Continente #078 - Decifrando Ariano

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Divulgação

Renato Rocha Miranda/TV Globo/Divulgação

EDITORIAL

Cena da minissérie A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna/Luiz Fernando Carvalho

O Monstro Marinho, quadro de Francisco Brennand

Universos míticos de Ariano, Brennand e Agamenon

A

riano Suassuna completa 80 anos dia 16 deste mês de junho de 2007, celebrado de norte a sul do país. As homenagens se multiplicam em academias, na mídia, em festivais, com exposições de fotos, convites para proferir as famosas aulas-espetáculo e lançamento de livros e filmes, culminando com a exibição pela Rede Globo, em período meticulosamente sincronizado com o aniversário do escritor, da minissérie de cinco capítulos adaptada do Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-eVolta, dirigida por Luís Fernando Carvalho. As retumbantes e justas comemorações não esmaecem o fato de que esse paraibano pernambucanizado está longe de ser uma unanimidade. O que é perfeitamente compreensível, quando se defronta com um escritor engajado, de nítidas (embora nem sempre entendidas) opções estético-ideológicas, ainda por cima criador de um movimento artístico-literário (com o desencadeamento de forças centrípetas e centrífugas que isso acarreta), o Movimento Armorial, e com a ambição declarada de contribuir decisivamente para a construção da própria identidade nacional. A dimensão de sua obra de ficção e teatro, principalmente, mas também ensaística e poética, está entretanto acima das paixões e militâncias.

Optamos por nos incorporar à data centrando o foco na Pedra do Reino, romance-tese em que as idéias estéticas, políticas e ideológicas de Ariano estão exaustivamente apresentadas, sem detrimento de sua autonomia como obra de arte. A decifração desse reino literário foi atribuída ao professor Carlos Newton Júnior, colaborador do escritor e PhD (literalmente) na obra suassuniana. Como não poderia deixar de ser, esta edição registra também os 80 anos de outro criador de universos míticos, o pintor e escultor Francisco Brennand, nascido apenas cinco dias antes de Ariano. Ao contrário do escritor, Brennand evitou comemorações, recolhendo-se solitário à sua oficina-templo da Várzea. Para dissecar sua obra, para além das aparências, convocamos o escritor Fernando Monteiro, amplo conhecedor do mundo onírico do artista. Finalmente, esta edição se encerra com Documento abordando a vida e o legado do ex-interventor e ex-governador eleito Agamenon Magalhães, político morto há mais de meio século, mas cuja trajetória, pontuada pelo signo do mandacaru, como metaforiza o jornalista José Adalberto Ribeiro, permanece viva como um autêntico mito político pernambucano. • Continente junho 2007

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CONTEÚDO Reprodução

Gabriela Zanori/Divulgação

48 Cia. Unione apresenta 04

A arte contemporânea brasileira analisada por Aracy Amaral

um espetáculo híbrido

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CONVERSA

CÊNICAS

04 Aracy Amaral critica ênfase ao artista jovem no Brasil

48 Espetáculo Versatile junta ballet clássico, moderno e

BALAIO

danças de salão 51 Agenda Cênicas

10 A falsa parceria entre Luiz Gonzaga e os Beatles

ARTES

CAPA

54 A dinastia artística dos Oiticica, oriunda de Alagoas

12 O universo mítico de Ariano Suassuna

59 Agenda Artes

16 Minissérie comemora 80 anos do autor 18 Brennand, também aos 80, tem faces desconhecidas

FOTOGRAFIA 60 As congadas na ótica de Paulo Pereira

LITERATURA 24 Adélia Prado repovoa mundo com os deuses

CINEMA

28 A morte e o tempo na prosa de José Alcides Pinto 30 Reeditado clássico de Antonio Candido 32 A poesia lírico-contemporânea de Jaci Bezerra 34 Adeus aos poetas Erickson Luna e Chico Espinhara 37 Poemas de Mariana Ianelli 38Texto inédito de Nelson de Oliveira 40 Agenda Livros

70 Cinema com cheiro cult, de Heitor Dhalia

MEMÓRIA

86 Agenda Música

44 A história da bailarina que virou sinônimo de confusão

74 Godard revisitado com lançamento de DVDs

REGISTRO 78 Os dicionários históricos estão vivos

MÚSICA 82 O maestro comunista que fundou a OSB

DOCUMENTO 89 Agamenon Magalhães, estadista do Sertão

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CONTEÚDO

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Arquivo de Família

Paulo Pereira

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Um olhar sobre a alma popular

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Agamenon Magalhães: um mito político pernambucano

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Colunas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 42 Fliporto e o turismo cultural

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 52 Em meio a experimentações, a pintura de Roberto Magalhães parece alheia à modernidade

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 66 As delícias que vão à mesa no Vaticano

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 69 Quem não conhece a inclemência do sol amazônico não sabe o que é calor

ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 80 Padre Cícero: santo proclamado pelo povo

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CONVERSA

ARACY AMARAL

“A ênfase em ‘artistas jovens’ está excessiva” A crítica e historiadora da arte Aracy Amaral fala da produção contemporânea brasileira e suas relações locais e globais Mariana Oliveira

C

om obras de referência sobre o modernismo nas artes plásticas brasileiras, a crítica e historiadora de arte Aracy Amaral é uma referência e um dos nomes mais respeitados na área, no Brasil. Depois de graduar-se em jornalismo, já doutora em História da Arte, foi diretora do Museu de Arte Contemporânea da USP (1982-86) e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Entre os livros que publicou está a recente coletânea Textos do Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios 1980 a 2005, que reúne 150 textos, realizados pela autora, divididos em três livros. Nesta entrevista, concedida por e-mail, entre as várias viagens a trabalho, Aracy fala da produção contemporânea brasileira, da espetacularização das exposições, da permanência das relações de centro/periferia nas artes e diz que atualmente há um grande foco nos incentivos a artistas jovens, que trabalham mais como editores que como criadores, enquanto os artistas com mais tempo de estrada terminam esquecidos. Nos três volumes do livro Textos do Trópico de Capricórnio você apresenta um grande painel da arte brasileira. Depois de ter vivido tudo isso, como vê o cenário artístico brasileiro hoje? O cenário artístico brasileiro de hoje mostra-se ativo, artistas produzindo, e, referindo-me aos artistas jovens, vejo-os se articulando com o exterior, avidamente desejando se projetar para fora do país, desejando participar de eventos internacionais. O que, rela-

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tivamente, somente a poucos é possível. São raros, ao mesmo tempo, os artistas de outras gerações (e exceções são o especialíssimo Cildo Meirelles, Carmela Gross, e mesmo Ernesto Netto, além de Vik Muniz, que já reside fora há longos anos), que têm uma agenda realmente internacional, contínua. Entre os vivos, pois, dentre os consagrados, Mira Schendel continua com a estrela em alta, assim como Oiticica e Ligia Clark. Você dá certa ênfase à arte latino-aamericana no segundo volume. Como observa a relação entre os artistas brasileiros e os latino-aamericanos? Não vejo a relação entre artistas brasileiros e latinoamericanos, digo, de outros países da América Latina e e do nosso país. Há, de nossa parte, assim como da parte deles, uma espécie de complexo colonial. Ou seja: é preferível e desejável se articular antes com a metrópole, ou com os centros hegemônicos de arte (Nova York, Londres, Paris, Berlim ou outras cidades desses países) do que entre os centros dos países de nosso continente. E sempre percebi que apesar da ignorância mútua, como registro em vários textos, os artistas daqui são indiferentes ao que se passa e aos nomes de artistas de outros países, mas há uma grande curiosidade lá fora pelo que ocorre em nosso país. Isso é um fato. Porém, pergunto-me: por que os museus daqui não abrem mais espaço a artistas de países do Continente? Como desenvolver uma política de intercâmbio real, com oficinas que coloquem artistas de uma mesma geração em mútuo contato?


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Nellie Sollitrenick/Editora Abril

CONVERSA

Como me disse, com razão, certa vez, Yuko Hasegawa, curadora de Tóquio, os artistas jovens de hoje ‘não são mais autores, são editores’


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CONVERSACONVERSA E não me refiro apenas a artistas jovens, não. Acho que seria saudável colocar artistas na faixa dos 50, ou 60 anos, por exemplo, em residência aqui, por um período de tempo, para produzirem simultaneamente, e depois apresentarem uma mostra com debates sobre sua geração, sua produção, sua posição diante da criação artística. A ênfase em “artistas jovens” está excessiva, com estímulos por todo o país. Por que não observar com mais cuidado o que os artistas de outras gerações estão pensando, qual seu conceito de arte, qual a qualidade de sua produção, quais suas inquietações? Afinal, eles estão produzindo, expondo, e há como uma cortina em torno de suas personalidades.

centrados na América Latina. Mas esses são apenas alguns poucos exemplos, pois há dezenas deles (assim como há especializados nos Estados Unidos em colecionar primitivos do Haiti, em coleções de arte mexicana especificamente, arte pré-colombiana peruana, etc.,etc.). Agora, dizer que ao chegar aos Estados Unidos uma criativa e excelente artista latino-americana, digamos como Rosangela Rennó, tem imediata acolhida em seus melhores museus, é algo bem diferente. E coletiva é uma coisa, individual é outra. Em geral, nos Estados Unidos, o que me parece que dita a palavra de ordem aos museus é o mercado de arte (estranho, não? Mas assim aconteceu com a redescoberta do construtivismo russo após a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria em fins dos anos 80. Os marchands começaram a apresentar em galerias da Madison Avenue obras dos construtivistas russos, e depois os museus começaram a comprar e ir à Rússia para suas aquisições...). No que o mercado propicia e consagra, então os museus começam a pôr os olhos... Sempre tive essa impressão. E, para os latino-americanos, há o Bronx Museum, há o Museo del Barrio, há o New Museum, onde está o curador cubano Gerardo Mosquera, isso em Nova York. Em Paris, há o Espaço Latino-Americano, no Blvd. Saint Germain, em Berlim há o Espaço para os museus do mundo, acessível a artistas do Terceiro Mundo... Enfim, há espaços compartimentados bem definidos.

Divulgação/Sérgio Guerini/Itaú Cultural

Acredita que as fronteiras entre centro e periferia ainda existam na arte feita hoje? Claro que existem fronteiras entre centro e periferia (refiro-me a isso em vários textos e a situação não se alterou...). Mas, por outro lado, nos Estados Unidos há outra área, a dos museus que começam a se interessar, como o de Houston, ou já têm uma tradição como o de Austin, pela arte da América Latina, e fazem aquisições de artistas do Continente, abaixo do Rio Grande, como se diz. Assim como há um número respeitável de coleções privadas nos Estados Unidos, especializadas em arte latino-americana, e cujos curadores aqui vêm para aquisições de artistas consagrados. Se, nos anos 60, havia uma Bárbara Duncan, cujo marido era um investidor ou empresário interessado na América Latina, como foi o caso também de Nelson Rockefeller (estimulador da Falando de bienais: qual a sua opinião sobre o fundação do MAM – SP nos anos 40), hoje, há entre muitos outros as venezuelanas Patrícia Cisneros, Ella modelo das bienais de Veneza e São Paulo e a Cisneros, assim como a coleção de Phoenix, Arizona, Documenta de Kassel? curada por Beverly Adams, entre outras. Assim como na Não sei bem o que pensar nas Bienais de Veneza e Inglaterra, a coleção crescente do Universidade de Es- São Paulo, depois de tantas mudanças no cenário da sex, dirigida pela historiadora Dawn Ades, com os olhos arte produzida hoje. Talvez a de Veneza continue mais

Multidão, Vik Muniz, cibachrome, 1/3 – díptico, 76x101cm, 2002

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CONVERSA Divulgação/João L. Musa/Itaú Cultural

Reprodução

Sem Título, Carmela Gross, madeira pintada, 54x51cm, 1992

Obra de Vicente do Rego Monteiro, da série O Mundo que a Cafeteira Criou, década de 40

convencional, embora apresentando as tendências de hoje por exposições paralelas. Sobre a de São Paulo, pergunto-me se não estará também em crise, tendo em vista a mudança da arte, a arte se apresentando esgarçada, desmanchada, contaminada pelo mundo em deterioração dos grandes centros urbanos, os artistas apresentando mais documentos da vida cotidiana que algo realmente transcendente? Pergunto-me isso depois de ver uma exposição como a de Anish Kapoor, no CCBB São Paulo, que une a criatividade à excelência de concepção/realização, provocando a emoção do espectador ou visitante. Não seria isso o mínimo necessário para justificar plenamente sua “ação artistica”? Concorda com a afirmação de Yves Michaud de que a arte de hoje é cada vez menos feita de obras e mais de eventos? Espetacularização de exposições, cenografia, falta de respeito para com o artista-criador, eventos ruidosos, e ao mesmo tempo o artista se apresentando mais como um produtor/criador que como um realizador. É isso que vemos hoje em dia. E o artista buscando espaços com uma idéia na cabeça e dizendo: “preciso de um X de financiamento para realizar uma exposição que tenho em mente”. Estamos distantes do tempo em que o organizador de uma exposição ia ao ateliê de um artista selecionar obras para determinado evento. Sem mencionar que, hoje, os meios eletrônicos de comunicação (muito mais que revistas e exposições vistas ao vivo) informam e instruem os artistas sobre o

que está rolando no mundo da arte em todos os seus quadrantes. E nessa absorção de informações e posterior criação, como me disse com razão, certa vez, Yuko Hasegawa, curadora de Tóquio, os artistas jovens de hoje “não são mais autores, são editores”. Que artistas você destacaria em Pernambuco? Pernambuco esteve sempre presente na historiografia brasileira do século 20. Seja com seus dois grandes modernistas, Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, como na geração de meados do século com referenciais como Brennand e Samico. Já nos anos 6070, João Câmara e Paulo Bruscky eram os expoentes, sem dúvida, da arte pernambucana (oportuno o merecido livro agora saído sobre Bruscky, alinhado com a mail art da década de 70 em particular). José Patrício foi para mim uma revelação em início dos anos 2000 e há hoje uma nova geração interessada por arte/ computação ou em fotografia como Rodrigo Braga, instigante em suas proposições. Quais são seus futuros projetos ? Tenho vários aguardando finalização, como um livro que tenho iniciado há uns cinco anos sobre Sérvulo Esmeraldo, que possui um período cinético da maior importância para o Brasil (artista, no entanto, mais conhecido como gravador, quando residente na França, e, como escultor, depois de seu retorno a Fortaleza). Para o próximo ano, estarei coordenando uma mostra sobre “um círculo de articulações: Foujita no Brasil / Kaminagai e o jovem Mori”. • Continente junho 2007

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Continente Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão e Vivian Pires Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa

Erandhir Santos, intérprete de Quaderna Junho | 2007- Ano 07 Capa: fotos de Renato Rocha Miranda/TV Globo Divulgação – Ariano Suassuna (Leo Caldas/Titular) – Francisco Brennand (Divulgação)

Colaboradores desta edição: ANDRÉ LUIZ BARROS é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS NEWTON JÚNIOR é poeta e ensaísta. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista, pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. CIDA PEDROSA é poeta e editora do site www.interpoetica.com DANIEL BUARQUE é jornalista. EDSON NERY

DA

FONSECA é professor emérito da Universidade de Brasília.

FÁBIO ANDRADE é poeta e ensaísta, autor de Luminar Presença. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de Confissões de Lúcio, A Cabeça no Fundo do Entulho, entre outros livros.

Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Júlio Gonçalves Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira

JOSÉ ADALBERTO RIBEIRO é jornalista e autor de Agamenon Magalhães – uma estrela na testa e um mandacaru no coração. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO COSTA é jornalista. PAULO PEREIRA é fotógrafo.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

Colunistas: ALBERTO

DA

CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE

Amarelos.

Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco

JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos

FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão.

Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra.

RONALDO CORREIA

DE

BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos

As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente junho 2007


CARTAS

Personagem

Tive o privilégio de ser aluna do professor Lourival em duas disciplinas da pós-graduação. Com seu jeito simples, seduziu uma turma preconceituosa em relação à poesia. E eu, que tinha trauma de poesia, agora me vejo lendo, apreciando... “você não me é indiferente...É um jeito poético de dizer: você mexe comigo...” Lourival Holanda. Adriana Alencar, Recife – PE

Artistas José Teles. Um jornalista que escreve como poucos. Adoro ler o comentário inteligente e divertido, no Caderno C, na coluna Curto e Grosso do JC. Encontrei-o na Continente por acaso. Sou apenas mais uma de suas leitoras que se diverte muito com seu ponto de vista, é como se ele falasse por mim. Vocês estão de parabéns e acabam de ganhar mais uma leitora. A matéria sobre a Orquestra da Bomba do Hemetério é muito eficaz e interessante para sabermos um pouco mais sobre nossos artistas, tão desvalorizados em Pernambuco. Parabéns! Socorro Raposo, Paulista – PE Interação Parabéns pelo material publicado em abril. Fui ao Festival de Cinema do Recife e encontrei a Continente por lá. Tive a chance de comprar edições anteriores, fazer uma assinatura e comprar a edição de abril sobre cinema pernambucano. Vocês precisam participar mais dos eventos culturais da cidade, interagir com o público. Carlos Nascimento, Recife – PE

Cinema Gostei muito da edição de abril. Sou cinéfilo de carteirinha e acho que o cinema de Pernambuco realmente vive uma fase muito boa, de grandes produções. Quem não acredita precisa dar uma passada no cinema para conferir Baixio das Bestas, por exemplo. Espero que com essa visibilidade local e nacional os órgâos governamentais percebam a necessidade de investir em bons projetos na área audiovisual. Arnaldo Castro, Olinda – PE Lynch Para quem conhecia apenas os filmes intrigantes do diretor David Lynch, a Continente Multicultural, de maio, foi uma surpresa. Não é que ele também é um grande artista plástico, com obras não menos instigantes? Curioso, que só agora, depois do “sucesso” no cinema, suas obras plásticas cheguem ao conhecimento do grande público. Obrigado por revelarme esse outro Lynch. José Felipe Borges, João Pessoa – PB

Circo Fiquei encantada com a matéria sobre circo, publicada na última edição. Foi ótimo ver a Continente sair um pouco dos seus temas freqüentes e abordar um tema mágico que praticamente nunca tinha tido espaço na melhor revista de cultura do país. Parabéns! Edilza Muniz, Recife – PE

Circo II A matéria de capa da edição de maio está linda. Adorei. Eu pensava que sabia o bastante sobre o Circo, mas percebi que sei muito pouco. Depois de ler as matérias, passei a direcionar um olhar mais estético sobre essa manifestação milenar. Lucas Sousa, Natal – RN Caruaru Já estava contente com o aniversário de 150 anos de Caruaru e fiquei ainda mais depois de receber a Continente. Justa, a homenagem feita à cidade. Cláudia Ferraz, Caruaru – PE

Arquivo Continente Machado censor peca contra os preceitos da nossa lei", então "assino licença, ou antes, aconselho como me compete"; caso contrário, sua pluma vira tesoura: "O dever manda arredar da cena dramática todas aquelas concepções que possam perverter os bons sentimentos e falsear as leis da moral" porque "sempre que na reprodução dos seus estudos (o poeta dramático) tiver presente a idéia que o teatro é uma escola de costumes e que há na sala ouvidos castos e modestos que o ouvem, sempre que o poeta tiver feito essa observação, as suas obras sairão irrepreensíveis no ponto de vista da moral.

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Antes de completar 25 anos, Machado de Assis atuou como censor do Conservatório Dramático Brasileiro, para o qual assinou 16 pareceres, entre os quais o que vetava peça em cujo final um escravo casava com uma baronesa. "Cavador" que faria carreira na administração do Império, o então Machadinho não deixaria de se prestar à tarefa. Ao contrário: julgando estar contribuindo para "que se faça sentir às pessoas que remetem peças ao Conservatório quanto a nossa instituição é digna e séria", lamentava apenas não poder estender sua censura ao campo estético. Em outras palavras: se a peça "não

Ricardo Oiticica, Continente Multicultural, nº 32, agosto de 2003.

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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Imagens: Reprodução

BALAIO

EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES

VIDA E SONHO

POETALÂNDIA

APAGANDO MAIO DE 68

Recentemente, no Rio, num pequeno teatro meio alternativo no Leme, encenava-se a peça A Vida É Sonho, de Calderón de La Barca, por um grupo semiprofissional. Nesse texto, percebe-se quanto o espanhol influenciou o argentino Borges, ao jogar com a dicotomia sonho x realidade, utilizando a metalinguagem com maestria. A encenação é boa, mas havia apenas quatro pessoas na platéia. Ali perto, besteiróis e um musical de Miguel Falabela lotavam os teatros. Uma pena. (Homero Fonseca)

O romancista e ensaísta Assis Brasil tenta, desde 1994, mapear a produção poética brasileira do século 20. Já escreveu os tomos relativos aos Estados do Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Sergipe. Mas não conseguiu fazer a de Pernambuco. Segundo confessou ao professor Carlos Newton Junior, por total falta de exeqüibilidade: seriam necessários três volumes. Ele então desistiu. (HF)

Uma das propostas-chaves do presidente recém-eleito da França, Nicolas Sarkozy, é de apagar a herança de Maio de 68, que para ele, “introduziu o cinismo na política”. Em resposta, Daniel Cohn-Bendit e Alain Geismar, ex-líderes do movimento, confessaram ironicamente a culpa pelo golpe contra o autoritarismo, pela liberdade do corpo e da expressão. Sarkozy não pestaneja para continuar disparando que distintos males sociais, como a pedofilia e o suicídio, têm causas genéticas. É uma pena notar que, em vez de aprender com a História, o novo presidente pretenda “apagá-la”. (Camilo Soares, de Paris)

“Boa tarde, Seres Humanos!” Saudação aos telespectadores do ecologista Luiz Lyra em seu antigo programa na TV Universitária

AS PIORES DA MPB O crítico musical José Teles há muito acalenta o projeto de produzir um CD com as piores músicas da MPB. Um dos destaques seria “O Tijolinho”. A melodia é de Wagner “Bitão” Benatti (futuro integrante do grupo Pholhas), e a letra é do cantor Bobby di Carlo, que a lançou, com grande sucesso, em 1966, durante a Jovem Guarda. A pérola da música é o refrão que diz: “Você é meu amorzinho/ Você é meu amorzão/ Você é o tijolinho/ Que faltava na minha construção/ É verdade, é verdade, é verdade...” (Marco Polo)

ESPERANDO FIDEL

GONZAGÃO E OS BEATLES

Deu no diário argentino Página 12: o jornalista colombiano Dasso Saldívar, biógrafo de García Márquez, disse que a atitude do romancista em relação a Fidel Castro é “um compromisso com a amizade” e que ele “não quer fazer o jogo dos inimigos da Revolução”. E adiantou que o autor de Cem Anos de Solidão tem um livro inédito, de 500 páginas, sobre Cuba, mas que somente publicará após a morte do ditador. O que será que está por vir? (HF)

Em setembro de 1968 a revista InTerValo começava uma reportagem dizendo: “Luiz Gonzaga vai ganhar 50 mil dólares, no mínimo. Isto porque os Beatles decidiram gravar o baião 'Asa Branca'”. Mais adiante, o Velho Lua comentava: “Sabe, eu gostaria muito de que os Beatles usassem a gaita escocesa no arranjo. Ah! Vai ficar uma beleza!”. A notícia – falsa – tinha sido plantada por Carlos Imperial, autor, entre outras façanhas, do disco Pilantrália, com clássicos como “Mamãe passou açúcar 'ni' mim”, “O bom” e “Nem vem que não tem”. (MP)

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Arquivo Pessoal

VENERAÇÃO Em vias de completar 100 anos (em dezembro próximo), Oscar Niemeyer caminha para ser considerado, por muitos, como o mais importante arquiteto do século 20 (que teve, entre outros grandes arquitetos, Frank Lloyd Wright e Le Corbusier). Há algum tempo, ouvi – de testemunha ocular – que, em Londres, numa palestra de Oscar para auditório de arquitetos selecionados a pente fino, os ilustres presentes se “desconheceram”, no final da conferência, disputando os croquis espalhados pelo chão, rabiscados por Niemeyer. Todos queriam um pedaço de papel com os traços riscados pela mão do gênio brasileiro. (Fernando Monteiro)

ETERNA ROMA A “febre” dos seriados americanos chegou há muito tempo, por aqui. Mas nenhum supera a qualidade de Rome. A produção de John Milius, William Macdonald e Bruno Heller, para a HBO associada com a BBC. A segunda – e última – temporada de Rome acabou de ser vista nos EUA. A primeira, já disponível nas boas locadoras de DVD, é um primor de reconstituição histórica, bons diálogos e cores que recriam a “atmosfera” do Império de César, Marco Antonio e Otávio Augusto. A atriz Polly Walker rouba praticamente todas as cenas em que aparece como a dama diabólica da família dos Júlios, bela amante de Antonio e mãe de Augusto. (FM)

DESAFORISMOS

De onde menos se espera é que não sai nada mesmo. Barão de Itararé

ETERNA ROMA II Ainda falando do seriado Rome, fica evidente a completa ausência da culpa cristã nos personagens – não poderia ser diferente, já que Jesus Cristo só apareceria por lá anos depois. O sexo é visto como algo trivial, sem os pudores da moralidade. Enquanto os patrícios divertem-se na cama, os criados assistem a tudo placidamente, esperando pela ordem de trazer-lhes água. Átia, personagem de Polly Walker, decide separar sua filha do marido, sem nenhum protesto dos deuses, para tentar casá-la com outro, sem sucesso. Sem marido e sem amante, a garota termina se entregando à maior inimiga de sua mãe e depois a seu próprio irmão. (Mariana Oliveira).

XICO NA TELONA A nova safra de filmes brasileiros contemporâneos traz uma figura recorrente: o escritor e jornalista Xico Sá. Ele, que fez uma ponta em Árido Movie, estava em cartaz, mês passado, nos filmes O Cheiro do Ralo, no qual interpreta um dos clientes do insensível Lourenço, personagem de Selton Melo, e em Baixio das Bestas, dando vida a um dos camioneiros que freqüentam o movimentado posto. (MO)

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PERGUNTAS A GENINHA DA ROSA BORGES

1 - Silvério Pessoa: Quais as referências que você poderia citar como influência , nas suas técnicas de interpretação? Nunca fiz qualquer curso de interpretação, nem sofri influência direta dos muitos diretores com quem trabalhei... Mas não poderia deixar de citar Valdemar de Oliveira, que, além de ter sido o meu “descobridor” para o palco, foi meu diretor em 28 peças. Tenho grande admiração por Ziembinski. Foi o homem de teatro mais completo que conheci. Outros grandes diretores, que me deixaram a marca de suas passagens, foram: Graça Melo, Bollini, Hermilo Borba Filho e, agora, Carlos Carvalho, em A Ratoeira (Agatha Christie). Com ele, cada ensaio é uma verdadeira aula.

2 - Fátima Quintas: Qual o momento mais marcante na sua vida de atriz, levando em consideração a sua condição feminina? Quando Valdemar de Oliveira, já em seu leito de morte, me convidou para dirigir a peça Yerma (Garcia Lorca), da qual fui também protagonista. Contrariei a regra de que o diretor não deve atuar e, no entanto, o espetáculo foi um sucesso! Aliás, sinto mais garra para dirigir quando também estou em cena; por isso, sempre que me cabe a direção de uma montagem, procuro uma forma de me incluir nela. 3 - Luiz Reis: Qual o verdadeiro poder do teatro? Olhando para mim, aos 85 anos de idade, e, desde 1941, atuando nos palcos, esse poder fica confirmado. Até hoje, quando entro em cena, tenho as mesmas sensações da primeira vez e, se tivesse a oportunidade de escolher entre TV, Cinema e Teatro, não teria dúvidas. Escolheria TEATRO. De todos os meios, Teatro me parece ser o mais completo.


Foto: Gustavo Moura


CAPA

O universo mítico de Ariano Suassuna Ariano Suassuna, que completa 80 anos, vem construindo pacientemente, há mais de meio século, uma poesia, um teatro e um romance a partir das sementes míticas da cultura brasileira, numa desforra pessoal pela morte do pai Carlos Newton Júnior

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aras são as obras de escritores que deixam transparecer, ao contato mais íntimo, a unidade profunda que liga cada uma de suas partes num todo orgânico, coeso e fecundo. De resto, na república das letras ocorre o mesmo que em outras repúblicas artísticas: são muitos os que tentam, mas poucos os que conseguem, para além do sucesso fácil, superficial e efêmero, atingir o êxito que consagra as suas obras ao longo do tempo, e assim as pereniza, como um talhe rupestre cuja beleza nos fascina e nos atrai, sempre aberto para o futuro, mesmo que o seu real significado seja para todo o sempre indecifrável. No caso da obra de Ariano Suassuna, a unidade profunda a que me refiro vem sendo pacientemente construída há mais de meio século, desde o momento em que o autor resolveu criar uma poesia, um teatro e um romance a partir das sementes míticas da cultura brasileira, essas sementes que, “armazenadas na memória literária” – na visão sempre lúcida de Ortega y Gasset – , “escondidas no subsolo da reminiscência popular, constituem levedura poética de incalculável energia”.

Ligando-se ao universo mágico e poético do romanceiro popular nordestino, praticamente desde os seus primeiros poemas e peças de teatro, escritos em 1946, 47 e 48 (e não seria demais lembrar que o produto mais esteticamente elaborado dessa ligação, o Auto da Compadecida, surgirá relativamente cedo, em 1955), Suassuna amplia o seu interesse, já nos anos 60, direcionando-o para a pré-história brasileira, tornando-se, assim, um dos mais fervorosos entusiastas dos registros pintados ou lavrados em baixo-relevo nas nossas itaquatiaras, algo que vem reverberando em sua literatura desde o Romance d´A Pedra do Reino, escrito de 1958 a 1970. Num terceiro momento, o interesse de Suassuna estende-se ainda mais, para abarcar, num vôo panorâmico impulsionado por um acurado senso de historicidade, as manifestações artísticas dos povos latinoamericanos e de todos os povos que compõem o chamado “Terceiro Mundo”, povos que, na sua mitologia particular de escritor, serão identificados com os povos pobres, escuros e malhados da “Rainha do Meio-Dia”, mito bíblico cujo núcleo histórico encontra-se no Velho Testamento. No caso da obra de Continente junho 2007

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CAPA A construção da obra suassuniana segue um propósito de “reconstrução”, de recuperação, através da linguagem mítica e da transfiguração do real, de um mundo perdido Suassuna, porém, há aqui, diga-se logo, uma dupla conotação, religiosa e também política, já que a Rainha do Meio-Dia, além de representar a própria Nossa Senhora – a Compadecida, aquela que se compadece de todo sofrimento humano, colocando-se, sempre, ao lado dos injustiçados –, simboliza também a união dos países do “Terceiro Mundo” contra as superpotências que nos exploram, descaracterizam e esmagam. Em mais de uma entrevista, Suassuna afirmou que toda a origem do seu Romance d´A Pedra do Reino encontra-se em um poema, o mesmo poema que o personagemnarrador Dom Pedro Dinis Quaderna, durante um sonho, lê, aterrado, à medida que o texto é gravado a fogo na parede da sua casa, por obra da bela e terrível Moça Caetana – admirável alegoria da Morte, construída a partir de um mito sertanejo. Entre outras coisas, diz o poema: “A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. (...) Salve o que vai perecer: o Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. (...) O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensangüentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados”. Confesso que tenho a maior antipatia por certa crítica acadêmica que afirma ser o autor aquele que menos Continente junho 2007

entende do seu próprio trabalho. O meu ponto de vista – sobre isso e tudo o mais – é exatamente o oposto do desses “entendidos”, e por isso mesmo sempre levo em altíssima conta as afirmações dos autores quando escrevo sobre suas respectivas obras, sobretudo quando trato de Ariano Suassuna, que é, reconheça-se ou não, um dos escritores mais dispostos a declarar as influências que recebeu ao longo da sua vida literária. Partindo desse princípio antiacadêmico, acredito, portanto, que o poema em questão explica, em essência, a gênese não só do Romance d´ A Pedra do Reino, mas de toda a obra de Suassuna. Embora hermético, o poema deixa transparecer, claramente, que a construção da obra suassuniana segue um propósito de reconstrução, de recuperação, através da linguagem mítica e da transfiguração do real, de um mundo perdido. Veja-se como


CAPA Desenhos de Ariano Suasuna/Reproduções

Sendo rigorosamente pessoal, o universo mítico de Ariano Suassuna pulsa em consonância com os mitos do nosso povo, na tentativa de erguer uma "Mitologia brasileira"

o trecho do poema acima citado se coaduna perfeitamente com uma afirmação que Suassuna fez no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1990: “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o Pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o Pai deixou”. Egresso do patriarcado rural derrotado na Revolução de 1930, e trazendo, como sua mais profunda marca biográfica, a morte do seu pai, João Suassuna, Ariano faz de sua obra um grito de protesto e uma desesperada ten-

tativa de recuperação de um mundo que lhe foi confiscado pela inapelável trama do destino. Através de um reencontro com a linguagem do mito (território próprio da epopéia), Suassuna consegue reerguer um mundo novo a partir do caos e das cinzas de uma realidade destruída – o reino encantado da sua infância, sempre ligado à fazenda Acauhan, onde passou o pouco tempo que o destino lhe concedeu viver ao lado de um rei, seu pai. O que a vida desconjuntou, Suassuna reconstituiu pela imaginação, erguendo, pedra sobre pedra, o seu grandioso castelo poético. Quem se lembraria, hoje, de João Suassuna e da injustiça de que foi vítima, não houvesse sido ele resgatado para a história pelo poder da literatura? Talvez tenha sido Carlos Lacerda o primeiro a perceber esse projeto que se encontra na medula da obra suassuniana. De fato, num artigo escrito em 1971, quando do lançamento do Romance d'A Pedra do Reino, Lacerda discorre com precisão e agudeza psicológica acerca da “tremenda desforra” que Suassuna, através da fantasia, tirara “sobre os erros do mundo” – ou sobre os papéis que, no palco da vida, foram reservados para ele e seus familiares. Sendo rigorosamente pessoal, o universo mítico de Ariano Suassuna pulsa em consonância com os mitos do nosso povo, que ele tão bem recria, na tentativa já declarada de erguer uma “Mitologia brasileira” – uma mitologia que nos ajude, finalmente, a formular uma compreensão melhor e mais generosa de nós mesmos. • Continente junho 2007

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Clemente (Jackson Costa) e Samuel (Frank Menezes) travam um duelo de penicos. Na página seguinte, a caracterização de Erandhir Santos remete à figura de Dom Quixote

Espetáculo medieval na tevê Luiz Fernando Carvalho dirige minissérie dando um toque medieval à adaptação do romance-tese de Suassuna Homero Fonseca

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Fotos: Divulgação TV Globo / Renato Rocha Miranda

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obra de Ariano Suassuna, especialmente as peças de teatro, com destaque para o Auto da Compadecida, já recebeu inúmeras adaptações, mais ou menos bem-sucedidas, para o cinema e a televisão. Agora, dentro de um projeto amplo chamado Quadrante, que pretende levar à TV obras literárias de peso, a Rede Globo, aproveitando com senso de marketing as comemorações pelos 80 anos do escritor, exibirá a adaptação de A Pedra do Reino do diretor Luiz Fernando Carvalho (Hoje é Dia de Maria). A minissérie, de cinco capítulos, irá ao ar a partir do dia 12, encerrando-se triunfalmente no dia 16 deste mês – data natalícia do autor. Luiz Fernando Carvalho é, talvez, o mais intelectualmente ambicioso dos encenadores de televisão do país, com incursões louvadas no cinema (Lavoura Arcaica). Experimentador e irrequieto, tinha a plena confiança de Ariano, de quem já levara à telinha anteriormente Uma Mulher Vestida de Sol (1994) e A Farsa da Boa Preguiça (1995), em um capítulo cada. Diretor autoral, Carvalho preparou uma versão pouco convencional e literal do monumental romance. O próprio Ariano, que acompanhou de perto as filmagens em Taperoá, no segundo semestre passado, acredita que terá uma recepção diferen-


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Na primeira conversa, o diretor perguntou-lhe se te, junto ao grande público, daquela que O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, teve. Isto não apenas por conta havia lido o calhamaço de Ariano e, diante da resposta negativa, presenteou-o com o livro, recomendando das diferenças dos textos, mas da própria encenação. Com efeito, pelas entrevistas e pelo material de divul- sua leitura. Erandhir estava excursionando com a pegação distribuído à imprensa, percebe-se que a proposta ça Quem tem, tem medo, em Petrolina, e durante quatro de Carvalho explora com afinco o universo mítico do es- dias, nos intervalos das sessões, devorou o romance. “Eu conhecia peças de Aricritor, criando “um espaço onírico em ano, sabia do seu trabalho, que a narrativa circular do romance – mas, ao ler A Pedra do Reino, com folhetos que vão e voltam no entendi por que certa vez ele tempo, e que foi respeitada na adapdisse que se tivesse de salvar tação – se desenvolve como um espeuma única obra de um intáculo medieval, um teatro de rua cocêndio, seria essa. Todo o mandando pelas memórias de Quaseu universo está contido derna, um velho palhaço”. ali” – discorre o jovem ator. Certamente, a reprodução do A composição do persouniverso mítico de Suassuna é uma nagem, como não poderia façanha, pela complexidade e densideixar de ser, baseou-se prindade das cenas e personagens. Principalmente no texto de Suascipalmente quando se tem em mente suna, com as contribuições que se trata de romance-tese, em que do próprio Luiz Fernando, todos os princípios estéticos do escride Tiche Vianna, prepator são brilhantemente colocados, em radora de expressão corporal, alguns momentos até com certa e de Ricardo Blatt, no queredundância. sito emocional. E também Diretor afeito a surpreender o púcom muitas conversas com o blico, Luiz Fernando assim agiu, já Na minissérie, Quaderna autor, juntamente com todo na escolha do ator que protagoniza a é um velho palhaço que o elenco. “O que senti era minissérie. desfia suas memórias que Quaderna era um buscador. Uma interrogação amQuaderna, o buscador Quando o diretor Luiz Fernando Carvalho virou-se bulante. Alguém que está em busca do seu caminho, para ele, no hotel em Olinda, onde mantinham a terceira de responder às grandes questões sobre quem somos conversa, e disse – “O papel de Quaderna é seu” – Eran- e para onde vamos e que para isso vai buscar, em suas dhir Santos quedou-se 10 minutos no mais absoluto silên- fontes, suas próprias raízes. Alguém que diante das cio. Formado há apenas dois anos pelo curso de Artes Cê- coisas indaga sempre, desconfiado e curioso, um ser nicas da UFPE, Erandhir, 28 anos, natural de Barreiros, único.” Quanto à expectativa da minissérie, Erandhir confia Pernambuco, não tinha qualquer experiência em televisão. Participara, é verdade, dos filmes Cinema, Aspirinas e Uru- no taco do diretor Luiz Fernando Carvalho que, “fuginbus e Baixio das Bestas, mas sua vivência era toda do teatro, do do naturalismo regionalista, conseguirá tocar o coraonde estreara na peça A Ver Estrelas, do dramaturgo e dire- ção de todos. Espero que a série faça com o espectador o tor João Falcão. Três anos antes, ele tinha gravado para que fez comigo, pois a leitura do livro e a interpretação testes de elenco na Rede Globo e foi com base nesse VT do texto me mostraram um outro Sertão, não apenas aque Luiz Fernando decidiu entrevistá-lo para compor o quele seco, cinza, mas um Sertão vivo, com cores fortes, elenco da minissérie que passou cinco meses sendo um lugar enigmático”. Tudo será conferido a partir do gravada no sertão de Taperoá, Paraíba, onde se desenrola dia 12 nos milhões de telinhas azuis espalhadas por todo o Brasil. • a trama do romance armorial de Suassuna. Continente junho 2007

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Brennand, esse desconhecido O que será descoberto no trabalho de Brennand, que como Ariano completa este mês 80 anos (sem querer comemorar), será a paixão da “investigação de um drama” através das sombras da realidade que nos cerca Fernando Monteiro

"Quem deseja explicações?" – era a pergunta do Pássaro.

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á um Francisco Brennand ignorado, solenemente, nesta cidade onde ele nasceu e da qual nunca saiu (como saiu Cícero Dias). Exceto para viagens com o dia da volta marcado, o “Senhor da Várzea” jamais deixou o chamado torrão natal (e do “Senhor da Várzea” – e outros – logo iremos falar, em conexão com o desconhecido do título acima). O Recife, aliás, enquanto ignora e irreleva determinadas coisas, no mais das vezes presta atenção demasiada (e obtusa) em algumas outras. Sempre foi assim, e não poderia ser diferente com relação ao duplo Francisco: o “consagrado” e o desconhecido artista de 80 anos comemorados neste mês, sem o menor incentivo da parte dele (“fique certo de que eu não pretendo comemorar o meu aniversário, esperando que os verdadeiros amigos possam controlar ou dissuadir a imprudência daqueles que porventura venham a insistir em tamanha tolice”). Embelezada por esculturas e painéis cerâmicos bem espalhados por praças, jardins e fachadas de edifícios Continente maio 2007

com a marca artística “FB” bem visível, é natural que esta cidade revele um certo respeito pelo seu artista. Temos um passado – como todas as cidades de mais de quatro séculos de vida urbana – e, caracteristicamente, é o presente que nos aflige de verdade (“permitir ou não permitir uma obra de Niemeyer nas praias de coqueiros?”). O presente – e os presentes em carne e osso - são mais difíceis de compreender do que a memória aquietada sobre holandeses, portugueses, índios litorâneos e escravos trazidos cá para Pindorama. Compreender o que se passa no “agora” é outra história – até porque compreender exige sair de si próprio, ficar de olhos brancos e novos para ver, mais uma vez, o que a gente ainda não viu nas coisas, nas pessoas ou num quadro mostrando um espelho dentro de outro. E o Brennand que não se vê é o antípoda, eu diria, do “Senhor da Várzea” que o Recife respeita, sim, embora eu não tenha a certeza de que a cidade o compreenda, ou sequer saiba direito quem é, de fato, o relutante aniversariante do dia 11 de junho, o artista sério e apaixonado cujas complexidades estão além de epítetos e em busca, ainda, de explicações.


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Foto: Helder Ferrer

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Olívio Tavares de Araújo tenta demonstrar a obviedade de que Brennand seria um "dionisíaco" e não um "apolíneo", descobrindo o Brasil desse ovo de Colombo cabralino posto em pé para firmar a quadratura do círculo sobre FB

Detalhe de estudo para o mural Batalha dos Guararapes, 1960

Mas, “quem deseja explicações?” – já “Mestre de Apipucos”, apenas os naturais desdobramentos da preocupação freyriana perguntava o Pássaro Rocca. com a ecologia, especialidade na qual se Homens justos – Há pouco mais de considerava um pioneiro, sem nenhuma um mês, o (portanto) não-Senhor da Vár- timidez (sendo timidez uma palavra riscazea – para quem 80 anos seriam um da do dicionário do autor de Casa-Grande “desaniversário” – resolveu presentear 10 & Senzala e outras obras de “antecipanão-vassalos daqui do antigo burgo nas- ções” por ele constantemente reivindicasoviano, a também “cidade maurícia” do das até depois dos 80 anos). Ecologia? Pode ser. estilo pegajoso dos epítetos de jornal. Punição, castigo? Está ficando mais E ele endereçou para uma dezena de “homens justos” (segundo seu critério “quente”. Ou, pelo menos, mais perto da pessoal), 10 exemplares do livro A Vingan- questão – importante para Francisco – ça de Gaia, do cientista inglês James Love- do que fazemos de nós mesmos (inclulock, para que os tais justos lessem a obra indo o planeta do qual nos sentimos doque – segundo Brennand – “expõe al- nos não só sem timidez alguma, mas gumas suposições catastróficas do nefasto cheios da coragem de feitores com o chirelacionamento do homem com o planeta cote na mão, prontos para açoitar as cospor Lovelock identificado com Gaia, a tas nuas de Gaia acorrentada, prostituída deusa grega, em referência à terra cons- e sifilítica por obra e graça da nossa loupurcada como se fosse um mero quintal cura sem remissão). Então, ó justos, foi algo mais do que para ‘cercarmos’ e usarmos, sem saber o justiça para Gaia aquilo que Francisco quis que estamos fazendo”... Se Gilberto Freyre fosse vivo, o so- pedir quando... Espera aí, Fernando: o que ciólogo-antropólogo (era assim que Giba diabo tem a ver ecologia, ou não-ecologia, gostava de ser nomeado) teria sido, certa- com um texto sobre os “mitos” presentes na mente, um dos 10 destinatários do livro de obra desse artista? O barco bêbado da tua Lovelock, na cidade de cheias aparen- escrita perdeu o rumo traçado pela bússola temente domadas e manguezais aterrados. louca do mundo ensandecido? – volta a E Freyre certamente veria, na escolha da perguntar o Pássaro saído do ovo obra encaminhada para o seu endereço de quadrado dos paradoxos. Reprodução

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CAPA “Mais ou menos” – respondo eu (que gosto de escrever a respeito de equívocos). Porque têm sido equivocados ou redundantes, em grande parte, os textos escritos sobre Francisco Brennand. Da redundância, eu dou um exemplo crítico: o do mineiro-paulista Olívio Tavares de Araújo, em longa arenga (próxima do lenga-lenga dos textos chegados a um vago pedantismo), em livro-álbum de 1997. Ali, Olívio tenta demonstrar a obviedade de que Brennand seria um “dionisíaco” e não um “apolíneo”, descobrindo o Brasil desse ovo de Colombo cabralino posto em pé para firmar a quadratura do círculo sobre FB. Quem foi mais? Fulano, beltrano, sicrano – todos escrevendo sobre os temas e as possíveis “significações” da arte brennandiana, e um até se esmerando (no mesmo livro de 1997) em torno da biografia do artista chamado de belo, na juventude (como igualmente o foi o “Quincas Belíssimo” das saudades do Gilberto apresentado, quando menino, ao ilustre ídolo gilbertiano Joaquim Nabuco). A tudo e a todos sobreviveram o homem e o artista acarinhados pelo Recife dos epítetos, dos apelidos, das idéias gerais e de certas reduções talvez necessárias para que possa dormir tranqüilo (?), no esquecimento, entre outras coisas, de que Brennand é maior do que Francisco, no poço escuro da charada da arte que abrange o claro enigma da vida. Mitos estranhos – Porque há um enigma em Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand. Há vários, na verdade, e o central é aquele que insiste em escapar pelas bordas da admiração que não decifra, não desvenda, não revela nem se mostra à altura de um homem que produz com inspiração e erudição raras entre os artistas brasileiros atualmente rendidos inclusive ao circuito perverso da ciranda dos “cura-

dores” que nos curam somente de poder ver pelos olhos próprios da inteligência capaz de enxergar por trás do muro das palavras de engano. De modo que há, então, esse Francisco Brennand “canônico” dos que tecem loas africanas (e até armoriais) à sua obra tão refinada – no sentido da alta cultura – e, no meio do equívoco, outro engano se faz patente diante daquilo pelo qual o tomam, assim como se fosse ele um Dom Pedro II de bengala (a sua imagem física, hoje bem conhecida), e não um ser profundamente angustiado e um pintor visceral que suporta mal algumas homenagens baseadas no mistake doméstico sobre o seu trabalho “erótico” (o que parte desse trabalho é, de fato, embora não no sentido do erotismo vulgar associado ao único obelisco do Recife, por exemplo)... ou sobre a sua arte de “mestre da cerâmica” da Veneza brasileira de epítetos e mais epítetos. A verdadeira Veneza está afundando, infelizmente, na laguna de lama, e aqui gostamos de chafurdar, muitas vezes, entre idéias feitas e coisas que assimilamos à maneira típica de quem não pretende entender o que foge do conforto dos rótulos e das etiquetas coladas com superbond misturado com araldite e velha goma arábica. Fazemos, nós, até mesmo uma “forcinha” de vendilhões do templo em alarido mental para calar o pensamento sobre o que fica mais além do horizonte das nossas praias de água-do-mar e cocadade-coco-do-coqueiro... Quais são os mitos estranhos que este Recife (o do sono) pode reconhecer, sem se inquietar, numa obra como a de Brennand – que olha para o abismo? “Parece um templo”, “que coisa mais linda”, “nem parece que a gente está no Recife!”: são as exclamações dos visitantes, locais e não-locais, estrangeiros e não-alienígenas, da sua Oficina de mitos difíceis. Francisco não é “o pintor dos cajus” daquele primeiro estágio de enganos da crítica, nem o “pintor das fêmeas” de um

Reprodução

"Parece um templo", "que coisa mais linda", "nem parece que a gente está no Recife!": são as exclamações dos visitantes locais e não-locais, estrangeiros e nãoalienígenas, da sua Oficina de mitos difíceis

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CAPA Reprodução

Interior do Museu Accademia, na Várzea. Abaixo, o obelisco Coluna de Cristal, no Cais do Porto do Recife

Maiara Oliveira

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opúsculo poético do “cronista da cidade”, Paulo Fernando Craveiro. A arte desse homem se desenvolveu, muito mais, entre alusões para a sombra – aquelas sombras netunas da Fábrica de visões que muita gente toma por uma espécie de Disneylândia da arte capaz de atrair mais turistas do que a Nova Jerusalém e o castelo anglo-kitsch que se ergue, também na Várzea, construído por Ricardo Brennand (primo do artista), o “Senhor do Castelo”, segundo as colunas de jornais. Vamos parar com esses bailes malperfumados de aspas para com artistas e não artistas? Há tanto disso, aqui, que não sobram parênteses, parece, para sairmos do marasmo dos rios ou para tomarmos os rumos fluviais sob a chuva, fazendo a volta no sentido antihorário-cabralino (do João, desta vez) até os muros do atelier onde Brennand queima argila como se fosse carne humana. A caminho do interior do Congo da alma, Francisco é um “Kurtz” que desceu o Capibaribe e levantou não

um castelo, mas uma obra devotada aos sonhos primevos, aos terrores ancestrais (na sua cerâmica). “Que sonhos tinham os que esculpiam estas coisas ermas?” – pergunta John Howard, citado num livro de 1987 sobre o espaço hoje transformado em museu, na altura em que o seu criador (ou reformador, em 1971) agora já vê o horizonte da sua vida se encurtar, no planeta que “brinca” com a idéia da autodestruição. E não é só isso: o Brennand angustiado com o Começo e com o Fim, com os mitos da Criação e com os anúncios do horror conradiano, é também um pintor de mulheres não só no cio de fêmeas, mas partilhando, igualmente, da solidão metafísica da raça dos homens que “morrem – e não são felizes” (segundo o franco-argelino Albert Camus que, no Recife, pediu que parassem de lhe mostrar folclore). Francisco, enfim, não é nem de longe o que querem que ele seja. O artista essencial desta cidade poderia ter partido dela, há muito tempo, na pista longínqua das suas admirações mais firmes – Courbet, Gauguin, Balthus (cito três, apenas) –, quando certamente lhe agradaria traçar o rumo de algum destino equívoco e, depois, ser esquecido. Lá, no lugar ignorado da sua morte aos 90, aos 100 anos, restariam muitos e muitos livros (todos realmente lidos), e, talvez, a última tentativa de rematar a obraprima desconhecida, ou ainda o landscape de alguma montanha vista de baixo, desde a visão de monges mendigos do Tibet, que somem acima do pico nevado da Baleia Branca do Inverno da Nossa Desesperança. Nenhum verdadeiro artista pode ser entendido onde tais palavras possam ser tomadas por pura literatura. Aliás, não existe pura literatura – e arte pura é impossível. “Tudo é biografia” e tudo se confunde no Brennand que é ainda maior do que o


Reproduções

O Pintor na Paisagem, lápis aquarelado sobre papel

folclore corrente sobre as suas histórias e “aventuras”, entre outras bobagens com as devidas aspas. E Brennand é um gentleman que finge não ser mal-entendido, ao citar algumas frases estranhas (“que bom seria fazer o mal e nunca mais ouvir falar disso”), escritas no Diário que manteve – durante anos e anos – para ninguém ler (porque a maioria dos Diários de escritores e artistas é “secretamente” escrita para ser lida e relida, às escâncaras)... Nessas anotações, ele interroga a pintura, mais do que todas as demais linguagens que domina. A pintura – e não a arte cerâmica – é que está no centro do interesse do artista que é o nosso mais importante senhor dos pincéis (agora sou eu a usar um epíteto!), desde o pintor-inventor Vicente do Rego Monteiro. Estou afirmando isso, e preparado para ganhar inimigos, com uma tal afirmação. O futuro, porém, revelará que FB narrou uma longa e torturada história,

Jogadoras de Castanhola, óleo sobre tela, 1977

nos seus quase mil quadros. Não se trata da bagatela do “mercado”, ou de quem vai restar “vendendo” mais nas galerias e nos leilões de arte, no mundo crepuscular que caminha para se encerrar com um gemido. Antes disso, o que será descoberto (aqui, verdadeiramente descoberto) no trabalho de Brennand, será a paixão da “investigação de um drama” (segundo suas palavras) através das sombras da realidade que nos cerca. E aí, nesse sentido, eis um completo desconhecido neste momento “desaniversariando” pela octogésima vez, na cidade que o viu nascer e que esforçadamente finge compreender o viajante da Várzeapara-a-Várzea, sem epítetos de tipo algum e sem aspirar a ser “senhor” de outra coisa a não ser do silêncio, quando ele fecha os portões da Oficina – todos os dias – para formar um mistério (“ninharia” nada espetacular para o Recife que enxerga melhor os corpos, a aparência, o exterior da vida em “Gaia” que desaba). •

A pintura – e não a arte cerâmica – é que está no centro do interesse do artista que é o nosso mais importante senhor dos pincéis (agora sou eu a usar um epíteto!), desde o pintor-inventor Vicente do Rego Monteiro

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LITERATURA Divulgação

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Adélia Prado: sua poesia é indissociável de sua visão religiosa do mundo

Adélia Prado O retorno do sagrado Através de uma releitura contemporânea dos mitos religiosos, a poeta mineira é uma das pioneiras de uma nova tendência da poesia brasileira Fábio Andrade

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om a reedição dos livros de Adélia Prado, entre eles O Pelicano (1987), A Faca no Peito (1988), e Oráculos de Maio (1999) de poesia, e O Homem da Mão Seca (1994) e Manuscritos de Felipa (1999), de prosa, a editora Record repõe sob roupagem mais agradável e ampliada circulação da obra de uma poeta que está sintonizada com parte do que há de mais recente na poesia brasileira. A obra de Adélia Prado poderia ser vista também como um dos desdobramentos importantes de certa Continente junho 2007

tendência de nossa poesia, mais exatamente da década de 80 para cá, que deseja povoar novamente o mundo com os deuses. A grande sentença nietzschiana de que “Deus está morto” parece ter cessado sua repercussão, como se os raios concêntricos de uma pedra lançada num rio fossem perdendo força até se apagarem numa superfície novamente intacta. É o que parece provar toda a força poética e religiosidade de uma escritora que mergulha no sagrado sem abdicar do seu mundo, do cotidiano e do Outro.


Ricardo Melo

Na verdade, para Adélia Prado poesia e religião se fundem, pois as duas estão enraizadas em estados de revelação. O leitor pode perguntar: revelação de quê? Nosso pensamento contemporâneo, em verdade, não pode suportar essa potência que ultrapassa a linguagem. Talvez seja até mesmo um escândalo filosófico pensar na “verdade”, termo que com razão expulsamos de nossos ideários fundamentais e que norteou e ainda norteia o sentimento religioso de nosso mundo, feito, por sinal, de vários mundos. Justamente nesse ponto começam as diferenças essenciais da religiosidade, do senso do sagrado que alimenta os poetas, em relação à antiga verdade transcendente. O eixo central da fé de poetas como Adélia Prado é a própria linguagem em estado de graça, que seria sinônimo de estado poético. As verdades nascidas nesse terreno particular só têm validade nele, são “verdades” intransferíveis, que podem dialogar com as verdades transcendentes dos outros, mas não suplantá-llas. Muitos outros poetas brasileiros hoje participam dessa tendência que tem sua origem na aurora da modernidade, como se pode encontrar no ensaio do italiano Roberto Calasso, A Literatura e os Deuses, publicado aqui em 2004. Segundo Calasso, a literatura seria como promovida por boa parte dos modernos – “uma espécie de metafísica natural (...) que se baseia em cadeias não de conceitos, mas, sim de entidades heteróclitas – fragmentos de imagens, assonâncias, ritmos, gestos, formas de todo gênero”. Assim, essa “metafísica natural” suportaria número ilimitado de verdades transcendentes que não se contradizem necessariamente, antes especificando algo de fundamentalmente individual num campo tão marcado pelo geral absoluto que é a idéia do Sagrado. O principal veículo desse processo, desse tipo de literatura é a metáfora. Metáfora que se converte, de figura de linguagem entre tantas, em medula do dizer poético, para nos dizer algo que vai além dos sinais programados do mundo conhecido. Dizer alusivo que, em última instância,

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LITERATURA sempre alude ao que está fora da linguagem conhecida, vem do sol indeciso / a claridade expandindo-sse, / é dela transformando-sse nos poetas metafísicos como Adélia que nasce a luz / de natureza velada, / é seu próprio gosPrado em alusão ao que está fora – escândalo filosófico – to / em ter uma família, / amar a aprazível rotina. / Ela da própria linguagem. não sabe que sabe, / a rotina perfeita é Deus: / as galiEm cada poeta, o procedimento metafórico funciona nhas porão seus ovos, / ela porá sua saia, / a árvore a seu numa orientação própria e pertencente aquele universo tempo / dará suas flores rosadas. / A mulher não sabe literário particular. No caso da poeta mineira, uma das que reza: / que nada mude, Senhor.” principais formas de metaforização do sagrado se dá pela Não se queira ler nesse poema qualquer atitude de humanização da divindade. Se os gregos antigos tinham submissão a uma condição opressiva imposta à mulher. elevado o homem à condição de deus pela antropomorfi- A vida simples investida de amor traduz um alto senzação, a cultura cristã, principalmente os místicos, trou- tido cristão, abarcando cada um de nós, homem ou muxe Deus para a condição humana, encarnação humilhada lher, na sua forma possível de plenitude: a aceitação de que remete ao arquétipo essencial desse gesto que é a seus limites e “espinhos”, transcendendo-oos na direção trajetória do cristo. Como se verifica na poesia de Adélia de uma alegria essencial do estar vivo. O dia-aa-ddia e as Prado, a divindade não está distante do homem, ela e- coisas menores se transformam em trampolim para a merge com toda a sua força transfigucomunhão com o sagrado; subsidiam a Divulgação revelação de algo que não nos é necesradora no cotidiano, no comezinho da sariamente transmitido pelo sujeito lírivida banal que rege o dia de cada um: co de seus poemas, mas manifestado “Nesta hora da tarde / quando a casa repousa / a obra de minhas mãos / é esta sugestivamente pela sua relação com cozinha limpa. / Tão fácil / um dia deesse deus próximo: “O mundo é ininpois do outro / e logo estaremos juntos / teligível, / mas é bom”. Relação marcanas ‘colinas eternas’. / Recupera meu da pela proximidade, por esse diálogo que tem a função de ancorar o ente corpo / um modo de bondade, / a que me torna capaz / de produzir um verso. divino na matéria de que somos feitos, numa aceitação quase ascética daquilo / Compreendes-m me, Altíssimo? / Ele não responde, / dorme também a sesta”. que não podemos compreender. A leitura de qualquer dos livros de A junção do sagrado com o cotidiaAdélia Prado mostrará que a contemno, por sua vez, engendra a ironia, que O eixo central da fé pode ser encontrada em muitos dos poeplação do sagrado, como nos propõe sua de poetas como obra, não é a imagem de um porto mas de Oráculos de Maio, como “Mater Adélia Prado é a Dolorosa”, e no poema acima, “Na Terseguro. Sua poesia não se exila nesse cirprópria linguagem em cuito apenas, ou melhor, ela está sempre ra como no Céu”, também do mesmo estado de graça livro. A ironia, como conceituada pelos comprometida em ampliar o raio de seu românticos alemães, define-sse justaespaço, confirmando que o diálogo vermente pela junção do sublime com o comum, expressa dadeiro só poderia nascer de um leque variado de expena poesia de Adélia pelo cruzamento do sagrado com o riências. Desta forma, o mesmo cotidiano que revela a cotidiano. Com a absorção do cotidiano e da vida ma- pura divindade da vida, também pode conformar e material, a poeta alimenta suas questões metafísicas com as tar. Lembremos o poema “Resumo”, do seu primeiro lirealidades mais vivas da matéria: a sexualidade e o desejo, vro, Bagagem: “Gerou os filhos, os netos, / deu à casa o a rotina diária e as frustrações menores. Tudo isso, po- ar de sua graça / e vai morrer de câncer. / O modo como rém, tocado pela imagem de um deus que acompanha, pousa a cabeça para um retrato / é o da que, afinal, aceique é antes expectador também do desenrolar da vida, do tou ser dispensável. / Espera, sem uivos, a campa, a tamque o ditador e senhor dos destinos. Tal deus, despro- pa, a inscrição: / 1906 – 1970 / SAUDADE DOS vido das pompas institucionais, transforma a vida numa SEUS, LEONORA”. A maior parte de sua produção extensão de sua própria presença viva, como se vê em poética caracteriza-sse por textos curtos, concisos. Quan“Mural”: “Recolhe do ninho os ovos / a mulher / nem do mais longos, põem em evidência um traço que a disjovem nem velha, / em estado de perfeito uso. / Não tingue de outros poetas atuais que se orientam na Continente junho 2007


LITERATURA direção dessa contemplação do sagrado, que é certo prosaísmo. O final dos anos 70, quando ela edita seu primeiro livro, foi marcado por esse prosaísmo, que concede liberdade quase extrema ao verso. Justamente aí que encontraremos os pontos altos e baixos da poeta. No primeiro caso, esse prosaísmo juntamente com a síntese conferem agilidade e surpresa ao texto; no segundo caso, amortizam seu poder de impacto e dão à peça um “quê” de retorno a um mesmo tema. Sua condição essencial de poeta transforma-llhe a prosa, contaminando-aa com o registro poético, onde ritmo, imagem e estranhamento pesam mais do que verossimilhança e enredo. Há um fluxo de escrita que gravita em torno de estruturas que sempre se renovam, seja no registro mais contido do poema, seja no registro mais fluido da narrativa. A idéia de escritura como a definiram vários teóricos da literatura e críticos literários, e que despreza a natureza estanque dos gêneros para confirmar a soberania de uma forma de escrever que se justifica no estilo, entendido como forma especial de significar a língua, pode explicar tal trânsito entre a poesia e a narrativa de Adélia. Logo, sua prosa não deixaria de apresentar o mesmo estado de graça que o poema, pois a epifania (manifestação do sagrado nos eventos mais simples), presente em suas narrativas, seria também uma forma de metaforizar. Assim, sua narrativa incorpora todos os temas trabalhados com concisão e contundência pela sua poesia. Numa obra já considerável, não teríamos receio em indicar os poemas como a forma capaz de melhor expressar o universo literário da poeta mineira. Universo que não está vazio, mas cheio de vidas enlaçadas pela graça e pela dor, e que a seduzem constantemente, obrigando-aa a cantar para um deus que se alimenta de palavras: “Ó Deus, / me deixa trabalhar na cozinha, / nem vendedor nem escrivão, / me deixa fazer Teu pão. / Filha, diz-m me o Senhor, / eu só como palavras”. O que sua poesia revela é o repovoamento de nosso mundo pelos deuses, passado o recesso de uma razão que se achava capaz de tudo explicar. Confirmando assim que ainda há mistério no mundo, e que sua principal forma de revelação está na trajetória particular que cada um tece menos sabedor do que queria de seu próprio viver. •

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O tempo e a morte Reedição da trilogia Tempo dos Mortos, do romancista cearense José Alcides Pinto, confirma uma escritura vigorosa e densa, de claro sotaque pessoal Luiz Carlos Monteiro

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screver sobre a vida em um hospital não é tarefa fácil, pois dela não pode se sair bem quem não teve a vivência direta dos acontecimentos e do movimento das pessoas que ali transitam. O cotidiano de médicos, enfermeiros, convalescentes e visitantes, requer uma espécie de esforço narrativo que convida ao testemunho concreto. A reedição da trilogia Tempo dos Mortos, do cearense José Alcides Pinto, traz esta experiênzcia avassaladora para a vida de qualquer pessoa, independentemente de sexo, raça, profissão ou posição social. A primeira narrativa, Estação da Morte (1968), biparte-se em “O Hospital” e “A Morte”. Nos dois blocos, os personagens se debatem com a presença constante da morte e a angústia com que a esperam diariamente. Morte que acende também a esperança de se voltar vivo da mesa de cirurgia. Este é o drama de todos os doentes, a exemplo de Artur, que tem uma mulher, Alda, que o trai com um médico no seu próprio quarto no hospital, enquanto ele permanece sedado. Mas ele encontra Iolanda, servente de limpeza, por quem se apaixona e que corresponde à sua paixão. O que o faz constatar, em meio à fragilidade de seu corpo, a chegada de Iolanda como um fio de esperança, embora Continente junho 2007

tênue, que o motiva e mantém preso à vida: “Alda é quem perde por ser leviana. Iolanda sabe como agradar a um moribundo. Enquanto se vive (mesmo nas condições em que vivo), tudo é possível. Acha-se um amor até na hora da morte”. No segundo texto, O Enigma, o Despenseiro lembra, pela dureza, tensão e densidade psicológica, um personagem kafkiano como o Agrimensor, de O Castelo. Esta obra de José Alcides Pinto foi publicada em 1974, e poderia ser lida à parte das outras duas narrativas, embora formasse uma lacuna onde ficariam desconhecidas passagens referentes a outro personagem que aparece bastante na trilogia, Dr. Braz, o Engenheiro e construtor do hospital. Quando adoece por oito anos, o seu trabalho de engenheiro é levado para o hospital, onde passa a medir tudo à sua frente, com olhos “vivos e diligentes, como os de um camundongo preso a um alçapão”, na sua obsessão em “blefar a morte”: “Armado de um esquadro, de réguas milimetradas, um bloco de papel quadriculado e uma caixa de lápis de todas as cores, o Engenheiro fez um levantamento completo dos objetos do apartamento em que se encontrava, depois traçou linhas paralelas e


LITERATURA Divulgação

horizontais, linhas verticais e sinuosas, e trouxe o papel para perto dos olhos e, com a régua milimetrada, se pôs a fazer pontos que figuravam os objetos, e a ligar esses mesmos pontos a outros pontos, que se multiplicavam na superfície do papel garatujado, numa proliferação incontida”. O Despenseiro mantém uma rotina de décadas, que praticamente não sofre alterações na sua repetitividade, como quando dá um intervalo no trabalho para o charuto: “A mão remexe a caixa de charutos. Um é retirado, meticulosamente, do estojo, sem que os outros sejam incomodados. A caixa sempre ao pé da cadeira cativa é logo fechada por uma batida característica, um estalo doce na matéria flexível e cheirosa. A ponta do charuto é cortada entre os dentes, que remoem o fumo, e logo o atira salivado, a curta distância, à frente dos sapatos furtacor que conserva sempre bem engraxados e lustrosos”. O Despenseiro é uma mente linear, enquadrada, idiossincrática, que enlouquece a partir da aparição de uma carta enigmática, daí a sugestão do título. A sua derrocada em direção à loucura intensifica-se, mais ainda, a partir da comunicação de uma indesejada aposentadoria: “Apanhou a papeleta de repelão, torceu-a o mais que pôde, no formato de um canudo, e gritou para o mensageiro, que era o oficial de gabinete do diretor, que metesse o canudo na bunda, com toda a força, até desaparecer. E desde esse dia a lesma dormente e amarela que estava grudada no casco interno da cabeça despregou-se com o choque daquela explosão repentina e transformou-se num besouro peçonhento que ficou a atanazar o juízo”. Na terceira novela, O Sonho, também publicada em primeira edição em 1974, os pontos altos são os momentos finais e a curiosidade pública que a morte do Dr. Braz desperta. Constata-se, ainda, a sugestão de uma ação política clandestina do Partido, certamente o Partido Comunista, por enfermeiros e médicos. A aparição de uma ave negra é, em termos imagéticos, como a aparição da própria morte: “A ave circula sobre o ápice da torre, ao crepúsculo, e suas asas desprendem um vento satânico que acelera o tempo – pelo menos é isso o que os doentes pensam. (...) Ela então desaparece, para voltar no dia seguinte, à hora que se sucede ao crepúsculo; à hora em que os doentes são mais suscetíveis a aumentar seus sofrimentos”. Diferentes na expressividade estética, os três livros de Tempo dos Mortos se afirmam na unidade estilística intrínseca que caracteriza cada um deles e que faz reconhecíveis o autor e seu texto. O primeiro, Estação da Morte, é dialogado, sendo o movimento dado pelos objetos e pelas conversas entre os freqüentadores do hospital; o se-

José Alcides Pinto: a morte como tema

gundo, O Enigma, traduz um monólogo tenso e intenso com a repetição constante das mesmas frases e expressões pelo Despenseiro; o terceiro, O Sonho, destaca-se pela carga de subjetividade que, de certo modo, reúne diálogo e monólogo a um só tempo. O trabalho com a palavra em José Alcides Pinto é cuidadoso, pensado, de elaboração conseqüente e incisiva. Isto não surpreende, quando se sabe que ele também é poeta, alinhado à geração de 45, tendo publicado poesia já no início dos anos 50, embora preserve uma forte independência literária relativamente aos de sua geração. A sua prosa revela-se reflexiva e intimista, concentrada no mundo circundante, mas sem jamais esquecer o indivíduo. •

Tempo dos Mortos, José Alcides Pinto, Topbooks Editora, 208 páginas, R$ 29,00. Continente junho 2007

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A medida do crítico A Academia Brasileira de Letras reedita Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, obra fundamental da crítica e da historiografia literária brasileira

Agência Estado

Eduardo Cesar Maia

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uma antecipação de algumas décadas à Teoria da Recepção, Antonio Candido estabeleceu, em um livro publicado há mais de 40 anos, a distinção entre a literatura como sistema social estabelecido, formado pelo eixo autor/obra/público, e aquelas que seriam simplesmente “manifestações literárias”. Tal formulação desencadeou algumas polêmicas, pois com ela veio a afirmação de que, no Brasil, apenas no Arcadismo pode se caracterizar a ocorrência de um sistema que, no Romantismo, finalmente se concretizaria como uma tradição e uma cultura literária disseminadas socialmente. Para o crítico, “a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de recepContinente junho 2007

tores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral a linguagem traduzida em estilos), que liga uns a outros”, é o que garante, quando os três elementos estão articulados, a ocorrência de “um tipo de comunicação inter-humana, a literatura”. São tantas as contribuições desta obra de Candido aos estudos literários no Brasil que procurarei aqui concentrar-me em dois pontos cruciais discutidos no livro: a metodologia discutida no capítulo introdutório e a visão do autor em relação ao valor da literatura nacional numa perspectiva universal. Não se tratam, porém, dos temas fundamentais do livro – que seriam as análises das obras literárias em si –, mas merecem uma reflexão por se


LITERATURA tratarem de assuntos que atualmente ainda inflamam debates, acadêmicos ou jornalísticos. O método crítico – Encontrar discussões, encaminhamentos e respostas consistentes a questões metodológicas fundamentais que ainda hoje dividem os teóricos e críticos de literatura, num livro editado pela primeira vez em 1959, não é somente um dado que confere mérito ao autor – é também a possibilidade preocupante de que uma das obras mais importantes, Formação da Literatura Brasileira, de um dos principais críticos brasileiros, simplesmente não vem sendo mais lida (ou talvez venha sendo mal-lida) por muitos daqueles que hoje se dedicam ao campo da crítica e da teoria literária. Como os jovens revolucionários que querem mudar o mundo antes mesmo de conhecê-lo ou os jovens escritores que se propõem a inovar a literatura, obliterando a tradição às suas costas, os jovens críticos que emitem suas opiniões sobre os rumos e o papel da crítica literária contemporânea, desconhecendo o que já vem sendo debatido ao longo dos anos estão condenados a sempre começar do zero, a voltar sempre ao mesmo ponto de partida daqueles que escreviam há 50 anos. A grande discussão, no que concerne ao método crítico, proposta em Formação da Literatura Brasileira é acerca da integração entre “a investigação histórica e as orientações estéticas”, numa atitude de clara reprovação à hegemonia forma lista (que, inclusive, recrudesceria mais tarde). Segundo José Guilherme Merquior, Candido se opunha à “prática de um esteticismo malcompreendido”, e diz que a influência do professor Candido sobre figuras como Davi Arriguci, Roberto Schwarz, Walnice Galvão, entre outros, foi o antídoto que tentou combater a “estruturalice” nas Letras brasileiras. “Tentou”, visto que no plano teórico as várias formas de formalismos, especialmente o Concretismo, dominaram amplamente o debate acadêmico. A articulação entre o meio social e a obra literária se dá, em Antonio Candido, de forma muito sofisticada e convincente, numa tentativa de “definir ao mesmo tempo o valor e a função das obras”. O método, portanto, é estético e histórico ao mesmo tempo, pois tratar a literatura por uma dessas formas exclusivamente é não entender como a tradição literária de um país se articula com as circunstâncias gerais da vida social. O crítico afirma que “o essencial no tocante às relações da ficção com a sociedade é demonstrar (não indicar apenas) de que maneira as condições sociais são interiorizadas e se transformam

Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido, Editora Ouro sobre azul, 800 páginas, R$ 80,00.

em estrutura literária, que pode ser analisada em si mesma”. A literatura nacional – Logo no prefácio à 1° edição de Formação da Literatura Brasileira, A. Candido mostra que sua postura ante a literatura nacional não é de reverência cega nem de deslumbramento nacionalista. Para ele, nossa literatura é “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem nos jardins das Musas...”, e não saciaria as necessidades estéticas e intelectuais de um leitor culto, como seria o caso de um inglês, um francês ou um alemão que só conhecessem seus próprios autores. Ao brasileiro que só tenha lido o acervo nacional faltará "senso de proporções" e estará fadado, por mais inteligente e erudito que seja, ao provincianismo intelectual. Não obstante todas essas limitações comparativas, Candido defende que é ela – a literatura brasileira –, que nos exprime e “se não for amada, não revelará sua mensagem; e se não a amarmos, ninguém o fará por nós”. Afinal, a literatura não se constitui apenas como um “espelho” da cultura na qual está inserida, mas como um dos veículos mais importantes na construção desta própria cultura. • Continente junho 2007

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Poesia consistente

Jaci Bezerra prova, com Linha d'água, sua maestria em reacender formas fixas e dar vida a assuntos antigos e, ao mesmo tempo, a habilidade em experimentar e recriar

Ilustração: Ferreira

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medida que o tempo passa, a poesia de Jaci Bezerra vai ficando mais depurada e acentuadamente lírica. Do primeiro livro Romances até este Linha d’água, são quatro décadas de um trabalho poético sem esmorecimento, embora com algumas pausas para retomar o fôlego e publicar apenas o que de melhor escreveu. O único inédito de agora é Termo de Posse, em meio aos poemas selecionados e trabalhos completos de Linha d’água, se bem que não compareçam o citado Romances e Signo de Estrelas. O rigor aliado à paciência que sempre foram sua marca, continuam a refluir no seu lirismo, que acrescenta também, nos poemas mais recentes, um visível legado cabralino. E isto se torna possível pela via larga da rítmica, que faz da poesia um patrimônio de qualquer poeta, independentemente das numerosas classificações e enquadramentos que as histórias literárias de países e povos registram. A obra de Jaci Bezerra é configurada por alguns livros monotemáticos, a exemplo de A Onda Construída, de 1973, publicado no Quíntuplo, em parceria com outros poetas da geração 65. A estrutura dos quar-

tetos traz versos que se escandem a partir de 10 e seis sílabas, como neste trecho do poema que titula o livro: “Forma exata e precisa, tão precisa/ que pareça aguda,/ embora sejas lisa como a brisa/ que sopra e que não muda”. O movimento alternado dos versos lembra as ondas que o poeta contempla, no seu vaivém constante. E lembra também o corpo da mulher, sexualizado e semovente no ato amoroso, que ele canta comparando-o com as ondas, obsessivamente. O Livro de Olinda (1982) representa um salto temático-histórico em sua poética, onde mantém tons de ironia e fé, fúria e descrença, sem se afastar da paisagem e do passado olindenses, de vultos históricos ou de artistas que lá ainda se fazem presentes. Ele é composto de 30 poemas-quadros, como aquele intitulado “Lembrança antiga e fraterna que têm do Bar Savoy alguns poetas e escritores da geração 65, revelada e publicada pelo poeta e crítico César Leal nas páginas do Diario de Pernambuco e assim batizada pelo historiador e jornalista alagoano Tadeu Rocha, quer em notícia publicada em jornal do Recife, quer no guia de sua autoria, Roteiros do Recife, a


LITERATURA Fred Jordão/Divulgação

e mais sombrio/ e a cidade maurícia do teu ventre”. O esforço converge, aqui, para a visada do rio-mangue com suas águas imundas e homens raquíticos, envolvendo a mulher através do convite ao ato amoroso que se quer impuro e inusitado, mas que, como o mesmo manguerio, se desveste de toda sujeira circunstancial provocada pela fragilidade e o abandono. Linha d’água representa, de certo modo, um ajuste de contas com o tempo e a vida, a morte e a poesia. O poema “Linha d’água” é de Comarca da Memória (1993) e traduz o encontro do autor com a terra natal, o mar e a poesia: “Em Alagoas me achei, achando o mar,/ desde então o conservo em mim, aberto,/ porém nunca aprendi a soletrar/ a insone cadência dos seus metros (...) Aprendi com o mar a ser constante/ e a aceitar, sem pudor, as coisas frágeis;/ a fazer da inconstância dos instantes/ lembranças o mais possível perduráveis”’. O livro mais novo, Termo de Posse, inclui ainda a louvação da mulher, a fidelidade aos amigos e o tributo a outros poetas, vivos ou mortos. Os poetas a quem rende homenagem explícita têm a verve de um Manuel Bandeira, mas podem se chamar também Sosígenes Costa ou Arnaldo Tobias. Em “Dados para Elaboração de um Testamento Lírico” municia, em Jaci Bezerra, um lírico contemporâneo forma de indagação e inquisição, seus futuros críticos, além de questionar sua poesia no seu próprio tempo, partir da publicação da antologia Lírica, editada por Elói em vista dos ataques que às vezes sofrem os cultores do Editor, em 1967”. À parte a extensão do título, não se lirismo: “Fecho este livro e indago: que juiz/ entre o pode deixar de reconhecer certo toque de Carlos Pena que é real e o que invento// me julgará? Acaso me perFilho, um dos poetas preferidos de Jaci Bezerra, pela di/ ou me encontrei à sombra do meu tempo?”. É um compulsão lírico-subjetiva que ambos demonstram ao fato que, mesmo com a participação ativa na geração falar da solidão e da memória: “Não há nessa lembrança 65 até bem pouco e a liderança das Edições Pirata, espaço vago/ para angústia e lamúria:/ há só, se a infância principalmente na primeira metade da década de 1980, má nos causa estrago,/ o rancor afiando a nossa fúria.// E, Jaci Bezerra sempre se mostrou um poeta para quem a poesia está acima de tudo: acima das coisas às vezes, na alegria que transita/ no mundo e tidas como terrenas e vãs, pragmáticas e em nós se esquece,/ a solidão que nasce, prosaicas, contudo extremamente necessácresce aflita,/ rasura a vida e no olhar desarias em sua cotidianidade – sem esquecer, parece”. De 1985 é o Livro das Incandescênneste quesito, do campo vasto e impiedoso cias, onde envereda, em alguns instantes, por das relações humanas conturbadas e comtentativas de um expressionismo urbano petitivas. No âmbito de sua propensão lísem, no entanto, renegar o lirismo de base, rica inesquivável, da maestria em reacencomo em “Veneza Incendiada”, que contém der formas fixas e dar vida a assuntos antisonetos decassílabos publicados anteriorgos, da habilidade em experimentar e remente sob o título Livro do Recife: “Em ti criar metros de diversas origens, poucos amar o mangue, embora enfermo,/ buscanpoetas brasileiros se sairiam tão bem ou do um novo rio além do rio/ onde a canção teriam um trabalho tão consistente como o de amar chegue a seu termo./ E a urdir pei- Linha d'água, Jaci Bezerra, xes e bichos ficar entre/ um rio menos sujo CEPE, 300 páginas, R$ 20,00. dele. (Luiz Carlos Monteiro) • Continente junho 2007

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Divulgação

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Erickson Luna

Adeus, poetas A

ndo refletindo por que tenho sido chamada a dar depoimentos, falar sobre e em nome de. Será que estou na moda ou simplesmente envelhecendo? (envelhecendo mesmo, acho um saco esta história de boa idade). O fato é que ao receber o convite para escrever este artigo, sentime absolutamente convocada. Falar sobre os poetas pernambucanos Francisco Espinhara e Erikcson Luna, mortos recentemente, não é apenas um prazer ou expurgação da memória; é, antes de tudo, uma tarefa histórica e para mim das mais honrosas. Ambos confundem-se com a vida literária do Recife dos últimos 30 anos. Eles, cada um a seu modo, somamse à resistência cultural fora das regras, da academia e dos padrões estéticos do stablishment. Figurinhas carimbadas, mobilizavam ou simplesmente aglutinavam, em torno de si, poetas, artistas, boêmios e jovens. Seus Continente junho 2007

poemas são conhecidos pelo povo e são incessantemente publicados nos fanzines que circulam na cidade. Tinham tipos e personalidades diferentes. Chico era lírico, pessimista, circunspecto, duro e fraterno. Gostava de organizar e sistematizar as produções literárias locais; Luna, por sua vez, era sagaz, irônico, leve e humorado. Anárquico e avesso a processos organizacionais. Em comum: o gosto apurado para a arte, o senso crítico e a língua afiada, o total domínio do fazer literário, a absoluta simbiose entre a poesia e a vida, o que levou os dois a se transformarem em ícones de várias gerações. Portanto, morreram dois poetas que viveram como poetas. Encantaram-se dois boêmios. Puseram os pés noutra estrada os beatniks do Recife. Dois poemas, a meu ver, simbolizam esta relação ferrenha dos dois com a poesia-vida; entre o poeta e a urbe e suas mazelas. Não sabemos onde começa um e


Sennor Ramos

Francisco Espinhara

Puseram os pés noutra estrada os beatniks do Recife, Francisco Espinhara e Erickson Luna, símbolos da resistência cultural de sua geração Cida Pedrosa

onde termina a outra. O poeta e a cidade se confundem em dor, angústia e solidão; a poesia não é arte, é verbo encarnado: “Os fantoches da rua Sete / Seguem cegos na procissão. / A puta diurna da Palma / Traz uma venérea na alma / E uma cova diária na mão. / Da Ponte Velha a secular ferrugem / Reticente ao trajeto branco da nuvem / Come o estrado, o arco, o vergão. / Os poetas esquecidos no beco / Transam sangue a trago seco / Dormem como trapos sobre o chão. / Recife, musa, maldição / Cadela suja, traiçoeira / Seta certeira / Encantada cidade do cão”. (“Fantoches”, de Francisco Espinhara); “Choveu / e há lama em Santo Amaro / nas ruas / nas casas / vós contornais / eu não / a mim a lama não suja / em mim há lama não suja / eu sou a lama das chuvas / que caem em Santo Amaro / Vosso scotch / pode me sujar por dentro / cachaça não / vosso perfume / pode me sujar por fora / suor nunca / porque sou suor /

LITERATURA a cachaça e a lama / das chuvas que caem / em Santo Amaro das Salinas”. (“Canto de amor e lama I”, de Erickson Luna). Melhor exemplo de domínio do verso e da vida, impossível. Para alguns, esses poemas simbolizam a marginalidade em que viviam os autores e a vivência dos dois com o Movimento Marginal, se é que existe movimento marginal no Recife. Esses poemas antecedem o que se convencionou chamar hoje de “poesia marginal”. São dos idos de 1980, época em que pipocavam no país os movimentos libertários, e a ditadura acabava de abrir seus cárceres, momento em que um grupo de jovens, inclusive eu, capitaneados por Francisco Espinhara, Eduardo Martins, Raimundo de Moraes, Fátima Ferreira, Héctor Pellizzi, Manoel Constantino, Jorge Lopes, Lara, Valmir Jordão e França de Olinda, lançou, em 1980, a semente do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco (MEI-PE). São desse tempo esses poemas e esses dois poetas. Nada contra a poesia marginal, muito pelo contrário. Vide Ana Cristina César e Chacal, poetas que fizeram a cabeça da minha geração e que ainda hoje são visitados. Apenas não nos encaixamos nessa nomenclatura, assim como Erickson dizia também não se encaixar. Igual a nós, os poetas pernambucanos Miró da Muribeca, Silvana Menezes e Malungo também questionam o rótulo. Aqui vale um esclarecimento de origem histórica, para não enlouquecer os leitores: quando da criação do MEI-PE existiam discussões sobre a que tribo nós pertencíamos: marginais, periféricos, alternativos, undergrounds, vanguardeiros... Optamos por “independentes”, por entendermos conter a significação que queríamos dar: independência diante dos quartéis político-literários existentes e, principalmente, por ser um guarda-chuva para a pluralidade estética e o agrupamento de várias tendências. O movimento acabou. Hoje somos apenas os poetas da Geração 80. O fato de nós termos participado da Coletânea de Poesia Marginal Recife não torna o nosso discurso contraditório; nem todos os poetas publicados na Coletânea Invenção Recife fazem poesia de invenção. Nem todos os que foram publicados na Estação Recife são o “cânone literário local”. Da mesma forma, nem todos os que participaram daquela coletânea fazem “poesia marginal”. Os títulos das coletâneas foram sugeridos pelos editores da Fundação de Cultura Cidade do Recife e, para nós, esse foi um momento de aglutinação e atendimento às reivindicações dos poetas excluídos dos meios de publicação, divulgação e crítica. Era a vez de Continente junho 2007

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existencial avassalador, fazer inclusão socioliterámantinha uma relação ria, prezando a qualidade. irônica até com a morte, Pernambuco, sob esse como se evidencia na aspecto, é um Estado ímseguinte paródia: “Se é par. Aqui existem demarpra morrer de tédio / cações de gerações muito que eu morra mais cepróprias, que não acomdo”. O Chico, traquejapanham os critérios naciodo no fazer poético, um nais. A Geração 65 é uma lírico-pessimista por nainvenção nossa. Não existureza, e que na década te geração similar no País; de 1990 revelou-se um o MEI-PE, apesar de ter ótimo contista, manteve lançado suas raízes para a durante toda a vida uma federação, acabou vinganrelação íntima com a do com grande força aqui; morte, musa maior da na década de 1990 foi ressua obra; nos recitais de suscitada a poesia margirua, mesmo com a innal como expressão local, desejada das gentes em enquanto ela existiu no eiseu encalço, costumava xo Rio-São Paulo na dédizer em o “Epitáfio n° cada de 1970. Acho que 529”: “Não vou a enisso merece um aprofunterros. / Que o morto / damento posterior. Se guarde no que é seu. O que precisamos re/ Se incorro em erro, / gistrar é que esses escritoPerdoem-me: irei ao res, demarcadores da geomeu”. Será a morte a grafia urbano-poética da consagração dos hocidade do Recife, indemens? Ouso dizer que pendentemente de rótunão. Antes de morrer, los, precisam ser ouvidos e lidos. Parte da crítica Mercado da Boa Vista, no Pátio de Santa Cruz, reduto dos poetas independentes eles receberam a maior dádiva concedida a um que é feita sobre a sua poesia é pautada em um total desconhe cimento de sua poeta: eram conhecidos pelo povo da sua aldeia e resarte. Claro que entre o grande número de aspirantes a peitados por seus pares de poesia. Não se espantem com as oscilações deste texto, que poetas, muitos fazem parte de um fenômeno sociológico de adequação da cultura ao espaço público e à passa do pessoal ao coletivo com grande facilidade. Para cidadania. Porém, de preconceito ainda é feita a crítica mim, não é simples falar desses dois. Pernambuco perda atualidade, e a estética de um poeta como Miró da deu dois grandes poetas, eu perdi neste ano dois amigos. Muribeca continua causando espanto e passando ao Chico partiu no dia 13 de fevereiro, aos 47 anos, e Luna, largo dos que não conseguem enxergar o quanto é boa aos 49, no dia 19 de abril. Partiram na madrugada, em sua poesia. Quem já ouviu falar da poetisa recifense meio às chuvas que banham o Recife por esses meses. Aline Andrade? Busquem. É uma experiência literária Luna estava certo ao dizer: “a noite morre mais quando chuvosa”. Desejo que tenham dado de cara com o deus singular. Meus amigos que partiram tinham muito claro os de Chico: “Um deus melhor / Não este deus azul / Este percalços causados pelas “torres de marfim”, ou de bar- deus que as mãos cálidas clamam / Este deus senecto, ro, como diriam, pois essas torres, para eles, eram cele- rendez-vous. / ...um deus diferente, menor / Um deus com a iros de mediocridade, em muitos casos, disfarçados de cara suja de poeira / ...um deus humano / Como deus superioridade estilística. O Erickson, compositor de outro nenhum”. • blues, dono de uma poesia elaboradíssima e de conteúdo (O acervo poético dos dois está em www.interpoetica .com) Continente junho 2007


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Seria preciso não dizer. E isto fosse o mais fundo, O mais longe orgasmo que pranteia. A terra gerando, e tarde, Tão tarde que amanhecesse. Subir, espocar e descer, E, no furor da alegria, Abrir-se também como flor A velha úlcera encarniçada, Uma luz que deliqüescesse. Ainda sem dizer, Adorar o azinhavre, a ferrugem, A maçã resplandecente no esterco. Isto fosse a paz, e seria A mais tácita das guerras.

II. Finalmente o riso verdadeiro, Que é tão puro e desespera, Mais agreste do que o sexo. Rosto todo borrado de deleite, Padecendo, se quebrando, Os dentes metidos na acidez. E o espasmo, finalmente, Algo de suor e gentil Que triunfa no despertar para o chão, Ruivo esplendor de cabelos. Não convém entender, Está entendido - a alma lavada, Pagas as dívidas e a dívida. Canta a boca injuriosa, jubilosa, Canta mais, canta sempre, grita.

Poemas de

I.

Mariana Ianelli

POESIA

III. Ares de madrugada Toquem os ombros, os pés. Sobre os ombros, o que pese, Pese com afeto, por alvorecer. Sob os pés, por onde caminhem, (Ponte, lama, ponta de lança) Seja caminho de alba também. Trançados o linho e o aço, O ventre se deite sobre eles. Com o estalo dos ossos, A fratura dos ossos, Amoroso seja, e enlouqueça. De pálpebras quase cerradas, No completo exercício da fé. Entranhas ao revés.

IV. Despertar, porém leve, Como o geômetra que sonha, E cada gesto ser perfeito Sendo simples desatenção. Sem rupturas, tudo rompido, Mais nada é absurdo. Por um momento estático No pulo, por um momento O júbilo mordendo o músculo. Inoportunamente feliz Na hora da bílis e no luto. De uma coragem tão franca E tão áspero espanto, Despir a cartilagem Para chegar à cor do crepúsculo.

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Formada em Jornalismo, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, Mariana é autora dos livros Trajetória de Antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003) e Fazer Silêncio (2005), todos pela editora Iluminuras. Continente junho 2007

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PROSA

Sai da chuva, José!

Nelson de Oliveira

A

h, José, que é que você faz aí parado? Sai da chuva, José! Larga essa tainha e corre pra varanda. Ah, José, a vida não é só ganhar ou perder. Você sabe disso, sempre soube. O mundo não é Las Vegas, São Paulo não é o Grande Cassino. Larga esse peixe e vem pra dentro, José. Quê?! Que foi que você disse? O peixe falou com você? A tainha? Ah, José, eu bem que te avisei, não avisei? Eu falei: “Zé, é melhor você não sair nessa chuva.” Mas você não me deu ouvidos. Você nunca me escuta, José! Desembucha! Que foi que a tainha te disse? Quê?! Ela disse isso? Tem certeza? Você prestou bastante atenção? Não, José. Não pode ser. Nosso plano de governo é perfeito, redondo, sem falhas. Em todas as áreas. Agora não é hora de mudar nada. Continente junho 2007

O que foi prometido foi prometido. E o eleitorado? Que justificativa a gente ia dar? A tainha? Deixa disso, José. A tainha?! Sai da chuva, sai. Deixa tudo aí, a vara, as iscas, devolve a tainha ao rio. Ah, José, tudo era tão mais fácil quando você não pescava. Quando você apenas colecionava chaveiros. Álbuns de figurinhas. Miniaturas de carros da fórmula um. Selos. Como a vida era mais tranqüila. Você não pescava nem tratava de política com os peixes. Você não ficava a tarde toda na margem dos rios, nos barrancos, debaixo de chuva. As tainhas não sugeriam mudanças na nossa estratégia. Os robalos não opinavam sobre a nossa assessoria de imprensa. Os pirarucus não metiam o bedelho nas nossas contas de campanha.


PROSA Ah, José, sai da chuva, sai, você está ensopado. Solta a pobre da tainha, desfaz esse olhar de peixe morto e volta pra dentro. A festa ainda não acabou. Olha só a alegria do povo. A farra está só começando. Eu já preparei o teu discurso. Já escolhi a tua melhor roupa. Deixa o peixe pra lá. Não, José. Pára! Que é que você tá fazendo? Não tira a camisa. Sai dessa chuva, não fica nesse vento. Assim você vai pegar uma pneumonia. Não tira o sapato, não tira a calça. Aonde você vai pelado? Volta aqui, José! Ah, José, se eu soubesse que a vitória mexeria tanto assim com você… Agora a vida não voltará a ser como antes? Nunca mais? Volta aqui, José. A água deve estar fria demais, isso não é bom pra tua saúde. Olha a bronquite. Solta o peixe e volta pra casa. Quê? Que foi que ele disse? A vida não tem segundo turno? Eu sei, José, ele está certo, a vida não tem segundo turno. Então sai desse rio, não abandona a gente justo agora. A festa já vai começar. Volta! Que é que a gente vai dizer pra imprensa, pro partido, pro povo? Como é que a gente vai justificar isso pra Justiça Eleitoral? Não, José, não vou levar a tainha comigo. Não vou mostrar o peixe na tevê, não vou pedir a ele que explique tudo isso em rede nacional. Eu sei, José, ele está certo, a vida não tem segundo turno. Mas o rio não tem três margens, não adianta nadar até o horizonte. Veste a roupa, volta pra casa, José. Eu sei, eu sei, os fogos de artifício assustam. As bombas, os rojões, os buscapés. Mas você queria o quê? Moema te adora, Pinheiros não pode viver sem você, Higienópolis em peso está te esperando com a nossa bandeira nas janelas, nos carros. Ah, José, que é que você faz aí parado? Sai da chuva, José! Sai da água, larga essa tainha e corre pra varanda. Quê?! Que foi que você disse?

O peixe não quer que você saia do rio? Por que você dá tanta atenção a essas criaturas, José? Que é que elas entendem de política, hein? Me diga?! Por acaso foi um lambari que fez a tua popularidade subir nos bairros da periferia? Foi uma truta que na hora agá convenceu os indecisos a votar em você? Foi um peixe-boi que descobriu a amante do teu maior adversário? Ah, José, tudo era tão mais fácil quando você não pescava. Quando você apenas colecionava revistas de fotonovelas. Amuletos africanos. Miniaturas de monumentos famosos. Estetoscópios. Como a vida era mais tranqüila. Você não pescava nem dividia com os peixes os detalhes da tua intimidade. Vamos, homem! Coragem! Não se deixe abater pelos fogos da vitória! A vida não é só ganhar ou perder. Você sabe disso, sempre soube. Sai do rio, veste a tua roupa e volta pra varanda. O verdadeiro oráculo são as urnas, não os peixes. A favor, contra, nulos, em branco, os votos não mentem. Melhor do que as bolas de cristal são as cédulas eleitorais. É verdade ou não é? É ou não é?! Pergunta ao teu amigo escamoso, pergunta! Eu não disse! Até ele concorda comigo. Acorda desse sonho molhado, José. Abre os olhos e volta pra casa. Vencer não é vergonha. Eu sei, agora você vai ter que dizer “não” pra todo mundo. Agora você vai ter que brigar, se esconder, fingir que não conhece ninguém. Eu sei, os favores, as promessas, as dívidas… Mas quem não deve não tem, José. Quem não deve não tem. Viu só? Até a tainha concorda comigo! Ah, José, tudo era tão mais fácil quando você não pescava. Quando você apenas colecionava camisas de jogadores. Macaquinhos de pelúcia. Miniaturas de estrelas do cinema. Elepês. Como a vida era mais tranqüila. Você não pescava nem dividia com os peixes as tuas angústias mais profundas... •

Nelson de Oliveira é escritor e ensaísta, autor de Algum Lugar em Parte Alguma, O Oitavo Dia da Semana, entre outros livros. Continente junho 2007

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AGENDA/LIVROS

Bandeira tradutor Encontrar em versos num outro idioma perfeitas descrições de sentimentos ainda informes no seu pensamento e linguagem, em estágio ainda de sensação difusa, é o que, segundo o poeta Manuel Bandeira, o impulsionava à tradução: “Só traduzo bem os poemas que gostaria de ter feito, isto é, os que exprimem coisas que já estavam em mim, mas informuladas”. Nesta seleção de poemas traduzidos por Bandeira, figuram nomes como García Lorca, Emily Dickinson, Rilke, Hölderlin, Baudelaire, Goethe, entre outros. Também na tradução, um mestre da versificação.

Olinda por Freyre Reedição de livro de Gilberto Freyre sobre Olinda traz atualização

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hega às livrarias a sexta edição de Olinda: 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira, obra de Gilberto Freyre, de 1939, contando com apresentação e textos de atualização de Edson Nery da Fonseca. Traz ainda as ilustrações do pintor Manoel Bandeira, o mapa turístico da artista plástica Rosa Maria e os desenhos e capitulares de Luís Jardim. Gilberto Freyre já tinha escrito anteriormente um Guia Prático para o Recife que serviu, inclusive, de inspiração a um poema de Carlos Pena Filho. Este de Olinda inicia-se com a origem do nome Olinda, que aborda desde a especulação bastante conhecida e atribuída a um criado de Duarte Coelho e depois ao próprio Duarte, para abarcar também monumentos, igrejas, conventos e prédios antigos da cidade. O mar comparece com sua beleza azul-verde e as jangadas, barcaças e canoas que o recortam. O guia não deixa de falar sobre a forma como vivem os moradores de Olinda, seus trabalhos, hábitos, costumes e lazer. Sobre a luz de Olinda, Freyre escreve este trecho: “É ela que dá às águas do mar que se vêem do alto de qualquer dos oito montes de Olinda e aos montes da cidade que se vêem do alto-mar, vindo de vapor da Europa ou dos Estados Unidos, do Norte ou do Sul do Brasil, a riqueza extraordinária de cor que encantou o alemão Guenther e já tinha encantado o pernambucano Joaquim Nabuco”. Passagens como esta se sucedem no livro, tanto reafirmando o estilo sinuoso e elíptico do autor quanto a sua forte sensibilidade poética. A prosa poética impregna o guia de Olinda que se torna, assim, de agradável leitura, como a cidade e o leitor bem o merecem. E não só para quem é de Pernambuco, mas talvez muito mais para quem venha de outros locais ou cidades. (LCM) Olinda – 2º Guia Prático, Histórico e Sentimental de Cidade Brasileira, Gilberto Freyre, 6ª edição, Global Editora, 224 páginas, R$ 69,00

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Alguns Poemas Traduzidos, Manuel Bandeira, José Olympio Editora, 84 páginas, R$ 20,00.

O Homem e o cão Composto de 26 narrativas, O Homem Dentro de um Cão é o segundo livro de contos do jornalista Fernando Portela. Ele transita em diversos ramos da experiência humana e constrói histórias para todos os gostos, desde literatura policial a descrições de fatos e situações do sabor mais prosaico. Alguns tipos humanos que apresenta removem-se entre o banal e o mirabolante, entre o pirotécnico e o corriqueiro. Seus diálogos ocorrem geralmente entremeados de aspas, resultando, talvez sem que ele o queira, num maneirismo formal e estilístico. (LCM) O Homem Dentro de um Cão, Fernando Portela, Editora Terceiro Nome, 160 páginas, R$ 29,00.

Memórias etílicas

“É mais fácil parar de beber”, diz-nos o jornalista americano J.R. Moehringer ao final de seu relato autobiográfico, convivendo entre as garrafas e os boêmios de um agitado pub em Long Island. Da infância dura, em parte por causa do pai ausente, à vida adulta, bem-realizada, Moehringer conta como o local, efervescente nos anos 70, tornou-se seu refúgio, assim como seus freqüentadores – homens tão diferentes como poetas, policiais, soldados e apostadores – parte de sua família. É, acima de tudo, uma história comovente e bem-humorada. Leitura recomendada à base de um bom drinque. (Luiz Arrais) Bar Doce Lar, J.R. Moehringer, Jorge Zahar Editor, 340 páginas, R$ 89,00.

Escombros do Passado

Vencedor do prestigiado Booker Prize 2005, O Mar, romance do escritor irlandês John Banville, lida com vida e morte, dor e paixão. Aborda famílias e tragédias sob narração pontuada por metáforas que fluem como ondas da memória. O historiador da arte, Max Morden, após 50 anos, volta à cidade natal, à beira-mar, e percorre os lugares que ficaram marcados em sua vida. Em sua narrativa não há presente, ou mesmo um tempo central no presente, mas vários passados que se alternam, mudando de um momento para outro. (LA) O Mar, John Banville, Editora Nova Fronteira, 224 páginas, R$ 30,00.


Intimidades DVD com filmes de Fernando Sabino mostra escritores em momentos descontraídos

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arlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Pedro Nava, José Américo de Almeida, Guimarães Rosa e Afonso Arinos de Mello Franco, são os escritores enfocados neste 10 curtas de Fernando Sabino e David Neves, compilados num DVD. Com 10 minutos de duração, cada um, trazem alguns flagrantes deliciosos, como, por exemplo, um surpreendente Drummond brincando de se esconder da câmara entre as pilastras do Ministério da Educação. A intimidade de Manuel Bandeira, de pijama, fazendo café, escrevendo à máquina, ou, na rua, comprando leite, caminhando pela Avenida Rio Branco e, de repente, ao encontrar um conhecido, abrindo o seu sorriso dentuço. Érico Veríssimo fazendo mímica de samurai e mágicas para os netos. O mineiro Pedro Nava, gabando-se de conhecer profundamente o Rio, por ter sido médico de assisEncontro Marcado tência, que era como se chamava ambucom o Cinema de lância antigamente: “Ia-se ao mangue, à Fernando Sabino e David Neves, zona, palacetes, morro acima. Éramos Biscoito Fino, bem tratados mesmo nas áreas mais peR$ 42,90. rigosas”, conta ele. Ou, ainda, Vinicius de Moraes acompanhando-se ao violão em sambas que compôs sozinho (letra e música) como “Quando tu passas por mim”. Um documento inestimável e saboroso, principalmente para quem gosta de literatura. (Marco Polo)

História em ficção No final do século 19, George Edalji, filho de um parse (descendente de antigo grupo de persas zoroastristas que emigrou e se estabeleceu na Índia), depois de passar na juventude por um processo de calúnias através de cartas anônimas, já adulto e formado em advocacia, é acusado e condenado por uma série de mutilações provocadas em cavalos, num lugarejo da Inglaterra onde mora. É então que entra em cena Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, para provar que George é inocente. Embora pareça, não é um livro de ficção policial, embora retenha alguns traços desta, permeado de discussões sobre preconceito racial e espiritismo. Trata-se da recriação ficionalizada de um fato verídico que Julian Barnes, o mais tradicionalista dos novos grandes nomes da literatura inglesa, transformou num ótimo romance. A ênfase é dada à psicologia dos dois principais personagens. Georges, um sujeito sem imaginação, cumpridor e admirador das leis. Arthur, vigoroso mental e fisicamente, ardoroso defensor dos ideais de honra e virtude. (MP) Arthur & George, Julian Barnes, Editora Rocco, 448 páginas, R$ 53,50.

AGENDA/LIVROS Poesia e bom humor

Paulo Leminski conseguiu com sua poesia uma popularidade para além do meio literário por causa do que os mais sisudos consideram suas “facilidades”: poemas curtos, trocadilhos, frases espirituosas e, sobretudo, bom humor. A jovem poetisa gaúcha Angélica Freitas escolheu o mesmo caminho, embora com personalidade própria, como mostra nos versos: “As bruxas de bruxelas/ batem panelas/ pra espantar as baratas tontas/ que vivem nas pontas/ dos sapatos delas”. Ou estes outros: “tenho pavor de festinhas/ aparo as arestas da farsa/ visto minha roupa nova/ mas hoje não saio de casa”. Rilke Shake, Angélica Freitas, CosacNaify, 72 páginas, R$ 26,00.

Epistemologia

Tendo como subtítulo “Uma Introdução ao Tractatus de Wittgenstein”, este livro da doutora em filosofia pela USP Silvia Faustino, analisa o fato de o autor alemão ter suprimido de seu trabalho as questões epistemológicas, ao mesmo tempo em que recusa a definição dada pelo filósofo de que “a teoria do conhecimento é a filosofia da psicologia”. Oferecendo novas chaves para enfrentar o desafio lançado por Wittgenstein, ao traçar os limites do pensamento pelo limites da linguagem, Silvia argumenta que é no domínio da aplicação lógica que os problemas epistemológicos do Tractatus podem ser elaborados. A Experiência Indizível, Silvia Faustino, Editora Unesp, 216 páginas, R$ 34,00.

Pintor engajado O subtítulo “Uma Mulher de Negócios, um Almoço no Parque e um Bar” esclarece quais são as obras de Manet que vão ser particularmente analisadas para justificar o texto do crítico de arte Luiz Renato Martins: são eles Olímpia, Almoço na Relva e Um Bar do Folies Bergères. O autor contesta a visão dos formalistas que viam o pintor francês como um artista ligado à arte pela arte para, ao contrário, numa visão materialista, mostrar como Manet estava forte e criticamente marcado pelo seu tempo e sociedade. Com argumentação inteligente e clara, o crítico impõe seu ponto de vista. Manet, Luiz Renato Martins, Jorge Zahar Editor, 88 páginas, R$ 21,00.

História no cinema Revolução Francesa e Revolução Russa, ascensão e queda do Império Romano e do Terceiro Reich, questões culturais, sociais e religiosas, golpes de Estado são temas históricos retomados nos poucos mais de 100 anos do cinema. O filme, como campo de discussão e pesquisa de uma determinada época e também de elaboração imaginária de certo período cultural e social, é enfocado neste livro através de pesquisadores da área de história e do audiovisual. Filmes de ficção, documentários, cinejornais e até mesmo novelas e minisséries são abordados, procurando criar uma ponte reflexiva entre passado e presente. História e Cinema, vários autores, Alameda Casa Editorial, 392 páginas, R$ 54,00. Continente junho 2007

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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo

Cultura e turismo Alberto da Cunha Melo

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documento Cultura é Sobrevivência, que elaborei, enquanto diretor de Assuntos Culturais da Fundarpe, quando secretário de Turismo, Cultura e Esportes o escritor Maximiano Campos, além de tratar do conceito de “cultura” para operacionalizar as ações daquela secretaria, enfatizava o valor da arte, do artesanato e do folclore para economia dos países. Tudo estava harmonizado com o que Maximiano costumava ratificar, exemplificando com Agatha Christie, autora britânica, que escreveu 80 romances policiais e coleções de pequenas histórias, 19 peças e seis romances sob o nome de Mary Westmacott. Quantos, na cadeia econômica, para produção de um livro ou de uma peça teatral não foram empregados para atender a essa fonte de criação? Era mais ou menos assim que Maximiano tentava ratificar o argumento de que cultura é sobrevivência não só de um povo, enquanto nação, mas sobrevivência econômica enquanto produto cultural. Essa profissão de fé, numa época em que apenas engatinhávamos em direção a uma tendência mundial que vem fazendo do turismo cultural uma verdadeira indústria, ganhará fôlego em setembro deste ano, quando ocorrerá a Fliporto – Festa Internacional de Porto de Galinhas, cujo curador, Antônio Campos, demonstra ter levado à práxis o que ensinava Maximiano, seu pai. Sempre fui contra eventos, por acreditar que pouco restava dos encontros e reuniões, pois só acredito em saber que é construído na solidão da leitura de livros. Mas é inegável que iniciativas como essas produzem uma formidável fonte de divisas para o nosso país. Antônio me informa que essa terceira versão da Fliporto internacionalizará a sua ação, promovendo um encontro inusitado de escritores e artistas latino-americanos em terras pernambucanas. Nas fronteiras das tendências literárias do realismo mágico, do existencialismo e mais outras impossíveis de serem rotuladas, como o caso da nossa Clarice Lispector, que será uma das homenageadas lembrando os 30 anos de sua morte, há muito que se aprender sobre o real imaginário da Latino-América. Já estão confirmadas as presenças de Fabian Casas, da Argentina, Fernando Rendón e Amparo Continente junho 2007

Osório, da Colômbia, Pedro Juan Gutierrez, de Cuba, e Odi González, do Peru. Mas Antônio promete novas surpresas. A praia de Porto de Galinhas é um balneário já inserido nos mapas turísticos, guarda uma história secular, onde se inserem fatos ligados ao tráfico de escravos. É relevante que a América Latina esteja aí reunida para pensar, com todas as letras, a realidade dos países periféricos e aferir a grandeza de sua arte para democratizá-la fraternalmente. Excepcionalmente, em homenagem à iniciativa, cedo à sugestão de minha mulher, Cláudia Cordeiro, a publicação de um poema meu inédito em livro, o “Cancioneiro para o Terceiro Mundo”, escrito na década de 70, quando a classificação de países de primeiro, segundo e terceiro mundo ainda vigorava, antes, portanto, da queda dos países socialistas do Leste Europeu.


MARCO ZERO

Cancioneiro para o Terceiro Mundo Os povos mascates vendem as sobras do céu, das secas, dos saques e das tempestades. Vendem o lixo dourado de todos os suis nas esquinas dos cegos; e, quando os cargueiros desovam, na ferrugem dos portos, sem pacotes de sonho, os povos mascates já não vendem mais nada, compram viagens para dentro de suas velhas e provisórias derrotas e, depois, voltam a vender sapatos, pulseiras, colares e esperanças de plástico. Na vida malfeita, ainda assim, não há vagas, falta o que fazer; por isso, as legiões de caçadores de calçada (entre a loto e o assalto) voltam sempre a crescer. No mundo incompleto, ainda assim, aumentam-se os desertos, e um pedaço de asa apodrecida espedaça-se entre pássaros negros e os tais aventurados, os mansos. Dezesseis por cento de todos desfrutam setenta por cento de tudo. Estes números falam do trigo

e suas tempestades; falam do milho e suas multidões. Os cereais não sabem que dividem a Terra e curvam, solícitos, para todos os ventos os seus pendões. Os minérios não sabem que separam os homens e moram mudos no mundo imutável, como os sabres, as colheres e as agulhas, como o certo e o errado no fundo neutro do mundo. Nossos sábios são poucos e sugam com seus bicos franceses, e catarrentas gargantas saxônicas, as luzes opacas de estranhos poentes, e se exaltam diante de títulos e túmulos, tal os filhos tardos e abortivos de Zaratrusta; enquanto nas salas de noturnas aulas adormecem de sono os que irão herdar, de manhã a manhã, as douradas correntes do seu amanhecer. Aprendemos a ler a formação dos formigueiros no leito pétreo dos rios, anunciando mais cinza na pele das folhas,

sob a eternidade do sol; e aprendemos a ler na pauta musical dos caborés, corujas e bacuraus o anúncio comercial de nuvens inchadas navegando silenciosas sobre nós; e aprendemos a ler no canto das cigarras o desastre que a terra, nossa única escola, nos prepara; e aprendemos a ler, nos cadernos dos rostos mais feios, quando a lua, os celeiros e os corações estão cheios. Plantamos para longe o açúcar mais branco, a banana mais cheia, o mais puro café. Aprendemos a plantar cedo, para muito longe. Os planos estão satisfeitos mas os homens choram em suas choupanas de verdade. Fizemos justiça ao metal Que mereceu um visto para longe; à planta mais eugênica, demos-lhe uma embalagem de luxo e um passaporte para a França. Só os homens ficaram com os filhos enfermos e a terra longa e alheia para, sem fuga e sem amor, continuar. •

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MEMÓRIA

A única imagem conhecida de Marietta Baderna, então primeira bailarina do Scalla. Litografia a partir de desenho de Giuliani, ca. 1846

A Bailarina e o Dicionário A incrível história da bailarina clássica cujo nome virou sinônimo de desordem e subversão Homero Fonseca

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stá no Houaiss: “baderna s.f. B. pej. 1 situação em que reina a desordem; confusão, bagunça”. Sobre a origem da palavra, diz estar no antropônimo Marietta Baderna, dançarina italiana que esteve no Rio em 1851, “causando certo frisson ”, reproduzindo informação do pioneiro Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Antonio Joaquim de Macedo Soares, de 1889. Durante a ditadura militar, a palavrinha foi estigmatizada, com seu derivado “baderneiro” servindo para qualificar oposicionistas, líderes estudantis e militantes sindicais.

Coleção Instituto Ricardo Brennand/Reprodução

Reprodução/Acervo da New York Public Library

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MEMÓRIA Otto Lara Resende perguntara, pelo Globo, em 1987, o que diabos a moça teria feito para figurar nos dicionários com tal acepção. Moacir Werneck de Castro respondera, dias depois, pelo Jornal do Brasil, inventando-lhe uma biografia mirabolante. O escritor Silverio Corvisieri, compatriota da indigitada, resolveu pesquisar a sério. Do seu trabalho, publicado em livro – Maria Baderna – A Bailarina de Dois Mundos – emerge uma personagem fascinante e também um exemplo curioso do que o tempo e as circunstâncias fazem com uma palavra. Maria Baderna nasceu em Castel San Giovanni, no Piemonte, em 1828. Seu pai, o médico Antonio Baderna, era um liberal ligado aos ideais de Giuseppe Mazzini, líder da resistência contra a ocupação austríaca do norte da Itália. Aos 12 anos de idade, revelando excepcional talento para a dança clássica, Marietta foi levada pelo pai para Milão, onde ingressou no curso do célebre professor Carlo Blasis, responsável pela formação de nove entre 10 estrelas do balé europeu da época. Sua carreira foi fulminante. Estreou no Scala em 1843, com sucesso instantâneo de crítica e público e em poucos anos tornou-se, quase menina, a primeira bailarina do famosíssimo teatro lírico. Apresentou-se em Londres e Trieste, arrancando aplausos das platéias e suspiros dos apaixonados. Inteligente, culta, impetuosa, “vivia – narra Corvisieri – dias de intensa paixão,

dividindo-se entre o engajamento político, o teatro e um bando de cortejadores”. Então vieram as revoltas populares de 1848, a derrota dos nacionalistas e o recrudescimento da repressão austríaca. Perseguidos, Marietta e o pai abandonaram o país natal, embarcando para o Brasil no bergantim “Andréa Doria”, com 55 artistas de uma companhia de canto e outra de dança. No Rio, a companhia italiana fora contratada para apresentações no Teatro Imperial de São Pedro d'Alcântara, cujo diretor era o polêmico José Manuel Araújo. Marietta estreou com o balé Il Ballo delle Fate (O Balé das Fadas), do coreógrafo Giuseppe Villa, na noite de 29 de setembro de 1849. Fez furor. O Brasil praticamente desconhecia a dança clássica. Na época, existiam grupos de partidários das divas do canto lírico. Logo se formaram também de adeptos fervorosos de Marietta. O jornal Correio Mercantil a classificou como “a rainha das fadas”. Em poucos meses, Marietta tornou-se uma espécie de divindade pagã, musa da juventude romântica, admirada pelos intelectuais, desejada pelos aristocratas. O Correio Mercantil registrou: daquele momento em diante, “baderna significaria dança elegante; badernar, dançar elegantemente; badernador, apaixonado profissional de dança baderna; badernistas, amantes sensatos; baderneiros, amantes fanáticos”. O sucesso repercutia O Teatro de Santa Isabel (à esquerda), à época em que Baderna aqui se apresentou. Cromolitografia de Emil Bauch, ca. 1852

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MEMÓRIA Teatro La Scala/Divulgação

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O imponente Teatro La Scala, de Milão, onde Marietta Baderna foi primeira bailarina aos 15 anos de idade

nos jornais especializados da Itália e da Europa. Depois de haver atuado em Giselle, Bailado Brazil, Il Satiro, La Conquista de Málaga, estrelou Ballo in Maschera, quando a Marmota Fluminense, influente revista de Francisco de Paula Brito, também editor e livreiro, a tratou como “esta elegante jovem que provoca delirante agitação nos bancos da platéia com os movimentos arriscados e passos difíceis com os quais arranca gritos de bravo, palmas e algumas vezes até um Deus te abençoe, feiticeira!” Gente do calibre de Gonçalves Dias, José de Alencar e José Maria Paranhos (futuro Barão do Rio Branco) derramava-se em elogios à “sílfide etérea” que deflagrou uma “febre dançante” no Rio oitocentista. Em janeiro de 1850, quando estreou com sucesso o balé La Discepola dell'Amore, estourou devastadora epidemia de febre amarela no Rio. Durante quatro meses, os espetáculos foram suspensos. Seu pai caiu doente e morreu em uma semana. Ela contraiu a doença, esteve entre a vida e a morte, mas sobreviveu. Nada menos de 80% dos artistas que vieram com ela da Itália sucumbiram. As mortes no Rio, que tinha 240 mil habitantes, chegaram a 16 mil. Ela se recuperou da moléstia, mas a partir daí sua vida daria uma guinada. Com a perda do pai, passou a ter uma ligação mais estreita com o namorado, o bailarino francês Jean Tupinet, com quem passou a viver junto. Era um escândalo para aquela soContinente junho 2007

ciedade tropical-vitoriana. Sua amiga, a soprano Augusta Candiani, largou o marido e foi viver com outro – mais um escândalo. A fama das artistas italianas tornava-se cada vez mais negativa. Ainda por cima, Marietta era aplicada devota do absinto e, cúmulo dos cúmulos, freqüentava, na companhia de jovens intelectuais pálidos e barbudos, as praias e a Praça da Carioca, onde negros e mestiços se exibiam em danças consideradas lascivas e imorais. Marietta obrava e andava para os fofoqueiros de plantão. Paralelamente, estouram escândalos de corrupção na administração do Teatro de São Pedro d'Alcântara, provocando a criação de uma CPI no Congresso, a demissão do diretor José Manuel Araújo, briga com e entre artistas, disputas dos “partidos”, repercussão na imprensa, o diabo, culminando com o fechamento temporário do teatro. Ela se decidiu por uma temporada no Recife, onde havia sido inaugurado “um esplêndido teatro lírico”, para onde Augusta Candiani e o maestro Gianninni já tinham vindo. Escândalo do Recife – Marietta chegou ao Recife em princípios de 1851 e apresentou-se no Teatro de Santa Isabel, inaugurado em maio do ano anterior. Repetiram-se as cenas de Milão, Triste, Londres, Rio: aplausos, flores, poemas de admiradores. Um desses admi-


MEMÓRIA radores publicou um “a pedido” no Diario de Pernambuco (28 de janeiro), elogiando a sedutora exibição da bailarina italiana no pas-des-deux do Lago delle Fate e perguntando, provocadoramente, por que razão alguns se obstinavam em manter fora dos palcos “os nossos fados, lunduns e baianos, que são danças brasileiras”; “por que razão estas danças são rotuladas como indecentes e imorais”? (...) “Qual o passo, qual o bamboleio, o rebolado do lascivo lundum que poderia ser comparado aos trechos em que a delicada Baderna, leve como uma sílfide, abre as pernas como se desejasse se dividir em duas”? Fiel ao seu temperamento, Marietta aceitou o desafio. No mês seguinte (fevereiro), apresentou no palco do aristocrático Santa Isabel o espetáculo Lundum d'Amarroa. O público se dividiu violentamente: na platéia, os estudantes de Direito aplaudiram aos gritos de bravo! Nos camarotes, a elite açucareira vaiava e gritava apupos. Por pouco não se chegou às vias de fato. Em maio, ela repetiu a dose com o balé Negri, de título inequívoco. Novas confusões na platéia. A palavra baderna começava a ganhar um novo significado. Nos jornais pernambucanos, entretanto, multiplicavam-se as poesias de fãs ardorosos. De volta ao Rio, Marietta torna a ocupar o centro das atenções. Vivia entre apresentações empolgantes, idas aos bailes e salões chiques, corridas de cavalo, a livraria de Paula Brito, passeios ao Corcovado, assistindo às danças dos negros e ostentando com desenvoltura sua relação livre com Tupinet. Novas companhias italianas e francesas aportaram no Rio e logo os costumes desinibidos dos artistas provocaram a reação irada dos conservadores. Seu porta-voz, o Jornal do Commercio, desencadeou uma violenta campanha moralista, denunciando “a indecência das danças” e até identificando as companhias como “uma escola de “Qual o passo, qual o prostituição”. Marietta é citada nominalmente bamboleio, o rebolado como “vivendo uma vido lascivo lundum que da desregrada”. poderia ser comparado Fatores diversos, aos trechos em que a entre os quais a camdelicada Baderna, leve panha difamatória, levaram os espetáculos como uma sílfide, abre de balé a serem secunas pernas como se darizados, privilegiandesejasse se dividir em do-se as óperas, mais duas?” recatadas. A dança se

desloca para teatros menores e para o final dos espetáculos. Crise econômica, nova epidemia de febre amarela, incêndio do Teatro de São Pedro trazem Marietta de volta ao Recife, em 1854, onde se apresentou por uma temporada ao lado do partner e novo namorado, o ator e dançarino pernambucano João Jacinto Ribeiro. Novamente no Rio, sua carreira começa a oscilar. Sem contrato, fica meses sem se apresentar nos palcos, até desaparecer completamente da cena teatral da cidade. Durante algum tempo, seus admiradores provocavam tumulto nos teatros, exigindo sua presença. O termo baderna ganhou definitivamente, ao que parece, sua concepção moderna. Ela ainda tentaria uma minitemporada mal-sucedida em Bordeaux, na França, na qual, ao que consta, deixou de comparecer a uma sessão, tendo o público atribuído a ausência ao álcool. O fiasco repercutiu na imprensa italiana, que lamentou ter ela abandonado uma brilhante carreira para transferir-se para o Brasil, “o túmulo de seu talento”. Depois disso, nunca mais se falou em Marietta Baderna. O próprio Corvisieri não conseguiu descobrir seu fim. O último registro sobre ela parece ter sido colhido por Rejane Bonomi Schifino, que em recente dissertação de mestrado na Unicamp afirma ter ela se tornado professora de dança nas escolas femininas do Rio em 1870, vivendo em precárias condições financeiras. Além de algumas teses acadêmicas, a memória dessa extraordinária bailarina está registrada num curta-metragem dirigido por André Francioli, em 2004 (Maria Baderna no Brasil), e, recentemente, na homenagem de sua cidade natal, Castel San Giovanni, que lançou em março passado um concurso de poesia com o seu nome. Foi assim que a “graciosa sílfide que sempre aplaudimos” (como disse José de Alencar) saiu de cena e entrou para os dicionários. • Mais informações em: Silverio Corvisieri – Maria Baderna – Bailarina de Dois Mundos, 2001, Rio de Janeiro, Record. Na internet: www.italiaoggi.com.br

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DANÇA

A Unione – Cia. de Dança mistura conhecimentos técnicos básicos de ballet clássico, moderno e danças de salão, tendo como resultado o espetáculo Versatile Christianne Galdino

Dança que dança Continente junho 2007


Fotos: Gabriela Zanori /Divulgação

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pesar da contemporaneidade basear-se no discurso da interdisciplinaridade e do multiculturalismo, em palcos e platéias do Estado, uma relação segmentada subexiste, ainda que esteja muitas vezes camuflada. Esta necessidade de “enquadrar” uma obra coreográfica em nomenclaturas acaba impondo barreiras, limitando a compreensão da arte e estagnando o crescimento dos artistas da dança. Para olhar a nova proposta de trabalho dos bailarinos Rogério Alves, Adriana Bandeira, Fábio Costa, Aninha Gama, Luis Rúben González e Juliana Siqueira é preciso ir além. Com formação e trajetórias bastante distintas, eles abraçaram o desafio de falar a mesma língua, tirando proveito das suas diferenças, e fundaram a Unione – Cia. de Dança. Se, por um lado, a vasta experiência profissional das três duplas ajudou, por outro, foram necessárias doses extras de disponibilidade e tolerância para conseguirem se desvencilhar dos “vícios” consolidados ao longo dos tantos anos da já referida experiência, não somente corporais e técnicos, mas também metodológicos, já que os processos criativos de cada duo eram não só distintos, como, às vezes, até opostos. Não é difícil imaginar, por exemplo, a dificuldade enfrentada por um bailarino clássico com mais de 15 anos de rígida formação nas tradicionais escolas de ballet de Cuba, como é o caso do cubano Luis Rúben González, para se adaptar à expansão e à liberdade do ballet moderno (Técnica de Jennifer Muller, Nova) e, principalmente, à cumplicidade, à “ginga” e à extrema musicalidade, típica das danças de salão. Os problemas de adaptação recíproca ficam claros na explicação de Costa, endossada por todos, “Eu e Aninha, quando vamos criar coreografias, não pensamos em música nem em contagem de compassos como fazem os bailarinos clássicos; mas Rogério e Adriana partem invariavelmente da música nas suas criações. No começo era impossível para mim aceitar outra forma de criar”. Ultrapassadas, as barreiras deram lugar à descoberta de uma nova linguagem, em que as gramáticas de cada estilo se misturam para dar origem ao vocabulário da Unione, ainda em construção, mas que já aponta um caminho fértil de pesquisa coreográfica. O primeiro “fruto” se apresenta ao público na forma do espetáculo Versatile. Para construir uma obra que fugisse da justaposição e não soasse polifônica, eles começaram por intercambiar seus conhecimentos técnicos básicos de ballet clássico, moderno e danças de salão, dando aulas uns aos outros. Rogério Alves foi escolhido para a função de diretor, mas apesar de já ter experimentando durante vários anos esta missão, teve dificuldade em assumir essas responsabilidades de direção, porque tinha prometido a si mesmo, desde que regressou da temporada na Alemanha, em 2005, que a partir dali iria atuar somente como bailarino. Para sua parceira, Adriana Bandeira, o cargo de figurinista de Versatile foi aceito com naturalidade. “Para o espetáculo, criei peças personalizadas, respeitando as particularidades e preferências de cada bailarino, elaborando um figurino inspirado no cotidiano, mas fazendo Continente junho 2007

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Gama. “O temperamento da Companhia aparece visivelmente em Versatile. A gente conseguiu que a química do encontro destas linguagens fluísse com naturalidade, sem imposição ou fórmulas prontas”, completa Rogério Alves. Todos falando quase ao mesmo tempo e, apesar dos muitos anos de carreira, entusiasmados como se se tratasse da primeira estréia. O espetáculo fala de relações humanas, de sentimentos, protesta contra a falta de união, mas escolhe lançar suas reflexões através de uma escrita leve, utilizando-se de um Os seis farto vocabulário de movimentos bailarinos que compõem a Cia advindos das quatro linguagens Unione têm de dança trabalhadas (clássica, formações diversas moderna, de salão e a linguagem Unione, que mescla as três anteriores em um processo de hibridização). Esforçando-se para falar corretamente português, o cubano Luis Rúben explica que “o enredo surgiu durante o próprio processo e o público vai poder encontrar várias histórias diferentes ali dentro. Existem muitas possibilidades de interpretação deste espetáculo. Isso é que é bom”. Prezando pela qualidade, a Cia. Unione inaugura sua carreira já com o aval e o apoio do prêmio ritmo crescente”, para parecer uma única música, com vá- Fomento das Artes Cênicas, da Prefeitura do Recife, rias nuances. Com a exceção de Alves, os demais bailarinos conquistado em dezembro de 2006, para realização deste se experimentaram e se descobriram intérpretes-criadores espetáculo que, reafirmando sua liberdade, dispensa os durante o processo de montagem de Versatile e, agora se “i- subtítulos e se anuncia somente como um espetáculo de nauguram” na posição de coreógrafos. O espetáculo as- dança. Questões contundentes são colocadas em sume propositadamente a predominância de um dos três Versatile, que elege a beleza como formato. Para trazer o estilos de dança em alguns momentos e revela a completa que é considerado belo e normal na dança de volta à hibridez. No caso particular da dança de salão, houve uma cena e falar, com “os agudos” da emoção, suas verdades, opção pelo tango como ritmo base, dança que já é híbrida a Unione precisou, no mínimo, de coragem. Ir de por natureza, apresentando também movimentos de encontro às ditas tendências atuais das produções em dança e escapar ilesa da pressão em se “enquadrar” às bolero e samba de gafieira para pontuar cenas. A Unione gosta de falar que “Versatile é um espetácu- linhas de pensamento que vigoram, insistindo em tentar lo de dança que dança”, fazendo questão de contradizer implantar uma padronização estética, não é tarefa nada a idéia de que coreografias, para serem questionadoras, fácil. Soltar as amarras e livrar-se dos “rótulos”, também reflexivas e inquietantes, têm que abrir mão da beleza e não. Será que a reflexão, os questionamentos só têm valor quando lançados em um mesmo até do movimento. “Versatile é desafio, é Versatile, da Unione – Cia. de Dança, formato pré-definido? A Unione parediálogo, é beleza”, resume Juliana Si- no Teatro do Parque (Rua do queira. “Não existe uma narrativa con- Hospício, 81, Recife – PE). Dias: 1º, ce achar que não, e traz respostas vestidas de versatilidade no seu espetáculo vencional com começo, meio e fim no 8 e 15 de junho, às 20h. Informações: 3232 1553. de estréia. • nosso espetáculo”, esclarece Aninha referências aos estilos de dança que trabalhamos: o clássico, o moderno e as danças de salão. E usando muitas cores”– explica. Como a união e a harmonia são os fios condutores desta primeira montagem da Unione, o próprio motivo e objetivo da companhia, a trilha, toda instrumental, selecionada pelo grupo, também ganhou esta cara. O diretor Rogério Alves conta que a preocupação com a continuidade fez com que a seleção fosse organizada “em um

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AGENDA/CÊNICAS Daniela Nader/ Divulgação

A volta do circo A montagem de O Grande Circo Místico, dirigido por Nina Wicks, inicia sua segunda temporada nos palcos recifenses

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s relações sociais atemporais, causadoras de intensas e dolorosas separações, encontros inusitados e reveladores, o espaço ambulante que acolhe e acoberta inúmeras realidades formadoras do mundo, que tantas vezes são escondidas pelas máscaras assumidas em situações cotidianas – esses são alguns dos ingredientes do espetáculo O Grande Circo Místico. A montagem traz uma nova visão para o mundo do circo, mostrando não somente a ótica convencional, mas escancarando para a própria platéia o que acontece nos bastidores escondidos de um circo. O amor, a inveja, o autoritarismo, o desejo e a sede de poder são personificados e trabalhados como espelhos de cada um, levando o indivíduo à reflexão de seus sentimentos e de suas atitudes. O espetáculo dirigido por Nina Wicks de Almeida e escrito por Geane de Oliveira foi contemplado com o Prêmio do SIC em 2006 e o Prêmio Myriam Muniz da FUNARTE e volta, em sua segunda temporada, a partir de dois de junho no Teatro Apolo. Grande Circo Místico. De 2 a 17 de junho, no Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121 – Bairro do Recife). Ingressos: R$10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia) e nas quintas e sextas-feiras valor especial de R$ 3,00. Informações: (81) 3224.1114

Dois recordistas em cena

Um palco inicialmente pouco iluminado, corpos com silhuetas indefinidas parecem meio soltos, suspensos, com movimentos imprecisos. Vozes, gritos, tiros. A ambiência sonora é a da sala escura de cinema. Os bailarinos “flutuam” em um conjunto de efeitos e artifícios técnicos, aliados à dança. Lúmen é a experiência inovadora do Grupo Experimental, que mergulha sem amarras na construção de uma linguagem corporal sólida. O espetáculo se constrói falando de amor, de modo confessional; aliás, como na própria história do cinema; e a platéia é colocada no centro desta “projeção”, deste “roteiro”, achando pontos de identificação evidentes entre o seu cotidiano e as histórias narradas no espetáculo.

No palco, um grupo comemorando 66 anos de história. Em cena, um espetáculo que está há mais de 56 anos em cartaz, em Londres. Trata-se de A Ratoeira, de Agatha Christie, nova montagem do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), que estará em cartaz durante todo o mês de junho, no Teatro Valdemar de Oliveira. Um dos textos mais conhecidos da dramaturgia inglesa do século 20 gira em torno de um assassinato nas proximidades da pensão Monkswell Manor, após a guerra de 1945. No elenco, o diretor Carlos Carvalho traz uma constelação de artistas pernambucanos: Geninha da Rosa Borges, Reinaldo de Oliveira, Renato Phaelante, Vanda Phaelante, Ricardo Mourão, Renata Phaelante, Júlio Rocha e Ricardo Vauthier. A tradução é de Barbara Heliodora, cenário e figurinos de Marcondes Lima. Marcus Prado/ Divulgação

Lúmen. Dias 8 e 15 de junho às 21h30, no Teatro Armazém 14 (Rua Alfredo Lisboa, Cais do Porto – Bairro do Recife). Ingressos: R$10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia). Informações: (81) 3424.5613.

A Ratoeira. Durante todo o mês de junho. Quintas-feiras às 20h, sextas e sábados às 21h. Teatro Valdemar de Oliveira (Praça Oswaldo Cruz, s/n, Boa Vista). Ingressos: R$ 15 (preço único). Informações: (81) 3222.1200 / 3222.1284

Hans Manteuffel/ Divulgação

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Alucinação metódica A arte de Roberto Magalhães, apesar de permanecer fiel a uma mesma técnica e uma mesma temática, surpreende-nos agora por sua originalidade

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oberto Magalhães é um artista único na porânea. Roberto Magalhães tem algumas afinidades atualidade da arte brasileira. Do ponto de com eles, mas tendo surgido muito depois dos anos 60, e vista da maioria da crítica vigente, um ana- atuante ainda hoje, torna-se mais anacrônico ainda. Pode-se dizer que ele é um pintor surrealista por cronismo. A movimento artístico moderno em que poderia de algum modo se inserir, é o Surrea- certas coincidências que se encontram entre alguns de seus quadros e as obras de determinados pintores dalismo, anacrônico também. Por que anacrônico? Porque se situa fora do processo quela tendência, mas o que de fato há de comum entre a “evolutivo” da arte contemporânea, que se caracterizou arte de Roberto Magalhães e aquela tendência artística é por uma progressiva eliminação do elemento imaginário a prevalência da fantasia sobre a realidade e a violentação deliberada da forma de figuras na constituição do universo Imagens:Divulgação/CW&A Comunicação e objetos por eles pintados com da arte. Para falar esquematirespeito a sua imagem real. camente, diríamos que, a Mas, assim como diversos partir do Cubismo, Futurispintores surrealistas não obemo, Expressionismo, Neodecem a uns mesmos princípios plasticismo e Construtivisestéticos, RM também difere mo, isso, entre 1907 e 1920, bastante daqueles seus antecesiniciou-se um processo grasores. O seu universo onírico, dativo de eliminação das rena maioria dos casos, em nada ferência figurativas (seja em lembra qualquer outro pintor, relação à realidade objetiva seja ele surrealista ou não. quanto à subjetiva) e uma Em sua exposição, aberta na crescente valorização da arte Galeria Márcia Barroso do como linguagem auto-refeAmaral, no Rio, ele expõe uma rente. Esse processo oscila ensérie de pinturas e guaches, reatre a construção racional-abslizados nos últimos anos e até trata (Neoplasticismo, Consentão não expostos ao público. trutivismo) e a expressão ceNesses trabalhos, reencontraga, gestual, que desembocam, mos o mesmo Roberto Magaa primeira no Concretismo e Figura Impressionante, Roberto Magalhães lhães de muitos anos atrás, uma a segunda no Tachismo. Como um momento anacrônico, mais literário que pictórico, vez que, ao contrário do que se tornou uma norma de hosurge o Surrealismo que, temática e tecnicamente, não se je, sua arte permanece fiel a uma mesma técnica e uma incorpora ao processo moderno hegemônico. Alguns mesma temática. Apesar disso, cada uma de suas obras pintores que se filiam a essa tendência, como Salvador expostas agora nos surpreende por sua originalidade. E está nisso também um anacronismo da pintura de Dali ou René Magritte, sobrevivem como artistas marginais, desligados do curso determinante da arte contem- Roberto Magalhães: a despreocupação com a moderni-

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Avião Cenoura, Roberto Magalhães

dade e consequentemente com a obsessão pela novidade. Ele nos mostra que é possível criar obras originais com a velha linguagem da pintura, e que é possível renovar-se sem ter que renunciar à sua linguagem de pintor. Se se admite que um dos fatores determinantes do curso tomado pela arte do século 20 foi a crise da linguagem artesanal, como conseqüência do surgimento das novas técnicas industriais de produção, aí, então, mais que nunca, a arte de Roberto Magalhães expõe o seu anacronismo. Como se sabe, no Cubismo, Picasso e Braque introduziram, na pintura, o papier collé, ou seja, retalhos de jornal, envelopes de carta e papel de parede, rompendo, assim, com o procedimento tradicional da pintura. Daí, a introdução, nos quadros, de materiais outros, como barbantes, pregos, arame, areia ou estopa, foi um passo, abrindo caminho para a desintegração da linguagem pictórica propriamente dita. Por outro lado, afirmando o caráter industrial da nova época, surgiram tendências artísticas apoiadas em novas tecnologias. A primeira conseqüência desse processo

foi a eliminação da figura e a adoção de formas abstratas, como fizeram Piet Mondrian, Malevitch, Kandinsky, Lissitsky e Tatlin, culminando com a arte concreta de Max Bill, de um lado, a action painting de Pollock, de outro, e ainda a aventura sensorialmetacorporal de Lygia Clark. Em meio a esse universo de experimentações e buscas de novas linguagens, a pintura de Roberto Magalhães parece alheia à modernidade. E é; mas isso não significa que seja ultrapassada e inatual. Certamente, o vício modernoso de que a arte deve seguir a “evolução”, dá-se mal diante de uma pintura que, sem ser up to date, nos surpreende e nos encanta. Em lugar de ter relegado a técnica figurativa, Roberto Magalhães usa-a com exímia mestria e não para falar da realidade manjada e previsível: usa-a, ao contrário, para violentá-la, transfigurá-la ou, melhor dizendo, para criar flores, homens, animais, enfim, seres e coisas de espantosa presença. Seres e coisas que não encontraremos em nenhum lugar do mundo, senão em suas telas e guaches. Ampliar a realidade da vida não será essa uma das funções da arte? • Continente junho 2007


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ARTES

Imagens: Reprodução

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ouca gente sabe que o sobrenome Oiticica é uma invenção vinda do Nordeste, com sabor de nacionalismo. Enquanto a obra de Hélio, o mais famoso dos Oiticica, é cada vez mais famosa e elogiada mundo afora, surpreende saber que foi o alagoano Manuel Rodrigues Leite da Costa, filho de coronel da Legião de Penedo, em Alagoas, quem criou, em 1831, o sobrenome como protesto contra os defensores da metrópole Portugal. Oiticica é a árvore “Licânea rígida”, frondosa e copada em meio ao sertão inclemente. Com seu óleo se produzem pigmentos. Foi a forma de abrasileirar o sobrenome português, e tornar nativa uma família que legaria pelo menos três gerações de artistas e visionários. A saga começa com José Oiticica (1882 – 1957) que, no último ano de Direito, conversando com seu primo jornalista Ildefonso Falcão, notou que suas idéias combinavam com as anárquicas. Depois de ler revistas anarquistas francesas e espanholas, tornou-se militante, o que não o impediu de, anos mais tarde, dirigir uma escola própria, adaptada a seus ideais libertários. Paradoxalmente (e genialmente), foi também poeta

Linhagem inquieta A família Oiticica, lembrada quase sempre pela obra de Hélio Oiticica, apresenta-se como uma verdadeira dinastia artística que passou de pai para filho André Luiz Barros

Triângulos semelhantes, José Oiticica Filho


ARTES

José Oiticica Filho, cientista, fotógrafo e pai de Hélio

parnasiano e combateu a Semana de Arte Moderna de 22! Na geração seguinte, José Oiticica Filho (1906 – 1964) foi um dos precursores da fotografia de arte no Brasil, tendo ganhado prêmios seguidos nos Estados Unidos, na Europa, na Índia etc. Não admira o pendor de Hélio (1937 – 1980) pelos experimentos artísticos. “O Hélio teve, em casa, modelos totalmente fora do comum. Nosso avô virou anarquista quando já era homem maduro, casado e com filhos. Nosso pai investiu na foto de arte e, ainda por cima, depois de muitos prêmios, desviou-se para a fotografia abstrata, para espanto de seus próprios companheiros”, resume César Oiticica, arquiteto, irmão de Hélio. “Eles praticavam um verdadeiro exercício de possibilidades”, conclui César, que anuncia, para julho agora, o lançamento do catalogue raisonné com obras criadas ao longo de uma carreira de mais de 25 anos de trabalho, e uma megaexposição na prestigiosa Tate Modern, de Londres. Essa vocação libertária tem atraído cada vez mais a atenção do público, dos críticos e de instituições pelo mundo afora. Além da mostra na Tate, em julho, no mesmo mês sairá o primeiro dos sete volumes do catálogo com a obra completa de Hélio, sendo que cada um terá

O artista plástico Hélio Oiticica, em 1963

cerca de 300 páginas ilustradas. Esses catálogos são fruto do trabalho do Museum of Fine Arts, de Houston, nos EUA, que desde o ano passado vem restaurando, uma por uma, todas as obras de Hélio. “As peças vão para Houston, são restauradas, algumas são expostas e, depois, voltam para nosso acervo, aqui no Rio de Janeiro”, explica César. A mostra Body of Colour, com obras do início da carreira até o Neoconcretismo, no Museu de Houston, no ano passado, espalhou-se por dois amplos prédios. “Foi a maior exposição de um artista só que já vi”, diz César. O museu prepara para fins deste ano a segunda megamostra, com obras de 1957 em diante. Também na University of Sussex, em Rhode Island, dois penetráveis de Hélio serão reconstituídos ainda este ano, para que os alunos americanos conheçam a obra do brasileiro. Hálio batizou uma das obras de Rhodslândia, em homenagem à cidade. Infelizmente, nenhum desses eventos tem data de lançamento no Brasil. “Estamos tentando trazer alguma dessas mostras para cá. Mas parece que o interesse aqui é menor”, lamenta César Oiticica Filho, sobrinho de Hélio e responsável, com o pai, pelo acervo. Mas ele minimiza as críticas ao revelar suados avanços também por Continente junho 2007

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ARTES aqui. “É tudo tão difícil, que temos de citar também as vitórias. O governo restaurou a obra que está no Museu do Açude, ao ar livre, e vamos disponibilizar todo o acervo de documentos dele no próprio Centro de Artes Hélio Oiticica. São muitas anotações sobre a concepção e feitura das obras e muita correspondência”, diz. Na seara das cartas, ficam de fora as estritamente pessoais: “Ele falava mal de muita gente em uma carta e, na seguinte, já fazia as pazes. Não dá para divulgar as maledicências de momento”, diz. Entre os interlocutores estão amigos como Lygia Clark, Carlos Vergara, Lígia Pape ou Neville de Almeida. Essa documentação tem ajudado no restauro das obras, pois Hélio costumava documentar seu processo criativo, às vezes minuciosamente. Por fim, um convênio com a Universidade Federal do Rio (UFRJ) levará às turmas de Belas-Artes o desafio de reproduzir experiências de Hélio com universitários brasileiros ou americanos, como as de 1969 em Rhode Island. “Nessas obras, Hélio se dizia apenas um ‘propositor’, que envolvia os jovens com suas propostas”, conta César Filho, que também é fotógrafo de arte. A vocação para a vanguarda das artes plásticas dos anos 60 e 70 parece ter sido herança de um avô que viveu na arriscada linha de frente da reflexão política e ideológica. Aos 18 anos, terminando sua faculdade de Dierito, José Oiticica já escrevia, em artigo no jornal Ci-

dade do Rio: “... à iniciativa do Estado, sempre nociva, cumpre substituir a iniciativa particular, sempre reveladora”. Onze anos depois, um primo lhe diz que suas idéias são típicas do movimento anarquista. José replica que, para ele, anarquistas são membros de uma seita que acha que mudará o mundo à base de bombas. Só depois de ter em mãos revistas como a parisiense Temps Nouveaux e Revista Blanca, de Barcelona, ele descobre que nascera para aquele nova ideologia antiestatal. “Como no Rio não havia anarquismo, ele se filiou ao grupo em São Paulo, e voltou para cá para lutar pela causa”, diz César pai. O jornal Ação Direta, que ele funda em 1929, se torna símbolo do movimento, que reivindica para si a ancestralidade da revolta política: “Ação Direta é a voz única das reivindicações, a de Spártacus revoltando gladiadores; (...) a dos abolicionistas brasileiros protegendo os escravos e concitando os moços, obrigando o Império a decretar a lei de 13 de maio”, escreve ele. Como anarquista, José escreveu libelos anticomunistas: “Libertar os homens do patrão é muito, mas não é tudo. Cumpre arrancá-los à tutela dos guias políticos e religiosos; e à tirania das ‘morais’, criações de opressores para fanatizar escravos”. Foi preso seguidamente, durante os governos Artur Bernardes, Wenceslau Brás e, principalmente, Getúlio Vargas. Para um homem com oito filhos, a cota aventureira era imensa. “Ele passou em Cosmococas, de Hélio Oiticica


ARTES mais de 10 concursos para professor de português, todos em primeiro lugar. Mas não tomou posse em nenhum, por ser anarquista”, conta César Filho. Na mesma trilha errante do filho e do neto, José tinha desistido de Direito e de Medicina, antes de tornar-se um destacado gramático. Além disso, foi poeta parnasiano, crítico feroz da Semana de Arte Moderna de 1922. “Veja só: um porta parnasiano anarquista. Ele foi um homem fora do comum”, diz César pai. A escola heterodoxa que ele abriria e dirigiria na Urca começou em casa: seus filhos foram alfabetizados ali, nunca tendo cursado escolas tradicionais. Essa formação inusitada produziu outro gênio. José Oiticica Filho, que teria feito 100 anos no ano passado, começou destacando-se como professor de matemática.

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Mas foi no laboratório de entomologia, o estudo de insetos, que ele se destacaria de vez. Porém, bem ao estilo dos Oiticicas, não se conformaria em ser apenas cientista. A habilidade incomum para a microfotografia, a técnica nova que tornava possível captar os órgãos sexuais dos bichos e, assim, diferenciá-los segundo espécies e gêneros, levou-o a outro tipo de laboratório: o de revelação de fotografias. Tornou-se um ás da química de revelação, e usou a estadia com uma bolsa em Washington para começar a fotografar garrafas, casas, postes e paisagens, em geral tendo seus filhos como modelos. Resultado: em pouco tempo participava de concursos de fotos artísticas nos EUA e fundava os primeiros fotoclubes do Brasil, uma febre que tornou possível o desenvolvimento da foto

Ensaio com índios do Amazonas, feito em 1993, por César Oiticica Filho, irmão de Hélio

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Neyrótica, Hélio Oiticica

de arte no país. “Era um mestre das sombras, aplicadas no laboratório de revelação, e começou a experimentar técnicas inovadoras, como a ‘solarização’, quando se acende a luz no meio do processo revelador e se consegue uma luz inusitada”, conta César Filho, que promete uma exposição das obras fotográficas do avô para maio deste ano, no Centro de Artes Hélio Oiticica, no Rio. Os prêmios em concursos de fotografia e o reconhecimento ao longo dos anos 40 e 50 não bastaram para que José Filho se satisfizesse. Sempre como entomologista ligado ao centro de pesquisas do Museu Nacional, no Rio, ele deu uma nova guinada na carreira de fotógrafo. Junto com o amigo paulista Geraldo de Barros, introduziu no Brasil a fotografia de arte com motivos abstratos, no início dos anos 50. “Eles romperam com o fotoclubismo e seus ex-companheiros não entenderam direito, ficaram chateados. Mas, como Continente junho 2007

Hélio, José Filho era irrequieto”, conta César pai. Em um episódio que retrata bem essa herança libertária de avô para filho e, em seguida, para neto, o José pai, já bastante idoso, certo dia discutiu com os netos Hélio e César sobre arte moderna. Atacou o quanto pôde essa nova arte, oficialmente aceita por aqui pelos paulistas de 1922. Os meninos, já se preparando para deixar sua marca no Museu de Arte Moderna do Rio, de onde Hélio decolou para sua carreira, argumentaram com toda força a favor dos novos ventos estéticos. Depois de muita saliva e caras zangadas, e achando que o avô estava chateado com sua posição vanguardista, Hélio e César ouviram de sua mãe a frase: “O avô de vocês disse que não sabia que tinha netos tão brilhantes. Ele gostou muito de debater com vocês”. A linhagem inquieta e libertária da família Oiticica parecia ter vindo para marcar a cultura brasileira dali em diante. •


AGENDA/ARTES

Utopias no MAMAM Detanico e Lain, Jarbas Lopes e Martín Sastre mostram pela primeira vez no Nordeste seus trabalhos, que discutem o estatuto da utopia

Fotos:Divulgação

niciou em maio o calendário de exposições do Museu IRecife. de Arte Moderna Aloísio Magalhães, da Prefeitura do A abertura da programação contou com a mostra Novas Utopias: Detanico e Lain, Jarbas Lopes e Martín Sastre, uma união de três exposições individuais e simultâneas, conduzida pela discussão do estatuto da utopia. Os artistas expositores pertencem a gerações que se beneficiaram de um nomadismo intenso e de rápida inserção internacional, e mostram, pela primeira vez, seus trabalhos no Nordeste do Brasil. O andar térreo do Museu abriga parte da produção do carioca Jarbas Lopes (foto), expoente da geração de 90 da arte brasileira, e reconhecido pela recorrente utilização de materiais pouco nobres e técnicas artesanais. Já a segunda mostra reúne trabalhos em vídeo, fotografia, escultura e desenho, do uruguaio Martin Sastre, cuja forte característica é a ironia e a ambigüidade de amor e crítica em relação à indústria cultural. Na terceira exposição, Ângela Detanico e Rafael Lain aproveitam a formação em design e desenvolvem trabalhos que dialogam com a programação visual, sempre tensionando a relação entre a alta e a baixa tecnologia.

Novas Utopias, Detanico e Lain, Jarbas Lopes e Martin Sastre, até 1º de julho, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – MAMAM (Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife – PE). Informações: 3232.2188.

Projeto concluído

A mulher na arte

Reflexão e independência são a idéia condutora do núcleo Branco do Olho, que defende mostras virtuais, e articulação artística na web. A designação escolhida para o grupo se refere à esclerótica, área branca do olho humano, e única parte do corpo que é praticamente igual em todas as pessoas de qualquer etnia. Trata-se de uma metáfora sobre um ambiente comum onde se encontram artistas com estilos e preocupações diferentes entre si. Nomes como Rodrigo Braga e Bárbara Collier apresentam seus trabalhos desde outubro de 2006 com o Programa de Exposições-Relâmpago Branco do Olho, inaugurado com o apoio do Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura da Cidade do Recife. O projeto contou com 13 mostras individuais e uma coletiva e, agora em junho, será encerrado com o lançamento de um catálogo, reunindo textos críticos e a mais recente produção dos membros. Na ocasião, os artistas estarão à espera do público para uma conversa mais direta acerca de seus trabalhos.

Um olhar feminino sobre o feminino. Eis a proposta da artista Jeanine Toledo na exposição A Lente Turva, em cartaz na Galeria Mariana Moura. Quatro pinturas em óleo sobre tela e cinco fotografias em preto e branco constituem o resultado de uma pesquisa que busca o papel da mulher na história da arte. Jeanine resgata, sob uma nova perspectiva, obras de Picasso, Goya, Manet e Trutat. A artista alagoana, que obteve sua formação artística em Pernambuco, utilizou durante anos a pintura como única forma de expressão. Somente a partir de 2003 passou a incorporar outros suportes em seus trabalhos. Agora, nesta mostra, apresenta um rico e apurado conjunto de obras inéditas, impreterível compromisso para os bons apreciadores de arte.

Branco do Olho, exposição coletiva com lançamento do catálogo, dia 6 de junho, na Estrada Real do Poço, em frente ao n° 546, Poço da Panela. Recife – PE. Informações: www.brancodoolho.com.br

A Lente Turva, até 30 de junho, na Galeria Mariana Moura (Av. Rui Barbosa, 735, Graças, Recife – PE). www.marianamoura.com.br Continente junho 2007

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Ensaio retrata as congadas e suas irmandades, uma cultura rica em detalhes históricos e imagéticos Fotos e texto: Paulo Pereira

Vivos em cores

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ialve! É um recorte especial para a Revista Continente Multicultural de um ensaio sobre congadas e suas irmandades, tais como: Moçambique, Ticumbi, Embaixada, Cacumbi, dentre outras. Este ensaio, que leva o título de Vivos em Cores, retrata a vivência destes grupos dentro das festas e, por seus contextos, retrata também a devoção, a música, a dança e a cor. Personagens, situações, nascem Vivos em Cores na tentativa de ajudar na apresentação e tornar reconhecidos – inclusive entre os próprios grupos – esses representantes vivos de seus antepassados, mantedores de uma cultura rica em detalhes históricos e imagéticos. As imagens aqui apresentadas foram realizadas em diversas festas, geralmente nas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, pelas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil desde 2005. Mais fotos deste ensaio e de outros podem ser vistas no site: www.paulopereirafotografo.com.br. •


FOTOGRAFIA

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Foto da página anterior, O Reino de Sô Zé (Nova Gameleira – Belo Horizonte); acima, Pra inspirar seu toque (Aparecida – São Paulo); abaixo, Tocador (Aparecida – São Paulo) e Sô Zé (Nova Gameleira – Belo Horizonte); ao lado, Quem Assiste (Nova Gameleira – Belo Horizonte)

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Foto da página ao lado, Guardião de Fátima (Catalão – Goiás); acima, Faz-d de-c conta azul para princesa (Laranjeiras – Sergipe) e Adorno de Mãe; abaixo, Vivas e Salve (Aparecida – São Paulo)

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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

À mesa com os papas "Alguns papas comeram como verdadeiros reis, e isso os impediu de ser santos. Outros, frugais e ascéticos, fizeram do não-comer uma forma de vida, como meio de purgar seus pecados ou de entender sua própria espiritualidade" Eva Celada (Os Segredos da Cozinha do Vaticano)

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ês passado, esteve entre nós o papa Bento XVI. Nascido em Marktl am Inn, região da Baviera, onde está a mais sofisticada culinária da Alemanha. Entre as especialidades alemãs está o famoso Brezel– pão com sabor especial, que com freqüência vem, à mesa, acompanhado pelo gorduroso Leberkäs (patê de carne moída). Também o tradicional Himmel und Erde (literalmente, “paraíso e terra”) – salsicha branca e salsicha escura, servidas com purê de batatas temperadas com noz-moscada. Para quem preferir carnes, bom lembrar o enorme prestígio que por lá têm as caças. Origem de muitos pratos: lombo de veado, servido com maçãs e recheado com frutas vermelhas; rosbife estufado com vinho, molho agridoce e purê de maçã (Rheinischer Sauerbraten); leitão assado no espeto (Spanferkel); guisado de tripas (Soester Wamme); carne de barriga de porco com rábano (Wammere mit Kren); sopa de massa à base de trigo, prato que lembra o nhoque italiano (Spaetzle), companhia obrigatória do popular Gulasch – ensopado de carne, temperado com páprica e engrossado com creme de leite, acrescido de presunto, fígado, cogumelos e trufas passadas na manteiga. No reino das sobremesas, temos variações a partir dos produtos da terra: sorvetes cobertos com calda quente de amora; torta com semente de papoula; rocambole com massa bem fina e recheio de maçã e canela (Apfelstrudel); bolo Floresta Negra (Schwarzwalder Kirschtorte); e panqueca cortada em pequenos pedaços, polvilhada de açúcar e canela (Kaiserschmarn). Em matéria de queijos, destaque para o Handkäes – de odor forte, feito à base de natas azedas. Sem esquecer que a região é também famosa pela Kirschwasser – uma aguardente feita com cereja. Por conta de sabores tão variados, desde cedo o futuro papa se acostumou a comer bem. Sobretudo por ser, sua mãe, uma exímia cozinheira. Joseph Ratzinger já era Cardeal quando trocou seu país por Roma, em 1981. Escolhido que foi, por João Paulo II, para ser prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, presidente da Pontifícia Comissão Bíblica, e como se não fosse Continente junho 2007

Fotos: Divulgação

pouco, também presidente da Comissão Teológica Internacional. Mas, naquela terra nova, passou a sentir falta dos sabores de casa. Almoçava perto do trabalho, quase sempre na companhia de seu secretário particular Georg Gänswein, e sempre em restaurantes de cozinha alemã. Entre eles, sobretudo o Cantina Tirolese (Via G. Titelleschi, 23), onde a escolha de quase todos os dias era consomé, salsichas brancas ao molho de mostarda acompanhada de Knödel (bolinho de massa cozido na água) e Laberwurst (salsicha de fígado), além de Apfelstrudel como sobremesa. Só aos poucos foi descobrindo os encantos da culinária italiana. Passou a experimentar outros restaurantes. E acabou freqüentador assíduo do Al Passeto di Borgo (Borgo Pio, 60-62), onde pedia zuppa di verdura, lâminas de bressaola (carne seca curada da Lombardia) com gomos de grapefruit, spaghetti alla Carbonara, penne all’


SABORES PERNAMBUCANOS arrabiata, assado de vitelo acompanhado de batatas ou carciofialla romano (alcachofras fritas). No acompanhamento, preferência pelo arroz – sobretudo os cultivados em Vercelli (no Piemonte). Como sobremesa, Tiramisú ou Bavaroise. Tudo completado por (apenas) 1 cálice de vinho, branco ou tinto. Italiano, e não alemão. Eleito Papa, uma das primeiras medidas foi reformar a cozinha do Palácio Apostólico. Passaram então a se misturar, democraticamente, sabores alemães e italianos. Tudo comandado por quatro irmãs leigas, filiadas à Associação Momores Domini (Comunhão e Libertação) – que as antigas freiras polonesas, convocadas por João Paulo II, voltaram para a Cracóvia logo depois de sua morte. O comedimento de agora nem de longe lembra os exageros que marcaram os hábitos alimentares de tantos outros papas. Clemente V (1305 – 1314), por exemplo, morreu comendo esmeraldas em pó – para tentar curar seus tormentos estomacais. Clemente VI (1342 – 1352) esbanjou dinheiro em palácios, roupas e jóias; mas, também, na mesa - com louças requintadas, talheres de ouro e prata, muita comida e muita bebida. Para o banquete de sua coroação foram convocados cozinheiros de todos os cardeais, para colaborar com os 14 que já trabalhavam no palácio papal. Do cardápio pontifício constaram 1.023 carneiros, 914 cabritos, 118 bois, 101 vitelos e 60 porcos. Considerando ser ainda pouca, tanta comida, providenciaram também 7.048 frangos, 3.043 galinhas, 1.146 gansos, 1500 capões, 300 lúcios e 15 enormes esturjões. Mais 15.000 tortas de frutas, que consumiram 3.250 ovos, 36.100 maçãs e muitos quilos de amêndoas. Vai ver que, para ele, o caminho do céu passava pela boca. Depois veio a Idade Média. Para a Igreja, tempo de jejum e abstinência. Só que essa abstinência não era, sempre, tão severa assim. Nas mesas não havia carne, é certo. Mas, em compensação, sobravam favas cozidas em leite de vaca, lampreia com molho verde; e sobremesas variadas – arroz doce, cerejas frescas, tortas, pastéis doces ou salgados. Os pratos preferidos de Inocêncio IV eram assados, caldos gordurosos, mingaus de cereais, cozidos de legumes e carnes, arenques grelhados, aves, porco salgado, embutidos. Mas sua preferência era mesmo baleia assada. No Renascimento, o Vaticano continuou a ser bem servido na mesa. Por mais de 30 anos cozinhou, para seis pontífices, o maior chef de seu tempo (e um dos melhores que o mundo já teve), Bartolomeo Scappi. Acabou conhecido como “cozinheiro dos papas”. O primeiro papa a quem serviu foi Paulo III (1534 – 1549) – famoso por comer e beber com refinamento. Adorava grandes assados (temperados com canela, cravo da Índia, noz moscada, pimenta-do-reino e gengibre), capões recheados, caças de pena, aves domésticas, massas recheadas (tortelletti, ravioli) e strozzapreti (“estrangula padre”, em referência à gula dos sacerdotes). Tudo acom-

panhado de molhos leves, à base de plantas ou frutas aromáticas (laranja, limão). Na sobremesa, pêra com vinho. Paulo III, bem a propósito, ficou conhecido como o “papa do vinho”. O último pontífice a quem serviu Scappi foi Pio V (1566 – 1572). Diferente dos seus antecessores, levava uma vida austera. Fazia demorados jejuns e abstinências. Apreciava comida simples, sem complicação – caldo ralo de carne e sopa de urtiga. Acabou santo (provavelmente, não por isso) – São Pio V. Dos papas recentes, o mais popular foi João XXIII, eleito em 28 de outubro de 1958. Seu pontificado durou menos que cinco anos. Na memória do povo, ficou sua figura muito generosa, de hábitos simples. Para os fiéis passou a ser o “Papa da bondade”. Na mesa cultivava hábitos que aprendera em sua casa camponesa. Tudo muito italiano. No café da manhã, café, leite, brioche e queijo. No almoço cordeiro, peixe (sardinha, peixe-espada) e vitelo, sempre acompanhados de batatas e massas. Como tempero preferia ervas frescas – alcaparras, alecrim, alho, alho-poró, erva-doce, manjericão, pimentão, salsinha, sálvia, tomilho. Também tomate, em (quase) todas as receitas. Tudo regado com azeite de oliva. No jantar risoto e sobretudo sopas, das quais a preferida era a de legumes crus. João Paulo II foi o “Peregrino da Esperança” – assim o definiu Pe. Theodoro Peters. Com ele não foi diferente. Conservou os hábitos de seu povo. Mas, aos poucos, rendeu-se à culinária italiana. Acabou limitando as receitas polonesas, sua pátria de origem, a ocasiões muito especiais como aniversário e Natal. Trocou vodca pelo vinho tinto, da Toscana. Passou a comer massa todos os dias. Compartilhava essa massa ecumenicamente, em mesa circular, com budistas, hinduístas, judeus, muçulmanos, protestantes. E católicos também, claro. No paraíso, está agora à mesa do Pai. Mas esse cardápio, literalmente divino, infelizmente não é fornecido pelo dono da casa. Que descanse em paz. Mas uma visita pelas cozinhas dos papas nos revelam algumas heranças gastronômicas. No Vaticano, em Roma, ou em Avignon, na França – quando Clemente VI, em 1348, comprou, aquela cidade, por 80 mil florins de ouro, à rainha Joana de Nápoles. Aqui seguem algumas dessas invenções: Cozinhar em banho-maria – é cozinhar no fogo, ou no forno, utilizando-se dois vasilhames: um, para o alimento propriamente dito (que não fica em contato direto com o fogo); e outro maior, que contem água em quantidade suficiente para, ao ferver, não entrar no vasilhame do alimento. O processo recebeu esse nome em homenagem a Maria, famosa alquimista e irmã de Moisés – aquele que recebeu de Deus a tábua com os Dez Mandamentos. Em seus experimentos, usava Maria esse processo – pois, com água, era possível controlar melhor a temperatura do fogo. Foi lendo alguns de seus Continente junho 2007

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SABORES PERNAMBUCANOS manuscritos, guardados por Zósimos de Panópolis, que um dos primeiros cozinheiros dos papas resolveu experimentar seu processo com alimentos. Sucesso absoluto. Sendo a ela ainda atribuída a descoberta do alambique, do acido clorídrico e do “axioma de Maria” – em que explica os quatro elementos formadores do mundo (o fogo, o ar, a terra e a água) – “o Um torna-se Dois, o Dois torna-se Três, e do terceiro nasce o Um como Quatro”. Muito mais complicado do que o universal “banho-maria”. Gratinar – uma técnica de cobrir o alimento, cru ou cozido, com molho branco e queijo ralado (parmesão ou gruyère); após o que é levado ao forno para criar crosta e dourar. O processo foi usado pela primeira vez com legumes, colocando brasa na tampa das panelas. Mas, hoje, costuma-se gratinar sobretudo massas (lasanha, macarrão, nhoque, panquecas, ravióli), legumes e peixes (e outros frutos do mar). À milanesa – método de cobrir aves, carnes, peixes ou legumes com ovo batido, em seguida passados na farinha de rosca, antes de ser fritos. No fim se forma uma crosta, dourada e crocante. A receita nasceu, na cozinha do Vaticano, com nome de “femima panata”. Depois, não se sabe quando nem porque, passou a ser conhecida como “à milanesa” – sem que sua procedência tenha vindo de Milão. O mesmo que se deu com a “salada russa”, que não veio de Moscou; e com “fritas francesas”, que nasceram bem longe da Gália. Molho Bechamel – um molho cremoso e salgado, preparado com farinha de trigo, pimenta, noz-moscada, manteiga e leite quente. É base de vários pratos salgados. Foi invenção dos cozinheiros Pitti e Strozzi – que serviram aos papas e à poderosa família dos Médices. Recebeu, no início, nome de balsamella. Depois, um francês, o Marquês de Nointel, Louis de Béchamel, financista e assessor do rei Luís XIV, se disse inventor da receita. Acontece também na cozinha. Queijo Mussarela – um queijo de textura firme, com sabor suave e cremoso. Pode ser feito com leite de vaca (por toda a Itália) ou de búfala (só nas regiões de Campânia e do Lazio). É preparado pelo método de pasta filata – que se obtém ao aquecer a coalhada em água quente, até que ela se torne elástica e forme cordões. Estes cordões são então enrolados “em bola”, para serem depois cortados e moldados. Foi inventado por Bartolomeo Scappi (1570), cozinheiro de cinco papas, que passou a utilizar o queijo em muitas de suas receitas. Molho Bolonhesa – inventado, no inverno de 1514, por Farnese, um cozinheiro originário de Parma, que servia ao papa Paulo III (1534 – 1549). Foi ele que preparou pela primeira vez espaguete com carne amassada, cebola e ervas (ainda não havia tomate, acrescentado à receita quase um século depois). O Sumo Pontífice ficou encantado. Em Parma, tem Continente junho 2007

o nome de “molho Farnese” - por não se aceitar, por lá, a falsa origem bolonhesa que acabou dando nome ao prato. Molho Verde – também chamado de “molho Vaticano”. Na receita muito ovo cozido picado, alho e salsinha. Invenção de um cozinheiro suíço que não deixou seu nome na história. Um dos preferidos dos papas, especialmente João Paulo II – que sempre o pedia em pratos de peixe. Ovos Beneditinos – ovo poché sobre bacalhau desfiado e coberto de creme. Invenção do cozinheiro do Papa Bento XIII (1724 – 1730). No início esse Papa se denominou Bento XIV – por ser supersticioso e temer o número 13. Depois, acabou convencido a trocar de número. Nos Estados Unidos existem uns eggs benedict, criado no restaurante Delmonico (1920), que nada têm com a receita original. Nessa receita americana, é torrada com ovos cozidos, cobertas com fatias de lombo canadense, normalmente servidos nos brunchs. • RECEITA

OVOS BENEDITINOS (receita original do Vaticano) INGREDIENTES 3 ovos, 300 g de bacalhau, 4 gemas, 50 g de trufas pretas,1 copo de creme de leite, 250 g de manteiga,1 limão, sal e pimenta PREPARO: · Deixe o bacalhau de molho por 48 horas. Escorra e desfie. · Em frigideira, aqueça a manteiga, e acrescente as trufas pretas raladas (deixando algumas lâminas para decorar). Reserve. · Em outra panela, coloque o creme de leite e as 4 gemas. Cozinhe em banho-maria, mexendo sempre, até ficar grosso. A esse creme junte a manteiga derretida com trufas, meio limão espremido, uma pitada de sal e pimenta. Reserve. · Em refratário, arrume camada de bacalhau, deixando um buraco no meio. Nesse buraco coloque os três ovos inteiros. Cubra tudo com o creme. · Asse em forno médio, por 20 minutos. Enfeite com as laminas de trufa.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Anotações amazônicas II

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qui, no inverno ou no verão, o sol é sempre o mesmo, quase tão perene quanto as águas dos grandes rios. De janeiro a dezembro, ele arde impiedoso sobre a floresta que, gulosa, dele nunca se farta. Em certas horas, particularmente entre o meio-dia e as 15 ou 16 horas, esse sol brutal parece ferver – e a chuva mais compacta pode escondê-lo por alguns instantes, mas nunca apagar de todo aquele delírio de fogo que despenca de um azul limpo, outras vezes pesadamente encharcado de água morna, mas um céu sempre férvido, mesmo à noite, quando nele as estrelas coruscam como bolhas incandescentes. Quem nunca recebeu em cheio, em Porto Velho, em Manaus, em Jacareacanga ou em Tabatinga a inclemência do sol amazônico não sabe o que é calor. Pode o inferno ser mais quente e mais sufocante do que um começo de tarde em Marabá? Ou um meio-dia em Abunã ou Manoel Urbano? É difícil descrever o sol da Amazônia quando ele cai numa fúria total sobre a floresta – “majestade verde, soberba e enigmática”. Tentar descrevê-lo seria o mesmo que pretender dar a medida exata e estabelecer os contornos exatos de um fascínio. E a Amazônia – sol, floresta e rios – é um fascínio só, inteiriço e contínuo. • Continente junho 2007

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Imagens: Marco Camargo/Divulgação

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Cheiro cult Depois de receber duras críticas no seu primeiro longa-metragem, Heitor Dhalia adapta a obra O Cheiro do Ralo, de Lourenço Mutarelli, conquistando o público e a crítica Daniel Buarque

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o princípio era a bunda. E então a bunda se fez livro, que se fez filme. E assim começa a história do mais recente “patinho feio” do cinema nacional: O Cheiro do Ralo, obra que começou desacreditada, teve dificuldade em captar recursos, foi realizada com pouco dinheiro, e que se consolida numa das mais bem-sucedidas em crítica e público nos últimos anos. Em 40 dias, mais de 110 mil pessoas já foram ao cinema assistir ao filme do pernambuco-paulistano Heitor Dhalia, ele próprio um patinho feio entre os cineastas graças a seu primeiro longa-metragem, Nina (2004), uma adaptação livre de Crime e Castigo, de Dostoiévski, que teve uma recepção nada calorosa no país. O Cheiro do Ralo faz de Dhalia cisne: respeitado, admirado e premiado. Todas as características que lhe darão liberdade para continuar firme no mercado cinematográfico. A obra é uma adaptação fílmica do livro homônimo do agora escritor, antes quadrinista, Lourenço Mutarelli. O Cheiro do Ralo foi a primeira


CINEMA incursão dele na literatura, e trata de um homem obcecado por uma bunda, por um olho de vidro, por um vulto, e atormentado por um terrível cheiro advindo do ralo do banheiro de seu escritório, onde compra objetos usados de forma insensível, humilhando seus clientes. “A vida é dura”. “O livro começou com a bunda, foi a primeira coisa que me veio à mente. Foi escrito só como uma desculpa para poder falar da bunda. Já tive essa experiência infeliz de paixão por uma bunda. Foi uma coisa muito platônica”, conta Mutarelli, sem cerimônia e num ritmo que lembra a própria prosa literária, cheio de repetições que dão um efeito cíclico à narrativa. Pela experiência com quadrinhos, o livro é direto, quase telegráfico. Períodos curtos se sobrepõem num fluxo de consciência rápido, seco, sujo, pessimista e escatológico. Todo narrado pelo protagonista, que não tem nome no livro e ganha o nome de Lourenço no filme em homenagem ao autor, ele permite que cada leitor idealize a perfeição que vê na bunda por que se apaixona, sem as imagens com as quais era acostumado em suas histórias em quadrinhos.

O personagem de Selton Melo é obcecado por uma bunda

“Não queria que o leitor pudesse ver a bunda, queria que cada um tivesse a liberdade de não ter uma imagem, e que as pessoas pudessem idealizar suas próprias bundas”, diz Mutarelli, que se apaixonou também por essa liberdade oferecida pela literatura, sem imagens. “Essa liberdade fez com que eu conseguisse me aprofundar na arte da palavra, o que me fez perder o interesse pelos quadrinhos. Consigo ser mais preciso no que quero dizer, permitindo um efeito mais aberto, de que gosto.” Depois de O Cheiro, Mutarelli passou a se dedicar somente aos romances, ao teatro. “Agora sou um escritor, de chinelinho e tudo”, ironiza. Foi aí que entrou o desafio de Dhalia. Como dar imagens ao ideal? Como expor o lado pervertido, sujo, escatológico do livro? Como adaptar o fluxo de consciência? “O maior desafio foi encontrar o tom certo, a fim de não ser excessivamente realista e pesado, como o livro poderia propor. Acabamos alcançando um tom mais leve do que o do livro, mais pop, irônico e divertido de uma forma elegante, sem soar como uma pornochanchada”, diz Dhalia, feliz e convencido de ter vencido o desafio. De fato, o filme é fiel à história original, mas mais leve e mais lento.

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Cruel, mas bem-humorado. Apesar da formação publicitária de Dhalia, sua obra não tem o ritmo alucinante de filmes que seguem o padrão hollywoodiano, e até mesmo permite silêncios, diálogos menos diretos. “O filme é rápido, sim, tem pouca contemplação. Claro que a velocidade do livro é maior, afinal, é uma narrativa em fluxo de consciência. O que fiz é uma tradução fílmica, limitada, naturalmente, mas que foge do “Pela experiência com óbvio”, complementa, referindo-se ao pouco uso de narrativa quadrinhos, o livro é direto, em off para substituir o pensaquase telegráfico. Períodos mento do protagonista. curtos se sobrepõem num Contando com a excelente fluxo de consciência rápido, interpretação do personagem central pelo ator (e garotoseco, sujo, pessimista propaganda, capaz de atrair e escatológico”

Heitor Dhalia, Selton Melo (sentados) e Lourenço Mutarelli (centro) durante as gravações do filme

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crítica e público) Selton Mello, a aposta deu certo. Mesmo em pouco tempo, O Cheiro do Ralo já ganhou prêmios em festivais do Rio, de São Paulo e fez parte da seleção oficial de Sundance, nos Estados Unidos. Tudo isso fruto do amadurecimento pessoal de Dhalia, que defende o passo anterior, Nina, que teve um público de menos de 40 mil pessoas, entretanto, como uma aposta mais alta e intransigente. “Nina foi muito bem recebido fora do Brasil, melhor do que O Cheiro do Ralo, até agora. Não foi um filme nulo. Ele era o que havia pensado para ele: um filme mais fechado, mais intransigente, menos comunicativo. O Cheiro do Ralo é totalmente comunicação, o oposto de Nina. Por isso a diferença de público”, explica.


CINEMA

Selton Melo, como Lourenço, e Paula Brown, a dona da bunda em questão

Apesar da diferença no objetivo e na linguagem dos seus dois filmes, Dhalia vê pontos em comum entre eles. “Lourenço e Dostoiévski falam das mesmas coisas, são parecidos. No fundo, os dois filmes têm tudo a ver entre si, têm uma mesma temática, que é a humilhação. A humilhação e a revolta que ela acarreta”, diz. Por mais que continue sendo descrito como um cineasta pernambucano na mídia nacional, Dhalia, que tem 37 anos e mora em São Paulo há 13, nega fortes influências regionais em seu cinema, tanto passado quanto futuro. “Faço um trabalho internacional, influenciado pela dinâmica de São Paulo, que é uma cidade muito cosmopolita. Toda a minha vida adulta eu vivi aqui, amo esta cidade, e ela é a minha casa”, diz. Se há algo de pernambucano nele, Dhalia chama de “loucura transgressora”.

“Paulo Caldas e Cláudio Assis foram dois caras que me influenciaram muito, mas o que ficou deles está mais em mim do que nos meus filmes. Tenho a loucura transgressora dos pernambucanos, de ir em busca do que se quer por mais insano que possa parecer, de quebrar as regras do tradicional.” Depois que quebrar demais os padrões e ser malrecebido na primeira experiência e depois conquistar seu espaço com o atual sucesso, Dhalia já cai em campo para aproveitar o bom momento. Enquanto O Cheiro ainda estréia em algumas cidades, ele já se concentra em novas produções, como À Deriva, filme que deve ter fortes traços autobiográficos, e um longametragem sobre a missão brasileira no Haiti, um romance no meio do clima de guerra. As duas produções são da “gigante” do cinema nacional O2 Filmes. • Continente junho 2007

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Godard revisitado Portador de uma linguagem inquieta, autoral e vanguardista, Godard tem sua filmografia revisitada com o lançamento de suas obras em DVD

Imagens: Reprodução

Marcelo Costa

Acossado (1959) é considerado o marco inaugural da Nouvelle Vague

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o filme Carmen de Godard, o cineasta personificado pelo próprio enfant terrible do cinema afirma que um coro harmônico de vozes impossibilita o encontro de uma voz com a outra. Essa frase talvez explicite a maior característica do cinema desse contestador francês: a provocação do conflito. Através do estranhamento ou do encontro incestuoso de idéias, seu cinema é uma voz dissonante capaz de inspirar um entrechoque dialético de conceitos e sentimentos. Portador de uma linguagem inquieta, autoral e vanguardista, Godard tem sua filmografia revisitada com o lançamento de suas obras em DVD. Jean-Luc Godard chamou a atenção do mundo em seu primeiro longa-metragem: o filme Acossado (1959). O filme é considerado o marco inaugural da Nouvelle Vague – a nova forma de expressão do cinema francês baseada na revalorização do autor – e possivelmente figura como um dos melhores filmes de estréia já realizados, ao lado de Os Incompreendidos (1959), de Truffaut. Em Acossado, Godard impõe inovações narrativas e estéticas. Rodado com a câmera na mão, rompendo uma regra até então inviolável, o filme conta a história de um típico ladrão parisiense, admirador de Humphrey Bogart, que se apaixona por uma norte-americana. Em grande parte, ambientado em externas, sob influência de Rossellini e do Neo-Realismo italiano, Godard desnuda a capital francesa e filma suas primeiras cenas em conjugados: uma marca autoral. Com entrecortes entre planos longos e cortes súbitos, Acossado anunciava um ritmo descontínuo e uma narrativa nervosa, construída sobre uma sintaxe nova ou uma anti-sintaxe. Apesar da proposta radical, o filme teve uma boa recepção junto ao grande público, algo que não mais se repetiria. “Só os grandes ditadores conseguem falar a milhões de pessoas de uma vez”, afirmou o cineasta. Nesse primeiro momento, Godard lançou seu olhar crítico sobre a crise da juventude – personagens sem ideais que vagam perdidos e se recusam a fazer parte das normas de conduta do sistema oficial. Seu segundo trabalho, O Pequeno Soldado, ganhou notoriedade

CINEMA por mostrar cenas de torturas de ambos os lados – francês e argelino – durante a guerra pela independência do país africano. A história é centrada num jovem desiludido que se envolve em movimentos políticos, embora sem saber ao certo o que isso signifique. Assim como em Acossado, o personagem é levado a cometer um assassinato, o que remete à participação de Samuel Fuller em O Demônio das Onze Horas (1965): “Filmes devem ser como um campo de bata-

L’enfant terrible Godard faz um cinema vanguardista e conflituoso

lha, com amor, ódio, ação, violência e morte. Em outras palavras, emoção”. Como o cineasta americano, Godard pode ser considerado um autor da desconstrução; seja de gêneros ou de narrativas. As histórias cedem lugar às idéias, o arrebatamento fácil à análise fria e crítica. Após desmistificar a comédia romântica e o feminismo em Uma Mulher é uma Mulher (1961), voltou às personagens marginaliContinente junho 2007

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Reproduções

A sombra de Alphaville (1965) ronda obras de ficção diversas como 2001 Uma Odisséia no Espaço, Blade Runner (foto)

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zadas em Viver a Vida (1962). Centrado na curta vida de uma jovem prostituta, interpretada por Anna Karina, musa e esposa do diretor, o filme carrega uma atmosfera gélida e austera num dos ensaios mais belos e sensíveis já proporcionados pela sétima arte. Segundo Truffaut, “um filme como Viver a Vida nos leva constantemente aos limites do abstrato, depois aos limites do conceito e, sem dúvida, é esse equilíbrio que gera a emoção”. Em Tempo de Guerra (1963), Godard amplia com uma lupa o espírito consumista, capaz de levar o homem a estágios de extrema violência e degradação, e a manipulação ideológica como artifício bélico. Narrado em grande parte pelas cartas dos camponeses a suas mulheres, Godard carrega as imagens e o texto de conflito e contradição como na execução fria de uma mulher que recita Maiakovski ou num registro familiar: “Deixamos atrás de nós um rastro de sangue e morte. Beijos carinhosos”. Já em Alphaville (1965), o descontentamento com a mecanização do homem o levou às veredas da ficção científica. Sob influência dos personagens de HQ e dos clássicos Admirável Mundo Novo e Metrópolis (1927), Godard construiu sua alegoria sobre dominação, tecnicismo e alienação. Um herói intergaláctico tem a missão de matar o inventor do computador fascista Alpha 60 – “uma versão aperfeiçoada da IBM, General Eletrics, Olivetti, Tokyorama” – que controla a sinistra comunidade. Crítica ao racionalismo técnico, ao funcionalismo e à insensibilidade capazes de acabar com a arte, tratada como arma de subversão social, talvez seja o trabalho mais influente de Godard. Sua sombra ronda obras de ficção esteticamente diversas como 2001 Uma Odisséia no Espaço (1968), Blade Runner (1982) e Matrix (1999). Na época do seu lançamento – de regimes “assumidamente” despóticos – a obra ganhava força crítica e realçava a faceta política do diretor. Seus próximos trabalhos, A Chinesa (1967), Weekend à Francesa (1968) e a criação do grupo de cinema Dziga Vertov, comprovam essa tendência. Na década de 80, Godard voltou a inovar a estética cinematográfica em Passion (1982), um mosaico entre cinema e pintura. Seus próximos trabalhos reacenderiam a chama da polêmica. Carmem de Godard (1983) trazia um panorama caótico, alternando momentos bizarros com metáforas poderosas. Godard retoma os bastidores do cinema, tratado com maestria em O Desprezo, e reflete sobre a sua impossibili-


CINEMA

Na página ao lado, cena do filme Uma Mulher é uma Mulher (1961); ao lado, Jacques Bonnaffé e Maruschka Detmers em Carmem de Godard (1983) e acima a musa Anna Karina em Viver a Vida (1962)

dade de comunicar. “A imagem é algo que indica alguma coisa ilimitada e ao mesmo tempo limita. A imagem e o som são um pouco incompletos. Se nosso corpo fosse feito apenas de olhos e ouvidos, isso não bastaria”, explica o autor. O tom melancólico prevalece em seus últimos projetos. A fragmentação e a assimetria ganham contornos de esquetes para reflexões filosóficas sobre cinema, arte, política e modernidade. Seus filmes tornam-se mais contemplativos e exigem mais do espectador. Há uma constante sensação de vazio que tangencia um fluxo contínuo de textos e imagens poéticas. Em Para Sempre Mozart (1996), um personagem reflete: “a vida moderna á acelerada demais. Não permite um sentimento tão ardente… tão terno… Que nos importa este casto noivado com o futuro? Não há tempo para esperar, nem para amar”, dando-nos a sensação de algo perdido. Pensamentos sobre a representação como projeção também estão presentes. “Infelizmente, a vida é um sonho tão penoso que é melhor sonhar fora dele.” Já Nossa Música (2004) se divide em inferno – representado por sete minutos de imagens de guerra –, purgatório, a Sarajevo contemporânea, e paraíso, representado por uma ilha protegida pela marinha americana. Sob enfoque humanista, Godard leva a cultura ao campo de batalha. “Por que a revolução não é feita pelos homens mais humanos?”, pergunta a jovem mulher. “Porque os homens mais humanos não fazem revoluções, senhorita. Eles fazem bibliotecas”, responde Godard na tentativa de construir “uma indeterminável força de criação, que fortaleça as lembranças, que delineie os sonhos, que materialize as imagens”. Enfim, uma força capaz de se contrapor ao interminável poder de destruição que nossa época alcançou. Nada mais Godard. Ponto e contraponto. Campo e contracampo. Sem consenso e consonância, mas pleno de emoção. Afinal, o conflito de idéias é carregado de sentimentos. • Alphaville, Para Sempre Mozart e Tempos de Guerra (Europa Filmes), e Nossa Música (Imovision), R$ 34,00 (cada). Continente junho 2007

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Imagens:Reprodução

Paisagem do Rio Una, Pernambuco, 1903, em foto de Francisco du Bocage

As glórias de Pernambuco e de Alagoas

Reedição de antigo livro de Sebastião Galvão sobre Pernambuco e lançamento de obra recente de Francisco Reinaldo Amorim de Barros sobre Alagoas mostram a permanência do gênero dicionário histórico Edson Nery da Fonseca

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bibliófilo e bibliógrafo Rubens Borba de Moraes classificou em dois grupos as obras raras de interesse para o Brasil: as escritas por estrangeiros como Barleus, Debret Sainte-Hillaire, Maria Graham, Koster e outros constituem a “coleção brasiliana” e as de autores brasileiros do período colonial a “coleção brasiliense”. As duas coleções do saudoso pesquisador paulista – doutor em letras por uma universidade suíça, participante ativo da Semana de Arte Moderna, criador da Biblioteca Municipal de São Paulo, reformador da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, primeiro diretor da Biblioteca das Nações Unidas em Nova York e professor emérito da Universidade de Brasília – integram hoje a preciosa biblioteca de José Mindlin. Quando, em 1962, Darcy Ribeiro me desafiou a colocar na biblioteca da UnB as obras descritas por Rubens Continente junho 2007

Borba de Moraes em sua Bibliografia Brasiliana – que na segunda edição aumentada e editada pela Universidade da Califórnia em Los Angeles inclui a coleção brasiliense –, verifiquei como era difícil consegui-las, porque da maior parte só existiam primeiras edições de preços estabelecidos pelos antiquários de Londres e Nova York. A partir dos anos 70 tivemos a sorte de ver reeditadas pelo menos as obras raras relativas ao Nordeste, graças ao historiador Leonardo Dantas Silva, discípulo emérito do nunca suficiente, louvado José Antonio Gonsalves de Melo. Mesmo afastado das instituições que financiavam suas reedições, Leonardo Dantas Silva continua exercendo sua benemérita ação bibliográfica, como prova a oportuna reedição do monumental Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Sebastião de Vasconcelos Galvão: caprichada reedição que é mais um serviço prestado à cultura pernambucana pela Companhia Editora de Pernambuco.


LITERATURA 79 Sou um consultor assíduo desta obra cujo autor, nascido pobre em Limoeiro, conseguiu diplomar-se pela Faculdade de Direito do Recife e distinguiu-se como escritor (foi um dos fundadores da Academia Pernambucana de Letras) e pesquisador acolhido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e por vários institutos históricos estaduais. O Dicionário consumiulhe quase 40 anos de pesquisas e, para vê-lo publicado esperou 30 anos, tendo o último volume saído um ano antes de sua morte. Existem outros dicionários histórico-geográficos no Brasil. Nenhum sobrepuja o de Sebastião Galvão pela amplitude que deu à história de Pernambuco, com dois repertórios biográficos nos verbetes dedicados a Pernambuco e ao Recife. Neste merece destaque o dedicado a Joaquim Nabuco, verdadeiro ensaio que vai da página 208 à 313 do volume III. Sebastião Galvão tinha a mesma disposição para a pesquisa que distinguiu Pereira da Costa. Ambos trabalharam sozinhos, dando a impressão de que dispunham de grandes equipes. O gênero dos dicionários históricos e biográficos parecia extinto quando apareceu o excelente Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Este, entretanto, contou com a colaboração de vários pesquisadores reunidos pela Fundação Getúlio Vargas no CPDOC. A pesquisa histórica é hoje um trabalho coletivo. Os velhos e incansáveis pesquisadores individuais como Pereira da Costa e Sebastião Galvão pareciam impossíveis em nossa época de trabalhos em equipes. Mas como nada é impossível “neste mundo de aparências”, como diria Manuel Bandeira, eis que surge Francisco Reinaldo Amorim de Barros com seu

ABC das Alagoas recentemente editado pelo Senado Federal. Paulista descendente de alagoanos, o autor é um gigante da pesquisa individual que lembra os nossos Pereira da Costa e Sebastião Galvão ou o baiano Sacramento Blake. Seu dicionário supera o que Sebastião Galvão dedicou a Pernambuco tanto pela moderna técnica de alfabetação dos verbetes como por sua amplitude. É muito mais do que histórico, geográfico e biográfico, incluindo até alagoanos vivos e curiosidades botânicas como o Gogó da Ema e culinárias como o delicioso sururu. A Editora do Senado Federal – dirigida por um lexicógrafo do alto nível de Joaquim Campelo Marques – vem publicando oportunas reedições de livros sobre o Brasil. O ABC das Alagoas é muito bem apresentado em dois grandes e grossos volumes. Faltam, entretanto, as chamadas alfabéticas nos cabeçalhos de cada página, que facilitam o encontro dos verbetes nelas contidos. De qualquer modo, Francisco Reinaldo Amorim de Barros prestou a Alagoas a mais expressiva homenagem recebida pelo Estado em que nasceram os dois primeiros presidentes da República, diplomatas como o Barão de Penedo, poetas como Jorge de Lima e Ledo Ivo, romancistas como Graciliano Ramos, ensaístas como Valdemar Cavalcanti, juristas como Pontes de Miranda, pintores como Rosalvo Ribeiro e Pierre Chalita, psiquiatras como Nise da Silveira e Gilberto de Macedo, folclorista como Theo Brandão, sociólogos como Manuel Diegues Júnior, para citar apenas os gênios alagoanos que me ocorrem no momento. •

O ABC das Alagoas (capa no alto), de Francisco Reinaldo Amorim de Barros, abrange aspectos da culinária e curiosidades botânicas, como o Gogó da Ema

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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito

O santo brasileiro Santo proclamado pelo povo, o Padre Cícero continua um transgressor

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rovavelmente, ao ler este artigo, Frei Galvão já terá sido canonizado. E o padre Cícero, quando chegará sua vez? Proclamado santo pelo povo nordestino, o padre Cícero Romão Batista, Padim Ciço, como é chamado pelos romeiros que visitam a cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, ainda não teve a santidade reconhecida pela Igreja Católica. O bispado cearense e o Vaticano cometeram muitos erros no julgamento dos milagres de Juazeiro, ocorridos no final do século 19, quando Cícero começou seu apostolado na vila que pertencia ao Crato. Por mais de uma vez, Roma decretou que o padre fosse excomungado, o que felizmente não aconteceu. Agora, tentam reverter velhos processos, de olho nos fiéis seguidores do Padim. Para os devotos de Cícero, a Santíssima Trindade é composta por Ele, Nossa Senhora das Dores e o Divino Espírito Santo. A religiosidade popular engendrou uma teogonia própria, um culto em que a figura principal é o padre. Os santos do panteão católico também são reconhecidos e adorados, mas nenhum supera o Padrinho. Como em todas as mitologias, existe um Cícero histórico, e outro criado pela mente fértil dos sertanejos. Padre Cícero era um dissidente da ortodoxia romana e o culto que lhe prestavam poderia ser considerado herético, como muitas heresias da Idade Média. Quando ele morreu, tinha as ordens suspensas, o que significa que não celebrava missa nem pregava, não ministrava a comunhão, nem confessava os fiéis. A Igreja Católica que hoje tenta se aproximar dos seus milhões de adoradores, na maioria gente pobre, no passado fez tudo para afastá-lo de sua hierarquia. Continente junho 2007

Enquanto os processos de canonização se arrastam por falta de milagres, a perseguição ao padre Cícero se deu justamente por causa de um milagre, que foi posto em dúvida. No primeiro dia de março de 1889, após receber a comunhão na capela de Juazeiro, a devota Maria de Araújo caiu por terra e a Imaculada Hóstia branca que acabava de receber tingiu-se de sangue. O fato extraordinário repetiu-se por dois meses, às quartas e sextas-feiras da Quaresma. Aclamado por alguns e negado por outros, o milagre é o início da carreira do padre Cícero e a projeção de Juazeiro como centro em que proliferavam ideais regionais e nacionalistas. A fé religiosa nascente vai de encontro a um movimento surgido em Roma, que tentava substituir o “catolicismo colonial” do Brasil pelo “catolicismo universalista” de Roma, com toda a rigidez hierárquica, moral e doutrinária que tal transição implicava. Julgado como embuste, o processo foi levado ao Vaticano e o padre punido. Embora tenha se projetado na política nacional e exercido o cargo de prefeito de Juazeiro, Padre Cícero ocupou-se de forma obsessiva com seu principal interesse: reaver o exercício das ordens eclesiásticas. Até sua morte, em 1934, não conseguiu o que desejava. Por um curto período de dois anos, o bispo D. Quintino, da cidade do Crato, permitiu que celebrasse missas, mas logo voltou a proibir o exercício sacerdotal. De nada valeu a postura rígida do clero brasileiro. Milhões de peregrinos visitam todos os anos a chamada Roma Nordestina ou Cidade Santa de Juazeiro do Norte. A pé, a cavalo, em caminhões pau-de-arara, de ônibus ou avião, não pára de chegar devoto. Vão aos lugares sagrados e pagam promessas. As casas de milagres não com-


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portam os ex-votos trazidos como testemunho das graças alcançadas. Santo proclamado pelo povo, o padre Cícero continua um transgressor. A burocracia do Vaticano é emperrada. Será necessário que suas ordens sejam restabelecidas, mesmo depois de morto, para que o considerem novamente padre. Em seguida, assumirá os postos de “servo de Deus”, depois “venerável”, noutra etapa “beato”, para finalmente chegar a santo. Um longo e custoso processo.

Enquanto a burocracia vaticana emperra, o povo louva o padre Cícero e celebra seus milagres. E o estima acima de todos os santos do panteão católico. A veneração é tanta que um artesão popular, fabricante de imagens de santo em argila, e que precisa botá-las para queimar, não aceita colocar o padre dentro do forno: – Queimar meu Padim? Deus me livre! Queimo nada! Posso queimar Santo Antonio, Santo Expedito, São Sebastião... Mas, meu Padim, eu não queimo. Sou doido, não! • Continente junho 2007

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O maestro vermelho José Siqueira fundou as mais destacadas orquestras e instituições de classe de seu tempo, mas passou os últimos anos de vida em ostracismo, sob o peso do AI nº 5 Carlos Eduardo Amaral


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Reprodução

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ntre os pólos do Sertão nordestino que prosperaram com o comércio de algodão há pouco menos de um século, estava Princesa Isabel, na Paraíba. A cidade, nos anos 20, já tinha cinema, carros de luxo pelas ruas e radiolas que tocavam os discos das mais conhecidas jazz bands de então. O jovem José de Lima Siqueira transcrevia em partitura as gravações chegadas do Rio para que a banda Cordão Encarnado, da qual era trompetista e saxofonista, animasse as noites dos clubes locais. José recebera as primeiras noções musicais de seu pai, João Baptista Siqueira, natural de Triunfo – município pernambucano vizinho a Princesa Isabel. Maestro João era dono da Cordão Encarnado e, quando faleceu, coube ao filho conduzi-la no cortejo fúnebre. Na idade de se alistar no exército, José rumou para João Pessoa (quando a capital ainda se chamava Paraíba). A tarefa de seu batalhão era deter a marcha da Coluna Prestes no Maranhão. José acabou simpatizando com o líder comunista e conheceu Juarez Távora, de quebra. Tempos depois, partiu do porto do Recife para ingressar na Escola Militar do Rio de Janeiro, levando somente seu trompete. Segundo consta, na Cidade Maravilhosa José viu pela primeira vez um piano, após completar 20 anos de idade. Formalizou seus estudos musicais, ingressando no Instituto Nacional de Música em 1928, estudou teoria e solfejo e diplomou-se em composição em 1933. Daí, José Siqueira engajou-se na tarefa de organizar a classe musical e encabeçou a criação da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), a fim de servir de “abrigo” a músicos refugiados de guerra, como o belga Arthur Bosmans e Eugene Szenkar, húngaro que regeu o concerto inaugural da orquestra, em 17 de agosto de 1940. Apesar de ser sinfônica (denominação tradicional que nada tem a ver com aspectos sonoros, pois significa que a orquestra é pública) e de Siqueira já ter adquirido uma visão esquerdista, a OSB foi a primeira orquestra livre e profissional do Brasil – uma filarmônica de fato (privada, em contraponto à sinfônica), que recebia contribuições da família Guinle, de Roberto Marinho e outros, e que posteriormente virou uma fundação. Maestro Siqueira não se dedicou só à música. Atuou como jornalista, escrevendo regularmente para o Diário da Manhã, e formou-se em Direito em 1943. Afastado da OSB possivelmente por disputas administrativas de bastidores, idealizou a Orquestra de Câmara do Brasil (OCB) e a Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio Mec (OSN) na década mais ativa – que logo se transformou na mais aflitiva – de sua vida: a de 1960. À frente da OCB, promoveu a primeira audição mundial de boa parte de suas obras sinfônicas, enquanto que Continente junho 2007


Arquivo de Família

MÚSICA

O maestro José Siqueira durante sua posse na Academia Brasileira de Artes

Divulgação

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Ricardo Tacuchian, atual presidente da ABM, foi aluno de composição de Siqueira na UFRJ

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a estréia de suas canções, várias delas com letra de Manuel Bandeira e Augusto Linhares, cabia à dedicada esposa, a soprano carioca (de leve sotaque lisboeta) Alice Ribeiro. Mas o empenho de José Siqueira tinha um escopo além da fundação de orquestras bem administradas: a melhoria das condições de trabalho e a regulamentação da atuação dos músicos do Brasil. Estes, até então, não podiam, por exemplo, receber aposentadoria pelo INPS (o INSS na época). Siqueira acreditou que o futuro órgão regulador deveria funcionar nos moldes da já existente OAB. Assim, a formação advocatícia e a vivência de músico amador permitiram-no redigir o anteprojeto da lei que criou a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). E dela tornou-se primeiro presidente, em 1960. O maestro e compositor paraibano ainda articulou a oficialização da Orquestra Sinfônica do Recife durante o primeiro mandato de Miguel Arraes como prefeito (1959 – 1962). Antes da OMB, Siqueira fundou o Clube do Disco, a Sociedade Artística Internacional e a União dos Músicos do Brasil (UMB), sem contar que seu nome se encontra entre os membros fundadores da Academia Brasileira de Artes e da Academia Brasileira de Música (ABM). Ricardo Tacuchian, atual presidente da ABM, tornou-se aluno de composição de Siqueira na UFRJ, em 1963, e exerceu a secretaria do Conselho Federal da OMB, quando o professor presidia a entidade, além de participar de projetos coordenados pela UMB, como a criação da OCB. O compositor fluminense presenciou o golpe mais desleal que Siqueira veio a receber: “Lamentavelmente fui eu quem deu a ele, por telefone, a notícia de sua aposentadoria pelo AI nº 5, publicada no Jornal do Brasil. Siqueira fora covardemente acusado por seus desafetos anônimos, sem oportunidade de se defender. Ele sequer sabia que havia um processo político contra ele, movido pela insidiosa ditadura militar”. O presidente da ABM cogita se a determinação do AI nº5 dirigia-se ao amigo: “Poderia ser algum homônimo porque nenhum dos seus amigos sabia que corria algum processo contra ele”. No entanto, as diversas represálias vieram de imediato. A Ordem dos Músicos do Brasil foi invadida por grupos paramilitares e interditada (“Nunca mais Siqueira pôs os pés na entidade que criou e, a partir deste fato, foi totalmente deturpada de seus primeiros objetivos”, aponta Tacuchian), os convites para Siqueira reger orquestras ou aparecer na imprensa cessaram e suas obras não eram mais executadas. Não tardou para a maior parte dos conhecidos se afastar por medo e o compositor sofrer um AVC, que o incapacitou por alguns anos. Depois da aposentadoria forçada, Siqueira intensificou a carreira internacional, encontrando grande guarida no Leste Europeu. Representou o Brasil em Moscou em 1981, no Encontro Internacional de Música Contemporânea, ao lado de sua mulher Alice Ribeiro, do amigo Tacuchian e de Camargo Guarnieri. É de se observar que todas as suas obras para flauta foram editadas na antiga Alemanha Oriental, mas há um certo número de peças extravidas. O maestro e musicólogo Henrique Autran Dourado cita como desaparecido um concerto para contrabaixo e orquestra estreado


MÚSICA Divulgação/Companhia Vale do Rio Doce

José Siqueira conduziu a criação da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), em 1940, primeira orquestra livre e profissional do país

pela OCB em meados da década de 1970: “Uma peça única, interessante mesmo, que nunca mais foi tocada. O concerto foi solado pelo tcheco Ladislav Bálek e regido pelo próprio José Siqueira”. Numa sala esquecida do centro do Rio, foram achadas recentemente dezenas de fitas, discos, livros, fotos e partituras (tal qual as das 10 sonatinas para piano). O aluguel da sala vinha sendo pago pela única neta de José Siqueira, Mirella San Martini, que não tinha dimensão do que estava guardado. Por sugestão do marido, Mirella doou todo o acervo à Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira. O material está sendo organizado pelo coordenador educacional da instituição, maestro Leonardo Sá, junto com a família do compositor. A segunda meta será a publicação do catálogo completo de obras. Quanto à orientação estética, Siqueira nunca flertou com o serialismo ou o atonalismo. Pelo contrário, inclinou-se cada vez mais para as escalas nordestinas. Antes de 1943 seguiu uma linha universalista; passou por uma fase nacionalista e em 1950 já tinha sua linha regionalista definida, chamada de nordestina essencial, onde prevalece o uso de escalas trimodais e pentamodais. Das cerca de 300 obras que deixou, a mais representativa, em opinião

unânime, é o oratório Candomblé, composto em 1958 e estreado em 1963; obra da mesma linha da cantata Xangô. Assim como outros compositores brasileiros, Siqueira também adentrou terreiros – os de Salvador –, tomou nota das toadas e dos pontos batucados no terno de atabaques sagrados (rum, rumpi e lê) e usou as anotações na elaboração da grandiosa peça coral-sinfônica. Igualmente representativo é o Concerto para orquestra (1980), porém o repertório siqueiriano abrange até estudos para cada um dos instrumentos sinfônicos. Siqueira, cujo centenário de nascimento vai ser celebrado no dia 24 de junho, faleceu em 22 de abril de 1985, um dia após Tancredo Neves. Pobre, com poucos amigos, mas sabendo que as perseguições a si se acabariam caso tivesse vivido mais, e que poderia voltar à ativa com as forças que lhe restassem, como relembra Ricardo Tacuchian: “Não havia uma causa justa no âmbito da música da qual o Siqueira não participasse, em nível local ou nacional. São muitas as lembranças que tenho dele. Tive outros professores de Composição, com orientações bem diferentes da dele, mas a nenhum outro mestre eu devo tanto quanto a Siqueira. Considero-o meu pai espiritual na música”. • Continente junho 2007

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AGENDA/MÚSICA

Como é que é? a sério para um folião contumaz se comportar “feiP edir to gente” só pode ser um carinhoso conselho de nossos

bisavós, ou então sabe-se lá o quê. Tanto que o SaGrama se despediria deles escondendo um sorriso de malícia infantil, sem dar pistas de que iria comandar a folia. Tenha Modos, o mais novo CD do grupo, sem querer vira um autêntico “pólo de todos os carnavais” e vai do caboclinho (“Matruá”) e do afoxé (“Olinda”) aos maracatus de baque solto (“Limpa de cacimba”) e de baque virado (“Maracatu Nassau” e “Banzo Maracatu”), sem se esquecer de manifestações mais periféricas: o boi (“Boi Cipó”), o samba de terreiro (“Samba Caboclo”) e a ruidosa la ursa (“Cintura amarrada”). Nesse mini-compêndio do carnaval pernambucano, o destaque, naturalmente, são os 100 anos do frevo. O ritmo é celebrado em cinco faixas, quatro de frevo de rua: “Frevo Centenário” (de Luiz Guimarães), “Mordido” (Alcides Leão), “Último dia” (Levino Ferreira) e a faixa-título (de Sérgio Campelo, que assina a maioria das músicas do disco). “Evocação nº 1” (Nelson Ferreira) representa o frevo de pau e corda. Apesar de sempre ter sido, a rigor, um conjunto de câmara, o SaGrama mantém a espontaneidade requerida pela música popular e continua a acertar nos arranjos sob medida para sua peculiar formação, que mescla viola sertaneja, clarone e clarineta, flautas, violão e vasta percussão. Entre as participações especiais do CD estão o rabequeiro Maciel Salu, o trombonista Nilsinho Amarante, a bandolinista Maíra Macedo, o Coral Contracantos e Spok. Tenha Modos foi aprovado em 2006 no Sistema de Incentivo à Cultura da Prefeitura do Recife. (Carlos Eduardo Amaral)

Tenha Modos, SaGrama, LG Produções.

Vigor britânico Em um CD que comemora 10 anos de lançamento, a EMI reuniu os três concertos mais recentes de Michael Nyman à época. O Concerto duplo para sax alto/soprano, violoncelo e orquestra – comissionado pela filial inglesa da fábrica de carros Mazda – começa monódico; o Concerto para cravo e cordas, desordenado; e o Concerto para trombone e orquestra, como um acalanto, mas bastam poucos minutos para os três imprimirem um vigor incessante e resoluto, que se mostra marca do veterano compositor e regente britânico. À frente de três orquestras diferentes, Nyman rege Julian Lloyd-Webber no cello, John Harle nos saxes, Elisabeth Chojnacka no cravo e o renomado trombonista sueco Christian Lindberg. (CEA) Nyman – Edition nº 1, EMI Classics. Continente junho 2007

A partir de inúbias O professor e compositor carioca, filho de paraibanos, Guilherme Bauer, foi aluno de Cláudio Santoro, Esther Scliar e César Guerra Peixe e segue uma linha estética atonal livre, de eventual convergência com ritmos populares. Seu primeiro CD traz interpretações do Trio Fibonacci (“Trio para violino, violoncelo e piano”), do violinista Erich Lehninger (“Partita Brasileira” e “Cadências para violino e orquestra”, com a Sinfônica Brasileira), dos suecos Andréas Polzberger e Sven Birch (“Duas peças para violoncelo e piano”), e do Quarteto Moyzes (“Quarteto nº 2”). O álbum é aberto pelas irrequietas “Sugestões de Inúbias”, para duo de flautas, que mostram a influência exercida pelo amigo Guerra Peixe e reproduzem as ágeis melodias dos caboclinhos. (CEA) Guilherme Bauer, Academia Brasileira de Música. Pedidos: vendas@abmusica.org.br

Piano canhoto De um solo raro de contrafagote, que já foi comparado aos roncos de “um monstro emergindo do pântano”, nasce o primeiro tema de um dos concertos para piano mais curiosos: o em ré maior de Ravel, chamado “Concerto para a mão esquerda”. A peça foi composta para Paul Wittgenstein (irmão do famoso filósofo austríaco), que teve o braço direito amputado na Primeira Guerra. João Carlos Martins o gravou em 2001, logo após perder por completo as funções da mesma mão. Além de se emular com Wittgenstein, nessa gravação Martins dá uma de Glenn Gould e cantarola as melodias enquanto toca, o que torna a peça de Ravel mais soturna. Um noturno de Scriabin, seis estudos de Saint-Saëns e uma chacona de Bach completam o CD. (CEA) João Carlos Martins "Left hand", Atração, R$ 18,90. Pedidos: www.atracao.com.br

Brasil na Morávia

O compositor, maestro e produtor musical mineiro Andersen Viana estudou com Radamés Gnatalli, especializou-se em música para cinema com Ennio Morricone e escreveu mais de 200 obras até hoje. À frente da Filarmônica da Morávia, na república tcheca, Andersen transita do atonal e frígido “Quattuor” à acessível e melodiosa “Suíte de canções infantis brasileiras”, com seu nostálgico pout-pourri que inclui “Marcha Soldado”, “Ciranda Cirandinha” e outros “clássicos de infância”. Contemplando o pouco explorado repertório brasileiro para violino e orquestra, o CD abre com a cadenciada “Peça de concerto ‘in Blue’”. A “Micro Suíte” e a “Sinfonia nº 3” (Terra Brasilis), que remete aos 500 anos do Descobrimento, completam o disco. (CEA) Moravian Philharmonic Orchestra – Andersen Viana, produção independente, R$ 20,00. Pedidos: www.andersen.mus.br


AGENDA/MÚSICA De Caruaru para o Brasil Zabumba Bacamarte é uma banda de rock, mas surgida aos pés de uma estátua de Luiz Gonzaga, que mescla a sonoridade dos violeiros, dos emboladores, das bandas de pífanos e dos trios pé-de-serra. No universo simbólico do sertanejo, o Big-Bang da grupo foi um estampido da rústica arma que causou um clarão no céu do Agreste: “Zabumba Bacamarte é um tiro de guerra que se transformou em arte” e que professa a “aceitação do novo e preservação das raízes”. As letras, escritas quase todas pelos integrantes Alexandre Morais e Hélder Isaac, destacam-se por serem construídas dentro das métricas e dos temas tradicionais do cancioneiro interiorano, a exemplo de “Rosário apressado”, “O cangaceiro e a flor” e “Desavença de caboclo”. (CEA) Zabumba Bacamarte – No tabuleiro do mundo, CPC-UMES.

Livro e música Um mistura de livro e Cd. Assim é o novo trabalho que o poeta maranhense Celso Borges apresenta ao público. A poesia dialoga com os diversos ritmos musicais (fado, canção, rap...) e é declamada com fortes acompanhamentos sonoros em 25 poemas-faixas. Um produto híbrido, localizado entre a literatura e a música, desses comuns aos tempos pós-modernos. A apresentação do material tem um design inusitado e interessante que imita um velho compacto, furado ao meio, com os lados A e B. A obra reúne mais de 50 poetas e compositores, tais como Zeca Baleiro, Chico César, Micheliny Verunschk. Ricardo Corona, entre outros. Música, Celso Borges, Editora Medusa, R$ 30,00.

Mais Forroboxote Em tempos de São João, chega ao mercado fonográfico o sexto volume da série Forroboxote, de Xico Bizerra. Desta vez, o homenageado no CD, intitulado Do Reino Encantado do Novo Exu às Veredas do Resto do Mundo e Adjacências é o baião, ritmo criado por Luiz Gonzaga há 40 anos. São 16 faixas da autoria de Xico (algumas em parceria), interpretadas por cantadores como Santana, Flávio Leandro, Chiquinha Gonzaga, entre tantos outros. As sanfonas de Gennaro, César do Acordeon e Beto Hortis dominam todo o repertório, diferenciando-se dos acordes eletrônico tão em voga. Um baião pé-de-serra de primeira linha, tanto musicalmente como em termos de composição. Para ouvir e ralar o bucho... Do Reino Encantado do Novo Exu às Veredas do Resto do Mundo e Adjacências, Independente, R$ 14,00.

Samba gaúcho ouco se sabe que no Rio Grande do Sul nasceu, e viveu, um compositor e cantor da mesma altura de Adoniran P Barbosa, Noel Rosa e Lupicínio Rodrigues. Porém o CD-

book Pra ser samba brasileiro coloca os pampas no mapa nacional das rodas de samba e resgata a música de Túlio Piva (1915–1993), um branco, descendente de italianos, gaúcho da fronteira com a Argentina, mas que fez versos de total autenticidade sobre morros, mulatas, solidão, bares e pedidos de perdão. Ter travado contato com Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Baden Powell e Pixinguinha não dá tanta idéia de quem foi Túlio Piva como ter tido suas canções gravadas por Carmélia Alves, Elza Soares, Demônios da Garoa, Noite Ilustrada, Jair Rodrigues e Elis Regina. Tanto que, em 1973, abriu o bar “Gente da noite”, que, segundo ele, se converteu numa “autêntica catedral do samba” dentro de Porto Alegre. O CD duplo reúne 39 fonogramas dos quatro únicos discos que lançou (junto com a cantora Eneida Martins) e pode ser considerado, sem dúvida, um registro de 24 quilates para o samba brasileiro. A primeira música da lista é o maior sucesso de Piva, “Tem que ter mulata”, e quem conhecer e quiser ouvir logo “Pandeiro de prata”, pode ir direto para o CD 2. Para agregar mais valor e revelar outra faceta do sambista, o CD vem junto com seu Inventário lírico: um livro de fotos, poemas, crônicas e aforismos, aberto com sonetos do mesmo nível das letras das canções e que versam até sobre procissões, papéis antigos e a alvorada. Sendo verdade um dos apotegmas, que Túlio Piva proferiu, “Avalia-se o mérito pelas resistências que provoca”, Pra ser samba... é prova da resistência de sua obra ao tempo – e é o devido mérito a ela. (CEA)

Túlio Piva – Pra ser samba brasileiro, produção independente. Pedidos: www.rodrigopiva.com.br

Festa dos tambores Quando os escravos diziam que ia ter kangoma, anunciavam uma festa com muita batucada, longe da casa-grande. É isso que se ouve em Boa tarde, povo, do grupo Kangoma (sem senhorio para incomodar). Reunindo vários ritmos afro-brasileiros e aplicando toques de drum’n’bass e de efeitos eletrônicos, o Kangoma traz invocações em línguas africanas, pontos de umbanda e ritmos como marujada, jongo, martelo, samba mineiro. A peça título é um dançante baianal que guarda parentesco direto com o funk, mas também tem maracatu e caboclinho. O disco traz composições de Antonio Nóbrega, Karina Buhr (do Comadre Fulozinha), Lenine, Bráulio Tavares e outros compositores. O percussionista Papete ainda marca presença em “O presente de Papete”. (CEA) Kangoma – Boa tarde, povo, CPC-UMES. Continente junho 2007

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SOB O SIGNO DO MANDACARU

Agamenon Magalh達es


Interventor, governador, ministro de Estado, deputado estadual, deputado federal constituinte, doutrinário, figura de proa e de convés da ditadura do Estado Novo, Agamenon Magalhães pertence ao imaginário e ao lendário da política pernambucana José Adalberto Ribeiro

D

a República Velha à Primavera Democrática, Agamenon povoa o imaginário popular com os traços políticos e culturais do paternalismo, mandonismo, intelectual sintonizado com o ideário parlamentarista do mundo europeu e ao mesmo tempo o chefe político da província no exercício autoritário e personalista do poder. O nome de batismo e de crisma é Agamenon Sérgio de Godoy Magalhães. Agamenon é o nome de guerra. Na hora H, Agamenon é nome de guerra e paz. Agamenon nasceu com uma estrela de líder na testa. Ele sonhou e viveu nas quatro estações da natureza humana e da geografia política brasileira: do marasmo da República Velha aos clarões da Revolução de 1930, das tempestades do Estado Novo à primavera da Redemocratização em 1946. Conheceu auroras e crepúsculos. Nascido sob o signo do mandacaru, o caboclo sertanejo cantou a pedra no meio da tempestade: "Eu nasci para lutar e vencer". Eis a linguagem poética do mandacaru: "Regressei do sertão com saudades. A paisagem que vi criança nunca mais me deixou. A nostalgia dos espinhos. Dos espinhos que nos ensinam a sofrer e a resistir contra as agressividades da vida. Que nos ensinam a lutar e a vencer". Ele praticou na política a lição dos romanos: Non ducor, duco, não sou conduzido, eu conduzo! Você tem medo de quê, caboclo Agamenon? "Eu não tenho medo da guerra. Tenho medo da seca", dizia o jornalista numa crônica da Folha da Manhã. Controvertido, querido e até idolatrado, temido e até odiado, derramou-se em emoções numa noite de Natal das Crianças Pobres de Santo Amaro: "Eu sou, talvez, o mais humano dos homens. As paixões, que me sacodem os nervos, têm para mim mais grandeza do que um céu sem nuvens. Mas, assistindo ao Natal das Crianças Pobres de Santo Amaro, eu desejei ser menino, menino anônimo, desconhecido, para ter a alegria de um saquinho de brinquedos" (Folha, 23.12.l938). Modéstia do orador. Na verdade, era um espírito do bem.

As origens Filho primogênito do juiz Sérgio Nunes Magalhães e de d. Antônia Godoy Magalhães, nasceu no dia 5 de novembro de 1893, no lugarejo de Vila Bela, hoje município de Serra Talhada, alto sertão de Pernambuco. Logo depois o pai foi nomeado para exercer o cargo na comarca de Jatobá de Tacaratu. A paisagem política onde Agamenon nasceu e encarnou na política era a chamada República Velha, ou

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Fotos: Arquivo de Família

Acima, o seminarista Agamenon, identificado com o nº 2. À esquerda, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, turma de 1916

Agamenon ficou noivo em 1918 e casou-se no ano seguinte com Antonieta Bezerra Cavalcanti

Primeira República, que vingou desde a Proclamação em 1889 até a Revolução de 1930. O Brasil da República Velha mais parecia um grande feudo que uma grande nação, em termos políticos, sociais e econômicos. Remanescente do período colonial, o sistema econômico reduzia-se à condição de plantation, de lavouras em grande escala que demandavam mão-deobra intensiva, tipo café e cana-de-açúcar. Praticava-se o chamado "voto a bico de pena" (voto a descoberto) e a independência entre os Poderes constituídos era apenas uma ficção. Como parte da aliança "café-com-leite", paulistas e mineiros sucediam-se na Presidência da República. A distância geográfica das Metrópoles para o Interior multiplicava o mandonismo das oligarquias. Filho de peixe... Lá se foi o adolescente Agamenon estudar no Seminário de Olinda, em regime de internamento. Durante dois anos, o jovem dedicou ao estudo das chamadas humanidades – geografia, história, matemática, álgebra. A vocação sacerdotal do jovem Agamenon durou apenas dois anos e esgotou-se no ofício de coroinha. Do Seminário de Olinda, foi transferido para o tradicional

Ginásio Pernambucano, onde concluiu em 1911 o curso de Humanidades. Do Ginásio Pernambucano para a Faculdade de Direito foi um pulo. O pulo acadêmico aconteceu em 1912. De degrau em degrau, Agamenon bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, turma de 1916. A crônica da época registra que ele era "um moço dedicado aos livros, infenso à vida boêmia da estudantada do seu tempo". O orador da turma foi Aníbal Fernandes, futuro expoente do jornalismo pernambucano e adversário de Agamenon nas lides políticas da década de 1940. O líder político começou a ser forjado nas batalhas acadêmicas de um mundo em efervescência. O tempo era de gestações e mudanças. O mundo girava sob o signo da Revolução Industrial do começo do século 20. No Brasil, a República Velha aprofundava seus conflitos sob o governo do presidente Venceslau Brás. Com o canudo na mão, o jovem bacharel em Direito é nomeado promotor público da Comarca de São Lourenço da Mata, na Zona da Mata de Pernambuco. Mas, a Promotoria Pública era pequena demais para os Junho 2007

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Reprodução

sonhos de Agamenon. Exerceu apenas durante um ano, em 1917, o cargo de promotor. Ficou noivo de Dona Antonieta Bezerra Cavalcanti em 1918 e casaram-se em julho do ano seguinte. Pelas mãos do governador Manoel Borba ingressa no Partido Republicano Democrata (PRD) e conquista o primeiro mandato como deputado estadual em 1918. Foi o batismo das urnas. A Legislatura vai de 1919 a 1921. No primeiro mandato como deputado federal, a partir de 1924, acentua-se o seu desempenho no trato das questões nacionais de natureza econômica, social e política. O trabalho político se desenvolve em duas linhas: como militante da Aliança Liberal, na conspiração contra as oligarquias da República Velha, que caminhava para a desagregação com o processo que desaguaria na Revolução de 1930; e, no âmbito parlamentar, maneja as ferramentas das reformas sociais. A República Velha (ou Primeira República) já estava cansada de guerra, de rebeliões, sedições militares e conflitos – o inferno astral das decadências. Em 1929, com a depressão econômica nos Estados Unidos (o chamado crack, ou quebra, da Bolsa de Valores de Nova York), aprofunda-se a crise econômica mundial. Pelo acordo das oligarquias, caberia aos mineiros indicar o sucessor presidencial do paulista Washington Luís. Mas Washington lança o governador paulista Júlio Prestes para sucedê-lo na Presidência da República e os mineiros rompem o acordo das oligarquias. Os revoltosos deflagram a Revolução de 1930. Em outubro, uma junta militar provisória empalma o poder para fazer a transição do regime. No dia 3 de novembro, Getúlio Vargas assume a Presidência da República no Palácio do Catete.

Novo regime Na fase de estruturação do novo regime, o presidente Getúlio Vargas nomeia interventores para os Estados. Carlos de Lima Cavalcanti é indicado para ser o interventor de Pernambuco. O Interventor e Agamenon empenham-se, lado a lado, na criação do Partido Social Democrata (PSD). Uma longa trajetória de encontros e desencontros estava reservada para os dois. O quarentão Agamenon é eleito em 1932 para o terceiro mandato federal pelo Partido Social Democrata (PSD) como constituinte de Pernambuco. O desempenho parlamentar na Constituinte de 1933 foi centrado na doutrinação do Parlamentarismo. O novo regime havia rompido a ordem institucional da República Velha, mas faltava implantar seu próprio sistema institucional. Para dissolver os conflitos e elaborar uma nova Carta, foi instalada em 1933 a Assembléia Nacional Constituinte. Ao lado de expoentes do Parlamento brasileiro, um Prado Kelly e um Horácio Lafer, Agamenon

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Luís Carlos Prestes (no alto) liderou a insurreição comunista de 1935, que foi imediatamente sufocada. Com Getúlio Vargas (abaixo) , Agamenon Magalhães acumulou as pastas da Justiça e do Trabalho. Na vigência do Estado Novo, foi nomeado interventor em Pernambuco


debate as idéias constitucionais no Palácio Tiradentes. "Há coisas para todos os paladares e para todas as necessidades nessas plataformas, gênero conto da Carochinha, ao jeito daqueles vestidos cor do céu, com todas as estrelas. Predominavam o filhotismo (nepotismo), as relações pessoais. Não havia estímulo. Dir-se-ia que o espírito, a inteligência ou a cultura eram incompatíveis com a política no Brasil." A Constituição de 1934 consolidou avanços imprescindíveis à modernização da sociedade brasileira. Institucionalizou o voto secreto e obrigatório no lugar do chamado "voto a bico de pena" (voto a descoberto ou "voto de cabresto") e reconheceu o direito de voto às mulheres. Também manteve a essência do liberalismo.

Ministro do trabalho Em 23 de julho de 1934, Agamenon Magalhães foi convocado para assumir o cargo de ministro do Trabalho, da Indústria e Comércio do Governo Getúlio Vargas. Em Pernambuco, depois de disputar campanha Arquivo de Família

eleitoral pacífica, com amplo favoritismo, Carlos de Lima Cavalcanti é eleito governador constitucional do Estado. O Governo de Getúlio Vargas propunha-se a legitimar direitos dos trabalhadores e nesse ponto havia uma legislação a cumprir, mesmo que esses direitos ainda fossem mitigados. Mas os direitos dos empregados nem sempre eram respeitados pelo patronato e essa era uma fonte permanente de conflitos. Agamenon entendia que o sindicalismo facilitava a integração do capital com o trabalho. Ao mesmo tempo, não se fazia de rogado em intervir nos sindicatos, quando as entidades eram movidas por extremismos considerados contrárias à ordem democrática. A insurreição comunista de novembro de 1935, conduzida pela Aliança Nacional Libertadora, sob a liderança de Luís Carlos Prestes, como manobra para desestabilizar o governo de Vargas, acabou sendo sufocada no mesmo dia. Desencadeou repressões contra os comunistas e ao mesmo tempo gerou apreensões no governo quanto ao atendimento das reivindicações sociais dos trabalhadores. Agamenon atua no Ministério do Trabalho para que seja criada uma Justiça do Trabalho de modo a que o governo disponha de mais instrumentos para controlar os movimentos trabalhistas e contemplar as suas reivindicações. A partir de janeiro de 1937, passa a acumular também o cargo de Ministro da Justiça. Esse ano era a véspera da sucessão presidencial. Agamenon ocupava amplos espaços no governo. Ao exercer liderança tão abrangente, o seu desempenho haveria de disseminar venenos e rivalidades. O embaixador do Brasil em Washington, Osvaldo Aranha, pessoa da confiança do presidente da República e que havia voltado ao Brasil para tratar da sucessão presidencial, escreveu carta a Getúlio Vargas protestando contra o papel desempenhado pelo ministro nas articulações políticas. Bateu forte: "(....)Nada mais difícil, Getúlio, do que tratar com gente sem caráter e decidida a confundir, destruir, intrigar. Não é possível fazer algo de sério e estável com um homem como o que indicaste para o Ministério da Justiça e que se diz o teu alter ego". As turbulências na ponte política que fazia a ligação do Distrito Federal com Pernambuco levaram ao rompimento do ministro Agamenon Magalhães com Carlos de Lima Cavalcanti. Havia transcorrido sete anos de regime forte sob a liderança de Getúlio Vargas. As eleições presidenciais constitucionais estavam marcadas para janeiro de Junho 2007

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1938. Mas Getúlio e seus aliados conspiravam para a manutenção do poder. Estavam postas as candidaturas de José Américo de Almeida, Armando Sales de Oliveira e Plínio Salgado. Os dois primeiros identificavam-se com as idéias liberais e Plínio Salgado bebia nas fontes do Integralismo, versão tropical do fascismo europeu. Havia duas hipóteses: a vitória dos liberais seria porta aberta para o avanço do comunismo russo-soviético, enquanto o integralismo daria o poder aos fascistas, discípulos de Hitler, na Alemanha, e de Mussolini, na Itália. Estes eram os argumentos dos conspiradores pro-Getúlio e pelas salvaguardas democráticas.

Interventor em Pernambuco No dia 10 de novembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas decreta, do alto dos seus poderes constitucionais e supra-constitucionais, a vigência do Estado Novo. São dissolvidos o Congresso Nacional, os Legislativos estaduais e municipais, os partidos políticos, suspensas as eleições e estabelecido o mandato de seis anos para a continuidade do presidente Getúlio Vargas. É decretado Estado de Emergência em Pernambuco. Conspirador in pectoris de Getúlio, o ex-ministro Agamenon é nomeado, em 25 de novembro de 1937, interventor de Pernambuco. O governador Carlos de Lima Cavalcanti, ex-aliado de Agamenon, é deposto pelo coronel Amaro Azambuja Vilanova em nome do Estado Novo. Na hora H, em 3 de dezembro de 1937, o sertanejo que tinha um mandacaru no peito, que não dava sombra nem encosto aos adversários,

A Liga Social Contra o Mocambo foi criada em 12 de julho de 1939, sendo a parte mais destacada do plano de urbanização e saneamento do governo de Agamenon Magalhães

assumiu o cargo de interventor, com carta branca do presidente para casar e batizar, nomear, demitir, transferir, prender, soltar, administrar todos os sacramentos do poder. Diante de uma multidão defronte ao Palácio do Campo das Princesas e tendo como testemunha os baobás da Praça da República, Agamenon pronuncia a famosa frase que se tornaria uma legenda em Pernambuco: – "Eu vim para trazer a emoção do Estado Novo!". Numa revisão histórica de final do século, poderá ser dito que o Estado Novo foi o AI-5 da Revolução de 1930. Ou o Estado Novo está para a Revolução de 30 assim como o AI-5, de dezembro de 1968, está para o Movimento Militar de 1964. Além de trazer "a emoção do Estado Novo", o interventor fez uma podação geral nos roçados do ex-aliado Carlos de Lima Cavalcanti. "O nosso lema é o ruralismo, é a criação da riqueza, e o combate a tudo o que é suntuário, dispersivo e inútil", proclamou o homem. A Prefeitura do Recife era o jardim das predileções do interventor. Para cuidar desses jardins, nomeou o lavrador Novaes Filho. Este capítulo estava diretamente relacionado com a campanha para acabar com os mocambos na capital. O programa agamenônico de governo consistia, em linhas gerais, na recuperação econômica e social de Pernambuco. Trouxe as idéias de florescimento do Sertão, combate ao latifúndio improdutivo, diversificação das culturas ao invés da monocultura da cana-de-açúcar, fixação do homem à terra e disseminação do sistema de


cooperativas. A erradicação dos mocambos no Recife e a pavimentação de estradas eram prioridades de governo.

Fotos: Reprodução

Mocambos lendários A Liga Contra o Mocambo virou símbolo de Agamenon Magalhães no imaginário popular. Este constitui um dos principais capítulos da ação doutrinária, política e administrativa durante o período da interventoria. Depois do reconhecimento de terreno nos finais de 1937 e 1938, a Liga Social Contra o Mocambo foi criada em 12 de julho de 1939. Em 1945 foi transformada em Serviço Social Contra o Mocambo. A erradicação do mocambo, mediante a construção de casas populares de alvenaria, insere-se entre as prioridades do governo de Agamenon Magalhães: urbanização e saneamento das cidades, pavimentação de estradas, habitação popular, fortalecimento da pequena agricultura, saúde e educação. A fermentação de idéias em torno da questão social gerou duas receitas antagônicas: de um lado o marxismo, com a pregação da luta de classes e ditadura do proletariado, sob o signo da Revolução Soviética; e a doutrina social conservadora da Igreja Católica, com base na Encíclica Rerum Novarum, anunciada pelo Papa Leão XIII em 1891 e que foi retomada pelo Papa Pio XI para contrapor-se aos comunistas. Agamenon Magalhães optou pelos ensinamentos da Igreja Católica, Apostólica, Romana (e pernambucana...). Os corações generosos da Associação Comercial realizaram em 1940 um formidável leilão em benefício da Liga Social Contra o Mocambo. A Federação das Benício Dias fotografou em 1939 um trabalhador residente em mocambo. Abaixo, a Liga construiu 5.707 casas de alvenaria na capital e 8.109 no interior


Reproduções

Aníbal Fernandes, ferrenho opositor – e Manuel Bandeira, versos maledicentes

Indústrias passou a contribuir regularmente para erradicar os mocambos. Os usineiros e fornecedores de açúcar, generosos pela própria natureza, contribuíram com uma cota de acordo com a produção. Quando algum empresário milionário não demonstrava generosidade, o interventor entrava na linha para abrandar seu coração. Os operários sindicalizados faziam a doação de um dia de trabalho. O Recife, no final da década 1930, era uma cidade com cerca de 500 mil habitantes, dos quais, em números gordos, 164 mil viviam em cerca de 45 mil mocambos, segundo censo populacional realizado pelo prefeito Novaes Filho. Chamado pelo interventor de "prefeito-matuto" e lavrador, Novaes Filho havia sido nomeado em obediência aos "imperativos da política social". O problema da moradia popular no Recife, como de resto em todo o país, vinha de longa data e tinha a ver com os fluxos migratórios, seca e desequilíbrios regionais. A pesquisadora Dulce Pandolfi relata que no Governo Sérgio Loreto, de 1922 a 1926, foi criada a Fundação da Casa Popular. Mas, a idéia não prosperou. Depois da Revolução de 1930, o interventor Carlos de Lima Cavalcanti tocou a construção de vilas populares, mas não teve fôlego para levar o projeto avante. Os números divulgados pela Folha da Manhã, o diário oficioso do governo, revelam que, em quatro anos de existência, a Liga Social Contra o Mocambo construiu 5.707 casas na capital e 8.109 no Interior. De sua parte, as usinas de açúcar construíram 6.824 casas no período 1939 – 1943. Além das vilas operárias, também foram ministrados cursos de culinária, de corte e costura, instalados centros educativos, postos médicos e dentários. Na verdade, o mocambo era gerado pela miséria, ao invés de ser gerador de miséria. Nesse ponto, a crítica mais freqüente é que o mocambo deveria ser considerado efeito, e não causa das misérias sociais.

Bebia chumbo derretido Com um pé na política e outro no batente da Imprensa, Agamenon exerceu seu ofício como o jornalista doutrinador do Estado Novo em Pernambuco, confrontou-se com outros expoentes do jornalismo de Pernambuco, a exemplo de Aníbal Fernandes, ferrenhos opositores que foram nas trincheiras da Folha da Manhã e do Diario de Pernambuco nos tempos da Redemocratização. Nas crônicas cotidianas de Agamenon, vamos encontrar as figuras singelas das lavadeiras, da dona-decasa, do comerciário e do comerciante, do matuto serta-

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Arquivo de Família

Os ministros de Getúlio Vargas

nejo, do religioso, do menino que cata siri nos mangues, personagens nossos de cada dia. A partir de 1938, já como interventor, começa sua participação mais efetiva no jornalismo, como colunista e manda-chuva da Folha da Manhã, órgão oficioso do Estado Novo em Pernambuco. Sua concepção no Estado Novo era de que "a Imprensa na estrutura do novo regime é um órgão do Estado, e o seu exercício será regulado por lei especial dentro dos dispositivos constitucionais". Essa concepção, naturalmente, não poderia resistir aos tempos democráticos.

Mandacaru não é jasmim... Por que esse apelido, o “China Gordo”? Na verdade, o apelido de "China Gordo" não casa com o personagem. Mandacaru não é jasmim. Sertanejo não é mandarim. Recife não é Pequim. O mestre Andrade Lima Filho, jornalista e escritor, autor do primoroso livro de memórias China Gordo – Agamenon e sua Época, revela que este foi um apelido maledicente criado pelo poeta Manuel Bandeira num verso de circunstância em 1945 para se vingar de Agamenon em solidariedade a intelectuais pernambucanos que haviam sido presos e sofrido nas unhas do interventor durante o regime autoritário do Estado Novo. Com paciência chinesa, Bandeira ruminou a vingança por muito tempo até que o Estado Novo desmoronou e ele veio à forra. O poeta de "Vou-me embora pra Pasárgada"

confessou a Andrade tempos depois no Rio de Janeiro que o apelido tentava associar a imagem de um Agamenon autoritário à figura do líder chinês Mao Tsetung, "frio e feio", que comandou a revolução comunista na terra dos mandarins. Daí veio a vingança impiedosa: "Balordo, China Gordo". Depois da experiência como interventor do Estado Novo, vieram novas missões e novas emoções. Em janeiro de 1945, o caboclo deixa o Estado e em fevereiro senta praça no cargo de ministro da Justiça por convocação do presidente Getúlio Vargas. Pressões internas e externas conspiravam contra o regime do Estado Novo. No front externo, o prenúncio de vitória dos Aliados contra o "Eixo" Alemanha-Itália, do nazifascismo, estimulava a derrocada dos regimes autoritários. Internamente, o presidente Getúlio Vargas tornou-se alvo das manifestações de rua, dos protestos de intelectuais e de estudantes. A repressão policial acirrava ainda mais o ânimo dos opositores. O regime vinha de 1937 e já apresentava sinais de fadiga. Vargas farejou os ventos da mudança e decidiu conduzir a transição para preservar o quanto possível heranças do Estado Novo. O ministro Agamenon elaborou legislação eleitoral e partidária e o presidente concedeu anistia aos presos políticos. Dessa maneira conseguiu antecipar-se à virada do regime. Pela primeira vez na história da República, o Código Eleitoral concebe a existência de partidos políticos Junho 2007

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assassinou João Pessoa e desencadeou a Revolução de 1930, balas perdidas atingiram opositores do regime no Recife e os efeitos políticos saíram pela culatra para desestabilizar o próprio governo. O 3 de março de 1945 ficou gravado como um dia fatídico no calendário estadonovista. Intelectuais, líderes estudantis e políticos organizaram manifestação, na Praça da Independência, de protesto contra o Estado Novo e em favor da candidatura do Brigadeiro Eduardo Gomes à Presidência da República. A manifestação seria pacífica, naturalmente, mas as forças situacionistas, entre as quais dirigentes sindicais e políticos governistas, tentavam impedir a manifestação a pretexto de evitar perturbações da ordem pública. Estudantes e populares atenderam à O jornalista Aníbal convocação e foram à Praça da Fernandes discursava Independência. Havia agentes da repressão infiltrados na multidão. na sacada do Diario Entidades de classe ligadas ao governo (foto). Perto dele, o faziam a contrapropaganda e criavam um clima de radicalização propício aos estudante de Direito, provocadores. Elementos sinistros Demócrito de Souza estavam a serviço do aparelho de Filho, observava a repressão. O jornalista Aníbal Fernandes multidão. Ouviu-se discursava na sacada do Diario. Perto um tiro. Seguiram-se dele, o estudante de Direito, Demócrito outros disparos. de Souza Filho, observava a multidão. Ouviu-se um tiro. Seguiram-se outros Houve pânico disparos. Houve pânico. A multidão se dispersou pela Rua 1° de Março, Rua do Imperador e Av. Guararapes. Os disparos atingiram presidente Getúlio Vargas assinou em 22 de junho de 1945 o decreto-lei nº 7.666, "de repressão aos abusos do Demócrito na sacada e o carvoeiro Manoel Elias no meio da multidão. Os dois faleceram. poder econômico". Era um tiro de canhão contra os O episódio sinistro de 3 de março virou bandeira de trustes e os grandes monopólios internacionais. O tiro de luta da Redemocratização em 1945. O governador canhão ficou conhecido como a "Lei Malaia", em alusão Etelvino Lins e seus aliados tornaram-se passageiros da ao apelido "O China Gordo" de Agamenon. O "China" agonia do Estado Novo. O julgamento hoje pertence à sofreu bombardeios ferozes por conta da lei antitruste. história. Um dos mais ferozes combatentes da "Lei Malaia" era o jornalista Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados, o paraibano de Umbuzeiro que também era “Primavera democrática” um tanque de guerra na defesa de suas idéias. Em A primavera da Redemocratização foi proclamada campos opostos, o bombardeio entre os dois era de oficialmente em pleno verão nordestino, no dia 29 de potência a potência. outubro de 1945. Getúlio Vargas vai refugiar-se no seu Havia conspiração nos ares, nos lares, nos bares, em exílio voluntário em São Borja. Eram tempos de todos os lugares onde canta o sabiá e onde cantava o hibernação da raposa. carcará. Os maus presságios contra o Estado Novo Ex-ministro, Agamenon retornou a Pernambuco como atraíam todos os raios. Assim como uma bala certeira chefe político do PSD para ser candidato a deputado nacionais ao invés das agremiações regionais predominantes na Velha República e mesmo depois da Revolução de 1930 e no Estado Novo. O Código Eleitoral, chamado de "Lei Agamenon", abriu caminho para o Tribunal Superior Eleitoral conceder o registro ou a cassação de partido de acordo com princípios constitucionais. Seria negado o registro a partido que ferisse a ordem democrática. De tal modo, o Partido Comunista, defensor da ditadura do proletariado e do partido único, teve o seu registro cassado em 1947. As candidaturas simultâneas nos Estados, até então permitidas, foram revogadas. Por iniciativa do ministro Agamenon Magalhães, o

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constituinte nas eleições do ano seguinte. O presidente interino, José Linhares, cede às pressões dos trustes e da diplomacia norte-americana e revoga o decreto-lei antitruste contra os abusos do poder econômico. Como parte da sucessão no Palácio do Catete, o Partido Social Democrático (PSD) lança o general Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra de Vargas, para presidente. O general elege-se em 3 de dezembro e toma posse em janeiro de 1946. Ao pressentir a chegada da primavera em meio às tempestades do Estado Novo, Agamenon tinha avisado: "O regime vai mudar. E eu também". A transição para a democracia transcorreu sem traumatismos entre as

O governador Barbosa Lima (foto), eleito pelas tropas do PSD sob o comando de Agamenon, resistia às candidaturas do "tanque de guerra" e também do seu lugar-tenente Etelvino Lins elites políticas. Agamenon, um dos expoentes e dos principais corifeus do regime cessante, deixou o ministério pouco antes da queda de Vargas e voltou à planície como líder do PSD. Em 2 dezembro de 1945 ocorreram as eleições gerais de deputados e senadores para a Constituinte de 1946. Líder maior do PSD em Pernambuco, Agamenon teve uma eleição pacífica para deputado federal, exercendo pela segunda vez um mandato constituinte federal. Para estabelecer o fio da meada, a Assembléia Constituinte nomeou uma comissão parlamentar encarregada de fazer um diagnóstico das questões nacionais a serem equacionadas durante os trabalhos. Equivalia a um "grupo de notáveis". O ponto de partida foi a legislação contra abusos do poder econômico, revogada no advento da Redemocratização. O enfoque central de Agamenon era o poder de intervenção do

Estado nas questões do interesse público. Nesse ponto, as idéias do PSD de Agamenon e dos parlamentares da UDN eram sempre conflitantes. No ano de 1905, Delmiro Gouveia havia aparecido como o pioneiro da industrialização do Nordeste em favor de quem o pai de Agamenon, juiz Sérgio Nunes Magalhães, concedeu habeas-corpus e foi perseguido pelo governador Sigismundo Gonçalves. O movimento nacionalista de Delmiro projetou-se de tal forma que acabou sendo cristalizado na Constituição de 1946. A Constituição de então, no capítulo “Ordem Econômica e Social”, consagrou a norma, em virtude da qual o legislador ordinário poderá reprimir "toda e qualquer Arquivo DP forma de abuso do poder econômico". A Constituição de 1946, promulgada em setembro pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, resultou em avanços democráticos e conquistas sociais. Restabeleceramse os direitos individuais e foi extinta a censura. Legitimou-se a independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a eleição direta para presidente da República, com mandato de cinco anos. Agamenon exerceu o restante do mandato, até 1950, como presidente da estratégica Comissão de Constituição e Justiça.

Cidade cruel Nesse meio tempo de clarões democráticos, em 1946, Agamenon veio a Pernambuco para comandar a sucessão estadual de 19 janeiro do ano seguinte. O interventor de ontem estava despido dos seus poderes autoritários. Ao desembarcar no Recife, recebeu aplausos e também vaias e protestos. O mandacaru sertanejo sentiu na pele os espinhos da democracia. Em discurso na rua da Amizade, onde morava, fez o desabafo que se tornou famoso em tom de refrão: "Recife, cidade cruel ..." As luas se passaram desde a eleição de Barbosa Lima para o Governo do Estado em 1947 e Agamenon curtia o seu "purgatório de idéias", no dizer de Nilo Pereira, na Câmara dos Deputados, Distrito Federal. Também exercia o cargo de dirigente do PSD em Pernambuco. Agamenon já havia redimido seus pecados Junho 2007

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Agamenon Magalhães é eleito governador de Pernambuco em 1950

Arquivo de Família Reprodução

no purgatório e estava preparado para novas emoções na futura sucessão estadual. Quem se habilitaria para suceder Barbosa Lima Sobrinho? Existiam várias alternativas, entre elas o próprio Agamenon. O governador Barbosa Lima, eleito pelas tropas do PSD sob o comando de Agamenon, resistia às candidaturas do "tanque de guerra" e também do seu lugar-tenente Etelvino Lins. Os dois, segundo o raciocínio de Barbosa, simbolizavam as cinzas do Estado Novo e nos tempos de claridade poderiam atrair maus presságios. Que tal Osvaldo Lima, o "Marechal da Vitória", amigo do peito, admirado e respeitado pelo governador e o ex-interventor, que falava de igual para igual com Agamenon?! Na fase das “tratativas”, Agamenon e Etelvino foram beijar a pedra na cova da onça em Casa Forte, a casa de Osvaldo Lima. Soube-se que naquele dia o "Marechal" abriu o coração de leão e declarou-se disposto a disputar o Governo do Estado pelo PSD. Aliado fiel, esperava contar, naturalmente, com o apoio do amigo do peito. Mas o coração de mandacaru não deu sombra nem encosto ao companheiro. O memorialista Andrade Lima conta que Etelvino tentou decifrar a esfinge. "Que aconteceu, Dr.

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“Na Hora H, Agamenon”, marcha da campanha de 1950, composta por Nelson Ferreira

Agamenon?" Resposta: "Pensei no Estado. Osvaldo não dá. É bom demais". O rompimento definitivo com Osvaldo Lima aconteceu na manhã de 2 de agosto de 1950, dia em que seria realizada, à tarde, a convenção do PSD para


Agamenon numa caricatura de J. Tavares. Abaixo, o Diário da Noite do Recife registrou, numa série de charges de Luiz Teixeira, a marcha das apurações do pleito de 1950

formalizar a candidatura de Agamenon. Este enviou um emissário para tentar desarmar o colega rebelde. O "Marechal" foi contundente e disse não. Cada qual que seguisse seu caminho. Enquanto costurava sua candidatura com as próprias linhas e desalinhava o nome do "Marechal", Agamenon tecia na moita um pacto de boa vizinhança com o udenista Cleofas. Nesses termos, ele, sim, saindo candidato, e não Osvaldo, se prontificaria a fazer uma campanha de alto nível. Mas a alegria do usineiro Cleofas durou pouco. Nos primeiros lances da campanha, o tanque de guerra abriu o verbo: "Trabalhadores, quando eu soube que o candidato do outro lado era um usineiro, tremi por vós!". Principal mote de campanha: explorar o estigma contra os usineiros. Os comunistas estavam na ilegalidade desde 1947. Mesmo assim, exerciam expressiva influência junto ao eleitorado urbano. Por considerarem os dois candidatos reacionários, os comunistas assumem a defesa do voto nulo. Agamenon adorou. Nos tempos da II Guerra, Stalin havia dito que, se necessário para derrotar o inimigo, os comunistas fariam uma aliança até com o satanás. Esse não era o caso. Os coronéis do Sertão é que continuavam mandando e desmandando nos grotões. Os mais notórios eram Chico Herálcio, em Limoeiro, Veremundo Soares, em Salgueiro, Zé Abílio, em Bom Conselho de Papacaça, e o Coronel Quelé, patriarca dos Coelho, em Petrolina e adjacências. Os votos dos coronéis e seus afilhados seriam muito bem recebidos por Agamenon. A campanha se embalava ao ritmo do frevo "Na hora H, Agamenon", do maestro Nelson Ferreira. Naquele ano de 1950 os brasileiros estavam votando nas eleições estaduais e também para presidente da República. Getúlio Vargas é o candidato do PTB, Cristiano

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Arquivo de Família

O interventor Agamenon Magalhães acompanhando uma demonstração pioneira de irrigação, em 1939

Machado do PSD e o Brigadeiro Eduardo Gomes da UDN. Apoiado em coligação pelo PTB nacional, Vargas retribui o voto dos aliados recomendando a candidatura do udenista João Cleofas em Pernambuco, em detrimento do seu ex-ministro Agamenon. Participou de comício no Parque 13 de Maio e pediu voto para Cleofas. O apoio fazia parte de um esquema partidário, o que se confirmou depois do resultado eleitoral quando Vargas assumiu a Presidência da República e Cleofas foi nomeado ministro da Agricultura. Nas eleições do dia 3 de outubro de 1950, as urnas começaram a cantar a vitória de Cleofas nos redutos de classe média do Recife e Olinda. Mas os votos da "poeira" – nos bairros pobres da Capital, de Jaboatão, Olinda e Paulista – equilibraram a disputa. Assim, Agamenon Magalhães (PSD), vitorioso, obteve 196.880 votos e João Cleofas de Oliveira (UDN), derrotado, ficou com 186.757 votos.

Boa viagem, governador Depois de manter eqüidistância nas disputas internas do PSD, o governador Barbosa Lima Sobrinho

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adotou um comportamento de magistrado no decorrer da campanha eleitoral. Ao contrário do que os pessedistas gostariam que acontecesse, Barbosa não usou a máquina administrativa contra os adversários. A posse ocorreu no dia 31 de janeiro de 1951. O clima era de apreensão silenciosa entre o governador cessante, Barbosa Lima, e o governador emergente, Agamenon. Em tom de cavalheirismo para dissipar as expectativas, BLS declarou: "Sou suficientemente pernambucano para desejar felicidade ao seu governo". Agamenon retribuiu com formalidade e sutil ironia: "Boa viagem, governador!". Assim como nos tempos da Interventoria houve a mística do combate ao mocambo, o governo que começava em 1951 criou uma mística da pavimentação, ou mística da estrada. A paisagem nordestina e pernambucana da década de 1950 era dos "caminhos de burro", as estradas terrosas ou de barro. Os sertanejos caminhavam léguas e léguas nos lombos de burros e de cavalos, transportando víveres ou transportando a si mesmos. O Departamento de Estradas e Rodagem (DER), criado em 1946, mereceu prioridade no governo de


Agamenon para cumprir a chamada "Batalha da Pavimentação". A construção da atual BR 232, do Recife a Caruaru, vem do governo de Agamenon Magalhães. O florescimento econômico do Sertão foi outra mística criada no governo de Agamenon. O secretário de Agricultura, Apolônio Sales, elaborou plano de recuperação econômica, tendo como base a criação de cooperativas e sementeiras, açudagem, postos de monta e estímulo à pecuária. O cultivo do algodão, mamona, caroá e milho eram as bases para o fortalecimento da agroindústria.

Somos todos mortais A dimensão política e intelectual de Agamenon, sua trajetória como interventor, ministro do Trabalho e da Justiça, governador e expoente nacional do PSD, todos esses fatores o credenciavam como uma das lideranças mais qualificadas do país para disputar a Presidência da República na sucessão de Getúlio Vargas. Isto, se o coração resistisse. Mas a ciência da vida ensina que o "se" histórico não existe. No fatídico 24 de agosto de 1952, Agamenon esteve

à noite no Aeroporto dos Guararapes para recepcionar D. Alzira Vargas do Amaral Peixoto, a filha do presidente Getúlio que vinha da Europa a caminho do Rio de Janeiro e fizera escala no Recife. Cumpriu as formalidades de praxe e não havia sinais de doença. Por essa época Agamenon havia feito uma bateria de exames e os resultados foram normais. Mas, também há testemunhos sobre pressentimentos sombrios. O ex-prefeito de Serra Talhada, Luiz Lorena, conta que depois de participar de comício na sua cidade natal, Agamenon viajava de volta ao Recife em automóvel junto com o coronel Cornélio Soares, Dr. Barros Barreto, Antônio Conrado e Luiz Lorena. Em algum momento comenta: "O período do meu governo é o período de minha morte." Os companheiros de viagem tentaram dissuadi-lo contra os maus presságios e ele argumentou: os cálculos das seguradoras eram feitos pela média de vida dos ancestrais. E concluiu: "Eu estou no limite". O sertanejo que nasceu sob o signo do mandacaru, não tinha medo de guerra nem de assombração, morreu de enfarte no coração, à noite de 24 de agosto de 1952, com 58 luas na cabeça. Arquivo de Família

Fila formada na Praça da República para entrar no velório de Agamenon Magalhães, no Palácio das Princesas


Cronologia 1893 – Em 5 de novembro nasce Agamenon Sérgio de Godoy Magalhães, no lugarejo de Vila Bela, atual município de Serra Talhada. 1905 – Transfere-se com a família para o Recife. Começa a estudar no Seminário de Olinda. 1907 – Ingressa no Ginásio Pernambucano. 1911 – Conclui o Curso de Humanidades no Ginásio Pernambucano. 1912 – É aprovado para o Curso de Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito do Recife. 1916 – Recebe o diploma de Bacharel em Direito. 1917 – É nomeado promotor público da Comarca de São Lourenço da Mata. 1918 – 1919 – Ficou noivo e casa-se no ano seguinte com d. Antonieta Bezerra Cavalcanti. 1918 – É eleito deputado estadual pelo Partido Republicano Democrata (PRD). 1921 – É reeleito deputado estadual. 1922 – Apresenta a tese acadêmica "O Nordeste brasileiro (o habitat e a gens)" e conquista a cadeira de lente (professor) de Geografia do Ginásio Pernambucano. 1922 – Instala escritório de advocacia no "Arranha-céu" da Pracinha. 1923 – é Eleito deputado federal. 1924 – Integra-se à Aliança Liberal, movimento contra a República Velha. 1927 – É reeleito deputado federal. 1930 – Agamenon articula a criação do Partido Social Democrático (PSD) em Pernambuco. 1932 – É eleito deputado junto à Assembléia Nacional Constituinte. 1934– Nomeado ministro do Trabalho, Indústria e Comércio no Governo Vargas. 1937 – Assume o Ministério da Justiça, acumulando o cargo com o de Ministro do Trabalho. 1937 – É nomeado interventor de Pernambuco. 1938 – Escreve com assiduidade artigos para o jornal Folha da Manhã. 1939 – É criada a Liga Social contra o Mocambo, em 12 de julho. 1945 – Convocado por Getúlio Vargas, deixa a Interventoria e assume o cargo de ministro da Justiça. 1945 – O presidente Getúlio Vargas assina, em 22 de junho, o decreto-lei 7.666, "de repressão aos abusos do poder econômico", conhecida como "Lei Malaia". 1945 – Cumprindo missão delegada por Vargas, Agamenon elabora o Código Eleitoral com vistas à transição do Estado Novo para a Redemocratização. 1945 – Cai o Estado Novo autoritário e é decretada a "Primavera Democrática" no dia 29 de outubro. A "Lei Malaia" é revogada. 1945 – É eleito em 2 de dezembro para novo mandato de deputado federal pelo PSD. 1950 – É eleito governador de Pernambuco. 1952– Acometido de enfarte cardíaco, Agamenon Magalhães falece na noite de 24 de julho.




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