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Hans Manteuffel
EDITORIAL
Antonio Nóbrega: o frevo é a dança nacional do Brasil
Nas ondas do frevo
O
frevo está para o Recife como o samba para o Rio, o tango para Buenos Aires, o jazz para Nova Orleans. Este ano, o gênero musical que se confunde com a identidade pernambucana está completando, simbolicamente, 100 anos. Na realidade, não existe uma data para a “invenção” do frevo, um processo iniciado na segunda metade do século 19 e que se concluiu no século 20, a partir da evolução do passo dos capoeiras à frente das bandas militares, cujo repertório de polcas, maxixes e dobrados desembocou no que hoje conhecemos como a música essencialmente pernambucana. A data se baseia na primeira citação do vocábulo frevo, uma corruptela do verbo ferver, na imprensa local (especificamente no antigo Jornal Pequeno), anotada pelo pesquisador Evandro Rabello. A evolução dessa manifestação cultural é tema do número especial de fevereiro da Continente Documento, que circula simul-
taneamente com esta nossa edição, onde trazemos como matéria de capa uma entrevista exclusiva com o compositor, cantor, músico e ator Antonio Nóbrega, em cuja trajetória o frevo é presença poderosa. Assinalamos, numa outra vertente, o trabalho de releitura do ritmo, rea1izado desde os anos 80 pelo compositor caruaruense Carlos Fernando. As duas revistas incorporam-se assim às comemorações do simbólico centenário, no momento em que se desenvolvem gestões para tornar o frevo patrimônio imaterial do Brasil. Na linha de diversificação editorial da Revista, o leitor encontrará nas próximas páginas um cardápio vasto, que vai de Zé Celso Martinez Correa, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Luiz Ruffato, Jean-Claude Pinson, Tereza Yamachita, Cida Pedrosa, Romero de Andrade Lima, a catedral de Dresden, Camargo Guarnieri a James Bond. Bom proveito. •
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Divulgação
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CONTEÚDO
D ivu lga çã o
Hans Manteuffel
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Nóbrega: frevo na ponta dos dedos
A arte de Romero de Andrade Lima
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CONVERSA
DESIGN
04 José Celso Martinez diz que cultura exige audácia
56 Instituto italiano abre filial no Rio de Janeiro
CAPA
CULTURA
12 A descoberta do frevo por Antonio Nóbrega 18 As comemorações de um ritmo centenário 22 As diferenças entre o frevo de rua e de palco
66 A estrutura abismal nas artes plásticas, no cinema e
LITERATURA
70 O fotógrafo Roberto Linsker retrata a pesca
26 O que há por detrás da crítica de Machado a Eça de Queiroz 30 O estilo experimental, fragmentário e seguro de Luiz Ruffato 32 Jean-Claude Pinson, poeta da Geração de Maio de 68 34 A prosa cortante de Tereza Yamashita 36 A poesia vigorosa de Cida Pedrosa 38 Agenda Livros
na literatura
FOTOGRAFIA artesanal no Brasil
MÚSICA 78 O legado de Camargo Guarnieri 82 Agenda Música
CINEMA 86 O percurso do agente especial mais pop do mundo
ARTES
REGISTRO
42 O trabalho contínuo de Romero de Andrade Lima
91 Norte-americano John Murphy "traduz" a música
ARQUITETURA 50 A reconstrução da Frauenkirche Dresden
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pernambucana
CONTEÚDO Reprodução
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A arte refletida em si mesma
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A permanência da vida de pescador
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Colunas
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 40 Todo grande poeta ama a sua língua natal
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 48 A arte não é mais dizer e, sim, apenas, fazer
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 62 O sentido original de alguns dos "provérbios culinários"
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 65 O inimitável estilo morde-e-assopra de um colunista social
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 88 Conversas de um baile de formatura
ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 94 Os tempos na casa da minha avó
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CONVERSA
ZÉ CELSO
“Ser excepcional não é fácil. A cultura exige audácia” Defensor da renovação do teatro, o consagrado José Celso Martinez prepara-se para sair em turnê com sua maratona de Os Sertões e, aos 70 anos, promete agitar a cena do teatro nacional em 2007 Daniel Buarque
Zé Celso no papel de Antônio Conselheiro, em uma das montagens de Os Sertões
Evelson de Freitas/Folha Press
Eu faço um chamado para que as pessoas participem, mudem, caiam na vida e não se habituem ao médio. O teatro precisa reencorajar as pessoas
F
oi caminhando sobre a fina linha entre a loucura e a genialidade que o paulista José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, revolucionou o teatro brasileiro e deixou seu nome marcado na cultura nacional. “Heroísmo”, diz ele, é o que é preciso para fazer teatro no Brasil, às vésperas de completar 70 anos, recém-ssaído do hospital após problemas cardíacos e prestes a encarar longas maratonas como ator e diretor. “Eu sou um anjo, mas não sou castrado”, completa. O Teatro Oficina, que ajudou a criar, se transforma, mexe com o público, grita, tira a roupa, choca. Aplaudido ou achincalhado, o fato é que sua montagem de O Rei da Vela, que completa 40 anos em 2007, é uma das mais importantes peças da história das artes cênicas no país. Feito comparado à atual epopéia de Os Sertões, adaptação da obra de Euclides da Cunha em cinco partes, um total de 26 horas de espetáculo que está sendo filmado neste mês de fevereiro para lançamento em DVD. O espetáculo também vai viajar pelo Brasil neste ano, passando pelo Rio, por Salvador e pelo Recife, sempre com apresentação das cinco partes que completam a “ópera de carnaval” (as datas ainda não estão confirmadas).
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CONVERSA Reprodução
Ao lado, a população de Canudos, cuja história chegou aos palcos nas quatro montagens de Zé Celso (página ao lado) , baseadas na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha
Vestindo calça e camisa brancas, barba por fazer, cabelo branco, ralo e assanhado, ele recebeu o repórter em sua casa, no bairro paulistano do Paraíso, juntamente com seu companheiro Marcelo Drummond, ator que o acompanha há anos e com quem compartilha opiniões dissonantes e, em certos momentos, radicais. E em menos de cinco minutos sua verborragia jogou por água abaixo o roteiro para a entrevista e prolongou por quase duas horas a conversa que se daria em 30 minutos. Num papo empolgado, ele disse que a influência de Chico Science no Recife se equipara, com 30 anos de atraso, à do Tropicalismo; criticou o Movimento Armorial, a que chamou de retrógrado; atacou a “classe média reacionária”, que assiste às peças de Paulo Autran, mas, diz, “não percebem o que a cultura gera de novo embaixo dos seus narizes”.
em Transe, Caetano Veloso lançou o disco Tropicália, e nós fizemos O Rei da Vela. Marcelo Drummond – E, como diz o Hélio Oiticica, Caetano ficou rico (risos)... Foi um ano marcante, num movimento muito rico culturalmente, e que teve um impacto muito grande na sociedade. O Rei da Vela é considerado até hoje um marco. O teatro tradicional, fechado, continua existindo, mas O Rei da Vela abriu possibilidade para o teatro inovador.
Como você faz para, recém-ssaído do hospital, prestes a completar 70 anos, encarar a “maratona” da obra completa Os Sertões, 26 horas, em menos de uma semana? Claro que acabo de passar por um baque, e é dureza administrar este trabalho de 100 pessoas, envolvendo crianças, atores, diretores e o próprio público. Fiquei um tempo no hospital e preciso pagar o tratamento, que custa uma fortuna. Trabalhar vai ser não só um processo de Em um artigo de previsão para o teatro nacional em cura, mas também uma forma de sobreviver economi2007, a crítica Sílvia Fernandes disse que Zé Celso era camente. “Se segura malandro”. É um trabalho que uma das grandes promessas do ano. Depois de 50 anos envolve o público. É importante a emoção de quem está como um dos nomes mais importantes do teatro presente na apresentação, o envolvimento em cada trecho brasileiro, Zé Celso ainda é uma promessa? da peça. É por isso, inclusive, que vai haver câmeras, no Eu não prometo, eu cumpro. Vamos retomar a apre- DVD, voltadas especialmente para o público, a fim de sentação completa de Os Sertões e gravá-la, transmiti-la pela captar sua reação. internet. Estou reorganizando tudo, voltei a deixar a barba Uma obra que o público brasileiro conhece mal, não? crescer para interpretar Antônio Conselheiro. Depois disExato. Conseguimos tudo o que a escola não conso, vamos começar a viajar, comemorar 40 anos de tropicalismo. Em 1967, Plínio Marcos escreveu Navalha na seguiu em termos de facilitar o acesso do público à obra Carne, José Vicente escreveu Santidade, Hélio Oiticica de Euclides da Cunha. Inventamos uma forma nova apresentou a instalação Tropicália, Glauber Rocha fez Terra para trabalhar Os Sertões. E, se a reclamação é de que é Continente fevereiro 2007
CONVERSA tura se equipara à importância literária da obra de Euclides da Cunha quando foi lançada no Brasil. Estamos mudando, mais uma vez, o teatro brasileiro. Trabalhar num projeto como este não é sopa. É preciso heroísmo. Euclides da Cunha foi considerado um aventureiro, ao ir cobrir uma guerra, ele arriscou muito, foi heróico. Quem quer trabalhar com arte tem que ter vocação para a santidade, para a genialidade. Ser excepcional não é fácil, requer trabalho. A cultura exige audácia, e nós temos este “algo mais” a oferecer ao público. Eu sou um anjo, mas não sou castrado. Não é uma coisa média, para o gosto médio, não é medíocre. Nos anos 70, as pessoas ousavam mais. Depois do “desbunde”, muita gente voltou para casa, se acostumou com o médio. Eu me recuso a acreditar que estejamos condenados a viver eternamente a mesma coisa. Eu quero mais. A história não se repete. Eu faço um chamado para que as pessoas participem, mudem, caiam na vida e não se habituem ao médio. O teatro precisa reencorajar as pessoas. Queremos levar a apresentação pelo país todo, mas é Você acha que Os Sertões realmente avança, quebra caro. Acredito que o teatro possa ter uma vida econômibarreiras, no teatro, em comparação ao tradicional e ca, indo além da bilheteria, como no futebol, investir em mesmo ao que o próprio Teatro Oficina já fazia? anúncios, em transmissão. Quero que o Oficina possa Sim, sem dúvida. Uma crítica paulista escreveu uma fazer um teatro com retorno econômico. Podemos vencer vez que o que nosso espetáculo representava para a cul- a barreira da ditadura do marketing.
uma peça longa, a pessoa está falando sem informação. São muitas horas, sim, mas que passam muito rapidamente, porque é um espetáculo muito rítmico. Não é uma festa chata, cansativa. É uma grande ópera de carnaval. O povo nem vai embora quando acaba. Ele fica parado, chocado, esperando mais, aplaudindo, tomado. E nós também. Para mim é uma terapia. O público renova minha energia. O Teatro Oficina caminha para a formação de um público que também produz cultura, que reage ao que fazemos. A minha geração se acomodou, ficou barriguda, não acompanha a inovação da cultura brasileira. É um público que vai ver a peça do Paulo Autran, que vai ver O Fantasma da Ópera, mas não percebe o que a cultura gera de novo embaixo dos seus narizes. É uma classe média reacionária. Eu batalho por um teatro que possa ser acompanhado por qualquer pessoa de qualquer classe, de qualquer cultura, de qualquer instrução. Fazemos um espetáculo que vai além de todos os rótulos. É como um circo, em movimento, mas sem luxo, sem conforto.
Lenise Pinheiro/Folha Press
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CONVERSA Reprodução
O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade: marco do teatro brasileiro
Mudando um pouco de assunto, existe algum tipo de troca entre o teatro de hoje de São Paulo e o de outros locais, como o do Recife, por exemplo? Muito pouco do teatro do Recife vem até São Paulo, mas chega. Depois de Chico Science, a cultura do Recife se abriu muito para São Paulo. O que acontece no Recife atualmente é muito inovador. É como se houvesse uma nova fome de cultura na cidade, que rompe com o Armorial, que era retrógrado. O teatro pernambucano já foi um dos mais fortes do Brasil, mas não evoluiu quando houve a explosão tropicalista. Isso mudou completamente com o movimento mangue, que teve um efeito na cultura local semelhante ao do Tropicalismo. Um cara como Lirinha, atualmente, é teatral, diferente, revolucionário. Outra coisa que precisamos trazer para São Paulo é a idéia recifense de brodagem, de parceria na cena teatral. Tem muita gente de teatro que joga bosta em mim, Mas no DVD não vai haver esse encontro. Qual o como o próprio Paulo Autran. Tem muita gente que objetivo dessa gravação? combate a inovação e o teatro do Oficina e acha que é O filme vai refletir o encontro com o público na apenas um bando de malucos, pelados, drogados, apresentação. É uma forma diferente de trabalhar este porras-loucas que não faz sucesso nunca. São pessoas encontro. Estamos ainda descobrindo formas de ligar o que se acomodam ao sistema e não que querem quebrar com a estrutura vigente. • teatro às novas tecnologias, ao virtual. É este “fazer acordar” que faz valer essa vida dedicada ao teatro? É fazer a história aqui e agora. A gente não pára de “comer” o livro, de transformar a peça. A apresentação mudou completamente desde a estréia. Ela muda permanentemente. O teatro é isso. É móvel. Melhora dentro dele mesmo. Canudos tem uma atualidade que se reflete na nossa apresentação, inserindo valores que nos circundam atualmente. Eu não finjo que sou o Antônio Conselheiro da época dele. Sou uma releitura atual de Conselheiro, pelos meus olhos, e pelos olhos de Euclides. Sou três personagens ao mesmo tempo. Eu vivo esse desafio do instante. O ator tem o poder de ir além, fazer o imprevisível. A reação do público reflete o que é feito no palco. É maravilhoso ter o efeito de catarse. Fazer as pessoas pensarem. É uma arte do encontro.
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves
Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte
Continente Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Homero Fonseca e Marco Polo Editores Eduardo Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão e Jaíne Cintra Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Diego Dubard, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Sílvio Mafra Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Elizabete Correia, Emmanuel Larré, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Michelle Vanessa e Roberto Bandeira Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
Fevereiro | 2007 Ano 07 Capa: foto de Hans Manteuffel
Colaboradores desta edição:
ADRIANA ALENCAR é bailarina, pesquisadora e faz pós-graduação em Cultura Pernambucana. ALEXANDRE BANDEIRA é jornalista. ANDRÉ LUIZ BARROS é jornalista. BETÂNIA UCHOA CAVALCANTI-BRENDLE é arquiteta e professora do Curso de Especialização de Intervenções em Áreas Históricas da Faculdade de Arquitetura Damas, Recife. BRUNO BRITO é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS HAAG é jornalista. CLÁUDIO MELLO
E
SOUZA é jornalista, poeta, escritor e autor de Helena de Tróia –
O Papel da Mulher na Grécia de Homero, entre outros. DANIEL BUARQUE é jornalista. EVERARDO NORÕES é poeta e autor de A Rua do Padre Inglês. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros. JOSÉ TELES é jornalista, escritor e crítico de música. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas.
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Dois Caminhos e Uma Oração e Yacala. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e diretor-geral do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco. É autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente fevereiro 2007
CARTAS 11
“
Machado Primeiramente, gostaria de parabenizar a Revista. Não sou assinante ainda, porém a acompanho pela versão on-line e a conheci numa viagem a Pernambuco. Sem mais delongas a entrevista é interessantíssima por revelar um lado da obra machadiana pouco conhecido e até mesmo nem comentado. Fábio Júnior Lima Aragão, Nossa Senhora da Glória – SE
Casamento Gostei muito do esmero das idéias. A forma sarcástica de ver o casamento, na coluna “Entremez” de janeiro. Fernando Hélder Hortta, Garanhuns – PE Artistas pernambucanos Como leitor assíduo da Revista Continente Multicultural venho observando o veículo como um espaço nobre para nossa cultura. Muitas vezes as matérias corrigem erros ou deslizes de nossa imprensa em relação a artistas plásticos menos badalados pela mídia; não obstante o fato de serem tão badalados de vez em quando é interessante a determinados veículos lançarem mão de seus meios para divulgar aquele ou aquela que tendo tanto talento e criatividade ainda não foram bem-vistos pelo seu povo e pelo país em geral. Li a matéria sobre Corbiniano Lins e fiquei maravilhado com o seu talento. Hamilton Melo Rodrigues, Recife – PE Aguinaldo Silva Nos primeiros dias deste ano tive uma grata surpresa ao receber minha edição de janeiro da Continente Multicultural. Adorei saber que o grande escritor pernambucano, conhecido por suas telenovelas, está de volta à literatura. Sem dúvida, uma obra que merece a atenção de todos os pernambucanos. André Roberto Silva, Olinda – PE Aguinaldo Silva II Confesso que fiquei intrigada com um simples aspecto da matéria de capa de janeiro. Creio que Agnaldo Silva é um desses amantes dos gatos, assim como eu. Afinal, ele não vai viver em Lisboa por conta do gato Tadeu. Realmente, curioso. Quem poderia imaginar? São por esses e outros artigos que eu faço questão de dar meus parabéns a todos que fazem a Continente Multicultural pelo maravilhoso trabalho. Mariana Rodrigues, Fortaleza – PE
Aguinaldo Silva III Adoro Aguinaldo Silva. Sei que pega mal entre a "elite cultural" brasileira dizer que se gosta de um autor de novelas globais, mas eu acho que ele consegue justamente o que todos os enfezados intelectuais sonham: estabelecer uma forte ligação com o público e ver suas obras serem discutidas pelo cidadão comum (aquele que não está cercado pelos muros da realidade virtual que é o mundo acadêmico no Brasil). Espero que seus livros sejam tão bons quanto suas novelas! Fernanda Froufe, Madri – Espanha Aniversário Não poderia deixar de parabenizar a Continente Multicultural pelos seus seis anos. É uma grande vitória não só para Pernambuco, mas para o país, que uma revista deste porte tenha vida longa, diante das adversidades do mundo editorial. Nesses seis anos, a Revista manteve o nível, sem se deixar afetar pelas pressões comerciais, como aconteceu com outras publicações da área. Vida longa à Continente. Josenildo Lima, Caruaru – PE Aniversário II Parabéns a todos que fazem a Continente Multicultural e Documento. Mais um ano de trabalho esmerado e cuidadoso. Cláudia de Oliveira, Recife – PE Lula Cardoso Ayres Felicidade, foi o que senti ao ver o Instituto Lula Cardoso Ayres nas páginas da Continente. Faz tempo que o espaço merecia a lembrança. Pouco conhecido e estruturado, há ali um acervo de grande potencial que precisa ser conhecido por todos. Luiz do Ó, Jaboatão dos Guararapes – PE
”
León Ferrari Bela matéria sobre o artista argentino Leon Ferrari. Suas provocações são bem interessantes. Agora preciso encontrar o livro sobre sua obra. Continuem abrindo espaço para as manifestações contemporâneas nas artes. Para que esse tipo de arte possa ser compreendida pelo grande público, é preciso mostrá-la. Valéria Moura, São Paulo – SP Site Moro no Recife e sou leitor da Continente Multicultural. Usualmente, minha leitura é através do site. Já é bastante gratificante encontrar ali os artigos publicados na Revista, mas como se trata de um outro veículo, creio que ele deveria mudar sua cara e ter uma identidade própria. Há informações factuais, eventos, filmes que poderiam aparecer no site, numa grande agenda cultural, respaldada pela Continente. Há uma atualização semanal, com críticas de filmes, peças, mas é preciso mudar a interface, facilitando a vida do internauta. Queria entrar no site e encontrar mais informações interativamente, um grande portal multicultural. Fica a idéia. Felipe Silveira, Recife – PE
Política Quando Pernambuco perdeu Miguel Arraes, perdeu também uma parte de sua história política. A Revista Documento sobre ele serve como registro da memória de um grande homem. É bom poder ver fotos que nunca antes havia visto de uma época tão dura da história política recente do país. Gledson Antonio, Arcoverde – PE
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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CAPA
Hans Mantteuffel
O Frevo, segundo Para o compositor, dançarino e ator, o frevo, que completa simbolicamente 100 anos, este mês, deve ser valorizado não apenas como arte pernambucana, mas como patrimônio da cultura ocidental Alexandre Bandeira
CAPA
E
le considera o frevo “a expressão mais bem-acabada do povo brasileiro em relação à dança” e faz elogios igualmente superlativos à música frevo. Mas antes que alguém levante a suspeita de bairrismo, três considerações a respeito: seu talento como bailarino e músico são incontestes; conhecimento de causa ele tem, porque viajou pelo Brasil inteiro estudando as mais diversas danças brasileiras; e, por último, a verdade é que o pernambucano Antonio Nóbrega nunca foi de vestir a camisa da pernambucanidade. Se ele diz o que diz do frevo, é bem provável que seja mesmo. Pois bem. Quando Recife comemorar o Centenário do Frevo neste 9 de fevereiro de 2007, Nóbrega será um dos principais mestres de cerimônias. É justo, já que foi ele quem primeiro chamou a atenção para a data, ao batizar de Nove de Frevereiro um projeto que já rendeu dois CDs, um espetáculo de palco aclamado pela crítica de Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo, e que ainda vai emplacar um DVD. A data é simbólica, naturalmente, tirada do registro mais antigo da palavra frevo na imprensa, edição de 9 de fevereiro de 1907 do Jornal Pequeno do Recife. Mas a paixão do artista pelo gênero é bem real, ainda que tardia. Nascido em 2 de maio de 1952, numa família de classe média recifense, Nóbrega não teve na infância ligação mais forte com o universo da cultura popular. Gostava do carnaval, mas não necessariamente por admirar as acrobacias impossíveis dos passistas de frevo; bom mesmo era vestir-se de caubói. Adquiriu cedo o gosto pela música, e chegou a improvisar um grupo com as irmãs, mas o repertório estava mais para Beatles e Jovem Guarda do que para qualquer coisa “da terra”. (Tonheta, quem diria, já tocou o iê-iê-iê.) Um pouco mais velho, estudou canto lírico e violino clássico, tendo tocado nas orquestras de Câmara da Paraíba e Sinfônica do Recife.
Antonio Nóbrega “Eu, às vezes, digo que a minha infância cultural, aquele momento em que a gente vai guardando as lembranças que devem fecundar nossa vida adulta de criador, se deu principalmente a partir da década de 1970”, diz Nóbrega. Foi nessa década que Ariano Suassuna o convidou para integrar o Quinteto Armorial, idealizado por Suassuna para traduzir em música o que ele já fazia em literatura e teatro. Ou seja: criar uma arte erudita inspirada na arte popular. A iniciação pelo Quinteto explica muito do artista Antonio Nóbrega ainda hoje. Seu gosto pela cultura popular não é influência de família ou do meio em que nasceu, mas, sim, o resultado de um trabalho consciente de pesquisa, por alguém que aprendeu a valorizar uma cultura sobretudo universalista, e que vê nas manifestações artísticas do povo brasileiro criações riquíssimas – não como folclore, mas como parte do patrimônio da cultura ocidental. Assim foi com o frevo.
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Nóbrega em início de carreira: descoberta tardia do frevo
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“Cheguei no frevo através do passo”, diz ele. Mais precisamente, através do Nascimento do Passo, nome artístico de Francisco do Nascimento Filho. No carnaval de 1972, Nóbrega conheceu o famoso passista, amazonense que tinha vindo ao Recife como clandestino num navio, ainda criança, sem pai nem mãe. Impressionado com a habilidade de Nascimento, quis tomar aulas de frevo com ele. “Eu conseguia seduzir os meus amigos para que eles também fizessem as aulas. Passados dois ou três meses não ficava um, era fogo de palha, mas aí eu já tinha um saldo com Nascimento para continuar as minhas aulas”, diz Nóbrega, que passou a freqüentar a casa do passista, no Ibura, durante o ano todo. “E eu me lembro de seu filho Jaflis Nascimento, que hoje é um grande passista, dançando com 3 anos e já deixando o observador admirado.” Corta para o ano de 2004. Multiartista reconhecido e premiado, estabelecido em São Paulo há mais de 20 anos, Nóbrega e sua mulher, Rosane de Almeida, iniciam o projeto Danças Brasileiras para o canal de TV Futura. A série de programas foi a oportunidade que ele teve de viajar pelo País estudando todo o repertório de danças que a cultura popular brasileira já produziu. Foi então que aquela paixão que ele sentia pelo frevo se transformou numa admiração de pesquisador, quase científica. Na comparação com qualquer outra dança popular brasileira, Nóbrega constatou que o frevo saía ganhando. “Em nenhum lugar o povo produziu uma manifestação tão rica no que diz respeito ao vocabulário de passos, e o que é mais importante, batizados com nomenclatura. Porque em muitas de nossas danças, no próprio maracatu ou no caboclinho, a maioria dos passos são movimentos que estão ainda imersos numa espécie de caldeirão coletivo, que as pessoas aprendem inconscientemente sem precisar dar nomes. O frevo não, ele já foi sistematizado, já tem uma pedagogia”, diz ele. Para entender a importância que essa sistematização do frevo tem para Nóbrega, é preciso entender qual o seu projeto artístico, que jamais foi o de preservar ou reproduzir qualquer que seja a manifestação da cultura popular. Assim como fazia o Quinteto Armorial, Nóbrega se nutre dessas manifestações para criar... outra coisa. Apropriando-se de passos isolados do frevo como “vocábulos”, ele passa a escrever uma nova dança, que não depende mais do entorno específico para existir – as ruas do Recife e Olinda, a multidão de foliões, o sol de fevereiro – e que pode ser apresentada num palco em qualquer canto do mundo. “É isso que eu busco. Expandir esse vocabulário e plasmá-lo em trabalhos que não tenham mais uma ligação direta com o passista fazendo o frevo bem dançado, que possam até mesmo ser executados ao som de um gênero musical completamente diferente. Uma valsa, seja lá o que for. Outra coisa.” Continua Nóbrega: “Então eu posso pegar aqueles movimentos e criar uma coreografia para contar uma determinada história ou exteriorizar um determinado sentimento, uma dor em relação a alguma coisa, assim como um bailarino de dança clássica européia expressa um mundo de temas e emoções através daquele vocabulário”. É, em essência, a continuação do projeto armorial de Suassuna, agora complementado com a assinatura pessoal de Antonio Nóbrega. “Na urdidura de uma dança brasileira (e não dança popular brasileira, que fique claro), o frevo será um dos componentes mais importantes. Será uma dança que nasce ou está nascendo do encontro de diversos procedimentos, vocabulários, temperamentos da dança do nosso povo, com os elementos da cultura universal, de base ocidental, que aqui chegaram”, diz ele. O frevo, com seu vocabulário e pedagogia bem definidos
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– que Nóbrega credita ao fato de ser uma dança de desenvolvimento urbano, ao invés de uma manifestação rural – é a criação popular mais propícia para realizar essa síntese. Belo exemplo desse trabalho de transformação do frevo é quando, em certo momento do espetáculo criado para o projeto Nove de Frevereiro, Nóbrega apresenta ao público uma versão frevada de “Melodia Sentimental”, de Villa-Lobos. Registrado em vídeo por Walter Carvalho, o resultado ganhou destaque na primeira edição do Fantástico de 2007. No repertório dos dois CDs há também frevos tradicionais apresentados em novas formações orquestrais: violino com quinteto de metais, com conjunto de sax, com quarteto de cordas. “Com o frevo de Lourival Oliveira chamado “Brincando com clarineta”, convidei o Sujeito a Guincho, que é um conjunto de clarinetes de São Paulo para tocá-lo. E ele é completamente desconstruído, mas você continua encontrando lá os elementos do frevo. Aí você pensa: mas onde está o coração do frevo? Boa pergunta.” Boa pergunta mesmo. Qual seria o denominador comum, a essência do frevo, esse gênero que musicalmente se apresenta em três variantes e que na dança tem um “vocabulário” de mais de 100 passos? Nóbrega oferece uma hipótese. “Tem uma coisa interessante. É algo que eu encontro historicamente na cultura brasileira em geral, mas que no frevo é muito importante: é uma espécie de abrandamento do espírito masculino para uma confraternização com o princípio feminino. Você veja que as primeiras bandas de frevo eram organizações militares. Ou seja: do masculino. Vinham tocando o dobrado, que é o parente mais próximo do frevo: tum-tum, tum-tum, tum-tum...” E, então, ele transforma a batida: “Tum-ta-ca-chi-ca-tum-ca-chi-ca-tum... O frevo é uma espécie de feminização do dobrado”. “Com a dança é a mesma coisa”, continua. “É uma pena que seu gravador não vá registrar isso...” Levantando-se da cadeira, passa a demonstrar um moviAcima, capa do disco Nove de Frevereiro.
Alexandre Belém /Titular
Ao lado, Ariano Suassuna convidou Nóbrega a integrar o Quinteto Armorial, na década de 70
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CAPA mento da capoeira – a principal matriz do frevo. Começa jogando o corpo para um lado e para o outro, os braços dobrados em posição de defesa, os punhos cerrados, até que as mãos se abrem num desmunhecar, e o sorriso aparece na cara antes belicosa. “É como o dançarino de flamenco: aquele torso que vai para a frente (duro como o de um toureiro), enquanto as mãos... (ágeis, simulando o tocar das castanholas). Tenho para mim que esse confronto, esse diálogo intenso entre esses dois princípios, é o que dá riqueza, verdade a uma manifestação cultural.” Se para a dança-frevo Nóbrega é só elogios, a música também tem méritos próprios que a coloca entre as mais importantes criações brasileiras. Ele aponta a existência de introduções instrumentais em certos frevos-de-bloco e frevoscanção que, devido à complexidade e beleza, são tão importantes quanto a própria letra. “Isso a gente pode ver, por exemplo, em ‘Evocação nº 1’ ”, diz ele, para logo em seguida emendar com a famosa introdução do frevo de Nelson Ferreira que fala dos blocos de Felinto, Pedro Salgado e companhia. “Aquilo é um primor de orquestração, de realização instrumental. Acho que na marcha carioca (que compartilha da origem do frevo-de-bloco: os pastoris) você não vê isso. “As Pastorinhas”, por exemplo, começa com dois ou três compassozinhos e só”, diz ele, citando ainda as introduções de “Bela” (Capiba), “Roda e Avisa”
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CAPA (J. Michiles) e “É de fazer chorar” (Luiz Bandeira). “Isso é de uma importância muito grande para a música brasileira.” Mas, no final, música e dança no frevo são uma só. É um caso raro em que os movimentos nasceram tão conjuminados com a música, de modo que não se sabe quem acelerou primeiro o ritmo, os capoeiras ou a banda. É a esse conjunto que Nóbrega dedicou três anos de trabalho, não como um pernambucano vestindo a camisa por puro regionalismo, mas como artista original e universal. Mário de Andrade certa vez afirmou: “A vibração paroxística do frevo é realmente uma coisa assombrosa. É, enfim, um verdadeiro allegro num presto nacional! É, sem dúvida, o entusiasmo, a ardência orgíaca mais dionisíaca da nossa música nacional. Mas será possível que uma coreografia assim ainda se conserve ignorada dos nossos teatros e bailarinos? É uma fonte riquíssima. É um verdadeiro título de glória que o país ignora, simplesmente porque entre nós são muito raros os que têm verdadeira convicção de cultura.” Com Nóbrega e seu Nove de Frevereiro, o Brasil já não ignora mais nada de frevo. •
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O frevo é uma espécie de abrandamento do espírito masculino para uma confraternização com o princípio feminino. As primeiras bandas de frevo eram organizações militares... O frevo é uma espécie de feminização do dobrado
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Mais que um tributo Hans Mantteuffel
O frevo cobra reconhecimento como patrimônio imaterial brasileiro e se ressente de documentação de sua linguagem Bruno Brito
A
s comemorações simbólicas do centenário do frevo, neste fevereiro de 2007, são uma oportunidade para narrar sua história e discutir sua importância cultural. Ao longo do ano, estão programados lançamentos de CD’s, DVD’s, livros, seminários, exposições e documentários. Ao mesmo tempo, reivindica-se seu reconhecimento como patrimônio imaterial brasileiro e percebese uma lacuna na documentação e no estudo de sua linguagem musical. Um projeto abrangente é o álbum duplo 100 Anos de Frevo, É de Perder o Sapato, produzido pelo compositor caruaruense Carlos Fernando, com 31 composições (17 frevos-de-rua, essencialmente instrumentais, e 14 frevos cantados) que pretendem oferecer um panorama da produção do frevo não só em Pernambuco, mas no Brasil, com novos arranjos dos maestros Spok, Edson Rodrigues, Clóvis Pereira e Duda. No disco com frevos instrumentais, há peças antológicas como o “Gostosão”, de Nelson Ferreira, e “Último dia”, de Levino Ferreira, e a inclusão de “Passo de anjo”, da Spok Frevo Orquestra, que intensifica o uso do improviso no frevo de rua contemporâneo, seguindo a trilha aberta pelas variações que o saxofonista Felinho incorporou ao clássico frevo “Vassourinhas”. No disco com os frevos cantados, um time formado por craques da música popular brasileira interpreta releituras de frevos-canções (um frevo cantado) e frevos-de-bloco (tocado com banda de pau e corda e cantado por um coral): Geraldo Azevedo, Claudionor Germano, Alceu Valença, Silvério Pessoa, Lenine, Geraldo Maia, Nena Queiroga, Maria Bethânia, Luiz Melodia, Gilberto Gil, Maria Rita, Ney Matogrosso e Elba Ramalho. No repertório, obras obrigatórias como os frevos de bloco “Madeira que cupim não rói”, de Capiba, intepretada por Claudionor Germano, e “Evolução Nº 1”, Nelson Ferreira, cantada por Antônio Carlos Nóbrega. Maria Rita gravou “Valores do passado” de Edgar Moraes, enquanto “Me segura senão eu caio”, de J. Michiles, recebeu a voz de Ney Matogrosso.
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Carol Azevedo/Divulgação
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O produtor Carlos Fernando, autor de clássicos do frevo como “Banho de cheiro” e que na década de 80 liderou o projeto Asas do Frevo – uma releitura do gênero com a presença de artistas de renome nacional, decidiu não ficar restrito aos autores pernambucanos na seleção do repertório. Assim, Silvério Pessoa interpreta “Atrás do Trio Elétrico” de Caetano Veloso, e Edu Lobo canta o “Frevo diabo”, parceria sua com Chico Buarque. Há ainda as participações do paraibano Alcides Leão, com o frevo “Mordido”, e do cearense Carnera, com “Frevo da meia-noite”. O disco duplo chega ao mercado brasileiro e internacional com o selo da gravadora Biscoito Fino, dentro da estratégia de dissociar a execução do frevo apenas no período carnavalesco. Além das classificações – A produção contemporânea de frevo, de 1950 até agora, também revela que a famosa classificação (frevo-de-rua, frevo-canção e frevo-de-bloco) feita pela Federação Carnavalesca de Pernambuco no século 20, não é suficiente para comportar a produção do gênero. No repertório de 100 anos de Frevo, esse descompasso entre as classificações fica evidente. Vanessa da Mata interpreta o lírico frevo-canção “De chapéu-de-sol aberto” (1972), de Capiba, enquanto Gilberto Gil interpreta o frenético “Micróbio no frevo” (1955) do paraibano Genival Macedo, gravado originalmente por Jackson do Pandeiro com arranjo de Clóvis Pereira (“Eu só queria que um dia o frevo chegasse a dominar em todo o Brasil, o micróbio do frevo é de amargar...”). Essa canção foi o primeiro frevo rasgado com letra, com um fraseado mais curto e sincopado, e influenciou muitos compositores. É o caso de J. Michiles, autor de verdadeiros hinos do carnaval como “Bom demais” (1987) e “Diabo louro” (1994)
Carlos Fernando, compositor e produtor do disco comemorativo dos 100 anos do frevo: releituras sem amarras
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Acervo Leonardo Dantas Silva
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Trio-ícone do frevo-canção: Luiz Bandeira, Claudionor Germano e Capiba
e que acaba de reunir no disco Asas do Frevo suas composições gravadas por Alceu Valença, Elba Ramalho, Claudionor Germano, Almir Rouche e André Rio. “Gosto da formação sincopada de frases rítmicas curtas. Nem digo que faço frevo-canção. Acho melhor dizer que componho frevo cantado”, afirma ele. O pesquisador e musicólogo Samuel Valente ressalva que o aparecimento da forma como Jackson cantava não eliminou o modelo anterior de frevo-canção, considerado mais lento e lírico. “Elas passaram a conviver paralelamente, sem conflito”. Um patrimônio brasileiro - No processo de inclusão do frevo como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, a gerente da Prefeitura do Recife, Carmem Lélis, responsável pelo projeto, explica haver sido percebido o problema apontado pelo regente. “Nesse programa, percebemos que é preciso escrever mais sobre o frevo (música e dança) e precisamos editar obras antigas. Continente fevereiro 2007
Também integra o programa de salvaguarda a construção de um espaço no bairro do Recife, que será um centro de pesquisa e uma escola sobre o frevo”, revela. A comemoração dos 100 anos do frevo ainda contempla outras ações, como o resgate da obra de importantes compositores do gênero: o disco 100 Anos de Frevo, sem Ele não Dá, de Claudionor Germano, eterno intérprete dos frevos de Capiba; o lançamento do disco E o Frevo Continua do já citado maestro Ademir Araújo; a remasterização e edição do CD O Tema é Frevo de nove LP's de frevo executados pela Banda Militar de Pernambucom, sob coordenação do radialista e pesquisador Hugo Martins. Atividades intelectuais também entram na agenda do aniversariante tão acostumado às festas. Até o final do ano, o Recife vai sediar seminários e cursos sobre o frevo e promoverá um concurso nacional de ensaio sobre o gênero musical e a dança, com premiação para os 10 melhores trabalhos. •
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Lançamentos no centenário do frevo 100 Anos de Frevo: É de Perder o Sapato – Dois CD's com 31 composições, entre frevos instrumentais e cantados com a participação de vários artistas brasileiros – Biscoito Fino – Patrocínio da Prefeitura do Recife. Concurso de Música Carnavalesca Pernambucana 2006/2007 – 100 Anos do Frevo – CD com as 15 composições vencedoras do concurso, gravadas pela Orquestra de Frevo da Banda Sinfônica Cidade do Recife. LG Projetos & Produções Artísticas – Patrocínio da Prefeitura do Recife. 100 Anos de Frevo, sem Ele não Dá – CD de Claudionor Germano com frevos de Antonio Maria, Capiba, Nelson Ferreira, Luiz Bandeira e Getúlio Cavalcanti – Produção Independente – Patrocínio da Prefeitura do Recife. O Tema é Frevo – Caixa de 10 CD's com a remasterização de LP's de frevo executados pela Banda da Polícia Militar de Pernambuco e pelo Coral Edgar Moraes. Organizado
por Hugo Martins – Centro da Música Carnavalesca de Pernambuco (Cemcape) – Patrocínio da Prefeitura do Recife. E o Frevo Continua – CD com 12 frevos do maestro Ademir Araújo e uma regravação de Vassourinhas de Matias da Rocha e Joana Batista – Produção Independente – Patrocínio da Prefeitura do Recife. Asas do Frevo – CD com 20 composições de J. Michiles – LG Projetos & Produções Artísticas – Patrocínio da Chesf, Governo do Estado e Prefeitura do Recife. Tenha Modos – CD do Grupo SaGrama com 13 músicas baseadas no ciclo carnavalesco pernambucano LG Projetos & Produções Artísticas – Patrocínio da Cidade do Recife Transportes S/A (CRT). Frevo 100 Anos de Estrada – CD com 17 composições inéditas de Getúlio Cavalcanti – LG Projetos & Produções Artísticas – Patrocínio da Chesf.
Por Amor ao Frevo – CD com 13 frevos de autores pernambucanos, entre eles os maestros José Menezes, Duda e Ademir Araújo – Produção Independente. Frevação Volume III 100 Anos do Frevo – CD com 14 frevos gravados por Alcymar Monteiro – Ingazeira Discos. Cem Carnavais – CD com 12 frevos gravados por André Rio, com músicas próprias e de Alírio Moraes, J. Michiles, Getúlio Cavalcanti e Lula Queiroga – Central da Música. Esse é o meu Carnaval – CD de Nena Queiroga com 13 músicas, composições próprias e de Capiba, Nelson Ferreira, Edgard Moraes, J. Michiles, Moraes Moreira e Lula Queiroga – Produção independente. Canto Folião – CD de Gustavo Travassos com 13 frevos, inclusive “O Galo em festa” (de Nena Queiroga e André Rio), música-tema da 30ª edição do Galo da Madrugada no Carnaval 2007 – Produção Independente.
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Dança de rua, dança de palco A dança do frevo, quando foi levada aos palcos, incorporou elementos do balé clássico, mas os passistas que resistem a essa "estilização" fazem do improviso seu diferencial Adriana Alencar
Dançarina do Balé Popular do Recife: estilização influenciada pela dança clássica
só se desenvolveu única e exclusivamente no bairro de São José, na cidade do Recife, no Estado de Pernambuco, no Brasil? Negar isso? Achar que os movimentos agressivos, bruscos e masculinos são “sujos” e “feios”, não servem para palco? No tocante ao assunto de movimentos do frevo, encontram-se comentários na obra de Valdemar de Oliveira, Frevo, Capoeira e Passo, até hoje referência para os que dançam e pesquisam sobre o frevo, que validam as questões acima expostas. Na obra, o autor classifica frevo e passo; frevo é a música, passo é a dança. Porém, a manifestação cultural chama-se apenas frevo. A dança só existe quando acompanhada da música. Diz o autor: “Variantes do passo não se descrevem que nem um pas-de-deux ou um grand-jetê. Têm muito de impulsividade, de versatilidade, de improvisação, de instinto, para poderem espartilhar-se numa descrição rígida”. Interpreta-se que o frevo não cabe numa camisa de força. Sua loucura feroz não se comporta num invólucro qualquer. Hoje em dia temos duas modalidades bem distintas: o frevo do Balé Popular do Recife, “estilizado”, que conta com formas ligadas ao balé clássico, o passista sempre de frente, levando em consideração o
Marcelo Lyra / OlhoNu
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xiste uma diferença entre os folguedos realizados no “terreiro” e os que são apreciados no palco. No primeiro caso, o objetivo principal é a brincadeira, a diversão. Na releitura artística, quando o folguedo é levado para o palco, a preocupação com a estética é outra: tanto o figurino, como a coreografia e até a fisionomia dos dançarinos são em função do público. É evidente que uma brincadeira de “terreiro” é menos exigida esteticamente que uma releitura artística e cênica. Porém, essa ida ao palco evidencia um fato: a perda da essência. No caso do passo (a dança do frevo) não há mal algum em que ela saia da rua, do improviso do passista ou até do folião mais ousado, e ganhe uma estética e um tratamento cênicos. O frevo que se dança na rua é diferente daquele que será exibido no palco, pois para este há preocupação com o figurino, com a coreografia, com a luz, com o espaço, a trilha sonora. Tudo o que compõe um espetáculo. O que está em xeque é a perda da essência. Como representar corporalmente uma tradição quando esta sobe ao palco? O que aconteceu com o frevo foi uma mistura com o balé clássico. Porque a beleza (enquanto categoria estética) tem que ser representada por uma dança que não é do Brasil? E a beleza da história brasileira? De uma dança que
Marcelo Lyra / OlhoNu
O passo de Luciano Amorim remete às origens, no improviso e na violência
teatro “caixa”, com o frevo coreografado para todos os dançarinos, com os pés sempre em ponta e o acento para cima (saltitando); e o frevo do método do mestre Nascimento do Passo, frevo de rua, agressivo, como foi sua origem, com forte influência da violência da camada marginal composta por capoeiras, brabos, valentões; para todas as direções, levando em consideração a “arena”, executado de acordo com o estilo e improviso de cada passista, com o acento para baixo (deslizando no chão), e não coreografado; é dançado respeitando a melodia da música. Ela é quem pede a execução dos passos. O passista é conduzido por ela, fazendo música e dança um dueto único e ímpar, somente pernambucano. A Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges deixou de dançar e ensinar o frevo pelo método do mestre Nascimento. Os acentos estão mais característicos do balé clássico, com pontas de pés e “perna alta”; visando uma “limpeza de movimento”. Por trás desta nova tendência de introduzir o balé clássico para “limpar os passos”, podemos evidenciar um distanciamento das origens do frevo, uma perda social e cultural, pois a violência dos primeiros "passistas" era uma resposta à situação de opressão social da época. Depois, a perda de nossa identidade, tentando fazer uma outra dança distante da nossa realidade brasileira, com influências específicas, que resultaram em toda essa diversidade cultural. Por fim, um complexo antigo de colônia em relação à metrópole, o que é europeu é melhor e mais bonito, de “bom gosto”; ainda hoje a europeização de que tanto fala Gilberto Freyre em sua obra Sobrados e Mucambos.
Daí a maioria das pessoas que trabalha com dança, e especificamente com o frevo, não mais admirar a dança que Valdemar de Oliveira descreveu em sua obra, sempre se referindo ao passo como alucinante, arrebatador. Esta é vista hoje como “grotesca”, “bizarra”. Ou a acham “feia”, com movimentos “sujos”, pouco interessante para ser levada ao palco. Para provar que não, Luciano Amorim, discípulo do mestre Nascimento do Passo, criou um personagem em cima do passista de 100 anos atrás: dança de paletó branco, chapéu e guarda-chuva preto. Seus movimentos diferem intensamente da esmagadora maioria que dança frevo hoje em dia. Ele sabe improvisar, seu corpo é treinado para fazer os passos mais difíceis e carrega uma influência do capoeira, do malandro, do brabo, intimamente ligada aos primeiros passistas. É violento, ágil, acrobata, num piscar de olhos vai ao chão e no instante seguinte está no ar. Mesmo no passo mais fácil, brinca com a música e com o corpo, num domínio espetacular. Sua dança é feroz, alucinada, extravagante. Fez diferença no Concurso de Passo 2006, sendo um dos seis finalistas e distinguindo-se dos demais passistas, todos iguais, com exceção de dois outros discípulos de Nascimento do Passo, que carregam esta forma de dançar frevo. Mas o que Luciano possui é talento aliado à técnica e à pesquisa. Logo que entrou em cena, a platéia não entendeu a “proposta” e todos riram. Porém, quando começou a dominar o palco com sua dança vibrante, a platéia foi ao delírio.Era o começo de um movimento, que valoriza suas origens e reafirma o frevo como dança verdadeiramente brasileira. • Continente fevereiro 2007
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Machado de Assi O que estaria por detrás da crítica azeda do grande prosador brasileiro ao seu contemporâneo português Claudio Mello e Souza
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um intervalo de duas semanas, dias 16 e 30 de abril de 1878, Machado de Assis publicou dois artigos sobre Eça de Queirós, na imprensa da corte. Em forma polida e elegante, como lhe era natural, mas com vigor insuspeitado em homem que, tal como o Conselheiro Aires, padecia de “tédio à controvérsia”, desfecha sobre o autor de O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio duas acusações de arremedo literário e outra de inconsistência e puerilidade dramáticas. O Crime, afirmou Machado, seria imitação (ele não fala em plágio, e nem sei se isto abranda ou agrava a censura) de La Faute de l'Abée Mouret, de Zola. E o O Primo não passaria de cópia malfeita de Eugénie Grandet, de Balzac. O terceiro erro de Eça, erro “grave, gravíssimo”, teria provindo do uso do acaso para acionar e sustentar o entrecho dramático de O Primo. Estranho que Machado tenha embirrado com essa travessura do destino, ele que pediu ao acaso que pusesse, numa mesma hora de um mesmo dia, num mesmo vagão de trem, a bela Sofia e o arrebatado Rubião. Sem falar em outros providenciais acasos de seus romances e contos, das Primas de Sapucaia às Memórias Póstumas.
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X Eça de Queirós Deixemos de lado acasos e inconsistências. Tornemos ao plagiato. As críticas de Machado fizeram furor e devotos. Ainda hoje servem de motivo para especulação maliciosa e julgamentos imprudentes. Eça de Queirós tomou conhecimento dos furores machadianos. Não lhes quis dar importância, porém. Durante dois anos, guardou silêncio, parente próximo do desdém. Fingidamente ou não, pareceu desinteressado de tão miúda polêmica. Ao lançar a segunda edição do Crime, dois anos depois, tratou de precedê-la de uma nota em que, finalmente, respondia aos críticos. Mais exatamente ao crítico, o bruxo do Cosme Velho, que por essa época ainda não havia sido batizado de maneira tão ternamente lúgubre. Com a ironia de praxe, mas com impaciência e certa ponta de azedume, Eça desabafou: “Os críticos inteligentes (epa!) que acusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abée Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do Sr. Zola, que foi talvez a origem de toda a sua glória. A semelhança casual (desconfio desse casual) dos dois títulos induziu-os em erro. Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade córnea ou má-fé cínica poderia assemelhar esta bela alegoria idílica, a que está misturado o patético drama duma alma mística, ao Crime do Padre Amaro que, como podem ver neste novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa.” Concordo, incomodado, com a reação de Eça. Quanto ao Crime do Padre Amaro, Machado errou gravemente ao aproximá-lo de La Faute, de Zola. As semelhanças entre os dois livros são
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LITERATURA poucas, aparentes e enganosas. Tenho hoje a certeza de que são nenhumas, excetuadas certas breves passagens que devem ter marcado fundamente Eça de Queiroz, e que ele na verdade copiou, por não ver nisso nada de mal. Foi resultado de apaixonada admiração. Ou decorrência do contaminatio que deixou Virgílio levar-se pelos ventos da Odisséia ou pelos ecos da Ilíada. Machado poderia ter buscado em outro livro de Zola, La Conquête de Plassans, um bom motivo para falar em imitação. Por que não o fez? Se o fizesse, porém, teria se equivocado ainda uma vez, a não ser que insistisse em ver infiéis semelhanças em flagrantes dessemelhanças. O que temos, em La Conquête, é o estudo do provincianismo cultural e moral de uma pequena cidade do interior, onde medram reles ambições políticas. Nesse ambiente, o abade Faujas concebe e realiza o plano de conquista absoluta do poder político, amparado por interesses da Igreja francesa. O amor delirante que lhe devota Marthe Mouret, numa tentativa de escapar do medíocre aprisionamento familiar, não o encanta, antes o aborrece. Chega a irritá-lo. Ele se esquiva de Marthe, enquanto Amaro deseja Amélia, destemeroso de Deus, temente ao Diabo. Nem por isso, Faujas deixa de se aproveitar dessa devoção histérica, mas sem quebrar o voto de castidade, como um dos trunfos de seu jogo político. O que isto tudo tem a ver com O Crime? Nada, ao contrário do que muito sugerem e quase afirmam os autores da edição crítica do romance queirosiano, editada pela Imprensa Nacional portuguesa. Para Zola (no alto) e Balzac: Eça os espanto meu. teria “imitado” Imagens: Reprodução
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O livro que se segue à La Conquête, na longa série dos Rougon-Macquart, é La Faute de l´Abbé Mouret. Neste livro, dividido em três partes, o que temos, na primeira, é o processo de ensandecimento de Serge Mouret, levado a um estado de delírio por mórbida e obsessiva devoção à Virgem. Essa busca demencial da pureza deixa-o à beira da morte. Exageros herdados do velho Hugo, cujos personagens estavam quase sempre em estado de êxtase, como em Os Miseráveis. Para recuperálo, o médico lhe recomenda mudança de ares. Os amigos o transferem então para um lugar edênico. Lá, sob a proteção da jovem e bela Albine, uma espécie de Eva em versão melhorada, Serge se transforma numa espécie de Adão, em versão piorada. Ou pirada. Não é à toa que Zola dá, a esse lugar, o nome de Paradou. Nesse paraíso feito de poderosas incitações sensuais, Mouret acaba comendo a maçã. Depois, a velha história: Omne animal triste post coitum. Triste depois do coito, envergonhado de pecados, perseguido de culpas. Se, para o Padre Amaro, o amor era aceito como “infração canônica”, em Mouret havia pecado da alma. Irremissível. Torna-se então num homem conflitado, que busca desesperadamente resistir à sedução da carne, e manterse fiel aos seus votos. O que tem isto tudo a ver com o lúbrico Amaro, para quem a satisfação de desejos sexuais era simples condição humana, que Deus deveria tolerar, e que jamais padeceu de qualquer tipo de culpa? Nada. Quais razões terão levado o juízo crítico de Machado de Assis a assemelhar livros tão díspares, tanto no entrecho quanto na escolha do cenário e no desenho da psicologia dos personagens? O que o terá levado ao exagero de falar em imitação e de afirmar que o livro de Eça havia saído das páginas de Zola? Teria sido candidamente ludibriado pela semelhança dos dois títulos, como Eça sugere com malícia? Recuso-me a crer que tamanha ingenuidade possa ter ocupado cabeça tão lúcida. Acho boa razão para explicar as implicâncias de Machado. A de ter sido ele um crítico conservador; pior, moralista. Quem leu a sua pequena obra crítica deve ter chegado logo à conclusão a que cheguei. Toda essa visão conservadora, visão de seguidor de Fichte, está mais sucinta e obviamente resumida num artigo que leva o título de “Notícia da atual literatura brasileira – Instinto de nacionalidade” . Na parte em que ele trata do romance brasileiro, ao lado de preferência de gosto discutível, compensada por observações de fina sagacidade, há uma espécie de decla-
Acervo da ABL/Reprodução
LITERATURA
Em carta ao amigo Henrique Chaves, um Machado maduro e comovido refez suas opiniões sobre Eça
ração de princípios, em que ressalta uma tomada de posição preconceituosa em relação às novas influências vindas da França: “As tendências morais do romance brasileiro são geralmente boas. Nem todos eles serão, de princípio a fim, irrepreensíveis; alguma coisa haverá que uma crítica poderia apontar e corrigir. Mas o tom geral é bom. Os livros de certa escola francesa (grifo meu), ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que já é de notável mérito”. Machado de Assis recusava-se, com fingida indiferença, a referir-se à escola realista. Tem reação de ofendido pudor. A relação de Machado com Eça começou por escrito e começou mal. O ciúme levou-os à inveja; a inveja, à impaciência; a impaciência, ao azedume. Com relação ao azedume, restou-me a impressão de que, chegados os dois à velhice, os atritos hajam sido atenuados por obra devota dos amigos. Concluí assim, depois de reler a carta que Machado escreveu a Henrique Chaves, na qual lamentou o fato de a morte suprimir talentos que ainda teriam muito a criar. Como foi o caso de Eça, que Machado definiu como “o melhor da família, o mais esbelto e o mais valido”. E Machado prossegue, ao falar da morte de grandes talentos: “Onde ela é sem compensação é no ponto da vida em que o engenho subido ao grau sumo, como aquele de Eça de Queirós, – e como o nosso querido Ferreira de Araújo, que ainda ontem fomos levar ao cemitério – tem ainda muito que dar e perfazer. Em plena força da
idade, o mal os toma e lhes tira da mão a pena que trabalha e evoca, pinta e canta, faz todos os ofícios da criação espiritual. Por mais esperado que fosse esse óbito, veio como repentino. Domício da Gama, ao transmitir-me há poucos meses um abraço de Eça, já o cria agonizante. Não sei se chegou a tempo de lhe dar o meu. Nem ele, nem Eduardo Prado, seus amigos, terão visto apagar-se de todo aquele rijo e fino espírito, mas um e outro devem contá-lo aos que deste lado falam a mesma língua, admiram os mesmos livros e estimavam o mesmo homem”. Não me lembro, em literatura brasileira, de necrológio mais comovido e verdadeiro. Creio até que sincero. Manuel Bandeira, no artigo que escreveu para o Livro do Centenário, lembra que no dia 24 de agosto de 1900, dias depois da morte de Eça e de Ferreira de Araújo, a Gazeta de Notícias deu “toda uma página de colaboração em homenagem ao grande romancista: artigos de Araripe Júnior, Machado de Assis, Henrique Neto (...), versos de Osório Duque-Estrada, Luís Guimarães Filho e César Monteiro; ilustrações de Julião Machado (retrato de Eça e algumas figuras do Primo Basílio)”. Concluiu com a seguinte frase: “Machado de Assis dizia, lembrando-se sem dúvida de si próprio e de sua severa crítica ao Primo Basílio: ‘Tal que começou pela estranheza, acabou pela admiração’ “. A pena que criticou Eça foi a mesma que dele se despediu com admiração e encanto. Árcades ambos. • Continente fevereiro 2007
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Vista parcial da vida Novo romance de Luiz Ruffato, parte da pentalogia Inferno Provisório, continua a saga da gente brasileira anônima Luiz Carlos Monteiro
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Divulgação
ara dar prosseguimento à série de cinco romances a que batizou de Inferno Provisório, o mineiro Luiz Ruffato publicou recentemente o terceiro deles, Vista Parcial da Noite. Autor de oito livros distribuídos entre ensaio, poesia e prosa de ficção, fez sua estréia em 1998, aos 37 anos, com Histórias de Remorsos e Rancores. Em 2001 aparece seu primeiro romance, Eles Eram Muitos Cavalos, ambientado na cidade de São Paulo, retratando uma parcela ínfima de sua gente anônima, sem voz, rosto ou expressão, tendo sido traduzido para o francês e o italiano. O leitor que teve acesso aos dois outros volumes da pentalogia Mamma, Sono Tanto Felice e O Mundo Inimigo, ambos de 2005, reconhecerá de imediato o estilo experimental, fragmentário e diluído, porém inventivo e formalisticamente seguro do escritor mineiro, que sugere um trabalho em permanente elaboração. Ele utiliza, de um lado, o monólogo interior e intimista para a reflexão de seus personagens sobre a vida comum e as terríveis circunstâncias que a emolduram, como a pobreza permanente, o trabalho pesado, a malandragem crônica e a insegurança quanto ao futuro. Seus diálogos podem aparecer entremeados por aspas ou travessões, enriquecidos por fontes de diversos tipos e tamanhos, grafadas em itálico, negrito ou de modo convencional, servindo para a diferenciação de vozes entrecortadas internamente à narrativa.
LITERATURA O primeiro livro da seqüência, Mamma, Son Tanto Felice, que se passa na década de 1950, tem como cenário a zona rural mineira, onde se encontra estabelecida uma comunidade de imigrantes italianos. Inicia-se com a breve descrição de um parto, à maneira faulkneriana, na família dos Micheletto: “André, André pequeno, Andrezim, parto difícil, até o último respiro a ‘tia’ Maria Zoccoli suava ao alembrar”. Neste mesmo texto, “Uma Fábula”, são narrados também a brutalidade recorrente e o trabalho cotidiano de pessoas que guardam uma espécie de culto à tradição e à honradez transmitidas pelos mais velhos. Tais hábitos e costumes tradicionais, às vezes violentos, no entanto, vão se esvaindo e definhando com o tempo, embora seja difícil de esquecer a cena em que o pai mata a filha para lavar a honra pela virgindade perdida: “Vai, desgraçada, estou mandando, ela, Pai, e pôs-se a correr, desesperada, quando então a explosão de um tiro suspendeu os barulhos da tarde e os dois empregados, assustados, viram o Pai retrocedendo calmo na direção do cavalo, pegando o enxadão”. Já O Mundo Inimigo se passa na cidade mineira de Cataguases, onde o escritor nasceu. São representados fortemente na obra os empregados e mulheres operárias da Manufatora, os biscateiros, malandros e donas-de-casa. O Beco do Zé Pinto, um corredor de casinhas e quartos alugados aos miseráveis que ali vivem, é palco da maioria das histórias de amor, paixão, trabalho e morte deste livro. O personagem Zé Pinto, que teve seus dias de poder e prosperidade, vai perdendo o controle sobre o Beco, que logra sofrer uma mudança na tipologia humana, substituindo uma gente pobre, porém honesta e trabalhadora por uma nova facção de traficantes, assaltantes e assassinos. Momento marcante pode ser conferido no texto-capítulo “A Mancha” – a mãe Bibica vela e presencia o filho Marquinho, morto atropelado por um ônibus cata-níquel, cuja mancha de sangue somente se apagará da calçada onde morreu quando o menino sair da memória dos que o conheceram: “E ali, à sua frente, o resultado de todo o seu sofrimento: o caixãozinho roxo da Prefeitura deixa à mostra o corpo magro do Marquinho, a cabeça envolta em gaze, Um desastre tão estúpido, meu Deus tão estúpido! Como uma coisa dessas acontece? Que desgraceira! Não bastassem as dificuldades todas... e tudo acabar assim... de uma maneira tão... tão...”. No conjunto diccional que perfaz seus livros, Ruffato deixa entrever clara ou sutilmente as vozes de um Machado de Assis, um Guimarães Rosa, um James Joyce, um Anton Tchekov, um William Faulkner. Entre os
Vista Parcial da Noite – Inferno Provisório 3, Luiz Ruffato, Editora Record, 160 páginas, R$ 29,90.
escritores brasileiros que se consolidaram pós-ditadura militar, embora não mantenha grandes identificações estilísticas ou formais com eles, dialoga com um Evandro Affonso Ferreira, um Marçal Aquino, um Marcelo Mirisola, um Marcelino Freire. Em Vista Parcial da Noite, Ruffato continua a desenvolver o seu microuniverso histórico do Brasil sudestino a partir do conhecimento e da vivência em Cataguases, agora no bairro periférico do Paraíso nos anos de 1970, com seus habitantes tratando de melhorar de vida. O neurótico de guerra, Simão, o antiguista Zé Bundinha, o enjeitado Vicente Cambota, o biscateiro Baiano que mata o seu filho preferido Cláudio e logo depois se enforca à beira do Rio Pardo, Cassiana, a filha rebelde de Dona Juventina, “desafiadora em suas indecentes minissaias, sábados e domingos enfiada no Pele-e-Osso, dançando, fumando e bebendo como uma zinha”, que sai do Paraíso, mora em Brasília e passeia eventualmente em Nova York. Assim, o ficcionista retira do limbo um leque de personagens que se destacam pelo anonimato radical, pela solidão coletiva e pela tenacidade e simplicidade na luta pela vida, que não conhece tréguas ou intervalos, a não ser com a chegada da morte. Sua literatura parte da realidade vivida, mas também do imaginado que se torna real após o seu testemunho de escritor, de um modo que vem comprovar apenas que ele esteve bem próximo aos eventos narrados e a muitos dos personagens que criou. • Continente fevereiro 2007
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LITERATURA
Jean-Claude Pinson: retorno da rapsódia
Poeta e filósofo francês reúne a capacidade crítica de observar o seu próprio trabalho e de situá-lo em consonância com a vertigem do mundo Everardo Norões
“Q
uando chego, no 15 de agosto de 2005, exatamente, Arraes acaba de morrer, a cidade está em estado de choque. Arraes, esse nome não me dizia senão vagamente alguma coisa. Mas na volta apressei-me a exumar de minha biblioteca o livrinho de Robert Linhart”. O trecho de Jean-Claude Pinson foi publicado em Éponyme, revista francesa de arte e literatura. Jean-Claude Pinson, poeta e filósofo francês, nascido em 1947, na cidade de Nantes, é autor de vários livros e um dos nomes mais representativos da poesia francesa contemporânea. Ele se refere à sua estada no Recife, ocorrida em 2005, quando aqui esteve como convidado da Fundação de Cultura da Cidade do Recife para o 3º Festival de Literatura. “Minha breve passagem pelo Recife, conta JeanClaude Pinson, teve um papel desencadeador na reaparição da figura de Robert Linhart. Fez ressurgir a vertente primeira, primaveril, elegante, prometedora, da aventura maoísta, tal como vivemos na França, no final dos anos sessenta. E o que vi e aprendi no Recife (o tem-
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po de Arraes, por exemplo) me confrontou a uma realidade jovem capaz de fazer eco a essa figura.” Robert Linhart é o autor de O Açúcar e a Fome (Paz e Terra, 1981), livro escrito durante uma viagem que ele fez a Pernambuco no final dos anos 70, no qual observou, com seu olhar arguto, a vida na zona canavieira de Pernambuco. O livro foi traduzido por Miguel Arraes, sob pseudônimo. Economista e filósofo, Linhart – discípulo do conhecido economista e pensador francês Charles Bettelheim – foi um dos intelectuais de influência na esquerda francesa nos anos 70, da qual também fez parte Jean-Claude Pinson. Curiosamente, e com quase 20 anos de intervalo, foi no Recife que se deu o “encontro” poético entre Robert Linhart e Jean-Claude Pinson. Embora sem se conhecerem, eles pertencem a uma mesma geração “lírica”, cujo desejo era “mudar a vida”, interligando ação poética e ação política. Trata-se da Geração de Maio de 68, que embora não tenha conseguido mudar a face do mundo, a partir das barricadas do Quartier Latin, contribuiu para promover uma transformação cultural sem precedentes na sociedade francesa. É, de certo modo, graças a representantes dessa época
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que a poesia da França – durante séculos centro de gravidade da literatura mundial – voltou a ser observada com atenção, após o relativo eclipse que se seguiu à vaga surrealista da primeira metade do século 20. Jean-Claude Pinson fez sua iniciação literária no grupo Tel Quel, revista literária de vanguarda, dirigida por Philippe Sollers, editada entre os anos de 1960 e 1982, sob o selo da prestigiosa Éditions du Seuil. Mas a militância literária foi abandonada, quando ele passou a temer que a “subversão pela forma seria apenas uma subversão para a forma”. Sua ruptura com a literatura durou cerca de 15 anos. Passou a viver e a militar na cidade portuária e industrial de Saint-Nazaire. Desse período, guardou o interesse pelas formas de linguagem susceptíveis de contribuir “para fazer nascer, orientar e intensificar formas de vida que fossem produções de ‘ethos’ (numa referência à ‘ethopoética’, do filósofo Michel Foucault)”. A experiência resultou no seu primeiro livro de poesia, J’Habite Ici (Champ Vallon, 1991), que pode ser traduzido por Moro Aqui. Desses anos de militância Jean-Claude Pinson herdou a capacidade crítica de observar o seu próprio trabalho e de situá-lo em consonância com a vertigem do mundo. Tocado por essa preocupação, retornou à atividade literária, ingressou na Universidade e, em 1988, defendeu tese sobre Hegel, publicada sob o título Hegel, le Droit et le Liberalisme (Presses Universitaires de France, 1989). Conciliando o ofício de poeta com o de professor universitário, foi diretor do programa do Collège International de Philosophie (1989 – 1995) e, a partir de 1991, passou a ensinar Filosofia da Arte na Universidade de Nantes. Na avaliação de Jean-Claude Pinson, nos últimos anos ocorreu uma reviravolta na poesia francesa que a diferencia marcadamente daquela praticada até os anos 80 do século passado. A ruptura com as correntes modernistas (“abstratas” e/ou “minimalistas”) fez surgir um novo conceito de “abstração”. A abstração poética (de tradição mallarmeana) não mais subentenderia uma “desrealização”, que significa a despersonalização ou o “retiro do poeta ao absoluto da linguagem”. Conforme essa nova concepção, endossada por Jean-Claude Pinson e por outros poetas contemporâneos – a exemplo de Philippe Beck – a “abstração poética” não é mais observada como uma “subtração ao mundo”, mas como uma espécie de retomada da idéia baudelairiana do “realismo bizarro”. O poema não deve ser uma “cortina” a encobrir qualquer possibilidade de visão do mundo, mas uma espécie de “veneziana filtrando a luz pelos seus mais variados ângulos”. Conhecedor da obra de Fernando Pessoa, Jean-Claude Pinson é marcado, como poeta, pela lógica da heteronímia do poeta português; e, como filósofo, pela “metáfisica da existência e da sensação, que aparece notadamente no Livro do Desassossego. Os heterônimos pessoanos, segundo ele, serviram como modelo na montagem das vozes múltiplas que compõem seu livro Fado, espécie de ópera de câmara, na qual dialogam vários recitativos”.
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Arquivo Pessoal
A ruptura com as correntes modernistas “abstratas”e/ou “minimalistas” fez surgir um novo conceito de “abstração”
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“Free jazz” [extrait de Free Jazz, éditions joca seria, 2004, p. 14] je nageais, l’orage grondait, l’averse menaçait, soudain mitrailla de son grain la surface de la mer or je nageais à l'indienne, une oreille dans l’eau, l’autre à l’air libre si bien que d'un côté amorti, détimbré, une crépitation mate et sourde de l'autre un crépitement sec, une flagellation plus aiguë à la surface je nageais donc en stéréo – une étrange stéréo grandeur nature où j’étais deux en un et le monde soudain très bizarre m'est alors revenue l'expression de Hölderlin : ein Zeichen sind wir, deutungslos et j'ai pensé pêle-m mêle à notre condition hydravionesque, entre le ciel et l'eau à la big question de l'architecture moderne, elle aussi occupée (sky line and waterfront) à mélanger le ciel et l'eau et qu'habiter en poète, après tout, avait peut-êêtre beaucoup à voir avec cette histoire d'hydravion. Car si la grande affaire de ma vie fut d'abord d'atterrir (“ atterris un peu “, me chapitrait mon père), j'ai compris cependant sur le tard, à la faveur d'un sérieux chagrin de langage, que peut-êêtre la vraie séquence était la suivante : décoller/amerrir/ décoller eu nadava, enquanto trovejava e a ameaçante tempestade de súbito metralhou com seu grão a superfície do mar e eu nadava, uma orelha sob as águas, a outra ao ar livre, a sentir, de um lado, o som amortecido, destimbrado, um crepitar surdo e morno do outro, à superfície, um estalar seco, uma flagelação mais aguda eu nadava em estéreo – um estranho estéreo tamanho natural onde eu era dois em um e o mundo de súbito tão estranho e veio-m me, de repente, a expressão de Hölderlin : ein Zeichen sind wir, deutungslos confusamente pensei em nossa hidroavionesca condição, entre céu e água na big question da arquitetura moderna, tão ocupada (sky line and waterfront) a misturar água e céu e pensei que o habitar poeta, afinal de contas, talvez tivesse muito a ver com essa história de hidroavião. Pois, se a primeira grande coisa de minha vida havia sido atrerrisar (“aterrissa um pouco” dizia meu pai), compreendi afinal, magoado com o mal da linguagem, que talvez a verdadeira seqüência fosse: decolar/amerrisar/decolar [tradução de Everardo Norões]
LITERATURA Em conhecido poema (“Autopsicografia”), Fernando Pessoa – que sob o nome de Psoa, é um dos personagens que transitam por Free Jazz, – último livro do poeta francês – há uma definição de poeta/fingidor, com a qual se identifica Jean-Claude Pinson. Contudo, se o poeta inventa formas e dispositivos textuais, a poesia é condicionada por limitações existenciais. Ora, esse “pacto lírico”, segundo ele, exige que o pulsar da existência “venha aflorar as palavras, que a chuva do real chicoteie obliquamente a página, em relampejos”. O poeta busca um “efeito lírico para o leitor”. Essa idéia de “efeito lírico” pode ser identificada com a idéia de “subjugação”, tal como foi enunciada por Fernando Pessoa, no texto “Apontamentos para uma estética não-aristotélica”. Para o poeta português, a arte é um fenômeno social e, como todo fenômeno social, ela busca sempre a dominação, seja através da “captação”, seja através da “subjugação”. A primeira, de vertente aristotélica, orienta seu foco em torno da idéia de beleza, subordina a sensibilidade à inteligência, com o objetivo de “captar” o outro. A segunda, baseia-se na idéia de força: o artista não-aristotélico é um “foco dinamógeno”. Ou seja, na clara definição de Fernando Pessoa: o que “converte tudo em sua substância de sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstrata como a inteligência (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstrato sensível que force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela força inexplicável (...)”. Em Free Jazz, Jean Claude Pinson arma uma teia poética multiforme e vibrante, composta de “nacos de autobiografia” e tendo como pano de fundo as mais diversas paisagens. Nelas, podem ser ouvidos sons de sax, misturados às vozes daqueles que contribuem para suas indagações filosóficas em torno da questão do fazer poético. A exemplo dos poetas Leopardi, Baudelaire, do filósofo Wittgenstein, do artista plástico F. Cælebs ou do compositor checo Leos Janácek. Fernando Pessoa também se faz presente, sob o nome de Psoa. Com sua voz e seus acordes de guitarra portuguesa, ele contribui para a montagem de um texto que nos revigora o pensamento e nos dá a sensação de estarmos diante de uma reinvenção da rapsódia. Uma rapsódia moderna e revolucionária, capaz de dar novo elã à poesia francesa contemporânea. • Continente fevereiro 2007
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Jamais perca a cabeça Tereza Yamashita
Na China antiga as cabeças rolavam. Nada podia ser mais cruel para uma cabeça do que ser derrotada, decepada e atirada aos pés dos vencedores. Nossa cabeça transformava-se em bola de futebol para o divertimento dos nossos inimigos. Era essa a triste história que minha mãe me contava. Aprendeu do seu pai, que aprendeu do seu avô, que aprendeu do seu bisavô africano, que aprendeu do seu dono português. Todos fanáticos por futebol. Morávamos de frente para o mar, em Copacabana. Todas as manhãs nós víamos o sol nascer onde o mar parecia acabar. Praia deserta, mar tranqüilo. O sono dos justos. Desde bebê minha mãe queria que eu fosse jogador de futebol. Todos os meus tios e primos já tinham tentado entrar pra algum time. Eu não poderia fugir à regra. – Perna-de-pau! – minha mãe berrava comigo o tempo todo, não tinha jeito. – Me mato o dia inteiro: lavo, passo, esfrego, cozinho e você não reconhece o meu esforço! Vou mandar você de volta pro morro. Seu pai vai dar Continente fevereiro 2007
um jeito. Aqui você virou um bunda-mole, um bostinha fresco, de tão mimado que foi. – Não quero voltar pro morro. Quero estudar e ser doutor, m-é-d-i-c-o. Como sempre, fiquei trancado no quartinho da empregada. No mesmo dia eu fugi de lá. Não voltava pro morro nem que me matassem. Morar com meu pai, que nem me reconheceu como filho? Um drogado, um bandido… Nem morto! Lá sim, eu ia virar defunto mesmo. Era como a história do futebol. Minha cabeça ia rolar. Então eu fugi. Passei fome, fui roubado e humilhado. Uns dias depois voltei com o rabo entre as pernas. – Bunda-mole! Vai morar com o seu pai, sim. Vai virar homem e tomar vergonha nessa cara. Pois é, meti os pés pelas mãos e fui direto pro morro. Estava tudo acertado. Meu pai agora é um traficante famoso, me coloca fácil no time do Alemão. O Alemão diz que conserta qualquer perna-de-pau. Era só deixar o garoto com ele. Depois de um mês era garantido, estaria
PROSA jogando um bolaço. Até que no começo o Alemão me deixava estudar e só dava treino no final da tarde. A primeira semana foi assim meio morna, creio que ele estava me testando. Ele logo viu que comigo a coisa não ia ser tão fácil, eu era um perna-de-pau. – E aí, garoto, em que posição você quer jogar? Eu olhei pra cara do Alemão e respondi na lata: – Em nenhuma, quero ir embora desta pocilga e quero que você se dane. O Alemão começou a rir e me deu um soco direto no estômago. Meu diafragma deslocou, o pâncreas quase estourou, expeli todo o ar armazenado e fiquei um bom tempo sem fôlego. – Filho da puta! – gritei quando o fôlego voltou. Quis dar um soco na carranca pálida daquele imbecil. Mas ele foi mais rápido e desviou. Depois segurou o meu braço e me fez cair de joelhos, quase enfiando a minha cara, no seu pau duro de tesão. – Moleque, até que você é corajoso. Puxou o pai – disse rindo e depois me soltou. – Da próxima vez eu te pego pra valer e você vai ficar de molho por uns bons dias. Tá avisado. Primeira regra, obedecer sem fazer perguntas. Segunda regra, ou você me fode ou eu te fodo. Terceira regra: nunca quebrar as regras. Saí chutando o ar, com dor no estômago. Desse dia em diante o Alemão começou a pegar pesado. Me fazia correr até pôr os bofes pra fora. Fiquei com os pés em carne viva e as pernas moídas de tanto exercício, meu corpo parecia carne moída. Todo dia eu chorava e pedia pra ir embora dali, implorava pra voltar pra casa. Eu odiava futebol e todos dali. Odiava a minha mãe por ela ter me enviado pro inferno. O Alemão começou a me chamar de viadinho chorão e todos repetiam em coro. Os dias eram intermináveis. Não pude voltar pra casa da minha mãe no final de semana, eu estava em concentração. – Nada de mulheres, esse final de semana você é nosso – disse o Alemão. Eu não tinha entendido o sentido da ameaça e, ingênuo, não fugi. Fiquei e fui currado ali na concentração por toda a equipe. No começo senti pavor, mas depois comecei a gostar e até senti prazer. Aqueles corpos grandes e suados depois do treino, todos querendo se
servir de mim… Me senti querido, desejado, apesar de todos estarem a fim de literalmente me foder. Me chamavam de Maria, Mônica, Gigi e de tudo quanto era nome de puta. Passei a ser a vagabunda reserva deles. O Alemão tinha razão. Eu era um viado mesmo. O Alemão chamou meu pai. O velho me espancou quase até a morte. Para ele era uma desonra ter um filho bicha. Ele, o poderoso, o destemido. Já tinha transado e até estuprado várias mulheres do morro. Como poderia ter um filho viado? – Foi culpa da vaca da sua mãe. Ela te criou como mulherzinha. Bem que eu achei que você não era meu filho, mas a puta me encheu tanto o saco, agora ela vai pagar. Nunca tinha visto um olhar como aquele. Olhar de vingança e de morte. Tentei chamar alguém, tentei pedir socorro, mas desmaiei. Depois de três dias, acordei. O Alemão me contou a tragédia. Meu pai havia matado a minha mãe, mas antes de morrer ela tinha enfiado uma faca no bucho dele. Meu pai morreu dois dias depois. Herdei a casa do morro e descobri que lá havia muitos dólares escondidos. Peguei as verdinhas e resolvi doar a casa pra uma creche. Resolvi ir embora pra sempre. Passei no Alemão pra me despedir. – Alemão filho da puta, tô indo embora desta merda. Vou estudar e virar doutor. Não sirvo pro futebol. Vim te agradecer. – Agradecer o quê, viadinho chorão? – Só agradecer … – Moleque safado, agora tá rico e vai deixar o Alemão? – Jamais. Vou te levar junto. Descobri que quero ter você sempre do meu lado. – Do que você tá falando, seu bichinha de merda? essas foram as últimas palavras do Alemão. – Vou te levar comigo pra sempre - eu repeti. Então, saquei uma moto-serra e cortei o pescoço do Alemão. A cabeça rolou feito bola. Meu troféu, mandei fazer uma bola de futebol com ela. Meus pais, o Alemão e o futebol me ensinaram muito: jamais perca a sua cabeça, sempre que puder jogue com a cabeça do inimigo. A vida é feita de lances, jogue pra ganhar. Hoje sou especialista em cirurgia de cabeça e pescoço e ainda adoro os garotos do morro. •
Tereza Yamashita nasceu em 1965, em São Paulo. É designer gráfica e escritora, autora, entre outros, de Bia Olhos Azuis pela editora Alaúde, os Dias Incríveis e Nuestro Gato Desbotado (México) pela Callis Editora. Para 2007 tem dois livros em programação: Nosso Gato Desbotado pela Callis Editora e Pituca e a Chuva pela Editora Paulinas. Continente fevereiro 2007
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no meio do rio a garça na borda as baronesas de ontem enfeitam a manhã de sol e mosquitos a lama é passarela para moça de uma perna só a canoa embaixo da ponte rema o homem para o mangue em cima o ônibus cheio de olhos no meio do rio há garça e o sol plana no inverno junino
diáspora abro os olhos e a quarta-feira é cinza as taras da noite me perseguem neste quarto de hotel é bom acordar sem deus descer a rua e ver o mesmo flanelinha no ofício diáspora palavra que me segue sem pedir perdão sou retalho carne dilacerada fragmento escuridão abro as pernas no sinal os carros passam e o vento leva pó para o meu rosto a noite chega a quarta-feira é cinza e faz tempo que me perdi de mim
Pedrosa
baixa maré
historinha urbana
Poemas de Cida
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a bala passou de raspão na sua cabeça e recebeu a visita da realidade
a bala passou de raspão na sua cabeça e recebeu a visita da realidade os vizinhos não dormem e o sangue é servido à luz do dia a pelada domingueira mofa no shopping e vai longe o tempo em que a praça era cenário de desejos a amada está passeando na internet contratou um personal e sonha com silicone e big brother ontem na fila do supermercado sobraram mais de cem e ele a girar no carrossel
as histórias e o escuro o escuro é criadouro nele a imagem cresce e a boca se agiganta o ouvido ouve vozes de princesas o nariz sente cheiros de além-mar tem no medo seu parceiro no desejo seu pensar o escuro é passagem para a alma viagem para o corpo casulo para as mãos ilumina a fogueira põe chama no terreiro e se veste de sertão o escuro é criadouro cospe fogo e ventania cria criança e estrelas é ave de arribação
Cida Pedrosa nasceu em Bodocó, PE, em 1963. Publicou Cântaro e Gume entre outros livros de poemas. Continente fevereiro 2007
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AGENDA/LIVROS
Apimentadas
Erudito e popular Cepe lança nova edição do livro Xilografia, de Marcus Accioly e José Costa Leite
M
arcus Accioly tem definido sua poesia como “um horizonte de equilíbrio entre a vanguarda e a tradição, a lucidez e a loucura, o popular e o erudito”. A reedição de seu terceiro livro (é autor de 13, além de dois cordéis), Xilografia, que surgiu pela primeira vez a público em 1974, é a confirmação cabal da perfeita harmonização que o autor consegue entre as chamadas literatura popular e literatura erudita. O título, xilo + grafia = grafia em madeira, dialoga com xilo + gravura = gravura em madeira, reafirmando a escrita como tributária do artesanato, construção difícil, que exige habilidade e força para que nela se alcance expressividade. É também livro feito a duas cabeças e quatro mãos, parceria entre o poeta pernambucano e o gravador paraibano José Costa Leite, pois, na verdade, não se pode dizer que as gravuras ilustram os poemas ou vice-versa. Texto e imagem se fundem numa obra única, em que literatura e artes plásticas se complementam para criar um terceiro elemento. Xilografia está dividido em três partes: “Os Bichos”, “As Aves” e “As Paisagens”. Na primeira, onça, boi, cavalo, jumento, carneiro, cabra, cobra e cachorro são apresentados nos textos como partes entranhadas à paisagem, pois em cada poema os versos não só aludem ao bicho representado como também o inserem no entorno, relacionando imagens, criando surpresas, “caleidoscopando” a realidade. Ao lado, no traço sintético de Costa Leite, o bicho, como elemento hierático e heráldico isolado no centro de um brasão. O galo, o papagaio, o pavão, a ema, o gavião e o urubu completam o bestiário, seguidos do engenho, a capela, o cemitério etc., os elementos de uma paisagem tão áspera quanto nobre. Xilografia é, assim, um bem-vindo re-acontecimento no cenário da cultura do Estado, graças a dois artistas afinados, que trançam seus saberes supostamente diferentes para fazer uma só arte. Uma arte, aliás, de alta qualidade. (Marco Polo) Xilografia, Marcus Accioly e José Costa Leite, CEPE, 88 páginas, R$ 15,00.
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Esta coletânea de contos e poemas dá voz a 16 autoras participantes da oficina literária de Raimundo Carrero. Como na maioria das antologias, esta não fornece uma idéia segura da produção geral das escritoras. O que se observa, notadamente nos contos, é um realismo excessivo de quem está começando a se familiarizar com os meandros da prosa. A temática erótica perfaz todos os trabalhos, alguns deles exprimindo delicadeza e sensualidade, enquanto que outros demonstram um despudoramento que já é parte do cotidiano das mulheres dos nossos dias (LCM). Pimenta Rosa – Contos e Poemas, várias autoras, Edições Bagaço, 130 páginas, R$ 25,00.
A voz dos blocos Inicialmente dissertação de mestrado em Letras na UFPE, o texto do professor Júlio Vila Nova tornou-se livro, despido do jargão acadêmico, lançado nesta primeira semana de fevereiro. Analisa as letras dos frevos-de-bloco e frevoscanção, apontando as primeiras, recorrentemente citadas como reduto do conservadorismo, como uma estratégia discursiva própria da linguagem da propaganda, com ênfase na exaltação dos valores da cultura pernambucana. Quanto aos frevos-canção, são percebidos como narrativa de costumes, espécie de crônica cantada. Panorama de Folião: o Carnaval de Pernambuco na Voz dos Blocos Líricos, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 167 páginas, R$ 20,00.
Indivíduo X Sociedade O alemão George Simmel (1858 – 1918) exerceu importante influência sobre pensadores como Weber, Heidegger, Lukács, entre outros. Simmel construiu uma importante fundamentação ao estudo da Sociologia como disciplina independente e rigorosa. Em Questões Fundamentais da Sociologia, o teórico inclui em suas investigações fenômenos que até então recebiam pouca atenção dos cientistas sociais: o amor, a amizade, a hospitalidade, a fidelidade, a gratidão, entre outros, são observados como fontes para compreensão das complexas relações entre indivíduo e sociedade. Questões Fundamentais da Sociologia, George Simmel, Jorge Zahar Editor, 119 páginas, R$ 24,50
Crônicas da singeleza O gênero crônica, cujo expoente ainda é Rubem Braga, tem se expandido na internet. Daí, migra para o livro. É o caso de Flávio Tiné, jornalista caruaruense há décadas radicado em São Paulo. Suas crônicas, versando sobre indignação, saudade, dores físicas, amores antigos, são tão singelas que surpreendem. Ao enunciar “ainda bem que não sou autoridade em nada”, Tiné constrói um retrato em corpo inteiro do homem comum, amante de música clássica, vítima freqüente de assaltantes. As Boas Lembranças da Luta, Flávio Tiné, Giz Editorial, 160 páginas, R$ 20,00.
AGENDA/LIVROS
Conversa musical Crítica argentina desvenda MPB
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radutora, crítica de teatro, literatura e música, a argentina Violeta Weinschelbaum é apaixonada pela MPB e, particularmente, pelo Tropicalismo. Tanto que, em quase todas as entrevistas que fez para este livro, procura saber qual o posicionamento de cada músico em relação ao movimento. É graças a esta insistência que ficamos sabendo, por exemplo, que Chico Buarque não se interessou pelo assunto porque surgiu justamente no mesmo período em que ele estava se aproximando de Tom Jobim, começando suas parcerias com o mestre. A melhor entrevista, entretanto, é, de longe, a de Tom Zé. Em primeiro lugar, pela maneira arrevesada por que ele fala, o que dá um sabor todo especial às suas narrativas; em segundo, pela natureza de suas recordações de um mundo mítico interiorano, com referência a valores que hoje estão perdidos; e, em terceiro, pelo seu modo de raciocinar, juntando matutice com erudição, até chegar a conclusões inesperadas. Enfim, porque é um dos poucos compositores populares brasileiros que começou experimental e continua até Estação Brasil – hoje experimental – talvez o mais íntegro Conversas com e autêntico tropicalista da história. Músicos Brasileiros, Mas há outras entrevistas interessanVioleta tes, como a de Marisa Monte, que revela Weinschelbaum, o quanto ela já nasceu madura, tanto como Editora 34, 248 cantora quanto como profissional; a de páginas, R$ 38,00. Bethânia, que exibe uma personalidade forte e independente; e, finalmente, a de Carlinhos Brown, pelo que tem de delirante, aliás, um componente da personalidade do músico baiano. (MP)
Denso e sutil Há uma corrente contemporânea que prega uma poesia não poética, quase uma prosa. A tentativa é livrar o poema dos miasmas líricos que tão pouco ainda podem dizer ao homem áspero do mundo pós-moderno. É nessa linhagem que se inserem os poemas de André Resende enfeixados neste livro. É uma poesia sem ênfases nem surpresas bruscas, que se desenvolve numa retesada espiral de razão e sentimento. O que surpreende o leitor, entretanto, é que vem ao mesmo tempo repleta de imagens que encantam pela precisão e novidade, como quando diz à mulher que “quando não olhas, quanto silêncio/ dedicas ao infinito”, congelando um momento mágico em que a ausência se torna prenhe de significados; ou quando afirma que “amamo-nos como se pisássemos em telhas”, para acentuar a delicadeza com que o amor pode (e deve) ser exercido. André Resende, que já mostrou seu talento em livros de ensaios e de ficção, agora revela a potência de sua poética, num livro ao mesmo tempo denso e sutil. (MP) Quem Disse Sim, André Resende, Cubzac, 56 páginas, R$ 17,00.
Socialismo Primeiro livro editado pela Companhia das Letras, há 20 anos, Rumo à Estação Finlândia é relançado agora dentro da coleção Companhia de Bolso, que reedita grandes títulos em formato de bolso, portanto, mais acessível no preço. Um dos mais importantes intelectuais norte-americanos, crítico de literatura e da história das idéias, seu autor, Edmund Wilson traça a história dos homens que procuraram mudar a história do mundo, desde a Revolução Francesa, em 1789, até a Russa, em 1917, criando a consciência socialista. Livro que agrada tanto aos especialistas quanto aos não-iniciados. Rumo à Estação Finlândia, Edmund Wilson, Companhia de Bolso, 576 páginas, R$ 28,00.
Cuidadoso panorama
Autor do delicadíssimo A Casa das Belas Adormecidas, livro “reescrito” por Gabriel García Márquez em Memórias de Minhas Putas Tristes, o também Prêmio Nobel (1968) Yasunari Kawabata tece em Kyoto um minucioso e cuidadoso panorama do processo de ocidentalização da Japão, no pós-guerra. Através do encontro de duas irmãs gêmeas, separadas quando crianças e criadas em ambiente hierarquicamente distantes, é contada a história da decadência dos comerciantes criadores de quimonos e outros objetos artesanais. A técnica da narrativa imita a perfeição destes trabalhos artesanais. Kyoto, Yasunari Kawabata, Estação Liberdade, 256 páginas, R$ 37,50.
Contemporâneos Co-diretor de exposições e diretor para projetos internacionais da Serpentine Gallery, o suíço Hans Ulrich Obrist entrevista neste livro cinco artistas internacionais, entre os quais o brasileiro Cildo Meireles, procurando esclarecer não apenas seus processos de trabalho como também suas concepções sobre arte. Vale a pena ler, por exemplo, a entrevista do italiano Maurizio Cattelan, um provocador profissional; as programações mirabolantes do norte-americano Matthew Barney (marido da cantora islandesa Bjork); ou ainda a delicadeza do dinamarquês Olafur Eliasson. Uma aula de arte contemporânea. Arte Agora! Em 5 Entrevistas, Hans Ulrich Obrist, Alameda Casa Editorial, 120 páginas, R$ 26,00.
Na prática
Segundo o professor Franklin Leopoldo e Silva, da USP, o ponto de vista pragmático que Kant adota na sua Antropologia, neste livro em que desejou que fosse “popular”, deriva de um humanismo progressista: “a cultura e a educação do gênero humano só fazem sentido se servirem ao aprimoramento de cada homem, e este é o significado profundo da vinculação do saber antropológico ao mundo humano. Não se trata de utilitarismo e, sim, de uma concepção profunda de que o homem é, para si mesmo, finalidade e não instrumento”. Esse conhecimento deve estar aberto à totalidade. Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático, Immanuel Kant, Iluminuras, 256 páginas, R$ 44,00. Continente fevereiro 2007
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
O idioma pede amor e respeito “A pátria é o idioma, e só no idioma pátrio a gente pode pensar bem e dizer besteira” Monteiro Lobato (1882 –1948)
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definição de cultura de Max Scheler (1874 – 1928): “Cultura é uma categoria do ser, não do saber e do sentir”, sempre foi, para mim, um milagre de aprofundamento de um conceito. Tal definição empobreceu todas as outras de natureza antropológica, sociológica, restrita ou operacional. Esta visão, mais milagrosa que ontológica, pode ter inspirado antecipadamente o grande poeta alemão, admiradíssimo por Goethe, Johann Gottfried Herder (1744 – 1803), ao dizer: “O verdadeiro poeta só deve escrever na língua materna”. Nós temos em língua portuguesa o exemplo de verdadeiro e grande poeta, Fernando Pessoa, que ficou famoso pelos seus poemas em português e não em inglês, a não ser para “essas gloriosas carcaças petulantes” (Agripino Grieco). T.S. Eliot foi até condescendente ao dizer que se poderia até pensar em língua alienígena, mas não sentir. Herder vai mais longe, ao dizer que “abraçaria a terra que é a minha mãe, pois o seu idioma deve ser a minha musa”. Esse nacionalismo de um poeta, como Herder, é algo parecido com amor ao próximo, (homens, árvores, águas) com a consciência de que faz parte de toda a espécie humana. Ou, mais simplesmente, ao escrever com essa visão, cria uma obra universal. Ao acreditar que a língua materna condiciona nosso modo de pensar, nosso intelecto, e até nosso aparelho fonador, Herder tenta mostrar que todo o seu mecanismo e exigências foram feitos exclusivamente para nós porque, além de tudo, como grande filósofo que também era, compreendia que a língua é uma força unitária dentro da confusa multiplicidade de línguas. Assim como Herder tem uma forte ligação com a língua, ao mesmo tempo poética e filosófica, as variadas categorias de homens usam e valorizam seu idioma de um modo particular. A grande maioria dá a ele exclusivamente o uso de comunicação oral. Os que sabem escrever dão um duplo uso, o da comunicação oral e o da escrita. Esta continua sempre presente no dia-a-dia de diversas profissões. A comunicação escrita atinge uma maior complexidade nos meios de comunicação impressa, os periódicos e os livros, o átomo e a luz. Por todos esses meios perpassa a alma da Língua, seu espírito ancestral. Alguns de seus códigos podem mudar, mas a sua alma, jamais. Seja há 5.000 anos a.C. ou 50.000 anos A.C. , na discordância dos antropólogos, o surgimento da escrita não importa, nem que sua aparição marcasse o fim da pré-história. Em todas as línguas do mundo a poesia é a quintessência da linguagem humana e, como disse Ezra Pound, “os artistas (poetas) são as antenas das raças”. No mundo arcaico e ágrafo, as aldeias se reúnem em seus rituais para dançar Continente fevereiro 2007
MARCO ZERO
e cantar, geralmente um conjunto de palavras repetitivas, paralelísticas. Essa é a época, poderia se dizer, da poesia oral, da proto-poesia. No século 9 a.C. viveu Homero, considerado o maior poeta de todos os tempos. Vivia peregrinando por toda a Grécia e declamando trechos de seus dois grandes poemas épicos, Ilíada e Odisséia, transmitindo-os oralmente. Não fosse o arconte persa de Atenas, Pisistrato, séculos depois, mandando pôr na escrita por uma equipe comandada por Solon, as duas obras se dispersariam no tempo. A escrita deu ao idioma integridade e perenidade. Os idiomas de todos os povos ganharam perpetuidade. O latim não é uma língua morta. Sua alma acendeu uma rede de línguas e paira, no mundo, na poesia de Horácio, Virgílio e Ovídio, autor do poema “O Poder da Poesia”, de que vale citar um pequeno trecho: “Os versos/ fazem descer os cornos da sangrenta lua/ e recuar os corcéis do Sol, brancos de neve;/ o canto esmaga a fauce aberta da serpente/ e faz retroceder à fonte a água corrente.” As línguas ditas mortas são o berço de outras línguas. Todo grande poeta ama a sua língua natal e procura fazer dela a linguagem original de sua poesia. Ele é o
guardião da beleza da língua que o ensinou a murmurar nos quartos escuros e decorar o que ia dizer à primeira namorada. Na mina de seu idioma, ele sabe encontrar a pepita mais brilhante, e sabe combinar estranhamente suas luzes no poema imortal. Mas, há também os poetas médios e pequeninos. Eles retiram o que podem daquela mina do idioma. A poesia é uma montanha que só faz crescer: os grandes poetas acrescentam-lhe um rochedo, os pequenos poetas nela depositam a sua pedrinha. Quando Guillaume de Machant criou a sua Nouvelle Rhétorique, no século 14, afastando a poesia da música, deu ao poema a sua autonomia e, ao mesmo tempo, reduziu o seu público. O que a poesia perdeu em público, ganhou em expressão, em complexidade e beleza. Basta enumerar os grandes poetas europeus, cada um em seu idioma, realizando maravilhas estéticas. O que era, na Idade Média, cantiga trovadoresca, ao som da viola e do alaúde, hoje é a canção popular, geralmente com refrão e paralelismo, que é repetição em qualquer parte da “letra”. Enquanto o idioma materno pulsa num grande poema ou num desafio de violeiros repentistas, uma grande parte da canção popular, no Brasil, presta reverência exagerada ao inglês. • Continente fevereiro 2007
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ARTES
Um artista em tempo integral Isabela Cribari
Arte, acrílica sobre tela
Mais de 20 anos depois da sua primeira exposição individual, o pintor Romero de Andrade Lima consolidou seu público e um frutífero mercado para suas obras Mariana Oliveira
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aralelamente à efervescência da produção contemporânea e seus suportes diversos, que vão da instalação à videoarte, alguns artistas pernambucanos seguem apostando seu talento na pintura. É assim, entre paletas, pincéis e tintas, que eles dão vazão à criatividade, através de um suporte que para alguns já está morto, para outros nunca morreu e para os mais conservadores divide com a escultura as duas únicas vias das artes plásticas. Polêmicas à parte, o importante é que há em Pernambuco grandes mestres na condução dos pincéis, entre eles o pintor Romero de Andrade Lima, que comemorou, em 2006, os 20 anos da sua primeira exposição individual. Sobrinho de Ariano Suassuna, Romero ligou-se ao mundo da arte ainda criança, devido à paixão pelo desenho. Viveu intensamente, na casa do tio, o início do Movimento Armorial e desenvolveu um gosto muito parecido com o de Suassuna, incorporando, mais tarde, o papel de aprendiz. Aos 14 anos, já era convidado pelo tio para levar seus trabalhos às exposições coletivas, mas sempre recusava. “Eu tenho até hoje uma maneira bem rigorosa de participar do universo da arte, quase que exclusivamente pelo caminho da arte. Eu não participei muito daquele mundo de alvoroço, de muita ação artística. Eu particularmente não tenho nada contra, gosto muito de ver, mas não tenho muita vocação para participar. Eu sou um artista de ateliê”, declara, numa conversa de fim de tarde no seu ateliê, no Poço da Panela.
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ARTES
O, hoje, pintor chegou a ingressar na Faculdade de Medicina, com a perspectiva de investir no ramo que estuda a relação da arte com a mente, porém depois de dois anos abandonou o curso. Numa segunda aposta de aproximar seu amor pela arte a uma profissão mais “concreta”, começou a cursar publicidade, mas a agitação e a correria exigida pela profissão também terminou afastando-o da profissão. Da medicina, trouxe para arte os apontamentos de Jung, com quem concorda, quando diz que a arte é um caminho explícito para a psiquê humana. Depois dessas tentativas, cursou História e, aos 23 anos, decidiu apostar na arte e tentar fazer dela seu meio de vida. Diferentemente dos artistas que produzem suas obras e paralelamente atuam em outros setores para garantir a sobrevivência, a aposta de Romero foi total: seu objetivo era conseguir viver da arte. Para isso, foi preciso uma grande articulação e uma certa constância. Não adiantava produzir esporadicamente, de maneira aleatória, sem se preocupar com a venda dos quadros ou com a formação de um público apreciador. Para conseguir estabelecer uma comunicação com seu público, o artista organizou-se para produzir obras e expor cerca de três vezes por ano. O trajeto natural dos seus trabalhos é a produção, exposição e, posteriormente, a venda. “Eu trabalho como trabalha um operário. Se você não mantiver um atendimento perfeito, não for fiel à produção, para que seu público tenha uma visão ampla do que você está fazendo, não funciona. Você tem que ter todos os rigores. Muito amigos meus optam por mais liberdade de criação e, ao mesmo tempo, têm empregos que garantam seus salários. Minha liberdade é gastar toda energia na arte”. Com seu método sistemático e eficaz, o artista termina tendo que abrir mão de participar de
A Viagem, acrílica sobre eucatex, 2006. Obra baseada em poema de Ariano Suassuna. Abaixo, Romero de Andrade Lima, que se declara um pintor armorial Fotos: Flávio Lamenha
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ARTES Isabela Cribari
Cristo Mortificado, acrílica sobre eucatex. Abaixo, O Sol, acrílica sobre tela Flávio Lamenha
exposições coletivas e da própria movimentação do universo da arte, por falta de tempo para novas empreitadas. Aparentemente, seu método de trabalho condiz perfeitamente com sua postura de um artista de ateliê. Os quadros, aquarelas e desenhos de Romero, predominantemente figurativistas, são assumidamente armoriais. Hoje, anos depois da explosão do movimento, seus traços continuam carregando a estética que une o popular ao erudito. “Mesmo se eu me distanciar por algum motivo, por causa do tema, sempre vai se encontrar o caminho ligado aos outros quadros e no próprio quadro individualmente você vai ver como ele chegou ali através do Movimento Armorial”. Além da estética, as temáticas também giram em torno de universos bem específicos: poemas, literatura de cordel, temas bíblicos, mitologia grega, homenagens a outros artistas... Os engenhos pernambucanos e a vida em Olinda dos séculos passados, o ainda hoje preservado lirismo de bairros como Casa Forte e Poço da Panela, a passagem do Zeppelin no Recife, a trajetória de Frida Kahlo, a destruição de Sodoma e Gomorra, são esses os universos visitados e revisitados por Romero. Em seus quadros, a partir das suas releituras, constrói seus próprios símbolos, que funcionam como uma verdadeira ponte com o humano, com a psiquê, como defendem Jung e o próprio artista. Sua primeira exposição individual, em 1986, baseou-se nos seus trabalhos iniciais, todos inspirados em poemas de Débora Brennand e em trechos de textos de Ariano Suassuna. Ele desenvolveu quadros através desse material, todos eles com as citações que serviram de inspiração grafadas, fazendo referência à tradição das iluminuras medievais. O traço medieval, menos perspectivado, presente em boa parte de suas obras, demonstra o gosto de Romero por elementos da arte medieval. No último semestre do ano passado, para marcar os 20 anos da sua primeira exposição, o artista selecionou as mesmas citações e recriou imagens líricas (sempre cunhadas nas raízes da cultura pernambucana), novos universos simbólicos, em novas obras. Continente fevereiro 2007
Fotos: Isabela Cribari
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"Tem uma coisa de humor na arte contemporânea que eu acho muito bom e talvez eu aprecie muito porque eu não tenho oportunidade de praticar"
São Sebastião, acrílica sobre tela
Sem Título, técnica mista/retrato de família
Mesmo com uma prática artística tradicional, sem a menor proximidade com a arte contemporânea, Romero crê que o campo das artes só tem a ganhar com essa expansão. Ao contrário de muitos artistas da sua linha, ele acredita que agora há um campo imenso para discussão. “Tem uma coisa de humor na arte contemporânea que eu acho muito bom e talvez eu aprecie muito, porque eu não tenho oportunidade de praticar”. E para aqueles que acusam a arte contemporânea de ser leviana, ele defende: “Há uma certa irritação por parte do não apreciador que acha que a obra foi feita levianamente. Eu sei que não é assim, porque eu convivi com artistas e há uma enorme discussão para se chegar ao resultado. Pode até existir uma produção irresponsável, mas isso acontece em todos os campos da produção humana. O real artista contemporâneo é tão rigoroso quanto o artista ‘convencional’ ”. A larga história no mundo da arte permitiu ao artista aventurar-se em outros campos. Nas artes plásticas, fez ilustrações para alguns livros e experimentou a escultura em barro, mas, como ele revela, nada lhe proporciona a exatidão do quadro. Os encantos da literatura também lhe seduziram e habituou-se a escrever histórias curtas para depois ilustrá-las. O material que estava guardado no fundo do baú foi resgatado, faz um ano, e está sendo publicado (texto + ilustração), uma vez por mês, nas páginas do Diario de Pernambuco. No campo audiovisual, conseguiu uma câmera com um parente e pôs em prática seu desejo de trabalhar com video. Conseguiu finalizar uma série, mas esbarrou na dificuldade encontrada por muitos: onde e quando exibir o produto final. Essa quebra no ciclo de produção, tão importante e valorizado por Romero, e a dependência dos festivais fizeram com que ele se afastasse do campo. Romero Continente fevereiro 2007
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ARTES Fotos: Flávio Lamenha
Frida Kahlo e Diego Rivera, acrílica sobre tela
A Dama do Poço, acrílica sobre eucatex, 2006
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ainda conseguiu exibir sua série, recolhendo, entre os amigos, televisões e videos para apresentá-los. Mesmo sem atuar diretamente na área, ele espera que no futuro tenha condições de manter um ateliê dedicado ao vídeo, para realizar projetos mais experimentais. Sem dúvida, foi no teatro que Romero encontrou sua segunda morada. No auge do Movimento Armorial, vivenciou de perto a montagem de textos do seu tio. Em 1989, trabalhou efetivamente com a cenografia e direção de arte, sempre dentro da estética armorial, da montagem As Cochabranças de Quaderna, um texto de Ariano Suassuna. Depois, foi chamado por Antonio Carlos Nóbrega, com quem trabalhou em mais de uma montagem, para fazer a direção de arte, desenvolvendo máscaras, cenários e figurino. Romero passou a fazer experiências próprias, sempre através de caminhos alternativos, projetos que ele define como “ultra-experimentais e pontuais”. Nos palcos, seu próximo trabalho foi encomendado pelo SESC Pompéia, em São Paulo: uma cantoria para ser apresentada durante a Quaresma. Outra vez vão entrar em cena os poemas de Ariano Suassuna e Débora Brennand, junto a algumas cantorias populares. Antes de dedicar-se à nova montagem, dia cinco de fevereiro, o pintor abre seu ateliê, pela primeira vez este
ARTES ano, para a exposição Carnaval, mostrando 20 aquarelas, alguns quadros de séries passadas e lançando as suas já tradicionais camisetas, quatro modelos, uma para cada dia de folia. Produzidas há 18 anos, inicialmente para que seus amigos brincassem o Carnaval, ganharam fama e hoje são comercializadas junto a suas obras. Nas aquarelas e no tecido o tema será os 100 anos do frevo e home-
nagens a artistas como Bajado e Lula Cardoso Ayres, que retrataram, em seus trabalhos, o frevo. Nessa exposição, Romero vai repetir seu ritual, abrindo seu ateliê, recebendo as pessoas, expondo e vendendo suas obras. • Carnaval – Exposição Aquarelas de Romero Andrade Lima Rua Soares de Azevedo, 167, Poço da Panela. De 5 a 16 de fevereiro. Informações: 9252.4222
Reprodução
O Urso e a Passista, aquarela sobre papel, 2007. A obra faz parte da exposição Carnaval
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
De Pollock a Da Vinci Antes da época moderna, quando a religião era detentora do poder intelectual e espiritual da sociedade, não se via a arte como um valor autônomo
“A
s pinturas de Jackson Pollock não querem dizer nada: elas são”, escreveu Octavio Paz. Creio que Pollock queria inventar o que dizer, fora do que a pintura existente dizia; queria, pela ação, ultrapassar as formas do dizer pictórico. Só era possível se propor a isso, crer nisso, porque a arte ganhara total autonomia: um quadro, uma escultura, não se referem senão a si mesmos, são obras de arte. Um quadro, uma tela (dentro de uma moldura ou não) é o espaço da arte, obra de arte em potencial. Logo, o que se pintar ali é pintura, arte. Não importa o que represente nem como se faça, com que técnica, dentro de que normas. Não há mais normas nem limites técnicos. Por isso, Pollock pode, dançando sobre a tela estendida no chão, deixar pingar nela a tinta à medida que ele se move – e isso é arte; o que daí resulte será “expressão”. Ninguém sabe o que significa, senão que é um modo outro de fazer arte. Diga o que disser, ou não diga – é arte. Por isso, não é de espantar que a arte tenha se tornado o que se tornou: hoje, já não apenas o que se faz na tela, mas também o que se faz fora dela, é arte. O que ocorreu? Inicialmente, com a eliminação da “mensagem” e da “representação”, a obra de arte tornara-se apenas forma – e toda forma tem expressão, conforme nos ensina a teoria da Gestalt. Logo, não tem o artista que se preocupar com o que sua obra diz ou representa: se toda forma tem expressão, ela fatalmente dirá alguma coisa – alguma coisa que não a motivou, que não está na sua origem, mas Continente fevereiro 2007
“está nela”, em todos os estágios de sua realização e de tal modo que, se o autor se detiver em qualquer momento de seu trabalho, a obra sempre significará algo e diferente do que significaria quando terminada. E quando estará terminada? Na verdade, como não pretende dizer nada anterior a si mesma, estará terminada a qualquer momento ou nunca. A arte, assim, não é mais dizer e, sim, apenas, fazer. Mas pode se dizer que a arte sempre foi, sobretudo, um fazer. Isto é certo, mas um fazer em função de um dizer que implicava um plano e um objetivo final. Hoje, o fazer do artista plástico, não só não parte de algo a dizer, como tampouco obedece a qualquer norma ou objetivo. Por isso, o significado surge do fazer e, portanto, cabe ao espectador e ao próprio autor decifrar o seu significado. Antes da época moderna, quando a religião era detentora do poder intelectual e espiritual da sociedade, não se via a arte como um valor autônomo. Conforme observa André Malraux, em Les Voix du Silence, uma escultura gótica era vista como o Cristo Crucificado e uma afresco como a Santa Ceia e não como obras de arte. A noção de arte como expressão autônoma nasce com o surgimento dos museus e do mercado de arte. Nos museus, as imagens religiosas estão num espaço dessacralizado, que nada tem da atmosfera mística das catedrais e dos conventos; no mercado de arte, por sua vez, elas se tornaram mercadorias, cujo valor monetário se expressa em suas qualidades estéticas e na sua raridade.
Reprodução
TRADUZIR-SE
Full Phantom Five, de Jackson Pollock, 1947, Nova York, Museum of Modern Art
Num ensaio célebre, intitulado “A obra de arte na época da reprodução técnica”, Walter Benjamin demonstrou como, ao perder o caráter de obra única, a obra de arte, por tornar-se produção industrial, perde a aura de objeto único, de original, uma vez que, nesse tipo de produção, a obra – seja um filme ou um automóvel – não tem original: o original do filme é um negativo e o do automóvel, um projeto. No seu modo de ver, durante séculos, a obra estava envolvida pela aura da religiosidade. Essa aura, na época moderna, com a autonomia artística da obra, transformase em aura estética que, por sua vez, segundo ele, foi desfeita em conseqüência das novas técnicas de reprodução, que deram fim à obra como objeto único. Ainda na opinião de Benjamin, não apenas as obras surgidas da produção industrial perderam a aura, mas também as que haviam sido criadas artesanalmente, como, por exemplo, a Mona Lisa. Ela teria deixado de ser uma obra
única, em função da reprodução gráfica, que a multiplica num número infindável de cópias que são, todas elas, idênticas ao original. Essa multiplicação do original, conforme o teórico alemão, liquidaria com a aura do objeto único, que era a obra de Da Vinci. Essa teoria, que gozou de grande prestígio no meio artístico, foi, ao meu ver, negada pela realidade. A multiplicação da Mona Lisa em cópias de grande fidelidade, em vez de desmitificá-la, mitificou-a ainda mais, tornando-a mais famosa a cada dia, o que motiva as pessoas a quererem conhecer a obra original. Basta uma visita ao Louvre para verificar a verdadeira multidão que se acotovela para deter-se por um minuto que seja em frente à mais célebre obra de arte que existe. E, se não bastasse, a teoria é negada também pela mitificação dos objetos industriais, como carros, gramofones etc., que são preservados por colecionadores no mundo inteiro. É que a eles se incorporou a aura da raridade ou da história. Não obstante, isso não anula o fenômeno decisivo que foi o reconhecimento da autonomia da expressão estética. Quando o quadro deixou de ser uma expressão religiosa para se tornar obra de arte, iniciou-se um processo que mudaria o curso da história da arte. • Continente fevereiro 2007
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Betânia Uchôa
A silhueta reconstruída da Frauenkirche Dresden vista à margem do Rio Elba
Frauenkirche Dresden Reconstrução ou montagem cênica?
A reconstrução arquitetônica de ruínas históricas pode ser vista como uma atitude anacrônica permeada de sentimentalismos banalizantes que não aceita o curso natural da vida e a iminência da morte Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle, de Dresden
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ARQUITETURA Betânia Uchôa
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Jörg Schöner
rquitetura é um documento sociológico e cultural de uma época e oferece a leitura de como sociedades contemporâneas e antigas desenvolveram técnicas e tecnologias, uso de materiais, concepção espacial e preferências estéticas, entre outros, que são testemunhos de modos e maneiras de pensar e viver de uma sociedade. Ao se reconstruir um monumento arruinado, comete-se um crime contra a história, nega-se o passado, misturando-se e camuflando-se elementos estranhos à sua configuração original, elementos estes, revestidos de falsidade tectônica. Uma atitude anacrônica permeada de sentimentalismos banalizantes que não aceita o curso natural da vida e a iminência da morte. A reconstrução arquitetônica nada mais é que uma montagem cênica desprovida de conteúdo artístico e histórico. Não se pode trazer de volta o tempo e reconstituir as condições de vida e de trabalho que determinaram a produção das arquiteturas pretéritas. Este é o caso da reconstrução da Frauenkirche Dresden (Igreja de Nossa Senhora de Dresden), monumental edifício barroco projetado por Georg Bähr que, já em 1748, domina e coroa a silhueta urbana da cidade. Bähr concebe a Frauenkirche com planta central em forma de cruz grega coroada por uma grande cúpula. Em fevereiro de 1945, o bombardeio aliado destrói 15km² do centro antigo de Dresden, matando 35.000 pessoas e reduzindo a Frauenkirche, localizada no Neumarkt, na área central da cidade, a um amontoado de pedras e ruínas. No pós-guerra, Dresden fica sob domínio soviético e durante todo o período de existência da DDR (Deutsche Demokratische
À esquerda, a Frauenkirche reconstruída em 2005. Em tonalidade escura, as pedras originais. Acima, altar central da Frauenkirche totalmente reconstruído em 2005
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ARQUITETURA
Betânia Uchôa
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Hiroshima – Memorial à Paz Mundial
Republik) a sua reconstrução não é prioridade governamental. Mesmo assim, centenas de pedras da igreja são catalogadas e inventariadas, ficando por décadas em um depósito aberto na Salzgasse. Aceno em direção a uma futura reconstrução do edifício? Em 1952, o órgão nacional de proteção dos monumentos, ao inspecionar as ruínas e o sítio, decide que a reconstrução da igreja deverá ser feita de acordo com princípios arqueológicos para reaver a sua aparência original, o que naturalmente não é realizado devido aos altos custos e a novas condições políticas que não tinham nenhum interesse em reconstruir um edifício religioso. Em 1949 – 59, o arquiteto Arno Kiesling realiza um minucioso projeto de reconstrução da igreja a pedido do órgão oficial de preservação de monumentos históricos e, nos anos 80, seminários internacionais reúnem experts das duas Alemanhas para discutir a construção do novo Neumarkt, e na maquete da área, a Frauenkirche ocupa o espaço central das propostas. Apenas a estagnação Continente fevereiro 2007
econômica da DDR impede a reconstrução da área e da igreja destruída. Mas não por muito tempo. As mudanças políticas de 1989 (o colapso das ditaduras comunistas na Europa Oriental e a reunificação da Alemanha) idealizam a formação de uma fundação intitulada – Ruf aus Dresden (o Apelo de Dresden) que vai trazer a questão da reconstrução da igreja para a atenção mundial com pretensões de incluir o edifício “na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco” (sic). Aí começa a espetacular viabilização dos 131 milhões de euros (custo total do empreendimento) que tomou proporções hollywoodianas, transformando o edifício em uma mercadoria patrimonial cujo marketing produziu objetos, relógios, camisetas, miniaturas, filmes, livros, relíquias com pedaços de pedras originais retiradas das ruínas (a exemplo do muro de Berlim), sombrinhas, copos, enfim tudo que pudesse ser con$umido e gerar recursos financeiros. Acrescente-se a isto as emocionais e milionárias doações
ARQUITETURA
Seidel & Kruse.
Trux Architekten/IBMDeutschland
Walter Hahn
Walter Hahn
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Da esquerda para a direita, acima: vista aérea do centro histórico de Dresden de 1943 com o Neumarkt e a Frauenkirche ao centro; à direita, Frauenkirche após o bombardeio de 1945. Abaixo, Ruínas da Frauenkirche no início da reconstrução e simulação computadorizada da reconstrução da Frauenkirche e do Neumarkt
provenientes de industriais alemães, do Dresdner Bank, empresas de televisão e doações particulares como a de Günter Blobel que entregou o cheque de quase 900.000 euros de seu Prêmio Nobel de Medicina. Voltemos ao final do século 19, quando doutrinas antagônicas de restauração são polarizadas por John Ruskin na Inglaterra e por Viollet-le-Duc na França. A dignidade da ruína é defendida por Ruskin em As Sete Lâmpadas da Memória, que combate veementemente a restauração intervencionista, ou seja, aquela que modifica e altera o espaço e a morfologia do edifício antigo reconstituindo seus elementos construtivos. Isto, para Ruskin, é um sacrilégio, uma profanação e “a mais completa destruição que um edifício pode sofrer”. Cada fragmento que se restaura, cada nova pedra que se talha e se insere em sua estrutura representa uma interferência inaceitável na vida do edifício. Seria como pretender “ressuscitar um morto”. Le-Duc, cuja contribuição é muito significativa, pois introduz pela primeira vez a restauração como matéria científica, vem propor a restauração idealizada do edifício antigo baseada em seu profundo conhecimento da arte e arquitetura medieval e defende a unidade da restauração estilística, permitindo-se inter-
venções radicais em edifícios praticamente arruinados, ou seja, um campo rico para suas hipóteses historicizantes e fantasiosas como a reconstituição o castelo de Pierrefonds a partir de suas ruínas e da fortaleza de Carcassonne. Mais tarde, em 1933, a Carta de Atenas, documento que reúne as recomendações do primeiro CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), se posiciona contra a cópia do passado na construção de edifícios novos, considerando-a uma falsidade e mentira. Reconhecendo o valor do patrimônio histórico das cidades, o CIAM, sem negar o valor da história, defende uma postura dialética, ainda hoje atual, entre a relação do edifício antigo e do novo que não tolera o “emprego de estilos do passado”, enfatizando a autenticidade da nova arquitetura. Também na Carta de Veneza (II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, 1964) a “manutenção das ruínas deve ser assegurada” e “todo trabalho de reconstrução, excluído a priori”. Há mais de um século que a reconstrução total de um monumento é combatida e para muitos (e eu compartilho desta posição), inaceitável. Envolve conceitos de falsificação, cópia e imitação que Cesare Brandi já em 1963, rejeita cientificamente em sua Teoria da ResContinente fevereiro 2007
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ARQUITETURA tauração, ainda hoje não superada. Assim, a reconstrução da Frauenkirche Dresden apenas produziu “o falso de si mesmo”. O fato é que Frauenkirche Dresden não era um edifício comum e, sim, um extraordinário exemplar da arte barroca alemã. Após sua destruição, seu valor artístico tornou-se inexistente e seu valor de antiguidade só teria significado como ruína, como fundamenta austríaco Aloïs Riegl, já em 1903, em Der Moderne Denkmalkultus ou o Culto Moderno aos Monumentos. Alternativas de intervenção seriam, a partir da teoria de Brandi, a reconstituição espacial da igreja barroca, que recomporia a verticalidade da silhueta urbana de Dresden, e nunca a reconstrução formal do edifício
que é vazia de legitimidade e autenticidade artística. Ou simplesmente, a que considero mais respeitosa e forte, a consolidação de suas ruínas, restaurando-se a sua dignidade enquanto vestígio e testemunho autêntico da história de Dresden e da Alemanha, aceitando-se assim o curso da história e da vida. Não satisfeitos com o “sucesso” do empreendimento, o poderoso grupo Gesellschaft Historischer Neumarkt Dresden se mobilizou para viabilizar e reconstrução total da praça e dos edifícios do entorno da igreja que já está quase toda concluída. O vírus da reconstrução se alastra rapidamente. A cidade-capital também está ameaçada, pois Berlim vive sob o risco iminente de abrigar em seu antigo centro, Berlin Mitte, um pastiche
Betânia Uchôa
Edifícios reconstruídos no centro antigo de Varsóvia
Varsóvia Um caso à parte A tentativa nazista de tirar Varsóvia do mapa fez com que a reconstrução total da cidade antiga e de seus monumentos fosse tolerada não como reconstrução das pedras da cidade, mas da alma e identidade dos poloneses Continente fevereiro 2007
ARQUITETURA de proporções gigantescas, pois, lamentavelmente, já está praticamente aprovada a reconstrução do Berlin Schloß, o castelo destruído pelo bombardeio da última guerra. O clima emocional e sentimental vai dominando o saber e a academia. No mundo inteiro, sem excluir o Brasil, cidadãos comuns, arquitetos e arqueólogos desprovidos de fundamentação teórica decidem sem embasamento científico o destino da cidade e do seu patrimônio. O que leva esta fascinação pela reconstrução da história? Como evitar esta histeria coletiva pelo passado forjado, celebrada pela mídia desautorizada como esmero de restauro? •
Reprodução
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destruição nazista na Polônia foi devastadora. A determinação de Hitler em erradicar a nação polonesa deixou o Starea Miasto, ou centro antigo de Varsóvia, sob toneladas de escombros e seus edifícios, depois de numerados, foram dinamitados de acordo com a sua importância cultural. A reconstrução do centro antigo de Varsóvia, que integra a lista do Patrimônio Cultural da Humanidade da Unesco desde 1980, foi defendida como uma questão de recuperação da identidade nacional. A deliberada tentativa nazista em transformar Varsóvia em uma tábula rasa, para construir a Die neue Deutsche Stadt (a nova cidade alemã), fez com que a reconstrução total da cidade antiga e de seus monumentos, apesar da controvérsia gerada entre experts de conservação em todo o mundo, fosse tolerada como caso extremo pela acentuada resposta emocional aos conceitos de patrimônio e nação. Tratava-se, então, não da reconstrução das pedras da cidade, mas da alma e identidade dos poloneses. Em Berlim, a Kaiser-Wilhelm Gedächtniskirche (Memorial da Igreja do Imperador Guilherme I), destruída pelo bombardeio em 1943, ainda hoje é uma referência e alternativa às reconstruções historicizantes. Egon Eiermann, arquiteto modernista alemão, autor do projeto (1959 – 61), consolida as partes restantes da igreja neoromânica, deixando evidente seu estado de ruína e insere formas contemporâneas de concreto e vidro que remetem à espacialidade do edifício, garantindo sua releitura. O memorial contra a guerra e destruição, ins-
Projeto de reconstrucão do centro de Varsóvia
talado em 1987, transmite uma atmosfera de respeito e reflexão. Em Hiroshima, o antigo Salão da Promoção Industrial, localizado próximo do local exato onde explodiu a bomba atômica, é tudo que sobrou da explosão. A Unesco protegeu as estruturas retorcidas e arruinadas do edifício, incluindo-a em 1996 na lista Patrimônio Cultural da Humanidade. A ruína, consolidada e preservada, foi transformada no Genbaku Dome, ou Memorial à Paz Mundial e é o único testemunho da “força destrutiva mais poderosa criada pela humanidade”, expressando ainda a esperança de paz entre os povos e a eliminação definitiva das armas nucleares. Se reconstruído, o edifício seria insignificante e desprovido de qualquer mensagem e significado. Em Olinda, a restauração da Catedral de Sé, construída em 1631, opta pela eliminação das contribuições formais que o edifício incorporou ao longo de seus três séculos de existência e, adotando a doutrina de Violletle-Duc, busca a unidade estilística do templo. A catedral, construída em 1631, adquiriu durante o tempo feições neo-gótica e neo-barroca, mas retorna a uma hipotética reconstrução das características arquitetônicas do século 18. • Continente fevereiro 2007
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Design Atividade transversal do conhecimento O Istituto Europeo de Design (IED), com sede em Milão e filiais em Roma, Veneza, Turim, Madri, Barcelona e São Paulo, chega ao Rio de Janeiro a partir de 2008 André Luiz Barros
Laboratório de Moda no Instituto Europeo di Design, em Milão. No detalhe, sala de recepção da sede de Barcelona
DESIGN Raro e precioso caso de instituição nascida, há 40 anos, em Milão, do sonho de Francesco Morelli, que a mantém sem fins lucrativos, o Istituto Europeo de Design tem criado uma rede ativa de alunos e professores, reproduzindo a estrutura global em seus próprios quadros, tanto no que toca à internacionalização desses quadros, quanto à pluralidade de conhecimentos. “Uma característica do design é ser uma atividade transversal do conhecimento, isto é, o designer é formado a partir de uma série de experiências que tocam diversas áreas do saber, e o aluno poderá se identificar e, conseqüentemente, desenvolver o seu perfil”, explica Mauro. Tradicionalmente, o IED é dividido em “Communicazione” (comunicação), “Design”, “Art visive” (artes visuais) e “Moda”. Na cidade-sede, Milão, cada divisão tem um endereço diferente. Logo se vê que o instituto visa ao mercado, mas sem perder de vista a amplitude possível das artes visuais em geral. Nos bancos das aulas de “Art visive”, por exemplo, saíram ilustradores com assinatura e estilo próprios. “Sem dúvida vivemos em um mundo estetizante, onde a necessidade de objetos de desejos é crescente, o que tem valorizado a função do designer e Imagens: Divulgação
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o passado, a Itália ensinou ao mundo como desenhar o homem e a natureza, estabelecendo o padrão ocidental de representação através da pintura. A Itália de Da Vinci, Michelangelo, Rafael e Ticiano ainda tem o que oferecer no domínio das artes gráficas e do desenho. Só que, agora, a contribuição se volta para a indústria, o marketing, a moda e a mídia, na fronteira entre estética e mercado. O Istituto Europeo de Design (IED), com sede em Milão e filiais em Roma, Veneza e Turim, na Itália, Madri e Barcelona, na Espanha, além de São Paulo e, a partir de 2008, Rio de Janeiro, no Brasil, é um sintoma da adaptação daquela ancestralidade artística aos tempos globalizados. “O design, em suas diferentes áreas, é uma atividade eminentemente estética e, portanto, ligada às artes. Mas é importante considerar que ele nasce com a indústria, onde a escala de produção em série e suas implicações são dados determinantes. O resultado do trabalho é sempre um produto de consumo visando o bem-estar do homem”, diz Mauro Ponzè, ex-diretor do IED de Barcelona, já estabelecido no Rio de Janeiro para coordenar a implantação do instituto na cidade.
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potencializado o mercado de trabalho. A questão é que nossa intenção não é somente formar designers afinados com as tendências dos mercados, mas sobretudo criar profissionais capazes de reconhecer novas realidades, e serem verdadeiramente criadores de tendências”, diz Ponzè. Como se vê, hoje a postura ampliada das artes da visão se justifica não pela busca exclusivamente estética, mas por conta da volatilidade e transformação incessante da própria indústria. No IED, os alunos em geral optam por um master (mestrado) de um ano de duração ou por um doutorado nos moldes universitários, de até três anos. Não há dúvida que um de seus charmes é a rede internacional que se forma: “No IED de Barcelona, nada menos que metade dos alunos vinham de outros países. Tinha gente da Suécia, da Noruega, da Argentina, da Ásia etc. O diálogo multicultural é permanente, e fundamental”, diz Ponzè, que revela já haver uma fila de professores querendo ministrar cursos na nova filial carioca, dada a fama de Cidade Maravilhosa. “Nossa postura é o que se chama de ‘glocal’: internacionalizamos idéias e conhecimentos, mas damos atenção aos elementos característicos de cada contexto local. Isso dá a nossos alunos uma capacidade de olhar para além dos códigos e conceitos locais, mas sem perdê-los de vista. Ele valoriza o local, transformando-o”, completa Ponzè. Com cerca de 3.500 alunos e 700 professores, a sede, em Milão, espalhada por três prédios, é a mais ampla. Quando se fala em Milão, é óbvio, lembra-se de moda, área de destaque dos recémformados no instituto. “O IED vê a moda como um sistema integrado de múltiplas expressões sociais. O designer de moda é provavelmente o profissional, entre as várias áreas das artes aplicadas, que mais precisa desenvolver a capacidade de observar e interpretar as manifestações das tendências, os códigos visuais e a evolução dos hábitos expressos por meio da roupa que usam. Os êxitos de muitas empresas de moda que produzem estilos urbanwear & streetwear, nestes últimos anos, são exemplos representativos disso. Continente fevereiro 2007
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Ao lado, imagens para cartas de tarô, elaboradas pelas alunas do IED – Marianna Fulvi, Margherita Premuroso e Elena Prette. Abaixo, à esquerda, Dellagostino, fotografia de Veronica Dell'Agostino, do Curso de Encenação para Fotos, do IED; à direita, prédio do IED em Barcelona
Ao mesmo tempo, o fashion-designer tem que amadurecer o poder de convencimento junto às empresas, para propor inovações que tragam visibilidade e êxito no mercado”, explica Ponzè. Nos bancos do IED se aprende desde a lustração de coleções até a apresentação em reuniões com os clientes. É fácil entender que o instituto se volta muito mais para os estilos mais contemporâneos e periféricos aos das grandes firmas francesas e italianas de prêt à porter: ele se interessa sobretudo pela mudança de ventos estéticos. No Rio, planeja-se relacionar exposições e mostras de final de período letivo a eventos como o Rio Fashion Week. “No Rio, cidade muito voltada para os eventos artísticos, de moda ou entretenimento, o IED pretende ser um pólo de atração de público em geral, com muitas exposições, e não apenas os cursos regulares”, diz Ado Azevedo, arquiteto gaúcho radicado no Rio que já deu aulas no IED de Milão e foi escolhido para a prestigiosa tarefa de desenhar o projeto de restauro do edifício onde se localizará o instituto, no aprazível bairro da Urca, debruado na Baía de Guanabara, de frente para a enseada de Botafogo e o Cristo Redentor. Nos anos 30 e 40, o edifício abrigou o glamoroso Cassino da Urca, onde Carmen Miranda decolou para a fama nos Estados Unidos, e, nos anos 50 e 60, a também mítica TV Tupi, de Assis Chateaubriand. “O prédio tem vocação para ser um centro produtor e irradiador de cultura, e continuará a sê-lo”, diz Ado, que tomará muito mais o Cassino do que a Tupi como referência ao traçar seu projeto. Ali se verão, certamente, os desfiles de final de semestre, com os trabalhos dos alunos-estilistas, comuns nas sedes de Milão, Barcelona, Turim ou Roma, como o My Own Show (Meu próprio show), com direito a patrocínio da revista Vogue. Se a moda, o design voltado para a apresentação de produtos (de automóveis a talheres), para o marketing e a publicidade e para a ilustração em geral são a base dessa nova estética mercadológica, bem ao gosto do mundo de hoje, nem a gastronomia tem escapado da caneta e dos mouses dos alunos do IED. “Abrimos em Milão o curso de food design e foi um sucesso”, anima-se Ponzè, que localiza a virada estetizante da cultura e da indústria ali pelos anos 1950. “A partir de meados do século 20, o design se solidificou nos países industrializados e se tornou uma atividade protagonista das transformações operadas na cultura industrial. Nos últimos anos, com a globalização da economia, ele assume a linha de frente nas empresas, gradativamente superando a função ‘técnico/estético’ para exercer um papel fundamental nas estratégias de gestão de imagem e de posicionamento das corporações no mercado mundial”, resume. • Continente fevereiro 2007
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Astúcia e sabedoria dos provérbios populares (I de II) “ A astúcia é a coragem dos pobres", Ariano Suassuna (Auto da Compadecida)
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rosto de um povo vai se formando devagar, como um quebra-cabeça de peças soltas que vão se juntando aos poucos – esquinas, paisagens, imagens que ficaram na memória, o território da infância, religiões, cantos, danças, festas populares, superstições. Também, e esse é o tema do qual nos ocuparemos, dizeres e sabores. Pela alimentação se compreende o caráter de uma nação. Esse jeito mágico de transmitir idéias é tão importante que, no Antigo Testamento, até existe um Livro dos Provérbios atribuído a Salomão (997 a. C.). Esse terceiro rei de Israel ficou famoso por sua sabedoria. Foi ele quem mandou dividir o filho em dois, com um facão, para saber qual a verdadeira mãe. Por esses provérbios, ensinava a sua gente regras de justiça, disciplina e boa convivência. Mas se nos textos bíblicos provérbios lembram Salomão, no Nordeste brasileiro evocam sobretudo o grande Mário Souto Maior. Estão por toda a vasta obra que deixou. Especialmente Alimentação e Folclore – em que revela como, por força da repetição, esses ditos populares se enraizaram em nossa cultura popular e profunda. Por eles se pode compreender a própria alma generosa do nosso povo. Curiosamente, e com o passar do tempo, acaba-se por perder o sentido original de alguns desses “provérbios culinários”. De tanto responder perguntas veio a intenção de fazer uma primeira relação deles. Dada à extensão do texto, nessa primeira parte seguem alguns deles. Na próxima edição dividiremos, esses provérbios, em quatro grupos: o dos que necessitam explicações, para uma compreensão melhor; o dos que pedem informações culinárias; o dos politicamente incorretos; e, por fim, aqueles que requerem dados históricos. Assim, juntando provérbios espalhados em cordéis e livros de tantos autores, ou citados de memória, aqui vão nesse texto que deve ser visto como gesto explícito de reverência e louvação a Mário Souto, nosso mestre Maior.
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Fotos: Leo Caldas/ Titular
SABORES PERNAMBUCANOS
Água “Água dá, água leva”. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. “Águas passadas não movem moinho”. “Gato escaldado tem medo de água fria”. “Não suje a água que vai beber”. “Nunca se diga dessa água não beberei”. Alho “Em tempo nevado o alho vale um cavalo”. “Não confunda alhos com bugalhos”. Angu “Debaixo do angu tem carne”. “Quem tem pena de angu não cria cachorro”. Azeite “A verdade e o azeite andam em cima”. “Azeite, vinho e amigo, melhor o antigo”. “Quem azeite mede, as mãos mela”. Azeitona “Nem bebas da lagoa, nem comas mais que uma azeitona”. “Uma azeitona ouro, segunda prata, terceira mata”. Banana “Banana madura não agüenta no cacho”. “Macaco quando não pode comer banana diz que ela está verde”. “É com banana e bolo que se engana os tolos”. Bife “Mulher é como bife: quanto mais a gente bate mais ela fica macia”. Biscoito “Homem é como biscoito: vai um e chega oito”. Boca “Quem tem boca não manda soprar”. “Quem tem boca vai a Roma”. Bode “Bode quando espirra anuncia chuva”. “Para quem ama, catinga de bode é cheiro”. Boi “Cerca ruim é que ensina boi a ser ladrão”. “Do boi manso me guarde Deus, que de bravo me guardo eu”. “O boi é que sobe, o carro é que geme”. “O caso eu conto como o caso foi, porque homem é homem e boi é boi”. “Pelo andar dos bois, se conhece o peso da carroça”. “Quem tudo contou, com bois não arou”.
Bolacha “Mulher é como bolacha que em toda a parte se acha”. Cabra “A cabra puxa sempre para a serra”. “Não há doce ruim nem cabra bom”. “Prendam suas cabras que meus bodes andam soltos”. Cabrito “Bom cabrito não berra”. Cachaça “Com cachaça até o frio é quente”. “Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça”. “Não vem não, cachaça, que eu bebi leite”. “Mulher, briga e cachaça estão sempre na praça”. Café “Amizade remendada, café requentado”. “O amor é como café: quando esfria, perde o sabor”. Caju “Caju é que nasce de cabeça para baixo”. “Cajueiro doce é que leva pedrada”. “Homem é que nem caju: por doce que seja, sempre tem ranço”. “Quando você ia para os cajus, eu já voltava das castanhas”. Camarão “Camarão que dorme é levado pelo rio”. “Na enxurrada é que o pitu larga os dentes”. Cana “Ninguém toca flauta e chupa cana ao mesmo tempo”. “Quem chupa cana não assovia”. Canja “Canja e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”. “Dar uma canja”. “De caldo requentado e amigo reconciliado nunca se faz um bombocado”. Capão “Nunca mulher perdida amou homem honrado, nem galinha gorda a capão”. Caranguejo “Para não ser enforcado, caranguejo não tem pescoço”. “Quando o mar briga com a praia, quem apanha é o caranguejo”. “Quem anda pra trás é caranguejo”. Carne “Em terra onde não há carne, espinha de peixe é lombo”.
“Quem come a carne que roa os ossos”. Carneiro “Amanhã, amanhã, o carneiro perdeu a lã”. Coco “Coco velho é que dá azeite”. “Quem nasceu para ralar coco morre de cócoras”. Coelho “Dessa mata não sai coelho”. “Matar dois coelhos de uma cajadada”. Comer “Comer e coçar é só começar”. “Comer para viver, e não viver para comer”. “Quem não trabuca, não manduca”. Colher “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Cumbuca “Macaco velho não mete a mão em cumbuca”. Empada “Não coloque azeitona na minha empada”. Erva “A má erva depressa nasce e tarde envelhece”. Farinha “De pouca farinha, meu pirão tem medo”. “Deus me dê pai e mãe na vida, e em casa, trigo e farinha”. “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Farofa “Gato com fome come farofa de alfinete”. “Muita farofa é sinal de pouca carne”. Feijão “Feijão é que escora a casa”. “Político é como feijão, na panela só sobe o podre”. Fome “A fome é o melhor tempero”. Frango “O frango de hoje é preferível ao galo de amanhã”. Fruta “A fruta proibida é a mais apetecida”. “De boa árvore, bons frutos”. Galinha “A galinha da vizinha é mais gorda do que a minha”. “De grão em grão a galinha enche o papo”. “Galinha que canta é que é a dona dos ovos”. “Galinha velha faz bom caldo”. Continente fevereiro 2007
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Galo “Ainda que o galo não cante, a manhã sempre rompe”. Garapa “Garapa não azeda”. Goiaba “Quando a barriga está cheia, toda goiaba tem bicho”. Goma “Barato que só bolo de goma”. Jacaré “Jacaré é pra quem é, e não pra quem quer”. Jenipapo “Jenipapo de muleta quem não pode não se meta”. Jumento “Gravata de jumento é chocalho”. “Quem fala muito dá bom-dia a jumento”. Laranja “Laranja: de manhã é ouro, de tarde é prata, de noite mata”. “Laranja madura, na beira da estrada, é azeda ou está bichada”. Lebre “Não venda gato por lebre”. Leite “A cabra da vizinha dá mais leite do que a minha”. “Leite de vaca não mata bezerro”. “Não chores o leite derramado”. Limão “Transforme sempre limão em limonada”. Língua “Língua não tem osso, nem banana tem caroço”. Lingüiça “Não se amarra cachorro com lingüiça”. “Quando não há lombo, lingüiça como”. Maçã “Ora pela pêra, ora pela maçã, minha filha nunca é sã”. Manteiga “Na boca do cão não busques o pão, nem no focinho da cadela a manteiga”. “Quando o pão do pobre cai no chão, cai sempre com a manteiga virada para baixo”. Mel “Com açúcar e com mel até as pedras sabem bem”.
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“Quem nunca come mel, quando come se lambuza”. Milho “A melhor espiga é para o pior porco”. “Papagaio come milho e periquito leva a fama”. Mingau “Não sou colher de pau para mexer mingau”. Nozes “Deus dá nozes a quem não tem dentes e dá dentes a quem não tem nozes”. Ostra “Da ostra sai a pérola”. Ovelha “A ovelha mansa mama na sua teta e na alheia”. “Cada ovelha com sua parelha”. Ovo “Não se faz omelete sem quebrar ovos”. “O ovo de hoje vale mais do que a galinha de amanhã”. Pão “Casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. “Nem mesa sem pão, nem exército sem capitão”. “Pão do vizinho tira fastio”. “Vale mais pão duro que figo maduro”. Pato “Pato, pombo e parente só servem para sujar a casa da gente”. Peixe “Caiu na rede, é peixe”. “Filho de peixe é peixinho”. “Filho de peixe não aprende a nadar” “Grandes peixes se pescam em grandes rios”. “O hóspede e o peixe aos três dias fedem”. “Peixe morre pela boca”. “Se deres um peixe a um homem, matarás sua fome; se o ensinares a pescar, ele nunca mais terá fome”. Pepino “De pequenino é que se torce o pepino”. “Pepino que nasce torto nunca se endireita”. Pera “Quem não quer dar suas peras, não espere das alheias”.
Peru “Mulher que vive na rua vira perua”. “Peru é que morre de véspera”. “Peru quando faz roda quer minhoca”. Pimenta “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Pombo “Mais vale um pombo na mão que dois voando”. Porco “Porco sabido não se coça em pau de espinho”. “Quem com porcos se mistura, farelos come”. “Um porco não pode ver outro limpo”. Queijo “Amor sem beijo é como macarrão sem queijo”. Sardinha “Cada um puxa a sardinha para sua lata”. Semente “Ninguém fica pra semente”. Siri “O siri magro carrega água para o gordo”. Sopa “Do prato à boca, perde-se a sopa”. “Em velha gamela também se faz boa zsopa”. “Sopa, café e casamento só prestam quando estão quentes”. “Sopa fervida alarga a vida”. Tatu “Quem nasceu para tatu morre cavando”. “Tatu velho não esquece o buraco”. Uva “Uvas, pão e queijo, sabem a beijo”. Vaca “A vaca que não come com os bois, ou comeu antes ou comerá depois”. “De uma vaca não se podem tirar duas peles”. Vinho “A mulher e o vinho tiram o homem de seu juízo”. Vitela “Quando pobre come vitela, um dos dois está doente”. •
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Colunismo social II
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ovos exemplos do até hoje inimitável estilo morde-e-assopra daquele paparicado colunista social que tinha uma maneira própria de tratar as pessoas citadas na sua coluna: sempre elogioso, mas nunca deixando 2. ROTA DA MOCHILA de ser veraz (deixou recentemente o jornalismo ao ser Homenageada pelos amigos, na data do seu aninomeado fiscal do consumo): versário, a sra. Florentina Gusmão, conhecida como a mais bem-sucedida mochileira da rota Ciudad 1. PREOCUPAÇÃO SOCIAL Leste – Rio – Curitiba – São Paulo. O fato de estar gozando de uma circunstancial prisão domiciliar que lhe foi imposta pela Receita 3. MUNDO GLOBALIZADO Federal não tem impedido o elegante e refinado Almoçando,como de hábito, numa grande roda Larozildo Piraquê de disputar renhidas partidas de do Clube de Tênis de Brasília, o ativíssimo e engolfe nos greens carioca e paulista, sempre em volvente lobista Serapião Monte Branco, atualmente companhia de outros graúdos indiciados. Marido empenhado em fazer passar no Congresso uma lei exemplar, Larozildo está sempre acompanhado de que favorece largamente a indústria de brinquedos da sua devotada esposa, Cremilda Piraquê, conhecida Alemanha e do Japão. pelas obras sociais que vem realizando em São Aos que o acusam de agir contra a indústria braConrado e na Barra. É dela, aliás, o projeto que sileira, Serapião, sempre bem-humorado, costuma pretende submeter à apreciação do prefeito, erguen- responder que tais acusações partem de um grupelho do em local nobre deste bairro uma clínica dedicada de nacionalistas vesgos e anacrônicos, cuja visão exclusivamente a delinqüentes e viciados juvenis das tupiniquim não alcança os milagrosos efeitos da classes financeiramente mais dotadas. globalização. •
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Um olhar sobre o abismo A estrutura abismal – mise en abyme – nas artes plásticas, no cinema e na literatura Eduardo Cesar Maia
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ma obra dentro da obra, a ficção dentro da ficção: a célebre cena do drama shakespeariano em que Hamlet pede para que uma companhia teatral encene diante da corte o assassinato do seu pai, o rei Hamlet, a fim de desmascarar os culpados, observando a reação deles à peça, é um exemplo clássico e bastante citado de mise en abyme. “Relato interno”, “duplicação interior”, “composição em abismo”, “construção em abismo”, “estrutura em abismo”, “narração em primeiro e segundo graus”. Todas essas denominações se referem, em português, a uma técnica narrativa, inspirada originalmente em procedimentos encontrados nas artes plásticas (pintura) e que, posteriormente e com as adaptações necessárias à especificidade de cada forma de arte, chegou à literatura e ao cinema. Tal técnica consiste em colocar uma história dentro da história, como um enclave – uma narração secundária que de algum modo se desenvolve a partir da ficção original. No ano de 1891, o escritor e ensaísta francês André Gide utilizou e teorizou sobre o termo mise en abyme em seus Diários. Era a primeira vez que, em literatura, a nomenclatura era empregada – anteriormente tinha sido utilizada no estudo dos brasões (heráldica); o abyme (abismo) era uma reprodução em miniatura, no centro do escudo, da sua própria forma total, o que dava uma Continente fevereiro 2007
A obra dentro da obra: a mise en abyme funciona como um reflexo, um espelho da obra que o inclui
sensação de repetição infinita do mesmo. Os escritores do nouveau roman utilizaram com freqüência o procedimento, que se tornou quase uma marca do movimento. Os jogos de espelhos dentro da narrativa, para o leitor ou espectador mais atento, permitem alternar os momentos de realidade da vida com os da realidade da obra de arte: uma recriação da experiência da vida real imiscuída à experiência criativa e estética. É importante ter em mente que o reflexo do fragmento incluído não possui sempre o mesmo grau de analogia com a obra que o inclui, variando de acordo com a interação que o artista quer estabelecer entre os níveis da narrativa.
Reprodução
Para Lucien Dällenbach, principal teórico deste conceito, mise en abyme é “todo fragmento textual que mantém uma relação de semelhança com a obra que o contém”, funcionando como um reflexo, um espelho da obra que o inclui. Autores como Shakespeare, Borges, Kafka ou o próprio Gide utilizaram essa estrutura para colocar em xeque o próprio conceito de ficção e, por conseguinte, a própria definição de real. Alguns estudiosos acreditam que essa forma metanarrativa gera uma sensação de maior ficção (como se o leitor fosse ainda mais atraído para o jogo da criação), porém, outros autores pensam que o recurso alerta o público-leitor para a “irrealidade” da trama.
Pintura – Um dos exemplos mais famosos e característicos da mise en abyme nas artes plásticas é o quadro L’atelier (1672), do holandês Vermeer. Anteriormente, o seu patrício Jan Van Eyk havia introduzido um espelho dentro da pintura que refletia o próprio quadro em seu O Matrimônio dos Arnolfini (1434). Talvez o pintor que levou essa construção a seu ponto mais interessante e radical tenha sido o espanhol Diego Velásquez. A mise en abyme verificada numa pintura como Las Meninas, por exemplo, diferencia-se dos exemplos anteriores porque, de certa forma, radicaliza o jogo de perspectivas dentro de uma só tela. Isso não era comum na pintura holandesa, porque os espelhos costumavam Continente fevereiro 2007
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CULTURA mise en abyme toma nas narrativas literárias. O teórico tipificou três categorias de composição em abismo: duplicação simples, quando um fragmento da obra reflete a totalidade da estrutura original; duplicação ao infinito, quando o fragmento inclui outro fragmento, que inclui outro..., dando a sensação de infinitude e indeterminação; duplicação aporística, quando o fragmento inclui a própria obra que o inclui, numa espécie de círculo vicioso que trava a progressão para outros níveis. O próprio André Gide atesta a manifestação da mise en abyme em obras anteriores a sua, como o Hamlet, de Literatura – Dällenbach, a partir das idéias de Gide Shakespeare, A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan e, particularmente, do romance Les Faux – Monnayeurs Poe, no Wilhelm Meister, de Goethe e nas várias narrativas (Os Falsos Moedeiros), analisou as formas que o recurso da dAs Mil e Uma Noites, em que Scheherazade, para escapar da morte (narrativa principal), utiliza-se da artimanha de inventar histórias todas as noites (narrativas secundárias), sempre deixando o final delas para o outro dia, com o intuito de que o rei Shahryar adie mais uma vez a sua execução. Cervantes é outro que nos oferece um exemplo muito claro. Dom Quixote e Sancho Pança, seres ficcionais, reconhecem-se como tal: são conscientes de sua própria condição de personagens literários. A riqueza do Quixote está, entre outras coisas, na construção de um universo em que ficção e realidade não estão muito bem demarcados: o jogo constante entre os narradores, os manuscritos com versões diferentes sobre a história narrada, os relatos paralelos e as discussões de crítica e teoria intercalados. Essa espécie de autoconsciência ficcional ou narrativa é uma das formas da mise en abyme em literatura, e se dá, como no exemplo do O Matrimônio dos Quixote, quando a ficção se Arnolfini, do holandês Jan Van volta e pensa sobre si mesma. Eyk: o espelho dentro da pintura Uma outra forma de comreproduz o próprio posição em abismo, a duquadro duplicar o que já aparece. No caso de Las Meninas, usando as palavras de Foucault, “de todas as representações que o quadro representa, ele é a única visível; mas ninguém o olha”. Assim, para o filósofo, modelo e espectador invertem seu papel infinitamente, como num espetáculo de “jogos de olhares”, quer dizer, de referências e perspectivas. Está aí a estrutura abismal da obra, no sentido de que nosso olhar é posto em uma cadeia infinita de reflexos, levando-nos a questionar a realidade ou ilusão daquilo que presenciamos.
Imagens: Reprodução
CULTURA
O jogo de espelhos e perspectivas em Las Meninas, de Diego Velásquez, sofreu uma "releitura" pelo gênio cubista de Picasso
Minha Mãe, sua obra-prima. Em meio aos acontecimentos dramáticos da narrativa principal, os personagens, que também são atores na ficção, encenam num teatro a obra de Tennessee Williams, Um Bonde Chamado Desejo. Dessa forma, o diretor, que foi também o roteirista, consegue estabelecer tantas conexões entre as ficções que a história criada por ele e a famosa peça de Williams parecem se confundir, tanto na forma quanto no conteúdo. Como diria um crítico pósmoderno: Almodóvar “releu” a obra do dramaturgo americano. Filmes cultuados como 8 e Meio, de Federico Fellini; A Mulher do Tenente Francês, de Karel Reisz; A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen; Quero Ser John Cinema – Os diretores de cinema descobriram na Malkovich, entre outros, também se utilizam da mise en mise en abyme um elemento bastante interessante para a abyme de diferentes maneiras. construção de roteiros. As possibilidades técnicas do * * * cinema o tornam talvez o meio em que a construção em abismo pode ser mais amplamente explorada. O proceHá, ainda hoje, muitas discussões sobre a utilização dimento, bastante usado, já pode ser considerado comum do termo mise en abyme. Não existe uma definição na história da cinematografia. Realização perfeita da mise en abyme no cinema, A Noite rigorosa para o termo e por isso muitas vezes ele é toAmericana, de Françoise Truffaut consegue mostrar, no mado de forma simplista e aplicado a qualquer forma mesmo filme, três níveis distintos de narrativa: a rodagem metanarrativa: “quando a ficção vive na ficção”, na defidele mesmo, com os atores reais; a projeção das cenas nição de Borges. Contudo, na acepção de Gide, é necesrodadas numa saleta para o próprio elenco; e o filme sário que a estrutura em abismo guarde a característica de reflexividade, quer dizer, o fragmento colocado deve dentro de A Noite Americana – Je Vous Présent Pámela. Outro caso de interessante realização cinemato- manter uma relação especular com original, refletindo gráfica é o filme de Pedro Almodóvar, Tudo Sobre a por semelhança ou mesmo por contraste. • plicação ao infinito, pode ser observada em Contraponto, de Aldous Huxley: um personagem, Philip Quarles, que é escritor, imagina um romance no qual um homem (também escritor) escreve um romance no qual um homem também escreve... E assim indefinidamente. O interessante é que essa estrutura abismal acaba permitindo que os próprios leitores, percebendo com mais nitidez a natureza do ficcional no jogo de relações entre os personagens da obra central e os da narrativa secundária, gozem de forma mais consciente de tal experiência estética. Essa forma de composição possibilita também a captação simultânea dos elementos que entram em atividade na narração, sua inter-relação e o modo de seu funcionamento.
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Bahia de Camamu, BA
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Homens ao mar O fotógrafo Roberto Linsker apresenta uma verdadeira documentação da costa brasileira, centrada na figura do pescador artesanal
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ão é novidade o sentimento de incerteza que o mar causa nos homens. Há tempos, acreditava-se na existência de monstros, criaturas horrendas que atormentariam as águas mais profundas. Porém sempre existiram os homens do mar, que fizeram e fazem da maré uma segunda casa, encontrando conforto no leva-e-traz das ondas. Foram oito anos de trabalho, nos quais o fotógrafo Roberto Linsker perseguiu esses homens, do Oiapoque ao Chuí, e registrou em imagens expressivas não só o ato de pescar, mas formas de viver do mar, nos oito mil quilômetros de costa brasileira. Apesar do avanço da pesca industrial, a pescaria artesanal, realizada em jangadas e por pequenas embarcações, é o sustento de muitas famílias do país, colocando a comida na mesa e movimentando a economia. As imagens captadas com sensibilidade por Linsker estão reunidas no livro Mar de Homens (Editora Terra Virgem, R$ 100,00), que é complementado pelo livro de bolso O Mar é uma Outra Terra (R$ 19,00), com texto de Helena Tassara, cujo conteúdo versa sobre o destino da pesca artesanal no Brasil. Antes de tudo, a série fotográfica revela um Brasil de mar, sol e sal, de marcas nas mãos e nos rostos, de redes e embarcações, e de uma busca incessante pelos peixes. (MO) •
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Ponta Grossa, CE
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Litoral próximo de Bitupitá, CE
Cabeço, Foz do Rio São Francisco, SE/AL
Litoral próximo de Bitupitá, CE
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Praia de Cambury, divisa de S達o Paulo com Rio de Janeiro
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Litoral pr贸ximo de Bitupit谩, CE
Ponta de Corumbau, BA
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MÚSICA
Sinfonia centenária para
Camargo Guarnieri Autor da Carta Aberta e pupilo de Mário de Andrade foi exímio em firmar um estilo próprio e que englobava todas as expressões da música brasileira Carlos Eduardo Amaral
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assados os 250 anos do nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart, com certeza a maioria de nós não parou para se lembrar da penúria em que morreu o gênio austríaco, ou nem sequer sabia disso. A fluidez, a espontaneidade e a alegria de sua música não nos deixam pensar em termos negativos ou vacilantes. Mozart também foi o primeiro nome do maior compositor brasileiro depois de VillaLobos. E as dificuldades igualmente afetaram Camargo Guarnieri em seus últimos anos de vida. Seu filho caçula sofreu um acidente de carro em 1990 e passou vários meses em coma, permanecendo até hoje com seqüelas. Foi necessário vender um retrato pintado por Cândido Portinari a fim de amenizar os custos do tratamento decorrente. Guarnieri acabou dirigindo mais concertos do que o normal, porém a idade avançada e a descoberta de um câncer de garganta vieram a lhe debilitar. Faleceu em 13 de janeiro de 1993, com quase 86 anos, depois de ser internado para uma cirurgia de emergência no Natal anterior. Tangenciar o final de sua trajetória é o pretexto para retroceder no tempo, encontrar o compositor premiado e sólido e atermo-nos à inegável solidez de suas dezenas de obras, que atestam uma rara e bem definida linha evolutiva de seis décadas e meia. Tal linha espelhava uma disciplina interior, cujas convicções foram influenciadas pelos dois mestres a quem estimava: Mário de Andrade, na estética, e Lamberto Baldi, em composição, orquestração e regência.
Arquivo Camargo Guarnieri - USP/ Reprodução
Em 1923, Miguel Guarnieri, pai de Mozart, levara para São Paulo a família e havia procurado Baldi para que seu filho adolescente (16 anos) recebesse a melhor formação musical possível. O professor, recém-chegado da Itália, precisava de alunos para se estabelecer financeiramente no Brasil, mas acabou nunca aceitando pagamento pelas lições a Mozart Guarnieri, de tanta compensação pelo afinco demonstrado. A amizade com Mário de Andrade se deu mais tarde, aos 21 anos, e rendeu o melhor amigo e professor particular de estética que alguém poderia ter naquela época. As primeiras obras de Guarnieri seguiam o caminho tido por ideal para a afirmação da música erudita brasileira, segundo Mário de Andrade expôs no seu Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. São amostras dessa influência as genericamente chamadas “três danças” para piano, depois orquestradas: “Brasileira” (1928), “Selvagem” (1931) e “Negra” (1946), as três primeiras sinfonias (1944, 1945 e 1952), os dois primeiros concertos para piano e orquestra (1931 e 1946), a “Sonatina para piano nº 1” (1928) e o choro de câmara “Flor do Tremembé” (1937), a primeira obra sinfônica a utilizar um cavaquinho. A versão orquestral da “Dança Brasileira” é a obra de Guarnieri mais conhecida e executada nos EUA até hoje. Já a “Sinfonia nº 2” tem se popularizado no Brasil. Rica em temas simples (alguns em modo nordestino) e bem fixados, recebeu o segundo prêmio num concurso internacional promovido pela Sinfônica de Detroit em 1945. Camargo Guarnieri regendo a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo, em 1975
MÚSICA
Reprodução
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Camargo Guarnieri teve que vender o seu retrato pintado por Cândido Portinari para tentar resolver problemas financeiros
MÚSICA Guarnieri era protegido publicamente das farpas dos críticos pela égide do leal amigo, e também crítico respeitado, Mário de Andrade. Porém, se o uso dos elementos nacionais serviu de material estrutural para a maioria das peças até o final da década de 1960, Guarnieri nunca se viu impedido de estudar e se deixar impressionar por Stravinsky, Bartok, Hindemith, Prokofiev, Schoenberg e Debussy. Quem cita esses nomes é o musicólogo Flávio Silva, organizador do principal livro sobre o compositor paulista nascido em 1º de fevereiro de 1907, Camargo Guarnieri – O Tempo e a Obra. Ele explica que Guarnieri não tinha aversão ao atonalismo nem naquela época, como seus detratores acreditavam: “Mais de uma vez, ele elogiou obras de compositores de correntes estéticas opostas à do nacionalismo musical que professava, em razão da qualidade intrínseca dessas obras”. Costa analisou o contexto da concepção e da estréia da “Sonata nº 2 para violino e piano” (1933), que se deu longe dos olhos de Mário de Andrade e marcou o primeiro passo de Guarnieri em direção ao atonalismo. O professor detestou a ousadia do aluno e o encheu de críticas bastante ásperas – foi o início da divergência de idéias entre ambos, só de idéias. Com a chegada do alemão Hans-Joachim Koellreuter (1915 – 2005) ao Brasil, em 1937, Guarnieri comparCleo velleda/ Folha Imagem
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O alemão HansJoachim Koellreutter e Guarnieri não foram inimigos, mas tinham divergências quanto à estética
Arquivo Camargo Guarnieri – USP/Reprodução
tilha de sua admiração por Stravinsky e Schoenberg, detestados por Mário de Andrade; mais em comum ainda: ambos rechaçam o academicismo de um Shostakovitch temente ao regime stalinista e que era exaltado por Mário. Koellereuter funda o grupo Música Viva em 1939 e agrega uma turma de alunos novos e ávidos por suas concepções estéticas, norteadas por Schoenberg, entre eles, Guerra Peixe (1914 – 1993), Edino Krieger (1928) e Cláudio Santoro (1919 – 1989). Guarnieri publica a Carta Aberta a Koellreuter em 1941, onde expressa sua posição ante o atonalismo. Flávio Costa observa: “Nesse documento, a crítica do compositor está centrada no que lhe parece ser uma falta de expressividade inerente às obras atonais. Ele não faz a defesa do nacionalismo musical nem considera o atonalismo como anti-nacional. A admissão das mais variadas técnicas, desde que visem ‘um fim puramente artístico, sincero’ é, muito possivelmente, um eco dos ensinamentos que Guarnieri recebera em Paris, do tolerante Charles Koechlin”. Mas Guarnieri percebe o lado negativo da influência atonal nos jovens e se impele a publicar outro escrito, em 1950: a Carta Aberta aos Músicos do Brasil. Desencadeou-se a celeuma. Costa fala sobre as entrelinhas da mensagem principal: “A Carta Aberta assinala o rompimento do compositor com Koellreutter. Apesar de todos os seus equívocos, ela traz verdades incontornáveis, em especial na crítica ao doutrinarismo messianista koellreutteriano, que misturava doses variadas de schoenberguismo com o mais deslavado jdanovismo. Em seu ataque
MÚSICA
As primeiras obras de Guarnieri seguiam o caminho tido por ideal para a afirmação da música erudita brasileira, segundo Mário de Andrade expôs no seu Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928 a Koellreutter, Guarnieri também se serviu de um linguajar jdanovista herdado do Mário filocomunista que, desde o Ensaio de 1928, elogiava a Rússia por expulsar Kandinski e Stravinsky. Mas a utilização desse linguajar por Guarnieri deve ser vista, sobretudo, como uma manifestação de fidelidade a Mário”. A Carta Aberta não pretendia atingir Koellreuter pessoalmente, era apenas um ideário levado a público, porém a relação se esvaiu. D. Vera Sílvia Guarnieri, viúva do compositor, conta: “Quando chegou ao Brasil, Koellreuter procurou o Guarnieri e ficaram muito amigos, jamais brigaram. Essa Carta não foi dirigida a ele, tratava apenas de estética. Mas não foi compreendida desse modo. Na verdade, Koellreuter jamais procurou Guarnieri para conversarem pessoalmente sobre esse assunto e, assim, a amizade dos dois se desfez”. D. Vera Guarnieri é tradutora do mais extenso estudo individual sobre o legado do marido: Camargo Guarnieri – A Brazilian Composer, da pianista e musicóloga americana Marion Verhaalen, cujo título no Brasil é Camargo Guarnieri – Expressões de uma Vida. Passada a pressão natural das reações, que lhe forçou a uma “coerência de postura” e lhe tolheu experimentações pouco “naciona-
listas”, Guarnieri se permitiu ir juntando os dois universos – brasileiro (ritmado, tonal e modal) e atonal – na década de 1960, até passar para o outro lado em 1970 com seu “Concerto para piano e orquestra nº 5”, partitura nem sequer atonalista, mas serialista de vez. Verhaalen não encara a obra como um marco divisório: “Acredito que o desenvolvimento de Guarnieri foi contínuo. Acho que ele se dirigiu honestamente para um rumo de composição semi-serialista. Ele usou uma linguagem muito dissonante em muitas de suas obras instrumentais mais antigas, e isso foi apenas um outro passo adentrando a escrita serialista, uma vez que ele viu que poderia expressar seus propósitos musicais através dela. Sua Carta Aberta fazia objeção ao uso de uma seqüência de sons como um ‘meio mecânico’ para criar significados musicais. Ele era tudo, menos um compositor ‘mecânico’. Era mestre criando uma estrutura, mas uma que fosse carregada de emoção e significado musical”. A opinião de Verhaalen faz com que encaremos Guarnieri dentro da mesma tolerância que ele tinha. Algo do ímpeto de Camargo Guarnieri pode ser constatado na intimidade. Ele teve um filho de seu primeiro casamento e três do terceiro, com D. Vera Sílvia. Miriam Guarnieri chegou a estudar violoncelo na adolescência, mas escolheu as Ciências Biológicas e hoje é professora da UFPE. Sentiu falta da música e há poucos anos fez um curso básico de música sacra. Hoje rege dois coros. Ela dá uma noção de quem era o autor da Carta Aberta em família: “O meu pai era um homem normal dentro de casa, com virtudes e defeitos, como qualquer pessoa. Às vezes extremamente cativante, às vezes difícil. Por ter uma personalidade marcante influenciou fortemente a minha vida... O carinho marcava o nosso relacionamento. Acho que uma das suas maiores características era a sensibilidade: perdi a conta de quantas vezes vi meu pai emocionado”. Todo o acervo de Camargo Guarnieri foi doado pela família para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. O maestro Roberto Tibiriçá, titular da Sinfônica de Campinas, resume o que encanta o público no nosso Mozart: “Creio que Camargo Guarnieri deveria ser mais tocado, pois sua música é de fácil acesso aos mais leigos. Desde sua “Suíte Vila Rica” (1958) até suas sinfonias, ele nos transmite uma beleza imensa e rica em detalhes requintados de harmonia, contraponto e principalmente na inspiração de suas melodias. São muitos desafios, mas o mais importante deles é manter a característica rítmica que ele tem. Todas as suas obras são presenteadas com esta riqueza de ritmos e acentuações folclóricas e regionais”. • Continente fevereiro 2007
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AGENDA/MÚSICA
O cravo na terra do urucum
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osana Lanzelotte, além de ser a mais destacada intérprete de cravo no país, contribuiu na ampliação e divulgação do repertório nacional para o instrumento, além de pesquisar e executar peças raras de compositores como Bach, Haydn e o desconhecido português setecentista Pedro Antonio Avondano. Em O Cravo Brasileiro, o ar tipicamente barroco do clavicêmbalo (o outro nome do cravo) atravessa o Oceano Atlântico e um intervalo de pelo menos 200 anos para experimentar o tempero da música brasileira e se aventurar na linguagem musical moderna. O resultado mais feliz dessa viagem acontece nas obras do mais antigo dos autores presentes no CD, Ernesto Nazareth. A “Sonata” de Osvaldo Lacerda, as “Peças de ocasião” de Ernani Aguiar e os “Momentos brasileiros” de H. Dawid Korenchendler completam o lado, por assim dizer, nacionalista do disco. A “Suíte” de Antonio Guerreiro transita em direção ao atonalismo, atingido de vez nas “Convulsões delicadas” de Caio Senna. A transcrição de três “Prelúdios para piano” de Cláudio Santoro volta à expressão tonal e reduz a ritmia brasileira. Em algumas faixas, o acompanhamento de Fernando Maciel de Moura no pandeiro (como em “Odeon”) é um capricho a mais e acentua uma prática ibérica que seguiu um curso geo-histórico distinto e – de acordo com o compositor Ronaldo Miranda, que assina o encarte – veio parar na música brasileira popular. (CEA) O cravo brasileiro, Rosana Lanzelotte, produção independente, preço médio R$ 25,00. Pedidos: www.clavecin.com.br
Disciplina e expressão Atuante há 30 anos, a Camerata Fukuda, orquestra de cordas de São Paulo, guia-se pela disciplina herdada de seu idealizador, o violinista Yoshitame Fukuda, que introduziu um novo método de ensino de violino no Brasil. Sob regência de Celso Antunes, a “Modinha imperial” de Francisco Mignone, a “Suíte antiga op. 11” de Alberto Nepomuceno e o “Divertimento” de Edino Krieger resultam bastante expressivos, reservando o ápice à peça central do CD, as “Nove meditações sobre o Stabat Mater, op. 249”, de Amaral Vieira. Elisa Fukuda, no violino obligato, e a Camerata imprimem aqui toda a introspecção contida no “Stabat Mater” original. Já a leitura do “Ponteio” de Cláudio Santoro peca na falta de mais arco nos violinos, e a do “Mourão” de Guerra Peixe na lentidão excessiva, descaracterizando a batida de xaxado, talvez porque são partituras de maior soltura, às quais a educada orquestra não conseguiu se adequar. Porém, a excelência do conjunto nas demais obras respalda a recomendação do disco. (CEA) Convergences – Brazilian music for strings, Paulus, preço médio R$ 27,00. Pedidos: www.paulus.org.br Continente fevereiro 2007
Só flautas
Sérgio Roberto de Oliveira começou a carreira de compositor na música popular e se encaminhou para a música erudita há 10 anos. O CD Sem Espera comemora essa década de atividades e se concentra inteiramente em peças para flauta transversa. Amigos do compositor se revezam na interpretação, liderados por Laura Rónai, que toca a “Fantasia para flauta solo”, em três movimentos. As outras obras são: os “Trios nº 1 e 2”, as “Doze bagatelas” (solo), o “Duo” e a peçatítulo (um quarteto). Um bate-papo entre Sérgio e o flautista americano Tom Moore ocupa as sete últimas faixas e falam sobre a concepção das obras das peças do CD e a ligação do compositor com a flauta, a qual estudou durante três anos a fim de se aprofundar em seus meandros. (CEA) Sem Espera, A Casa Discos. Pedidos: www.acasaestudio.com.br
Doce dueto Se o timbre da harpa é angelical e o da flauta idem, não é exagerado dizer que a combinação de ambos quase nos eleva aos céus de tanta paz – Mozart revelou isso em um concerto para os dois instrumentos e orquestra. Faltava fazer um apanhado de peças nacionais. Na quase completa ausência delas, Luciana Morato (flauta) e Cristina Carvalho (harpa) transcreveram obras que vão desde as populares “Odeon” de Ernesto Nazareth e “Primeiro amor” de Pattapio Silva a outras, de Henrique Oswald, Francisco Mignone e José Guerra Vicente, sem esquecer Villa-Lobos (“Impressões Seresteiras”, “A lenda do Caboclo” e “O canto do cisne negro”). Somente a “Balada” de Osvaldo Lacerda e a “Toada” de Santino Parpinelli são originais para o duo. (CEA) Dolce duo – O Brasil em harpa e flauta, produção independente, R$ 20,00. Pedidos: guerrent@terra.com.br
Em câmara
O Ensemble Capriccio, trio americano de cordas, adquiriu renome internacional por seguir o caminho dos melhores grupos de câmara: dominar o repertório romântico e moderno e se aventurar na interpretação de obras contemporâneas comissionadas. Por sugestão do pianista californiano radicado no Brasil – Max Barros, Chounei Min (violino), Korey Konkol (viola) e Mina Fisher (violoncelo) se debruçaram nos “Trios” de Villa-Lobos e Camargo Guarnieri e no “Quinteto Fronteiras op. 297” de Amaral Vieira. Similaridades entre Villa-Lobos e Bartok, e Amaral Vieira e Schubert, servem de chave para o Ensemble Capriccio atingir uma execução extremamente competente. (CEA) Brazilian Landscapes, Ensemble Capriccio, Paulus, preço médio R$ 27,00. Pedidos: amaralvieira@thesaurus.com.br
AGENDA/MÚSICA Música do poeta Palavra de Guerra, novo CD da cantora Olívia Hime, é inteiramente dedicado à obra poética de Ruy Guerra. São 17 canções com letra do poeta e cineasta moçambicano com músicas de Edu Lobo, Chico Buarque, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e Francis Hime. Não é a primeira vez que Olívia dedica um álbum à obra de um artista, já o fez com Chiquinha Gonzaga, Dorival Caymmi, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa. Nesse terceiro trabalho, com o selo Biscoito Fino, Olívia traça um triângulo entre Brasil, África e Europa, para encantar com sua voz doce e melodiosa, diferente do que está em moda no mercado fonográfico nos últimos anos, que se apegou às vozes fortes de Ana Carolina, Cássia Eller e Zélia Duncan. Palavra de Guerra, Olívia Hime, Biscoito Fino, preço médio R$28,90.
Sivuca Sinfônico No final de 2006, o Brasil perdeu para um câncer o maestro e acordionista paraibano Sivuca. A sua facilidade para lidar com o erudito e o popular permitiu que Sivuca recebesse o convite da Orquestra Sinfônica do Recife para fazer arranjos sinfônicos para músicas suas e de outros compositores populares. O resultado desse encontro é o CD Sivuca Sinfônico, produzido pela Prefeitura da Cidade do Recife, relançado pela Biscoito Fino. Além de “Moto Perpétuo”, de Paganini e “Quando me Lembro”, de Luperce Miranda, temos “Aquariana”, do próprio Sivuca e a parceria com Chico Buarque, “João e Maria” e temas de Luiz Gonzaga. A gravação é de 2004, junto com a Orquestra Sinfônica do Recife que tem regência de Osman Gioia. Sivuca Sinfônico, Biscoito Fino, preço médio R$28,90.
Ponto de equilíbrio Em seu segundo disco solo e terceiro da carreira, Somos, o cantor e compositor caruaruense Ortinho conseguiu um feito. Ele equilibra a pegada roqueira que tanta força dava à sua presença à frente da banda Querosene Jacaré, com a leveza bossa-novista que explorou em seu primeiro CD solo, Ilha do Destino. Nas letras, também harmoniza a musicalidade rural com temas urbanos, num seu estilo característico que une sarcasmo, humor e imagens insólitas, como em “Avenida Norte”: “E os ônibus lotados/ Levando todos a qualquer lugar/ Não sei por que uns passam tanto/ E outros demoram tanto a chegar”. A sóbria arregimentação dos instrumentos só faz ressaltar a qualidade das letras, música e arranjos. É, sem dúvida, o melhor disco de Ortinho até agora. (MP) Somos, Ortinho, Independente, R$ 15,00.
Uma vida em quatro movimentos om imaginário foi o nome da banda onde Wagner Tiso S se projetou como compositor e arranjador – o disco Matança do Porco, de 1972, é relíquia de admiradores e repleto
de escritas instrumentais arrojadas na época para um conjunto de MPB. Mesmo desfeita há 25 anos, Tiso conseguiu reunila novamente em dezembro de 2005. “Wagão” completava então 60 anos e convidou outros músicos que estiveram a seu lado em várias fases de sua carreira para um show-concerto no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Transformando sua vida musical em uma sinfonia de quatro movimentos, ele e a banda resgataram os sucessos de três décadas atrás, protagonizando o primeiro movimento: “o olhar mineiro sobre o Rio”. O segundo (“o Rio olha para Minas”) trouxe companheiros que lhe abriram novas portas na capital fluminense: Paulo Moura, Cauby Peixoto e Gal Costa. No terceiro, “o olhar mineiro revê Minas”, Wagner Tiso entra em cena com amigos de sua terra: Tizumba e Guarda de Moçambique do Divino, Uakti e Milton Nascimento. O quarto movimento, naturalmente mais grandioso, traz peças sinfônicas de Tiso e mantém Milton no palco (não poderia faltar “Coração de estudante”), quando “o olhar mineiro vê o mundo”. Do início ao fim da “sinfonia”, o grande sustentáculo é a Petrobras Sinfônica, regida por Carlos Prazeres. Ela e Wagner Tiso encerram o show com um movimento extra, mais curto: “o mundo olha Minas”, onde Tom Jobim e Villa-Lobos são homenageados pelo pupilo mineiro, num pout-pourri de duas canções de “A Floresta do Amazonas” e “Eu sei que vou te amar”. Produzido por Giselle Tiso, só agora o DVD Um Som Imaginário foi lançado; não fora de tempo. Compensa por ser o primeiro registro videomusical do compositor. (CEA) Um Som Imaginário, Trem Mineiro. Pedidos: www.tremmineiro.com.br
Frevação O forrozeiro Alcymar Monteiro aproveita o marco de comemoração dos 100 anos do frevo para dar continuidade ao projeto Frevação. No terceiro CD da série, há canções inéditas compostas pelo próprio Alcymar e outros clássicos do frevo como “Madeira que cupim não rói”, de Capiba, “Frevo da Saudade”, de Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, executadas com arranjos diferentes. Destaca-se a participação da cirandeira Lia de Itamaracá na canção “Balancê do Balanço / Ciranda da Vida”. Assim como Alcione consagrou o verso “Não deixe o samba morrer”, Alcymar pretende fazer o mesmo com o frevo em uma faixa de sua autoria “Não deixe o frevo morrer”. Frevação Vol III, Alcymar Monteiro, Ingazeira Discos, R$ 5,00. www.alcymarmonteiro.com.br Continente fevereiro 2007
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Constrangimentos O interlocutor, junto de quem me sentaram no baile de formatura, não me perdoa. Insiste em lembrar minhas agruras
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a festa em que não conheço ninguém, o anfitrião me senta ao lado de um casal, imaginando afinidades. Apresenta-me como um literato nordestino – meu Deus! –, e remexe na memória em busca de algum título que possa ilustrarme. Depois de um esforço que me desgasta a timidez, finalmente lembra: – Ele é autor daquela pecinha... Como é mesmo? O Menino Deus. Não é isso? – Baile do Menino Deus – corrijo envergonhado. Não se passaram três minutos e sonho que uma nave espacial me abduz, e me deixa alguns anos de férias em Marte. – Então o senhor também é escritor? Quem me faz a pergunta é a moça. Eu, que sempre tenho dúvidas se me apresente como médico ou escritor, imagino estar diante de uma poetisa ou romancista. – Bem... – Ele escreve, sim - garante o acompanhante. Já li um artigo dele na Continente. Era a história de uns óculos quebrados. Agradeço a lembrança. Surpreendo-me com a objetividade do leitor, resumindo duas páginas de uma crônica, em meia linha. – Faz tempo que o senhor leu. Escrevi o texto há seis anos – comento constrangido. Narrava uma experiência num teatro interativo. Escapei com vida do atentado, mas ainda me quebraram os óculos. Um artigo modesto. Preferia que o esquecessem. Mas o interlocutor, junto de quem me sentaram no baile de formatura, não me perdoa. Insiste em lembrar minhas agruras. Continente fevereiro 2007
Tento mudar de assunto, nem sei se os dois me ouvem, em meio ao barulho da orquestra e das vozes. – Escrevi outras coisas, é verdade. – Vi no jornal, mas não tive oportunidade de ler. O amigo podia conseguir um exemplar para mim? – Desculpe. A editora manda poucos livros para o autor... – Ninguém possui dinheiro para comprar tudo o que é lançado. Estabeleço prioridades. Em primeiro lugar os clássicos. Finjo que não escutei. Por sorte, a orquestra aumentou o volume num sucesso de Roberto Carlos. Penso em tomar um chope, mas não bebo álcool. Olho para as outras mesas – são todos alienígenas. Viro-me para a moça, pedindo socorro. – E você, escreve muito? – pergunto com desinteresse. Tento escapar à berlinda. – Adoro escrever. Depois que freqüentei a oficina literária do professor Houdini, quebrei minhas amarras. Parece magia. Dez anos de psicanálise lacaniana não fizeram por mim o que ele fez. – Compreendo. – Escrever é mais delicioso do que comer bolo de chocolate com calda de caramelo. Você não acha? – Bem... – Isso mesmo, faz um bem danado. Quando acabei meu último namoro, enchi um caderno de lágrimas e poemas. Escute esses versos: “Partes sem fechar a porta E na manhã de outono O frio invade nossa casa”.
Ilustração: Sávio
O que acha? – Talvez... – Gosto muito da solução do frio adentrando a intimidade do lar, enquanto um coração enregela de sofrimento. – De fato... – Eu falo pra todo mundo, essa moça é um dos maiores talentos do Recife. Só a cegueira dos editores e críticos justifica não ter estourado nas paradas. E eu, que sempre crio imagens para o que escuto, vejo o corpo franzino da poetisa se estilhaçando em mil versos. Daria um poema concreto. – Houdini já disse para ela: escreva minha filha, escreva! Talento não lhe falta. Todo mundo é escritor, até prova em contrário. Eu mesmo já me arrisquei numas páginas. Sou regionalista assumido.
– Fale do seu último conto! – a moça encoraja o velhote, que já nem precisa de estímulo, depois do quarto whisky. – Deixe pra lá! Estamos diante de uma sumidade. Quem sou eu para me comparar? – Modéstia. Cada um possui um estilo. – É verdade. Regionalismo pra mim é regionalismo, não tem panos mornos. História boa precisa de coronel, padre, delegado, beata, cangaceiro e moça donzela. E se não tiver começo, meio e fim não presta. É pura tapeação. Olho em volta, desamparado. A moça empolga-se. – Como é o título do conto? – “O Bode Cheiroso”. Sem chances de terra à vista, capitulo e peço: – Garçom, um whisky duplo! • Continente fevereiro 2007
Imagens: Reprodução
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James Bond, o espião pop A série 007 não teria existido, talvez, se não fosse por uma entrevista de final de semana concedida por John Kennedy, então presidente dos EUA Fernando Monteiro
Sean Connery, um James Bond requintado
CINEMA
O
novo filme de 007 tem, sem dúvida, o grande mérito de trazer James Bond de volta à planície, onde se anda e se corre pedestremente (e como corre!, nesse Cassino Royale, o espião agora encarnado pelo novato Daniel Craig, na 21ª produção da série baseada – muito livremente, diga-se de passagem – nos livros de Ian Fleming). Esse escritor inglês – com passagem pelo serviço secreto – foi o criador do personagem “licenciado” para matar em nome dos obscuros interesses de Sua Majestade britânica, e surgiu pela primeira vez no cinema, em 1962, no ainda modesto 007 Contra o Satânico Dr. No. Antes de continuarmos com o foco no badalado lançamento internacional do apagar das luzes de 2006, voltemos o olhar para os muitos Bonds – atores & filmes de diversas tendências – entre fracassos e sucessos do mais pop de todos os produtos do cinema de ação, no século 20. Primeiro, atentemos para o fato de que os filmes “de 007” tornaram-se, na nossa época, tão pouco sentimental, mais ou menos o que já foram, um dia, os “de cowboy” e até os filmes “de Gary Cooper” ou os “de John Wayne”, para a geração que via fitas em cinemas de bairro, trocando revistas e fragmentos de celulóide nas
portas dos cines de rua (dos quais só resta – e, assim mesmo, ameaçado – o velho São Luiz, na tão recifense rua da Aurora). 007 Contra o Satânico Dr. No eu assisti na estréia, no Cine Trianon, sendo uma produção de Harry Saltzman e Albert Broccoli, donos da EON (Everything or Nothing) que apostaram tudo naquele filme barato, com um ator escocês de fala meio enrolada chamado Sean Connery. Foi dirigido pelo muito competente Terence Young, responsável pelo segundo melhor Bond (Moscou contra 007, 1963) e pelo razoável Thunderball, de 1965, quarto filme da série estourada nas bilheterias desde aquela primeira produção de segunda, mas que estabeleceria, de imediato, a bondmania no seio dos mais midiáticos fenômenos dos anos sessenta. O produtor Saltzman abandonaria a série em 1975, porém os filmes continuariam a ser realizados por Broccoli e a filha (Barbara, junto com o seu meio-irmão Michael G. Wilson). Quatro atores – depois de Sean Connery e antes de Daniel Craig – fizeram “afinar” o sangue de Bond, desde que Connery deixou de atuar, em 1972, como o espião cuja “macheza” ele soubera tão bem temperar com a refinada ironia do personagem literário famoso graças à certa entrevista do presidente John Kennedy (já contarei essa história). George Lazenby foi ator de um único Continente fevereiro 2007
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Arte: Jaíne Cintra
Fotos: Divulgação
1962 – O Satânico Dr. No – Sean Connery 1963 – Moscou Contra 007 – Sean Connery
1964 – 007 Contra Goldfinger – Sean Connery 1965 – 007 Contra a Chantagem Atômica – Sean Connery 1967 – Com 007 Só se Vive Duas Vezes – Sean Connery 1969 – 007 a Serviço de Sua Majestade – George Lazenby 1971 – Os Diamantes são Eternos – Sean Connery 1973 – Com 007 Viva e Deixe Morrer – Roger Moore 1974 – 007 Contra o Homem da Pistola de Ouro – Roger Moore 1977 – 007 – O Espião que me Amava – Roger Moore
1979 – 007 Contra o Foguete da Morte – Roger Moore
1981 – 007 – Somente para Seus Olhos – Roger Moore
1983 – 007 Contra Octopussy – Roger Moore 1985 – 007 na Mira dos Assassinos – Roger Moore 1987 – 007 Marcado para a Morte – Timothy Dalton 1989 – 007 – Permissão para Matar – Tmothy Dalton 1995 – 007 Contra Goldon Eye – Pierce Brosnan
1997 – 007 – O Amanhã Nunca Morre – Pierce Brosnan 2002 – 007 – Um Novo Dia para Morrer – Pierce Brosnan 2006 – 007 – Cassino Royale – Daniel Craig
1999 – 007 – O Mundo não É o Bastante – Pierce Brosnan
Cena de videogame com James Bond
filme de Bond, em 1969; George Moore – um Bond longevo, mas insosso mesmo nas tentativas de humor, atuou de1973 a 1985, enquanto Timothy Dalton encarnou o espião, sem sal nem ameaça, de 1987 a 1989. Por fim, Pierre Brosnan, outro JB calejado no papel, levou nas costas – sem desmanchar o cabelo – o personagem-símbolo de toda uma época, exatamente de 1995 até 2002, quando o seu charme de segunda veio a ser substituído, agora, pela atração “animal” de Daniel Craig. Animal? Bem, há javalis mais graciosos do que o ator recémescolhido para viver o refinado James preparado para matar, embora não ansioso por isso. Para início de conversa, Craig parece alguém faminto por usar das prerrogativas especiais, porém isso não é o mais grave. Terrível mesmo, é que ele obviamente não fica bem de smoking (tem ombros largos demais), suas orelhas são de abano e o seu sorriso é frequentmente preso como se estivesse com a boca anestesiada pelo dentista. Nas cenas iniciais do filme 21, Daniel entra “na marra” na cova de leões pretos de uma embaixada africana com toda a espaçosa violência de um brucutu (o tanque) do exército brasileiro. Onde Sean Connery entraria com felina sutileza, saindo de uma apertada roupa de mergulho, já enfiado num dinner impecável (e pondo um cravo na lapela, como último adorno conservado debaixo da água), o atual Bond parece uma maxambomba trincando os dentes e fazendo cara de robocop teleguiado nesse Cassino Royale que veio como que frear, entretanto, a pirotecnia desvairada que já havia levado Bond até mesmo ao espaço sideral. Tais exageros estavam desfigurando a série clássica de espionagem, um gênero baseado muito mais na ousadia pessoal – quase solidão – dos agentes do que nos efeitos especiais dispersivos e caros. Quanto a isso, o Bond da safra 2006 recupera o terreno humano das missões sem auxílio de superpoderes, e faz até o
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espião, revigorado, apaixonar-se por uma amiga-inimiga, entre outras boas novidades. O humor e a elegância conneryana, no entanto, desapareceram pelo ralo de hotéis e cassinos filmados com a classe que, evidentemente, falta ao ator vedete da hora. Cabe lembrar que houve uma primeira versão de Cassino Royale, produzida em 1967, fora da série “oficial”. De contrabando, James Bond foi interpretado pelo ótimo ator David Niven, nesse filme assinado por cinco diretores (um deles, John Huston). O totalmente british Niven havia sido, por sinal, o favorito do escritor Ian Fleming para interpretar o espião 007, justamente pelas qualidades de elegância e refinamento agora detonadas pelo panzer Craig (que Fleming, com certeza, teria desaprovado). Os vilões do filme atual também perdem, feio, para os “antigos”. Não aparece ninguém parecido com o “Dr. No” vivido por Joseph Wiseman, nem com o “Ernest Blofeld” – sinistro líder da S.P.E.C.T.R.E - interpretado pelo excelente Donald Pleasence, e, muito menos, com o educado “Goldfinger”, vilão magnificamente composto pelo alemão Gert Fröebe, no filme que é unanimemente considerado o melhor da série, até agora: 007 Contra Goldfinger (o moderno Midas do toque mortal de ouro), dirigido pelo talento de Guy Hamilton, aproveitado em mais três Bonds de consecutivos sucessos, de 1971 a 1974. Resta dizer uma palavra sobre a significação dos filmes do gênero que o fim da Guerra Fria esvaziou de impacto, de um modo geral, e não apenas quanto à enfiada de títulos do espião com licença especial para detonar, conforme indicam os dois zeros do seu invisível crachá (perguntinha: se James fosse da nossa Agência Nacional de Arapongas, ele usaria, bem visível, um bottom rosachoque de “Agente Secreto”?...). Filmes de espionagem foram um dos charmes das décadas de 60 e 70. Para
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sustentar o gênero, havia a tensão da política internacional dividida entre Leste e Oeste, capitalismo selvagem e ditadura do proletariado, fronteiras ideológicas O Grande difusas e menos Seqüestro: tentativa de difusas, num raio um 007 complicado que ia da Sibéria dos prisioneiros sumidos no gelo ao raio da caça às bruxas permanente nos EUA, hoje apavorados por ameaças de terroristas à Bin Laden ou que parecem saídos de loucos quadrinhos. Além de James Bond, houve um ainda mais interessante espião – Harry Palmer – que hoje jaz esquecido nas filmotecas. Ele foi interpretado por Michael Caine em pelo menos dois filmes memoráveis: Ipcress – Arquivo Confidencial e Funeral em Berlim. George Smiley, o espião relutante criado por mestre John Le Carré, não emplacou como agente, eu não sei bem por quê (talvez por suas humanas fraquezas de apaixonado – e traído – pela mulher, além de estar sempre pensando na aposentadoria). E houve aquela tentativa de lançar o inglês Stanley Baker como um James Bond psicologicamente mais complicado em Innocent Bystanders, ótimo filme – dirigido por Peter Collinson –, cujo título no Brasil foi, se não me engano, O Grande Seqüestro. Com um elenco excepcional (o carrancudo Baker, a então jovem Geraldine Chaplin, e mais Donald Pleasence e Dana Andrews), permanece como uma das melhores produções Daniel Craig, um Bond com atração “animal”
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CINEMA do gênero, em minha avaliação particular, embora não tenha cumprido suas possíveis intenções de ofuscar, pelo roteiro inteligente, os filmes do filão inaugurado por Dr. No. Aliás, nem mesmo a série 007 – universalmente assistida há mais de 40 anos – teria existido, talvez, se não fosse por uma entrevista de final de semana concedida por John Kennedy, no salão oval da presidência dos Estados Unidos. Foi numa tarde do começo de 1961, e o presidente já se dirigia para a porta, quando um repórter se lembrou de perguntar o que ele estava levando para ler durante as horas de descanso em casa. Kennedy sorriu, e, quem sabe para frustrar a expectativa da citação de algum pesado título de política ou de filosofia, resolveu responder: “Estou levando um romance de Ian Fleming para ler”... Ninguém, na sala, sabia quem era Fleming e, muito menos, seu ainda ignorado personagem “James Bond”. Na semana seguinte, já eram best-sellers, esgotando-se as tiragens iniciais dos poucos romances do autor que mofavam nas livrarias de Washington. Começava aí a bondmania da qual ouviremos falar ainda por muito tempo, aparentemente. •
Timothy Dalton, um espião “sem sal”
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Tradição & cosmopolitismo
Livro do norte-americano John Murphy desconstrói a idéia de que a música brasileira é expressão de aculturados exóticos José Teles
Em 1996, a revista Rhythm Music afirmou que Chico Science & Nação Zumbi, hoje apenas Nação Zumbi, estava levando o Brasil para os limites do mundo
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Reprodução
música deve ser o recurso mais perpetuamente renovável do Brasil. Quando a criatividade individual não produz, imediatamente, idéias brilhantes, como geralmente ocorre, os jovens músicos brasileiros podem recorrer a uma valiosa coleção inesgotável de estilos regionais e canções memoráveis. E os mais antigos sustentam sua criatividade por décadas”. A observação é de John Pareles, editor de música do New York Times, e um entusiasta do manguebeat (foi o autor do necrológio de Chico Science publicado no NYT). Até o início dos anos 90, o Brasil ainda era considerado a terra do samba e da bossa-nova. Nas revistas especializadas, nos cadernos culturais, com exceção de fenômenos isolados, apenas os medalhões da MPB tinham vez, mesmo assim com seus discos carimbados como world music: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa. Desconhecia-se o hoje celebrado Os Mutantes. Mais prestigiados do que estes citados mitos da MPB, eram os percussionistas, Naná Vasconcelos, Dom Um Romão, Paulinho da Costa, Airto Moreira, que impuseram uma nova escola percussiva no jazz e no rock. O interesse do americano David Byrne pela música brasileira, por Tom Zé em especial, começou a suscitar um interesse do público americano e europeu por outro tipo de MPB. Porém foi com a eclosão do manguebeat, em meados dos anos 90, que os formadores de opinião gringos descobriram que havia um outro Brasil, com uma música tão instigante e ao mesmo tempo tão pouco conhecida fora de suas fronteiras. Um artigo da revista americana Rhythm Music, de Continente fevereiro 2007
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TRADIÇÕES
André Conti/Divulgação
Roberta Mariz
abrir uma revista semanal de novembro de 1996, sobre o disco grande circulação como a francesa Afrocibederlia, do Chico Science L’Express e encontrar uma matéria & Nação Zumbi, encerrava com sobre forró, ilustrada por grupos a observação: “Trinta anos atrás do sul da França e algum artista os tropicalistas acrescentaram brasileiro. Na primeira semana de jazz e rock de vanguarda a agosto de 2004, o semanário tradição da canção brasileira – parisiense focalizava Silvério Pesagora o rapper Chico Science & soa, um nome estabelecido no Nação Zumbi completam a miscircuito de shows do verão eurosão, trazendo o Brasil para os peu. Silvério, inclusive, foi o limites do mundo”. principal personagem do exceNa década passada, tornou-se lente documentário Moro no comum jornalistas, músicos perBrasil, de 2002, do diretor finlannambucanos serem procurados dês Mika Kaurismäki, que trata por jornalistas europeus, americanos. Jacques Denis, crítico da O norte-americano John Murphy morou quatro anos no da diversidade musical do país, sendo que mais da metade é dedirevista francesa Vibration passou Recife para pesquisar a música brasileira alguns dias no Recife, em 2005, com a finalidade de fazer cada à fértil cena pernambucana. Já o norte-americano John Murphy foi mais longe. Ele uma matéria sobre forró – acabou conhecendo o rock que se fazia aqui e que ele ignorava. Ben Ratliff, crítico do New morou, com a família, quatro anos no Recife (de 1990 a York Times, fez a cobertura do festival Abril pro Rock 2003, 1991, e de 2000 a 2001), onde não apenas pesquisou desde algo impensável alguns anos antes. Normalmente um a música folclórica até o hip hop, como até teve aulas de grande jornal estrangeiro enviava um repórter ao lado sanfona com o mestre Arlindo dos Oito Baixos. Murphy é professor da cadeira de Jazz da Universidade do North oculto do Brasil quando acontecia alguma catástrofe. do Texas, e seu interesse pela música brasileira extrapolou Com as constantes turnês de aros limites acadêmicos. Ele acabou escrevendo um tistas pernambucanos na Euinteressante livro intitulado Music in Brazil Experiencing ropa, tornou-se comum se Music, Expressing Culture (Oxford University Press). Para Tom Zé suscitou o a maioria dos brasileiros, o livro de interesse estrangeiro por um outro tipo de MPB Murphy não traz novidades; a obra é dirigida a um público estrangeiro que, na maioria das vezes, tem um conhecimento deturpado da cultura dos países do terceiro mundo. John Murphy divide seu livro em três partes. Na primeira, fala de samba, do carnaval, desfazendo, inclusive, o equívoco comum de se imaginar no exterior que o maior evento carnavalesco do Brasil acontece no Rio. Ele descreve com bastante acuidade o carnaval pernambucano. No segundo capítulo, ocupa-se do choro, bossa-nova, tropicalismo e do brega. No terceiro, explora a capoeira e a música dos índios caiapós. No quarto capítulo, é a vez do cavalo-marinho e do forró (John Murphy escreveu, por sinal, o
O americano conferiu in loco o som feito pelos Devotos, no Alto José do Pinho
John Murphy traçou as carreiras do DJ Dolores (acima) e da Cumadre Florzinha (abaixo)
Fotos: Divulgação
que é provavelmente o mais completo estudo já feito sobre o cavalo-marinho, mas não conseguiu ainda publicá-lo). No quinto capítulo se ocupa da música caipira/sertaneja e do sul do país. Por fim, chega ao capítulo em que trata da música que considera cosmopolita, usando, como exemplo, a nova cena musical pernambucana, assim explicada: “Foquei mais a cena do Recife porque ela tem atraído atenção nacional e internacional como um centro criativo desde meados dos anos 90, e porque foi a cena de música popular com a qual mantive uma experiência mais direta”. Ao tentar explicar o som da Chico Science & Nação Zumbi, escreve Murphy: “Fica-se tentado a defini-lo como uma mistura de rap com a embolada (poesia rápida, improvisada com acompanhamento de pandeiro) do brasileiro, no entanto o som é tão original que simplesmente rotulá-lo como mistura não faz justiça à transformação que a banda fez destes dois gêneros e de uma variedade de outros”. Mais adiante, o autor questiona a razão de os grupos recifenses não tocarem nas rádios locais. Ele chegou a entrevistar diretores de programação de algumas FMs. Alguns negaram, porém outros confirmaram (os nomes não foram publicados) que as grandes gravadoras pagam para seus artistas serem tocados: “Algumas vezes diretamente (o que é ilegal no Brasil), outras indiretamente (e aí é legal) na forma de merchandising... A prática de pagar para tocar no rádio, conhecida como payola nos Estados Unidos, é chamada de jabá no Brasil”. O americano deu-se ao trabalho de conferir in loco o som do Alto Zé do Pinho, feito pelos Devotos e Faces do Subúrbio: “O rap brasileiro pode soar para estrangeiros imitação do estilo criado nos Estados Unidos, mas a primeira impressão engana. Enquanto alguns estilos vêm do rap, a perícia verbal e o ritmo dos vocais têm raízes na região Nordeste”, explica, acertadamente, sem deixar de lembrar que o rap do Faces do Subúrbio “tem traços da toada do Sertão e do aboio”. Do Recife, ele traça as carreiras de DJ Dolores (até 2001) e da Comadre Florzinha. Na análise final, John Murphy escreve: “A vitalidade da cena musical recifense demonstra que a globalização da tecnologia e da mídia não é um via de mão única, na qual a música local inevitavelmente fica marginalizada. Músicos visionários, artistas e produtores, feito estes do Recife, podem adaptar o fluxo da informação que vem de fora para seus próprios fins”. Livros como este, mesmo simples, didático, ajudam bastante para que nossa música deixe de ser vista como expressão de aculturados exóticos. •
ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva
A casa da minha avó
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Minha tia Maria de Lourdes, sempre voltada para a cultura, mensalmente organizava saraus na rua do Progresso, 191
omo Manuel Bandeira, nunca pensei que ela acabasse. Uma passagem romântica da década de 50 para a de 60, benfazeja da grande mudança de costumes do século passado, quando o mundo saía do cós da rigidez colonialista caseira do Recife para abraçar a sensatez da evolução dos tempos e das coisas. Apesar de sempre atrasado, o nosso país quedara-se ao desabrochar rebelde dos jovens. Iniciava-se, ainda que limitado e sem dogmáticas, o ciclo da globalização de conhecimentos mesmo acanhados – no entanto já era um grande avanço. Porém, daquela época em vante iniciava-se o salto da música, do lirismo do jazz, do bolero e da chorosa bossa-nova para um outro semelhante, todavia menos telúrico, só que mais inquietante e sacolejante: o rock, remexendo o hullygully, esquentando depois com o twist elétrico do iê-iê-iê dos anos 60. Os adolescentes pontas-de-rama já não se importavam com as bicicletas e triciclos e montavam nos selins das lambretas em arranques sem escapes, exibindo seus topetes virgulares derramados nas testas, blusões personalizados em brasões transviados, concorrendo em competições corredeiras nas recém-alargadas avenidas. Acompanhantes atentos e torcedores exaltados, as crianças tais como eu apostavam no sonho da vitória de seus pilotos preferidos, rivalizando com os gritinhos esvaídos das moças de rabos-de-cavalo e diademas que se espalhavam ao longo das calçadas, mergulhadas em misericordiosas jaculatórias penitenciais. Tal nosso poeta maior, eu também morava na casa da minha avó – há muito sem o avô que não conheci. Rua do Progresso, 191. Ali marcava uma belíssima arquitetura antiga, com fachada recortada por azulejos portugueses e portão de ferro fundido encravado de lanças quixotescas – o fino. Seu quintal, florido de sapotizeiros, mangueiras, abacates e figos eram daqui. Um belo ornamento para o palco de encontro de intelectuais era exatamente lá. Na casa da minha avó Naninha Bezerra de Mello – cabelos brancos entrançados, enrolados e presos a berilos, num cocó jubiloso. Braba na disciplina dos filhos e branda com as travessuras dos netos, de cadeira em cadeira de balanço chegou aos 95 anos movida a bolões de farofa-d’água encharcados do gorduroso caldo da charque assada. Mas Patrocinados pela pintora autodidata Maria de Lourdes – minha tia mais velha sempre voltada para a cultura – mensalmente saraus havia. Continente fevereiro 2007
Ilustração: Zenival
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Em algumas dessas noites, reuniam-se as letras então ainda jovens do Recife. Encontros recitativos, com motes desafiadores, faziam confrontar-se nas beiras dos versos fáceis Mauro Mota, Carlos Pena Filho e Ariano Suassuna. Certa noite a confraria recebeu, prazerosamente, a visita da bela Tônia Carrero, diva das ribaltas brasileiras. Encantada com Ariano, repentinamente proprôs-lhe casamento, dizendo-se apaixonada. Foi o bastante para a explosão irreverente de Mauro. Prestes a casar-se com sua noiva de anos de afagos, Suassuna recusou a empreitada, desculpando-se ruborizado. Ah, se Zélia estivesse presente!... – pegaram no pé do homem de Taperoá. Licores à mesa florida de filhós e pastéis, entrava pela noite muita cultura, com Aloísio Magalhães pincelando tessituras camonianas em suas telas junto com a aquarela dos sobrados de Elezier Xavier. Laurênio Lima e Valdemar de Oliveira, este arrancando gargalhadas com seu humor eclético, apresentando o moço Luiz Marinho. Através, também da música, o maestro Geraldo Menucci executava ao violino seu grande sucesso “Canta Brasil” (em parceria com com David Nasser e Alcyr Pires Vermelho). Numa noite, em 1960, que viria a ser a derradeira, rezaram, cantaram e saudaram em poemas o companheiro Carlos Pena Filho, falecido prematura e tragicamente em acidente de automobilístico. A casa impregnou-se de eternidade e saudade, mas saraus não mais houve e não há mais. •
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