Continente #075 - Humor

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A arte de desnudar a realeza

Desenho de J. Carlos, expoente do humor gráfico brasileiro da primeira metade do século 20

A

caricatura e a charge são duas formas de humor impresso ou gráfico que revelam aspectos de uma sociedade soterrada pelas convenções, interesses e hipocrisia. Daí porque quase sempre estão em atrito com os poderosos do dia, fazendo uma espécie de striptease moral de personalidades e grupos sociais. Com grande economia de traços e num tempo mínimo, reviram uma situação pelo avesso, proclamando, como na velha fábula: “O rei está nu!” É esta forma de manifestação artística, às vezes tão pouco valorizada, que ocupa o tema da capa desta edição, em matérias que percorrem a trajetória dessa forma de humor no país, desde os primeiros autores dos desenhos satíricos em nossa imprensa, como J. Carlos, K. Lixto, Raul Pederneiras e Nair de Teffé e o poeta Joaquim Cardozo, ainda imberbe, até, nos dias de hoje, os traços refinados de um Cássio Loredano (cuja caricatura de Pixinguinha na página de abertura da reportagem é um prodígio de concisão e inventividade em seu minimalismo desconcertante), quando a charge, o cartum e a caricatura ocupam consuetudinariamente as páginas de jornais e revistas e transbordam pela internet. Um deleite a mais para o leitor é a polêmica sobre a autoria do primeiro desenho de humor na imprensa

Reprodução do livro Caricaturistas Brasileiros, de Pedro Corrêa do Lago, 1999

EDITORIAL

brasileira, atribuído quase consensualmente a Manoel de Araújo Porto-Alegre, no Rio, em 1837, mas questionada pelo cartunista e pesquisador Lailson de Holanda Cavalcanti, que encontrou uma proto-charge em 1831, no periódico satírico pernambucano O Carcundão, de autor anônimo. Bairrismos à parte, a informação é relevante para o mapeamento histórico do humor gráfico no Brasil. A partir deste número, em decorrência de medidas de racionalização adotadas pela nova administração da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, as Revistas Continente Multicultural e Continente Documento fundem-se numa só publicação, mantidas as características e o padrão de qualidade perseguidos ao longo do tempo. A nova secção “Documento” traz, nesta edição, um perfil de Caio de Souza Leão, poeta, cronista, contista bissexto, jornalista, publicitário, colecionador de quadros, boêmio e, sobretudo, um cultivador de amigos. Enfim, um pernambucano que marcou época. Outra novidade desta edição é a estréia da coluna “Balaio” – onde cabe tudo – numa produção da equipe da Continente e colaboradores de toda a parte. • Continente março 2007

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Divulgação

CONTEÚDO

Ag. Aurora

Reprodução do livro Caricaturistas Brasileiros, de Pedro Corrêa do Lago, 1999

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Humor gráfico brasileiro: releitura de O Grito, por Angeli

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Galerias recifenses investem em várias tendências

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CONVERSA

ARTES

04 O português Gonçalo Tavares diz que escreve para investigar melhor o mundo

50 O universo variado das galerias do Recife 58 Livro aborda obra completa de Paulo Bruscky

BALAIO

CINEMA

10 Nova coluna traz a missão dos políticos segundo

64 O tempo nas experimentações de Chris Marker

Machado de Assis, e mais coisas

CAPA 12 A trajetória do humor impresso no Brasil

REGISTRO 68 O dia em que Virginia Woolf brincou com a Marinha

20 Araújo Porto-Alegre x O Carcundão: a polêmica protocharge 22 Humores pernambucanos

DEPOIMENTO

LITERATURA

74 Amaral Vieira resgata formas e técnicas barrocas e

26 Eduardo Coutinho e o futuro da literatura 30 A prosa áspera do recém-falecido Francisco Espinhara 32 A poesia perfeccionista de Jaci Bezerra 34 Iracema em vestido de luxo 36 Agenda Livros

FOTOGRAFIA 38 O vaqueiro do Sertão nas lentes de Geyson Magno

PERFIL 42 Cordelista José Costa Leite, Patrimônio Vivo de Pernambuco Continente março 2007

71 Ortega y Gasset, Edson Nery e as bibliotecas

MÚSICA românticas 76 O virtuosismo de Esdras Mariano da Silva, o Lalão 78 Agenda Música

CÊNICAS 82 Espetáculo questiona as fronteiras entre os gêneros 85 Helder Vasconcelos une dança contemporânea e cavalo-marinho 87 Agenda Cênicas

DOCUMENTO 89 A vida agitada e rica de Caio de Souza Leão


CONTEÚDO Reprodução

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Roberta Mariz/Reprodução

A importância da biblioteconomia

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A vida de Caio de Souza Leão, um pernambucano inesquecível

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Colunas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 24 Kafka: ótimo sujeito, excelente companheiro de convivência e viagem

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 46 A astúcia e a sabedoria dos provérbios populares

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 49 O deslumbramento do Marechal Hermes da Fonseca

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 62 A auto-invenção de Bez Batti através da pedra

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 80 Diferenças e afinidades entre o conto e o romance

ÚLTIMAS PALAVRAS|Rivaldo Paiva 88 O caminho é um brinco que pode ser de ouro

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CONVERSA

GONÇALO TAVARES

“O meu modo de investigar é escrever romances” Escritor português, autor do romance Jerusalém, fala sobre a excelente literatura feita atualmente em seu país, opina acerca da relação de ciúmes e competição que existe entre os escritores de uma época e fala sobre a grande influência que recebeu de grandes escritores brasileiros Márcio Santana Sobrinho

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onçalo Tavares, 35 anos, 16 livros publicados, é um dos mais prolíficos escritores da nova geração de autores portugueses. Autor de ficção, ensaio, poesia e teatro, recebeu o Prêmio José Saramago por seu romance Jerusalém, publicado no Brasil pela Companhia das Letras (2005), e foi distinguido com os prêmios Branquinho da Fonseca, da Fundação Calouste Gulbenkian, e do Jornal Expresso por O Senhor Valery (ed. Caminho), dentre outros. De sua residência, em Lisboa, ele nos concedeu, por telefone, esta entrevista.

Como você encara o processo de escrita? É um dom ou é esforço? Há pessoas que tem mais “instinto” para escrever, como outras têm mais “instinto” para pintar ou serem atrizes. Agora, quando se fala, p.ex., de escrever um romance, não é possível escrever um romance estando sempre à espera de inspiração. Para escrever um romance é preciso sentar. E isso é um ato de disciplina e esforço.

Como é o seu processo de escrita? Quando começo a escrever um livro, tento manter o Como começou isso de ser escritor? entusiasmo até o fim, sem largar ou começar outro enComecei a escrever desde muito cedo, como todo quanto não acabar. Mas depois que acabo, ponho de lado mundo, mas de uma forma séria, desde os 18 anos. E e vou fazer outra coisa. Depois de uns seis meses ou um ados 18 aos 30 comecei a escrever com muita disciplina, no, volto para ele e então posso eliminar, cortar páginas etc. levantando muito cedo, mais ou menos às 5h, e às 6h30 Quais são as suas principais influências na literatura já estava começando a trabalhar. Fiz isso durante 12 anos, do mundo? e só publiquei aos 31 anos. É difícil responder a essa pergunta porque, felizVocê estreou em 2001, e de lá para cá publicou cerca mente, fui influenciado por muitos autores. Eu escrevi de 16 livros – só em 2004 foram sete livros. Tudo isso já um livro chamado Biblioteca, composto de textos sobre estava escrito? mais de 200 autores, e muitos deles são algumas das Todos os livros que saíram durante esses últimos qua- minhas influências. São autores de literatura, são filósofos tro anos já estavam escritos, dando uma ou outra revisão. também – porque minhas leituras passaram muito pela E ainda tenho vários que não saíram, mas que foram filosofia – e, claro, tentei ler todos os escritores mais importantes. escritos nessa altura, entre os 20 e os 30 anos.

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Walter Craveiro/Flip/Divulgação

É muito importante que existam outros bons escritores à volta, porque se eles escrevem bons livros, então podemos ler bons livros, e, depois, eventualmente, podemos escrever bons livros


CONVERSA

Clarice Lispector é a maior influência para Gonçalo Tavares, na literatura brasileira

Reprodução

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E na literatura portuguesa? Um bom leitor não deve ser aquele que lê apenas ou principalmente os livros de sua época. Penso que nosso século é o século da tradução, e da boa tradução; e eu provavelmente fui mais influenciado pela literatura alemã, espanhola, francesa etc. Mas não deixei de ler, com muita atenção, os clássicos portugueses – e brasileiros também; eles são fundamentais para se perceber a língua em que se trabalha.

do século 20 e do mundo. Há no mundo talvez apenas quatro ou cinco escritoras como Clarice Lispector.

Você tem acompanhado a produção brasileira atual? Infelizmente, há uma certa separação entre Portugal e Brasil. Há poucas edições aqui de autores brasileiros contemporâneos, o que é uma pena, porque a língua é exatamente a mesma, mas os livros não atravessam as fronteiras. Pessoalmente, eu gostaria de conhecer mais autores. Há autores que apareceram aqui com muita Qual o seu autor brasileiro predileto? força há alguns anos, como o Raduan Nassar. Creio que Talvez a autora que me tenha mais marcado seja a Cla- a literatura brasileira é muito forte e de muita qualidade. rice Lispector. Apesar de eu ter um respeito enorme por Como você avalia a produção dessa nova geração de Machado de Assis e por Guimarães Rosa, e também pelos poetas João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de autores portugueses, da qual você faz parte? Andrade, penso que a Clarice consegue juntar uma mistuPortugal teve uma tradição forte em termos de poesia. ra entre prosa e poesia e uma intensidade de linguagem Há um poeta mais velho muito importante que se chama que me faria apontá-la como uma das maiores escritoras Herberto Helder, mas, falando da nova geração, há Continente março 2007


CONVERSA ces que eu chamei de O Reino. Jerusalém é o que mais se centra no tema da loucura. Não tanto da loucura individual, mas, da loucura coletiva, do mal. E o livro tenta contrabalançar a loucura individual em que o personagem Milya está enquadrado, e, do lado de fora do hospício, há alguém que não está louco, mas que está completamente obcecado por estudar a loucura coletiva, Como foi ter ouvido do José Saramago que você o mal. E talvez o que apareça no livro é que muitas vezes merecia umas boas palmadas por escrever tão bem sendo o mal é mais praticado pelas pessoas em seu domínio da ainda tão jovem? razão do que pelas pessoas que perderam a razão; e a Evidente que tenho confiança no que faço, e por isso loucura individual é muito menos perigosa do que a só publiquei aos 31 anos, quando sentia que podia dizer loucura coletiva, basta pensarmos em tragédias coletivas, alguma coisa de diferente, mas é muito importante ouvir como o Nazismo. essas palavras do Saramago. Felizmente, outros escritoNo que você está trabalhando agora? res têm se manifestado de uma forma positiva em relação ao meu trabalho: Moacyr Scliar, Bernardo de Carvalho Não gosto de falar sobre o que estou fazendo; há até etc. É bom ser lido pela crítica, mas é também muito quem diga que dá azar. O que estamos fazendo, nunca agradável ser lido por nossos colegas de ofício. E para sabemos se vamos terminar, e se vai existir mesmo. E isso um escritor falar bem de um outro escritor, é sinal de que me faz trabalhar porque me dá a noção de que só quando gosta mesmo... (risos). as coisas são terminadas é que são objetos. Bem, estou fazendo algo que ainda não sei o que é, julgo que seja um O ciúme é assim tão grande? romance, mas ainda está no começo. O que continua a A relação entre os escritores deveria ser sempre a de me interessar é esse problema da guerra, do mal, da querer que os outros escrevam bons livros. Não é possí- violência. Eu tento investigar e entender isto. E o meu vel ser um bom escritor sem ser um bom leitor. E o sujei- modo de investigar é escrever romances. • to só pode ter boas leituras se existirem bons livros. E só podem existir bons livros, se houver outros bons escritores. Para mim, é muito importante que existam outros bons escritores à volta, porque se eles escrevem bons livros, então podemos ler bons livros, e depois, eventualmente, podemos escrever bons livros.

poetas que são muito pouco conhecidos aí no Brasil, como o Rui Pires Cabral, Manuel de Freitas, e há vários poetas portugueses, entre 30 e 40 anos, de grande qualidade. Falando de prosa, p.ex., há um escritor como Pedro Rosa Mendes – então, é uma nova geração que está aparecendo, e isso é muito importante.

Fale um pouco sobre essa sua série O Bairro. O Bairro são livros de ficção em que eu crio personagens que partem um pouco de nome de autores, é um pouco uma homenagem a esses autores, mas são personagens autônomos. São personagens estranhos, lúdicos, cada personagem tem suas características ficcionais. O projeto do meu Bairro é fazer 30 e tantos senhores, é algo que vai dar para fazer por toda a vida. Em Portugal já saíram: O Senhor Valéry, O Senhor Henri, O Senhor Brecht, O Senhor Juarroz, O Senhor Kraus, O Senhor Calvino, e o Senhor Walser (que foi o último); o próximo, provavelmente, será O Senhor Eliot. E essa série de Livros Pretos, da qual seu romance Jerusalém faz parte? Jerusalém é uma história autônoma, mas que está num panorama mais vasto, composto por outros três roman-

Jerusalém, Gonçalo M. Tavares, Companhia das Letras, 232 páginas, R$39,00. Continente março 2007

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Continente Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Homero Fonseca e Marco Polo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Sílvio Mafra Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Vivian Pires Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Março | 2007- Ano 07 Capa: Batipstão, d’aprés Norman Rockwell (imagem ao lado)

Colaboradores desta edição: CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS HAAG é jornalista. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista, pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. DIEGO DUBARD é jornalista. EDSON NERY

DA

FONSECA é professor emérito da Universidade de Brasília.

FERNANDO MONTEIRO é escritor e autor de Confissões de Lúcio, A Cabeça no Fundo do Entulho, entre outros livros. JOCA SOUZA LEÃO é publicitário, contista e cronista. LAILSON

DE

HOLANDA CAVALCANTI é chargista, pesquisador e autor de Historia Del

Humor Gráfico en el Brasil (Universidad de Alcalá de Henares/ editorial Milenio, Espanha, 2005). LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon, Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO COSTA é jornalista. MÁRCIO SANTANA SOBRINHO é jornalista. MARIA ALICE AMORIM é jornalista e pesquisadora na área de cultura popular. MÁRIO HÉLIO é jornalista, poeta e diretor da Editora Massangana. OLÍVIA MINDÊLO é jornalista. RODRIGO DOURADO é jornalista, diretor teatral e mestrando em Comunicação Social pela UFPE.

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RIVALDO PAIVA é escritor e autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente março 2007


CARTAS

Frevo

Surpreendente, a matéria de capa com Antonio Nóbrega. Além de ter um talento admirável, ser um multiartista, é capaz também de fazer análises interessantes e pouco convencionais sobre o Frevo como a sua declaração de que o ritmo seria a feminização do dobrado. Parabéns à revista, por trazer matérias que fogem dos clichês, num momento em que o Brasil fala do Frevo. Evandro Batista, Petrolina – PE

Quase milagre Leitor assíduo da Revista Continente, considero-a, sem favor, no nível das melhores publicações do gênero. Sua existência em Pernambuco é um quase milagre. Ademais registramos com alegria o alto teor de “pernambucanidade” em algumas de suas edições e nos seus números especiais. Petrônio R. G. Muniz – Instituto Brasileiro de Cidadania Ativa, Recife – PE Science Adorei a matéria sobre Chico Science (Continente Multicultural nº 3). Mostra um verdadeiro pernambucano que tem suas origens definidas pelo público de uma forma irreverente, que faz a gente viajar. Como todos dizem: "Chico não morreu". Parabenizo a todos que trabalham nesta Revista. Cláudio de Oliveira Nogueira, Recife – PE Romero Finalmente, o talentoso pintor Romero de Andrade Lima ganhou as páginas da melhor Revista de cultura do país. A Continente deve aproveitar o novo ano para trazer mais pernambucanos competentes, como Romero, em suas edições. Vamos mostrar ao país o que temos de melhor. Parabéns. André Felipe Duarte, Recife – PE

Machado É importante ler críticas direcionadas a autores brasileiros, melhor ainda, quando se fala de Machado de Assis. O que me deixa intrigado é ver críticos estrangeiros se deterem tão perfeitamente na nossa literatura, enquanto que no Brasil poucos se aventuram a pesquisas mais profundas. Machado é o ápice do Realismo brasileiro e merece total atenção nas escolas e universidades do Brasil, mas sabemos que isso não acontece. A entrevista com John Gledson está ótima, fico feliz de saber que nossa Literatura, especialmente a melhor, anda sendo estudada mundo a fora. Parabéns à Revista Continente Multicultural pela cobertura do que há de melhor! Pablo Vinícius, Vitória de Santo Antão – PE Arquitetura A matéria sobre a reconstrução da catedral de Dresden, de Betânia Uchôa, é pertinente. Não podemos lutar pela reconstrução fiel de tudo. Terminamos, como diz a autora, conduzindo montagens cênicas que não permitem o curso natural da vida, no qual as coisas e pessoas nascem, vivem e morrem. Carla Filipino, São Paulo – SP

Contos Achei admirável o artigo sobre contos na Revista Continente Multicultural nº 40. Meus sinceros parabéns. Eu creio que a arte sempre subverte a realidade. Ou, pelo menos a revela diversa dos nossos cinco (apenas?) sentidos. Também creio que todo artista prefere a luz do público à sombra marginal. Não devemos sossegar enquanto não ampliarmos o espectro de leitores. A arte precisa ser bem-feita. A arte necessita ser bem-vista. Roberto Vieira, Camaragibe – PE Fotografia Lindas as fotos do fotógrafo Roberto Linsker, publicadas na edição de fevereiro. Sugiro que os ensaios fotográficos sejam mais frequentes nas páginas da Continente Multicultural. Camila de Barros, Rio de Janeiro-RJ Mise en abyme Cumprimento pela excelência do artigo "Um olhar sobre o abismo". Na Pintura, a profundidade é uma das técnicas mais difíceis, porque exige conhecimento profundo da perspectiva. Heraldo Alvim, Divinópolis – MG

Arquivo Continente Imbecilidade do azul cor muito idiota, atmosférica, feliz demais. Mas isso depende muito de onde ele está. Há um cemitério numa colina, ali perto de Paulista, que é todo azulzinho leve, celeste, para os defuntos irem para o céu. É, portanto, um azul que pode ser mórbido também.

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Nesse painel do rio, que eu estou fazendo, há uma freqüência muito alta de azul, que é uma cor difícil. Bom, primeiro porque o rio não é azul. O rio é barrento, um estuário principalmente de aluvião. Há aí uma certa ironia. Marcel Duchamp, que era muito crítico de tudo o que fosse próximo do senso comum e da vulgaridade, tem uma anotação nos seus escritos que é: evitar a imbecilidade do azul. O azul é mesmo uma

João Câmara, Continente Multicultural, número 0, DEZ 2000.

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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BALAIO

EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES

QUEM TEM MEDO DE URSO? Os pernambucanos morrem de medo de encontrar um “urso” dentro de casa. Somente no carnaval eles parecem inocentes, dançando no meio da rua, seguros por uma simples corda. É que urso por essas bandas é o amante da esposa. Cuidado com o bicho! Só conheço um cara doido para ter urso. O ator Germano Haiut, do filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, concorrendo ao Urso de Prata, do Festival de Cinema de Berlim. Germano confessou que pela primeira vez está louco por um urso. (Ronaldo Brito)

?

COLOMBO PORTUGUÊS PERGUNTINHA O livro Cristóvão INCONVENIENTE

71,1%

dos protagonistas de 258 romances brasileiros, publicados entre 1990 e 2004, são do sexo masculino. Dados de pesquisa da professora Regina Dalcastagnè, da UnB (email: rdal@unb.br). Também pudera: 73% dos autores eram homens. (HF)

CONFISSÕES DE ALBERTO O cineasta Alberto Cavalcanti nasceu no Rio, em 1897, e faleceu na capital francesa, em 1982, magoado com o seu país e indignado com a extinta Embrafilme, estatal que não lhe deu apoio para realizar Antonio José, o Judeu, último projeto de longametragem por ele acalentado. Alberto estava concluindo um livro de memórias, pouco antes de morrer sozinho, no apartamento cedido por uma amiga parisiense. Onde (e com quem) estarão os originais da autobiografia deixada pelo diretor de O Canto do Mar? (Fernando Monteiro) Continente março 2007

Colombo Era Português, do historiador luso-norteamericano Manuel Luciano da Silva e sua mulher Sílvia Jorge da Silva, vai ser adaptado ao cinema pelo diretor Manuel de Oliveira. O livro defende a tese de que Colombo era português, nascido na vila da Cuba, no Alentejo, e por isso deu o nome da sua cidade natal à maior ilha por ele descoberta nas Antilhas – Cuba. (Duda Guennes, de Lisboa)

Em terra onde todo mundo é poeta, quem tem leitor é rei? (Eduardo Cesar Maia)

VERSÕES

"A versão é mais importante que o fato." Esta frase é de Pedro Aleixo (uma das raposas mais felpudas do velho PSD mineiro), mas geralmente é atribuída a José Maria Alkmim (outra raposa pessedista talvez até mais felpuda ainda). Um dia, Pedro Aleixo reclamou disso com Alkmim, que respondeu na bucha: – Pedro, a versão é mais importante que o fato. (Sérgio Luz)

"Ser culto NEFERTITI arqueólogo Zahi Hawass, é pertencer NochefeEgito,do oConselho Supremo de Antiguidades, revelou a possível exisa todos os tência de um túmulo talvez intacto, daquele de Tuthankamon, tempos e vizinho descoberto pelo inglês Howard em 1922. Segundo Hawass, a lugares, sem Carter, tumba poderia ser da rainha Nefertiti, do faraó "herege" Akhenaton deixar de esposa (ou Amenófis IV). Se isso vier a ser o século 21 também se pertencer a seu confirmar, marcaria, ainda no seu início, pela viagem no tempo que é, tempo e lugar" espetacular sempre, a "cápsula" de um túmulo

Octavio Paz

real não saqueado pelos ladrões do mundo antigo, ativos como os de hoje. (FM)


Divulgação

15 MINUTOS É conhecida a frase "Todo mundo tem seus 15 minutos de fama", de Andy Warhol. Mas antes dele, em 1902, em Os Sertões, Euclides da Cunha já afirmava, ironizando a glória fugaz de oficiais após uns dias no campo de batalha de Canudos: "Os heróis, imortais de quarto de hora, (...) entravam, surpreendidos e de repente pela história dentro". (Homero Fonseca)

HISTÓRIA E MENTIRA O peruano Vargas Llosa, ao comentar a pesquisa para escrever A Guerra do Fim do Mundo, passado em Canudos, deu uma definição precisa sobre o que é ficção: "Bem, a todo mundo eu explicava que não estava escrevendo um romance fiel à história, mas que queria realmente conhecer a história para, digamos, mentir com conhecimento de causa". (HF)

HERMILO Em julho, se estivesse vivo, o escritor, dramaturgo, encenador e pesquisador da cultura popular Hermilo Borba Filho faria 90 anos. Já há movimentação para comemorar. Ele merece. (HF)

DESAFORISMOS

"A política é a obrigação de não meter o dedo no nariz. ” Machado de Assis

MARIA, CASCUDO E PORTINARI O lançamento de Hoje é Dia de Maria (caixa com três DVDs e livreto, Som Livre) permite uma avaliação do conjunto, onde se destaca a importância do cancioneiro e do imaginário populares registrados por Câmara Cascudo. Os episódios, vistos em seqüência, mostram certos exageros nas lágrimas e na manipulação de luz e sombras emulando Portinari e Velázques, o que nem sempre é bem-sucedido. Mas o vídeo é indispensável para quem quer se aproximar da boa cultura popular produzida no país. (Fred Navarro)

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PERGUNTAS A GILBERTO GIL

1. Jomard Muniz de Brito, professor: Dentro dos micro e macro poderes, ainda é possível prosseguir querendo falar com Deus? Possível é, mas eu não quero. Tenho muita vontade de falar com Deus, mas prefiro o silêncio. Deixo essa história de falar com Deus para os analfabetos nas coisas divinas. 2. Raimundo Carrero, escritor: Caetano escreveu sua visão memorialística da Tropicália, num livro de mais de 500 páginas. Quando vai aparecer o escritor Gilberto Gil? Suspeito da possibilidade desse aparecimento meu nesses campos literários porque tenho ímpetos e recuos. Não sou fã desses registros: tenho uma memória muito complicada, na qual eu mesmo não devo confiar, muito menos os outros. Flora diz: "Você precisa escrever suas memórias", mas não é pra mim. Livros nascem de renovações de interesses, mas eu mesmo não tenho interesse nesse lado memorialista. 3. Fred Zeroquatro, músico: No Carnaval passado, durante a apresentação de Ivete Sangalo num bloco com cordão de isolamento em Boa Viagem, houve muita violência. Que acha desses cordões que materializam uma forma de apartheid? Existe uma demanda para isso, senão não existiriam (os cordões). A privatização do espaço lúdico de certa forma sempre existiu. Tem evidentemente aspectos negativos, mas tem aspectos positivos que popularizam isso. A gente tem que pensar por que existem, por que estão aí. Alguma área do conjunto humano sustenta isso. O que a gente precisa atentar o tempo todo nessa privatização das folias nas ruas é nos excessos, que são diferentes dos extremos. No círculo dos extremos, há a liberdade absoluta num lado e o "tudo pago" no outro – e são sempre tolerados. Já excessos devem ser sempre regulados. (Abordagem de Gil por Carlos Eduardo Amaral)


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CAPA

HuMOr

A evolução no Brasil do humor impresso ou gráfico revela, como nenhuma outra forma de arte, a alma nacional Carlos Haag

H

á um ano exatamente, o mundo árabe entrou em convulsão, provocando inclusive mortes, por causa de uma caricatura de Maomé, publicada num jornal dinamarquês e, depois, reproduzida em outros veículos europeus. A celeuma, além das mortes, ceifou a cabeça de vários editores de jornais, obrigou países a pedir desculpas oficiais aos muçulmanos, num mal-estar entre Oriente e Ocidente que até hoje não acabou. Mas, rir não era o melhor remédio? Afinal, em 1946, Monteiro Lobato, que, embora pouco afeito ao riso era um bom caricaturista, já avisava: “Não há país onde a caricatura não vice em folhas periódicas como um gênero de primeira necessidade, indispensável ao fígado da civilização. E em nada se estampa melhor a alma de uma nação do que na obra de seus caricaturistas. Parece que o modo de pensar coletivo tem seu resumo nessa forma de riso”. Não sem razão, a charge de Chico Caruso na capa de O Globo virou termômetro da cabeça do Brasil. Apesar do presente, no passado a forma demorou a emplacar no país: a primeira caricatura data de 1837, a partir de um desenho de Manoel de Araújo Porto-Alegre que, pasmem, denunciava um caso de corrupção nos Correios. A partir desse momento, ela virou um caso de amor entre desenhistas e leitores, desembocando no grande mercado de revistas ilustradas que surgiram entre o século 19 e o 20. Uma delas, em especial, foi berço dos melhores, como J. Carlos,

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CAPA

Pixinguinha, no traço minimalista de Loredano – Opinião, década de 70. Na página anterior, desenho de Saul Steinberg

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CAPA

Reproduções de Caricaturistas Brasileiros, Pedro Corrêa do Lago, 1999

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Capa do número 1 da Revista Illustrada de Ângelo Agostini, 1876

Capa da Revista Fon-Fon, de J. Carlos, 1934

Rui Barbosa, na capa de O Malho, por K. Lixto, 1917 Continente março 2007

K. Lixto, Raul Pederneiras e a primeira caricaturista brasileira (talvez, do mundo), Nair de Teffé, ou melhor, Rian, como assinava. Essa revista, com o nome característico de Fon-Fon! completa, em abril, o seu centenário, tendo durado até 1958. “Ela revolucionou o campo literário ao apresentar caricaturistas e autores marginalizados e foi reduto de simbolistas, fazendo a crônica cotidiana da vida moderna e explorando o humor de conteúdo crítico”, explica Cláudia de Oliveira, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. O título da publicação, a buzina dos carros, proclamava, como marca de progresso, um ruído novo e moderno na cidade. “Ela trazia para a sociedade hábitos modernos a serem seguidos e que podiam ser facilmente ensinados pela imprensa”, analisa Semíramis Nahes, autora da tese de doutorado Revista Fon-Fon!, a imagem da mulher no Estado Novo. Celebrando a data, a Fundação Biblioteca Nacional disponibilizou a coleção integral da revista no seu site www.bn.br, dentro do catálogo de periódicos. “Prestigiada por escritores, poetas e artistas de primeira linha, marcada sempre pelo bom gosto, Fon-Fon! foi, por mais de três décadas, um genuíno porta-voz das letras e das artes do Brasil”, escreveu Herman Lima em sua antológica História da Caricatura no Brasil, em quatro volumes, editada em 1963 pela José Olympio e, lamentavelmente, fora de catálogo. Mas, no ano do centenário da Fon-Fon!, uma boa notícia: está para ser lançada, ainda neste ano, uma nova História da Caricatura Brasileira, escrita por Lucio Muruci, divide-se em três volumes que abordam diferentes períodos estilísticos. A publicação é uma obra de referência baseada em extensa pesquisa iconográfica e histórica sobre os principais caricaturistas brasileiros e suas obras. “História da Caricatura Brasileira visa preencher uma importante lacuna no mapeamento de centenas de autores. Busca, ainda, resgatar a importância histórica das revistas ilustradas brasileiras, abordando a inserção da caricatura em todos os Estados brasileiros e a sua contribuição sociológica”, explica o autor, pesquisador do gênero. No princípio, a modernidade – O termo caricatura, derivado do verbo italiano caricare (carregar, sobrecarregar com exagero) foi usado pela primeira vez em 1646 por Antonio Mosini, ao analisar os ritratini carichi, dos irmãos Carraci, que satirizavam tipos humanos de Bolonha. Já no seu nascimento, a forma trazia uma estreita relação com a modernidade, seja na rapidez da passagem de mensagens que os novos tempos exigiam, seja pelo desenvolvimento e expansão das técnicas de reprodução. O público, cada vez mais, era convidado a compreender a mensagem humorística e crítica com rapidez e, se tudo desse certo, receber essa visão do mundo do caricaturista com simpatia. O ápice se dará no século 19, era das revoluções, quando a caricatura surge como reação à norma realista de representação. “A idéia é que as coisas não têm uma forma única, mas se apresentam de distintas maneiras, dependendo do olhar do observador. É na cultura da modernidade que se processa a destruição de um espaço plástico calcado na visão racionalista da Renascença”, observa Mônica Velloso, pesquisadora do CPDOC/FGV. De Balzac a Freud, passando por Charles Baudelaire (um amante do gênero), as cabeças pensantes do século viram que, no mundo moderno, o homem havia se transformado num ator, tendo as ruas como palco para esconder sua personalidade real. “Daí o caricaturista como um expert na arte de flagrar, fazer um striptease moral do indivíduo, revirando-o pelo avesso, numa fração mínima de tempo e com grande


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Pôster de Chico Caruso/Calico, com caricaturas de 150 astros da música popular brasileira, 1990 Continente março 2007


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Reproduções de Caricaturistas Brasileiros, Pedro Corrêa do Lago, 1999

economia de traços. Reforçando certos aspectos gaiatos ou grotescos que conseguia desnudar pessoas diante do público, provocando o riso”, nota Mônica. Com o progresso dá-se o surgimento das massas, ciosas de informações (ainda que nem sempre letradas) rápidas, o que favorece a popularidade das revistas ilustradas humorísticas semanais, que se transformam em termômetro social, formadoras de opinião. A caricatura “fala” mais do que as palavras e pode, quase sempre, fugir da censura. “O que as palavras exprimir não podem/O que às pessoas e às línguas a lei veda/Pode o lápis dizê-lo impunemente/No papel branco saracoteando”, dizia um versinho publicado em O Malho, de 1902. Na França, o pioneiro foi o pintor Daumier, com suas caricaturas de banqueiros rotundos e de malandros de rua (será influência fundamental sobre o nosso primeiro caricaturista, Porto-Alegre). Ele ensinou a arte de “transformar o representante em representado”, ou seja, quando não é mais o objeto que está em primeiro plano, mas a percepção do artista. “É pelo olhar do caricaturista que o objeto adquire forma. Para ele não existe um real permanente a ser captado, mas fragmentos de realidade, formas em trânsito, traços. Não se trata mais de copiar a imagem, mas de experimentar outras perspectivas que esta possa sugerir ao artista”, diz Mônica, para quem “a caricatura não é deformação do real, mas a experimentação de outra representação visual do mesmo”. Por meio da caricatura, passamos a ter uma nova percepção do cotidiano. Mas para que provoque o riso, ela precisa violar uma regra: toda caricatura se origina de uma norma e quanto mais rígida esta for, mais dará margem para situações caricaturais. Disso foi um passo para que a caricatura adquirisse um novo nome: a charge, que em francês significa ataque. Daumier, por exemplo, criticava o governo em La Caricature, ia “à carga” (charge) e expressava uma opinião, traduzindo fatos em imagens sintéticas que misturavam figuras sociais, vestimentas e cenários. A caricatura vira arma. Nesse movimento, ela se aproxima da crônica. “Cronista e caricaturista dividem com o leitor anônimo o espaço público e seu discurso expressa demandas coletivas, dando forma a reivindicações que eram ignoradas pelas instituições ou reprimidas pelo governo”, avalia Laura Nery, pesquisadora do Departamento de História da PUC – Rio. Continente março 2007

As Nozes e as Vozes, de Raul Pederneiras (detalhe) – Scenas da Vida Carioca, 1924

Caricatura de Lupicínio Rodrigues, por Nássara


Caricatura em letra de forma – Curiosamente, Herman Lima inicia sua História da Caricatura nomeando Frei Vicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil colonial, como o nosso “caricaturista pioneiro”. “A caricatura de Frei Vicente não visa apenas alguns dos reinóis imperantes na Colônia, mas todos aqueles que desde o início da nação brasileira têm porfiado em travar a máquina administrativa do Brasil, uma sátira em letra de forma, mas de tão aguda análise”, escreve. O mesmo fenômeno se desdobrará, séculos depois, na literatura. “Destaca-se a influência da caricatura na ficção em escritores como Machado de Assis, Alencar, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo. Para eles, escrever era pintar mentalmente. Não foi por acaso que vários desses escritores também se tornaram caricaturistas, como Lobato, que colaborou na Fon-Fon!, nota Mônica. A linguagem visual, seja pelo analfabetismo, seja pela pressa da modernidade, se torna cada vez mais atrativa para o público. Raul Pederneiras, em 1911, argumenta que as caricaturas se tornavam documentos mais insinuantes do que as frases dos noticiários, dando melhor o recado. “Estou convencido de que a charge num jornal tem o mesmo peso que um editorial; ela não pode cair na vala comum da ilustração”, fará eco, no nosso século, o chargista Fortuna, morto em 1994. Entre nós, apesar da data mágica de 1837, com Porto-Alegre, as caricaturas parecem ter iniciado o seu reinado junto como o d. João VI no Brasil, em 1808, trazidas pelos estrangeiros que vieram na comitiva do monarca fujão. Há mesmo caricaturas estrangeiras de 1826, como lembra Pedro Corrêa do Lago, em seu Caricaturistas Brasileiros, que retratava d. Pedro I jogando condecorações ao povo, ridicularizando a distribuição inócua de títulos no Primeiro Império. Ou, outra, de 1825, que retrata o ridículo ritual do beija-mão com uma procissão no Paço para homenagear um entediado d. João VI e uma irritada Carlota Joaquina. Mas a maioria dessas caricaturas se perdeu no tempo por não ter sido impressa. “Seja como for, no início, as charges se caracterizavam pela reprodução fidedigna de personagens e elegia a política como objeto privilegiado, o que, como conseqüência, liga organicamente a eficácia de seu discurso à sociedade na qual se insere”, avalia o historiador Luiz Guilherme Teixeira, autor de Sentidos do Humor, Trapaças da Razão. Porém, o primeiro caricaturista a se alinhar com um projeto consistente de mudança estrutural da sociedade, dando à charge conteúdo político e ideológico, foi Ângelo Agostini, cuja Revista Ilustrada foi chamada por Joaquim Nabuco de “a bíblia abolicionista dos que não sabem ler”. Ainda assim, as charges de Agostini, em O Cabrião e no Diabo Coxo estão plenas de textos. Caberá a Rafael Bordalo, contemporâneo de Agostini, as primeiras quebras na estrutura da charge e a introdução do elemento caricato nos desenhos, não mais tão realistas e mais agressivos. “Com a proclamação da República os vilões saem de cena. Começa o ciclo dos heróis e, para estes, a caricatura não é expressão adequada”, nota a historiadora Isabel Lustosa, da Fundação Casa de Rui Barbosa. A partir da presidência civil de Rodrigues Alves, tempos de modernização

Reprodução

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Euclides da Cunha, por Cássio Loredano

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Ariano Suassuna, por Vítor Zalma

do Rio e do prefeito “bota-abaixo” Pereira Passos, é que a caricatura adquirirá um toque moderno no sentido de “civilização”. “A charge acompanha essa festa que é a belle èpoque, mudando seu traço e temática. Ela, que raramente inventava personagens, passa a criar tipos fictícios, o humor passageiro, a graça ligeira. Mas nesse processo é que se viabiliza a transição da pluralidade de quadros e da verborragia textual da monarquia para a unicidade de traço, a síntese que sinaliza, na República, o início da modernidade da caricatura”, diz Teixeira. O traço brasileiro – Surgem os tipos: Zé Povo, Juca Pato, Jeca Tatu, Zé Marmiteiro, entre outros, frutos da pena de Belmonte, Lobato e Nelo. A fotografia, num curioso paradoxo, surge para libertar ainda mais a caricatura da representação realista e deixá-la mais à vontade para vôos de imaginário. Ao mesmo tempo em que perdem o caráter de libelo político extremado, ganham a capa das revistas, como forma de diversão e informação, como em Fon-Fon!, Careta e O Malho. O traço brasileiro, porém, surge efetivamente com J. Carlos, que irá fazer desde as belas melindrosas carnavalescas até caricaturas políticas de Vargas no Estado Novo. Será o primeiro a ignorar os limites da anatomia humana, distorcendo, entortando, inventando curvas ao sabor de sua imaginação. Farão parceria com ele K.Lixto e Raul. Outras mudanças virão da passagem do caricaturista paraguaio Guevara pelo Brasil, promovendo de vez a ruptura entre traço e texto. “A autonomia do traço capaz de explicitar, por si só, o conteúdo é uma conquista lenta e reflete o desenvolvimento da sociedade brasileira. A caricatura decreta sua independência da racionalidade visual e textual. Nássara, Theo, Alvarus serão os novos arautos. No pós-guerra, os caricaturistas descobrem o desenho americano de Saul Steinberg. Dele virá o deboche de Millôr e, no futuro, o de Jaguar e outros, revelado nas páginas de O Pasquim, na década de 70. “A partir de então, a caricatura evolui para um novo pólo de atração, Continente março 2007


Reproduções de Caricaturistas Brasileiros, Pedro Corrêa do Lago, 1999

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Arte, charge de Millôr Fernandes, 1979

Charge de Caudius, Revista Bundas, 1999

influenciado pelo inglês Gerald Scarfe e materializado pela presença no Brasil de Luís Trimano, deixando marcas profundas na evolução de artistas como Cássio Loredano e Chico Caruso, os expoentes máximos da recente caricatura brasileira”, observa Corrêa do Lago. Sem falar, é claro, de Laerte, Glauco, Angeli, entre outros, que, cada vez mais, dão razão ao texto de Belmonte, escrito em 1924: “Creio que os caricaturistas são tristes pela mesma razão que as caveiras são alegres. São as ironias paradoxais da vida e da morte. O humorista, que espalha a alegria em torno de si, tem na face um perpétuo rito de amargura; a caveira, que é um símbolo de dor, tem na expressão uma eterna gargalhada silenciosa”. • Continente março 2007

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No princípio era O Carcundão A polêmica em torno da primeira manifestação do humor gráfico na imprensa brasileira Lailson de Holanda Cavalcanti

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m 1908, o historiador Alfredo de Carvalho identifica uma ilustração anônima no jornal satírico O Carcundão, publicado no Recife entre 25 de abril e 16 de maio de 1831, como sendo a primeira manifestação do humor gráfico brasileiro. No entanto, em seu trabalho História da Caricatura no Brasil – considerado como a “bíblia” da iconografia humorística nacional –, o pesquisador Herman Lima desdenha desta descoberta, descrevendo-a como irrelevante por tratar-se apenas do desenho de “um burro corcunda derrubando a coices uma coluna grega”. Para Herman Lima, a primeira obra de humor gráfico brasileira é uma litografia de 14 de dezembro de 1837, atribuída a Manuel de Araújo Porto-Alegre, barão de Santo Ângelo e um dos luminares da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Lima toma por base as pesquisas de José Antonio Soares de Souza, que publicou um ensaio sobre Manuel de Araújo Porto Alegre onde justifica sua suposição pelo fato daquele artista ser patrocinado pela poderosa família Andrada, inimiga do ex-ministro Bernardo de Vasconcelos, patrono da figura caricaturada na litografia de 1837 “A Campainha e o Cujo”: o jornalista Justiniano José da Rocha, que aceitara ser o editor do Correio Oficial. A descrição feita por Lima, porém, é uma declaração informal de que ele nunca viu o desenho do Carcundão e que não aprofundou devidamente sua investigação a fim de “traduzi-lo” para a posteridade.

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Reproduções: acervo Laílson Holanda

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Página ao lado: ilustração anônima no jornal satírico O Carcundão, Recife, 1931: o corcunda simboliza os membros do Partido Restaurador. Acima, a litografia de 14 de dezembro de 1837, atribuída a Manuel de Araújo Porto-Alegre

O humor gráfico político não pode ser dissociado do seu contexto histórico e no caso da sua apresentação ser alegórica – não incluindo indivíduos específicos, mas, sim a representação de conceitos –, sua interpretação necessita de uma compreensão detalhada dos elementos nele simbolizados. O “burro corcunda” a que se refere Lima, na verdade , é a representação de um ser humano com cabeça de asno, alegoria muito usada por Francisco de Goya y Lucientes em sua série dos Caprichos para simbolizar a ignorância das elites. Essa figura bípede – e não quadrúpede – não escoiceia, mas, pelo contrário, tenta deter com as mãos a queda de uma coluna que despenca sobre ela. Esclarecendo então as alegorias: o corcunda simboliza o apelido (corcundas) dado pelos liberais aos membros do Partido Restaurador, o qual, apoiado pela Sociedade Colunas do Trono, pugnava pela volta de D. Pedro I ao Brasil. A legenda sob a figura diz: “Apressemo-nos, o tempo é breve, a existência do Trono e Altar acha-se ameaçada por esses anarquistas niveladores”. Sabendo-se das divergências do primeiro imperador com a província de Pernambuco, compreende-se perfeitamente que o jornal tinha uma posição política oposta à dos restauradores e sua intenção era satirizá-los já a partir do próprio título do periódico. Complementando tudo isso, a obra anônima na capa do Carcundão tem um desfecho na última capa daquela publicação: o asno hu-

mano e corcunda aparece soterrado pelos escombros da coluna que se partiu sobre ele e onde se lê “Non Plus Ultra” tendo uma nuvem negra que solta raios na parte superior do desenho. Resumir toda essa alegoria política à simples descrição de um burro que derruba a coices uma coluna grega é desconhecer os dois desenhos e tentar – através do reconhecimento da obra litográfica apresentada em folha avulsa seis anos depois por um membro da aristocracia da época – dar uma pseudonobreza a esta forma de arte e comunicação jornalística, desmerecendo seu valor iconográfico e histórico. Apesar do anonimato tanto do autor dos desenhos quanto do autor dos textos do Carcundão, é possível supor que seja uma primeira tentativa jornalística do padre Lopes Gama que, no ano seguinte, lançaria sua mais permanente publicação, O Carapuceiro, jornal satírico que apresentaria em caráter permanente no frontispício – a partir do seu sétimo número – justamente a figura de um corcunda experimentando diferentes chapéus em uma chapelaria. Quanto a Manuel de Araújo Porto Alegre, sua presença no desenvolvimento do humor gráfico no Brasil é relevante como editor da revista Lanterna Mágica, primeira publicação regular de caricaturas brasileiras, onde seu assistente Rafael Mendes de Carvalho brilhará como desenhista titular, apresentando um estilo muito próximo ao das litografias atribuídas ao seu mestre. Mas isso já é uma outra história... • Continente março 2007

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CAPA Bárbara Wagner/Acervo Fundaj

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Os humores de Pernambuco A crítica e a sátira política são marcas registradas do humor gráfico pernambucano desde a primeira metade do século 19 Diego Dubard Charge de José Neves, em O Diabo a Quatro, 1876

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m Pernambuco, o reflexo da transferência para o Brasil da corte portuguesa, e com ela a imprensa real, chega no formato e temáticas inspirados nas revistas francesas da época. Com a Independência, temos o esboço do que seria uma imprensa brasileira e os conflitos entre liberais e conservadores, colonialistas e republicanos, dando pano para as mangas aos caricaturistas. Seguindo um padrão afrancesado, tivemos, principalmente no Recife, uma grande produção de revistas ilustradas satíricas – foram catalogadas cerca de 50 até a República. Desde as primeiras publicações em revistas ilustradas e jornais do século 19, as charges feitas em Pernambuco têm um caráter crítico e oposicionista. É muito difícil encontrar uma caricatura que apóie algum grupo ou pessoa. Entre as publicações que se opõem aos principais pilares da sociedade, como o clero, os militares e as oligarquias, estão revistas como O João Fernandes, O Diabo a Quatro e América Illustrada. O que define um pouco a linha das charges pernambucanas é ser oposição, atuando, segundo o pesquisador Lailson Holanda, como colunas de opinião. “O que se vê – constata o também chargista – é que muitas vezes os humoristas gráficos preferem não tocar no assunto a elogiar.” A caricatura por muito tempo foi tida como uma arte menor, pobre e chula, o que não impedia alguns grandes nomes da sociedade pernambucana de se aventurarem entre traços e gozações. O sociólogo Gilberto Freyre, o fundador da Academia Pernambucana de Letras Carneiro Vilela, entre médicos, advogados que se escondiam no Continente março 2007

anonimato ou em pseudônimos, produziram suas charges. Carneiro Vilela chegou a publicar no satírico O João Fernandes. O humor gráfico era restrito apenas a publicações independentes e satíricas, até 1914, quando o Diario de Pernambuco publicou charges de Joaquim Cardozo – então com cerca de 15 anos –, inaugurando assim a charge na grande imprensa pernambucana. Curioso o fato de que Cardozo, grande poeta, só teve um poema publicado em 1934. Mesmo sendo muitas vezes alijado dos livros que se propõem a contar a história do humor gráfico no Brasil, que focam muito mais no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, Pernambuco é exportador de grandes nomes da caricatura. Um dos mais conhecidos é Péricles, criador do Amigo da Onça, personagem que figurou na revista O Cruzeiro, mas que ainda assim tem seu trabalho local desprezado. É a mesma situação de Carlos Esteves e Augusto Rodrigues, que fizeram sucesso no Rio nas décadas de 40 e 50. A charge esportiva é outra temática muito reproduzida entre os chargistas pernambucanos. A motivação é a mesma que une tantos aos três grandes clubes pernambucanos, a paixão pelo time. É nessas horas que vemos chargistas se transformarem em torcedores. A primeira charge esportiva foi feita em 1916, por Vitoriano. Esse amor pelo futebol muitas vezes desvia o conteúdo da charge de um assunto político importante, devido à paixão de torcedor. Momentos políticos tensos são ideais para os caricaturistas. Entre 1970 e 1985, em plena ditadura, a charge


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Bárbara Wagner/Acervo Fundaj

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pernambucana foi muito importante para a formação de opinião. Com a censura dentro das redações, o que forçava muitas vezes uma imagem falar por mil palavras. É o caso de O Papa-Figo, duas páginas pagas no Jornal da Cidade, onde jornalistas e chargistas faziam humor crítico. Já nos anos 90, com o fim do maniqueísmo, a charge perdeu a sua força, passando, muitas vezes, da crítica para as piadas com políticos. Uma figura desconhecida, mas que se destacou na caricatura pernambucana é Gato Félix, um garoto pobre que viveu nas ruas, andando pela cidade pendurado nos ônibus e que fez seu nome em uma época onde a valorização da caricatura era mínima e limitada ao grupo de artistas. Com talento acima da média, começou fazendo desenhos a carvão nas calçadas do Recife. Gato Félix morava de favor em um quartinho no Bar do Espanhol e pagava o aluguel e a comida fazendo caricaturas dos clientes do bar e vendendo seus trabalhos também para os jornais por alguns trocados. A memória e boa parte do acervo de Gato Félix estão sendo catalogadas e editadas pelo artista pernambucano Paulo Bruscky, que conseguiu registrar as paredes do Bar do Espanhol onde as caricaturas repousavam. Quanto ao futuro, o chargista e pesquisador Lailson, que durante 27 anos publicou diariamente trabalhos no Diario de Pernambuco, defende que a sobrevivência do humor gráfico está na colocação crítica e capacidade de análise dos chargistas e com a adaptação dos meios de comunicação aos avanços da internet – um novo espaço para a crítica e a sátira. •

Reprodução/Acervo Paulo Bruscky

Charge de José Neves, em O Diabo a Quatro, 1876: contra o clero e o poder militar, pela República

Autocaricatura de Gato Félix sendo expulso por garçom de um bar, década de 70 Continente março 2007


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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Um pocket sobre Kafka "Não suporto meu trabalho porque está em conflito com o meu único desejo e minha única vocação que é a Literatura." F. Kafka (1883 –1924)

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u sou uma palavra”. Eis mais uma das diversas autodefinições de Franz Kafka, o maior fenômeno da literatura mundial surgido no século 20. Sua singularidade – para usar aqui um conceito caro a Lukács – se passa num contexto também absolutamente singular. Seu texto se estrutura através de longos parágrafos ou longos discursos, racionalmente articulados, não numerativos, mas aleatórios, segundo o desenvolvimento narrativo. Isso, principalmente, nos três romances inacabados e nos contos mais longos. Kafka foi um homem complexo, mas sociável, que participava das reuniões literárias e, às vezes, lítero-sionistas (facção política do judaísmo). Era, como costumamos dizer, um ótimo sujeito, um excelente companheiro de convivência e viagem. Nada do sujeito solitário e soturno que alguns leitores superficiais de seus relatos sempre costumam imaginar. Para Kafka, “o inferno são outros” e ele mesmo, em primeiro lugar. O batalhão de chefinhos ou chefetes estão sempre prontos para interditar seu caminho. Contra eles não tem ninguém ao seu lado e se extenua sozinho. Se os livros são deixados incompletos, quem sabe assim é que deveria ser? Entregou toda sua obra ao grande amigo Max Brod, para queimá-la, o que Brod não fez. Entregou-a por saber que o amigo não a queimaria, como ele próprio não a queimou. Continente março 2007

A quase totalidade das informações desta crônica veio do livro Kafka, de Gerard-Georges Lemaire, edição brasileira da L&PM Pocket, 2006, a mais minuciosa das biografias do autor de O Castelo, que li até agora. Através deste livro soube que Kafka era um adepto fervoroso das leituras de obras literárias, em público, não só poemas, mas contos, novelas e trechos de romances inéditos. Kafka gostava muito de fazê-lo e suas leituras eram sempre elogiadas. Certa vez, lendo para um grande auditório os originais de Na Colônia Penal, no meio de sua fala, várias mulheres deixaram a platéia. Ao todo desmaiaram três mulheres. O poder dramático e oral de Kafka ultrapassou o da escrita e invadiu o território da teatralidade. Durante a vida, o grande escritor conseguiu publicar apenas alguns livros curtos, não viu suas grandes obras impressas. De um dos seus opúsculos publicados, 11 exemplares foram entregues a uma livraria local. Todos foram vendidos. Kafka comprou 10 exemplares de sua própria obra e o 11º exemplar foi comprado por um estranho. Eis por que, para divulgar seu trabalho, ele se dirigia a revistas culturais e à leitura pública. Seu comportamento em relação ao mundo editorial era comum ao dos demais escritores: queria publicar sua obra. Mas, às vezes, implicava com o editor, com certas exigências, como recusar a ilustração de seu texto. Kafka era vegetariano, mas fugia das normas em ocasiões especiais, não era, como se poderia esperar de um espírito tão iluminado,


MARCO ZERO

fanático ou radical. Seu cardápio diário, nesses tempos em que sua doença o permitia, era constituído de três refeições: compota, biscoitos e leite, pela manhã; a mesma coisa que os familiares, por respeito filial, mas pouquíssima carne, legumes, às duas e meia; no inverno, às nove e meia, iogurte, pão integral, manteiga, nozes e avelãs. Não tinha simpatia pelos vegetarianos radicais, mas pelos rebeldes que não dão importância à comida, “é desses que eu gosto”. Ao dizer um dia que odiava o que não fosse “relacionado com a literatura”, Kafka traçou seu limite ou, como um lobo recém-chegado da montanha, delimitou seu território. Este, para seu desespero, é sempre invadido por uma crise de sua doença e pelo horário da Companhia de Seguros, que lhe desperdiça 8 horas diárias. Seus personagens, enquanto isso, hibernam, esperando seu criador. Deixou inéditos os três romances inacabados e só publicados depois de sua morte. A publicação, aos poucos, de toda a sua obra, em várias línguas, provocou uma espécie de escândalo nos meios literários mundiais. Só conheço dois críticos de peso que não levaram Kafka em

consideração: Edmundo Wilson, que não o considerava sequer grande escritor e censura o fato do amigo Max Brod ordenar os cadernos misturados dos romances e vem com argumentos psicanalíticos e formação doméstica, para justificar suas críticas; e George Lukács, que a princípio julgou Kafka alienado, mas voltou atrás e reavaliou-o muito positivamente. Mas, qual gênio não foi incompreendido? Lembrem-se de Wolfgang Amadeus Mozart, meus milhões de leitores. Kafka é lido nos dois hemisférios, em centenas de línguas. É realmente um grande escritor universal. Pessoas tremendo de frio ou pingando de suor vão passando, no seu cantinho, as páginas de A Metamorfose ou O Processo. O lado sombrio da alma humana tem sede de explicação ou transfiguração. Se as obras de Kafka não dispõem da água milagrosa, podem jogar pistas da fonte, no chão. Sinto, nos grandes artistas, profetas e santos, uma força cósmica, emissora da eternidade, recado do Senhor do Infinito. Quero usar este recado como passaporte para a última esperança. Para dedicá-lo ao último suspiro de Kafka. • Continente março 2007

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LITERATURA

Leo Caldas/Titular

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Literaturas comparadas Eduardo Coutinho, doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia (Berkeley), considera que a escritura brasileira ganha espaço no mundo e analisa questões como o ofício de escrever, o Pós-Modernismo e a poesia de Bandeira e Cabral Luiz Carlos Monteiro

F

ilho do grande crítico literário e introdutor do New Criticism no Brasil Afrânio Coutinho, Eduardo de Faria Coutinho tornouse professor titular da UFRJ, onde já lecionava desde a sua formação. Apesar de grande admirador das letras brasileiras, enveredou pelas literaturas de vários países e a isso se deveu sua escolha por pesquisar e lecionar Literatura Comparada. O seu livro Literatura Comparada na América Latina: Ensaios, de 2003, trata exatamente de questões ligadas ao comparatismo no continente latino-americano.


LITERATURA

AFRÂNIO COUTINHO O meu pai exerceu uma influência constante em minha vida, sobretudo pelo exemplo de grande intelectual, erudito, mas ao mesmo tempo simples, sem sofisticações, de extraordinário pensador, sempre inquieto, indagando sobre tudo, e pelo seu caráter de pioneirismo que o levou a construir coisas como a Faculdade de Letras da UFRJ, com seus cursos de pós-graduação, modelares durante tanto tempo, e uma obra crítica e ensaística sólida, que se ergueu contra a crítica puramente impressionista, introduzindo uma perspectiva mais científica na abordagem do fenômeno literário. Ele foi sem dúvida o introdutor do New Criticism no Brasil, mas o tipo de crítica que ele aqui desenvolveu diferiu também do New Criticism na medida em que nunca deixou de lado a importância do contexto. Dentre suas diversas obras, A Literatura no Brasil tem-se destacado pelo seu cunho de monumentalidade. É uma obra de história literária coletiva que ele idealizou e coordenou, tendo escrito inclusive muitos de seus capítulos, a maioria dos quais foi reunida em outro volume, publicado sob o título de Introdução à Literatura no Brasil. É uma obra em seis volumes, que abrange toda a produção literária canônica brasileira, TRANSVERSALIDADE A minha formação pós-graduada, feita em univer- desde suas primeiras manifestações até o período de sua sidades norte-americanas, foi toda na área da produção (2ª metade do século 20), e que foi amplaLiteratura Comparada, área que tem a vantagem de mente reeditada, achando-se já na 6ª edição, atualizada. ser a única, no âmbito dos Estudos Literários, que Minha participação na obra restringe-se apenas às garante uma transversalidade, ou, melhor, que últimas edições, que eu ajudei a rever e atualizar, e para transcende barreiras entre nações ou idiomas. Na as quais contribui também com um capítulo sobre o PósEuropa Ocidental e nos Estados Unidos, a Literatura Modernismo. Comparada já tinha uma grande O SERTÃO tradição desde meados do século Organizei os dois últimos volu20. Por ter surgido e se desenmes da Coleção Fortuna Crítica, volvido no meio acadêmico eucriada por meu pai: o volume sobre ropeu e norte-americano, estava Guimarães Rosa e o volume sobre marcada por uma perspectiva José Lins do Rego. E minha opção etnocêntrica, voltada primorpor ter organizado esses dois volumes dialmente para o eixo Europaestá ligada sem dúvida à forte empatia Ocidental/América do Norte, que tenho com os dois autores. Sobre mas com o desenvolvimento desGuimarães Rosa, eu tenho escrito ses estudos em outras partes do diversos livros e artigos. Ele foi parte mundo, dentre as quais a do corpus de minhas teses de mestrado América Latina, a questão moe doutorado, feitas nos EUA, e posdificou bastante, e a disciplina teriormente publicadas, e objeto não só abriu-se para novas postambém de outros livros, como o que sibilidades, como ampliou em A Literatura no Brasil, idealizada e coordenada publiquei pela Coleção Casa da muito sua esfera de atuação. O OFÍCIO DE ESCREVER Uma Oficina Literária não ensina um indivíduo a escrever, no sentido de dar-lhe qualquer tipo de receituário, mas a desenvolver suas habilidades como escritor; daí ela designar-se “oficina” ou “laboratório”. A Oficina Literária é um lugar de treinamento, para onde o indivíduo leva seus textos e os vê discutidos por colegas e por profissionais da área que os vão ajudar a aprimorá-los. Esses textos são reescritos diversas vezes, à medida que as contribuições dos demais participantes vão atuando sobre o autor, e este vai gradativamente aprimorando sua escrita até chegar a uma forma que o satisfaça naquele momento. É um trabalho coletivo, de enriquecimento mútuo, porque todos os participantes apresentam textos que são constantemente reescritos e reelaborados, a partir das contribuições oriundas das discussões com os demais. A Oficina Literária Afrânio Coutinho foi uma experiência pioneira nesse sentido e que produziu grandes frutos. Diversos poetas e contistas, por exemplo, ganharam muita projeção depois que a freqüentaram. E ela marcou a vida cultural do Rio de Janeiro na década de 1980.

por Afrânio Coutinho

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PROSA

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Palavra, da Fundação Casa de Jorge Amado, de Salvador. Sobre José Lins eu escrevi artigos e organizei o volume da Coleção Fortuna Crítica, junto com a professora Ângela Bezerra de Castro, da UFPB. Como se processa a empatia que tenho com esses dois autores, não creio que poderia expressar bem, embora a sinta, mas o que posso dizer é que o sertão presente neles não se atém evidentemente a um espaço geográfico delimitado. O sertão de Guimarães Rosa é ao mesmo tempo que um espaço físico, um espaço existencial, que transcende qualquer barreira de ordem geográfica, é um “sertãomundo”, para empregar a expressão de Antonio Candido, e é ainda um sertão construído na linguagem, no momento mesmo da criação literária.

Acervo Fundaj

BANDEIRA E CABRAL Bandeira e Cabral são dois de meus poetas preferidos da Literatura Brasileira. Sou leitor e grande admirador de ambos, apesar das diferenças tão grandes que os separam. Bandeira me pega pela emoção, pelo coração; Cabral pela cabeça, é o poeta cerebral. Mas não creio que a questão possa se colocar nesses termos apenas. Se formos examinar com cuidado a poesia dos dois, vamos ver que há muito também de cerebral em Bandeira e de

Eduardo Coutinho acredita que, apesar de ser conhecido como poeta cerebral, há muito de emocional em João Cabral de Melo Neto

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emoção em Cabral. O fato é que ambos, cada um à sua maneira, trabalha a linguagem de uma forma que me encanta, que mexe com os meus fantasmas. Mas há outros autores pernambucanos que me agradam muito também. Acho que Pernambuco é um Estado que construiu uma forte tradição literária. LITERATURA BRASILEIRA Acho que a literatura brasileira já construiu um espaço no cenário internacional, tanto que ela é estudada com interesse nas universidades de diversas partes do mundo, como nos EUA e na Europa Ocidental. Em alguns países, como, por exemplo, a França ou os EUA, há inclusive formação em Literatura Brasileira. Na América Hispânica ela está despertando um interesse cada vez maior e está penetrando cada vez mais os currículos universitários. No que diz respeito ao caráter estéticoliterário das obras, acho que a nossa produção não deixa nada a dever com relação às grandes literaturas do Ocidente. O que dificultou durante muito tempo o conhecimento de autores brasileiros no exterior foi a barreira idiomática, mas isso está sendo superado graças ao número cada vez maior de traduções que se têm feito de obras de nossa literatura. E essa quantidade de traduções


Reprodução

LITERATURA “O que vem sendo designado de PósModernismo no meio acadêmico atual é um movimento surgido nos Estados Unidos na década de 1960 como reação aos excessos do Modernismo anglo-saxão e das correntes teórico-críticas imanentistas, que haviam dominado o meio intelectual e artístico na década precedente”

Thomas Pychon: uma grande referência do PósModernismo literário

demonstra, por sua vez, melhor do que qualquer outro estética anterior e pelos adeptos das correntes imanentistas. Na América Latina, a discussão sobre o pósaspecto, o interesse que há por tais obras. moderno chegou na década de 1980, dividindo a crítica entre os que aceitavam a designação e os que a PÓS-MODERNISMO O que vem sendo designado de Pós-Modernismo consideravam mais uma importação forânea, pouco no meio acadêmico atual é um movimento surgido nos compatível com o nosso contexto. Deixando de lado as Estados Unidos na década de 1960 como reação aos divergências e polêmicas que se desencadearam a parexcessos do Modernismo anglo-saxão e das correntes tir daí, fato é que o termo hoje vem sendo aceito pela teórico-críticas imanentistas, que haviam dominado o crítica acadêmica para designar, sobretudo, um tipo de meio intelectual e artístico na década precedente. produção que se diferencia da modernista em alguns Surgiu com figuras como John Barth e Thomas Pyn- aspectos significativos, dentre os quais a presença chon, no campo da literatura, e Andy Warhol na esfera constante da mídia, a auto-referencialidade citada, os das artes plásticas, e teve como uma de suas principais experimentalismos flagrantes e a necessidade premente preocupações a crítica às chamadas “grandes narrativas de reler obras anteriores com o olhar do presente. da modernidade”, para empregar a expressão de FUTURO DA LITERATURA Lyotard, um de seus mais destacados teóricos. O PósEu não acredito que o mundo audiovisual venha a Modernismo cresceu e se espalhou bastante nas décadas seguintes, estendendo-se a outras partes do acabar com o livro ou com o prazer da leitura. São coisas mundo e aos mais variados setores do conhecimento, e diferentes que não me parecem incompatíveis. Ao conassociando-se às lutas políticas que se vinham então trário, acho até que as formas de expressão audiovisual desenvolvendo por parte dos grupos minoritários. Na podem contribuir para o interesse pelo livro, como é o literatura, ele foi amplamente marcado pela auto- caso dos filmes ou das novelas de televisão baseadas em referencialidade das obras e pela preocupação com a obras literárias que têm contribuído bastante para a contextualização histórica, como reação à supervalori- venda dessas obras. Não sou pessimista quanto ao futuro zação do caráter autotélico do texto defendido pela do livro. • Continente março 2007

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PROSA

Sangue Ruim Francisco Espinhara

A Israel Semente Às vezes, muitas vezes, penso em me estrebuchar: um rato no escuro, nos cantos, às cegas, vomitando sangue no assoalho limpo. Lembro-me dos engolidores de fogo das praças públicas: mesmo não engolindo o fogo, cospem fogo e são inflamáveis por alguns instantes, alcançando a admiração da pequena platéia. Vão para casa e sabem que não são vulcões ou dragões lendários. Não sei a que atribua tais lampejos, porém um rato, morto e putrefato, só causaria náuseas à casa asseada-nada que não se removesse rapidamente. Licor de Menta O meu primeiro alumbramento foi aos treze anos, licor de menta: gostei. Para emparelhar, cigarro: tudo que um jovem tímido necessita para tirar as mãos dos bolsos e afiá-las na vida: álcool e tabaco: extraordinário. Adiante, uns versos caóticos, umas mulheres murchas, caídas: Eisme então letrado, caceteiro: tudo que desejaria não ser e sou e fui e serei.

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PROSA Querida Diana.

Réquiem

Ao assunto:

(Página solta de um livro nunca escrito)

Na iminência da morte, que lhe é bem sabida, pedem-me um texto interessantemente inusitado, algo que viesse a revolver a literatura dos escombros na qual foi posta há décadas e décadas pelas mãos de críticos e escritores medíocres. Será que é dado a um escritor mediano, semimorto, cumprir missão de tal envergadura? Será que, como numa mágica repentina, num piscar de olhos, pudesse incorporar uma genialidade em desuso porque simplesmente não a possuo ou será pelo excesso de folclorismo que criaram em torno da minha figura: um suicida sobrevivente a inúmeras situações de risco e daí a pseudo-proximidade inexcludente com a abissibilidade humana? Recife... Querido... Da última vez que estivemos juntos, você C L A R A M E N T E disse que queria uma “passagem” tranqüila, sem atropelos, em paz... O que fizera até então estava feito e bem feito... mais e mais você não conseguiria. Dê um jeito nas plantas, não molhe a tampa da privada de mijo, alimente-se bem, tome as medicações a tempo e vá sossegado. Te amo...

Um ímã: por mais que expusesse o negativo, uma doçura imensurável espargia do seu ser, arrebatando-nos. Exultava em saber que o laço que o prendera a mim fora indissolúvel: ficáramos impotentes, caminhávamos um para dentro do outro sufocados, a fazer e a desfazer uma trágica comunhão. Não se dera a amizades: era um misantropo, um turrão. Cercara-se de defensivas na imaginativa iminência de que tudo-e-tudo viesse a desabar. Sentiase envolto num dilema corrosivo: nunca nem mais ou menos sim nem nunca mais ou menos não. Por um tempo, andou a me espreitar, meio que observando, analisando se poderia unir os seus descréditos aos meus ou se, pelo menos, nos havíamos em rachaduras comuns: havíamos-nos, sim, e muitas: éramos. Se éramos, não nos afastamos até o seu último lampejo. Logo após, fiquei sendo como se não mais eu mesma. À medida que fui me retomando, renascia em mim, impetuosamente, tudo o que fora ele e, sendo nós em um único ser múltiplo, tracei tais papéis com a veemência de que as minhas mãos são as dele. E as dele, onde quer que estejam, foram sempre as minhas.

Francisco Espinhara nasceu em Arcoverde (PE), em 1960, e faleceu na madrugada do dia 14 de fevereiro passado. Integrou o Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco. Foi editor do Jornal Lítero Pessismista. Poeta e contista, publicou, entre outros, os livros Sangue Ruim, Bacantes e Claros Desígnios.

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32 POESIA

Poemas de

Jaci Bezerra Fernando Pessoa: O ghost writer de si mesmo

Em louvor de Jorge Luis Borges

A Edson Nery da Fonseca, pessoano Ghost Writer de Deus só Deus me teve, mas nem Deus, sendo Deus, me possuiu: apenas porque o tive e ele me teve, a morte, quando morri, não me extinguiu. Transeunte do reino da poesia, em quartos de pensões, noturno e oculto, meu sonho construí como queria, sendo a um só tempo soberano e súdito. Foi o meu coração mundo e clausura, a língua portuguesa, pátria e lei, e os meus companheiros de aventura os heterônimos, distintos, que criei. Dei forma ao que vivi depondo a alma na alma dos homens, para ser uno e inteiro: se ao assim proceder perdi minha alma leguei ao mundo meu rosto verdadeiro.

Talvez pensasse, tudo é ilusório e Deus, quem sabe, uma invenção dos homens: nada nele, porém, é transitório, tudo cabe entre as sombras do seu nome. O que criou, aquilo que sonhava a partir de sua íntima verdade, mais do que sonho e mais do que palavra é parte de nossa íntima realidade. Se não em inteireza, pelo menos nesse tempo que aberto pelo meio anda e duplica o seu perfil sereno na superfície infinita dos espelhos. Daí porque nem o tempo nem a pátina do tempo ou outra razão qualquer, obscura, dissolve no silêncio a sua pátria real e viva: sua literatura.

É certo que a aventura de viver foi dura, mas compensou, pois, no final

Se assim não fosse, que súbita lembrança de luz manchada no silêncio virgem

da aventura que vivi pude dizer que não fui Português, fui Portugal.

acordaria, na tarde cega e mansa, o rumor e a presença dos seus tigres?

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POESIA 33

Mobiliário íntimo As paredes do sótão são feridas e a noite em flor se agacha entre os seus muros: é no sótão que o homem empilha a vida e empilha o tempo que ficou maduro. No seu interior, por entre as pilhas de tempo e mundo, a saudade cresce ressuscitando no homem maravilhas que, exceto o homem, ninguém mais conhece. Às vezes o sótão geme e chora, opresso, hora em que o homem, voltando ao seu início, sente, folheando o tempo nele impresso, que o sótão respira feito bicho. O homem habita o sótão que o habita e no chão deixa a pátina dos seus passos Sem saber explicar, quando o visita, porque no sótão o tempo é sempre intacto. Nos dias em que o sótão cheira a azedo e a memória do homem, inchando dói o homem, aninhado nos seus feudos, quer falar mas não acha a sua voz.

Souvenir do Pátio de São Pedro No silêncio cansado do Domingo a vida dentro do homem renovou-se: a dor não resistiu, tornou ao limbo, e o fel, embora roxo, ficou doce. Não sonhava no céu do Pátio uma nuvem sequer, apesar de ser inverno, quando este soneto sem nenhuma razão amanheceu no meu caderno. Sendo pacífico o sol e o inverno, louco, o homem, tomando um porre de beleza, deixou a luz invadir seus olhos ocos. Nada do que sentia era abstrato, só o azul, perturbando a natureza, tinha uma enorme vontade de ser pássaro.

O poeta e ficcionista Jaci Bezerra é alagoano, radicado no Recife. Estes poemas integram o livro Linha d´agua, editado pela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE.

O sótão, como o homem, é uma imagem feira de imagens, no tempo desdobrada: o homem sabe onde nasce a sua imagem, porém não sabe em que dia ela se apaga. Quando, para expurgar a sua angústia, o homem abre o silêncio e o sótão se abre, o tempo na memória é luz e música e, no silêncio, o homem inteiro arde. A paz desse momento é alada e exata e resplendendo, sem nódoa e sem ferrugem, a ternura do homem se desata e o sótão todo cheira a flor e nuvem.

Linha d’água, Jaci Bezerra, Companhia Editora de Pernambuco, 300 páginas, R$ 25,00.

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LITERATURA

Reprodução

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A lenda de Iracema Marco da literatura indigenista brasileira ganha primorosa reedição bilíngüe e crítica, em bela apresentação Luiz Carlos Monteiro

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m dos maiores sucessos de público do romantismo brasileiro foi, certamente, Iracema – Lenda do Ceará, publicado em 1865. O escritor cearense José de Alencar (1829 – 1877), que já havia escrito outros livros nas categorias de ficção, crítica e peças teatrais, perfaz nessa narrativa indianista o seu texto de maior lirismo, tendo Machado de Assis chegado a classificá-lo como poema em prosa. Anteriormente, Alencar tinha intentado escrever um poema épico sobre a cultura e os costumes indígenas, “Os Filhos de Tupã”, tendo abandonado o projeto no quarto canto. Contudo, quem conseguiu em poesia o que Alencar fez em prosa em seus livros sobre a temática indígena foi exatamente o maranhense Gonçalves Dias num poema como “I–Juca Pirama” – o que há de ser morto. Para Manuel Bandeira, na biografia deste poeta, “I-Juca Pirama” 'é o mais importante poema indianista de Gonçalves Dias, tanto pelo conteúdo épicodramático, como pelo sustentado vigor da linguagem, que atinge a sua maior


LITERATURA força na admirável maldição do velho tupi'. A compulsão de escrever sobre o país e seus habitantes nativos envolvia uma orientação política e documental que ultrapassava a simples exclusão de africanos dessa literatura ou a negação do legado histórico-cultural dos portugueses, estendendo-se mais longe, intentando formar uma identidade nacional a partir da valorização da terra com sua natureza tropical privilegiada e do acirramento do sentimento localista. O texto de Iracema foi republicado recentemente numa edição gráfica memorável – capa dura, papel revestido fosco com impressão policromada, ilustrações em bicos-de-pena, xilogravuras e aquarelas – pela Universidade Federal do Ceará, para comemorar os 140 anos de sua edição primeira. O texto vertido para o francês e publicado em Paris em 1928, por Philéas Lebesgue, aparece agora em fac-símile nesta nova edição. E os textos críticos são também inteiramente traduzidos para o francês – os de Machado e do próprio Alencar, do professor e crítico José Aderaldo Castello e os dos professores cearenses Sânzio de Azevedo, Beatriz Alcântara e Angela Gutiérrez, além dos sonetos de Virgílio Maia. A disposição gráfica atual com que a obra foi concebida, numa forma espacialmente solta, sem finalização rígida de frases na página, em muito auxilia a sua leitura que pode ser executada à maneira de como se lê um poema. A idealização dos povos indígenas ao lado de um preciosismo de linguagem que refunde termos tupis com o português aqui praticado leva às metáforas exuberantes, quase sempre associadas a elementos naturais como árvores e rios, vales e animais, frutos e rochas. São personagens destacados o guerreiro pitiguara Poti, que foi batizado e adotou o nome de Antonio Felipe Camarão; Iracema, a filha do pajé tabajara Araquém e o estrangeiro representante dos brancos colonizadores Martim Soares Moreno, amigo inseparável e irmão de armas de Poti. O chefe tabajara Irapuã, consumando os ritos guerreiros, fará oposição cerrada à iminente união de Iracema e Martim: “Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do espumante cauim, se inflamam à voz de Irapuã, que tantas vezes os guiou ao combate quantas à vitória. Aplaca o vinho a sede do corpo, mas acende outra sede maior na alma feroz. Rugem vingança contra o estrangeiro audaz que, afrontando suas armas, ofende o deus de seus pais e o chefe de guerra, o primeiro varão tabajara”. Martim, apesar das recomendações quanto aos poderes de Iracema entre os tabajaras e principalmente em relação ao pajé, e mesmo ante a impossibilidade dela de deixar de ser virgem, se tornará seu esposo. Iracema

“guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o pajé a bebida de Tupã”. O fato é que ela apaixona-se por Martim, hóspede de seu pai, e passa posteriormente a viver entre os pitiguaras, a tribo inimiga da sua gente. A história de Iracema não revela apenas, pela inversão de papéis, a via do amor idílico e impossível dos românticos (o preterido era geralmente o homem, que externava o seu amor através de versos derramados e melancólicos), aplicado num meio remoto e distante dos acontecimentos da civilização, mas a sua tragicidade inicial pela diferença cultural e de perspectiva entre os namorados. Martim, mesmo ao pintar o corpo segundo os costumes indígenas, não perderá a sua condição de colonizador português e de combatente da invasão holandesa. Na época em que conheceu Iracema, o seu ímpeto se afirmava na luta contra os inimigos dos pitiguaras, preferindo a aventura e a guerra à vida de caça, pesca ou repouso numa cabana no litoral cearense. Aquela com quem se casou será mãe na sua ausência, gerando Moacir, “o filho do sofrimento”. O seu leite secará e ela morrerá de tristeza e saudade. O seu filho viajará com o pai para ser criado entre os brancos. Talvez para amenizar o impacto do desfecho final, Alencar termina o seu livro com uma das muitas máximas existentes no texto: “Tudo passa sobre a terra”. Ao contrário do prólogo, que pede um leitor livre de preocupações de ordem material e afetiva, este final serve para mostrar que nem tudo no texto é adocicado, leve ou suave. E que a tragédia de Iracema logra acontecer mesmo em meio a todas as nuances positivas de ambientações e pessoas, às imagens e cores de uma natureza que vibra em todos os seus recônditos, do solo abissal e rico em minérios aos “verdes mares bravios”, das “profundas cavernas da montanha” até os reflexos de um céu que, na visão romântica, ensejava ser mais azul que o próprio azul. •

A tradução francesa integra o volume em edição fac-similar

Iracema – Lenda do Ceará, José de Alencar, Editora da Universidade Federal do Ceará, 343 páginas, R$ 70,00. E-mail: editora@ufc.br Continente março 2007

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AGENDA/LIVROS

Os proletários Divulgação

Parque Industrial, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, revela os meandros do mundo operário e suburbano de São Paulo nos anos 30. Patrícia Galvão (Pagu), feminista pioneira e militante de esquerda, utilizou-se do pseudônimo Mara Lobo, mais para atender ao PCB do que por questões de medo ou postura individual. A linguagem é bastante ousada para a época, com derivação das ruas, bares, fábricas ou prostíbulos. A autora, de origem pequeno-burguesa, fez-se operária para escrever sobre a industrialização de São Paulo. (LCM) Parque Industrial, Patrícia Galvão (Mara Lobo), José Olympio Editora, 126 páginas, R$ 25,00.

Exercício metafórico Primeiro romance da contista Cíntia Moscovich revela autora madura

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elo menos três linhas temáticas orientam o romance recém-publicado de Cíntia Moscovich Por que Sou Gorda, Mamãe?. A relação sofrida e ao mesmo tempo simbiótica com a mãe. O questionamento profundo de literatura e vida prática tendo como conseqüência o assumir-se definitivamente como escritora. A obsessão pela gordura que serve de explicação para tudo no texto. Há passagens de um humor impagável, como aquela em que a vaca Mimosa recusa o leite à família judaica imigrante, mas é flagrada de noite dando de mamar a uma cobra. Outra em que três tias da protagonista, com seu peso excessivo, quebram o eixo de um carro importado que é o orgulho do patriarca judeu. A narradora, na conversa unilateral e intimista que mantém com a mãe, expressa uma relação de amor e ódio, de compaixão e culpa, de admiração e dependência familiar. A comida, num pólo, significa gula, satisfação ou prazer; no outro, pelo excesso, tristeza e imobilidade melancólica. Em praticamente todos os capítulos, a personagem central vai, juntamente com um médico, acompanhando a diminuição de peso e comemorando a caráter, isto é, comendo. Cíntia mostra que o “gordo” é outro “diferente” desde que o mundo é mundo – as funções e atos da vida não são os mesmos para quem, dentro da normalidade cotidiana, representa, por vezes, uma espécie de “anormalidade” corporal e orgânica. E isto, mesmo que o gordo mostre-se externamente um ser alegre e sadio. Ao lado de um estilo limpo, enxuto e amadurecido, o exercício metafórico de Cíntia Moscovich se faz desconcertante e inusitado: “De noite, o tormento se multiplicava e eu tinha medo das sombras que juntavam o chão ao teto, que colavam o armário à parede, que iludiam meus olhos a ponto de eu não ver o perigo”. (Luiz Carlos Monteiro) Por que Sou Gorda, Mamãe?, Cíntia Moscovich, Editora Record, 256 páginas, R$ 39,00. Continente março 2007

Olé! Nas palavras de Hemingway , a Espanha era “o país que mais amo além do meu”. O novelista e jornalista americano, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1954, autor de importantes obras como O Velho e o Mar e Adeus às Armas, faz uma segunda viagem à terra dos toureiros para contar a história quase mítica da rivalidade entre dois deles. O Verão Perigoso reúne crônicas cheias de estilo, tão em falta no jornalismo moderno. O Verão Perigoso, Ernest Hemingway, Bertrand Brasil, 240 páginas, R$ 35,00.

Nem preto, nem branco O economista e professor Carlos Alberto Fernandes sabe que, em se tratando das relações humanas, sejam econômicas, políticas ou interpessoais, não existem verdades últimas: há perspectivas possíveis, ainda que contraditórias. Contraponto é uma seleção de textos publicados em jornais e na Revista Continente Multicultural em que o autor mostra sua verve ensaística e aborda a realidade brasileira (e pernambucana, particularmente) de forma não simplificadora, derrubando mitos políticos e dogmas econômicos que, muita vezes, acreditamos serem fatos consumados da realidade. Contraponto, Carlos Alberto Fernandes, Companhia Editora de Pernambuco, 246 páginas, R$ 20,00.

Fup, a pata Um velho ermitão vive num rancho, em companhia de seu neto de 1,92m e 135kg – o Miúdo – e a pata Fup, obesa e incapaz de voar. Fabrica e bebe um uísque chamado Velho Sussurro da Morte, enquanto o neto constrói cercas e tenta caçar o porco-selvagem CerraDentes, inimigo visceral, com a ajuda da gulosa e malhumorada Fup. Esta pequena fábula de Jim Dogde, lançada em 1983 e reeditada agora no Brasil, com seu registro de realismo-mágico à americana, tornou-se um cult, arregimentando devotos em todo o mundo. Fup, Jim Dodge, José Olympio, 98 páginas, R$ 22,00.


Livro-reportagem Oito jornalistas narram seus encontros com personagens memoráveis

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lijada, por miopia empresarial, do jornalismo periódico no Brasil, a grande reportagem mudou de suporte – instalou-se nos livros, onde exibe fôlego ainda maior do que em seu espaço original. Os exemplos são inúmeros e o último deles é O Livro das Grandes Reportagens, trazendo uma proposta original: os autores de reportagens exibidas pelo programa televisivo Fantástico foram chamados a escrever textos inéditos, em primeira pessoa, sobre seus entrevistados mais interessantes. Assim, Pelé, num rasgo de imodéstia, jacta-se a Geneton Moraes Neto de que o valor de seu passe atualizado, hoje, daria para pagar a dívida externa brasileira. Luiz Carlos Azenha conversa com o primeiro homem a fazer xixi na Lua. André Luiz Azevedo escuta “coisas de estarrecer” do ex-presidente Figueiredo. Joel Silveira traça um perfil de Monteiro Lobato, Edney Silvestre registra a opinião de Allen Ginsberg de que “ser poeta é o melhor emprego que se pode ter”, William Waack flagra o aiatolá Khomeini, “venerado como uma divindade”, Fernando Molica O Livro das Grandes narra o último encontro com Brizola, e Reportagens, vários José Hamilton Ribeiro, repórter calejado autores, Editora Globo, 337 páginas, da guerra do Vietnam, considera seu R$ 33,00. personagem inesquecível, Zé Bilico, um singelo produtor rural de Itapecerica. O livro é organizado por Geneton Moraes Neto, editor do Fantástico e colaborador da Continente.

Escritor revelação Considerado o maior teórico do cinema brasileiro, Paulo Emílio Sales Gomes, já na maturidade, resolveu enveredar pela ficção. Escreveu, então, três contos longos em que o personagem, sempre chamado Polidoro (nome que testa até a neurose), se relaciona com três mulheres num clima de engodos e revelações drásticas. Os contos se passam no meio da provinciana e medíocre burguesia paulista, criticada em enredos que oscilam entre o patético e o ridículo. Os três personagens masculinos pensam que dominam suas mulheres mas, na verdade, são manipulados e traídos por elas. Curiosamente, é na revelação de seu engano que conseguem sair de suas capas de “bom comportamento social” para se verem como seres humanos de verdade. Impressiona o domínio técnico do escritor estreante, que utiliza uma linguagem retórica, oscilando entre o pedante e o coloquial. É uma pena que após ter experimentado a ficção com prazer, como confidenciou à sua mulher Lygia Fagundes Telles, Paulo tenha sido surpreendido com uma morte súbita. (Marco Polo) Três Mulheres de Três PPPês, Paulo Emílio Sales Gomes, CosacNaify, 200 páginas, R$ 45,00.

AGENDA/LIVROS Aquecimento global A explosão na imprensa dos problemas de aquecimento da Terra, que tanto têm preocupado pessoas de todas as classes, vem sendo sistematicamente anunciada pelo inglês James Lovelock, cientista, escritor e líder ambientalista. Em A Vingança de Gaia, ele analisa não apenas a situação atual como propõe medidas para o futuro. Com uma visão aberta e sem o fanatismo cego de certos “verdes” que se opõem a tudo que não for natural, Lovelock, pelo contrário, procura ver na tecnologia os meios que o homem ainda pode utilizar para neutralizar o mal que tem feito sistematicamente ao planeta e pelo qual começa a pagar. A Vingança de Gaia, James Lovelock, Intrínseca, 160 páginas, R$ 29,90.

Amor ao silêncio

Silencieiro é o neologismo criado pelo escritor Antonio Di Benedetto para designar seu personagem, um jovem que tenta ser um “fazedor de silêncio”. Num mundo cada vez mais espalhafatoso e em que as pessoas parecem necessitar fazer barulho para se sentirem vivas ou acreditarem que estão felizes, este amante do silêncio está fadado a sofrer. Experimenta todo tipo de artifícios para combater o barulho que tanto detesta, até mesmo tornar-se surdo, num crescendo desesperado. Com este livro, mais Zama e Los Suicidas, Benedetto consagrou-se como um dos maiores escritores argentinos do século 20. O Silencieiro, Antonio Di Benedetto, Editora Globo, 160 páginas, R$ 28,00.

Intimidades do gênio Gênio que em apenas 35 anos de vida tornou-se imortal, Mozart revela-se um espírito brincalhão e irreverente, critica os excessos da nobreza de sua época e sente-se injustiçado por não ver seu talento reconhecido. Toda esta intimidade o leitor pode ver em Cartas de Mozart, que o compositor endereçou a sua esposa, sua irmã, sua prima, sua mãe e, principalmente, ao seu pai, durante suas viagens pelo mundo. São flagrantes do dia-a-dia, mostrando todo um pano de fundo social e político em que se movia o compositor que, para compor, precisava de “uma cabeça descontraída e de uma posição serena”. Cartas de Mozart, Will Reich, EdUFF, 396 páginas, R$ 35,00.

Escritores ao vivo Como seria Liev Tolstói pessoalmente? Um homem com aparência de um deus; mas não um deus majestoso, um deus astuto. Um homem de problemas resolvidos, mas próximo ao coração do mundo. Fisicamente, tinha mãos feias e nodosas, por isso mesmo expressivas de sua força criativa. Eis como o escritor russo Máximo Gorki pinta o autor de Guerra e Paz, para depois falar de dois outros artistas também grandes, mas totalmente diferentes: o doentio e irônico Anton Tchekhov e o atormentado pessimista Leonid Andrêiev. Ao final, Gorki assina um texto autobiográfico, em que demonstra como se tornou um escritor. Três Russos, Máximo Gorki, Editora Martins Fontes, 198 páginas, R$ 36,50. Continente março 2007

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FOTOGRAFIA

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Civilização do couro O fotógrafo Geyson Magno reúne em livro as imagens produzidas em três anos de andanças no Sertão nordestino Monique Cabral

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vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode, seca, e um saco cheio de farinha, com quartos de rapadura dentro”, esse cotidiano tão corriqueiro na vida dos sertanejos, descrito na prosa de Rachel de Queiroz, foi registrado pela lente do fotógrafo Geyson Magno no livro Encourados (R$126,00). Um portfólio de imagens que foge do trabalho comum sobre um tema tão familiar aos brasileiros, revelando o dia-a-dia do homem nordestino, o olhar intenso, a pele marcada pelo sol, a luta, o sofrimento do vaqueiro em seus trajes de couro, seus modos e particularidades. Foram três anos viajando pelo Sertão dos Estados nordestinos e conquistando a confiança de seus personagens. O resultado pode ser visto nas 164 fotografias coloridas, que vão dos detalhes às grandes paisagens, divididas em cinco capítulos “Do Engenho à Criação”, “Honra e Sorte”, “O Som do Fogo”, “Carne Viva” e “Consagração”. Símbolos vazados, lembrando as marcas feitas no gado para identificação de seu dono e trechos das obras de escritores brasileiros que traduziram a saga dos “encourados”, como Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Ascenso Ferreira, Ariano Suassuna, ilustram o início de cada tema. Além disso, o livro traz textos da jornalista Adriana Victor, arte gráfica do designer Ricardo Gouveia de Melo e Manuel Dantas Suassuna, abordando também a música, com um CD encartado, contendo a trilha sonora composta por Berna Vieira, para a exibição das mesmas imagens. •

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FOTOGRAFIA

"No princípio, era o couro. Navegavam nos couros o sertão de couro, e o sertão era o couro, e o couro era o sertão” Gerardo Mello Mourão


FOTOGRAFIA

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PERFIL Maria Alice Amorim

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Continente marรงo 2007

O andarilho da poesia


Cordelista e xilogravurista José Costa Leite tornou-se, este ano, Patrimônio Vivo de Pernambuco, ao lado da circense Índia Morena e do Homem da Meia-Noite

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Maria Alice Amorim

I

Costa Leite, cuja temática inclui aventura, peleja, exemplo e safadeza, perdeu a conta de quantos folhetos escreveu

Maria Alice Amorim

mersa num mundo rural – universo cultivado por histórias fantásticas, maravilhosas, cantadas e narradas em viva voz – foi a infância do poeta José Costa Leite, escritor de versos de cordel, xilógrafo e astrólogo amador. Nascido em 27 de julho de 1927, Costa Leite não freqüentou nenhum dia de escola, alfabetizou-se no mesmo ambiente onde morava. Ele estreou vendendo, declamando e escrevendo os livrinhos, em 1947, Eduardo e Alzira – “uma historinha de amor” – e Discussão de José Costa Leite com Manuel Vicente. O primeiro almanaque foi feito em 1959, para o ano de 60, e chamava-se, àquela época, Calendário Brasileiro. As primeiras xilogravuras são de 1949, para os folhetos, de própria autoria, O Rapaz que Virou Bode e a Peleja de Costa Leite e a Poetisa Baiana. Costa Leite, andarilho das tradições, é testemunho vivo de 60 anos de peregrinação por feiras e mercados de Pernambuco, Paraíba, Ceará. Quase 80 anos com vigor físico e disposição suficientes para enfrentar pelo menos duas viagens por semana: a Itambé e Itabaiana, na segunda e terça-feira, respectivamente, a fim de comercializar os folhetos que faz. Xilogravura não leva, pois o público das gravuras de parede está muito mais nas galerias de arte do que ali, no meio dos bancos de feira. É de Sapé, na Paraíba, radicado na Mata Norte pernambucana desde o final da década 30. A partir de 1955 estabeleceuse de vez na cidade de Condado. Voz imortalizada, na década 70, em três LPs gravados no Conservatório Pernambucano de Música, nos quais deixou registradas histórias de cordel, Costa Leite já cantou muito na feira da cidade onde vive e na vizinha Goiana. Cantava e vendia bem nas feiras. Ainda dá voz a uma ou outra estrofe. No final de janeiro, em Itambé, recitou e cantou trechos de folheto da própria autoria, O Sanfoneiro que Foi Tocar no Inferno, mais alguns versos de O Navio Brasileiro, clássico de Manoel José dos Santos. Infelizmente não atraiu quase nenhum comprador, embora vários camponeses tenham parado diante dos livrinhos, expressando visível alegria por encontrar ali um pedaço da infância. No serviço da indústria açucareira, José Costa Leite trabalhou em tudo: plantou, cortou e limpou cana, foi cambiteiro. Cambista, mascate, camelô de feira. Vendia remédio, folheto e pomada, andava com serviço de som. Também foi agricultor durante uns 30 anos em Condado, mas se sentia tão explorado que terminou dei-

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PERFIL Reprodução

Capas dos Calendários escritos pelo poeta há 48 anos, na tradição dos almanaques

Reprodução

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xando. Visitante assíduo da capital desde os primórdios da profissão, vem semanalmente ao Recife entregar originais ou receber as edições produzidas na editora Coqueiro. Autor inventivo, é dotado de imaginação prodigiosa, facilidade de construir imagens poéticas e senso de humor. Escreve diariamente. Aventura, peleja e discussão, exemplo, safadeza e putaria são alguns dos temas preferidos. Criou pelejas fictícias com importantes personagens do mundo da cantoria de viola e da poesia popular, como Patativa do Assaré e Ivanildo Vila Nova. Tem 20 títulos, recentes, publicados sobre Lampião e Antônio Silvino. Escreveu, há pouco, 14 exclusivamente sobre o enfezado Seu Lunga, sete dos quais já editados. De inéditos, tem o folheto Peleja de Lino Pedra Azul de Lima com Maria Roxinha da Bahia, o livro Saudade do meu Sertão, e um outro de versos fesceninos, que pretende lançar sob pseudônimo para, segundo ele próprio, não manchar a reputação. Prática recorrente em tempos de censura, já usou, em diversos cordéis, os codinomes H. Romeu, João Parafuso, Seu Mané do Talo Dentro, Nabo Seco. Da nova leva dos de safadeza, nos quais predominam a picardia e as palavras de duplo sentido, escreveu A Velha do Tabaco Cheiroso e o Velho dos Ovos Grandes; A Pulga na Camisola; O Matuto que se Amigou com uma Vaca, entre outros. Como acontece a diversos autores de cordel, o talento de José Costa Leite não fica restrito à escrita. É ele quem desenha e talha, na madeira, as ilustrações de capa dos próprios folhetos. Conforme tradição dos gravadores populares pernambucanos, que se iniciaram a partir da experiência com a poesia, aprendeu sozinho a arte da gravura, vendo uma matriz do poeta e xilógrafo Inácio Carioca. É esta a escola que Costa Leite, J. Borges, Dila e Marcelo Soares seguem, porém com traço próprio e estilo absolutamente singular. Em Costa Leite, a composição dos tacos para capa de folheto é feita, às vezes, com um busto individual ou de casal, à maneira da fotografia de artistas de cinema muito usada nos cordéis dos anos 50 e 60. Detalha as formas com minúsculos elementos, sobretudo muitos rostos, sempre com sugestão de movimento. Às vezes, desenha a partir de uma imagem ou fotografia que, inclusive, já tenha aparecido na capa de folheto de um outro autor. O que, nem de longe, desmerece a produção do artista. Ao contrário, aponta para as apropriações e reapropriações recorrentes no mundo da arte, não apenas da arte popular. No campo da astrologia, Costa Leite escreve, há 48 anos, o Calendário Nordestino. Baseia-se no Lunário Perpétuo, Tarô Adivinhatório, livros de plantas medicinais e um manual de astrologia prática, que consulta sempre. De todos estes materiais que utiliza, o mais tradicional é o Lunário, escrito por Jeronymo Cortez Valenciano, editado pela primeira vez no ano de 1703, e que faz parte do repertório bibliográfico de almanaque de cordelistas desde os primórdios destas tradições no Brasil. Durante cerca de 200 anos foi um dos livros mais lidos no Nordeste brasileiro, por conter informações úteis ao homem do campo, a


propósito de fitoterapia, astrologia, agricultura, meteorologia. Em 2007, Costa fez tiragem de mil exemplares do seu Calendário e não tem mais nada em estoque. A distribuição vai a todos os Estados do Nordeste, ao Rio de Janeiro e São Paulo. Dotado de inspiração generosa, perdeu a conta de quantos livros editou. Não tem a menor idéia da quantidade de histórias que fez chegar a leitores e ouvintes, além dos muitos manuscritos inéditos que aguardam a vez. Entretanto, as feiras não rendem mais como antes, pois “caiu de moda”, segundo o poeta. Claro que o problema não é com a fluência do verso, é com as vendas. Incontestável também o fato de que o gosto pelos cordéis, almanaque e xilogravura tem conquistado outros públicos, e cada vez mais chega ao circuito de salões e galerias de arte. O que, de modo algum, é ruim. Em 2005, nas festividades

do ano do Brasil na França, Costa Leite teve oportunidade de conhecer Paris, onde participou de uma exposição de xilogravura e cordel, ministrou oficina de gravura e inscreveu seu nome no livro Du Marché au Marchand: la Gravure Populaire Brésilienne, organizado pelo brasileiro Everardo Ramos, numa edição do Musée du Dessin et de l’Estampe Originale de Gravelines. Está no livro Charlemagne, Lampião & Autres Bandits – Histoires Populaires Brésiliennes, Éditions Chandeigne, de Paris, maio de 2005, com as xilogravuras feitas para o folheto Viagem a São Saruê, de Manoel Camilo dos Santos. Incansável andarilho das tradições, amante das ciências ocultas e das artes, assim vai o poeta, expandindo-se, pedindo licença a outro poeta para passear pelo mundo fantástico, mágico da criação artística, pelo mundo de São Saruê. •

O poeta e xilógrafo José Costa Leite, a artista circense Índia Morena e o clube de alegoria e crítica O Homem da Meia-Noite são os contemplados de 2007 na Lei do Registro do Patrimônio Vivo de Pernambuco, que se juntam aos 12 nomes do primeiro concurso, ano passado. Editada em 2002, a lei do RPV tem por objetivo preservar expressões da cultura popular com a concessão de três bolsas vitalícias a cada ano, estimulando-se, ainda, a transmissão destes saberes tradicionais em programas de ensino e aprendizagem. Um dos premiados deste ano, José Costa Leite, forma com J. Borges e Dila – poetas xilógrafos selecionados em 2006 – a trinca dos mais antigos cordelistas-gravuristas do Estado, que se iniciaram primeiro na poesia e depois passaram a também desenhar e gravar na madeira as capas da própria produção poética. O Homem da Meia-Noite é o mais antigo boneco gigante de Olinda e vem animando as ladeiras do sítio histórico desde 1932. O percurso é sempre o mesmo desde o princípio e o boneco desfila com um relógio e a chave da cidade. A saída é à meia-noite do sábado, partindo da sede, que fica em frente à igreja do Rosário dos Homens Pretos, bairro do Bonsucesso. O local é marcado pela prática Leo Caldas / Titular de tradições culturais de negros escravos, desde a construção, na segunda metade do século 17, e foi a

primeira igreja em Pernambuco a ter irmandade de homens pretos. A escolha do Homem da Meia-Noite contempla, mais uma vez, uma brincadeira de carnaval: um dos eleitos de 2006, foi o maracatu Leão Coroado, folguedo carnavalesco que, desde o princípio, é brincadeira de negros. Grande dama do circo pernambucano, Margarida Pereira de Alcântara, ou Índia Morena, recebe justa homenagem pela dedicação profissional exclusiva à vida circense. Considera o circo um palácio onde vive satisfeitíssima, desde os 10 anos, quando decidiu largar a família e entregar-se ao picadeiro. “Ali eu vi o mundo”: assim nasceu para a vida, não somente a vida artística, ao mergulhar a primeira vez na lona de um circo e sagrar-se como trapezista voadora e melhor contorcionista pernambucana. Desde 1977 é proprietária do Grand Londres, onde é cantora, apresentadora e contracena com os palhaços. •

Leo Caldas / Titular

Sedução de poesia, circo e carnavais


SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Astúcia e sabedoria dos provérbios populares (II) "Dize-me o que comes e ti direi quem és" Brillat Savarin (A Fisiologia do Gosto)

N

a edição anterior desta Revista Continente, falamos da importância dos provérbios em nossa cultura popular e profunda. Agora, no complemento do texto, damos informações mais precisas sobre alguns dados, divididos em quatro grupos: o dos que requerem informações culinárias; o dos que necessitam de explicações, para uma melhor compreensão; os politicamente incorretos; e, por fim, aqueles que, sem dados históricos, perdem seus sentidos originais. Falaremos, nessa edição, dos dois primeiros grupos. E na próxima, dos dois últimos. De logo encarecendo ao amigo leitor que, se lembrar de mais alguns, por favor envie à coluna para uma próxima edição. Provérbios com informações culinárias: Seguem informações de alguns provérbios, referentes a alimentos ou sua preparação, que podem interessar ao leitor: “A fome é o melhor tempero” – Tempero é adicionado à comida para lhe dar sabor. Os mais comuns são ervas (orégano, salsinha, cebolinha, manjericão, hortelã, louro); especiarias (cravo, canela, noz-moscada, pimentas); condimentos preparados ( mostarda, molho de soja, molho inglês); vinagres (de uva, de maçã, balsâmico); e o mais comum de todos, o sal. Apesar disso melhor tempero de comida, toda gente sabe, é mesmo a fome. “A verdade e o azeite andam em cima” – Como todas as outras gorduras esse azeite, quando misturado a outros líquidos, sempre sobe à superfície. Assim se dá, por exemplo, com a nata no leite. Por isso, por serem mais leves, “andam” (ficam) mesmo por cima.

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o Reproduçã

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SABORES PERNAMBUCANOS “Amizade remendada, café requentado” – O café, depois de pronto, não deve nunca ser reaquecido. Que esse segundo aquecimento provoca a destruição de substâncias responsáveis pelo seu aroma e seu sabor. E o café fica amargo. “Azeite, vinho e amigo, melhor o antigo” – O provérbio vale para os amigos, sempre. Só quem come 30 kg de sal (um quilo por ano) é amigo de verdade. Vale para os vinhos, às vezes (que a maioria, com o tempo, vira vinagre). E para os azeites, nunca. Que azeite, qualquer que seja, depois de um ano perde qualidade e sabor. Azeite, pois, sempre melhor o novo. Com certeza. “Barato que só bolo de goma” – Entre os alimentos, é mesmo dos mais baratos. Goma é o polvilho da mandioca. Com ela se faz tapioca, biscoitos, beijus e bolo de goma. A receita é simples, rende muito e é barata – 2 gemas, 250 g de açúcar, 30 g de sal, 250 g de manteiga, 1 kg de goma e leite de coco. Misture bem, até dar a consistência. Depois faça uma tira e corte com tesoura, dando a forma de sua preferência. Asse por 30 minutos. “Cada um puxa a sardinha para sua lata” – Sardinha é peixe pequeno que pode ser consumido fresco (frito) ou em conserva (no óleo ou no molho de tomate). Recebeu esse nome por ter sido descoberta nas proximidades da Sardenha (Itália). Como vivem em cardume, são sempre pescadas em grupos, cada um dos pescadores tirando a sardinha da água e pondo em sua lata. “Casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão” – Pão é o principal alimento de todos os povos, desde a pré-história. Símbolo de alimentação, o logotipo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) traz a frase Fiat panis (Faça-se o pão), inspirado no bíblico Fiat lux (Faça-se a luz – Gênesis 1,3). “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher” – Colher vem do grego kokhlus. O homem primitivo usava conchas de moluscos para mexer os alimentos, durante sua preparação. Ou para servi-los à mesa. Depois passaram a ser fabricadas com osso e pedra. Mais tarde foram se sofisticando, no material e na forma. Maiores para a sopa, menores para a sobremesa. Câmara Cascudo descreve esses utensílios quase como um jogo de sedução: “na hierarquia do talher, a faca é presença agressiva; enquanto a colher, para o povo, é a mão com os dedos unidos, assegurando a concavidade receptora e natural”. Pode-se meter a colher em quase tudo. Mas, pensando bem, nessa briga melhor mesmo é deixar a colher de fora. “Gato escaldado tem medo de água fria” – Escaldar é mergulhar por alguns minutos em água fervente – processo usado para facilitar no descasque, na conservação de frutas e legumes, e na esterilização de utensílios.

“Macaco, quando não pode comer banana, diz que ela está verde” – É que bananas verdes não devem nunca ser consumidas ao natural. Porque travam na boca. As verdes, só quando transformadas em sopas, massas, doces e salgados. Interessante é que macacos têm uma técnica especial para descascar, sem que fiquem grudados na banana aqueles fiozinhos amargos. O segredo é começar a descascar pela ponta (o bico preto), que não fica grudada no cacho. O contrário do que fazemos, pois. Sugiro ao leitor que tire a prova. Funciona. “Não há mulher sem graça nem festa sem cachaça” – Índios brasileiros não conheciam essa cachaça. Usavam garapas à base de frutas ou raízes mastigadas para produzir fermentação. Depois vieram os primeiros engenhos e o açúcar começou a ser produzido. A espuma da primeira fervura do suco da cana, por não ter serventia, era então colocada em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto fermentava com facilidade; e meio por acaso, pouco a pouco, os escravos começaram a apreciar suas qualidades. Ajudava a suportar o frio e dava disposição para o trabalho duro no canavial. E ainda servindo como remédio para quase tudo – reumatismo, sífilis, picada de cobra. Mulher sem graça pode até ter. Mas festa sem cachaça, no Nordeste, é meio difícil. “Não se faz omelete sem quebrar ovos” – É que omelete se faz com ovos batidos. Melhor quando firme por fora e úmido por dentro. Pode ser servido simples ou recheado com queijo, presunto, galinha, camarão, ervas finas. A França é recordista em receitas de omeletes. São mais de 125. Contam que Balzac (1799 –1850), enquando escrevia suas obras, comia somente omeletes acompanhados de chá. “Não sou colher de pau para mexer mingau” – Qualquer mingau que se preze é sempre feito em fogo brando com colher de pau. Isso toda gente sabe. É assim desde a mais remota antiguidade. Para que a farinha (de trigo, de arroz, de sêmola, de milho, de mandioca), em contato com o leite, não forme caroços. “Não venda gato por lebre” – Lebre é parente do coelho. Menor no tamanho, a carne é muito mais apreciada na Europa do que por aqui. O risco, presente em algumas mesas, é comer (sem sentir) em seu lugar carne de gato - dado serem semelhantes, no sabor. “Nem bebas da lagoa, nem comas mais que uma azeitona” – A razão do provérbio é que águas estagnadas, assim como o excesso das azeitonas (muito mais que uma, claro), são nocivas à saúde. “Ninguém fica pra semente” – A semente pode guardar suas qualidades por muito tempo, antes de ser lançada à terra e germinar. Por isso, na linguagem bíblica se diz de quem vive muito além da média. A frase é também usada como metáfora, tendo essa semente o sentido de “descendência”. Continente março 2007

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SABORES PERNAMBUCANOS

“O frango de hoje é preferível ao galo de amanhã” – O provérbio ensina que a carne mais nova do frango é sempre melhor e mais saborosa que a visivelmente mais dura dos galos. “Para quem ama, catinga de bode é cheiro” – O cheiro forte do bode é causado por glândula que se desenvolve, na sua cabeça, a partir dos 5 meses de vida. Para ganhar em sabor, melhor abater antes dessa idade. “Pimenta nos olhos dos outros é refresco” – A pimenta arde porque tem “capsaicinóides” – substância, sem cheiro nem sabor, que estimula as células nervosas da boca produzindo a sensação de ardor. Quanto mais “capsaicinóides” tiverem as pimentas, mais a boca fica pegando fogo. Outro provérbio bem popular é reprodução deste, apenas trocando olhos por outra parte do corpo. “Uma azeitona ouro, segunda prata, terceira mata” – Azeitonas são muito calóricas. Cada 100 g de azeitona verde tem 140 cal. As pretas, 180 cal. Mas o provérbio é um exagero; que, certamente, uma azeitona a mais não mata ninguém. “Vinho velho, amigo velho, ouro velho” – Nem sempre é assim. Vinho velho só bem guardado. Para isso alguns conselhos: somente guarde a garrafa deitada para não ressecar a rolha; o local deve ser fresco e sobretudo escuro – pois a luz o deixa turvo, prejudicando seu aroma. Por isso, caso não tenha adega especial, melhor consumir o vinho no máximo em três anos. Provérbios que necessitam de explicações: Alguns desses provérbios populares têm forte influência dos locais de onde vêm. Fazem sentido, sobretudo, para aqueles que têm os códigos para compreender seu sentido. Ocorre que, a outros, muitas vezes simplesmente parecerão incompreensíveis. À força de repetições, continuam a ser ditos fora de seu contexto. Segue relação de alguns deles: “Da ostra sai a pérola”– Só lembrar que, por aqui nunca se encontrarão pérolas em ostras. Nem as naturais ( de melhor qualidade e mais caras), encontradas em Sri Lanka, Austrália e Golfo Pérsico. Nem as cultivadas, produzidas sobretudo no Japão – entre elas Akaya Gai, South Seas, Mabe, Blister, Barroca. Que as espécies brasileiras – encontradas no litoral de Santa Catarina, no litoral sul de São Paulo e nos mangues do Nordeste –jamais produziram uma única pérola. Continente março 2007

“Dar uma canja” – Nada tem a ver com galinhas. E remonta aos anos 60, no Clube dos Amigos do Jazz – conhecido pela sigla CAMJA. Lá os instrumentos eram deixados à disposição dos freqüentadores do clube, que se aventuravam em improvisos. Assim, “dar uma canja” é tocar de improviso, sem planejamento, de graça. “Macaco velho não mete a mão em cumbuca” – A origem do provérbio vem da África. Lá, para apanhar macacos vivos (destinados à zoológicos ou circo), usa-se colocar pedaços de açúcar em uma cumbuca (cabaça), presa por cordas a uma árvore. Na cabaça faz-se um pequeno orifício, suficiente apenas para passar uma mão (de macaco) aberta. O macaco, sentindo cheiro do açúcar, põe a mão na cumbuca, pega o tablete, mas quando puxa ela já não passa pelo pequeno buraco. Por não renunciar ao açúcar, não abre a mão. E é preso, em seguida. “Não confunda alhos com bugalhos” – Bugalho é saliência arredondada que se forma em algumas árvores – carvalhos, sobreiros, azinheiras. Nele as vespas depositam seus ovos. Em Portugal, crianças usam esses bugalhos como bolas de gude. Parecidos nos nomes, alhos e bugalhos são muito diferentes na forma. “O boi é que sobe, o carro é que geme” – Esse carro que geme é o “de boi”, surgido no Brasil com os primeiros engenhos de açúcar. Para transportar cana, açúcar, lenha e gente. São, ainda hoje, feitos com madeiras fortes – pau d’arco, aroeira, sucupira, carnaubeira; e formados por duas rodas, uma grade e um eixo. A grade se apóia sobre o eixo. O ponto de apoio são duas peças chamadas “cocão”. Rudimentares, quase nunca usam graxa ou óleo. Sendo o gemido (ou cantiga) do carro de boi produzido pelo atrito do cocão sobre o eixo. “O caso eu conto como o caso foi, porque homem é homem e boi é boi” – Foi na primeira parte desse provérbio que se inspirou o grande pernambucano Paulo Cavalcanti, para dar título a seu mais conhecido livro. “Quem não trabuca, não manduca” – Trabucar é trabalhar. E manducare, em latim, é comer com as mãos – num tempo em que não se usava talher. Traduzindo, quem não trabalha não come. “Quem tem boca vai a Roma” – A frase, com o tempo, foi trocando de sentido. Que primeiro, essa boca se referia a “comer” – quando, no tempo do Império Romano, Roma era centro gastronômico. Lá estavam as melhores e mais requintadas iguarias. E os melhores cozinheiros. Aos poucos, passou essa boca a referir apenas pessoas que conseguem tudo com uma boa conversa. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Curiosidades insólitas

1.

O Marechal Hermes da Fonseca (“perna fina / bunda seca”, como se dizia na época), ficou realmente deslumbrado quando andou pela primeira vez no bondinho do Pão de Açúcar. Queria saber de tudo, principalmente como funcionava aquele prodígio. Virou-se para o ajudante-de-ordens e indagou: – Como o bondinho chegou até aqui? – Por um cabo, Excelência... – Cabo? Temos de promovê-lo imediatamente a sargento!! 2. Segundo acurados cálculos do professor Bartolomeu Fedegoso, perito em Numerologia Marcial e Balística Aplicada, se fossem encontradas todas as balas perdidas disparadas nos últimos dois anos no Rio e em São Paulo pelo narcotráfico e pelas polícias civil e militar dos dois Estados, elas dariam para garantir o poder de fogo durante quatro anos de duas divisões do nosso Exército. 3. Utilizando sempre palavras ocas e valendo-se apenas de verbos gasosos, adjetivos etéreos e substantivos imponderáveis – e abordando temas rarefeitos –, o escritor Oldegázio Pimentel conseguiu destacar-se como dono da prosa mais vazia da nossa literatura. 4. Pequeno e instigante mistério: até hoje, os sexólogos (inclusive os de Corfu, considerados os melhores do mundo) não encontraram os motivos pelos quais todo homossexual é um ressentido mal-humorado – e todo gay um alegre esfuziante. • Continente março 2007

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ARTES

Arte para ver, vender e comprar Galerias disputam difícil mercado do Recife, apostando em outros perfis Olívia Mindêlo Fotos: Daniela Nader

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ARTES

Amparo 60, a mais antiga galeria pernambucana dedicada à arte contemporânea

E

nquanto São Paulo ostenta hoje um cenário de mais de 60 galerias e escritórios de arte, o Recife se resume a oito espaços voltados à comercialização de obras. A comparação poderia soar injusta se considerássemos a dimensão espacial e demográfica da capital paulista, além da sua história econômica, mas faz sentido se olharmos a produção efervescente de uma cidade como o Recife, cujos artistas sempre foram, e continuam sendo, referência dentro e fora do Brasil. Apesar do mercado de arte difícil, desproporcional à quantidade e à qualidade dos artistas locais, os galeristas da capital pernambucana têm conquistado território neste sempre oscilante chão da arte contemporânea – e dos negócios da cidade no setor. Uma das razões para essa sobrevivência é que cada espaço procurou definir mais o seu perfil. Uns apostaram na produção atual, mais ousada e menos vendável em curto prazo; outros resolveram mesclar suas opções e Continente março 2007

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ARTES

Lúcia e Nadja Dumaresq, donas da galeria (abaixo) que leva seu sobrenome

ainda há os casos mais tradicionais, dos marchands veteranos, que ainda preferem não arriscar tanto para continuar apostando as fichas no público colecionador, que vê a arte acima de tudo como um investimento. Não é o caso das galeristas Lúcia Santos, Nadja Dumaresq e Mariana Moura, por exemplo. Lançando mão de um olhar mais atualizado em relação à produção de artes visuais, porém com idades e histórias bem diferentes, as três possuem em comum não apenas o amor à arte, mas a contribuição à abertura de outros caminhos para a arte na cidade. Artistas como José

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Patrício, Marcelo Silveira, José Paulo, Paulo Meira, Rinaldo Silva ou mesmo um Rodolfo Mesquita, cuja trajetória vem de antes, jamais imaginariam ter, há pouco mais de 10 anos, o espaço que possuem hoje nas galerias – e também nos museus. Eles tiveram a oportunidade de sair de seus ateliês e mostrar que arte pernambucana é mais do que José Cláudio, Guita Charifker, Delano, João Câmara e Vicente do Rego Monteiro, nomes de alta qualidade, mas, durante muito tempo, figurinhas repetidas nas galerias locais. A produtora e marchande Lúcia Santos, dona da Amparo 60 Galeria de Arte, e a bacharel em direito Nadja Dumaresq, proprietária do espaço que leva o seu sobrenome, foram responsáveis, cada uma à sua maneira, por desbravar esse território até então desconhecido por aqui. Foi no início dos anos 2000 que ambas resolveram apostar na produção de artistas contemporâneos do Recife e até de outros Estados. A Amparo 60, no Pina, saiu um pouco antes na corrida, já em 2001, e hoje possui um dos melhores times de artistas, além de boas exposições no seu calendário anual. A Dumaresq, em Boa Viagem, entrou nessa linha em 2003, e também trabalha com nomes e obras de peso, mas as mostras da Amparo ainda são mais bem-resolvidas e executadas, com curadoria profissional, de modo que não só sua


ARTES

Os mais tradicionais N

Glauco Spíndola

as galerias Ranulpho e Rodrigues, não há meio-termo: as obras de arte são muito valiosas, artigos de museu. Se nos demais espaços o público é diverso, nesses dois, os mais tradicionais do Recife, só há lugar para um bolso: o do colecionador. Desses que dão R$ 30 mil num quadro para depois de alguns anos vendê-lo por R$ 50 mil, por exemplo. Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres, João Câmara. Nesses locais, só consagrados entram em cena, com raras exceções. É tanto que a Rodrigues nem faz mais questão de ter visibilidade. Prefere ficar reservada numa casa no Torreão, longe de compradores comuns. “Quem quer, sobe qualquer montanha e minha clientela é muito dirigida”, justifica Augusto Rodrigues, programador visual, marchand e proprietário da galeria que leva o sobrenome de sua família e tem 30 anos de existência. A galeria possui em seu acervo telas antigas de Reynaldo Fonseca, Guita Charifker, Abelardo da Hora, Luciano Pinheiro e José Cláudio, só para citar alguns. Sem contar os trabalhos de Augusto Rodrigues, artista modernista e tio do proprietário. “Trabalhamos mais com pinturas e esculturas. Damos preferência aos artistas que fizeram a história da arte pernambucana”, admite Nise Rodrigues, sua esposa e sócia no espaço, que também diz gostar e estar aberta à arte contemporânea. Além do contato direto com a nata da clientela, Augusto promove junto à mulher exposições temporárias, geralmente temáticas ou em homenagem a grandes artistas europeus, além de palestras, cursos, e ainda tem uma preciosa documentação de artistas pernambucanos em seu gabinete. O esquema de vendas é por consig-

Augusto Rodrigues tem clientes fiéis

Ranulpho, o mais antigo marchand de Pernambuco

nação ou por compra, já que o casal também é colecionador de arte. Apesar de as exposições não terem o zelo e a divulgação que talvez merecessem, vale a pena visitar a galeria, mesmo que seja só para apreciar as obras, essas que quase não chegam a conhecimento público, a não ser que sejam doadas a museus e instituições. Este ano, vai haver por lá mostras com o pintor catalão Queralt Prat (este mês); o arquiteto Reginaldo Esteves, em abril, e uma exposição coletiva em homenagem a Geninha da Rosa Borges (O Teatro do Mundo na Cidade do Recife), quando pintores convidados criarão trabalhos voltados ao tema. Carlos Ranulpho, há quase 40 anos no mercado, é o marchand mais antigo em atividade no Estado, e continua indo todos os dias à sua galeria para cuidar das obras e negociá-las. Sua Ranulpho Galeria de Arte saiu de Boa Viagem e, há cinco anos, ocupa um dos prédios históricos da rua do Bom Jesus, no Bairro do Recife. Quem conhece as mostras da Ranulpho, sabe que só tem monstros sagrados: Siron Franco, Lula Cardoso Ayres, João Câmara, Aloísio Magalhães, Wellington Virgolino e Vicente do Rego Monteiro. Este último, por sinal, teve uma relação muito próxima com Ranulpho, marchand do modernista até sua morte. É interessante notar que a galeria resolveu fazer reproduções desses nomes, para abrir mais a possibilidade de vendas. “Sai mais barato e todo mundo pode ter uma obra em casa”, aposta Ranulpho. A sua galeria, que também comercializa antiguidades e esculturas, não tem programação marcada para 2007 ainda, mas está certa a exposição em comemoração aos 39 anos do espaço. Continente março 2007

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Liane Monte, da Galeria Segundo Jardim (abaixo), promete novidades em 2007

Mercado diversificado É

no mínimo curiosa e interessante a participação, no mercado recifense, das galerias Segundo Jardim, em Boa Viagem, e Arte Plural, no Bairro do Recife. Aqui, flexibilidade é a palavra de ordem. A arte contemporânea não é o carro-chefe de suas vendas, mas os artistas emergentes ocupam suas paredes. Da mesma forma, nomes consagrados também têm vez. O perfil, nesse caso, é menos fechado e mais democrático. A diversidade é o grande atrativo – e garantia de um lucro mais rápido. Na Segundo Jardim Galeria de Arte, da pintora Liane Monte, as telas são os cartões de visita, mas a proprietária não descarta outras opções, principalmente agora que tem como parceira a marchand e designer de jóias Lourdinha Oliveira, que entrou na casa em novembro de 2006, com uma exposições de suas peças. “Queremos expandir mais ainda as opções, com fotografia, objeto, jóia e cerâmica. É um conceito contemporâneo, com tudo que se refere à arte. Temos ainda a intenção de travar intercâmbio com outros Estados e trazer artistas jovens para trabalhá-los e promovê-los”, anuncia a nova assistente de Liane.

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Entre os que pretendem trazer, estão o paraibano Fred Svendsen e o carioca Paulo Mendes Farias, já de longa trajetória. No casting da galeria, que só negocia obras consignadas, encontram-se Félix Farfan, José de Moura, Rinaldo Silva, Pragana, Flávio Gadelha, Maria Carmen e o português Sobral Centeno. A programação de exposições deste ano na galeria começa este mês, com


ARTES Fernando Neves, da Arte Plural: foco na fotografia

uma mostra coletiva em homenagem ao frevo, abarcando pintura e fotografia. Na seqüência, entram em cena as telas de Roberto Botelho e, no segundo semestre, uma mostra com 10 fotógrafos de Pernambuco e outros Estados, além de uma individual com retratos de Roberto Ploeg. Esta última é uma das apostas das parceiras para 2007. “É uma espécie de consórcio. Qualquer mulher interessada em ter o seu retrato pintado vai encomendálo a Ploeg e parcelá-lo em 10 vezes. À medida que forem pagando, vão recebendo as obras e, no final, vão emprestar para a grande coletiva na galeria”, explica Liane, que vê um diferencial nos retratos do artista. A galerista também pretende promover cursos sobre arte. Afora isso, não faz questão de tantas estratégias. Prefere o trabalho corpo a corpo, em contato com clientes e artistas locais e de fora. Nem precisava tanto: seu ponto é uma casa muito simpática e bem-localizada (atrás da Avenida Boa Viagem), capaz de atrair uma clientela fiel, sem grandes pretensões. “A galeria, no máximo, se sustenta. Trabalhamos com arte, porque amamos de paixão e somos muito dedicadas!”, diz Liane. Do outro lado da cidade, Fernando Neves e Luciana Carvalho, sua esposa e artista plástica, levam seu empreendimento há quase dois anos, idade que completa agora em maio. O Espaço Arte Plural é o caçula do mercado local e atrai um público diferente. O ateliê-galeria-café não é voltado somente para compradores de arte, mas bebedores de café e gente que gosta de jogar papo fora. Aliás, interessada em discutir questões próprias da arte – tão caras e restritas ao universo acadêmico. Mas são os fotógrafos, no entanto, os preferidos da galeria – e que fazem o seu diferencial. O proprietário faz por onde: além de exercer a atividade (e ser economista), Fernando já promoveu cursos de teoria e prática da imagem – um deles com o renomado fotógrafo Clício Barroso; intermediou leilões de foto e abraçou o grupo Vixe Marias, formado por fotógrafas recifenses, como se fosse sua sede. No segmento, realizou ainda o projeto Terça-Foto, reunindo nas terças-feiras mais de 20 profissionais, como Alcir Lacerda, Sérgio Lobo, Mateus Sá, Beto Figueiroa, Geyson Magno, Marcelo Lyra, Thomas Baccaro e a professora Maria do Carmo Nino. Outra iniciativa dessa natureza foi o varal fotográfico, que vinha sendo realizado aos domingos, geralmente no último de cada mês, na própria rua da Moeda, contra a instalação de palcos no local.

“A galeria ocupa um nicho muito necessário na cidade. As outras galerias têm uma linha definida e não deixam espaço para outros artistas, que estão fora do circuito. Aqui não, o leque é aberto”, observa o crítico de arte e artista plástico Raul Córdula, uma espécie de consultor de Fernando. Quanto à pauta deste ano, o proprietário garante que está praticamente fechada, somente à espera de que as obras da Prefeitura do Recife na rua sejam finalizadas. A paulista Lúcia Py, que participou da paralela da Bienal das Artes, em 2006, o paraibano Diógenes Chaves e o fotógrafo carioca Márcio Belotti são alguns nomes confirmados. Por enquanto, o visitante pode visitar o acervo. Por sinal, Fernando quase não vende obras por consignação, foi tudo comprado pelo espaço. Em sua pequena reserva técnica, há nomes como Jairo Arcoverde, Tiago Amorim, Abelardo da Hora, Amélia Couto, Bernardo Dimenstein, Tina Cunha, Márcio Almeida e o onipresente Rinaldo. Vai da pintura a trabalhos em fotografia, como não poderia deixar de ser. “Não considero a Arte Plural uma galeria convencional. Somos também um espaço para se conversar sobre a arte e a vida. Porque, hoje, quem quer falar sobre a vida, paga a um psicólogo”, define Fernando. Continente março 2007

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ARTES

Onde achar Amparo 60 Galeria de Arte Proprietária: Lúcia Santos Serviço: av. Domingos Ferreira, 92 A, Pina. Entrada franca. Funcionamento: de segunda a sexta, das 9h às 18h; sábados, das 10h às 13h. Telefone: 33254728. E-mail: amparo60@uol.com.br Site: www.amparo60.com.br Dumaresq Galeria de Arte Proprietárias: Nadja Maria Dumaresq e Lúcia Roberta Dumaresq Serviço: rua Prof. Augusto Lins e Silva, 1.033, Boa Viagem. Funcionamento: de segunda a sexta, das 9h às 18h; sábados, 9h às 13h. Telefone: 3341-0129. Email: nadja@dumaresq.com.br/ beta@dumaresq.com.br Site: www.dumaresq.com.br Galeria Mariana Moura Proprietária: Mariana Moura Serviço: av. Rui Barbosa, 735, Graças. Funcionamento: de segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, com agendamento. Telefone: 3421-3725. E-mail: contato@marianamoura.com.br Site: www.marianamoura.com.br Segundo Jardim Galeria de Arte Proprietária: Liane Monte Serviço: rua Solidônio Leite, 62, Boa Viagem. Funcionamento: de segunda a sexta, das 9h às 12h e das 14 às 19h; sábados, das 10h às 13h. Telefone: 3326-5610. E-mail: gartesegundojardim@ hotmail.com Site em construção. Espaço Arte Plural Proprietários: Fernando Neves e Luciana Carvalho Serviço: rua da Moeda, 140, Bairro do Recife. Funcionamento: de terça a sexta, das 10h às 20h; sábado e domingo, das 13h às 19h. Telefone: 34244431. E-mail: arte-plural@uol.com.br Site em construção. Ranulpho Galeria de Arte Proprietário: Carlos Ranulpho Serviço: rua do Bom Jesus, 125, Bairro do Recife. Funcionamento: de segunda a sexta, das 10h às 12h, e das 14h às 19h. Telefone: 3225-0068. E-mail: ranulpho@ranulpho.com.br Site: www.ranulpho.com.br Rodrigues Galeria de Arte Proprietários: Augusto de Albuquerque Rodrigues e Nise de Souza Rodrigues Serviço: av. Othon Paraíso, 430, Torreão. Funcionamento: de segunda a sexta, das 10h às 12h e das 14h às 19h; sábados, 10h às 15h. Telefones: 3241-3358/3088-5576. E-mail: augustor@click21.com.br

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clientela, mas o número de visitantes se expandiu. Hoje, gente jovem está interessada em colecionar obras de arte, embora o foco da freguesia de Lúcia continue sendo o de arquitetos, pela razão simples da sua tradição familiar – a mãe da galerista é a renomada arquiteta Janete Costa. “A Amparo sempre se comportou como um espaço cultural na cidade, mas o perfil da galeria só foi se desenhando ao longo do tempo. O Recife não tem um mercado tão definido, mas creio que o trabalho do Mamam (Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães) e o da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco), nos últimos anos, tenha facilitado bastante o mercado local”, atesta Lúcia, que acredita na abertura desse circuito. “Não dá tanto dinheiro, mas isso é relativo. O melhor é que me dá prazer”, completa. Prazer esse que tem rendido estratégias de venda eficientes na galeria. Além de manter uma média de quatro mostras anuais de qualidade, a Amparo oferece serviço de montagem e desmontagem na própria casa do cliente; tem site na internet, uma das suas principais vitrines de venda; publica catálogo das obras, com texto de um crítico ou curador; realiza visita a escritórios de arquitetura e procura apoiar os seus artistas onde forem. O seu casting, no entanto, é o principal cartão de visita. São 25 nomes, atualmente, entre eles o do artista de currículo internacional Antônio Dias (PB), além de Delson Uchoa (AL), Rodolfo Mesquita, Eudes Mota, Rodrigo Braga, Juliana Notari e José Rufino (PB), também consagrados no circuito contemporâneo. A venda é feita por consignação, mas também há um acervo comprado pela galerista à disposição. A programação das exposições de 2007 começa agora em março, com Oriana Duarte, outra artista da casa. O restante da agenda já está fechada: Marcelo Coutinho, em abril; Rodrigo Braga e Marcos Costa no segundo semestre. A intenção é realizar ainda uma grande mostra individual, em julho, com Paulo Bruscky. A Dumaresq também já pautou suas exposições para este ano. Uma individual com o pintor Roberto Ploeg, outra com Renato Valle, além de uma mostra só de fotografias e do Projeto Dumaresq de Gravuras, para fechar o ano. O projeto, por sinal, é um dos diferenciais da galeria de Nadja, bem como o extenso acervo de papel que possui, com litogravuras, xilogravuras, serigrafias, fotografias, desenhos, grafites, entre outros tipos de trabalho. A iniciativa do projeto de gravuras consiste em trabalhar com um ou dois artistas da galeria para que criem obras destinadas exclusivamente a empresas. Ainda não foi definido o nome, ou os nomes, para 2007. A Dumaresq também promove cursos e trabalha com monitores recebendo escolas.


Mariana Moura quer intensificar as vendas em sua galeria

“Uma galeria deve ter o papel de divulgar a arte e também de educação. O institucional faz a diferença”, acredita Nadja, que trabalha com talentos pernambucanos como Bruno Vilela, Renato Valle, Manoel Veiga, Bete Gouveia, Jobalo, entre outros, além do português Francisco Laranjo. Ao todo, são quase 30 artistas. “Mas a função de uma galeria é também levar a arte para dentro da casa das pessoas”, pondera Lúcia Roberta Dumaresq, filha e sócia de Nadja. Enquanto a primeira toma conta da administração do espaço, a segunda mapeia novos artistas e clientes, e também concebe as exposições. Foi Nadja, que se formou em Direito, mas também estudou teoria e história da arte, uma das primeiras a apostar em talentos como José Paulo, Joelson, Christina Machado, Rinaldo Silva e Eudes Mota. Já Mariana Moura, também bacharel em Direito, foi a última a entrar no circuito de arte contemporânea do Recife, mas chegou com o prestígio de reunir a nata das artes plásticas pernambucanas logo de cara – ou seja, há pouco mais de dois anos, quando abriu a galeria nas Graças. A lista é pequena, só tem nove nomes, mas nenhum fica a dever em currículo. Alexandre Nóbrega, Gil Vicente, Carlos Mélo, Alice Vinagre (PB), Nazareno Rodrigues, José Patrício, Marcelo Silveira, Jeanine Toledo e Laura Vinci (SP) são autores de trabalhos cuja qualidade é indiscutível. José Patrício, por exemplo, vai expor este ano no Museu Reina Sofia, na Espanha, casa do quadro Guernica, a obra-prima de Pablo Picasso. “É um bom time. Entramos para competir no sentido

positivo, porque o Recife tem boas galerias”, observa Mariana, que já trabalhou com a galerista Nara Roesler, uma das mais prestigiadas de São Paulo. Este ano, a programação da galeria traz uma coletiva de pintura, este mês, com artistas pernambucanos; uma individual com Jeanine Toledo, em abril/maio, e uma exposição de desenhos com Márcio Piva (SP) e Adriana Galinari (SP). O segundo semestre ainda não foi fechado. Apesar de ainda manter os nomes com quem trabalha, a jovem galerista sente agora a necessidade de ampliar o número de artistas. “Tenho que aumentar o leque de opções com mais uns cinco nomes, como Christina Machado, Márcio Almeida e Rinaldo Silva. O mercado do Recife é difícil, porque ainda vê a arte como decoração”, rende-se Mariana. “Cheguei à conclusão de que se você não vende, a galeria não cumpre o papel”. Entre suas estratégias de venda está a abertura maior para pinturas e desenhos, suportes tradicionais que costumam agradar de arquiteto a colecionadores, e menos para instalações, objetos e videoarte. O Clube do Colecionador, para facilitar a compra e venda; a lista de casamento para quem quiser presentear obras de arte; a monitoria de exposições; a aproximação com arquitetos; e a realização de workshops e bate-papos com artistas também têm sido maneiras de atrair a clientela para a galeria. Como as demais, Mariana Moura vende suas obras de acervo e por consignação, ganhando de 20% a 30% em cima do valor do artista, como costuma acontecer em toda galeria. • Continente março 2007


A arte pós-histórica

de Paulo Bruscky O artista pernambucano tem sua obra catalogada no livro Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia Mariana Oliveira Acima, o ateliê do artista no Recife. Abaixo, Reflex, 1994

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A

palavra pluralidade é, pelo menos à primeira vista, um clichê em textos sobre exposições e artistas contemporâneos. A repetição tem um porquê. Diferentemente dos outros períodos inscritos nos livros de História da Arte, de fácil definição através da técnica, estilos e suportes fixos, a produção contemporânea tem a diversidade como sua grande característica. Essa pluralidade adicionada à ousadia e ao pioneirismo caracteriza as obras do pernambucano Paulo Bruscky, que ganha, por fim, a publicação de um livro catalogando seus trabalhos, e o lançamento de um Box com dois DVDs (reunindo seu material em vídeo) e um CD (compilando toda sua poesia sonora experimental). Há tempos a trajetória de Bruscky precisava ser catalogada e inserida na história da arte brasileira, referendando sua capacidade de expressar a multiplicidade das poéticas do contemporâneo. Poeta, fotógrafo, inventor, multimídia, curador. Esse artista contemporâneo é por si só um personagem. O livro Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia, escrito por Cristina Freire, apresenta o


Fotos:Divulgação

ARTES

O que é a arte? Para que serve?, 1978. Ao lado, Registros (vídeo), 1979

artista que, ao longo da sua carreira de mais de 40 anos, vivenciou momentos históricos difíceis e soube, apesar das dificuldades, seguir firme no seu ideal, no seu “exercício experimental de liberdade”, como definiu Mário Pedrosa. Talvez o que mais se destaque na obra “brusckyana” seja a explícita aproximação que ele propõe entre a arte e a vida. O castelo de marfim construído para a arte é desconstruído por Bruscky a partir das suas ações, que aproximam a prática artística da prática social. Ao fazer arte com xerox, fax, ferro elétrico, carimbos e mimeógrafos dá visibilidade, com ironia, a questões relevantes do universo artístico. Os questionamentos propostos por Bruscky se mostram completamente atuais, num momento em que de fato a arte e a vida se apresentam mescladas. Suas propostas de trabalho demonstram uma descendência duchampiana, não só na utilização de objetos alheios ao universo artístico, mas na premissa básica seguida por Duchamp de que a arte tem que ser inteligente. E a arte do pernambucano é, antes de qualquer outra coisa, inteligente. Bruscky, que nunca vendeu nenhuma obra e atuou como funcionário público por muitos anos, apurou seu olhar para ver no cotidiano, nos elementos do dia-a-dia, trabalhando num hospital ou numa máquina de xerox, matéria-prima para a arte. O livro disseca a obra do artista, dividindo-a em seis blocos que expressam a atualidade do pensamento e das questões propostas por ele. Ao trabalhar com a Continente março 2007

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Ao lado, o artista em Nova York, em 1982. Abaixo, Engenho Imaginário (2002) e Seleção de Envelopes, década de 70, arquivo Paulo Bruscky

xerox, com a reprodução, ele traz à tona a questão, levantada primordialmente por Walter Benjamim, da originalidade e autenticidade da obra de arte. Na performance em que circula nas ruas do Recife com uma placa com os dizeres “O que é a arte? Para que serve?” e também expõe a si mesmo numa vitrine, com a mesma pergunta, leva a arte para fora do museu e das galerias, apontando, ao mesmo tempo, a pressão mercadológica sofrida pelos artistas e a dúvida reinante, depois da quebra dos paradigmas estéticos, daquilo que realmente pode ser arte e qual é sua real função. Para o filósofo e crítico Arthur Danto, desde a exibição da Brillo Box de Andy Warhol, estaríamos vivendo o momento pós-histórico da arte. “A idéia de que a arte é algo que alcança uma espécie de final histórico depois do qual se converte em outra coisa – depois da qual na realidade se converte em filosofia – foi proposta por Hegel em suas aulas de filosofia da arte, em Berlim, em Continente março 2007

1828.” Observando as obras de Bruscky parece que realmente chegamos a esse momento pós-histórico, no qual a essência da arte não é encontrada necessariamente no objeto artístico, mas no universo simbólico e reflexivo a que somos levados através da obra. Os arquivos de Paulo Bruscky, concentrados em seu ateliê, podem ser entendidos como uma alegoria das suas obras, o que justifica a transferência de todo o material, durante a Bienal de São Paulo de 2004, por três meses, para os salões do Ibirapuera. Naquela Bienal, bastante controversa, Bruscky talvez tenha sido o grande representante da idéia curatorial de um território livre nas artes. Não é a venda, nem uma técnica específica, nem critérios de exibição que norteiam sua trajetória como artista. Pelo contrário. Liberdade é a palavra fundamental. No seu ateliê, estão concentrados seus experimentos, seus livros, suas coleções, seus discos que compõem, junto as suas obras, o seu discurso filosófico sobre a arte. •


ARTES

Talvez o que mais se destaque na obra "brusckyana" seja a explícita aproximação que ele propõe entre a arte e a vida. O castelo de marfim construído para a arte é desconstruído por Bruscky a partir das suas ações, que aproximam a prática artística da prática social

Lusco Fusco, 1990

Lançamento do livro Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia (R$ 99,00) e do Box de DVDs e do CD, compilando obras em vídeo e sonoras do artista. Dia 21 de março, no MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife – PE), às 19h, com a participação da autora do livro Cristina Freire. Informações: 81. 3232.2188.

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Viagem à idade da pedra

Dentre as muitas maneiras que o homem tem para inventar-se, Bez Batti escolheu a mais difícil por lidar com matéria dura, a pedra

S

e é verdade que a obra de arte se basta a si mesma, ou seja, aparece pronta e completa aos olhos do espectador, isto não implica, porém, que ela tenha surgido diante dele num passe de mágica. Em realidade, toda obra de arte é resultado de um processo que tampouco começa com ela, com o primeiro golpe desferido na pedra. No caso das obras do escultor gaúcho Bez Batti, pode-se dizer que elas começaram num longínquo dia de sua infância em Volta do Freitas, na contemplação fascinada dos seixos rolados que as água do rio Taguari arrastavam consigo. Talvez a intenção oculta do escultor, ao trabalhar a pedra dura, ao esculpi-la e polila, seja recuperar a alegria daquele instante de identificação plena com a natureza. Ocorre que o passado é irresgatável e irrepetível. Por essa razão, nem mesmo retornando àquele ponto do rio e olhando as mesmas pedras conseguirá fazer com que o tempo volte atrás: para resgatar o passado há que reinventá-lo, dar-lhe outro rosto, ou seja, apagá-lo. Assim, as esculturas que ele inventa não repetem as formas dos seixos rolados do rio Taguari; na verdade, as emoções da infância transformam-se na energia que gera, hoje, novas formas que não pertencem à natureza e, sim, ao universo humano da arte. Mesmo porque a natureza não produz arte, que é um dos meios que o homem inventou para inventar-se. Dentre as muitas maneiras que o homem tem para inventar-se, Bez Batti escolheu a mais difícil por lidar com matéria dura – a pedra –, talvez por ser também a mais duradoura, como nos provam os achados arqueológicos mais antigos. Esculpir no basalto foi uma opção que ele fez após trabalhar na madeira, na resina, no mármore e no bronze; opção de quem não teme o difícil,

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Cactácea II, basalto negro, 14 x 18,5 x 14,3 cm


Imagens: Divulgação

TRADUZIR-SE

Sofia II, mármore italiano, 3 x 10,5 x 10,5 cm

de quem deseja pôr à prova sua capacidade de mudar em beleza a matéria real do mundo. E assim ele se torna, para realizar suas obras, um artesão, um operário que trabalha com marretas, cinzéis, ponteiros, bujardas, unhetas, rebolos de carbono-silício, disco adiamantado, pistolas... Mas estes são apenas os instrumentos materiais que lhe possibilitam domar o basalto explosivo, porque o fator decisivo e fundamental está no espírito do escultor, na sua necessidade de fundar na matéria rude e rígida da pedra um universo imaginário. Este universo veio se constituindo à medida que ele transformava em conhecimento e experiência sensível as qualidades do basalto, se era negro ou cinza ou vermelho, se era mais duro ou menos duro, a elas somando-se o eco dessas vozes da pedra – na verdade o seu silêncio – que nele, escultor, se entranharam e através dele passaram a nos falar. Em arte, todo fazer é uma aventura imprevisível. Por isso, como o basalto é duro e o risco maior, Bez Batti, antes de atacá-lo, desenha a forma que pretende esculpir; mas com isso não exclui de todo o imprevisível que nasce da resistência da pedra à ação que a agride, embate em que se misturam a sabedoria adquirida pelo escultor e a aceitação do acaso que se infiltra em sua

ação. E nasce deste diálogo, para além do previsto, o novo, que faz de cada peça uma expressão única, ainda que parte de um mesmo universo semântico. O artista se revela precisamente nesta capacidade de reconhecer, no resultado casual, a revelação da beleza, qualquer ela seja, e que vai transformando a matéria inumana do derramamento vulcânico em flor de poesia a enfeitar nossa vida. Bez Batti ora inventa cabeças deliberadamente isentas de realismo, em que o despojamento anatômico intensifica a contundência da forma esculpida e polida, emprestandolhe, ao mesmo tempo, uma significação arcaica que induz aos começos do homem; ora inventa inusitadas formas vegetais ou animais – frutos ou pássaros – em que mais chances tem de exercer sua inventividade formal, explorando com mestria os contrastes de texturas que a pedra possibilita, num diálogo do áspero e do polido, de formas doces ou agressivas, do acabado e do inacabado, de crateras, bolhas, estrias, construindo assim uma linguagem escultórica de grande riqueza sensorial e indiscutível originalidade. Uma seleção de suas obras está sendo exposta no circuito de salas do Instituto Moreira Salles. • Continente março 2007

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CINEMA Imagens: Reprodução

Imagens que ficam Tempo e memória são dissecados no cinema experimental de Chris Marker Marcelo Costa

Em La Jetée, o protagonista participa de experimentos que o fazem viajar no tempo

H

á filmes que, de tão apaixonados por suas imagens, promovem uma radical experiência na maneira de se fazer e sentir o cinema. Talvez o exemplo mais notório disso seja a pérola soviética, Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov, o artista leninista símbolo da revolução. Um marco do cinema, essa obra propunha uma ruptura completa com a literatura e a dramaturgia em detrimento de uma linguagem puramente visual: um homem que capta imagens de um dia qualquer. Sem contar uma história com começo, meio e fim, Vertov navegava pelos meandros da linguagem cinematográfica, levando-a a extremos, através do impacto exclusivo dos fotogramas e da trilha sonora. De forma análoga, se comportam os experimentos cinematográficos, indagações sobre o tempo e a memória do filósofo, ensaísta e cineasta Chris Marker, que acaba de ter lançadas em DVD, pela Aurora Filmes, duas de suas obras: La Jetée, o curta-metragem que inspirou Os Doze Macacos de Terry Gilliam, e Sem Sol. Em La Jetée (França, 1962, 29’), Marker contraria um dos chavões mais caros à sétima arte: “cinema é imagem em movimento”. Ele abdica da ilusão de movimento, conferida pelos 24 quadros projetados por segundo, para provocar um dinamismo profundo e interno no espectador. No formato de “foto-romance”, como define, o autor criou um filme de ficção-científica composto por uma seqüência de imagens estáticas.


CINEMA Enquanto o cinema caminhava a passos largos para a modernização, La Jetée o reduzia à sua base mais simples: um roteiro feito sobre uma seqüência de fotografias em preto-ebranco. Com uma linguagem própria, Marker rompeu convenções e criou um filme-ensaio; uma terceira via entre o documentário e a ficção, entre a imagem e a escrita; entre a memória e a invenção. Dentro de uma estrutura clássica de documentário – com um narrador em voice over –, o filme expõe uma Paris pós-Terceira Guerra Mundial cuja superfície tornou-se inabitável em virtude da radioatividade; as imagens de Marker para a hecatombe nuclear são impressionantes. Assim os seres humanos foram relegados a viver no subsolo e buscar novas formas de sobrevivência. Diante disso, desenvolvem uma técnica capaz de enviar pessoas através do tempo. Após tentativas frustradas, os inventores se concentram em sujeitos com imagens mentais muito fortes, capazes de se reintegrarem ao passado de suas memórias. Daí surge a importância do protagonista, como revela a epígrafe do filme: “Essa é a história de um homem marcado por uma imagem da infância” que, de certo modo, ilustra a filmografia desse filósofo, e talvez justifique a escolha das figuras estáticas em seu foto-romance proustiano, como uma tentativa de remeter à memória humana, expressada em “fotografias”. O rosto de uma mulher, visto quando criança no aeroporto de Orly, ao presenciar um assassinato, é a lembrança que persegue e perturba o herói durante sua parca existência, numa referência explícita a Um Corpo que Cai (Vertigo), de Hitchcock. “Esse rosto, a única imagem do tempo de paz a chegar o tempo de guerra, ele se perguntou, por muito tempo se a havia realmente visto, ou se havia criado esse momento de doçura para protegê-lo do momento de loucura que estava por vir”, revela a poética, embora gélida, narrativa condutora. Em busca de respostas científicas e do sentido de tal imagem em sua vida, ele viaja ao passado onde encontra a mulher, misto de sonho e realidade, pela qual se

apaixona. Depois, segue para o futuro – onde vislumbra seu retorno ao passado – na tentativa de descobrir uma fonte de energia capaz de salvar a humanidade. Assim, o presente, o passado e o futuro – diferenciados pelo uso magistral da luz – coabitam a obra, deixando-nos a sensação da não-existência de um tempo fixo e acabado – o que existe é um anacronismo que permite a sua reconstrução constante através da memória. Segundo Georges Didi-Huberman, em seu livro Devant Le Temps. Histoire de L'art et anachronisme dês images, “Diante de uma imagem – por mais antiga que seja – o presente jamais cessa de se reconfigurar (…). Diante de uma imagem – por mais recente

Acima, a imagem feminina que marca La Jetée. Abaixo, Chris Marker, cineasta que contrariou o chavão "cinema é imagem em movimento"

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CINEMA que seja –, o passado, ao mesmo tempo, jamais cessa de se reconfigurar, porque essa imagem só se torna pensável em uma construção da memória”. A imagem é, então, a mão que captura um instante singular e único, mas jamais o aprisionamento do tempo, que escorre pelos dedos, e está, portanto, sujeita a recriações e releituras: Marker persegue essa idéia de forma obsessiva para ilustrar a necessidade do lembrar e a sua impossibilidade, realçando a condição bela e trágica do esquecimento. Suas imagens soam como esculturas e pinturas de um museu que, indefinidas sob a luz tênue, precisam ser restauradas, recriadas ou mesmo inventadas por quem as vê; idéia já trabalhada por ele, quando assistente do mestre Alain Resnais. Marker teve um papel fundamental na realização do clássico documentário Noite e Neblina (1955) dirigido por Resnais; um alerta contra o nazismo e qualquer forma de extermínio, baseado nas memórias de Jean Cayrol, sobrevivente dos campos de concentração. Sob o texto de Cayrol, Resnais tecia indagações sobre tempo e memória e a importância do cinema como um repositório de arquivo. Resnais voltaria a trabalhar com a necessidade e a fragilidade da memória em Hiroshima Meu Amor (1959), um romance em meio às lembranças da bomba atômica, no clássico O Ano Passado em Marienbad (1961) e em Muriel (1963), nos quais as lembranças são como desenhos na areia vulneráveis ao sopro do vento e às ondas do mar, que os deformam. Essa idéia de transitoriedade também permeia toda a projeção de Sem Sol (Sains Soleil, França, 1982, 100’), uma bela viagem de Marker aos limites do cinema verité, imortalizado pelas viagens africanas de Jean Rouch, centradas num olhar antropológico e na militância de esquerda. Através de uma ficContinente março 2007

tícia narradora que lê as poéticas cartas de um cameraman, cuja viagem por lugares exóticos do mundo é registrada em imagens, Marker volta a tratar da inevitabilidade do tempo e da perenidade da existência. Sob enfoque existencialista, Sem Sol analisa o processo de recriação histórica a partir da recriação da memória, e a importância das imagens na construção da realidade. Em tom de ensaio sobre o século 20, Marker vai do Japão à Guiné Bissau, da Islândia a São Francisco de Vertigo, registrando uma geografia imaginária

do mundo, submetida ao seu olhar apaixonado. O filme soa como um estudo cinematográfico sobre consumismo, guerrilha, bombardeio televisivo, miopia histórica, bombardeio televisivo, overdose de imagens num mundo que parou de contemplar. Marker é um vanguardista que continua a sentir e tentar entender o mundo, desenhando imagens certas onde o vento não sopra e o mar não alcança. •

Sob enfoque existencialista, Sem Sol (foto) analisa o processo de recriação histórica a partir da recriação da memória, e a importância das imagens na construção da realidade

Sem Sol / La Jetée, Chris Marker, Aurora DVD, R$ 38,75.



REGISTRO A escritora Virginia Woolf fez parte do grupo que pregou uma peça à orgulhosa frota marítima da Inglaterra Fernando Monteiro

A visita dos príncipes abissínios

D Da esquerda para a direita: Virginia Woolf, Duncan Grant, Adrian Stephen (irmão da escritora e "intérprete" do grupo), Anthony Buxton, Guy Ridley e o arquiteto da farsa, William Cole

esde o final daquela manhã de 17 de fevereiro de 1910, o sol abrira sobre o mar frio da baía de Weymouth, em Dorset. E duas frotas orgulhosamente inglesas – a Territorial e a Frota do Atlântico – estavam ancoradas, sobressaindo-se uma pérola da moderna arquitetura naval britânica: o navio-almirante Dreadnought, “o mais poderoso navio de guerra da Marinha Real”, conforme haviam destacado os jornais locais. E, nesse dia, é justamente esse vistoso barco que se encontra especialmente engalanado, na tarde ainda luminosa, cheio de festivos galhardetes e bandeiras hasteadas em honra de uma comitiva de quatro príncipes abissínios ora em visita à Inglaterra, e que, de passagem por Dorset, parece que foram instados a render suas homenagens ao poderio de Sua Majestade no mar (assim como na terra e no ar). O que se quer dizer com isso é que foi programada um visita à frota (“Raios que os partam, por Júpiter! Esses diplomatas pensam que estamos aqui para comer biscoitos com negros?!” – teria exclamado o almirante, ao ser informado da vinda de suas Altezas), e agora sobra para o velho marinheiro fazer as honras da paragem organizada pelos funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Reprodução

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O navio-almirante Dreadnought, "o mais poderoso navio de guerra da Marinha Real"

Porque dá trabalho receber “visitantes ilustres”, num navio daqueles. O almirante teve que escalar de novo as equipes de limpeza, a fim de trabalharem sobre o que já estava limpíssimo, brunido e polido no vaso de guerra, e a banda de gaita-de-foles ensaiou, urgentemente, seus números fanhosos, patrióticos – e intermináveis. Pior: ela teve que desencavar o hino nacional da Abissínia, em algum lugar pelo qual o comandante da frota não faz nenhuma idéia, ao se apertar na sua farda branco-dourada, com o quepe novo que se aperta à cabeça (“Problema do regente da banda, raios que o partam!”). E os oficiais receberam, é claro, as ordens de praxe: farda de gala, chapéu de tricórnio etc. A visita – O almirante olha para cima. Seu olho treinado lhe diz que talvez falte menos que 10 para as 16 horas pontuais da visita ciceroneada por um alto funcionário do MNE e um intérprete que parece muito jovem aos olhos do gentil-homem (“ele já sabe abissínio, com tão pouca idade!”). Quando os quatro príncipes põem suas sandálias sobre as escovadas ripas de carvalho do piso do Dreadnought, a banda ataca os primeiros acordes do hino de... Zanzibar (“My God!” – tosse o almirante), cuja bandeira já está sendo já erguida, com dolorosa lentidão para quem nota a gafe dupla. Os príncipes, porém, ao que tudo indica são educadíssimos: aplaudem com mãos delicadas (“eram nativos de feições finas como eu nunca vi” – recordará, mais tarde, o comandante cercado dos seus imediatos e oficiais, no jantar a bordo, horas depois daquele chá especial para as visitas). No repasto, ficará claro que o chá tirou,

definitivamente, o apetite do descendente de Nelson, por muitos e bons motivos: o hino errado, a bandeira trocada, a falta de tapetes de orações (para cuja necessidade se cogitara de interromper a visita. Inflexível, o comandante prosseguira mostrando os conveses em detalhe e até os beliches da nave limpa como a bunda de um príncipe. Inglês, evidentemente). Aquilo das orações, para ele, foi o pior: “Cabia ao Ministério avisar sobre a hora coincidente com as rezas dos maometanos! Quem já se viu se interromper...” O imediato mais imediato tosse, timidamente, e ousa, por sua vez, interromper, para um reparo delicado: “Sir, queira me perdoar, porém eu creio que não seja o correto chamá-los maometanos”... O almirante limpa a boca ainda irritada: “E por quê, Mr. Bristow, o senhor quer ter a gentileza de informar-me, e aos seus colegas?” “Creio, Sir, que o correto seja chamá-los muçulmanos, uma vez que, bem, eles não adoram propriamente ao tal Maomé, para serem maomet...” “Ora, Mr. Bristow!, maometano, muçulmano!, marroquino! Que diferença faz, se eles todos têm de se ajoelhar sobre um pedaço de pano? Pois, sim: muçulmanos! A verdade é que eu nunca vi uns tão afilados de feições”... O grande e real mico da frota – Bandeira e hinos trocados, a falta dos tapetes de orações ou o embaraço repetitivo do intérprete – que parecia não saber traduzir patavina da algaravia dos quatro príncipes –, nada disso seria recordado, mais tarde, pela autoridade naval e os seus garbosos oficiais, caso a verdade sobre aquela “visita” não tivesse vindo à tona, posteriormente. Continente março 2007


REGISTRO Nenhum príncipe abissínio autêntico havia pisado, naquele dia 11 de fevereiro, o convés e as demais instalações do Dreadnough. Ao narrar essa pequena história, estamos contando um dos maiores micos já pagos pela Real Marinha inglesa. A programação dos quatro falsos príncipes da Abissínia fora orquestrada, por assim dizer, pelo espírito altamente zombeteiro de William Horace de Vere Cole, um dos maiores brincalhões do seu tempo e membro daquele círculo de amigos meio malucos da escritora Virginia Woolf. Cole representou o papel do alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros e, para isso, fez imprimir um cartão em tudo semelhante aos de um autêntico burocrata da pasta, com o improvável nome de “Horace Cholmondeley” impresso em letras tão douradas quanto as dragonas das fardas de gala. William Cole era um rico, ocioso e pândego pregador de partidas entre os seus amigos da alta classe londrina, no seu clube e fora dele. Além do cartão fake, fez imprimir os dos “príncipes”, na língua swahili, e até ensaiou, com as falsas Altezas africanas, uma “língua” a ser improvisada diante do oficialato da frota do navio-almirante engalanado para recebê-los. Os abissínios de mentira foram devidamente maquilados por Willy Clarkson, o técnico em make-up da célebre atriz Sarah Bernhardt, e atendiam pelos seguintes nomes: Anthony Buxton, um jogador de críquete afamado nos tempos de estudante universitário e que, também ocioso, estava sempre disposto a pregar partidas nos solenes e chatos; Duncan Grant, um artista bem-humorado; Guy Ridley (filho de um juiz chato e solene) e Adrian Stephen, o irmão do mais magro daqueles “príncipes” – e também o de feições mais afiladas (pelo menos aos olhos do crédulo almirante do “mais poderoso navio de guerra”). Numa foto que foi tirada do grupo solenemente encarando o passarinho da história, a franzina Alteza de faces pintadas é a primeira das personalidades supostamente africanas, da esquerda para a direita. Seu nome? Bem, poucos anos depois ele se tornaria universalmente conhecido, no campo da alta literatura. Sim, ela própria: Virginia Woolf, vestida nas roupas teatrais que seu amigo Cole arranjara para os quatro irresponsáveis, todos de turbantes mais indianos do que abissínios. Virginia, depois, diria não ter se arrependido da brincadeira, exceto pelos bolos e doces que tivera de recusar, a bordo do Dreadnough, uma vez que Willy Clarkson recomendara aos folgazões artificialmente “escurecidos” não comerem nada, sob hipótese alguma, para evitar o risco de comprometerem a maquilagem. O que foi seguido à risca pela grande escritora, apesar da fama do pasteleiro do almirante – que não gostava de falar sobre as manobras de fevereiro de 1910, na costa fria de Dorset. • Continente março 2007

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A britânica Virginia Woolf, uma das maiores escritoras do século 20


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DEPOIMENTO

Ortega Y Gasset e o bibliotecário O filósofo espanhol profetizou o advento da automação, concretizada com a informatização dos processos técnicos Edson Nery da Fonseca

T

ive a honra de ser, na Universidade de Brasília, o primeiro diretor da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, inicialmente integrada pelos departamentos de Administração, Biblioteconomia, Comunicação e Direito, aqui mencionados em ordem alfabética. Numa das primeiras reuniões do colegiado, um professor de Direito protestou contra o que considerava redução humilhante do curso jurídico a simples departamento, perdendo sua tradicional condição de faculdade. Lembrei-lhe que ao serem fundadas, em 11 de agosto de 1827, as Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo eram chamadas Cursos Jurídicos. Mas prometi ouvir sobre o assunto o professor Valnir Chagas, redator do estatuto que integrou os quatro departamentos na Faculdade de Estudos Sociais Aplicados. O eminente educador cearense esclareceu que a então nova Faculdade tinha este nome porque o objetivo de seus departamentos era formar os futuros detentores das forças sociais. A idéia da Biblioteconomia como força social equivalente à Administração, à Comunicação e ao Direito não era novidade em países europeus e norteContinente março 2007

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DEPOIMENTO Flávio Lamenha

americanos. Significativo, neste sentido, é o título do livro do inglês James Thompson: Library Power: a New Philosophy of Librarianship (Londres: Clibe Bingley, 1974). Mas em nosso país os bibliotecários não são levados a sério pelas autoridades, em parte por causa deles mesmos: por seu baixo nível cultural. São, de modo geral, grandes ignorâncias gerais especializadas em biblioteconomia. Mas a importância dos bibliotecários sempre foi reconhecida por cientistas brasileiros que estudaram na Europa e na América do Norte, o que infelizmente não acontece com a maior parte de nossos governantes. Um dos pioneirismos da Universidade de Brasília em nosso país foi o de incluir em seu Plano Orientador (Brasília, 1962) um curso de pós-graduação em biblioteconomia, oferecido a graduados em letras, ciências exatas e humanas. Só assim os bibliotecários teriam condições de agir como detentores das forças sociais. Infelizmente, a enorme demanda de matrículas na então única universidade da novo Distrito Federal levou a UnB a oferecer cursos de graduação, frustrando o plano Darci Ribeiro, que era oferecer inicialmente apenas cursos de pós-graduação. Foi, aliás, para ensinar Metodologia em cursos de mestrado em artes, ciências humanas e letras que o insigne antropólogo convidou-me, ainda em 1962, a ingressar no corpo docente da UnB. A insuficiência do bacharelado em biblioteconomia e a necessidade de formar bibliotecários especializados numa época de especializações à outrance é reconhecida pelos mais competentes estudiosos do assunto. Por todos falou o respeitado Jessé H. Shera, que escreveu em seu livro Introduction to Library Science: “Cursos de graduação, extensão e correspondência devem ser evitados como praga” (Littleton, Colorado: Libraries Unlimitd, 1976). Temos no Recife um exemplo dessa praga: o das bibliotecárias da Biblioteca Pública do Estado que rasgam e mandam triturar livros em bom estado de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Roquette Pinto, Raquel de Queiroz, Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux. Estas considerações foram suscitadas pela recente edição brasileira do ensaio de José Ortega y Gasset Missão do Bibliotecário (Brasília: Briquet de Lemos, 2006). O ensaio foi lido em 1935 na abertura de um Congresso Mundial de Bibliotecas e Bibliografia realizado em Madri, e logo publicado na orteguiana Revista de Occidente e, em francês, na revista parisiense Archives et Bibliothèques. Em 1961 a norte-americana Antioch Continente março 2007


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Review (Yellow Springs, Ohio) publicou-o em inglês. No mesmo ano, o editor de Boston J. K. Hall lançou-o em plaquete. O texto original reapareceu em reedições da Espasa-Calpe Argentina (1940), da Revista de Occidente (1967) e no volume V das Obras Completas do filósofo. Devemos a Antonio Agenor Briquet de Lemos a excelente tradução em vernáculo e o erudito posfácio da edição brasileira que já estava tardando, pois o ensaio é, além de profundo, como tudo o que Ortega escreveu, de impressionante atualidade e evidente utilidade num país como o nosso, onde poucos levam a sério a missão do bibliotecário, por causa de sua deficiente formação em nível de bacharelado. O ensaio repercutiu negativamente entre editores norte-americanos, contrariados com a afirmação de que muitos dos livros publicados no mundo “são inúteis ou estúpidos”: uma verdade que, infelizmente, tornou-se cada vez mais atual. Porém professores de biblioteconomia como o aqui já citado inglês James Thompson e o norte-americano Lester Asheim – brilhante intelectual com quem tive a honra e o prazer de conviver na Universidade de Brasília, onde foi um dos consultores da Fundação Ford para a Biblioteca Central – regozijaram-se com este que foi – no mundo inteiro e em qualquer época – o mais significativo reconhecimento da importância do bibliotecário em face da explosão bibliográfica: reconhecimento proclamado por um pensador de reconhecida importância na história da filosofia. “Imagino o futuro bibliotecário – escreveu Ortega y Gesset – como um filtro que se interpõe entre a torrente de livros e o homem”. Ortega profetizou no mesmo ensaio o advento da automação ao escrever: “É preciso, pois, criar uma nova técnica bibliográfica de um automatismo rigoroso. Nela alcançará sua potência máxima o que vosso ofício iniciou há séculos com a figura da catalogação”. A profecia concretizou-se com a informatização dos processos técnicos. Livre deles, o bibliotecário pode ficar exclusivamente a serviço dos pesquisadores, fornecendo-lhes as informações de que necessitam, de acordo com o perfil de inte-

O pensador espanhol José Ortega y Gasset

resse de cada um. Somente o bibliotecário especializado está em condições de anteciparse ao pesquisador na seleção do que é realmente original na selva selvaggia – como diria Dante – da explosão bibliográfica. Mas o grande filósofo errou ao imaginar que, “em futuro não longínquo”, o bibliotecário seria incumbido “pela sociedade de regular a produção do livro, a fim de evitar que se publiquem os que forem desnecessários, e que, em compensação, não faltem aqueles que são exigidos pelo conjunto de problemas vivos de cada época”. Errou porque a sociedade não tem o direito de exercer uma censura abolida pela própria ortodoxia católica. Ninguém pode impedir que sub-literatos, falsos profetas e cientistas inidôneos continuem publicando seus livros. O máximo que se pode fazer com os livros “inúteis ou estúpidos” a que se referia Ortega y Gasset é evitar que sejam adquiridos por nossas bibliotecas. Para o exercício desta função de filtro o bibliotecário deve concluir um curso de graduação em ciências, letras ou artes e, só depois, completar sua formação com o mestrado e o doutorado em biblioteconomia – repito o insigne Jessé H. Shera – should be avoided as the plague. • Continente março 2007

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74 música Amaral Vieira foi eleito membro da Academia Brasileira de Música e já acumula mais de 30 prêmios no Brasil e no exterior

Em meio à polarização da orientação estética da música brasileira, o compositor e pianista Amaral Vieira buscou resgatar formas e técnicas barrocas e românticas Carlos Eduardo Amaral

Conciliação com o passado

Imagens:Divulgação

P

assado o tempo em que Villa-Lobos e Francisco Mignone incorporaram de forma pessoal os ritmos e cantigas brasileiros, os principais compositores da geração seguinte partiram para essa incorporação de forma comprometida (Camargo Guarnieri), ou aderiram ao serialismo trazido por Koellreuter (Krieger, Guerra Peixe e Santoro). Poucos ficaram à margem dessa divisão, a exemplo do romântico (bem) tardio Hekel Tavares e do “regionalista” paraibano José Siqueira. Passada a celeuma da Carta Aberta de 1950, houve troca de lados notória: o Krieger dos anos 50, Guerra Peixe e Santoro para lá e Guarnieri e Mignone para cá. Dos que iniciaram carreira daí em diante, houve os que foram magnetizados por um desses dois pólos ou os que escaparam pela força da corrente da música eletroacústica. Senão, há os que estabeleceram as tendências pósvanguardistas e pós-autóctones, que tentavam se livrar daquelas esferas de atração como o transtonalismo, o neo-romantismo e o minimalismo. Continente março 2007

E quanto a Amaral Vieira? Totalmente desconhecido da mídia da Bahia para cima, é preciso fazer umas pouquíssimas menções antes de pontuar influências. Tendo estudado piano em São Paulo e Paris até se formar na Alemanha e se especializar na Inglaterra, promoveu a obra de Franz Liszt nas salas de concerto brasileiras, bem como se projetou na música sacra e é atualmente o maior nome brasileiro do gênero. Em 2000, foi eleito membro da Academia Brasileira de Música, mas até aí já acumulava mais de 30 prêmios no Brasil e no exterior, tanto na interpretação quanto na composição. Segundo Amaral Vieira, foram os anos de estudo na França e na Alemanha que definiram suas convicções estéticas. E quais são as raízes da obra de Amaral Vieira? Se você escuta sem querer o Quinteto para piano e cordas op. 297 Fronteiras, o Te Deum in Stilo Barocco op. 213 e as Variações Fausto op. 199, é capaz de atribuí-las inadvertidamente a Schubert, Händel e Liszt, nessa ordem. Mas Couperin, Beethoven, Ravel e Bach são outros que oferecem substrato à obra do compositor paulista.


MÚSICA 75 O compêndio de instrumentações e construções polifônicas muito peculiares de Amaral Vieira se estende aos que aplicou na Missa Choralis op. 282 (para coro misto, piano obligato e duas trompas) e no Magnificat op. 254 (para meio-soprano, coro misto e duas bandas sinfônicas). Respectivamente, o uso combinado de metais e piano no acompanhamento do coro homofônico, típico em conventos franciscanos, e o tratamento antifonal do conjunto instrumental, extraído dos Gabrielli do fim da Renascença. Os encartes dos próprios CDs – a maioria lançada pela gravadora Paulus – dissertam onde Amaral Vieira buscou referências. E acerca de sua orientação estética ele acrescenta: “Eu arriscaria dizer que, além do Barroco e do Romantismo, minha produção foi também (e especialmente) influenciada pela estética dos compositores do século 20 que não se renderam aos movimentos institucionalizados como o Serialismo ou a Vanguarda, como foi o caso de Poulenc, Honegger, Shostakovich, Britten, entre muitos outros. A criação musical gerada exclusivamente pelo domínio técnico, engenhosidade lógica e cerebral pode ser muito instigante no papel, mas é abominável em sua realização concreta. Exemplo: a produção de Pierre Boulez”. E se é possível conciliar a tradição com as tendências contemporâneas, ele discerne: “Tudo o que se cria em nosso tempo é necessariamente contemporâneo. Mas o significado de contemporâneo como o 'que está na moda' parece aquele que melhor se adapta ao conceito mais empregado atualmente. Então não tenho o menor interesse ou preocupação em estar 'na moda', seja em meu modo de compor, interpretar, vestir, comer, pensar etc,”. Amaral Vieira ainda reflete sobre a persistência da Vanguarda nos dias de hoje, lembrando que o movimento surgiu no início da década de 1920 e que esses 80 anos desde então teriam sido o suficiente para demonstrar a validade do movimento e se impor dentro Foi Amaral Vieira de um contexto histórico: “Sem que se questione a quem promoveu as inegável importância dela durante certa fase da obras de Franz Liszt (foto) nas salas de História da Música, não creio ser aceitável nem concerto brasileiras saudável que ela se torne um fim por si só, autosuficiente e que se perpetue de modo estático”. Mas ele esclarece: “Certos compositores conseguiram de modo extremamente feliz sintetizar (mais do que conciliar) as heranças recebidas do passado com suas propostas pessoais. Um exemplo notável foi J. S. Bach, cuja obra carrega a herança ‘genética’ que recebeu de Schütz, Buxtehude, Pachelbel, Froberger, Marchand, Marais, Corelli, Vivaldi, Torelli, Frescobaldi, entre muitos outros – e nem por isso deixa de ser original”. Dia 21 deste mês, em Épinal, na França, ele e o Ensemble Vocal Poly-sons de Épinal estréiam Mouvements Concertants: um concerto sui generis em sete movimentos para piano e coro (em vez piano e orquestra), onde as vozes atuam “instrumentalmente”, acompanhando e ritmando através de vocalises e onomatopéias; sem letra. E “no prelo” está a cantata O Coração Latino-Americano, para meio-soprano e orquestra, sobre poema de Amadeu Thiago de Mello, que tem première prevista para 12 de agosto, a cargo da Amazonas Filarmônica. • Continente março 2007


Talento inominado A virtuosidade do violonista pernambucano Esdras Mariano da Silva, Lalão, é reconhecida por Yamandú Costa e Luiz Nassif, mas continua desconhecida em seu Estado Talita Corrêa

O

Hans Manteuffel

Esdras Mariano da Silva, Lalão, é considerado por outros músicos um verdadeiro catedrático da congregação do choro

nome é desconhecido – Esdras Mariano da Silva –, mas o tipo de história que guarda e os ídolos que coleciona nem tanto. Um pernambucano de paixão incurável pela música instrumental brasileira, com mais de quatro décadas de dedicação a ela. Violonista e compositor já apontado por outros grandes artistas contemporâneos e que, aos 51 anos de idade, esconde mais do que deveria as proezas de um humilde Takamine japonês. Os arranjos que cria são geralmente acompanhados pelos ouvidos sensíveis dos amigos, o coração arrebatado de pequenas platéias e as paredes de uma casa construída no Ibura, no Recife – bairro pobre que abriga mais de 112 mil moradores e 21 comunidades mal-assistidas, com pouco saneamento e pouca segurança pública –, cenário que parece nada ter a ver com a face bonita da arte, mas combina de sobra com o reforço do anonimato. Nunca foi casado, mas como diz, já fez alguns “juntamentos” na vida. Em uma dessas relações teve o único filho, que preferiu seguir carreira militar. Hoje, vive com uma companheira para quem construiu com orgulho uma laje sobre o lugar onde mora. É a respeito disso que fala com carinho até os olhos marejarem, apregoando uma suposta receita infalível de felicidade no amor. O pai, então zelador da Faculdade de Direto do Recife, foi o primeiro a incentivar as habilidades musicais do filho. Aos oitos anos ele já era recompensado com gorjetas por cada canção tirada no cavaquinho da família. Esforçado e autodidata, não demorou a ser reconhecido, e tornou-se, dois anos mais tarde, atração do Gurilândia, programa infantil que reunia na época crianças-prodígio, mães vigilantes e a presença de famosos como Ângela Maria e Dalva Oliveira. A mãe ajudava a sustentar mais oito irmãos com o trabalho de doméstica, e os criava com pulso firme numa casa na Linha do Tiro, outra área pobre da capital pernambucana. Foi um desses irmãos que lhe deu o apelido de Lalão, nome que tentou


Yamandú Costa chegou a gravar 12 composições do pernambucano

Divulgação

tornar artístico e faz questão de usar até hoje. Da família de 11 pessoas, ninguém vivenciou a música como aquele menino estudioso, que concluiu o ensino médio com título de aplicado, orgulhando-se de ter sido o melhor aluno de matemática da classe. Anos mais tarde, e longe das salas de aula, ele foi considerado por outros músicos um verdadeiro catedrático na congregação do choro. Influenciado ainda criança por discos de Waldir Azevedo numa vitrola Pionner, Lalão também foi mestre de obras para ganhar o sustento seguro que a vida artística nunca deu. Agora leva a vida tocando guitarra em festas, fazendo alguns saraus quando convidado, e insistindo em dizer que nunca esperou dinheiro ou glória. “Quero apenas que me deixem fazer o que eu amo, me dêem espaço.” Simpático e “aperreado” como um típico nordestino, a integração com seu instrumento o demuda em paz e calma, maravilhando o público como se o atravessasse e fizesse a sensibilidade dançar. Uma aptidão derivada da mesma fonte inesgotável de violonistas que é o Brasil, de onde estão sendo lançados outros talentos anônimos. Mas, dessa nascente, nem todos os talentos se preservam inominados. Yamandú Costa, gaúcho de 21 anos, ao incorporar a tradição do choro e do samba às influências do tango e dos sons regionais do Rio Grande do Sul, tornou-se unanimidade no meio onde é aplaudido. Nomes como Paulo Moura, Toquinho, Paulo César Pinheiro e Nelson Ayres reconhecem nele um fenômeno contemporâneo que deve orientar caminhos para toda sua geração. Durante uma visita ao Recife, o jovem chegou a gravar 12 peças de Lalão, estando agora à espera de um patrocinador que viabilize o disco. “Yamandú, além de referência musical, é um dos grandes companheiros aos quais sou grato pela tentativa de divulgar o que componho.” Entre os amigos que se esforçam para divulgar e apoiar seu trabalho, Lalão cita emocionado o nome de Racine Cerqueira que, além de músico, é médico responsável pelo cuidado da voz de inúmeros artistas da área. É com ele que compartilha os palcos em algumas oportunidades, como no último Festival de Inverno de Garanhuns, em julho de 2006, quando fizeram apresentações para mais de 45 mil pessoas. “Não sou pobre como meu pai era, mas às vezes não tenho dinheiro para a gasolina. Mas não é o que importa. O que eu queria era apenas poder tocar meu violão e mostrar minhas músicas. E amigos como o Racine têm me ajudado desde o começo da carreira nesse difícil desafio.” Não o conhecendo pessoalmente, mas nem por isso menos admirador, Luiz Nassif, jornalista e bom perito em música, também já levantou a bandeira dessa gratuita

divulgação justa e necessária: “Lalão é um desses gênios improváveis, filho musical direto de Canhoto da Paraíba e Garoto. É inacreditável que um som como o dele tenha passado anônimo esses anos todos, não apenas das gravadoras, mas das rodas de choro”. A propósito, seria um erro deixar passar um nome como de Canhoto da Paraíba sem a alusão merecida: um violonista cujo notável talento ritmava delicioso sotaque nordestino. Morreu pobre, esquecido, em 2003, aos 76 anos. Ao sofrer um AVC em 1998, passou a presenciar shows e homenagens dedicados a ele por amigos e radialistas do Recife. Ao saber de um desses eventos – nos quais eram angariadas verbas para cobrir suas despesas hospitalares – Canhoto apressou-se em avisar aos devidos organizadores que havia apenas um violonista em Pernambuco capaz de executar sua obra com o virtuosismo que ela exigia: Lalão. Esdras Mariano – o desconhecido “cabra” humilde, sorridente e meio desconfiado, de alpercatas nos pés - é quem continua tocando as guitarras nem tão desejadas, freqüentando os saraus pouco grandiosos, refutando a glória e o dinheiro nem tão desnecessários... E ao fim dessas pequenas apresentações, cala o primor dos arranjos, esconde as alquimias das composições e sujeita um tímido violão ao anonimato de sempre. Arregimentando fãs, amigos e anos de amor à música. E claro, se a pergunta de praxe o surpreender ao fim de uma conversa – provavelmente embalada pelos acordes inquietos do seu instrumento – a resposta é direta e quase excedida: – E o que gostaria de fazer se não vivesse disso? – Eu?...Morrer. • Continente março 2007


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AGENDA/MÚSICA

Mina do Mar digital

Um vôo até Radamés

músicas são antigas, os temas são antigos, os A sarranjos são antigos. Assim é o CD Mina do

Que não se diga que Radamés Gnatalli não recebeu as homenagens que merecia em 2006, ano de seu centenário. A mais recente veio de dois novos talentos formados em conservatório, mas de espírito igualmente aberto ao melhor da música instrumental brasileira: Caio Márcio, no violão e na guitarra, e Marcos Nimrichter, no piano e no acordeon. Se o ouvinte admirar a execução a dois do “Estudo nº 5”, vai receber o passaporte para viajar em primeira classe no restante do CD, com escalas em peças de Jacob do Bandolim (“Assanhado”), K-Ximbinho (“Sonoroso”) e Ernesto Nazareth (“Batuque”). Para esse tributo, Caio e Marcos chamaram três amigos a bordo: Zé Renato canta o clássico samba-canção “Amargura”; Mauro Senise entra de sax-alto na “Valsa triste”; já Guinga faz sua reverência no violão em “Perfume de Radamés”, composição dele próprio. Todas as peças estão num limiar entre a MPB de alto nível e o erudito, típico de Gnatalli. Essa afinidade fica ainda mais valorizada com um leve toque jazzístico, como provam, por exemplo, as execuções do “Estudo nº 7”, da “Invocação a Xangô” e da “Tocata nº 8” em ritmo de samba. “Pé-de-moleque”, por sua vez, remete aos choros mais à Pixinguinha, mas vem com uma série de exigências técnicas que Marcos explora no piano. (CEA)

Amor, de Teca Calazans, recém-lançado pela Eldorado. E, no entanto, o disco merece, com toda honra, figurar nas mais empedernidas estantes por esse Brasil a fora. Na realidade, é um lançamento histórico, como é característico da coleção. Mas é mais que isso. Por quê? Porque um disco de Teca Calazans é sempre um acontecimento. Dona de uma bela, límpida e bem colocada voz, a cantora e compositora capixaba-pernambucana é uma artista intransigente, no sentido mais positivo da palavra. Toda sua carreira é marcada por uma coerência dificilmente encontrada no show-business, o que certamente explica nunca haver figurado entre “os mais tocados” e ter-se tornado uma artista cult. Mina do Mar, gravada em vinil em 1984, ganha sua primeira versão digital. Nela, Teca Calazans mais uma vez vagueia pelo imaginário nordestino, interpretando Marco Polo (autor da faixa que dá nome ao disco, atualmente diretor editorial da Continente), Alceu Valença, Carlos Fernando, Almir Oliveira, João Fernando, Lula Côrtes, Oliveira de Panelas, Zé Ramalho e Otacílio Batista, em músicas pouco conhecidas, apesar de antigas, exceto, talvez, “Firuliu”, da própria cantora. Alceu Valença e Antonio Nóbrega fazem uma participação especial. Duas faixasbônus, isto é, acrescidas ao repertório original do elepê, enriquecem o volume. (HF) Mina do Mar, Teca Calazans, Coleção Eldorado, R$ 15,50.

Com a benção dos Orixás Rita Ribeiro é maranhense e faz um sincretismo musical reunindo a tradição das músicas de terreiro e as últimas novidades de samplers. O CD Tecnomacumba é fruto de 3 anos de apresentações, foi planejado depois que Rita ficou sem gravadora, a produção é da própria artista e tem distribuição da Biscoito Fino. Mas não espere um terreiro de candomblé ou uma rave, o equilíbrio sonoro de Tecnomacumba permite que o álbum transite da senzala à casa-grande. Uma das músicas que chamam a atenção é “Cavaleiro de Aruanda”, de Tony Osanah, que já fez parte do repertório de Ronnie Von e vem agora repaginada. Tecnomacumba – Rita Ribeiro, Biscoito Fino, R$ 28,90. Continente março 2007

Radamés em Companhia – Marcos Nimrichter e Caio Márcio, Biscoito fino, R$28,90.

Raíz olindense A olindense Aurinha do Coco está comemorando 25 anos de carreira e aproveita as bodas para lançar seu segundo CD solo: Seu Grito. Gravado no Fábrica Estúdios, no Recife, produzido de forma independente, com patrocínio da Chesf, e distribuído pela Tratore. O disco tem 12 faixas, nas quais Aurinha homenageia duas batidas do coco: xambá e o coco raiz. Neste novo trabalho Aurinha aparece como compositora de cinco faixas. As demais são assinadas por Isa Melo, Zezinho, Luís Boquinha, Tonino Arcoverde e Geraldo Lima. O CD leva o mesmo título da música de trabalho. “Seu Grito” é composição da própria Aurinha e fala de violência. Outro destaque é a faixa “Vem pra Olinda”, com escrita de Aurinha – fala de Olinda, de sua beleza, do Carnaval e tem participação de Mestre Salustiano. Seu Grito, Aurinha do Coco. Independente/Tratore, R$15,00.


AGENDA/MÚSICA Painéis catarinenses Seguindo uma tendência em todo país, de realização de concertos de popularização da música clássica e de divulgação de compositores locais, a Camerata Florianópolis sob a batuta de Jeferson Della Rocca tem se dedicado a atividades desse tipo em Santa Catarina nos últimos anos. Agora reúne em seu sexto CD cinco peças para cordas de Edino Krieger, quatro delas escritas entre 1954 e 1960, que atestam uma consciente incorporação de ritmos populares: o Andante, a Brasiliana, onde se destaca a viola solo, a Suíte para cordas e o Divertimento. A Camerata encomendou ao compositor uma obra especialmente para o disco, daí surgiu “Quatro imagens de Santa Catarina”, para cordas e percussão. A animada polca que retrata a Oktoberfest de Blumenau e a marcha-rancho que anuncia o sol e mar de Florianópolis são intercaladas pela gelidez da paisagem branca de São Joaquim. Porém, o curto movimento inicial, “Brusque – o canto dos teares”, é magistral na ambientação fabril da cidade-natal de Krieger. O pedal do contrabaixo “aciona” as máquinas e o ostinato dos violoncelos, violas e percussão – irregular (em compasso 5/8) e bem marcado –, imita os mecanismos delas. Aos violinos, cabe imitar o cantarolar dos funcionários e o emaranhado de fios de tecidos. (CEA) Camerata Florianópolis – Edino Krieger, Produção independente, R$ 20,00. Pedidos: cameratafpolis@floripa.com.br

Um Sopro Novo A Rádio Mec celebrou 70 anos de existência em 2006. Em seu auge, nas décadas de 60 e 70, possuía sua própria orquestra, a exemplo das grandes estações de rádio e TV européias e americanas, e foi a responsável pelo registro das principais obras dos compositores nacionais daquela época, regidas por eles mesmos. Através de seu selo fonográfico, inaugurou uma série de CDs de obras contemporâneas, aberta com este do Quinteto Villa-Lobos. A proposta de Um Sopro Novo é apresentar a obra de novos compositores, revelados em recentes bienais, ao de nomes como Eli-Eri Moura, Maurício Carrilho e Tim Rescala. Os jovens nomes e suas respectivas peças são: André Mehmari (“Sete miniaturas para quinteto de sopros”), Yahn Wagner (“Belo belo, para meio-soprano e quinteto de sopros”, que guarda uma semelhança com o excêntrico “Ukrinmakrinkrin”, de Marlos Nobre), Paulo Dantas (“Transformações”) e Nikolai Almeida Brucher (“Epeisodion”). Fragmentárias, de curta duração e livres na estruturação, as peças são um recorte da nova geração de compositores brasileiros. Esse recorte divide espaço com a suburbana “Suíte carioca de Carrilho”, o apreensivo “Sexteto 1997” de Rescala (que inclui um piano) e o evocativo “Opanijé Fractus” de Eli-Eri Moura, baseado um ponto de candomblé. (CEA) Um Sopro Novo, Selo Rádio Mec, R$25,00. Pedidos: www.radiomec.com.br/ seloradiomec

Cordéis de Mangaio epois do CD Terra Esperança, a KuaD rup lança O Poeta do Som, o primeiro DVD de Sivuca, gravado ao vivo no Teatro

Santa Roza de João Pessoa, em 2005. Incluindo algumas gravações do Terra, o DVD faz um apanhado maior dos últimos arranjos do sanfoneiro e marca o menu de abertura com o da “Tocata e fuga em ré menor” de Bach. No primeiro e único solo do show, Sivuca (que fez questão de estar presente no lançamento do DVD, em novembro) executa uma de suas músicas mais queridas: “Quando me lembro”, do bandolinista pernambucano Luperce Miranda. Nela, o que sobressai, além do virtuosismo, é a simbiose com o acordeon, atestada pelas teclas amareladas. Glória Gadelha cuida da produção e assina a maior parte das composições – só, em parceria com o marido ou com outros compositores. E quem ainda não a conhece de vista, pode ouvi-la nos extras cantando “A vida é uma festa”, dela e de Moraes Moreira, e “João e Maria” em ritmo de frevo, ao lado do grupo Nossa voz. Mas o destaque dos extras é a gravação de Sivuca com a Sinfônica da Paraíba no Cine Bangüê. Ele executa “Aquariana” e, claro, “Feira de Mangaio”, que no arranjo orquestral transforma o tema numa valsa-choro antes de desaguar no forró. Uma das virtudes do DVD é trazer à tona do mar musical brasileiro os mais destacados conjuntos instrumentais da atualidade na Paraíba, seja na música popular, seja na erudita. A maior parte deles atua com desenvoltura nas duas vertentes, como o Quinteto da Paraíba e o Sexteto Brassil. Singulares são a careta marcante de Radegundis Feitosa, que lidera o Sexteto e o Brazilian Trombone Ensemble, e o figurino da Metalúrgica Filipéia. A revelação é o Clã Brasil com a jovem Lucyane Alves na sanfona. (Carlos Eduardo Amaral) Sivuca – O Poeta do Som, Kuarup, R$45,00.

Cello e violino a sós Em época de crise financeira, um quarteto de cordas demitiu metade do seu quadro funcionários. O violinista e o violoncelista que sobraram passaram a tocar em duas cordas ao mesmo tempo para completar os acordes das peças. Longe de essa brincadeira ser verdade, Ludmila Vinecka e Antônio Guerra Vicente, integrantes do premiado Quarteto de Brasília, gravaram um CD único, de peças destinadas ou transcritas para ambos os instrumentos; não podia ficar de fora o “Dois Choros” (bis) de Villa-Lobos, referência universal do gênero. O barroco está representado por Händel (“Passcaglia”) e Couperin (“Concert à deux”); o nacional, pelos duos de José Guerra Vicente e Cláudio Santoro. Completa o disco a transcrição do “Capricho 24” de Paganini. (CEA) Conversa a Dois, Global Records, R$31,00. Continente março 2007

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

É melhor não escrever nada As diferenças e as afinidades entre o conto e o romance

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ale a pena discutir se é mais difícil escrever um romance ou um conto? Segundo Octavio Paz, sem épica não há sociedade possível, pois não existe sociedade sem heróis em que se reconhecer. Jacob Burckhardt foi um dos primeiros a advertir que a épica da sociedade moderna é o romance. Mas como chamar de épico um gênero ambíguo, que mal se define entre a crônica, o ensaio filosófico, a confissão autobiográfica, em que tudo cabe e é possível? O romance e o conto teriam sua origem nos mesmos relatos míticos. Mas a modernidade mudou a feição do herói, introduziu a consciência, o homem virou o senhor de seus atos e vontades, não é mais o joguete do destino, sua posição diante do cosmo e diante de si mesmo tornouse radicalmente distinta da que assumiu no passado. Os antigos conferiam realidade aos seus heróis. O mito explicava a ordem do mundo. A Odisséia de Homero guardaria os prenúncios do romance moderno, uma forma narrativa que busca fugir ao ritmo imposto pela poesia e ao herói modelo, que acabamos de referir. O conto se origina nos relatos da tradição oral, nas histórias de deuses, heróis civilizadores, animais totêmicos. Guardados na memória e repetidos ao longo dos anos, esses relatos tinham a função de registrar os feitos das tribos, de educar através de exemplos, ou simplesmente divertir. As narrativas orais ganharam registros escritos, mas os compiladores, na maioria das vezes, permaneceram no anonimato. Nesse primórdio, o tecido que separava a narrativa de tradição oral, da escrita, era bem tênue. Permaneceu assim, até que a modernidade cobrou a assinatura de um autor. Continente março 2007

No Decamerão de Boccaccio as múltiplas vozes dos narradores fazem pensar em vários autores. Porém, as 100 narrativas estão assinadas. Não se trata de uma criação coletiva como os relatos colhidos e recontados pelos Irmãos Grimm, ou por Ítalo Calvino, ou por Jean Claude Carrière. Boccaccio imagina um grupo de sete moças que, tentando afastar-se dos perigos da peste que grassava em Florença, se encontram com três rapazes, “não por prévia combinação, mas por acaso, em uma das dependências da Igreja de Santa Maria Novella.” Ali, decidem seguir, em busca de ar livre, para uma propriedade agrícola perto de Florença. E durante 10 dias contam histórias de amor. É o mesmo modelo adotado em As Mil e uma Noites, sendo que nestas, além de um número mais infinito de noites, existe uma narradora única, Sherazade, que no transcorrer das histórias transfere a voz narrativa para outros. Sherazade seria um Boccaccio que, ao invés de escrever, narra. O conto se manteve próximo da tradição oral, e a substituiu nas sociedades em que a figura do narrador deixou de existir. Não há personagem, dentro das sociedades, a que possa ser comparado o romancista. Porque embora tenha existido o hábito da leitura de romances em voz alta, o romance nunca buscou forma correspondente na oralidade. Mesmo considerando que a separação entre conto e romance é arbitrária, Ernesto Sabato insiste em diferenças arquetípicas, mas não diz quais são elas. Refere que Guerra e Paz é um romance e “Bartleby” um conto, sem estenderse nos motivos dessa classificação. A diferença estaria apenas no número de páginas? Sabato reconhece que “o romance é tão extenso comparado com o conto que, o que deve haver entre o começo e o fim dessa ilha difusa que se


entrevê no início é difícil de prognosticar”. Borges, ao referir sua experiência, diz que vislumbra o princípio e o fim da história em cada conto que escreve, mas que não sabe a que país ou época pertencem, o que se revela apenas quando pensa no tema, ou quando vai escrevendo. No conto – trabalhando com um tempo narrativo mais limitado –, segundo Ricardo Piglia, “há um jogo entre a vacilação do começo e a certeza do fim”, sem sobras para digressões extensas como no romance. Segundo Kafka, “No primeiro momento, o começo de todo conto é ridículo. Parece impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma, possa manter-se vivo. Cada vez que se começa, esquece-se de que o conto, se sua existência é justificada, já traz em si a forma perfeita, e que só cabe esperar vislumbrar nesse começo indeciso o seu visível, mas, talvez, inevitável final.” Millôr Fernandes resumiria a questão numa tirada de humor: o conto é um romance sem o miolo. O conto é um relato que encerra um relato secreto, afirma Piglia. É este o seu miolo. Nele, precisamos contar uma história, contando outra. Não como fez Sherazade, que interrompe um fio narrativo para introduzir outro. É necessário que as duas histórias caminhem em paralelo, contem-se ao mesmo tempo. Ler um conto é investigar essa história secreta, que foge à aparência.

Piglia escreve que os contistas mais modernos abandonaram a estrutura fechada da narrativa e o final surpreendente; trabalham a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê-la. E que o conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; e o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só. Os experimentos com o conto deixaram de lado a intenção de contar uma história, ou duas histórias, uma visível e outra secreta. Não existe a vontade de que o conto escrito retorne à forma oral, podendo ser lido em voz alta. Os novos narradores talvez não se interessem em contar histórias. Ou talvez se interessem em narrar uma história tão secreta, que muitas vezes nos perdemos nos seus sinais, sem nunca decifrá-la. • Continente março 2007


CÊNICAS

O canto dos viajantes Espetáculo Ópera questiona as fronteiras entre os gêneros e as sexualidades e desafia os limites entre a alta cultura e a cultura marginal Rodrigo Dourado

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afônica! Esse é o melhor adjetivo para qualificar a montagem teatral de Ópera, que se define uma gay play, mas transcende a classificação e vai ao encontro de uma linguagem francamente queer. Mas onde reside a diferença entre uma estética gay e outra queer? Apesar de sutil, a diferença está na discussão sobre as identidades contemporâneas. A cultura gay pretende delimitar o que seja a identidade homossexual: valores, desejos, semelhanças e pertencimento. Já a queer é todo comportamento que advoga a liberdade absoluta no uso dos corpos e das sexualidades, que reivindica o direito de não pertencer, que põe em dúvida a noção de natureza e brinca com as aparências. Para a Teoria Queer, não há essências nem originais, mas apenas construções discursivas, performatividade e enunciação na criação dos fenômenos e das subjetividades, dos sexos e dos gêneros. É a performance que garante a “autenticidade” ou “falsidade” do masculino e do feminino, num eterno jogo para aferir se o performer manifesta uma suposta natureza ou é uma deformação dela. A análise queer questiona a aparente naturalidade do sexo, expondo os interesses políticos que existem por trás dos procedimentos científicos adotados para defini-lo. Dessa forma, a Teoria pretende aproveitar o potencial subversivo das sexualidades marginais para questionar a própria ordem social e política, desafiando o sistema que separa uma sexualidade “normal” de outras “desviadas”.

A peça, considerada uma gay play, traz uma linguagem francamente queer

Foto: Tuca Siqueira/Divulgação

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Ópera é estruturada em quatro quadros, do livro homônimo do pernambucano Newton Moreno

Esse preâmbulo se faz necessário para entender por que o teatro é instrumento fundamental para a compreensão da Teoria Queer e por que Ópera dialoga com esses conceitos. Segundo os princípios da cultura queer, o transformista é aquele ser que ultrapassa o binarismo dos gêneros (homem x mulher) e reconstrói seu corpo. Ele surge, assim, como um “entre ser”, uma terceira categoria numa sociedade que insiste que só há duas, e utiliza seu corpo como arma para contestar a cultura heterocentrada. Através das próteses (perucas, seios postiços, maquiagem etc.) o/a transformista vai em busca de um ideal de feminilidade/masculinidade, citando parodicamente características de uma idéia da “mulher” ou do “homem”. No teatro, essa perigosa brincadeira se hipertrofia. O jogo dramático brinca com as aparências e revela que tudo é representação, numa sobreposição infinita de máscaras que perturba a audiência. Ópera busca esse metajogo, homenageando o Vivencial Diversiones, grupo teatral pernambucano de curtíssima trajetória (1974-1982), mas cujo sopro renovador e iconoclasta se faz sentir até hoje na cena local. Foi ele o primeiro conjunto nordestino a adotar o corpo como suporte da criação artística e a entender que a trajetória desses corpos que se transformam ao bel-prazer já possui uma dramaturgia, carrega em si uma rica narrativa. Ópera é estruturado em quatro quadros, todos extraídos do livro de contos de mesmo nome, do escritor pernambucano Newton Moreno. Com direção de Marcondes Lima, os episódios do espetáculo são costurados por dublagens dos atores, parodiando divas do universo da música pop, numa solução que remete às casas noturnas onde as “supermulheres” são adotadas como heroínas pelas “quase mulheres”. A adaptação dos contos apelou

para o diálogo com outras linguagens como a radionovela, a fotonovela, a novela televisiva e a ópera, o que se traduziu em inventivas soluções cênicas e potencializou os recursos cômicos do trabalho. O quadro “O Cão” é narrado por atores de rádio, num jogo em que o espectador, ao mesmo tempo que acompanha a hilária história do cachorro que rejeita cadelas, pode entrever os bastidores de um estúdio, revelando a também hilária engrenagem por trás daquelas vozes e sons. Já “Petra” parodia as estratégias das fotonovelas, capturando instantes da vida de Pedro, garoto que sonha em ser garota e cujo álbum revela uma profunda subversão da norma hétero. Aqui, a cena conta com atores manipulando molduras para recortar os quadros e balões com os textos dos personagens. Vale destacar ainda que esse episódio, paradoxalmente, sublinha o efeito de teatralidade, considerando que a iluminação deixa em aberto a preparação de uma foto para a outra e o público pode acompanhar, sem truques, o funcionamento da máquina teatral. O terceiro quadro, “Culpa”, mostra uma cena de novela em que um homossexual soropositvo em estado terminal dialoga com seu companheiro, tentando arranjar-lhe um novo parceiro. O episódio recorre ao recurso do melodrama, das emoções exageradas, e conta com a presença de um afetado maquiador de atores que assiste às gravações nos bastidores e vai às lágrimas com a situação, mesmo que fictícia. Por fim, o quadro que dá nome ao espetáculo, “Ópera”, mostra a história de um cantor lírico que se apaixona por um garoto de programa e passa a acompanhá-lo em sua vida mundana, Continente março 2007


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CÊNICAS cercando-o de regalias e submetendo-se a toda sorte de degradação em nome dessa paixão proibida, à espera de um gesto que prove a reciprocidade do amor. O episódio é todo cantado e traz um coro de anjos com vestes sumárias e plumas carnavalescas, que narra e comenta a cena como na tradição do coro trágico grego. Newton Moreno, que vem se destacando com um dos novos dramaturgos da cena contemporânea brasileira, investiga em boa parte de sua produção teatral e, em outros gêneros, a vivência homossexual. São dele as peças Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada, The Célio Cruz Show, Agreste e Dentro, textos que vão ao âmago de relações inusitadas e marginais. O escritor, no entanto, rejeita que esse seja seu foco temático, afirmando que seu objetivo é antes “melhorar a vida do homem na terra, buscando textos e matéria-prima que ajudem a levar o homem a se compreender, a entender sua existência na terra e a perceber o outro e as diferenças”. Seu tratamento do tema, no entanto, revela um profundo conhecimento da matéria que manipula e recorre quase sempre ao humor ácido, ao cômico. A opção pelo cômico, porém, pode ratificar preconceitos, produzindo um contra-efeito. Nas palavras do dramaturgo, no entanto, “o humor e a ironia são sempre bem-vindos, a questão é o equilíbrio na utilização dele. A crueldade tem que ser bem sublinhada”. Equilíbrio e crueldade são elementos que norteiam o trabalho do encenador Marcondes Lima, criador que melhor traduz uma sensibilidade camp para o tablado pernabucano. Esse humor cáustico identificado por Susan Sontag, essa estética que celebra o maugosto, a cafonice, que vê brilho na lama e na margem. Lima constrói a cena com habilidade e O episódio que dá nome ao espetáculo apresenta um coro de anjos com vestes sumárias, fazendo referência ao coro trágico grego sabedoria. Basta dizer que, ele mesmo figurinista, usa inteligentemente o recurso das próteses para sublinhar a maleabilidade dos corpos de seus atores. Na abertura do espetáculo, eles se vestem à mostra da platéia, colocando uma saia na parte inferior (citação do feminino) e uma comportada camisa social (citação do masculino) na parte superior do corpo. Hibridismo perturbador e questionador. Já ao final do espetáculo, é a vez dos intérpretes se despirem e assumirem suas vestes cotidianas, o que lança para a platéia a dúvida sobre a ficcionalidade do real. Mas o grande momento da encenação é mesmo o show de encerramento, realizado pela transexual Andréa Close. A presença dessa artista do circuito noturno recifense fecha o elo com o Vivencial Diversiones, casa que se notabilizou pelos shows de travestis, e revela o desejo de mergulhar fundo na pesquisa sobre o queer. Enquanto os atores voltam a assumir seus personagens cotidianos (de acordo com as expectativas em torno de seus corpos), Close revela sua beleza subversiva de viajante pós-moderna. Viajante porque uma trajetória foi delineada para o seu corpo, um território foi-lhe oferecido como próprio. Ela, no entanto, desviou o caminho e cruzou a fronteira, arriscando-se a permanecer num não-lugar. O espetáculo Ópera ousa tirá-la desse limbo e trazê-la para o centro, para o holofote, desestabilizando, assim, não só os limites dos gêneros e das sexualidades, mas também da alta cultura e da cultura marginal. O que assegura o desejo da montagem de questionar o status quo, devolvendo ao teatro sua verve perturbadora da ordem. • Continente março 2007


Armando Menicacci/Divulgação

Diversidade por si só Helder Vasconcelos estréia seu novo espetáculo Por si só, unindo dança contemporânea e cavalo-marinho Christianne Galdino

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assada a primeira crise, em que Helder Vasconcelos se descobre e se aceita como um ser da tradição, um brincante de cavalo-marinho e maracatu rural, outras questões se impuseram e as interrogações insistiram em vir à cena, dando origem a um novo trabalho solo de dança contemporânea. Por si só estréia nacionalmente, em São Paulo, na Mostra Rumos Dança do Itaú Cultural, trazendo os questionamentos de arte e vida do autor, que teve uma importante atuação musical, como integrante da banda Mestre Ambrósio, e compôs também um espetáculo solo em 2004, intitulado Espiral Brinquedo Meu, que já apontava caminhos deste “entrelugar tradicional-contemporâneo”. Curioso e inquieto por natureza, o dançarino, músico e ator Helder Vasconcelos quis buscar o porquê de sua inserção na dança contemporânea. Por que fazer isso, se podia continuar apenas brincando feliz nos terreiros da tradição? “Entrei nesse espaço para me transformar e atender às minhas necessidades pessoais de mudança. Todos os meus questionamentos e reflexões encontraram ressonância neste universo da arte contemporânea e acredito que estas questões talvez nem existam na tradição, lá são outros os objetivos”. O discurso do corpo de Vasconcelos parte da constatação que toda transformação exterior surge de uma mudança interior. Os recursos tecnológicos servem como ferramentas para que o artista se faça ouvir, mas os traços da tradição presentes no seu corpo de brincante continuam ali. Telão, projetor, computador, pedal midi, placa de áudio e muitos sensores foram inseridos nesta composição, que utiliza o software Isadora, criado para trabalhar vídeo na dança e o programa Life, para o áudio e os efeitos sonoros. Helder Vasconcelos se aproximou das possibilidades de interatividade entre dança e tecnologia quando participava de um seminário e uma residência artística realizados no Recife em 2006, ambos ministrados pelo professor da Universidade Paris VIII, na França, o italiano Armando Menicacci. Desta convivência surgiu a idéia de convidar Menicacci para ser um dos colaboradores na montagem de Por si só, que acabava de ser contemplado no edital Rumos Dança

Por si só, segundo solo de Helder Vasconcelos, estréia este mês, em São Paulo


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Marcelo Lyra/Divulgação

do Itaú Cultural. Concepção, atuação e trilha sonora de nologia que só ajuda a revelar a presença da tradição no Vasconcelos; direção, vídeo, fotografia e programação corpo dele. A dança de Helder Vasconcelos quer se esinformática assinados por Menicacci, que veio ao Brasil crever, sem precisar se descrever, porque o autor acredita especificamente para trabalhar em regime intensivo, que “não há muito para ser contado, tudo tem que ser visto e vivenciado.” durante 15 dias, na construção deste solo. A imersão no universo investigativo da dança conAcostumado a desenvolver projetos no Brasil, Menicacci gosta de partir da realidade local para criar e se diz temporânea não afastou Vasconcelos das suas outras áreas avesso à importação de valores europeus ou qualquer tipo de atuação. Além de assinar a trilha sonora do seu próprio de relação “colonizadora”, aliás, ele atua em uma linha solo, experimentou-se como compositor e diretor musical de outros espetáculos de dança. contrária a esta. “Venho aqui para Outro sonho prestes a virar reaser colonizado. Eu sempre digo lidade é atuar como ator de cineque trabalho pela brasilificação do ma. O convite veio do diretor mundo, para exportar alguns vaMoacyr Goes, as filmagens do lores que ainda existem no Brasil longa-metragem realizadas no e na Europa se perderam. Gosto Rio Grande do Norte foram de fazer trabalhos aqui, mas é a concluídas e a estréia está previspartir daqui e não trazendo meu ta para agosto deste ano. As Pesaber para impor”– esclarece. lejas de Ojuara – o Homem que O primeiro passo foi registrar Desafiou o Diabo traz Marcos em vídeo os movimentos do cavaPalmeira no papel de Ojuara e lo-marinho e do maracatu rural Helder Vasconcelos na pele do presentes no corpo do intérpreteCão Miúdo, um vilão – diabo criador e depois captar imagens que dança maracatu rural. Tudo de Helder Vasconcelos brincando aquilo que atravessa a vida do no cavalo-marinho do Mestre artista entra em cena, quer ele Biu Alexandre, no município de queira ou não, e no caso espeCondado, Zona da Mata Norte cífico deste criador plural, a dande Pernambuco. “Tiramos alça, a música e o teatro estarão guns elementos e começamos a sempre incorporados e “hibriditransformar. Para ir mais longe, zados” no vocabulário autoral colocamos capas de tecnologia, Espiral Brinquedo Meu foi o primeiro solo do artista, que fez que ele vem instituindo, em que vídeo e áudio para ver a tradição parte do grupo Mestre Ambrósio não cabe mais a polêmica entre se desdobrar em outras possibilidades. A idéia não é colocar um pouco de contemporâneo erudito e popular, sua escrita já ultrapassou esses limites. Inserir mudanças: eis a função política da arte conna tradição nem um pouco de tradição no contemporâneo já conhecido. Queremos criar, a partir da tradição, o con- temporânea, eis a característica mais explícita das obras temporâneo” – explica o diretor Menicacci. Por si só nasce de Helder Vasconcelos e a motivação da sua pesquisa de um roteiro preciso, porém permeado de improvisações, coreográfica que resultou no solo de dança contemcomo, aliás, é típico de uma apresentação de cavalo- porânea Por si só. Mudança que é centro da questão e carrega em si, invariavelmente, a marca da diversidade. marinho. Em total sintonia com o intérprete, o diretor arrisca E se a diversidade é o tema, Vasconcelos aprofunda a dizer que toda a composição coreográfica do solo é ligada discussão mostrando uma identidade construída a partir ao passado de Vasconcelos, aos elementos da sua for- dos encontros, da escuta, da multiplicação de elementos mação física e musical na tradição. A partir daí, uma série diversos inscritos no seu próprio corpo, uma identidade de situações que conectam passado e presente em cons- que não é fixa. “Aliás, a única coisa que é fixa em Helder tante mutação é colocada em cena, sempre para efetuar é tentar não ser fixo” – sentencia Menicacci. • transformações e criar novas relações entre esta tradição e a forma do dançarino atuar agora, mediado pela tec- Informações: www.itaucultural.org.br Continente março 2007


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O Auto faz 15 anos O espetáculo Auto da Compadecida, do escritor Ariano Suassuna, faz aniversário e comemora com apresentações no Recife e em Natal Marcelo Lyra /Divulgação

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rova do talento e genialidade do escritor Ariano Suassuna e da competente direção de Marco Camarotti, o espetáculo Auto da Compadecida, montado pela Dramart Produções, comemora 15 anos fazendo duas únicas apresentações, no Recife e em Natal. Há tanto tempo em cartaz e com mais de 280 mil espectadores pelo Brasil, a peça consagrou-se com um dos maiores sucessos do teatro pernambucano, contagiando o público com sua alegria. E essa festa já começa do lado de fora do teatro, na recepção, onde as pessoas são recebidas com artista em perna de pau, cuspidor de fogo, banda de música. O espírito circense domina o ambiente: é um palhaço, representando o próprio autor, quem faz as ligações entre as confusões armadas pelo espertalhão João Grilo que, ao lado de seu inseparável amigo Chicó, tira proveito de todos na cidade de Taperoá, enterrando cachorro em latim e vendendo gato que (des)come dinheiro. E, assim, ilustres políticos, comerciantes, cangaceiros, representantes da Igreja e até Deus e o Diabo são envolvidos numa trama bem arquitetada que culmina com um verdadeiro “julgamento de canalhas”, onde a grande juíza é a Compadecida. A partir daí, perdão e misericórdia se alinham ao deboche e à esperteza. A primeira montagem do texto, em 1956, foi realizada pelo Teatro Adolescente do Recife. Na época, o grupo atraiu as atenções do Brasil para um dramaturgo até então desconhecido, Ariano Suassuna. A atriz e produtora, Socorro Raposo, integrou a encenação no papel que defende até hoje, a própria Compadecida. O elenco traz Sóstenes Vidal, Adriano Cabral, Williams Sant'Anna, Luiz César e Leidson Ferraz. A trilha sonora é executada ao vivo pela Banda Querubins de Metal.

Preto no Branco

Breno César/Divulgação

Os possíveis desdobramentos do passo, essa foi a investigação que a Cia. de Dança Artefolia começou em 2002 e que, agora, no ano em que se comemora o Centenário do Frevo, mostra ao público. O primeiro fruto da pesquisa, Preto no Branco, revela um diálogo instigante entre o tradicional e contemporâneo, onde o ritmo é despido e mostra suas múltiplas e dinâmicas faces. O espetáculo, que tem coreografia de Marília Rameh, Ivaldo Mendonça e Célia Meira, traz ainda interferências visuais assinadas por Breno César. Preto no Branco, Teatro Armazém 14 (Rua Alfredo Lisboa, Cais do Porto. Tel.: 81. 3424-5613 ), dias 02, 03, 04, 09, 10, 11, 17 e 18 de março às 20h. Ingressos: R$ 10,00 (inteira), R$ 5,00 (meia).

Auto da Compadecida. Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Recife – PE. Tel.: 81.3224-1020). Dias 21 e 28 de março às 19h. Ingressos: R$ 5,00 (estudantes e maiores de 65 anos) e R$ 10,00 (inteira).Teatro Alberto Magalhães (Pça. Augusto Severo, s/n, Ribeira – Natal – RN. Tel.: 84.3222-3669). Dia 23 de março às 20h. Ingressos: R$10,00 (estudantes e maiores de 65 anos) e R$ 20,00 (inteira).

Conceição

Ana Lira/Divulgação

A intersecção entre o visual, o sonoro, o gestual e o simbolismo, que rodeia as comemorações da festa de Nossa Senhora da Conceição, no morro batizado com o nome da santa, foi observada pelo Grupo Experimental, dando origem à nova montagem da companhia que procura. O espetáculo surge mais do sentimento e das sensações que movem as pessoas até o morro do que de qualquer imagem icônica que caracterize a famosa festa. Dos movimentos que brotam o sentir coletivo e plural de um universo onde o sagrado e o profano se misturam é que nasce Conceição, escrita em dança pelo Grupo Experimental. Conceição,Teatro de Santa Isabel (Praça da República, s/n, Recife – PE. Tel.: 81.3224-1020). Estréia dia 29 de março às 20h. Ingressos: R$ 5,00 (meia) e R$ 10,00 (inteira). Continente março 2007


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ÚLTIMAS PALAVRAS Rivaldo Paiva

É para não esquecer É bom não esquecer que temos inúmeras maneiras de ver a vida

É

uma doidice danada de doida. Vivemos momentos, podemos dizer, angustiantes, nesta nossa passagem por este mundo esquizofrênico e sem valores espirituais, tampouco um mínimo de tempo para apreciar as pequenas coisas belas com as quais não mais convivemos. Se eu escrevesse lástimas ou lamúrias de um passado memorizante, nem um pouco prático hoje em dia, os meus leitores mais jovens – não tão moços quanto eu – nunca mais quereriam saber do que digo neste espaço. Mas, o fito que pego – quer dizer, se percebermos que este início dos anos que completarão 21 séculos está nos dando aquela lambisgóia de nos rendermos à idiotice circulante pelo dia-a-dia das nossas ocupações, é bom pararmos para pensar no que é bom de se lembrar para não esquecer. Vivemos naquela corrida ansiosa da glória de acompanharmos os avanços espetaculares da tecnologia – inimaginável tempos atrás. Conquistas fantásticas da cibernética, angulares e funks, drogadas e libertinas; sexo livre – que maravilha, hein? É aperreio para os pais, mães e avós – mas tá tudo legal!... Tá ligado?... Então, se a tendência de recorrermos ao medo deste endoidado povo do nosso país for aquela que dá na gente, de buscar nos recônditos do infinito da alma escondida nas cavernas dos túneis irreconciliáveis da compreensão, estaremos perdidos. Cadê os aspectos humanos e espirituais? – Olhe aqui, meu caro leitor! Faz quanto tempo que você não se preocupa em tomar um cafezinho bem cheiroso, sentido no âmago dos seus sentidos correspondentes. É só agonia, preocupação com tudo. É violência em todo canto: nas favelas, nas ruas (festas populares e futebol), no cinema – o governo autoriza filmes só de lutas, imbecilidade medieval que se tornou epidêmica ao jovem que adora uma pitada de coca, maconha ou crack, roubando até dos pais para saciar sua dependência e enriquecer os traficantes. Pobres e deploráveis ricos cartéis que nunca souberam do amor, da família, do cafezinho do fim da tarde com aroma de torrado, acompanhado de filhoses ou beijus; da boa prosa dos amigos; daquela reunião dos seus em volta de uma mesa: macarronada, torresmos e vitelas ao sabor do vinho do São Continente março 2007

Ilustração: Zenival

Francisco; sucos de cajá, geladinhos de dar gosto. Mesmo uma cervejinha – muitas, pode ser, grogues e refrescantes. Não importa. O prazer e a alegria do convívio sadio da casa, no coração do seu reduto. Há um descompasso entre o que era e o que deveria ser. Os valores estão desaparecendo. Os valores maiores da vida. A instituição familiar. A missa ou o culto dos domingos. Uma boa partida de dominó no terraço. O congraçamento com os avós, pais, a mulher, os filhos, genros, noras e netos é a virtude da união que se perde, pouco a pouco, no seio da sociedade. Para desconsolo de todos nós, em pouco tempo, as pessoas ficam perdidas em meio a tanta informação global, internet, modernismo desvairado, ciência, técnica, televisão de tchans e negritudes rebolativas – faustões e gugus domingueiros que só sabem bajular (todo convidado do seu programa é sempre um dos melhores do Brasil. Pobres de nós, brasileiros entregues a esta fauna animalesca de promiscuidade televisiva – corroendo até a vontade de não vê-la, tornando os passivos viventes em contumazes veneradores do cientificismo abilocicóide. É bom não esquecer que temos inúmeras maneiras de ver a vida. Somos herdeiros da revolução cultural e social da década de 60 – de mudanças profundas nos paradigmas sociais, quando tivemos que enfrentar os resquícios de uma sociedade patriarcal e “moralista” em relação a tudo: sexo, mercado de trabalho etc. Rompeu-se uma estrutura repressora dos nossos costumes, com uma total reviravolta dos valores éticos e morais à época – hábitos, jamais. Se isso significasse abandonarmos o explicável, o racional ou até o consumismo essencial, deixando de lado as virtudes e os valores básicos como a solidariedade, o respeito e a perseverança, não existiria o cultivo da preservação do belo, das virtudes, das boas maneiras, da continuidade da instituição familiar. Que cada um faça a sua parte se quiser uma vida melhor. Que cada um saiba para onde ir e como ir. O caminho é um brinco que pode ser de ouro. É bom não se esquecer de se lembrar de pensar. •


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Caio de Souza Leão Histórias do rei Magarinos

Na corte dos melhores boêmios e letrados do Recife, Caio Magarinos de Souza Leão era conhecido simplesmente por Caio, ou Dr. Caio, como preferiam os mais jovens Mário Hélio


U

ma história irlandesa dá conta do rei Guaire de Connaught (século 7). Tal era a sua hospitalidade que, não tendo espaço na própria casa para abrigar e alimentar 150 poetas que o visitaram, ele tratou de construir um prédio novo onde os manteve e alimentou por um ano. A história do rei Magarinos tem algo desse espírito. Por décadas Magarinos recebeu em sua casa amigos de diversas origens, idades e profissões e os encheu de comida e bebida. Desde a sua morte – aos quase 88 anos – esses amigos, inconsoláveis, não se cansam de reconstruir as suas histórias. Magarinos I se chamava, na verdade, Caio Magarinos de Souza Leão. Na corte dos melhores boêmios e letrados do Recife era conhecido simplesmente como Caio (os súditos mais jovens preferem chamá-lo “Dr.” Caio, devido ao respeito que deviam ao majestoso personagem). “Dr.” Caio não era médico. Formou-se em Direito, mas praticamente não exerceu a advocacia. As suas atividades profissionais principais foram nas áreas de comunicação, principalmente em publicidade e rádio. Não foi, porém, nesses trabalhos de rotina nem nos eventuais exercícios de escritor e jornalista que alcançou a “imortalidade prometida

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Apesar de formado em Direito, trabalhou na área de comunicação

aos poetas” e, sim, em algo mais sólido e imaterial: o jeito de ser e levar a vida. Talvez por essa imersão total na vida e na afetividade boêmia ele não tenha sucumbido ao fetichismo dos livros, embora os amasse e cultivasse como poucos. A quem procurar uma razão para alguém tão ligado à literatura e às artes e com vida tão longa não haver se dedicado a produzir livros, talvez uma boa explicação seja a frase de Montaigne: “Nosso dever é compor nosso caráter e não compor livros”. Pode-se dizer – sem sentido de trocadilho ou paradoxo algum – que, para gente assim tão hospitaleira e gregária, receber (as pessoas em casa, por exemplo) é sinônimo perfeito para doação, dádiva, dom. Caio Magarinos de Souza Leão gostava de receber as pessoas na própria casa. Não eram, no entanto, saraus nem cenáculos esses momentos de bate-papos de fim de semana iniciados na década de 50 e prolongados até os anos 80. Mais do que um anfitrião, ele era o que se chamava antigamente de conviva. Com esses encontros ele sedimentou histórias na mente dos seus convidados, a ponto de criar certa “lenda” em torno de si e ser referido como um personagem de contos fragmentários repetidos e reinventados pelos que o freqüentaram. Como o Mallarmé que recebia os amigos todas


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Caio recepciona Oderico Tavares em sua casa

as terças-feiras na sua casa da rua Roma, em Paris, Caio de Souza Leão foi sem nenhuma ênfase ou estardalhaço um tipo de referência crítica e apreciação estética. Foi Caio de Souza Leão um escritor? Se o foi, foi fragmentariamente. Escreveu e publicou poemas, crônicas e contos, mas nunca os sistematizou em volume. Exercitou também um tipo de crônica epistolar de que é um bom exemplo a carta que escreveu ao filho, Joca Souza Leão (na época em Londres) sobre a enchente que abalou o Recife em 1975. Não há muitos casos de escritores sem obras. Caio de Souza Leao talvez seja um deles. Não foi seduzido pela reflexão sistemática sobre as coisas. O seu campo de prova não era qualquer gênero sentencioso, mas o anedótico, o ligeiro, o superficial, que ele temperava sempre com muito espírito. O cotidiano serviu como o seu fogo propulsor. “Crônica da vida que passa” era como definia Fernando Pessoa, tautologicamente, o gênero da crônica. O cronista é escravo do fugaz, do efêmero. Por isso, pelo gosto do que não se fixa, não se apalpa, não se captura, é que talvez tenha se enamorado Caio de atividades tão aparentemente diversas, mas igualmente ligadas ao imediatismo como o radialismo, o jornalismo e a propaganda. Era como se a sua missão fosse “amar o transitório”, de conhecido soneto do seu amigo Carlos Pena Filho sobre a solidão. Erraria quem enxergasse nele um escritor de “fim de semana”. Autor bissexto, não teve na arte um hobby. Os encontros na sua casa não eram para fixar uma escrita, mas para dispersá-la, e nisto exercer o carpe diem recomendado pelos antigos. O seu shabat era o prazer de ser perder pelas palavras e pelo álcool, duas plantas alucinógenas de cultivo fácil e colheita abundante e certa. Para

gente assim, como Caio, Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes, o sábado era também dia de criação ou de recriação do espírito. O terror deles é o domingo. Talvez por isso mesmo Caio tenha escrito sobre o assunto uma das melhores peças suas: “Como assassinar um domingo”. Por ser dispersivo e pouco disciplinado, Caio de Souza Leão escreveu pouco. Alguns dos seus poemas, crônicas e contos estão nos jornais do Recife. Há neles o esboço de uma obra, não o desenvolvimento dela. É que a literatura nunca foi para ele uma “ambição” nem uma “maneira de ser sozinho”, como no célebre verso de Alberto Caeiro, e, sim, um dos aliados para espantar a selvagem solidão. Quem quiser se ocupar da personagem, logo se dará conta de duas características: o espírito gregário e inseparável do universo da província, daí a completa identificação com os seus pares. Caio é o símbolo ou a síntese de um tipo de intelectual muito em voga no Recife nas primeiras décadas do século: o boêmio. Só que ao invés de em cafés ele recebia os amigos na sua própria casa. Não seria correto fazer paralelos entre Caio e boêmios intelectuais também do Recife como o poeta AustroCosta. Deste talvez tivesse menos o romantismo meio crepuscular e mais a veia satírica, ferina mesmo. A sátira, no entanto, era para ele mais uma arma de caricatura verbal: um indivíduo acabado de conhecer, ele poderia reduzi-lo ou ampliá-lo à sua significância, ou inventá-lo como personagem de um conto que ninguém escrevera e nem ele próprio, Caio, jamais iria escrever. Há uma dupla “literação” em Caio, que pode ser ao mesmo tempo a afirmação da literatura e a deliberada impossibilidade dela. Uma mais convencional e fácil de acompanhar, a

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Em festa de carnaval do Country Club, com amigos e parentes

propriamente chamada escrita, de que são testemunhos os seus textos saídos em antologia. Mas há uma outra literatura em Caio de Souza Leão muito mais difícil de explicar e cuja sobrevivência depende totalmente daqueles que com ele conviveram: a de expressão oral. Há toda uma riqueza literária oral não só em comunidades rurais e em homens do povo, mas até em metrópoles como o Recife e colhidas em burgueses bem-nascidos como Caio, para quem, além do álcool, eram produtos de primeira necessidade: os filhos bem-educados, a geladeira cheia, e o ser um bom anfitrião. Parece que foi mesmo a oralidade o seu forte, ou pelo menos o que ficou “inscrito”, mais do que “escrito” no coração da memória dos seus amigos. Como um repentista dado a improvisos em prosa, ele contava, criava, reproduzia histórias. Era aquele tipo de raciocínio ágil e fácil, febril. Para gente assim, vale não só que é dito e o seu contexto e momento apropriado, mas o próprio gesto para apreender tudo isso em sua plena riqueza. Curioso que uma literatura assim nascida da bebedeira e dos encontros nada fortuitos com amigos de diversas idades não resultou de confraria nem de grupo literário organizado. Ao contrário. Tem muito pouco de literário. Para entender melhor isso, convém explicar que uma das culturas que melhor valorizaram a oralidade foi a Grécia antiga. Não tinha uma literatura como o conceito é entendido principalmente a partir do século 19. A literatura não era uma instituição para os antigos. Não deixa de ser irônico que a palavra grega para banquete seja justamente simpósio, que quer dizer ao pé da letra beber junto. Nos simpósios literais, Caio de Souza Leão inventou toda uma mitologia, como é típico, aliás, em alguns poetas. Manuel Bandeira e João Cabral, por exemplo, foram criadores de pequenos mitos que incorporaram personagens de sua infância ou do seu convívio em literatura. Só que ao invés de gente bemnomeada, os personagens de Caio não têm tanta clareza e sistema. Nascem e ficam anônimos nos botequins ou rápidos na sua fala, ligeiros, irrompem numa situação e lá ficam imortalizados em não existir. Quando os que testemunharam e foram cúmplices de Caio de Souza Leão em ação dizem que as suas narrativas ultrapassam o estágio de anedotas e alcançam o de histórias estruturadas estão praticamente definindo um aedo. Convém a esse propósito ler o que escreveu Florence Dupont: “O aedo conta histórias inverossímeis porque tem necessidade de criar ficções e todo o auditório aceita reconhecê-las como tais. As viagens de Ulisses, a ira de Aquiles, uma guerra de dez anos ao pé das muralhas de Tróia e as genealogias dos deuses são construções narrativas destinadas a explorar o munArquivo de Família

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do fora da experiência humana. Mas cada dizerdo aedo só pode cristalizar-se em uma seqüência de ditos, ou seja, em saberes discursivos que os homens capitalizarão, um canto épico que completará o precedente, a viagem de Jasão se acrescentara à viagem de Ulisses para construir um saber da viagem. Mas ao contrário, cada dizer apaga o precedente, cada canto épico é o primeiro. Este olvido do dito não é o efeito de uma insuficiência de memória, da falta de uma técnica para registrar esses ditos, como é a escrita, o que acontece é que a escrita, que é arquivo, não registra mais que o vazio, é incompatível com um saber circunstancial que não pode construir-se por acumulação em uma acronia e uma atopia. Cada verdade nova, cantada essa noite por um aedo, é heterogênea a respeito das demais. A que cantou o aedo ontem, a que cantará amanhã e a que cantam outros aedos. Porque cada uma se dirige a um público particular, em uma circunstância particular e portanto cada uma é um percurso dentro do Ser, único e sempre renovado”. Claro que não se quer com isso comparar Caio de Arquivo de Família Souza Leão aos aedos da antiguidade, mas acentuar que na atualidade e nos meios urbanos não se sepultou, como se pensava, a oralidade, que esta não é exclusividade de analfabetos. Pode, ao contrário, prosperar em meios muito cultivados e sofisticados como o em que nasceu e viveu Caio. Por isso, há um Caio oral e um Caio escrito. Se há uma razão simbólica e uma razão utilitária (na classificação de Mauss e seus seguidores), há também dois tipos de escrita (no dizer de Dupont): “Não podemos confundir a escrita-transcrição, que serve para fazer falar as coisas mudas, os objetos, os mortos, o povo, com a escrita-inscrição, que serve para registrar palavras vivas e conservá-las”. Do mesmo jeito que não dá para entender Caio de Souza Leão sem uma certa compreensão da oralidade e da escrita, não dá para falar do modo com que ele exercia o convívio, desvinculando-o do ritual. Há toda uma antropologia da arte e da fala ainda por fazer. Quase toda a vanguarda nasceu em cafés. Não foi diferente no Recife, e há muitos sempre citados e outros por relembrar – não se pode esquecer das sextas e sábados na casa de Caio de Souza Leão. Ao ritualizar esses encontros, ele fixou um modelo. Ao modelar, cristalizou o seu tempo em memória. Se não tivesse a palavra esoterismo “perdido no uso todo o metal”, caberia dizer não só que havia um aedo em Caio (sem com isso querer-se em algum tipo Caio, na década de 40, na rua Nova de anacronismo), mas este se expressava de modo exotérico através da escrita e da atuação cultural mais profana (no radio, no jornalismo, no marketing político etc.) e um Caio mais por assim dizer “esotérico”, dos amigos, da bebedeira, não das coisas escritas, mas das orais, daquilo que depende totalmente do outro – e não da escrita – para verdadeiramente sobreviver. Do mesmo jeito que falar de Ascenso Ferreira nunca foi o mesmo que ouvir e ver Ascenso Ferreira, falar de Caio e escrever sobre ele e ler os seus escritos ou reconstruir as suas histórias não em forma escrita não é o mesmo que com ele ter convivido. Isto foi privilégio dos seus amigos que, vivos, o rememoram mais do que o relembram. Muito da espontaneidade e principalmente da atmosfera e da gestualidade é impossível de se exprimir em escrita. Assim escrever sobre Caio é só compreendê-lo pela metade, falar sobre ele, repetir o que se ouviu é um modo mais justo de aproximação, mas isto só os que o conheceram podem fazer.

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Caio e sua mulher, Lenyr, no Country Club

Boêmio profissional "É preciso estar sempre bêbado." (Charles Baudelaire, poeta francês)

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“A

burrice não é o meu forte.” A frase de Paul Valéry bem poderia começar qualquer relato sobre Caio de Souza Leão. Poeta, cronista e contista bissexto, ele tinha a inteligência como um dos traços mais facilmente definidores e constantes. Caio Magarinos de Souza Leão nasceu no Recife, na antiga rua do Sebo, hoje Barão de São Borja, no dia 8 de setembro de 1918. O oitavo dos 10 filhos de Carmen e João Augusto de Souza Leão.Casado, por quase 60 anos, com Lenyr de Souza Leão. Morreu no Recife, em 23 de fevereiro de 2006, tendo ao seu lado os filhos João Augusto, Caio e Luis Felipe. Morou a vida inteira em casa alugada. Ganhou quadros e doou muitos deles. Só vendeu em momentos de crise. Estudou no Ginásio do Recife, do Padre Félix, onde se tornou amigo de Hélio Mendonça, Walter Costa e Mário Leão Ramos. Foi da turma de


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Café Lafayette: ponto de encontro com amigos

1944, da Faculdade de Direito do Recife. A irreverência se manifestou cedo. Algumas vezes, ainda na época dos seus estudos primários, o professor, mal entrava na sala, determinava: – Caio Magarinos de Souza Leão, queira, por favor, se retirar. – Mas, professor, eu não fiz nada! – Não fez, mas vai fazer. Nasceu quatro anos antes da Semana de Arte Moderna. Falava francês, lia neste idioma e um pouco em inglês. Serviu ao Exército, no Tiro de Guerra, tendo como um dos colegas, seu amigo Gilberto Botelho. Para escapar das tarefas cotidianas, fingia doenças. Certa vez, pediu dispensa alegando um abscesso grave num dos braços. Encenou tão bem a doença que conseguiu enganar a todos. Nos tempos de ginasiano, é possível que pensasse em ser médico, mas logo percebeu que não tinha vocação. Apesar disso, do médico talvez frustrado que foi, restou o exercer a medicina como “charlatão”, que passava receitas e adorava ler as bulas dos remédios. Leu tanto que dizia que a leitura equivaleria a três anos de curso, um exagero bem típico de Caio. Exerceu a advocacia por pouco tempo. Logo se tornou homem de rádio. Isso, na chamada “era de ouro do rádio”. Era o gerente da Rádio Jornal do Commercio na sua inauguração. Depois vieram a Rádio Clube de Pernambuco e a Rádio Olinda. Para o Jornal do

Commercio entrevistou, em 1942, o cineasta Orson Welles, de passagem pelo Recife. Desde a juventude, o inquieto Caio de Souza Leão revelava a inteligência e as aptidões múltiplas que viria a ter ao longo de toda a sua vida. Poeta, cronista, jornalista, publicitário, colecionador de quadros, boêmio e, sobretudo, um cultivador de amigos. A sua casa era ponto de encontro dos escritores, poetas, pintores, cineastas, jornalistas e intelectuais do Recife. De todas as gerações. Que iam ouvir as histórias de Caio. As fantásticas histórias de Caio, contadas de um jeito que só ele as sabia contar. Sempre ilustradas por gestos largos, onomatopéias e representação dos personagens. Nunca eram piadas. E, sim, histórias. Criadas, aumentadas, caricaturadas. Assim, também, era Caio de Souza Leão. Caio do Recife. Viveu na rua Nicarágua por mais de 40 anos. O quintal onde ele recebia as pessoas chamava-o de Hyde Park. Usava cuias de feijão vazias para iluminar os canteiros. Como fundo musical e animando o ambiente punha para tocar LPs e distribuía o som em alto-falantes. Tudo isso enquanto não chegava o Trio Cigano, grupo musical de boêmios especialmente criado nesse encontros e por ele batizado. O que se bebia nesses encontros na casa de Caio de Souza Leão? A bebida favorita do anfitrião era o rum com Coca-Cola; às vezes ele consumia gim, muito raramente cerveja, e quase nunca uísque. As farras na sua casa costumavam se estender até às seis horas da

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Fotos: Arquivo de Família

Ao lado, Caio de Souza Leão, Cid Sampaio e Mendo Sampaio, no Palácio do Governo, em 1960. Abaixo, ao lado de Nelson Ferreira (E) e de outros colaboradores na Rádio Jornal do Commercio

manhã. Ele preparava os tira-gostos. No período mais próspero, eram comuns jantares completos, verdadeiros banquetes, onde preparava sempre o bacalhau à Gomes de Sá, como nunca houve nem em Portugal. O curioso é que esses banquetes, tão dionisíacos nos resultados, eram muito apolíneos na freqüência, no método e nos preparativos. Diferentemente de reuniões literárias como as de Londres na década de 50, os amigos de Caio eram muito bem-comportados. Quase todos iam com as suas esposas ou namoradas aos encontros boêmios. Numa das camas eram deixadas as bolsas das mulheres e os revólveres de Geraldo Mendonça e Luiz Heráclio. Talvez não houvesse grandes pelejas de egos cegos e vaidades vãs porque os encontros eram muito pouco literários. A tônica não era a da literatura, mas a do gim. Nesses “mafuás” de palavras e álcoois também havia espaço para o silêncio, para o gesto, a mímica. O gesto nunca serviu para suplantar o discurso, o diálogo, a conver-

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sa. O verbalismo triunfava. Com nada se parece mais um encontro desse tipo que com o drama, a comédia, o mimo, o teatro em ação, em que espectadores e atores invertem os papéis. Quando se diz que Caio “era bom de mímica”, está-se a lembrar que o gesto servia para auxiliar a palavra e não o contrário. Mas as mímicas, como quase tudo ali, não eram a sério. O mais justo será dizer que aqueles boêmios “brincavam de fazer mímica”. A única coisa que tomavam a sério mesmo era a bebida. Tudo o mais é só literatura. Quantas vezes os filhos menores de Caio devem ter sido acordados pelas gargalhadas freqüentes dos amigos “sinestesiados” de álcool fazendo a difícil e sempre indispensável prova dos nove da alegria. Num concurso de gargalhadas talvez ganhasse a – inconfundível – de Jorge Carneiro da Cunha. Havia também os “torneios” improvisados de imitação. Alvos favoritos eram homens de comunicação como Pessoa de Queiroz e Esmaragdo Marroquim. Uma e outra particularidade deles e de outros eram exploradas, acentuadas, até à exaustão, como nas melhores caricaturas. Caio gostava de hipérboles. Muitas nasciam de situações absolutamente prosaicas e cotidianas. Daí “crises de suor”, “solidão de se retirar de pá ou de faca”. Pura linguagem, recurso de literatura. Isso sem falar nas palavras inventadas, nos neologismos, como o substantivo “cossandes” e o verbo “cossandar”, de múltiplos e adaptáveis significados. Irritadiço, intolerante, Caio não levava desaforo para casa; muitas vezes era na sua casa que recebia também os desaforos, vindos dos próprios amigos. Não raro respondia as provocações com um gesto típico da república brasileira – uma “banana”. Não plantava bananeiras, mas cultivava bananas como poucos. Chegou certa vez ao requinte de falar da admiração por um soldado que reagiu a uma ordem supe-


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rior que considerou absurda, dando uma banana com tal virulência que conseguiu uma fratura exposta no braço. Muitos fazem planos mirabolantes para quando ganharem na loteria. Caio sonhava com algo bem singelo: mandaria fazer uma escultura em acrílico luminoso dando banana para os quatro pontos cardeais. Encontros de boêmios do estilo de Caio quase que exigem naturalmente um espaço horizontal, uma casa. E mesmo que se dêem num bar, restaurante, café, terminam por exigir espaços amplos, porque a embriaguez quer sempre se espraiar. Se há uma “pré-história” desses encontros, pode-se vê-la nas reuniões das quais participou Caio nas casas de escritores e artistas como Willy Lewin e Vicente do Rego Monteiro. Uma referência obrigatória é o restaurante Cabana, que batizou, inclusive, uma dose de sua bebida favorita: a uma dose de rum muito forte Caio chamava de “acabanada”. Apesar de alguns tantos artigos, poemas, contos e outras tantas crônicas e reportagens, Caio de Souza Leão não reuniu uma obra literária. Não publicou sequer um livro. Por que não o fez? Por preguiça, por autocrítica ou, o mais provável, por uma combinação de ambas. De formação indisciplinada, sem uma rotina de leitura e estudos, ele se valeu muito mais da perspicácia.Escrevia, mas sem compromisso com a periodicidade e a regularidade. Escrevia quando tinha vontade. Projetos de livros? Nunca tratou disso objetivamente. Era apressado no que escrevia e, ao mesmo tempo, sem pressa nenhuma para o livro de memórias que viria mais cedo ou mais tarde. Não veio, ficou disperso nas poucas crônicas esparsas que publicou em entrevistas e, principalmente, na memória dos amigos. Tinha um baú onde, dizia, guardava os escritos, muitos, muitos, intermináveis. Lá estava não só a sua produção, mas também alguns originais de amigos, como o “Boi Serapião”, de Carlos Pena Filho. Mas a história ficou somente na imaginação e na vontade. Alguém precisa escrever a história da literatura que ficou só na imaginação e na vontade. Está certo João Cabral de Melo Neto no que escreve sobre “Chuvas do Recife”: “No Recife, se a chuva chove/ a chuva é a desculpa mais nobre/ para não se ir, não se fazer,/ para trancar-se no não-ser”. Essas chuvas serviram também para explicar o sumiço dos planos literários não cumpridos de Caio. Verso e prosa escritos na água. Uma cheia terrível que abalou o Recife inundou não só os espíritos, mas o famoso baú de Caio, e resolveu para sempre o problema dos originais perdidos. Caio, e a literatura? Estava no baú. O futuro estava no passado, e tudo se passava no baú. Afogou-se. Perdeu-se.

Lenyr, Caio e seu filho Joca

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Caio admira um desenho de Quixote, feito por ele Arquivo de Família

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A máxima de “primeiro existir, depois filosofar” foi seguida por Caio de Souza Leão. Mas não tão à risca quanto parece. Primeiro, existir não era para ele o oposto de “filosofar” (entendido o verbo menos no seu sentido universitário, que é o corrente, e mais no geral e primitivo de ser “amigo do conhecimento”, do pensar inteligente sobre as coisas). Nem se ocupou ele tanto assim da vida que se esquecesse das coisas mais vagas e abstratas do espírito. Tanto que a sua qualidade máxima, citada por todos os que com ele conviveram e se tornaram seus amigos e cúmplices de um carpe diem que se fazia já a partir de sua casa, era o bom caráter, a correção. Caio era, antes de tudo, um homem honrado, como se dizia antigamente. Não era um pragmático. A alma de poeta e a mente de um xamã da sempre selvagem tribo dos intelectuais sem pretensões nem presunções habitavam o corpo de um homem tão simples como tantos de qualquer dessas pequenas cidades brasileiras tão imensas que empanam a própria vista e não podem enxergar o quão insignificantes são. O que houve de mais importante em Caio de Souza Leão? Mais do que a literatura e as artes, mais do que o rádio e o marketing político de que ele foi pioneiro, mais do que de histórias contadas e recontadas, a marca mais firme que deixou no coração-memória dos amigos mais próximos foi mesmo o caráter. “O caráter – isso foi o mais importante de Caio”, enfatiza um dos seus amigos, quem sabe substituindo com isto a velha máxima de que o “estilo é o homem”. Mais do que um estilo, ele era um ser inteiro. E logo explica que num país de homens cordiais em que o público e o privado vivem relações tão íntimas de parentesco e logo resvaladas em facilidades e ganhos de muitos tipos, ele integrou o “clã” dos ilustres membros do poder econômico e político em Pernambuco (duas irmãs suas se casaram com Miguel Arraes e Cid Sampaio, seus contemporâneos e governadores de Pernambuco), mas não tirou nenhum proveito disso. Caio morreu como tantos aposentados modestos no Brasil. Com dificuldades financeiras muitas, a ponto de chegar a depender dos seus filhos. Personagem de um mundo absurdo que, desde pelo menos Kierkegaard, é tema das preocupações dos escritores e filósofos, ele cedo trocou a solidão pela solidariedade. Ao invés do “fique quieto no seu canto, não ame”, do conhecido poema de Drummond, preferiu levar mais à risca aquele outro verso do mesmo autor: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas, amar?” Caio amou e foi amado – eis tudo da sua vida. Esse deveria ser, aliás, o único balanço a fazer dos homens depois de mortos: os que se fizeram amar e os que não. Personagem transbordante, concentrou na boemia toda a decantação afetuosa que tinha. Até quando pôde exprimiu esse gosto pelo convívio, distribuiu generosa e fartamente o “leite da


Arquivo Fundaj Aos 12 anos, testemunhou a passagem do Zeppelin pelo Recife

ternura humana”, entre os seus pares. Não foi, é claro, o primeiro boêmio a fazer do lar um bar no Recife. Mas deve ter sido o mais intenso. Ele retomou e continuou hábitos boêmios da juventude e os estendeu até à ultima década de século 20. Não professou religião alguma. E como acontece muitas vezes com quem não a tem, ele poderia escolher a melancolia ou a superstição como substituto. Preferiu a segunda. Alimentava muitos medos, inclusive um dos mais comuns, o de fantasmas, de almas penadas, de sons sobrenaturais, do “outro mundo”. Materialista, com pavor do obscuro. Supersticioso, que desprezava as crendices. Mente aberta, chegou, algumas poucas vezes, a fumar maconha e haxixe, “para não ser considerado um conservador, um careta”. Ao contrário do que poderia imaginar, o seu gosto por contar histórias não se confunde com o humorismo inato. Sabe-se que em muitas vezes os melhores humoristas são os melancólicos. Tinha ele, além disso, uma personalidade irritadiça e era até intolerante, “principalmente com a burrice”, defendem os amigos, elevando-o sem o saberem ao nível do “Sr. Cérebro”, de Valéry. Os finais de semana eram o seu shangri-lá. Fim de semana, entendido bem – sexta à noite e o dia de sábado. O domingo para boêmios, por assim dizer “profissionais”,

costumam ser terríveis. Vale a pena lembrar que, um ano depois do nascimento de Caio (1918), o psiquiatra húngaro Sándor Ferenczi publicou, em 1919, um ensaio intitulado “Neurose do domingo”. Parte do charme que Caio de Souza Leão exerceu em boêmios de gerações diversas advém do seu amadorismo nas artes e na literatura. Indisciplinado e anárquico, era inevitável que tivesse vida literária bissexta. Ao invés de se fazer um escritor profissional, terminou por se converter, sem que o planejasse, na memória de todo um tempo e de um lugar: o Recife. Os pequenos flagrantes do cotidiano vividos ou imaginados se transformavam em narrativas para divertir a si e aos outros. Um memorialista vulgar quer, antes de tudo, ensinar, ser o exemplo, mostrar porque se ufana de si e do seu tempo. Um memorialista como Caio deseja, mais que tudo, brincar. Ao contrário do memorialismo comum, não era ele, ou melhor, não era o eu dele o foco principal, mas um eles, ou um tu real reimaginado. Assim, um empregado da vizinha podia ganhar o nome de Possidônio e a relação entre patroa e empregado ser redramatizada ao narrá-la aos amigos, em que o gesto de torcer é descrito com sons tão nasais e as palavras se retorcem tanto que tentam materializar, mais do que evocar, a cena, até ao esgar. Sem ter ouvido Caio fazer uso do seu “vocabulário” gestual acompanhado de

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onomatopéias ficava difícil entender a graça de gente como Possidônio e a dona da casa. A comédia da vida “besta” de todo dia pode gerar sempre contos cheios de verve. Esse ver intensa poesia no cotidiano é de cronista. Talvez tenha isso sido fundamentalmente Caio. Quando o dirigível Zeppelin chegou ao Recife em 1930, Caio, aos 12 anos, testemunhou a sua passagem. Caio foi, com o pai, ao último andar do Hotel Central assistir à passagem do Zeppelin. Algum tempo depois, teve de responder à fácil pergunta – o que faz um dirigível subir? – e, logo em seguida, à – inevitável – e muito mais difícil: – o que o faz parar de subir? A resposta só pode ser: por um dispositivo especial. Em explicações assim alguns dos seus amigos mais ingênuos acreditavam durante meses. Valia tudo para o que Caio não sabia. Alguns desses amigos incorporavam de tal maneira as explicações que, às vezes, as devolviam, como se fossem suas, quando Caio era quem os indagava. A formação “clássica” deve ter dado a Caio de Souza Leão um rigor e um sentido do gosto que não são vistos nos românticos, tampouco nos indisciplinados e anarquistas habituais. Tudo, porém, temperado à irreverência. Irreverência alimentada a rum com Coca-Cola e gim com tônica.

Arquivo Fundaj

Pessoa de Queiroz (D) era um dos alvos dos torneios improvisados de imitação

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Terá existido no Recife algum escritor mais avesso à solidão do que Caio? Dificilmente. Reconstruir a história e as histórias de Caio é recuperar todo um tempo – coletivo – do Recife. De preferência, sem nostalgia. Anos dourados para os seus contemporâneos agora já “prateados”, fio a fio, sem rosário de lágrimas nem de queixas. Revistas literárias havia como Renovação, Nordeste, Região. Comunicadores inspirados e inspiradores, como Aldemar Paiva, um habitué na casa de Caio. Da Rádio Jornal e Clube, onde atuavam futuras “lendas” do humorismo brasileiro, como Chico Anísio. Ou da Rádio Olinda. Quem presidia, quem definia, quem delimitava o tempo da farra de Caio de Souza Leão com os amigos? O limite mais flagrante era o sol. Quantas pessoas compareciam a esses encontros na sua casa? Nunca menos de 30. Dízima periódica de boêmios, Caio de Souza Leão alimentou-os e alimentou-se deles. A maioria dos freqüentadores da sua casa na “primeira fase” das farras já se “encantou”. Estão em outras Nicaráguas, muito além da terra. Ocupa um fácil posto de vanguarda nesse grupo o cronista e compositor Antônio Maria. Quando ele e o seu parceiro Fernando Lobo saíram do Recife, parece que uma geração viajou com eles.


Arquivo de Família

Aos 78 anos, em sua casa

que se juntaram aos do Recife – Mauro Mota, Renato Carneiro Campos e Aloísio Magalhães). Depois seguiram juntos para Caruaru (quase uma caravana de 50 pessoas) para lançar lá também o romance do amigo. Parece que nasceu em encontros assim uma história famosa de Jorge Amado: a de Quincas Berro d'Água, o personagem que morre duas vezes. A matriz da novela estaria provavelmente em Campina Grande, na Paraíba, e o personagem já era mencionado como “bodega”, “cachaça”, “berro d'água”. As peripécias foram contadas a Jorge pela memória de Caio, na casa de Paulo Loureiro (não é por acaso que Jorge Amado dedica o seu livro justamente a Loureiro). Há uma fotografia em parte destruída pelo manuseio O desfile de personagens reais como Marques Rebelo e o tempo que registra um dos encontros que tiveram na (fumando um cigarro apagado) ou Jorge Amado última vinda de Antônio Maria ao Recife (já casado com (demonstrando as suas habilidades mnemotécnicas) se Danusa Leão, que veio acompanhada da irmã Nara Leão, encontra de repente com as histórias de Caio. Os nomes cantora ainda não muito famosa naquele tempo). Nara foi do que estiveram na sua casa são muitos. Repeti-los à TV Jornal, endereço obrigatório dos grandes artistas na- todos além de impossível seria tão chato quanto a quele tempo. Ele escreveu sobre essa estada no Recife genealogia. Mas os que saltam mais facilmente à uma crônica em que são personagens centrais Caio de memória são: Hélio Mendonça, Mário Leão Ramos, Souza Leão e o jornalista Altamiro Cunha. Gilberto Osório de Andrade, Carlos Pena Filho, Luiz A memória de fatos de vida de Caio de Souza Leão Heráclio, Geraldo Mendonça, Jorge Carneiro da Cunha, sempre passa por acontecimentos e personagens do Hermilo Borba Filho, Fernando Menezes, Pedro Jorge de mundo das comunicações – sejam escritores, cantores, Andrade, Laurênio Lima, José Laurênio, Renato e compositores e pintores. Muitos fatos pitorescos Maximiano Campos, José Paulo Cavalcanti, Carlos Pena continuam sendo colecionados por amigos seus. Um Filho. E estes: Joel Pontes, Luiz Rafael Mayer, Antônio deles foi o lançamento do livro Um Ramo para Luísa, de Guilherme Rodrigues, Garibaldi Otávio, Aluizio Falcão, José Condé, ocorrido no final da década de 60 (para o Gilberto Botelho, Carlos Humberto Carneiro da Cunha, qual vieram diversos escritores radicados no Rio, como Augusto Reynaldo, Aldomar Conrado, Lúcio Estelita, Jorge Amado, Antonio Olinto, Eneida, Marques Rebelo, Amaro Passos. E outros tantos e tantos. (MH)

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Ele cultivava a convivência Joca Souza Leão

“Doutor Caio, o senhor é um homem tão inteligente para umas coisas e tão desinteligente para outras.” Essa era uma das frases preferidas do meu pai, Caio de Souza Leão. Tudo que ele não entendia atribuía à sua desinteligência. E contava a história de Negão, eletricista lá de casa, que de negro não tinha nada, tentando explicar a ele, papai, o lugar onde morava, num dos muitos altos de Casa Amarela. Na décima tentativa, veio a frase. Bem, de inteligente e desinteligente todo mundo tem um pouco. Mas meu pai não tinha pouco de nada. Tudo seu era muito. O calor que ele sentia era muito maior que o de todo mundo, tanto que fazia barulho, ele o ouvia. O mau hálito de um certo locutor de rádio, dizia, era de se cortar de tesoura. Tinha ressacas e solidão de tirar de pá, aos montes. Antes de dormir, botava a ameaça de enfarte sobre a mesinha de cabeceira. O gelo, para servir aos amigos, antes era comprado em barras. O rum, em caixas. Depois, com as vacas magras, passava a semana juntando gelo no congelador e o rum passou a ser comprado no varejo. As paredes da casa tinham quadros do piso ao teto. Centenas, sem nenhum exagero de filho. Quando alguém fazia que não o tinha visto na rua, ele fitava-o em close, até que o sujeito, com o esforço que fizera para evitar o cumprimento, ficasse com torcicolo. O mau caráter de alguns era conservado em formol. O de outros, em conserva, como picles. E tinha ainda os lustrados com Kaol. Era intolerante com quem classificava de burro esforçado, pretensioso, metido a erudito. Generoso e tolerante com quem julgava inteligente, bemhumorado, boêmio. Mas tinha suas regras de boemia. Não bebia de dia durante a semana. “Vi fulano de tal no Savoy, às 10 da manhã de uma segunda-feira, sentado, tomando uma cerveja estupidamente gelada. É um caso perdido.” Além do horário e do dia, a

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temperatura da cerveja e o fato de estar sentado eram agravantes. Talvez, se estivesse de pé... Tinha medo de alma, macumba e mau-olhado. Acreditava piamente no candomblé e era filho de Ogum. No dia dos santos Cosme e Damião, saía cheio de balas para distribuir com os meninos pobres que encontrava. De vez em quando, acendia velas no quintal de casa, escondido, para ninguém ver. Supersticioso. Sal na mesa, pavão, búzio, peixe em aquário, carro amarelo, 24 de agosto, sexta 13, José Américo de Almeida e espelho quebrado davam azar. Mas tinha antídotos para tudo. Inventava palavras, como “cossandes”, que poderia significar várias coisas, dependendo do contexto. “Stradivarius” podia significar tudo, menos violino. Os amigos conheciam todas. A falta de originalidade de alguns era classificada de “vulgar e silvestre”. Orgulhava-se de ter sido tarefeiro da Juventude Comunista e campeão de corrida e natação. A casa de meu pai vivia cheia de amigos. Nunca foi rico. Era remediado, como se chamava a classe média antigamente. Uísque, portanto, era raro. Normalmente, presente ou de quem levava para tomar na hora. As bebidas oficiais da casa eram rum com Coca-Cola e gim-tônica. A grande provocação que Paulo Henrique Maciel lhe fazia era dizer, “doutor Caio, o gelo acabou”. Nunca, jamais, faltou gelo na casa. Os salgadinhos, feitos por ele mesmo. Simples. Mas com esmero. A verdadeira e grande atração da casa de Caio era Caio. E as histórias que ele contava. Histórias, não piadas. Com estrutura literária, como registrou Pietro Wagner Lima. Passadas, sobretudo, no Recife. Personagens pernambucanos, nordestinos. Escritores, poetas, intelectuais, jornalistas, artistas, médicos, boêmios, todos amigos dele e gente com quem conviveu. Mas também as histórias das empregadas da casa de minha avó, Carmen, das putas do bairro do


Arquivo de Família

Recife, de Negão, o eletricista, de políticos, revoluções, festas, do seu tempo de rádio, de artistas e cantores famosos, da entrevista que fez com Orson Welles e que foi publicada no JC, na década de 40. Tudo contado nos mínimos detalhes. Cenários, personagens, vozes roucas ou finas. E sons. Ah, os sons das histórias de papai. Nem sei se posso tratá-los por onomatopéias, porque eram sons dele, inventados por ele. Só ele sabia reproduzi-los. E só tinham graça na boca dele. Acompanhados dos gestos dele. E seguidos da gargalhada da platéia. “Caio, conta aquela do potroc, potroc, potroc”. “Agora aquela do fanha.” Quem pedia, pedia tentando imitá-lo, fazendo a voz fanhosa. Quem ouvia pela primeira vez, ficava deslumbrado. Quem conhecia, ria por antecipação. Minha mãe, por exemplo, que conhecia quase todas. (Meu pai não poderia ter tido melhor mulher que minha mãe. Lenyr de Caio. Sempre com um sorriso. O sorriso de Lenyr. É assim que todos lembram dela.) Os amigos de geração, como Hélio Mendonça, Mário Leão, Antônio Maria, Abelardo Rodrigues, foram morrendo. Alguns, mais moços, como Carlos Pena, Renato Carneiro Campos, Hermilo Borba, Mauro Mota, Jorge Carneiro da Cunha, Luiz Heráclito e Geraldo Mendonça, também. Aluizio Falcão e Garibaldi Otávio foram pra São Paulo. Mas nem por isso a casa de Caio ficou vazia. Passou a ser freqüentada pelos filhos dos velhos amigos, pelos sobrinhos dele e novos amigos, novos inclusive na idade, alguns ainda na faculdade. E pelas duas eternas musas: Inah Lins e Terezinha Costa Rego. Meu pai não tinha pouco de nada. Tudo seu era muito. Inclusive a dispersão. Foi muito dispersivo. Fez de tudo. Foi advogado, jornalista, radialista, publicitário, poeta, contista, cronista, boêmio, contador de histórias. Inteligente e desinteligente. Malhumorado de segunda a sexta. Aí, só até as oito, hora dos amigos começarem a chegar. Mas o que Caio de Souza Leão foi mesmo – e aí ele foi muito, mais, até, do que costumava ser com o resto – foi um cara que cultivava a convivência.

Caio de Souza Leão e seus filhos Caio Filho (E) e Joca

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Poema de

Caio de Souza Leão

Destruído, assim, Recife tuas casas, tuas ruas teus portais, tuas janelas até mesmo tuas calçadas. Teu ventre no meio das ruas. Tuas esquinas, onde existiam lampiões! Para que as noites se não fossem os lampiões? Ah os teus azulejos da rua Barão de São Borja (onde nasci?) Recife, cidade de esquinas de ontem. E onde as pessoas se encontravam. (Numa cidade sem esquinas ninguém se encontra) Recife, assim, com todas as ruas que (ainda) poderiam dar seu cartão-postal. Ou então o cartão fúnebre de cidade assassinada, as noites (da casa Agra, da ponte Buarque de Macedo).

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Ilustração: Miguel Falcão

Recife




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