Richard Haughton/Divulgação
EDITORIAL
Aurélia Thierrée Chaplin apresentará o espetáculo L’Oratorio d’Aurélia no Festival de Circo do Brasil
A mágica do picadeiro
“R
espeitável público!”, entoa o mestre de cerimônias, no vocativo imemorialmente familiar no mundo inteiro. Entre crianças e adultos, o encantamento é o mesmo: olhar de surpresa, misturado com uma pitada de apreensão, e, ao final, um riso solto. Sob a lona do circo, sobrevive um ambiente de magia, do inesperado, do surpreendente. Assim é o Circo, onde o engenho e a arte atuam sempre no sentido de superar limites. A história do circo é uma longa trajetória do aprimoramento de técnicas de movimentos insólitos, que chegam a arriscar a vida dos seus executores, sempre com o objetivo de entreter. Os primeiros circenses foram exímios caçadores, equilibravam-se sobre os animais e manejavam as lanças de forma primorosa. Depois, formaram-se os grupos familiares, que viajavam o mundo montando e desmontando suas lonas em qualquer recanto onde houvesse público. Entretanto, faz algum tempo, a dinastia do picadeiro e seus dois pilares centrais (transmissão oral do conhecimento e estrutura familiar) enfraqueceram-se, dando lugar ao Novo Circo, que tem como marco fundamental o surgimento das escolas de circo e a ampliação das linguagens utilizando novas tecnologias. Agora, circo, teatro, dança, vídeo compõem um grande híbrido, que tem como uma das maiores expressões, hoje, o Cirque Du Soleil. Neste mês, aproveitamos a realização do Festival de Circo do Brasil, que vai trazer para o Recife atrações nacionais e internacionais de qualidade, para propor um olhar reflexivo sobre a estética circense que continua a encantar adultos e crianças no picadeiro, no teatro e até mesmo no cinema. A secção Documento focaliza Caruaru, a grande cidade do Agreste pernambucano, que este mês está completando 150 anos de fundação, mantendo-se como importante pólo de produção cultural – popular e erudita –, principalmente na Literatura, na Música e nas Artes. • Continente maio 2007
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Reprodução
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CONTEÚDO Divulgação/Editora Planeta
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A escrita radical de Santiago Nazarian
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A representação do circo por Seurat
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Santiago Nazarian fala da literatura gay e do escritor-
50 As possibilidades criativas do corpo
personagem
53 Agenda Cênicas
BALAIO
ARTES
10 Eça de Queiroz e a origem da expressão "estou na minha"
56 David Linch, artista plástico 60 Argentina conhece a obra de Volpi 64 Agenda Artes
CAPA 12 As primeiras proezas circenses 17 A estética do Novo Circo 21 As representações do circo no cinema 24 A persistência dos circos mambembes
CINEMA 70 Os segredos do mercado mundial de filmes
PERFIL
LITERATURA
74 A caminhada de Marlos Nobre entre o maracatu e
30 O papel da poesia no mundo regido por tecnologia,
a dissonância 78 Polêmica com um jovem pianista sobre improviso
mercado e mídia 36 O Recife & Outros Poemas, de Robson Sampaio 38 A favela brasileira como assunto literário 40 O projeto Barca dos Livros, em Florianópolis 42 Prosa: O trapezista e a Dama Negra 44 Poemas de Raimundo de Moraes 46 Agenda Livros
FILOSOFIA 48 Livro põe em xeque o confuso "espírito do tempo" atual
MÚSICA 80 Silvério Pessoa lança seu primeiro DVD 82 Agenda Música
CIÊNCIA 86 As incríveis coincidências do cotidiano
DOCUMENTO 89 Caruaru: 150 anos de cultura
CONTEÚDO
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Imagens: Divulgação
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As artes plásticas de David Lynch
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Caruaru: 150 anos de literatura, música e artesanato
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Colunas
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 O centenário de Miguel Torga
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 54 A matéria cromática da pintura de Siron Franco
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 66 Delícias da cenoura e do espinafre
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 69 A tapera de um seringueiro no mais profundo da floresta
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 84 O destino trágico de Medéia
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CONVERSA
SANTIAGO NAZARIAN
“Minha geração trouxe melhores prosadores do que a Geração 90” Sem papas na língua, escritor paulista enaltece sua geração, assume uma persona literária, discute literatura gay e critica o ensino brasileiro Cristhiano Aguiar
A
pesar de jovem (nasceu em 1977), o paulistano Santiago Nazarian, autor dos romances Olívio (Talento, 2003), A Morte sem Nome (Planeta, 2004), Feriado de Mim Mesmo (Planeta, 2005) e Mastigando Humanos (Nova Fronteira, 2006), é um dos mais destacados escritores da literatura brasileira contemporânea, com sucesso de crítica e de público. Destaque da Feira Literária de Parati e vencedor do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura, Nazarian mantém um blog e trabalha também como tradutor. Nesta Conversa, caracterizada pela sinceridade, Santiago Nazarian fala do seu último romance, do escritor-personagem, de literatura gay e da educação brasileira. Várias matérias na imprensa destacam suas atividades anteriores: barman, redator de conteúdo erótico e de horóscopos, viagens pela Europa, entre outras. Além disso, nos seus três primeiros romances, todas as fotos das orelhas têm alguma referência a sangue e no seu último romance você está babando iogurte. Existe um personagem Santiago Nazarian? Sim, acho que existe uma intenção em criar um personagem, ou ao menos controlar o personagem que inevitavelmente é criado pela mídia. Quem está apresentando um trabalho artístico e quer uma resposta, quer atrair a atenção, conquistar seu público, precisa procurar modos de embalar sua obra. Alguns conseguem por conexões acadêmicas – os títulos, os círculos em meios Continente maio 2007
intelectuais – vendem essa figura do “escritor-senhor de respeito”. Outros se sentam em bares para beber com jornalistas, são amigos dos resenhistas, fecham-se em grupos que organizam antologias, revistas, eventos literários, são os “escritores-boêmios-botequeiros”. Eu nunca tive vocação acadêmica, não sou uma pessoa integrada e não bebo cerveja, então tive de procurar outros caminhos de divulgação, usando minha biografia e minha imagem. São os meios que eu tenho. E acho que todos esses meios são válidos, quando há uma obra com densidade por trás. Você mantém o blog “Amor e Hemácias” (http:// www.santiagonazarian.blogspot.com/). Como você vê a relação entre arte e internet? Bem, eu não faço arte pela internet, nunca fiz. Acho que é possível, mas eu não sei trabalhar muito bem assim. Meu trabalho principal é escrito, no papel. Eu uso a internet apenas como uma ferramenta de divulgação, e levou um tempo para eu aprender a fazer isso. Blog mesmo eu só fui criar depois que já tinha dois romances publicados. Senti necessidade de ter um espaço em que eu pudesse divulgar meus lançamentos, os eventos de que eu participava, as entrevistas que dava. Acabei não só me acostumando, como gostando. E é gostoso também para exercitar algumas idéias, até algumas técnicas literárias. Além do mais, hoje em dia é muito importante o escritor ter um blog ou um site. Se você não tem seu email na internet, por exemplo, nenhum leitor vai escrever uma carta para sua editora, comentando o que
CONVERSA Divulgação/Planeta Editora
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Historicamente, você diria que somos mais violentos hoje do que na Idade Média, no VelhoOeste, na PréHistória?
CONVERSACONVERSA achou do seu livro, como fazia anteriormente. Você acaba ficando isolado demais. O escritor mineiro Luiz Ruffato lançou, recentemente, a coletânea de contos Entre Nós, pela editora Língua Geral, em que diversos escritores brasileiros, de Machado de Assis a Caio Fernando Abreu, abordam o universo gay. Você e Marcelino Freire estão preparando uma antologia semelhante. Existe uma literatura gay? Não. A idéia da nossa antologia é apenas temática. Contos que narrem relações afetivas ou sexuais entre pessoas do mesmo sexo. É válido como tema por ainda estar presente em número infinitamente menor do que narrativas sobre relações heterossexuais. Mas os contos de nossa antologia são dos estilos mais diferentes entre si, e não nos preocupamos de forma alguma com a sexualidade dos autores, não são apenas autores gays. O critério era literário, boas narrativas, bons textos que tratem desse tema. Por que esse tema? Porque nós – eu e Marcelino – somos homossexuais, somos escritores e sabemos como é importante – e difícil – encontrar textos bons que se identifiquem com nosso universo afetivo e sexual. Então, é isso que estamos apresentando. Quanto ao Ruffato, nunca dissemos que ele nos plagiou. Apenas achamos estranho termos comentado nossa idéia de antologia com ele, ele não dizer nada e meses depois aparecer com um projeto semelhante.
Os seus três primeiros romances compartilham uma mesma atmosfera sombria, meio gótica, meio romântica. Você se preocupa, no entanto, em encontrar a diferença na coerência, pois cada um deles possui uma estrutura diferente e variações sutis no estilo. Com Mastigando Humanos, apareceu um lado mais pop, mais paródico, na história desse seu jacaré-nnarrador, meio adolescente, meio blasé. Como ocorreu essa guinada? Tem um pouco a ver com a questão do personagem, que você colocou no começo da entrevista. O personagem não pode atrapalhar a evolução artística, e eu senti necessidade de romper mais incisivamente com o universo blasé, noir ou trevoso que eu estabeleci ao meu redor. Literariamente, eu me sinto confortável nele, como personagem também, por isso mesmo era importante romper, para buscar novos desafios, novos caminhos. Não quero me tornar um desses escritores que escrevem sempre o mesmo livro. Interessa-me exercitar ao máximo meu talento como escritor. E eu tenho, pessoalmente, esse lado paródico, sarcástico, bem-humorado também, então queria encaixá-lo na minha escrita. Mas aquilo foi uma experiência, um momento, não é o que eu farei daqui para frente. Ainda sobre Mastigando Humanos, chama a atenção a paródia que o livro faz da universidade. Por que mastigar a Academia? Caio Fernando de Abreu: ícone da literatura de temática homossexual
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Ag. Estado
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CONVERSA Gravura de Gustave Doré/Reprodução
Nossa sociedade não é mais violenta. Historicamente, você diria que somos mais violentos hoje do que na Idade Média, no Velho-Oeste, na Pré-História? A violência choca, hoje, em contraste com uma civilidade que aparentemente conquistamos, mas não é maior do que em outras épocas. Assim como também não acredito que apareça com mais força na literatura. Acha que não há sangue e violência em Romeu e Julieta? A Divina Comédia? As Mil e Uma Noites? Oliver Twist? Noite na Taverna? 120 Dias de Sodoma? Na Bíblia? A questão apenas é que a literatura – e a arte em geral – se alimenta de conflitos. Então, é quase inevitável que a violência apareça. Contar uma história sem conflitos não tem graça.
A Divina Comédia: violência não é apanágio do contemporâneo
A questão não é tanto a Academia, é mais os professores em si. Eu me considero um sobrevivente, praticamente um herói por ter completado os estudos, porque o sistema de ensino sempre foi radicalmente contra tudo o que eu acredito e sou. Eu simplesmente não entendo essa relação mestre-aluno, não faz sentido para mim; e essa relação, que já é absurdamente retrógrada, ainda é piorada com as condições de ensino no Brasil, onde os professores ganham tão pouco que muitas vezes têm menos acesso a possibilidades culturais do que os seus alunos, e não se exige realmente que eles tenham uma grande bagagem. Isso, é claro, faz com muitas pessoas se tornem professores simplesmente para ter alguma posição, algum status – por menos status que os professores tenham atualmente – ou exercerem algum grau de comando. Muitos são frustrados intelectualmente e precisam do título de “professor” para se reafirmar, porque não teriam prestígio intelectual de outra forma. Querem mostrar sua força e só podem fazer isso diante de crianças e adolescentes. É claro que há exceções, assim como há grandes pensadores e artistas que paralelamente são professores, mas nós sabemos que isso é uma minoria quase fora de estatística. A literatura brasileira contemporânea fala muito de violência. Sangue e literatura são uma mistura inevitável numa sociedade violenta como a nossa?
Na década de 90, um grupo de escritores surgiu fazendo muito alarde. Foram chamados de Geração 90. Durante a década seguinte, novos escritores apareceram, como é o seu caso. Você enxerga diferenças entre as duas gerações? Acho que, em menos tempo, minha geração já trouxe melhores prosadores do que na Geração 90, em quantidade e qualidade. Mas talvez isso tenha sido um fruto direto da abertura que a Geração 90 propiciou. Quanto às diferenças, acho que a minha geração é mais objetiva, mais em sintonia com o presente (do que a Geração 90 era com os anos 90) e... eu realmente não poderia avaliar, fazendo parte, não tenho o distanciamento necessário. É possível viver de literatura, no Brasil? Você acha que o trabalho do escritor tem um retorno justo (falo em termos financeiros, inclusive)? É possível viver de literatura. Editores vivem, não? Já viver de escrever só literatura é quase impossível, o escritor tem de se dedicar a outras atividades para complementar sua renda – mas se essas atividades são ligadas à escrita, como é meu caso, não acho negativo. Acho que meu trabalho de tradutor, por exemplo, é importante para minha evolução como escritor, além de me ajudar a pagar as contas. O problema é quando o escritor tem de trabalhar de garçom, publicitário, michê, o que muitas vezes acontece. Sua escrita pode ser contaminada negativamente. Quanto ao termo justo para se falar do trabalho do escritor, é complicado responder, sabendo-se de todas as condições do povo brasileiro, do espaço que a cultura tem. Não é justo, mas está dentro da realidade. Às vezes, parece até mesmo superior à realidade. • Continente maio 2007
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte
Continente Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira
Maio | 2007- Ano 07 Capa: Arte de Zenival
Colaboradores desta edição: ALICE VIVEIROS
DE
CASTRO dirige, atualmente, o espetáculo Vida de Artista com a
trupe do projeto Crescer e Viver do Rio de Janeiro. É autora do livro O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo, editado pela Família Bastos Editora,
Editor de Arte Luiz Arrais
com o patrocínio da Petrobrás.
Diagramação Hallina Beltrão
CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista.
Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Sílvio Mafra Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Ana Cláudia Alencar, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Roberto Bandeira e Vivian Pires Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco
CAMILO SOARES é jornalista.
CLÁUDIO DANIEL é poeta. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista, pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. CRISTHIANO AGUIAR é escritor, autor do livro de contos Ao Lado do Muro. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de Armada América, O Grau Graumann e As Confissões de Lúcio, entre outros. HUMBERTO FRANÇA é poeta e escritor. KÁTIA AUGUSTA MACIEL é jornalista e estuda cinema em Londres. MARIANA CAMAROTTI é jornalista. JOSÉ GERALDO COUTO é jornalista e escritor, autor de André Breton – A Transparência do Sonho (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e organizador de Quatro Autores em Busca do Brasil (Rocco). JOSÉ TELES é jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO é poeta, crítico literário e autor de Na Solidão do Néon. MARCELO COSTA é jornalista. MARIA OLÍVIA MINDELO é jornalista. MARIANA CAMAROTTI é jornalista. NÉLSON
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OLIVEIRA é escritor e crítico literário, autor de Algum Lugar em Parte
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Colunistas: ALBERTO
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CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
RIVALDO PAIVA é escritor e autor de Saudades de 60 e Parece que Foi Assim. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente maio 2007
CARTAS
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Cidades
Belíssimo, o ensaio fotográfico da edição nº76. Sérgio Luiz P. Silva capta bem o sentido dos cantos da cidade e suas cores! Um deleite para os olhos e um descanso para a alma. Isabelle Bento, Maracanaú – CE
Paulo Freire Na qualidade de responsável pela Editora Villa das Letras, que publicou em junho de 2006 o livro de Ana Maria Araújo Freire, intitulado Paulo Freire uma história de vida, venho esclarecer aos leitores e leitoras desta Revista que o texto constante no nº. 45/2006, Ano IV, todo ele dedicado ao educador pernambucano Paulo Freire, saiu, erroneamente, no Editorial, como sendo pesquisa de Ana Arruda Callado. Entretanto, é fácil constatar-se que se trata de uma compilação, extraordinariamente bem feita, diga-se, do livro em questão para o qual a renomada jornalista escreveu a apresentação. Ricardo Hasche, Indaiatuba – SP Balaio Como leitor assíduo da Continente, não poderia deixar de parabenizar a equipe pelas novidades da edição de março. A coluna “Balaio” é curiosa, perfeita para abrir com leveza a publicação. Também achei bem interessante a forma de estruturar a Documento no miolo da Revista. Parabéns. Camila Andrade, Belo Horizonte – MG
Cinema Adorei a matéria de capa da edição de abril. Num mês em que se fala e se vive cinema em Pernambuco, nada mais natural que fazer um grande panorama da produção contemporânea do Estado. É preciso destacar as boas coisas feitas por aqui. Que não são poucas. Clarice Resende, Recife – PE Cinema II Parabéns pelo material de cinema da última edição. Vocês conseguiram abordar todos os aspectos: longas, curtas, distribuidoras e atores. Hernila Guedes está linda na capa, com certeza uma promessa. Os curtas também merecem brilhar, já que são sempre ofuscados pelos longas. Airton Perrini, Recife-PE Sabores Muito bom o artigo da coluna “Sabores Pernambucanos”, da edição de março. São provérbios esclarecedores que muitas vezes usamos sem saber sua origem. Edilza Muniz, Recife – PE
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Valdemar e Valéria Sou louco por teatro e fico muito feliz em ver nomes de extrema importância nas artes cênicas do Estado nas páginas da Continente. Ao lembrar o ícone Valdemar de Oliveira, reverenciam o tradicional, o trabalho do TAP; ao trazer o solo de Valéria Vicente, destacam a produção contemporânea, abrindo espaço para o novo. Vocês acertaram a mão na Continente de abril! Outro nome que adorei ver na Revista foi o de Hermila Guedes, uma grande atriz, com belas participações nos palcos. Carlos de Barros, Recife – PE Escola Gosto muito da Revista Continente Multicultural. Quando ela chega à minha escola, eu sou o primeiro a ler. Henrique Carneiro Soares, Escada – PE Errata O nome do autor do ensaio fotográfico publicado na edição de abril é Sérgio Luiz P. Silva.
Arquivo Continente "Ulisses é um embuste" ma, o tema da história, o grau de dificuldade da leitura, o estilo de Joyce. Por se tratar do mais sagrado ícone do romance moderno, faço aqui um pedido explícito: represente o que vai ler abaixo como uma opinião pessoal, só minha, carregada de subjetividade. Não atribua nenhuma autoridade a ela, e deixe para tirar suas próprias conclusões se e quando tiver acesso ao livro. Então, vamos nós. Ulisses é um embuste. O maior embuste da literatura universal. Não o livro em si, mas o que fizeram dele. Sérgio Barcellos Ximenes, Continente Multicultural, nº 42, junho de 2004.
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Críticos, resenhistas e professores apreciam Ulisses, de James Joyce. Para eles, mais vale o que vem depois da leitura, o raciocínio objetivo sobre a obra, do que a experiência da leitura, a vivência subjetiva. Provavelmente, na literatura ocidental, não haja obra mais carregada de paratextualidade do que Ulisses. Se você ainda não leu o romance, pense em todas as opiniões, artigos, já lidos por você, referentes ao romance de James Joyce. E pense na impressão causada por esses conteúdos: como são os personagens, como se desenvolve a tra-
Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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BALAIO
ATÉ TU, GOERING? Em entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto, para o Fantástico, que deve ir ao ar agora em maio, o ex-soldado alemão, hoje radicado na pequena Godalming, Inglaterra, Henry Metelmann, 85 anos, contou que os integrantes da Juventude Hitlerista notavam, mas evitam comentar, duas coisas "engraçadas" sobre Hermann Goering, o segundo homem do III Reich: ele usava vários anéis e exalava um forte cheiro de perfume. "Era uma coisa pouco militar"... – comenta eufemisticamente o ex-nazista. (Homero Fonseca)
ESTOU NA MINHA
Vocês conhecem a origem da expressão "estou na minha", muito divulgada na década de 60 e em uso até agora? É de Eça de Queiroz e está registrada no seguinte diálogo, travado no romance O Primo Basílio. Cito: "Um rapaz de barba desleixada, o olhar um pouco doido, entrou; era um estudante da Escola, amigo de Julião; e quase imediatamente recomeçaram uma discussão que tinham travado de manhã, e que fora interrompida às 11 horas, quando o rapaz de olhar doido descera a almoçar à Áurea. – Não, menino! exclamava o estudante exaltado. – Estou na minha!” (Duda Guenes, de Lisboa)
VENENO EM PORTUGAL Na relação dos livros mais vendidos em Portugal, divulgada pelo Jornal de Letras, Bruna Surfistinha, com O Doce Veneno do Escorpião, lidera confortavelmente à frente de nomes como os de Umberto Eco, John le Carré e Gabriel Garcia Márquez. (DG)
“A astúcia é a coragem dos pobres.“ (Ditado popular citado por Ariano Suassuna)
ESTRABISMO
REALITY LITERÁRIO
LAR, DOCE LAR
Na celebrada peça Entre Quatro Paredes, de Sartre, famosa pela frase "o inferno são os outros", um dos protagonistas masculino é um jornalista brasileiro ("nunca saí do Rio"), um certo Joseph Garcin. Na Redação fumam-se charutos, seu companheiro chama-se Gomez e ele arranja uma mulata como amante. Só falta falar espanhol. Como se vê, nem o filósofo solidário está livre de uma visão estereotipada sobre os que estão abaixo do Equador. (HF)
A Universidad Nacional Autónoma de México promoverá um concurso no qual 12 jovens escritores competirão por um prêmio de 50.000 pesos (4.550 dólares). Durante oito semanas, os escritores conviverão através dos blogs de um portal que acolherá essa inusitada forma de reality (www.cazadeletras.unam.mx). Sealtiel Alatriste, diretor de Literatura da Universidade, informou que os participantes terão que escrever poesia, narrativa, conto e crônica, de acordo com as ordens de um júri formado por três escritores veteranos. (Eduardo Cesar Maia)
Receita de um casamento feliz, segundo o comediante e músico do show-business americano Henny Youngman: “Algumas pessoas querem saber qual o segredo do nosso longo relacionamento conjugal. É simples: nós jantamos fora duas noites por semana. Um belo jantar à luz de velas, com música suave, perfeita para dançar. Ela vai às terçasfeiras e eu às sextas.” (Luiz Arrais)
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Vicente do Rego Monteiro
Imagens: Reprodução
EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES
As trilhas sonoras dos filmes de Woody Allen são um caso à parte em seus filmes. Quase sempre repletas de jazz e blues, com freqüência música erudita, ele já enveredou por cançonetas populares, ritmos ciganos, rumbas. Agora pasmem: no seu último filme, Scoop (O Grande Furo), com a deliciosa Scarlett Johansson, em meio a trechos de O Lago dos Cisnes e da suíte Peer Gynt, ele tira do baú uma versão orquestrada de "Recado", de Luiz Antonio e Djalma Ferreira, sucesso na voz de Miltinho nos anos 60. (HF)
Músicas e cantores brasileiros têm tido boa presença em filmes estrangeiros. Depois de Caetano cantando "Cucurrucucu Paloma" em Fale com Ela, de Almodóvar; de Seu Jorge interpretando versões em português de músicas de David Bowie, em A Vida Marinha de Steve Zissou, de Wes Anderson; e de Carlinhos Brown com sua "A Namorada" em Velocidade Máxima 2, de Jan de Bont, agora, em Café da Manhã em Plutão, de Neil Jordan, numa cena em que um travesti e um cafuçu namoram dentro de um carro, o rádio toca "Feelings", de Moris Albert, pseudônimo do paulista Maurício Alberto Kaisermann. "Feelings" estourou no mundo e foi gravada até por Frank Sinatra. (Marco Polo)
O MORDOMO Premiado no Festival Cinema du Réel, em Paris, Santiago era para ser um filme sobre o mordomo dos Moreira Salles, um argentino de origem italiana, personagem cheio de paixões e exageros. Acabou sendo um filme sobre o filme abortado em 1992, quando o diretor João Moreira Salles percebeu que o material colhido era superficial, pois não tinha sabido escutar o entrevistado. Retomando as imagens 15 anos depois, descobriu finalmente que era um filme sobre si mesmo. (Camilo Soares, de Paris)
DESAFORISMOS
Jornalismo é a arte de separar o joio do trigo. E publicar o joio. Mark Twain
MENINA MÁ O último romance de Mario Vargas Llosa Travessuras da Menina Má, editora Alfaguara) é tão bom do início até a metade quanto decepcionante daí ao final. Se ele, em vez de rastrear a vida previsível de sua personagem aventureira, quisesse escrever sobre uma menina má de verdade, deveria ter romanceado a vida de alguém como Suzane von Richthofen. Não seria novidade se o romance mostrasse pais despreparados para ter a ferinha que botaram no mundo. (Fred Navarro)
Arquivo ABL
RECADO DE ALLEN PRESENÇA BRASUCA
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PERGUNTAS A MARCOS VILAÇA
1 – Weydson Barros Leal, poeta: A participação de acadêmicos da ABL no desfile das escolas de samba em 2007 também serviu – além da bela homenagem à língua portuguesa – para desmistificar e humanizar a instituição. Foi difícil convencer outros acadêmicos a participarem da festa ou faltou lugar no carro alegórico? A presença de acadêmicos, na Sapucaí, encerra vários recados. Dois deles: de um lado, o ostensivo reconhecer do enlace do samba com a poesia, e, do outro, evidenciar que a ABL é instituição sempre situada nos seus tempos e no Brasil. Observe-se que Antonio Olinto, 89 anos, entre nós era o mais animado. Isso diz tudo de como foi fácil a participação. 2 – Afonso Arinos, filho, escritor: Pode a ABL contribuir para a imagem ética da vida pública brasileira? Pode e deve. Na medida em que é reconhecida como símbolo da inteligência nacional, dispõe da força do exemplo. Passar os olhos na nominata dos Acadêmicos de todas as épocas já ajudaria muito. Afonso, o Velho, seu pai, é exemplo precioso. 3 – Schneider Carpeggiani, jornalista: Um dos seus "passatempos" é enviar livros de que você gosta para os amigos. Que livro você gostaria de ter enviado para alguém, mas nunca encontrou o destinatário certo? Pergunta dos diabos. O Regimento do TCU, talvez...
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A arte do insólito Circo é a arte do insólito, do inesperado, do surpreendente. Gente que faz coisas inimagináveis, de deixar outras gentes de boca aberta e com o coração na boca. O Circo é a arte de realizar proezas, enfrentar riscos, colocar-se à prova apenas pelo prazer de surpreender e encantar o público. O Circo é a arte do diverso. Tudo cabe debaixo de uma lona, tudo pode entrar na roda mágica do picadeiro. A história do Circo é a longa trajetória dos que se esmeram em dominar a técnica de fazer estranhos movimentos, chegando ao cúmulo de arriscar a própria vida apenas para entreter seus semelhantes e terem a suprema satisfação de vencerem a si mesmos. Os primeiros circenses eram exímios caçadores, ágeis, fortes, de grande pontaria e de muito bom humor. Gosto de imaginar uma tribo pré-histórica atirando-se à caça do almejado bizão. Os trogloditas organizados fecham o cerContinente maio 2007
co ao animal. Primeiro chegam os mais ágeis corredores que acuam o bicho, depois vêm os mais fortes, provocando e enfrentando a fera de frente, deixando o animal cansado e pronto para ser atingido pelas toscas lanças dos melhores lanceiros do grupo. Pronto, agora é a hora, todos olham para o barbudo dono da melhor pontaria, aquele que sabe tudo de lanças e como melhor cravá-la na garganta do futuro alimento. Mas eis que, incentivado pelos olhares ansiosos de seus companheiros, ele, subitamente, começa a girar a lança de uma mão para a outra, primeiro devagar, depois com rapidez e leveza, hipnotizando a todos. A todos menos ao bizão, que aproveita a confusão e foge… Ou, talvez, quem sabe, o esperto malabarista tenha se contido, acertado o bicho bem no meio dos olhos e voltado para a caverna carregado em triunfo. Mais tarde, depois do lauto banquete, sentado em roda, aquecendo-se ao fogo, enquanto a tribo rememora a caçada, nosso herói se põe a realizar proezas com a lança. Passaa de uma mão para a outra, atira-a para o alto e pega-a por trás. Gira-a em movimentos rápidos e surpreen-
+++++++++++++++ O Circo nasce como espaço onde tudo pode ser exibido, desde que seja capaz de surpreender, emocionar ou impactar o público Alice Viveiros de Castro Reprodução
O Circo, de Djanira Mota e Silva
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+++++++++++ As primeiras proezas circenses de que temos notícias estão diretamente ligadas à caça aos touros. Para os nossos antepassados mais remotos, ir á caça era a mais importante atividade do grupo, mistura de festa e ato de profunda fé e religiosidade LLC/Corbis
Poster do Howes & Cushing's Great United States Circus, 1878
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dentes, dando à lança uma nova função, não mais arma mortal, mas objeto de puro prazer e encantamento. As primeiras proezas circenses de que temos notícias estão diretamente ligadas à caça aos touros. Para nossos antepassados mais remotos, ir á caça era a mais importante atividade do grupo, mistura de festa e ato de profunda fé e religiosidade. Os achados arqueológicos de Catal Huyuk, antiquíssima cidade da região da Anatólia, na Turquia, já demonstram a forte presença da arte de dominar um touro e sobre ele realizar saltos e acrobacias diversas. Algo que já era admirável há mais de 8.000 anos. As primeiras imagens de acrobatas foram encontradas em Knossos, em Creta, e tem mais de 4.500 anos. Belas jovens realizam ousados e arriscados movimentos sobre um imenso touro, que é contido por um rapaz forte e musculoso. Na China, em Wuqiao, pinturas
numa pedra, da mesma época, mostram o lendário batalhão de cavaleiros-acrobatas que conseguiram derrotar o inimigo, surpreendendo-o com seus saltos e inacreditáveis peripécias no lombo dos cavalos. Lá pelo ano 3.000 a.C, as pirâmides do Egito já eram decoradas com figuras de malabaristas, equilibristas e contorcionistas. Artistas da proeza sempre existiram, quer se apresentassem nas ruas, feiras, palácios ou sobre improvisados tablados. Para os antigos, toda expressão que aliava domínio técnico, apuro na execução e harmonia nos movimentos era admirada e reconhecida como arte. A divisão entre arte erudita e arte popular, que sempre existiu, mas se fortalece nos últimos séculos da Idade Média como forma de garantir apoio da igreja às expressões culturais mais bem comportadas, é que vai colocar as artes do corpo em um lugar de discriminação e desimportância.
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Divulgação Festival de Circo do Brasil
Circo Zanni: atração do Festival de Circo do Brasil
Reis e papas tentam regulamentar as expressões artísticas, separando as que deveriam ser apoiadas e incentivadas das que não mereciam nenhuma consideração e eram apenas expressão dos baixos instintos, devendo ser ignoradas ou proibidas. Em 1274, Afonso X, rei de Castela, se dá ao trabalho de classificar os jograis em seis diferentes tipos, separando o jogral que tangia instrumentos, contava novas, recitava e cantava versos, portando-se com dignidade, dos bufões e trejeitadores, mímicos que só serviam para divertir a plebe com grosserias e palhaçadas. A nobreza esmerava-se em patrocinar seus artistas preferidos e os reis passam a instituir as Reais Companhias de dramas, comédias e música, base dos teatros, óperas e corpos de baile nacionais. Os artistas dos teatros de feira, funâmbulos que se equilibravam atravessando cordas em grande altura, amestradores de animais, saltadores, malabaristas, mímicos, mágicos, bonequeiros e outros que tais acabam ficando de fora do mundo da Arte com A maiúsculo, não recebendo verbas oficias nem ganhando o apoio da Igreja e do Estado. Mas o público nunca os abandonou e a nobreza e o clero sempre frequentaram suas arquibancadas com prazer e alegria… só não davam dinheiro nem valor…. (até hoje, até hoje….. ) O Circo, casa de espetáculo, espaço redondo onde se exibem números diversos de proezas e fantasia, surge na segunda metade do século 17. Franceses e britânicos brigam pela criação do circo moderno, cada um puxando para si a primazia de ter reunido num único espaço os diversos números da arte da equitação e os mais diferentes exercícios de perícia e habilidades. Em 1776, o sargento inglês Philip Astley faz um sucesso retumbante
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CAPA Intrépida Trupe, um dos grupos de circo contemporâneo mais antigos do Brasil
++++++++++ O Circo, casa de espetáculo, espaço redondo onde se exibem números diversos de proezas e fantasia surge na segunda metade do século 17
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com sua casa de espetáculos, um picadeiro onde montava grandes pantomimas com números de adestramento de cavalos, exibições de acrobacias eqüestres e mais equilibristas, aramistas, saltadores e malabaristas. O Circo nasce como espaço onde tudo pode ser exibido, desde que seja capaz de surpreender, emocionar ou impactar o público. Teatro, música, dança, cenários retumbantes, figurinos maravilhosos, todos os meios eram válidos para encantar a audiência. No Brasil, o primeiro palhaço veio nas caravelas com Pedro Álvares Cabral. Diogo Dias era seu nome e já havia trabalhado em comédias e arremedilhos antes de se aventurar nas travessias de mares nunca d’antes navegados. Ao ver os índios dançando na outra margem do rio, logo após a primeira missa, Diogo passou-se para o outro lado e começou a dar saltos e piruetas e a rir com os da terra, que logo se encantaram e com ele formaram uma grande roda. Circenses cheios de energia e coragem apresentaram-se nas regiões das Minas Gerais já nos idos de 1720, deixando desesperado o bispo D. Frei Antonio de Guadalupe, que se queixava ao Santo Ofício dos ciganos que infestavam Vila Rica e outras regiões com suas comédias e óperas imorais. O século 19 é o século do Circo. Companhias atravessam os continentes e pouco a pouco vão criando dinastias locais de grandes artistas. É assim no Brasil onde as famílias circenses chegam,
Divulgação Festival de Circo do Brasil
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criam raízes e abrasileram-se… Chiarinis, Seyssel, François, Stankowichs, Stevanowichs, Silvas, Temperanis, Olimechas, Manges e tantos outros são a base do circo brasileiro. Um circo que sempre soube ir aonde o povo está. Hoje, no Brasil, calcula-se que mais de 1500 circos estejam em atividade entretendo uma platéia de mais de 20 milhões de espectadores por ano. Além dos circos itinerantes que mantém viva a tradição da lona temos mais de 50 escolas e projetos sociais que ensinam as artes circenses e são o berço de novas trupes e companhias. Tradicionais, contemporâneos, clássicos ou modernos, não importa muito o estilo de cada um. Cada época se emociona ou se surpreende do seu jeito particular e próprio. Mas o fato é que homens e mulheres do século 21 temos muito em comum com nossos antepassados e, como nossos avós das cavernas, sabemos admirar gente capaz de realizar com graça e perícia coisas que nós nem sonhávamos imaginar. •
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O novo circo Diálogo com outras linguagens artísticas garante a renovação do picadeiro e assegura o interesse das novas gerações pela expressão milenar do circo Rodrigo Dourado
Sob a lona da mistura Novo Circo ou Circo Contemporâneo? Circo ou Teatro? Circo ou Dança? Muitas são as dúvidas e discussões sobre o que vem a ser o circo na atualidade. Apesar das divergências, resta a constatação de que o circo tomou novos rumos, ganhou novas feições e, nesse sentido, pode-se mesmo falar numa espécie de nomadismo artístico, num deslocamento que não é geográfico (como no Circo Tradicional), e, sim, estético. Mas em que consiste essa mudança? Quais características permitem separar o Circo Tradicional do chamado Novo Circo? O que configurou, historicamente, essa possível transição? Segundo pesquisadores, duas seriam as causas principais para a decadência do Circo Tradicional, que teve sua sobrevida até os anos 60 do século passado. O surgimento e a multiplicação de novas formas de entretenimento, em especial a televisão, que passaram a disputar o interesse do público, seria a primeira delas. Em seguida, é possível atribuir à própria organização social circense, baseada no isolamento e no fechamento da estrutura familiar, a distância das novas gerações e a dificuldade de perpetuação de sua cultura. A cultura circense de até então estava baseada em dois pilares, a transmissão oral do conhecimento e a estrutura familiar. As dinastias do picadeiro consisContinente maio 2007
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CAPA Divulgação
Espetáculo da Escola Nacional de Circo, fundada em 1982
tiam em grupos relativamente fechados, com graus de parentesco vários, que passavam de geração a geração os conhecimentos adquiridos ao longo dos anos, de maneira a preservar as técnicas e os valores da vida sob a lona. Esse processo de ensino/aprendizagem se dava imbricado com a relação familiar e fazia parte do cotidiano circense, onde os mais velhos transmitiam aos mais novos os seus saberes. Ser artista de circo não estava descolado da função pedagógica. A criança, desde a mais tenra idade, era treinada em vários ofícios e, assim que tivesse adquirido experiência, logo teria de oferecer as menores seu conhecimento. Além dos nascidos no seio familiar, agregavam-se ao circo cidadãos das inúmeras praças onde a lona se armava, encantados com a vida misteriosa e aventuContinente maio 2007
reira dos artistas do picadeiro. “Fugir” com o circo era então uma forma de tomar parte naquele mundo, mas logo esses estrangeiros eram assimilados, em geral pela via do matrimônio com algum dos entes da família-proprietária, e passavam a fazer parte do clã. Com o tempo, entretanto, o interesse dos filhos de famílias circenses pela manutenção e perpetuação das tradições começa a diminuir, certamente em virtude do esvaziamento das arquibancadas. Artistas são contratados para executar apenas números, ao contrário dos profissionais formados nos núcleos familiares, dominadores de um conhecimento totalitário que vai da montagem da lona, passa pela execução de números e chega à administração da bilheteria. O processo clássico de ensino/ aprendizagem sofre, assim, uma ruptura, pois já não há tanto interesse na transmissão dos saberes. A cultura circense começa a cair no esquecimento, começa a correr o risco de apagar-se. É nesse momento, então, que surgem as escolas de circo, elementos fundamentais para a renovação dessa linguagem e para o nascimento do Novo Circo. Em 1978, na Austrália, surge o Circo Oz, misto de escola e grupo. Na França, no ano seguinte, funda-se o Centro Nacional de Artes do Circo, um espaço de formação mantido pelo poder público para artistas circenses. No Brasil, também em 1978, nasce a primeira escola de circo do país, a Piolin, em São Paulo. Em 1982, o Governo Federal cria a Escola Nacional de Circo, primeira do gênero na América Latina, com sede no Rio de Janeiro. Essas escolas voltavam-se, em princípio, para os descendentes do Circo Tradicional. A experiência, no entanto, mostrou que essa iniciativa não seria bastante para reaproximá-los do circo, mas que havia inúmeras pessoas oriundas de outros meios e com outros objetivos interessadas em aprender circo. As escolas se tornariam,
CAPA assim, espaços para a democratização do saber circense, mantido em sigilo nos núcleos familiares ao longo dos séculos. Paralelamente, começa a crescer o interesse dos artistas de teatro, dança e música pelas artes do circo. As fronteiras entre os gêneros começam a se apagar, o intercâmbio se intensifica. Frutos desse movimento, surgem nos anos 80 circos como o Archaos e o Plume na França e o Cirque du Soleil no Canadá. Este último derivou de um grupo de artistas de rua chamado Club de Atlons Hauts, que realizava números de perna de pau, pirofagia e malabares, e tornou-se a maior empresa circense do mundo. No Brasil, Perfeito Fortuna cria o Circo Voador, no Rio de Janeiro, em 1982. O espaço torna-se reduto da experimentação artística, especialmente musical, da cena brasileira daquela década. Inicialmente montado no Arpoador, o Circo Voador transfere-se para a Fundição Progresso (no bairro da Lapa), em 1986, ano em que Fortuna realiza uma viagem ao México com uma trupe de artistas de circo, teatro, dança e música. É ali que nasce a Intrépida
Trupe, legítimo representante da mistura do Circo Contemporâneo no Brasil. Nesse mesmo ano e também fruto dessa movimentação, aparece no Rio o Teatro de Anônimo, outro conjunto pioneiro que fomenta o diálogo entre o Circo e outras linguagens cênicas. Esses grupos, brasileiros ou estrangeiros, que se alimentam da pesquisa e experimentação realizadas nas escolas, empreendem significativas mudanças no espetáculo circense. Enquanto, na tradição, o espetáculo é composto por uma sucessão de números, cuja lógica do encadeamento não é narrativa, no Novo Circo há uma visão global da cena, uma busca por temas e conceitos, uma amarração narrativa que utiliza os números como figuras de linguagem para contar uma história. Se, no Circo Tradicional, a ordem dos números é fixa e obedece a critérios técnicos e emocionais, no Novo Circo os artistas não apresentam apenas seus números, mas representam personagens que afetam e são afetados pela ação. A virtuosidade é apenas uma função dramática entre outras, um espetáculo pode ser constituído por apenas uma modalidade ou duas.
++++++++++ Enquanto, na tradição, o espetáculo é composto por uma sucessão de números, cuja lógica não é narrativa, no Novo Circo há uma visão global da cena, uma amarração narrativa que utiliza os números como figuras de linguagem para contar uma história
Divulgação Festival de Circo do Brasil
Circo Nosotros: atração do Festival de Circo do Brasil, este ano
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++++++++++ Se, na tradição, os números com animais eram imprescindíveis, no Novo Circo as jaulas foram abertas e os animais devolvidos a seu habitat natural
Divulgação
Cirque du Soleil: maior empresa circense do mundo
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Há ainda outras diferenças significativas. Se, no Circo Tradicional, o risco e a iminência da morte são elementos constitutivos da tensão dramática, nas formas contemporâneas eles foram substituídos por redes e corda de segurança, pois a tensão está na narrativa. Se, na tradição, os números com animais eram imprescindíveis, no Novo Circo as jaulas foram abertas e os animais devolvidos a seu habitat natural. Se o verdadeiro Circo só podia acontecer na pista circular (cujo formato ideal tinha 13 metros de diâmetro), as novas gerações levaram-no para os teatros, as casas de shows, os mercados e outros espaços alternativos. Se os grandes circos possuíam equipes gigantescas, hoje as trupes circenses se constituem de até três elementos. O que acontece, na verdade, é uma transformação do gênero “puro” circo em artes do circo. As disciplinas recuperam sua soberania e autonomia. As artes plásticas são convocadas e os elementos visuais passam a ter uma função na construção do sentido da cena. Os figurinos, os cenários, as cores são pensados em seu conjunto, como elementos na produção dos significados. A iluminação deixa de ter uma função apenas instrumental (não deixar às escuras) e passa a construir atmosferas e climas. A música, antes um repertório fixo para cada número, passa a ser composta especialmente para cada espetáculo. Coreografias, maquiagens, tudo passa a ser pensado como expressão artística, como peça fundamental para o funcionamento do conjunto. Uma noção de encenação (miseen-scène), da obra como um todo orgânico, que
havia inaugurado o Teatro Moderno, na virada dos séculos 19 – 20. Todos esses princípios estão na base da criação de inúmeras trupes e grupos que se multiplicaram em todo o mundo, desde os anos 80 até hoje. No Brasil, para ampliar a gama de exemplos, pode-se falar dos Parlapatões, patifes e paspalhões (1991) e do La Mínima (1997), ambos de São Paulo. E foi também nos anos 90 que o circo passou a ser entendido como importante ferramenta pedagógica para inclusão de crianças, adolescentes e jovens em situação de risco social. É o nascimento do chamado Circo-Social, outra vertente do Novo Circo, que mantém inúmeros projetos sociais cuja base educacional está em valores circenses como equilíbrio, concentração, desafio, superação de limites e espírito de equipe. O próprio Cirque du Soleil mantém um Programa de nome Circo do Mundo, que reverte parte da renda de seus espetáculos para ações do Circo-Social na África e América Latina. No Brasil, mais de 20 instituições utilizam essa metodologia, de Norte a Sul do País, desenvolvendo capital humano a partir das milenares técnicas do picadeiro. É o caso da ONG Escola Pernambucana de Circo, fundada em 1996, que atende mais de 100 crianças da Zona Norte do Recife e tem em seu curriculum cinco espetáculos, entre eles O Vendedor de Caranguejo, que retrata o cotidiano da capital pernambucana, dialogando com manifestações da cultura popular e com o manguebeat. Tradicional ou Contemporâneo, o circo continua vivo, multiplicou-se, hibridizou-se, distendeu seus limites, descobriu outras vocações e aptidões. Permanece pulsante no imaginário de adultos e crianças e pode responder com convicção: “Hoje, tem espetáculo? Tem, sim, senhor!”. •
CAPA 21
Picadeiro nas telas
++++++++++++++++++++++++ Fotos: Reprodução
O trágico e o cômico no picadeiro onírico da nostalgia Marcelo Costa ob a lona ou ao ar livre, o circo despertou por séculos o fascínio dos homens. Seja como uma tentativa de fugir da realidade, ou subvertê-la, o picadeiro é um inegável elemento onírico onde as fantasias se multiplicam. Visto dessa forma, ele guarda semelhanças íntimas com o cinema, que, através de projeções, pode simular a satisfação de sonhos e pulsões, ou tentar registrar, entender e mesmo interferir na realidade; sempre presente, mesmo quando é o elemento a ser distanciado. Essa proximidade garantiu ao circo uma contribuição inegável à sétima arte. Grandes artistas do cinema como Chaplin, os irmãos Marx, Fernandel e Mazzaropi tiveram o picadeiro como uma grande escola para desenvolver seus trabalhos diante das câmeras. Chaplin talvez seja o exemplo mais claro disso. Seus filmes inspiram um sentimento ambíguo peculiar ao circo: a nostalgia. Como um palhaço, provoca gargalhadas enquanto uma lágrima se forma por trás da maquiagem. Há um quê de tristeza na alegria do vagabundo Carlitos, que a torna ainda mais bela. Seu amor pelo fazer rir sob a lona fica claro em O Circo (The Circus, 1928). Nele, o vagabundo está falido e faminto, quando é confundido com um batedor de carteiras. Ao fugir da polícia, entra no picadeiro e se transforma, sem consentimento, na principal atração da trupe. Logo se apaixona pela filha do dono do circo – sujeito rude e opressor –, encantada pelo funâmbulo Rex. Carlitos protagoniza momentos hilariantes, culminantes num desfecho solitário, quando descobre que a fama e as fantasias vividas no picadeiro se esvaem com o desmontar da lona. Num encontro incestuoso com a alegria, Chaplin entristece sem perder a ternura e comprova sua versatilidade ao escrever, dirigir, produzir, atuar e compor a belíssima trilha sonora que acompanha a obra.
Chaplin torna claro seu amor pelo fazer rir sob a lona em O Circo, 1928
Ao lado, cena de O Maior Espetáculo da Terra. Acima, Giulietta Masina, nas filmagens de La Strada
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++++++++++ Grandes artistas do cinema, como Chaplin, os irmãos Marx, Fernandel e Mazzaropi tiveram o picadeiro como uma grande escola para desenvolver seus trabalhos diante das câmeras
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Sob a ótica hollywoodiana o espetáculo circense e seus personagens se agigantam em O Maior Espetáculo da Terra (The Gratest Show on Earth, 1952), superprodução dirigida por Cecil B. DeMille. O picadeiro é tratado como um gigante em movimento, cujas costelas são as hastes e cabos de aço, revestidas pela lona; sua pele. Aqui, o emprego de superlativos combina com a megalomania da indústria americana: há uma glamorização do circo e dos personagens, cobertos por lantejoulas e pipocas. A história é centrada num triângulo amoroso formado por Brad Barden (Charlton Heston), o chefe do espetáculo – “um homem com serragem nas veias” –, a trapezista Holly (Betty Hutton) e o colega sedutor Sebastian (Cornel Wilde), recém-contratado por Barden para alavancar o show. Sob o enfoque dos bastidores, o filme explora pouco os conflitos que sugere. A ilusão versus a realidade, a disputa de egos, a personalidade escondida sob a maquiagem do palhaço Buttons – personagem de James Stewart, melhor do filme –, e o gosto pelo trágico são algumas questões levantadas, mas incompatíveis com o tom da obra, repleta de soluções simplistas. O triângulo amoroso de trapezistas, formado por Burt Lancaster, Gina Lollobrigida e Tony Curtis, em Trapézio (Trapeze, 1956), aborda melhor o conflito de interesses e a tragédia como espetáculo, num filme mais sóbrio. Numa estética oposta à assepsia hollywoodiana, os conflitos humanos escondidos sob a lona e a penumbra da moralidade são desvendados pelo olhar sombrio do expressionismo. O circo se transforma numa forma de resgate da espontaneidade ou numa alegoria para a expressão da sordidez humana. Nos clássicos alemães O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, e o Anjo Azul (1930), de Josef Von Stenberg, as figuras do hipnotizador e do palhaço, respectivamente, representam a vileza e a degradação
humanas. A deformação estética como estado de espírito e o gosto pela tragédia levam à exaltação do grotesco: elemento principal do kafkiano Monstros (Freaks, EUA, 1932), de Tod Browning. As atrações circenses ganham um tratamento nunca antes visto: são aberrações que “a não ser pelo acidente no nascimento, podem ser comparados aos seres humanos normais”, segundo o apresentador. Na verdade, Browning mergulha na alma doentia do homem para revelar toda a desumanidade presente nos seres normais, em detrimento da inocência e espontaneidade das criaturas bizarras. O filme foi censurado e mutilado em diversos países, mas merece uma releitura de seu conteúdo “maldito”. O tom sombrio do Expressionismo permanece
CAPA 23 ++++++++++ Já nos primeiros trabalhos, o estilo circense de Fellini transparecia, mas em A Estrada da Vida (La Strada, 1954), com Giulietta Masina, essa relação ficou mais clara
A Mulher e o Atirador de Facas, Patrice LeConte
no sueco Ingmar Bergman, que também se valeu de elementos circenses para compor seus conflitos existenciais. O picadeiro é o grande palco da degradação humana em Noites de Circo (Gycklarnas Afton, Suécia, 1953), seu primeiro trabalho com o mestre da fotografia Sven Nkvist. O filme trata de uma decadente companhia de circo, cujo diretor se encontra em crise com sua jovem amante, envolvida por um sisudo ator de teatro. Bergman imprime um tom naturalista à obra seus personagens suam, sangram e sofrem conferindo-lhe um tom realístico. Ele voltaria a tratar de uma trupe degradante em O Rosto (Ansiktet, 1958) e na obra-prima O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, Suécia, 1956), no qual um grupo de artistas mambembes acompanha o cavaleiro Antonius Block em sua saga em busca da fé. O expressionismo e o diretor sueco foram homenageados por Woody Allen em Neblina e Sombras (Shadows and Fog, EUA, 1992), uma comédia de mistério repleta de personagens circenses que remetiam a Fellini. Não há como se pensar na associação circo e cinema sem lembrar o grande palhaço italiano. Certa vez, ele disse: “Sinto afinidade com qualquer um que tenha a aspiração de montar um espetáculo”. Isso fica evidente em seus filmes. Fellini dirigia com a eloqüência do espetáculo circense: não há contenção, o lirismo se desnuda de maneira extravagante e parece declamar em notas de trompetes e trombones a poesia do viver. Sua estética é inconfundível e permeada de elementos do circo e dos shows de variedades. Hoje, talvez Emir Kusturica – especialmente em Underground e A Vida é um Milagre – seja o correspondente mais próximo do que Fellini representou. Patrice LeConte, em
A Mulher e o Atirador de Facas, também lhe rende uma homenagem juntamente a Truffaut. Já nos primeiros trabalhos, o estilo circense de Fellini transparecia, mas em A Estrada da Vida (La Strada, 1954) essa relação ficou mais clara. O filme é um contraponto entre o bruto e o meigo, a malícia e a inocência, a força física e a emocional, personificados nas figuras de Zampanò e Gelsomina. Zampanò (Anthony Quinn) é um troglodita rude que ganha a vida a partir correntes em números itinerantes, mas mantém a inocente Gelsomina (Giulietta Masina) presa a si. Com seu chapéu e trajes maltrapilhos, os olhos esbugalhados perdidos no rosto arredondado, ela seria a versão feminina de Chaplin. “Giulietta tem a leveza de um fantasma, um sonho, uma idéia. Ela possui os movimentos, a perícia mímica de um palhaço”, disse Fellini numa menção à personagem favorita. Apesar do conflito bem estabelecido, La Strada não se perde em maniqueísmos ao revelar a face mais carente e emotiva do brutamontes que descobre o amor através da perda. O maestro italiano tornaria a trabalhar com elementos circenses no magnífico desfecho de Fellini 8 ½ (1963) – reprocessado em Peixe Grande de Tim Burton, onde o circo reaparece como catalisador romântico – e na viagem junguiana Julieta dos Espíritos (1965), seu primeiro filme em cores. Em 1970, dirigiu o mosaico sobre a vida dos palhaços, Os Clowns, baseado em memórias afetivas. Uma criança assiste, de sua janela, ao erguer da lona, e ingressa no fantástico mundo de mulheres barbadas, atiradores de facas e palhaços que o remetem a personagens reais. Fellini declara o seu amor ao circo ao tentar resgatar a inocência perdida dos palhaços brancos e augustos num falso documentário. Ao final, após demonstrarem tristeza com a vida e brincarem com a morte, só lhes resta tocar trompete num picadeiro vazio sob os holofotes que se apagam. •
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“Circo é feito bicicleta” Relatos de uma visita a um circo mambembe que sobrevive na periferia da Região Metropolitana do Recife Samarone Lima Fotos: Rodrigo Lobo
epois de vários telefonemas, conseguimos localizar um circo popular em funcionamento. Vamos em busca do Circo Transamérica, que está na Vila Popular, “por trás do clube 10 de Novembro, na Pan-Nordestina, por trás da loja Companhia do Ferro”, como diz o Gerson Cardoso da Silva, apresentador e dono do empreendimento. Rodamos um bocado e chegamos ao local, após indicações e contraindicações, numa tarde de quinta-feira. “Receba o circo de braços abertos”, está escrito em um carro, um Opala de ano incerto, comido pela ferrugem, placas KJL 0760, para quem gosta de arriscar no jogo do bicho. O circo está instalado dentro do 10 de Novembro, em meio a um capinzal que cresce por todos os lados. Um vira-lata simpático, o Malhado, que parece muito o cachorro do Máscara, nos recebe com latidas efusivas. É um daqueles cães acolhedores, que se derretem com um afago. Gerson, o dono do Transamérica, nos recebe. Está à soleira de seu trailler, um dos três que conhecemos nesta tarde. Cabelos prateados, sorriso franco, mas nostálgico, com aqueles dentes que parecem ter um pouco de ferrugem na raiz, barriga proeminente, está no mundo do circo desde os 10 anos. Como está com 55, já vai com quase meio século debaixo das lonas. Vivia em Quebrangulo, Alagoas, quando viu um circo e resolveu acompanhar. Era tão pequeno, que a Polícia o trouxe de volta. Na terceira vez, não teve mais jeito. Já trabalhou em mais de 200 circos no Brasil. A história dele é daquelas que merecem um livro, mas a conversa aqui é outra. Ele nos mostra o trailler, enquanto conta como é a vida. “A gente vai sobrevivendo, mas está muito difícil”, diz. Entramos no trailler. No quarto do casal, a esposa Shirleide, 41 anos, trapezista, dobra roupas e organiza a casa. Era costureira em Jaboatão dos Guararapes, conheceu o Gerson quando tinha 19 anos, e mudou de
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vida. Pergunto se gosto dessa vida. “É bom, né?”, diz. Ao lado, o quartinho do filho Diego, de 19 anos, deficiente. Diego fica sentado à frente do trailler, com um ventilador velho ao lado. O outro filho do casal é Diogo, de 18 anos. Na cozinha, uma pequena mesa para três pessoas. Tudo muito simples, apertado para os padrões da classe média, mas eles parecem não precisar de muito espaço.
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Para sobreviver, dão espetáculos todos os dias, "de segunda a segunda", cobrando R$ 2,00, a inteira, e R$ 1,00, a meia
O “Homem-Bala” tímido – No trailler ao lado, a poucos metros, um homem de uns 30 anos, magro, cabelos à altura dos ombros, prepara cuidadosamente uma bandeja de “maçã do amor”. Ao lado, um varal com muitas roupas penduradas, especialmente fraldas. Gerson diz que é João Carlos, o “Homem-Bala”. Quando nos aproximamos, ele sai de repente. “Não gosto disso não”, comenta baixinho, ao ver o fotógrafo, Rodrigo
Lobo, com uma câmera. Lá vai o nosso “Homem Bala”, certamente um tímido, escapando de uma entrevista como o diabo corre da cruz. Sua esposa, Eliane da Silva, nos recebe com um sorriso. Roliça, de óculos, cabelos grandes, ela faz o número em que a mulher é amarrada pelos cabelos e dependurada. “É uma dor que dá para suportar”, diz, sentada em um sofá velho. O trailler é menor, mais simples, quase Continente maio 2007
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sem divisões. No primeiro andar de um beliche, o filho John Carlos Nascimento Timóteo, de oito anos, assiste a um desenho animado na TV 29 polegadas, ligada a um DVD. John, por sinal, já é o “Palhaço Risadinha”, no Transamérica. A filha, Brenda Ketiman, está com seis meses e ainda mama. Ela conta a história de sua vida, pega o álbum, mostra várias fotos dela, do marido e de personagens deste mundo cheio de dificuldades. Lamenta que o filho não esteja na escola. “Sempre inventam uma historinha”, diz, para falar da documentação que as escolas exigem. Não tem direito à Bolsa-Escola, Bolsa-Família, nada. Crediário em loja, nem pensar. “Vida normal” – Mesmo com os apertos, Eliane diz que a vida de quem está no mundo do circo é normal. “Só não tem as mordomias das outras pessoas”. Enquanto fala, vejo os DVDs piratas, debaixo da TV, desses que estão sendo vendidos a R$ 5,00 nos camelôs: Calcinha Preta, Saia Rodada etc. Para sobreviver, dão espetáculos todos os dias, “de segunda a segunda”, cobrando R$ 2,00, a inteira, e R$ 1,00, a meia. “Se você não se mexer, não tem o que comer”, diz. A média de público é de 20 a 30 pessoas por dia. Quando não dá público, não tem espetáculo. Estamos conversando, um calor de rachar, quando a Sirleide se aproxima. “Vai tirar a foto? É que vou ao shopping comprar o bacalhau da sexta, não é?” É que o dia seguinte era a Sexta-Feira da Paixão. Eliane ri, mas não diz nada. Depois perguntei ao Gerson se teria espetáculo na Sexta-Feira Santa. “O fracasso vai fazer a gente trabalhar”, disse, com uma pontada de tristeza em cada sílaba. Damos uma volta pelo circo. O palco, com um tecido gasto. Na frente, água empoçada de alguma chuva recente. Há buracos no teto. São três lances de seis prateleiras de madeira, onde fica o público. Ao lado, compondo a cena, estão os traillers do Gerson, do “Homem Bala”, e uma barraca de camping, daquelas “Capri”, que todo jovem quis ter um dia, nos anos 80. Na barraca mora o Sandro, que faz trapézio, malabares e é palhaço. “Ele saiu”, explicam-me. Ao lado, mais um trailler, de Ricardo, “que faz o giro e o trapézio e é palhaço”, mas não sei o que quer dizer “faz o giro”. “É feito bicicleta” – Gerson diz que o circo “é feito bicicleta: parou, caiu”. O Transamérica está, há cinco semanas, em Olinda. Diz que está “cansando a área”, antes de sair para outro lugar, possivelmente Beberibe. Ir para um bairro chique, nem pensar. Tem que ser bairContinente maio 2007
Shirleide, 41 anos, e Diogo, 18: mãe e filho demonstram suas habilidades circenses
ro popular mesmo, que é aonde o povo ainda vai ver circo, explica. Para sobreviver, o jeito é chamar convidados que possam atrair o público. Nesta quinta-feira, o apresentador Reinaldo Belo, “o repórter do balacobaco”, que já viveu dias melhores em seu programa de rádio, é o convidado. Leva de cachê metade do apurado. “É o jeito”, diz Gerson. No final de semana, será a vez da turma de “Cinderela”, que tem um programa escrachado na TV. Quem faz a propaganda do circo é Thiago Cardoso do Nascimento, de 13 anos. Ele circula de bicicleta pela ruas do bairro, com uma caixa de som anunciando a programação do dia. “Hoje, no Circo Transamérica, Reinaldo Belo, o repórter do balacobaco”, diz um apresentador, num CD gravado. O menino ganha R$ 30,00 por semana, ou mais ou menos R$ 4,70 por dia. Pergunto por onde ele circula, ele me explica, diz
CAPA 27 ++++++++++++++++++++++++ Richard Haughton/Divulgação
Circo no Festival
como é o trabalho, baixa o som, até que me pergunta: “Mais alguma coisa?” Entendi, ele quer ir trabalhar. O menino começa a pedalar, com o som bem alto: “É hoje, no Circo Transamérica...” Saímos do Transamérica já à tardinha, após uma conversa meio melancólica sobre o passado, com o Gerson. Ele falou dos lugares por onde andou, dos amores, das muitas coisas que deixou para trás. Depois, veio a confissão: “Quando chega a hora de desmontar, dá vontade de desistir. O pior de tudo é transportar o circo”, diz. Pensei ainda em encontrar o “HomemBala”, mas ele não voltou. Pensei em voltar à noite, para ver o espetáculo, mas só me ocorreu desejar que as arquibancadas estivessem cheias, o que parecia pouco provável. •
Entre os dias 18 e 27 de maio, o respeitável público recifense vai participar de muita marmelada e muita palhaçada. Serão duas lonas, no Marco Zero e em Boa Viagem, apresentações de rua (Parques da Jaqueira e 13 de Maio, Nascedouro de Peixinhos, Morro da Conceição) e em teatros, todas com espetáculos do mais alto nível. O Festival de Circo do Brasil chega ao seu terceiro ano como um dos mais importantes festivais da categoria no país. Nesta edição, a Mostra Pernambucana de Circo acontece, paralelamente, com cinco lonas, mostrando ao público os talentos da casa. Abrindo a programação, no dia 18, Aurélia Thierrée Chaplin, neta do genial Carlitos, apresenta, no teatro de Santa Isabel, o espetáculo L´Oratorio d´Aurélia (foto), que une o hall music com a magia do circo. “É um híbrido. Não é circo. Não é teatro. Não é dança. Mas ele usa um pouco de cada para chegar a uma história”, define Aurélia. Filha de Victoria Chaplin (que assina a direção e concepção do espetáculo) e do ator e diretor Jean-Baptiste Thierrée, Aurélia foi criada no circo dos pais e subiu aos palcos ainda muito nova. Outra grande atração internacional será o quase inclassificável e premiado Avner Eisenberg, que faz seu show nos dias 26 e 27. O artista faz um mix entre o palhaço e o mágico, utilizando mímica e marionetes. O curioso Avner faz parte do Hall Internacional da Fama dos Palhaços e tem também, em seu currículo, uma prisão por bufonaria pública, nas ruas de Paris. Na programação do festival estão ainda: Circo Zanni, Circo Nosotros, Cus Cus Circus, Cirkombinados, Kasalamanka, The Pambazos Boy. A programação completa pode ser encontrada no site: www.festivaldecircodobrasil.com.br Continente maio 2007
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Ele já morou no Brasil! (A poesia) é a exploração da materialidade das palavras e das possibilidades de organização das estruturas verbais.
João Cabral de Melo Neto
M
eu amigo Pedro Vicente emprestou, a mim e a Cláudia, quatro volumes da obra de Miguel Torga, que é volumosa nos campos da ficção, poesia, teatro, textos doutrinários e ensaios. Como pelo gigante se conhece o pé, os quatro volumes não me fazem um especialista, mas apenas um mero admirador. Duvido que as novas gerações o conheçam. Quando tinha 12 anos, trouxeram-lhe para o Brasil, onde passou a sua adolescência, e foi levado de volta para a terrinha em 1925, 13 anos depois. Não teve, propriamente, vida literária em nosso país. Miguel Torga é seu pseudônimo, pois seu nome verdadeiro era Adolfo Correia Rocha, nascido em São Martinho de Anta, em 12 de agosto de 1907, e falecido, em Coimbra, em 1955. Ele se foi com apenas 48 anos. Este ano é o do centenário do seu nascimento, e uma das homenagens mais duradouras será o projeto Espaço Miguel Torga, que custará um milhão de euros à prefeitura de Sobrosa e que ficará situado em São Martinho da Anta. Trechos de sua obra são frequentemente citados nos discursos dos políticos e autoridades, assim como acontece com a obra de Drummond. Escritor prolífico, que se deu bem em todos os gêneros, é como poeta que é mais admirado em um grande número de países ocidentais e orientais. Sua poesia, ou grande parte dela, está nos 16 volumes do Diário ou livros autônomos. Fazer uma resenha sobre a obra de um poeta de grande magnitude, como Miguel Torga, obriga-nos, e meus milhões de leitores o sabem muito bem, em transcrever um pequeno fragmento de sua obra:
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MARCO ZERO
Maceração Breves dias da vida. Aprendi neles apenas a morrer. Desde a manhã brumosa da partida A este anoitecer Sombrio da chegada, Foi sempre o pesadelo de antever O desfecho fatal da caminhada. E pergunto a quem vim Assim Clarividente. Perdido e consciente Da minha perdição, Contra o instinto de conservação A durar no meu corpo eternamente. Eis uma linguagem meio-clássica, mantendo o costume tradicional de colocar, inclusive, em letras maiúsculas as iniciais de cada verso. No entanto, o poeta optou por estruturar seus poemas em versos livres. Por falta de ritmo, eu costumo chamar tal tipo de poema de crônica lírica, sem com isso interpor nenhum critério
de valor, cada texto valendo por si mesmo. A linguagem de Torga é clara, limpa. No entanto, ela difere da de Juan Ramón Jiménez e Antonio Nobre, por exemplo, por constituir-se de certa densidade espiritual. É possível que entre os muitos seminários e palestras que serão realizados nos vários países que vão homenagear o grande poeta português, alguns deles talvez se interessem em confrontar a poesia dos três citados poetas latinos: Miguel Torga, Juan Ramón Jiménez e Antonio Nobre. Há muitas universidades envolvidas nas solenidades. O Brasil, que já hospedou o poeta durante 13 anos de sua juventude, é um dos primeiros escolhidos para receber a grande exposição sobre a vida e a obra de Miguel Torga. Também está na agulha para receber a exposição a Universidade de Antuérpia, na Bélgica, segundo a delegada Regional de Cultura do Norte, Helena Gil. As perspectivas sobre a adesão de novos países e a captação de novos recursos fizeram os organizadores dos eventos não encerrarem mais as comemorações no dia 31 de dezembro próximo, mas prorrogá-las para 2008. Homenagens internacionais a um poeta. Nem tudo está perdido. • Continente maio 2007
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LITERATURA
Revistas definem panorama literário As revistas (impressas ou digitais) exercem no Brasil o papel fundamental de divulgar e criticar a nova poesia Claudio Daniel
Rosane Vargas/SINTRAJUFE
Manifestante protesta no Fórum Social Mundial. O poeta também pode assumir uma posição de consciência crítica no mundo contemporâneo
“P
oesia em tempo de guerra e banalidade” é o nome do encontro literário internacional realizado em Campinas, entre maio e junho de 2006, organizado por Alcir Pécora e Régis Bonvicino, editores da revista Sibila. O evento discutiu uma questão essencial de nosso tempo: qual é o papel da poesia num mundo unipolar, regido pelo império da tecnologia, do mercado e da mídia, que exilou o sentido utópico, presente nas vanguardas do início do século passado? Há no mínimo três atitudes que os poetas podem tomar, respondendo ao desafio sibilino: a) aceitar a nova visão de mundo, ingressando no coro dos contentes, já bem afinado por tantas vozes que buscam o sucesso antes mesmo de terem realizado uma obra literária válida (para estes, o que importa é o marketing, não a estética ou a mudança do mundo); b) conformar-se à criação poética pura, fazendo do exercício rigoroso da linguagem a sua ética pessoal, sem concessões à facilidade nem retrocesso a formas gastas; c) manter a atitude inconformista, de denúncia e rebelião solitária, unindo a experiência da linguagem à consciência crítica. A terceira atitude é a mais arriscada, numa época em
que a revolução comportamental iniciada nos anos 60 foi consolidada e transformada em objeto de consumo, e os projetos alternativos para a mudança social foram arquivados, pelo consenso relativo em torno da democracia liberal e da economia de mercado. A própria idéia de vanguarda foi colocada em xeque pelos formuladores do conceito de pós-modernidade. Essa aparente apatia é questionada, no entanto, pela própria realidade que, em Chiapas, Oaxaca, La Paz e outras localidades, não só na América Latina, aponta os resultados nocivos da globalização econômica, como a redução dos direitos sociais para favorecer a acumulação de capital. Ainda é cedo para sabermos se os novos movimentos aglutinados no Fórum Social Mundial apontarão uma saída viável. O fato concreto é que surgem vozes dissonantes, inclusive na intelectualidade norte-americana, denunciando a agressão imperial a outros países, a limitação da liberdade individual e de imprensa, a pretexto de combater o terrorismo (medidas autorizadas pelo Ato Patriota) e a agiotagem financeira internacional. Nesse contexto, o poeta pode assumir uma posição de consciência crítica: assumir sua cidadania, seu inconformismo intelectual, sua participação num processo, ainda incipiente, de mudança de valores, aceitando pagar o preço pela dissidência.
LITERATURA
Reflexão Crítica – Sibila adotou a estratégia de unir a discussão do estar no mundo com a intervenção cultural, buscando formas poéticas diferentes daquelas praticadas no cânone literário recente (que vai de Bandeira e Drummond a Cabral e à poesia concreta). Essa jornada parte de uma reflexão crítica sobre a vanguarda e avança no sentido de ampliar o repertório, por meio da atividade crítica e da tradução de autores contemporâneos de qualidade, como Robert Creeley, Michael Palmer, Charles Bernstein e Claude-Royet Journaud (escolhas mais inteligentes do que as realizadas pela revista carioca Inimigo Rumor, que se contentou com autores de dicção tradicional, como Adília Lopes, Nicanor Parra e Antônio Cisneros, que em nada contribuíram para a renovação das formas poéticas). O diálogo brasileiro com a poesia norte-americana divulgada por Sibila (e antes dela, pela extinta revista Monturo), no entanto, merece um comentário mais atento. A tradição minimalista, prenunciada talvez por Emily Dickinson, no final do século 19, teve o seu momento de expansão na década de 1920, com a obra seminal de poetas como William Carlos Williams, Louis Zukofski, Cummings e outros, em geral ligados ao Objetivismo. Esta é uma poesia concentrada, de imagens rápidas, fragmentárias, que exploram ao mesmo tempo a sonoridade e o pensamento, pela maneira como articula o discurso. Gertrude Stein adotou estratégia diversa, transformando palavras e fonemas em matéria plástica e sonora, sem um sentido preciso (os tender buttons, aliás, uma gíria para designar o clitóris). A influência combinada dos objetivistas e da
autora da Autobiografia de Alice B. Toklas foi decisiva para a chamada Language Poetry, surgida nos Estados Unidos na década de 1970, que podemos considerar uma síntese da tradição da vanguarda norteamericana. O trabalho tradutório de Bonvicino foi importante para a divulgação desses autores entre nós, e influenciou a fase inicial de poetas como Tarso de Melo, Fabiano Calixto e Kleber Mantovani. Com o passar do tempo, no entanto, esse minimalismo criou um novo beco sem saída, pela excessiva repetição de processos. O uso exclusivo de minúsculas, em espaço duplo, com abundância de substantivos e poucos verbos (sempre no infinitivo) tornaram-se cacoetes, assim como a descrição de cenas e situações em linguagem fragmentária e elíptica e o uso não-gramatical da pontuação. A reverberação das técnicas mais evidentes da Continente maio 2007
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LITERATURA Language Poetry, que não pode ser reduzida a esses recursos, acabou estabelecendo um padrão que não causa mais surpresas.
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A revista Inimigo Rumor realizou em seus primeiros números um mapeamento criterioso da poesia brasileira contemporânea
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Tendência neobarroca – A poesia concreta, diga-se aqui, desde a década de 50, já realizou uma síntese radical da herança das vanguardas, ainda não plenamente assimilada por nossos poetas e críticos literários. Se alguns aspectos do plano-piloto envelheceram, permanece o desafio de buscar uma solução para a crise histórica do verso, sem o retorno acrítico a fórmulas exauridas. O próprio Haroldo de Campos, em obras como Galáxias, Crisantempo e nos ensaios sobre o pós-utópico, buscou uma outra vereda, que podemos situar na tendência chamada neobarroca, que se desenvolveu, sobretudo, nos países de língua espanhola da América Latina, a partir de 1970, tendo como expoentes o cubano José Kozer, o argentino Nestor Perlongher e o uruguaio Roberto Echavarren (e poderíamos acrescentar a essa lista os brasileiros Wilson Bueno, Horácio Costa, Josely Vianna Baptista e o Leminski do Catatau, além do próprio Haroldo). O neobarroco não é uma escola; não tem princípios normativos como o verso livre ou as “palavras em liberdade”. Podemos caracterizá-lo, em termos gerais, como uma estética da miscigenação, da quebra de fronteiras entre repertórios culturais, mesclando o erudito ao popular, o neologismo ao arcaísmo, o ocidental ao oriental, o poético ao prosaico, num deliberado hibridismo, que incorpora ainda a tradição do Século de Ouro (com sua rica imagética e proliferação de metáforas) e da vanguarda internacional. Divulgado no Brasil por Josely Vianna Baptista (Caribe Transplatino) e por mim (Jardim de Camaleões), e ainda por revistas como Coyote, Oroboro e Et Cetera (todas editadas no Paraná), o neobarroco teve presença discreta em nossas letras,
mas é visível sua influência em autores mais jovens, como a paulista Adriana Zapparoli e o cearense Eduardo Jorge. Se a dicção neobarroca ou hermética é uma das respostas possíveis à crise do verso, outro caminho, pouco explorado entre nós, é o da poesia eletrônica, que permite a interação entre som, imagem, idéia e movimento, em suportes digitais (que facilitam ainda a permutação de signos, a mobilidade e a interatividade, multiplicando as rotas de leitura e a geração de significados). Esse campo de experimentação, que não abole o livro ou a escrita, mas amplia as potencialidades da palavra, com certeza nos surpreenderá, em futuro breve. Na internet, podemos acessar algumas experiências nesse sentido nas revistas Artéria, de Omar Khoury, Errática, de André Vallias, e Popbox, de Elson Fróes. Painel atual – A revista Inimigo Rumor, editada no Rio de Janeiro por Augusto Massi e Carlito Azevedo, realizou em seus primeiros números (que contaram com a colaboração editorial de Júlio Castañon Guimarães) um mapeamento criterioso da poesia brasileira contemporânea, publicando autores como Augusto de Campos, Duda Machado, Régis Bonvicino, Claudia Roquette-Pinto, Antônio Risério e Arnaldo Antunes, entre outros nomes estabelecidos, além de poetas jovens, com pouca oscilação de qualidade. Num segundo momento, a revista assumiu contornos mais ecléticos e tornou-se porta-voz de uma dicção coloquial e cotidiana, que reivindica a herança do modernismo de Bandeira e Drummond e de autores da década de 1970, como Cacaso e Francisco Alvim. Os elementos centrais dessa vertente são o lirismo, a subjetividade, a temática prosaica, inspirada na crônica de jornal, e o humor (por vezes opaco ou ingênuo, sem a contundência de Glauco Mattoso e Sebastião Nunes). É uma poesia que não
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investe na renovação léxica ou sintática, respeita o discurso e a lógica linear e não busca novos processos de criação. A defesa do lirismo contra a vanguarda, feita por poetas desse grupo, causa certa surpresa, e merece breve comentário. Lirismo e subjetividade estão presentes, em maior ou menor grau, em toda a poesia moderna, inclusive na vanguarda (lembremos aqui o Poetamenos, de Augusto de Campos, ciclo de poemas coloridos de temática amorosa, inspirados na “melodia de timbres” do músico austríaco Anton Webern). A revolta da modernidade, desde seus primórdios, foi contra o eu lírico narcísico, de efusão sentimental, dominante na época romântica e ainda na simbolista. Ao reduzir a presença do eu, focando a atenção no mundo objetivo e na linguagem, a modernidade deu um novo sentido ao lirismo, que foi reinserido na dimensão social e histórica (lembremos
aqui de Paul Celan, autor de rigoroso artesanato lingüístico e não menos intenso do ponto de vista emocional, e ainda o Rilke dos Novos Poemas). Propor uma antinomia radical entre o lírico e o lingüístico parece-nos uma desculpa para justificar poéticas frágeis, assim como a tática diversionista de apelar a um suposto “conteúdo” ou “urgência de dizer” que não raro se limita à descrição banal da frase escrita numa camiseta. Consciência social e formal – Outro ponto que carece de discussão é o relativo ao enfoque crítico da realidade. Talvez pela excessiva influência do método sociológico de Antonio Candido na universidade, esse debate ainda está atrasado entre nós. O retrato ácido, caricatural do mundo urbano e fabril está presente em Baudelaire, Cesário Verde, Ezra Pound, Drummond, Décio Pignatari. Não há
No alto, poema concreto de Arnaldo Antunes; abaixo, Augusto de Campos, expoente do movimento concretista
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A revista paranaense Coyote se destaca pelo conteúdo criterioso unido à qualidade gráfica e de impressão
conflito entre consciência social e consciência da forma (discussão já travada na Rússia, na década de 30 entre os cubofuturistas e os adeptos do realismo socialista), ao contrário: a denúncia é ainda mais expressiva quando apoiada num texto poético forte e eficaz. No poema “Nós”, de Cesário Verde, para ficarmos num único exemplo, podemos ver a antecipação do Futurismo pela temática urbana, concisão e estilo telegráfico de certas passagens: “cidades fabris, industriais,/De nevoeiros, poeiradas de hulha”/(...) “condados mineiros! Extensões/Carboníferas! Fundas galerias!/Fábricas a vapor! Cutelarias!/E mecânicas, tristes fiações!/(...) Mas isso tudo é falso, é maquinal,/Sem vida, como um círculo ou um quadrado,/Com essa perfeição do fabricado,/Sem o ritmo do vivo e do real”. Não encontramos essa fúria rebelionária, social e semântica, na poesia defendida pelo grupo da Inimigo Rumor, que se limita, muitas vezes, ao registro de pequenas cenas corriqueiras, com palavras singelas, às vezes pueris, como os diminutivos, sem a força de impacto de Cesário Verde, Brecht, Maiakovski ou Drummond (aquele das peças mais consistentes, como “Nosso Tempo”: “Os lírios não nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra.(...)/ Tenho palavras em mim buscando canal,/ são roucas e duras,/ irritadas, enérgicas,/ comprimidas há tanto tempo,/ perderam o sentido, apenas querem explodir”). Humor como crítica – O uso da ironia e da sátira na poesia de temática urbana é uma conquista que remonta ao século 19, especialmente a Jules Laforgue e Tristan Corbière, autores valorizados por Ezra Pound, que via no humor uma forma de crítica não apenas social, mas também da linguagem. O humor é subversivo, corrói as fórmulas gastas do discurso, as pérolas da retórica, as metáforas vazias, e acrescenta ao vocabulário poéti-
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co termos considerados chulos, obscenos ou de mau gosto, pour épater le bourjois. Recordemos aqui alguns versos de Corbière, em tradução de Augusto de Campos: “Não nasceu por nenhum lado / e foi criado como mudo,/ tornou-se um arlequim-guisado,/mistura adúltera de tudo./Tinha um não-sei-quê, – sem saber onde;/Ouro, – sem trocado para o bonde;/Nervos, – sem nervo; vigor sem 'garra';/Alma, – faltava uma guitarra; /Amor, – mas sem bastante fome./– Muitos nomes para ter um nome./ Idealista, – sem idéia. Rima/Rica, – sem matéria-prima;/De volta, – sem nunca ter ido;/Se achando sempre perdido.” Comparemos essa peça com o poemapiada “Parque”, de Francisco Alvim, que o crítico Manuel da Costa Pinto incluiu em sua Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século XXI: “é bom/mas/é muito misturado”. Enquanto o texto de Corbière, a cada releitura, permite a investigação de novos sentidos, o texto de Alvim esgota-se na primeira leitura, pela banalidade. Esse estilo ingênuo de humor, que deriva dos versos de circunstância de Manuel Bandeira, não pode competir com os mestres do sarcasmo e da irreverência de nosso idioma, como Gregório de Matos, Bocage, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Glauco Mattoso; é um humor bem-comportado, tímido, funcionário público, de óculos e gravata, incapaz de atingir a força expressiva dos clowns de que falava o próprio Bandeira (“O lirismo difícil e pungentes dos bêbedos/O lirismo dos clowns de Shakespeare”). Acredito que nossa literatura só teria a ganhar com uma poesia, ou antipoesia, coloquial-cotidiana de alta elaboração formal, mas este não é o caso de muitos poetas valorizados pela revista Inimigo Rumor, cuja qualidade literária não está no mesmo nível de sua divulgação publicitária, não apresentando nenhuma aventura intelectual. Alternativa da Coyote – “A arte só serve para alguma coisa se é irreverente,
LITERATURA atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos à nossa consciência.” Este pensamento de Pedro Juan Gutiérrez, que serve de editorial ao nº 14 da revista Coyote, define de maneira lapidar a linha seguida pela publicação, dirigida pelos poetas Ademir Assunção, Marcos Losnak e Rodrigo Garcia Lopes. Não se trata aqui de um grupo articulado em torno de uma proposta exclusivamente literária, já que a literatura não é concebida como mera representação do mundo, mas como algo que nos permite pensar e modificar o mundo. Coyote investe na atitude crítica para manifestar o seu desconforto perante uma sociedade cada vez mais acéfala, construída à imagem e semelhança da indústria de consumo, cujos ícones, na realidade brasileira, são programas de televisão como Big Brother ou os shows de auditório de Gugu Liberato, Faustão e assemelhados. Como antídoto à lavagem cerebral, a revista ataca em várias frentes, publicando desde textos experimentais de alta elaboração formal, como a prosa poética do escritor João Filho, até a tradução de autores estrangeiros pouco conhecidos no Brasil, de diversas épocas e países, como o coreano Yi Sáng, o sírio Adonis, o chinês Po Chu I, o escocês Edwin Morgan ou o dominicano León Félix Batista. Em seus dossiês, a publicação privilegia autores que, além da invenção verbal, têm uma visada crítica de repúdio à massificação e à banalidade, como a chilena Cecília Vicuña, o mexicano Eriberto Yépez, o brasileiro Roberto Piva. Coyote também publica obras de fotógrafos e artistas visuais, incentivando o diálogo entre a poesia e outras artes. É uma publicação bem-informada, que tem aberto espaço a poetas e prosadores da novíssima geração, com critério na escolha de autores e textos – e cabe aqui destacar o trabalho de Simone Homem de
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Mello, autora que reside hoje na Alemanha, que publicou em 2005 o importante livro Périplos, pela Ateliê. Espaço virtual – Não poderíamos concluir este ensaio sem mencionarmos a produção de autores jovens que vêm publicando poemas e traduções de qualidade em blogues e revistas virtuais, com destaque para o Papel de Rascunho, de Virna Teixeira (autora dos livros de poesia Visita e Distância), Caderno V, de Daniela Ramos, Folhas de Girapemba, de Ana Maria Ramiro, o Pesa-Nervos, de Franklin Alves e Uri Geller, de Leonardo Gandolfi, além das revistas Mnemozine, Germina e Zunái. A internet, hoje, é o veículo mais atualizado para quem deseja conhecer o que se faz de mais qualitativo na poesia contemporânea, furando o boicote dos cadernos culturais da imprensa diária, cada vez mais reduzidos à condição de folhetos publicitários. A questão básica, hoje, não é discutir onde está a poesia, mas onde está a crítica. •
Página da penúltima edição da revista eletrônica Mnemozine, com um perfil do poeta pernambucano Pedro Xisto. Abaixo, capa do último número, com destaque para Alice Ruiz
A internet, hoje, é o veículo mais atualizado para quem deseja conhecer o que se faz de mais qualitativo na poesia contemporânea
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Maurício Coutinho
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Declaração de amor ao Recife
Cristiana Dias
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O jornalista e poeta Robson Sampaio lança seu livro O Recife & Outros Poemas, com ilustrações de vários artistas de Pernambuco Marco Polo
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istura de sereia e esfinge, Recife, a cidade cruel, continua fascinando, provocando e devorando seus artistas. Robson Sampaio, poeta, boêmio e jornalista, é um deles. Seus poemas tematizam obsessivamente a cidade e sua própria relação com a cidade. Mas o poeta não quer ver-mostrar o Recife dos cartões-postais, o Recife-para-turistas, Recife visto mesmo por aqueles que moram aqui, mas vivem blindados contra o ventre da cidade. Não, a Robson interessa a busca pelo minotauro que se esconde nos labirintos de becos e ruelas. A Robson interessam as flores de lama, o rosto escuro, a face oculta na sombra da miséria. Não estamos, entretanto, diante de um homem soturno. O poeta Robson Sampaio é, antes de tudo, um boêmio, ou seja, um ser generoso, capaz de captar também os reflexos de relâmpagos e lâminas. Ou, ainda, de um modo mais terra-a-terra, mais nuançado entre a ironia e a piedade, a música banal dos puteiros, a fome de carne estranha, a folia bêbada dos bares, a procissão de fantasmas (às vezes coloridos) que percorre o rio, as ruas e os bairros.
LITERATURA
Recife Antigo Nos botequins de ontem, relembro velhos e novos amores e carrego, por ruas e becos, o presente e o passado, simbiose de eterna saudade. Então, batem as lembranças: nada mudou no Recife Antigo, onde poetas, bêbados e vagabundos vagueiam, à noite, feitos zumbis. Somos os sonâmbulos da boemia, animais sedentos de amor e de paixão, que recolhem pedaços da carne só para salvar a alma e, assim, alcançar o perdão. Nada mudou no Recife Antigo, onde as faces sofridas se multiplicam iguais e com sulcos talhados de dor... Somos os compositores das canções da vida, os poetas dos poemas passageiros, os artesãos que juntam trapos e confeccionam, diuturnamente, o eterno uniforme do Recife Antigo. Formamos o cordão dos desesperados, de alegrias furtivas, de sonhos perdidos e de vontades saciadas, quase sempre, em corpos estranhos. Mas, nada mudou no Recife Antigo, onde a sinfonia prossegue até o clarear dos arrecifes. E, nós, em passos trôpegos, buscamos a Estrela-Guia, entoando o canto mágico do faz-de-conta. Assim, transformamos o nada em tudo e o imaginário em imaginação, enquanto a música melosa é ouvida mais forte nos puteiros do Recife Antigo. Onde nada muda...
Ilustração: Felic
Robson é também o autor de versos inesperados pela beleza e força. Diz de outro poeta que “a sua escuridão é azul”; revela, arguto, que os meninos de rua são “meninos dos ventos/ gente sem mundo/ meninos do nada”; percebe que “as rugas são fendas/ abertas na face de dor/ daquela mulher (...) tênue réstia da morte”; para ele, o tempo “encurta a distância do sempre”; e anuncia, para os perplexos, que “no Dia dos Mortos,/ os mortos riem do choro/ e da reza dos vivos,/ lamúrias perturbadoras/ da paz e do silêncio”. Em contraponto, fala que “ecoam gritos eternos na/ vastidão das noites e do mar”. Numa demonstração de poder descritivo minucioso e delicado, conta que “a vila era tão pequena,/ mas tão pequenina,/ que cabia na menina dos meus olhos”; para daí inferir, trazendo para o humano que não lhe é estranho, a descoberta de que “tudo era tão miúdo,/ mas tão miúdo,/ que o amor cabia na alma”. O poeta consegue não só uma unidade temática, como uma unidade de tom, nos poemas que revolvem a vida urbana. Mais adiante, parte em viagem pelo Sertão, esse complemento inevitável do Recife litorâneo, afinal, é de lá que vem muito da personalidade do pernambucano, que costuma esconder a ternura sob uma carapaça crítica. Robson Sampaio, que é alagoano, chegou ao Recife com 12 anos de idade e aqui fez sua vida profissional como jornalista, e sua vida emocional como boêmio, amante e poeta. É, portanto, como dois outros poetas seus contemporâneos, Jaci Bezerra e Ângelo Monteiro, um alagoano pernambucanizado. Sua vida está enraizada nesta terra e é daqui que ele retira sua seiva. É por isso que seu livro é uma declaração de amor. Uma declaração de amor sem derramamentos ingênuos e românticos. Pelo contrário, feita com a fibra dos coqueiros e a areia do fundo dos rios. Uma declaração de amor sem mentiras. Verdadeira como sua poesia. •
O Recife & Outros Poemas, de Robson Sampaio, R$ 20,00. Lançamento: 24 de maio de 2007, às 19 horas. Local: Gabinete Português de Leitura, rua do Imperador, 290, Santo Antônio, Centro, Recife – PE. Coquetel para convidados.
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Imagens: Divulgação
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Favela – a Falsa Imagem Pitoresca, pintura de Diva Pinho
Favelário nacional 24 autores de diferentes épocas retratam na literatura a vida nas favelas brasileiras Luiz Carlos Monteiro
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favela brasileira como assunto literário e jornalístico é contemplada pelos primeiros textos no início do século passado. Um pouco antes, ainda no realismo naturalista, tornou-se comum se falar em cortiço, para designar os redutos e aglomerações da miséria, com sua população de imigrantes, trabalhadores, prostitutas, donas-de-casa e malandros. A favela nasce no Rio de Janeiro em simultaneidade com a grande reforma urbana do prefeito Pereira Passos, com a derrubada de prédios e casas e a construção de novas avenidas e logradouros, que visavam à expulsão dos moradores mais humildes do centro. E também paralelamente à autorização do exército brasileiro para que soldados vindos da guerra de Canudos, com soldos atrasados, construíssem barracos em áreas de encostas na cidade, como o morro da Favella (cujo nome é uma alusão a um morro de mesmo nome no município baiano de Monte Santo), rebatizado depois para morro da Providência. Os olhares que primeiro se voltaram para a favela e os bairros periféricos foram os de médicos sanitaristas e engenheiros, estes por força da profissão e os primeiros pela necessidade de combate a epidemias. Pode-se somar aqui a visada de jornalistas, a exemplo de João do Rio, que teria ido por acaso à favela, acompanhando uma seresta, e terminou por observar, constatar e denunciar as condições de indigência dos moradores. Continente maio 2007
Na literatura, propriamente, os textos pioneiros devem-se a autores da estatura de Lima Barreto, que escreveu sobre a periferia com o conhecimento e a experiência não-deslocada de quem testemunhava de perto os eventos suburbanos. Para suprir uma lacuna tão injustificada quanto considerável, vem a lume agora a coletânea Cenas da Favela, organizada pelo ficcionista Nelson de Oliveira. Traz 24 autores de épocas diversas, sendo Drummond o mais velho em idade e de poema relativamente recente e bastante conhecido, “Favelário Nacional”. Já o carioca Antônio Fraga apresenta a narrativa mais antiga, um trecho da novela Desabrigo, que remete ao ano de 1945. A pendenga entre dois malandros, Desabrigo e Cobrinha, que termina em morte à navalha, foi concebida numa linguagem absolutamente transgressora. A pontuação convencional é desrespeitada, nomes próprios e de lugares se iniciam por minúsculas, frases são concluídas sem o ponto normal, substituído por exclamações, interrogações ou reticências. Representava uma inovação e tanto para a prosa de contos e romances daqueles dias, sendo preciso ainda certo esforço relacional para se compreender, por exemplo, a gíria de “canastra” e “tiragem” (polícia), ou mais ainda o que está nas entrelinhas. Mesmo tipo de história
LITERATURA
Cenas da Favela – As Melhores Histórias da Periferia Brasileira, antologia organizada por Nelson de Oliveira,Geração Editorial/Ediouro, 232 páginas, R$ 39,90.
de rivalidade entre favelados encontra-se em Paulo Lins, autor bem mais jovem que escreveu o rumoroso Cidade de Deus (1997). Dois compositores de morro, antes camaradas, ficam inimigos na disputa pela classificação de um samba-enredo, marcam um almoço e, sem que desconfiem das próprias intenções ocultas, se envenenam mutuamente. Dos autores da década de 50, a surpresa maior vem de Cecília Prada, cujo texto é o relato pungente da morte sugerida de uma mulher e real de seu filho após um parto demorado e difícil, intercalado pela notícia da destruição parcial, no Vaticano, da estátua La Pietá, de Michelangelo, que representava, não por acaso, uma mãe chorando o filho morto. Mostra-se marcante a forma de escrever de Carolina de Jesus, com as páginas de diário que intitulou Quarto de Despejo, publicado em 1960. Ela foi traduzida em vários países, mas não repetiu o sucesso desse primeiro livro, que tinha como atrativo principal a oralização do texto, a escrita repetindo integralmente a fala, sem nenhuma preocupação efetiva com a gramática: “... Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro. Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado. Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela.” O conto de João Antonio “Guardador”, apesar de já ter três décadas, não deixa ninguém se esquecer da ginga, do modo despachado ou, por outro lado, do forçar a barra que demonstram os numerosos flanelinhas presentes no mundo urbano, saltando “rápido e eficiente, limpando com flanela úmida o pára-brisa, impedindo a escapada e cobrando com cordialidade”. A maioria dos autores da coletânea é de São Paulo, embora a típica favela brasileira seja carioca. Minas comparece numa narrativa que remete à Cataguases de Luiz Ruffato e Pernambuco com o lixão da Muribeca, num texto de Marcelino Freire. O paulistano Ferréz escreve o outro poema da antologia, “Eu sou o...”, onde a voz anônima do homem, da mulher ou da criança marginalizada se faz ouvir pelo que contém de revolta e violência: “Eu sou mais um sem direitos, só deveres./ Eu sou aquele que segura o fuzil./ Eu sou aquele que mata o menino que segura o fuzil./ Eu sou aquele que paga a droga e mantém a guerra./ Eu sou aquele que prega a guerra sem fim./ Eu sou aquele que canta a guerra sem fim./ Eu sou aquela que carrega baldes com água, e nota o sol, mas nem lembra mais da chuva”. Mesmo nos trabalhos excessivamente violentos, há uma densidade humana nos atores e personagens que os faz naturalmente palpitar de vida e esperança. Pode-se, assim, entrever uma intensidade vivencial que não se rende à tragicidade radical de quem nada tem a perder ou ganhar. E não se descarta também a profusão instantânea de uma alegria brejeira e sambista que, no contrafluxo da história e da sociedade excludente, tão cedo pretende esmorecer. Ainda mais quando se sabe ou intui que a única meta a ser alcançada na senda daquele locus e na expectativa de quem lá vive se reflete na própria reivindicação de dignidade para a vida individual e coletiva. • Continente maio 2007
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LITERATURA
A Barca dos Livros Natureza e cultura viajam juntas na Lagoa da Conceição, em Florianópolis José Geraldo Couto
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Leitura coletiva e discussão de clássicos como A Divina Comédia e Dom Quixote, palestras de críticos e estudiosos, debates com escritores nacionais e estrangeiros estão entre as atividades desenvolvidas pela entidade
uem conhece a Lagoa da Conceição, em Florianópolis, sabe que se trata de um dos lugares mais bonitos do mundo. São quase 20 quilômetros quadrados de águas de baixa salinidade, cercadas de montanhas, matas, dunas, cachoeiras e uma ou outra construção colonial. A igreja de Nossa Senhora da Conceição, por exemplo, foi erguida em 1750. Cerca de 24 mil pessoas vivem em torno da Lagoa. Nas escolas da região há 2.400 crianças matriculadas. A algumas comunidades só é possível chegar de barco ou por acidentadas trilhas no meio do mato. Não é preciso acrescentar que o transporte aquático é essencial ali: pessoas e mercadorias embarcam e desembarcam diariamente nos 23 trapiches públicos da Lagoa. Entre os artigos de primeira necessidade carregados por esses barcos agora há também livros, livros às mancheias. É o projeto Barca dos Livros, que começa a ganhar corpo depois de cinco anos de so-
nhos e lutas de um grupo de entusiastas da literatura. A idéia inicial da turma era construir uma biblioteca na Costa da Lagoa, um dos povoados mais tradicionais, remotos e carentes da região. Dadas às dificuldades impostas pela distância e pela topografia do lugar, o plano não se viabilizou. Um belo dia, matutando na beira da Lagoa sobre um projeto alternativo, a professora universitária de literatura, Tânia Piacentini, viu passar a Barca da Costa (como é chamado o barco público de passageiros que serve a comunidade) e teve um estalo: “E se a biblioteca fosse um barco”? Nascia ali o embrião da Barca dos Livros. Em fevereiro deste ano, a entidade conseguiu sua sede em terra, num lindo sobrado onde está acomodando e catalogando seu acervo, junto à marina da Lagoa da Conceição. Até então, várias das atividades desenvolvidas pela Sociedade – leitura coletiva e discussão de clássicos como A Divina Comédia e Dom Quixote, palestras de críticos e estudiosos, debates com escritores nacionais e estrangeiros – eram realizadas no pequeno salão do café Rosen, de propriedade de uma das sócias da entidade, Carmen Santiago, então localizado no Porto
LITERATURA nageados do Abril com Livros (o outro era o dinamarquês Hans Christian Andersen). Ela lembrou que 2 de abril, data de nascimento de Andersen, era o Dia Internacional do Livro Infantil, e que 18 de abril, aniversário de Lobato, o Dia Nacional do Livro Infantil. Em seguida, três tarimbados narradores contaram histórias infantis: uma da tradição oral, outra de Ana Maria Machado e outra mais ou menos construída pela própria narradora a partir de vários contos. Prenderam a atenção de adultos e crianças e despertaram aplausos vívidos da platéia, causando espanto e curiosidade nos passageiros de uma escuna de turismo que casualmente passava por ali. Então aconteceu um momento mágico. Tânia Piacentini abriu a palavra para quem quisesse contar uma história ou ler um trecho de livro. Uma menina de cinco anos, Sofia, de rosto redondo e longos cabelos negros cacheados, saiu dos braços da mãe, sentou corajosamente no parapeito do barco e disse que queria contar uma história. Narrou então uma versão pessoal, cheia de elipses e algumas modificações, do conto de “Chapeuzinho Vermelho”. O piloto ligou os motores, começou o caminho de volta. Em torno da Lagoa, tudo continuava igual na tarde parcialmente nublada: a entrada do canal da Barra, a mata escura da Costa, as dunas da Joaquina, as construções baixas ao longo da avenida das Rendeiras, os veleiros e iates da marina... Mas para os tripulantes e passageiros do Sabor da Costa alguma coisa havia acontecido. Em todos havia, com maior ou menor consciência, a convicção de que, pelo menos naquele momento e naquele lugar, a natureza e a cultura se davam as mãos. •
Fotos: Ronaldo Andrade/Divulgação
da Lagoa. Os milhares de volumes da biblioteca estavam empilhados na casa de Tânia e de amigos. Agora, a Barca tem um porto seguro e em breve funcionará como biblioteca circulante, emprestando livros de graça à população da região. Entre as atividades desenvolvidas pela Sociedade, com muitas dificuldades e sem recursos públicos ou privados, houve nos três últimos anos várias viagens experimentais e de divulgação pela Lagoa, realizadas em barcos alugados. Tive o privilégio de participar de uma dessas viagens, no primeiro domingo de abril passado, na terceira edição da série de eventos conhecida como Abril com Livros. Outros dois passeios semelhantes seriam realizados na mesma tarde. A viagem em si foi um evento singelo, de curta duração (uma hora), mas com uma grande carga de emoção e um caráter simbólico poderoso. Umas 20 crianças e uns 20 adultos subiram ao barco Sabor da Costa, no trapiche da marina da Lagoa, para um passeio literário. Algumas dezenas de livros infantis estavam à disposição dos passageiros no centro da embarcação, e as crianças logo se apoderaram deles. Agindo como mestre de cerimônias, Tânia Piacentini explicou que nos primeiros 10 minutos da viagem, dado o ruído do motor, ninguém falaria nada. E assim foi. Quando o Sabor da Costa chegou ao centro da Lagoa, desligaram-se os motores e fez-se um silêncio quase religioso, rompido apenas pelo leve bater das ondas no casco e por uma ou outra gaivota distante. Tânia tomou a palavra para explicar brevemente o sentido do evento e em seguida leu as primeiras páginas de Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, um dos home-
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PROSA
Quero que tudo vá pro inferno Rodrigo Pinto
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rede de nylon espichada ao comprido sossegava os espectadores. No entanto, o trapezista Ferdinando Gomes gostava de galantear a Dama Negra: exigiu que retirassem a proteção. Alegou aos berros que bebera o leite do destemor quando criança, no tombadilho dum cargueiro que singrou as águas do Mediterrâneo. (A mãe, clandestina no navio, fugira do Cairo numa noite fria e chuvosa, não se sabe por quê.) Em seguida entraram a rufar os tambores no picadeiro central do Grand Circo Speranza. As arquibancadas suspenderam a respiração, olhos fixos no alto mastro. Um facho de luz forte divisou o artista a balançar-se de um lado para o outro, lá em cima. Continente maio 2007
Lá embaixo, perto da fileira A2, Amaro Caminha, pipoqueiro jururu, enfileirava saquinhos no tabuleiro, alheio ao espetáculo. Pensava na vida. Tinha sido numa noite fria e chuvosa, como aquela no Cairo. Saiu a pretexto de comprar cigarros e nunca mais voltou. Desculpa esfarrapada aquela, pois não fumava. Mas a mulher não se deu conta disso. Talvez nem o tenha ouvido dizer que tencionava sair para comprar cigarros. Se o ouviu, fingiuse de surda. Olhos fixos na televisão alta. E, como bem disse Edmund Burke, há, sempre, um limite além do qual deixa de ser virtude a tolerância. Na fileira B5, do lado esquerdo, outra figura também não atinava no número de trapézio. Era Romualdo Beltrão, criador de gado, de 55 anos, diabético. Vinha de
PROSA
horas incômodas, noites maldormidas. Tudo porque exigira da professorinha de português Rosinha resposta imediata a pedido de amor. – Espere – disse ela. – Espere que lhe escrevo uma carta dizendo o que sinto. Pois bem. Nada mais senão aguardar. Mas Romualdo era presto e pronto em suas questões. Vivia no mato, lidava com gente que parecia bicho. Vocabulário parco (arrotos, monossílabos pontudos), falava mais com as mãos. Daí que não soubesse lidar com mesuras de moça: açúcar em demasia para quem sofria de diabetes. – Ah, esse inferno de bem-querer! – exclamava às vezes de si para si, numa espécie de explosão de angústia e raiva. – Por quê? Ninguém melhor para responder a essa pergunta do que Lisandro Mendes, irmão de Rosinha, poeta e admirador de Álvares de Azevedo. Acabamos de flagrar suas olheiras fundas cruzarem a entrada principal do circo e seguirem rumo ao pátio de brinquedos. Ali, junto ao gradil do carrossel iluminado, na contemplação de risonhas fugacidades, Lisandro tenta arejar os miolos, limpar os olhos das visões que fabricara, no afã de compor versos definitivos em louvor de sua musa mais recente, Mariângela Caminha, da qual nada mais sabia além do nome e da indecifrável condição de mulher abandonada pelo marido tempos atrás. Com efeito, Lisandro desconhecia o fato de que Mariângela também era viciada em telenovelas, de cujas tramas extraía antídoto para combater o tédio que lhe rabilongava as horas. A ficção televisiva era como que fantasia que se goza à hora marcada, escapatória momentânea de uma existência tacanha e sem sabor que o marido, criatura reles e falta de qualquer ambição, nunca se esforçara por modificar. Com a ajuda da telinha e uma pitada da própria imaginação, Mariângela se transformava, durante os intervalos dos comerciais, na socialite
podre de rica, presença obrigatória nas festas mais sofisticadas da alta-roda; na cantora de rádio dos anos 40, idolatrada por uma legião de fãs em todo o país; na odalisca muito pálida e nervosa, fugindo numa noite fria e chuvosa pelas ruas sinuosas do Cairo, sem saber por quê. – Ai, eu toda vez me esqueço, esse porquê é junto ou separado? – indagou de si Rosinha Mendes, enquanto, sentada à escrivaninha do quarto (não quisera ir ao circo naquela noite ver o noivo), finalizava a carta para o sr. Beltrão. Uma rápida consulta à gramática de José de Nicola & Ulisses Infante (Gramática contemporânea da língua portuguesa, 15. ed., São Paulo, Ed. Scipione, 1997, p. 414) dissolveu a dúvida: “Porque é conjunção causal ou explicativa; tem valor aproximado de pois, uma vez que”. – Ah, então é junto e sem acento mesmo... E leu em voz alta: – Declino do pedido porque meu coração já pertence ao trapezista Ferdinando Gomes, com quem hei de casar em breve. Cravado o ponto final na missiva, colocou Rosinha um disco de Roberto Carlos na vitrola e se pôs a bailar em redor da cama, ao som de uma canção animada, cujo nome havia esquecido. Antecipava assim a leitura dos felizes capítulos conjugais que, a Deus querer, haveria de desfrutar. E estava dessa maneira tão afogada na própria alegria, que não reparou a branca ambulância passar diante de sua janela, levando o corpo do aéreo Ferdinando Gomes para a morgue do Hospital das Clínicas. É que naquela noite a Dama Negra resolvera aceitar a corte do trapezista, no instante mesmo em que um transatlântico, o S. S. Hope, pegava fogo sobre as águas do Mediterrâneo. • Rodrigo Pinto nasceu em Olinda/PE, em 1976, mas sua geografia sentimental foi toda desenhada na cidade do Recife. É formado em Direito e Letras. Atua também como revisor de textos literários, científicos e publicitários.
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Poemas de
RaimundodeMoraes ELEGÍACA
VATE(CÍNIO)
Segui os passos da menina de Tchetchelnik. Dez luas passaram flechadas por Sagitário Maçãs no claro ofertam-se de tanta maturação: ensangüentadas, reluzem. Balançam lustres em din-dlens de poeira suja. Aqui a Praça Maciel Pinheiro circunda o Tempo. O casarão 387 é agora insípido e laranja (mas vi entre uma e outra janela a menina sorrir para mundos distantes). Longe as esquinas de Nápoles Berna Torquay Washington. (As esquinas do mundo são iguais quando punge à solidão a lembrança de tudo que fomos). Corro pelos caminhos de mais um solstício a cidade ergue-se em dóricas faiscantes escaravelhos brotam da terra e no rosto eslavo pupilas pulsam quasars. É por ti: elevo-me à tua memória. Candelabros iluminando a noite o Kaddish arrebanhando os perdidos como nós – percorro os caminhos da mulher de Tchetchelnik. O olhar oblíquo. A boca rubra. A safira no dedo. A Estrela de Mil Pontas rompendo gargantas. É Palavra. Aponta Sagitário mais uma seta em riste. Agora, sabeis: no coração selvagemente livre.
Difícil arte, essa. Erguer catedrais em meio ao pó. Rolar a mesmice das coisas para o alto da montanha. Fazer-se rapidamente entendido enquanto rola a pedra de volta ao chão.
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AMOR & VISÃO Este domingo de papoulas aberradas ao silêncio e que se agarram num único pistilo de delicadeza. Um sol na janela atravessa-me como cristal e eu brilho. Torno-me a mulher que espera seu homem: o mesmo bordado desfeito na noite o arabesco que nas manhãs cresce em insônia e solidão. Me vê agora: os instantes deste domingo me canonizam em pedestais. São os sentidos que tricoteio em surdina são as sintaxes que se abrem-fecham nas persianas da Morte. (Há sinais). Vê: isto é Poesia.
Raimundo de Moraes nasceu no Recife, (PE), em 1967. Jornalista, publicitário e tradutor, participou do Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco. A convite de Paulo Azevedo Chaves, integrou a coletânea Nus, com poetas do Brasil e exterior. Atualmente escreve para vários sites, entre eles o interpoetica.com e o Recanto das Letras.
AGENDA/LIVROS
Ciência e Cordel
Zenival
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Pássaro feito de palavras Paulo Fernando Craveiro desfia, em livro de crônicas, um universo mágico e sonhado para além da crua realidade
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aulo Fernando Craveiro publica o seu décimo livro, apostando num gênero em que é mestre consumado, a crônica. Nos 50 textos deste trabalho, de título Pássaro Feito de Pó, ele escreve sobre os numerosos lugares que visitou, pessoas anônimas ou conhecidas que o marcaram, situações tramadas, vividas e inusitadas. E apesar da imensa lista de lugares que cita, não deixa de falar sobre o Recife, onde mora. Em “Verso e Reverso”, por exemplo, faz referência ao lixo que cobre o mundo, mesmo quando tal lixo é microscópico, luminoso, imaginário, inventado: “Há muito lixo nas casas, nas ruas e nos rios. Fiapos, cutículas e fios dentais entulham o mundo. (...) Um jato luminoso amarelo e – o que mais? – lustroso ilumina o sujo. (...) No Rio Capibaribe, barcos retiram por dia mais de seis toneladas de escombros, bagulhos, enigmas”. O fato é que, mesmo nas crônicas de maior dureza e tragicidade, percebe-se um nítido fio de sensibilidade e inteligência que as percorre e ilumina. Soma-se a isto uma notável erudição – principalmente em relação à pintura – sem o disfarce da modéstia ou, de outro lado, do pedantismo. Porque formada não só da leitura ou da pesquisa, porém muito mais da vivência cotidiana. Em seu texto há sempre uma parcela de surpresa, como se as palavras quisessem dizer mais do que o instante exige e comporta. É provavelmente dessa nesga de tempo feita do real e de coisas visíveis, que Paulo Fernando Craveiro recria um universo mágico e sonhado para além da crua realidade. E é ainda nessa combinação de espaço e tempo que se manifesta a poesia que transpira da vida. Mas que, em se tratando de literatura, somente se realiza nas palavras.(Luiz Carlos Monteiro) Pássaro Feito de Pó, Paulo Fernando Craveiro, Nossa Livraria Editora, 224 páginas, R$ 40,00.
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São 22 folhetos de cinco cordelistas, reunidos numa coletânea organizada por um físico da UFRJ e duas pesquisadoras da Fiocruz. O que une essas pontas aparentemente desconectadas é a temática – ciência, saúde e meio ambiente. Politicamente correto no uso do papel reciclado, o livro é um atrativo divulgador científico, não obstante certas visões simplistas e estereótipos, comuns nesse tipo de literatura, como reconhecem os organizadores, assinalando, entretanto, constituírem os textos “interessantes pontos de partida” para se analisar a relação entre ciência e sociedade. Cordel e Ciência, org. Ildeu de Castro Moreira, Luisa Massarani e Carla Almeida, Ed. Vieira e Lent/Fiocruz, 256 páginas, R$ 23,00.
Unindo Filologia à Filosofia Teria Aristóteles realmente escrito uma Metafísica em 14 livros? E a expressão panta rei (“tudo flui”) estaria realmente escrita ipsis litteris em algum fragmento de Heráclito? Quando o assunto é filosofia antiga, algumas idéias já aparecem tão enraizadas e dadas como seguras que muitos estudiosos prescindem de uma consulta direta às fontes. Esta obra do professor Livio Rossetti, acadêmico da Universidade de Perugia (Itália), é um convite a um retorno filológico mais rigoroso e confiável ao pensamento dos antigos. Introdução à Filosofia Antiga, Lívio Rosseti, Editora Paulus, 440 páginas, R$ 63,00.
Prato Cheio
Com apetite voraz para escrever mais de 300 livros, entre eles clássicos como Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, Alexandre Dumas, o grande mestre do romance histórico, foi também um ilustre gourmand e viajante infatigável. Fruto da sua paixão pela arte culinária e pela descoberta de outras culturas, este dicionário, em bela edição gráfica brasileira, com mais de 600 verbetes, 413 receitas e 275 ilustrações de época, revela uma pesquisa apurada pelas diversas cozinhas do mundo e pela própria história da alimentação. Infelizmente, Dumas morreu antes de poder saborear o seu grande trabalho. Grande Dicionário de Culinária, Alexandre Dumas, Jorge Zahar Editor, 340 páginas, R$ 89,00.
Mal-assombro refinado O russo Ivan Turguêniev (1818-1883), autor do clássico Pais e Filhos, mostra-se, no conto “O Cão Fantasma”, um exímio estilista também na prosa breve. Histórias de aparições de espectros e fantasmas têm uma longa e profícua tradição literária, e não somente na literatura popular. Autores como Shakespeare, Edgar Allan Poe, Hoffman, entre outros, utilizaram esse elemento fantástico para despertar o interesse dos leitores. Edição bem cuidada, com tradução de Tatiana Belinky e xilogravuras de Ulysses Bôscolo, mas com preço um pouco azedo. O Cão Fantasma, Ivan Turgueniev, Editora 34, 56 páginas, R$ 20,00.
Homem bipartido Livro de Philip K. Dick, O Homem Duplo, que inspirou filme homônimo, é lançado
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á 25 anos estreava uma obra-prima da ficção científica no cinema, Blade Runner – O Caçador de Andróides. O autor do romance em que se baseia o filme era o norte-americano Philip K. Dick, que morreria aos 54 anos, poucos meses antes da estréia do que poderia ser o início de sua independência econômica e reconhecimento como escritor. Autor de 130 contos e 48 romances, Dick inspirou filmes como O Pagamento, Minority Report – a Nova Lei e O Vingador do Futuro, entre outros. Hoje, o maior prêmio de ficção científica do mundo leva seu nome. Dick levou uma vida atormentada por perseguições pelo FBI, por causa de suas simpatias pelo comunismo e pelo intenso consumo de drogas. Tema deste seu livro, que também deu origem ao filme homônimo feito em rotoscopia digital, técnica em que as cenas são rodadas com atores e recobertas por animação gráfica. Conta a história de um policial infiltrado entre drogados para descobrir traficantes. Vivendo com dois amigos totalmente amalucados, começa a entrar em crise, pois, por ter que utilizar as drogas O Homem Duplo, que investiga, sente que seu papel duplo Philip K. Dick, Editora Rocco, 308 corre o risco de se cristalizar em realidade páginas, R$ 38,50. mental. Um detalhe que impressiona no livro é a condução magistral dos diálogos entre os drogados, com uma lógica impecável a serviço de premissas paranóicas. (MP)
A criação de uma obra-prima
AGENDA/LIVROS Revista de Literatura
Sai o segundo número da revista Crispim, editada por jovens escritores e jornalistas de Pernambuco. Traz, entre outros atrativos, um conto inédito de Fernando Monteiro, ensaio sobre romance de Osman Lins, e tradução de poema do norte-americano contemporâneo Mark Strand. Quem comprar a revista pode participar, com direito a certificado, do Seminário Literatura, Valor e Crítica (23 e 24 de Maio de 2007, na UFPE). Mais informações pelo e-mail: revistacrispim@gmail.com ou pelo fone: (81) 9109.8423. Crispim – Revista de Crítica e Criação Literária, vários autores, Editora Universitária UFPE, 128 páginas, R$ 15,00.
Poeta maior
Kaváfis, que nasceu em 1863, em Alexandria, e morreu em 1933, na cidade que tanto amou, é um poeta sui-generis: durante sua vida só publicou textos esparsos e sua obra completa é composta de apenas 154 poemas curtos. Mesmo assim é considerado o maior poeta grego moderno. Neste livro, o poeta e ensaísta José Paulo Paes apresenta 74 poemas de Kaváfis, além de um longo ensaio biográfico e crítico. Irônico, refinado, intelectualizado, mas de uma sensualidade contida, em que se exprime abertamente sua homossexualidade, Kaváfis é um desses autores requintados que gratificam o leitor. Konstantinos Kafávis – Poemas, apresentação de José Paulo Paes, José Olympio Editora, 240 páginas, R$ 33,00.
Epifanias
Professor universitário e redator de publicidade, o paulista João Anzanello Carrascoza é também contista premiado e elogiado pela crítica. Autor dos livros Hotel Solidão, O Vaso Azul e Dias Raros, entre outros, assina agora esta antologia de textos organizada por Nelson de Oliveira. Segundo Alfredo Bosi, três palavras caracterizam os textos do escritor: epifania, encontro e silêncio. A capacidade dos personagens de ver o mundo como se fosse pela primeira vez, a delicadeza às vezes cruel dos encontros e os silêncios eloqüentes permeando os diálogos são marcas registradas da competência de Carrascoza.
No ritmo de um dinâmico documentário cinematográfico, o jornalista norte-americano Ashely Kahn narra o nascimento daquele que é considerado unanimemente como um dos mais importantes discos de jazz de todos os tempos e, pelos mais entusiastas, “o mais” importante, Kind of Blue, que Miles Davis gravou, em 1959, em apenas duas sessões de improviso com seu sexteto do qual faziam parte pelo menos mais três feras: John Coltrane, Cannoball Aderley e Bill Evans. O livro começa com uma visão geral do surgimento e desenvolvimento de Davis, desde as inseguranças iniciais, o aprendizado com mestres como Charlie Parker e o aproveitamento das limitações e potencialidades na busca de um estilo próprio, até a elaboração de uma persona pública que impressionasse pelo visual e atitude. Depois, debruça-se minuciosamente sobre a criação do disco, escutando os tapes originais onde estão gravadas as conversas e comentários dos músicos durante a execução da obra. O livro é complementado por cerca de 100 fotos da época. (MP)
Ao perguntar “qual seria o lugar da desconstrução ao se engajar em torno do que se chama enigmaticamente idioma, das armadilhas do idioma, dado que uma língua não é um idioma? Qual o papel do tradutor nesse lugar do impossível, do incomensurável da sua própria língua e de seu idioma, tendo de suportar o incomensurável da língua e do idioma do outro, se – para a desconstrução – não há fronteira entre língua e idioma? Como pensar a contaminação entre língua e idioma, entre o intraduzível e a tradução?”, o professor Paulo Ottoni, procura resumir a intenção deste livro.
Kind of Blue – A História da Obra-Prima de Miles Davis, Ashley Kahn, Editora Barracuda, 256 páginas, R$ 43,00.
Traduzir Derrida – Políticas e Desconstruções, organização de Elida Ferreira e Paulo Ottoni, Mercado de Letras, 212 páginas, R$ 30,00.
O Volume do Silêncio, João Anzanello Carrascoza, CosacNaify, 216 páginas, R$ 39,00.
Traduzir Derrida
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FILOSOFIA
De volta às trevas A confusão mental pós-moderna e a perda dos valores iluministas Renato Lima
Divulgação
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históricos. “É este o legado ano de 1979 debilitante do Pós-Moderviu o aiatolá nismo: a paralisia da razão, Khomeini sua recusa a observar qualbstituir o goquer diferença qualitativa verno do xá Reza Pahlavi e entre hipóteses racionais e implantar no Irã um regime disparates confusos. Numa dedicado a retroceder 1.300 época em que inúmeros anos na história. Na mesma credos amalucados conépoca, a Inglaterra era saquistavam novos fiéis, ele cudida com a queda do traforneceu ajuda e consolo balhismo de Jim Callaghan e aos mercadores de absura ascensão da era Thatcher, Francis Wheen, jornalismo contra o irracionalismo contemporâneo do. Até as teorias da consque pregava o retorno aos “valores vitorianos”. A partir deste mote, o jornalista inglês piração extraterrestre ganharam certa respeitabilidade Francis Wheen faz uma impiedosa crítica no livro Como a acadêmica.” Para o autor, as noções de história, progresso e razão Picaretagem Conquistou o Mundo – Equívocos da Moderforam substituídas pela picaretagem em geral, que pode nidade (Editora Record). O que esses dois eventos têm em comum? Ambos os vir em forma de gurus de administração, cultos desconsgovernos anteriores estavam enfraquecidos e contaram trucionistas franceses, fundamentalistas islâmicos e radicom forte apoio para a mudança. E os dois retrocederam cais de mercado. É a era dos Deepak Chopra (autor de alguns valores em seus países – claro que no caso do Irã A Fonte da Vida), Stephen Covey (Os Sete Hábitos das o retrocesso é bem maior, já que o parâmetro é o profeta Pessoas Altamente Eficazes), Francis Fukuyama (O Fim Maomé. É um espírito do tempo em que o radicalismo da História) e – por que não? – Gilles Deleuze e Michel islâmico tenta emplacar à força o seu ideário de socie- Foucault. Ele lembra que o autor de Vigiar e Punir visitou Teerã dade, as pessoas no Ocidente se apegam a best-sellers de líderes espirituais gerados na semana anterior e indiví- logo após a queda do xá Reza Pahlavi e ficou extasiado duos debatem a volta do ensino do criacionismo nas “com o regime neandertalense do aiatolá Khomeini”. Perguntado sobre as repressões a toda dissidência, escolas. É nessa confusão mental que se percebe que os va- Foucault desconversou e fez pouco caso da falta liberlores do Iluminismo foram perdidos. O movimento dade de expressão. Claro que lá no Irã, pois se fosse no europeu abrigava pensadores de diferentes correntes e Ocidente a conversa era outra. Para Francis Wheen, a credos, mas que tinham em comum a busca pela ver- dialética foi substituída pela descontinuidade e a razão dade e sua disseminação. Agora, vive-se um vale-tudo pela reflexão aleatória. Dessa forma, “Uma após outra, as teórico, estimulado pelos pós-modernos e a do rela- disciplinas acadêmicas deram uma ‘guinada lingüística’, tivismo de tudo, desde o multiculturalismo aos fatos à medida que o volante foi ocupado por teóricos que Continente maio 2007
FILOSOFIA insistiam em que a realidade e ficção eram indistinguíveis. horóscopo e chegou a pedir um mapa astral de MiTudo, desde a história até a física quântica, passou a ser um khail Gorbatchov em busca de pistas sobre o seu carátexto, sujeito ao ‘jogo infinito das significações’ ”. Daí é ter, em 1985. Tony Blair e Bill Clinton também se enapenas um passo para o que fez a pós-moderna Luce contravam com gurus de energização e outras formas Irigaray, que denunciou a famosa equação de Einstein alternativas de assessoramento político. O autor é bió(E=mc2) como sexista, porque “ela privilegia a grafo de Karl Marx e jornalista do The Guardian, jorvelocidade da luz em detrimento de outras velocidades nal de esquerda da Inglaterra. Suas críticas o situam e(menos masculinas) que são de uma necessidade vital para qüidistante dos liberais mais extremados, como Marnós”. Ou de Jacques Lacan que, numa fórmula criada por garet Thatcher e o jornalista do New York Times Thoele mesmo para dar uma suposta metodologia científica às mas Friedman, e dos atuais esquerdistas cultuados, suas formulações, expressou o pênis como raiz quadrada como Noam Chomsky e Michael Moore. Mesmo disde menos um. Quem estiver duvidando, pode visitar o site cordando de algumas passagens, não se pode negar a do Gerador de Textos Pós-modernos (http://www. fundamentação do livro nem a forma apropriada de elsewhere.org/pomo), uma brincadeira que produz artigos levantar um debate sobre esse “espírito do tempo”. (com referências) que não dizem absoDivulgação: Nasa Reprodução lutamente nada, mas possui a mesma impenetrabilidade dos mestres desta corrente. “O sono da razão gera monstros, e as duas últimas décadas produziram monstros em abundância. (...) a proliferação e o ataque à razão constituem uma ameaça à civilização, especialmente se considerarmos que muitos dos novos irracionalistas repercutem uma imaginária Era Dourada pré-industrial, ou até pré-agrária.” É como se depois de tantos anos de ciência, progressos e conquistas, preferíssemos abandonar a razão e tudo o que o Iluminismo nos trouxe para se apegar aos charlatões e suas poções mágicas. Claro que falar de tratamentos “holísticos”, vibrações cósmicas, homeopatia e outras curas ditas alternativas ou Thatcher e Khomeini: modelos de retrocesso, segundo Francis Wheen complementares enchem páginas de revistas de comportamento, alimentam ilusões e esvaziam Para ele, “os que se recusam a aprender com a expecarteiras de crédulos. O mercado de tais poções e métodos riência e, em vez disso, empenham-se em desacreditar alternativos gira, só nos Estados Unidos, US$ 27 bilhões o racionalismo que possibilita esse esclarecimento – de dólares. Mas, como lembra o autor, não existe medicina sejam eles combatentes de uma guerra santa, relatialternativa ou complementar. “Só existe a medicina que vistas anticientíficos, fundamentalistas econômicos, funciona e a que não funciona, a medicina que foi adequa- pós-modernistas radicais, místicos da Nova Era – não estão condenando apenas eles mesmos a repetir o damente testada e a que não foi.” Destacados políticos recorreram à feitiçaria para au- passado. Querem aprisionar-nos a todos numa vida xiliar decisões. Ronald Reagan consultava sempre o nas trevas”. •
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as fronteiras borradas entre as linguagens conseguiu conquistar três prêmios APACEPE (Asartísticas, no encontro das divergências, é sociação de Produtores de Artes Cênicas de Pernamque a arte contemporânea vai construindo buco) de melhor bailarino, melhor coreógrafo e a sua história. O gerúndio parece a conju- melhor espetáculo de dança no XIII Janeiro de Grandes gação adequada para verbalizar o movimento inscrito Espetáculos, em janeiro de 2007. E ainda seduziu ounesta contemporaneidade, se, concordando com a opi- tros olhos para além das fronteiras estaduais. Lourennião da pesquisadora de dança, Helena Katz, acre- ço vai apresentar sua Jandira no festival Cena Contemditarmos que “... o corpo que dança não está pronto, ele porânea, em Brasília (agosto) e no XIV Porto Alegre em se apronta. O corpo é um sistema aberto, de troca Cena – POA em Cena (setembro), eventos que reúnem incessante com o ambiente. As informações com as quais os melhores espetáculos de teatro e dança do país, servindo como vitrine das artes você se encontra, ficam inevitavelmente registradas no seu corcênicas brasileiras e, muitas vezes, porta de entrada para o po, por isso o corpo não é, o corO pernambucano mercado internacional. po está”. O estado transitório do Kleber Lourenço Ser apontado pelo curador do corpo permite à dança uma amconstruiu um corpo pliação de possibilidades, forPOA em Cena, Luciano Alabarse, mando com o teatro e a perforcomo “grande revelação da dança "disponível" que revela mance um “triângulo gramacontemporânea que se faz em inúmeras possibilidades Pernambuco”, rendeu a Kleber tical” quase indissolúvel, que se criativas Lourenço um convite mais que apresenta como instrumento de especial. Mesmo antes de concomposição imprescindível a um intérprete-ccriador. Apoiando-sse solidar os apoios e incentivos para neste tripé, o pernambucano, a montagem do seu novo solo, natural de Caruaru, Kleber intitulado Negro de Estimação, ele Lourenço traz ainda a literatura garantiu a estréia nacional em para a construção das suas obras, Porto Alegre, como convidado em uma pesquisa estética que deste que é um dos principais fesprioriza o corpo como matriz, tivais de artes cênicas da América ponto de convergência; e o solo, Latina. A construção dramatúrcomo formato. Desta mescla ingica do trabalho também se iniciou na literatura, desta vez no vestigativa surgiram as coreoChristianne Galdino livro Contos Negreiros, do pernamgrafias-ssolos de dança contemporânea de sua autoria: Para Meu bucano Marcelino Freire, que em 2006 conquistou o prêmio Jabuti Silêncio (2004) e Jandira (2005), ambas inspiradas em obras literárias (Hilda Hilst e Mu- de Literatura na categoria de melhor livro de contos e rilo Mendes respectivamente). crônicas. De um dos cinco contos que estudou, o criador Estar em cena sozinho, no entanto, não significa para trouxe também o título do solo: Negro de Estimação. Sem Lourenço um trabalho isolado ou solitário, visto que, em discurso moralista ou apontamento de respostas, os textos todos os seus processos de criação, colaboração é a palavra de Freire, corporificados na obra coreográfica de de ordem. “Tenho necessidade deste olhar de fora, de Lourenço, falam de segregação étnica, preconceito, exorientação específica em cada uma das áreas em que ploração e “falta de vergonha de um Brasil que se diz desenvolvo a minha pesquisa. Trabalho sempre com multirracial, mas que, na hora do ‘vamos ver’ entope as dança e teatro, porque não entendo um sem o outro; cadeias de negros, analfabetos e desempregados”, opina o quando crio uma coreografia, ela terá, com certeza, coreógrafo. elementos textuais e quando monto algo para teatro, Para dar voz e corpo ao seu “negro”, Lourenço inevitavelmente, incluo muita movimentação corporal”– partiu de si próprio, como ele mesmo faz questão de comenta o criador que, somente com o solo Jandira, esclarecer, já descrevendo em linhas gerais o seu
O corpo como matriz
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O intérprete-criador não tem à sua disposição outro suporte senão este que o assinala e que, sobretudo, o localiza como sujeito no mundo: seu corpo
Kleber Lourenço em seu novo espetáculo Negro de Estimação
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CÊNICAS processo criativo: “O intérprete-ccriador possibilidades criativas, originadas, talvez, não tem à sua disposição outro suporte, da sua peculiar relação com o ambiente e as senão este que o assinala e que, tantas modificações de “terreno” social que precisou vivenciar. Esta intimidade com sobretudo, o localiza como sujeito no mundo: seu corpo. Portanto, a pesquisa transformações e conseqüentes adaptações da corporalidade só pode partir das escreveu habilidades raras no criador-iinEntre seus trabalhos memórias e informações encontradas térprete, como, por exemplo, a de combinar atuais estão a no próprio corpo do intérprete”. Então, equilibradamente elementos artísticos dico-direção dos ouvindo as inquietações da sua corpo- espetáculos Três Viúvas versos e até aparentemente contraditórios, ralidade, Kleber Lourenço encontrou a alcançando como resultado a incorporação de Artur (foto) e As contundente de um discurso cênico único, necessidade de “revisitar” sua herança Criadas genética e social, para trazer à cena a ou seja, o corpo de Kleber Lourenço aprenhistória do corpo do negro na atuadeu a falar uma língua própria, ainda que lidade. O que diz um corpo negro (mulato, mestiço), utilizando vocabulários distintos. Não importa mais o brasileiro, hoje? Seguindo a trilha aberta por esta ques- segmento em que a obra dele se enquadra, e, sim , o selo tão, o artista optou por desconstruir significações concei- de qualidade que as suas produções impõem. Não cabe tuais puristas de raça para evidenciar o negro enquanto aqui discutir se é dança, teatro ou performance e, sim, sujeito da pós-m modernidade, atuando em um espaço reconhecer o valor e as particularidades desta pesquisa onde o hibridismo se “presentifica”. de linguagem cênica cada vez mais solidificada, que Com apenas 26 anos de idade, o jovem artista já ganha agora projeção nacional, ajudando a fixar acumula um consistente curriculum, revezando-sse em Pernambuco em um lugar de referência. Longe de funções de direção, criação, interpretação, e atuando bairrismos e xenofobia, o que se coloca em questão aqui prioritariamente nas áreas de teatro e dança. Somente é a necessidade urgente de assumirmos definitivamente em 2006, ele esteve envolvido em nove montagens uma postura “pós-ccolonial” diante da arte. Ou seria aindiferentes. Entre seus trabalhos atuais estão a assistência da apropriado perguntar: até quando vamos precisar de de direção da peça Dramalhaço, dos Doutores da Ale- “olhares e ordens estrangeiras” para poder dar valor às gria; a co-ddireção das Três Viúvas de Artur e também de nossas próprias produções artísticas? • As Criadas, um clássico do dramaturgo francês Jean Genet; além do espetáculo de dança contemporânea Sobre Nossos Corpos, uma concepção coletiva com outros dois O espetáculo Sobre Nossos bailarinos-ccriadores, José W. Júnior e Saulo Uchôa. Corpos conclui a Com Sobre Nossos Corpos, ele conclui no início deste mês circulação nacional este mês a circulação nacional da Caravana Funarte/ Petrobrás, tendo passado por João Pessoa, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza e Recife. Em 15 anos de carreira e muitas andanças pelo país (Além do Recife, ele morou em Belém, no Pará; em Palmares e Caruaru, ambos municípios do interior de Pernambuco, entre outros, por causa das constantes transferências de trabalho do seu pai), Kleber Lourenço construiu um corpo “disponível” que revela inúmeras
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João Cabral nos palcos A obra O Cão sem Plumas ganha adaptação teatral e passa por quatro cidades do Estado
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ma da mais conhecidas obras de João Cabral de Melo Neto ganhou adaptação para o teatro e irá percorrer quatro cidades do Estado. O Cão sem Plumas, escrito há 57 anos pelo poeta pernambucano, retratava os miseráveis habitantes dos manguezais do rio Capibaribe. Falava sobre o homem que destrói seu meio e que é o predador de si mesmo. O texto, talvez mais do que naquela época, aponta hoje um dos principais problemas ambientais enfrentados pelo Recife, ganhando uma versão mais teatral e tornando-se um monólogo homônimo. O personagem será interpretado pelo ator Silvio Pinto, com direção de Camilo Cavalcante e trilha sonora composta por Zoca Madureira. As músicas – todas instrumentais – serão executadas ao vivo durante a peça, pelo trio formado por Zoca (violão), Aglaia Costa (violino) e Jerimum de Olinda (percussão). Já o cenário, assinado por Paulo Pantoja e Silvia Macedo, reproduz um terreiro à beira do rio, com uma palafita como principal elemento de cena e, junto a ela, alguns objetos trazidos pela maré. Trata-se de um projeto aprovado pelo Funcultura e levado às cidades de Pesqueira, Triunfo, Caruaru e Recife, com entrada franca. O desafio desse trabalho é arrebatar a platéia com a simplicidade escondida numa linguagem hermética e de forte dramaticidade, e fazer a estrutura poética da obra de João Cabral ceder lugar à narrativa, à roupagem coloquial, para se apropriar dos palcos. Durante a apresentação, alguns recursos, como o da projeção de imagens, serão utilizados. Cenas do filme Capibaribe, do cineasta Fernando Spencer, ganham exibição em uma tela pouco tradicional: o mesmo lençol que o personagem usa para se cobrir recebe a nova finalidade. A narrativa é densa, cheia de palavras e, aliada à ambientação e sonoridade escolhidas, promete causar comoção no público visitante. O Cão sem Plumas, 09/05 Recife – Teatro de Santa Isabel. Informações:(81) 8745. 0201
AGENDA/CÊNICAS
Vítima x infrator
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Um universo de condutas e reações provocadas pela criminalidade, tendo como ponto alto o aprisionamento de vítima e infrator. Lados antagônicos: a sociedade e seus esforços para sentir-se segura e o cotidiano de um presídio. Este é o cenário de DES-encaminhando, espetáculo apresentado pela Compassos Cia. De Danças. Com direção e co-direção dos coreógrafos Ivaldo Mendonça e Raimundo Branco, a montagem contará com cenário e figurinos de Marcondes Lima e iluminação de Eron Villar. DES-encaminhado. De 2 a 31 de maio, às 20h, quartas e quintas-feiras, no Teatro Armazém (Rua Alfredo Lisboa, Cais do Porto, Armazém 14). Informações: 81.34245613. Ingressos: R$ 5,00 (meia) e R$ 10,00.
Corpo como relevo Mapa corporal versus mapa geográfico. Uma maneira de reverenciar a natureza e buscar nela os estados que nos afastam do centramento vertical cotidiano. Permitir que o corpo humano se transforme em relevo, fazendo uma ressonância com o espaço e criando novas paisagens inspiradas nas fissuras, rugas, pedras, marés, transmitindo em movimentos as ranhuras de uma folha. Esse é o espírito do trabalho coreográfico mostrado no espetáculo Na planície, logo montanha, aparece o mar..., dirigido por Dudude Herrmann, que é acompanhado no palco por Izabel Stewart e Silvana Lopes. Na planície, logo montanha, aparece o mar.... Teatro Hermilo Borba Filho (Rua do Apolo, 121 – Bairro do Recife), dias 5 e 6 de maio. Ingressos promocionais: R$ 5,00. Informações: 81.3424.5429
Quatro Num terreno de confronto deflagrado, prevalece a busca incessante por um equilíbrio que se mostra tênue e inalcançável, mas que é perseguido a todo instante. Quatro apresenta o retrato de quatro pessoas em trajetórias viscerais, tomadas pela pressão psicológica, num mundo carregado de ambiências e simbolismos. A montagem é do grupo Camaleão e a trilha sonora do premiado Fábio Cárdia, que deu contornos inquietantes, conferindo a esta proposta um dinamismo capaz de estabelecer novos padrões de diálogo com o público. Quatro. Teatro Hermilo Borba Filho (Rua do Apolo, 121– Bairro do Recife), dias 2 e 3 de maio. Ingressos promocionais: R$ 5,00. Informações: 81.3424.5429 Continente maio 2007
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
Diálogo com a luz Dentro de uma nova concepção, a pintura de Siron Franco sofre uma espécie de inflexão: a matéria cromática se torna o fator nuclear de seus quadros
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que define a pintura como um tipo de expressão diferenciada é a cor. A Mona Lisa, sem as cores, seria um desenho. Isso é, sem dúvida, uma simplificação, mas nos ajuda a entender certas manifestações pictóricas surgidas mais tarde. No curso da história, assistimos a uma variação pendular em que as cores tiveram presença maior ou menor na pintura. Por exemplo, em Rembrandt a cor não tem a mesma relevância que em Vermeer. Mas à medida que nos aproximamos da época atual, a cor adquire mais presença e autonomia na pintura. Nesse particular, o Impressionismo foi um marco, ao voltar para a cor da natureza ao ar livre e criar uma linguagem intensamente colorida. Com o Fauvismo e com o Expressionismo, a cor assume o papel protagônico na criação dos pintores, chegando mesmo a violentar as relações com a realidade objetiva, o que já tinha sido prenunciado por Van Gogh. Kandinsky chega a mesmo a criar uma teoria que afirma a cor como a essência mesma da pintura. Faço essas considerações depois de ver a exposição de Siron Franco no CCBB do Rio de Janeiro, onde nos mostra um numeroso conjunto de grandes telas, nas quais, o tema fundamental é a cor. Mas para chegarmos à apreciação desses trabalhos, que são sua produção mais recente, talvez convenha rever que papel tem desempenhado a cor em sua obra pictórica. Em seus primeiros quadros, ela já tem uma função acentuada, muito embora, em muitos deles predominem
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o ocre e negro. Mas há muitos outros em que a cor, seja como fundo, seja como fator de contraste e dissonância, já participa de sua expressão de maneira relevante. E essa relevância só vai se acentuar a cada obra, na medida mesma em que o espírito mais soturno da primeira fase é substituído por um certo humor surrealista que deve muito ao desvario cromático. Vermelhos, amarelos, verdes e azuis esfuziam nesses quadros, que abrem caminho a uma nova exploração da cor na fase das “peles”. Embora a inspiração inicial dessa fase seja uma denúncia do uso de peles de animais como parte da vestimenta feminina, Siron, como sempre, transforma a mensagem ecológica em expressão artística, de modo a enriquecer sua pintura. Neste caso, em particular, essas peles se transformam em elementos pictóricos autônomos, quase abstratos, dando início a uma nova fase, em que a figura perde importância em função dos valores pictóricos puros, se assim se pode dizer. Nesse período, Siron cria algumas de suas obras mais fortes e belas. Mas o que importa observar é que, a partir de então, sua pintura sofre uma espécie de inflexão: a matéria cromática se torna o fator nuclear de seus quadros. E é dentro dessa nova concepção que ele chegará à fase atual. Devo esclarecer que estou consciente de que esta é uma leitura simplificada do processo criativo do artista e, se adoto esse procedimento, é porque ele me facilita esclarecer as possíveis descobertas que fiz, ao observar atentamente as suas últimas obras, agora expostas no
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TRADUZIR-SE
Fresta, de Siron Franco, 150 x 200 cm, 2006
CCBB. Estou convencido de que a obra de arte é uma invenção do que uma revelação do que está oculto no mundo real. Sem dúvida, nossa intuição nos adverte de que o que percebemos do real não o decifra e esgota, mas percebemos também que nenhuma linguagem é capaz de expressá-lo plenamente. Já disse Cassirer que as linguagens são intraduzíveis entre si e, portanto, sendo a realidade também uma linguagem, não é possível traduzila em nenhuma de nossas linguagens. Por isso, na verdade, a obra de arte, não sendo a tradução do real, é a invenção de um equivalente, de formas inventadas que constituem o nosso universo imaginário. Por isso, quando Oscar Wilde afirmou que “a vida imita a arte”, quis dizer precisamente que vivemos a partir do mundo que a arte (e não só a arte) inventa. Depois que se conhece a obra de Siron Franco, o nosso universo humano se amplia para incluir as imagens e cores peculiares a ela e que não encontraríamos em nenhum outro lugar, senão em suas
telas. Isso vale para ele, como para qualquer outro artista que tenha conseguido criar um mundo pictórico próprio. O que significa ter a matéria cromática como o fator nuclear da pintura? No caso de Siron, refiro-me ao fato de que, nas telas mais recentes, de modo geral, o tema, qualquer que seja ele, figurativo ou signo-gráfico, é assimilado pela pasta ou pincelada, transforma-se nelas, e ocorre quase como um acidente do ato de pintar. Mas nem sempre é assim; há quadros em que a figura ou o signo desaparecem e o que se vê do trabalho do pintor, sobre a pasta colorida, busca incutir nela um significado que não nasce senão da própria cor. E é então que se verifica um fenômeno, a meu ver, novo, na experiência sironiana: ele parece pintar contra a luz, ou seja, no escuro. Um quadro que dá bem a idéia do que estou dizendo chama-se Fresta; ele todo pintado em cores e tons escuros, mas tem, a certa altura, uma fresta por onde a luz vasa e nos ofusca. • Continente maio 2007
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The Air Is on Fire revela a obra plástica do grande cineasta, que lança paralelamente nos cinemas Inland Empire, vídeo de três horas
Camilo Soares
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ma verdadeira invasão em Paris. Após desembarcar nas salas de cinema com seu último filme Inland Empire, um delírio de três horas feito em vídeo, David Lynch posiciona seus quadros e fotografias na sede da prestigiosa Fondation Cartier, projeto do arquiteto Jean Nouvel. É a primeira vez que o cineasta (conhecido pelo grande público sobretudo pela série de televisão Twin Peaks e pelo filme O Homem Elefante) revela seu lado artista plástico em uma exposição individual: The
Air Is On Fire. Pegos de surpresa, civis desavisados buscam abrigo na tentativa de identificar traços dos filmes nas pinturas, deslizando assim dentro da armadilha dos subterrâneos de uma obra madura. Capricho de estrela? Não, se lembramos que Lynch fez sua formação na escola de Belas Artes da Filadelfia. Nascido em Montana, EUA, em 1946, ele descobre que quer ser pintor na pimeira vez que pisou num ateliê, quando criança, descobrindo que isso poderia ser uma profissão.
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ARTES
A intimidade de Lynch com as artes plásticas é anterior ao cinema e ele considera seus primeiros curtas como "pinturas animadas"
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Durante todos os anos em que dirigiu filmes, Lynch n達o parou de pintar, como bem demonstra a qualidade de seus trabalhos
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ARTES A segunda revelação viria já quando seguia os estudos de artes plásticas. Estava em um dos ateliês da escola finalizando um quadro que representava um jardim à noite. De repente, escutou um vento e teve a impressão de que o verde do quadro começou a se mexer. Daí para o cinema foi um pulo. Seus primeiros curtas experimentais, Alfabeto e A Avó (projetados na exposição), considerava-os como " pinturas animadas ". A originalidade de seu primeiro longa-metragem Eraserhead (1977) foi descoberta por Mel Brooks, que o convidou para filmar O Homem Elefante, e sua carreira de cineasta disparou. Entretanto, a exposição nos revela um trabalho contínuo de quem não parou de pintar durante todos esses anos. E não apenas pintar, pois suas fotos, montagens e desenhos são apresentadas em longas séries, indicando-nos um longo trabalho de maturação de concepção plástica. O som da exposição envolve as obras com abstratos estímulos, dando uma continuidade aos diferentes trabalhos; é composição feita com o mesmo esmero com que trata o áudio de seus filmes. A cenografia é também pessoal, na qual o visitante entra em contato com o imaginário do artista, evocando experiências infantis, fantasmas adolescentes, frustrações adultas. Tais figuras estranhas, corpos deformados e ambientes lúgubres contrastam com frases escritas sobre a tela narrando cenas fantásticas de personagens de brincadeiras de meninos : " Bob encontra o monstro vermelho ", ou " Bob se descobre em um mundo para o qual ele não tem qualquer compreensão ". A falta de entendimento das coisas da vida e dos mistérios do mundo é mais do que um simples tema para Lynch; é pulsão. Questionado pela revista francesa Sonovision Broadcast sobre o que ele responderia para as pessoas que não compreendem seus filmes, Lynch diz " Que eu também, às vezes, tenho dificuldade em os entender. […] Se o filme carrega abstrações, ele oferece uma infinidade de interpretações possíveis. Tenho certeza de que cada uma entre elas é justa. ". Para expandir sua liberdade dentro de uma arte tão cara como o cinema, fez seu último filme com uma pequena câmera de vídeo DV, o que o permitiu partir de exercícios de estilo e experiências filmados com a atriz Laura Dern (sua vizinha em Los Angeles) sem saber que isso iria gerar uma obra colossal de 3 horas. Ele reinventa o cinema doméstico em plena Hollywood. Enquanto produções de baixo orçamento buscam se aproximar
David Lynch tem trabalhado também com fotografia e desenho
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O cineasta e artista plástico David Lynch ao lado de um dos seus trabalhos
do look do filme utilizando o vídeo, Lynch defende este último como opção estética: “Acho que o suporte funciona bem com minhas idéias. O 'ruído' que obtemos é um pouco equivalente ao grão dos primeiros filmes 35mm. Há um lado mal definido e balbuciante que me agrada bastante ", diz Lynch para Sonovision. As cores dos quadros também buscam os extremos. São escuras, monotonais, ou de um colorido aberrante. Ambas incomodam à sua maneira. Exteriores fúnebres de um mundo triste e industrial; interiores cintilantes, onde a violência se mistura à banalidade cotidiana. Técnicas mistas entre pinturas e fotografias amplificam a agressividade visual, onde muitas vezes sexo e morte são sobrepostos. Objetos e materiais (algodão, por exemplo) colados sobre a tela reforçam a textura orgânica e nos fazem lembrar que, na crueldade da vida, a morte nos acompanha nos momentos mais fortes. A série Distorted Nudes, de imagens digitais feitas a partir de antigas fotos eróticas (do período entre 1840 e 1940), é um exemplo dessa aplicação. Os corpos são deformados até o limite da Continente maio 2007
identificação humana, o que seria para Sean O'Hagan, crítico do jornal inglês The Guardian, uma sensível influência de Francis Bacon. Imagens outrora provocantes e sensuais são retomadas em ambígua decomposição, como supostamente os corpos das modelos ao longo do tempo, a maioria certamente morta. Diante de tanta morbidez e bizarria, encontramos, por incrível que pareça, um toque de humor sutil, característica marcante de seus filmes Segundo o filósofo Boris Groys, Lynch se situa numa tradição da arte moderna européia do século 20, sobretudo do Expressionismo e do Surrealismo, na qual se via nos homens aquilo que havia de trágico e de ameaçado. O homem em perigo pelo inumano. Uma ameaça ao mesmo tempo interna e externa, traduzida pela dissolução da paisagem a partir do estado mental do personagem. Dentro dessa perspectiva, Lynch se apresenta como um artista sem concessão, criando um universo pessoal, onde o ser humano é criatura engajada num conflito original com ele mesmo e com o mundo. Quer você goste ou não de suas estranhezas, ele mais uma vez prova que faz parte dos raros artistas capazes de estender nossa percepção e sensibilidade. Hoje, quando visito sua exposição ou assisto a seus filmes, não saio mais com o incômodo sentimento de que alguém estaria querendo apenas me chocar, mas com a sensação de passar pela possibilidade de me deixar perder num universo de inconsistência e delírio. •
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os anos 50, ninguém menos que o mestre Di Cavalcanti disse que Alfredo Volpi não tinha imaginação para a pintura e que vivia apenas pintando bandeirinhas, bandeirinhas e bandeirinhas. Um dos criadores da Semana de Arte Moderna de 1922, Di Cavalcanti era bastante bom artista para saber que estava sendo simplista e aplicando uma leitura figurativa, narrativa, num momento em que isso já não era mais aceitável. Além do mais, era visível que ele não tinha digerido dividir o prêmio de Melhor Pintor Nacional da segunda Bienal de São Paulo, em 1954, com Volpi, artista que nem soube da revolucionária Semana de Arte quando ela aconteceu. A divisão do prêmio entre Volpi e Di Cavalcanti, nesta ordem, foi um reconhecimento da trajetória de Di e da novidade que Volpi representava, com uma pintura original que não parecia com a de ninguém, nem no Brasil nem no mundo. O acontecimento na Bienal marcava, assim, uma confluência de duas vertentes modernistas que até então tinham corrido separadas. Considerado um dos artistas brasileiros mais importantes do século passado, Volpi desenvolveu sua arte por um caminho próprio, longe dos modelos e movimentos europeus ou das influências da intelectualidade brasileira da época. Não percorreu atalhos. Seus quadros são conseqüência do amadurecimento da sua técnica, conceitos, percepções. Era intuitivo em sua criação e operário da sua forma de produzir. Falecido em 1988, aos 92 anos, Volpi escreveu uma página-chave na arte plástica moderna brasileira, ora flertando com o Concretismo, ora negando a arte concreta e firmando-se na pintura abstrata geométrica. Mas sempre descobrindo e trilhando sua própria estrada.
Alegria intraduzível e irredutível
O Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) abriga mostra com 80 quadros de Alfredo Volpi, com curadoria de Olívio Tavares de Araújo Mariana Camarotti, de Buenos Aires
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Bandeirinhas, paisagens e fachadas são transformadas em linhas, formas e cores por Alfredo Volpi
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A singular evolução de meio século de pintura deste artista está em exposição pela primeira vez na Argentina. O Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba) abriga, até 28 de maio, uma cuidadosa e ampla mostra com 80 quadros desse artista, organizada pelo Museu de Arte de São Paulo (Masp), com curadoria de Olívio Tavares de Araújo, e que passou por São Paulo no início de 2006. Um dos roteiros emergentes da arte contemporânea do continente nos últimos anos e com uma coleção que inclui obras de Cândido Portinari, Frida Kahlo, Lygia Clark e Diego Rivera, o Malba possui em seu acervo famoso o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral. Italiano de origem humilde, Volpi chegou ao Brasil aos dois anos de idade junto com os pais, em 1898, e precisou trabalhar desde cedo, passando por vários ofícios artesanais. Diferentemente da maioria dos grandes artistas nacionais, ele não foi precoce. Por muito tempo fez apenas painéis decorativos em casas, o que era comum naquela época. Em meados dos anos 30, passou a pintar em cavalete, observando seu entorno. Pintava apenas algumas paisagens e marinhas. “Naquela época, sua obra se assemelhava ao expressionismo alemão. Mas não pelo academicismo, mas, sim, pelas linhas e pela expressão do seu pincel”, diz o curador da mostra. A expressão foi, assim, ganhando espaço, sendo ousada. No final da década de 30, o artista pinta uma marinha em que os pescadores são apenas uns traços em movimento. Uma tela com o que parecia ser uma influência da arte japonesa. Volpi tinha início ali, definiram alguns críticos muito anos depois. A partir de então, ele começou a pintar casario e fachadas de época com janelas, ruas e mar ao fundo. Era a paisagem de Itanhaém, cidade de São Paulo onde morava. E sobre essa paisagem foi fazendo variações de plano e cores, restringindo-se mais à temática que à própria pintura. O casario foi ganhando mais protagonismo, chegando ao primeiro plano, e tudo o que estava ao redor, desaparecendo. As casas deixaram de ser o que eram e foram se tornando retângulos, curvas, composição de cores. Reinvenções de uma mesma pintura e que o levariam à uma fase chamada concreta. “Tudo é problema de forma, linha e cor”, disse o artista uma vez. Em 1956, dois anos depois do prêmio da Bienal e quando já era bastante respeitado pelo seu trabalho, Volpi foi convidado a participar das Exposições Nacionais de Arte Concreta de São Paulo
ARTES
e, em 1957, das exposições do Rio de Janeiro. Contrariando algumas das vertentes do movimento, a de não deixar rastros na produção, como a pincelada, nem de se referir ao mundo real, Volpi levou às mostras quadros com as bandeirinhas das quais Di Cavalcanti falava. Ele também não seguia uma das práticas dos seus colegas, que era usar a régua e o compasso para alcançar a precisão. O que antes eram realmente bandeirinhas de São João penduradas entre casas vai sendo pintada aos poucos com a proximidade cada vez maior de um zoom, assim como aconteceu com as fachadas, perdendo o seu contexto. São agora figuras geométricas – composição de triângulo e quadrado repetida de forma cadente – com uma lógica de espaço. “Quando elas apareciam nas fachadas de época, eram signos icônicos. Mas, depois, na fase de abstração concreta, é melhor se referir a elas entre aspas”, diz Araújo. “Quando Volpi volta a pintar as bandeirinhas, será um módulo geométrico, em filas horizontais, que se repetem da esquerda para a direita e de cima para baixo, em um jogo rítmico e colorido”, acrescenta. “Já não são bandeirinhas nem signo icônico, mas, sim, uma forma abstrata.” A partir dos anos 60, as bandeirinhas passam a ser um tema mais freqüente, mas sem abandonar outros, como as fachadas. Surgem nas telas de Volpi os mais
diversos e ricos coloridos, criando em um quadro um clima completamente diferente do outro. Enquanto sua pintura evoluía, Volpi conservou sua forma simples de vestir e de falar, com sotaque ainda italiano que adquiriu dos pais na cidade de Itanhaém. Manteve também a sua forma operária de pintar. Começava pelo início, no canto superior esquerdo da tela, primeiro com uma cor, depois com outra e outra. Se desse certo, seguia. Mas se não, fazia tudo novamente. E mesmo quando tinha tema e cor encomendados para seus quadros, só terminava quando alcançava realmente o que queria. Volpi continuou sua evolução nos anos 70, quando chegou à fase de “Ojivas” – duas fileiras de bandeirinhas que sobem em diagonal, cada uma partindo de um lado da tela, até se unirem no alto. É a fase de maior maturidade do artista. A partir daí, passa a uma fase metafísica, na qual suas figuras parecem perdidas no espaço e no tempo. “A última etapa da produção volpiana é o final de uma obra que buscava a inteligência da beleza sem se contaminar com o drama do sofrimento humano. O resumo do seu legado é uma alegria intraduzível e irredutível a qualquer outra, o que só uma experiência estética oferece”, afirma Araújo. • Continente maio 2007
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AGENDA/ARTES
Marias no MEPE A exposição Maria Mãe de Deus e Outras Marias, sob curadoria de Orismar Rodrigues, apresenta obras de 16 artistas plásticos
Flávio Lamenha
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O
Museu do Estado de Pernambuco vai abrigar, este mês, a exposição Maria Mãe de Deus e Outras Marias, sob a curadoria do jornalista Orismar Rodrigues. Maio, o mês de Maria, segundo a Igreja Católica, foi especialmente escolhido para aludir a essa personagem, instrumento de fé e adoração, capaz de personificar o conceito de mulher aliado à luta, persistência, fertilidade e maternidade. A mostra é uma referência às mulheres representadas em obras de 16 grandes artistas plásticos, como Fernando Augusto, Francisco Brennand, Gil Vicente, Cícero Dias, Delano, e Felix Farfan. Os trabalhos remetem à arte popular, contemporânea e dos séculos 18 e 19, trazendo desde desconhecidas personagens femininas à reverenciada figura da mãe de Deus. A exposição é resultado de um convênio entre o Museu do Estado, a Secretaria da Educação e a Companhia Editora de Pernambuco, e deve assumir caráter itinerante ainda neste semestre, sendo levada aos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul. Duas grandes instalações, entre diversas telas e esculturas, irão recepcionar o público visitante durante quase um mês de exibição.
Pietá de Beslan, Roberto Ploeg, óleo sobre tela, 160x106cm, 2004
Maria Mãe de Deus e Outras Marias pretende atrair caravanas com alunos de diversas escolas recifenses – com visitas guiadas aos ambientes temáticos da mostra, como o “Espaço Sebrae dos artistas populares” – e promete entrar com destaque no calendário cultural da cidade. Maria Mãe de Deus e Outras Marias. De 2 a 27 de maio, no Espaço Cícero Dias do Museu do Estado de Pernambuco (Av. Rui Barbosa, 960 Graças – Recife / Pernambuco ) Informações: (81) 3427. 9322 e 3427. 0766.
Do Egito à modernidade
Exposição e catálogo
Boa parte dos colecionadores do século 19 tinha como objetivo compor um acervo com peças dos mais variados períodos, que pudessem, juntas, reconstruir a história da arte. Foi seguindo esse modelo, padrão clássico de colecionismo, que Eva Kablin formou seu vasto acervo, exposto, hoje, na Casa-Museu que leva o seu nome, no Rio de Janeiro. O que impressiona na coleção é a sua variedade: utensílios do Antigo Egito, esculturas gregas e romanas, esculturas e pinturas renascentistas e arte chinesa convivem em harmonia com o impressionismo de Camille Pissaro e a modernidade de Lasar Segall. Para registrar a vasta coleção da Casa-Museu Eva Kablin, foi lançado um catálogo reunindo sua coleção, com textos de Luciano Migliaccio. Uma rara iniciativa de abrir ao público um acervo particular.
Obras de artistas brasileiros dos últimos 25 anos. Este é o foco da exposição e do livro Coleção Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil 1981 – 2006. O curador Teixeira Coelho fez um recorte expressivo no acervo de 500 obras contemporâneas do Grupo Itaú, separando 152 trabalhos. A seleção levou em consideração o aspecto cronológico, selecionando obras recentes e a questão conceitual, que liga a arte contemporânea à vanguarda, ao radicalismo, explorando os limites do próprio universo artístico. Diante da pluralidade e da dificuldade de enquadrar os trabalhos em grupos rígidos, as obras foram reunidas de acordo com os diálogos que sugerem. O livro, que traz um DVD e um CDROM bilíngües, tem textos analíticos do próprio curador, separados em capítulos por grupos de linguagem. Uma referência para quem se interessa ou estuda arte contemporânea.
Fundação Casa-Museu Eva Kablin (Av. Epitácio Pessoa, 2480 – Lagoa, Rio de Janeiro – RJ) Informações: (21) 2523.3471. Catálogo: A Coleção Eva Klabin, Petrópolis: Kappa Editorial, 2007. 192 páginas. R$ 70,00
Mostra Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil 1981 – 2006. Até 27 de maio no Itaú Cultural (Av. Paulista, 149, São Paulo – SP) Informações: 11. 2168.1776. Livro: Coleção Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil 1981 - 2006, 345 páginas, R$ 159,00.
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
De cinema, televisão, cenoura e espinafre
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riança não gosta de cenoura. Nem de espinafre. Mas gosta, e muito, de superheróis. Por coincidência, alguns acabaram famosos por se alimentar com... legumes. Cenoura, por exemplo, é alimento de um coelho valente, que não tem medo de nada nem de ninguém. E espinafre dá, a um marinheiro, inspiração e força para enfrentar o inimigo brutamontes. Essa relação entre alimentos e história vem de longe. Desde quando Adão e Eva comeram a maçã. Os heróis, de que falaremos aqui, nasceram bem depois. Primeiro no cinema. Passando só depois à televisão. Seguem seus relatos, com a história desses alimentos.
Imagens: Reprodução
CENOURA – O coelho Pernalonga foi escolhido, nos Estados Unidos, como o melhor personagem de desenho animado de todos os tempos. Invenção de Charles Chuck Jones, em 1930. Só oito anos depois apareceu nos cinemas em Porky's Hare Hunt (A Caçada de Gaguinho ao Coelho). Desde então, não parou de fazer sucesso. Recebeu duas indicações ao Oscar (1940 e 42), e até ganhou a estatueta, em 58. Chegou
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SABORES PERNAMBUCANOS
mesmo a dividir tela com Michael Jordan (Space Jam, 1996) e Steve Martin (Looney Tunes, 2003). Acabou num selo do correio americano (1998). A criançada sabe que aquele coelho cinzento não tem medo de nada nem de ninguém. E, sobretudo, que adora cenouras. Não por acaso, coelhos e cenouras andam juntos desde a mais remota antiguidade. Desde quando Dioscórides, no século 1, escreveu De materia medica – principal fonte, até o século 18, de informações sobre remédios. Para ele, cenoura era um dos mais importantes afrodisíacos. E por ela explicava a eficiência reprodutiva das coelhas fêmeas – capazes de ter até 6 ninhadas por ano, com até 12 filhotes por vez. Em média, 70 filhotes por ano. Tudo, segundo a lenda, por conta das cenouras. Essa raiz veio da Ásia e era muito apreciada por gregos e romanos. Tanto que aparece no mais antigo livro de culinária, o de Apícius – um glutão que literalmente morreu pela boca, tomando veneno. Segundo se acredita, porque, arruinado, já não podia custear as receitas sofisticadas que sugeria em seu livro. Segundo Plínio, “O Velho”, o imperador romano Tibério não vivia sem essas cenouras. Mandava-as buscar às margens do rio Reno. Por esse tempo, não tinham o aspecto das que conhecemos hoje. Eram brancas (ou amarela claro). Ditas espécies, hoje raras, continuam cultivadas principalmente na Holanda – e com elas se fazem geléias e cerveja. Cenoura laranja, a mais conhecida de todas, foi desenvolvida para homenagear Guilherme I, de Orange (orange é laranja) – durante as lutas holandesas contra a Espanha, no século 16. Depois esses holandeses se encarregaram de espalhar a novidade por toda a Europa. Chegou à Inglaterra no reinado de Elisabeth I; e logo virou moda, na corte, usar cenouras nos pratos e com suas folhas ornando cabeças nobres. Ao Brasil, vieram na bagagem do colonizador português. Com eles aprendemos a usá-las em conservas, cozidos, guisados, omeletes, purês, saladas (ralada, cor-
tada em lâminas ou picada), sopas, sucos, suflês. E também em sobremesas – bolos, rocamboles, tortas. Só não chegou por aqui, até hoje, o leite de cenoura – invenção de um senhor inglês, H.B. Franklin, da Plantmilk Ltd. Sua fazenda, “Title Farm”, ficou conhecida como “a granja que ordenha cenouras”. O resultado final é muito semelhante ao do leite. No gosto e na cor. Estranha invenção. Dela se podendo até dizer a frase que o coelho Pernalonga mais pronuncia – “O que é que há, velhinho?”
ESPINAFRE – Popeye é um marinheiro de braços fortes, e apaixonado pela magrela Olívia Palito. Para enfrentar o inimigo Brutus, consumia quilos de espinafre. Desse espinafre lhe vem uma força sobre-humana. O personagem foi criado pelo cartunista Elzie Crisler Segar, há mais de 80 anos, para o New York Journal. Até hoje faz sucesso. O que pouca gente sabe é que Segar fez acordo secreto com uma fábrica de espinafre em conserva. Segundo o acordo, se as vendas melhorassem, o Continente maio 2007
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SABORES PERNAMBUCANOS personagem seria patrocinado em filmes e livros pela empresa. Deu certo. As vendas aumentaram em quase 50%. As crianças passaram a consumir cada vez mais espinafre, porque queriam ser tão fortes quanto Popeye. Espinafre, entre as hortaliças, é aquela que tem maior fonte de proteínas. A mais rica em ácido fólico, cálcio, ferro, vitaminas A e C. Originária do Oriente Médio,
era a favorita dos reis da Babilônia. Foi levada por mãos árabes, para a Península Ibérica, no séc. 8. Chegou ao Brasil com o colonizador português. Pode ser consumida crua (em saladas) ou cozida (cremes, sopas, refogados, soufflés). Antes que me esqueça, e por mais que coma espinafre, ele nunca fará de você um super-homem como Popeye. Ainda bem. •
RECEITAS Fotos: Mariana Oliveira/Cortesia Sorbonne Grill
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SALADA DE CENOURA COM MOLHO DE ABACAXI INGREDIENTES 800 g de cenouras (raladas ou cortadas em rodelas bem finas) ½ xícara de passas brancas sem caroço 2 xícaras de abacaxi cortado em cubos pequenos ½ colher de sopa com vinagre de vinho branco 1 colher de chá de mostarda 1 colher de café de sal 1 copo de suco de abacaxi 1 colher de sobremesa de maisena 2 colheres de sopa de maionese PREPARO: • Junte em uma panela passas, abacaxi, vinagre, mostarda e sal. Acrescente suco de abacaxi e maisena. Mexa, em fogo médio, até que engrosse. Deixe esfriar. Junte a maionese. • Em tigela, coloque a cenoura, junte o molho e misture. • Deixe por 1 hora, no mínimo, na geladeira. • Sirva em saladeira.
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SOUFFLÉ DE ESPINAFRE INGREDIENTES: 200 g de espinafre 1 colher de sopa de manteiga 2 dentes de alho 2 colheres de sopa de cebola picada 100 g de creme de leite 200 g de molho branco 100 g de queijo parmesão ralado Sal, pimenta, noz-moscada 3 ovos PREPARO: • Em uma panela, coloque manteiga, azeite, dentes de alho (fatiados) e cebola (picada). Doure até murchar. • Junte 200 g de espinafre cozido. Refogue bem. • Acrescente 100 g de creme de leite. Deixe reduzir um pouco. Junte também 200 g de molho branco e 100 g de queijo parmesão ralado. • Tempere com sal, pimenta e noz-moscada. • Coloque tudo no liquidificador com 3 ovos. Bata bem. • Despeje a mistura em formas de empada grande, untadas de azeite. • Leve ao forno, em banho-maria, até dourar. • Desenforme e sirva. • É ótimo acompanhamento de peixes.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Anotações amazônicas I
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no de 1981. Nessa descomunal imensidão verde, onde a geografia ainda não estabeleceu suas coordenadas definitivas (não faz muito tempo, o olho eletrônico de um satélite fotografou um afluente do Amazonas de mais de quinhentos quilômetros de extensão, cuja existência era desconhecida, a não ser, talvez, por alguns índios da região), o homem é o grande sozinho, certamente o ser mais solitário sobre a face da Terra. “Um intruso impertinente”, como o chamou Euclides da Cunha. Ilhado na imensa floresta que jamais consegue dominar por completo, quase sempre dispondo apenas do caprichoso e contorcido curso dos rios para vencer as distâncias sem tamanho, o homem é, na fauna amazônica, a espécie menos numerosa e, também, a mais castigada pelos exageros e imperfeições dessa “opulenta desordem”. Não creio que possa haver coisa mais solitária do que, por exemplo, a tapera de um seringueiro ou garimpeiro perdida no mais profundo da floresta ou plantada à margem do igarapé mais esconso. • Continente maio 2007
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CINEMA
Nas telas do mundo
Filmes brasileiros como O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias foram aclamados em festivais internacionais, mas não conseguiram grande distribuição fora do país
Imagens: Divulgação
O mercado mundial de filmes ainda é muito limitado, restrito a estereótipos e repetições de “fórmulas de sucesso”, muitas vezes controversas Katia Augusta Maciel
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uma conversa de bar, uma amiga me fez pensar em como o mercado mundial de cinema anda viciado. Ela me perguntou por que os filmes franceses são sempre tristes, do tipo “drama existencial”. Ora, existe uma diversidade enorme de filmes franceses, desde os épicos da tradition de qualité dos anos 40 e 50, como o clássico A Rainha Margot (1954), até os filmes “existenciais” da Nouvelle Vague e, finalmente, os gêneros populares como as comédias e o policier. O problema é que muitos desses filmes realmente não circulam fora da Europa. O que aponta para a falta de oferta e diversidade no mercado mundial. O policier é um gênero de enorme popularidade na França, mas, por ficar à margem do que se convenciona rotular como “cinema francês”, não recebe uma grande distribuição mundial e, conseqüentemente, não chega deste lado do Atlântico. Em 2005, por exemplo, foi lançado o novo filme de Olivier Marchal, 36 (36 Quai des Orfèvres). O filme traz dois ícones do cinema francês, Daniel Auteuil e Gérard Depardieu, interpretando policiais altamente qualificados que competem para ver quem consegue prender primeiro um sofisticado grupo de assaltantes e conseguir o cargo de comissário-chefe. 36 é um filme ambicioso, com uma fotografia excelente, e uma edição ágil no melhor estilo hollywoodiano, mesmo assim não conseguiu distribuição nos Estados Unidos e, na Europa, ficou restrito às salas independentes.
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CINEMA Isso nos mostra que o chamado world cinema que realmente chega aos consumidores finais, ou seja, às pessoas que não circulam por festivais internacionais de cinema e que dependem das salas em suas cidades para ver os filmes produzidos em outros países e fora de Hollywood, ainda é muito limitado, restrito a estereótipos e repetições de ‘fórmulas de sucesso’, muitas vezes controversas. Vejamos o caso dos filmes que nos chegam do Irã. Desde a Revolução Islâmica de 1979, os cineastas iranianos vêm lutando com o governo autoritário que comanda o país pelo direito de produzir e distribuir seus filmes. Muitos deles têm sido presos, filmes têm sido banidos e negativos confiscados. Como o processo de aprovação de um roteiro, autorização para filmagens e distribuição é extremamente complexo, árduo e demorado no Irã, muitos cineastas têm recorrido ao mercado internacional tanto para produzir como para exibir os seus filmes. E o que um mercado ocidental e amedrontado pelo fundamentalismo quer ver? Quais os temas que podem atrair investidores e audiências internacionais? Uma das respostas possíveis é a condição da mulher no Irã contemporâneo. Isso não quer dizer que esse não seja um tema relevante, ou que os filmes que tratam desse tema
apenas tenham visado o interesse do mercado. Mas vale chamar a atenção para o fato de que certamente os realizadores do chamado “novo cinema iraniano” estão atentos a essas questões. Todos sabem que o cinema é uma arte muito cara e que para produzir regularmente é preciso conciliar interesses econômicos e artísticos. Todos sabem também que essa não é uma tarefa fácil. Na tentativa de atingir esse objetivo, os iranianos têm produzido algumas das obras mais celebradas pelos críticos de cinema e festivais internacionais atualmente. São filmes importantes por chamarem a atenção do Ocidente para o suposto aprisionamento cultural, religioso e social ao qual as mulheres no Irã estão sujeitas. Digo “suposto” porque, para muitos estudiosos da cultura islâmica e iraniana, essa é uma visão ocidentalizada. Sem entrar no mérito da questão, o fato é que os filmes iranianos que circulam atualmente no mercado mundial são quase que exclusivamente os que abordam a questão da mulher. Cito alguns lançados nos últimos 5 anos na Inglaterra, como exemplo: The Apple (1998) de Samira Makhmalbaf, Circle (2000) de Jafar Panahi, The Day I Became a Woman (2000) de Marzieh Meshkini, e Caminho para Kandahar (Kandahar, 2001) de Mohsen Makhmalbaf.
Cena de 36 (36 Quai des Orfevres): filme francês no melhor estilo hollywoodiano
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CINEMA Interessante é observar que esses filmes foram banidos no Irã por serem considerados ofensivos ao regime em vigor. O mercado interno iraniano é dominado por musicais de Bollywood, filmes de ação de Hollywood, além de comédias e filmes de guerra iranianos – produções locais que nós nunca temos a oportunidade de ver. Se não vemos os policiais franceses, o que dizer dos iranianos! Isso nos dá uma idéia de como o “cinema iraniano” que conhecemos é apenas uma pequena parte do que é produzido naquele país. E a história se repete em todos os chamados world cinemas. A Índia, por exemplo, além da enorme produção de Bollywood, tem uma forte tradição de documentários. A Dinamarca, além dos filmes do Dogma, produz comédias, adaptações literárias, filmes de ficção científica. E da Coréia do Sul e Hong Kong temos mais acesso aos remakes hollywoodianos do que aos filmes originais. O exemplo mais recente é do premiado Os Infiltrados (The Departed, 2006) de Martin Scorsese, que acaba de arrebatar 4 Oscars, incluindo os de melhor filme e diretor. Pouca gente sabe, mas esse filme é o remake de Conflitos Internos (Infernal Affairs, 2002) de Wai Keung Lau e Siu Fai Mak. E, pior, menos gente ainda terá a oportunidade de ver o original. O problema afeta também os filmes independentes norte-americanos. A Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, 2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris, é
um exemplo. O filme é uma sátira inteligente sobre uma família de losers (perdedores) num mundo obsecado por winners (vencedores). Apesar do baixíssimo orçamento, o filme tem ótima narrativa, fotografia e edições competentes. Resultado: conseguiu uma vaga no Festival de Sundance, conquistou o público e um contrato de distribuição com a Fox Searchlight. Mesmo assim, teve uma distribuição limitada no Brasil. Talvez agora depois das premiações de melhor roteiro original e melhor ator coadjuvante para Alan Arkin, os nossos exibidores percebam o valor do filme. A verdade é que os exibidores em geral, não apenas no Brasil, não querem correr riscos e terminam programando aquilo que já tem uma aceitação “testada” no mercado. Essa prática gera um impasse difícil de transpor. Se adotamos a Inglaterra como termômetro do mercado mundial, podemos ver claramente porque filmes brasileiros excelentes, como Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) de Marcelo Gomes ou O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) de Cao Hamburger, chegaram em grandes festivais internacionais, foram aclamados por suas qualidades técnicas e artísticas, e mesmo assim não conseguiram ainda uma grande distribuição internacional. Entre 2005 e 2006 na Inglaterra, e até o momento, pelo menos, todos os filmes brasileiros lançados em salas de cinema enfocavam a violência, as drogas e a vida nas favelas. O sucesso de Cidade de Deus (2002) de
Acima, Os Infiltrados, de Martin Scorsese: remake de Conflitos Internos
A maioria dos filmes iranianos que circulam hoje trata da questão da mulher
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CINEMA
O filme independente A Pequena Miss Sunshine teve uma distribuição limitada no Brasil
Existe uma diversidade enorme de filmes franceses, desde os épicos da tradition de qualité dos anos 40 e 50 até os filmes “existenciais” da Nouvelle Vague, como os de François Truffaut (foto acima)
Fernando Meirelles abriu caminho para Carandiru (2003) de Hector Babenco, e, mais recentemente, Cidade Baixa (2005) de Sérgio Machado e Favela Rising (2005) dos americanos Matt Mochary e Jeff Zimbalist. Este último, um documentário sobre o grupo AfroReggae. O fato desses filmes terem tido uma ótima carreira internacional é extraordinário. São produções de alto nível e que merecem o espaço que conquistaram. Mas o fato dos filmes que fogem ao padrão testado e aprovado não encontrarem espaço me parece preocupante. O cinema brasileiro que o público externo conhece hoje é o cinema “violência, sexo, drogas e hip hop”. Tudo bem, mas nosso cinema é mais diversificado. Se o público mundial pudesse ver, com mais frequência, filmes como Narradores de Javé (2003) de Eliane Caffé, Lisbela e o Prisioneiro (2003) de Guel Arraes, O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz, além dos dois já citados de Marcelo Gomes e Cao Hamburger, provavelmente teria uma visão mais ampla e verdadeira do que realmente é o cinema brasileiro. Infelizmente, não importa se o filme é considerado “de arte” ou “popular”, todos estão sujeitos a esse condicionamento do mercado. E, então, para encurtar a conversa, falei para a minha amiga: o que conhecemos como cinema francês, iraniano, indiano, dinamarquês, e até o que as pessoas no exterior conhecem como cinema brasileiro é apenas a parte que circula de acordo com os interesses dos exibidores. Alguns desses filmes são realmente os melhores produzidos em seus países de origem, mas há um enorme volume de outros filmes também ótimos que não chega até nós. É triste, mas é assim... E como a conversa já estava parecendo um drama existencial francês, decidimos parar por ali, pedir mais uma cerveja e um casquinho de siri – já que nem a Inglaterra e nem o resto do mundo tem uma coisa dessas! • Continente maio 2007
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Fotos: Hans Manteuffel
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Dialética entre reminiscências de infância e macrovisões modernas da música é o fio condutor da obra de Marlos Nobre Carlos Eduardo Amaral
Dos maracatus às dissonâncias
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PERFIL
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ada de dotes de menino prodígio, nem de vida adulta turbulenta ou solitária. Esses estereótipos se aplicavam só a alguns artistas e pensadores – até o Romantismo. Sem a pecha de iluminado ou de sofrido, não é de se estranhar que um compositor de música clássica – ou qualquer intelectual que seja, daqueles tempos para cá – tenha tido uma juventude animada e de fartas impressões. Tratandose de um nascido em pleno sábado de carnaval, na rua São João, as lembranças marcantes, vividas na porta de sua casa, vêm do frevo, cujas troças o arrebataram aos três anos; dos caboclinhos, com as inquietantes inúbias, caixas e preacas; e do medo do hipnotizador maracatu de baque solto. Incorporar desde pequeno a vitalidade de uma cidade que é a imanência do adágio E pluribus unum imprimiu na aparência de Marlos Nobre a marca de quem está permanentemente arrebatado, inquieto e perplexo. A cabeleira branca e densa e o ar enfezado – não de uma pessoa cumulada de aborrecimentos cotidianos, mas de uma que está em constante trabalho mental – fazem-nno parecer um matemático ou um físico. Nobre não chega a ser um docente de Ciências Exatas, porém se vê às voltas com as leis do raciocínio humano e as leis naturais que se traduzem em sons. Carregar consigo a mágica das manifestações populares foi uma primeira etapa na formação musical do menino do Bairro de São José. A segunda foi aprender aquelas leis, indo buscar no Conservatório Pernambucano o conhecimento necessário. Seus estudos com Padre Jaime Diniz, dos 14 aos 19 anos, lhe marcaram sobretudo pelo espírito aberto do professor, sem predileções de estilo. “Ele me repetia que o contraponto era a base do compositor e me fez escrever missas, Te Deum, motetos... Tudo em contraponto florido, nunca tonais, mas modais, às vezes politonais e até seriais! Sim, porque o padre não tinha preconceito nem medo do dodecafonismo: isso em 1952!” Cerca de trinta missas para coro à capela, regidas por padre Jaime Diniz na Igreja de São José às quintas de tarde, foram para o lixo, desesperando o sacerdote. O aluno hoje reflete: “Eram exercícios preciosos, nem sei se fiz bem jogar fora... Mas destruí as partituras mesmo. Não eram ainda obras minhas, só bons exercícios”. Com os Irmãos Maristas – que em 1997 vieram a lhe encomendar a Passacaglia (Saga Marista), op. 84 – cursou do primário ao científico. Talvez a mente aberta do padre Jaime Diniz e dos Maristas tenha lhe despertado outros saberes. Estudos filosóficos, religiosos e esotéricos que faz até hoje. Em Kabbalah, op. 96 (2004), para orquestra, o três (tradução numérica do nome de Deus pelo alfabeto hebraico) se manifesta na base harmônicomelódica da obra (terças maiores e menores), nos ritmos ternários (e derivados: quintenários e setenários), na estrutura em três blocos, na tripla exposição do tema central. É revelador que Marlos Nobre possua uma cosmovisão de sua música: uma obra total, onde cada opus é um prisma de um todo.
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PERFIL Antes de chegar à maestria de expressão, no entanto, havia uma terceira etapa a cumprir: utilizar as leis que aprendeu e começar a manifestar a voz própria. Só assim se concluiria a dialética. E ela fez Marlos Nobre, no início da década de 1960, ter aulas com as personalidades mais antagônicas da música brasileira de então: Guarnieri e Koellreuter . De Hans-Joachim Koellreuter, papa do vanguardismo nacional, refutava a exclusão do nacionalismo, característico de um germânico que não prezava a música popular e folclórica por ser coisa que não provinha do pensamento puro. O adeus emburrado ao professor se deu quando este veio comentar sobre o premiado Trio, op. 4 (1960): “Agora você está escrevendo sambinhas?” “Bem, fiquei mudo, mas aquilo foi demais. Era incompreensão tão profunda que não adiantava discutir. Fui em frente e o esqueci, graças a Deus e aos Orixás...” Com Mozart Camargo Guarnieri, deu-se o inverso. O paulista baluarte do nacionalismo pediu a Nobre para fazer variações sobre um tema nordestino. Recebeu de volta uma série dodecafônica que rendeu um comentário inesperado: “Mas você não é ‘bicha’, como é que escreve dodecafonicamente?”. Para Nobre, a frase denotava “um nacionalismo, estreito, repetitivo, medroso de influências externas”. O conflito de opiniões forjou definitivamente a linha estética que seguiria: “Creio que me levou a isto, uma tendência natural em meu temperamento e formação, a necessidade de estudar e conviver com os contrários. A primeira obra que escrevi, resultado dessa dialética, foi Variações Rítmicas, op. 15 (1963), para piano e percussão típica brasileira. Eu afrontava e ao mesmo
Marlos Nobre tem lembranças marcantes dos caboclinhos e do maracatu
tempo transgredia o nacionalismo obtuso brasileiro e a vanguarda internacional intolerante”. Variações foi estreada em Buenos Aires, no Instituto Torcuato di Tella, o mais avançado centro de estudos musicais da América Latina de então. Lá, Marlos Nobre chegou de visão formada, mas em busca de assimilar novas técnicas. Entre os professores, ninguém menos que Olivier Messiaen, Riccardo Malipiero, Luigi Dallapiccola, Aaron Copland e Alberto Ginastera. Com Messiaen, estudou a dissecação dos componentes do ritmo. Junto a Malipiero, experimentou compor sem pensar na estrutura, cessando a peça quando a inspiração acabasse. Através de Copland, envereda pelos segredos da orquestração moderna. Com Dallapiccola, estudou as funções da música e da palavra, que resultou no primeiro sucesso internacional de Nobre: Ukrinmakrinkrin, op. 17, baseado na língua dos Xucurus; sobre eles havia lido num exemplar da revista Doxa, da UFPE, que levara para a Argentina.
Cangaço em ópera Uma fascinação que vem da juventude levou o compositor ao projeto de criar uma ópera sobre Lampião
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esde a juventude, as infindáveis versões da trajetória de Lampião registradas em cordéis fascinavam Marlos Nobre a tal ponto que transpor uma síntese dessas narrativas para uma partitura tornou-se um projeto pessoal imperioso. A condensação dos mais de 300 cordéis acumulados ao longo da vida, muitos antigos e anônimos, se estenderá até 2009, quando o compositor fará 70 anos e o “imaginário cativante” de Virgulino Ferreira se converterá em sua primeira ópera. O próprio Nobre está preparando o libreto, pois já delineou todas as cenas da peça. Ele enfatiza que o enredo não será épico ou biográfico: “O que me interessa é a visão Continente maio 2007
PERFIL E por intermédio de Ginastera, sentiu a necessidade de conhecer a fundo os movimentos de vanguarda, para só depois decidir o que lhe seria útil. Nobre ainda carregava as divergências em relação aos nacionalistas e serialistas: “Com Ginastera, finalmente, encontrei quem concordava comigo: o importante é expressar com firmeza as próprias vivências e convicções, sem preconceitos limitativos. E isso se tornou minha estética mais profunda”. Ao voltar de Buenos Aires, conhece Maria Luiza Corker, sua futura esposa. Ela tinha cerca de oito anos e tocava ao piano a Tocatina, Ponteio e Final, op. 12 (1965). Ele passara dos 25 anos e rodara o mundo. Voltaram a se encontrar dez anos depois em João Pessoa e se apaixonaram. O terceiro encontro, na Alemanha, onde Maria Luíza estava estudando, foi definitivo. Casaram em 1980 no Rio de Janeiro, e em 1993 nasce Karina, única filha do casal. Ukrinmakrinkrin não se limitou à única incursão de Nobre na temática indígena, outras duas obras prestaram tributo a povos índios: Xingu, op. 75 (1989), para orquestra, e Yanomami, op. 52 (1980), feita sob encomenda para um coro suíço. A idéia de Yanomami surgiu a posteriori e por acaso, quando Nobre passou por uma banca de revistas na Alemanha e viu uma reportagem sobre as reações violentas causadas pelo assassinato de um chefe da tribo e os rituais de funeral e vingança dos índios. Daí correu atrás do material necessário para escrever a letra na língua deles. Em 1984, chega ao ponto principal da carreira. Foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de
Música, ocupando a presidência da entidade de 1985 a 1993. Empenhou-se para que a UNESCO declarasse 1987 como o Ano Mundial da Música e para que o Presidente Sarney instituísse o Ano da Música no Brasil, simultaneamente. Promove, em 1987 também, as comemorações do Centenário de Villa-Lobos no Brasil, acertando com a gravadora Auvidis, da França, um CD com o Choros nº 6. A renda da tiragem, 1 milhão de cópias, foi revertida à Cruz Vermelha Internacional. Marlos Nobre ocupa justamente a cadeira nº 1, que pertenceu ao compositor carioca das Laranjeiras. Hoje em dia, morando no Rio de Janeiro, Marlos Nobre mantém uma rotina normal. Levanta-se às seis, compõe das oito às doze e da hora do lanche ao pôr do sol. Mergulha na piscina do prédio depois do almoço e vez ou outra sai pra pescar no Leme ou no Arpoador, seu hobby favorito. “Nele esqueço tudo, até mesmo a música! O que me interessa naquele momento é fisgar meu peixe, o maior possível!” Lê novos poetas brasileiros – é amigo de Marco Lucchesi – e recebe compositores, de jovens a doutourandos, de vários Estados. Aos jovens, dá aulas e dicas nos últimos sábados do mês, sem cobrar nada. Apresenta dois programas na Rádio MEC FM e nas horas vagas retoma a redação de dois livros, um autobiográfico e outro acerca de técnicas de composição, ambos sem previsão de lançamento. E depois de quatro anos sem vir a Recife, Nobre poderá ser visto novamente na próxima edição do Virtuosi, quando o violoncelista Leonardo Altino tocará pela primeira vez no Estado a Cantoria II, op. 101 (2005). •
poética do cantador nordestino, a visão do sertanejo, sobre o mito Lampião”. Nobre reforça a decisão de não se guiar por fatos ou pela história real de Lampião e Maria Bonita, mas pelos versos dos poetas e cantadores interioranos, citando uma máxima que ilustra o destino do cangaceiro segundo os sertanejos: “Lampião não está no inferno, tampouco no Céu, muito menos no Purgatório. Dizem que morreu, mas ele está é no Sertão”. Tudo começou com D. Eudóxia Carneiro de Mesquita, avó de Marlos Nobre e repositório familiar de cantorias e histórias, que falava do horror do dia em que o cangaceiro invadiu a fazenda do pai dela, na Paraíba. Um embrião das influências de Virgulino na música do autor de Rhythmetron pode ser encontrado numa obra para coro misto: Cancioneiro de
Lampião, op. 52 (1980), dividido em três movimentos, “Muié Rendêra”, “É lamp, é lamp, é lamp” e “Cantigas de Lampião”. Como ícone de esperança e de justiça do sertanejo – junto com Padre Cícero, Antônio Conselheiro e Frei Damião –, a valentia de Lampião, na futura ópera, se somará ao mito do amor, a Maria Bonita, ao corpo fechado, ao pacto com o diabo, às premonições e às espertezas sertanejas, diz o compositor. “Minha ópera Lampião é uma visão do meu Nordeste, do meu mundo riquíssimo da imaginação, do meu visionário pernambucano irreversível, forte, imaculado que mantenho em minha mente criadora. As peripécias, as brincadeiras, as cantorias, os desafios (serão) expressos em música direta, mas não populista, e, sim, moderna e arcaica”. • Continente maio 2007
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PERFIL Hans Manteuffel
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A polêmica do improviso Polêmica entre Marlos Nobre e Vitor Araújo evidencia que releitura de partituras não pode se contrapor a direitos de autor
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onta Elyanna Caldas, em sua autobiografia Caminhos de uma Pianista (2002), que após o seu primeiro recital, em 1946, os elogios de seu admirador e incentivador Waldemar de Oliveira, nas crônicas publicadas no Diário da Noite, foram intercalados pelos ataques de uma senhora chamada Sônia Barreto, que inicialmente a chamara de “boneca mecânica que não tem alma nem nervos”. Depois de nove meses de divergências entre o teatrólogo e crítico musical e D. Sônia, ele desferiu as ironias definitivas, as quais vinha poupando. Os ataques sofridos por Elyanna Caldas, segundo ela mesma, eram dirigidos na verdade à sua professora Hilda Nobre. Coisas da arcana fogueira de vaidades, que deve ser (além de uma metáfora velha) um arquétipo negativo das relações humanas. Recentemente, Marlos Nobre, primo mais novo de D. Hilda Nobre, posiciona-se sobre a experimentação do Frevo feita pelo jovem pianista pernambucano Vitor Araújo. E os cadernos de cultura da imprensa voltam às contendas de décadas atrás, mas com ameaças de processos no lugar de ironias e gracejos. O contexto é totalmente diferente e as causas da discussão são outras, mas pequenos desvios de perspectiva quase prolongaram a celeuma, sem necessidade.
Alexandre Belém/JC Imagem
O jovem Vitor Araújo provocou a ira de Marlos ao improvisar sobre o Frevo
No final de março, a história de Vitor é noticiada pelo Diario de Pernambuco. Com a sua premiada desenvoltura, o jovem pianista experimentou fazer acréscimos e improvisações – algo corriqueiro e permissível na música popular – em cima de peças clássicas, as quais exigem um correto procedimento de reescrita para que sejam legítimas. A divulgação de trechos de DVD em que Vitor interpreta quatro peças, através do site YouTube, leva Marlos Nobre a publicar uma carta aberta de aconselhamento e advertência. Como os conselhos se dirigiam, impessoalmente, a seus orientadores, e a advertência citava infrações a direitos autorais, o professor Edson Bandeira de Mello decidiu tomar para si o vocativo de orientador (mesmo tendo dito que deu somente duas aulas a Vitor) e o pai do pianista exacerbou as menções legais da carta aberta. Então, o professor Edson replica com outra carta, defendendo o garoto, no que é treplicado. Paralelamente, Túlio Montenegro, pai de Vitor, alega perseguição e calúnia contra o filho.
PERFIL Convidado pela Continente a comentar o assunto, o compositor e professor aposentado de música, matemática e filosofia Jarbas Maciel defende integralmente o ponto de vista de Marlos Nobre: “O Marlos está absolutamente correto. A carta dele foi espetacular: você tem de ter a formação técnica necessária. Se você começa errado, termina errado”. Jarbas disse que viu os vídeos na internet: “O menino deve estar entusiasmado com o próprio talento por causa da idade. Ele cometeu todos os erros na execução do Frevo. O Vitor tem esse talento todo, mas é mal-orientado e a mídia se empolgou com a polêmica. Eu vibrei com a carta do Marlos”. A posição de Túlio Montenegro parece exacerbada, se considerarmos o conteúdo da primeira matéria, quando semelhante precaução às normas legais foi dada pelo professor Ivanildo Guilherme Ribeiro: “Acho que (Vitor) deve ser orientado, até porque há possibilidade de sofrer conseqüências, inclusive judiciais, se reescrever partituras consagradas, como vem fazendo”. Sem falar que Marlos Nobre não entrou com nenhuma medida judicial, ao contrário do que pode acontecer em relação às obras de Villa-Lobos, caso os respectivos detentores de direitos venham a tomar conhecimento dos improvisos. A discussão é muito mais extensa e não tem sido pacífica no respectivo campo jurídico. Na MPB, é possível constatar que Villa-Lobos sofre inúmeros arranjos, que vão de Teca Calazans e Egberto Gismonti a Jorge Aragão e Sandy e Junior, mas é preciso saber até onde elas se deram sob conhecimento dos herdeiros ou representantes. Por outro lado, o falecido pianista canadense Glenn Gould não fazia enxertos nas partituras, ainda que tivesse um controle de dinâmica e agógica muito original, e assinava as paráfrases que compunha – vide hoje o russo Arcadi Volodos. Os que desaprovam as interpretações de Vitor Araújo esperam somente que ele siga o conselho do pianista João Carlos Martins (“Seria de bom-tom que a platéia fosse avisada, antes, que aquela interpretação tem algo que o compositor não escreveu”), mas que principalmente revise seus conceitos como “Acho que se a gente, músico, não chamar atenção, o concerto fica uma bosta” e “Para mim, o mais completo compositor do Brasil é Chico Buarque”. Um pouco difícil para quem ignorou “um esculacho” de outra conceituada pianista, Maria Clodes Jaguaribe, e acha que “o compositor existe para servir ao intérprete. Não o contrário”. (CEA) • Continente maio 2007
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MÚSICA
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em show nem disco, mas, sim, um DVD, produto à parte, com características visuais e sonoras próprias. É assim Cabeça Elétrica Coração Acústico, de Silvério Pessoa, um artista que trata o forró com uma sonoridade absolutamente contemporânea. Cenas e sons são inseridos sobre ou entre as músicas, num processo de samplercolagem que não só dinamiza as apresentações, como cria surpresas, acrescentando sentidos, desviando ou acentuando interpretações, numa total quebra da usual monotonia a que fatalmente leva o mero registro seqüencial de apresentações musicais durante um show. O diferencial começa desde o processo, iniciado há um ano e quatro meses. O show foi gravado numa única noite, no Teatro de Santa Isabel, onde não é permitido o uso de gruas. Daí a produção apelar, criativamente, para nove câmeras móveis, inclusive no meio da platéia ou no alto dos balcões. O tempo de finalização foi longo, em parte pela necessidade de captação do custo, R$ 120.000,00, mas também pelo perfeccionismo da equipe. Ao longo de 16 meses todos opinaram na busca de soluções criativas e funcionais: da produtora Karina Hoover ao próprio Silvério, passando pelos diretores de gravação Lula Queiroga e Erick Laurence, as editoras Jeanine Brandão e Natara
Imagens: Marcelo Lyra/Divulgação
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Lirismo e frenesi O cantor-compositor pernambucano Silvério Pessoa mostra maturidade e versatilidade em seu primeiro DVD, gravado no Teatro de Santa Isabel Marco Polo
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MÚSICA
Silvério: sintonia com a banda e com o público
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Cabeça Elétrica Coração Acústico, DVD de Silvério Pessoa, Casa de Farinha Produções, R$ 35,00.
Ney, além do diretor de palco Erick Hoover. Os erros acontecidos no show (raros, mas inevitáveis dada a gravação numa única apresentação, sem direito a repetir), ou seja, uma desafinação aqui, uma corda que partiu ali, foram consertados com overdubs (gravações superpostas) em estúdio. O resultado é uma obra à parte na carreira de Silvério Pessoa, inclusive porque, embora utilize a maioria do repertório das músicas do CD homônimo, acrescenta outras, como numa antologia. Silvério aproveita para mostrar que já é um cantor seguro, tendo assimilado bem as lições rítmicas de seus mestres Jackson do Pandeiro e Jacinto Silva. Tem boa presença e movimentação de palco, estabelecendo uma clara e simpática sintonia com a banda e com o público, tudo ao mesmo tempo. O repertório vai do lirismo da ciranda “Nas Águas do Mar” ao forró agolopado “Na Boléia da Toyota”, passando por coco, baião e samba, usando distorções de voz, samplers, vinhetas, sons eletrônicos, viola, zabumba e guitarra, com destaque para o quarteto de trombones, a Trombonada, formado por músicos da Spokfrevo Orquestra, que, quando ataca, leva o suingue ao seu limite máximo. Tudo envolto numa iluminação mutante que realça o clima de cada música, acentuando ora os tons do azul, do vermelho ou do amarelo. Nas letras, quase todas do cantor, mistura-se o universo rural ao mundo da cibernética, a Torre Eiffel competindo com o bueiro da Fábrica Tacaruna, mais as bruscas mudanças de direção do assunto que, às vezes, ataca o compositor, dando uma espécie de rasteira no espectador-ouvinte que se deixa viajar, levado pelo som. Interferindo no registro do show, imagens do mar, cabras, Paris, Recife, crianças pulando corda, feiras livres, avenidas noturnas, satélites artificiais, santas, trabalhadores do campo. Mais imagens de artistas como Márcio Almeida e a dupla Yellow e Moacir, do coletivo Re-Combo, projetadas atrás do palco, complementando a mescla criativa de informações do DVD. Entre os quatro bônus que acompanham este Cabeça Elétrica Coração Acústico – um belo título, por sinal –, destaque para o clip do coco embolado “Coco do M”, de Zé do Brejo e Jacinto Silva, com uma letra ao mesmo tempo cruel e bem-humorada. A interpretação propositalmente monocórdia de Silvério, o acompanhamento eletrônico, a bateria obcecada e a edição frenética fazem deste clip uma pequena obra-prima da Música Popular Pernambucana. •
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AGENDA/MÚSICA
Você deixaria... neto juntasse quatro amigui...Q uenhasseuparafilhotocarou noseupiano da sua sala? Até que sim,
mas – você pensa – só dá para um ou dois tocarem ao mesmo tempo. Como crianças são criativas e sempre dão um jeito de se divertir, você pode se deparar com algumas “inventividades” delas. Quem sabe, batucar na caixa do piano com a mão ou com uma baqueta de bombo, ou em placas de alumínio e caixinhas de papelão dentro do instrumento; pinçar as cordas com palhetas de violão ou com os dedos; colocar colares de miçangas, pedaços de madeiras ou sandálias havaianas nas cordas, e arrebentar algumas delas para raspá-las com pedras de breu ou fios de nylon. Pois o bem crescido pianista e professor Cláudio Dauelsberg fazia essas travessuras desde 1995 e inventou uma forma coletiva de executar o que se denomina de “piano preparado”. Para transformar as experimentações individuais em música executável na sala de concerto, Dauelsberg juntou quatro exalunas (Cláudia Castelo Branco, Gisele Sant'Ana, Késia Decoté e Jadna Zimmermann) e, há cerca de dois anos, formou o PianOrquestra, que esteve em fevereiro no Domingão do Faustão e na Feira Música Brasil. No primeiro DVD do grupo, Dauelsberg assina metade das composições com outras integrantes (exceto o “Repente”, solo). Diferente das primeiras experiências de John Cage (1912-1992) no piano preparado, a interpretação do PianOrquestra não tem nada de aleatória, e privilegia a MPB instrumental (“Cravo e Canela”, “Ponta de Areia”, “Manoel, o Audaz” e “Samba de uma Nota Só”). No lado erudito, Cláudio Santoro e Heitor Villa-Lobos são homenageados en passant num medley de quatro peças. (Carlos Eduardo Amaral)
Dez Mãos e um Piano Preparado – PianOrquestra, Visom Discos. Pedidos: www.visomdiscos.com.br
A batuta do Villa Apesar de a EMI ter lançado uma caixa de seis CDs com Villa-Lobos regendo as próprias obras, a verdade é que são poucas as demais gravações deixadas por ele. Este registro é o primeiro de todos, em 1954, à frente da Orquestra da Radio In American Sector, de Berlim. Para o disco, Villa escolheu conscientemente o amazônico Choros nº 6 e a Bachianas Brasileiras nº 7, amostras de seus dois maiores ciclos. A ressalva do registro não chega a ser a qualidade de som, mas o fato de o compositor não dominar a arte da regência – algo que pode ser notado de cabo a rabo e que tira um certo brilho das peças. Porém, o teor histórico do álbum e o protagonista dele valem a recomendação, antes que vire artigo de sebo. (CEA) Heitor Villa-Lobos – Orquestra RIAS de Berlim, Kuarup Discos, R$ 18,00 . Pedidos: www.kuarup.com.br Continente maio 2007
Promenade a dois O violonista boliviano naturalizado brasileiro, Jaime Zenamon, leva uma vida discreta em Curitiba, onde atua como compositor, intérprete e professor. Da mesma forma que Ravel, Zenamon decidiu fazer uma transcrição de Quadros de Uma Exposição de Mussorgsky, desta vez intimista, para violão e violino. Para assumir a tour de force a dois, convidou o violinista e amigo italiano Alessandro Borgomanero, que vive em Goiás. Com somente dois executantes, retoma-se a atmosfera da versão original da música, para piano – perceba-se o rural tema do “Bydlo”, os misteriosos “Gnomos” ou o marcante e recorrente “Promenade”. Zenamon e Borgomanero tocam ainda a “Suíte Caricaturas”, em seis curtos movimentos, e “Três Retratos”, de autoria do violonista. (CEA) Quadros de uma Exposição, produção independente. Pedidos: jaimezenamon@senffnet.com.br
Fagote e improvisos Em muitos desenhos animados, não percebemos a gama de adjetivos que é possível identificar nos sons de um fagote: cavernoso, ranheta, fanho, zombador, choroso, austero. O CD Paradoxo para todos contém esses e muitos outros. O fagotista gaúcho Adolfo Almeida Jr. avisa que a música é “improvisada, livre, intuitiva” e que devemos “ter a precaução de ouvir em parcelas não superiores a três faixas”. Solo ou entre acordes de jazz, sons sintetizados, percussão de barro e de lata e saxofones, o fagote assume espontaneamente facetas despercebidas, quando está na orquestra sinfônica e se revela capaz de corresponder bem a quem quer conhecê-lo. E, na faixa 16, um bom exemplo de como atua soberbo em histórias infantis. (CEA) Paradoxo para Todos, Antares Música, R$ 25,00. Pedidos: www.antaresmusica.com.br
Santoro em sonatas Após alguns anos de estudos, a violinista Mariana Salles reuniu em 1999 a partitura das cinco sonatas para violino e piano de Cláudio Santoro, escritas entre 1940 e 1957, e convidou a pianista Laís de Souza Brasil para a primeira gravação integral do conjunto de peças. Como antigo expoente do grupo Música Viva, criado por Koellreuter, é perfeitamente possível perceber a transição de Santoro do serialismo das “Sonata nº 1” e “2” ao atonalismo livre da “nº 3” e daí para o nacionalismo assumido das “nº 4” e “5” (a preferida do compositor). O cuidado nas particularidades de cada peça e na compensação das poucas indicações de dinâmica em todas elas é observado pelo duo e constituem ponto positivo do trabalho. (CEA) 5 Sonatas de Cláudio Santoro para Violino e Piano, Academia Brasileira de Música. Pedidos: vendas@abmusica.org.br
AGENDA/MÚSICA Surpresa ao vivo O show Bossa-Nova Forever, encomendado pela Universidade de Miami, prestou uma homenagem à bossa, ao samba-jazz e à Elis Regina. Foi gravado casualmente e sem maiores pretensões. A qualidade e o sucesso da apresentação acabaram rendendo esse CD, quase sem retoques e que une pela primeira vez o compositor e arranjador Antonio Adolfo e a cantora Carol Saboya, pai e filha. Antonio Adolfo assina os arranjos e improvisações ao piano e abre o espetáculo com um medley de “Rhapsody in Blue”, “Garota de Ipanema” e “Aquarela do Brasil”, mas logo deixa Saboya passear com voz límpida por diversas canções – às vezes à capela, para evidenciar seu belo timbre. “Meu Limão, Meu Limoeiro”, “Insensatez” e “Sá Marina” atestam essa limpidez. (CEA) Antonio Adolfo e Carol Saboya ao vivo, Kuarup, R$ 25,00.
Estréia de Ferrugem O Mestre Ferrugem, olindense, de 57 anos, com 40 anos de estrada, acaba de lançar seu primeiro CD Mestre Quando Canta, Discípulo Tem Que Respeitar, com 12 faixas de sua autoria. O desafio do Mestre sempre foi versar o coco e é isso que ele faz com a ajuda do seu grupo, composto por: Ana Smilling, Moça e Pinga Toscano (vocal e percussão), Safiry (congas e efeitos), Rinaldo Carimbo (tambor) e Hermeson Frank (pandeiro e flauta). O disco conta ainda com ilustres participações de Aurinha do Coco, do grupo Bomgar e do músico e produtor Berna Vieira (Bonsucesso Samba Clube), que faz uma versão remix da música “A Derrubada”. Mestre Quando Canta, Discípulo Tem Que Respeitar, Mestre Ferrugem, Independente, R$ 18,00.
Roda de samba A dupla Moacyr Luz e Armando Marçal, que já vinha se encontrando em algumas rodas de samba no Rio de Janeiro e tocando junto, decidiu celebrar a união no CD Sem Compromisso. O título do disco, que mantém o charme das rodas e feijoadas de samba, já diz tudo: são canções tocadas de uma maneira leve, sem grandes pretensões. O resultado é um trabalho bem intimista e muito agradável. O repertório, com 12 faixas, foi dividido entre composições de Moacyr Luz e canções que prestassem homenagem à família de Armando Marçal, que faz parte de uma dinastia musical de três gerações. Entre as músicas destaca-se “Sem Compromisso”, título homônimo ao do CD, de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro. Sem Compromisso, Moacyr Luz & Armando Marçal, Deckdisc, R$ 23,90.
Entrada para raros Divulgação
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m um palco iluminado, 12 músicos e três artistas circenses – todos caracterizados com maquiagem branca e trajes alegres – fazem um espetáculo que reúne música, poesia, teatro e circo. Na platéia, um público jovem, também caracterizado, canta e se emociona com mais uma apresentação de O Teatro Mágico. O idealizador do projeto e líder da trupe Fernando Anitelli tirou o nome do grupo da obra O Lobo da Estepe, do alemão Herman Hesse, e conta que “existe uma passagem no livro em que o personagem vê escrito em um letreiro – Teatro Mágico: entrada só para raros”. No CD do grupo, Entrada para Raros, que contou com a participação de músicos do Cordel do Fogo Encantado, Pavilhão 9 e da percussionista Simone Soul, encontramos elementos de maracatu, hip hop, samba, em harmonia com música erudita e a pegada do rock. O Teatro Mágico flerta com a arte livre e fala das coisas simples da vida, sem perder o bom humor. É difícil destacar apenas uma ou duas músicas de Entrada para Raros, entre tantas frases marcantes que cada uma delas leva, mas qualquer pernambucano sabe o que é “ficar peixe” da canção “Camarada d'água” e ninguém consegue dominar o amor, como fala “Ana e o Mar”.(Diego Dubard)
Entrada para Raros, O Teatro Mágico, independente, R$ 5,00.
Vá Rever as Flores Depois de mais de 30 anos compondo em parceria com Sivuca, Glória Gadelha desponta como cantora e lança seu primeiro álbum solo. Em Tinto e Tropical, título extraído de “Promenade Sous la Neige”, ela opta pelo romantismo mais franco em forma de música. Por isso, proclama que “A vida é uma festa, A vida é doce e que, apesar de tudo, é preciso Escutar o coração – e com a mesma pureza que perpassa cada faixa, capta O que diz um olhar e manda que um coração desiludido Vá rever as flores”. Poemas de Luiz Augusto Crispim, Marilena Soneghet, Luiz Ramalho e Moraes Moreira se somam aos da própria Glória e instilam nos mais sentimentais a mensagem principal do CD: “Não fique aí a dondolar a dor”. (CEA) Tinto e Tropical, Glória Gadelha, CPC-UMES. Pedidos: www.umes.org.br Continente maio 2007
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
Medéia e o movimento feminino A princesa se apaixonara ao ponto de trair o seu povo e matar o próprio irmão e ultrapassa todos os limites na sua obsessão pelo amado
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o filme de Pasolini, Medéia olha o corpo adormecido de Jasão e sente-se perdida. Nem Eurípides nem Sêneca falam dos pensamentos de Medéia, ao avistar o estrangeiro que veio da Grécia para roubar o Velo de Ouro, uma pele de carneiro que os habitantes da Cólquida adoravam. Os dois poetas narram que a princesa se apaixonara ao ponto de trair o seu povo e matar o próprio irmão, quando fugia com o argonauta. Além da distância geográfica, crenças e costumes separavam os mundos de Medéia e Jasão. Na Cólquida, mais a oriente, a natureza e seus fenômenos ainda eram sagrados; na Grécia, já se buscava a explicação do mundo pela ciência. Na noite em que se entregou ao belo Jasão, Medéia fugiu da tenda de peles de cabra, onde se abrigavam, e correu como louca pelos campos desertos. Implorava à Terra, à Lua e ao Sol que a ouvissem. Mas os astros com os quais costumava falar, não respondiam. A feiticeira já não tinha poderes, pois ultrapassara todos os limites na sua obsessão pelo amado. Deixara-se enfeitiçar. Agora, encaminhava-se sozinha para um mundo sem magias, onde seria estrangeira e inimiga. Cansada de suplicar aos astros, Medéia voltou à tenda e viu Jasão adormecido. Contemplou pés, joelhos, coxas, peito e ombros, todas as curvas nas quais se extraviara. Pensou no que deixara para trás e lhe ocorreu que, ao se desfazer dos seus mistérios, se desfizera do melhor de si mesma. Olhou o rosto de Jasão, o pomo saliente do pescoço, e teve a irremediável consciência de que já não podia retornar à Cólquida. Iluminada por uma candeia, despiu a túnica, o véu, os colares, as pulseiras e as san-
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dálias. Guardou os pertences numa arca e, em seguida, vestiu-se, como se fosse uma mulher grega. O que a aguardava? Fez essa pergunta como se estivesse no limiar de uma nova porta. Valeria a pena transpô-la? A experiência do novo pressupõe a morte de crenças antigas. Seduzida por Jasão e pelo desejo do desconhecido, partira em busca de um mundo que apenas sonhara. Há muitos anos, do Ocidente para o qual ela se dirigia, viera o velo de carneiro. O seu povo, que o adorava, julgava que ele possuía um significado mágico. Mas, para os gregos que se aventuravam a roubá-lo, significava apenas glória e poder. Medéia morou ao lado de Jasão e lhe deu três filhos. É possível que ele não a tenha amado e é certo que nunca compreendeu os seus modos estranhos. Medéia se esforçava em parecer uma grega, mas nunca deixou de nutrir as paixões do mundo arcaico em que vivera. E se o que dorme no íntimo das pessoas apenas aguarda o dia de ser acordado, não demorou que aquele dia chegasse. Jasão apaixonou-se por Glauce, uma princesa de Corinto, e pediu-a em casamento. Quando soube do ocorrido, Medéia procurou o marido e avistou-o se exercitando em lutas com outros rapazes. Ao reconhecer o rosto e as coxas que a atormentavam, sentiu o mesmo incômodo que sentira na primeira noite em que percorreu com os olhos embriagados, o corpo nu de Jasão. A caça pode se deixar cair na armadilha uma primeira vez e escapar. Se se deixar prender uma segunda vez, é porque gosta de sacrifício. Medéia conhecia as armadilhas do amor. Mandou chamar Jasão no palácio da rival e queixou-se de abandono. O marido garantiu que
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se casava por causa dos filhos, para assegurar-lhes cidadania e proteção. Falava gentil com a mulher que traíra os pais para segui-lo. Satisfeita, Medéia implorou que Jasão a possuísse uma última vez. Urdia uma vingança e dissimulava o seu ódio com suposta ternura. Jurou ao marido que o perdoava e desejou-lhe felicidade. Quando ele foi embora, Medéia despertou do sonho em que vivera desde que se apaixonara. Correu enlouquecida pelos campos, evocou o sol e pediu que falasse novamente com ela. O astro brilhou com um vermelho estranho, que apenas Medéia conhecia. Os sortilégios retornaram à feiticeira e ela pôde usar suas mágicas. Desenterrou os antigos pertences, as roupas e objetos que trouxera da Cólquida, mandou-os de presente para Glauce e suplicou que ela os vestisse. Se a luz é um bem para os homens, porque sem ela nada enxergamos, seu excesso pode matar. O resto dessa história são incêndios. Quando vestiu a roupa, Glauce ardeu em chamas e se atirou dos muros da cidade. O pai, na esperança de salvá-la, sofreu o mesmo destino. Medéia assassinou os filhos e ateou fogo na casa. Jasão correu para junto das crianças, mas já era tarde. Medéia fugia numa carruagem puxada por um dragão e do meio das chamas o insultava. Zeus, do alto do Olimpo, determina o rumo de muitos acontecimentos. Muitas vezes os deuses enganam nossas previsões na execução de seus desígnios. O que se esperava não acontece. E um deus franqueia o caminho aos acontecimentos menos previsíveis. •
Reprodução
Maria Callas interpreta Medéia, no filme homônimo de Pasolini Continente maio 2007
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CIÊNCIA
Coincidência & Probabilidade Matemáticos sustentam que muita coisa considerada "extraordinária" pode ser explicada pela lei das probabilidades estatísticas Fernando Monteiro
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m 1959, um americano de Chester (Pensilvânia) foi detido por vadiagem, apesar dos seus protestos. O preso dizia que não era um vagabundo e que tinha endereço certo na rua McIlvain, 714. Os policiais que o levaram riram na cara dele: “Conte isso pro juiz”... O juiz R. Robinson Lowry, no dia de julgamento, olhou, severo, aquele réu acusado do crime muito comum de vadiagem, e fez a primeira pergunta baseada no arrazoado das “otoridades” contra o sujeito. O sisudo juiz Robinson parecia somente intrigado, ao indagar: – Como foi que o senhor conseguiu esse endereço? O vagabundo – porque esse era mesmo vagabundo – foi sincero: respondeu que havia inventado o endereço na hora. Então, o magistrado fechou ainda mais a cara: – Além de vadio, o senhor é mentiroso, porque esse endereço existe e é o da minha casa. Está condenado a 90 dias de cadeia! Os americanos vivem perseguidos, parece, pelas coincidências – às vezes favorecidas por qualquer coisa que talvez se situe numa dobra fractal do espaço “curvado” pelo tempo. Trocando em miúdos: quais as chances de você sair de carro, da costa leste para a costa oeste, e, na primeira parada, estacionar justo
Imagens: Reprodução
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CIÊNCIA ao lado de um veículo que tenha os mesmos números da sua placa? Não muitas. E qual a chance do carro ser de propriedade de Sharon Stone? Nenhuma. Boas ou más, as coincidências – mesmo aparentes – costumam ser obsessivamente caçadas por gente como Warren Weaver, autor de Lady Luck (Ramdom House, 1985), que jura haver se interessado pelo assunto desde a juventude, quando viajava pelo Kentucky, como caixeiro-viajante novato na profissão. Um dia, resolveu parar em Louisville, onde achou simpático um hotel com um jardim meio empoeirado, numa rua do centro da cidade. Após preencher o registro, o recepcionista lhe deu a chave do apartamento 307 (o mesmo número do seu quarto no hotel anterior)... mas, e daí? Até então, tudo bem, nada demais. O também empoeirado Weaver estava apenas começando a fazer a barba, quando o auxiliar da recepção bateu na porta para entregar uma correspondência. – Para mim? – É. Para o senhor mesmo – e o rapaz lhe mostrou uma carta endereçada a “Mr. W. Weaver, apto. 307”. Tratava-se do seguinte: o ocupante anterior do 307 se chamava William Weaver, era da Texas como o texano Weaver, não era parente dele e certamente nunca ficou sabendo da existência do futuro “coincidentólogo” Warren. A grande maioria dos matemáticos certamente prefere chamar de “efeito da probabilidade” pelos menos a metade dos casos que nós chamamos de “coincidências”. Mesmo diante dos fatos mais intrigantes, eles costumam sustentar que muita coisa considerada como “extraordinária” pode ser explicada pela lei das probabilidades estatísticas, que é um modo de calcular as chances de ocorrência de certo tipo de acontecimentos. Com cifras colossais na mente, algumas dessas cabeças afeitas a números nos explicariam que são possíveis bilhões de interações dos fatos que estão acontecendo todos os dias, envolvendo a megapopulação de um planeta que incha de gente – não por coincidência. Dando um bom exemplo: numa festinha qualquer, na qual se encontrem 22 estranhos, quando um deles descobre que faz aniversário no mesmo dia de um outro, logo aparece alguém para alertar: “Olha só, gente, que coincidência mais incrível”... Isso é coincidência, mas será incrível? “Não, não é incrível”, ponderaria um matemático sorridente, explicando que em qualquer grupo de 23 pessoas reunidas de modo casual, há mais de 50% de chances de duas terem nascido no mesmo dia. Warren Weaver, o homem das coincidências, coincidentemente falando nessa probabilidade, por ocasião de um jantar em que se encontravam à mesa, casualmente, o exato número de 22 pessoas, viu que algumas se entreolharam, ao ouvi-lo sobre falar esse percentual de chances, e propuseram fazer ali mesmo a checagem dos aniversários. Todo mundo declarou as datas de nascimento, e nenhuma apareceu duplicada – para satisfação dos que não gostavam de matemática. Foi então que o garçom ali presente trouxe a “lei” de volta ao seu império: “Vocês me desculpem, eu não pude deixar de ouvir a conversa, e quero dizer que sou a vigésima terceira pessoa nesta sala, e faço anos na mesma data daquela senhora ali...” Tornou-se famoso um caso divulgado na revista Life: 15 pessoas que faziam parte do coro de uma igreja (em Beatrice, Nevada) chegaram atrasadas – todas – para um ensaio marcado para o dia 1º de março de 1950. Alegaram os mais variados motivos: carro que não havia pegado, cochilo numa poltrona, programa de
Carl Gustav Jung acreditava na sincronicidade entre os eventos
As várias coincidências de Abraham Lincoln (acima) e John Kennedy (abaixo) já foram alvo de investigação jornalística
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CIÊNCIA rádio preferido escutado até o fim, simples esquecimento e outras razões. E foi muita sorte que todos tivessem se atrasado para o ensaio marcado para as 19h30, porque precisamente às 19h20 a igreja veio a ser atingida por uma forte explosão. Os 15 cantores amadores atribuíram seus atrasos ao relógio da Providência divina, e – claro – apareceu um matemático para converter isso em números exatos: a probabilidade de que todas as 15 pessoas chegassem atrasadas, na mesma noite, como havia acontecido, era de uma em um milhão. Como já foi dito, americanos são mais fascinados por coincidências (ou não) do que qualquer outro povo com bastante tempo para pensar nessas coisas. Um jornalista de Dallas listou tudo que aproxima o assassinato de dois presidentes carismáticos: Abraham Lincoln e John Kennedy. Lá vai: para começar, Kennedy foi eleito exatamente 100 anos depois de Lincoln; os dois estavam totalmente empenhados na luta pelos direitos civis dos negros; ambos foram assassinados numa sexta-feira, na frente das suas esposas; os dois haviam perdido um filho enquanto residiam na Casa Branca; ambos foram sucedidos por vice-presidentes de sobrenome Johnson; Lincoln foi morto no Teatro Ford, enquanto Kennedy foi alvejado num Lincoln conversível, fabricado pela Ford... Voltemos à ciência séria. Ou que ao menos tenta ser séria: Carl Jung, o famoso psiquiatra suíço, se mostrou interessado, a vida inteira, nos casos de coincidências notáveis que, ele achava, não havia probabilidade de serem explicados pela lei da probabilidade. Escreveu bastante sobre isso e, num ensaio de 1952, Jung inventou a palavra sincronicidade para descrever justamente “o fenômeno consti-
tuído por acontecimentos aparentemente não relacionados, que ocorrem inesperadamente associados uns com os outros”. Em 1935, cientistas demonstraram algo nesse sentido, isto é, um pouco mais além do que sugere o enunciado ainda meramente matemático das “probabilidades”. Ou seja, um experimento com partículas subatômicas levou a estabelecer o EPR (assim chamado em homenagem a Einstein e seus colaboradores Boris Podolsky e Nathan Rosen), num trabalho mais tarde seqüenciado por David Bohm, para quem as partículas e as pessoas podem “influenciar umas às outras”, porque tudo no universo está ligado – o passado, o presente e o futuro – no que Böhm chamou de a “ordem implicada”. Complicado? É mais fácil acreditar em coincidências? Ou então usar a máquina calculadora exponencial para obter resultados das probabilidades simples? Talvez. Seja como for, fico desconfiado se, acaso, algum escritor chinês, no extremo do continente asiático, não estará, neste mesmo momento, pondo também o ponto final coincidente num artigo sobre este mesmo assunto, tendo citado os mesmíssimos exemplos. •
CONTINENTEDOCUMENTO São 150 anos de muita cultura. Encaramos o desafio, nesta Continente Documento, de apresentar um painel diversificado das principais manifestações artísticas de uma cidade que se destaca pela produção cultural – popular e erudita – de altíssimo nível e repercussão. Dividimos essa tarefa em três grandes áreas: os intelectuais (escritores, teatrólogos, jornalistas e pensadores em geral), egressos de Caruaru e que contribuíram para a cultura pernambucana e brasileira, com texto do escritor Humberto França; o artesanato popular, com matéria da jornalista Olívia Mindêlo; e, por fim, a música da cidade, que coube ao pesquisador José Teles.
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Álvaro Lins, crítico literário implacável, foi membro da Academia Brasileira de Letras
INTELECTUAIS PRESENÇA NA LITERATURA, JORNALISMO E TEATRO Humberto França
O
curral de gado, do século 18, de onde Caruaru se ergueu, era um território que pertencia aos índios tapuias e aos negros fugidos dos engenhos da Zona da Mata. Em 1681, o governador Aires de Souza de Castro concedeu à família Rodrigues de Sá uma sesmaria com 30 léguas de extensão, à margem esquerda do Ipojuca. A família chefiada por Simão Rodrigues de Sá ocuparia as terras anos mais tarde. O neto do desbravador, José Rodrigues de Jesus, e sua mulher, Maria do Rosário de Jesus, receberam do bispo de Olinda, Dom Tomás da Encarnação da Costa Lima, uma Provisão datada de 28 de setembro de 1781, para construírem a primeira capela da Fazenda Caruru, em invocação a Nossa Senhora da Conceição. O povoado de Caruaru se tornou vila e sede de município. Em 18 de Maio de 1857, pela Lei provincial de Nº 416, foi elevado aos foros de cidade. O desenvolvimento da cidade foi lento. Após o demorado processo de fixação da população e a consolidação do entreposto comercial, a cidade tardiamente iniciou, a partir das décadas inaugurais do século 20, o processo de instalação de escolas primárias e secundárias. Aqueles que, nascidos em Caruaru, lançaram um olhar para além das fronteiras paroquiais e provinciais, concluídos os estudos primários, foram obrigados a abandonar sua cidade para alcançarem uma formação mais apurada. Esses jovens se nutriram dos conhecimentos fundamentais difundidos pelos professores caruaruenses. À exceção de Austregésilo de Athayde, outros assinalados intelectuais, como Aurélio de Limeira Tejo, José, Elísio e João Condé, Lourival Vilanova e Álvaro Lins freqüentaram a escola primária em Caruaru. Outros artistas e professores se destacaram pelo esforço criativo: Joel de Pontes, Vital Santos, Argemiro Pascoal; Arary Marrocos, no teatro, Celso Rodrigues, no jornalismo, e Nelson Barbalho, pelo meritório intento, em parte falhado, de fazer uma historiografia. Diga-se de passagem, que a produção de Nelson Barbalho é importante para o conhecimento das raízes históricas de Caruaru, embora as suas pesquisas tenham sido desenvolvidas sem a necessária metodologia. As suas principais obras são: Major Sinval (1968), Dicionário da Aguardente (1974) País de Caruaru (1974) Caruaru da Vila à Cidade . Essas personalidades atestam que, em Caruaru, foi gerada uma sinergia compreendendo a mais legítima expressão da cultura popular e um grupo de intelectuais capazes de uma produção intelectual que
alcançou uma qualificação artístico-intelectual de visibilidade nacional e internacional. Álvaro Lins, um mestre O nome de Álvaro Lins ainda gera repercussão nos meios intelectual, jornalístico e universitário do país. Lins viveu a sua infância e parte da juventude em Caruaru, formou-se, e foi um dos maiores críticos literários da história do Brasil, jornalista, historiador, líder de sua classe, erudito e diplomata. A sua campanha em defesa da posse do presidente JK, através das páginas do Correio da Manhã se constituiu numa das suas maiores contribuições para o Brasil e para a Democracia. A obra de Álvaro Lins há muito se fixou em tamanho, profundidade e significação na herança cultural brasileira. O seu valor se apreende pela leitura de sua obra: A História Literária de Eça de Queiroz, 1939; A Técnica do Romance em Marcel Proust, 1956; Roteiro Literário do Brasil e de Portugal – Antologia da Língua Portuguesa, co-autoria de Aurélio Buarque de Holanda; Missão em Portugal – (Diário de uma Experiência Diplomática – I), 1960 e a série: A Glória de César e o Punhal de Brutos, 1962, Os Mortos de Sobrecasaca, 1963, O Relógio e o Quadrante, 1963, em que se revelam as obras dos melhores autores da literatura brasileira do século 20. Passariam sob o olhar crítico de Lins, dentre os mais destacados, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado e Guimarães Rosa. Álvaro Lins nasceu em 1912, e iniciou seus estudos na escola da professora Celestina. Após concluir o curso primário em 1924, Álvaro se matricularia no Colégio Salesiano, do Recife. Após o curso secundário, matricula-se na Faculdade de Direito e se inicia no magistério, ensinando História da Civilização e Geografia Geral. Em 1935, Álvaro concluiu o Curso de Direito. No início da década de 30, Lins ingressou na política partidária do Estado. Em 1934, o governador Carlos de Lima Cavalcanti o convidou para o cargo de secretário de governo. Em 1940, sem conseguir permanecer no Recife, Álvaro Lins mudou-se para o Rio de Janeiro. Na capital, dá-se a grande mudança em sua vida, quando Gilberto Freyre e José Lins do Rego recomendam-no para assumir o cargo de crítico literário do jornal Correio da Manhã. A sua evolução como crítico literário seria notável. Havia quase unanimidade a respeito de suas Maio 2007
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qualidades intelectuais. Nos meados dos anos 40, o poeta Carlos Drummond de Andrade sustentava que Álvaro era (...) “o imperador da crítica brasileira. (...) cada rodapé de Álvaro no Correio da Manhã, tinha o dom de firmar um valor literário desconhecido ou contestado. E quando arrasava um autor, o melhor que o arrasado tinha a fazer era calar a boca”. Álvaro também foi historiador. Em 1941, Lins recebeu um convite do Ministério das Relações Exteriores para escrever um estudo diplomático e uma biografia do Barão do Rio Branco, para ser lançada no ano do primeiro centenário do seu nascimento, em 1945. A obra de historiografia o alçou a um patamar de autor de um dos mais importantes livros do gênero: Rio Branco, Biografia, a respeito de que o crítico Wilson Martins diria ser (...) "um dos dez livros brasileiros fundamentais". O seu desempenho de crítico literário e escritor foi reconhecido quando da sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, em 1955. Em 1956, Álvaro Lins, mais uma vez, retornaria às lides políticas, ao liderar, através de artigos e editoriais publicados no jornal Correio da Manhã, uma campanha pela garantia de posse ao presidente eleito democraticamente, Juscelino Kubitschek, no momento em que os quartéis se agitavam, unindo-se a infrapolíticos, num movimento de oposição à posse e conseqüentemente à ordem constitucional no país. No decorrer de seu desempenho na Casa Civil, Lins seria convidado para exercer as funções de Embaixador do Brasil em Lisboa. Álvaro Lins se destacaria como diplomata, num episódio relevante para a história das relações luso-brasileiras, quando o general Humberto Delgado, ex-candidato à presidência da República, sentindo-se perseguido pelas forças de segurança do governo de Oliveira Salazar, pediu asilo à Embaixada do Brasil. Em face da hesitação do governo brasileiro em acolher o general Delgado, o embaixador Lins renuncia ao seu posto e retoma a sua cadeira de professor de Literatura, no Colégio Pedro II e de professor de História do Instituto de Educação. No início da década de 60, Lins se entrega a atividades políticas participando de movimentos de esquerda. Após a vitória do golpe de estado de 1964, o mestre da crítica literária se afastou definitivamente da vida pública. Faleceu em 5 de junho de 1970. Os irmãos Condé, Elísio, João e José foram os embaixadores do "país de Caruaru" no centro-sul do
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Brasil, por décadas. A influência que os Condé exerceriam no mundo literário brasileiro, e até português, fundamentou-se, através da edição do Jornal de Letras, um dos mais resistentes veículos especializado em literatura no país, o que transformou os Condé numa espécie rara de mecenas sem pecúlio. Anos dourados da cultura A presença intelectual e histórica de Caruaru atingiu seu zênite no momento da melhor produção do Mestre Vitalino, e da ação de Álvaro Lins, Luís de Castro e Sousa, Limeira Tejo, no Rio de Janeiro, na década de 1950. Foi nesta ambiência que José Condé escreveu seus contos, romances e novelas: Um Ramo para Luísa (1959); Terra de Caruaru (1960); Vento do Amanhecer em Macambira (1962); Pensão Riso da Noite: Rua das Mágoas (1966); Como uma Tarde em Dezembro (1969); Tempo Vida Solidão (1971); Obras Escolhidas (1978). Porém, na apresentação de Otto Maria Carpeaux, para o romance Terra de Caruaru, o renomado crítico literário se cerca de cuidados para não destravar elogios insinceros e críticas descuidadas a respeito da obra de Condé, que tendo alguma consistência de bom padrão literário, não pode ser alçada para um patamar onde se situam as melhores obras de consagrados escritores brasileiros. No entanto, é verdade que alguns contos de José Condé alcançaram visibilidade nacional e internacional, a exemplo do: Venturas e Desventuras do Caixeiro-Viajante Ezequiel Vanderlei Lins, o seu Quequé para os Íntimos, adaptado para uma série de televisão. Belarmino Maria Austregésilo de Athayde nasceu em Caruaru, em 1898, tendo vivido na cidade apenas algumas semanas. Acompanhado dos seus pais, o desembargador José Feliciano Augusto de Athayde e Constância Adelaide Austregésilo de Athayde, rumou para o Ceará, onde viveria sua infância. Na adolescência, entrou para o Seminário da Prainha, em Fortaleza onde estudou até o 3º ano do curso de Teologia. Athayde também exerceu o magistério no Ceará e no Rio de Janeiro. A partir de 1921, no jornal Correio da Manhã, exerceu crítica literária. Em 1922, formou-se em Direito. Sua carreira de homem público e intelectual atingia o ápice, quando, em 1948, foi um dos membros que redigiu a Declaração Universal dos Direitos do Homem, na III Assembléia da Organização das Nações, em Paris. Em 1951, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e, em 1959, tornou-se
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Claus Meyer/Tyba
O escritor Limeira Tejo tem uma importante obra, infelizmente pouco divulgada
Austregésilo de Athayde, jornalista e crítico literário, presidiu a Academia Brasileira de Letras
seu presidente, permanecendo no cargo até 1993. Ainda que não tenha vivido a infância e a juventude em Caruaru, Austregésilo de Athayde se sentia ligado à cidade e se considerava um caruaruense. O cuidado com que planejou, algum tempo antes do seu falecimento, a edificação de um monumento à sua memória, na sua cidade natal, assegura a veracidade dos sentimentos que o uniam a Caruaru. Certamente, nenhuma outra cidade do interior brasileiro obteve a honra de ostentar dois dos seus filhos na qualidade de membros da Academia Brasileira de Letras: Austregésilo de Athayde e Álvaro de Barros Lins. Como se não bastasse, Caruaru também ofereceu, ao país, escritores notáveis, dentre os quais se destaca Aurélio de Limeira Tejo, pelas obras que produziu. Cito as mais importantes: Brejos e Carrascais do Nordeste, Brasil Potência Frustrada, Retrato Sincero do Brasil e Enéias – Memórias de uma Geração Ressentida. Teatro, educação e jornalismo A presença de notáveis literatos caruaruenses no cenário nacional completa as atividades de teatrólogos, escritores, poetas, jornalistas, educadores que, permanecendo nos limites do Estado, contribuíram para o desenvolvimento intelectual de Pernambuco. Iniciaremos, assinalando Augusto Tabosa, filho de agricultores, autoditada, sonetista, poeta e principalmente professor. Tabosa nasceu em 1880, na zona rural de Caruaru; tendo sido comerciante, decidiu abandonar os negócios para se dedicar ao ensino na
sua escola do Beco da Farinha, no início do século passado. Charadista, agnóstico, Augusto Tabosa publicou, em vida, apenas um livro de poemas Flocos de Neve, do qual consta o poema "Felicidade", que recebeu, em 1919, a Medalha de Ouro, do Almanaque de Lembranças, editado em Portugal.Líder político e intelectual, um precursor da educação superior em Caruaru, um dos fundadores da Associação de Ensino Superior – Asces, Tabosa de Almeida foi advogado e exerceu o mandato de deputado estadual em quatro legislaturas, e deputado federal em uma legislatura. Pensador, autor de notáveis obras sobre o Direito, estudioso da Filosofia do Direito, filólogo, o professor Lourival Vilanova foi professor da Faculdade de Direito do Recife, ligado ao pensamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kensen, também atuou como professor-titular da cadeira de Sociologia do Direito e coordenador do mestrado da mesma faculdade. Exerceu as funções secretário da educação de Pernambuco, professor convidado da Faculdade de Direito de Lisboa. O jornalista e político Celso Rodrigues foi um dos caruaruenses mais extremado nos sentimentos e em posições que assumia, quando tratava de temas relacionados à sua cidade. Iniciou, muito jovem, as suas lides de escritor no jornal A Vanguarda, de Caruaru. Celso possuía um estilo inconfundível, tendo por vários anos publicado artigos semanais (no Jornal do Commercio) que editou em livros, cuja temática seminal eram sempre as lembranças da sua cidade
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Arquivo Continente
Remontagem de Rua do Lixo, 24 de Vital Santos, exemplo de teatro popular de qualidade
amada. Waldênio Porto, descendente de uma das famílias mais antigas da cidade, tem desenvolvido uma singular liderança intelectual no Estado, como escritor, médico, presidente de União Internacional de Médicos Escritores Lusófonos e da Academia Pernambucana de Letras; a partir de pesquisas, tem desenvolvido uma obra literária que compreende uma rara abordagem da história de Caruaru. O movimento teatral em Caruaru, a partir dos espetáculos realizados no auditório da Rádio Difusora da Caruaru, produziu teatrólogos, atores e mestres em artes cênicas. Destaca-se Joel Pontes de Albuquerque Freitas, nascido em Caruaru, em 12 de agosto de 1926. Joel foi líder estudantil, formou-se em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e em Filosofia. No Recife, fundou o Teatro de Estudantes de Pernambuco e exerceu as funções de redator do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco. Foi professor visitante na Universidade do Texas, Estados Unidos. Ensaísta, colaborou em vários jornais brasileiros e estrangeiros. Foi co-fundador da Campanha Nacional de Escolas de Comunidade (CNEC), presidente do Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal de Pernambuco e professor de Literatura Portuguesa. Exerceu uma intensa
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atividade como conferencista e palestrante em Portugal, Espanha, França, Itália e no México. Faleceu aos 51 anos de idade, em 5 de Novembro de 1977. Igualmente, um teatrólogo caruaruense, Vital Santos, vem há décadas se destacando no teatro brasileiro. Um dos fundadores do Grupo Evolução, desde a sua primeira peça, A Feira de Caruaru, Vital Santos tem alcançado uma trajetória ascendente. A peça Rua do Lixo 24, de 1968, recebeu cinco Prêmios no Festival Nacional de Teatro (1969). As peças, O Sol Feriu a Terra e a Chaga se Alastrou e O Auto das Sete Luas de Barro estão entre as mais premiadas do autor. Esta última foi inspirada na vida do ceramista Mestre Vitalino e recebeu, entre outros, o Prêmio Moliére. A atividade teatral em Caruaru tem em Argemiro Pascoal e Arary Marrocos dois arautos das artes cênicas. Autores, diretores, organizadores e empresários vêm realizando há mais de 30 anos, o Festival de Teatro Estudantil do Agreste e o Festival de Teatro do Estudante de Pernambuco, que completam, em Caruaru, uma geometria artística em cujos vértices também se encontram a arte popular e a produção literária, representada, entre outros, por um escritor do quilate de Álvaro Lins.
Acervo Fundaj
Mestre Vitalino, a maior expressão do artesanato popular brasileiro, mostra uma de suas criações
BARRO
EXPRESSÃO DA IDENTIDADE NORDESTINA Olívia Mindêlo
E
lemento primitivo da natureza, tão caro à história da humanidade, o barro está no alicerce do imaginário popular do Nordeste, do Brasil. É a matéria-prima que ajudou a traduzir em linguagem visual aquilo de que muito livro foi incapaz: a essência da população nordestina, expressa a partir de uma relação visceral homem-barro. As mãos responsáveis por essa interface têm nome e endereço - Vitalino Pereira dos Santos (1909 – 1963), de Caruaru. Falar da cidade agrestina, sem lembrar o legado artístico do mestre, é como citar o Rio de Janeiro sem o Cristo Redentor. Seus boizinhos e, sobretudo, sua arte figurativa de "bonecos" ajudaram não só a fomentar uma escola que sobrevive e é massivamente reproduzida até hoje no Alto do Moura, celeiro dos ceramistas populares de Caruaru, como foram responsáveis também por colocar a capital do forró no mapa mundial (há peças de Vitalino no Museu do Louvre, em Paris, por exemplo). Também por isso suas peças de barro colaboraram com a construção da nossa identidade cultural - raro o brasileiro que nunca tenho visto uma delas na vida; são obras presentes no nosso inconsciente coletivo. É que, mais do que um artista, o ceramista foi um antropólogo visual; um cronista de sua época, de sua sociedade, muito embora tenha morrido analfabeto e com uma pobreza desproporcional à fama. "Vitalino tem um papel primordial, e não é só para Caruaru. O artesanato brasileiro pleiteou os outros, em outros países. E isso se deve a Vitalino, a maior expressão popular do Brasil", enaltece o historiador e museólogo Walmiré Dimeron Porto, diretor do Museu do Barro – Espaço Zé Caboclo, casa que abriga mais de 2 mil peças de arte popular caruaruense, pernambucana e brasileira também. É fato que não há como desconsiderar a riqueza da produção do Estado, do Nordeste e do Brasil, como um todo, que também se sustentam em versáteis criações de barro – ou de couro e madeira –, mas Vitalino foi um divisor de águas; como Luiz Gonzaga, por exemplo. E, o que é muito curioso, vale ressaltar, sem grandes pretensões. Ele era um menino de interior como os outros de sua geração. Filho de pai agricultor e mãe louceira (nome dado às artesãs que fabricavam objetos utilitários a partir do barro), Vitalino começou, aos seis anos, a produzir suas primeiras peças ou, como chamava, "loiças de brincadeira", com as sobras do material utilizado por sua mãe. Fazia bichinhos,
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miniaturas de copos, pratos... Até aí, nada demais, porque muitos outros filhos de louceiras também os faziam. Foi então que começou a vender sua brincadeira, que servia de brinquedo para outras crianças na feira livre, e se entusiasmou com a coisa. Talvez pelo mistério que circunda a necessidade de criação artística, Vitalino não parou mais. Aos 21 anos, é que veio a transformação: ele passou a se concentrar nas figuras humanas. Na década de 40, quando se mudou com a família da zona rural para o Alto do Moura, mais próximo ao centro de Caruaru, Vitalino levou com ele a "novidade", que caiu no gosto dos artesãos locais e foi reproduzida ligeirinho, transformando Caruaru no maior centro de arte figurativa das Américas – título concedido pela Unesco. Um dos mais importantes seguidores da arte vitaliniana e único vivo de sua geração, Manuel Eudócio, de 76 anos, atesta bem essa história de passar a fazer bonecos de barro, em fala publicada no catálogo da exposição Arte Popular de Pernambuco (Instituto Cultural Bandepe, 2001): "Com sete, oito anos, comecei a trabalhar no barro, com minha avó, fazendo cavalinho, boizinho, assim, de brinquedo, como meus meninos fazem agora. (...) Mas peguei a fazer boneco de 1948 para cá, depois que Vitalino veio para o Alto do Moura. (...) Com a chegada de Vitalino é que as coisas cresceram". Cerâmica com status de arte Para o historiador Walmiré Dimeron, o que aconteceu com o Mestre Vitalino, que fez dele uma referência de estética própria e inconfundível, foi uma mistura de dom e sorte, com local e momento oportunos. Decerto, os irmãos dele também possuíam essa segunda vantagem, e até se arriscaram a manipular o barro, mas não nasceram com a tal vocação, tanto é que Vitalino já disse: "eles não tomaram gosto de fazer por profissão". Mas as explicações podem ir além. Afinal, da condição utilitária primordial (e primitiva) do barro, que remonta aos hábitos indígenas, o ceramista deu ao barro um status de arte, que é, sim, um retrato do cotidiano onde vivia, mas sempre foi uma obra carregada de imaginação e de um poder inventivo que deu novas cores e formas às histórias que ouvia das pessoas, principalmente da mãe. É muito interessante a passagem do antropólogo René Ribeiro, em seu livro Vitalino: ceramista popular do Nordeste (1959), ao explicar um pouco da origem
Reproduções
Guariba Milena, em cerâmica e metal, de Mestre Galdino
Figura do bumbameu-boi, obra de Manuel Eudócio
Brinquedo de Roda, cerâmica policromada atribuída ao mestre Vitalino
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de tudo, através de um depoimento colhido diretamente do artista de Caruaru: "Foi assim que começou (Vitalino) a fazer os bonecos de barro: 'Estudei um dia de fazer uma peça. Peguei um pedacinho de barro e fiz uma taboleta; do mesmo barro peguei uma talisca e botei um pé assim: botei três maracanãs (gatos selvagens) naquele pé de pau, os cachorrinhos acuados com os maracanãs e o caçador fazendo ponto (pontaria) nos maracanãs pra atirar' ". A fala refere-se à primeira obra famosa de Vitalino, que marca sua passagem para a arte figurativa, intitulada Caçador de onça: um gato maracajá trepado numa árvore, acuado por um cachorro e o caçador fazendo pontaria, cujas réplicas ainda são produzidas. Com o sucesso na venda da peça, na Feira de Caruaru, o mestre investiu ainda mais em bonecos de barro, principalmente em grupos humanos, como a procissão, a casa de farinha, a banda de pífanos e o pastoril, algumas das suas criações preferidas. Lampião e Maria Bonita, a rendeira, os retirantes e a bêbada e o diabo são também figuras inconfundíveis de seu arsenal, catalogado em mais de cem obras diferentes. Para o diretor do Museu do Barro, no entanto, o boi é o mais representativo de todos (e mais comum): "É o grande exemplo, tem um apelo visual incrível e uma estética muito nordestina. O boi remete ao couro, que está presente em todos os segmentos, na religião, na economia, no artesanato". Com a ajuda dos irmãos Condé e de nomes como Abelardo e Augusto Rodrigues, grandes responsáveis pela divulgação da obra de Vitalino, além da disseminação da filosofia do Movimento Regionalista, liderado por Gilberto Freyre, a popularidade e o valor do mestre aumentaram e, no fim de sua vida, interrompida pela varíola, ele praticamente só produzia peças em série e sob encomenda. Os artistas populares de Caruaru e de outras cidades viram sua auto-estima crescer e o mercado se abriu para os boizinhos e bonecos de cerâmica. A emoção ingênua e rústica das artes plásticas ganharia outra dimensão. Caruaru nem o Brasil poderiam continuar sendo os mesmos. De Zé Caboclo a Galdino A reprodução da obra do Mestre Vitalino foi estimulada até dentro de sua própria casa, hoje um museu batizado com seu nome, no Alto do Moura, a 7km do centro de Caruaru. Não havia, para ele, apenas
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uma esperança de que seu estilo fosse levado adiante, mas uma preocupação, sobretudo, com a própria sobrevivência familiar, e até mesmo uma responsabilidade com os seus fregueses. Por isso, já no fim da vida, ele costumava trabalhar junto aos filhos, especialmente a Manuel e Severino, que até hoje seguem a linha paterna. A tal preocupação também foi estendida à comunidade, cujos ceramistas sempre tiveram por hábito viver num certo clima amistoso e coletivo. Pouco vaidoso, Vitalino não se incomodava em deixar as portas abertas enquanto trabalhava, tampouco em trocar idéias com seus vizinhos ceramistas, desde que chegou ao Alto do Moura, na década de 40. Manuel Eudócio (1931) e o cunhado, Zé Caboclo (1921 – 1973), foram os seus primeiros aprendizes; artistas, aliás, que ajudaram a aprimorar a técnica do mestre, criando não só outra maneira de fazer os olhos das figuras (pintados e em relevo), por exemplo, como também outros arquétipos sociais nordestinos. "(...) Ele fazia as peças mais antigas. As peças mais novas foram inventadas por nós: médico operando, noivos a pé e a cavalo, padre no confessionário, velho carregando lenha... Começamos também a fazer lapinhas, maracatu, bumba-meu-boi, cavalo-marinho, boi-bandeira, casamento na polícia, as moringas em forma de Lampião e Maria Bonita... Fomos promovendo mais e cada vez descobrindo mais arte ainda, sendo o mesmo barro e a mesma arte", conta Eudócio, em texto publicado no catálogo da exposição Arte Popular de Pernambuco (2001). Embora pertencendo à mesma escola, cada seguidor inventou um estilo próprio, que os diferenciou na "multidão", pelo menos os principais nomes do Alto do Moura. Eudócio, por exemplo, é conhecido pelas cores vibrantes e por criações famosas, como a do comício político e a do reisado, inseridas numa rica lista de representações fabricadas por ele. E a lista continua crescendo. Segundo o historiador Walmiré Dimeron Porto, cada vez que ele entra na casa de Eudócio descobre uma novidade: "Ele não pára de produzir. É impressionante o poder de criação dele. Entre as novas peças, está o parto da vaca em cima de uma árvore e casamento do boi, que também é muito bela".
Reprodução
Zé Caboclo, por sua vez, dividiu com Eudócio essas "novas invenções", criando principalmente aquela série de profissionais, como o médico, o dentista, o cirurgião, muito populares até hoje. Luiz Antônio da Silva (1935), que também bebeu da fonte do mestre Vitalino, ficou conhecido por acrescentar às mãos dos bonecos câmeras fotográficas. Outra herdeira direta foi Ernestina, que também tem um depoimento muito curioso, registrado no catálogo da mostra citada: "Quem tinha vontade de aprender, aprendeu... Agora, muita coisa veio pela cabeça da gente. Mora tudinho nessa 'ruinha' (no Alto do Moura). O que a gente faz, todo mundo faz. Por exemplo, eu faço hoje uma peça, invento uma peça da minha cabeça. Se aquele ali vê, já na mesma semana ele faz a mesma e assim os outros. Eu não me incomodo (...). Não tem diferença de um pro outro. Se o Mestre – o primeiro, que foi o compadre Vitalino – não tem firma registrada, que dirá os outros!". Zé Rodrigues e Elias Francisco dos Santos também foram contemporâneos do mestre. Cada um desses citados levou à sua família o que aprendeu e é isso que mantém a escola vitaliniana viva até hoje. O antropólogo Raul Lody, autor do documentário Vitalino, o homem de barro, produzido na década de 80, explica que "Caruaru ficou sacralizado, aprisionado na 'morfologia' vitaliniana. Isso foi bom também, porque criou uma identidade na cidade". Da atual geração, a filha de Zé Caboclo, Marliete Rodrigues, de 50 anos, se destaca pela inovação e detalhamento do estilo do mestre. São dela as miniaturas fabulosas de cenas como a da avó contando histórias para os netinhos deitados no chão.
O colorido da Casa de Farinha, de Vitalino Filho
Manoel Galdino (1929 - 1996) foi o único que, de fato, fugiu à regra dos bonecos de barro. Se as cenas do interior nordestino são o centro das atenções na estética de Vitalino, em Galdino figuras mitológicas, fantasmagóricas, meio tribais ou surreais marcam sua criação. Os "bonecos feios", como se referia às suas figuras, feitos de barro, surgiram quase como um contraponto à produção do Alto do Moura e permanecem raros. Jaraguá, Guariba Milena, Carranca recortada e Calango são algumas de suas obras conhecidas. Tentam dar continuidade ao trabalho de Galdino um filho e um sobrinho, que misturam a sua estética com a de Vitalino. Segundo Walmiré Dimeron, cerca de 500 artistas e artesãos trabalham com o barro em Caruaru atualmente. O grande desafio é fazer com que mantenham viva essa escola que tem quase cem anos, evitando a industrialização do artesanato. O barro, esse que estava em extinção, agora tem nova jazida, com dois hectares, também no Alto do Moura. Segundo o museólogo, matéria-prima para os próximos 60 anos. A pintura de Luísa Maciel Nem só com o barro a arte escreveu sua história em Caruaru. Fora do Alto do Moura, as tintas e a atitude acrescentaram à produção artística local uma cara diferente, a de Luísa Cavacanti Maciel, pintora nascida, em 1926, na cidade de Pesqueira e radicada desde 1930 na terra dos ceramistas. Formou-se em Belas Artes no Recife e teve como professores nomes importantes como Lula Cardoso Ayres, Vicente do Rego Monteiro, Reinaldo Fonseca, entre outros, que a influenciaram com a estética modernista. Pintora figurativa, Luísa teve como referência a preocupação regional desses artistas, temática que marca suas telas, expostas não só em Caruaru, como no Recife, no Rio de Janeiro, em Brasília e até na Espanha. Além de artista, Luísa Maciel é conhecida por ser uma grande incentivadora e divulgadora da cultura popular local, tendo feito campanhas pelos artistas do Alto do Moura e realizado projetos na área como secretária de cultura e turismo de Caruaru. Foi fundadora do Centro de Cultura Popular Luísa Maciel, no município, e representa o Brasil, atualmente, no Conselho Internacional vinculado a Unesco, através do qual, entre outras funções, realiza eventos na área e promove intercâmbios.
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Os tocadores de pífano de Caruaru exerceram influência até no movimento tropicalista
PAÍS DE CARUARU, Marcos Michael/JC Imagem
PAÍS DA MÚSICA José Teles
N
o segundo semestre de 1966, Gilberto Gil veio ao Recife para divulgar seu primeiro LP, Louvação. O que seria uma rápida visita, transformou-se numa temporada de três meses, que seria de suma importância para a formatação do movimento tropicalista, com Caruaru e sua música sendo responsável por isto. "Avisaram que a gente ia tocar prum pessoal de fora, e nós fomos. E ali numa sala tava o prefeito, mais um bocado de gente, com Gilberto Gil, que eu não sabia quem era. Nós então começamos a tocar as músicas da gente", contou anos depois Sebastião Biano (falecido em 1999), da lendária Banda de Pífano de Caruaru, ou a dos Irmãos Biano, para diferenciá-la da Banda de Pífano de Caruaru, de João do Pife. Gilberto Gil voltou para o Rio sem tirar da cabeça a música a que foi apresentado em Caruaru. A uma mistura daqueles sons puros, primitivos, da bandinha dos Biano com a modernidade dos Beatles do Sgt. Pepper's formariam o estopim que, incendiado, detonou a Tropicália (e cinco anos desaguaria em “Pipoca moderna”, parceria entre Sebastião Biano e Caetano Veloso). O futuro ministro da Cultura foi ciceroneado, em sua viagem à Caruaru, pelos amigos que fez no Recife, entre os quais o caruaruense Carlos Fernando, na época poeta e aspirante a teatrólogo. No mesmo ano da ida de Gilberto Gil a Caruaru, Carlos Fernando compôs com Geraldinho Azevedo sua primeira composição, o frevo-de-bloco “Aquela rosa” (também a primeira de Geraldinho), que em 1967 seria vencedora do 1° Festival de Música Popular do Nordeste. Foi o início de uma vitoriosa carreira de compositor. Ao longo desse 40 anos, Carlos Fernando criou dezenas de composições, muitas parcerias com Geraldo Azevedo, e depois com Alceu Valença, em estilos e gêneros diversos. Mas seu forte era, e ainda é, o frevo, que contribuiu para revitalizar, em 1980, com o projeto Asas da América. O frevo, ao contrário do que se poderia supor, não chegou a Carlos Fernando no Recife. Já veio com ele, quando se mudou para a capital em 1964: "Tenho a impressão de que o frevo entrou em mim quando eu era menino em Caruaru, e ficava no colo da minha mãe vendo o bloco de Cacho de Coco passar na rua: "Na minha infância, em Caruaru, as crianças faziam parte do carnaval, que era uma festa liberal. A meninada ia para o meio da rua e as mães ficavam sem cuidado porque não tinha trânsito. Foi assim que o frevo deve ter entrado em mim", contou o compositor (em
entrevista ao autor desta matéria e outros jornalistas, para o Suplemento Cultural, em 1989). Carlos Fernando é "apenas" um entre as dezenas de nomes importantes da música brasileira, nascidos na Capital do Agreste, famosa como Capital do Forró, pela quantidade de grandes artistas da música que ou são naturais da cidade, ou se tornaram famosos ali. E, ainda, os que, já famosos, fixaram residência em Caruaru. Sem deixar de lembrar alguns que lá nasceram, mas mudaram-se ainda criança para outras regiões. Neste último item, é caruaruense, por exemplo, o produtor de 10 entre nove estrelas do samba carioca, o maestro, compositor e instrumentista Rildo Hora, mesmo que confesse lembrar-se pouco da cidade natal: "Saí de lá muito criança, com uns três, quatro anos, fui criado na Zona Norte do Rio, quer dizer, por isto, me sinto muito mais carioca". Rildo Hora, no entanto, não escapou de ter forró na veia. Embora trabalhe mais com sambistas (e tenha assinado clássicos, como “O menino da mangueira”, com Sérgio Cabral), ele compôs forrós, foi gravado e produziu discos de Luiz Gonzaga. Outro caruaruense que arribou cedo foi Luis Rattes Vieira Filho, ou Luís Vieira. Aos 10 anos, em 1938, a família de Vieira mudou-se para o Rio, onde ele se tornaria um dos artistas mais requisitados nos anos 50 e início dos 60. Contador de causos, compositor de clássicos como “Prelúdio para ninar gente grande”, “Menino passarinho”, “Na asa do vento” e “Estrela miúda” (ambas em parceria com João do Vale): "Depois de 18 anos, já eu artista e tal, voltei pra Caruaru e fiquei por lá um tempão rodando, não apenas por Caruaru, mas por todas aquelas cidades agrestinas e até no sertão, mais tarde", contou Luís Vieira, que neste reencontro com suas origens reaprendeu o idioma do “país de Caruaru”, e voltou para o Sudeste com o alforje repleto de uma cultura que fez a alegria de muita gente durante os anos em que Vieira esteve atuante na TV e no rádio. Há os que não nasceram em Caruaru, mas é como se tivessem nascido, e muitos acreditam que nasceram mesmo. Um destes é Luiz Queiroga, compositor, homem de rádio e TV dos mais importantes, não apenas no “país de Caruaru”, mas em Pernambuco e no Brasil. Queiroga é natural do bairro da Encruzilhada, no Recife, mas, adolescente, foi morar em Caruaru, onde começou a vida artística, ao lado de peças fundamentais do xadrez cultural da cidade. Com Onildo Almeida, Paulo Soares e Zé Bezerra formou Os Cancioneiros Tropicais, que marcou época na cidade, e
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nos programas da Rádio Difusora de Caruaru. Luís Queiroga foi parceiro de Onildo Almeida, formando uma dupla que se tornou fornecedora de sucessos para toda uma geração de artistas da música do Nordeste, de Marinês a Luiz Gonzaga. Seu maior sucesso, porém, foi trabalhar um promissor humorista caruaruense, e transformá-lo num fenômeno, senão o maior fenômeno do humor nordestino em todos os tempos. O Coroné Ludugero, vivido por Luis Jacinto, um ex-funcionário dos Correios e Telégrafos. Testemunha ocular desta fase movimentada da música caruaruense é o radialista Ivan Bulhões, que mantém o programa de forró mais antigo do Brasil (atualmente na Rádio Jornal). Bulhões conviveu com todos os forrozeiros que cruzaram o caminho de Caruaru nas últimas cinco décadas. E não foram poucos. De Hermeto Pascoal, primeiro sanfoneiro da Rádio Difusora, a Jacinto Silva, Ludugero, Azulão: "Naquele tempo eram moda as caravanas. Então, montei a Caravana de Ivan Bulhões, que tem até disco gravado", lembra Bulhões, que é também compositor. Entreposto cultural Por ser um dos importantes entrepostos do Nordeste, cidade de passagem obrigatória, com uma das maiores feiras nordestinas, Caruaru é um pólo artístico e cultural pelo mercado que oferece aos músicos. Inicialmente chegaram os que ainda se aventuravam pelas estradas para ganhar o pão. Um bom exemplo é a Banda de Pife dos Irmãos Biano, que caiu no mundo, saída do interior de Alagoas, na década de 20 até se estabelecer em Caruaru na década de 30. Estiveram por lá violeiros afamados, como Pinto do Monteiro (que morou em Caruaru), e Lourival Batista, que aparecia freqüentemente na cidade, que hoje se orgulha de ser terra do que é considerado o maior repentista nordestino vivo, Ivanildo Vila Nova, cujo pai, José Faustino Vila Nova, também foi mestre da viola e versos improvisados. Caruaru era a terra a se ir. Depois se pensava no Recife. Foi assim com Reginaldo Alves Ferreira, o sanfoneiro Camarão, nascido em Brejo da Madre de Deus, pertinho da Capital do Agreste, onde chegava a fama do fole de Zé Tatu. Camarão aprendeu a tocar uma concertina, caiu na vida da música, e acabou em Caruaru, contratado pela Radio Difusora, no lugar de Zé Vaqueiro. Foi ali, nas duas emissoras da cidade, tocando forrós e acompanhando astros da era do rádio, entre eles Orlando Silva e Nelson Gonçalves, que Camarão formou-se mestre da sanfona.
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Capital do Forró Não é por acaso que a cidade recebeu o epíteto de Capital do Forró. Isto não se deve apenas ao São João que disputa o título de o "Maior do Brasil" com Campina Grande, mas pelos muitos forrozeiros que vivem ou ali viveram. Um deles foi Jacinto Silva, um alagoano, de Palmeira dos Índios, que durante toda a carreira teve Caruaru como seu ponto de apoio, mesmo quando morou no Rio de Janeiro. Jacinto Silva faleceu na cidade que amou, em 2001, quando voltava a ser sucesso, impulsionado por Silvério Pessoa, nascido em Carpina, mas cuja música passou a ter íntimas ligações com Caruaru, não apenas pelo fato de ter gravado o repertório de Jacinto Silva e feito shows com o mestre, mas pela amizade e parceria com um forrozeiro da nova geração da cidade, Valdir Santos. A nova geração estreita os laços com a turma antiga que vive na cidade. Nela está o lendário Francisco Bezerra de Lima, o Azulão, tido como uma das grandes vozes da história do forró. Valmir Silva é cantor e compositor da mesma geração de Jacinto Silva e Coroné Ludugero, em cujo grupo tocou pandeiro. Silva, antes de firmar-se em carreira solo, foi vocalista da famosa Bandinha do Camarão. Assim como Azulão, ele emigrou para o Sudeste, quando o forró autêntico estava em alta, e hoje mora na cidade natal. Têm em comum também terem feito composições exaltando Caruaru, e discos produzidos por Herbert Lucena, um recifense que se mudou para a Capital do Agreste, por causa da musicalidade da cidade, à qual presta homenagem em “Forró de Caruaru” ("Nem todo coco faz cocada/ nem todo sapo é cururu/ nem todo papagaio fala/ nem todo sanfoneiro é Zé Tatu/ nem todo forró que toca em rádio/ é como o forró de Caruaru..."). O disco de Azulão foi lançado em 2006, o de Valmir Silva estava sendo finalizado quando esta matéria era redigida. Desabafo de artista será o título do CD e de uma de suas faixas: "É um desabafo que faço pelo desprestígio que se dá hoje ao artista da terra", queixase o veterano Silva. Um desabafo contra as bandas que fazem o chamado forró estilizado, que hoje detêm o filé dos maiores espaços juninos do Nordeste. Mas Caruaru ainda tem mais forró. Além dos ternos de pífanos, dos quais o mais conhecido atualmente é a Banda de Pife de Caruaru, uma tradição da cidade (Mestre Vitalino, o artesão, também foi um pifeiro de primeira), há os grandes compositores. O mais famoso é, sem dúvida, Onildo Almeida, autor de “A feira de Caruaru”, gravada
Marcos Michael/JC Imagem
Caruaru é um pólo artístico e cultural pelo mercado que oferece aos músicos
originalmente por ele mesmo. Foi esta gravação que Luiz Gonzaga conheceu e o levou a Caruaru, para conhecer o autor do baião, que seria um de seus maiores sucessos, e a maior peça de propaganda que a cidade já teve. Onildo tem centenas de músicas compostas e gravadas, principalmente por Marinês, a quem segurou com sucessos durante pelo menos uma década. É dele, em parceria com Luiz Queiroga, o clássico “A hora do adeus”, gravada por Luiz Gonzaga. Outro compositor menos conhecido, mas que legou uma série de pérolas à música brasileira, é Juarez Santiago, parceiro de Onildo em “Morena bela”, sucesso com Jackson do Pandeiro. São de Juarez, entre outras, “Zezé” (Jacinto Silva), “Na emenda” (Trio Nordestino), “Eu perdi o meu amor” (Genival Lacerda), “E Pra uns” (Luiz Gonzaga). Por fim, mas não menos importante, na ala de compositores do “país de Caruaru”, o discreto, e um dos importantes compositores vivos do Brasil: Janduhy Finizola. Só a Missa do Vaqueiro, gravada na íntegra pelo Quinteto Violado e por Luiz Gonzaga, já renderia ao doutor Finizola (ele é médico) seu lugar na MPB. Porém, ele tem ainda, entre dezenas de outras, “Ana Maria” (lançada pelos Três do Nordeste, e regravada com grande sucesso por Santanna), “Bananeira mangará” (por Marinês e Ruy Maurity) e “Cidadão de Caruaru” (Luiz Gonzaga). A música de Caruaru não fica por aí. Parafraseando
Chico Buarque, Evoé, jovens à vista. Caruaru tem a cena pop/rock mais forte do interior do Estado. Uma variedade que vai do puro pop ao rap, algumas das bandas já extrapolando os limites da cidade, como a Zabumba Bacamarte, Sobrevivente do I.D.R (que tem entre os integrantes um filho de Janduhy Finizola), e Sangue de Barro (cujo vocalista, Ivan, é filho de Ivan Bulhões). E para encerrar esta breve e certamente incompleta incursão pela música caruaruense, vamos da juventude dourada pelo sol do agreste a um caruaruense setentão, que mora pertinho do mar de Boa Viagem, o maestro Clóvis Pereira. Trata-se de um erudito que tem sempre um pé no popular. Jovem, nos anos 50, foi músico da Jazz Paraguary, da Rádio Jornal, contemporâneo de Jackson do Pandeiro, para quem fez os arranjos de seu disco de estréia (“Sebastiana e Forró em Limoeiro”). Autor conceituado de frevos, Clóvis Pereira, nos anos 70, engajou-se nas hostes armoriais e fez-se um dos principais guerreiros deste exército musical idealizado pelo professor Ariano Suassuna. Foi Clóvis Pereira quem regeu a estréia da célebre “Missa Armorial de Capiba”. Toda esta musicalidade ele, assim como Carlos Fernando, trouxe consigo quando pegou a estrada que une Caruaru ao Recife. Enfim, parafraseando um outro caruaruense, "De todo som que há no mundo tem na música de Caruaru". Mariana Guerra/JC Imagem
O forró atrai multidões todos os anos, durante os festejos juninos
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