Continente #076 - Hermila Guedes

Page 1



EDITORIAL Divulgação

1

Cena do filme Baixio das Bestas, do cineasta pernambucano Cláudio Assis

Um novo ciclo de ouro

O

cinema pernambucano viveu um jejum de 19 anos, sem produzir nenhum filme. Em 1978, chegava às telas o filme O Palavrão, de Cleto Mergulhão, obra de pouquíssima repercussão local e nacional. Quase duas décadas depois, a produção do Estado pôde respirar outra vez com o filme O Baile Perfumado, em 1997, e a criação do Cine PE – Festival do Audiovisual, que realiza, este mês, sua 11ª edição. Desde então, Pernambuco vive uma de suas fases mais ricas, que, felizmente, não dá sinais de fim próximo. Este ano, chegam às telas três longas-metragens que fazem parte desse “ciclo de ouro”: Baixio das Bestas, de Cláudio Assis, Deserto Feliz, de Paulo Caldas, e Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Os curtas também começam a desfazer a idéia errônea de que, por sua duração, são obras de menor relevância. Uma Vida Outra Vida, de Daniel Aragão, foi exibido no Festival de Berlim e no de Clermont-Ferrant, o principal evento de curtas-metragem do mundo, e mais de um curta de Kleber Mendonça Filho participou do Festival de Roterdã. Esse renascer do cinema local não se reflete apenas nos filmes realizados por pernambucanos. A atriz Hermila Guedes (capa) é, sem dúvida, uma estrela em ascensão nas telas do cinema, nos palcos e na televisão. A atriz, natural de Cabrobó, estreou nas telas no filme O Pedido, de Adelina Pontual. Fez uma ponta em Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, que lhe indicou para o teste de O Céu de Suely, de Karim Aïnouz, o qual protagonizou. Hermila é presença certa nos filmes da nova safra. Ela está em Deserto Feliz e Baixio das Bestas. Nesta edição, a matéria de capa é dedicada à nova safra do cinema pernambucano, que perpassa a produção de longas e curtas, bem como a distribuição de obras-primas fora de catálogo pela Aurora DVD. A seção “Documento” enfoca a proliferação da literatura pela internet. Blogs, sites, revistas virtuais, e-books e experimentalismo com o hipertexto são algumas de suas manifestações no reino virtual que, ao contrário do que se previa, veio para incrementar (e não para acabar) o mundo das letras. • Continente abril 2007


CONTEÚDO Divulgação

2

Hans Manteuffel

32

Hermila Guedes, estrela do cinema pernambucano

63

A arte forte de Elisa Bracher

09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53

CONVERSA

CÊNICAS

04 Egberto Gismonti quer dar toda a sua obra

46 Valdemar de Oliveira: teatro o tempo todo

BALAIO

49 A dança de um continente mestiço 51 Agenda Cênicas

10 Maria Baderna, a bailarina dicionarizada

LITERATURA

TRADIÇÕES 52 A eterna autoridade de Dona Santa

12 Coleção divulga no Brasil a nova poesia portuguesa 16 Os intrigantes textos dos poetas beduínos 18 A poesia sóbria de Everardo Norões 20 Afonso Arinos, filho, e as memórias de uma geração brilhante 22 A prosa poeticamente densa de Cristhiano Aguiar 24 Agenda Livros

ARTES 58 Rosângela Rennó e o papel ambíguo da fotografia 63 A arte monumental de Elisa Bracher

REGISTRO 66 O radicalismo do não à vida e à literatura

PERFIL

MÚSICA

28 O monastério literário de Lourival Holanda

74 A herética Orquestra Popular da Bomba do Hemetério 80 Agenda Música

CAPA 32 O brilho da estrela de Hermila Guedes 36 Profusão de longas em Pernambuco 42 A importância dos curtas-metragens

FOTOGRAFIA 84 Solidão, luzes e imagens na cidade

DOCUMENTO 89 A expansão da literatura na rede virtual Continente abril 2007


CONTEÚDO

3

Sérgio Luiz P. Silva

84

Identidade e solidão na metrópole

89

O crescimento da literatura na rede virtual

54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96

Colunas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 Baudrillard, Pós-Modernismo, seitas e bandidagem

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 Matisse e o conflito entre disciplina e liberdade

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 70 Provérbios gastronômicos politicamente incorretos

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 73 Os esportes de verão na Alta Groenlândia

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 82 O Carnaval revela o Recife e sua gente

Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente abril 2007


4

CONVERSA

EGBERTO GISMONTI

“O único objetivo que tenho é dar toda a minha obra” Empenhado na distribuição gratuita de suas gravações, o multiinstrumentista se refere a Naná Vasconcelos como "mais que um irmão" e diz que não se prende mais a julgamentos Carlos Eduardo Amaral

U

m ouvinte eclético que fosse a um festival de MPB, de jazz, de música clássica ou de world music ficaria surpreso de encontrar em todos deles um violonista, pianista e compositor sessentão, de barba, cavanhaque e touca de crochê inconfundíveis, cuja música se incorpora a qualquer desses estilos. Não se ele conhecer Egberto Gismonti, que esteve em setembro na Mostra Internacional de Música de Olinda, entre orquestras e virtuoses, e foi atração do Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga e Fortaleza, em fevereiro. A Continente se fez presente ao festival, a convite da produção do evento, e entrevistou Egberto Gismonti na serrana Guaramiranga, de apenas 5.800 habitantes, a 110km de Fortaleza. Era segunda-feira de carnaval e ele iria ensaiar para o show da noite ao lado de seu filho Alexandre. Nessa conversa, que “pareceu um testamento”, entre menções às viagens ao Xingu e aos estudos de pajelança, Egberto falou da negociação dos direitos de suas obras e deu testemunho acerca de alguns de seus influenciadores na música.

onde eu olho diariamente – não tem especialmente nada no momento. Tinha quando eu tinha meus vinte, dez anos. No meu caso, hoje vou me testando. Então não estou relendo nem estou olhando. Você poderia dar um exemplo de janela? Hoje eu conheço Mário de Andrade e sua obra de A a Z. Até o que não está publicado. Hoje tenho trabalhos a respeito do uso ativo do ser heterônimo em Mário de Andrade, porque conheço a correspondência dele “de trás pra frente”. Não o que foi publicado, é o que consegui no almoxarifado da secretaria de cultura (da cidade de São Paulo), com Marilena Chauí. E isso é uma janela aberta.

Quando você estará lançando um CD ou DVD? Não sei. Logo depois que gravei 50 discos, resolvi que queria ter o direito de comercializar os fonogramas dos álbuns que havia gravado para a EMI. Então, digamos que na década de 90 a minha grande luta foi conseguir estudar o Direito Internacional para ir poder a Londres, conversar com a EMI, ao lado de dois grandes Quais as influências musicais que você está incor- advogados. Felizmente deu certo e abriu-se uma porta porando em seus novos trabalhos? Ou você estaria fa- para o artista brasileiro intervir na vida ativa do seu zendo uma auto-releitura? programa. Sempre achei isso aí importante e por isso Bom, nem uma coisa nem outra... Não tem nada que lutei, mas já estou em outra. esteja me direcionando ou me impulsionando. À medida Qual sua nova luta? que você vai fazendo coisas em música, é como se fosse uma janela que vai se abrindo. Chega um momento da Minha luta agora é dar minha música, de graça, para vida em que você abriu várias janelas. Há um conjunto as pessoas que foram responsáveis pela minha vida prode coisas que me assessoram como janelas abertas por fissional – não foi a EMI ou outra gravadora, nem proContinente abril 2007


Chico G adelha/Divulgação

CONVERSA

Eu diria, que além do Mestiço & Caboclo, todos os discos que eu gravei, tira aí um ou dois, estão relacionados à literatura

5


Divulgação

6

Gismonti: "Madonna deixou minha filha feliz como o diabo"

dutor de show, foram as pessoas, que compraram meus até que estivesse morta. Quando a conheci, ela tava com discos, que me financiaram. E agora, como já tenho 60 oitenta anos, enxuta “pra danado” – e viveu mais 12 anos. discos, o único objetivo que eu tenho não é lançar um Então minha relação com ela foi pura sorte. disco, nem dois, nem cinco: é dar de graça toda a obra E com Naná Vasconcelos? que me pertence. Ah! Isso aí não é sorte, não. O que é maior do que E a de herança de seus pajés na música? Villa- sorte? Amizade? O que é maior do que amizade? IrmanLobos... dade? O que é maior do que irmandade? Rapaz, não sei O Villa-Lobos foi o sujeito que teve a parabólica mais qualificar. Fui a Paris gravar um disco. Não sabia o que bem instalada no Brasil. E o mentor da parabólica do ia gravar, mas topei. Decidi ver o que ia dar e depois ir Villa-Lobos – parabólica é uma coisa positiva; quer dizer para a Noruega. Cheguei em Paris e fui para um bar “antenado” com o Brasil – foi o Mário de Andrade. Isso chamado La Coupole, que tem história, tomar um vinho. que estou falando está nas cartas dele. Tem cartas e car- Estou numa mesa, chega um ator brasileiro chamado tas! Tem ele espinafrando o Villa por um concurso de Zózimo Bubul – parecia um africano, com uns dois quarteto de cordas que o Camargo Guarnieri ganhou e metros de altura – e me chama pra casa dele. No que o Villa se inscreveu só usando três letras do nome. caminho ele pergunta: “Você já esteve com Naná?”. Claro que o Mário sabia, e ele espinafrou. De onde você “Rapaz, eu encontrei o Naná uma vez na vida, quando acha que apareceram essas modinhas todas aí que o Villa eu estive na casa de Luiz Eça”. Aí ele liga: “Naná, tô com usou? De um livro de melodias que tem coisas de Per- visita aqui em casa. Por que você não vem aqui fazer uma galinha à cabidela pra gente?”. Naná chegou. Primeira nambuco, do Ceará... frase que ele disse: “Que você vai fazer nos próximos Como é sua relação com a professora Nadia dias?” “Nada” “Por que a gente não grava um disco?” Boulanger? “Ué, idéia ótima”. Eu sou sortudo demais. Fui a Paris a convite da atriz E aí surgiu o Dança das Cabeças? Maria Laforêt para dirigir show. Cheguei lá e, através deAí surgiu o Dança das Cabeças, que ganhou tudo que la, conheci um monte de gente e essa senhora que era a Nadia Boulanger, alguém que na minha época de escola é prêmio. Eu tô falando: é mais do que amizade, é mais de música a gente falava como se fosse inatingível. Achei do que não sei o quê... Você sabe o que é ficar com um Continente abril 2007


CONVERSA só queria um disco da Madonna.” “Mas da Madonna?” “É. Da Madonna”. Eu não gostava nada da Madonna; comprei o disco. Ela pediu mais um, e depois outro. Até que um belo dia está minha filha sentada, feliz como o diabo. E eu feliz como o diabo pela felicidade dela. E o disco da Madonna tocando. Aí entendi que não tem música nem músicos que eu possa julgar. Tem música, ou músicos de que eu preciso para viver. A partir desse dia, qualConte seu encontro com Nelson Cavaquinho. quer discriminação que eu tinha acabou. Então a música Minha vida é muito feita de pessoas que são bene- me ensinou, porque, se eu respondesse essa pergunta, volentes, que me presenteiam mais do que eu merecia. estaria incorrendo num grave erro. Não há dono da Nelson Cavaquinho, a primeira vez que eu o vi foi na casa do Cartola. Fui com o Haroldo Costa até a casa dele. Toquei umas quatro, cinco músicas dele, morrendo de medo. E ele sentado. Parei, aí ele: “Pô, tá tudo muito bem, agora toca música sua” (risos). Deu um corte violento. Passaram-se muitos anos, a gente ia se encontrando sempre. Beth Carvalho, num episódio, me falou: “Tem um disco meu na banca que eu quero que você compre.” “Você não vai me dar não?” “Esse Naná Vasconcelos, "um cabra generoso" não”. Era um que saía dentro de uma revista. Comprei achando que ela tinha verdade; pelo contrário, tem gente que pode me ajudar gravado música minha, mas não tinha nada. Abro a revis- nesse negócio da “dança das cabeças”. ta e começo a ler. “Entrevista com Nelson Cavaquinho: Fora a sinfonia Mestiço & Caboclo, que outras obras ‘Tem dois músicos, no Brasil, de que eu gosto: o Paulinho suas se referem a escritores e qual o substrato que estes da Viola e o Gismonti’”. lhe dão? Se você promovesse uma nova “dança das cabeças”, Tem uma que foi gravada por um grupo de mulheres só que fazendo rolar as de quem atrasa a música brasi- em Cuba, a Camerata Romeu. É uma peça em seis movileira, quais são as que você faria rolar? mentos, que dura 70 minutos, e se chama Os Sertões VeTeve um momento da minha vida em que nos se- redas. Eu te diria que, além do Mestiço & Caboclo, todos paramos eu e a mãe dos meus filhos, a Rejane, e o destino os discos que eu gravei, tira aí um ou dois, estão relaciofez com que eles ficassem comigo. Eles tinham 10 e 11 nados à literatura. É uma bela duma fonte. Meu anos. Tomei um susto desgraçado porque não fui pre- interesse não é falar de disco que vai sair, nem de obra parado para tomar conta de filho. Eu era aquele pai ge- que vai ser gravada. Na hora em que um disco deve ser nial que trazia presente o tempo todo. Passados uns tem- dado... Vou falar de novo... Isso aí não vai acabar não? pos, a Bianca, minha filha que toca piano, me disse: “Eu Parece um testamento. •

7

Continente abril 2007

Hans Manteuffel/Divulgação

cabra que não seja seu irmão, seu nada, durante meses ou anos? É ruim. Pois em dois anos e oito meses, fizemos 310 apresentações juntos. Chegou a um ponto da amizade, que é tão profunda, que quando acabou o Dança das Cabeças, o Naná me disse: “Esse disco tem de ter seu nome. Tu tocou demais”. Eu fiquei invocado que só: “Que cabra generoso”.


8

CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Continente Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira

Abril | 2007- Ano 07 Capa: foto de Hans Manteuffel

Colaboradores desta edição: ANDRÉ DIB é jornalista. ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista, pesquisadora de dança, com pós-graduação em

Editor de Arte Luiz Arrais

Jornalismo Cultural.

Diagramação Hallina Beltrão

CRISTHIANO AGUIAR é escritor, autor do livro de contos Ao Lado do Muro.

Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Sílvio Mafra Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Vivian Pires Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco

CLÁUDIO PORTELLA é escritor, autor de Bingo!

DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e autor de Machado de Assis, um Gênio Brasileiro, entre outros. DELMO MONTENEGRO é poeta. FÁBIO ANDRADE é escritor e doutorando em literatura. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros. ISABEL CRISTINA MARTINS GUILLÉN é professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco. JOSÉ TELES é jornalista. KLEBER MENDONÇA FILHO é crítico de cinema e cineasta. LEIDSON FERRAZ é ator e jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; MARCELO COSTA é jornalista. RODRIGO PETRÔNIO é escritor, autor de História Natural, Transversal do Tempo e Pedra de Luz, entre outros. ROSEMARY GONDIM é fotógrafa e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFPE. SAMARONE LIMA é jornalista e autor dos livros Zé e Clamor. SÉRGIO P. LUIZ SILVA é fotógrafo, sociólogo e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF WALTER CLAYTON

DE

OLIVEIRA é bacharel em Biblioteconomia e mestre em Ciência

da Informação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

RIVALDO PAIVA é escritor, autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente abril 2007


CARTAS

Ópera

A matéria de Rodrigo Dourado sobre o espetáculo Ópera mostra com muita clareza a contribuição da encenação para o teatro em Pernambuco, nesta década de pouca efervescência nos palcos. Ópera vai bem além dos besteiróis aqui montados, pois possui texto consistente, cenas amarradas e enxutas, construção dos personagens pelos atores e uma irresistível coerência dos elementos utilizados, dando uma unidade ao que se vê, além de ficar aquele enorme "gosto" de quero mais. Breno Fittipaldi, Recife – PE

Gullar Cumprimento Ferreira Gullar por tudo que ele faz, desde as suas belas poesias até as apreciações das capas dos discos do meu grande ídolo Nara Leão e o seu programa no canal Sesc TV. Em relação ao seu artigo "A arte hoje não diz, faz", penso que a arte atual é submissa à tecnologia. Não é autônoma. Para ser autônoma ela precisa "dizer" e não só representar. Os artistas atuais não são mais artistas sujeitos de si. O verdadeiro artista transmite consciência verdadeira e não a ideologia que nos dá uma imagem falsa da realidade. Heraldo Alvim, Divinópolis – MG Humor Foi gratificante minha surpresa no mês de março, quando recebi o exemplar da Continente Multicultural. Começando pela capa, que está ótima. Há tempos, a Revista precisava abrir espaço para essa arte feita por cartunistas e ilustradores. Em Pernambuco, temos profissionais da mais alta competência na área. Vamos mostrá-los. João Diniz, Recife – PE

Humor 2 Adorei a matéria de capa da edição de março. Curiosa, a questão apontada por Lailson sobre a polêmica em torno da primeira manifestação de humor gráfico na imprensa do Brasil. Aproveitando a oportunidade, lembro que vocês poderiam abrir um espaço para os quadrinhos. Também se faz arte nessa área. Carlos Viana Ramalho, São Paulo – SP Galerias A verdade é que fiquei surpreso com a matéria que trata das galerias pernambucanas. Não imaginava que houvesse tantas. Vocês despertaram o desejo de visita. Ana Rosa Farias, Olinda – PE Frevo Parabéns mais uma vez pela reportagem da Continente Documento sobre os 100 anos de frevo. Importante para os estudantes, apaixonante para os visitantes, eterna para os amantes do frevo e da cultura pernambucana. Andréa Lúcia do Nascimento, Paulista–PE

Frevo 2 Passei o carnaval em Pernambuco e tive oprotunidade de comprar as Revistas Continente Multicultural e Documento. Através dos artigos, entendi um pouco mais sobre as origens do frevo e o que ele representa para as pessoas deste Estado. Sem dúvida, documentos que vão registrar para sempre a beleza do frevo e do carnaval do Estado de Pernambuco. Parabéns! Joana Antunes, Porto Alegre – RS Erratas A foto publicada na página 48 da Continente Documento, n°55 (Miguel Arraes) e que foi creditada como "divulgação" é de autoria de João Carlos Lacerda. Na matéria “Sinfonia centenária para Camargo Guarnieri” (Continente nº 74 – fevereiro), o nome do maestro Flávio Silva e do livro Camargo Guarnieri – O Tempo e a Música foram mencionados incorretamente.

Arquivo Continente

‘‘

A melhor música do mundo é a música do Brasil, feita por mim. Boto banca mesmo. Tenho que falar isso, porque não dá para ouvir uma besteira dessas de um cara como Caetano que, como poeta é muito bom, mas musicalmente é um musiquinho... Para falar de música tem que ser músico, tem que tocar muito bem... Música não é poesia. Na poesia, ele é um dos mestres. Mas, como músico, não. Caetano é um músico medíocre, ele não toca bem os instrumentos que toca, ele

não toca nada, quase nada. Nem acompanhar direito ele sabe. Ele só sabe escrever poesias. Com todo o respeito. Ele não pode falar em música. De música, deixe para eu falar, para o Egberto (Gismonti) falar, para o (Astor) Piazzola falar lá do céu, deixe para o Miles Davis falar lá do lugar onde ele estiver, deixe pro Herbie Hancock falar, para quem entende de música falar. Caetano tem que ficar quietinho e respeitar os músicos, porque ele é um músico medianozinho... Hermeto Pascoal, Continente Multicultural, nº 44, agosto de 2004.

‘‘

“Caetano é um musiquinho”

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

Continente abril 2007

9


BALAIO

EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES

QUADRINHOS PREMIADOS Chapeuzinho Vermelho, de Jarbas, tirou o primeiro lugar, na categoria História em Quadrinhos, no 18º Salão Carioca de Humor, que vai até 16 deste mês e é um dos eventos mais importantes do país na área. Jogando com o contraste de um texto cândido, reproduzindo a linguagem das fábulas infantis, e um desenho vigoroso, trazendo a história para o cenário contemporâneo, o recifense Jarbas Domingos de Lira Junior, 27 anos, colaborador da Continente, arrebatou seu 16º prêmio.

CIUMEIRA POÉTICA

TRAGÉDIA EM FRANCÊS LETRAS NO AR

Entre as pérolas pinçadas entre os documentos de João Cabral de Melo Neto, trazidos pela pesquisadora Selma Vasconcelos para Pernambuco, está uma carta de Lêdo Ivo ao autor de Cão sem Plumas, de 1950, em que o alagoano informa: "Vinicius de Moraes acaba de pronunciar uma palestra em uma universidade norteamericana, de Stanford se não me engano, pondo você no seu justo lugar. Os mineiros ficaram danados". (Homero Fonseca)

Beato lidera milhares de camponeses e constrói arraial onde todos vivem comunitariamente. Jornais denunciam o lugar como foco de fanáticos. Milícias governamentais assassinam todos os seus habitantes. Resumo da história de Canudos? Tratase de fato semelhante. O beato é José Lourenço e o local é o Vale do Cariri, no Ceará. Quem conta a tragédia é Cláudio Aguiar no livro Caldeirão, que está sendo lançado na França pela editora L´Harmattan, sob o título Complainte Nocturne. (Marco Polo)

DEFINIÇÃO DEFINITIVA

ESTADO CIVIL Pequeno anúncio publicado no Diario de Pernambuco de 30 de julho de 1850: "Vende-se meia dúzia de vacas paridas e solteiras, propriamente para criar, e outra meia dúzia de garrotes pouco mais ou menos". (Duda Guennes, de Lisboa)

Ouvi de Ferreira Gullar, em conversa informal, a mais concisa e notável definição das grandes ideologias que dividem o mundo desde o século 19: "O capitalismo é natureza; o socialismo é cultura". (HF) Continente abril 2007

"Não tenhamos pressa. Mas não percamos tempo."

José Saramago

O escritor Raimundo Carrero, em iniciativa inédita e louvável, vem realizando na rádio CBN um curso em que ensina aos ouvintes as principais técnicas literárias. Se não conseguir formar ouvintes-escritores, pelo menos que consiga formar o u v i n te s - l ei to r e s ! (Eduardo Cesar Maia)

BOA LEITURA Com tanto romance chato sendo publicado por aí, eis uma boa notícia para quem quer fugir de leituras tediosas: Moon Fleet, de J. Meade Falkner, e As Quatro Penas Brancas, de A. E. Mason – dois ótimos títulos do gênero clássico de "aventuras", ambos levados para a tela – estão nas livrarias, lançados respectivamente pela Record e pela discreta Lacerda Editores. (Fernando Monteiro)

PAZ EM LISBOA Lisboa é a cidade européia mais segura para se viver, enquanto Londres é a mais perigosa, revela uma pesquisa Gallup para as Nações Unidas. Das pessoas interrogadas em Lisboa, apenas 10% revelaram terem sido afetadas pelo crime. A percentagem foi a mais baixa da União Européia. Apesar da segurança, Portugal revelou ter uma das maiores percentagens (78%) de roubo de carros. Como não tenho carro... (DG, de Lisboa)


Ana Cláudia Alencar

Maria (Marietta) Baderna foi uma bailarina clássica italiana que aportou no Rio em meados do século 19, causando furor não apenas por suas qualidades de dançarina como pela maneira livre e ousada de viver. Ela inclusive se apresentou aqui no Teatro de Santa Isabel. A exaltação de seus admiradores resultou na dicionarização do seu nome como sinônimo de bagunça, confusão. (HF)

Vicente do Rego Monteiro

VIVA A BADERNA!

PERNAMBUCÂNIA A Revista Continente é sucesso na casa do acadêmico Afonso Arinos, filho. Além de lido pelo ilustre escritor mineiro, cada exemplar é ainda degustado por sua esposa e as duas empregadas, ambas pernambucanas e interessadas pela cultura da terrinha. (HF)

ANTROPOFAGIA

PREVISÃO

Os 100 anos de Cícero Dias homenagearam um artista original, porém foi outro pernambucano quem "ensinou" a importância da arte brasileira autóctone – a indígena – a modernistas de 1922 (como Tarsila Amaral). Isso precisa ser divulgado, e não tem nada a ver com a "Escola de Paris", à qual Cícero disse amém, enquanto Vicente do Rego Monteiro preferia mergulhar, antropofagicamente, no inconsciente coletivo tupiniquim. (Fernando Monteiro)

Do premiado e respeitado romancista inglês Ian McEwan, em Sábado (Cia.das Letras): "Não é o racionalismo que vai derrotar os fanáticos religiosos, mas o comércio trivial e tudo o que ele acarreta – empregos, para começar, e paz, e certa dedicação a prazeres realizáveis, a promessa de apetites saciados, neste mundo, e não no outro. Comprar, em vez de rezar." (Fred Navarro)

DESAFORISMOS

“Não tenha medo da perfeição. Você nunca vai atingi-la” Salvador Dali

KARABITCHEVSKY Lu Araújo, idealizadora e produtora da Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo), antecipou que a próxima edição do evento está certa para o feriadão de 7 de setembro e vai contar com um minicurso para maestros, ministrado por Isaac Karabitchevsky. (Carlos Eduardo Amaral)

3

PERGUNTAS A RAIMUNDO CARRERO

1 – Janilto Andrade, professor de Literatura: "O que diria à crítica que afirma ter sua ficção "perdido fôlego", desde que você "inventou" de provar que ser romancista é dominar técnicas?" Acho a avaliação, Janilton, muito exagerada. Com certeza essa crítica não avaliou os meus contos escritos depois de Ao Redor do Escorpião... Uma Tarântula? e que conferem o grau da minha criatividade. Veja, por exemplo, "os deliciosos peitinhos murchos", que saiu na antologia do Melhores contos policiais brasileiros, da Editora Record, ou "Tantas pernas", da Editora Casa da Palavra, ou "Os Dois", da antologia Contos cruéis, da Editora Garamond. 2 – Marcelino Freire, escritor: "Como o Recife trata os escritores aí residentes? E como trata os seus filhos que moram longe?" Tenho tido a melhor acolhida da imprensa pernambucana. Em qualquer circunstância ou em qualquer momento. Mesmo as críticas adversas que eventualmente recebo são de boa qualidade. O Recife não é a "cidade cruel", mas uma cidade muito acolhedora e feliz. 3 – Izabela Domingues, publicitária e escritora: "O processo criativo da maioria dos escritores envolve algumas manias, algumas esquisitas. Quais as suas?" Garcia Márquez só escreve quando tem uma rosa sobre a mesa. E Goethe cheirava maçãs podres. Para mim, o que importa é a oração que faço ao Divino Espírito Santo. Não vou responsabilizá-lo pelo que escrevo, mas confio na sua proteção. No mais, procuro me concentrar no primeiro impulso para depois decidir as técnicas da narrativa. Continente abril 2007


12

LITERATURA

Facas e figurações portuguesas Coleção Ponte Velha da Editora Escrituras lança mais dois livros de poetas lusos Cláudio Portella

D

ois novos títulos da Coleção Ponte Velha foram lançados, ambos com organização e prólogo do escritor Floriano Martins: Armas Brancas e Outros Poemas, de Armando Silva Carvalho e Olhares Perdidos, de Nicolau Saião. A Coleção Ponte Velha trata-se de uma parceria entre o Ministério da Cultura de Portugal, o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e a editora brasileira Escrituras. O acordo é editar no Brasil, via Escrituras, os bons poetas contemporâneos de Portugal. A coleção é coordenada no Brasil por Carlos Nejar e em Portugal por António Osório, tendo Floriano Martins como um dos principais colaboradores. É possível perguntar: por que o selecionador, o escritor Floriano Martins, dentre os livros de poesia de Armando Silva Carvalho, selecionou na íntegra o livro Armas Brancas (de 1977)? Penso que pela unidade que o livro possui. Unidade que vai além do conceitual e/ou estético. O livro, em si, é um poema. Há uma voz, um guia que cobra os fatos, que interroga, que pontua e descarna a história (a ditadura de Salazar – de 1926 a 1974) do seu país, refletindo-a no corpo do leitor. A escolha de Floriano Martins foi primorosa.


Imagens: Divulgação

LITERATURA

Armando Silva Carvalho e Nicolau Saião, autores, respectivamente, de Armas Brancas e Outros Poemas e Olhares Perdidos

Ao selecionador cabiam duas opções: selecionar ou não o poema. Optar por fragmentos (o poema é composto de 43) seria amputar as mãos, os braços, ou as pernas do poema. Eis uma pontinha do dedo (cortada com um dos objetos pontiagudos que ilustram a capa e a abertura dos livros selecionados para a obra) de Armas Brancas: “6.(...) Dílfides, cetins, zonas de lazer/ derramam-se nos livros./ Originais convulsões hidráulicas,/ simetrias verbais e sinestesias/ são o deve e haver desta escrita profética./ Um pão cintila nos pisos diabólicos/ e tu saltas de sístole em diástole./ A queda memorial difrata-se na pedra/ e o rumor do prazer inunda os transparentes/ blocos que te fecham o trânsito./ Diverso em cada som, o desejo/ estua sobre os acessórios./ A tua voz rebenta: és tu a arma branca”. As notas ao final do poema, a meu ver, são desnecessárias, além de algumas estarem embaralhadas. No prólogo do livro, Floriano Martins (poeta-crítico incansável, que parece estar sempre à procura da melhor performance poética) abre o diálogo com os versos de um poema de Armando Silva Carvalho: “Honra os destroços. Cobre-te com eles”. É provável que Armando tenha bebido na mesma fonte de Eliot, que diz num poema famoso: “Esses fragmentos eu os escorei contra minhas ruínas”. Floriano ressalta a ironia, o sarcasmo, a proximidade da prosa (visível nos poemas de Lisboas, 2000) e a coletividade na poesia de Armando Silva Carvalho. A melancolia também é citada. Melancolia presente em O

Comércio dos Nervos (de 1968, seu segundo livro de poesia), nos poemas: “Outro”, no belo “Carro parado com o motor a trabalhar”, e “O chão”. Não uma simples e pura melancolia. Mas infectada de nostalgia e acidez. Compostos que aparecem nos livros seguintes. O que ficou faltando ser mencionado no texto de introdução do livro foi o erotismo (por mais estéril que se apresente), as imagens sexuais que a poética de Armando Carvalho também carrega. Contei mais de 20 poemas em que o sexo está presente. Inclusive, em “Ainda dos fogos”, que começa com o verso, referendado no prólogo: “Não é só o som, é também a voz do mundo”, a sexualidade se faz presente: “E no sexo oculto e solitário/Entre valas e matas.”. O sexo, no livro aqui presente, é quase sempre um desejo abafado no outro. É o que tenho a dizer sobre essas facas lusitanas. Imagino a desenvoltura com que Floriano Martins organizou o livro de Nicolau Saião. Em verdade, a edição brasileira de Olhares Perdidos – a anterior, acrescida do artigo “Os” – é de 2000, publicada pela Universitária Editora de Lisboa. Digo desenvoltura, porque é conhecida a posição surrealista do organizador do livro; posição assentada (ou em pé) do autor do mesmo. Mas o que Olhares Perdidos traz do surrealismo francês é tão somente o reconhecimento histórico. Na abertura da entrevista (o prólogo é uma entrevista que Floriano fez com o poeta), que antecede o livro, lemos: “NiContinente abril 2007

13


LITERATURA colau Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja atuação se situa nos anos 60 e configura um momento outro dentro de um painel de filiações e assimilações do movimento francês nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada (...) a bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, outros poetas haviam metido mãos inovadoras”. E o que realmente encontramos nos poemas é uma escrita elaborada, primando à revisão. O livro me parece mais figurativo do que propriamente surrealista. O figurativo é notório logo nos primeiros poemas do livro: “A Janela”, “Árvore” (aspecto interessante: o poeta parece ter um apego especial pelas árvores, pois o tema é recorrente ao longo do livro), “Efemeridade”, “Voar” e “Cidade”. O “surrealismo contemporâneo” não seria mais um jogo de dados, mas de xadrez. Nicolau Saião também é artista plástico, a ilustração da capa e interiores do livro é dele. O que dizer dos de-

senhos de Saião? Vejo-os em contraponto com os poemas não querendo ilustrá-los, mas desmontá-los, destituí-los de sua porção literária. Se é mencionada a proximidade da prosa na poética de Armando Silva Carvalho. Em Nicolau Saião essa proximidade é muito mais forte, mais presente. Rotular alguns textos, em Olhares Perdidos, como poemas, é delicado: “Erótica Lexicon 2.(b)” é um conto com diálogo entre Jolce e Belinda, “Fala de sua filha a seu pai José Régio” também é um conto onde a filha – unilateralmente – fala ao pai, “Os enigmas do quarto fechado e da fotografia artística” é um ensaio sobre literatura policial (Saião é leitor do gênero, na entrevista do prólogo, cita: A.Christie, Ellery Queen, Fred Kassak, Francis Beeding e Sebastien Japrisot), “Carta de Samyaza Rafacale ao seu amigo Azazelo Eyquem de Reichnau, duas semanas após terem pousado no planeta número três a que chamaram Euroboros e antes da mudança de estações a que depois se iria chamar inverno/primavera” é um conto

Novas aproximações com Portugal Editoras Companhia das Letras e A Girafa também se encarregam de trazer para o Brasil a poesia portuguesa Rodrigo Petronio

P

ode parecer estranho, mas há um desconhecimento mútuo entre Portugal e Brasil no que diz respeito à literatura, sobretudo à poesia. Excetuando-se alguns casos extremos, é quase inexplicável que ocorra isso com dois países que têm laços históricos seculares e para os quais não há obstáculo lingüístico. A Editora Escrituras criou um projeto que pretende atenuar essa distância. Trata-se da Coleção Ponte Velha. Já com vários títulos publicados na área de poesia, praticamente todos de autores até então inéditos em livro no Brasil, a Ponte Velha vem demonstrar a possibilidade desse diálogo. Coordenada pelos poetas Carlos Nejar e António Osório, o diálogo com Portugal começou com as antologias deste último e da poeta, difusora de literatura e também diretora do suplemento cultural do

Mariana Oliveira

14

jornal A Notícia, de Lisboa, Ana Marques Gastão, chamada A Definição da Noite. Em seguida vieram os livros de Rosa Alice Branco, Nuno Júdice e Pedro Tamen, respectivamente, Soletrar o Dia, Por Dentro do Fruto a Chuva e Caronte e Memória. Seguiram-se os livros de Ana Hatherly, A Idade da Escrita, e de Cruzeiro Seixas, Homenagem à Realidade. Ambos organizados e prefaciados pelo poeta, editor e ensaísta Floriano Martins, que tem se tornado um dos principais atores da coleção. São dois destaques interessantes da Ponte Velha, posto que trazem também


LITERATURA

Armas Brancas e Outros

Olhares Perdidos, Nicolau

Poemas, Armando Silva

Saião, Escrituras, 160

Carvalho, Escrituras, 160

páginas, R$ 24,50.

páginas, R$ 24,00.

de ficção científica, “Fala do pastor no dia seguinte” é um conto com diálogo entre o pastor e um zumbi, e “África” que é uma aventura surrealista na selva, que termina com alguém sacando um “símbolo” do surrealismo, uma automática de nove tiros. O livro traz 5 poemas e seu título é constituído da palavra Poema, sendo 3 com o mesmo título, formado unicamente da palavra Poema. O poeta parece querer transformar o poema em um ser-humano comum, batizando-lhe com um substantivo comum. Conheçam um pouco de “Poema”: “E dizia o primeiro: um pequeno/ silêncio e tudo muda Tudo passa afinal/ a ser um jogo como outrora. E replica o/ segundo: mas/ está certo, ou antes/ nem certo nem errado Tudo é sim senhor um jogo/ de norte a Sul de sul a Norte digamos/ com janelas que de repente/ parece que ressoam, que se fecham e iluminam/ com súbitos vazios de árvores/ luzindo em suas folhas”. Com o livro, Nicolau Saião, nos mostra que é possível fazer uma poesia surrealista sem dogmas, sem fé. Amém. •

um belo conteúdo gráfico. O primeiro, com os poemas visuais e as caligrafias de Hatherly, e o segundo com mostras da obra plástica de Seixas, que é um dos principais nomes do surrealismo português, ao lado Mário Cesariny e Antonio Maria Lisboa. Um dos destaques também é o livro Animal Olhar, antologia poética de António Ramos Rosa. Um dos mais importantes nomes da poesia de língua portuguesa, Ramos Rosa é autor de uma obra tão vasta (quase cem títulos ao todo) quanto complexa. A antologia tenta dar conta dessa grande dimensão, selecionando poemas de seus livros mais representativos. Também traz desenhos feitos pelo próprio Ramos Rosa e alguns poemas inéditos. Trata-se de um poeta de amplos vôos imaginativos e de fortes implicações filosóficas. Recentemente, a Ponte Velha apresentou diversos títulos e algumas novidades. Dentre eles se encontram Olhares Perdidos de Nicolau Saião, Armas Brancas e Outros Poemas de Armando Silva Carvalho, Palavras Noturnas e Outros Poemas e Isabel Meyrelles e O Arco da Palavra de João Barrento, todos estes organizados por Floriano Martins. A novidade é a entrada do gênero ensaio na coleção, representada pela coletânea de ensaios de Barrento, estudioso de literatura alemã e grande tradutor

de autores como Goethe, Trakl e Walter Benjamin. O livro de Meyrelles deve ser ilustrado com obras da própria autora, que é artista plástica. Outras antologias ficam a cargo de Carlos Nejar, poeta, ficcionista e membro da Academia Brasileira de Letras. Trata-se dos livros Caligrafia da Solidão, de Maria João Cantinho, e As Flores do Caos, de Casimiro de Brito. Paralelamente à Ponte Velha, valem ser ressaltadas iniciativas individuais de algumas editoras de difundir essa poesia de tão boa qualidade. Além da conhecida publicação de boa parte da obra de Fernando Pessoa levada a cabo pela Companhia das Letras, recentemente a editora A Girafa publicou, do Fernando Pessoa ortônimo, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, uma reunião de fragmentos sobre ele mesmo, vida e arte, e A Educação do Estóico, que escreveu sob o heterônimo de Barão de Teive. Também de Herberto Helder há a ótima antologia da editora Iluminuras chamada O Corpo O Luxo A Obra, com seleção e apresentação de Jorge Henrique Bastos e posfácio de Maria Lúcia Dal Farra. E, recentemente, a Azougue Editorial lançou uma belíssima edição do exuberante Os Passos em Volta, livro de contos do mesmo autor. É ler para crer. •

15


LITERATURA Os Poemas Suspensos traz textos de 11 poetas beduínos da época primitiva, situada entre o século 5 e as primeiras décadas do século 7

Poesia árabe pré-islâmica Luiz Carlos Monteiro

O

s versos dos mais destacados poetas “visão dos palanquins das mulheres”, “exaltação de árabes pré-islâmicos foram contem- si mesmo”, “a sabedoria” ou “a guerra”. A forma plados com uma tradução brasileira geral desses versos é a cassida, de rima única e recente, de autoria de Alberto dividida em dois hemistíquios para pausa em um Mussa, escritor carioca descendente de árabes. O deles, embora o verso como um todo seja autônomo livro, intitulado Os Poemas Suspensos (ou Al- e assim se complete em sua própria sintaxe, sem Muallaqat, As Suspensas), traz textos de 11 poetas depender, num sentido mais gramatical que poético, beduínos da época primitiva, situada entre o século do verso anterior ou posterior. A constatação de cinco e as primeiras décadas do século 7. Um deles, efeitos rítmicos e recursos expressivos característicos Shânfara, aparece em apêndice por ter sido com a devida intensidade, tanto pela estética da considerado marginal à tradição ao viver como um escrita caligráfica quanto por uma propalada sonoridade dessa poesia, apenas “suluque”, isto é, desgarrado e poderia ser percebida, obviamente, renegado de sua tribo. Tais com a leitura dos originais. poemas, derivados originariamente O poeta Amr, cuja obra é do da oralidade e preservados pelos século 6, inicia seu poema não com recitadores, somente passaram para “ruínas do acampamento da o modo escrito a partir do século 8, amada”, como é corriqueiro na por volta de 750, mais de um maioria, mas com “o vinho”: século depois da prevalência do “Acorda, menina, para nos servir Alcorão, com as primeiras coletas desse teu grande cálice, e não feitas pelo gramático Hammad alpoupe esses vinhos de Andarín,// Ráwiya. A estrutura dos textos brilhantes, como que aromatizados sustenta-se através de blocos e trecom açafrão misturado à água chos de poemas com características quente!”. Imru al-Qays, temáticas comuns, com uma ou Os Poemas Suspensos, tradução e considerado o mais antigo destes outra variação, ao versarem sobre organização de Alberto Mussa, poetas pré-islâmicos – cujos textos, “ruínas do acampamento da Record, 210 páginas, R$ 28,90. assim como os de Abid, convenamada”, “a camela”, “o cavalo”, Continente abril 2007


LITERATURA 17

cionaram-se como tendo sido criados nas décadas finais o camelo e o cavalo, e a bravura que se voltava para a vida do século 5 –, refere-se ao vinho metaforicamente, sem, nômade e os eventos no deserto. Qualidades bastante apreciadas entre os árabes eram contudo, dedicar-lhe um bloco inteiro de poema, como neste trecho de versos que descrevem uma tempestade: a eloqüência e a sabedoria. Dizer que alguém não sabia “A enxurrada despejou entulhos no deserto de al- se expressar soava como um insulto, como no verso do Ghabit, como o mascate do Iêmen desenrola seus poeta Shânfara, salteador e assassino: “Não sou como o tapetes.// Na manhã seguinte, era como se os pássaros que tem muita sede, que leva as camelas à noite para o do vale fossem beber de um vinho aromatizado com pasto, com filhotes famintos, estando elas livres. (...) pimenta;// e as feras afogadas, pela tarde, nos confins Nem como um velho fraco, cujo mal exclui o bem, que mais remotos, fossem raízes arrancadas da cebola...” O não sabe se expressar, que quando tu o assustas sai poeta que fez o elogio mais exaltado e emocionado ao correndo desarmado”. Zuhayr é o poeta que escreveu vinho foi Tárafa: “Nunca parar de beber vinho, de máximas onde a tônica é “a sabedoria” do homem em gozar a vida, de vender e dar o que conquistei e o que relação à própria vida: “Qualquer que seja a natureza de herdei”. Estes são, basicamente, os que também um homem, ainda que a suponha oculta, será conhecida. elaboraram versos sobre o rapto de mulheres de outras (...) Quem faz um bem à revelia da honra, será honrado; tribos. No “planejamento de um rapto”, o diálogo entre quem não se previne contra a injúria, será injuriado”. O Ântara e sua escrava mostra-se sugestivo: “Ó ovelha!, surpreendente e paradoxal nestes Os Poemas Suspensos que presa não és para quem és lícita! Vedada para mim (aliás, esta designação, segundo a lenda, se deu porque os – quem dera não fosses!// Despertei minha escrava, poemas ficavam expostos e pendurados em feiras anuais dizendo: ‘Vai durante o dia, espreita e me dá notícias após escolha dos melhores em concursos recitados), é dela.’//E ela, retornando: ‘Vi desleixo entre os inimigos, quando se pensa que simbolizam uma poesia que nasceu no deserto. No entanto, o deserto se fragmenta entre o a ovelha é alvo de quem atirar primeiro!’. Al-Asha, um dos mais novos, cujos trabalhos foram mistério e o movimento, a peregrinação e o grande fixados nos inícios do século 7, compôs versos que isolamento de noites devastadas pelos ventos indomados. Talvez para melhor digerir a passagem do tempo ironizam implacavelmente o amor impossível: “Gostei denos acampamentos, os versos se faziam imprescinla por acaso; ela gostou de outro que não era eu; e esse díveis. Assim, poderiam servir para enaltecer a gostou de uma outra que não era ela.// Uma jovem amada ausente, descrever os feitos de gostou dele, mas ele não a quis; enquanto produção Re guerra, promover o elogio da tribo isso, morria um primo dela, de ou de algum poderoso. Em tanto variar.// Gostou de outro pólo, poderiam mim uma outra, que não impulsionar o autome convinha – e assim os elogio com a exposição amores se encadeiam, de vaidade, arrogância desviados da razão.// E ou empáfia do poeta. todo apaixonado desvaira, Em qualquer dos dois próximo, distante, transcasos, trata-se de uma tornado, transtornante”. poesia que mantém Os poetas incorporauma notável fidelidade vam em suas obras háao vivido pelo poeta e bitos e valores tribais e sua tribo, ao concreto clânicos como a honra, a encetado pela visão e virilidade, a generosidaexperiência sociais de, a vingança da morte do nomadismo e da de parentes, a guerra natureza, ao desvelo constante contra tribos em nomear as coisas inimigas, a ligação com como são. • os animais, notadamente Gravura do ano 634, do Hégire (período do calendário muçulmano) Continente abril 2007


18 POESIA

Poemas de

Everardo Norões Orley

Yousef Sebti

Ele cruzava as pontes do Recife em direção à Abissínia.

Falava com as andorinhas. E quando a tarde domava silêncios subjugava o diálogo das abelhas revoando gerânios. Uma saga de alaúdes despertava os relógios na orquestração das horas no café. O thé à la menthe, a fêmea na esquina, a surata que bendiz o solstício, tudo se harmonizava nos seus esquemas da reprodução ampliada. Estava escrito: “Nascido em 1943, em El-Milia, Argélia; assassinado em 1993.” Com ele aprendi que o tempo era apenas fração de nosso sonho.

Nós o seguíamos: havia sempre um cais, um segredo, o elixir das noites mortas. Aprendíamos a verdade incompleta, o sortilégio dos desenganos, as formas de penetrar, (de leste a oeste) a pálpebra das coisas. Sempre um átomo a pulsar no vidro, no sexo, nos móveis da casa: a substância mais viva do esquecimento. Digo: o silêncio é uma rua de janelas fechadas.

zouinah Não percebia que a noite tinha lábios, nem a parede o escuro limite de um corpo. Nem que um corpo tinha muros e colunas. E era mais vasto do que a rede tingida de ventania. Continente abril 2007

Euclides O fascínio do cacto, a ponta do espinho, a fulguração do tiro. Vegetalizar o homem: tudo tornar folha, corroída pelas minúsculas formigas das letras. Everardo Norões nasceu no Crato (CE) e é pernambucano de adoção. Publicou os livros Poemas Argelinos (1981), Poemas (2000) e A Rua do Padre Inglês (2006).


20

LITERATURA

Marc Ferrez/Reprodução

Um humanista nas esquinas do planeta Livro de memórias do escritor e diplomata Afonso Arinos, filho aborda questões éticas da política nacional e internacional e traz relatos saborosos de uma geração brilhante Homero Fonseca

Vista da Avenida Central, Rio de Janeiro, no princípio do século 20

T

odos sabemos que a elite brasileira, à semelhança de suas congêneres na América Latina, não é particularmente digna de admiração. Isto porque “os donos do poder oligárquico, que nos governam há cinco séculos, pouco ou nada fizeram para minorar a pobreza, as dificuldades e o sofrimento da grande maioria do povo brasileiro. É obscena a dívida da nossa elite para com a multidão de miseráveis que a sustenta, exposta por uma distribuição da renda per capita situada entre as mais injustas do mundo”. A frase entre aspas está no livro Mirante, definido pelo seu autor, Afonso Arinos, filho, como simples “páginas de reminiscências e impressões pessoais”. Ele próprio um lídimo representante de uma parte desta elite, aquela pequeníssima parcela capaz de ter compaixão e empatia pelo povo. Bisneto de presidente da República, neto e filho de ministro, ele próprio é escritor, ex-deputado estadual e federal, diplomata de carreira aposentado. Como o pai, logo após o golpe de março de 1964, apoiado por seu partido, passou-se para a oposição, denunciando os desmandos do poder discricionário. Neste diário, escrito entre 1998 e 2005, Afonso Arinos, filho traça um vasto painel da vida política e cultural do Brasil a partir de meados do século passado,


Acervo ABL

LITERATURA

grandeza, pois sua família se notabirememorando cenas que teslizou pela oposição ferrenha ao cautemunhou ou de que participou, num dilho dos Pampas, cujos sicários são estilo elegante e conciso. Católico fersuspeitos do assassinato de Virgílio de voroso e praticante, ironiza a pompa e Melo Franco, tio do autor). o fausto do Vaticano, onde foi embaiEmbora os fatos e as reflexões xador, e se proclama adepto da doupolíticas sejam um núcleo importante trina social da Igreja. Unindo pensado texto, compondo seu lado mais simento e ação, protagonizou um mosudo, a vivência pessoal do escritor e mento dramático, quando era embaisua convivência com figuras notáveis xador na Bolívia entre 1980 e 82, em da política e da cultura, no Brasil e no pleno regime militar, e teve a iniciativa mundo, compõem as passagens mais de conceder asilo à esposa e filha do saborosas do livro, por onde desfilam presidente eleito e impedido de nomes como Alceu Amoroso Lima, empossar-se, Ernán Siles Suazo, Antônio Houaiss, Gilberto Freyre, dando a ele condições de se evadir e Afonso Arinos, filho em discurso na ABL Murilo Mendes, Ariano Suassuna, encabeçar a resistência no Peru, a lembrar a atuação de Álvaro Lins na embaixada de Aloísio Magalhães, Vinicius de Moraes, Carlos LaLisboa, durante o regime salazarista, em célebre episódio. cerda, Evandro Lins e Silva, José Lins do Rego, Rubem Em inúmeras páginas, baseado em informações que Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes, Carlos Drumsua situação privilegiada na Europa, Estados Unidos e mond, Carlos Castelo Branco, José Guilherme MerAmérica Latina lhe proporcionou, analisa a geopolítica quior, Otto Lara Rezende, San Tiago Dantas, Sérgio mundial, denunciando o expansionismo e a política uni- Buarque de Holanda. Alguns, colegas de imortalidade lateral ameaçadora à paz mundial do Império Ameri- do autor na Academia Brasileira de Letras. De alguns deles, amigos pessoais, Arinos, filho traça cano (revelando, por exemplo, que na Guerra do Golfo, o país que depois invadiu o Iraque acusando-o falsa- perfis vigorosos e penetrantes, lastreado por uma erumente de dispor de armas de extermínio em massa, uti- dição sem estardalhaço. De outros personagens, conta lizou munição com urânio enriquecido, provocando um histórias pitorescas, como o namorico que Fidel Castro, aumento de 700% na incidência de câncer entre os ira- recém-vitorioso em Sierra Maestra, teve com uma paquianos entre 1991 e 1994). Arinos também conta que o renta do autor, no Rio, em 1960, e que, ao comentar reBrasil por pouco não participou da Guerra do Vietnam e centemente em Havana a história e uma “certa tensão defende uma política externa independente e altiva para conjugal” que ainda hoje havia, ouviu do líder cubano o o Itamaraty. Em suas anotações, discute fatos recentes pedido para que convidasse a fugaz namoradinha a visicomo a ascensão do cardeal Ratzinger ao Papado e can- tar Cuba, com o adendo, entre gargalhadas: “Pero que dentes questões éticas atuais, como a clonagem de huma- venga, com marido e todo!” Arinos, filho, que foi colega de farra e trabalho no nos, o aborto e a união entre homossexuais a partir da ótica católica. Assuntos espinhosos, tratados entretanto Itamaraty de Vinicius de Moraes e João Cabral, conta que, com clareza e argúcia, o que não o impede de cometer certo dia, em Sevilha, ele e o poeta e diplomata pernamalgum erro de previsão, como a esperança (infundada) bucano ciceroneavam uma amiga a um baile flamenco, e de uma atenuação na belicosidade na política externa tendo a moça se dito maravilhada com a performance de americana com a ascensão de uma mulher negra ao De- um dançarino, Cabral retrucou: “– Esse aí ainda é o Ledo Ivo. Espere só até entrar o João Cabral”. partamento de Estado. Emerge, dessas páginas inevitavelmente pessoais, a Escrito em forma de diário, Mirante narra episódios importantes ou curiosos da nossa história e, como sói figura de um humanista, aos 70 e tantos anos, convicto acontecer nesse tipo de literatura, faz aquela revisão que de que “é a própria primazia do Absoluto que impõe ao somente o distanciamento no tempo permite, como em crente a exigência indeclinável de inseri-lo no seu quorelação à figura e ao papel de Getúlio Vargas em nossa tidiano, e no da sociedade que o cerca”. Continuo achando que a elite brasileira não é digna trajetória nacional, reconhecendo-o como um autêntico estadista (neste caso, complementada por boa dose de de admiração. Agora, com exceções, claro. • Continente abril 2007

21


22

PROSA

Continente abril 2007


PROSA

Recife na pupila de pedra Cristhiano Aguiar

João Cabral de Melo Neto, Rua da Aurora: O rio é um amontoado de lâminas, por isso o cinza, por isso os cortes de luz dividindo ao meio o teu olho. Separando o óleo da água. O rio é como mil cavalos de lâmina, mil cabeças de cavalos cavalgando e suando luz. O que é uma Aurora (dedos-de-rosa), senão um corte dividindo ao meio o que não se alcança? Ascenso Ferreira, Cais da Alfândega: As nuvens refletidas no rio são como bois tristes e brancos (Há uma mancha luminosa no meio do rio: é a minha alma, estendida como um lençol). Os bois - mugido bom - pastam no azul e no movimento. As nuvens pretas da chuva são como touros: suas patas pesadas estilhaçam o rio como se todos os espelhos fossem gotas d'água. Joaquim Cardozo, Ponte Maurício de Nassau: As pontes são os bosques do Recife. As curvas dos arcos são as raízes das pontes; raízes enterradas dentro do ar, dentro do vento. O poeta vive embaixo de uma folhagem de pedras, colhendo logaritmos enquanto espera, protegido, a chegada de uma chuva de cajus. Clarice Lispector, Praça Maciel Pinheiro: Afogando a praça, um rio de passos e multidões. No meio, duas mulheres. É possível uma prisão sem paredes, ou grades? Duas são as mulheres na praça, duas que são todas; a Louca, cujos dedos estão enrolados uns nos outros; e tu, imóvel na estátua. Carlos Pena Filho, Praça da Independência: As mulheres do Recife gostam de enfeitar os cabelos com sonetos. O calor do sol derrete o céu: pingos de azul no rio. Manuel Bandeira, Rua da Aurora: Entre mim e a Eternidade, o rio, vazante da palma da minha mão. • O escritor paraibano Cristhiano Aguiar vive atualmente no Recife e é autor do livro de contos Ao Lado do Muro.

Continente abril 2007

23


24

AGENDA/LIVROS

Romance de formação Poeta, romancista, dramaturgo e cientista, considerado uma das figuras mais versáteis da literatura universal, Johann Wolfgang von Goethe é um dos centros criativos da cultura alemã. Em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (1795), exemplo paradigmático até hoje de bildungsroman, Goethe desenvolveu o tema da formação do caráter de um indivíduo. Este romance é considerado uma obra de maturidade do escritor, mais serena e “clássica” do que as anteriores, abandonando os postulados individualistas e românticos do Sturm und Drang. (Eduardo Cesar Maia) Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, Johann Wolfgang von Goethe, Editora 34, 606 páginas, R$ 64,00.

Esparta em quadrinhos Os 300 de Esparta, originalmente lançado em cinco revistas, volta em volume único e definitivo

N

o ano de 480 a.C., 300 espartanos impediram que centenas de milhares de soldados, sob o comando do rei Xerxes da Pérsia, invadissem a Grécia, num episódio conhecido como Batalha das Termópilas. Em 1998, esse remoto capítulo da história antiga foi transformado em Os 300 de Esparta, uma das melhores histórias em quadrinhos já criadas. Com esta adaptação, Frank Miller elevou um pouco mais a já prestigiada categoria dos romances gráficos. Sua narrativa quase silenciosa, com fortes doses de violência e ousadias na disposição das imagens, é composta de informações precisas, cenários detalhados, e uma indumentária precisamente caracterizada, resultado de uma extensa pesquisa bibliográfica. Como toda luta entre pequenos e grandes, a aventura dá margem para reflexões sobre as batalhas de hoje, onde a resistência heróica dos espartanos encontra paralelo nas facções islâmicas suicidas, frente ao expansionismo norte-americano. Originalmente lançado em cinco revistas, o épico volta em volume único e definitivo. Vetado na época por razões comerciais, o novo formato horizontal (33x24) torna cada página semelhante a uma tela de cinema, como um storyboard de luxo para a adaptação cinematográfica atualmente em cartaz. Mais do que nunca, é preciso ler o livro antes (ou depois) de assistir ao filme. (André Dib)

Os 300 de Esparta, Frank Miller, Devir Livraria, 88 páginas, R$ 58,00. Continente abril 2007

Novela cult Um modesto e apagado escriturário de um estaleiro recebe uma proposta repentina de um amigo rico para trabalhar por conta própria, vendendo queijos. Apesar de não ter nenhum tino para os negócios, Frans Laarmans aceita e se vê envolvido com toneladas e mais toneladas de queijo edam, que ficam num “depósito patenteado”. O seu grande dilema será se livrar de tanto queijo, o que tornará sua vida insuportável. Este é o assunto central de Queijo, novela de 1933, de Willem Elsschot, sucesso na Europa inteira. Queijo, Willem Elsschot, tradução Cristiano Zwiesele do Amaral, José Olympio Editora, 182 páginas, R$ 30,00.

A espiã do cerrado Em Guerra no Coração do Cerrado, a história da índia cayapó Damiana da Cunha Menezes, passada no século 18, é romanceada pela goiana Maria José Silveira. Damiana é adotada, batizada e feita “branca” pelo mandatário de Goiás, Dom Luiz, como tentativa de melhor dialogar com os índios. Da outra parte, o cacique Angraíocha, avô de Damiana, permitiu a aculturação da neta para usá-la como espiã em meio aos brancos. Ambos, governador e cacique, tinham como objetivo final a posse da terra goiana. Guerra na qual Damiana, durante anos, foi mediadora. Guerra no Coração do Cerrado, Maria José Silveira, Editora Record, 262 páginas, R$ 39,90.

Outra História O escritor e historiador Lepê Correia faz um relato de uma História diferente no livro Canoeiros e Curandeiros – Resistência Negro-Urbana em Pernambuco Século 19. Ele recria a vida da população negra no Recife, mas sem acompanhar a historiografia oficial que aponta como únicos caminhos de resistência negra a dança e canto. O foco do autor são os curandeiros, que atuaram num surto de cólera no Recife, e os canoeiros, função essencial numa cidade cortada por rios, negros que por exercerem funções tão essenciais foram capazes de resistir ao processo de aculturação. Canoeiros e Curandeiros – Resistência Negro-Urbana em Pernambuco Século 19, Lepê Correia, Edição do Autor, 99 páginas, R$ 12,00.


AGENDA/LIVROS

Contos de delírio

C

aligrafia da Solidão, da escritora portuguesa Maria João Cantinho, reúne 10 contos que refletem um clima de grande lirismo com a afluência do sonho, do delírio e da abstração. Nesta perspectiva, ela inicia o primeiro conto, com título igual ao do livro: “Na penumbra, as cortinas movem-se. O vento manso da tarde entra. Por momentos, o quarto ilumina-se. Raios fulvos de sol correm no chão enquanto o homem escuta os sons, o murmúrio da folhagem, geme no chão vazio, ouvindo a luz, o sopro, as folhas que estremecem, numa fala de árvores”. Trechos como este vão se repetir numerosas vezes, revelando a comunhão homem-natureza. Em “Apagar os Rastros”, a travessia de um homem em plena guerra mundial leva-o até seus limites extremos – da doença, da invasão momentânea de suas melhores lembranças, do desespero pelo cerco da polícia nazista, e finalmente da reconciliação consigo mesmo através da morfina. Outros personagens são identificados pela cegueira, que pode ser tanto real como sugerida ou imaginária. Certo olhar metafísico assume um primeiro plano, do olhar que se volta bem mais para si mesmo e a própria solidão do que para o outro e o mundo. Há passagens que parecem ter sido tiradas de versos, e isto fica bem mais patente quando se sabe que a autora também é poetisa. Da intrusão da poesia na prosa, resulta que Caligrafia da Solidão, seus textos seguem um roteiro que não Maria João Cantinho, abre mão do lirismo, nem, em termos da Escrituras Editora, 96 ficção, do ritmo característico à prosa. páginas, R$ 17,00. (Luiz Carlos Monteiro)

Lírico e incisivo Ganhador em março passado do Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, o lisboeta António Lobo Antunes foi durante muito tempo lembrado para o Nobel, que acabou saindo para José Saramago. Até hoje, no entanto, há quem afirme que Antunes é que o merecia. À parte tais disputas, o fato é que Lobo Antunes é um escritor de primeiríssima linha, tendo enveredado por uma vertente mais experimentalista que Saramago. A Objetiva adquiriu os direitos de publicação no Brasil, em versão original, de toda a obra do escritor português, e acaba de lançar Memória de Elefante, o primeiro romance de Antunes, de cunho autobiográfico. O livro relata a crise existencial de um psiquiatra (o próprio autor exerceu a psiquiatria antes de abandoná-la pela literatura, graças ao sucesso do livro). Passado em um dia, traz a reflexão de alguém que, saído de um casamento fracassado, coloca em balanço toda sua vida: o que houve de bom e de ruim, o que fez e o que deixou de fazer, numa auto-análise ao mesmo tempo lírica e incisiva. (Marco Polo) Memória de Elefante, António Lobo Antunes, Objetiva, 200 páginas, R$ 39,90.

Curioso diário Nascido em 1494, o pintor e retratista italiano Iacopo de Pontormo, que tomou aulas com Leonardo da Vinci e que costumava visitar Michelangelo, para estudar suas obras, foi, com o tempo, afastando-se do Classicismo até tornar-se o maior representante do maneirismo toscano. A intensidade dos movimentos e olhares, as formas esculturais e a audácia cromática caracterizaram seu trabalho, cuja importância vem sendo revalorizada nas últimas décadas. Ele também deixou um curioso diário, ilustrado com desenhos, que é apresentado neste livro, ao lado de estudos e informações sobre o artista e sobre o movimento maneirista na arte. Em Nome do Corpo, Iacopo Pontormo, Ateliê Editorial, 204 páginas, R$ 40,00.

Questão de gosto Em 1753, Montesquieu, autor de uma obra básica para a idéia de democracia, “O Espírito das Leis”, foi convidado para escrever um verbete sobre política na Enciclopédia dirigida por Diderot e D’Alembert. Surpreendentemente, pediu para escrever sobre arte e gosto. É que, após uma tardia visita à Itália, descobriu – encantado – o mundo da arte e passou a refletir sobre ele. Morreu antes de concluir o texto, mas o que deixou ficou tão instigante que foi publicado assim mesmo. É este o texto que foi traduzido para este livro, acrescentado de um posfácio de Teixeira Coelho, que contextualiza contemporaneamente o assunto. O Gosto, Montesquieu, Iluminuras, 128 páginas, R$ 35,00.

Filho de peixe O poeta Juareiz Correya descobriu que seu filho, José Terra, também escrevia poemas pelas mãos de outro filho, João Guarani. Lembrou logo do irônico poema “Classe Média”, de Geraldino Brasil, que diz: “Um médico. / Ótimo na família. / Um executivo. / Ótimo. / Um engenheiro / Um arquiteto / Um magistrado. / Ótimo. Um poeta. / Melhor na família dos outros”. Mas é claro que se alegrou muito. Tanto que agora partilha com Terra um volume de poemas. Os do filho, já com um toque de inegável força, como no verso: “Naufrago-me no amor dos pobres de espírito”. Os do pai, confirmando seu talento. Poesia do Mesmo Sangue, José Terra & Juareiz Correya, Panamérica Nordestal, 54 páginas, R$ 15,00.

Ritmo da vida Indo de encontro ao pessimismo que rodeia o pensamento contemporâneo, o sociólogo francês Michel Maffesoli analisa, sem raiva ou ressentimento, no livro O Ritmo da Vida, os comportamentos e manifestações do nosso tempo: os reality shows, a sensação causada pelas liquidações nos shoppings, as paradas gay, o orkut, o ipod... Maffesoli foca seu olhar no ceticismo da atualidade, onde as ideologias e a política estão desacreditadas e o espaço privado passa a ser mais importante que o espaço público. O Ritmo da Vida, Michel Maffesoli, Record, 224 páginas, R$ 32,90. Continente abril 2007

25


26

MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Morte de Baudrillard e mudanças no país

N

o último dia 7 de março, morreu, em Paris, Jean Baudrillard, considerado “poeta, fotógrafo e terminando um dos intelectuais mais cult dos últimos tempos”. Mas é como filósofo que é encontrado em muitas enciclopédias. Baudrillard, na verdade, era um oxímoro vivo. Muitos o consideravam um dos pais do conceito de pós-moderno quando, na verdade, era um verdadeiro iconoclasta de algo que sequer para ele era um conceito: “Veja o conceito de pós-modernidade, ele não existe, mas o mundo inteiro o usa com a maior familiaridade, eu próprio sou chamado de pós-moderno, o que é um absurdo.” E, por fim, é arrasador: “Seria piada chamá-lo de conceito teórico”. É interessante que qualquer bobagem inventada pelos novos filósofos da Europa é imediatamente aceita com manchete em Nova Iorque, e depois espalhada entre os países epígonos do EUA. A novidade, para quem não conhece Jean Baudrillard, é descobrir que seu livro Simulacros e Simulação deu origem à Série Matrix, no cinema, com um sucesso espetacular. O autor do livro não gostou do filme. Achou ingênua a transcrição livro-tela. Já escrevi, para esta Revista, crônica sobre o hábito de cultuar essa tal de pós-modernidade e perdi meu verniz com madeira ruim. Prefiro divagar, hoje, por uma pós-modernidade caracterizada pela transitoriedade das mudanças, a exemplo da violência levada ao extremo da barbárie e das ten-

Continente abril 2007

dências espirituais que nascem e morrem de um dia para o outro. De onde vêm, para onde vão, e por que surgiram? É claro que não sou teólogo, filósofo ou um grande erudito como o pensador Olavo de Carvalho, para ir ao cerne dos fenômenos, mas posso expor minhas aflições sobre um mundo em convulsão, que me abriga e trancafia, ao mesmo tempo. Nasci em 1942, quando ardia o fulgor da Guerra do Pacífico. Antes mesmo de completar 8 anos, eu já era assombrado pelo black out sobre minha cidade natal, Jaboatão – PE. A Segunda Guerra Mundial continuou até que me disseram que ela era feita pelos soldados. Bastou isso para que eu, aos nove anos, ficasse com um medo patológico de soldado, que logo foi curado por um psiquiatra do Hospital Militar do Recife, que me encheu de gritos. Meu pai, que trabalhava naquele hospital, estava de fora esperando que eu saísse da sala do médico, chorando. Mas, a partir dali, o medo de soldado desapareceu. Já adolescente, lembro-me, havia “novas seitas” – os protestantes, os espíritas e os católicos. Era grande a rivalidade entre os católicos e os “bodes”, assim animalizados os protestantes pelos católicos. Algumas novas seitas, que tinham sólida penetração nas raízes bíblicas, além de respaldarem-se na palavra de mestres da teologia, como Agostinho e Tomaz de Aquino, e outros, ainda se encontram em plena atuação e legalidade, em nosso tempo.


MARCO ZERO

No entanto, de uns 20 ou 30 anos para cá, começaram a brotar, no campo ou na cidade, miríades de novas seitas que incorporam desempregados, transportadores temporários de produtos, bóias-frias, um bom número de lumpemproletariado e outras categorias à margem da divisão de classe. Dessa gente marginalizada é feito normalmente o rebanho, tanto das seitas nascentes no meio da pobreza, quanto dos mendigos e criminosos, no meio das estradas desertas. Geralmente seus seguidores se dizem “evangélicos”. Essa mudança ainda continua colocando em xeque a Igreja Católica, como majoritária no Brasil. A magnificência das igrejas católicas chega a intimidar, por exemplo, um agregado de sítio escondido no agreste. Outra grande mudança ocorreu na criminalidade. Até a década de 50, o criminoso agia solitariamente, ora entrando pelo telhado de uma casa, ora batendo carteira nos ônibus, ora atacando um noturno caminhante. Esse folclórico bandido, às vezes é confundido com o malandro do morro, a tirar samba de uma caixa de fósforo. Hoje, o que se vê, no topo dos morros do Rio e de São Paulo, são garotos empunhando metralhadoras de última

geração. Houve, em relação ao crime, um aumento espantoso na quantidade e na diversidade. Uma mudança em que o Estado e a sociedade civil foram pegos completamente despreparados. Quando se deram conta, o país já estava parcialmente tomado e agora todos vão atrás dos prejuízos. Eis duas grandes mudanças, que pareciam estar em quarentena, para eclodir em nosso tempo. Não é ocasião de aprofundar as causas do fenômeno, uma vez que essa criminalidade tende a resultar, talvez, em grande comoção social que mostrará as entranhas desse tumor que cresce a cada dia. O surgimento vertiginoso das novas seitas, muitas delas exaurindo dos pobres a renda “que não têm” – para usar aqui um paradoxo de João Cabral – e os aberrantes índices de criminalidade foram mudanças, uma, que ajudou a mudar ou ameaçar a hegemonia da Igreja Católica; a outra, levando a população a duvidar do poder do Estado ante o crime organizado, este chegando a ser chamado de “país paralelo”. Foram apenas duas mudanças destacadas, mas, no século 20, outras mudanças de igual ou maior peso aconteceram. • Continente abril 2007

27


PERFIL

Lourival Holanda: sacerdote das letras Fotos de Flávio Lamenha

Os estudos literários se tornam matéria viva nas aulas e nas palavras deste educador-humanista, algo raro na academia dos nossos dias Samarone Lima

Fato e Fábula e Sob o Signo do Silêncio, obras de Lourival Holanda já publicadas

Continente abril 2007

É

o primeiro dia de aula de Teoria da Literatura, no curso de Letras, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A sala está repleta de alunos, na algazarra típica de um começo de curso universitário. Há papéis pelo chão; sujeira e pó que sobraram de todo um mês de férias. Poucos percebem a chegada de uma criatura de estatura média, magra, pele com aquele tom amarronzado dos melhores charutos, o andar calmo, como se pisasse em flores. Em seguida, chega o servente, com vassoura e pá. Iria limpar a sala, antes da aula. Aquela figura ainda indecifrável, de gestos suaves, pede a vassoura e começa lentamente a varrer a sala. Os alunos afastam as cadeiras, intrigados. Terminada a limpeza, ele dá bom-dia. Os calouros acabam de conhecer Lourival Holanda, o professor de Teoria da Literatura. “O encontro com ele no primeiro período foi como uma tijolada na minha cabeça, algo fabuloso. Ele não foi fundamental somente na minha formação, mas de toda uma geração da UFPE”, lembra Fábio Andrade, aluno de Lourival, agora concluindo o Doutorado. “Não sei se ele é um poeta-educador ou um educador-poeta”. Talvez os dois, e talvez muito mais. Lourival Holanda, último dos sete irmãos de uma família oriunda de Bodocó, quase limite com o Ceará, exguarda noturno, ex-guarda de crianças, ex-guia turístico, ex-guarda de banco, mais parece um sacerdote. Um sacerdote da literatura. A voz mansa é pontuada por silêncios reflexivos, que resultam em pedaços de poesia. “Às vezes eu me vejo como um burro que carrega relíquias”, diz, ao traduzir o seu papel de professor de Literatura. “Nunca cheguei sacramentado ao meu ofício”, lembrando “O Ofício do Verso”, de Cesare Pavese, mas é o ofício da poética, dos caminhos e descaminhos da literatura em sala de aula. “Ensinar é retroalimentar. Não fosse a experiência de sala de aula, seria o tédio”.


PERFIL

Um sacerdote que foge dos confetes, que raramente dá entrevistas, que se sente à vontade, mesmo, entre os alunos, que se emociona de verdade quando chega um jovem, lá no primeiro período do curso de Letras, e diz: “Professor, fiz um poeminha, queria que você lesse”. É quando sente que está cumprindo sua missão. “Sempre achei que os professores subestimam o potencial da literatura”, diz. “A escola acaba fazendo com que os jovens desgostem da leitura. É o pecado capital do professor: ser obtuso em relação à poética”. Sem mais delongas, ele acredita que falta a muitos educadores uma educação para a sensibilidade. “Não adianta conhecer os formalistas russos e ser obtuso para um verso da Adriana Calcanhoto, que diz – ‘eu não moro mais em mim’ ”, observa. “É preciso primeiro educar sensibilidades, depois vem o Machado de Assis”, observa, questionando também a “imposição do cânone” para as novas gerações. Seu “mosteiro” fica em uma casa de dois andares em um conjunto residencial no Poço da Panela. Ali, cercado por livros e pelos dois filhos, Lourival segue em silêncio, sem alarde, longe das rodas literárias. “Em seu diário, Kafka diz – ‘eu sou literatura’. Posso dizer isso da poesia. Ela está no meu cotidiano”. Em seu percurso humano, Lourival foi recebendo as influências que moldaram o barro dessa espécie de literatura-vida, presente nos mais simples diálogos. Primeira influência, e talvez a que criou mais raízes, foi a de sua avó, Maria das Dores Holanda. “Morávamos no sítio, mas ela tinha fascínio por livro de poesias. Gostava muito de contar histórias, das loas. Aquilo fez o meu imaginário”. Depois de seus silêncios habituais, ele revela que aquela convivência poética, já nos primeiros anos de vida, foi decisiva. “Tenho a impressão de que foi ela quem me indicou a vocação.” Uma vez, ao terminar um namoro, ele chegou e contou à avó. A resposta foi simples, num verso súbito, que ele guarda até hoje: “A chuva que tem que chover/ De longe vem peneirando/ O amor que tem que ser/ De longe vem se chegando.” Em 1956, quando tinha seis anos, Lourival viveu com a família os apuros de uma mudança brusca, que deixou marcas. O pai, um bem-sucedido agricultor, com fazenda própria, resolveu sair de Bodocó, onde vivia com a família, para investir no comércio, em Caruaru. A iniciativa fracassou e a família passou a viver um período

de grandes dificuldades. Lourival, como é de se esperar, não detalha sobre este momento. As grandes dores são secretas. Aos 11 anos, após “um grande esforço financeiro e de negociação”, foi mandado para o internato do Mosteiro de São Bento, o Colégio Diocesano, em Garanhuns. “Meu pai achava que o grande investimento era estudar”, lembra. Ficou sob a tutela dos padres alemães dos 11 aos 17 anos. Ali, acredita, sedimentou o que seria a base para a vida – “a estruturação da minha personalidade padresca, o tom de voz, a disciplina, não confundir imaginário com fantasia”. Para ele, a fantasia “é o imaginário sem cabresto”. Quanto ao jeito silencioso, sem alarde, ele confessa: “No meu mundo, se fala baixo. Nunca vi meu pai levantar a voz”. Encontrou os livros. Estavam lá, todos eles. Dostoiévsky, Tolstoi, Kazantzákis, alguns deles proibidos para sua formação. A paixão encontrava a fonte. Uma coleção intitulada Tesouro da Juventude fez com que a palavra tesouro se tornasse referência para tudo o que vai além, que incendeia o imaginário, que transforma o mundo. A última escala, nesse período de formação, foi o Recife. Já vinha com latim, grego e francês embalando a vida, e queria abraçar de vez a Filosofia. Um irmão monge beneditino, Dom Beda, o abade do Mosteiro de São Bento, era o estofo para revestir o que vinha sendo moldado em seu mundo – o sentimento religioso. Nas férias, já vinha ter com ele, para longas conversas e descobertas. “Sou um homem de fé”, lembra. “A fé é um espaço afetivo, não tem explicação, independe do conhecimento formal”. Ao conhecer o belga Dom Félix Brunneau, recebeu a mensagem: “Olhe, um dia você vai estudar na França, na Bélgica”. São esses presságios que ficam reverberando e depois vingam. Menos de um ano depois, no final de 1971, foi convidado para ficar um tempo na Bélgica. Tinha 21 anos. Ficou dois anos. Trabalhou, estudou a cultura francesa. Voltou apenas para ter certeza de que iria voltar. No final de 1973, estava em Paris, com pouco dinheiro, com o visto quase vencendo. Foi salvo pelo filósofo Jacques Ranciére, que tinha lido um trabalho seu sobre Paulo Freire. O filósofo saiu mexendo na burocracia e conseguiu que ele ficasse. “Tive Foucault como professor. Assisti aulas de Lacan sentado em janelas. Não entendia patavinas do que ele dizia, mas achava aquilo lindo”, diz, com seu sorriso tímido. Para sobreviver, chegou a ser Continente abril 2007

29


30 PERFIL

guarda de banco. “Ficava fardado, na frente do banco, frágil, a ponto de não conseguir segurar um dicionário”. com barba cerrada e cara de mau para proteger o Até nesse instante, a comparação dos limites passa pelo peso de um livro. capital”, recorda. “Acompanhei de perto. Briguei para reduzir a carga Duas décadas distante – Se fosse seguir o curso horária, mas ele continuou dando aulas. Depois de muita normal, em 2007 estaria completando 31 anos de briga, ele deixou uma turma”, diz Luzilá, que o consiUFPE. Mas chegou ao Recife em 1976, quando a dita- dera um colega de profissão, um amigo e um irmão. O dura ainda tratava de aniquilar os últimos focos de colega de profissão é aquele que tem a simplicidade de resistência. Ao olhar seu curriculum, alguém da reitoria repartir de modo acessível o que parece muito difícil. “Ele investiu a vida na Literatura, sugeriu cuidadosamente que ele na transmissão de um saber que nem mostrasse o diploma, para não armazenou ao longo da exister problemas. Tinha estudado tência”, diz. Quanto ao amigo, com muita gente considerada passa pelos caminhos da consubversiva pelo regime. Um de fiança partilhada. “A gente sabe seus professores tinha sido João que nada pode vir dele que possa Quartim de Moraes, expulso do trair ou ferir”. Quanto ao irmão, Brasil pelos militares. Foi “fisgado” Luzilá é direta: “Eu brigo, ele fica pelo arcebispo de Manaus, Dom calado”. Milton Correia, para trabalhar no O sacerdote das letras já se Centro de Estudo do Comportarecuperou da doença. Nos finais mento Humano (Cenesc). Pouco de semana, já pode ser visto nodepois, entrou para a Universidade vamente no Alto da Sé, em OlinFederal de Manaus. Neste peda. Come uma tapioca na Tia ríodo, fez o mestrado e doutorado Júlia, conversa com o Gordo e Jaílem São Paulo, já deixando a Fison. Basta sentar, que alguém colosofia para abraçar de vez a Lite“É preciso educar as meça a preparar sua caipirinha. ratura. Já tinha se convertido às lesensibilidades, depois vem “Eu nem peço, só apareço”, diz. tras. Ficou por lá quase 20 anos. o Machado de Assis” Fica horas conversando. “Lá, eu Casou, descasou, teve dois filhos. Retornou ao Recife somente em 1995, para ensinar na sinto uma presença humana muito forte. Tem mais peso que o anonimato de certos encontros”. Ele também pode UFPE, após várias negociações e conversas. ser visto no Mercado de Casa Amarela, Zona Norte do A fragilidade da doença – Tudo parecia bem, até Recife. Senta em um dos banquinhos, ao lado das pessoas que no ano passado enfrentou um drama, compartilhado mais simples, pede uma macaxeira com galinha, “uma boa com poucas pessoas, como sua grande amiga, a escritora cerveja”, e fica proseando ao Deus-dará. “Eu fico horas ali, professora Luzilá Gonçalves. Uma bactéria no sangue quieto, conversando com o pessoal”. O ano de 2007 começou bem para Lourival. Um dia foi eliminando a saúde de ferro. Lourival não se lembra de ter ido a um hospital e se orgulhava de nunca ter antes de uma de suas poucas entrevistas, ele recebeu de tomado antibióticos. Era daqueles cinquentões que volta o filho Gustavo, que estava há mais de um ano subiam a escada de dois em dois degraus, e se gabava da percorrendo a Bolívia, no esquema “mochila nas costas, ótima alimentação. Uma junta médica chegou a sugerir pé na estrada”. Com um sorriso largo, simples, no que ele tinha câncer no sangue. “Se for confirmado, o silêncio de sua casa, Lourival contou assim a chegada do senhor vai ter alguns meses de vida”, disse um médico, filho: “Ontem, a essa hora, ele chegou. Veio dando um naquelas conversas sinistras. Chegou a pesar 47 quilos. assobio de índio, que só ele sabe dar, e soube de longe que “Foi o pior ano de minha vida, em termos de saúde. Ia estava voltando”. A conversa foi ao som de Ataualpa Yupanki. • dar aulas apoiado em alguém. Pela primeira vez me vi

Continente abril 2007



32

CAPA

nasce uma

ESTRELA A ATRIZ HERMILA GUEDES GANHA ESPAÇO NACIONALMENTE, COM TRABALHOS QUE VALORIZAM O ATOR E EVITAM PIROTECNIAS

Alexandre Figueirôa

A

o assistir O Céu de Suely, de Karim Aïnouz, Ainouz, muita gente pelo Brasil afora ficou surpresa com aquela moça alvinha, de olhar decidido e, ao mesmo tempo, melancólico, que durante a hora e meia do filme nos oferece de forma imperativa um retrato comovente de uma jovem do interior do Ceará que, para alcançar os seus objetivos, não hesita em rifar o próprio corpo. Para os pernambucanos a surpresa não foi tão grande, sobretudo, para quem acompanha a cena teatral recifense, assiste aos curtas-metragens locais ou simplesmente a encontra alegre e sorridente por bares badalados como o Central ou Garagem. Hermila Guedes é uma daquelas figuras capazes de deixar sua marca por onde passa e que, por trás da aparência frágil e delicada, esconde um vulcão de de emoções emoções e,e, oo me-lhor, melhor, de talento em plena fase de amadurecimento. Em 1998, Hermila estreou nas telas em O Pedido. Fez o teste para entrar no elenco do curta-metragem de Adelina Pontual, levada pelo diretor teatral e amigo João Ferreira, com quem trabalhava num espetáculo infantil. Tinha apenas 16 anos e, como ela mesmo afirma, era um período no qual ainda não tinha noção do que estava acontecendo. “Eu gostava de cinema, mas nunca tinha visto um curta. Não passava de uma atriz de brincadeira, ensaiando no quintal de uma casa do Janga e me apresentando em palcos do subúrbio”. Mesmo assim encarou ficar frente a frente com veteranos da arte de representar como Geninha da Rosa Borges e Jones Melo, e, para seu espanto, deu certo. O filme ganhou prêmios no Festival de Cinema do Recife e do Ceará e ela percebeu que talvez ser atriz profissional fosse um caminho a seguir.

Continente abril 2007


Hans Manteuffel

CAPA 33


34

CAPA Divulgação

Em sentido horário, Hermila Guedes em O Céu de Suely, no palco em Angu de Sangue e interpretando uma prostituta no longa Deserto Feliz

Continente abril 2007

Tuca Siqueira/Divulgação

Desde então, Hermila não parou. Voltou a trabalhar com Adelina Pontual em um dos episódios de Assombrações do Recife Antigo; foi fazer teatro outra vez, agora com Antonio Cadengue em Meia Sola e logo recebeu convite de André Brasileiro para integrar o elenco de Angu de Sangue. Conheceu Marcelo Gomes e atuou em Cinema, Aspirinas e Urubus, dirigido por ele, e foi Fred Jordão/Imago/Divulgação Marcelo quem a levou para o teste de O Céu de Suely. Neste meio tempo trabalhou com Cláudio Assis, em Baixio das Bestas, onde tem um pequeno papel de prostituta; com Paulo Caldas em Deserto Feliz – aqui também na pele de uma mulher de vida fácil –, porém, com mais destaque; protagonizou o premiado curta-metragem Entre Paredes, de Eric Laurence; e já colocou o pé na Hollywood brasileira, ao interpretar nada menos que Elis Regina no especial Por Toda Minha Vida, realizado pela TV Globo no final de 2006. Tanta coisa acontecendo quase simultaneamente, no entanto, não parece perturbar a garota de belos olhos claros e rosto expressivo que, aos 11 anos, veio de Cabrobó para o Recife com a mãe e a irmã mais nova após o assassinato do pai, e, quando cresceu um pouco mais, passou a freqüentar as sessões do Cinema do Parque e foi fazer Turismo no Cefet. “Tenho medo da velocidade dos fatos, por isso sempre busco chão, pois você começa a ficar deslumbrada em ser reconhecida, com os pedidos de autógrafos. Quero experimentar de tudo, cinema, televisão, teatro, mas não quero ser uma pessoa de plástico”, afirma convicta, embora confesse que, até bem pouco tempo, não imaginava a grande repercussão obtida hoje pelos seus trabalhos. “Foi o João Jr. (produtor dos filmes de Adelina Pontual, Marcelo Gomes e Karim Ainouz) o primeiro a vislumbrar o que ia acontecer comigo”. Vendo Hermila na tela, ninguém duvida do senso apurado de João. Ela é uma intérprete nata e confessa sentir-se mais à vontade diante de uma câmera, embora se declare apaixonada pelo teatro, expressão para a qual pretende dedicar toda a atenção possível. Prova inconteste de considerar-se ainda uma atriz em formação, foi voltar recentemente ao palco para refazer Angu de Sangue e superar as possíveis dificuldades nas encenações ao vivo. “Meu problema é o público, saber que todos os olhares estão ali presentes voltados para mim, mexe comigo”. Hermila diz gostar do naturalismo da atuação permitido pelo cinema. Sua interpretação está afinada com o tipo de filme que prefere, isto é, obras que valorizam o ator e evitam pirotecnias. “As mulheres dos filmes em que trabalhei até o momento se parecem comigo e em O Céu de Suely minha infância veio à tona”, revela, admitindo ter descoberto técnica naquilo que achava ser mera intuição, sobretudo depois de ser preparada por Fátima Toledo, responsável pela direção do elenco no filme de Karim Ainouz. Neste ponto a escolha para ser a protagonista foi um marco divisor


CAPA

A atriz, no Teatro de Santa Isabel, diz achar "bacana" fazer trabalhos em várias linguagens Hans Manteuffel

da vida da atriz. Quem ia fazer o papel da Hermila era Georgina Castro, mas 15 dias antes do início das filmagens Karim Ainouz mudou tudo e inverteu os papéis das duas. “Ensaiávamos duramente em Iguatu, cidade onde o filme foi rodado. Morávamos na casa em que acontece boa parte das cenas e Karim confiscou nossas roupas, obrigando-nos a vestir o figurino que seria usado no filme. Ele, no entanto, ficou me observando e depois de algumas atitudes minhas e coisas que falei, ele decidiu me escolher”. A inversão dos papéis deixou Georgina Castro mal. “Ela ficou chateada”, conta Hermila. “Tudo que estou vivendo seria ela quem estaria passando, mas ela é uma atriz linda e já superamos isto, eu descobri o meu potencial e agora me sinto mais segura.” A personalidade de Hermila parece ser um fator essencial para este crescimento. “Sou uma pessoa muito livre, a profissão de atriz exige desapego de vaidades, de pudores e procuro nos trabalhos que realizo estar perto dos amigos.” Hoje, ela conta com o apoio deles e da mãe que vê os filmes da filha, mas não faz nenhuma restrição aos papéis por ela protagonizados. Agora, Hermila já se considera uma pessoa do mundo, foi a Cuba, Veneza, mas diz adorar as raízes e prefere, pelo menos por enquanto, permanecer morando no Recife. “Continuo uma matuta desconfiada”, diz. E o futuro? Para a maior estrela do cinema em Pernambuco da atualidade, os próximos passos ainda estão se delineando. “Minha carreira está tomando um rumo muito inesperado”, diz Hermila. Aos 26 anos, com um curso de Letras na Universidade Federal de Pernambuco em banho-maria, ela pretende voltar a fazer televisão, pois acha “bacana” brincar com as diversas linguagens. “Encarnar a Elis foi uma experiência interessante, mas reconheço que não gostei do resultado, não tive muito tempo de me preparar, em uma semana tive que perder o sotaque e o ritmo das gravações era muito intenso”. Ela, porém, quer voltar para a telinha. “Sou insistente, tenho que fazer mais para saber se é bom.” Depois do especial para a Globo ela fez clipe para a Mundo Livre, para a Tanga de Sereia, banda de brega-cult, e aguarda a estréia dos filmes de Cláudio Assis e de Paulo Caldas. Não sabe qual será a reação do público para estes novos trabalhos, mas diz estar tranqüila, pois não se cobra tanto, mesmo quando erra. “Não tem problema, se não der certo. Quero apenas estar feliz e na carreira não quero me transformar em algo que não sou.” •

35

Continente abril 2007


Fred Jordão/Imago/Divulgação

DEPOIS DE BAILE

PERFUMADO, QUE MARCOU A RETOMADA DO CINEMA PERNAMBUCANO, O ESTADO VIVE UM CICLO DE EXTREMA QUALIDADE Kleber Mendonça Filho

a safra de Laila Nash em Deserto Feliz, filme de Paulo Caldas, com produção de Germano Coelho, da Câmara Filmes

“OURO”


CAPA

H

á 10 anos, a idéia de um cinema feito em Pernambuco era retomada através de Baile Perfumado, o filme de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que quebrava um jejum de 18 anos sem que o Estado produzisse um longa-metragem. Foi em 1978 que o cinema pernambucano mostrara a sua última realização – O Palavrão, de Cleto Mergulhão –, obra que, mesmo digna de nota, teve pouca repercussão nacional ou, mesmo, local. Com a exceção do histórico “Ciclo do Recife”, que viu uma dezena de títulos realizados nos anos 20, Pernambuco nunca realmente produziu longas com naturalidade e freqüência, algo que faz dos 10 anos que separam Baile Perfumado da atual safra 2007 uma década que já deve ser vista como “de ouro”, um novo ciclo que, inclusive, não dá sinais de que terá um fim próximo. Este ano, mais três longas garantem esta continuidade: Baixio das Bestas, de Cláudio Assis, Deserto Feliz, de Caldas, e Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. É emblemático que nesses 10 anos, Assis, Ferreira e Caldas tenham, apenas entre eles três, sete longas-metragens feitos em Pernambuco, com equipes e, na maioria dos casos, financiamentos parcialmente pernambucanos. Em 1999, Caldas dirigiu, em parceria com Marcelo Luna, o documentário O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, sobre a desigualdade social que leva uns à criminalidade, outros à expressão artística. Em 2002, Assis lançou seu primeiro longa, Amarelo Manga, uma crônica sobre um certo estado de espírito da cidade do Recife. Em 2005, Lírio lançou Árido Movie. Seus filmes atuais não apenas se revelam semelhantes em temática e visão social, como a inclusão de Cartola também aponta para a diferença ao abordar o universo criativo e artístico do compositor carioca. Essa produção recente simboliza também a ação de um grupo de realizadores que se formou nos anos 80, não exatamente no sentido acadêmico, mas num cinema feito empiricamente em Pernambuco, através do curta-metragem em filme, e também do vídeo. Assis, inclusive, trabalhou em Baile Perfumado (foi diretor de produção), assim como Hilton Lacerda, roteirista no mesmo filme e colaborador de Assis em Amarelo Manga e Baixio das Bestas, e mais uma vez de Lírio Ferreira em Árido Movie. No início de tudo, Baile é hoje visto como “marco zero” desta nova fase pernambucana, com um cinema reconhecido dentro e fora do país, e com média alta de acertos que fazem de Pernambuco a principal referência de produção realizada fora do eixo Rio-SP, posição que já foi ocupada pelo Rio Grande do Sul. De 1997 (ano de lançamento nos cinemas de Baile Perfumado) até março de 2007, Pernambuco (ou realizadores pernambucanos) produziu nove filmes de longa-metragem, todos finalizados, número inusitado não apenas por suplantar totalmente os 18 anos infrutíferos que vieram anteriormente, mas também pelo fato de não existir ainda uma política forte de apoio ao cinema no próprio Estado.

Continente abril 2007

37


38

CAPA Imagens: Divulgação

Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, escolhido para representar o Brasil no Oscar

Amarelo Manga, do diretor Cláudio Assis. Abaixo, cena do seu novo longa Baixio das Bestas

Continente abril 2007

Em Pernambuco, realizadores contam com o concurso Ary Severo-Firmo Neto de roteiros para curta-metragem (dois roteiros contemplados por ano) e com mecanismos de incentivo via Prefeitura do Recife e Funcultura (governo do Estado), que nos últimos quatro anos apoiou produções em todas as áreas artísticas, o cinema aí destacado. Pernambuco segue também sem escolas de formação, equipamentos (câmeras, laboratórios) ou um edital específico para estimular longas-metragens. Dinheiro de fora, via editais federais ou da Petrobras, tem sido essencial para viabilizar os filmes pernambucanos deste atual ciclo. No caso de Cartola, os diretores são pernambucanos, mas a produção e o dinheiro vieram do Rio de Janeiro via produtora Raccord, da carioca Clélia Bessa. Voltando à idéia de uma média alta de acertos, eles podem ser medidos, em especial, via repercussão na crítica e prêmios em festivais, prestígio artístico que produções comerciais recentes com penetração bem maior no mercado (vide a grande maioria dos produtos Globo Filmes) simplesmente não conhecem. Nesse sentido, apenas um dos filmes dessa leva recente não conseguiu, infelizmente, o tipo de exposição que tem sido observada, o docu-drama Orange de Itamaracá, de Franklin Jr., exibido ano passado no Cine PE – Festival do Audiovisual, no Recife. Baile Perfumado, por exemplo, estreou no Festival de Brasília de 1996, de onde saiu como múltiplo vencedor daquela competição. O filme é tido hoje como um marco da chamada “Retomada”, termo usado para definir o período que viu o cinema brasileiro como um todo levantar-se ainda grogue do desmonte causado pela era Collor. Considera-se que a Retomada tenha como fim o ano de 2002. Com a sua seleção para o Festival de Veneza de 1999, O Rap do Pequeno Príncipe… inaugurou o curioso acesso que os filmes de Pernambuco têm tido aos festivais internacionais mais importantes do mundo, como Cannes, Berlim, Veneza e Roterdã, fator que impressiona pelo fato de serem estes festivais os destinos mais desejados de realizadores em todo o mundo. Amarelo Manga foi apresentado em Berlim – 2003, Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, estreou em Cannes – 2005, e Árido Movie, de Lírio Ferreira (seu primeiro filme desde Baile Perfumado), em Veneza – 2005. A repercussão de Cinema Aspirinas e Urubus foi particularmente grande, filme que percorreu festivais importantes em todo o mundo e terminou sendo o escolhido pelo Brasil para representar o país numa hipotética indicação


CAPA ao Oscar (que não se materializou). Com cerca de 120 mil espectadores, é também o filme pernambucano mais visto desta filmografia nos cinemas brasileiros, ao lado de Amarelo Manga, que obteve números semelhantes. Há dois meses, mais duas participações importantes: depois de ganhar o último Festival de Brasília em novembro (Amarelo Manga havia conquistado o mesmo festival em 2002, seis anos depois de Baile Perfumado), Baixio das Bestas teve a sua estréia internacional na 36ª edição do Festival Internacional de Roterdã, na Holanda, de onde saiu com um dos prestigiosos prêmios Tiger de Melhor Filme, concedido para primeiras ou segundas obras em competição. O filme segue para Toulouse, França, este mês. Uma semana depois de Roterdã, Deserto Feliz teve sua estréia mundial no 57º Festival Internacional de Cinema de Berlim, dentro da mostra especial Panorama. Raízes comuns – Acompanhar a construção de uma filmografia é sempre revelador. A cada filme surge um novo capítulo que contribui para a compreensão de um todo, um pouco como ler um livro cujo significado geral se forma diante dos olhos. Ano passado, publicamos aqui na Continente um apanhado geral sobre as temáticas abordadas por cineastas pernambucanos – Lírio Ferreira, Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Cláudio Assis, João Falcão, Guel Arraes –, e como, de alguma forma, filmes diferentes encontram pontos em comum, talvez revelando raízes comuns. A presença do personagem estrangeiro, a representação moderna (ou pop) da paisagem arcaica do sertão, a aproximação deste cinema em relação ao urbano, a presença da TV… Nesse sentido, é impossível abordar Deserto Feliz e Baixio das Bestas sem situá-los numa filmografia que vem tomando corpo ao longo dos últimos 10 anos, filmografia que precisa também abrir espaço para obra tão incomum quanto Cartola, o novo filme de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Os dois primeiros são tematicamente semelhantes, embora cada um tenha escolhido instrumentos de linguagem distintos. Baixio tem crença firme na força de cada um dos seus quadros. Deserto sugere uma incerteza de imagem que parece emular o quão perdida está a sua personagem. Assis define-se como controlador onipresente do seu filme. Caldas acompanha a sua personagem com curiosidade. São filmes que abordam, em linhas bem gerais, o corpo da mulher, idéia que parece ganhar o seu terceiro desdobramento em um ano, se incluirmos também O Céu de Suely, filme do cineasta cearense Karim Ainouz que

11 anos de Cine PE Como já virou tradição em Pernambuco, abril é mês de Cine PE – Festival do Audiovisual. A 11a edição vai ocupar o Cine-Teatro Guararapes, no Centro de Convenções de Pernambuco, entre os dias 23 e 29 deste mês. A lista dos longas-metragens selecionados deve ser anunciada no próximo dia 10, mas os títulos que vão concorrer na Mostra Competitiva de Curtas-Metragens em 35 mm e na Mostra Competitiva de Vídeos Digitais já foram selecionados para as disputas oficiais que concorrem ao troféu Calunga. Dos 21 curtas selecionados, nas categorias ficção, documentário e animação, cinco são pernambucanos. São eles: Eisenstein, de Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião; Noite de Sexta Manhã de Sábado, de Kleber Mendonça Filho, ambos ficções; os documentários No Rastro do Camaleão, de Eric Laurence, e Schenberguianas, de Sérgio Oliveira e William Capela; e a animação Até o Sol Raiá, de Fernando Jorge e Leandro Amorim. Já entre os 319 vídeos inscritos, apenas 10 serão exibidos no horário nobre do evento. Nesse seleto grupo estão duas produções do Estado: Na Corda Bamba, de Marcos Buccini, e O Jumento Santo e a Cidade que se Acabou Antes de Começar, de William Paiva e Leonardo Domingues. Além da exibição e premiação dos filmes exibidos, o Cine PE, cujo orçamento, este ano, chegou a R$ 1,8 milhão, coloca o cinema em pauta no seminário intitulado de “Reflexão sobre o cinema”, que terá a participação de nomes de referência na área. A formação do profissional da área cinematográfica também recebe atenção, através da promoção de oficinas. Todas as informações sobre a programação, horários e regulamentos da mostra competitiva podem ser encontrados no site: www.cine-pe.com.br.

Continente abril 2007

39


40

CAPA valida as alianças internas e criativas que existem nesta filmografia. Baixio das Bestas tem como cenário a zona da mata pernambucana, espaço-personagem que seria inédito até agora nesta filmografia da última década, se não fosse pelo excelente curta-metragem O Homem da Mata (2004), de Antônio Souza Leão. Esse espaço mescla o verde da vegetação com o marrom do barro, a presença da água e também do fogo queimando cana, e parece agregar o pior que o ser humano tem para oferecer, numa visão claramente artística do estado de coisas que Assis vê em termos de sociedade brasileira, ali representada num microcosmo. Em Roterdã, um crítico holandês escreveu: “pela visão do Brasil trazida por Baixio das Bestas, desconfia-se que o país nunca teve a sua moral tão no fundo do poço”, e cabe ao espectador concordar, ou não. Nessa espécie de sucursal do inferno localizada a não mais do que uma hora de carro do Recife, Assis estabelece a visão do arcaico (o engenho e sua decadência) e traz o moderno através da proximidade com o urbano. No entanto, é o elemento humano que estabelece o grau de miséria, simbolizado, entre outros elementos dignos de nota, pelo antigo cinema abandonado do engenho (um dos personagens do filme), onde pelo chão ainda é possível encontrar restos de alguma cópia esquecida do clássico pornô brasileiro (anos 80) Oh! Rebuceteio! Germano Coelho/Divulgação

Continente abril 2007

Há prostitutas, caminhoneiros, jovens da localidade que estudam no Recife e voltam para aquela terra ainda mais sem lei nos finais de semana. Há vassalos “humildes” do engenho que servem de elo entre o velho e o novo (o maracatu e a motocicleta) e pelo menos uma figura patriarcal moralmente demente na sua total decadência. No fundo e nas laterais, caminhões de cana vão e vêm. No centro de tudo, há uma menina de 16 anos (Mariah Teixeira, excelente), cujo corpo será desrespeitado das mais diversas maneiras. Do abuso, ela não ressurgirá como uma fênix, mas apenas continuará vivendo a sua vida triste, sendo promovida de criança violada à puta cheirosinha. É um filme duro, repleto de imagens poderosas (o fotógrafo Walter Carvalho no seu melhor momento) que criam tensão desconfortável entre beleza e feiúra, em planos freqüentemente fixos onde a vida vai acontecendo. Assis firma-se como o cronista mais ousado desta filmografia, e é verdade que esta ousadia passa pela dureza incomum no retratar. A imagemdo ser humano está a anos-luz da humanidade delicada de Cinema Aspirinas e Urubus, ou da imagem estilizada do interior vista em Árido Movie. Baixio das Bestas termina fotografando um lugar real, e povoando-o com a sua própria interpretação da realidade. Em Deserto Feliz, Paulo Caldas também vê numa garota (Laila Nash) o ponto de partida para o seu filme. Os abusos sexuais que ela sofre no sertão verde de PetroDivulgação


CAPA lina são o combustível para fugir e tentar algo de novo, em direção ao leste. É emblemático que os dois filmes tragam cenas importantes em bares de beira de estrada, frequentados por caminhoneiros à procura do que nos parece ser a mesma menina. De vítima do padrasto, em Petrolina, a garota vai à prostituta de Boa Viagem e moradora do Edifício Holiday. Lá, conhece o mito do alemão loiro sugerido por Clarice Lispector em A Hora da Estrela e, numa outra leitura, repetindo o elemento estrangeiro que existe nesta filmografia – o libanês Benjamim Abraão de Baile Perfumado, o alemão Johan de Cinema Aspirinas e Urubus (interpretado pelo mesmo Peter Ketnath em Deserto Feliz), o homem da meteorologia paulistano de Árido Movie. E ela segue para Berlim, onde a narrativa dramaticamente vaga do filme não parece encontrar um pulso, provável representação da personagem em si, e seu senso de inadequação. Tematicamente, Deserto Feliz apresenta a primeira tentativa de o local sair e interagir com o mundo exterior, refletindo um dos temas mais recorrentes do cinema internacional (globalização, a divisão mundo rico / mundo pobre), mas agora com ponto de vista brasileiro e local. Com Deserto Feliz, a filmografia se abre para o mundo, e isso não deve ser visto necessariamente como algo positivo ou negativo. É apenas fato. Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, revela-se uma experiência quase tão distante do sertão,

ou da zona da mata, como Berlim. O roteirista de Baixio das Bestas e o diretor de Árido Movie, ambos pernambucanos, debruçaram-se sobre um mito brasileiro e carioca, e fizeram um documentário (na falta de um termo mais adequado) que, se fosse um músico, sugeriria o equivalente a jogar fora toda e qualquer idéia de partitura. Estamos diante de um trabalho de cunho experimental que acredita não apenas no tesouro de músicas deixadas por Cartola, mas num exercício originalíssimo de montagem e arquivo. O resultado é claramente um esforço de intuições artísticas acertadas que passam a impressão de organicidade de imagem, som e letras cantadas que já seriam capazes de falar sozinhas. Bem mais uma exploração da figura cultural, artística e poética Cartola, e menos o homem num sentido de “biofilme” (problemas pessoais, drogas etc.), esse filme é uma conquista e tanto da dupla. O documentário brasileiro é freqüentemente apontado como a melhor das áreas de produção no cinema nacional. Nos últimos 10 anos, com a chegada do digital (tanto no sentido de imagem como montagem e apresentação), esse gênero tem revelado uma leveza e espontaneidades que não são normalmente encontradas no cinema de ficção. Cartola é um dos melhores representantes desse cinema de documentário visto e ouvido recentemente. •

Divulgação

Na outra página, os diretores Paulo Caldas, em Berlim, e Marcelo Gomes. Ao lado, Cláudio Assis

Continente abril 2007

41


42

CAPA

a hora e a vez dos

Uma Vida Outra Vida, de Daniel Aragão, participou dos festivais de Berlim e ClermontFerrant

CURTAS

OS CURTAS PERNAMBUCANOS TÊM UMA HISTÓRIA DE PAIXÃO, ADVERSIDADE E APROPRIAÇÃO Marcelo Costa

E

xiste um consenso equivocado de que curtas-metragens, a julgar pela sua duração, são obras de menor relevância do que os filmes – assim diferenciados os longas-metragens. Essa idéia talvez decorra de um reducionismo imposto pela indústria cinematográfica, que produz, distribui e divulga o produto de acordo com seu potencial comercial, sem necessariamente avaliar a expressividade e a qualidade da obra. Um bom argumento para contradizer essa tese é a nova safra de curtas-metragens pernambucanos; filmes marcados pelo vigor das narrativas, pela versatilidade de temas e estéticas e por uma corrente romântica – baseada na paixão pelo cinema – que flui no fundo e une obras bem diversas. Sem estrutura de produção – falta de recursos financeiros, técnicos e humanos –, a retomada do cinema em Pernambuco deveu-se sobretudo à vontade de expressão de uma geração inquieta e descontente, que via os holofotes se voltarem apenas para a cena musical do Estado. Como afirma o polivalente cineasta Daniel Bandeira, da Símio Filmes, “o cinema pernambucano nasceu do rancor e, talvez por isso, carrega consigo um conteúdo visceral”, referindo-se à reação à falta de condições do Estado para a realização. Assim, a produção local soa como um grito de rebeldia contra essa indústria que a exclui e marginaliza em obras autorais, e, portanto, bastante singulares.

Continente abril 2007


Imagens/Divulgação

CAPA

Independentemente da qualidade, são filmes incomuns aos olhos “estrangeiros”, concebidos sob referenciais diversos que não seguem uma cartilha acadêmica. Só neste ano, três curtas-metragens de realizadores pernambucanos figuram como destaques em festivais nacionais e internacionais: Uma Vida Outra Vida, produção da Símio Filmes dirigida por Daniel Aragão, sobre a descoberta e a imposição da maturidade diante de um conflito; Noite de Sexta Manhã de Sábado, belo exercício em tom de Nouvelle Vague sobre o amor e o tempo compartilhados, capazes de unir duas pessoas distantes, de Kleber Mendonça Filho; e Eisenstein, deliciosa homenagem ao ícone russo Sergei Eisenstein e ao cinema como forma de expressão artística, de Leonardo Lacca, Raul Luna e Tião, da Trincheira Filmes – em processo de finalização do próximo projeto, Muro das Lamentações. São filmes bem distintos, ligados pela paixão pelo fazer cinema. Os dois primeiros saíram ganhadores do prêmio de melhor filme no último Festival de Brasília, nas categorias 16mm e 35mm respectivamente, e atestaram o prestígio dos pernambucanos em festivais. Kleber Mendonça Filho já havia ganho a láurea em 2004, com Vinil Verde, adaptação de uma fábula russa sobre a perda e o amor necessários ao amadurecimento, contada em fotos-still em homenagem a La Jetée de Chris Marker. O filme, produzido pela Ruptura e Símio Filmes, saiu com quatro prêmios na categoria 35mm, uma prévia do sucesso internacional. Na mesma edição, o vigoroso O Homem da Mata, de Antônio Carrilho, levou o Candango de melhor filme em 16mm, ao misturar ficção e documentário, no melhor do cinema veritée, para retratar o artista popular Zé Borba. Em 2005, Rapsódia Para um Homem Comum, de Camilo Cavalcante – cineasta à flor da pele, premiado como melhor diretor, pelo visceral A História da Eternidade – , levou quatro prêmios, numa saga tecnicamente bem cuidada de amor, solidão e busca da felicidade, que, apesar da homenagem a curtas pernambucanos, descambava num sentimentalismo excessivo. Também nesse ano, Entre Paredes, de Eric Laurence, saiu como o grande vencedor de Gramado e partiu para bem-sucedida carreira em festivais nacionais e internacionais, enquanto o documentário sobre o manguebeat, O Mundo é uma Cabeça, de Bidu Queiroz e Cláudio Barroso, fechou o ano com 10 prêmios. Já premiado em Brasília com o vídeo-clipe Ireny, da Mula Manca e a Triste Figura, co-dirigido por Gabriel Mascaro, Daniel Aragão acabara de participar do Festival de Hamburgo com A Conta-Gotas, seu primeiro curta-metragem. Uma Vida Outra Vida não convence, mas parece pegar carona no prestígio da safra pernambucana e emplacou, em 2007, participações no Festival de Berlim e Clermont-Ferrant, o principal evento de curtasmetragens do mundo. Na edição passada, o Estado foi representado pelo excelente Eletrodoméstica (2005), também de Kleber Mendonça Filho: crônica sobre modernidade, solidão, consumo e a influência dos aparelhos eletro-eletrônicos na vida das pessoas, em meados da década de 90. Aprovado pelo MinC, após sete editais locais e nacionais, o filme consolidou o cineasta como a principal referência em curtas-metragens em Pernambuco e possivelmente no Brasil.

Em Eisenstein, a Trincheira Filmes homenageia o ícone russo Sergei Eisenstein

Continente abril 2007

43


44

CAPA

Aurora de um novo olhar Num mercado dominado e bombardeado por filmes de forte apelo comercial, que invadem os cinemas com cartazes gigantescos e estratégias diversas de divulgação, é sempre interessante ter a oportunidade de assistir a obras com diferentes propósitos e estéticas, capazes de contrariar o senso comum e oferecer uma via alternativa para a homogeneização do produto fílmico. No caso dos home-videos, a Aurora DVD, primeira distribuidora sediada no Recife, surgiu como uma opção para romper a monotonia instalada nas prateleiras das locadoras, tomadas por várias cópias de blockbusters que parecem se repetir para consolidar um gosto médio massificado. Nascida em 2005, a partir da iniciativa de dois jornalistas e cinéfilos colecionadores, Ricardo Carvalho e Ernesto Barros, a Aurora se firmou no mercado ao lançar um acervo incomum de filmes pouco difundidos aqui no Brasil, na maioria da cinematografia européia e do cinema independente americano. Esse gosto fez da empresa uma garimpeira de obras raras, trazendo ao público contemporâneo um cinema diverso e autoral, contracorrente à impessoalidade dos produtos do grande circuito. O próprio nome sugere o nascer ou renascer de algo que deve ser visto e apreciado, e guarda uma relação muito íntima com o cinema. Aurora Film era a principal produtora pernambucana de filmes, durante o Ciclo do Recife (1923 – 1931), quando, apesar da forte influência do modelo hollywoodiano, alguns filmes já ganhavam elementos da realidade regional, como Aitaré da Praia (1925) de Ary Severo; também é o nome da absurda obra-prima do cinema mudo, realizada pelo cineasta alemão F. W. Murnau em 1927, sobre o efeito nocivo da urbanização e a redescoberta do amor mediante a possibilidade da perda. Logo no primeiro pacote, a Aurora lançou quatro obras de temáticas e estilo diversos, prenunciando, talvez, sua maior qualidade: a pluralidade. Duas delas são francesas – Rififi (1955), um clássico notório, e Brinquedo Continente abril 2007

Proibido, 1952 (foto), de Robert Clèment, um olhar sobre o convívio da infância com a morte em meio ao horror da guerra – e juntamente com Somos Todos Assassinos (1952), de André Cayatte, formam a caixa Clássicos do Cinema Francês. As outras duas são o retrato sobre desintegração familiar Anos de Rebeldia (Canadá, 1980), dirigido e atuado por Dennis Hopper, e o excelente O Beijo Amargo (EUA, 1964), filme apresentado por Martin Scorcese como obraprima esquecida do subversivo Samuel Fuller. Em uma participação no filme Demônio das Onze Horas do francês Jean-Luc Godard – contemplado pela Aurora com o cult Carmem (1983) – Fuller resumia seu cinema: “Filmes devem ser como um campo de batalha, com amor, ódio, ação, violência e morte. Em outras palavras, emoção”. Essa frase também pode ser aplicada a outros achados da Aurora, como Parceiros da Morte (EUA, 1961), primeiro filme do cinema marginalizado de Sam Peckinpah, e O Pássaro das Plumas de Cristal (1970), obra inaugural de Dario Argento, mestre do gênero giallo italiano. Assim, clássicos reconhecidos, como os filmes americanos do ícone alemão Fritz Lang e a Trilogia da Guerra de Andrei Wajda, obra-prima do cinema polonês e referência para o grego Costa-Gavras, fechada com chave de ouro no magnífico Cinzas e Diamantes (1958), dividem a atenção com obras menores, a exemplo de O Menino de Cabelos Verdes (1948), de Joseph Losey . Recentemente, a Aurora acertou mais uma vez ao lançar a coleção Cinema Essencial, com três obras do mestre Alain Resnais (Noite e Neblina, Hiroshima meu amor e Muriel) e duas do experimental Chris Marker (La Jetée e Sem Sol). São filmes difíceis de digerir, destinados a um público seleto, mas disposto a afrouxar o cabresto imposto pela indústria e lançar um novo olhar. É se permitir tirar a viseira para ver o sol nascer e irradiar em várias direções, ainda que por vezes seu brilho arda os olhos. (MC) •


Eletrodoméstica e Noite de Sexta Manhã de Sábado, curtas de Kleber Mendonça Filho, foram exibidos no Festival de Roterdã

Leo Falcão/Divulgação

Divulgação

No começo deste ano, Kleber foi homenageado no Festival de Roterdã, onde foi exibida sua filmografia, composta por cinco filmes em diferentes formatos. Formando uma espécie de trilogia do medo, Enjaulado, sobre a paranóia da violência nos grandes centros urbanos e homenagem confessa a Repulsa ao Sexo de Roman Polanski; A Menina do Algodão, um exercício co-dirigido por Daniel Bandeira, inspirado na lenda urbana de uma menina morta que aterrorizava crianças nas escolas da cidade nos anos 70; e o rubi Vinil Verde, exibido na quinzena de realizadores do Festival de Cannes e comprado pelo Canal + (Plus). Eletrodoméstica – também adquirido pela emissora francesa – e Noite de Sexta Manhã de Sábado fecharam a mostra. Essa diversidade de formatos, aliada à modernização de técnicas e equipamentos em vídeo, permitiu diferentes formas de expressão e linguagem, evidenciadas na pluralidade das produções pernambucanas. Filmes bem produzidos e de requinte técnico – por vezes, assépticos – como um Lugar Comum e Thelastnote.com, de Léo Falcão, convivem com a anarquia filmada do vídeo Antropologia Animal, de Olímpio Gonçalves, uma visão apocalíptica e pós-moderna do olhar antropológico de Lévi-Strauss; do apaixonado filme de estréia – com toque de David Lynch – de Leonardo Lacca, O Ventilador; ou da animação sobre cadeia alimentar, pontuada pelo humor negro dos irmãos Cohen, Biodiversidade, de Juliano Dornellas e Daniel Bandeira. Assim, os curtas-metragens contribuíram para a consolidação do cinema no Estado, ainda que dentro de uma estrutura precária, dependente de concursos como o Ary Severo e Firmo Neto, promovidos pela prefeitura e pelo governo, ou de iniciativas do MinC. Entretanto, apesar de marginalizados em seu processo de produção, os curtas pernambucanos são reconhecidos e incorporados pela própria indústria que os renega, numa comprovação da apropriação descrita pelos estudos culturais de Gramsci. Enquanto o cinema em Pernambuco sangra para produzir, seus filmes pulsam com vigor à espera de que novos prêmios e novos olhares sejam concedidos a essa vitalidade. Talvez seja a hora de desfazer um equívoco. •


CÊNICAS

Arquivo de Família

46

Uma radiografia de Valdemar de Oliveira

A

Há exatos 30 anos, a cena inda criança, Valdemar de Oliveira foi convidado a fazer um papel feminino numa comédia que seria pernambucana perdia o representada no Colégio Pritaneu, onde estudava. O diretor e criador do pai estourou-se com o diretor: “Você é besta! Eu Teatro de Amadores de tenho filho pra vestir saia?”. Valdemar brincou com o fato em seu Pernambuco (TAP) livro de memórias, Mundo Submerso: “Provavelmente, o Brasil Leidson Ferraz

Continente abril 2007

perdeu um grande ator”. Mesmo insistindo na virilidade do filho – até porque o menino vivia cercado por “cinco mães”: da legítima à tia paterna, além das professoras –, seu Bianor, o pai, nunca o afastou da arte. “Minha infância está cheia de teatro: o das festas de fim de ano, o dos espetáculos do Santa Isabel, do Helvética, do Moderno. (...) Além de tudo, papai tocava violão e mamãe, bandolim.” Com o passar dos anos, seria praticamente impossível não declarar seu amor ao teatro e à música.


Arquivo TAP

Cena de Um Sábado em 30 (1963), grande sucesso do Teatro de Amadores de Pernambuco

Quando adulto, casado com aquela que seria sua maior parceira nos palcos, Diná, e pai de dois filhos, Reinaldo e Fernando, Valdemar tornou-se um homem múltiplo, plural, e ajudou a modernizar a cena teatral pernambucana, brasileira. De suas inúmeras atividades na arte (foi crítico, poeta, pianista, compositor, tradutor, diretor, ator, cenógrafo e dramaturgo), o Teatro de Amadores de Pernambuco foi, sem dúvida, a maior de suas criações. “Um teatro de cultura na verdadeira acepção da palavra.” Tal afirmação não é de se estranhar para alguém que, como médico, especializou-se em Higiene. Seu intuito nos palcos era promover uma “limpeza”, ir de encontro às chanchadas, “o teatro para rir, e somente isso”, possibilitando ao público recifense o conhecimento dos grandes nomes da dramaturgia universal. Incensado por uns, visto com ressalvas por outros, o TAP é, hoje, o mais antigo grupo teatral em atividade no país (dizem seus integrantes que “do mundo”), com 66 anos completos neste mês. Mas a trajetória da equipe, iniciada com Dr. Knock ou o Triunfo da Medicina, do francês Jules Romains, em 1941, até a montagem mais recente, A Ratoeira, da inglesa Agatha Christie, estreada no início deste ano, não foi fácil. Recebendo críticas que vão desde a escolha do repertório, apostando numa maioria esmagadora de textos estrangeiros em detrimento da produção dos dramaturgos nacionais, a declarações infelizes do seu fundador como “as grandes obras teatrais são feitas para a elite” ou por ter estado quase sempre intimamente à sombra do poder, o TAP suscitou polêmicas principalmente entre os intelectuais e despertou muitas hostilidades.

Valdemar, sempre que pôde, reagiu a todas elas. Com espaço privilegiado na imprensa (escreveu em praticamente todos os jornais e revistas que surgiram à sua época), ele costumava lembrar sua intenção maior de fazer um teatro para “dignificar a arte dramática, amadorista e filantrópico”. Este, um dado importante, já que parte da simpatia pelo grupo espalhou-se, também, porque as rendas dos espetáculos eram destinadas a instituições de caridade. Hoje, revertem-se para um teatro próprio, o antigo “Nosso Teatro”, como foi lançado em 1971 após quase 16 anos de luta, e, com o incêndio em 1982, a reconstrução do mesmo em apenas dois anos, rebatizado com o nome do seu mentor e eterno líder. Modernidade – Mesmo alegando incompreensões, Valdemar sempre apostou no ecletismo da biblioteca teatral. E foi assim que o TAP montou peças de García Lorca, Molière, Pirandello, Priestley, Oscar Wilde, Tenneesse Williams, Maeterlinck, Casona, Marcel Pagnol, O'Neill, Somerset Maugham. Em número bem menor, também investiu nos autores brasileiros, como Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Arthur Azevedo, Aristóteles Soares, Luiz Marinho. Segundo o seu diretor, o grupo adotava a política de “dois passos à frente, um atrás, isto é, após uma arremetida corajosa sobre o espírito do público, um ligeiro recuo, sem quebra de sua linha de honestidade artística (...) e jamais nos tornando veículo de ideologias ou palanque de comícios eleitorais”. Mantendo-se ausente de todo o caos reinante durante o regime militar, o TAP não foi perdoado por muitos devido à sua omissão ante as perseguições e torturas que se instalaram no Brasil a partir de 1964. Continente abril 2007


48 CÊNICAS

Arquivo TAP

Dizendo-se “apolítico”, Valdemar de Oliveira preferiu revolucionar à sua maneira, nos palcos, desde os anos 40, e foi graças a ele que uma substancial mudança no panorama teatral em Pernambuco aconteceu. Isso porque o seu grupo de artistas/idealistas já surgiu indo de encontro não só à forma de representação adotada então, mas dando até outro sentido ao fazer teatral da época, tempos em que “moças da sociedade” não podiam sonhar com uma carreira de atriz. Já as conquistas estéticas apareceram com maior vigor quando contratou encenadores, nacionais e estrangeiros, que serviram de “escola” de aperfeiçoamento para os seus: Turkow, Adacto Filho, Ziembinsky, Jorge Kossowski, Willy Keller, Bollini, Graça Melo, Bibi Ferreira. No entanto, das encenações do próprio Valdemar é que despontam os maiores sucessos do Teatro de Amadores de Pernambuco: A Casa de Bernarda Alba (1948) e Um Sábado em 30 (1963). O TAP foi aplaudido entusiasticamente pelo Brasil. Nos áureos tempos, foram mais de 50 excursões e uma centena de prêmios, placas e títulos, além de elogios de personalidades como Paschoal Carlos Magno, Oswald de Andrade, Décio de Almeida Prado ou Sábato Magaldi. A imprensa o aplaudiu como um teatro a ser imitado, mas, com o passar dos anos, diante de um certo “tradicionalismo”, acusou-o de “dormir sobre os louros” e negar-se a uma atualização artística. Sua perma-

nência, no entanto, chama a atenção, pois, há 66 anos, a fórmula é preservada – embora alguns acusem o grupo de “concessões” a comédias de gosto duvidoso nas últimas décadas – e foi o tipo de teatro que realizou, em sua miscelânea de estilos, e não outro, que ainda o torna uma referência obrigatória dos nossos palcos. O público fiel que o diga. Despedida – Acidentado devido a uma queda, há exatos 30 anos, em 18 de abril de 1977, Valdemar deixou o nosso teatro um pouco mais carente. Até o último momento, em conversa com a família, sugeria novas montagens para o TAP. De lá para cá, foi o filho Reinaldo quem o sucedeu na direção do grupo, trazendo à cena peças como Sábado, Domingo e Segunda; Bob & Bobete e Um Sábado em 30 (ainda hoje, vez ou outra, sendo apresentada). Os amigos e admiradores dizem que Valdemar estava predestinado a ter seu nome imortalizado, desde os tempos do Grupo Gente Nossa, onde teve “suas primeiras e certas lições de arte dramática”, nas palavras dele mesmo. É impossível não vê-lo como um homem-obra, até mesmo porque, como revelou em suas memórias, “o teatro é o melhor aparelho de raios X aplicado à alma do homem”. O TAP seria, então, sua maior radiografia. Eternamente.

* Este texto é resultado da pesquisa sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco, um dos grupos a integrar o volume Memórias da Cena Pernambucana – 03, com lançamento previsto para agosto deste ano. •

Valdemar de Oliveira e Geninha da Rosa Borges, na montagem de Sangue Velho Continente abril 2007


DANÇA Imagens: Divulgação/Cia. da Foto

49

Um trabalho em processo Partindo da idéia de mestiçagem, o Itaú Cultural Rumos da Dança selecionou projetos como o da pernambucana Valéria Vicente Christianne Galdino

Valéria Vicente no solo Pequena Subversão, apresentado no Itaú Cultural Rumos da Dança

P

or enquanto, vamos deixar de lado o conceito de identidade para minimizar seu efeito aprisionante, e considerando que somos “mestiços de partida”, como define o pesquisador e professor Amálio Pinheiro (PUC – São Paulo), chegar ao cerne da questão. A persistente discussão entre erudito e popular, tão evidente em Pernambuco, perde a razão de ser quando entendemos que fazemos parte da complexidade de um “continente mestiço”, a América Latina, palco de um grande fluxo de civilizações desde sempre. E, se o assunto é a produção brasileira de dança contemporânea, podemos nos guiar mais uma vez pelos princípios teóricos do professor Pinheiro, concordando que se trata do território da “mestiçagem, um mosaico com mobilidade, feito de amálgamas inconclusos que favorecem a absorção. A mestiçagem não é uma simples permissão de co-habitação de culturas, é a inclusão de um

elemento no outro, formando uma nova tessitura”. Nestes trilhos caminha a idéia de dança contemporânea, que, por mais que se pareça, não pode ser confundida com improvisação, pois pressupõe pesquisa, um mergulho aprofundado para ouvir e traduzir em movimento as questões que a obra quer levantar. Na 3ª edição do Rumos da Dança do Itaú Cultural (2006/2007), pela primeira vez, Pernambuco esteve presente nos palcos, nos trabalhos de Helder Vasconcelos (ver Continente Multicultural, nº 75) e Valéria Vicente, que desenvolve mais uma etapa da pesquisa Do Frevo ao Fervo, origem também do espetáculo de dança Fervo, coreografado por ela em 2006, abordando a temática da violência urbana em que o frevo foi gerado. Pensar em frevo sem conectá-lo imediatamente aos seus estereótipos, retirando-o do posto “sacralizado” de ícone da identidade pernambucana não é um exercício Continente abril 2007


DANÇA nada fácil, nem para o “provocador”, no caso, a coreógrafa, nem para os “provocados”, no caso, o público. A dificuldade aumenta quando encontramos no corpo do intérprete a memória desta movimentação já sistematizada. No processo de pesquisa corporal, Valéria Vicente interessou-se por investigar as articulações físicas e testar “o frevo como uma linguagem corporal capaz de provocar dinâmicas e sentidos específicos e assim estar a serviço da construção de espetáculos de dança”. Neste exercício , ela mergulhou no “caldo” e viu que havia muitos frevos, muitos “jeitos passistas de ser”. Identificada com o dançar do grupo Guerreiros do Passo, Vicente focou na liberdade, ousadia e violência dos passistas de rua, e descobriu a pergunta “O que é que provoca a alegria do frevo?” Seguindo esta questão, ela chegou ao elemento desequilíbrio como uma das possíveis respostas e explorou-o como estado de risco, trabalhando mudança de eixo, instabilidade e transferência de peso, que ganham aí múltiplos significados. “Não quis fazer um espetáculo sobre o frevo. O frevo funciona muito mais como metáfora de tantas outras coisas da vida”– explica a criadora. Este recorte na pesquisa sobre o frevo originou o solo, que Valéria Vicente estreou em São Paulo, com o título: Pequena Subversão. Escolhendo um estado de presença cênica natural, a coreógrafa optou por não vestir personagem e não mostrar os passos do frevo, apesar de criar esta expectativa com a sua movimentação. Nesta investigação que tenta quebrar as dicotomias que ditam a alegria como contrário da tristeza, a intérprete trouxe à cena os estágios oscilantes, as nuances desta alegria. Partindo de um sorriso, as expressões faciais vão se modificando, “quadro-a-quadro”, gradativamente. Vistas também em close, no vídeo criado pela artista plástica Jeanine Toledo e projetado simultaneamente à coreografia, as imagens do rosto de Valéria Vicente sublinham e reforçam suas intenções. “Dizer que o frevo é uma dança alegre é um clichê. Mas se você nota que aquilo realmente existe, porque você tem que negar? Acreditei, então, que este era um espaço para mergulhar, um lugar de sensibilidade, dos sentimentos bons, das alegrias da vida, das coisas simples. Um lugar em que a dança contemporânea costuma se isentar. Falar de alegria em dança contemporânea é quase como quebrar um tabu. Sutilmente, proponho, então, esta pequena subversão nos sentidos”– conta Valéria Vicente, que achou no intervalo das imagens, no “entre”, o habitat ideal para desenvolver seu processo. Continente abril 2007

Para o professor Amálio Pinheiro, nem tudo “dá para fazer liga” na dança contemporânea

Jornal do Commercio do dia 13 de novembro de 2002

50

Tendências é o máximo que podemos identificar nas obras de arte contemporânea. Sabemos que, apesar de ser um terreno livre e permissivo, nem tudo combina, nem todos os elementos podem ser misturados e, como diria, o professor Amálio Pinheiro, nem tudo “dá para fazer liga” na dança contemporânea. Mas também não cabe o engessamento ou a tentativa de homogeneização dos conceitos em nenhuma obra de arte que se diga contemporânea. O que é preciso é experimentar, investigar as possibilidades, com o cuidado de conhecer muito bem o material que se vai trabalhar. Os pensadores, curadores e artistas da dança, público habitual do Rumos Dança, apesar de confessarem a dificuldade de leitura diante de obras como a da coreógrafa pernambucana Valéria Vicente, por muitos considerada como “um trabalho em processo”, percebem que há algo forte naquela movimentação, existe um vocabulário vivo evoluindo ali. Alinhar o discurso teórico à prática corporal é o grande desafio de criadores e, inclusive, dos teóricos, para não cair na armadilha de querer padronizar o pensamento criativo da dança contemporânea ou, o que também é perigoso, cultuar o exotismo. Simplesmente, a dança contemporânea pernambucana pede licença para apresentar as suas diferenças. •


AGENDA/CÊNICAS 51

Palco Giratório

Paixão no Recife Divulgação

O Recife receberá a maior rede de festivais de artes cênicas do país. O espetáculo é derivado do projeto Palco Giratório, uma iniciativa do Sesc, que tem como foco democratizar o acesso à arte da interpretação. As montagens Fernando e Isaura; Realejo; Viagem ao Centro da Terra; Cegonha Boa de Bico (foto); O Patinho Feio; As Criadas; O Incrível Ladrão de Calcinhas; Poemas Esparadrápicos; Capitu; Olhos de Touro; Gota D’Água; O Círculo de Giz Caucasiano; A Chegada da Prostituta no Céu; O Velho Lobo do Mar; Carroça de Mamulengos; Saci; Fervo; Ópera; Cartas para um Mozartiano; Brincantes, Bailantes, Dançantes; Aperitivos; Hoje é Dia de Rock; Como?; Antonio Maria; Aquelas Duas; Psicose e Médelei serão exibidas no Teatro de Santa Isabel, Teatro Hermilo Borba Filho, Teatro Apolo, Teatro Capiba, Sesc Piedade e Espaço Passárgada, integrando uma programação que representa um autêntico mosaico da diversidade cênica nacional.

Hans Manteuffel/Divulgação Os últimos cinco dias em que Jesus Cristo passou vivo, a sua entrada triunfal em Jerusalém na semana da páscoa judaica, os tumultos que sua presença causou ao redor do Templo Sagrado, as altercações com os fariseus, a última ceia, a traição, a prisão, o julgamento, a flagelação e a crucificação, tudo aconteceu de forma muito rápida e avassaladora. A história de vida, paixão e morte de Cristo é apresentada em três palcos distintos, nove cenários de madeira, isopor e tecidos, maquinados para que se transformem, a cada nova cena, na Paixão de Cristo do Recife. Comemorando sua 11ª edição, com 300 atores e 50 técnicos, todos pernambucanos, José Pimentel volta ao Marco Zero, no papel de Cristo, num espetáculo com duas horas de duração, além de grandiosos efeitos pirotécnicos.

Festival Palco Giratório Brasil. De 12 de abril a 5 de maio nos Teatros mencionados. Programação completa no site www.sesc-pe.com.br Informações: (81) 3216.1628.

Paixão de Cristo. De 4 a 8 de abril às 20h, no Marco Zero. Entrada franca. Informações: 81.3423.3186/3421.8456

Clássico francês

Visão do Palhaço

Nana Moraes/Divulgação Os sábios questionamentos de um menino buscando um pouco mais de sentido para a existência humana farão o espectador, independentemente da idade, deparar-se com a meninice, fazendo a imaginação fluir no tempo, sentir o perfume de uma estrela, dialogar com uma raposa, ouvir a voz de uma flor e ver o brilho de uma fonte. Nestes encontros e desencontros desenha-se a história dO Pequeno Príncipe, editado pela primeira vez em 1945. O escritor Saint-Exupéry mergulha no subconsciente, devolvendo o mistério da infância, a volta aos sonhos e as recordações já imperceptíveis na correria do dia-a-dia. A adaptação da obra literária para a dramaturgia é do pernambucano João Falcão – também a direção artística –, e traz Luana Piovani no elenco e conta com a produção de Maria Siman.

O conhecido programa Doutores da Alegria vira espetáculo no Recife. A linguagem cômica e a fantasia de palhaço usadas por seus integrantes em passeios pelos grandes centros urbanos resultou na peça Dramalhaço. A montagem reúne situações corriqueiras e outras inusitadas que foram coDivulgação lhidas nos mais diversos lugares da cidade, através da observação de personagens reais. Uma roupagem contemporânea foi incorporada a esse trabalho, com textos de Luís Fernando Veríssimo e Hugo Zorzetti. Já o ar leve, dedicado a um cotidiano por vezes trágico, foi dado pelo talento caricato dos doutores. Todo o processo, desde a criação do formato até a redação final, foi acompanhado por dramaturgistas.

O Pequeno Príncipe. Dias 21 e 22 de abril às 17h, no Teatro da UFPE. Informações: 81.3267.3687/ 3453.4344 /2126.8077. Ingressos: Platéia R$ 50,00 e R$ 25,00 (meia). Balcão R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia).

Dramalhaço. De 28 de abril até 1º de julho, no Teatro Armazém, Rua Alfredo Lisboa, Cais do Porto, Bairro do Recife. Informações: (81) 3424-5613 Continente abril 2007


JCImagem

Arquivo/Jornal do Commercio

52

TRADIÇÕES


TRADIÇÕES

67

E

m 1950, a bailarina norte-americana Katherine Durhan encontrava-se no Recife juntamente com seu Ballet Negro, integrando a programação que celebraria o centenário do Teatro de Santa Isabel. Tanto intelectuais como autoridades pernambucanas sentiram-se na obrigação de mostrar à bailarina o que de mais autêntico existia na cultura afro-descendente de Pernambuco, e que Katherine provavelmente não conhecia. Levaram-na, então, à apresentação de um maracatu. Diante da poderosa batucada, da dança extática, Katherine não teria se contido e gritado a plenos pulmões: “Mostrem essa maravilha ao mundo!”.

Dona Santa Rainha do Maracatu Dona Santa foi rainha e matriarca dos negros no Recife, além de poderosa sacerdotisa dos orixás e da jurema. Sua autoridade entre os maracatuzeiros era inconteste

Ilustra;ção: Ricardo Melo

Isabel Cristina Martins Guillen

O maracatu em questão era o mais antigo da cidade, o Elefante, conduzido por sua octogenária rainha, Dona Santa. Lenda ou não, a história acima faz parte de uma série de outras que alçaram Dona Santa a símbolo máximo da cultura afro-descendente em Pernambuco, à posição de verdadeira matriarca. Mulher de poucas palavras, que sabia o valor do silêncio e do segredo para sua cultura, Dona Santa ao longo de sua vida construiu uma ampla rede de relações que a transformaram em modelo de rainha, e alçou o seu maracatu, o Elefante, como a mais tradicional das manifestações da cultura popular pernambucana. Todas as rainhas de maracatu da contemporaneidade espelham-se no exemplo dessa mulher, e, apesar de hoje ser extremamente difícil diferenciar a lenda do fato histórico, Dona Santa ainda é muito admirada e homenageada. A história dos maracatus-nação, e da cultura afro-descendente no Recife, está intrinsecamente relacionada à história desta mulher. Continente abril 2007


54

TRADIÇÕES Maria Júlia do Nascimento teria nascido no ano de sem conflitos e discussões, já que em Pernambuco assis1877, no bairro da Boa Vista, e o Maracatu Nação Ele- tiremos durante o Estado Novo, sob o governo de Agafante muito provavelmente já fazia parte da vida da famí- menon Magalhães, a uma das mais acirradas perselia. Os maracatus já se encontravam com uma confor- guições às casas de culto (conhecidas como xangôs). mação muito semelhante à de hoje. Mas não eram bem Muitos desses terreiros foram fechados e aqueles que vistos pela elite da cidade. Representavam um passado es- ainda se atreviam a cantar para os orixás tiravam licença cravista que se queria esquecer, e os ideais de branquea- policial como maracatus, buscando dessa forma disfarçar mento dominantes no país faziam com que tais mani- suas atividades religiosas. Isso não impediu que Dona festações fossem consideradas acima de tudo bárbaras ou Santa também tivesse sua casa invadida pela polícia e incivilizadas. Dona Santa cresceu, portanto, em meio a seus objetos religiosos apreendidos. Foram nesses anos difíceis que, com a morte de Vitoum ambiente de intenso preconceito e perseguição não só ao maracatu, mas também às religiões afro-descendentes. rino, Dona Santa assumiu a condução do Maracatu EleFoi nesse contexto que se iniciou no santo, como dizem, fante. Com mais de 60 anos, encontrava-se na difícil tarefazendo suas obrigações a Oxum, seu orixá-guia, e tam- fa de proteger seus filhos e filhas de santo, e assegurar ao bém se iniciando na jurema, religião de encantados muito Elefante e seus maracatuzeiros um lugar ao sol no dispupopular no Recife. Muito jovem, foi coroada rainha do tado carnaval recifense. A rainha cumpriu muito bem seu Maracatu Nação Leão Coroado, mas ao se casar com o papel e demonstrou ser, além de grande líder para seu 2º sargento da Polícia Militar, João Vitorino, e tendo este povo, uma excelente mediadora cultural, criando condições para que seu grupo se sobressaísse na sido escolhido para ser rei do Maracatu cena cultural da cidade, despertando a admiElefante, Dona Santa teria renunciado a ração e o carinho entre intelectuais, jornalisseu cetro no Leão Coroado para acompatas, fotógrafos e escritores. Alguns deles nhar o marido. contribuíram sobremaneira para divulgar Quase não há notícias sobre Dona sua a imagem, a exemplo de Lula CardoSanta neste período. No entanto, a reso Ayres e Ascenso Ferreira. Nacionalpresentação dominante dos maracatuzeimente, Dona Santa foi objeto de uma ros do período é de que eram arruamagnífica reportagem da revista O ceiros, propensos a brigas e discussões. Cruzeiro, em 1947, ilustrada com fotoOs maracatus eram tidos como pretextos A rainha cumpriu grafias de Pierre Verger, bem como teve que os negros precisavam para dar exmuito bem o seu pansão à barbárie de seus costumes afri- papel e demonstrou uma pequena participação no filme de Alcanos. Ao mesmo tempo, em quase todas ser, além de grande berto Cavalcanti, O Canto do Mar, em as crônicas da época sobressai um tom líder para seu povo, 1953. O maestro e compositor Guerra uma excelente Peixe escolheu o Elefante como objeto de de melancolia, como se os maracatus exmediadora cultural estudo e a rainha foi celebrada nas págipressassem uma profunda tristeza, uma nas de Os Maracatus do Recife, publicado saudade indefinida que os negros sentiam e os transformavam em estrangeiros dentro do em 1955. Como resultado dessa popularidade, Brasil. Pode-se desconfiar, no entanto, dessas repre- encontramos invariavelmente o Maracatu Elefante se sentações, e talvez os maracatus não fossem vividos apresentando em quase todos os eventos em que autoridades ou celebridades visitavam o Recife. dessa forma por aqueles que o faziam. Dona Santa firmou dessa forma sua popularidade Nos anos 30, quando as discussões sobre identidade nacional e a valorização da mestiçagem levaram em con- como rainha e matriarca dos negros no Recife, além seqüência a uma valorização de aspectos da cultura afro de poderosa sacerdotisa dos orixás e da jurema. Sua no Brasil, as coisas começaram a mudar, apesar de ainda autoridade entre os maracatuzeiros era inconteste. ser um período de intensas perseguições. No Recife, Conta Guerra Peixe que a rainha não precisa falar assistimos em 1934 à realização do I Congresso Afro-Bra- muito para manifestar seu desagrado diante de comsileiro, em cujo programa os participantes puderam ouvir portamentos que considerava indevidos. Dona de um os cantos aos orixás, e assistir a uma apresentação de olhar penetrante, uma mirada bastava para que até o maracatu, no Teatro de Santa Isabel. A cultura “afri- mais valente dos homens se calasse envergonhado do cana” adentrava os espaços da elite, o que não ocorria que tivesse feito. Possuidora de garbo e majestade, Continente abril 2007


TRADIÇÕES

O Maracatu Elefante, tendo à frente a rainha Dona Santa, década de 30

Reprodução

Santa sempre desfilava no carnaval conduzindo seu maracatu desde Ponto de Parada, na zona norte da cidade onde se encontrava a sede, até as ruas centrais, apesar de sua avançada idade. E enquanto desfilava agraciava seus “súditos” com as bênçãos de seu espadim e cetro. Dona Santa só teria deixado de desfilar em duas únicas ocasiões: a morte de seu irmão, quando ainda era jovem, e do marido Vitorino. Adentrando os anos 50, no entanto, Santa, já octogenária, aceitou a oferta do prefeito Pélopidas e passou a desfilar nos carnavais em um jipe. Mesmo assim, não perdeu o controle sobre o seu maracatu até o momento de sua morte. Morte que trazia muita apreensão a todos. Desde os anos 40 encontramos pelas páginas dos jornais recifenses reportagens que prenunciavam a morte da rainha, mas que resistia bravamente. Ao final de 1955, a notícia de sua morte correu a cidade. O prefeito Pelópidas Silveira teria telegrafado à sua família oferecen-

do pêsames e auxílio financeiro para a realização do enterro. Mas quem morrera tinha sido uma princesa. Dona Santa teria rido muito de sua “morte” porque assim sabia como esta seria recebida pela cidade, e não recusou a oferta do prefeito para o enterro da princesa! Apesar de sua grande disposição em viver, Santa preocupava-se com o que aconteceria com o Elefante quando partisse. Não tinha descendentes diretos, e teria decidido que quando a morte a levasse o maracatu também deveria deixar de desfilar. Esta questão é muito controversa na historiografia, e já provocou grandes debates e contendas calorosas sobre as razões da rainha. Há quem diga que sua decisão se apoiaria em antigas tradições africanas, conforme defendeu o jornalista Paulo Viana, que afirmava ser a rainha descendente de antigos reis, e com ela morria um antigo reinado. Mas houve quem quisesse ocupar seu lugar! Sua filha adotiva, Antônia, declarou aos jornais, que continuaria com a tradição. Mas sofreu tamanha oposição daqueles que pensavam que o maracatu também deveria deixar de existir, que efetivamente o Elefante não mais saiu às ruas. Foi para o museu! Muitos estudiosos ficaram terrivelmente preocupados, principalmente os amantes da tradição e do folclore. Morreria o maracatu? Como no início dos anos 60 existiam pouquíssimos grupos em atuação, a morte de Dona Santa colocou em pauta o fim de uma era de antigas tradições na cultura popular. Mas não podemos entender a tradição como imutável, e repetida por aqueles que a fazem sem saber por quê. Tradições estão sempre sendo inventadas e ressignificadas. Para aqueles que fazem “a tradição”, Dona Santa serviu de exemplo de como se pode, apesar de todas as adversidades, manter pujantes os diversos sentidos que a cultura assume em seu fazer, no cotidiano, adaptandose sempre, mantendo-se viva! • Continente abril 2007

55


56

TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Matisse: a arte como um não-saber Matisse introduz em sua práxis o conflito entre disciplina e liberdade, desenho e cor

D

ada a relevância que ganharam determinados movimentos de vanguarda na arte do século 20, habituamo-nos todos a traçar o curso do processo artístico daquele período a partir de algumas referências fundamentais, como a pintura de Paul Cézanne, o Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Dadaísmo, o Suprematismo... Estes movimentos, por suas propostas e obras, determinaram o desdobramento das experiências que desaguaram nas tendências predominantes do século passado. Não obstante, essa leitura, ainda que pertinente, conduz à subestimação ou desconhecimento de outros tantos meandros descritos pela experiência moderna, dos quais derivaram obras de indiscutível relevância, como a de Henri Matisse, por exemplo. Essas considerações me vêm à mente no momento em que releio uma carta do pintor, datada de 14 de fevereiro de 1948 e dirigida a Henry Clifford, então diretor do Museu de Arte da Filadélfia, antes da inauguração de uma grande exposição sua naquele museu. Trata-se de um documento de especial interesse por duas razões, pelo menos: primeiro porque revela a visão que o artista tinha de seu próprio trabalho e, segundo, porque põe sobre a mesa uma questão essencial para a compreensão da experiência do artista moderno, qual seja a contradição entre o domínio técnico e o gesto criador espontâneo. Pode ser que com ela já lidassem, antes, os grandes mestres da pintura, mas acredito que, na época moderna, é que ela se

Continente abril 2007

torna uma questão fundamental. E Matisse a encarna particularmente. A mensagem explícita da carta é a preocupação do artista com a influência “mais ou menos infeliz” que sua pintura poderia ter sobre os jovens pintores que viessem a visitar a referida exposição. “Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral rápida, e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos?” indaga ele, para em seguida tocar no núcleo do problema: “Sempre tentei ocultar meus esforços, sempre desejei que minhas obras tivessem a leveza e a alegria da primavera, que nunca nos permite suspeitar do trabalho que custou”. Pois essa “leveza”, conseguida à custa de enorme disciplina intelectual e domínio técnico, oferecia o risco de levar os jovens artistas a supor que, para fazer uma obra de arte, bastaria deixar a mão correr solta. Talvez não tanto para livrar os jovens de um equívoco, mas também o público e a crítica, Matisse faz questão de referir-se ao trabalho penoso e indispensável que antecede ao desabrochar da obra: “se o artista não soube preparar o seu período de floração, mediante um trabalho que mostra pouca semelhança com o resultado final, não terá muito futuro pela frente”. Talvez nenhum outro pintor tenha vivido tão intensamente o conflito implícito na realização de uma obra que preservasse o frescor da origem sem no entanto perder a força interior que lhe empresta densidade. E isso se deve, se não me equivoco, à história pictórica desse artista que contrariamente a Picasso ou Braque, não se guiou pela


Reprodução

Alegria de Viver, óleo sobre tela, 175 x 241 cm

lição cezanniana e, sim, por mestres de outra vertente impressionista, como Seurat e Signac. E essa linha de desenvolvimento da linguagem pictórica, deixada de lado, é que o conduziu à busca da pintura como expressão puramente cromática e, conseqüentemente, mais sensorial, mais sensual e intuitiva que a de Cézanne e a dos cubistas. Ao substituir a experiência da cor percebida fora do ateliê, ao ar livre, pela alquimia da cor pura baseada na teoria dos contrastes simultâneos (Chevreul), Seurat abre caminho para a exploração da cor como expressão autônoma, o que seria tentado pelos fauves e entre eles por Matisse. Este é um caminho oposto ao de Picasso e Braque que cubificaram as figuras e reduziram a cor de seus quadros a terras e cinzas. Ao descobrir a cor como expressão em si mesma, Matisse introduz em sua práxis o conflito entre disciplina e liberdade, desenho e cor. Por isso mesmo, cita em sua carta a exclamação de ToulouseLautrec: “Finalmente já não sei desenhar”.

A questão implícita nessa frase está no centro da problemática da arte moderna, nascida da rejeição aos princípios acadêmicos, ou seja, da arte como resultado da aplicação de princípios e normas; ela seria, então, o resultado de uma invenção do artista no ato mesmo de pintar, da necessidade de ir mais fundo na busca da expressão essencial. Mas o próprio ato de pintar gera um saber que vai se tornando regra para o pintor e de novo tolhendo-lhe a espontaneidade, a capacidade de ir à fonte original, primeira. Por outro lado, rejeitar todo o saber-fazer pode dar ao espectador do quadro a impressão de facilidade, que é o temor expresso por Matisse em sua carta. A lição fundamental que ele nos passa é a de que, em lugar de macetes e normas, a sabedoria do artista consiste em educar-se a si mesmo “com pureza e sem mentir a si mesmo”. Por igual motivo, Oswald Goeldi, mestre da gravura brasileira, costumava dizer: “Não sei gravar”. • Continente abril 2007


ARTES

Rosângela Rennó é uma das mais importantes artistas contemporâneas brasileiras. Na página ao lado, detalhe da Série Apagamento. Imagem dos livros O Arquivo Universal e Outros Arquivos e Rosângela Rennó – Fotoportátil volume 3, ambos da Editora Cosac Naify

Paulo Barreto / AG. O GLOBO

58


ARTES

A fotografia e a perda do seu referencial Rosângela Rennó aponta o papel ambíguo da fotografia e questiona a fé que as pessoas depositam na imagem Rosemary Gondim

A

fotografia, desde o seu surgimento, estabelece relações com a arte. Seja pela utilização de meios técnicos, como retocar negativos, colocar tintas nas fotografias impressas e superpor negativos, seja por procedimentos mecânicos, como a manipulação e o uso fora de foco das imagens. Como se sabe, este foi inicialmente um mecanismo a partir do qual os fotógrafos tentaram imitar a pintura – desejosos de se estabelecerem como “fotógrafos de arte”. Já no período das vanguardas, os fotógrafos imprimiram mais uma visão subjetiva do mundo. Com respeito à arte contemporânea, no pós-guerra, a relação entre fotografia e arte se apresenta de modo intricado. A produção artística se faz em grande medida marcada pela inserção da fotografia nas suas obras, como linguagem multimídia. No Brasil, na década de 50, a produção fotográfica é levada a uma reflexão do processo fotográfico estabelecido enquanto verdade única. É na figura de José Oiticica Filho que se encontra o rompimento da fotografia convencional, pela criação de mecanismos que articulam a linguagem fotográfica com as artes plásticas. Também o fotógrafo Geraldo de Barros contribuiu para o desaparecimento dessas fronteiras, e nas suas imagens captadas do real usou intervenções criando novas possibilidades de imagens. Sem querer traçar propriamente um panorama da relação entre fotografia e artes plásticas no Brasil, que se manifesta a partir da produção desses dois fotógrafos pioneiros, gostaria de pontuar aqui um importante momento manifestado pelo artista plástico Antônio Dias que, nos anos 70, foi quem primeiro fez uso da linguagem fotográfica em completa interface com as diversas mídias – percebendo, inclusive, os limites dessas linguagens dentro da sua produção. Na década seguinte, pode-se destacar a presença da artista plástica Rosângela Rennó, considerada uma das mais importantes Continente abril 2007

59


Cosac Naify/Divulgação

ARTES

MAMAM/Divulgação

Cerimônia do Adeus, fotografia digital, laminada sobre acrílico, 1997/2003

A obra Imemorial, exposta no MAMAM, em 2006, deve ser concebida como uma instalação

Galeria Vermelho/Divulgação

60

Lagoa da Série Frutos Estranhos, still de vídeo, animação de imagem e som em DVD player portátil, 2006

Continente abril 2007

artistas da arte contemporânea brasileira, cuja trajetória se define particularmente pela presença da fotografia, num processo ambíguo de rupturas das tradicionais fronteiras das diversas linguagens artísticas. A Série Cerimônia do Adeus, formada de negativos adquiridos pela artista em visita a Cuba, é caracterizada por uma seqüência de fotografias tradicionais de casamentos, expostas num mesmo espaço. No caso da obra As Afinidades Eletivas, temos a composição de imagens de dois casais dentro de um recipiente com água e óleo mineral. À medida que nos deslocamos, girando em torno do objeto, os casais mudam de posição, dando a pretensão do rompimento, apesar da referência à escolha afim. O que percebemos nessas duas obras é a transferência do ritual do casamento para uma outra dimensão. Outros dois relevantes trabalhos na produção da artista são as obras Vulgo e Imemorial, trabalhos pesquisados em arquivos, respectivamente, da Penitenciária do Estado de São Paulo e do Arquivo da Empresa Nova Cap, responsável pela construção de Brasília. Em 1995, a artista propõe à Academia Penitenciária do Estado de São Paulo restaurar e organizar os quinze mil negativos de vidros, que nos remetem às décadas de 1920 a 1940, assegurando a possibilidade de utilizá-los em projetos de intervenção. Nesse sentido, a artista se apropria de algumas imagens e produz a obra Vulgo, que se ramifica numa outra obra chamada Vulgo/texto: uma mídia de DVD que projeta apelidos de ex-presidiários. Também a obra Imemorial, que parece remeter a um processo de documentação histórica, visto se tratar de fotos de operários na construção de Brasília, a rigor deverá ser olhada e concebida como uma instalação, formada pela manipulação de 40 retratos daqueles trabalhadores. A Série Arquivo Universal é um recorte de matérias cotidianas coletadas pela artista nos diversos jornais, notícias que, geralmente, remetem à fotografia, um texto-imagem, cuja intenção se faz dentro da construção de um outro processo imagético. Digno de referência, nessa série, é a instalação Hipocampo, dada a maneira como é exposta, como também pela possibilidade de que o espectador expresse sua própria percepção. A Hipocampo é produzida dentro de uma sala vazia e sem iluminação, onde o público entra e se depara com a escuridão da sala; após alguns minutos, uma luz forte e efêmera se acende, causando uma confusão na retina do visitante, quer dizer, uma breve cegueira. De repente a luz é apagada e aparecem textos nas paredes, pintados com tinta fosforescente verde. Aos poucos os textos vão


ARTES perdendo a luminosidade, cujo efeito gera dificuldade para com a leitura completa. A certa altura, todo o processo se reinicia: a sala escura e a luz forte, bem como o aparecimento dos textos na parede. E tudo nos leva a refletir sobre o processo fotográfico, cujo termo significa escrita com a luz. A Hipocampo perfaz seu caminho elaborando uma maneira de recorrermos a imagens através dos textos, que necessariamente vão nos remeter a imagens. Rennó se desapega ao que é instituído enquanto o que é texto e o que é imagem, acreditando na possibilidade de estabelecer o discurso da metalinguagem, fazendo transparecer um único sentido: a obra. Neste caso, especificamente o da Hipocampo, o processo diz respeito a um rompimento entre as fronteiras do verbal e não-verbal, respondendo à capacidade que a sociedade contemporânea apresenta num processo de transformação e de mapeamento da banalidade do cotidiano. Fotos: Rosemary Gondim

A opção de Rennó em retrabalhar textos-imagens já existentes diz respeito ao fato de sentir o processo de produção das imagens na sociedade contemporânea, algo marcado por profunda saturação. Ela procura estabelecer a relação da sociedade com as imagens, como uma forma de vício imagético que carregamos. Com efeito, a artista procura estruturar seus trabalhos considerando esses processos e, deste ponto, aposta na reconstrução de uma imagem que nos faça ver ou rever alguns pontos despercebidos ou imperceptíveis na esfera do nosso cotidiano. Entretanto, a recorrência a textos que aludem à formação de imagens no nosso consciente, inverte a possível ordem das coisas por nós estabelecidas.

De cima para baixo: As Afinidades Eletivas, duas fotografias em película ortocromática, óleo mineral, mármore, alumínio e vidro; e na Série Vulgo, trabalho da artista com imagens da Penitenciária do Estado de São Paulo

Continente abril 2007

61


ARTES Ding Musa/Divulgação

62

Ricoh 500 – Projeto A Última Foto, fotografia em papel de prata/gelatina e câmera fotográfica Ricoh 500, 2006

Ao estabelecer essa relação entre texto e imagem, dentro de um princípio de busca pela possibilidade do público perceber as múltiplas leituras no contexto em que circula o seu trabalho, como também, ao caracterizar a limitação do processo fotográfico associado ao mecanismo de referenciação, a artista se manifesta, nessa obra, enquanto uma “intertextualidade visual” (termo usado por ela) que se transfigura na apresentação de um terceiro elemento, o da criação/leitura do público, exercido através da obra. A completude desse processo se manifesta dentro do parâmetro da percepção a que o receptor é levado, reconhece-se na obra, colocando-se na posição do anônimo. Rennó questiona o papel assumido pela fotografia de caráter documental, fazendo uso do recurso da amnésia/anamnese através da exploração do anonimato nas imagens fotográficas – isto pode ser identificado pela esfera do não-esquecimento, pela presença da representação do submundo na sociedade e pela preocupação com o outro. Por fim, pela relação de sua obra com a composição do binômio vida e morte. Percebe-se que a dimensão que a artista estabelece para a fotografia na arte contemporânea se manifesta enquanto caminhos pautados tanto pela fragmentação quanto pela desconstrução e descontextualização, e também pela negação do referencial imagético presente na sua obra. • Continente abril 2007


Imagens: Arnaldo Pappalardo/Reprodução

ARTES

Papel radical

M

Livro registra a rigorosa e exigente obra em gravura da artista plástica paulista Elisa Bracher Marco Polo

ais conhecida por suas esculturas, de grandes proporções e aspecto maciço (são obras quase sempre de caráter monumental, em troncos de árvores ou blocos de mármore), Elisa Bracher também desenvolve um trabalho em gravura tão importante quanto, até porque sua gravura se relaciona, ou dialoga, com a escultura e, inclusive, com a arquitetura. A Série Maneira Branca, por exemplo, tem sido apresentada em exposição com as grandes gravuras tomando as paredes do chão ao teto e alinhadas, lado a lado, obrigando ao espectador uma verdadeira “leitura” por partes, embora contínua, e, particularizada, embora, ao mesmo tempo, apreciada em sua totalidade. E, neste fazer o espectador aproximar-se ou tomar perspectiva à distância, parar ou se mover para os lados, a artista mostra uma das exigências de sua obra: uma função ativa por parte de quem a quer fruir.

Exposição Maneira Branca, na Estação Pinacoteca (São Paulo, 2006)

Continente abril 2007

63


64

ARTES

À esquerda, monotipia em chumbo (1997). Acima, escultura monumental (Palácio da Alvorada, Brasília, 2002). Abaixo, detalhe da exposição na Galeria André Millan – em primeiro plano, escultura em cobre; ao fundo, gravura em metal (São Paulo, 1993)

A artista paulistana (nasceu em 1965) vem firmando uma trajetória sólida no cenário das artes plásticas da contemporaneidade, tendo inclusive vivido um embate com sua cidade, ao instalar uma de suas esculturas no Largo do Arouche. Genius Loci – o Espírito do Lugar, uma estrutura inclinada com toros de madeira de cinco metros de altura, provocou debates – de tal forma acirrados – que terminou tendo que ser retirada da praça pública. O que mostra até que ponto a arte pode ser provocativa. A radicalidade de Elisa Bracher no envolvimento com seu trabalho pode ser exemplificada, ainda, no seu dia-adia quando, utilizando maçarico e máscara de soldador, cercada por um aparato de proporções industriais, parte para a confecção de suas grandes gravuras e esculturas. Ou, ainda, pelo seu tão radical envolvimento com as técnicas que terminou custando-lhe uma intoxicação com as substâncias químicas utilizadas na gravura em metal. A partir de sua exposição Maneira Branca, feita na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, também de São Paulo, foi elaborado o álbum que aborda a sua produção gráfica. Anteriormente já tinha sido lançado o livro Madeira sobre Madeira, que enfoca a sua produção escultórica. A crítica de arte Sônia Salzstein chama a atenção para um paradoxo: cada vez mais as obras produzidas por Elisa Bracher tendem ao lacônico, ao resumido, ao contido, em contraste com o envolvimento corporal intenso e o trabalho extenuante que exigiram para sua produção. É como se a artista compactasse, no mínimo, o máximo, criando uma espécie de bomba-relógio silenciosa, pronta a nos inundar, a qualquer momento, com sua força. • Continente abril 2007

Maneira Branca – Gravuras de Elisa Bracher, Lourenzo Mammi, Sônia Salzstein e José Bento Ferreira, Cosac Naify/Pinacoteca do Estado de São Paulo, 128 páginas, R$ 48,00.


ARTES

65

Gravura em metal (detalhe)


JCImagem

REGISTRO

Divulgação

66

Extremos do “não”: de Arthur Rimbaud a Byron Sarinho Gestos radicais, a negação da poesia por Rimbaud e a negação da própria vida por Byron Sarinho, se levados à ficção, poderiam ser considerados inverossímeis Fernando Monteiro


REGISTRO

O

que tem a ver um livro recém-lançado sobre o “exílio” de um grande poeta – Rimbaud na África: Os Últimos Anos de um Poeta no Exílio (1880 – 1891), de Charles Nicholl (Editora Nova Fronteira) – com o ato final da vida de um político pernambucano, chocante para o Recife, há cerca de cinco anos? Aparentemente, nada. Por debaixo da superfície das coisas, talvez tudo. Arthur Rimbaud, um dia, sumiu da França onde nasceu (em Charleville, no norte da França), numa manhã de outubro de 1854. Seu pai, Frédéric, era capitão do exército, e a mãe, Vitalie, filha de fazendeiros típicos daqueles dos romances de Jean Giono, na parte do país de “atmosferas druídas”, panteístas, pagãs. O capitão Rimbaud não estava presente quando Jean-Arthur veio ao mundo – para deixar o enigma da sua deserção da poesia (que ele ajudou a renovar). Essa ausência se faria permanente, quando do abandono da família – em 1860 – pelo militar que o filho seguiria emulando, nas várias fugas da sua vida de menino da rue Bourbon, num dos bairros mais pobres da cidade. O rapaz meio selvagem, em que Jean-Nicolas Arthur Rimbaud se tornou, aparentava procurar, mesmo, alguma coisa que parecia não estar em nenhum lugar, dos salões dourados às sarjetas da pátria burguesa. Não precisaria de um analista para lhe dizer que vivia sob a sombra do sumiço de um pai errante, com passagens pela África da biografia do filho (o capitão Frédéric serviu como soldado na Argélia, e, depois, chegou a ser chefe do Bureau Arab de Sebdou, próximo de Oran). Já vou chegar ao Byron pernambucano – mas ainda cabe relembrar os fatos distantes que tornaram o poeta de O Barco Ébrio um gênio também deambulatório, “encrenqueiro”, e, nos últimos anos, tão diferente de si mesmo quanto poderia ser um pequeno-burguês insípido que invertesse a ordem do exílio e viesse a se tornar um criador liberto de fronteiras, de volta à França bêbada da estreiteza dos Bourbons. Na província, ainda era pior. Nela, Rimbaud viveu a infância num quarto triste, “cheirando a mofo”. Podemos vê-lo no auto-retrato dos versos: “E no Verão, abatido, ar estúpido, o menino/ Teimava em se trancar no frescor das latrinas/ Para pensar em paz, arejando as narinas”. Jean-Arthur nunca se deu bem com a camponesa abandonada que foi a sua mãe. Ele a desenhou, certa vez, com a cara cavalarmente alongada, os cabelos puxados para trás sob um lenço meio sujo e o vestido remendado e fechado (até o pescoço) como a alma. Tal croquis diz tudo da secura entre mãe e filho, da carência de amor entre eles – sendo que a criança é sempre quem aprende, infelizmente, a falta dos sentimentos, no deserto das casas. Anos depois, será para essa mãe, entretanto, que ele irá escrever a maioria das cartas remetidas da África – quando já não parece consigo mesmo. Tornou-se um outro e esse outro dá mostras de aceitar, afinal, La Mother (como ele a chamava) “a recender azedo/... igual a fruto encardido”.

O livro Rimbaud na África investiga as motivações que levaram o poeta a se exilar

Continente abril 2007

67


REGISTRO

68

O rapaz meio selvagem, em que Arthur Rimbaud se tornou, aparentava procurar, mesmo, alguma coisa que parecia não estar em nenhum lugar, dos salões dourados às sarjetas da pátria burguesa

Nessa altura – depois de ter sido o cometa da anunciação da Nova Poesia – também Jean-Arthur Rimbaud se transformou, a partir do porto de Aden, numa estrela igualmente encardida ou, melhor dizendo, irreconhecível. O jovem poeta de cabelos pintados, por quem Paul Verlaine se apaixonou, não confere o remetente das cartas para Charleville: um homem de cabeça quase raspada, debaixo do sol do estranhamento. É o “estrangeiro”, de Camus, antecipado no tempo: funcionário de entrepostos e, depois, pequeno negociante por conta própria, muito próximo do ideal que La Mother acalentara para seus dois filhos, seguindo o modelo patriarcal das Ardenas voltadas para a escrituração de safras, rendas e lucros de centavos. O prejuízo de ter uma alma (e a ferida exposta da poesia) está, então, curado nesse Jean-Arthur da África, que escreve do interior da selva de cada um, para pedir até que a irmã lhe procure esposa na província natal, “mulher honesta e sólida trabalhadora” que valha o que coma e que vista com modéstia, fechado até o pescoço (mais um pescoço) azedo e encardido... Antes de morrer, ainda jovem (em Marselha, no dia 10 de novembro de 1891), Jean-Nicolas Arthur Rimbaud de certo modo já estava morto – para o mundo do qual havia desertado com um “não” de repulsa (ele que havia escrito, aos 16 anos: “Querem cânticos negros, danças de Huris? Querem que eu desapareça, que mergulhe em demanda do anel? Querem? Farei ouro, remédios”)... E Byron – o pernambucano, não o poeta do british romanticism –, onde entra, nesta história? A CARTA DE BYRON – Byron Sarinho não construiu nenhuma obra apaixonadamente pensada, como Rimbaud antes de sumir nos calores africanos, porém deveria ser citado em qualquer estudo sobre suicidas sem hesitação. A obra que ele deixou está na preparação meticulosa do seu fim. Ou seja, é inusitada, mesmo entre os casos mais determinados de que se tem notícia, no rol desesperado daqueles que disseram um “não” à vida, um inconformado “nunca” ao envelhecimento e um definitivo “jamais” à decadência física e outros males da velhice que o poeta de Charleville não alcançou, vítima de uma ferida na perna cuja evolução para a gangrena o impediu de dar o passo final de volta para a província, na planície de funcionários, comerciantes e fazendeiros sem história. Aqui, no Recife, no dia 12 de novembro de 2002, o Byron da política local suicidouse aos 60 anos, deixando uma carta de despedida que é um dos mais impressionantes documentos saídos da vida (e não da literatura):

Divulgação

“Peço mil perdões a papai, às filhotas Ciça e Vic, às irmãs e demais parentes, amigos/as, companheiros/as, colegas. Sei que estou lhes causando perplexidade, aflição, dores, saudades. Mil perdões, repito. Mas tenho certeza de que, superado este choque de agora, todos compreenderão que fiz o melhor para vocês e para mim. Um apelo: não procurem chifre em cabeça de cavalo, não há, no meu gesto, decepção, drama, loucura ou tragédia. Não existem problemas ou fatores específicos, em qualquer campo – profissional, afetivo, político, financeiro, de saúde etc. Não estou agindo movido por qualquer acontecimento súbito ou isolado. Trata-se, muito pelo contrário, do desfecho lógico de um longo processo, de uma atitude racional, tranqüilamente amadurecida e planejada.

Continente abril 2007


REGISTRO Minha motivação é somente uma, e sobre ela já venho lhes falando/escrevendo há muito tempo: não quero, não devo e nem posso ficar (mais) velho. Não pela idade em si, mas pelo inevitável cortejo de privações, desconforto e sofrimento que ela traz particularmente para alguém como eu, que vive (e ainda vivo) sem suportar limites e restrições. Vejam, por favor, as coisas por outro ângulo. Pensem no que todos estamos evitando: um velho pobretão, irritadiço e nostálgico da juventude. Na melhor hipótese, cheio de achaques; na pior, dependente ou até inválido. Vade retro! Este transtorno de agora, acreditem, é bem menor e mais passageiro do que o monumental estorvo que estou lhes poupando. A verdade é que nunca me preparei para ser idoso. E se minha vida ainda está bem razoável – para um sessentão, óbvio – por que tenho que esperar o pior, para mim e para as pessoas queridas? A saída tem que ser agora, antes que eu ultrapasse a marca dos 60 anos. Pensemos positivo, então. E aceitem um saudoso adeus, milhões de beijos do Byron Sarinho

Antes de se matar com um tiro, Sarinho deixou todas as contas pagas, o salário do seus empregados devidamente antecipado, e chegou ao cúmulo do detalhe de forrar o chão da sala do apartamento onde morava sozinho, naquele canto da poltrona onde se sentou, pela última vez, com a arma pronta e lubrificada (não queria um mar de sangue espalhado, quando fosse encontrado olhando para o vazio do “céu” dos marxistas sinceros). O choque que causou sua determinação de se matar – saudável, no auge da carreira política e sem o “motivo”, tradicional, de crises e desesperos – fez o Recife mergulhar em cismas, naquele novembro de flamboyants em flor nas margens do rio que corta a cidade – como o rio estranho da vida, na sua corrente. Um “personagem” como Rimbaud a se condenar, radicalmente, ao silêncio – na anti-poesia do exílio –, seria tido talvez como exagerado nas tintas de um escritor de ficção. E um Byron brasileiro – no seu ato final refletido, decidido e consumado com aterradora firmeza – nos interroga ainda: qual não extremo ainda falta sair da realidade para cair no colo da nossa atônita surpresa? •

Jornal do Commercio do dia 13 de novembro de 2002

PS.: Se, mesmo com os pouquíssimos bens que tenho, for imprescindível um inventariante, proponho que seja Sônia, minha irmã e comadre.

Continente abril 2007

69


SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Reprodução

70

Astúcia e sabedoria dos provérbios populares (final) "O destino das nações depende da maneira como elas se alimentam" – Brillat Savarin (A Fisiologia do Gosto)


SABORES PERNAMBUCANOS

N

a edição anterior, demos informações sobre alguns provérbios. Para melhor compreensão eles foram divididos em quatro grandes grupos: o dos que requerem informações culinárias; o dos que necessitam de explicações complementares; os politicamente incorretos; e, por fim, aqueles que, sem dados históricos, perdem seus sentidos originais. Falaremos agora dos dois últimos grupos. Provérbios politicamente incorretos: A cultura dos povos vai mudando com o tempo. A deusaOportunidade, na Grécia, era uma mulher belíssima, com cabelos cobrindo o rosto e cabeça raspada atrás. Só se via seu rosto ao cruzar com ela. E o homem teria que segurá-la, nesse breve momento. Que, se ela passasse, já não a poderia prender pelo cabelo. Num tempo, claro, em que homens prendiam mulheres pelo cabelo. Nesses provérbios que se seguem, homens e mulheres são retratados como objetos: “Homem é como biscoito: vai um e chegam oito” – A palavra biscoito vem do latim bis (duas vezes) e coctus (cozido), e surgiu da necessidade de conservar o pão por mais tempo nas grandes travessias. Na França é biscuit – lembrando que assim chamam também objetos feitos da massa de porcelana cozida. O provérbio é desse tempo. “Mulher é como bife: quanto mais a gente bate mais ela fica macia” – Porque o bife, batido no batedor, tem quebradas as fibras e fica muito mais macio. “Mulher é como bolacha que em toda a parte se acha” – Bolacha é um tipo mais popular de biscoito. Mais barato, anda por todas as bodegas. Provérbios históricos: Por fim, temos provérbios que fazem sentido apenas em seus contextos históricos. Nesses, a ausência de informações leva a que se perca a riqueza por trás de seu sentido. Aqui vão alguns exemplos: “A cabra puxa sempre para a serra” – Cabra, bom lembrar, é a fêmea do bode. Chegaram ao Brasil com o colonizador português. Deram-se bem, sobretudo no Nordeste, por serem pouco exigentes quanto à alimentação e se adaptarem ao clima. E, em busca de alimento, conseguem mesmo subir em qualquer elevação (serra). “A fruta proibida é a mais apetecida” – Já ensinava a Bíblia:”Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto agradável, e de frutos bons para comer; e a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal... disse: ‘podes comer do fruto de todas as árvores

do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente’ ”. (Gênesis 2, 9-17). Eva (em hebraico, costela) não resiste “ao fruto da árvore que era bom para comer, de agradável aspecto e muito apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente”. (Gênesis 3, 6.) Essa árvore, representada pela macieira, é a do conhecimento. O homem rejeitou a fé, quando quis conhecer suas origens. “A melhor espiga é para o pior porco” – Quando os portugueses desembarcaram aqui, não deram nenhuma importância ao nosso milho. Tanto foi assim que destinavam seu uso, apenas, a animais e escravos. Foram esses escravos que, usando criatividade, acabaram transformando esse milho em iguarias preciosas – angu, pamonha, canjica, mungunzá, cuscuz. O provérbio remonta àqueles primeiros tempos. “A mulher e o vinho tiram o homem de seu juízo” – O mais antigo porre de vinho que se tem registro foi o de Noé – quando deixou a arca, após 40 dias de dilúvio. “Águas passadas não movem moinho” – Não moinhos de vento, como os descritos por Cervantes em D. Quixote. Aqui são “moinhos de água”, que giram na força das correntes dos rios para fazer energia ou amassar farinha. “Ainda que o galo não cante, a manhã sempre rompe” – Galo canta de madrugada, todos sabem disso. O que nem todos sabem é que certo Caio Canio conseguiu que o Senado romano aprovasse lei proibindo que cantassem galos barulhentos, que o acordavam de madrugada. Esses galos passaram, então, a ser vigiados por pullarios. Com os criadores logo descobrindo que, castrados, paravam de cantar. Capões passaram, então, a ser iguaria muito apreciada. “Canja e caldo de galinha não fazem mal a ninguém” – Canja de galinha chegou aqui com o colonizador português. A receita vem de Goa, chamada por lá de kanji. Dom Pedro II era um grande apreciador. Tomava todos os dias. Inclusive no camarote imperial, quando ia ao teatro. A cena foi assim descrita por Raimundo Magalhães Junior (Artur de Azevedo e sua Época – 1953) – “Vinham elencos da Europa e o imperador Pedro II prestigiava as representações sem dormir ou bocejar, fazendo questão apenas de tomar uma canja quente entre o segundo e o terceiro ato, que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que sua majestade terminara a canjinha”. E o que era bom para o imperador, claro, em tese, também era bom para os seus súditos.

Continente abril 2007

71


72

SABORES PERNAMBUCANOS

“Coco velho é que dá azeite” – Navegadores portugueses, “em perigos e guerras sublimadas”, acabaram “passando além da Taprobana” – como ensina o canto primeiro d’Os Lusíadas (“As armas e os barões assinalados/ Que, da Ocidental praia lusitana,/ Por mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ E em perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre gente remota edificaram/ Novo Reino, que tanto sublimaram...”). Essa Taprobana era o limite do mundo – a ilha de Ceilão, ao sul do continente asiático, hoje convertida em país, o Sri Lanka. Lá, nessa ilha, foi encontrado pelos navegadores um fruto verdadeiramente milagroso. Que além de carne branca e saborosa, própria para matar a fome dos homens, tinha em seu interior também água – o coco. E, sobretudo, podia ser facilmente transportado nas longas viagens. A partir de então ganhou o mundo. É do coco maduro que se faz o leite de coco – rico em gordura, como o azeite. “Com açúcar e com mel até as pedras sabem bem” – Antes de conhecer o açúcar, nossos índios usavam mel de abelha como gulodice ou na preparação de bebidas fermentadas. Com a chegada dos portugueses, foi sendo substituído pelo açúcar. “Lua-de-mel” vem da tradição asiática, quando recém-casados deveriam tomar, diariamente, durante uma lua (aproximadamente 30 dias), bebida de sustança feita com mel de abelha. Mas é preciso cuidado nos excessos. Que Átila, por exemplo, celebrando seu último casamento (453 a. C.), bebeu tanto mel, que morreu encharcado. “De pequenino é que se torce o pepino” – Pepino veio da Índia. Há registros de seu consumo, no Egito e na Palestina, há mais de três mil anos. É citado no Velho Testamento (Número 11, 5; Isaías 1,8). Indigesto, se consumido descascado, melhor mastigar bem com casca. Na cultura popular, pepino é problema grande “Deus me dê pai e mãe na vida, e em casa, trigo e farinha” – O trigo só chegou ao Brasil com o colonizador. Enquanto a farinha de mandioca (farinha de pau) estava presente em todas as refeições indígenas. “Na terra não há pão, supre-se este defeito com a farinha de pau, que é o pó de uma raiz sativa, a que chamam de mandioca”, dizia Francisco da Fonseca Henriques em Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde (1731). O provérbio fala da importância do pão, na cultura. “Em tempo nevado o alho vale um cavalo” – Cavalos, por serem valiosos, foram durante séculos usados como moeda de troca. No Brasil colônia, por exemplo, um deles valia 7 escravos (e um escravo, vinte e cinco manilhas de latão).

Continente abril 2007

“Galinha que canta é que é a dona dos ovos” – A galinha chegou ao Brasil com Cabral. Os índios a viram, pela primeira vez, em 24 de abril de 1500. “Já de noite”, segundo Caminha. Nunca fez sucesso, entre eles. Nem seus ovos, que continuaram preferindo os de jacaré. O mesmo com os escravos, que depois aqui chegaram. Galinhas eram criadas pela gente simples da África, só para vender aos ricos. E ovos eram, por lá, apenas remédio. Por fim, só para lembrar, galinha canta, mesmo, quando põe os ovos. “Garapa não azeda” – Nas senzalas os escravos preparavam a garapa (mel de engenho misturado com água). Essa garapa com o tempo fermentava – a isso chamavam “garapa azeda”. A destilação dessa garapa azeda em alambiques de barro deu origem à cachaça. A garapa do provérbio é aquela que não é aguardente ainda. “Peru quando faz roda quer minhoca” – Foi Colombo, nos registros de sua quarta viagem às Américas, quem primeiro deu notícia dessa ave domesticada pelos astecas a que chamavam huexolotl. Os primeiros colonizadores ingleses chegaram aos Estados Unidos só em 1620, a bordo do Mayflower. Famintos e cansados, foram recebidos por nativos que lhes ofereceram esses perus, acompanhados com milho. Vem daí o Thanksgiving Day (dia de ação de graças). Depois ganhou o mundo. E, em todos os lugares, gostam sempre de minhoca. “Sopa fervida alarga a vida” – No Renascimento, o Sr. Boulanger (em francês, literalmente, “padeiro”), embora na profissão fosse “vendedor de caldos” (marchand de bouillon), inventou uma sopa fortificante, restauradora, feita de carne de boi, carneiro e legumes, para ir à mesa antes do jantar, que denominou restaurant. Afixada, em seu estabelecimento, a placa dizia: “Boulanger vende restaurantes divinos, vinde a mim, vocês que têm o estômago em penúria, eu os restaurarei”. Daí veio a própria origem da palavra restaurante. “Transforme sempre limão em limonada” – Limão (Citrus limonum Risso) vem da Índia. Limões (limah) foram levados à Europa pelos árabes – que os consideravam fortificantes e afrodisíacos. Chegou ao Brasil no séc. 16. Mas começaram a ser cultivados, em larga escala, na Europa e nas Américas, só no séc 19. O provérbio ensina que, mesmo sendo a fruta azeda, quando misturada com água e açúcar, fica saborosa. Como a própria vida. “Uvas, pão e queijo, sabem a beijo” – Uva e pão andam juntos desde a mais remota antiguidade. O pão simboliza, na Eucaristia, o próprio corpo do Cristo. E a uva, transformada em vinho, o seu sangue. O provérbio deveria parar por aí. Que beijo e queijo, no caso, são só rima. Não são solução. •


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Novas curiosidades insólitas

1.

Já foi marcado o XXIII Congresso dos Patrulheiros Literários. Por motivos solertes, será em lugar ignorado, em data só do conhecimento dos participantes, os quais comparecerão às sessões ( sempre na calada da noite) devidamente encapuzados. 2.Quem afirma, em caráter definitivo, é o Instituto de Ciências Eólicas do Baixo Tirol :a cidade de Lábrea, na divisa do Amazonas com o Acre, situa-se exatamente no ponto em que o vento dá a volta. 3.É hábito em certa tribo de esquimós da Alta Groenlândia aproveitar as duas horas do ano em que o sol aparece para praticar os mais diversos esportes de verão. 4.Não se fala em outra coisa até hoje na Baixa Transilvânia. Em janeiro de 1925, o professor Brilvwrometz Kaskovolici – da universidade local –, ao escutar a mulher se queixando de que ele passava mais tempo no laboratório do que em casa, não respondeu nada, limitandose a escrever algumas palavras num pedaço de papel, que entregou à consorte com um sorriso irônico. Escreveu no papel: Eslewagda unf Zoterich Kronoz. Quando a mulher lhe indagou o significado daquilo, o professor Brilvwrometz, mantendo o mesmo sorriso irônico, nada respondeu – e voltou ao trabalho. Somente anos mais tarde, quando o professor já havia morrido, é que um membro da Academia de Línguas Ocultas e Parafrásicas da Cracóvia conseguiu encontrar o significado exato da mensagem do professor baixo-transilvânico. Em tradução livre, as misteriosas palavras diziam isto: “Detesto sorvete de couve-flor” – o que tornou o enigma ainda mais enigmático. • Continente abril 2007

73


74

MÚSICA

A música teatral do maestro Forró Continente abril 2007


Thiago Suruagy/Divulgação

MÚSICA 75

U

O maestro Forró, criador da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, ocupa o centro da polêmica sobre ortodoxia e heterodoxia nos ritmos tradicionais de Pernambuco, ao criar um som "que interage com tudo" José Teles

m maestro que rege em mangas de camisa (e camisas geralmente de cores berrantes), bermudas, e tênis. Costuma usar espalhafatosos óculos escuros e gesticula freneticamente o tempo inteiro. Como se não fosse o suficiente, ainda é conhecido como Forró. O nome de batismo: Francisco Amâncio da Silva, filho de José Amâncio da Silva, ou Zé Amâncio do Coco, autônomo (foi, entre outras coisas, doceiro, e borracheiro) , e de dona Maria da Penha, professora. Aos 31 anos, o maestro Forró dirige o mais polêmico grupo musical surgido em Pernambuco nos últimos anos: a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, bairro pobre da Zona Norte do Recife. Quase tão comentada quanto a música e a maneira histriônica do maestro à frente da orquestra: “Acho que tem a ver com a minha experiência de ator. Em 1997 fui convidado para fazer sonoplastia na peça Viva o Cordão Encarnado, ainda com Luis Marinho vivo. E continuei fazendo música e teatro. Em São José do Rio Preto participei de uma oficina de ator, e quase continuo atuando”, explica ele. A música, porém, foi mais forte. E a música que maestro Forró faz com a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério é irrotulável, deliciosamente permissiva. Um aglomerado dos mais variados gêneros, estilos, ritmos regionais, enxertados com o que vier na cabeça do maestro. De um coral num frevo-de-rua a um blues num frevo-de-bloco; do maracatu ao samba de gafieira. Mas não se trata aqui de iconoclastia gratuita. Ele é um desses raros iconoclastas que sabem construir estátuas, parafraseando uma frase feliz do falecido jornalista Paulo Francis. A Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, montada por ele, atira para todo os lados, mas sempre acertando o alvo. Se diversidade é o termo mais usado quando se fala do cenário cultural de Pernambuco, o maestro Forró é a própria diversidade. Uma diversidade que não é fruto de estudos, pesquisa. Parte da cultura popular que ele faz jorrar pela sua orquestra corre no sangue, é herança do pai. A outra parte lhe entrou pelos poros, assimilada desde criança: “Eu tive a sorte de crescer vendo todas estas manifestações na minha rua – reisado, macumba, caboclinho da Tribo Canindé, o maracatu Leão Coroado, Continente abril 2007


76

MÚSICA de seu Luís de França, escola de samba –, meu pai levava repentistas lá pra casa, fazia muitas cantorias de pé-de-parede, com cantadores feito Zé Pretinho. Meu pai também fazia forró, lembro que acompanhava ele com uns cinco, seis anos, tocando zabumba. Recordo também de uns sanfoneiros muitos bons, Manga Rosa, Galego da Sanfona, Pedro Coruja”. Forró repassa os sons que estão no cerne da música que faz hoje, sem romantismo, sem dourar a pílula. Não esconde que à medida que entrava na adolescência foi afastando-se dessas músicas que escutava na Bomba do Hemetério: “Durante um certo tempo tive vergonha de ser filho do meu pai, porque o forró, o coco e a embolada eram coisa de matuto analfabeto, feito ele era. Discos que as rádios só tocavam de madrugada pra peãozada”, revela o maestro, cujo apelido veio daquela música feita e consumida por cidadãos de segunda classe, mas que Zé Amâncio do Coco gostava: “Meu pai vivia tocando LP de forró em casa e eu escutava aquilo a pulso. Quando comecei na escola de música, faziam gozação por eu cantar uns forrós que ninguém sabia. Sabia sucessos desses forrozeiros fora de moda, na época, Azulão, Abdias, Jacinto Silva, e acabei ficando conhecido por Forró”. Em 1987, ele entrou na escola que é, valendo até o lugarcomum, um celeiro para a música instrumental do Estado, o Centro Pernambucano de Criatividade Musical, localizado na rua da Aurora, na Boa Vista. É ali que jovens, geralmente da periferia, recebem um aprendizado que acaba como meio de vida: “Hoje sustento uma família com cinco pessoas, apenas como músico”, atesta Forró. Do Centro de Criatividade Musical saiu grande parte da orquestra do maestro Spok (incluindo o próprio Spok). Maestro Forró não apenas se formou no CPCM (concluiu em 1994), fez da música seu ofício e decidiu ensinar. Deu aulas no próprio Centro de Criatividade e na Escola de Música Dom Vital, em Casa Amarela, até que resolveu fundar seu centro de criatividade particular, valendo-se da sala-de-estar da casa dos pais na rua Pastor Benoby, no antigo Córrego do Cotó, na Bomba do Hemetério.

COM A BOCA NO TROMPETE

A mistura de músicas feita pelo pessoal do mangue foi espetacular. Mas eles, como músicos, são fracos tecnicamente. Spok ficou muito formal, e quem não entender o que a orquestra dele faz, vai acabar achando que o jazz é a origem do frevo. Durante um certo tempo tive vergonha de ser filho do meu pai, porque o forró, o coco e a embolada eram coisas de matuto analfabeto, feito ele era. Quando Raul Moraes morreu, Edgard Moraes fez umas letras saudosistas; com o tempo, isto ficou coisa de velho, bloco virou coisa de branco.

u

go S

Thia

Continente abril 2007

ção

ulga

/Div

y ruag

Maracatu e manguebeat – A trajetória de Forró, obviamente, não poderia ser contada assim tão linear, de acordes perfeitos, sem acidentes na partitura. Em 1993, ele era um dos integrantes do Maracatu Nação Pernambuco (esteve com o grupo na edição inaugural do Abril pro Rock, naquele ano) e sentiu o impacto do maracatu de uma tonelada de Chico Science & Nação Zumbi, em especial, e do manguebeat em geral: “Chico (Science) ia todo sábado ao ensaio do Nação Pernambuco, no Mercado Eufrásio Barbosa (Olinda). Na minha opinião, ele teve influência de Bernardo, o principal vocalista do Nação. Tenho minhas restrições a algumas coisas do Nação Pernambuco, mas foi o grupo que abriu as portas para o maracatu virar o que é hoje”, defende.


Thiago Suruagy/Divulgação

Jovens da Bomba do Hemetério não têm preocupação em se manter fiéis às raízes: eles próprios são as raízes

Maestro Forró tocava trompete e assinava os arranjos do Nação Pernambuco. Com o grupo, viajou pela primeira vez ao exterior, conheceu os EUA e Europa e deduziu que não havia fronteiras culturais. Suas palavras: “Comecei a notar que a música estava indo para uma interação de tudo com tudo”. E mais do que isso, passou a valorizar sua própria aldeia, reconciliou-se com seu passado musical: “Descobri a partir dessas viagens que a Bomba era pequena, mas dona de uma riqueza muito grande”, diz Forró relembrando experiências que o ajudaram a rever conceitos. Uma das que mais o influenciaram foi um enterro em Nova Orleans, nos Estados Unidos: “Aí passou aquele cortejo, lento, uma orquestra de negros tocando uma música triste, bonita. Isto na ida. Na volta, eles vinham tocando um negócio bem rápido, alegre, muito semelhante ao frevo. Então fui formulando esta minha idéia. O sapateado tem tudo a ver com o passo, as fanfarras da Macedônia parecem com o frevo. Estava na Turquia, com o Nação Pernambuco, quando, ao meio-dia, um cara começa a cantar uma melodia que era mesmo que um aboio. Quem sabe se Luiz Gonzaga, lá no sertão, quando era menino, não se influenciou por algum turco, caixeiro-viajante, que cantava daquele jeito?”.

O contato de Forró com a turma do manguebeat nunca foi além do profissional. Com Chico Science e Nação Zumbi ele conta que chegou a ensaiar para um show em Maceió, que não aconteceu. Com a Mundo Livre S/A ele diz que participou tocando flugel na gravação de “Meu esquema” (do álbum Carnaval na Obra): “Acho que o mangue influenciou todo mundo. Foi Chico (Science) que popularizou o maracatu de baque solto. Lembro que sempre tive medo dos caboclos de lança. A mistura de músicas feito pelo pessoal do mangue foi espetacular. Mas eles como músicos são fracos tecnicamente. Faltou algo mais sistemático. Acho que não é só a mistura. É preciso a pesquisa, a manutenção, fazer uma releitura do que se aprendeu e depois fazer a interação”, explica didático. Onde estão as raízes – Na casa A, na rua Pastor Benoby, no antigo Córrego do Cotó, na Bomba do Hemetério, endereço dos pais do maestro Forró, é onde funciona a Escola Comunitária de Música Zé Amâncio do Coco: “Resolvi articular meu movimento musical no bairro, aproveitando toda aquela riqueza. Reuni uma turma de alunos, todos da Bomba, para dar aulas duas vez por semana. Mas não aquela babaquice européia. Entre Bach e


78

MÚSICA o maestro Duda, eu sou mais Duda. Nas aulas entrava, claro, o ensino formal, para que o pessoal aprendesse a ler partitura, mas na prática botava coco, Chico Science, reisado, maracatu. Mas não era apenas o maracatu. A gente se reunia para saber o que é o maracatu, de onde veio, como está hoje, qual o futuro do maracatu”. Forró diz, sem esconder o orgulho, que seus alunos da Bomba do Hemetério aprenderam a ler partitura sem a menor dificuldade: “Nem todo mundo teve disciplina para continuar. Muitos caíram fora, a gente sabe que não é fácil. Mas muitos foram em frente. Tem músico da orquestra que é ex-flanelinha”, diz maestro Forró. Foi assim que foi montada a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, com um grupo de jovens instrumentistas e cantores que não tinham preocupações em se manter fiéis às raízes, afinal eles próprios eram parte dessas raízes. O filho de Zé Amâncio do Coco tem consciência de que é pedra e telhado ao mesmo tempo: “Já escutei várias críticas ao trabalho da orquestra. Não há como evitar as mudanças, nem no frevo. Quando Raul Moraes morreu, Edgard Moraes fez umas letras saudosistas, com o tempo isto ficou coisa de velho, bloco virou coisa de branco. O que me interessa é qualidade. Não acho que o Recifolia fosse tão ruim assim, o que faltava ali era frevo. A gente não pode se fechar pra nada, o importante é a qualidade”, o maestro Forró aperta o gatilho da metralhadora: “Falam até que estou ganhando muito dinheiro. Você rala pra ganhar 25 mil e neguinho fica reclamando que estão pagando demais à orquestra da Bomba. Ora, este é um dinheiro que divido com 30 pessoas, 24 músicos, técnicos, recebo com nota fiscal, no final ficam 500 reais para cada músico”, contabiliza.

Hans Manteuffel/Divulgação

Forró correndo no palco: dessacralizando o regente e incorporando elementos coreográficos

Embora por outros caminhos, a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério espelha-se em antigas orquestras e pode enveredar, digamos, por projetos paralelos, como fazia, por exemplo, a Orquestra Tabajara, do limoeirense Severino Araújo, que ia (e ainda vai) de qualquer gênero, desde que não entedie quem está a fim de dançar. A orquestra da Bomba encarna a Megahits, com um repertório só de músicas que são ou foram sucessos. Pode vestir uma roupagem junina e virar a Fole Assoprado: “A gente faz um forró diferente, com tuba, sem sanfona. É uma orquestra de forró”, explica o maestro. E as incursões por outras searas não ficam por aí. Forró e sua orquestra adentram a Aparelhagem, de Hélder Aragão, o DJ Dolores: “Já viajamos por 16 países com DJ Dolores. Me dou muito bem com ele, o disco da orquestra era pra ter um remix feito por ele com todas as faixas numa só, mas não deu tempo. Considero DJ Dolores muito inteligente, embora não seja um músico no sentido tradicional, eu acho ele muito mais sensível do que muito músico e, na verdade, o DJ é uma espécie de músico também”, diz maestro Forró. Além das críticas, há as inevitáveis comparações com a Spokfrevo Orquestra, que também não se guia pelos cânones da ortodoxia do frevo: “Para mim, Spok ficou muito formal, e quem não entender o que a orquestra dele faz, vai acabar achando que o jazz é a origem do frevo”. Eu faço citação de jazz e blues, mas, pra mim, o que mais interessa é a liberdade ao fazer música. Mas eu não comecei nada, não inventei nada. Já nos anos 50, Jackson do Pandeiro inovava, botava um pandeiro à frente de uma orquestra”. •


MÚSICA 79

Primeiro disco do grupo experimenta em todas as direções e pode soar como heresia para os mais ortodoxos

A

Orquestra Popular da Bomba do Hemetério e seu cantado. “Frevo na Bomba do Hemetério” é uma fremaestro Forró estão cutucando com a batuta curta vo-de-rua, aparentemente convencional, não fosse pela as tradições do frevo, mas não se limitam a este gênero percussão pesada. O CD prossegue assim até o final, musical. Esta é uma autêntica orquestra da fuzarca, e seu surpreendendo. “Suburbano” é a homenagem que disco de estréia não poderia ter título mais apropriado: Forró presta à Bomba do Hemetério, um maracatu que tem por tema o Recife e os herói da Bomba. A “Suíte Jorrando Cultura. A faixa de maior potencial do disco não é um frevo, América” é a faixa mais trabalhada. A manjada marcha embora haja deliciosos frevos bem temperados, ou me- “Vassourinhas” é objeto de experimentações, vai do lhor, bem condimentados, no repertório. É “Tanajura”, frevo rasgado à valsa e recebe enxertos de jazz de Nova um samba, introduzido pela voz cavernosa de Joslei Car- Orleans. O maestro Forró ergue a ponte que liga dinot, apresentador do programa policial “Bronca Nelson Ferreira a Louis Armstrong, atados por um Pesada”, na TV Jornal. É o típico samba de gafieira, coco de seu Zé Amâncio. Sim, por que não? “Fandaqueles em que o trombone dá as cartas. A composição tasia/Elefante” (Clídio Nigro/ Clóvis Vieira) segue é de Bráulio de Castro, compositor que vem levantando pela mesma trilha da iconoclastia. O frevo dá lugar a a bandeira do bom-humor na música pernambucana, e um ijexá, a um batuque de terreiro, e volta o frevoque deve ter lembrado dos antigos bailes do Batutas de rasgado. A festa é encerrada com “Cabelo de Fogo”, São José, Pás e da própria Gigantes do Samba, próxima do maestro Nunes, que vai como manda o figurino, até que irrompe um coral (poderiam à casa do maestro Forró. ter dispensado a menção aos 100 anos O vale-tudo começa logo na aberdo frevo, no final da faixa). Coral tura do disco, com “Frevando em Panaturalmente é uma heresia num freris” (do maestro Forró), que se inicia vo? Mas querem projeto mais heréticom acordes da “Marselhesa” e “La co do que a Orquestra Popular a Vie en Rose”, para enveredar por um Bomba do Hemetério? Herético e frevo rasgado. Vem em seguir o marabem-vindo. A música pernambucana catu “Luanda D'Agora”, meio amaxipassou tempo demais numa redoma xado, que pode parecer novidade, mas de vidro, vigiada pelos guardiões da era uma prática comum nos anos 30, Jorrando Cultura, Orquestra tradição. Já estava em tempo de cair quando se pretendia que o maracatuPopular da Bomba do Hemetério, na gandaia! (José Teles) • canção competisse com o frevo Independente, R$ 17,00. Continente abril 2007


80

AGENDA/MÚSICA

Guerra Vicente catalogado de 2006, verdadeiro ano do centenário de N oJoséfinalGuerra Vicente, a Academia Brasileira de Mú-

sica publicou o catálogo do compositor e violoncelista lusitano naturalizado brasileiro – depois dos catálogos de Ernani Aguiar e Osvaldo Lacerda, a ABM contempla pela primeira vez um músico que não sentou em suas cadeiras. Guerra Vicente nasceu em 1906 na cidade de Almofala, centro-leste de Portugal, e faleceu no Rio em 1976. Acreditava-se que era nato, em 1907, por isso veio a ser celebrado mais recentemente. Chegou ao Brasil aos 11 anos, estudou violoncelo na adolescência e integrou o octeto que estreou a Bachianas Brasileiras nº 5, sob a regência do próprio Villa-Lobos. Em 1939 obtém cidadania tupiniquim, sob decreto de Getúlio Vargas. De seu conciso repertório orquestral se destacam os dois únicos concertos para trompete (um dos raros em âmbito nacional) e violoncelo, as três sinfonias (Ressurreição, Israel e Brasília) e as suítes Tríptico sinfônico, Cantos sinfônicos e Carnaval carioca. Organizado pela pesquisadora e bibliotecária Elizete Higino, os capítulos iniciais do livro trazem um curto perfil biográfico de Guerra Vicente e da esposa, a soprano Giselda Baptista Guerra, intérprete e dedicanda das obras para canto e piano que ele criou. Um esboço autobiográfico datado de 1973 resume as circunstâncias em que surgiram as principais peças e a trajetória profissional: “Desde o momento em que me vi envolvido pela aliciante arte musical, nunca mais tive um instante de monotonia em minha vida. (...) Continuo trabalhando na composição, que é alimento insubstituível”. No miolo do livro estão os verbetes básicos de cada obra, com o fac-símile da primeira página de todas elas. Em seguida, quase 80 páginas reproduzem fotos, documentos, recortes de jornais e programas de concertos. O livro vem com um CD-encarte contendo quatro peças de câmara: dois Divertimentos, para dois violoncelos e para violoncelo e oboé, a Elegia para violoncelo e piano e o Quarteto de cordas. Guerra Vicente foi um dos principais incrementadores do repertório nacional de seu instrumento (“À margem da composição, como violoncelista vivi todas as experiências possíveis”). Boa parte de suas partituras e gravações pode ser adquirida via e-mail junto a Antonio Guerra Vicente, filho do compositor e organizador do acervo familiar. Entre os CDs distribuídos pelo Estúdio GLB, está o das Sonatas, para violoncelo, clarineta e violino, além de diversas coletâneas. (Carlos Eduardo Amaral) José Guerra Vicente – o Compositor e a Obra, Academia Brasileira de Música, preço: R$ 45,00. Pedidos: guerrent@terra.com.br

Continente abril 2007

Fragmentos redesenhados Extrair as células rítmicas e melódicas mais elementares de manifestações musicais nordestinas e transfigurá-las sob diversos prismas estruturais é o processo aplicado pelo professor paraibano Eli-Eri Moura nas cinco peças de câmara deste disco. Daí o aviso de que elas não são acessíveis ao ouvido desavisado ou acostumado ao melodismo. O quarteto Circumversus para flauta, clarineta, violoncelo e violino, recontextualiza motivos de cantoria de viola; a Isophonie para violoncelo solo, tangencia o coco de tebei de Tacaratu, o reisado, a incelença e o canto de casas de farinha, e o quinteto de sopros Opanijé Fractus deriva de um toque de candomblé, mas deve-se evitar a expectativa de sentir diretamente essas raízes. A bagatela Nouer I para oboé e piano se distancia mais das referências autóctones e se desenrola em duas partes aflitas e inconciliáveis, o contrário do Maracatum para trio de percussão, de remissão inevitável ao maracatu de baque virado e que carrega um simbolismo particular a Eli-Eri Moura. As respectivas partituras estão disponíveis para download no site do Laboratório de Composição Musical da UFPB (Compomus), fundado pelo professor. O CD marca ainda a estréia do Grupo Sonantis, que congrega vários instrumentistas formados na Universidade. (CEA) Eli-Eri Moura – Música de câmara, produção independente. Pedidos: www.compomus.mus.br

Villa dos chorões Villa-Lobos é o único compositor clássico no Brasil que consegue formar uma legião de fãs - tão aficcionados quanto os de Mozart, Bach e Beethoven ou os de Tom, Vinicius e Chico Buarque. Tanto é que qualquer releitura de Villa é tratada a sério pelos executantes, para passar longe do frívolo. Wagner Tiso e Ney Matogrosso já reinterpretaram A floresta do Amazonas e Teca Calazans fez o mesmo com as canções daquela suíte e de outros ciclos. Faltava reinventar os sucessos instrumentais, o que impeliu a Kuarup a reunir uma porção de chorões num CD único. É preciso dizer que a Suíte popular brasileira, onde o violão solo passa pelas mãos de virtuosi diferentes nos cinco movimentos, está intacta – corresponde à partitura primeva – e o Choros nº 1 só faz se adaptar a um cavaquinho e ao violão de sete cordas. Paulo Sérgio Santos dá cabo do Martelo da Bachianas nº 5, tendo gravado em separado as partes do arranjo que fez para clarineta, clarone e saxofones, e atua como solista na Cantilena. Nela é que se revela o efeito desejado por Villa-Lobos nos pizzicati dos cellos originais. Para completar a roda de choro, a Melodia sentimental com Rabo de Lagartixa, e dois painéis sinfônicos com Joel Nascimento e Sexteto Brasileiro: O trenzinho do caipira e uma redução do Choros nº 6. (CEA) Villa por chorões, Kuarup Discos, preço: R$ 22,00.


AGENDA/MÚSICA Junção de trilhas

Grande prazer

N

m seu quarto CD, E o nosso E mínimo é prazer, o pernambucano Gonzaga Leal mantém

aná Vasconcelos está encarando meio ressabiado os 50 anos de carreira porque o jubileu lhe faz parecer que está prestes a se aposentar – algo incogitável para quem diz carregar o vigor dos 20 e poucos anos. Também a certo contragosto, vem criando diversas composições onde usa a voz, às vezes até com letra, quando na verdade gostaria de trabalhar só a percussão (a música do filme Quase Dois Irmãos era para ser cantada por Milton Nascimento, mas acabou sobrando para ele). Essas impressões pessoais não são dirigidas à Trilhas, uma bem-vinda, e bem-escolhida, reunião de trabalhos de Naná, escritos para balé, teatro e cinema. Incelença foi dedicada ao Balé de Rua de Uberlândia, e a premiada Quase dois irmãos, para o filme de Lúcia Murat. Para o balé Cia. Dança Vida, criou Corpos de luz, do qual três movimentos estão neste CD. As outras peças selecionadas são Nizinga, em duas versões, e Ori – Canção para Aisha (temas dos filmes homônimos), Roda moinho (sobre poemas de Denise Milan) e Jasmim, que é a “trilha sonora pessoal” de Naná. Ele já compôs sob encomenda de companhias de dança européias, de produtoras de telenovelas da França e de diretores do Velho Mundo e dos EUA, mas Trilhas é um apanhado de partituras comissionadas por projetos artísticos brasileiros. As gravações aconteceram em cinco estúdios do Recife e contaram com participação especial de músicos locais, a exemplo das gêmeas bandolinistas Maíra e Moema Macedo. Em breve, o percussionista sairá em DVD, protagonizando o filme Diário de Naná, de Paschoal Samotira, rodado no Recôncavo Baiano e exibido em salas de cinema da Europa e de Cuba. (CEA) Trilhas – Naná Vasconcelos, Azul Music, preço: R$ 22,00.

Para Ivan Lins

um cuidado básico que sempre norteou seu trabalho: a seleção cuidadosa do repertório e dos arranjos. Desde a sua estréia em disco, no ano 2000, com O olhar brasileiro de Gonzaga Leal, o artista vem traçando uma carreira que se enquadra numa MPB sofisticada. Antes do novo trabalho, Gonzaga tinha dedicado sua atenção a dois discos-homenagem, um lembrando Nelson Ferreira e o outro Capiba. E o nosso mínimo é prazer é um trabalho bastante eclético, que traz um pouco de samba-canção, maxixe, moda de viola, passando pelos gêneros fundamentais da música brasileira. Gonzaga Leal chegou a pensar em fazer um trabalho só com canções inéditas, mas terminou optando por compositores com os quais se identifica. Ele canta “A permuta dos santos”, de Edu Lobo e Chico Buarque, “Avesso” de Ceumar e Alice Ruiz, “A telefonista na floresta predial”, de Lula Queiroga. Entre as participações especiais muitos nomes de peso: Alaíde Costa, Lula Queiroga, Mônica Feijó, os grupo Sá Grama e Choro Brasil. Talvez uma das maiores curiosidades do disco seja a música “Seu Waldir”, uma declaração de amor escrachada, composta como um samba-breque por Marco Polo (diretor desta Revista). A música gerou muita polêmica no Recife dos anos 70. Até hoje muitas pessoas se perguntam quem seria o tal Seu Waldir. Depois de cantá-la, na penúltima faixa, Gonzaga Leal abre espaço para que o compositor conte a verdadeira história de seu Waldir, até então inédita. E o nosso mínimo prazer, produção independente, preço: R$ 30,00.

Cachaça e samba

Novo entre os grupos vocais brasileiros femininos, o Folia de Três emergiu de um cenário onde só o Quarteto em Cy perdurava e homenageou os 60 anos de Ivan Lins, regravando os maiores sucessos do compositor, como “Cartomante”, “Meu país”, “A noite” e “Nossos filhos”. A maior parte das músicas é assinada junto com o parceiro Vitor Martins e cada uma delas foi amoldada ao trio por um arranjador diferente. O nome do CD foi extraído de outro sucesso, que também está no álbum e que encaixou o próprio Ivan Lins: “Essa estonteante maravilha, essa pessoa rara...”. Ele canta em “Choro das Águas” e retribui o presente de aniversário com “Canção quase duas”, sobre letra de Lya Luft. O Folia de Três é formado por Marianna Leporace, Cacala Carvalho e Eliana Tassis. (CEA)

No país do carnaval, associar samba à cachaça é quase óbvio, seja como combustível dos compositores ou mesmo como musa inspiradora. Pensando nisso, Alfredo Del-Penho e Pedro Paulo Malta uniram-se, mais uma vez, para desenvolver o CD Cachaça Dá Samba, que reúne 14 faixas (duas inéditas) que cantam a bebida mais brasileira de todas, acompanhados por Luís Filipe de Lima, Beto Cazes e Henrique Cazes. A pesquisa do repertório foi ampla, da gafieira à música caipira, da marchinha ao partido alto. E logicamente traz a famosa marchinha “Cachaça”, com seus famosos versos “Você pensa que cachaça é água...”, de Mirebeau Pinheiro e parcerias. Samba da melhor qualidade para ser ouvido regado a muita cachaça.

Pessoa Rara, Folia de 3, Mills Records, preço: R$ 23,00.

Cachaça Dá Samba, Deckdisc, preço: R$ 23,90. Continente abril 2007

81


82

ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

Sozinho eu vou Sou um folião que espreita, vê e recorda

M

eu encontro com o carnaval do Recife foi um susto. Dizem que o escritor Eduardo Galeano quando avistou o mar pela primeira vez, segurou a mão do pai e pediu: me ajude a ver! Eu não tinha ninguém por perto que me socorresse. Foi sozinho que vi o caboclo de lança se aproximando de mim, os chocalhos badalando, a gola de vidrilhos brilhando na tarde da rua Manoel Borba, a lança de fitas agitadas. Minhas pernas tremeram e sentei no meio fio da calçada. Busquei na memória uma lembrança parecida, mas não encontrei nada. Então inventei que a aparição misteriosa era um guerreiro, descendo os Andes. Nunca mais olhei um maracatu rural sem lembrar o Império Inca. Eu já escutara no rádio Philips da nossa casa do Crato a “Evocação Número 1”, de Nelson Ferreira, com os nomes estranhos de Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon. Uma vizinha de rua, nascida e criada no bairro de Água Fria, marcava o passo de um jeito que nenhum cratense conseguia imitar. Está no sangue, falavam os mais velhos. Não estava no meu sangue dançar o frevo, apenas comover-me com a música alegre e triste que as rádios tocavam. Quando encontrei o carnaval do Recife muitos anos depois, também o amei como se eu fosse de fato um bom pernambucano. Gostei dele em nuanças, instantâneos, retratos em preto e branco. Prefiro o carnaval minimalista que se revela e oculta como os sonhos, semelhante à música dos frevos que meu pai tentava sintonizar no rádio. As orquestras subiam e desciam nas notas sonoras, deixando o sentimento de que tudo era mais longe e inacessível do que podia imaginar. Sou um folião que espreita, vê e recorda. Na rua Nova, passa um bloco cantando. A mulher que sai da loja, com uma filha pequena, abre um sorriso de alegria, pois a música despertou-a e o corpo responde aos chamados da música. Ela não se contém e dança, esquecida de qualquer gravidade ou pudor. Não resiste, sai arrastada, puxando a filha pela mão. Mais adiante pára, arruma o cabelo, recompõe a roupa, imagino que se desculpa. Depois apanha um ônibus para algum subúrbio onde mora. E os dois trompetistas que fugiram da orquestra de frevo e olham a passagem do maracatu? São tipos viris, de peitos largos, com muito fôlego. O batuque mais parece o de um terreiro de umbanda. Não sou apenas eu que penso assim. Os dois músicos, sem largarem os instrumentos de metal, fingem que incorporaram orixás. Dançam, rebolam, se agitam em tremores de atuados. Por que não recebem Xangô ou Ogum, divindades masculinas? Não sei, preferem imitar os gestos de uma Iansã ou Oxum. O batuque se afasta e eles voltam à formação da orquestra, esquecidos das mulheres que há bem pouco representavam. Só eu permaneço embriagado, que-

Continente abril 2007


rendo compreender o que vi. Me aproximo, faço perguntas, tento estabelecer um vínculo. Eles me ignoram, pois não sabem o que vi. A magia se desfaz e nunca mais será repetida. Os caboclinhos relaxam depois da apresentação. Aguardam o ônibus que irá levá-los de volta à cidade de Goiana. Os cocares encostados numa parede, as preacas recolhidas e amarradas, saiotes e pulseiras pelos cantos. O gaiteiro não tem nada o que fazer, puxa um baião. O tocador de caixa e o de maracá acompanham. Dois rapazes largam as namoradas e se atracam. Dançam agarrados, acariciando os corpos com sensualidade. As pessoas riem, empurram os trelosos. Ligeira como começou, a brincadeira se desfaz. Dura o tempo de uma fotografia amorosa, um registro da farra que corre à margem do carnaval oficial, movida por muito álcool é bem verdade, mas, sobretudo, pela pulsão de alegria. Visto através de ruas e becos, recantos de praças e avenidas, o carnaval revela o Recife e sua gente. Apre-

cio os enquadramentos fechados, os pequenos planos, as melodias perdidas, os cheiros que entram pelo nariz sem pedir licença, o suor do passista que nos salpica. Gosto do carnaval que nasce espontâneo, por pura vontade de brincar, e do folião que se fantasia, invertendo a ordem do mundo. O carnaval aglomera, vira onda e furacão, mas também é solitário, vontade de um único brincante. Inventaram números para medir o novo carnaval: dois milhões em Salvador, um milhão e meio no Recife, tantos milhões não sei onde. Interessa que as pessoas se aglutinem numa euforia compulsiva da qual não podem fugir. É uma lei. Poucos sentem coragem de ser apenas um numerozinho, fora desses milhões. Os rebelados andam pelas ruas, solitários, não cantam nem dançam o que ordenam. Gosto de surpreendê-los, assim por acaso, pois apenas eles me revelam o carnaval que sempre amei. • Continente abril 2007


84

FOTOGRAFIA

Identidades metropolitanas O fotógrafo Sérgio Luiz P. Silva Costa capta, através de suas lentes, aspectos de seis grandes centros urbanos

Continente abril 2007

A

idéia deste ensaio surgiu durante minha passagem por centros urbanos como Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, Buenos Aires, Santiago do Chile, Niterói. Observando estes espaços busquei explorar nas cenas cotidianas os elementos que fazem parte da vida destas metrópoles: os indivíduos imprimindo suas digitais nos cenários, preenchendo os espaços em momentos de lazer, trabalho e contemplação, a estética arquitetônica. Nas imagens valorizei o movimento, a luz e as linhas dos cenários, assinalando através destes elementos as identidades metropolitanas. As cidades, ao mesmo tempo acolhedoras e inóspitas, imiscuindo-se nos homens e nas mulheres que as habitam. (Sérgio Luiz P. Silva Costa) •


FOTOGRAFIA

Continente abril 2007

85


86

FOTOGRAFIA

“As cidades, ao mesmo tempo acolhedoras e inóspitas, imiscuindo-se nos homens e nas mulheres que as habitam”

Continente abril 2007


FOTOGRAFIA 87

Continente abril 2007


88

FOTOGRAFIA

Continente abril 2007


CONTINENTEDOCUMENTO

Literatura: clique aqui Ao contrário do que previam os catastrofistas, nem o reinado da imagem acabou com a literatura nem a internet matou o livro. Pelo contrário, nunca se escreveu e se leu tanto como agora, através de blogs, e-mails e chats. Foi também deflagrada uma verdadeira proliferação de revistas de e sobre literatura; sem falar na facilidade de contato entre escritores e leitores, e no fascínio exercido pelas possibilidades do hipertexto



A autonomia de veiculação, a hipervelocidade da transmissão e o baixo custo explicam em parte a febre literária

Livro virtual Walter Clayton de Oliveira niciamos do reconhecimento prazeroso de que, mesmo no ambiente de fluxos e refluxos infoeletrônicos intermitentes em que vivemos, a Literatura e seu suporte tradicional (livro) continuam fascinantes e insubstituíveis. Devemos, porém, admitir que o mundo das letras já não gravita apenas em torno de livros impressos, prontos e acabados, nem se vincula, atavicamente, a crivos acadêmicos, aos filtros da grande mídia e às injunções do capital. Os materiais literários alastram-se pela internet com rara e imprevista desenvoltura. A megarrede planetária integra-os com flexibilidade para enlaçar novos conteúdos e multiplicá-los em usos partilhados, através de bases de dados e publicações eletrônicas, em constantes mutações e acréscimos, abarcando períodos históricos, gêneros, movimentos e escolas. Se a tais evidências somarmos as vantagens propiciadas pela hipervelocidade da transmissão digital, o baixo custo de produção e a substancial autonomia de veiculação que a internet possui frente à

I

esfera impressa, encontraremos pistas concretas para a febre literária virtual. De fato, a web encontra-se superperpovoada de sites literários – desde coleções de textos da era greco-romana a workshops virtuais. O poeta neófito pode colocar no ar seus versos titubeantes, lado a lado com as homepages de Prêmios Nobel. Em segundos, você desloca-se por bibliotecas eletrônicas que oferecem, gratuitamente, obras de William Shakespeare, Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Katherine Mansfield, Bernard Shaw ou Miguel de Cervantes. Contam-se às centenas os grupos de discussão, fóruns, conferências e salas de conversação em tempo real sobre assuntos tão díspares como a literatura vietnamita e a poesia de Manuel de Barros. Nesses espaços em rede, circula o que se puder imaginar em matéria de permutas literárias: debates sobre autores e livros, críticas e resenhas, poemas, ensaios e contos, informes sobre congressos e concursos, comentários sobre a

CONTINENTEDOCUMENTO 91


atualidade cultural, projetos acadêmicos, indicações de sites e periódicos especializados etc. As bases literárias estocam e disponibilizam grande volume de dados, classificados por autores, gêneros e atividades criativas (poesias, contos, romances, ensaios, resenhas, estudos críticos, biografias, hiperficção). Organizam-se em seções temáticas, links e mecanismos de buscas, agrupados a partir de campos geoculturais comuns: literaturas brasileira, portuguesa, norteamericana, inglesa, francesa, italiana, espanhola etc. Para eles convergem acervos documentais de bibliotecas eletrônicas, catálogos de internet, centros de pesquisas, guias de autores etc. Os bancos de dados compreendem listagens de sites, repositórios de artigos, periódicos, materiais iconográficos e sonoros, catálogos e listas de discussão. Os usuários podem dispor ainda de coleções de textos digitalizados, com downloads gratuitos de clássicos da literatura universal e obras de referência.

A ciberliteratura Sem sobrepor-se ou equiparar-se à literatura tradicional, a ciberliteratura sublinha a emergência de um ecossistema com interseções comunicacionais que possibilitam intercâmbios entre emissoresprodutores e receptores-consumidores. É possível informar e ser informado quase simultaneamente. Não vejo exagero em falar numa explosão de magazines literários. Ora aparecem como ações pessoais, ora resultam de iniciativas de grupos e instituições, ora correspondem a versões digitais de revistas e suplementos de prestígio. Publica-se de tudo: poemas, contos, resenhas, ensaios, biografias, entrevistas, concursos, fotografias, ranking de best-sellers, narrativas hipertextuais. A regra, uma vez mais, é a coexistência das afinidades eletivas, em um campo permanentemente aberto à retroalimentação. A internet dissolve a subordinação a instâncias intermediárias (acadêmicas, mediáticas ou editoriais) e descentraliza os processos de edição, difusão e consumo de textos. Ao menos até aqui, inexistem hierarquias, comandos centrais ou limites preestabelecidos. A figura do autor reacende em importância estratégica: pode ser seu próprio editor e distribuidor; pode alterar ou atualizar as suas obras sem custo adicional; pode divulgar e debater o que produz por correio eletrônico, em listas de discussão, boletins e anéis de sites. O ciberespaço funda uma ecologia comunicacional: todos dividem um colossal hipertexto, formado por

92 CONTINENTEDOCUMENTO

interconexões generalizadas. Trata-se de um conjunto vivo de significações, no qual tudo está em contato com tudo: os hiperdocumentos entre si, as pessoas entre si e os hiperdocumentos com as pessoas. A partir da hipertextualidade, a web põe a memória de tudo dentro da memória de todos, numa incomensurável malha de milhões de páginas indexadas. Nos encadeamentos do hipertexto, cada ator inscreve sua identidade na rede, à medida que elabora sua presença no trabalho de seleção e de articulação com as áreas de sentidos. O princípio subjacente ao hipertexto é o de que qualquer parte de um texto armazenado no formato digital (seqüência de caracteres que são reconhecidos e acessados por softwares específicos) pode ser associada automaticamente a unidades textuais armazenadas de igual modo. O click sobre as palavras sublinhadas instrui o computador a ativar o acesso oculto por trás do link, projetando na tela o assunto requerido, quer ele esteja no mesmo documento ou em outras bases de dados. O usuário tem a alternativa de saltar de uma fonte a outra, em um itinerário sem começo nem fim. Os textos deslizam pelo monitor, em ritmo seqüencial, numa espécie de cibercolagem de interferências individuais e coletivas. O hipertexto afigura-se, pois, como um texto modular, lido de maneira não-seqüencial, composto por fragmentos de informação, que compreendem links vinculados a nós. O percurso não-linear faculta novos gabaritos de intervenção por parte dos leitores. Conforme seus interesses e preocupações, a pessoa segue caminhos próprios e extrai sentidos dos dados localizados. Pierre Lévy observa que, na comunicação escrita tradicional, os recursos de montagem são utilizados no momento da redação. Como diz Ivan C. A. de Oliveira(2002): "O livro virtual perfeito seria aquele que, para ser lido e compreendido, não pudesse ser impresso. Territorializá-lo seria matá-lo". Já o hipertexto digital aumenta consideravelmente o alcance das operações de leitura. De maneira análoga, na escrita colaborativa divisase a reciclagem de fórmulas inventivas e de técnicas de composição. A criação experimenta deslocamentos, variações e modulações. Os hyperlinks reordenam a estrutura narrativa e a arquitetura ficcional, bem como dinamizam os itinerários de leitura e interpretação. O que é sólido pode ser também móvel, fluido, desenraizado e acessível a qualquer segundo.


Os fluxos interativos da internet incrementam a composição literária coletiva, através de hipertextos que constroem romances, contos e poemas com a interferência de usuários. Leitores participam da construção de romances e contos interativos. A obra desliza pelo monitor, em composição seqüencial, numa espécie de cibercolagem de interferências coletivas. A antiga estrutura do texto final convive agora com a escrita não-linear, seqüencial e atualizável do espaço virtual. Esboça um novo tipo de escritor – batizado de autor eletrônico -, que se vale de suportes infoeletrônicos para a formulação de narrativas hipertextuais e/ou para a integração dos leitores ao processo criativo.

O leitor virtual O aspecto sem dúvida mais espetacular da era digital/virtual está no poder dos dígitos para tratar toda e qualquer informação, som, imagem, texto, softwares, com a mesma linguagem universal, uma espécie de esperanto das máquinas. Graças à digitalização e compressão dos dados, todo e qualquer tipo de signo pode ser recebido, armazenado, tratado e disseminado, através da infovia. Aliada à telecomunicação, a informática permite que esses dados cruzem a orbe terrestre conectando numa mesma rede gigantesca de transmissão e acesso, potencialmente, qualquer indivíduo no globo. Tendo na multimídia sua linguagem, e na hipermídia sua estrutura, esses signos de todos os signos, estão disponíveis ao mais leve dos toques, num click de um mouse. Surge, então, um outro tipo de leitor, revolucionariamente distinto dos anteriores. Não mais um leitor que tropeça, esbarra em signos físicos, materiais, como era o caso do leitor movente, mas um leitor que navega numa tela, programando leituras, num universo de símbolos evanescentes, mas eternamente disponíveis, contanto que não se perca o caminho que leva a eles. Não mais um leitor que segue as seqüências de um texto, virando páginas, manuseando

volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multisseqüencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens documentação , músicas, vídeo etc. Trata-se de um leitor implodido, cuja subjetividade se mescla na hipersubjetividade de infinitos textos num grande caleidoscópico tridimensional, onde cada novo nó e nexo pode conter uma outra grande rede num outro universo paralelo. Enfim, trata-se aí de um "admirável mundo" novo que parece realizar o sonho ou alucinação borgiana da biblioteca de Babel, uma biblioteca virtual, mas que funciona como promessa eterna de se tornar real a cada click do mouse.

CONTINENTEDOCUMENTO 93


Escritores respondem a uma enquete sobre o impacto da rede nos seus procedimentos criativos

No labirinto da teia Delmo Montenegro Passado o período de euforia em torno do surgimento da internet, algumas reflexões se fazem necessárias, sobretudo no que tange ao seu papel em relação à Literatura. Para tal, convidamos alguns escritores para responder a uma enquete sobre o impacto da rede sobre os seus procedimentos criativos. Colocamos as seguintes questões: A exposição dos textos na rede exerce alguma interferência sobre o seu processo criativo? A recepção positiva ou negativa dos seus poemas na web interfere na seleção dos textos para publicação em livro? Uma vez que a interface ou o layout pré-determinado dos blogs, de certa forma, determina algumas das opções estéticas que um texto deve seguir para tornar-se "legível" na rede, como sua obra quebra esta predeterminação? Quais são os melhores exemplos de poemas que aproveitam criativamente a sintaxe da rede e a mecânica do hipertexto? Quais são as situações mais clichê,

94 CONTINENTEDOCUMENTO

encontradas nas páginas de poesia da internet? Existe alguma possibilidade de transgressão, de inovação estética ou de marcação de gênero que possa ser considerada singular, advinda das páginas de literatura da rede? Como podemos lidar ou trabalhar com a superexposição ou com a possibilidade de criar falsas identidades ou identidades alternativas dentro da rede para criar outras relações textuais ou possibilidades poéticas? Você joga com sua identidade virtual? Como esta identidade virtual vivencia outras relações com o texto? O que a web lhe possibilitou de intercâmbio e de aquisição de novos conhecimentos como escritor? O que existe de fantasia e de realidade acerca das potencialidades da internet para construção de uma nova literatura (ou, pelo menos, de uma nova forma de se relacionar com a Literatura)? Quais são os melhores poetas que utilizam a potencialidades da rede para se expressar? É inegável a abertura possibilitada pela rede.



Reprodução

João Urban

A poeta pernambucana Cida Pedrosa, do site Interpoética

Jussara Salazar, editora da revista virtual LaGioconda7

Graças a ela podemos ter acesso, por exemplo, à poesia chinesa atual, sem os entraves da censura política. Apesar das tentativas de policiamento e monitoramento eletrônico do governo chinês, os sites e os blogs – como o Poemlife, o Shijianghu ou o Comentários de Pequim – ainda conseguem enviar luzes para o Ocidente. Graças ao empenho deles, podemos conhecer a originalidade de poetas como Bei Dao ou Yu Jian ou a força contestatória dos versos da jovem Wunvqinsi: "Naquela Primavera de sol maravilhoso / o monte deserto torna-se verde / e o lugar de execução é exactamente neste monte // Os soldados com espingardas às costas / vigiam o lugar desde os seus pontos mais altos // Vinte e dois criminosos iriam ser fuzilados / para se reencontrarem imediatamente com Marx // De repente, passou-me uma idéia pela cabeça: / a estes homens condenados à morte, mostrar os meus seios, / ainda prematuros, para os verem pela última vez // Estes, que cometeram crimes / vão morrer com a boa memória dos meus seios / sem mais remorsos." Do soneto “Der Wechsel menschicher Sachen” (“A Alternância das Coisas Humanas”) do poeta barroco alemão Quirinus Kuhlmann (1651 – 1689), com suas 6.227.020.800 possibilidades combinatórias de leitura, aos “Cent Mille Milliards de Poèmes” (“Cem Mil Bilhões de Poemas”) do francês Raymond

96 CONTINENTEDOCUMENTO

Queneau, passando pela Série Leonorama da poeta portuguesa Ana Hatherly, são inúmeros os exemplos de obras que – implodindo a sintaxe tradicional através dos princípios da arte combinatória – anteciparam as potencialidades da arte eletrônica na história da literatura. Porém, apesar da Internet ser o ambiente ideal para a fomentação do hipertexto e da interatividade, nenhuma obra produzida na web conseguiu até agora afetar de forma singular os rumos da literatura mundial. O que poderia estar acontecendo?

Crise de inventividade O poeta Claudio Daniel, autor do fundamental Figuras Metálicas (2005) e editor da revista eletrônica Zunái, coloca a questão nos seguintes termos – tratase de uma crise de inventividade que assola a produção contemporânea: "Quando Mallarmé publicou o Lance de Dados, no final do século 19, ele estava à frente de seu tempo. A imaginação criadora do poeta francês exigia recursos que iam muito além do espaço bidimensional da página impressa (talvez por isso não tenha realizado o seu Livro impossível). Nos anos 50, a poesia concreta avançou um pouco mais nesse caminho, apontando outras possibilidades de criação poética, além do discurso, da sintaxe e da própria palavra escrita, pelo diálogo com as outras artes e com a mídia eletrônica. Hoje, temos uma situação inversa: a


Foca Lisboa

Divulgação

Cláudio Daniel, da revista Zunái

Performance multimídia do mineiro Ricardo Aleixo, do blog Jaguadarte: experimentalismo e invenção

tecnologia oferece recursos quase ilimitados para a criação, mas a capacidade imaginativa intersemiótica dos poetas e escritores entrou em declínio. O que vemos nos blogs é a adaptação de paisagens já conhecidas, como a coluna de jornal ou revista, para o ambiente virtual. Os contos e poemas publicados nos sites e revistas eletrônicas, inclusive, não foram elaborados a partir da linguagem e das possibilidades oferecidas pelo computador; são textos escritos para edição em livro, que aparecem primeiro na web apenas por causa da facilidade em se publicar na internet. Acredito que este seja um momento de transição, e que em futuro não muito remoto os poetas estarão desenvolvendo projetos mais ambiciosos, levando em conta os recursos oferecidos pelas novas tecnologias."

Literatura imaterial Já Ricardo Aleixo, um dos mais inventivos poetas brasileiros, autor de Trívio (2001) e de Máquina Zero (2003) e editor do blog Jaguadarte, faz as seguintes considerações: "Não creio que a internet venha algum dia a produzir uma "nova literatura". Penso inclusive que ela está mais próxima de jogar para escanteio o conceito de "literatura", que traduz, como você sabe, o primado da letra impressa. Ora, os valores da cultura do impresso não podem ser simplesmente transplantados para um meio, como a internet, que lida com a imaterialidade (e em que tudo, dos sons às imagens,

passando pelas palas palavras, é número). Há uma mudança de parâmetros tão radical, aí, que somos obrigados a abrir mão da forma como lidamos, até então, com a produção e a transferência de conhecimento. Veja que interessante: mesmo os poetas que se dizem avessos às poéticas que lidam com a visualidade são obrigados, quando "abrem" um blogue, a lidar com questões de ordem gráfico-visual. A internet, em resumo, é o fim daquela ingenuidade funcional que fez a fama de muitos daqueles que julgam ser possível continuar a escrever como se não tivessem existido Mallarmé e as vanguardas construtivas. Vão acabar inventando a roda circular e o guarda-chuva de mão... " Entre a acomodação aos padrões textuais já assimilados pelo tecido verbal da sociedade e a negação do próprio conceito da Literatura (pela negação do primado do Verbo, substituído por uma espécie de continuum performático), são muitas as possibilidades de realização da palavra artística na rede. Talvez o recrudescimento das formas não seja simplesmente uma questão de despreparo técnico ou de conservadorismo estético. Psicologicamente falando, quantos escritores são realmente capazes de pensar e escrever no formato hipertexto, de exercer eficazmente a chamada razão transversal (conceito desenvolvido por Wolfgang Welsch, a partir das idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que quebra a noção

CONTINENTEDOCUMENTO 97


tradicional da racionalidade como faculdade da reflexão e propõe uma "desordem racional" – rationalen unordentiichkei – capaz de assimilar a dinâmica das estruturas rizômicas do pensamento e a mecânica não-linear das redes de informação), de se tornarem máquinas geradoras de pulsões textuais nãoeuclidianas? Nesta zona limítrofe, a internet aproximase do fenômeno do Xamanismo. Despersonalização, fragmentação, desmaterialização. Viagens por centros de luz, mapeamentos gestálticos, redes neurais... A internet é uma encruzilhada. A encruzilhada é a casa de Exu, o multiforme, o grande trickster, o grande embusteiro, aquele que mistura os caminhos, aquele que confunde as fronteiras. No espaço transacional dos fluxos midiáticos, Ele habita. Como uma outra encarnação do Demônio de Maxwell, da Entropia Absoluta, do princípio babélico da linguagem. Em sua metamorfose tecnológica, Exu é o senhor dos hipertextos. Mas, também é o senhor dos vírus e dos worms. Exu é o orixá de todos os cânceres da linguagem. Quem está preparado, como Mallarmé, para jogar dados com o Azar? Para naufragar no Absoluto? Quantos de nós estamos aptos para o Grande Salto: do pensamento midiático para o pensamento mítico? Da contemporaneidade para o retorno à tribo? No caminho, ou melhor, nos descaminhos, são muitos os que se perdem. A internet pode se configurar numa mera falácia de luzes, num jogo arlequinal de convenções gratuitas, na simples dança dos clichês...

Diluições e pirotecnia Sobre tais diluições, o poeta Reynaldo Damazio, autor de Nu Entre Nuvens (2001) e editor do jornal de crítica K e do site WebLivros, nos dá o seu depoimento: "São muitas, infelizmente. Achar, por exemplo, que efeito pirotécnico é sinal de experimentação, de valor literário por si só. O efeito de um poema está na tensão interna que provoca entre a forma e o sentido. Efeitos devem fazer sentido na estrutura do poema e não atuarem como meros recursos ilustrativos. Os parnasianos eram craques nisso. Outro clichê muito triste é o uso e a facilidade que a rede oferece para a autopromoção e o exercício deslavado da egolatria. Não vejo muita diferença entre o orkut e os reality shows. Com a exposição excessiva e sem a mediação crítica, sem a depuração das leituras, do debate e da reflexão séria, profunda, rigorosa, caímos no vale-tudo. Ou seja, no vale-nada. Às vezes, tenho a impressão de que existem muito mais escritores e poetas do que leitores. Sinto falta de críticos e de leituras críticas".

98 CONTINENTEDOCUMENTO

Em vez da desmaterialização sobre um céu midiático, fulgor de luz de um outro Paradiso, apreciemos a hiperexposição das identidades na rede "para além da carne a mais carne, para além da carne a mais câncer..." Jussara Salazar, autora de Natália (2004) e editora da revista eletrônica La Gioconda7, comenta sobre a cultura dos blogs e fotologs, sobre o jogo das identidades falsas na internet: "Vejo muitas pessoas usarem pseudônimos e identidades, nomes virtuais para circularem na internet, faz parte do jogo esquizo da sociedade do espetáculo, vejo inclusive muitas pessoas assumirem identidades completamente distintas das que têm em sua vida fora da web, sem perceber. Procuro ser o mais coerente possível e, fora alguns exemplos divertidos, acho a maioria dos casos de dupla identidade muito chatos, conheço caso de pessoas que usam isso para agredir os outros anonimamente na rede, ou para terem coragem de escrever, inclusive. Alguns escritores do mundo virtual são um prato cheio para os psicanalistas. Prefiro buscar formas mais criativas de resolver minhas neuroses e paranóias, escrevendo meus textos, me utilizando da literatura e da arte, mecanismos de transcendência mais simples". O travestismo sempre foi um elemento forte na arte. Da Rrose Sélavy de Marcel Duchamp ao O Baobá – Poemas de Letícia Volpi (2003). Letícia Volpi, poeta secreta, alter ego de Jussara Salazar, tão genial que foi capaz de encantar até mesmo o mestre Haroldo de Campos, que nada sabia sobre o heterônimo da artista pernambucana. Ao falar numa entrevista (concedida ao poeta Cláudio Daniel) sobre os nomes novos da poesia brasileira, declarou: "Não quero deixar de acrescentar a esse elenco o livro Baobá, de Letícia Volpi, com que você me presenteou, recomendando-o à minha apreciação. Reconheço – e gostaria de dizerlhe – que a moça promete: tiene el duende, como diria García Lorca."

Cultura performática Talvez com o fim do prelado do Signo Escrito e a sua substituição por uma cultura performática, tenhamos, em vez de uma poética majoritariamente composta para o ambiente midiático corrompido dos Hipertextos – ao alcance das grandes corporações -, uma forma de Arte que privilegie a experiência singular e intransferível de nossos corpos biológicos. O corpo humano como forma de recusa ao Capital.


Reprodução

Poesia visual dos índios navajo, EUA (Bad Chant Third Image), de Miguelito

Este movimento pode ser sentido na expansão dos grupos de Spoken Word (Palavra Falada) que vêm se espalhando pelo Mundo. Das experiências vocais de grupos inovadores da poesia norte-americana como o Nuyorican Poets Cafe; o St. Mark's Poetry Project e o L=A=N=G=U=A=G=E Poets, passando pela inclusão, nos anos 90, de rappers como Mos Def e Talib Kweli em eventos de Slam Poetry (uma espécie de sarau onde o público escolhe o melhor poeta). Tais eventos se tornaram muito populares nos Estados Unidos e agora começam a crescer também pela Europa. O principal responsável por isso é rapper e ativista norte-americano Saul Williams, de 34 anos. Após protagonizar o filme Slam, de Marc Levin, que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Sundance Festival, e a Caméra d'Or, em Cannes, em 1998, Saul Williams foi escolhido para participar do documentário SlamNation de Paul Devlin. Deste projeto, surgiu o convite para a gravação do álbum Amethyst Rock Star produzido por Rick Rubin (lendário produtor de grupos como o Red Hot Chilli Peppers, System of a Down e o Metallica). Sua carreira inclui ainda o disco Saul Williams (2005), o EP Not in Our Name, protesto contra a Guerra do Iraque; além de textos publicados

no jornal New York Times e turnês ao lado de bandas como Mars Volta, Rage Against the Machine e Nine Inch Nails. Seu livro mais recente chama-se de The Dead Emcee Scrolls – The Lost Teachings of Hip-Hop (Os Pergaminhos do MC Morto – Os Ensinamentos Perdidos do Hip-Hop). Na confluência de tantas correntes, continuaremos confusos, sendo impossível acompanhar toda a dinâmica das transformações da Literatura Contemporânea. Já não podemos mais prever com tanta certeza que o futuro da Literatura esteja atrelado ao desenvolvimento da web. A relação da Internet com o nosso Imaginário se modificou. Concluiria com um depoimento do poeta Manoel Ricardo de Lima, autor de Falas Inacabadas – Objetos e Um Poema (2000) (realizado em parceria com a artista plástica Elida Tessler), Embrulho (2000) e As Mãos (2003), que sintetiza de maneira bastante enxuta a visão que temos hoje do papel da internet em relação à Literatura: "a rede facilitou o aberto, o espaço, um tocar das coisas mais rápido, mais de perto; mas nunca seria ela a provocadora de um senso de singularidade. Pode até ser, mas não apenas".

CONTINENTEDOCUMENTO 99


Só vai faltar tempo para ler Daniel Piza Não resta dúvida de que a internet pode ajudar a literatura, tanto em sua recepção como em sua produção. Mas, para que essa ajuda seja cada vez maior, convém evitar algumas falsas questões, a começar pela idéia de que a impressão em papel é uma tecnologia condenada à obsolescência. Como um dia se acreditou que o livro traria a libertação do ser humano e a possibilidade do conhecimento pleno - drama que está no núcleo da versão de Goethe para a lenda medieval de Fausto –, é importante não se render às promessas semi-religiosas da rede mundial para a comunhão dos povos e a distribuição do saber. A crença nos poderes virtuais, às vezes, parece ter gerado uma nova ideologia, um novo "ismo", que se poderia batizar de virtualismo, tão nocivo quanto qualquer utopia. Primeiro, os pontos positivos. Um que me parece evidente é o da simples oferta: por não ter as tradicionais limitações de espaço nem de horário, e por ser uma poderosa ferramenta de pesquisa cruzada, a internet acolhe muitos endereços literários. São sites, blogs e comunidades que difundem a literatura e conectam seus interessados. No Brasil há muitos exemplos, como Cronópios, Entrelivros, Agulha, Portal Literal, Rascunho etc., além de blogs especializados, como o de Sérgio Rodrigues (http://todoprosa.nominimo.com.br). É possível ver quem são os jovens autores, ter acesso a verbetes e críticas sobre grandes autores, debater com outros freqüentadores as preferências e aversões. Falta muito, claro; não existem sites como Babelia, New York Review of Books, Times Literary Supplement, em que a análise e o debate são mais informados e maduros. Mas há pontos de partida. A internet também oferece obras. Livros longos são difíceis de ler, então precisam ser impressos. Mas sabe aquele poema do qual você só se lembra um verso? Basta um google rápido e você o terá inteiro. Contos, crônicas, todas as formas curtas encontram impulso na rede. Ainda há blogs de criações literárias, entre os quais se pode

100 CONTINENTEDOCUMENTO

destacar no Brasil o de Fabrício Carpinejar (http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br), poeta que ali investe na prosa, em crônicas de óbvio teor literário. Aqui cabe a menção a mais um atributo da internet: a multimídia. Carpinejar ilustra suas crônicas com grandes pinturas. E pelos instrumentos de pesquisa também se encontram, por exemplo, áudio de gravações poéticas, tanto de autores como Ezra Pound como de intérpretes como John Gielgud. Espanta, por sinal, que até agora ninguém tenha tentado um romance multimídia, em que a narrativa se mescla com sons e imagens, quem sabe até vídeos. Seria mais interessante do que esses romances em corrente, onde os internautas se juntam para continuar uma história – e descrever o resultado como colcha de retalhos seria bondade excessiva. De qualquer modo, o silêncio, a flexibilidade e a tatilidade do papel – do livro ou revista que se lê no banheiro, no metrô, na sala de espera – dificilmente serão substituídos, assim como os filmes não substituíram as peças. Pode ser que perca importância, mas não tem como perder especificidade. Um jornal pode até ser lido na internet, ainda que sem a mesma clareza de hierarquia; mas é preferível ler a New Yorker ou o novo Milton Hatoum na mecânica das quatro capas. Mesmo que deixe de ser preferível, um livro digital nada mais será do que uma seqüência virtual de páginas preenchidas com linhas de palavras, ou seja, um livro, só que bem fininho. O que há de negativo? Não é exatamente essa pretensão de escravizar o usuário, de dizer a ele que na internet cabe tudo – filmes, livros, tudo mesmo – como se ir às salas de cinema fosse dispensável (e elas só fazem aumentar em número) ou se deitar com um livro na cama fosse anacrônico. O pior é justamente tomar o tempo dos potenciais leitores com sua infindável cartela de atrações. Pois, nesse aspecto, a internet está mais próxima da TV do que da mídia impressa. Embora o consumidor não tenha de se submeter aos horários e à unilateralidade da TV, já está claro que ele usa o maior tempo de conexão no computador para trocar mensagens instantâneas, para ver vídeos eróticos ou cômicos, para ler só os títulos das matérias, para fazer lição de casa via Google... A rede, enfim, é uma teia dispersiva. A perda da capacidade de concentração notada nos jovens de hoje – pois a pressa é inimiga da contemplação – tende só a crescer com a World Wide Web. E isso atinge diretamente o prazer de ler o que é complexo e duradouro. Quando perguntam às pessoas por que lêem tão poucos livros, elas dizem que é por falta de tempo. Mas todas têm cinco horas diárias, em média, para ficar entre o computador e a TV. A internet não é inimiga dos livros; é adversária do tempo para os livros.


Revistas e literatura na www Fábio Andrade A internet tem, cada vez mais, ocupado espaços culturais que ela ajuda a redefinir e renovar. Tornou-se um fenômeno mais complexo, ultrapassando a velha oposição entre os seus defensores fascinados e os seus detratores entrincheirados. Todos os usuários da rede – que representam ainda uma parcela pequena da população diante da dura realidade social do país – são afetados pela possibilidade de se comunicarem velozmente com o resto do mundo, de pesquisar, de conhecer e descobrir uma quantidade grande de informação que quando bem utilizada propicia e ajuda. Ainda não utilizamos bem a internet, ou não conseguimos ver todas as suas potencialidades, que só o tempo provavelmente desvendará. Mas algo de

fundamental já pode ser dito sobre a rede: ela não só alterou, como está alterando as relações entre o artista e o público. A Literatura tem sido uma das principais linguagens artísticas a sentir a intervenção do espaço eletrônico em sua posição social e cultural; devido, obviamente, à natureza (ainda) eminentemente textual da rede. Ou seja, suas contribuições não se referem apenas às experimentações poéticas dos herdeiros das vanguardas literárias do séc. 20, como poetas concretos, ou visuais, autores comprometidos com a realização de poemas via computador etc. Ela tem interferido também nas linguagens literárias que não se enquadram necessariamente nessas propostas mais radicais; que têm a preocupação de, além de inovar, renovar, dar continuidade ao que há de vivo no passado. Nesse sentido, as revistas eletrônicas de literatura são um fenômeno considerável. Não poderíamos no espaço restrito dessa matéria explorar outros seguimentos como o blog, que autores e leitores mantêm, as comunidades temáticas do orkut, por serem de uma quase infinita diversidade. Ao mesmo tempo, tentando tornar ainda mais claro o foco vamos deixar de fora de nossa matéria as homepages que têm a função de marcar a presença de revistas impressas no meio eletrônico. Intentamos aqui fazer uma amostragem do que há de interessante entre revistas de literaturas que são editadas apenas na Internet, sem a repercussão do meio impresso. Em seu livro A Outra Voz (1990), Octavio Paz explica um pouco da gênese e função das revistas literárias. Segundo ele, as revistas literárias nasceriam da insatisfação de um grupo que antevê mais do que o gosto dominante autoriza: "Cercados pela indiferença geral, um grupo de jovens de talento se reúne e decide fundar uma revista. Um deles se revela um comandante corajoso e hábil, capaz de acampar em terras inimigas. Em pouco tempo a revista se converte em uma editora influente e seus livros transformam o gosto e as idéias do público". A partir dessa definição de revista literária como dínamo da cultura, incendiando pelo caráter renovador de seu material, o poeta mexicano nos propõe então a não tão evidente diferença entre revistas literárias e revistas de

CONTINENTEDOCUMENTO 101


literatura. Essa distinção pode também ser aplicada à rede: falaremos de revistas virtuais de literatura e revistas literárias virtuais. Qual a diferença? No primeiro caso, são sites comprometidos com a disseminação cultural da literatura, têm a função de informar. No segundo, cada vez mais raro, o objetivo extrapola a condição informativa procurando refletir e mesmo alinhar-se à determinada estética, apresentando juízos e valores, muitas vezes não explícitos. É preciso dizer que uma postura não exclui a outra necessariamente. Poderemos então considerar o grau com que cada publicação abraça cada um dessas funções.

Plataforma para a poesia Temos hoje no Brasil um grande número de páginas que tratam de literatura. É impossível, entretanto, oferecer uma amostragem mínima sem sofrer o drama das escolhas imposto pelas nossas limitações de tempo e recursos. Olhando para dentro, pois o primeiro olhar toma o próprio chão como plataforma, destacaríamos dois sites: Trilhas Literárias, nascido do projeto Plataforma para a Poesia, com 20 anos de existência; e Interpoética, mantido pela poeta Cida Pedrosa. O Plataforma para a Poesia (www.plataforma. paraapoesia.nom.br), mantido por Cláudia Cordeiro e sua equipe, confere bastante espaço à poesia, cumprindo a importante função de conectar o público com os principais autores pernambucanos, como também de proporcionar o encontro com novos escritores locais e de Estados vizinhos. A tônica do projeto e, conseqüentemente, do site como lá está, é tentar "sensibilizar leitores para a Arte Poética, na tentativa de incorporar o discurso poético ao discurso corrente da sociedade". No Interpoética (www.interpoética.com), de Cida Pedrosa, estão editados principalmente os poetas marginais, sejam os novos ou os remanescentes do MEI (Movimento de Escritores Independentes) que, principalmente na década de 80, se popularizou entre os leitores do estado. Além da estética marginal, poetas da cultura popular ilustram a página. Algumas revistas eletrônicas merecem, porém, destaque por alcançarem perfeita comunhão entre material publicado e aspecto visual. A Zunái (www.zunai.com.br), editada por Cláudio Daniel e Rodrigo de Souza Leão, reúne poetas nacionais e estrangeiros com poemas, contos, entrevistas, debates e traduções. É uma das melhores revistas

102 CONTINENTEDOCUMENTO

literárias virtuais desse momento. Seu conteúdo atende ao que o próprio Cláudio Daniel, em sua passagem pelo 4º Festival Recifense de Literatura, definiu como "poesia de invenção", comprometida com autores que tentam inovar, fugindo aos textos marcadamente influenciados pelas formas fixas da tradição poética, por exemplo, ou do sentimentalismo arraigado na lírica. Em sua última edição, de dezembro/janeiro, a Zunái trouxe alguns poetas de Angola, Portugal e Argentina, dando continuidade ao projeto de trazer novas referências para os poetas brasileiros. Outra que merece atenção pelo raio de ação e qualidade de material, reunindo uma extensa gama de autores e colunistas, é a revista eletrônica Cronópios (www.cronopios.com.br), dedicada à literatura e artes em geral. Muitos dos seus colunistas são já reconhecidos como grandes promessas por público e crítica como é o caso dos pernambucanos Marcelino Freire, Jussara Salazar e Micheliny Verunschk. Além deles, Fabrício Carpinejar, Alcir Pécora, Ítalo Morriconi, Virna Teixeira, Chacal, Cláudio Daniel, Ricardo Corona, Sebastião Nunes entre muitos outros. Para o editor Edson Cruz, a literatura brasileira vive um momento de efusão, um "jorro produtivo e criativo", como ele escreveu na página, que as revistas impressas, as editoras e jornais não dão conta. A internet se mostra então um espaço propício ao


escoamento dessa produção: "O Cronópios surge nesse caldo de cultura apostando todas as suas fichas na internet e na capacidade criativa de utilizá-la com diferenciação e qualidade". Confraria do Vento (www.confrariadovento.com.br) apresenta uma simplicidade funcional sem deixar de ser atrativa. Seus editores, Márcio André e Victor Paes, reúnem ensaios, contos e poemas de vários autores, alguns desconhecidos do leitor brasileiro. É o caso, em seu último número, do argentino Gerardo Dirié, compositor que estréia seus poemas na língua portuguesa nas traduções de Lucas Magdiel. O site também oferece a opção de imprimir os textos. O primeiro editorial da revista, de 2005, traz um tom belicoso, próprio da linguagem vanguardista, parodiando por sinal a estrutura dos manifestos. Mas a publicação está longe de apresentar elementos que possam ser identificados com um projeto ou proposta crítica e reflexiva. Como a maior parte dessas revistas, seu mérito - que não é pouco – concentra-se em informar, dar a ver. Ligada a uma pequena editora do mesmo nome, como acontece com a Bestiário (www.bestiário.com.br) que se divide em duas publicações, uma dedicada à poesia, Máquina do Mundo; e outra à prosa, Bestiário. Seus editores são Fabrício Carpinejar, Roberto Schmitt-Prym e Charles Kiefer.

Vasta quantidade Nesse sentido, a publicação eletrônica mais conhecida, com essa função de informar e diminuir distâncias entre leitores e escritores, é o Jornal de Poesia (www.secrel.com.br/jpoesia). É o mais popular, digamos, pois dispõe aos internautas uma vasta quantidade de textos e informações heroicamente reunidas pelo seu editor Soares Feitosa. Do ponto de vista gráfico, o Jornal deixa muito a desejar. A revista Germina (www.germinaliteratura. com.br), que tem como editoras Mariza Lourenço e Silvana Guimarães, armazena também grandes antologias de poetas brasileiros recentes, traduções, entrevistas e artigos. É mais simples visualmente e sua dinâmica de leitura um pouco cansativa. Ainda nessa conformação poderiam ser incluídos a recente Pequena Morte (www.pequenamorte.com), editada por Hugo Langone e Raquel Menezes; o Popbox editado por Elson Fróes, hospedado no Terra, com poemas, traduções e entrevistas; e o Poesia.net (www.avepalavra.kit.net), mantido por Carlos Machado. Semelhante à Zunái, na defesa de determinada estética, há a Agulha (www.revista.agulha.nom.br), editada pelos poetas Cláudio Willer e Floriano Martins. É clara a adesão da revista a uma ampla concepção do

Surrealismo, que extrapola os limites temporais impostos por uma história dos movimentos artísticos baseada na linearidade. Para seus editores, que também são poetas ligados à estética surrealista, a poética do movimento é a que pode com mais exatidão ser tomada como medula do estilo moderno, com sua atenção ao sonho, à fantasia e ao caráter revelatório da poesia. Os links com várias revistas da América Latina conferem à Agulha o status de um raro espaço de diálogo em que, entretanto, não se abandonam posturas estéticas que não deixam de ser éticas. Também aí se enquadraria a muito recente La Gioconda 7 (www.lagioconda.art.br), editada pela poeta Jussara Salazar. A idéia de escritura, apagando as fronteiras entre prosa e poesia enquanto gêneros, assumindo um tipo de escrita que transforma a intrínseca relação entre imagem e som na medula do texto literário, longe de qualquer pretensão realista, parece ser a tônica da revista. Extensão dessa estética intersemiótica e sinestésica é a proposta em cruzar texto e imagem, que promove resultados instigantes. Sua qualidade gráfica é admirável, tal como a Zunái e a Cronópios. Sua navegação é bem interessante, procurando simular as páginas de um livro, que o internauta pode passar e mesmo pular as páginas. Das revistas virtuais citadas, apenas a Zunái, Agulha e La Gioconda 7 se enquadram bem na idéia de revistas literárias, na medida em que não se conformam apenas em informar, mas também a formar, estabelecer reflexões e defender pontos de vista que são uma extensão do que sentem e pensam seus poetas-editores. Parece-nos que falta mais esse tipo de exercício, capaz de lançar dúvidas e questionamentos numa circulação quase infinita de textos como ocorre hoje na internet. Ao mesmo tempo, o confronto crítico pode proporcionar oportunidades para separar o joio do trigo, para aferir a qualidade dos autores e textos, que só pode ser concebida na discussão, na polêmica produtiva dos verdadeiros diálogos. O que a rede tem proporcionado, sem dúvida, via essas revistas, é o contato mais estreito entre autor e público, exigindo tanto de um quanto de outro a redefinição de suas respectivas imagens. Muitas vezes desconstruindo a aura do autor inacessível e o anonimato do leitor massificado, favorecendo muitas vezes o estabelecimento de um diálogo produtivo entre ambos. Mas, ao mesmo tempo, a internet não alterou, até o momento, a natureza fundamental do texto literário, que continua sendo um misto de investimento individual e expectativa social em torno das palavras e suas intermináveis combinações transformadoras.

CONTINENTEDOCUMENTO 103


Revista Agulha, do Ceará: ênfase no surrealismo e na América Latina. www.revista.agulha.nom.br

Alguma Poesia reúne notícias, debates e links sobre poesia brasileira. www.algumapoesia.com.br

Babelia, suplemento cultural e literário do jornal El País. www.elpais.com/suple/babelia

Fabrício Carpinejar é o blog do fértil e jovem poeta gaúcho. www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br

Cronópios: site de boas discussões sobre literatura e arte. www.cronopios.com.br/site/default.asp

Entrelivros: site da revista homônima sobre literatura. www2.uol.com.br/entrelivros

Germina Literatura tem textos originais, entrevistas e ensaios. www.germinaliteratura.com.br

Interpoética: espaço alternativo para poesia pernambucana. www.interpoetica.com

La Gioconda7 é uma revista com grande apuro visual e editorial. www.lagioconda.art.br

Pequena Morte, revista eletrônica bimestral sobre literatura. www.pequenamorte.com

Todo Prosa traz artigos, resenhas e ensaios sobre livros e autores. www.todoprosa.nominimo.com.br

Revista Zunái: invenção e alta qualidade de textos e imagens. www.revistazunai.com.br

NY Books, site da The New York Review of Books: excelente. www.nybooks.com

Jaguadarte é o blog do poeta experimental mineiro Ricardo Aleixo. www.jaguadarte.zip.net

Rascunho: versão on line do provocante jornal literário paranaense. www.rascunho.ondaparc.com.br

104 CONTINENTEDOCUMENTO




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.