa, penetrei, nu, na jaula aberta de HH e lá com ele permaneci. Nem só rugimos, nem só uivamos: mas mais do que falamos, embora não tanto quanto os Silêncios que nos fizemos, ruivamos juntos nessas idas para os crepúsculos de novembro de 2001 que, ao se darem, já eram ancestrais. E é real: entre o livro e o homem, há a mesma diferença que entre seus HH. Diante dele, não vi nenhuma. Rodrigo viu toda a Semelhança só através do livro. Por isso que ele seja a mais afiada navalha crítica em movimento constante no momento literário brasileiro e ao mesmo tempo fez poesia deslumbrante no seu livro Pedra de Luz. Vicente Franz Cecim , Belém – PA Academia nordestina Explorem os trabalhos dos intelectuais e universidades (em especial do NE) sobre cultura e inclusão social, tem muita coisa interessante ocorrendo dentro e fora do meio acadêmico, longe da babaquice para "rede globo ver". Explorem mais os artistas e intelectuais “orgânicos” do NE/Brasil. Procurem ampliar sua circulação para Maceió . Parabéns pela Revista. Comprei várias em minha passagem por Recife. Gratíssima surpresa que, infelizmente, não chega aqui em Maceió. Fernando S. Ayres, Maceió – AL
”
Referência A Revista já é uma referência para mim. Vocês abordam aspectos excelentes para um veículo de comunicação. É uma revista rica e cheia de linguagem. Parabéns! Continuarei assinante enquanto mantiver essa qualidade. Eric Justino, São Paulo – SP Local x global Por se tratar de uma publicação regional, é natural que aborde prioritariamente temas locais. Entretanto, deve ser evitado o tom apologético de alguns articulistas, vez que assuntos relevantes tratados com consistência se impõem por si mesmos. Gildo A. Nascimento, Salvador – BA Poesia Critico o pouco ( ou nenhum) interesse na publicação de poesia, crítica de poesia. Isso poderia ocupar apenas uma página, sem prejuízo para os temas de “interesse”. Sergio Augusto Silveira, Recife – PE Resposta Desde 2003, há um espaço fixo nas edições para publicação de poesias. As obras literárias também são contempladas na agenda livros e em resenhas específicas. Erratas Na edição especial Continente Turismo (2007), na página 136, a foto de um terço está com crédito errado. A autora da foto é Roberta Mariz. Na edição 72 da Continente Multicultural, na página 90, a obra Chora Brassil e o Quinteto Brassil foram grafados de forma errada, com apenas um s.
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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Aprendendo com as formigas
CONTRAPONTO 13 Carlos Alberto Fernandes
Para que a auto-organização seja possível na sociedade humana, é fundamental desconstruir os sistemas de dominação hierárquica
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enhuma pedra no meio do caminho é impedimento para a formação da trilha das formigas. Os caminhos das formigas acontecem. Não resultam de um plano prévio, de nenhuma intencionalidade e de nenhuma “ordem” proveniente de qualquer demiurgo. Na verdade, cada formiga não faz mais do que agir sobre a sua pequena e limitada vizinhança sem nunca se dar conta da trilha que vai surgindo. A colônia parece agir globalmente. Nas formigas, a alteração ambiental é realizada através de um mecanismo de deposição de feromona. A formiga que se desloca aleatoriamente vai deixando um rastro de feromona que lhe permite encontrar o caminho de volta para o ninho. A sinergia ocorre quando como uma entidade independente, uma forma de vida de nível superior, possuidora de uma inteligência própria, que pode ser denominada de inteligência coletiva um indivíduo desencadeia um estímulo noutros indivíduos, gerando assim um comportamento coletivo. Nos mamíferos, o mapa cognitivo está na mente do indivíduo, mas nos insetos sociais – que “desenham” as suas memórias espaciais diretamente no ambiente – o mapa é coletivo. Para muitos autores, o formigueiro é considerado. Francis Heylighen destaca dois grandes obstáculos para uma inteligência coletiva nos humanos. São eles a imprecisão da linguagem e os jogos de poder que favorecem as hierarquias, ao que Herbert Simon chama de racionalidade limitada. Num grupo, a comunicação é sempre deficiente, pois, normalmente, privilegiam-se as idéias dos chefes e se desvaloriza a contribuição dos subordinados. O resultado é que ninguém individualmente consegue a atenção devida, por mais inteligentes que sejam as suas sugestões. O grupo pode ser mais inteligente do que os indivíduos que o compõem. Se pensarmos em otimização local, isto é, na melhor solução para um determinado problema numa comunidade, o exemplo do formigueiro é singular. Pequenas
formigas estúpidas descobrem depressa o caminho mais curto entre dois pontos. Logo todo o formigueiro estará fazendo o caminho mais curto. O formigueiro é muito mais inteligente do que cada formiga isolada ou do que a soma da inteligência de todas as formigas. Mas quando se fala em melhor solução, isso não implica somente em questões de tipo quantitativo – o mais curto, o mais rápido –, mas também do tipo qualitativo – o melhor, o mais agradável. Na sociedade humana podemos considerar a própria vida em comum, a felicidade, a erradicação da miséria, a produção cultural, a organização econômica ou a educação como problemas de otimização a partir de regras locais. Tais problemas, pela sua complexidade, exigem uma inteligência coletiva (e, portanto, não hierarquizada), capaz de produzir uma solução que naturalmente será mais inteligente e criativa do que a soma das capacidades individuais. Neste domínio, a inteligência artificial surge como uma nova área de investigação no campo dos estudos da complexidade, procurando reproduzir em laboratório, ou seja, através da informática, determinados mecanismos biológicos. Esses modelos são capazes de explicar comportamentos individuais ou de massa tal como a própria evolução da cultura e seus desdobramentos sociais. Para que a auto-organização seja possível na sociedade humana, é fundamental desconstruir os sistemas de dominação hierárquica. E deve-se compreender que essa desconstrução, por exigência da sua coerência interna, não pode, por si própria , resultar de um processo autoritário. Ou seja, mais importante do que implementar (de cima para baixo) reformas, torna-se necessário desencadear mecanismos que, pela sua própria natureza, promovam a auto-organização. É a inteligência da natureza, através das formigas, dando uma mãozinha na compreensão da complexidade do comportamento da natureza humana. • Continente janeiro 2007
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De volta Ă Aguinaldo Silva, o consagrado autor de telenovelas, retorna ao romance e revela pretender se dedicar apenas aos livros dentro de alguns anos Regina Zappa Continente janeiro 2007
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Nelson Provazi
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escritor, jornalista e dramaturgo Aguinaldo Silva se prepara para escrever novela como se fosse disputar uma olimpíada. Alguns meses antes, faz check-up, dieta, ginástica e caminhadas. Prepara-se física e mentalmente. Vai se enfronhando e se “afundando” naquele universo. Apresenta-se aos personagens, começa a conviver e a conversar com eles, até que aquelas pessoas passam a ser reais. Chora e ri com eles. Isola-se totalmente. E acontece uma coisa curiosa: as pessoas reais passam a não ter a menor importância para ele. Os amigos percebem isso e se afastam. A vida, então, deixa de ser normal porque ele tem que se abstrair de tudo. Um belo dia, a novela acaba. Só então, Aguinaldo percebe que os personagens vão embora, abandonam-no, e ele fica só. É hora, então, de reatar os laços, procurar os amigos, começar a vida de novo. “É um processo muito louco. É preciso ter os pés no chão e entender que a novela é descartável. Tem muita força quando está no ar, mas acaba.” E só quando acaba é que ele volta a ser cidadão comum. Autor de sucessos da teledramaturgia como Roque Santeiro, Fera Ferida, Senhora do Destino, Tieta, Vale Tudo, Pedra sobre Pedra, A Indomada, Porto dos Milagres, Aguinaldo Silva normalmente descansa um ano e meio entre cada novela. Isto é, descansa do ritmo frenético da criação das telenovelas, mas não da criação. Enquanto a próxima novela não vem, distrai-se escrevendo romances, que é o que mais gosta de fazer. Pois agora, enquanto se prepara espartanamente para escrever sua próxima novela (que ainda não tem nome), Aguinaldo se delicia com o lançamento do romance 98 Tiros de Audiência. E qual o tema da sua nova ficção? A novela, lógico, e seus turbulentos bastidores. Essas histórias foram contadas à Continente com o prazer de quem faz uma visita à casa paterna. Aguinaldo nasceu em Carpina, cidade da Mata Norte pernambucana, e sempre lamentou que
Literatura Continente janeiro 2007
CAPA tura, que foi como tudo começou. Aos 16 anos, em 1961, quando ainda vivia em Carpina, em Pernambuco, escreveu seu primeiro romance, Redenção para Job. Essa trajetória do livro para a televisão e de volta para o livro completa um ciclo. Mas, ao mesmo tempo, tem um significado maior. É a volta definitiva ao sonho de ser apenas romancista. “Desde criança, meu brinquedo favorito era escrever, brincar com palavras. E a vida acabou me levando por outros caminhos. Pela necessidade de sobrevivência e pelas oportunidades que surgiram no meio do caminho.” Aguinaldo tornou-se jornalista porque era escritor. Conta que o Samuel Wainer, jornalista e proprietário do jornal Última Hora, no Rio de Janeiro, convidou-o para trabalhar na UH do Recife depois que leu seu primeiro romance. Aguinaldo viveu em Carpina, no seio de uma família pobre. O pai era frentista, trabalhava no único posto de gasolina da cidade, que pertencia a seu Firmino. A mãe casou-se com 13 anos, teve o primeiro filho e só 11 anos depois nascia o temporão Aguinaldo. Apesar de pobre, o pai tinha uma preocupação extrema com a formação dos filhos. Aguinaldo acha incrível para uma pessoa do nível social do pai essa preocupação com a educação. O irmão mais velho não teve as mesmas oportunidades, embora tenha se formado em economia, mas Aguinaldo estudou nos melhores Brincar com palavras colégios particulares do Recife. Estudou no Colégio O criador de Plantão de Polícia, um dos mais famosos Americano Batista, “de grande categoria na época”, e seriados da TV brasileira, marcou um prazo até 2010 pa- depois no Salesiano. O primeiro presente que ganhou ra deixar a televisão. Quer dedicar-se somente à litera- do pai, quando tinha 11 anos, foi um dicionário. Como seus conterrâneos não o procurassem para entrevistas. “Achava que Pernambuco não gostava de mim. Fico feliz de falar para minha terra”, afirma ele, com o sotaque que ainda preserva, 42 anos depois de ter deixado o Recife em busca de tempos melhores no Sul. Não apenas o sotaque o denuncia, como também a maneira de escrever. Conta que precisa se policiar constantemente para não escrever em “nordestinês”, quando a novela não é nordestina. “Meus colaboradores me alertam, quando escrevo coisas do tipo “sei não”. Hoje mora no Rio, numa confortável casa em um condomínio do afastado bairro da Barra da Tijuca. Cercado de preciosos objetos de arte – quadros, tapetes, esculturas, objetos de art déco, que adora – Aguinaldo só não se mudou ainda para Lisboa, onde tem outra casa, por causa de seu gato Tadeu, que já se acostumou demais com o lugar onde vive. O autor sente-se inseguro com a violência no Rio. Tem sistema de alarme em casa e diz que gostaria de morar num lugar onde pudesse andar tranqüilamente nas ruas. “Em Lisboa, eu chego e tenho um choque. Às cinco da manhã tem senhoras voltando para casa sozinhas.” Por isso, passa uma boa parte do ano em Portugal. Seu irmão, de 75 anos, que mora no Recife, conta que a cidade está em situação parecida. “Não tem escapatória”
Ag. Tyba
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Bastidores de gravação de novela da Rede Globo
Ag. O Globo
Cena de Senhora do Destino, sucesso de audiência em horário nobre
não tinha brinquedos, brincava com pedras e coisas que achava no quintal da casa, e criava histórias, um pouco baseadas nos gibis que lia. “Eu já escrevia mesmo antes de escrever. Eu criava histórias.” Menino solitário, praticamente filho único, que tinha asma e não podia jogar futebol, nem brincar como as outras crianças, Aguinaldo cresceu muito protegido pela mãe, com o irmão já fora de casa, trabalhando no Recife. Na sua solidão, acostumou-se a observar muito as pessoas. Esse hábito ele carrega até hoje. “É um mau hábito. Vou a um restaurante e fico olhando como aquelas pessoas se comportam. Tenho essa curiosidade. Até no carro, quando vou com um amigo, vou falando, ‘olha aquele tipo, que estranho’. Estou sempre atento às pessoas. Sou fanático por pessoas e nomes. Além disso, eu tinha uma vizinha, de uma família batista, que tinha uma biblioteca muito grande em casa e eu ficava fascinado com aquilo. Essa moça, Glícia, com esse nome estranho que lembro até hoje, começou a me emprestar livros. E eu lia um livro por dia. Aí, abriu-se um mundo ao qual, até então, eu não tinha tido acesso. Tornei-me um viciado em leituras.”
CAPA
Quando completou 14 anos, seu pai determinou que fosse trabalhar de dia e estudar à noite. Com seu primeiro salário, recebido pelo emprego numa agência de navegação, comprou uma máquina de escrever. Na época, todas as agências de navegação funcionavam na zona de meretrício do Recife, por isso, Aguinaldo costuma brincar que seu primeiro emprego foi na zona. Pois bem, comprou uma máquina usada, “de décima quinta mão”, e nela escreveu suas primeiras histórias. Dos 14 aos 16 anos, escreveu três romances. Um deles foi Redenção para Job, publicado pela Editora do Autor. A partir desse livro, sua vida mudou completamente. “Virei jornalista e o jornalismo passou a ser o meio de subsistência diário.” Aguinaldo vivia do seu emprego no Última Hora, do Nordeste, no Recife, quando o braço longo do golpe militar de 64 alcançou o jornal em que trabalhava. O Última Hora foi fechado, e, mais uma vez, sua vida mudaria totalmente. Tinha 20 anos e estava proibido de trabalhar, como todos no jornal. “Houve uma diáspora, espalhou-se a redação do Última Hora pelo mundo afora.” Aguinaldo ficou três meses desempregado, até decidir ir para o Sul, tentar a vida como jornalista. Havia uma vaga no Última Hora de São Paulo e Aguinaldo rumou para lá a bordo de um avião que fazia escala no Rio de Janeiro. Foi o que bastou para que nunca chegasse ao destino original. Quando viu o Rio da janela do avião, no aeroporto Santos Dumont, não teve dúvida: “Ah, não. Quero ficar aqui.” Armou uma tremenda confusão, exigiu que sua bagagem fosse retirada e desembarcou no Rio. AsContinente janeiro 2007
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CAPA sim que chegou, foi morar na Lapa, bairro da boemia e da malandragem cariocas. Acabou arranjando emprego no mesmo jornal, no Rio. E ficou até hoje. Primeiro trabalhou como repórter do Última Hora, depois redator e copy desk. Quando foi para O Globo, escreveu um dia um texto sobre Wilza Carla, transformando uma reportagem banal em um assunto fora do comum, e os editores ficaram fascinados. Como o editor, na época, quisesse fazer uma reforma para modernizar o jornal, chamou Aguinaldo para trabalhar na editoria de polícia. A idéia era mudar totalmente a linguagem da editoria. Lá, entrou como repórter e foi, depois, editor. Mas fazia também matérias free-lance. Ganhou o primeiro Prêmio Abril de Jornalismo de melhor reportagem individual, com a reportagem ‘Pobres homens de ouro’, sobre o Esquadrão da Morte. Um dia, resolveu sair do Globo com a intenção de viver de free-lance. Foi quando a TV Globo o chamou para escrever um seriado que se chamaria Plantão de Polícia. “O que me levou à TV foi isso: o fato de eu ser escritor, segundo, repórter de po-
lícia.” A Globo queria alguém que fosse escritor e entendesse desse universo policial. Assim nascia Waldomiro Pena, brilhantemente interpretado por Hugo Carvana. Pouco antes de ser chamado para a televisão, Aguinaldo havia feito um curso de roteirista com Leopoldo Serran, porque queria aprender uma nova linguagem, pensando mais no cinema. Leopoldo deu o aval para que Aguinaldo trabalhasse para a televisão, mas o jornalista e romancista via essa passagem como algo provisório. Pensava em continuar a fazer free-lance e depois continuar a escrever os livros. Mas a TV foi tomando cada vez mais espaço na sua vida. Depois de Plantão, fez a primeira minissérie, Lampião e Maria Bonita, o primeiro teleplay, que foi Otelo de Oliveira, até passar a fazer novelas. E não parou mais. “A televisão foi um acaso na minha vida. Nunca tinha pensado em trabalhar na TV. Cheguei a rejeitar convites antes de me tornar ficcionista de televisão. Fui chamado para o Globo Repórter, mas não me interessei. Nunca tinha me passado pela cabeça escrever novelas, mas fui levado a
Um microcosmo do pais ´ A
guinaldo Silva conhece como ninguém os bastidores da produção de uma telenovela. Nesse ambiente foi buscar a matéria-prima de seu novo livro 98 Tiros de Audiência, que chegou às livrarias no final de novembro. Nele, “tudo é polêmico, porque é verdadeiro”. Levou seis anos para escrever este romance, porque teve que interromper várias vezes para escrever novela. Mesmo assim, saboreou cada vírgula. “Foi uma delícia.” Seu livro trata da fogueira de vaidades que é o bastidor da novela. Fala da arrogância e da falta de ética de diretores e atores. O que é mais polêmico no livro? Tudo é polêmico porque tudo é muito verdadeiro. Não que sejam histórias verdadeiras, mas elas são baseadas em fatos reais. Acrescentei os temperos da ficção, juntei uma história com outra, tirei um personagem daqui, botei ali. Elas passam uma experiência muito grande que tenho sobre o assunto. O Everardo (o autor da novela no livro) abre a janela, num moContinente janeiro 2007
mento, e grita: “Eu não estou escrevendo a novela, estou fazendo história”. Sei que isso já aconteceu na vida real com determinado autor. Tudo é muito verdadeiro, mas as pessoas não vão conseguir identificar os personagens. A Aurora Constanti, a atriz que morre no primeiro capítulo e que narra a cena depois de morta, é a luz que não se apaga, a diva, a estrela. Adorada e odiada. É morta com um tiro no peito de silicone. Ela poderia ser pelo menos três atrizes que conheço. E o autor? Acho que vão perceber que sou eu. Mas não sou eu. Aliás, sou a única pessoa desse universo que vai dizer, não, esse aqui não sou eu (risos).
98 Tiros de Audiência – Intriga e Mistério nos Bastidores das Telenovelas, Aguinaldo Silva, Editora Objetiva/ Ediouro, 296 páginas, R$ 39,00.
Você usa no seu livro a internet, depoimentos de suspeitos, diálogos dos personagens de novela, cenas dos bastidores da televisão e de delegacias de polícia. De onde surgiu a idéia da trama? Quando comecei a escrever esse livro, em 2000, ao terminar Porto dos Milagres, eu ia
CAPA essas coisas e por causa disso, fui deixando a literatura, que era o que eu mais gostava de fazer.” Mas é para lá que ele quer voltar. Como estreou muito cedo e seu primeiro livro causou um “rumor muito grande”, ele alega que sempre sentiu nostalgia da época em que só escrevia romances. Seus planos para o futuro, porém, o levam de volta a esses tempos. “Tenho a vida organizada, posso voltar à literatura com uma maturidade e um conhecimento de vida que talvez me ajudem a ser um escritor melhor. Então, minha idéia é essa: a partir de 2010 me dedicar totalmente à literatura.” “Vivi muita coisa” A curiosidade aguçada e a observação atenta do seu entorno deram a Aguinaldo boa parte da matéria-prima de sua criação. Além disso, a experiência de ter vivido tantas realidades diferentes garante um conhecimento real dos seus personagens de todas as classes. “Na verdade, tenho uma grande vantagem sobre os outros autores de telenovelas. A maioria é de pessoas que saíram da
viajar para a Europa. O avião atrasou, liguei o notebook, comecei a brincar de escrever, que é uma coisa que sempre fiz na vida. Quando vi, tinha escrito as 12 primeiras páginas do livro, que era o depoimento da mulher morta: “Estou aqui deitada no chão, nessa posição ridícula, meu peito estourado, silicone espalhado por todo lado”. E pensei: “Puxa, é um livro”. Depois, comecei, na primeira página, com a notícia da morte da atriz no blog da jornalista Lílian Caronti, que cobre assuntos de televisão. Depois é que entra o depoimento da morta. Acho que fui o primeiro escritor a usar o blog na literatura.
classe média, que tiveram a vida certinha, muito num lugar só. Eu tive uma vida muito aventurosa. O destino me deu isso. Vi muita coisa, fui muita coisa. Participei de muita coisa. Quando fui escrever Senhora do Destino e falei na TV Globo que a novela começava em 1968, com o AI-5, eles disseram: ‘Ah, então vamos chamar pelo menos três pesquisadores para te ajudar’. E eu disse: ‘não precisa, eu sei tudo, vivi tudo isso’.” Aguinaldo lembra das suas peripécias de militância política. Em 1964, no Recife, roubou, com alguns colegas, o mimeógrafo da Associação Pernambucana de Imprensa para fazer panfleto. O mimeógrafo ficou escondido na sua casa durante três meses. Em 1968, viveu no Rio, na redação do Última Hora, o decreto do AI-5. Em 1969, foi preso pela ditadura porque escreveu o prefácio do livro Che Guevara – A Guerrilha Não Acabou. Passou 70 dias na Ilha das Flores, no Rio, para onde levavam muitos presos políticos. “Tenho experiência de vida. Minhas histórias saem da minha experiência de vida, sempre, que é muito
No livro você faz não só o retrato da TV, mas da sociedade. É um microcosmo do país? Acho que sim. Essa coisa de cada um achar que está certo, o outro é que está errado, a vaidade, a mania de achar que “se você discorda de mim, você é bobo”, isso é o momento brasileiro. Todo mundo brigando, acusando o outro de ser menos capaz, menos competente, é uma loucura. O livro é um microcosmo, não há dúvida.
Você diz que é um arquivo vivo da televisão. Há histórias da TV que você não contaria? Sou um observador, nunca perdi esse hábito do O narrador do livro é ferino e implacável... jornalista. Registro as coisas, tenho uma visão diferente É. Mas ele não é cruel, ele é sarcástico. Ele vê toda do ambiente, estou sempre de fora, olhando. Muitas essa fogueira de vaidades com uma profunda ironia. Mas vezes alguém percebe isso e eu vejo quando olham para uma ironia amigável. Não quer derrubar todo mundo, mim e vêem que estou olhando. ou destruir. O livro não é um ajuste de contas. Um dia vai escrever o livro Quem Tem Medo de AguiÉ condescendente com os personagens? naldo Silva? O narrador tem muito carinho. Isso dá para sentir no De brincadeira, embora o tom seja de ameaça, coslivro. Com alguns personagens, não, mas com a maioria, tumo dizer, quando alguém pergunta se entrego tudo no principalmente os do ambiente televisivo. O livro fala livro: neste livro, não, este livro é um romance. Vou entregar tudo nas minhas memórias. • desse ambiente de uma maneira muito verdadeira. Continente janeiro 2007
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"Tenho a vida organizada, posso voltar à literatura com uma maturidade e um conhecimento de vida que talvez me ajudem a ser um escritor melhor. Então, minha idéia é essa: a partir de 2010 me dedicar totalmente à literatura"
grande. O último universo que descobri que domino nos mínimos detalhes é o universo da televisão, onde se passa esse meu último, livro que é quase um tratado sociológico sobre os bastidores da televisão.” O que mais o seduz, o prestígio da literatura ou a audiência da novela? A glória ou o sucesso de público? “É complicado isso. Quando você escreve a novela das oito, escreve para 40 milhões de pessoas. Isso dá um poder de mídia – poder é palavra complicada –, dá um alcance de mídia que é absurdo. Tanto que alguns autores muitas vezes tratam jornalistas a patadas. Com o livro é bem diferente porque mesmo um autor de novelas, quando lança o livro, recebe tratamento diferente da mídia. Recebe tratamento de autor de livros.” Aguinaldo continua, dizendo que o autor de livros tem que pedir “uma colher de chá” para a sua obra, na mídia. Mas no seu caso, não há grandes problemas porque, como ele diz, não é novelista, está novelista. “Escrevo novelas, mas ela não é meu único meio de expressão, nem o mais importante. É o que me dá mais dinheiro e notoriedade, mas não é o único.” Continente janeiro 2007
Para ele, são dois prazeres diferentes, embora admita que adora escrever novela. “Mas veja bem: adoro o ato de escrever.” É que, no caso da novela, escrever é apenas o começo e o que vem depois é muito estressante. “Tem que botar um jumbo no ar todo dia.” Aguinaldo escreve cada capítulo de novela como se fosse o penúltimo porque acredita que o último é sempre descartável. A audiência do penúltimo capítulo é, geralmente, maior que a do último, que acontece sempre numa sexta-feira, quando as pessoas saem de casa para passear. Para ele, escrever imaginando que é o penúltimo capítulo dá uma sofreguidão ao trabalho que é positiva para a novela. “O telespectador brasileiro entende mais de novela que qualquer pessoa, inclusive o autor. Ele sabe quando você está tentando enganá-lo, quando faz um capítulo meiabomba. E ele não admite isso, não admite que o autor tenha tido uma gripe, virose ou dor na coluna. Ele é exigente e quer um penúltimo capítulo por dia.” É um processo de stress enorme porque, além de ter que agradar o espectador, o autor só tem 24 horas por dia para criar. “A gente está sempre atrasado, por mais que se
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funcionários da televisão é a novela das oito. E para isso ela precisa ter audiência. “Você nunca sabe se a novela vai dar certo. Quando não dá e a audiência cai, mesmo assim ela é vista por milhões de pessoas. Mas é um fracasso. Só é sucesso quando atinge aquela faixa de pelo menos 40 milhões.” Quando não está trabalhando, Aguinaldo fica em casa. Sai pouco, vai ao teatro. Espera sair os filmes em DVD para ver em casa. Atualmente, tem gostado mais dos seriados americanos que dos filmes. Lê freneticamente, não só jornais, mas livros. Tem sempre três ou quatro na cabeceira da cama. Quanto a novelas, vê eventualmente. “É difícil a novela de um outro autor me pegar. Mas isso é por causa do cansaço. Geralmente vejo o primeiro capítulo, a primeira semana, depois vejo esporadicamente ao longo da novela e vejo o final.” Pensa em escrever mais um romance, assim que acabar a próxima novela. Sua idéia é escrever um livro que se passa no Rio, com as histórias de violência da cidade. “Essa violência inesperada que acomete o cidadão carioca, que leva um tiro sem saber de onde partiu e vai parar no hospital onde tem seis pessoas na mesma situação.” Quer escrever várias histórias que se cruzam, “como se fosse um filme do Robert Altman”. Tem até um título que é uma homenagem a um antigo jornal do Rio, Diário Carioca. Quando indagado sobre a possibilidade de se candidatar à Academia Brasileira de Letras, alfineta: “Nunca me passou pela cabeça. Acho que o pessoal da Academia não é o tipo de pessoa com quem eu conviveria.” Um de seus sonhos secretos, quando se aposentar, é fazer um blog, “ou o que tiver, na época, que essas coisas mudam tanto”, sobre televisão. Ele acha que a crítica é sempre muito superficial quando trata das novelas e que desdenha um pouco do gênero e de quem escreve novelas. “Queria fazer uma coisa mais reflexiva, mais séria, mais profissional. Acho que falta isso, porque o que se tem é só fofoca. Precisamos de análise, crítica e informação.” Que conselho daria hoje a um cidadão que saísse de Carpina para tentar a sorte em outro lugar? “Trabalhe, trabalhe, trabalhe. Não pense em outra coisa que não seja A espada da audiência A audiência de uma novela é uma espada sobre a isso. Acredito naquela famosa frase: só o trabalho digcabeça do autor. O que a novela persegue é audiência nifica o homem. Tem que saber que trabalho é a tarefa que porque, segundo Aguinaldo, o que paga o salário dos engrandece diariamente.” • corra. Nunca se consegue botar seu trabalho em dia.” Aguinaldo é um autor que escreve para atores. Seu maior prazer é ver a novela no ar e observar o que os atores estão fazendo com aquele texto. “Adoro atores criativos, atores que colocam cacos. Já fiz sete novelas com O gato Tadeu: empecilho Lima Duarte e adoro suas a morar em Lisboa invenções. Incorporo todas.” Mas diz que evita ter muito contato com os atores, “porque ator é um bicho muito esquisito, que lida o tempo inteiro com a emoção. Isso enlouquece a pessoa. Nunca se sabe quando o ator é ele ou quando ele está interpretando.” Gosta de se comunicar com os atores através do diretor. Há alguns, porém, que rompem essa barreira porque Aguinaldo permite. “Uma é Suzana Vieira. Ela é um vulcão. Não adianta querer impor barreiras a Suzana Vieira (risos). Durante Senhora do Destino nós tínhamos um lugar secreto, onde nos encontrávamos para falar sobre a novela. Uma vez, falei isso no Faustão: ‘Suzana, amanhã no nosso local secreto, vamos conversar’. As pessoas enlouqueceram. Mas que local secreto é esse?” Ele se diverte. O local secreto era o supermercado perto da sua casa. “Descobrimos que fazíamos compras no mesmo dia, na mesma hora e no mesmo mercado. Fatalmente, a gente se encontrava. Só que era a Suzana, a Maria do Carmo da novela, e ela é incapaz de ser discreta. Fala aos brados. O supermercado inteiro ouvia nossas conversas. Não tinha nada de secreto. Mas ela é das poucas que permito que rompa essa barreira.” Aguinaldo diz que não escreve a história em função do elenco. O mais importante é sempre a história. Um dos personagens que mais gostou de criar na novela foi Giovanni Improta, de Senhora do Destino, vivido por José Wilker. O personagem foi retirado de seu livro O Homem que Roubou o Rio. Sua principal fonte de inspiração de uns anos para cá são os jornais. “Sou um leitor compulsivo dos jornais. Leio três jornais por dia. É um hábito que vem da minha época de jornalista. Leio de cabo a rabo.”
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Vocaçao devorada pela TV Como outros romancistas, Aguinaldo Silva teve sua vocação (provisoriamente) desviada pela televisão Luiz Carlos Monteiro
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indústria televisiva tem desviado vocações literárias ao mesmo tempo em que produz monstros de audiência. Alguns autores que iniciaram suas carreiras escrevendo literatura em modalidades como o romance, o conto, a poesia ou a peça teatral, foram seduzidos pela TV e passaram a se dedicar com mais ênfase ao texto para telenovela. Podem ser aqui lembrados Dias Gomes, que deixou peças de teatro memoráveis; Manoel Carlos, que chegou a publicar poemas pelo “Círculo do Livro”; ou Aguinaldo Silva, que continua militando nos dois campos, e contabiliza cerca de uma dezena e meia de livros publicados. Seu romance mais recente, 98 Tiros de Audiência, com subtítulo “Intriga e Mistério nos Bastidores das Telenovelas”, acaba de ser lançado e retoma a temática policial em que ele é especialista, com uma vasta experiência de repórter em jornais. Ninguém mais adequado para a função do que o pernambucano, uma vez que conheceu de perto e a fundo, a partir da década de 60, a contravenção do jogo do bicho, o roubo desenfreado de automóveis associado ao avanço do tráfico de drogas, a corrupção policial indiscriminada e o mundo glamoroso, competitivo e banalizado das celebridades. O grupo seleto de escritores do qual poderia fazer parte Aguinaldo Silva é composto de ficcionistas do porte de João Antônio, José Louzeiro e Rubem Fonseca, que se esmeraram, cada um à sua maneira, na narrativa de cunho policial ou em episódios da malandragem do Rio. Continente janeiro 2007
Um dos livros de Aguinaldo Silva que causaram mais estranhamento foi Primeira Carta aos Andróginos (1975), um misto de romance e ensaio, com numerosas transfigurações e referências à mitologia grega e a personagens bíblicos, estrutura formal que se aproxima em muitos momentos à poesia, um questionamento subjetivo, mas não velado do homossexualismo e das dificuldades sociais que “o assumi-lo” traz num país onde a cultura ainda é bastante machista e arraigada. Em República dos Assassinos (1976), ele conta a trajetória do policial-bandido Mateus Romeiro, um dos “homens de ouro” da polícia carioca, preparado para executar suas vítimas sem pestanejar, e que atinge o êxtase sexual no momento de sacrificá-las. O protagonista acaba enveredando pelo crime através do “Esquadrão da Morte” – organização criada pela própria polícia para matar bandidos –, ao enviar carros roubados para o Paraguai e investir o dinheiro ganho trazendo, na volta, cocaína. O personagem que faz o repórter Aguinaldo Ribeiro (uma junção de Aguinaldo Silva com o também repórter policial à época Octávio Ribeiro) envolve-se com o policial-bandido, a ponto de ajudá-lo a cobrar dívidas de gente poderosa na contravenção e de demonstrar por ele um grau de intimidade que ultrapassa os liames mais corriqueiros da amizade. O último livro editado, O Homem que Comprou o Rio (1986), demonstra ainda a força do escritor Aguinaldo, com a escolha do contraventor Giovanni Improta para personagem central, promovendo a agilidade de uma narrativa impecável
CAPA onde cada fato, personagem secundário ou situação relatada ocupa seu devido tempo e lugar. Esta distribuição, interrelação e movimentação exata no espaço e no tempo dos personagens e eventos faz com que o romance atinja o seu estágio de eficácia e eficiência, cumprindo obviamente com sua função literária e estética específica. Este romance guarda algumas semelhanças de concepção de personagens e situações com 98 Tiros de Audiência. Primeiro, o modo como os detetives Paulinho Reitz e Luis Trajano atuam, comportam-se e se relacionam com as mulheres, com outros policiais e outras pessoas. Ambos sempre são afastados de casos que envolvam pessoas importantes porque, em termos éticos, mostram-se incorruptíveis. A Paulinho Reitz não importa se o maior implicado nas mortes de Orlando e Misael, de O Homem que Comprou o Rio, é um bicheiro que domina a Baixada Fluminense e que seja afilhado do governador Valmiro dos Santos. Em 98 Tiros de Audiência vem à tona praticamente tudo o que se passa nos bastidores de uma novela global. A grande luta de atores, autores e diretores para manter o pico de audiência a qualquer preço, que às vezes teima em despencar. A humilhação de quem persegue a fama e encontra, em contrapartida, a fúria de executivos preocupados apenas com o número de telespectadores e conseqüentes investidores na publicidade. Talvez por isso se
sinta mais forte a presença do autor de novelas do que propriamente do escritor ou do roteirista de cinema. O estilo romanesco segue o da trama folhetinesca, que guarda sempre a surpresa para o dia seguinte ou o próximo capítulo, levando qualquer leitor a querer saltar páginas e descobrir o que virá pela frente. Neste livro, ironicamente, o assassino da estrela Aurora Constanti é o alter ego de Aguinaldo Silva, o autor Everardo Lopez. Ele fica num beco sem saída ao ter de repetir a performance de 98 pontos no dia da morte de Aurora Constanti, mulher belíssima, porém bêbada e cocainômana, que investe tudo numa boa confusão e é odiada pelos colegas de trabalho, pelo diretor Quase-Quase e por Mister Zee, o Todo-Poderoso. Os capítulos aparecem em seqüências de blocos, à maneira de monólogos e depoimentos dos envolvidos com a diva Aurora Constanti, recurso já utilizado em República dos Assassinos para o julgamento de Mateus Romeiro. Mas, o que surpreende agora, em relação à escrita de Aguinaldo Silva, é aquela perda de vigor do escritor para deixar reinar o novelista. Nada se passa no âmbito da vida pessoal ou privada com discrição ou autenticidade, ao contrário, tudo resvala para o superficial, o bombástico, o sensacional, o deslavadamente público. Este é, sem dúvida, o preço que um escritor pode vir a pagar para ter seu público medido em milhões de pessoas. • Reprodução
Detalhe da ilustração da capa de 98 Tiros de Audiência
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on Juan, o famosíssimo personagem, nunca passou de uma ficção literária, mas acabou ganhando uma dimensão cultural tal, que, por vezes, dá-nos a impressão de ter se tratado de uma figura histórica. É verdade que ele foi inspirado em pessoas reais, mas, diferentemente de um Giacomo Casanova, que relatou façanhas eróticas reais em suas memórias literárias, don Juan nunca conquistou uma mulher que não fosse também feita de palavras e fantasia. Grandes escritores, como Molière, lord Byron, Bernard Shaw e, mais atualmente, Vargas Llosa, entre outros, inspiraram-se nessa personagem que simboliza uma espécie de “tipo universal” de homem; um que pode ser encontrado em qualquer lugar ou época, o irresistível conquistador de mulheres. Descritos como volúveis, apaixonados, narcisistas e inescrupulosos, os tipos “don Juan” são parte do imaginário social ocidental. A mais recente e digna aparição do herói destruidor de corações foi no romance A Gula do Beija-Flor (Bertrand Brasil, 2006), do boliviano Juan Claudio Lechín, vencedor, no seu país, do Premio Nacional de Novela 2003 e só agora traduzido ao português. A edição brasileira conta com uma competente tradução de Ernani Ssó, atento às particularidades e sutilezas próprias do espanhol falado na Bolívia. O livro, ambientado em La Paz, tem como ponto de partida um congresso secreto de sedutores em que sete mestres dessa “arte” narram suas histórias, quase sempre desapiedadas e permeadas de cinismo, mas
O congresso dos sedutores Escritor boliviano ressuscita (e renova) o mito de don Juan Eduardo Cesar Maia
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Divulgação
O escritor boliviano Juan Claudio Lechín faz do seu don Juan um personagem mais frágil e complexo do que o mito do eterno conquistador
que, ainda assim, conservam algo de terno. O congresso é presidido por don Juan, um senhor de idade avançada, memória já falha e de compleição física decadente. Contudo, como um sedutor nato, permanece nele o desejo de domínio sobre o sexo oposto, o que o faz dirigir toda a sua existência à realização de uma última façanha: a conquista de um beijo de uma mulher bem mais jovem – a jornalista que pretende escrever a história do próprio, já septuagenário, don Juan. A utilização de epígrafes no início de cada capítulo é uma pista das referências que Lechín utilizou na construção dos personagens e da própria história. Os relatos de cada um dos sedutores podem ser lidos como histórias independentes. O que dá unidade à obra é que todos os episódios se entrelaçam, de maneira hábil e verossímil, à última saga do velho presidente do congresso em busca do seu beijo redentor. A Gula do Beija-Flor é exemplar ao mostrar que o sexo continua sendo uma forma de rebelião, de insubmissão às regras do convívio social. Ainda que muito dos tabus tenham sido derrubados, o tema permanece em aberto e os valores estão em constante mudança. A pertinência da obra de Lechín é justamente “atualizar” essa discussão, deixando para trás paradigmas e estereótipos. Mesmo o don Juan, aqui, é outro. Vale mencionar, em épocas de renovação da gritaria feminista legitimada pela hegemonia dos “estudos culturais” nas universidades, que esse livro é de um desprezo agudo e inteligente aos ditames emburrecedores do discurso “politicamente correto”. Não que os personagens masculinos de Lechín saíam sempre triunfantes e satisfeitos de suas aventuras amorosas: o maior mérito do autor é exatamente o de tratar com sutiLivro: A Gula do Beija-Flor leza e complexidade o tema das relações entre Autor: Juan Claudio Lechín homens e mulheres. As histórias são contadas Tradução: Ernani Ssó sempre com muito humor, ironia e compaixão Editora: Bertrand Brasil 332 páginas por todas aquelas pessoas desenganadas, indePreço: R$ 45,00. pendentemente do sexo. •
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Delmo Montenegro./ Divulgação
Esgrima de palavras Em seu novo livro de poemas, Almir Castro Barros trabalha com elementos mínimos, microrreflexões semânticas que se traduzem sob o signo da recusa, armando sutilmente toda uma trama de resistências éticas Delmo Montenegro
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rdentias? Por que Ardentias? Por que escolher esta palavra tão preciosa, tão rebuscada, tão em desuso na nossa língua para nomear um livro tão atual? Vemos o uso desta palavra ser comum entre os poetas do século 19 – exemplos não faltam –, observem poemas como “No Mar” (Álvares de Azevedo), “O Navio Negreiro” (Castro Alves), “Olhos de Sonho” (Cruz e Sousa) e “As Ondas” (Olavo Bilac). Em 1885, o poeta parnasiano Vicente de Carvalho (1866-1924) estréia com um livro justamente chamado Ardentias. Será que o livro de Almir Castro Barros funcionará em relação àquele como uma espécie de duplo ou negação? Que enigmas carrega este título? Ardentias são fosforescências-do-mar, minúsculos plânctons cujo brilho – produzido no interior de seus organismos – transforma a visão do mar à noite num espetáculo de luzes, num fluxo trêmulo e difuso de estonteantes epifanias. Falar de ardentias é falar de um lugarcomum da poesia marinha, mas falar de ardentias é também dar uma imagem perfeita do encantamento produzido pela poética de Almir Castro Barros. Continente janeiro 2007
Uma poesia que lança, ao líquor dos nossos olhos, microscópicos organismos fugidios, flores de luz, rasgos de toda uma existência condensados em nanosegundos. Seus poemas são explosões de cristais no momento exato da fratura. Almir detém o segredo de uma ciência exata e profunda, uma esgrima de acupunturas: “O destino deulhes / As alfândegas do fim. // E peregrinos, / De cais em cais / Restou de seu / O encanto da imprecisão.” (“Desencontro”); “E quando Deus a eles perguntar / – Impressionava o que dizia / E dele nunca me falaram ? – // – Quisemos tua paz. / Ele tinha um pudor de desvãos / E ao falar tudo retirava / Dali – . // – Errou, / Preparando-se para um pequeno povo / Da beleza –.” (“Acadêmicos”); “Relembra isso, / No tempo – a cavoucar: // Pôde e não se deu / A ganhos febris. // Destinado, / Semeou lanternas / A melros perdidos. // Em toda a vida / Fez crepitar fornalha / Ou, / Pouco importa, consumiu-se / Aduaneiro.” (“Sem Rastro”); “Perdi o pai / Com lágrima luminosa / Na ladeira dos olhos. // Dardejante e sumido foi ficando / Entre as brumas de um vapor. // A mãe / Nos braços de ninguém fechou-se ao ar / E pequenino
LITERATURA adormeci / À sua mão diáfana recostado / Com os sonhos de nós dois. // Uma casa de céus eu quis, entanto / 'Tudo o que amei amei sozinho'.” (“Allan Poe”). Entretanto, existe uma outra acepção para a palavra ardentias. Ardentias enquanto ardência, calor das chamas, uma luz que fere, uma luz só lâmina. Ardentias enquanto Samhara, o signo hindu da destruição. Shiva Nataraja, o Senhor da Dança, dançando ao redor dos círculos de fogo da Prabhamandala. Almir Castro Barros traça assim suas ardentias políticas. Pontos luminosos no céu: os bombardeios maciços sobre Baghdad; pontos luminosos no corpo: as torturas e humilhações na prisão de Abu Ghraib. Pontos cruciais de nossa história. Com estes pontos, Almir Castro Barros inaugura um novo gênero: uma poesia pontilhista de combate. Em cada poema, um Seurat em tempo de guerra: “Para os que mentem / És a última incandescência / Da cor / No melhor ouro. // Para alguns ainda / A eternidade, / Ou, de horas renhidas / – Metrôs pontuais. // No entanto / – Fastio que depura – / Só a mim permites / A voz da edificação / De tua completa intimidade, // Como falésia e silêncios / Em rumorejo / Pelos despenhadeiros.” (“Liberdade – Nas exéquias do pior Bush”); “Dezembro não se desvencilha / Das formigadas ruas de agonia / E fingimento. // Este não seria o tempo / De você perder o trem dos imigrantes? // E outra vez mandar o seu poema / Aos surdos dele, / Verdugos que em dezembro / Choram?” (“Robert Frost”). Avessas ao óbvio do discurso panfletário e da fábula denuncista, cada uma destas ardentias oferece uma forma de resposta para a questão: É possível fazer poesia política nos dias de hoje? Almir Castro Barros nos responde trabalhando com elementos mínimos, microrreflexões semânticas que se traduzem sob o signo da recusa, armando sutilmente toda uma trama de resistências éticas: “Uma vida voada / A fazer dos olhos / Portas do céu, // Via nos gigantes / Miniaturas do não.” (“Seu Nome?”); “Passaram, e com eles / meus pés de ave além dos cadeados. // Na parede de ar / se não os toco // riem pra mim nesse caminho // duro.” (Os velhos); “Cresce o tempo de fitálas, / E nada fazem aqui estas senhoras. // Como em estranha feira, / Algaraviam // Ante livros / Desacarinhados e sozinhos / – No que escondem.” (“Feira do Livro”). Não enxergo nesta poesia o espírito das “madeleines” proustianas, a escrita de Almir é uma escrita viril: “À sombra de musgosa ruína, / Ou lepra verde. // Um homem ali madorna / Sob ralo madapolão: / Tinta e papel de sua história. // Dizem dele – pensou / Pensou até agora
/ E no rosto não continha, / Feito embolados vidros, um despenhadeiro / De curtas águas.” (“Desgraça à Noite pelo Recife”). Sua escrita jamais desvala para um impressionismo paralisante, mesmo nos momentos mais líricos, solares e abertos - contudo, eles são vários: “Sei da alegria – instante em cativeiro / Ou o pó da eternidade. // Ouro e Ardentias, Almir Castro Barros, Edições Bagaço,101 páginas, sol / Enxergo de manhã / – R$ 25,00. Laranjas na neblina. // Sou eu que defendo vaga melodia / Para acordar mendigo / E penso no amor / Dia após dia. // Lerdos dicionários / Digam de poente o que a mim defina.” (“Poentes”); “Ferreiros descompassados / Por vermutes de ira, / Foram. // E lembrar / Impõe uma ginástica do riso / Onde o pranto / Quer.” (“No Final”); “Eles comem do meu coração / O melhorzinho: // A valsa no ar dos galhos / A tinta do infinito / Sobre perdoados morrendo / A lágrima sem pranto de casas partidas / A cidade aonde se vai faminto / A arte em verde e leite / Dos mamoeirinhos ocos. // O time desses pensamentos / Há de parar – / Com isso.” (“Merencórios”). Sempre existe um desvio de percurso, no instante último, sobre o fio de aço que reafirma do poder de criação do funâmbulo. Sempre existe a assinatura perene de uma arte que caminha sobre os abismos. Almir Castro Barros há muito superou os seus congêneres. Em Pernambuco, só podemos compará-lo a nomes como Carlos Pena Filho, Joaquim Cardozo ou César Leal. Nunca em relação aos medianos, apenas em relação aos grandes. O que lhe falta de reconhecimento deve-se apenas à sua própria índole, pouco afeita a espetáculos. Almir dedica-se com todo rigor às esgrimas da palavra, num tempo outro que não o dos humanos. De que outra forma, senão esta, conseguiríamos explicar como, em apenas cinco linhas, um poeta pode ser mais vasto que todos os romances: Retrato de Parede Lembro de minha mãe Que mantinha poços secos Entre os muros das clavículas E o resto do corpo era sertão. • Continente janeiro 2007
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LITERATURA
Amor e Revolução Romance do jornalista Paulo Santos focaliza a Revolução de 1817, sob a ótica de líder revolucionário e sua amada Homero Fonseca
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pós o triunfo da meteórica Revolução Republicana de 1817 em Pernambuco, o comerciante Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, diretor do Erário Público, foi designado embaixador do governo revolucionário nos Estados Unidos. Lá, enfrentando a resistência da diplomacia oficial portuguesa, manteve contatos com liberais e revolucionários e arquitetou – e começou mesmo a executar – um mirabolante plano que incluía uma expedição armada à Ilha de Santa Helena, para libertar Napoleão Bonaparte e trazê-lo para estes alegres trópicos, num extraordinário reforço à causa revolucionária. Este episódio pouco conhecido, com suas nuances de comédia e tragédia, é bem representativo do espírito romântico, ingênuo, exaltado e atrevido daquele punhado de homens que ousou enfrentar o absolutismo do império português e proclamar uma nova sociedade. Faz parte do pano de fundo, juntamente com acontecimentos mais ou menos relevantes, do romance A Noiva da Revolução, do jornalista Paulo Santos, a ser lançado no próximo dia 13. Definida por Oliveira Lima como “única revolução brasileira digna deste nome”, a Revolução de 1817 foi muito além de antecipar a Independência, na observação do professor Denis Bernardes, autor do prefácio do livro. Durante seus pouco mais de dois meses de duração, teve um governo autônomo, constituição, forças armadas, embaixadores no exterior, adotando, pela primeira vez entre nós, os princípios da Declaração dos Direitos do Homem, espelhados na Revolução de 1789, na França. Duas narrativas se entrecruzam no romance: os registros apressados, em forma de diário, “feitos em cima da perna, no calor da hora, (...) naturalmente falhos e inacabados”, de Domingos José Martins, um dos líderes da Revolução, e os apontamentos complementares, escritos durante 40 anos, por Maria Teodora da Costa Martins Pires, filha de um rico comerciante português, “a noiva da Revolução”. Domingos e Maria Teodora viveram um conturbado e trágico romance, primeiro como protagonistas de um namoro proibido e depois como marido e mulher durante o curto verão da cidadania. Este estratagema literário permite ao autor “narrar tudo de fato como aconteceu”, utilizando uma linguagem livre e fluida, muito além dos compêndios de História. A Revolução durou pouco e acabou sob uma
Fotos: Arquivo pessoal
Paulo Santos: narrativa límpida e fiel
repressão crudelíssima, que fez mais de duas mil vítimas. As contradições, as dúvidas, os equívocos, os acertos e o colapso de uma mudança social radical são expostos num grande painel, encadeado cronologicamente, sem que isto implique nunca uma leitura enfadonha, pelo contrário. Todos os fatos narrados foram baseados em rigorosa pesquisa histórica, indagando Denis Bernardes apenas se terão existido o manuscrito de Domingos Martins e “este diálogo, para além do tempo, do silêncio e da morte” entre o prócer revolucionário e sua amada, deixando “a cúmplice dúvida”, que “em nada compromete a verdade”, para maior sabor à leitura. Paulo Santos, estreante no gênero romanesco, não se propõe a discussões estéticas nem alçar-se à glória literária. Seu engenho e arte se colocam a serviço de uma narrativa límpida, fiel e direta, em que a extraordinária história dos revolucionários pernambucanos ganha vida e verossimilhança. O O lançamento de A Noiva da Revolução, que já é um feito, a ser 352 páginas, será no dia 13 de janeiro, apreciado com deleite data oficial do Frei Caneca, no Museu da por todos que tenham Cidade do Recife, no Forte das Cinco curiosidade de saber Pontas. Informações pelo site o gosto da História. • www.anoivadarevolucao.com.br Continente janeiro 2007
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PROSA
As duas mulheres de João Marombão Ronaldo Monte
João Marombão tem duas mulheres. A cada fim de semana acorda com uma delas. Uma se chama Marta. A outra atende por Alice. Nada disso deveria chamar nossa atenção, pois João é solteiro e as duas vão até ele porque querem. João nem as convida. Para ser mais exato, ele até acha ruim quando acorda com uma ou com outra. Por uma simples razão: Marta e Alice não acordam junto de João. Acordam dentro dele. Das duas, Marta é a mais reservada. Conduz os movimentos de João com delicadeza, deixando para ele alguma autonomia de comando. É justamente por essa leveza que João reconhece sua presença. Marta espreguiça seu corpo antes de levantar, deixa a cama devagar, dando tempo para que João se acostume com ela. Discreta, parece que nem esta aí quando João entra no banheiro para os ritos matinais. Só quando vai para a cozinha preparar o café da manhã é que João reconhece definitivamente sua presença. A escolha cuidadosa das frutas, a precisão na quantidade do pó de café, a opção pelo adoçante e a firme recusa de qualquer coisa que engorde ou tenha gosto enjoado. Para João Marombão, Marta só tem um defeito: fumar. Para ele, que ganhou este nome pouco delicado justamente por sua entrega radical aos exercícios de musculação, é um tormento quando Marta fuma. Porque, é óbvio, para fumar, ela usa emprestada sua boca e seus pulmões. Não sabe como aquele maço de cigarros veio parar na gaveta do armário da cozinha. Mas não se irrita, pois, no fim das contas, gosta daquela sensação de ausência, formigamento e gozo que sente a cada tragada de Marta. O pé direito enganchado na cadeira oferece o joelho para o antebraço descansar com o cigarro entre o médio e o indicador. Os olhos absortos na fumaça, a caneca de café sorvido aos poucos, permitem um bom momento de preparação para enfrentar o dia com calma. Passa das oito. É um sábado e João não vai ao trabalho. Tinha marcado às 10 uma pelada com a turma do banco, mas já decidiu que não vai. Melhor dizendo, Marta decidiu por ele, pois sentiu uma vontade enorme de ficar Continente janeiro 2007
em casa sem fazer nada. No máximo, assistir a um filme. Mas não se sentiu atraído por nenhum dos clássicos da sua coleção de Bruce Lee. Teria de ser uma coisa mais leve. Marta queria uma coisa mais leve. Diga aí, Marombão, vai a Operação Dragão novamente? O vendedor da locadora achou esquisito quando João falou quase sem olhar pra ele: Pode deixar que eu mesmo escolho. E ficou espantado quando viu João parar na prateleira dos românticos. Ficou intrigado quando viu a mão enorme de João fazer um movimento delicado e escolher um filme italiano que quase ninguém mais alugava. João acende um cigarro, larga-se na poltrona e dá um play para começar a ver o filme que Marta escolhera. Um Dia Muito Especial, de Ettore Scola, um diretor de quem ele nunca ouvira falar. Aliás, não era muito de ligar para nome de diretor nem de artista. Para ele existia Bruce Lee e o resto. Mas agora queria saber o nome daquela artista que fazia o papel de Antonietta, uma dona de casa casada com um fascista que a deixa em casa só, enquanto vai com todos os filhos assistir Mussolini receber o Führer em sua célebre visita à Itália. Queria também saber o nome daquele cara genial que fazia tão bem o papel de Gabrielle, um homem delicado que havia sido demitido de uma rádio estatal por suspeita de ser homossexual. Ela se chamava Sophia Loren. Ele era Marcello Mastroianni. João ficou emocionado com a cena em que ela entra no apartamento do homem e assiste, escondida, ao modo cuidadoso com que prepara a comida e arruma a mesa para almoçar. Acha bonito quando a câmera, fechada nos movimentos leves das mãos de Gabrielle servindo a comida, recua lentamente para mostrar que ele serve a Antonietta, já sentada em sua frente. João não agüentou quando, no fim do filme, aturando o marido ruidoso de volta da festa fascista, Antonietta assiste à polícia política levar seu amigo Gabrielle embora. Não era Marta, tinha certeza. Era ele mesmo que chorava. Nesta sexta, João foi dormir apreensivo. Era quase certo que ia acordar com Alice. Vai ser muito chato, pois
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tinha perdido uma sessão de musculação durante a semana e precisava compensar na manhã do sábado. Não deu outra. Quando o despertador tocou às sete horas, seu corpo deu um pulo da cama e correu para debaixo do chuveiro. João odiava água fria, mas Alice adorava sentir calafrio com a água descendo pelas costas. E soprava com gosto o xampu que lhe escorria pela cara, fazendo um jato barulhento com os lábios em bico. João detestava essas efusividades matinais. Pior era quando saía do banheiro com uma toalha amarrada na cabeça ia direto para a geladeira pegar uma banana e fazer vitamina. Isso tudo com o rádio nas alturas, tocando música do Skank. Nada contra ir para a academia. Alice gostava de malhar. Nada de carro. Melhor ir a pé. Muito melhor, correndo, para já chegar lá de sangue quente. Se não fosse quem era, João Marombão ia ter dificuldade em conter os passos saltitantes e os pulsos querendo dobrar, jogando para um lado e para o outro suas mãos volumosas. Diga aí, Marombão, vai direto para os pesos hoje? O porteiro da academia achou esquisito quando João, ainda correndo, falou quase sem olhar para ele: Pode deixar que hoje eu vou para o treino de judô. O porteiro ficou espantado. João não fazia judô. Mas foi direto para a sala, pediu um quimono emprestado e fez questão de enfrentar um dos alunos mais experientes. O professor quis negar, mas João era boa praça e, com aquele tamanho, dificilmente iria
se machucar. O aluno escolhido era um veterano, saberia muito bem se aproveitar do tamanho e da força de João sem nenhum prejuízo. O coração de João disparou quando ficou cara a cara com o adversário, olhos nos olhos, naquela dança harmoniosa do começo da luta. João queria sair dali, mas Alice não deixava. Ela queria tomar posse absoluta do corpo de João para sentir em detalhes o volume e as formas do corpo delgado e ágil daquele lutador. João não sabe como aconteceu. Percebeu num susto que o lutador, agarrando a gola e uma das mangas do seu quimono, deu-lhe as costas e o puxou por cima de si, abaixando-se para que seu corpo pesado deslizasse com rapidez até se estatelar com todo o peso no tatame. O professor não deixou a luta continuar. Ajudou João a se levantar e recomendou que ele descansasse um pouco. Mas João não escutou. Saiu lentamente, mas não foi para a sala de musculação. No pátio interno da academia um grupo praticava tai-chi-chuan. Ainda de quimono, postou-se na periferia do grupo e começou a imitar os movimentos do instrutor. Ficou surpreso, pois não teve dificuldade alguma. Algumas partes do seu corpo precisavam de firmeza para sustentar o equilíbrio do corpo. Ali mandava Alice. Outras partes precisavam descrever com elegância e leveza os movimentos lentos e precisos, em sintonia com a respiração. Ali reinava Marta. •
Ronaldo Monte é autor de Pelo Canto dos Olhos, Memória Curta,Tecelagem Noturna, Pequeno Caos,World Trade Center, poema a quatro mãos com Pedro Osmar, e Memória do Fogo. Continente janeiro 2007
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Poemas de
Hamilton Alves
Nem dei pela noite
Nada, nada!
nem dei pela noite mal dei pelo dia mal senti o vento não percebi o mar
À beira da praia, O mar dizia-me:
não vi o cachorro não olhei o pássaro nem muito menos ouvi seu canto
O silêncio, em volta, Lhe retrucava: “Nada, nada!”
O mar silenciou, Dei alguns passos,
o homem passou como uma sombra a falar verdade nem o notei
Mais alto, os pássaros, Que o sobrevoavam, repetiam:
Voltou a murmurar, Lastimoso e triste:
“Nada, nada!”
“Nada, nada!”
a palavra ecoou não a escutei o riso se esboçou mas isso passou o céu sem nuvens pouco me importou a rua esmoreceu a noite voltou e tudo se foi sem nenhuma vital impressão de ter vivido.
Seguiram rente Às ondas, Dois a dois;
“Nada, nada!” Mais distantes, Já os perdia de vista;
Delírio pouca coisa agora resta para dizer da folia da noite,
descobri na máscara que era o reflexo da dor ou da decepção;
das trevas que o delírio trouxe rápido à tona e então emudecemos;
julguei que tudo fosse baldado mas ainda sobraram esperanças
nada, porém, foi inútil, algo sobreviveu à ira, lampejos de fogo
sobre a reconciliação, o impossível amor, a infinita tristeza.
Hamilton Alves nasceu em Florianópolis, Santa Catarina, em 1931. É autor de três livros de novelas, cinco de crônicas, um de contos e um de poesia, sob o título Canto do Vento.
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AGENDA/LIVROS
Os “lugares” da nossa cultura Pernambucânia, editado pela Cepe, preenche lacuna nos estudos da toponímia municipal do Estado
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primeira pergunta de um leitor que não seja nem geógrafo, nem lingüista nem historiador diante de um livro sobre toponímia, como o Pernambucânia, parece inequivocamente justa: “O que é que eu tenho com isso?”. Mas basta folhear a última seção do livro, em que estão listados os nomes dos municípios, seguidos de sua origem e das características geográficas do lugar. É com surpresa agradável que notamos o quanto esses nomes guardam de uma cultura em todos os seus aspectos: a inspiração vai desde as atividades econômicas características do lugar até os “causos” populares dos mais variados matizes, do lírico ao cômico. Há, por exemplo, a história de Aliança, cujo nome lembra a união de todos os moradores, ainda no século 18, para a restauração da capela do povoado, liderada pelo pároco; ou a lenda dos dois cavalos que fugiam de seu estábulo para cochilar às margens de um lago nas redondezas de Dormentes: “dormentes” eram os cavalos, daí o nome. Há nomes, ainda, que foram tomados de empréstimo a personagens ora folclóricos, ora históricos, além dos que, dirigidos aos viajantes, fazem uma verdadeira – e convidativa – avaliação da paisagem natural, como Águas Belas ou Bonito. O “glossário” das cidades vem acompanhado ainda de outros textos, em que a pesquisa do autor mostra haver excedido tanto o território pernambucano quanto o intuito meramente descritivo: são informações gerais ora sobre a toponímia brasileira, ora sobre o desenvolvimento cultural e econômico do Estado, de cunho mais interpretativo. Sem a mediação algo pesada do texto acadêmico, ou das eventuais estilizações que sofre aqui e Pernambucânia – O que Há ali, uma forma imprevista de nos Nomes das Nossas Cidades, Homero Fonseca, nos acercarmos da nossa cultuCepe, 188 páginas, R$ 30,00. ra. (Artur A. de Ataíde)
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Dúvida cruel N’O Terceiro Livro dos Fatos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel, seu fiel amigo Panurge está às voltas com o dilema: casar ou não casar? E mais que isso: se casar, será corneado, surrado e roubado pela mulher? Assessorado pelo sábio gigante Pantagruel, Panurge consulta oráculos, feiticeiros, médicos, loucos, advogados. E embora a maioria considere a cornice uma espécie de estado natural dos casados, Panurge só entende como quer. O tema é desenrolado por Rabelais com um misto de erudição e linguagem popular, cheio de citações gregas e referências de época. Bom Pantagruel, François Rabelais, Ateliê Editorial, capa dura, 304 páginas, R$ 72,00.
Jacaré psicodélico Quarto livro do jovem autor paulista Santiago Nazarian, Mastigando Humanos, traz a história não mais improvável de um jacaré que sai de seu habitat natural para viver num esgoto de cidade grande. O jacaré torna-se o personagem-narrador do romance, sem nenhum problema quanto a relatar tudo o que vive, mastiga e observa em primeira pessoa. E, a partir daí, intervir em e depor sobre todas as vivências e situações experimentadas por um escritor, desde a passagem pela universidade, relação com editoras, processo criativo e cultura contemporânea. (LCM) Mastigando Humanos – Um Romance Psicodélico, Santiago Nazarian, Nova Fronteira, 224 páginas, R$ 25,00.
Sem floreios Aos 81 anos, o notório escritor recluso de Curitiba, Dalton Trevisan, monta peça a peça, um amplo painel de “almas sebosas”, onde a violência social é como um abismo sem fundo. Ladrões, estupradores, sádicos, tarados, maníacos de toda espécie, desfilam em histórias curtas e rápidas que trazem a angústia de seus protagonistas, suas esperanças e sonhos em palavras secas, fortes e certeiras. Na maior parte dos relatos, o estupro é recorrente, como no conto que dá título ao livro, onde o estuprador, sem ter reação da vítima, brocha, pateticamente. (Luiz Arrais) Macho não Ganha Flor, Dalton Trevisan, Editora Record, 128 páginas, R$ 24,90.
No mundo da lua Este livro desvenda os bastidores da gravação do “disco do prisma” com todo seu processo de produção que durou seis meses, maturado durante turnês pela Europa, EUA e Japão. Temas como loucura, morte e dinheiro, eram misturados a inovações na montagem sonora, com efeitos inéditos inimagináveis. É ilustrado com fotos inéditas da banda, inclusive da época em que era liderada pelo “lunático” Syd Barrett, às voltas com o uso excessivo de drogas e que acabou sendo expulso do grupo em seu começo. (LA) The Dark Side of the Moon – Os Bastidores da Obra-prima do Pink Floyd, John Harris, Jorge Zahar editor, 224 páginas, R$ 39,00.
AGENDA/LIVROS 35
A obra-prima de Bábel Lançada pela primeira vez em tradução do russo o livro O Exército de Cavalaria
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saac Bábel nasceu de família judaica na Ucrânia, em 1894. Logo após a Revolução Soviética, participou da guerra entre a Rússia e a Polônia, entre 1920 e 1921. Dessa sua experiência nasceria um dos mais importantes livros da literatura mundial no século passado, O Exército de Cavalaria, seleção de 36 contos pela primeira vez vertidos diretamente do russo a quatro mãos por Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, professores da PUC. A prosa de Bábel, em que se mesclam um realismo seco com um lirismo inesperado – que influenciou autores como o norte-americano Ernest Hemingway ou o brasileiro Rubens Fonseca – narra as aventuras do míope intelecutual judeu Kirill Vassilievitch Liútov, ao lado de cossacos cujos valores de excelências se traduziam em saber cavalgar, matar e pilhar com competência. Para se impor, ele tem que adotar as mesmas atitudes. Sobre seu estilo, disse Jorge Luis Borges: “A música de seu estilo contrasta com a O Exército de brutalidade quase inefável de algumas Cavalaria, Isaac Babel, cenas”. Participante de primeira hora da Cosacnaify, 256 revolução comunista russa, Bábel, entrepáginas, R$ 55,00. tanto, recusou-se de colocar sua literatura a serviço dos padrões do “realismo socialista” pregado pelo stalinismo. Por isso, primeiro foi silenciado durante a década de 30, para depois ser preso num campo de concentração da Sibéria e fuzilado, em 1941. (Marco Polo)
Poesia de invenção
Toda verdadeira poesia é poesia de invenção. A expressão, contudo, tem sido usada com mais freqüência por aqueles que se dedicam à poesia experimental, seja de viés concretista, visual ou virtual. Entre estes, tem-se destacado a figura de Arnaldo Antunes que, antes mesmo de integrar o grupo de rock Titãs, que o tornou famoso, já em 1983 tinha lançado um primeiro livro de poemas, Ou E, seguido de Psia (contração da palavra poesia e feminino da palavra psiu, algo entre a piscina e a pia, como, bem humorado, explica AA), dois anos depois. Agora, com11 livros na bagagem – um dos quais, Nome, veio acompanhado de CD e DVD –, lança uma antologia de todo seu trabalho como poeta, letrista e ensaísta. O resultado é muito bom. Uma letra como “Pulso”, em que AA arrola uma série de nomes de doenças atrozes para arrematar que, apesar disso tudo, “o pulso ainda pulsa”, é antológica. Poemas como o sem título em que tematiza a passagem de Alice para dentro do espelho ou o poema visual “rio/o ir” mostram que estamos diante de um verdadeiro criador. Um poeta, enfim.(MP) Como é que Chama o Nome Disso, Arnaldo Antunes, Publifolha, 392 páginas, R$ 59,00.
Bom gosto Sabe o leitor como cozinhar um cisne, o que, aliás, é proibido? Sabe que os aspargos deixam cheiro na urina? Ou como Hemingway gostava de preparar seus martinis? Estes temas meio aleatórios, mas que giram em torno da gastronomia, são alguns dos abordados num, literalmente, delicioso livrinho: A Miscelânea da Boa Mesa de Schott, numa edição de muito bom gosto (impossível sair do terreno!). Seja o leitor um glutão, um gourmet ou simplesmente uma pessoa curiosa, certamente vai se empanturrar com esta enxurrada de informações úteis e inúteis sobre comidas, bebidas, receitas, temperos e especiarias. A Miscelânea da Boa Mesa de Shott, Ben Schott, Intrínseca, 160 páginas, R$ 34,90.
Outro Deleuze
Quando o filósofo francês Gilles Deleuze morreu, deixou 30 livros. Mas também uma boa quantidade de textos esparsos na imprensa, resenhas, entrevistas, prefácios. David Lapoujade reuniu e organizou esse material, que integra este livro. São artigos sobre Bérgson, Kant, Nietzsche e Hume, além de críticas ao estruturalismo, ao marxismo, à fenomenologia e à psicanálise. Outro escrito mostra a importância, para ele, dos movimentos de rua em maio de 68. Há também uma homenagem a Sartre, uma conversa sobre pintura e o texto que dá título ao volume, escrito para uma revista de turismo. A Ilha Deserta, Gilles Deleuze, Iluminuras, 384 páginas, R$ 53,00.
Rebeldia musical Dentro da coleção Iê Iê Iê, da editora Conrad, foi lançado o livro Criaturas Flamejantes, que conta a história dos primórdios do rock’n’roll, com destaque para “uma visão de perto do inferno particular vivido por figuras como Elvis Presley e Jerry Lee Lewis”. Vai até os Estados Unidos, na década de 30, pesquisar o caldeirão de música country, blues e jazz; uísque, anfetaminas e armas; protestantismo pentencostal e religiões afro-americanas, para encontrar o gérmem desse ritmo que demonstrou ser mais que uma música. Porque o rock tornou-se sinônimo de comportamento rebelde, trazendo os jovens para o centro do mundo. Criaturas Flamejantes, Nick Tosches, Conrad, 134 páginas, R$ 24,50.
Caos urbano
Primeiro livro de um jovem poeta, Psiconaútica, na verdade, forma duas obras. Nasceduto é uma errância sensível, cheio de musas e paisagens urbanas; Psiconáutica é um relato mais experimental do absurdo cotidiano. Paulista do ABC, André Telles migrou para o Recife atrás de sons e sol para sua poesia. Assumiu de vez a cidade, fazendo de seu apelido pernambucano, Trelles, o codnome poético. Passagem que é sentida em sua poesia, ambientada ora por São Paulo, ora pelo Recife, numa mistura intensa de microfonia, caos urbano, erotismo, manguebeat e pop art. (Camilo Soares) Psiconáutica , Trelles, Edição do Autor, 100 páginas, R$ 10,00.
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Azares da cultura "Não faz sentido falar em corrigir as distorções das leis de incentivo: não há como consertar, porque as próprias leis geram distorções." Yacoff Sarvokas
U
m dia desses, assistindo ao Programa do Jô, um dos entrevistados da noite era um produtor cultural ligado ao Sesc de São Paulo. Jô lhe perguntou sobre as conseqüências esperadas por aquele órgão com a recém-sancionada Lei das Micro e Pequenas Empresas, uma vitória brasileira sobre a injustiça e a discriminação. O entrevistado, nome famoso do teatro, mas que não gravei, disse que a Lei, tão aplaudida, representaria a queda de um terço da receita anual do Sesc, e que isso, naturalmente, resultaria numa significativa queda nos investimentos em cultura. A nova legislação impede que os funcionários das micro e pequenas empresas recolham para o Sesc, com o objetivo óbvio de reduzir os custos das empresas que vivem no círculo vicioso do abre-e-fecha. Mas esses custos recaem atualmente sobre o efetivo dos funcionários que, deixando de recolher, desligam-se do Sesc e não podem usufruir mais de seus serviços, inclusive os culturais, os que mexem com o meu minifúndio. São Paulo e Rio têm os dois Sesc mais revolucionários do país, pela sua abertura estética. É lamentável que eventos de alta qualidade tenham de ser reduzidos. Fui gerente de Bem-Estar Social do Sesc, no Acre, e sou testemunha da seriedade com que levávamos todos os serviços, em especial os eventos culturais. O padrão de qualidade é extensivo a toda a rede de unidades estaduais e até municipais do Sesc. Não sei como os comerciários receberam o anúncio de que serão, no próximo ano, desligados do órgão e seus serviços. É certo que deixarão de recolher mensalmente mais um encargo, mas esta economia em seu salário será de tal ordem que cobrirá os serviços que perderam? Como vocês estão vendo, meus milhões de leitores, vai ser reduzida a vazão de recursos que não vêm do Tesouro Nacional nem do Orçamento da União. Os recursos provenientes deste último, de tão mesquinhos, foram motivo de espanto para o jornalista Ancelmo Góis, da Agência Globo. Chamou a sua atenção o fato de que o orçamento do Ministério da Cultura seja menor que o de pequenas Continente janeiro 2007
MARCO ZERO
universidades brasileiras, representando nada mais que R$250 milhões, ou seja, suficiente apenas para financiar uma superprodução cinematográfica norte-americana. Esta é a razão por que são tão poucos os pontos de cultura, a loteria da cultura não saiu do papel, e nenhum projeto de alta envergadura foi implantado. Mas o que faz falta, mesmo, é a adoção de uma verdadeira política cultural. Um exemplo dessa política foi citado por Celso Furtado, quando ministro da Cultura. Disse ele que uma “ópera em Paris custa ao governo metade do preço de oferta; sem apoio do governo, somente uma pequena elite teria acesso a ela; esta é uma decisão de política cultural”. O Brasil precisa de uma que contemple equitativamente as áreas metropolitanas e as cidades de interior. A cultura, em seu conceito estético, também pode ser concentradora de renda. Aguardam oportunidade de se expressar, pelo Brasil afora, milhares de atores, cantores, músicos, ficcionistas, poetas, pintores, artesãos de peças não utilitárias e brincantes de folguedos folclóricos. É todo um
Brasil vivo e criativo à margem dos espaços e das oportunidades de emergir. Não esquecer, ainda, todo o pessoal técnico que organiza os suportes de apresentação artística. Do jeito que as leis de incentivo fiscal funcionam,vêm beneficiando grupos já famosos, as elites das artes brasileiras, em detrimento de milhares de grupos e valores individuais fora dos radares dos poderosos. É dinheiro do povo financiando as elites no campo da cultura. O país precisa inaugurar uma política cultural que leve em conta a sociedade de classes. Quanto mais longe do poder, mais órfãos de benefícios, mais invisível para os juízes que julgam seus modos de expressão estética. Foi sacrificando a cultura que a Lei das Micro e Pequenas Empresas foi sancionada, com o Sesc perdendo parte dos recursos delas provenientes. As pessoas ligadas às artes estão cansadas de assistir a um estranho ritual: seja qual for a corrente política que esteja no poder, quando se parte para cortes orçamentários, o Ministério da Cultura é o primeiro a ser lembrado. • Continente janeiro 2007
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ARTES
A ARTE provocadora de León Ferrari
A Civilização Ocidental Cristã, 1965, plástico, óleo e gesso
Depois de retrospectiva em Buenos Aires e São Paulo, artista argentino tem livro dedicado à sua obra Marco Polo
ARTES
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os 86 anos de idade, o artista plástico argentino León Ferrari continua provocando polêmicas. A mais recente aconteceu entre novembro de 2004 e janeiro de 2005, por ocasião de sua retrospectiva, acontecida no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires. A exposição, que dividiu a cidade, teve protestos de religiosos e até mesmo ameaças de bombas, encerrou-se prematuramente por decisão judicial. Tudo porque o artista permanece “em estado de turbulência com o mundo das idéias, crenças e preconceitos, expressando-se de maneira destemida como em geral somente aos jovens parece ser dado manifestar-se”, como afirma a curadora brasileira Aracy Amaral. Planeta, 2003, A obra de León Ferrari vem se desenvolvendo, ao longo dos anos, dentro de duas vertentes. globo terrestre com baratas De um lado a exploração de um grafismo abstrato, que se manifesta em desenhos feitos com letras e palavras, ou formas entrançadas, ou ainda, com um alfabeto inventado, também encontrando expressão em esculturas feitas com fios de metal, como um desenho em três dimensões, sendo, às vezes, passíveis de produzir sonoridades. Este é o lado mais lírico e intimista da produção do artista argentino. Do outro lado, entretanto, estão as colagens de imagens ou textos de jornais e uma produção figurativa de objetos, que carregam um forte cunho de crítica social, religiosa e política. É nesta vertente que se enquadram a crucificação de Cristo num bombardeiro norte-americano, as imagens bíblicas com introdução de elementos eróticos, papas passeando em glória sobre cadáveres. Ou ainda, as colagens de jornais que anunciam o aparecimento de cadáveres “não identificados” durante os anos de ditadura direitista sul-americana. É certamente sobre este tipo de trabalho que Ferrari afirma: “A arte não será nem a beleza nem a novidade, a arte será a eficácia e a perturbação. A obra de arte realizada será aquela que dentro do meio por onde o artista se move tenha o impacto equivalente a um atentado terrorista”. Durante a ditadura militar argentina, León Ferrari veio com parte da família para São Paulo, onde viveu de 1976 a 1983. Daí haver uma
Acima, León Ferrari. Ao lado, A Vênus Tocada, 1964, caixa com colagem de fotografias
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grande quantidade de obras suas no Brasil. Para recente exposição na Pinacoteca do Estado, na capital paulista, foram localizadas 577 obras do artista na cidade. E foi a partir desta mostra, mais a discutida retrospectiva realizada em Buenos Aires, que se resolveu fazer o livro Leon Ferrari. Retrospectiva. Obras 1954 – 2006, sob coordenação de sua conterrânea, Andréa Giunta, professora de Arte Latino-Americana, editada em conjunto pela Imprensa Oficial de São Paulo e pela CosacNaify. Fartamente ilustrado, o livro, que tem 464 páginas e custa R$ 120,00, cobre toda a produção do prolífico artista argentino e está dividido em quatro capítulos. Cinco ensaios de especialistas argentinos, mexicanos e brasileiros analisam, de diferentes pontos de vista, a obra de Ferrari: sua poética e trama temática, seu figurativismo e abstracionismo, os materiais diversos – garrafas, carimbos, letraset, gaiolas. Há também uma cronologia comentada, uma grande análise da controvérsia gerada por sua retrospectiva em sua terra natal e, finalmente, um conjunto de textos escritos pelo próprio León Ferrari ao longo de quatro décadas, e que revelam muito não só dos seus processos de trabalho como também da sua visão de mundo e arte. Como neste, escrito em 1964, e que tem justamente como título, “A Arte”: “A arte, meu filho, é uma mulher muito bonita que chora quando a deixam sozinha. Às vezes a vemos muito digna com chapéus emplumados veludos e colares entre senhores que a convidam com champanhe. Às vezes alguns tantos sacerdotes acomodam-na em um altar e a nomeiam a grande virgem de uma hermética religião. Mas às vezes também por sorte e com todo seu beneplácito um bando escandaloso a rouba da igreja e a leva em procissão deita-a em um matagal e lhe arranca as quatro vestes e entre uivos e gargalhadas procede à fornicação conscienciosamente (isto é o que se chama etapa de gestação). Quando vir esta cerimônia, meu filho, não pare para escutar os prantos e lamentos de ciúmes e invejas dos frades e senhores que não a fizeram gozar”. •
No alto, De Um Lado à Esquerda, 1964, nanquim e colagem sobre papel. Ao lado, Deuteronômio, 1994, texto sobre manequim Continente janeiro 2007
ARTES Helic贸ptero, 1988, colagem
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O desafio entre
Lancelot e Lampião Lampião e Lancelote encontram-se numa batalha tanto de linguagens como de armas, em meio à mágica, valentia e bom humor
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pintor, gravurista e ilustrador paulista Fernando Vilela pesquisou as narrativas épicas medievais e a literatura de cordel para compor o texto do livro em que promove o encontro – e o duelo, ou “justa” – entre Lampião, o cangaceiro do sertão nordestino, e Lancelot, o cavaleiro da Távola Redonda. Com ciúmes de Lancelot, que preferia a rainha Guinevere a ela, a feiticeira Morgana lança o herói no sertão. Ao defrontar-se com Lampião e seu bando, Lancelot apela para o mago Merlim a fim de ter ao seu lado seus companheiros de cavalaria. O desafio começa numa espécie de repente, onde as linguagens e referências culturais servem como armas. Mas a batalha física que se segue é tão feroz que quando baixa a poeira está Lancelot espremido nas roupas de couro do cangaceiro e Lampião todo desengonçado dentro da armadura do cavaleiro. Diante da situação ridícula, todos caem na risada e logo estão dançando um forró péde-serra, os cangaceiros com as damas da corte e os cavaleiros com as mulheres dos cangaceiros.
ARTE
Para ilustrar as cenas do cangaço, Fernando Vilela utilizou xilogravura, a técnica justamente usada nos “romances” sertanejos e, para as cenas de cavalaria, mesclou desenhos e carimbos, buscando referências nas iluminuras do medievo. Numa sóbria referência às cores, colocou prata na armadura de Lancelot e cobre nos enfeites de Lampião. Também usou como guias visuais pinturas renascentistas e cenas de filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Para as linguagens, estudou as métricas do cordel nordestino e os termos e estruturas de sentença das novelas de cavalaria. Equipado com este repertório, Fernando partiu para a aventura, levando consigo seus heróis e o leitor, numa viagem cinematográfica. Aproveita bem o formato 35 x 25 cm, do livro capa dura, principalmente na cena da batalha, em que as páginas se desdobram para os lados numa panorâmica que impressiona pela movimentação. A ótima e bem-humorada idéia de unir dois mundos épicos, ao mesmo tempo tão diferentes e tão próximos, é, assim, brilhantemente realizada, transformando este álbum num prazer que não só se repete em tantas Lampião & vezes quanto for visitado, como convida o Lancelot, Fernando Vilela, Cosacnaify, leitor a compartilhá-lo com outras pessoas 52 páginas, que tenham sensibilidade refinada para R$ 49,00. apreciar biscoito fino. (MP). •
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A quarta dimensão da escultura Ao criar o móbile e, assim, introduzir o movimento na escultura, Alexander Calder acrescentou uma quarta dimensão à linguagem escultórica: o tempo
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ode-se dizer que Alexander Calder inventou um novo tipo de arte, quando criou os seus hoje tão conhecidos “móbiles”. Mas dizer isso a propósito desse artista tem um significado especial, tanto especial quanto sua própria arte, que mistura de modo singular o lúdico e o estético. Pois bem, esse mestre da arte moderna está sendo reapresentado ao público brasileiro, através de uma exposição que, depois de ser realizada em São Paulo, transferiu-se para o Paço Imperial, no Rio. A exposição intitula-se Calder no Brasil e reúne, além de 50 obras, entre móbiles e estábiles, desenhos, guaches e documentos inéditos. O propósito da exposição é mostrar as vinculações de Calder com o Brasil, com personalidades e artistas brasileiros, especialmente com o crítico Mário Pedrosa, de quem se tornou amigo, e com o arquiteto Henrique Mindlin, autor do hoje clássico Arquitetura Moderna no Brasil. A presença da obra de Calder no Brasil se dá ainda nos anos 30 e, no Salão de Maio, em 1939, provoca um racha entre os modernistas figurativos (como Segall e Brecheret) e Flávio de Carvalho, curador da mostra, responsável pelo convite ao artista norte-americano. Essa disputa entre Figurativismo e Abstracionismo se manifesta, de novo, em 1948, quando pela primeira vez se realiza, no Brasil, uma mostra individual do artista, que terá uma sala especial na II Bienal de São Paulo, em 1953, e outra mostra individual no MAM do Rio, em 1959. Mas enquanto artistas e críticos se dividiam na apreciação de suas esculturas móveis, os jovens arquitetos brasileiros aderiam a elas com entusiasmo. Mindlin não foi uma exceção; alguns anos mais tarde, Oscar Niemeyer o convidava para plantar uma de suas obras na Praça dos Três Poderes, em Brasília, o que não ocorreu não se sabe bem por quê. É verdade que, se em 1948, ainda houve quem insistisse em negar a importância de arte calderiana, no final dos anos 50 o seu reconhecimento era, por assim dizer, unânime, mesmo porque, nesse período, a linguagem não-figurativa já se impusera nos meios artísticos brasileiros. Para isso muito contribuiu o entusiasmo e a lucidez de Mário Pedrosa que nos ensinou a ver e compreender aquela escultura que não tinha nem massa nem imobilidade, que mais parecia um brinquedo que uma obra de arte. Conforme se afirma no catálogo da mostra atual, o artigo de Pedrosa intitulado “Calder, escultor de cataventos” é o marco inicial de uma longa meditação sobre a obra daquele artista e sobre a arte abstrata; e, em seguida também, particularmente sobre a arte concreta, Continente janeiro 2007
Acervo Calder Foundation Luiz Hossaka/Divulgação
bilidades de expressão acrescentaria eu, de que que se abriam com a se tornara o principal linguagem abstrata. A teórico no Brasil. Ele reminiscência daquelas observa, após analisar a influências está, no que evolução da linguagem se refere a Mondrian, artística calderiana, conas mesmas cores que mo esse artista, ao criar o usa em seus móbiles e móbile e, assim, introestábiles (vermelho, aduzir o movimento na marelo e azul ) e, no escultura, acrescentou que se refere a Miró, uma quarta dimensão à nas formas e hastes que linguagem escultórica: o lembram o grafismo do tempo. E é nessa perspintor espanhol. pectiva da criação caldeNão obstante, a arte riana que o lúdico ganha Composição com fundo amarelo e vermelho, Alexander Calder, 1946, óleo sobre tela, 122 x 151 cm de Calder é única, singudimensão estética. Naquele artigo, Pedrosa observa que, desde lar. Como tais coisas ocorrem no campo da arte, só se pomenino, o futuro criador dos móbiles já demonstrava de explicar – ou tentar explicar – a posteriori, tantos e desinteresse pelos materiais e técnicas da arte tradicio- variados são os fatores que contribuem para que o nal, menos disposto a modelar o barro do que em lidar milagre se dê. Certamente, a origem de tudo é a persocom alicates. Por isso mesmo, os primeiros trabalhos nalidade do artista, sempre singular, capaz de realizar a em arame, que realiza, estão mais perto do brinquedo inesperada síntese de tantos elementos materiais e espirique da arte – o Cirque Calder –, quando vivia em tuais, técnicos e estéticos, transformando-os na obra de Paris, de 1926 a 1931. Mas dois artistas influem arte. No caso de Calder, a obra resultante, superados os decisivamente no rumo que dará a sua expressão: preconceitos, fascina todos por sua despretensão: ela nos Miró e Mondrian, particularmente este, conforme o diz que não é necessário ser culto para apreendê-la. seu próprio testemunho: “A visita a Mondrian causou Nesse sentido, transmite-nos a lição – que está presente o choque que me converteu. Foi como o tapa que se em alguns mestres modernos, como Matisse e o próprio dá no bebê para que os pulmões comecem a tra- Miró – de que, para renovar a arte, há que desaprender, balhar”. A obra desse artista o convenceu das possi- recuperar o não-saber da criança. • Continente janeiro 2007
Divulgação
Pérolas do
e t n e i r O o Extrem Nova safra de cineastas asiáticos renova não apenas os temas, mas a linguagem e a estética cinematográfica, fincadas numa cultura visual milenar Camilo Soares, de Paris
Amor à Flor da Pele, filme de Wong Kar-wai, diretor do júri no Festival de Cannes 2006
CINEMA
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ão é de hoje que o cinema asiático nos estarrece. Kurosawa, Ozu, Mizoguchi, clássicos japoneses, são celebrados mundo afora. Entretanto, uma vez mais, o Extremo Oriente inova a arte de filmar histórias, em sua estética e narração. Aos poucos, alguns diretores da nova geração alcançam o mais alto prestígio de críticos e público do Ocidente, sendo Wong Kar-wai, diretor do júri no Festival de Cannes 2006, o exemplo mais evidente. A cinefilia ocidental não pôde deixar de se declinar diante tais artistas, obrigando os ouvidos a se acostumarem a nomes como Hou Hsiao-hsien, Hong Sang-soo ou Jia Zhang-ke, que representam o que há de mais sofisticado nas telas do circuito mundial. O novo cinema da China (e Hong Kong), de Taiwan, do Japão e da Coréia do Sul vem nos oferecendo nos últimos anos contínuas pérolas de originalidade. Propondo uma nova maneira de olhar a modernidade, certos cineastas asiáticos renovam não apenas os temas, mas revolucionam profundamente a linguagem, comitantemente abraçados a um presente fugaz e ancorados a uma cultura visual milenar, marginalizada diante a globalização. Antes de tudo, o brio desse cinema vem de sua nova relação com a realidade. São filmes que atravessam a busca da razão de existir de uma geração desamparada entre raízes históricas dispersas e uma aculturação frenética e avassaladora do presente. Frutos de uma ocidentalização violenta, acelerada no período do pósguerra, os jovens do sudeste asiático presenciaram mudanças radicais, em comparação com a vida que conheceram na infância. A tradução dessa busca desesperada por uma identidade é a arma desse cinema para impor uma nova leitura dos moldes de desenvolvimento exportados pelos EUA e Europa. Abre-se, assim, a possibilidade de uma estética própria, e assim coerente, para observar o mundo e exprimir suas angústias. São cineastas e cinemas extremamente diferentes, mas tal relação com a realidade nos permite os agrupálos. A linha em comum seria a maneira de abordar a realidade sem querer imitá-la, conceito por sinal forte na tradição da pintura chinesa. O sinólogo François Cheng resume a idéia com um conto de um aprendiz que, precipitado, achava que para ser pintor bastava saber desenhar. Logo seria repreendido pelo mestre que lhe ensina que a pura aparência é a morte da imagem, pois não dá espaço à imaginação. Não adianta em nada desenhar as nuvens, sem lhes pintar a vontade de voar. Assim, como defende o diretor Hou Hsiao-hsien, não o interessa compor um substituto descartável do mundo, mas fazer um cinema que crie sua própria realidade. Os filmes de Hou são paradoxalmente filmados com intenso naturalismo, direito a atores não profissionais, planos longos e contemplativos. Entretanto, a sutileza de sua proposta é captar a percepção subjetiva da realidade e não a própria verdade em si. O interior dos personagens é aqui ressaltado. Assim, o cineasta taiwanês desenvolve o que mais sabe fazer, ir ao encontro de memórias perdidas. Em Garotos de Feng-Kuei (1984), por exemplo, conta sua primeira juventude semimarginal entre brigas e emoções familiares. Já em seu último, Three Times (2005), ele desvenda o amor vivido por três gerações distintas. As imagens se transformam em ícones efêmeros de cores e movimento, como o balé das bolas sobre a mesa de bilhar, no salão onde o casal se encontra nos anos 60. Filma-se como se percebe uma lembrança, leve e sem forma fixa. Porém, não é de simples nostalgia que são feitos esses filmes. Um ambíguo sentimento, entre desconfiança e tentação, em relação aos novos tempos, paira no ar, marca o suporte do filme como o vapor embaça as janelas em dia de chuva. O próprio Hou conta em uma entrevista coletiva os efeitos paradoxais da modernização em Taiwan: “De um lado, é um movimento incontrolável, caótico, que exige ganhos instantâneos sem se preocupar com a justiça nem com o respeito da lei. De outro, é um movimento de um país pleno de energia e de vida. Não há muita coisa que separa meu amor e meu ressentimento em relação a essa evolução”. Continente outubro 2006
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CINEMA É justamente essa deriva frente à mundialização outro fator sempre presente nesse cinema. Segundo o sociólogo japonês Masachi Osawa, esse sentimento de desilusão espelha a passagem de uma época de ideais claros e utopias de reconstrução e mudanças para um outro momento marcado pelo predomínio da ficção, da evasão, pela vivência e simulação de fantasias individuais. O mesmo dá como exemplo a criação da Disneylândia de Tóquio como emblema dessa nova atitude. Os filmes do japonês Takeshi Kitano são impregnadas por essa desilusão, mesmo delineando numa tonalidade deslocada e irônica. Em seus filmes de gangster Yakusas, por exemplo, ele rompe completamente com os códigos do gênero, com cenas de tiroteios sem nenhuma emoção, sem as oscilações de tensão tão importantes ao cinema americano. Aqui o ato de matar vira uma atividade profissional quase burocrática. O banal e o mal-estar cotidiano do modelo de vida ocidentalizado são também chaves do cinema do sulcoreano Hong Sang-soo. Seus personagens divagam, tateando como cegos o caminho pelo o qual cruzam anseios pessoais e uma realidade de frustração, repreDivulgação
sentada por cores frias, luzes sem contraste, enquadramentos irregulares e cuidadosamente desequilibrados. A partir do vazio existencial dos personagens, Hong cria um dispositivo estético capaz de integrar a subjetividade desses na leitura da paisagem. Essa polissemia do real é introduzida em O Poder da Província Kangwon (1998), em mudança brusca do ponto de vista na metade do filme, entre uma jovem e seu ex-amante e professor. Os filmes de Hong preferem revelar a atitude de corpos diante situações do dia-a-dia do que simplesmente contar uma história. Para o crítico de cinema Keiji Asanuma, a imagem cinematográfica seria o melhor instrumento para expressar as inquietações do homem moderno, confuso entre estresses da realidade material e fantasias virtuais. Uma das mais belas reflexões cinematográficas sobre a realidade das imagens está em Casa Vazia (2004), do também sul-coreano Kim Ki-duk, sobre um motoqueiro misterioso que penetra em casas alheias durante a ausência de seus donos. Em vez de roubar, o rapaz conserta tudo que encontra danificado. Assim, o enigmático jovem encontra Sun-houa, mulher maltratado pelo marido, rico
CINEMA homem de negócios. Nesse espaço de prosperidade material, o jogo de olhares e silêncio entre os dois amantes abre uma dimensão onde projeções mentais e realidade não mais se distinguem. “É impossível de saber se o mundo no qual vivemos é sonho ou realidade”, frase que fecha o filme. O vazio desumanizado na modernidade ocidental tem dimensões geográficas e interiores. Paisagens artificiais que escapam da escala humana, zonas de passagem, onde a funcionalidade impera sobre o prazer visual, “não-lugares” que ao mesmo tempo se parecem com nada e com tudo o que já vimos: terrenos baldios, zonas industriais, centros comerciais e McDonald’s. Por outro lado, há os jovens que atravessam tais lugaresnenhuns em busca de algum contentamento. Depois da abundância de cores ao som do rap e do rock, eles se dão conta que o sonho americano não é para todos, em todo caso não para eles, na periferia do mundo. O cinema vem captar esse dissabor, expressando ao mesmo tempo uma tentativa vital, feroz e desesperada de marcar sua existência. E a criação nasce nesse entremeio, de valores e culturas justapostos, em processo que a pesquisadora da
UFPE Angela Prysthon denomina de cosmopolitismos periféricos. Bem que abordado para a América Latina, o termo cabe igualmente à Ásia, onde artistas locais também procuram, ao mesmo tempo, valores globais de expressão e fontes de identidade nacional. Representante do cinema independente chinês, Jia Zhang-ke busca uma estética capaz de passar esse caleidoscópio de sensações, captando um mundo em transição entre dois regimes. Assumindo um caráter marginal, filmando em vídeo, sem autorização do Estado, seus filmes não foram distribuídos, mas conheceram sucesso graças ao circuito de festivais internacionais e o comércio de DVDs piratas. O diretor foi mesmo condenado a dois anos de interdição de filmar, por ter sido selecionado pelos festivais de Veneza e de Cannes sem autorização do governo chinês. Wong Kar-wai parece perseguir desesperadamente tal quadro impossível, dissolvendo Hong Kong em cores, vibrações e luzes em Chungking Express (1994), onde corpos fusionam-se com o fluxo incessante da cidade. Corpos que se encontram e se perdem ao acaso. Ou quando dois tempos se sobrepõem numa mesma ima-
Em seus filmes de gangster, como Sonatine (1993), Takeshi Kitano rompe completamente com o gênero em cenas de tiroteio quase sem emoção
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Divulgação
Em Chungking Express (1994), de Wong Kar-wai, corpos fusionam-se com o fluxo incessante da cidade
gem, na cena em que o policial amargurado por uma decepção amorosa toma um café sob o olhar platônico da servente do fast food; os dois adquirem um tempo diferente de todo o resto da cidade, que passa acelerada diante da lentidão desse momento, quase palpável, vivido pelos dois. Em seu clássico Amor à Flor da Pele (2000), a descontinuidade de roupas, que mudam numa mesma cena, e as belas caminhadas em câmera lenta estendem o tempo, criando uma narração onde a sensação substitui a linealidade real da história. Segundo Abbas Akbar, professor de literatura comparada na Universidade de Hong Kong, Wong Kar-wai coloca em prática, com seu estilo metonímico, vibrante e fragmentado, uma estética da decepção: “Se dizemos que as imagens de Wong são uma resposta a um espaço transformado pela velocidade e pela confusão histórica, não é absoluta e simplesmente para notar a utilização ocasional de uma decupagem rápida ou de técnicas de câmera lenta. A velocidade tal qual tentamos definir não é sinônimo de movimento; ela tem mais a ver com a instabilidade sutil da imagem, que desafia conhecimento e reconhecimento”. Aproximamo-nos aí da sensação, tal como Gilles Deleuze a utiliza na análise da pintura de Bacon. Para o filósofo francês, há duas maneiras de ultrapassar a figuração (ilustrativa ou narrativa), ou pela forma abstrata, ou pela sensação. Esta última tem sempre uma face virada para o sujeito (movimento vital, instinto, temperamento, vocabulário por sinal comum ao naturalismo de Cézanne) e outra virada para o objeto (o fato, o lugar, o acontecimento), ou, ainda melhor, ela não tem face alguma, pois as duas são indissociáveis. Tal sensação estética é feita de corpos no tempo, de cores, ritmos, valores imateriais que fundem real e irreal, sonho e verdade. As deformações dos corpos nos filmes de Wong, sejam em movimento borrado pela velocidade, sejam pelo reflexo num espelho, colocam-nos entre dois níveis de representação, onde objeto e seu duplo formam um só. Como nas telas de Bacon, é também o corpo, em seus gestos e transformações, o ponto crucial através do qual esse cinema exprime a sensação de viver. É uma volta ao humano, perdido na verticalidade das megalópoles. Um respiro, sentimento de tempo vivido, não mais quantificado. Uma retomada, enfim, do sujeito na composição da realidade, há muito renegado pela cegueira do racional, que seria capaz de resolver todos os problemas do ser humano, mas que finalmente nos fornece um mundo de solidão e falta de perspectiva. O cinema certamente não pode impedir nada disso, mas sua estética é uma guerrilha silenciosa, semeando percepções propícias à transformação. • Continente janeiro 2007
Flávio Lamenha
A produção profissional de roteiros, preocupação essencial na sétima arte, começa a ser levada a sério no Brasil Fernando Monteiro
Câmera & cabeça na contramão
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melhor roteiro que eu já li não é uma adaptação de obra literária ou teatral: foi escrito diretamente para o cinema e leva a assinatura do dramaturgo norte-americano Arthur Miller, mundialmente famoso. Trata-se do script para Os Desajustados (The Misfits), filme de John Huston cuja estatura de obra de arte só fez crescer com o tempo, a partir de um argumento tão perto da vida que o espectador parece poder tocá-la com a mão. A obra resultante de um texto assim teria que ser poderosa como os mustangs perdidos no deserto dessa produção de 1961, na qual o trabalho de Miller e a direção de Huston pouco a pouco nos reduzem, na poltrona, a um silêncio sem pipocas ruidosamente mastigadas. É nada menos que esplendoroso o desenvolvimento da relação de quatro “perdedores”, reunidos em torno de rodeios matutos e acompanhados por estradas e escalas de solidão. No vigoroso preto e branco do filme, vemos os restos do “sonho americano” assustando uma casa inacabada ou emulanado a violência física, sensual, na cidade e no campo, tudo sem retoques e com a mão firme do diretor. No campo da adaptação, considero também magistral o roteiro criado por Robert Bolt para Lawrence of Arabia, o filme de David Lean, vencedor de sete Oscar, totalmente merecidos. Bolt trabalhou sobre Seven Pillars of Wisdom, livro autobiográfico de Thomas Edward Lawrence sobre a sua aventura nos desertos da Síria e do Hedjaz, durante o primeiro grande conflito mundial. Curiosamente, não há, nesse superlonga-metragem de 1962, nenhuma personagem feminina – contraContinente janeiro 2007
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CINEMA riando a tese de que todo filme teria que apresentar um envolvimento amoroso entre os dois sexos, para alcançar o sucesso que o filme de Lean logrou no lançamento mundial e, novamente, em 1972 e 1992 (em versão restaurada).Essas duas produções são bem diferentes entre si, no tratamento e no orçamento, porém ambas partiram de roteiros excelentes, situados nos antípodas daquela receita que adotamos nos anos de 1960, como lema e desculpa para muitos dos defeitos de origem do nosso cinema: “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Essa fórmula mais ou menos esportiva foi, quem sabe, o escape da criação em tempos de cólera: a partir de 1964, a liberdade se tornaria um bem escasso no Brasil, durante cerca de 20 anos, e isso forçaria o florescimento das metáforas políticas, principalmente no cinema. A frase faria a cabeça, literalmente, dos diretores do Cinema Novo sob a influência da nouvelle-vague – que, no entanto, nunca aboliu o roteiro de obras exaustivamente pensadas. Era a época da contracultura embasada nas idéias do hoje esquecido Herbert Marcuse, um pouco antes de surgir “a indústria que recupera tudo” (Glauber Rocha plagiando Gilles Deleuze), a liberdade ainda não era somente “uma calça Lee” e o cinema era parte daquela Utopia vaga, comovente em corações e mentes jovens como “o sol somente o é uma vez” (Dylan Thomas). Faz tempo, sim, e parece que herdamos mais o desleiImagen xo do que a desconstrutividas: Divulg ação de, no gosto pelas falsas calças costumerizadas. No cinema do improviso engessa-
No cinema, o diálogo tem de sair diretamente da vida. Como os atores geralmente estão no ambiente real das locações, as “falas” não podem soar em cima do salto alto sobre o palco iluminado Marilyn Monroe e seu marido Arthur Miller
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do, ficou a idéia da câmera potencializada pelo logos nãoplatônico do lema transformado em algo como “comamos os bispos Sardinhas do real, de novo”. Nós, os tupiniquins de plantão sem idade, mais uma vez e sempre pecamos por nos mostrarmos encantados com os espelhinhos de bicicleta da realidade abaixo do Equador – longe da experiência cansada dos pecados de Tio Sam. Na contramão disso, o cinema americano clássico sempre se manteve adepto da “espinha dorsal da escrita”, e cabe recordar um pouco como era gostoso o (roteirista) francês, alemão, inglês e até mexicano, aqui e ali contratado, na Idade de Ouro do nexo cinematográfico ianque. Eram batalhões de roteiristas, apetrechados de máquinas de escrever, garrafinhas de metal e cigarros estocados nos cubículos, todos incumbidos de criar os roteiros ou revisar aqueles escritos por outros. Quem era bom nos diálogos, melhorava o trabalho para as imagens ilusórias. Nos estúdios da indústria hollywoodiana de fogo pleno, essa “usina de sonhos” a metros produzia pesadelos críticos como Infidelity – o roteiro escrito por F. S. Fitzgerald e censurado pelo código interno das grandes produtoras – e comédias leves, boas para as tardes de domingo, nas quais o beijo tinha de ser casto como o fox dançado por irmão e irmã. O roteiro revelava a “boa” ou a “má” cabeça por trás da tela controlada por Hayes e os (chamados) bons costumes do meio-oeste à costa leste que desaba na obra-prima literária intitulada The Great Gatsby. Por que o maior escritor americano da segunda década do século 20 fracassou ao tentar escrever para o cinema? Porque era um grande, um imenso escritor, porém
CINEMA
Somente agora estamos vendo surgirem escolas destinadas a formar roteiristas que não sejam literatos e possam criar, adaptar ou desenvolver os “libretos” específicos do cinema
Em Blow-up, Antonioni mandou pintar de verde a grama do Hyde Park
seus diálogos soavam literários demais nas boquinhas pintadas de atrizes platinadas como Harlow e Monroe. Marilyn diz, entretanto, maravilhosamente, os diálogos de The Misfits – escritos, para ela, pelo roteirista que se tornaria seu marido. Desafortunado como ela, o filme ainda hoje passa desapercebido, nas madrugadas insones de obras-primas que ensinam roteiristas e cineastas a serem cinematográficos e, não, literários. No cinema, o diálogo tem de sair diretamente da vida. Como os atores geralmente estão no ambiente real das locações, circulando no meio do tráfego ou tomando uma bebida num bar de segunda, diante das manchas no espelho, as “falas” não podem soar em cima do salto alto sobre o palco iluminado, debaixo da luz que artificializa, tudo. À frente das câmeras, a luz da manhã é tornada mais branca com rebatedores e outras ênfases secretas – e Antonioni mandou pintar de verde a grama de Hyde Park, para tornar o parque mais parecido com ele mesmo, em Blow-up. Quem viu o filme do gênio italiano sabe o quanto o parque londrino ficou mais concreto nessa fita baseada num conto “Las Babas del Diablo” de Julio Cortázar que jaz, irreconhecível, na história de um crime em que o que menos importa é saber quem-matou-quem atrás das moitas retocadas. No cinema brasileiro, Alberto Cavalcanti foi um dos que se interessaram por criar uma escola de roteiristas
que viesse a suprir a falta, histórica, de argumentos e histórias desenvolvidas assim, para não se parecerem com a literatura ou, pior ainda, com o palco que pode ser uma ilha de palavras cercadas de escuridão iluminada por todos os lados. Aqui, realizam-se obras cujos roteiros ainda não estão prontos, provavelmente, para virarem filmes. Cá em Pindorama, os atores e as atrizes que se saem bem nas novelas da TV, freqüentemente se dão mal na tela grande. Uma das possíveis explicações apontaria para o defeito fitzgeraldiano (nos roteiros, exclusivamente) do diálogo “a sobrar da boca” – sendo que as falas são, muitas vezes, ditas pelo Tony Ramos de plantão com aquela espécie de fração de partida, dando a impressão de que só começaram a dizer as palavras quando a câmera foi acionada para rodar. Somente agora estamos vendo surgirem escolas destinadas a formar roteiristas que não sejam literatos e possam criar, adaptar ou desenvolver os “libretos” específicos do cinema. A Academia Brasileira de Letras acaba de instituir um prêmio para os melhores roteiristas, e isso é algo a se comemorar, tratando-se da Casa de Machado, notabilizada por tardes de bolinhos & chá. Já era tempo: o cinema argentino – que tem apresentado filmes bem roteirizados (como Nove Rainhas e outros) – tem um prêmio desses já há muitas décadas. •
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CÊNICAS
Dez anos de dança armorial Para marcar seus 10 anos de existência, o Grupo Grial de Dança monta uma trilogia de espetáculos que atestam mais maturidade Christianne Galdino
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alvez a diversidade e a forte presença da cultura popular em Pernambuco sejam as justificativas mais prováveis para a dança produzida no Estado apresentar, em sua maioria, traços da tradição, até mesmo na vanguarda coreográfica. Observando a dramaturgia da dança contemporânea recifense, não podemos deixar de ver heranças das manifestações folclóricas, plantadas pelo Movimento Armorial e, na maioria das vezes, pelas mãos do próprio Ariano Suassuna, mentor do Movimento. Assim aconteceu com o Grupo Grial de Dança, fundado em 1997. “A convite de Ariano Suassuna, então secretário de Cultura do Estado de Pernambuco, desejoso de retomar a pesquisa sobre a linguagem da dança armorial, formamos o Grupo Grial. A proposta inicial era a de trabalhar com mestres da tradição popular e bailarinos de formação erudita na busca por uma linguagem contemporânea de dança inspirada e escrita com bases na cultura popular”, explica a diretora e coreógrafa da companhia, Maria Paula Costa Rêgo.
Yeda B. de Mello/Divulgação
As Visagens de Quaderna ao Sol do Reino Encoberto, épico do Grial, que estabelece relação com a coreografia moderna do Ballets Russes
CÊNICAS 57 Arquivo Grupo Grial
A Demanda do Graal Dançado, cujo roteiro foi escrito por Ariano Suassuna, foi o primeiro espetáculo do grupo
Apesar de ser um grupo relativamente jovem, em 10 anos de vida o Grial conseguiu acumular uma bagagem farta de experiências; produzir montagens que marcaram a história da dança cênica de Pernambuco e, ainda, alcançar uma ampla projeção das suas obras no Brasil e até no exterior. Maria Paula conta que, em geral, as obras literárias de Ariano são o cerne de todos os espetáculos do Grupo Grial. No entanto, o envolvimento do dramaturgo nos processos de criação da companhia varia de acordo com a necessidade da coreógrafa de questionar ou esclarecer os caminhos escolhidos. “Depois da nossa peça de estréia, A Demanda do Graal Dançado (1998), onde ele mesmo escreveu o roteiro, passamos a criar uma parceria no intuito de formar bases para a construção dessa linguagem tão almejada. Há peças coreográficas onde a obra em si nos serve de roteiro e material de criação. Em outras, são suas palavras e idéias em reportagens variadas que nos instigam”, comenta. Após a encenação do primeiro trabalho do Grial, em 1998, existia no ar uma aura de contentamento e sentimento de missão cumprida por parte dos criadores da
obra, como se eles concordassem em afirmar: “Pronto, este é um caminho possível para construir uma expressão em dança do Movimento Armorial”. Já no ano seguinte, em 1999, o Grial leva à cena O Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo, diretamente inspirada na literatura de cordel e buscando referências também na pintura do artista plástico armorial, Romero de Andrade Lima. Desde sua criação até o ano de 2003, a cultura popular variava entre ser o mote de inspiração e o próprio material de criação nas obras do Grupo Grial de Dança. Depois, inaugura-se uma segunda fase, que partiu de uma série de questionamentos de Maria Paula sobre a identidade do trabalho do Grial, os conceitos armoriais – como era o corpo desta dança brasileira que ela tentava construir com suas criações? As interrogações resultaram no fortalecimento da sua convicção e na decisão de mudar as estratégias, buscar outros caminhos. “A segunda fase começa com meu desejo de que o grupo mergulhasse mais profundamente nos terreiros de maracatu e cavalo-marinho. Eu queria ver o resultado de uma pesquisa que apreende o próprio corpo do brincante para escrever, somente com Continente janeiro 2007
CÊNICAS
este vocabulário, uma peça coreográfica contemporânea”, explica a diretora do Grial. As investigações “imersivas” de Maria Paula no universo popular resultaram em uma notória mudança na linguagem do Grial. Desta nova fase, surgiu a trilogia A Parte que nos Cabe, que compreende três espetáculos: Brincadeira de Mulato (2005), Ilha Brasil – Vertigem (2006) e o solo, Onça Castanha (2006), interpretado pela própria Maria Paula e ainda inédito no Recife. A temporada simultânea das três montagens faz parte das comemorações do aniversário de 10 anos do grupo. “Atualmente, não me interessa mais juntar bailarinos de formação erudita com os de formação popular, porque estou em uma fase de investigação em que o corpo do brincante é levado ao extremo da recriação de sua própria linguagem. A trilogia é o resultado de uma reflexão sobre o lugar que ocupam os corpos negros, mamelucos e caboclos nos pensamentos e nas práticas da dança contemporânea. A trilogia pretende ser uma janela que dá para o imenso e rico universo das tradições populares visto por um outro prisma: o do erudito popular”, esclarece Maria Paula, que, para a festa do 10º aniversário prepara, ainda, o lançamento de um DVD. Mas, de acordo com a diretora, “não será um documentário histórico e, sim, uma reflexão sobre a construção estética na linguagem da dança, tendo como pano de fundo as peças coreográficas do Grial”. A necessidade de avançar nesse processo investigativo de múltiplas possibilidades e da garantia da manutenção dos grupos populares acenderam em Maria Paula o desejo de criar uma escola de pesquisa e criação junto ao Mestre Biu Alexandre (mestre de cavalo-marinho e maracatu de baque solto), no interior de Pernambuco. Desejo esse que virou um dos principais projetos da coreógrafa a ser implantado em um breve futuro. “Seria uma experiência muito próxima do que acontece na China com a Ópera de Pequim, onde a tradição é preservada ao formar novos brincantes, mas também ampliada, porque a intenção é deixar viva, pulsante e atual. O trabalho com a dança e o teatro armorial teria seu espaço paralelo ao da tradição” – explica. Assumidamente armorial, Maria Paula Costa Rêgo acredita que a dança armorial não se define, assim como não se define a dança contemporânea. “É Continente janeiro 2007
Foto: Marcelo Lyra/Divulgação
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Brincadeira de Mulato (2005), primeiro espetáculo da série A Parte que nos Cabe, que comemora os 10 anos do grupo
A parte que nos cabe (dizer)
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Cássia Navas
Nos 10 anos do Grial, sucedem-se espetáculos que, analisados neste bloco intervalar, nos apresentam enigmas para interpretação. Fundado em 1997 pela coreógrafa e bailarina pernambucana Maria Paula Costa Rego, o grupo marca a cena contemporânea pela busca de um graal dançado em brasileiro, desafio lançado pelo também fundador da companhia, mestre Ariano Suassuna, a partir dos fundamentos do Movimento Armorial. O desafio é manifesto estruturado, e as formas se sucedem num vórtice de metáforas corporais e cênicas. Decupadas, atiram-nos perguntas, sucedendo-se as respostas – debates em poética do movimento –, aceleradamente vistas ou ouvidas de maneira visual. Visto, não visto, foi, não foi, será. No passar de tanta dança, arte feita por gente em presença de gente, escorrem conteúdos espessos, perdendo-se, na tradução, significados originais. Ganha-se na força da comunicação que subjaz a uma dança fruto de pesquisa e investigação modernas, trabalho constante de laboratório, campo de provas que caminha, para todo o canto, com os intépretes: laboratório- corpos. Na construção de um sentido sonhado – o grial, graal dançado –, que se quer retido em matéria viva, esmiuçado, submergido de danças da tradição, emergido de uma dança assim dita erudita, que vai do balé ao contemporâneo, saltam estranhezas mescladas a conteúdos pretensamente conhecidos. Como não estabelecer parecenças entre a coreografia moderna dos Ballets Russes, de Serge Diaguilev com algumas delicadas cenas do Auto do Estudante que se Vendeu ao Diabo (1999) ou com o épico As Visagens de Quaderna ao Sol do Reino Encoberto (2001)? Como analisar a complexa dramaturgia de origem do inaugural A Demanda do Graal Dançado (1997) e do Uma Mulher Vestida de Sol (2000), sem se pensar no desafio da transformação da carne da palavra em palavras encarnadas, através do que resta, do traço que fica na corpo-arte dos que dançam? Como não pensar numa imensa folha de livro pendurada no ar, ao se acompanhar os saltos paralelos ao solo dos bailarinos-alpinistas de Folheto V/Hemisfério Sol, origamis humanos em uma essencial configuração da relação espaço/ tempo/peso ? Depois deste “palco que se lê como uma folha de papel gigante”, temos Pasto Iluminado (2004) e a trilogia A Parte que nos Cabe. Em tudo que a antecede apresentam-se discussões fundamentais do programa-manifesto da fundação do grupo. Todavia, na tríade (2005 – 2007) um aprofundamento se estabelece, as palavras armoriais já encarnadas estando nos corpos do grupo, que prospectivamente apontam para o coração da matéria da “dança grial”, em direção a um país que se conta através de seus intérpretes, de sua origem e história. Nas três criações temos a brincadeira vital e a árdua vida dos que dançam cavalo-marinho (Brincadeira de Mulato, 2005), os caboclos do maracatu rural (Ilha Brasil – Vertigem, 2006) e a mulher que miscigena a cena, moldando-se ao mesmo tempo em que desliza metáforas em viva carne brasileira (A Onça Castanha, 2007). Em obras de uma década, os desafios do Grial estabelecem-se como guias de Ariadne, estradas no campo duplamente iluminado e obscurecido dos embates culturais deste país. Percorridos, transformaramse em enigmas. Decifrados, decifraram os bailarinos, que a nós oferecem sua dança, em contundente fluxo de significados mutuamente compartilhados. O grial/graal que se vislumbra ao longe, escapando a quase todos os sentidos mais imediatos, concretizase no tríduo de A Parte que nos Cabe. Uma construção a ser celebrada com respeito. Por ela, agradecemos. •
Marcelo Lyra/Divulgação
Ilha Brasil – Vertigem (2006), que entrou em cartaz em outubro do ano passado, no Recife, é a segunda parte da trilogia
CÊNICAS 61 uma visão de mundo levada aos palcos. É uma relação de respeito e criação com a história da formação de cada lugar e do seu povo, na intenção de projetar uma linguagem de dança onde o movimento corporal não seja estranho a esse povo” – afirma. As palavras da coreógrafa encontram sentido nas definições de dança contemporânea da escritora francesa Laurence Louppe, autora do livro A Poética da Dança Contemporânea, que diz que “na dança contemporânea não há senão uma única e verdadeira dança, a de cada um (...), a mesma dança não pode pertencer a duas pessoas”. Então, qual seria o diferencial, as peculiaridades que contribuem para a consolidação dessa trajetória de sucesso do Grupo Grial? É a própria Maria Paula quem arrisca uma possível resposta: “Muitos criadores se inspiram na cultura popular para compor seus espetáculos, mas o nosso diferencial é que nós não nos inspiramos em, escrevemos a partir de. Quando reflito os nossos 10 anos de produção artística, eu percebo que construímos uma linguagem corporal específica do Grial (com caligrafia, sotaque e invenções lingüísticas próprias), mas também, paralelamente à construção
Arquivo Grupo Grial
O solo Onça Castanha, interpretado pela própria Maria Paula, fecha a trilogia e deve estrear ainda em 2007 no Recife
desse corpo, criamos um universo estético muito nosso. E vendo por esse prisma, passei a acreditar que o espetáculo mais recente é sempre o mais próximo daquilo que almejamos, e que todos os outros tem a sua importância na leitura do todo. Adoro dançar todos eles pelo espírito de festa que carregam. Não existe mais essa história de preferência por um trabalho específico: todos são armoriais, festivos e ritualescos... como eu gosto” – conclui. A história do Grupo Grial de dança é uma prova de que já não podemos dizer que algo é exclusivamente erudito ou popular; tradicional ou contemporâneo. Nem tampouco que uma determinada vertente criativa é melhor ou mais importante do que a outra. Afinal, a contemporaneidade não deixa espaço para definições e conceitos excludentes. Em meio a este processo produtivo e diverso de desenvolvimento coreográfico, a dança pernambucana vai tomando corpo e este corpo carrega, inevitavelmente, marcas visíveis dos autos, folguedos e brincadeiras populares. A dança pernambucana, por mais técnica erudita que acumule, tem sempre cara de “brincante”. E é desta alma popular, “folgazã”, que o Grial extrai suas formas, seu dançar. •
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CÊNICAS
Depois de Vau da Sarapalha, a bem-sucedida encenação em cartaz há 14 anos, grupo paraibano Piollin dá uma guinada e leva ao palco drama de Tchekhov Astier Basílio
A Gaivota nos céus da Paraíba
S
erá que existe um “lugar” reservado ao teatro nordestino? Nesta perspectiva, as montagens deveriam seguir um roteiro de escolha de temas e autores que se coadunassem com esse imaginário a partir do qual existam limites e fronteiras que devam ser observadas? Estes questionamentos são suscitados a partir do desvio de rota feito pelo grupo paraibano Piollin, que depois de se consolidar no cenário nacional com o espetáculo Vau da Sarapalha, em que se embrenha no febril e engenhoso cosmos do escritor Guimarães Rosa, resolve levar aos palcos uma montagem comedida, metalingüística, a partir de um texto do escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov, A Gaivota (alguns rascunhos), com direção do encenador carioca Haroldo Rego. A peça estreou no Teatro do Piollin, em João Pessoa, no mês setembro, e foi um dos destaques da 7ª edição do Riocenacontemporânea, no Rio de Janeiro, entre 6 e 15 de outubro. Depois de mais de mil apresentações, algumas no exterior, Vau da Sarapalha, que estreou em 1992, e ganhou os prêmios Troféu Mambembe e Shell, seria uma armadilha inevitável seguir em frente com a mesma energia e voltagem do teatro físico como palco e expressão regioContinente janeiro 2007
nalistas. O mais previsível seria a escolha de outro texto, cujo universo rural e mítico do Nordeste fosse o tema. Eis os elementos montados para reedição da fórmula do sucesso antigo e o autoplágio. Mas, felizmente, não foi isso o que fez o grupo Piollin. “Tchekhov e Haroldo chegaram no momento certo: o Piollin, continuando sua aventura/tentativa de se manter viva num território perigoso e sinistro que é o dos clássicos, tenta surpreender a si mesma e ao público nessa oportunidade de entender, adaptar e transformar o texto russo do século 19 para a nossa linguagem”, acredita o ator Everaldo Pontes. Em A Gaivota (alguns rascunhos) optou-se por um enxugamento no texto original. Todavia, os cortes não feriram a estrutura dramática da peça. A montagem ficou centrada no núcleo principal da tragédia. São eliminados sete personagens periféricos, dos 13 escritos por Tchekhov, e feitos cortes em várias cenas. Para esta montagem, o Piollin contou com a presença de alguns convidados. É o caso do diretor Haroldo Rego. Além dele, para o elenco vieram o cearense Paulo Soares e os paraibanos Ana Luísa Camino e Buda Lira que, embora seja integrante do Piollin, não atuou com o grupo
Divulgação
no espetáculo anterior. Completanto, a dupla Nanego Lira e Everaldo Pontes, que fez respectivamente os primos Ribeiro e Argemiro em Vau da Sarapalha. “O primeiro desafio foi estabelecer uma dinâmica de criação coletiva, desenvolver códigos de comunicação entre nós, uma vez que se tratava de um primeiro trabalho do grupo com artistas convidados. Isto foi fundamental, já que o projeto estava desde o início ligado a uma proposta de processo, de tentar levar o frescor do instante criativo para a cena”, revela Haroldo. A montagem da Piollin começa com a projeção. Espécie de making-off e vídeo experimental. Ao invés de iniciarem o texto, temos uma série de improvisos, de exercícios incorporados ao espetáculo. Este recurso é utilizado no meio do espetáculo, de maneira extremamente poética. Após uma dança, em que todos são ligados por um fio, o elenco se dispersa e ocupa espaços distintos diante da platéia e cada ator recita um texto particular e diferente. Corre-se um risco. Comentando sobre esta perspectiva, mais experimental, Everaldo Pontes lembra que no cinema a “poesia” se dá, segundo Pasolini, quando “se faz sentir a câmera”. No teatro esse fenômeno de linguagem acontece quando
se faz sentir o ator interferindo na narrativa do personagem. Improvisação. “Fazia tempo que não corríamos esse risco. A última vez foi há 14 anos, quando montamos o Vau da Sarapalha. A Gaivota também foi por aí, encarando a possibilidade de uma disnarrativa e o ato de presentificação, onde a narração na cena reúne em um único momento a história do personagem e a história do ator. Nos nossos trabalhos há muito espaço para o imprevisível, a área onde acontece o escuro da criação, onde não sabemos para onde ir e onde há muita tesão e horrores inexplicáveis.” Escrita há 110 anos, a peça A Gaivota permanece vívida e atual. A concepção metalingüística, com o cenário mínimo, além da apresentação de exercícios pontuando o andamento dramático do espetáculo, encontram referentes em algumas questões abordadas no próprio texto. O jovem Konstantin, filho da decadente atriz Arkádina, escreve uma peça que redunda num grande fracasso, masbo leva a refletir que “precisamos de formas novas. Formas que são indispensáveis e, se não existirem, então é melhor que não haja nada”. Sem emprego, sem nome e luz próprios, Konstantin sente-se sufocado e reprimido pela Continente janeiro 2007
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CÊNICAS figura materna. Odeia Trigórin, o enfatuado e artificial escritor que primeiro lhe rouba a mãe, sendo este razão e causa de brigas com ela, depois seu grande amor, Nina, jovem sonhadora que anseia a glória e a carreira artísticas e o vê como um ídolo e foge com ele. A perturbação e o desconforto com o mundo acompanham Konstantin mesmo depois de sua ascensão na área da literatura. É quando se passam os dois anos entre o terceiro e o quarto ato, do texto original. Na montagem mantém-se este transcurso de tempo, mas não a mesma divisão em atos. Nina, que fugira com Trigórin, volta: amarga, madura, vencida, outra. Konstantin, que a recebe em seu retorno, não suporta a revelação de que Nina, a sua Nina, apesar de ter sido abandonada e sofrido horrores na mão do escritor, ainda ama Trigórin. Konstantin se mata. Na apresentação da Piollin, o momento do suicídio foi encenado seguindo o espírito despojado e minimalista da montagem. Nanego, em terceira pessoa, narra a ação, como se lesse uma rubrica. A peça acaba. “Tchekhov com sotaque” – Antes da apresentação no Riocenacontemporânea, Haroldo e Nanego estiveram no Rio de Janeiro. Quando contavam aos seus amigos, em geral pessoas ligadas a teatro, que estavam montando um texto de Tchekhov, muitos não escondiam o espanto. Alguns nem escondiam o riso e diziam: “Mas como? Tchekhov com sotaque?”, conta Nanego. Porém, quando subiram ao palco e mostraram que o teatro, como toda arte, tem uma
linguagem que vai além dos limites pré-estabelecidos, o respeito ao trabalho do grupo prevaleceu. “A arte não tem sotaque, arte é livre, universal, já tínhamos mostrado isso com o Vau. A Gaivota reafirma isso”, comenta Nanego. Qual seria o lugar do teatro nordestino, se é que lugar há? Haroldo Rego acha que essa questão é muito complexa. “É interessante constatar como o mundo passa por um momento de exacerbação da necessidade de afirmação das identidades. Isso se dá tanto no plano geopolítico, quanto nas diversas instâncias dos movimentos sociais. O problema é que parece haver uma falsa dicotomia entre identidade e autonomia, ou regional e universal, se preferirmos”. Para o encenador, é possível e necessário estar aberto para um diálogo com o mundo sem que isso implique em uma perda das singularidades, até porque essa delimitação depende, muitas vezes, de contextos referenciais subjetivos. “Peça a 10 pessoas para definir ‘nordestinidade’, por exemplo, e você terá 10 respostas diferentes. Essa questão do Tchekhov com sotaque passa muito por aí, o que nos interessa é justamente esse encontro entre objetos aparentemente heterogêneos – buscar uma expansão de sentidos, de possibilidades. Arte como perspectiva de abertura, de troca, não o contrário. No fim das contas, o que nos interessa é o Homem. Acho que a boa receptividade do espetáculo até agora deve-se, em parte, a essa postura.” • Divulgação
O cearense Paulo Soares atua na montagem que estreou em João Pessoa, em setembro, e já passou pelo Rio de Janeiro
AGENDA/CÊNICAS 65 Gil Grossi / Divulgação
Felipe Ribeiro/ Divulgação
Clandestino, Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira
Jorge Clésio / Divulgação
Jandira, solo de Kléber Lourenço
Espetáculo infantil Cegonha Boa de Bico
Palcos movimentados Entre os dias 10 e 28 de janeiro, o Recife abre as portas dos seus principais teatros para 13ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos Monique Cabral
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alorização da produção local, este é o principal atrativo do projeto Janeiro de Grandes Espetáculos, que está comemorando a sua 13ª edição, como uma das mais importantes iniciativas para as artes cênicas do Estado de Pernambuco. O evento volta-se para as melhores produções apresentadas nos palcos do Recife, Olinda, Caruaru e Arcoverde no ano de 2006. A estréia do Janeiro vai homenagear os 100 anos do frevo com o musical Capiba: Madeira que Cupim não Rói, com roteiro e direção de Carlos Carvalho, que reúne amigos do saudoso compositor no palco: o poeta Aldemar Paiva e os cantores Claudionor Germano e Expedito Baracho, acompanhados por músicos liderados por Beto do Bandolim. Durante três semanas, de janeiro, o Janeiro de Grandes Espetáculos vai reunir mais de 40 montagens de teatro e dança para todas as idades. Entre elas, duas produções locais devem chamar a atenção: A Ratoeira, de Agatha Christie, a mais nova montagem do Teatro Amadores de Pernambuco, grupo que pela primeira vez está sendo dirigido por Carlos Carvalho; e Ópera, contos de temática gay escritos por Newton Moreno e com direção de Marcondes Lima, juntos numa encenação do Coletivo Angu de Teatro. A programação ainda trará dois espetáculos de artistas pernambucanos que fazem sucesso no Sul do país, Como? e Clandestino, com os coreógrafos, pesquisadores e bailarinos Ângelo Madureira e a paulista Ana Catarina Vieira, que unem dança popular e novas expressões artísticas.
Em meio às atrações estão: O Canto do Teatro Brasileiro, do Grupo da Quinta, com atores vivenciando canções de Chico Buarque de Holanda; o drama Amor em Tempo de Servidão, da Parangolé Produções Culturais, revelando uma paixão no período da escravidão; O Capataz de Salema, da Cia. Fiandeiros de Teatro, encenando obra clássica de Joaquim Cardozo; As Criadas, texto de Jean Genet na versão do grupo Cênicas Cia. de Repertório; As peças infantis: Luzia no Caminho das Águas, do Engenho de Teatro; O Amor do Galo pela Galinha D'Água, do Quadro de Cena e Cegonha Boa de Bico, da Troupe Espantalho. E, por fim, na dança, as opções abordam tendências variadas: Fervo, de Valéria Vicente, faz a (des) construção do frevo e uma releitura do ritmo a partir da violência urbana; Elúbatan, dança afro com o grupo Daruê Malungo e B.A.Q.U.E., que põe em cena a instigante dança contemporânea da Cia. Vias da Dança. Dentre a programação, a única atração que não conta com nenhum integrante pernambucano é Cazumbeira, da Cia. Cazumbá de Teatro e Dança do Maranhão. Os espetáculos serão distribuídos em vários horários (16h, 18h, 19h, 20h e 21h) entre os dias 10 e 28 de janeiro, nos teatros de Santa Isabel, Parque, Apolo, Hermilo Borba Filho, Armazém, Arraial e Centro de Pesquisa Teatral do Recife. Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (artistas, crianças, professores, estudantes e maiores de 65 anos). Programação completa no site: www.janeirodegrandesespetaculos.com Continente janeiro 2007
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
E Dom João gostou do sapoti "Tia Maria roubava, para a gente, os sapotis e as mangas que a velha deixava em montão para apodrecer". José Lins do Rego (Menino de Engenho)
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ra uma foto como tantas outras, dessas feitas em dia de noivado. Mas não era uma foto como as outras, ao menos para mim. Porque o noivado dessa foto era o de vovô Armando e vovó Maria José. Ele alto, magro, terno branco, gravata borboleta, olhar compenetrado e sério de quem cedo se acostumou a mandar. Ela bem mais baixa, linda, vestido escuro, olhar preocupado, já pressentindo as responsabilidades que ali começavam. Na foto, os dois estavam encostados num sapotizeiro da rua do Bonfim, em Olinda – tronco grosso, galhos não muito longos, sombra generosa. Desse tipo de sombra que dá vontade de deitar embaixo e deixar o tempo correr. A casa ficava num sítio em que não havia jardim – ao menos não era um jardim como os jardins que conhecemos hoje. Em volta do terraço apenas umas poucas plantas e árvores muitas, como nos outros sítios da vizinhança. Misturando mangueiras, goiabeiras e bananeiras. O sapotizeiro, enorme, era a mais bonita de todas aquelas árvores. As histórias daquele tempo fui conhecendo aos poucos, contadas por vovó Maria José – em fins de tarde sem pressa, tão diferentes das de hoje. Era ali, debaixo da sombra daquele sapotizeiro, que tudo acontecia – velhos conversavam, crianças brincavam e os dois namoravam, tudo, claro, sob o olhar vigilante dos pais dela, sentados em cadeira de balanço, no terraço. Vi essa foto, menina ainda, em um porta-retrato retangular de prata inglesa, na mesa de trabalho de meu pai. Uma vida inteira se passou. Passaram os personagens e suas histórias. Passou aquele jeito de viver sem pressa. Mas a foto continua ali, como parte da paisagem da sala, na mesma mesa, em meio a tantos objetos de ontem. Num fim de semana desses acompanhei meu pai, que quis voltar lá. O sitio já não era o mesmo, como que encolheu, perdendo pedaços de terreno para a cidade que hoje o oprime. A casa não mudou na arquitetura; mas como que ficou menor. Só o velho sapotizeiro permanece, como se o tempo não tivesse passado. À disposição de novos casais
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Wagner Santos/ Kino.com.br
SABORES PERNAMBUCANOS
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que queiram tirar novas fotos, que ficarão em outras mesas, reproduzindo nesse mimetismo o perpétuo mistério da natureza humana. Sapotizeiro é árvore nativa das Antilhas e da América Central. Cresce muito, até 20 metros. Vive muito, também, mais de 100 anos. Tronco curto e grosso, copa feita de ramos, folhas verde-escuras, algumas flores, sombra sempre ampla e generosa. A fruta era muito apreciada por maias e astecas, que a conheciam por tzapotl. Com os espanhóis passou a zapote – nome que se conserva, até hoje, em todos os países de língua espanhola. Chegou ao Brasil em meados do século 18. Primeiro no Amazonas, depois invadindo a região Nordeste. Os nativos a chamavam zapotl, depois zapóte e finalmente sapoti (Achras sapota Linneu). Daqui foi levado para a Europa. O nome não mudou muito. É sapote em inglês e sapotille em francês. Casca marrom, seca, fina e áspera. E fruto carnudo, suculento, com polpa mole e amarelada, puxada para marrom. Tem sabor exótico e adocicado, sem acidez. “Um sapoti maduro derrete na boca e tem os perfumes doces do mel, do jasmim e do lírio do vale”, observou o médico e botânico francês Michel Étienne Descourtilz (Flore des Antilles 1775-1835). Pode, e deve, ser consumido ao natural. Para isso recomendase cortar com faca ao meio, no sentido vertical,
retirando a polpa com colher. São entre 4 e 12 sementes por fruto, e até 3000 frutos por ano. Do sapoti se faz refresco, suco, sorvete, creme, pudim, musse, doce, geléia. Muito sensível, o fruto perde qualidade mais rapidamente que a maioria das frutas. Por isso deve ser colhido ainda verde, com a mão, através de torção, lavados em água morna e colocados em lugar fresco para amadurecer. São muitas as espécies de sapoti. No Brasil, essas variedades acabaram definidas pela própria forma dos frutos. Os ovais, mais comuns, são sapotis; os arredondados, sapotas; e uns bem grandes, com casca grossa, marromesverdeada, são “sapotas-do-solimões”, mais comuns na região Amazonas. Na Ásia e EUA encontram-se outras variedades, sobretudo prolific, russel, betanvi, proolon, apel bener. A árvore requer clima quente, chuvas freqüentes, solo rico e bem drenado.O plantio pode se dar por sementes ou enxerto. No primeiro caso, recomenda-se escolher sementes de frutos grandes, sem sinal de doença. Lavar cuidadosamente e deixar secar por 1 dia. Depois colocar de molho, em água, por 12 horas. Plantar 3 a 4 sementes em cada saco, sem enterrar muito. Quando a muda tiver 20cm, deve ser transplantada para o lugar definitivo. Se o plantio for feito por enxerto, usar método de “garfagem” – escolhendo Continente janeiro 2007
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SABORES PERNAMBUCANOS ramos (garfos) da parte superior da planta, com 20cm. Lembrar que 10 dias antes do enxerto devem-se eliminar as folhas e o leite do galho. Cortar então o galho em diagonal; juntando, com adesivo, na muda já pegada do sapoti. Prender bem firme. A árvore demora até cinco anos para frutificar. Só as enxertadas produzem frutos antes desse tempo. Das sementes e da casca da fruta se fazem remédios que combatem infecções renais, dissolvem cálculos e abrem o apetite. É antisséptico e adstringente. Sendo ainda matéria-prima para obtenção de glicose e pectina. Sem contar que da madeira roxo-claro, do tronco do sapotizeiro, fabricam-se móveis de qualidade. Sapoti também é cultura. Chama-se, assim, mulher que tem cor moreno-dourado. Ângela Maria recebeu esse apelido de Getúlio Vargas. O presidente, charuto na boca, sentado no jardim da casa de um amigo no Rio, olhou para ela e disse: “Menina, você tem a voz doce e cor de sapoti”. A partir daí virou sucesso nacional cantan-
do “Babalu”. Tão grande é o prestígio da fruta que até enredo virou, da escola de samba Estácio de Sá (1987) – “O ti ti ti do Sapoti” – “D. João achou bom/ Depois que o sapoti saboreou/ Deu para Dona Leopoldina/ A corte se empapuçou/ E mandou rapidamente/ Espalhar no continente/ Até o Oriente conheceu/ E hoje no quintal da vida sou criança/ Me dá que o sapoti é meu”. Faltando só dizer que o melhor do sapotizeiro, para quem foi criança, é o seu látex, do que se faz chiclete. O método já era conhecido de astecas e maias, que tiravam esse látex do mesmo jeito que o tiramos hoje, bem parecido com a extração da borracha. As crianças cortam o tronco em talhos, esperam escorrer aquele líquido branco, misturam com açúcar e está pronto um chiclete que é muito melhor que qualquer um desses, americanos, que se compram nas portas dos cinemas. Por uma razão simples. Porque, como a fotografia dos nossos avós, tem gosto de passado. •
RECEITA: MUSSE DE SAPOTI E PUDIM DE SAPOTI Foto: Mariana Oliveira
·Acrescentar a polpa do sapoti, anteriormente batida no liquidificador, com creme de leite. ·Levar à geladeira. Desenformar perto de servir. Decorar com pedaços da fruta.
PUDIM DE SAPOTI INGREDIENTES 3 colheres de sopa de manteiga, 1 xícara de chá de açúcar, 2 latas de leite condensado, 1 copo de requeijão cremoso, 2 colheres de sopa de fécula de batata, 6 ovos, 4 sapotis maduros, 1 colher de chá de raspas de limão, 1 colher de sopa de fermento em pó.
MUSSE DE SAPOTI INGREDIENTES 5 claras de ovo, 5 colheres de açúcar, 5 folhas de gelatina incolor, 1 lata de creme de leite sem soro, 5 sapotis bem maduros. PREPARO ·Bater as claras em neve, bem firme. Juntar açúcar e bater bem. ·Juntar a gelatina dissolvida em bem pouca água quente.
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PREPARO ·Caramelizar, com açúcar, a forma para pudim e reservar. ·Bater a manteiga, na batedeira, bem batida. Juntar leite condensado em fio. ·Acrescentar requeijão, fécula de batata, gemas, polpa dos sapotis, raspas de limão. ·Acrescentar, delicadamente, fermento e claras batidas em neve. ·Colocar tudo na forma caramelada. Cobrir com papel alumínio e assar em forno médio por hora e meia. ·Quando esfriar, levar à geladeira. E desenformar, só perto de servir.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Colunismo social I
A
quele paparicado colunista social – que recentemente deixou o jornalismo ao ser nomeado fiscal do consumo – tinha uma maneira própria de tratar as pessoas citadas em sua coluna: sempre elogioso, mas nunca deixando de ser veraz. Damos alguns exemplos do seu até hoje inimitável estilo morde-e-assopra:
1. FIGURA EXTROVERTIDA Presença constante nos bares do eixo Rio-São Paulo a extrovertida figura do conhecido alcoólotra Italvino Figueiredo. 2. ELEMENTO FESTIVO Sempre munido de um preventivo habeas-corpus, que atualizava quinzenalmente, o competente trambiqueiro Mariozinho Fogaça, um dos elementos mais festivos do nosso society, que andava sumido, voltou a freqüentar os melhores restaurantes de Ipanema e da Barra. Paga sempre a conta em moeda viva, já que lhe foi proibido o uso de cheque e cartões de crédito. 3. O GOSTO DE VIVER Tem sido visto na companhia de uma excelente loura o ex-banqueiro Rosamundo Pintassilgo, a quem a falência fraudulenta de suas várias empresas não tirou, para alegria dos amigos, o gosto de viver e as requintadas maneiras de homem do mundo. • Continente janeiro 2007
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REGISTRO
Paraíso desconhecido Com mais de 10 anos de existência, o Instituto Lula Cardoso Ayres guarda obras do grande artista pernambucano e uma cinemateca, mas ainda é pouco conhecido e visitado pelo público Mariana Oliveira Em destaque, cavalete do primeiro ateliê de Lula Cardoso Ayres, no Rio de Janeiro, 1928
Fotos: Flávio Lamenha
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Frevo, Lula Cardoso Ayres, 1945, óleo sobre tela, 109 x 85 cm
uem circula pela rua Hermínio Alves Queiroz, em Piedade, não pode imaginar que, na rua sem calçamento, em meio a muitas residências, uma daquelas casas esconde um acervo valiosíssimo. Com entrada bem arborizada e um letreiro parcialmente coberto por galhos, o Instituto Lula Cardoso Ayres abriga obras de um dos grandes artistas pernambucanos, uma vasta biblioteca e uma cinemateca de fazer inveja a qualquer cinéfilo. Ao mesmo tempo em que não é reconhecido pelos pedestres desavisados, o Instituto atrai uma parcela de visitantes ávidos por apreciar as obras do artista, ter acesso à biblioteca e à cinemateca. Todo o material mantido de forma improvisada no espaço começou a ser composto ainda durante a vida de Lula Cardoso Ayres que, ao longo da sua carreira, reuniu obras, livros de arte e recortes de periódicos relacionados à sua figura. “A própria maneira que papai e mamãe conduziram a conservação do acervo já apontava essa idéia. Praticamente todas as obras que temos aqui faziam parte do acervo de papai”, conta Lula Cardoso Ayres Filho, fundador e coordenador do espaço. Apesar de ser antiga, a idéia de criar um espaço que pudesse abrigar as mais de duas mil obras do artista só começou a se concretizar após o seu falecimento, há 20 anos, em 1987. Lula Cardoso Ayres nasceu em 1910 e ainda menino despertou para a arte. Aos 12 anos, já estava fazendo caricaturas para jornais. Estudou com o alemão Hemrich Moser e embarcou, aos 15 anos, para Paris. Um ano depois, voltou ao Brasil para morar no Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Nacional de Belas Artes, convivendo com Continente janeiro 2007
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REGISTRO grandes nomes da arte nacional. Seu pai chegou a montar um ateliê nas Laranjeiras, no qual Lula cedia espaço para que seus amigos, como Portinari, pudessem trabalhar. “Papai começou a diversificar seus trabalhos. Embora a pintura fosse sempre a linha mestra. Lá ele desenvolveu mais os trabalhos de caricatura, de ilustrações e, pelo seu talento, foi escolhido por J. Carlos para sucedêlo nas ilustrações da capa da Revista Para Todos”, lembra Lula Cardoso Ayres Filho. A partir daí, o artista começou a aventurar-se em outros campos como a elaboração de cenários para peças de teatro e decorações carnavalescas – trabalhos esses que fazem dele um dos homenageados do carnaval do Recife deste ano. Em 1935, voltou a Pernambuco, casou-se com Maria de Lourdes e foi morar na usina Cucaú. Passou a aproveitar-se da cultura local, dos contos populares do engenho para dar vazão à criação artística. Trabalhou com fotografia, documentando a vida na Zona da Mata. Seus estudos sobre o maracatu rural, bumba-meu-boi, no interior, e sobre o frevo, caboclinho, no Recife, foram inspirações não só para o Lula fotógrafo (cujos negativos hoje são referência, por exemplo, para o Museu do Homem do Nordeste), mas também para o Lula pintor e desenhista. Entre as décadas de 30 e 40, atinge a maturidade, depois da base adquirida nas suas temporadas em Paris e no Rio de Janeiro. No Recife, empregou-se na Indústria Gráfica Brasileira, como programador visual, mais uma área artística
Procissão, Lula Cardoso Ayres, 1966, óleo sobre tela, 80 x 100 cm
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a que o multiartista dedicou-se, elaborando logotipos para produtos bem pernambucanos, como os biscoitos Pilar. Enquanto isso, sua mulher, D. Lourdes, com sua veia para negócios, comercializava suas obras, como uma verdadeira marchand. Foi figurativista, abstracionista e surrealista, mas nunca abandonou as temáticas regionais. Sua última obra (inacabada) retratava a rainha do maracatu e a calunga. Logo após a sua morte, em 1987, já se falava na imprensa da provável criação de um instituto, mas só em 1990 a idéia pôde sair do papel, sendo aberto ao público em 1993. Lula Cardoso Ayres Filho e sua mulher Regina Ayres Cardoso Ayres, que trabalha com restauração de obras de arte, saíram em busca de uma sede que pudesse abrigar não só as obras do pintor, mas também funcionar como centro cultural, guardando o acervo de cerca de três mil filmes adquiridos por Lula Cardoso Ayres Filho. Na busca por um espaço físico, terminaram optando por transformar o que era a sua casa no Instituto. Desde então, os espaços daquilo que um dia foi uma residência foram sendo adaptados: a cozinha virou biblioteca, a garagem sala de projeção... Hoje, o espaço já toma forma de um centro cultural, apesar de ainda ser possível perceber a função original do imóvel. Funcionando graças à dedicação de seus dois diretores, Regina e Lula, com apenas um funcionário curinga, Paulo, o Instituto passa por períodos de dificuldades financeiras, com quase nenhum apoio gover-
Acima, a identidade visual dos biscoitos Pilar foi feita por Lula Cardoso Ayres, na década de 50, Indústria Gráfica Brasileira. Ao lado, Rainha do Maracatu e Dama da Calunga (inacabado), Lula Cardoso Ayres, 1987, óleo sobre tela, 116 x 81 cm
Acima, Sofá mal-assombrado, Lula Cardoso Ayres, 1945, óleo sobre tela, 73 x 92 cm. Ao lado, Mãe e Filho, Lula Cardoso Ayres, 1941 (aprox.), carvão e guache, 60 x 40 cm
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Marcelo Lyra/Divulgação
O Instituto mantém 300 obras, do desenho à pintura, expostas permanentemente em suas salas
namental, sobrevivendo pela persistência de seus idealizadores, que tentam aproveitar, ao máximo, não só os escassos recursos financeiros, mas também as salas de exposições que são pequenas para o tamanho do acervo. Desde 1996, iniciou-se o Projeto Lula Cardoso Ayres, Vida e Obra, que pretende montar 10 exposições de trabalhos do artista, em blocos específicos: Lula, dos estudos e projetos à obra final; Lula e o carnaval de Pernambuco; A fotografia na arte de Lula; O papel na arte de Lula; Lula muralista; Lula programador visual (já apresentadas); Lula e as lendas e assombrações do nosso povo (em cartaz); Lula cenários, decorações e ilustrações (Abril 2007); A arte nas feiras e igrejas vista por Lula (Agosto 2007) e finalizando o projeto A vida no campo vista por Lula (janeiro 2008). Desde 2002, além das mostras paralelas, estão expostas permanentemente 300 obras do acervo do artista, para que o visitante possa ter idéia da variedade de suportes trabalhados por ele. Apesar da boa Continente janeiro 2007
intenção, seguindo a linha de trabalho de museus dedicados a um só artista, o espaço do Instituto é pequeno para tantas informações. Para efetivar com êxito essa disposição é preciso ampliar as salas de exposição. Basicamente, o Projeto Lula Cardoso Ayres, Vida e Obra é único que conseguiu patrocínio governamental Em paralelo às exposições, deu-se início a outro projeto: Resgate e Catalogação da Obra de Lula Cardoso Ayres, que funciona nos moldes do Projeto Portinari, e tem como obLula Cardoso jetivo catalogar todas as obras Ayres Filho juntou o acervo feitas pelo artista formando do seu pai à sua rica coleção de um banco de dados. filmes raros Não bastasse a relevância das obras de Lula Cardoso Ayres, funciona também no local uma das mais ricas cinematecas do país, cujo forte é o cinema mudo e o início do cinema sonoro, com mais de três mil filmes em película, uma fonoteca de mais de 12 mil vinis, muitos deles de trilhas sonoras históricas e dos grandes sucessos do começo do século passado. Estão
REGISTRO
Lula Cardoso Ayres trabalhou com pintura, desenho, programação visual, fotografia e cenografia
guardados ali todos os filmes estrelados e dirigidos por Buster Keaton, cópias raras de filmes de Chaplin, que nem mesmo a sua família possui, como Busy Day e Cruel, Cruel Love, tidos como desaparecidos, entre outros. Com tantas raridades, a cinemateca atrai muitos amantes da sétima arte. “Há 50 filmes em que os originas só existem aqui”, explica Lula Cardoso Ayres Filho, que deu início à coleção, há mais de 30 anos, percorrendo lojas, cinematecas e casas de colecionadores, para compor a sua coleção, respeitada mundialmente. Seus filmes do precursor das comédias Max Linder foram avaliados e considerados pela Cinemateca de Paris, em 1998, como a mais completa coleção de Max Linder fora da França. Títulos brasileiros da primeira metade do século 20 enriquecem ainda mais o acervo. Semanalmente, nas sextas à tarde, Lula Cardoso Ayres Filho seleciona um dos rolos de sua coleção, liga o projetor, e recebe um público que varia de acordo com os filmes. Clássicos como No Tempo das Diligências e Cidadão Kane atraem mais espectadores, enquanto alguns curtas-metragens levam apenas os aficionados ao Instituto. Da mesma maneira que há dificuldades na restauração e manutenção das obras de Lula Cardoso Ayres, a manutenção da cinemateca é ainda mais complicada. Enquanto, mesmo que escassamente, há ajuda externa para
restauração das obras do artista, realizada por Regina, não acontece o mesmo com o material da cinemateca, que nunca recebeu nenhum tipo de apoio financeiro e só não entra num processo de deterioração, pela dedicação de Lula, que todo dia tira uma hora para limpar e afastar a umidade dos rolos de filmes. Apesar de todas as dificuldades, Lula aposta que 2007 será um ano de retomada para o Instituto com a abertura da exposição Lula e as lendas e assombrações do nosso povo, a diversificação das atividades, com cursos na área de arte, cinema e cultura, de maneira geral, além de seguir trabalhando com pesquisadores, que fazem uso de seu acervo em trabalhos acadêmicos, e levando estudantes para conhecer e entender a relevância tanto das obras plásticas, como dos filmes mantidos ali. Um alívio saber que os diretores estão longe de desistir de seus planos e um alerta para o poder público e para empresas privadas que querem investir em cultura e não sabem onde. Um paraíso perdido que precisa ser encontrado, melhor estruturado e divulgado. • Instituto Lula Cardoso Ayres, Rua Hermínio Alves de Queiroz, 1416, Piedade, Jaboatão dos Guararapes-PE. Terça a Sexta das 15 às 19h Fone: 81-33411932. inculca@hotmail.com www.lulacardosoayres.com.br
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ESPECIAL
Tons
variados
No mês em que Antonio Brasileiro completaria 80 anos, homenagens valorizam lado erudito do compositor, que também era um livre-defensor da Mata Atlântica Carlos Eduardo Amaral
Q
ue Tom Jobim, falecido em 8 de dezembro de 1994, escreveu a quatro mãos uma sinfonia em exaltação aos candangos, com Vinícius de Morais, e outra ao Rio, com Billy Branco, seus fãs já sabem; que ele adorava explorar o Jardim Botânico, idem. Mas quem imagina um Tom Jobim autor de um choro para fagote solo e de prelúdios para piano, e entendedor dos hábitos das jibóias? Pois o passado “clássico” e o naturalismo de Antonio Carlos Brasileiro vão sendo cada vez mais evidenciados, enriquecendo sua biografia e revelando a
inspiração e a riqueza por trás de suas canções mais queridas. Explorando a faceta erudita, vêm à tona projetos à semelhança do DVD Jobim Sinfônico, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, que regravou “Brasília – Sinfonia da Alvorada”, “A casa assassinada” e outras peças, bem como descobriu os inéditos “Prelúdio” e “Lenda”. No mês passado, a Orquestra Sinfônica Brasileira abriu as comemorações dos 80 anos, cujo jubileu é no dia 25 de janeiro, com Ney Matogrosso.
Samuel Elyachar / Tyba
ESPECIAL
Tom Jobim no Arpoador, em 1964
A Petrobras Sinfônica e Wagner Tiso programaram quatro concertos ao longo de 2007 que serão encerrados com peças de Tom Jobim, e preparam o lançamento de um DVD gravado ao vivo no Teatro Municipal do Rio, incluindo canções de “A Floresta do Amazonas”, de Villa-Lobos, “Eu sei que vou te amar” e a suíte “Cenas Brasileiras”, de Wagner Tiso. Não foi a primeira homenagem dele sobre ambos em roupagem erudita. O CD Tom e Villa, com Tiso ao piano e o Rio Cello Ensemble, vendeu mais de 20 mil cópias a título de suplemento de uma publicação em bancas de revistas. Nada de casual existe em levar Tom Jobim às salas de concerto. Por força das circunstâncias e de suas inclinações, o maestro soberano deixou de se tornar um compositor clássico, sem falar dos professores que teve – Koel-
lreuter entre eles. O piano se fez presente cedo na vida de Tom (leia box), através de sua avó materna, D. Emília. Ela gostava de tocar Chopin e tinha um irmão engenheiro, excantor de ópera e violonista nas horas vagas, que tocava peças de Bach e de compositores românticos: João Moreira, casado com Yolanda, filha de D. Emília. Wagner Tiso frisa: “Eu acho que o Tom foi um compositor que tinha as idéias eruditas, tinha um estilo VillaLobos. Tomou gosto pelo canto dos pássaros, graças a Villa-Lobos”. Não é à toa que Tom sempre se referia à quantidade de pássaros que encontrava no “Choros nº 10”. Haja vista que a música popular rendeu sustento e muita ocupação a Tom Jobim, o desejo de virar um compositor erudito ficou adormecido e se modificou em atividade de segundo plano: “Ele era um compositor dessa área (erudita) que foi pinçado pelo Vinicius para o popular, na época do (musical) Orfeu da Conceição”. Os exercícios de elaboração instrumental, contudo, continuavam: arranjos e copismos a serviço de músicos que não dominavam a escrita musical. Mas, aos poucos, Tom Jobim delegou a orquestração das próprias obras sinfônicas e arranjos populares, talvez porque lhe tomassem o tempo de criar novas músicas. Foi então que começou a confiar os arranjos a Claus Ogerman e outros parceiros. Ainda assumiu as instrumentações quando Juscelino Kubitschek pediu a sinfonia pela inauguração de Brasília. Escrevia e deixava de lado diversas peças de pequeno porte, a exemplo de “Mágoas de fagote”, gravada pela primeira vez em 2006. A fim de organizar todo o acervo pessoal do pai, Paulo Jobim fundou em 2001 o Instituto Antonio Carlos Jobim, dirigido por ele, pelos irmãos e Ana Lontra Jobim. O objetivo do Instituto é organizar e disponibilizar via internet e em CD-ROM fotos, partituras, correspondências, manuscritos e outros registros audiovisuais ao público e a estudantes e pesquisadores. Lá se encontram os originais das partituras descobertas na pesquisa do projeto Jobim Sinfônico. Outro braço do Instituto é o que surgiu em defesa das matas brasileiras, das quais Tom Jobim guardava inúmeras histórias. Nessa vertente, a principal missão é elaborar programas de educação e conscientização ambiental destinados a estudantes das escolas públicas e privadas dos Estados onde ocorrem os respectivos ecossistemas. O pioneiro é o Tom da Mata, que trabalha na educação Continente janeiro 2007
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ESPECIAL ambiental e musical de 600 escolas da rede pública – do Paraná a Pernambuco –, centrado no ecossistema da Mata Atlântica e que já distribuiu mais 800 mil kits. Depois vieram o programa Tom da Amazônia e o Tom do Pantanal. As ações desses projetos compreendem: distribuição de kits educativos, capacitação de professores, atividades pedagógicas desenvolvidas pelos professores e alunos, acompanhamento e avaliação periódicos e criação e concessão de prêmios. Por trás do intuito de formarem “a-
gentes ativos na área ambiental, capacitados para diagnosticar problemas ambientais motivados a propor e realizar ações concretas para a solução das questões ambientais” está um plano em larga escala para o surgimento de novos Tons Jobins, amantes da natureza. • Claus Meyer / Tyba
O pianista que não vingou D
ona Lúcia Branco foi professora de Nelson Freire, Arthur Moreira Lima e de outros grandes pianistas brasileiros. Tom Jobim tornou-se aluno dela quando tinha 17 anos e teve contato com a obra de Brahms, Chopin, Bach, Debussy, Villa-Lobos e outros. Usando Liszt e Chopin como modelos, escreveu uma valsa um ano depois e a considerou sua primeira composição consistente. Bem mais tarde, recebeu letra de Chico Buarque e passou a se chamar “Imagina”. Tom apresentou a “Valsa Sentimental” para d. Lúcia e ouviu a aprovação, acompanhada do encorajamento para seguir o caminho de compositor: providencial mudança de curso que evitaria uma malsucedida carreira de concertista. Seus polegares, com abertura limitada em relação aos outros dedos, não permitiam tocar notas em oitavas. Essa “desilusão” salva a história da bossa-nova. Desilusão no modo de dizer, porque Tom preferia inclusive o piano ao violão na hora de compor e nunca deixou de tocar as peças de que gostava, tal qual a “Rapsódia in Blue” de Gershwin. E “quis o destino” que Tom Jobim também dissesse a um parceiro em início de carreira que deixasse o piano de lado e abraçasse a composição. Chico Buarque seguiu o conselho. Antes de d. Lúcia Branco, Tom Jobim teve aulas com gente não menos gabaritada. Aos 14 anos, aprendeu piano e teoria musical, e depois harmonia e composição, com o alemão naturalizado brasileiro Hans Joachim Koellreuter, conhecido introdutor e propagador da composição dodecafônica, combatida de frente e com ardor pelos defensores do nacionalismo musical. Jobim
Tom Jobim abandonou o piano para dedicar-se à composição
não simpatiza com a técnica e só faz parcos experimentos, misturando tonalismo e atonalismo. Outros professores de harmonia e composição foram o compositor e regente Paulo Silva, o maestro Alceu Bocchino e o pianista espanhol Tomás Terán, a quem Villa-Lobos dedicou o Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº 04 e outras obras. Bocchino, membro da Academia Brasileira de Música, regeu em 1986 a terceira execução de “Brasília – Sinfonia da Alvorada”, parceria de Tom e Vinicius. Paulo Silva era o mais rigoroso nos exercícios, segundo Tom: “Ele ficava tristíssimo quando as composições não obedeciam àquelas regras rígidas”. Por essa obediência aos “deveres de casa”, Tom não considera as composições anteriores à “Valsa Sentimental” no seu catálogo (valsas, mazurcas e prelúdios, apelidados de “prelúdios gasta-papel”). Da mesma forma que Villa-Lobos, averso à formalidade teórica, Tom Jobim descreveu como assimilava os assuntos: “Eu estudava a harmonia no piano. Composição eu fui fazendo porque o Paulo Silva exigia, mas era um troço quadrado para burro. Subdominante, dominante, tônica. Quando eu saía disso, ele brigava comigo”. Porém, se quisesse dicas, Tom ainda contava com um grande amigo, de trânsito fluente entre o clássico e o popular: Radamés Gnatalli. (CEA) •
Nelson Provazi
Tênues
diferenças Canções populares de Tom Jobim escondem referências a Villa-Lobos e ao romantismo, enquanto obras sinfônicas assumem os acordes da bossa-nova Daniel Wolff
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pesar de se consolidar um compositor de música popular, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim utilizou bem mais do que imaginamos as técnicas de sua sólida formação musical erudita. Em entrevista a Almir Chediak, Tom Jobim revelou que gostava de ouvir Ravel, Chopin, Bach, Beethoven – cujas obras tocava ao piano –, mas que “Villa-Lobos e Debussy são influências profundas na minha cabeça”. Seu primeiro professor, ninguém menos que Hans Joachim Koellreutter, formado pela Academia de Música de Berlim, foi o líder do movimento Música Viva, que defendia o dodecafonismo de Arnold Schoenberg. Além dos compositores Claudio Santoro e Guerra Peixe, outro aluno ilustre de Koellreutter foi o maestro Isaac Karabtchevisky. Assim como Villa-Lobos, Koellreutter também demonstrou interesse pela música popular, chegando a tra-
balhar como saxofonista, tocando sambas e chorinhos no bar Danúbio Azul, na Lapa. Foi possivelmente através deles que Jobim “descobriu não existir fronteiras rígidas entre o erudito e o popular”, como lemos no Cancioneiro Jobim. Tom foi também aluno de piano do concertista espanhol Tomás Terán, amigo de Villa-Lobos, e de Lúcia Branco, professora de alguns dos maiores pianistas brasileiros. Foi Lúcia Branco quem incentivou Jobim a aprofundar-se na composição, após ouvir a “Valsa Sentimental”, para piano, que Tom considerava sua primeira obra. Composta quando Tom tinha 18 anos, esta valsa ganharia mais tarde letra de Chico Buarque e o título de “Imagina”. Percebe-se nela uma influência de Chopin, cujas obras Tom estudava ao piano sob a orientação de Lúcia. A melodia, composta de motivos curtos, desenvolve-se a partir de transposições desses motivos. Tal Continente janeiro 2007
ESPECIAL procedimento é utilizado por Chopin, por exemplo, na “Valsa Op. 64 nº 2”, em dó-sustenido menor. Outro músico que desconhecia as fronteiras entre o erudito e o popular, e que teve profunda influência na obra de Tom Jobim, foi Radamés Gnattali. Os dois trabalharam juntos na gravadora Continental, onde Tom ingressou em 1952. Radamés era já um compositor e arranjador consagrado, e foi praticamente um pai musical para Tom, incentivando-o e dando preciosas dicas de composição e orquestração. Por sugestão de Radamés, Tom compôs “Lenda”, uma obra para piano e orquestra sinfônica, que mescla o caráter impressionista típico de Debussy com o romantismo lírico de Rachmaninov. A próxima obra sinfônica de Tom Jobim teve envergadura ainda maior: “Sinfonia da Alvorada”, para vozes e orquestra, em cinco movimentos, sobre textos de Vinicius de Moraes. A obra foi encomendada em 1958 por Juscelino Kubitschek, para ser apresentada na inauguração de Brasília em 1960. Tom trabalhou nela na mesma época do lançamento de “Chega de Saudade” e outras canções que assegurariam o sucesso da bossa-nova. Tal qual as sinfonias e poemas sinfônicos de meados do século 19, Tom concebeu “Sinfonia da Alvorada” como uma obra programática. É notória a influência de VillaLobos, por exemplo, na melodia lenta dos violoncelos no segundo movimento, acompanhada por um ritmo mais rápido em semicolcheias, que parece extraído dos compassos iniciais das Bachianas Brasileiras nº 1. Percebe-se também a influência de Radamés Gnattali, como no baião do terceiro movimento, e até mesmo de Berlioz, no uso do hino medieval “Dies Irae” tocado pelos metais no quarto movimento. Por falta de verba, “Sinfonia da Alvorada” não foi estreada em Brasília. Mas a obra foi gravada em 1960 no estúdio da Columbia, com Vinicius recitando seu texto, Tom na regência e Radamés ao piano. O disco foi lançado em 1961. Apesar da importância da obra, ela só voltou a ser tocada em 1966, na TV Excelsior de São Paulo. A estréia pública, por incrível que pareça, só foi realizada em 1986, em Brasília, regida por Alceo Bocchino, com Radamés ao piano e Tom dividindo a leitura do texto de Vinicius de Moraes com a filha do poeta, Susana. Diz-nos o Cancioneiro Jobim que “quando a sinfonia ficou pronta, Tom e Vinicius despediram-se para sempre da música erudita”. Já Celso Loureiro Chaves diz que “quanto a Jobim, isso não é bem verdade, a julgar pela ‘eruditização’ que aconteceria mais tarde em ‘Urubu, Terra Brasilis’ e ‘Matita Perê’ ”. De fato, a influência de auContinente janeiro 2007
Cícero P. R./ Folha Imagem
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O maestro tinha uma verdadeira devoção a Villa-Lobos
tores (ditos) eruditos é uma constante em Jobim, seja nas obras orquestrais, seja nas canções populares.Tom comentou que em “Chega de Saudade” usou uma sucessão de acordes “que é a coisa mais clássica do mundo”. Disse também que a bossa-nova tem “influências profundas de Villa-Lobos”. Quanto à harmonia, reconhecia a influência de Debussy e Ravel no uso de acordes expandidos. Absorveu muito também de Gershwin, como em “Chansong”. O desenvolvimento melódico através da repetição e transposição de motivos curtos, do qual falamos acima, foi herdado não apenas de Chopin, mas também de Gershwin. Outra importante influência de Chopin foi a harmonia de condução de vozes, com uma nota permanecendo estacionária enquanto as outras vozes movem-se paralelamente de um acorde para outro. Vemos isto em canções como “Passarim”, “Canta Mais”, “Falando de Amor”, e até mesmo em “Samba de uma Nota Só”. Procedimento semelhante foi muito usado por VillaLobos, principalmente nas obras para violão, nas quais as harmonias são obtidas pelo movimento paralelo dos acordes na mão esquerda, sobrepostos a notas estacionárias nas cordas soltas. Quanto à melodia, percebemos a in-
ESPECIAL
Fundação Oscar Niemeyer
Tom e Oscar Niemeyer, em frente ao Palácio da Alvorada
Minha lembrança do Tom Jobim Paulo Henrique Amorim
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o fim da tarde do dia 30 de abril de 1993, em Nova York, recebi a Ordem do Rio Branco das mãos do embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Sardenberg. Eu e o Tom Jobim – imagine que honra ! Conversei horas com o Tom. Cheguei em casa e anotei tudo. Aqui vão as minhas notas de algumas frases do Tom: – “O Villa era tão grande que, depois dele, por muito tempo, não apareceu ninguém. Aí, depois, eu vim, com todos os outros. O Villa era a montanha, o resto, o vale. – “Quando o Villa voltou para o Brasil, para morrer, uma moça perguntou para ele: ‘O que o senhor está compondo?’. Ele respondeu: Villa-Lobos: influências ‘Minha filha, eu estou confessas me decopondo’ ”. Eu tinha dito para o Tom que, na minha opinião, o Hino Nacional deveria ser ou “Águas de Março”, ou Bachianas nº5 ou “Carinhoso”. Ele disse: “Eu assinava os três...” Tom disse que o Prelúdio do Villa mais bonito é o nº5. E a Bachianas nº5 mais bonita é a da Kathleen Battle. Eu perguntei: qual a melhor música popular ? Tom respondeu: “A do Brasil, a dos Estados Unidos e a de Cuba”. Perguntei: por quê? Ele respondeu: “Porque as três vieram da grande nação ioruba”. • Reprodução
fluência de Villa-Lobos principalmente nos desenhos melódicos das canções lentas. Os arpejos da melodia de “Luiza”, alcançando por salto as parciais agudas dos acordes, lembram os procedimentos usados por Villa-Lobos no Prelúdio das Bachianas Brasileiras nº4. Em suma: Tom Jobim é, sim, um músico popular, mas a influência da música erudita em sua obra é inegável. O curioso é que, pelo menos na década de 1960, isto não era reconhecido por alguns expoentes da música erudita. Em 1968, Isaac Karabtchevisky tentou organizar um concerto com a Orquestra Sinfônica Brasileira tocando arranjos das canções de Jobim, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Instigados pelo crítico de música erudita do Jornal do Brasil, alguns compositores de renome manifestaram ferrenha oposição ao concerto, sob o argumento de que “o Teatro Municipal não é lugar de música popular”, conseguindo por fim impedir a realização do concerto. Felizmente, nos dias de hoje a situação é bem diferente. Prova disto é o projeto Jobim Sinfônico, gravado em CD e DVD, no qual a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo apresentou, em 2002, diversas obras de Tom Jobim sob a regência do maestro Roberto Minczuk. Do repertório constavam tanto as clássicas “Lenda” e “Sinfonia da Alvorada” como arranjos orquestrais de diversas canções. Fica uma sensação do quão tênue é a fronteira entre o erudito e o popular na música de Jobim: as obras sinfônicas são permeadas de motivos e ritmos populares, enquanto as canções demonstram a erudição de um apreciador convicto de Chopin, Debussy e Villa-Lobos. •
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Rogério Reis / Tyba
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O compositor e seu piano na praia de Ipanema
Tom Jobim: entre a arte e a crítica
A visão que explica o movimento bossa-nova com o argumento político-sociológico tende a generalizar toda uma boa produção, chamando-a de “pastiche do jazz” Arnoldo Guimarães de Almeida Neto
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á 80 anos nascia aquele que seria o maior representante da bossa-nova: Tom Jobim. Ainda adolescente, teve aulas de piano, influenciado pela irmã, Helena, que já estudava o instrumento. É muito difícil desvencilhar a imagem de Tom Jobim e da bossa-nova da situação de influência da cultura americana, pois os elementos de música brasileira contidos na bossa-nova estão deveras diluídos no extrato jazzístico que compõe o gênero. Para o crítico e historiador José Ramos Tinhorão, a bossa-nova, pela sua ligação com a camada burguesa carioca, afastou o samba de suas raízes populares; ele é um Continente janeiro 2007
dos poucos a bater de frente com o estilo que mais representa o nosso país no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, talvez por verem um pouco da sua cultura refletida aí. Tom Jobim teve a sua formação musical atravessada pela música erudita, tanto na sua formação de pianista quanto de compositor e arranjador, passando pelas mãos de H. J. Koellreuter e Radamés Gnatalli; alguns críticos conseguem ver um toque villalobiano em suas composições. Apesar de sua admiração por Glenn Miller, o seu estilo enquanto arranjador aproxima-se mais de Charlie Mingus no
ESPECIAL Divulgação
Tom e o maestro Radamés Gnattali, na Sala Cecília Meireles
Bernardo Moss/ Reprodução
seu cuidado na instrumentação. A bossa-nova traz em si elementos harmônicos do jazz, e elementos rítmicos do samba, mas submetidos a um esquema mais livre de acentuação. O que talvez afaste a crítica sociológica, como a de Tinhorão, é o seu talento musical; Tom Jobim tinha uma maneira muito peculiar para compor melodias e harmonizá-las, em “Samba de uma nota só”, vemos um engenho muito comum e simples onde sobre a mesma nota é compartilhada por uma série de acordes servindo ora como consonância dentro do acorde, ora como dissonância. Para Tinhorão, essa fusão do samba e do jazz é uma perda da aura em termos benjaminianos, ou seja, é desprezado o elemento principal, o primitivo ritmo binário remanescente dos batuques do candomblé, dando lugar a uma versão mais sincopada, menos “dançante”. A dança, alias, é um elemento desprezado e o samba, aqui, passa a ter uma versão de “câmara”. O samba, que então forneceu matéria-prima para o novo gênero, não mais interessava pela temática essencialmente local (o malandro, o morro etc.), e sua presença ficou velada por não mais atender essa nova ordem: a do mercado. Alguns críticos consideram a bossa-nova uma evolução pela possibilidade plástica que o jazz trouxe para o samba; Tinhorão aponta para o efeito que isso provocou nos sambistas que perderam a sua “visibilidade” e a partir daí passaram a ser influenciados pela bossa, perdendo a sua “aura”. A bossa-nova enquanto produto de mercado tem o seu surgimento durante o processo de industrialização ao longo do governo Kubitschek e passa a refletir a política da boa vizinhança com os
O estilo de Tom enquanto arranjador aproxima-se mais de Charlie Mingus, no seu cuidado com a instrumentação
Estados Unidos. O distanciamento de suas raízes populares é uma forma de encontrar uma voz universal. Quanto ao fato de o samba abandonar suas características essenciais junto ao jazz, lembremo-nos de que o próprio jazz sofreu transformações. A mais importante talvez seja em relação à harmonia, quando toma de empréstimo à música erudita, mais precisamente ao impressionismo francês, a idéia de acordes muito estendidos e o paralelismo. A própria música erudita, em determinado momento, bebe na fonte do jazz trazendo o ritmo sincopado e esquemas melódicos e harmônicos; lembremos de Igor Stravinsky no seu Ebony Concert e Darius Milhaud em Création du Monde. A visão que explica o movimento bossa-nova com o argumento político-sociológico tende a generalizar toda uma boa produção, chamando-a de “pastiche do jazz”, desprezando o seu valor estético. De certa forma, a música de Tom Jobim opõe-se ao gênero, negando a ausência de ênfase entre o canto e a música que era característico. A sua parceria com o poeta Vinicius de Moraes trouxe algumas das melhores composições no estilo, saindo do comum das letras circunstanciais que privilegiavam a melodia. No exemplo do “Samba de uma nota só” vemos como o texto praticamente descreve a estrutura da composição, ambas se influenciam, texto e música. As possibilidades que o jazz traz e que serviu de modelo para grandes compositores como Bernstein, Stravinsky e também na música popular com o próprio Charlie Mingus e depois Dave Brubeck, que no diálogo com as fontes eruditas configuraram o “Third Stream”, temos em Tom Jobim o exemplo de que a forma não importa e, sim, o engenho. • Continente janeiro 2007
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AGENDA/MÚSICA
Viola de violista, não de violeiro
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e longe, o “tocador de viola” (de arco) mais atuante do Brasil é o húngaro aqui radicado Perez Dworecki, expoente destacado das orquestras por onde passou. Além de priorizar peças de compositores brasileiros como solista, muitas delas dedicadas a ele, fez várias transcrições de obras originalmente escritas para violino ou violoncelo. As adaptações resultam precisas – assim, sem as estridências do primeiro, mas também sem a profundidade do segundo, Dworecki apurou o melhor do som lírico e melancólico da viola. Em relação a um CD lançado por ele há mais de 10 anos e que o consolidou, só de obras nacionais, Gaiato dá espaço aos compositores do Velho Mundo. As sonatas de Vivaldi e Grieg mantêm a beleza perceptível no original para violoncelo e o “Largo” de Francesco Veracini emerge com a mesma fluidez que seria percebida através de um violino, mesmo caso Gaiato – Perez Dworecki, da “Melodia hebraica” de Joseph CPC-UMES, R$ 25,00. Achron. Os brasileiros tomam a Pedidos: segunda parte do disco – lá estão www.cpcumesdiscos.art.br Edmundo Villani-Cortes, Sérgio Vasconcelos Corrêa e Breno Blauth, resvalando em Lamartine Babo. A “Sonata” de Blauth se impõe pela exploração técnica e linguagem arrojada (bitonal), mas a obra que vira o alter ego de Dworecki é Gaiato, de Achille Picchi, onde o piano sugere os tangos brasileiros de Ernesto Nazareth e embala as melodias matreiras em sobe-e-desce pelos semitons da viola, com divertidas quebras de frases. Acompanhando Dworecki, Paulo Gori e Gilberto Tinetti se revezam durante o CD, exceto nas “Meloritmias nº5” de Ernani Aguiar, a única peça onde o violista atua solo. (Carlos Eduardo Amaral)
Clássica e raiz O CD do Grupo Orange, relançado recentemente no fim da turnê estadual Raízes Brasileiras, marcou não só a evolução de um conjunto musical ligado diretamente à música erudita baseada em temas e ritmos populares, mas uma amostra das mais significativas do repertório pernambucano no gênero. Estão no disco Cussy de Almeida, que rege o grupo, Clóvis Pereira, Capiba, o fluminense Guerra Peixe e até Luiz Gonzaga. Do lamurioso solo de berimbau em “Dom Cariongo, Rei dos Congos”, ao heráldico “Galope”, parece não caber uma diversidade tão grande de estilos, todos muito familiares aos nossos ouvidos. Se para qualquer ouvinte é uma surpresa das mais felizes ouvir maracatu, caboclinhos, cavalomarinho e forró pé-de-serra com cordas, flautas e percussão, talvez seja mais encantador conhecer “Assum preto” num arranjo camerístico... A bateria de baião, o ouvinte pode completá-la na mente (ou batucá-la na mesa). (CEA) Grupo Orange – Raízes Brasileiras, produção independente, R$ 25,00. Continente janeiro 2007
Ecletismo a dois
Coisas da Vida marca uma visita musical do clarinetista alemão Wilfried Berk ao Brasil, ciceroneado e acompanhado pelo violonista Daniel Wolff. Ambos passeiam por peças populares curtas de Ernesto Nazareth, Celso Machado, Jayoleno dos Santos, Nestor de Hollanda e Gaudêncio Thiago de Mello, que participa na percussão em seus “Samba chorado” e “Cavaleiro sem armadura”. Detalhe para primeiras gravações mundiais, como os “Três pequenos estudos para clarinete” e “Offerenda nuptialis”, para violão, de Wolff. Berk ainda saca sua pena de compositor no chorinho “Internautas” – declarando-se mais um estrangeiro a descobrir e se maravilhar com a música brasileira. (CEA) Coisas da Vida, Karmim, R$ 24,00. Pedidos: www.karmim.com
“A primeira faz ‘tchan’...” A Sinfônica do Estado de São Paulo marcou história ao gravar o ciclo das seis sinfonias de Camargo Guarnieri, o mais consistente compositor brasileiro do gênero. Foi o passo necessário para se aventurar nas de Beethoven, que acabam de ser lançadas em cinco CDs. O presente contém duas sinfonias intermediárias da série. A nº 7 se caracteriza pelo bom humor e leveza, embora tida como extravagante quando estreada, em 1813. Já a fixação das quatro primeiras notas da nº 5 é o exemplo mais genial de expansão de uma célula melódica e dispensa comentários. Ressalte-se o uso então inédito de trombones, flautim e contrafagote no quarto movimento. Execuções seguras, lideradas por Neschling – dignas de um projeto dessa envergadura. (CEA) Beethoven – Sinfonias nº 5 e 7 – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Biscoito Fino, R$ 25,00. Pedidos: www.biscoitofino.com.br
Revival da flauta doce
A flauta doce tem deixado de ser um instrumento auxiliar no ensino musical e atrai gradualmente a de compositores de peso, readquirindo sua popularidade. Seu desuso começou após o barroco, com a adoção cada vez maior da flauta transversa. Desde 2004 a pianista Daniela Carrijo e a dulci-flautista Betiza Landim registram e divulgam as obras nacionais para esse duo instrumental. O projeto culmina com um CD de peças de 12 autores e um catálogo com 28 minibiografias (disponíveis a qualquer instituição de ensino musical) que lista partituras de Amaral Vieira, Ernst Mahle e Sérgio Vasconcelos Correa e outros. O CD atesta a sintonia entre Betiza e Daniela, após um biênio de maturação. (CEA) Projeto DuoBrasil – Música erudita brasileira para flauta doce e piano, produção independente. Pedidos: daniefranco@hotmail.com
AGENDA/MÚSICA Moderna nostalgia Faixas tão diferentes entre si como “You’re Nobody Til Somebody Loves You” e “High & Dry”, regravação de Radiohead, disputam a preferência de quem ouve o primeiro CD do norte-americano Jamie Cullum. Com clássicos como “Pointless Nostalgic”, que dá nome ao álbum, ou a modernosa “I Want to be a Popstar”, Jamie é uma das boas promessas do jazz moderno americano. Feito para agradar novos e velhos apreciadores de jazz, Cullum aposta em versões de clássicos, atenção especial para os arranjos que ganharam “You And The Night and the Music” e “It Ain’t Necessarily So”. Para curtir, não precisa saber nada de jazz, basta sentir a levada. Pointless Nostalgic Insano, Jamie Cullum, DeckDisc, R$ 28,00.
A casa da luz vermelha do rock Vindos das esquinas de Copacabana, quatro amigos sobem ao palco do rock’n’roll. A estréia de Marvel, Deluxe, Peter Glitter e Sid Licious e seu Cabaret está no CD homônimo e desafia os estilos da moda que se aproveitam do mal universal da dor-de-cotovelo. No meio do caminho entre Rolling Stones e Elis Regina, o Cabaret se passa por glamrock para trazer de volta aos palcos brasileiros o poder do rock de ocupar vazios com som, de fazer o silêncio se calar para acompanhar solos de guitarra. Com canções bem diferentes no CD, o Cabaret consegue viajar por Led Zeppelin e Cauby Peixoto num mesmo refrão, soando como a banda velha mais contemporânea que você nunca ouviu antes. Cabaret – Cabaret – Rastropop, preço médio: R$ 19,00.
Para adultos A crescente infantilização do meio musical brasileiro (e não só brasileiro) recebe uma boa bordoada com o lançamento do disco Alaíde Costa & João Carlos de Assis Brasil – Piano & Voz. O pianista clássico, com incursões na música popular, e a veterana intérprete da MPB, parceiros esporádicos, voltam com uma gravação primorosa em que a técnica e o sentimento, o apuro e a contenção, erguem um monumento ao bom gosto. É disco para adultos. O repertório antigo, reunindo entretanto canções menos óbvias de Tom, Vinicius, Chico, Lupicínio, Ary Barroso, Herivelto Martins e Joyce, ganha enorme impacto nesse dueto límpido. Alaíde, personalíssima, reafirma a estirpe das grandes intérpretes. “Pois É”, de Tom e Chico, é um momento lancinante. Alaíde Costa & João Carlos de Assis Brasil – Piano & Voz, Gravadora Lua, R$ 24,00.
Nova trilha do catoleense
tempos pra cá, Chico César amD plia o leque de canções com antigos epois de lançar o CD De uns
sucessos em seu primeiro DVD, gravado ao vivo no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Sem a exótica cabeleira dos primeiros anos de carreira, mas com o mesmo talento, Chico segue sua linha arrojada num show que, ressalta ele, não é uma mera reprodução do disco. Ao seu lado somente uma flautista, uma baterista, seu violão e um trunfo: o Quinteto da Paraíba. O conjunto dá o toque de Midas ao show, a exemplo do que já fizeram com Elomar e Xangai. Os arranjos (de primeira linha, sem exceção) ficaram a cargo de cinco músicos diferentes, com destaque para os de Adail Fernandes, que assina a maioria, e Xisto Medeiros, contrabaixista do Quinteto. A produção também não comete pecados e reduz os elementos de palco ao essencial, para não destoar do figurino do astro principal – sempre de terno branco, gola aberta e ora descalço, ora de sandálias de couro. Chico mantém a veia performática desde “Desejo e necessidade” até “Mama África”, que encerra a apresentação. No meio do show, Elba Ramalho é recebida como convidadasurpresa e excita o público em três músicas, começando por A prosa impúrpura do Caicó. Nos extras, Chico César canta em dupla com Maria Bethânia (“A força que nunca seca” e “Onde estará o meu amor”), Chico Pinheiro (“1 valsa p/3”), Ana Carolina (“Mulher, eu sei mais que isso”) e Vange Milliet (“Teshokú”). No documentário de 10 minutos sobre o show, a história contada por Ana Carolina é hilária, mas ela mesma ri muito mais com a inesperada resposta de Chico César, que sai por cima; duas inusitadas versões de um encontro casual. Os extras ainda incluem o clipe de De uns tempos pra cá. (CEA) Chico César – Cantos e Encontros de uns Tempos pra cá, Biscoito fino, R$ R$ 42,90. Pedidos: www.biscoitofino.com.br
Domínio público É comum, quando se vai ao exterior, comprar um CD ou um DVD de música e dança tradicional da região. O que pouca vezes se faz é olhar para essas manifestações em nossa própria música. Benjamim Taubkin e o Núcleo de Música do Abaçaí reuniram cinco canções de domínio público e uma suíte com cirandas de Capiba e Baracho para mostrar um pouco da tradição musical brasileira. Cantos do nosso Chão é o resultado de um trabalho que reúne grande capacidade harmônica e a precisão técnica que um trabalho precisa para ser feito. Nesse Tempo, Marcelo Caldi, Delira Música. R$ 24,50. Continente janeiro 2007
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Nunca me convidem a um casamento O casamento, como tudo o mais nas sociedades midiáticas, virou pretexto para as pessoas se exibirem
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i na televisão um casamento nos ares. Noivo, noiva e juiz pularam de pára-quedas e a cerimônia foi celebrada em descida, com vestido e véu levados pelo vento. O casal será mais feliz porque se une de forma tão esdrúxula? Não sei. Talvez a façanha conste no livro Guiness de recordes e besteiras, e marido e mulher mostrem aos filhos as fotos da maior realização de suas vidas. Se o casamento durar tanto. Também soube que já casaram numa cápsula de escafandro, debaixo d’água. E que, no Recife, noivos entraram vestidos de passistas, dançando ao som de um frevo. Em outra cerimônia, as alianças chegaram numa cestinha, presa ao pescoço de uma cadela de estimação. Quanto gênio criativo! O casamento, como tudo o mais nas sociedades midiáticas, virou pretexto para as pessoas se exibirem. É uma indústria complexa, em franca ascensão. A cada dia as empresas casamenteiras, os cerimoniais, inventam novas representações, formas de assaltar o bolso das famílias incautas, que se deixam roubar desde que os filhos casem com algum balangandã diferente, e o circo incorpore novos macacos e elefantes. Há quem gaste tudo o que possui, e até se endivide para impressionar os convidados com demonstrações de riqueza e opulência. Mas a cerimônia, que sempre significou um ritual de iniciação a uma nova vida e era celebrada com poucos familiares e amigos, tornou-se repeContinente janeiro 2007
titiva, enfadonha, um massacre para os convidados suarentos em paletós quentes e vestidos alugados. Que tédio! Primeiro, a sauna da igreja, a espera pela noiva, que sempre atrasa. Depois, a fastidiosa fala do padre, os conselhos matrimoniais de quem não sabe as delícias e agruras de uma vida a dois. Tudo tão repetido: a entrada do noivo com a mãe, do sogro com a sogra, da noiva com o pai. A música malexecutada, clássicos populares da revista Caras, que os convidados só escutam em casamentos, pois são mais fissurados em axé e forró. – Ah, eu quero aquela música que tocou no casamento de Ana Cecília! – Qual? – Aquela! Toca no celular de Tiago. Chamam o irmão, e ele solta os toquezinhos eletrônicos, arremedos musicais. Finalmente encontram uma sonata de Chopin. Pobre Chopin! Por sorte, só o sacrificam na igreja. As bandas que animam as festas possuem um repertório brega, no máximo largam um “New York, New York”, obrigatório em todo baile. Um terror! Depois da igreja, a viagem apressada ao bufê de recepção, para pegar uma mesa de pista, mais próxima do dancing e da saída dos garçons. Garantido o lugar na festa, entra-se numa fila interminável de cumprimento aos noivos e seus pais. Volta-se à mesa e começa a torturante convivência com pessoas desconhecidas, colocadas ao seu lado por falta de outro lugar.
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A conversa é formal, geralmente sobre o sexo das nuvens ou a inteligência das baleias cinzentas do pólo Norte. O mais puro surrealismo. Por sorte, está na hora de você entrar na fila da mesa de frios. Depois, noutra fila para o jantar, invariavelmente um fricassê de frango, com batatas palha e arroz. E mais tarde, a fila dos tentadores docinhos. Na mesa, os desconhecidos já conversam animadamente sobre restaurantes e comidas, elogiam a festa, e falam o que irão almoçar no domingo. Você acha louvável o quanto aqueles senhores de barrigas rotundas, e aquelas senhoras gorduchas que sonham com uma lipoaspiração abdominal se empanturram de comida e bebida. E quase todos forraram o estômago em casa, antes de sair para a festança, pois não resistiram ao rocambole de camarão da sogrinha. Os padres, ocupados em salvar almas, pouco conhecem de música e deixam passar os repertórios mais extravagantes. Na missa, é possível ouvir uma adaptação da trilha sonora de Paul Simon e Garfunkel, para o filme A Primeira Noite de um Homem. Algum clérigo, que nunca assistiu à película, adaptou a música ao momento do painosso. Desconhece que no filme ela ilustra uma tórrida
cena de sexo. Ah, sábia Igreja! E imaginar que por muitos menos a Inquisição queimava inocentes, acusados de sacrilégio. Em nenhum detalhe da festa, por menor que seja, descobre-se o gosto da família ou dos noivos. Tudo obedece ao cerimonial, uma instituição tirânica, que faz de Pinochet um anjo. Mulheres em vestidos pretos deselegantes movimentam-se sobre saltos altos, falam através de walkie-talkie, dirigem a encenação. Arrumam o vestido da noiva, mandam que ela pare num determinado lugar, dão sinal à orquestra, retocam roupas e adereços. Mais onipresentes do que essas parcas, só mesmo o batalhão de cinegrafistas e fotógrafos. Afinal, casa-se para quê? Para filmar e fotografar. E, depois, submeter amigos e parentes ao massacre de assistir o mesmo carnaval que já presenciaram ao vivo. O ingresso para os casamentos compra-se nas lojas, onde os noivos deixam suas listas de presentes, quase sempre bugigangas inúteis. É uma forma de pagamento indecoroso. Em alguns casos, os filmes matrimonias possuem carreira curta. Acabam ligeiro. E nem é o homem que separa o que Deus nunca uniu. • Continente janeiro 2007
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O jornalista ficcionista José Nêumane Pinto se refere à Wikipedia como uma espécie de “maoísmo” digital
Na web, navegar (com cuidado) é preciso Onde cada navegador pode ser seu próprio editor, como separar o joio do trigo?
Arte: Jaíne Cintra
Cláudia Cordeiro
CONTEMPORANEIDADE
E
screvo este arquivo depois de assistir ao vídeo Stevie Wonder & Michael Jackson, de 1968, no site YouTube, comprado pelo Google, em outubro deste ano, pela bagatela de 1,65 bilhão de dólares. Faço a referência única e exclusivamente para lembrar que já saímos da era industrial para a era do coletivismo digital, como registra Sérgio Dávila, no artigo “Internet transfere ‘riqueza’ para as redes”, publicado na Folha de S.Paulo (30.9.2006). Nesse novo mundo, a mercadoria é a informação e o lucro vem exclusivamente de publicidade e de apoio do Estado e de Fundações. Nele já podemos aferir a democratização da arte e os indivíduos e grupos são mais livres e independentes das corporações hierarquizadas que definiram o período industrial. Estamos em um sistema de “produção compartilhada por uma comunidade” – a exemplo do Wikipedia e do YouTube cujo slogan é: “seja você mesmo sua própria emissora”. Nesses sites e outros mais, você pode pôr on line suas próprias produções ou arquivos de suas pesquisas. Mas onde mora a espetacular liberdade de ser editor de si mesmo, de suas preferências, de seu talento artístico e tudo mais, mora o perigo alertado pelo escritor catarinense Deonísio da Silva: a da falta de uma editoria responsável que selecione o joio do trigo. É quase impossível, Deonísio, uma ideal editoria. O editor da web deve ser o próprio navegante, com sua nau de conhecimento e rotas bem traçadas para navegar pelas altas ondas dos mares digitais sem naufragar. Deonísio e mais 14 intelectuais – Alberto da Cunha Melo, Gilberto Mendonça Teles, Hermelinda Ferreira, Hildeberto Barbosa Filho, Isabel de Andrade Moliterno, Izacyl Guimarães Ferreira, José Nêumanne Pinto, Urariano Mota e, do grupo virtual dos Escritores Independentes, Aline Machado, Clóvis Campelo, Sílvia Câmara Martinez, Tânia França, Martha Galrão – responderam-me uma pergunta: “A internet favoreceu
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ou aviltou a arte literária?”. Essa pequena pesquisa fundamentou uma palestra recente que fiz na Fafire sobre esse tema. É interessante observar que, entre eles, apenas os já consagrados e há muito editados pela imprensa de papel expuseram alertas ao novo advento digital. Os demais, embora reconhecendo os sargaços da baixa maré de certas praias da web, foram unânimes em afirmar que ela favoreceu a arte literária muito mais que aviltou e, mesmo os que fizeram algum alerta, foram unânimes em afirmar que não é o veículo que avilta e, sim, quem o utiliza. Vale registrar o “depoimento pessoal” do poeta e crítico Izacyl Guimarães Ferreira: “Sem internet, considerando-se a má distribuição de editoras e livreiros, eu, que passei 15 anos fora do Brasil com um apenas razoável apoio material que chegava do país, não teria conhecido alguns dos melhores poetas de agora, que acessei nos numerosos portais como o seu, o do Soares Feitosa, o da Leila Miccolis, para citar só uns poucos.” Outra alerta que vale registro é o do jornalista, poeta e ficcionista José Nêumanne Pinto no que diz respeito à Wikipédia, uma espécie de “maoísmo digital”, a perda da autoria transformando as produções artística, jornalística, cientista etc. numa massa de expressões sem nome, como queria o líder comunista chinês no início do seu governo, na sua falida “Revolução Cultural”. Não acredito nessa possibilidade, uma vez que na World Wide Web (“Rede do Tamanho do Mundo”) há mares de se perder e de se encontrar. Nunca a aura do objeto artístico – sua existência única composta de elementos espaciais e temporais – revelouse-nos tão perto, tão imaterial, na sua intrínseca materialidade. O cinema, lembra Walter Benjamim, substituiu a existência única da obra de arte pela existência serial; a web, enquanto veículo de comunicação, realizou a síntese unicidade-multiplicidade. Elevou ao quadrado as chances de comunicação de qualquer arte, seja exibindo sua tessitura, seja revelando sua história, pelo seu poder inquestionável de exposição que nos lança na simultaneidade do tempo e do espaço e no amálgama de uma nova linguagem visual, onde forma e conteúdo se confundem, tornando quase impossível limitar as fronteiras entre arte, informação, notícia ou propaganda. A fragmentação de informações já vem ganhando o que ousaria chamar de um novo enciclopedismo, o virtual, como o do Wikipédia e de outros que fazem para você a seleção que não encontramos nos grandes portais, como é o caso do Links&Sites. A título de exemplificação de mares de se encontrar, lembro a pergunta lançada nesta Revista por Alberto da Cunha Melo, na coluna “Marco Zero”: “O que é dalila?”. www.sxc.hu/Reprodução
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Reprodução
Walter Benjamin teorizou sobre a perda da “aura” dos objetos artísticos na era da reprodutibilidade técnica
Pesquisador incansável da música, que abria os saraus da metade do século passado, recebeu por e-mail todas as respostas que queria – e mais: a própria música em levíssima extensão mid. O depoimento do escritor Urariano Mota é mais do que exemplar quanto ao poder da web: “(...) a internet tornou possível que os meus textos fossem traduzidos na Inglaterra, Itália, Alemanha, Bélgica, e até mesmo lidos em Portugal , Espanha, Rússia e Moçambique. Isso gerou um paradoxo e uma terrível ironia: eu consigo ser lido nos mais conceituados meios da Europa, mas não consigo publicar uma só linha no Recife”. O paradoxo, acredito, fica por conta de executivos que não conseguem ainda sobreviver sem as suas velhas regras, as antigas “leis do mercado”, sem manter fechadas as comportas do restrito mundo de papel, enquanto se agigantam os mares por eles nunca pensados. A verdade é que a internet superou em novembro deste ano todo o volume de novas páginas que foram ao ar em 2005: 17 milhões. A rede mundial conta hoje como um recorde de 101,4 milhões de sites em atividade. Jornais, revistas e toda sorte de mídia impressa apressam-se em despejar suas versões on line na rede. As páginas de papel rendem-se às páginas exibidas em um pedaço de vidro fosco, diagramadas nas oficinas binárias deste nosso tempo de anjos e loucos. A arte analógica, volátil e efêmera já expõe seus livros eletrônicos a exemplo do excelente eBooksBrasil, mas, contrariamente às previsões de quaisquer mcluhans, a internet, além de gerar uma vasta literatura específica sobre ela mesma, se tornou um dos mais vigorosos meios de venda dos livros de papel. É mais um prova de que o edge of chaos da revolução eletrônica ratifica o que os especialistas mais lúcidos afirmam: os meios de comunicação não se destroem, complementam-se . Vale aqui lembrar o que disse Merquior sobre a abortada previsão de Marchall Macluhan, que anunciava o fim do livro impresso: “A revolução eletrônica de Mcluhan eletrocuta a cultura. Seu melhor símbolo não é bem a TV, é a cadeira elétrica.” Mas, para o navegante, é essencial estar atento e não aportar nas ilhas do kitsch nem se deixar levar pelo canto da sereia desses mares: a arte digital e os sites interativos são puro encantamento. E o escritor deve lembrar-se de que o simples fato de editar-se não o torna um grande escritor. Desfragmente-se para um mundo novo, mas leve sua bússola, trace sua rota, aja como o melhor dos surfistas, que a onda é boa, das mais altas – mas perigosa. Afinal, navegar é preciso, naufragar não. •
Continente janeiro 2007
ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
Os ratos roem o reino Na eleição passada, o povo elegeu a maioria de ratos políticos, famintos por roerem o reino Brasil
L
á pelo século das murrinhas do mulungu, Luiz XI criou a regra de dissimular para conseguir reinar, organizando assim a sua instituição, pensando unir seu poder de liderança sobre seus vassalos. Uma apologia bem substanciada à política, sempre atual, exercida pela maioria dos homens públicos que detém o poder de mando de um Estado, lamentavelmente absorvida pelos amantes da subserviência fisiológica e seus interesses. Acontece que essas autodenominadas lideranças políticas e seus seguidores jamais poderiam arrefecer-se desse conceito, pois a magnitude que deveria nortear seus propósitos se queda ao ornamento dos cargos que abraçam. No entanto, na eleição passada, o povo elegeu a maioria de ratos políticos, famintos por roerem o reino Brasil. Que contagiante safadeza majoritária! A defesa das instituições públicas que deveria espelhar-se na convenção da vontade de um povo, independentemente da representatividade já outorgada nas urnas eleitorais, nunca deveria ser em proveito da vaidade daqueles eleitos. Um Congresso espúrio e desmoralizado – tal este atual – com raríssimas exceções. Quem deseja comandar com a credibilidade dos súditos, precisa ler as histórias e observar as ações dos grandes homens que as fizeram. Ver como se conduziram, examinar as causas das vitórias e derrotas, para poder fugir aos responsáveis por estas e imitar os causadores daquelas – Alexandre Magno imitava Aquiles, César a Alexandre, Cipião a Ciro; ver a semelhança de proceder; nunca ficar ocioso nos tempos de paz, mas, sim, com habilidade, procurar formar o cabedal para poder utilizá-lo na adversidade –, quando mudar a fortuna, encontrar-se preparado para resistir. O presidente Lula não pode seguir esses exemplos porque não sabe ler. Além de tudo é o maior responsável pelo desencanto de uma parcela atenta da sociedade brasileira – inclusive de uma longa lista de esperançosos eleitores seus na eleição passada –, todavia, lamentavelmente, o maior contingente eleitoral é pobre, ignorante e faminto, e acredita na esmola do Bolsa Família e na conversa mole de sua origem idem nordestina, pobre, analfabeta e faminta que o reelegeu. Não que ele não tenha lá seus valores, mas mentindo como está e não ouvindo e não sabendo de nada da corrupção intraparedes armada nas suas fuças e do seu governo pelo seu partido de barbudinhos, ele não tem esse direito – muito menos para defender candidatos petistas a deputado, governador e senador. Exemplo: os indiciados pela Polícia Federal Continente janeiro 2007
Sávio/Reprodução Calendário CEPE 2006
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em esquemas rapineiros como negociatas de mensalões e dossiês. O político começa a perder sua credibilidade, quando negligencia nessa arte, confortando-se com a razão do tipo que encenam, permitindo-lhe conservá-la ilusória – esquecem a honradez norteadora, elementar, na condução do bemcomum social dos seus governados. Estamos perdidos há muito tempo. Cuidado, caros leitores e eleitores, quanto aos que receberam seus votos, agora principalmente os deputados – que tais os pastores da Igreja Universal e de outras “paróquias adjacentes” são verdadeiros caras lisas ao aumentarem seus próprios proventos pagos por vocês. Cobrem dos que renunciaram aos seus mandatos para poderem voltar à Câmara e de seus parentes, assim como também dos nomes indicados pelos ex-deputados acusados de mensaleiros, por isso cassados, impedidos de se elegerem, anchos por fazerem seus sucessores. E, pelo amor de Deus, desabonem todos os mundiças, iletrados ou os que tenham uma tênue fumaça nos rabos. Os velhos e novos ratos estão doidos para roerem nossas consciências. •
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