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EDITORIAL
O cipoal da censura
“A
questão da censura em si é um verdadeiro cipoal face às formas, concomitantes ou não, que pode assumir, e assumiu, não só na Era Vargas, como em toda a história do Brasil, sob os pretextos de defender a moral, os bons costumes, a justiça, a ordem e a segurança nacional. Foi exercida pela Coroa, e pela Igreja contra os autores hereges, suspeitos, defesos, danados, durante todo o período colonial e contra os filósofos pervertidos do Iluminismo após o século 18. Apesar de sua abolição oficial em 1821, tanto o Estado quanto a Igreja continuaram a exercer a censura: o primeiro contra os jornais e autores que defendiam as idéias libertárias da Revolução Francesa; a segunda mediante o direcionamento da leitura para os jovens. Em pleno século 20, o Pe. Serafim Leite, S.J. exigia um auto-de-fé contra Gilberto Freyre, a quem chamava de ‘O Pornógrafo do Recife’, por sua obra Casa Grande & Senzala (1931, 1933)”. Esse é um trecho de trabalho acadêmico da professora Lia Wyler, da PUC do Rio. Traça, em rápidas pinceladas, um panorama histórico da censura no Brasil e define o tema, de forma vívida e um tanto pitoresca, como um “verdadeiro cipoal”. Contemporaneamente, o assunto volta à tona, provocando discussões e polêmicas, no bojo de fatos diversos, mas correlatos: a retirada de circulação por decisão judicial de uma biografia de um cantor famoso; as preocupações do Governo em regulamentar o horário de exibição de programas de televisão, em nome da defesa da infância e da juventude, e as reações das emissoras e, no âmbito mundial, a crescente investida de regimes mais ou menos totalitários sobre o espaço teoricamente livre da internet. A reportagem de capa desta edição move-se neste cipoal, procurando apresentar visões variadas do assunto. O Documento deste mês foca a importância da obra do escritor, dramaturgo, encenador e ensaísta Hermilo Borba Filho, que se vivo fosse estaria completando 90 anos este mês. Manter acesa a chama da memória vigorosa desse grande pernambucano é obrigação de quem pensa a nossa cultura. • Continente julho 2007
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CONTEÚDO Reprodução
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Hans Manteuffel/Divulgação
A eterna ameaça da censura
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A Filha do Teatro, em cartaz durante o mês de julho
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CONVERSA
CÊNICAS
04 Roteirista de Babel diz que faz literatura para o cinema
45 O teatro intimista de Luís Reis e Antônio Cadengue
BALAIO
50 Projeto disponibiliza na internet a memória da dança que se faz no Recife
10 Alberto da Cunha Melo ganha prêmio da ABL
CAPA 12 Classificação de programas na TV é censura? 16 Controle crescente na rede preocupa internautas 20 O lamentável precedente de Roberto Carlos 24 O ministro, o fim da censura e a censura do filme
CINEMA 52 A emergência internacional do cinema romeno
ARTES 58 Cavani Rosas viaja dos quadrinhos à ilustração científica
AGENDA
FOTOGRAFIA
26 Colaborador da Continente dá curso para
68 A paixão de Pierre Verger pelo Brasil
apreciadores de música clássica
74 Uma fotógrafa chamada Gina Lollobrigida
LITERATURA
MÚSICA
32 Os 25 anos de Não Verás País Nenhum, romance
80 Discos
de Ignácio de Loyola Brandão 34 Antologia bilíngüe revela poetas peruanos 36 A arte sacra na obra do cético Eça de Queiroz 38 Pernambuco lança Entretanto, revista literária 40 Livros 42 Um escândalo no interior, por Clávio Valença 44 Poemas do argentino Luis Benítez
82 A música erudita de Paul McCartney
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86 Novos discos de Geraldo Maia, Geraldo Azevedo e Zeh Rocha
DOCUMENTO 89 Aos 90 anos de nascimento, a permanência de Hermilo Borba Filho
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Divulgação
Arquivo de Família
CONTEÚDO
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A arte de Cavani Rosas
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Pernambuco relembra Hermilo Borba Filho
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Colunas
MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 28 Algumas "indefinições" de poesia
TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 56 A atualidade da pintora Maria Helena da Silva
SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 64 Jerimum, chuchu e contos-de-fadas
DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 67 Lembrando Graciliano Ramos
ENTREMEZ|Ronaldo Correia de Brito 78 A fé na tecnologia e no Estado
Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br Continente julho 2007
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CONVERSA
GUILLERMO ARRIAGA
“O que faço para o cinema é literatura” O mexicano Guillermo Arriaga, roteirista de Babel, 21 Gramas e Amores Brutos, fala de sua recusa a fazer concessões e de como pode reescrever até oitocentas vezes uma página antes de se dar por satisfeito Mariana Camarotti, de Buenos Aires
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tensão e a linguagem crua dos seus filmes não têm nada a ver com a paciência e a voz suave de Guillermo Arriaga. Nascido no México, em 1958, o roteirista de Babel – vencedor do Oscar de melhor roteiro –, Os Três Enterros de Melquiades Estrada –, Palma de Ouro de melhor roteiro em Cannes – e Amores Brutos – vencedor do Bafta de melhor filme estrangeiro e indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro – vem atraindo os holofotes do cinema mundial para o cinema latino-americano, mais especificamente, para o mexicano. O segredo, diz ele, é escrever para o cinema como se escreve para a literatura. Aliás, ele não aceita ser chamado de roteirista, pois diz que faz obra de cinema. Outro segredo: seus filmes e livros, alguns adaptados para o cinema, “não fazem concessão”. Para chegar aonde chegou, é rígido e exigente com o trabalho, chegando a escrever a primeira página de um livro oitocentas vezes. E é assim que ele encara a vida. Depois de ter engordado mais de 10 quilos nas últimas filmagens, Arriaga não abre mão das duas horas de ginástica, esteja onde estiver. “Ontem eu malhei às duas da manhã, quando cheguei ao hotel. Não tinha malhado ainda”, conta, risonho. E é na academia do hotel, em que estava hospedado, que ele concede esta entrevista à Continente Multicultural. Continente julho 2007
Por que seu livro O Búfalo da Noite está sendo relançado agora, aqui em Buenos Aires? Meus livros são reeditados várias vezes. A editora Norma comprou os direitos de O Búfalo da Noite e dos outros, mas nunca fez um grande lançamento, porque para a Norma do México a literatura não era importante. Agora, a editora relança toda a coleção nos próximos seis meses. E como está sendo a aceitação? Ótima. Um Doce Aroma de Morte foi adotado como livro oficial pelas escolas do México. No Brasil, onde alguns dos seus livros já foram lançados, vai ser feito um relançamento? No Brasil, será relançado primeiro O Búfalo da Noite em Parati, no Rio de Janeiro, em julho (na Flip). Aliás, algumas das mensagens mais lindas que recebi sobre meus livros foram e-mails do Brasil. Também recebi uma carta vinda de uma prisão brasileira há três anos. Mandei 50 exemplares para a biblioteca da prisão. E o que seus livros têm a ver com o Brasil? O Búfalo da Noite poderia se passar em São Paulo, por exemplo, e Um Doce Aroma de Morte poderia se passar no Sertão. E, em ambos, os brasileiros vão encontrar um texto sem concessões. Acho que vão gostar. Aliás, faço uma
CONVERSA Mariana Camarotti
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O cinema ainda está encontrando uma nova linguagem. O cinema é muito jovem, não tem uma linguagem sua ainda
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CONVERSACONVERSA sonagens no limite, mortes, amantes... E na vida as histórias também se cruzam como nos meus livros e filmes. Não é uma coisa linear. A vida da gente vai pasO Búfalo da Noite foi transformado em filme, não foi? sando sem acontecer nada e, de repente, acontece tudo. Sim, foi filmado em janeiro e fevereiro de 2006. E Quero que a linguagem dos meus livros e dos filmes seja chegará ao Brasil em agosto ou setembro deste ano. Os a mesma da vida. direitos foram comprados pela Fox Latina. Na sua opinião, o cinema latino-americano está Os seus filmes têm uma grande repercussão e uma passando por algum momento especial? linguagem muito singular. O que eles têm em comum? Acho que sim. A arte latino-americana de uma Eu tento escrever para o cinema como se escrevesse forma geral está passando por um momento especial uma obra de literatura, coloco uma linguagem dedicada porque existem muitas contradições na região e isso dá à literatura e sou muito cuidadoso. Quando escrevo, margem a uma arte muito rica. O Brasil e o México quero que meus filmes sejam envolventes, que sejam têm muitos contrastes. Crimes relacionados ao tráfico, entrelaçados, que tenham emoção, que envolvam quem discriminações de negros no Brasil e índios no os assiste. Tudo o que faço é muito cuidado. Cada página México e, ao mesmo tempo, incorporamos a arte dos deste livro (O Búfalo da Noite) foi escrita umas 50 vezes. discriminados. Vivemos contradições e isso fala muito A primeira página, oitocentas vezes, e não estou men- da arte. tindo. Levou cinco anos para ser escrito. Um Doce Aroma E o cinema brasileiro, em especial? de Morte, em quatro anos. Meu trabalho não é pura inspiração, é muito trabalho. O cinema brasileiro é um cinema vital, com cineastas muito importantes. Walter Salles é um grande e eu, além Os temas abordados por seus livros e filmes também disso, gosto muito dele pessoalmente. Também tenho um têm muito em comum. apreço grande por Fernando Meirelles. Hector BabenSim. Cinema e livro têm uma veia de comunicação co, embora seja argentino, é um cineasta brasileiro. entrelaçada. Os assuntos, a importância, o amor, os per- Também Cacá Diegues, Andrucha Waddington... Imagens: Divulgação
aposta: quem não gostar pode devolver à editora e a editora dá outros dois livros. Tenho certeza de que vão gostar.
Benício Del Toro em cena de 21 Gramas. Acima, capa do romance O Búfalo da Noite, de Arriaga
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CONVERSA
Brad Pitt e Cate Blanchett em cena de Babel, filme de Alejandro Gonzáles Iñárritu, com roteiro de Guillermo Arriaga
Babel foi o seu filme com maior reconhecimento, com prêmios e indicações. Foi o de que você mais gostou? Teve um grande reconhecimento e tem muito a ver com sua equipe de apoio, além dos temas abordados e que tocava a todos. Isso das vidas todas conectadas vem muito da globalização. Eu nunca estive no Japão ou no Marrocos nem fiz pesquisa sobre isso. Foi pura imaginação, o que é permitido pela globalização. No entanto, o filme agradou. Mas o de que mais gosto é Os Três Enterros de Melquiades Estrada, que ganhou em Cannes.
Com o que você se identifica mais, cinema ou literatura? Literatura. Embora eu insista: o que faço para o cinema é literatura. Eu tenho apenas que agradecer ao cinema. É engraçado, porque quando alguém faz teatro, ninguém questiona se é literatura. Mas questiona quando alguém faz cinema. Aliás, a palavra guión (roteiro, em espanhol) é horrível, quer dizer um guia. Eu não faço isso nem gosto de ser chamado de “guionista” (roteirista). Eu faço obras de cinema.
O que você acha que atraiu as luzes de Hollywood e Você acha que a globalização traz benefícios? A globalização existe. Quando eu era pequeno, no do cinema mais independente para Babel? México, e estava brincando na rua, achava que se eu O cinema que eu faço não faz concessão. É honesto e dissesse uma coisa a um senhor que passava por ali e que tem toda uma aposta. Então não é à toa que sou o prieu não conhecia, esse senhor diria a outra pessoa, que di- meiro escritor latino-americano com dois filmes venceria a outra, a outra, a outra... e isso mudaria o mundo. dores em Cannes, de forma consecutiva, e outros prêmios importantes. Porque são filmes completos em todos Quais são seus novos projetos? os caminhos. E o maravilhoso de Babel é ter ganho em Não está fechado ainda, seria um projeto nos Estados Cannes e no Oscar. Unidos, mas que ainda não posso dizer. Um roteiro Existe uma nova linguagem no cinema? original, e não a adaptação de um livro. Além disso, estou escrevendo livros, mas o cinema tem me exigido muito. O cinema ainda está encontrando uma nova linVou deixar o cinema por um tempo para me dedicar à guagem. O cinema é muito jovem, não tem uma linliteratura por uns cinco, seis, sete anos. guagem sua ainda. • Continente julho 2007
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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte
Continente Multicultural
Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão e Vivian Pires Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Júlio Gonçalves Gestor Comercial Paulo de Tarcio Equipe de Produção: Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
Julho 2007– Ano 07 Capa: images.com/Corbis/LatinStock
Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEIRÔA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. ARTHUR A. AGUIAR é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista. CARLOS HAAG é jornalista. CHRISTIANNE GALDINO é jornalista, pesquisadora de dança e pós-graduada em Jornalismo Cultural. DANIEL BUARQUE é jornalista. DANIEL PIZA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e escritor. FÁBIO LUCAS é jornalista e mestre em Filosofia. FERNANDO MONTEIRO é escritor, autor de A Cabeça no Fundo do Entulho e As Confissões de Lúcio, entre outros. KLEBER MENDONÇA FILHO é jornalista, crítico de cinema e cineasta. JOSÉ TELES é jornalista, escritor e crítico de música. LOURIVAL HOLANDA é professor dos departamentos de Letras e História da UFPE e autor dos livros Sob o Signo do Silêncio e Fato e Fábula. LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista, professor de teatro, mestre em Comunicação e doutorando em Teoria da Literatura. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARIANA CAMAROTTI é jornalista. SÔNIA MARIA
VAN
DIJCK LIMA é crítica literária, pesquisadora de arquivos literários
(História da Literatura e Crítica Genética),contista,poeta e tem trabalhos publicados no Brasil e no exterior.
Colunistas: ALBERTO
DA
CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de
poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. JOEL SILVEIRA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora. RONALDO CORREIA
DE
BRITO é médico e escritor. Publicou os livros de contos
As Noites e os Dias, Faca e O Livro dos Homens. Continente julho 2007
CARTAS
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Sou assinante e gosto muito da Continente. As matérias sobre o Circo, 150 anos de Caruaru e o artigo “Diálogo com Luz” do grande Ferreira Gullar estão ótimas. Espero que não esqueçam os 40 anos do maior disco de todos os tempos (Sgt. Pepper) que tem a ver com o Tropicalismo, Jomard Muniz de Brito, Banda de Pífanos de Caruaru, Gil, Mutantes, Manguebeat, entre outras. José Flávio Magalhães, Sertânia–PE
Cinema Adorei a matéria “Nas Telas do Mundo”, da edição de maio de 2007. Foi bom encontrar Kátia Maciel... Cleyton Cabral, Olinda – PE Qualidade Meu nome é Anna Resende e venho agora parabenizar a Revista Continente Multicultural por sua importância em nosso cenário literário. Leio a Revista sempre e adoro as suas colunas e artigos. Muito boa! De primeira qualidade! Ana Resende, Jaboatão dos Guararapes – PE Onde? Gosto muito da Continente Multicultural, mas, infelizmente, não consigo encontrar a revista em nenhuma banca de São Paulo. Por quê? Marcos Rocha Andrade, São Paulo – SP Aniversários Parabéns à Revista, a Brennand e a Ariano pela bela edição de junho. Jânio Costa, João Pessoa – PB
Documento O Documento do número de junho da Revista Continente Multicultural contém uma informação inexata sobre a tragédia de 3 de março de 1945. Era Gilberto Freyre e não Aníbal Fernandes quem, na tarde daquele dia terrível, discursava na sacada do Diario de Pernambuco, quando o estudante de Direito Demócrito de Souza Filho foi atingido mortalmente por balas de policiais espalhados na Praça da Independência. Tudo indica que o alvo não era Demócrito, e, sim, Gilberto Freyre, que liderava os estudantes na luta contra a ditadura Vargas e até há havia sido preso pela Polícia Civil de Pernambuco. Também não me parece adequado classificar como maledicentes os versos do poema de Manuel Bandeira “China Gordo”. Maledicente, como ensina o dicionário de Antonio Houaiss, é o que injuria e ofende com palavras. Manuel Bandeira, epigramista contumaz, inspirou-se nestas palavras de um artigo de Agamenon Magalhães transcritas como epígrafe do poema publicado em 1945 no Correio da Manhã do Rio de Janeiro: “As nações que
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esperam ainda que o sapateiro saia de sua tenda para escolher os seus dirigentes, ou que o operário deixe a sua oficina para os comícios eleitorais estão irremediavelmente perdidas”. Por isso o poema começa com esta estrofe: “Sapateiro, deixa a tenda. / Caixeiro, deserta a venda. / Vem lutar contra o balordo/ China gordo”. Edson Nery da Fonseca, Olinda – PE Errata A caricatura de Ariano Suassuna publicada na edição nº75 (março 2007), p. 18, na verdade, é de Eduardo Baptistão. Ao contrário do que foi informado na coluna “Marco Zero” na edição nº 77 (maio/ 2007), o poeta português Miguel Torga não morreu em 1955 e, sim, em 1995, em Coimbra. O Circo Nosotros, cuja imagem ilustra a página 19 da edição nº 77 (maio/ 2007), não foi atração do Festival de Circo do Brasil, como informado.
Arquivo Continente Sérgio Buarque de Holanda e o Estado Novo Sérgio Buarque de Holanda, como chefe de fila do Estado Novo: está morno. Como chefe da política de publicações: está ficando quente. Como chefe da Seção de Publicações do Instituto Nacional do Livro, criado no Estado Novo, é esse o ponto. Sérgio iniciou a linha editorial, em 1939, com a coleção Floriano: Memórias e Documentos, sobre o ditador que deu à república a feição autoritária que o Estado Novo recuperava. Elogiável, defensável, desculpável ou inescusável é a colaboração de Sérgio – mas nunca elidível, ainda menos de um historiador. Quando morre na condição de fundador de um partido
(PT) que dissente do trabalhismo de Vargas, a biografia de Sérgio se vê expurgada da colaboração com o Estado Novo. É cômodo e didático, mas não dialético: fica a imagem avant la lettre do intelectual politicamente correto, sendo absorvidas as tensões daquela complexa quadra histórica por um esquema de duplicação da imagem – a presença em duas revistas do modernismo (Klaxon e Estética), em dois núcleos de pensamento paulistas (a USP e o PT), contra duas ditaduras (a de Vargas, in extremis, e a do golpe de 64)... Nesse interregno, Sérgio é um intelectual orgânico do Estado Novo. Ricardo Oiticica, Continente Multicultural, nº 35, novembro de 2003.
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Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
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BALAIO E O PRÊMIO ABL VAI PARA...
CULTURA É DINHEIRO Atribui-se a Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Adolf Hitler, a frase: "Toda vez que ouço falar em cultura, saco logo minha arma". No filme O Desprezo (1963), o cineasta Jean-Luc Godard coloca na boca do produtor de filmes norte-americanos, Prokosh, interpretado por Jack Palance, sua boutade: "Toda vez que ouço falar em cultura, saco logo meu talão de cheques". (Marco Polo)
O economista e ensaísta pernambucano Roberto Cavalcanti de Albuquerque é o vencedor deste ano do Machado de Assis, o maior prêmio outorgado anualmente pela Academia Brasileira de Letras. O escritor embolsou o valor nada desprezível de R$ 100 mil pelo conjunto da obra, que inclui Coronel, Coronéis (com Marcos Vilaça) e Gilberto Freyre e a Invenção do Brasil. Já o colunista desta Continente, Alberto da Cunha Melo, dividiu o Prêmio de Poesia (por O Cão dos Olhos Amarelos) com Adriano Espínola (por Praia Provisória).
PÓS-TRADUÇÃO A expressão mens sana in corpore sano, normalmente traduzida por "mente sã em corpo são" ganhou versão pós-moderna. Tida como ideal de saúde, a frase é de Tales de Mileto, primeiro filósofo grego, nascido por volta de 625 a.C, mas se popularizou em latim, citada pelo poeta romano Décio Júnio Juvenal (60 a 127 d.C, aproximadamente), em sua "Sátira X". Pois bem. Dentro da visão contemporânea, mens sana in corpore sano agora se traduz "cabeça feita em corpo sarado". (MP)
“A manutenção da tradição exige a preservação das chamas e não a conservação das cinzas.”
RICHARD RORTY
Continente julho 2007
Silvia Nemer
ESCASSEZ A revista British Journal of Medicine divulgou que o estado dos espermatozóides dos europeus deixa muito a desejar. Estudo feito com amostras de esperma de milhares de habitantes do Velho Continente revela que não só existem menos gametas masculinos – a redução é já de metade (de 113 milhões por litro passou-se para 66 milhões), como a sua qualidade tem vindo a piorar, com resultados visíveis nas taxas de infertilidade. (Duda Guennes, de Lisboa)
PODRES DE RICOS Imagens: Reprodução
Morreu Richard Rorty, considerado um dos mais importantes e influentes pensadores contemporâneos. Nascido em 4 de outubro de 1931, o autodenominado "antifilósofo" combateu a pretensão de se chegar a qualquer verdade absoluta em filosofia. Foi um crítico ferrenho da tradição analítica e construiu as principais formulações daquilo que viria a ser conhecido como neopragmatismo americano. Uma de suas obras mais importantes A Filosofia e o Espelho da Natureza, publicada de em 1979, é onde está formulada pela primeira vez a base do seu pensamento: "Os seres humanos fariam melhor, caso se concentrassem mais em como resolver os problemas que aparecem na vida cotidiana e não em buscar conclusões a que chegam através de teorias abstratas". (Eduardo Cesar Maia)
EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES
Segundo pesquisa realizada em dezembro passado pela revista DT, espanhola, o líder do Nirvana, Kurt Cobain, passou a ser o mais rico artista morto, com uma fortuna de 39 milhões de euros, destronando outro ilustre cadáver, o rei do rock Elvis Presley, com 32 milhões de euros. Em seguida, completando a lista macabra, "aparecem" o desenhista Charles M. Schulz, o beatle John Lennon, o pop star da ciência Albert Einstein, o criador da pop art Andy Warhol, o teatrólogo Theodor Geisel, o pianista Ray Charles, a louraça Marylin Monroe e, por fim, o também músico americano Johnny Cash. (Luiz Arrais)
Talita Corrêa
SEMIOTICAMENTE Talvez a mais comentada, interpretada, copiada, parodiada, apropriada, como se diz agora, capa de disco de todos os tempos seja a do elepê Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, lançado há 40 anos (v. matéria nas pág. 84/85). Num furo de reportagem, apresentamos a fonte de inspiração da famosa capa: a foto de uma banda de escravos da Fazenda Resgate, do município paulista de Bananal, tirada em 1870. O documento está na capa do projeto Vale dos Tambores(CD e encarte), de Carlos Henrique Machado Freitas, sobre a música dos negros do Vale do Parnaíba, de 2005. Mais uma vez a Europa se curva perante o Brasil! (Homero Fonseca)
O PREGO E O RALO
TOQUE PARAIBANO
O Homem do Prego (The Pawnbroken), de Sidney Lumet, de 1964, é a história em preto-e-branco de um judeu, dono de uma casa de penhor, em Nova York, vítima do Holocausto que o tornou totalmente insensível, até quando conhece uma certa mulher. O protagonista é vivido pelo ator Rod Steiger, numa interpretação antológica. Quem se lembrou do cultuado O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhália/Lourenço Mutarelli, acertou em cheio.(HF)
A expressão "dar um toque", que nove entre 10 pessoas apostam ter origem carioca, é sertaneja e paraibana, com registro no romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida, publicado em 1928: "Pirunga desenganou-o: – Eu queria tanto! Mas não há jeito, padrinho! Já dei um toque. Diz que não quer. Não quer por nada!..." A popularização da expressão fora do Nordeste deve-se de fato ao Rio de Janeiro, onde a expressão foi reinventada na década de 1970. (Fred Navarro).
DESAFORISMOS
"Primeiro você toma o drinque, depois o drinque toma você" . F. Scott Fitzgerald
SOBEL X MARX O engraçadíssimo (?), digamos, "lapso" do rabino Henry Sobel com relação às gravatas de grife que ele teria esquecido de apresentar no caixa de três lojas americanas, poderia estar sendo tratado com o humor de um Groucho Marx (ao menos para atenuar o impacto sobre a biografia do homem de sotaque forçado). Certa ocasião, querendo ingressar com a família num elegante clube de Long Island, o mais engraçado dos Irmãos Marx foi barrado pelo fato de serem judeus. "Nada disso!" – objetou Groucho. "Meus filhos são só meiojudeus. Será que eles não poderiam pelo menos entrar na piscina somente até os joelhos?" (Fernando Monteiro)
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PERGUNTAS A ABELARDO DA HORA
1. Paulo Bruscky, artista plástico: Por que o MCP (Movimento de Cultura Popular), que foi o embrião dos CPCs no Brasil, até hoje não teve uma grande repercussão no país? O MCP teve, sim, na época, uma repercussão maravilhosa. Ele se expandiu para várias partes do Brasil. Primeiro, foi a UNE de São Paulo que criou um CPC na mesma linha do que tínhamos aqui, depois criaram o CPC da própria capital, do Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. O Golpe de 64 acabou com tudo. 2. Margot Monteiro, Diretora do Museu do Estado de Pernambuco: Pernambuco ganhou ou perdeu espaço com o novo conceito de arte? Conceito?! Primeiro, quanto a essa questão de conceito, acho que todo dia há um novo. A arte, em verdade, se transforma diariamente, é isso que anima o cenário cultural, afinal, o artista é um ser criador. Mas tratando de atualidade, acho que a arte pernambucana tem seu espaço hoje, sim, e é muito respeitada. 3. Geraldo Santana, arquiteto e urbanista: Na década de 60, o senhor criou um projeto que tornava obrigatória a presença de obras de arte em edifícios. Como foi esse processo? Quando eu era diretor da Divisão de Praças e Jardins, durante a prefeitura de Arraes, sugeri que criassem uma lei obrigando as construtoras a instalar uma obra de arte em todas as edificações que tivessem mais de 1.000 metros. Absurdo o desperdício financeiro que todas essas construtoras faziam e ainda fazem com sobras de material. A idéia entrou, então, no Código de Obras e Posturas Municipais de 61 e valorizou o trabalho de muitos artistas e transformou a cidade numa imensa galeria de arte a céu aberto.
CAPA
CENSURA
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Cena Cena do do filme filme 1984 1984,, baseado baseado no no romance romance homônimo homônimo de de George George Orwell: Orwell: crítica crítica às às sociedades sociedades totalitárias, totalitárias, onde Estado éé onde oo Estado onipresente onipresente
A polêmica gerada por projeto de lei do Governo estabelecendo novas regras para a classificação indicativa na TV; as investidas, cada vez mais freqüentes, em várias partes do mundo, à internet, e a decisão judicial que tirou de circulação biografia não-autorizada de Roberto Carlos trazem de volta à berlinda o tema censura
Portaria do governo que define a classificação indicativa dos programas de tevê abre debate para o qual grande parte da sociedade está alheia Carlos Haag
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TELEVISÃO
Controle remoto das mentes D epois da censura do rei, há quem chame o ministro da Justiça de “rei da censura” por causa da polêmica sobre a Portaria 264, de fevereiro deste ano, que define novas regras para a classificação indicativa da TV, implementando o uso de símbolos para indicar a adequação (ou não) a uma dada faixa etária. Isso seria feito segundo autoclassificação das emissoras, que devem deixar claro, antes e no meio dos programas, para que idade os programas são recomendados e se exibem cenas de violência, sexo etc. O horário livre será das 6 às 20h, e o de proteção à criança e ao adolescente, das 20h às 23h. Transmissões regionais de lugares com diferentes fusos horários deverão respeitar as normas e mudar as suas grades. Redes de TV, a Ordem dos Advogados do Brasil (para quem a medida contraria a “liberdade de expressão”) e a Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) chamam a 264 de “volta à censura do regime militar”, e impetraram uma liminar contra a medida no Supremo Tribunal de Justiça. “A 264 foi instituída exatamente para substituir aquela censura, pois é uma classificação que apenas indica uma informação, mas não proíbe o programa, o conteúdo de ser veiculado”, rebate Guilherme Canela, representante da Agência de Notícias dos Direitos da Infância, a Andi. TVs a cabo estarão isentas da portaria, já que mantêm contrato direto com os clientes. “A medida é necessária porque não há nas TVs brasileiras um dispositivo de bloqueio que permita aos pais selecionar os canais ou os conteúdos que chegam. Caso a TV digital traga esse dispositivo, essa classificação deixará de existir”, afirma José Elias Romão, diretor do Departamento de Justiça, Classificação e Qualificação do Ministério da Justiça. “Com a incorporação de informações adicionais sobre o conteúdo junto à classificação etária tradicional, os pais poderão se antecipar às cenas e debater com seus filhos, se quiserem que vejam tal ou tal programa. Assim, o ato
Imagens: Reprodução
Portaria define que novelas como Paraíso Tropical, da Rede Globo, exibidas a partir das 20h, deverão respeitar normas que visam proteger crianças e adolescentes
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Tyba
de assistir à televisão se transforma em um ação educativa”, completa Romão. Baseados num estudo americano de 1998, “Protecting Children from harmful television”, os críticos da portaria afirmam que a classificação não é informação suficiente para os pais, que, segundo a Abert e os veículos de mídia televisiva, deveriam ser os responsáveis pelo que seus filhos assistem e não o Estado. Mais: para eles, a classificação em vez de afastar crianças e adolescentes poderia, na contramão, funcionar como estímulo pelo “proibido”, tornando atraentes para este público materiais indicados como inadequados. O modelo a ser adotado, afirmam os que não aceitam o novo código, deveria basear-se na auto-regulamentação, nos moldes do que é feito, hoje, com as propagandas, cujo teor é avaliado pelo Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária, o Conar. “É um paradoxo: entidades que lutam pelos direitos humanos e pela proteção das crianças e dos jovens se mobilizam para pedir ao Ministério da Justiça que lute pela classificação. Outrora, elas enfrentavam o Estado, para que este não fosse politicamente discricionário. Agora, pedem que ele se mantenha criterioso em relação à ameaça da desenvoltura com que se tornam hegemônicos às baixarias”, observa o sociólogo Luiz Martins da Silva, da UNB. Globo e SBT passaram a apresentar um anúncio em que várias mãos colocadas nos olhos de uma criança vão sendo retiradas até que fiquem descobertos. Ao fim, uma voz em off afirma que os pais são os únicos responsáveis pela avaliação do conteúdo a ser veiculado na TV. Mesmo jornais passaram a discordar entre si: enquanto um editorial da Folha de S. Paulo chama as emissoras de “hipócritas”, ao rejeitar a 264, outro, de O Globo, reuniu artistas e autores da sua emissora para falar “em nome da liberdade”. A questão é complexa, pois, segundo o IBGE, 89% dos domicílios possuem TV e, segundo pesquisa feita pela Multifocus, a Kiddo’s, em 2003, 81% das crianças ficam pelo menos duas horas diárias em frente da telinha. Ao mesmo tempo, mais de 60% das mães trabalham fora e só monitoram seus filhos à noite, sem falar que, dentre esse universo, somente 16% dos pais dessas crianças têm curso secundário completo. “A transferência de responsabilidade para as famílias é como aquela explicação que atribui às vítimas a responsaContinente julho 2007
bilidade pelos crimes. É um discurso absurdo, pois isenta de responsabilidade um sistema industrial bem azeitado e responsabiliza uma massa de espectadores pulverizada e sem poder econômico ou cultural”, observa o filósofo Renato Janine Ribeiro, que também é descrente da auto-regulamentação. “A TV é um dispositivo a que qualquer criança tem acesso. Os pais não estão sempre do lado. A TV não tem obrigação de educar, mas tem obrigação de zelar pela criança e pelo jovem”, concorda Zico Góes, diretor de progração da MTV, que apóia a portaria. E quanto à liberdade do mercado em se autoregular? “A sugestão de um modelo Conar vai no contrapé da questão, pois supõe que a cultura de massas é
CAPA Transmissões regionais em lugares de diferentes fusos horários, como o Norte e Nordeste, deverão respeitar as novas normas de classificação indicativa
parte da indústria do entretenimento. Seu pressuposto é que o audiovisual é uma mercadoria e, logo, deve ser regulado pelo mercado”. Para o pesquisador, “o problema, a saber, dos excessos da TV face à cidadania e à ética, é o contraditório da solução aventada do autocontrole pelo mesmo mercado que lucra infringindo direitos humanos reconhecidos por nosso país.” Afinal, é bom lembrar, as emissoras de TV são detentoras de concessões públicas do espectro eletromagnético, bem público e de propriedade dos Estados Nacionais. “Na cabeça das pessoas, as emissoras são donas dos seus espaços e podem fazer o que quiserem, segundo as regras de mercado”, nota Romão. Alemanha, Austrália, Espanha, Chile, Estados Unidos, Holanda, Portugal, Reino Unido e Suécia, lem-
bra o diretor, possuem, há longa data, sistema de classificação e dificilmente algum desses países pode ser acusado de falta de liberdade. “A TV não é um simples eletrodoméstico, mas produz fortes impactos sobre a produção de subjetividades e identidades culturais”, lembra a psicanalista Ana Olmos. Sua colega, Maria Rita Kehl, da USP, concorda: “A discussão sobre a classificação deve girar mais em torno de formar as crianças que nós queremos do que ao redor da idéia de que crianças de determinada idade estão ou não preparadas para lidar com determinado conteúdo. O cinema e a TV fazem parte do caldo cultural em que nossas crianças são criadas. Assim, o que se oferece a elas é importante para o tipo de criança e jovem que se terá no Brasil” adverte. “Há uma invasão da moral do entretenimento na vida cotidiana. Os meios de comunicação não cessam de bombardear crianças e adolescentes com a idéia de que mérito só é mérito se for pago com muito dinheiro e muito sucesso medido pela visibilidade midiática. Resultado: o respeito se torna um bem escasso e apenas é devido àqueles que aparecem sempre nas emissoras. Fora disso, só há ‘zés e marias-ninguém’ que podem ser desprezados”, observa o psicanalista Jurandir Freire Costa. Seja como for, a polêmica promete continuar, apesar da medida ter sido baseada numa pesquisa que ouviu, em 2005, 23 mil pessoas e que chegou a um porcentual de 82% favorável à medida. Assim que a portaria entrar em vigor, o Ministério da Justiça vai fazer outra pesquisa, já preparada, para avaliar tanto a efetividade da 264, quanto o real impacto de cenas de violência e sexo no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Talvez, então, o rei possa ajudar, não com censura, mas pela percepção da necessária cautela com a TV, expressa numa música sua já quase esquecida. “Meus amores da televisão/ Fantasias do meu coração/ Minha mente sai da realidade eu posso ter/ Em cada meia hora um sonho a cores pra viver/ Elas me conduzem muito além/ Da minha imaginação, que confusão/ Uma delas diz: te quero sim/ É na TV e eu penso que é pra mim/ E quando me aproximo e me preparo para o beijo do final/ Comercial!” • Continente julho 2007
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C
omo o homem copia a Natureza, o virtual segue a trilha do “mundo real” – e em ambos os casos, qualquer redundância não será sutileza: nem o humano é anti-natural, nem o virtual é “anti-real”. A técnica, tomada como produto artificial, é tão ilusória quanto uma “segunda vida” proporcionada pela “realidade virtual”. No início vista como o palco ideal para a concretização da utopia da liberdade e da igualdade, a internet não tardou a se deparar com as leis e os costumes que regem a vida do lado de fora da tela. O anonimato, considerado questão primordial para os navegantes da web, também encobre atividades ilícitas, da exploração sexual de menores ao tráfico de drogas, de manifestações explícitas de racismo à preparação e divulgação de atos de terrorismo. Entre a ameaça à privacidade e o imperativo da transparência, uma rede sem fronteiras se presta tanto à troca de idéias quanto à idéia de controle, e logo os governantes de regimes menos abertos correram para adotar tecnologias de cerceamento à festa virtual. Impõe-se o toque de recolher da liberdade individual, o que pode ser perigoso. “Em nome da segurança, a liberdade retirada pode dar lugar a coisas como o terrorismo”, alerta Brad Templeton, um dos pioneiros da programação filiado à Electronic Frontier Foundation. Apesar do surgimento de “toneladas de leis”, como diz Templeton, para regular o ciberespaço em diversos países, muitas dessas leis não surtem efeito, no âmbito internacional, ou sequer nos próprios países em que foram criadas. Além da guerra de propaganda, o acesso livre à informação é alvo de uma guerra tecnológica. Se os censores ganharam aliados, os censurados não param de encontrar formas de driblar as barreiras, uma após a outra. “Enquanto alguns defendem o compartilhamento e a liberdade total, outros pretendem controlar tudo e todos em prol de uma pretensa segurança. São os dois extremos”, atesta Omar Kaminski, advogado especialista em Direito Eletrônico. Continente julho 2007
Folha Press
Assim na tela como fora dela
O governo chinês tenta controlar o acesso de 114 milhões de internautas
O controle crescente do que se pode ver e saber na rede mundial de computadores é uma ducha de água fria sobre os defensores da liberdade individual sem tutelas Fábio Lucas
LITERATURA CAPA
INTERNET Para Brad Templeton, trata-se de uma guerra sem desfecho visível, e não dá para dizer se a internet está mais ou menos vulnerável à censura, hoje, do que há 10 anos. Lawrence Lessig, da Academia Americana em Berlim, e professor de Direito da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, discorda desta opinião. Para ele a vulnerabilidade é muito maior. “A tecnologia para impor a geografia à internet evoluiu dramaticamente”, alega. Lessig, autor dos livros Free Culture (Penguin Books) e The Future of Ideas: the fate of the commons in a connected world (Random House), acredita que a censura tecnológica invisível à maioria é uma séria ameaça aos cidadãos. Para os governos, a legislação do universo virtual representa a possibilidade de aplicar a lei local ao comportamento on line. “Isto pode facilmente se transformar em um instrumento de censura”. De acordo com Lessig, o controle cada vez mais sofisticado dos cidadãos pelos seus governos, na internet, é uma tendência que deve se manter nos próximos anos. Trata-se de uma trajetória que acompanha a disseminação da rede mundial. Quanto mais cresce a internet, mais aumentam as restrições à liberdade virtual. Mesmo quando tais restrições traduzem as melhores intenções, como o combate à pornografia infantil. Ainda em 1998, o senado americano aprovou uma lei que obriga escolas e bibliotecas beneficiadas por recursos federais a utilizar programas capazes de filtrar conteúdos considerados pornográficos. E aí se detectou o problema: menções ao câncer de mama foram tratadas pelos programas como sendo pornografia. Nos Estados Unidos, pátria da internet com quase 200 milhões de usuários, a reclamação contra a invasão da privacidade on line é tão intensa quanto o esforço oficial e corporativo para controlar, explícita ou veladamente, o fantástico fluxo de informações produzido. Todo ano centenas de casos chegam aos tribunais, de cidadãos contra empresas, de empresas contra o governo, do governo contra os cidadãos. Em muitos casos, a Suprema Corte é levada a invocar a Primeira Emenda da Constituição Americana para garantir a liberdade de expressão na web. No ano passado, por exemplo, um juiz federal de Lousiana anulou a lei estadual que proibia a venda ou aluguel de videogames violentos a menores de idade. O motivo alegado? Para o juiz, seria um “controle inadmissível de pensamento” que feria a Primeira Emenda, já que tampouco há limites para os filmes e os livros que inspiraram os videogames. “É o interesse público que está em jogo, determinando os limites da liberdade de expressão – de fazer ou dizer o que quiser – até quando invade a privacidade e a intimidade de terceiros, por exemplo, gerando danos passíveis de indenização”, explica Omar Kaminski, que lembra que também no Brasil a Constituição assegura que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Continente julho 2007
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A enciclopédia virtual Wikipedia está na lista dos sites proibidos
Agência Guaraná
Na China, onde o controle é pesado para tentar barrar os efeitos da informação que circula na Terra sobre os 144 milhões de internautas chineses, o mais recente alvo do governo é o blog. O patamar de 22 milhões de blogueiros levou o governo chinês a elaborar um “código de conduta” para impedir que os blogs sejam usados para “divulgar informação insana, perturbar seriamente a ordem social e os interesses públicos, além de contaminar o entorno da internet”, como justificou na proposta do código a Sociedade da Internet da China, encabeçada pelo governo. Para estancar o “lixo cultural”, os blogueiros serão obrigados a assinar um termo comprometendo-se a não divulgar “conteúdos insanos, ilegais, pornográficos, difamatórios ou falsos”. O mesmo valerá para os provedores. É proibido navegar na China em diversos sites estrangeiros. Entre eles, os da BBC, da Anistia Internacional e o da Wikipedia – esta porque dedica muito espaço ao Dalai Lama, segundo os dirigentes chineses. A organização Repórteres Sem Fronteiras, que defende a liberdade de imprensa, tentou, em maio, lançar o seu site em chinês. Em vão. Antes de ir ao ar, o acesso já estava bloqueado. Enquanto isso, o governo estimula a divulgação de textos marxistas, considerados “produtos culturais saudáveis”, em Proibição do vídeo com Cicarelli e namorado na praia teve efeito contrário: site YouTube bateu recorde de acessos
contraponto ao que compreende como “conteúdo decadente” que predominaria na web. Mas nem tudo é decadência quando se está do mesmo lado. O portal Yahoo! está sendo processado na Califórnia (EUA) pela esposa de um chinês preso em Pequim. O portal foi citado 10 vezes na sentença proferida pelo tribunal chinês contra Wang Xiaoning. O processo movido por sua esposa, em São Francisco, pede que o Yahoo! pare de colaborar com o governo da China na identificação de usuários da internet. “Todo mundo está interessado na Internet, especialmente os ditadores”, afirmou Julien Pain, um dos autores do relatório 2007 dos Repórteres Sem Fronteiras sobre a censura na internet. A organização denuncia que em praticamente todos os continentes há presos condenados pelo uso da internet como oposição aos governos. A China aparece com destaque pelo monitoramento que vem aplicando junto aos dissidentes e à população em geral, e por ser o país que mais detém pessoas pelo que disseram on line. Segundo a organização, também há presos por crimes virtuais no Irã, na Líbia, no Egito, na Síria, nas Maldivas, no Vietnã e na Tunísia. A censura eletrônica é prática comum também dos governos da Arábia Saudita, de Cuba, do Nepal e da Coréia do Norte. Em Cuba, é preciso ir a pontos públicos de acesso, onde o controle por parte do governo é mais fácil, para checar o e-mail. Não é por acaso que, na terra de Fidel, existem somente dois internautas para cada 100 habitantes. Em Burma, a vigilância é igualmente severa: sites como o Yahoo! e o Hotmail são proibidos, e a cada cinco minutos é realizada uma “varredura” do conteúdo acessado nos cyber cafés. O Zimbábue está adquirindo tecnologia da China para censurar a internet. Mas a China não é a única fonte: segundo a RSF, muitas empresas ocidentais vendem programas com este objetivo para os países de regimes fechados. O Brasil não escapa à onda da informação cerceada. Na maioria das grandes empresas, e nos órgãos públicos, o acesso à rede é limitado, em nome da segurança e da
CAPA LITERATURA
Portal Yahoo! está sendo processado sob a acusação de colaborar na identificação de internautas
eficiência. Sites de relacionamento e blogs são simplesmente bloqueados. Para os Jogos Panamericanos no Rio de Janeiro, o Comitê Olímpico Brasileiro proibiu os atletas de alimentarem blogs, fotoblogs e sites pessoais durante a competição. Em 2004, nas Olimpíadas de Atenas, os atletas puderam manter diários virtuais, sem imagens das disputas. Virna, do vôlei, e Sandra, do vôlei de praia, escreveram e responderam aos fãs. No Pan do Rio, nem isso pode. A censura ao mundo virtual ganhou dimensão real para os brasileiros após a divulgação do vídeo de Daniela Cicarelli com o namorado em uma praia da Espanha. O vídeo foi proibido pela Justiça de São Paulo de ser exibido pelo You Tube, que tem sede nos EUA. A decisão causou polêmica e surtiu efeito contrário: quem não tinha visto quis ver, e não faltaram mensagens de e-mail com o vídeo “censurado”. Para o advogado Omar Kaminski, para o Direito Virtual vale a velha máxima: “Devemos reconhecer que a liberdade de expressão não é irrestrita, é uma liberdade com responsabilidade. Talvez esse “detalhe” fuja ao entendimento de alguns, haja vista alguns exageros que acabam provocando um Judiciário ainda não acostumado com questões tecnológicas”.
Um projeto de autoria do senador Eduardo Azeredo para “regular” a internet brasileira encontra forte resistência para ser aprovado. Pedro Rezende, professor de Ciência da Computação da Universidade de Brasília, tem criticado o projeto que remete, segundo ele, à Idade Média. “O projeto cria tipos absurdos de crime, e legaliza esquemas privados de espionagem, definidos de maneira vaga. O inciso IV do artigo 6 do substitutivo do senador, por exemplo, cria um tipo de crime semelhante ao de heresia ou de bruxaria no período da Inquisição. Torna crime, até culposo, o acesso indevido a dispositivo de comunicação, sistema de informação ou rede de computador, sem que a definição de ‘acesso indevido’ seja dada, prevista ou delegada”, destaca o professor Rezende. Na queda-de-braço entre os que sugerem limites e os que desejam a ampliação do arco da liberdade virtual, uma coisa parece certa: a internet não é mais o oceano da informação democrática. Talvez jamais tenha sido. E os casos de cerceamento e punição recordam simplesmente que não há separação nítida a isolar o mundo em rede do mundo local. A internet livre foi outra utopia malograda. • Continente julho 2007
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Mercado editorial retoma discussão sobre censura com a interrupção da publicação, distribuição e venda da Reprodução ‘’biografia não-autorizada’’ de Roberto Carlos
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BIOGRAFIA
Daniel Piza
Agência Estado
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ação movida e vencida por Roberto Carlos contra o autor de sua biografia, Paulo César de Araújo, e a editora, Planeta, abre um precedente lamentável no Brasil. Todo mundo conhece a história. Roberto Carlos ficou indignado com passagens do livro que relatam fatos como o acidente em que perdeu a perna na infância; as providências que tomou para suprimir as fotos de sua então mulher, Myriam Rios, nua; as cenas do final de vida de Maria Rita, última esposa dele; e alguns casos amorosos que teria tido, com personalidades como Maysa e Vanderléa, além de menções a orgias com menores de idade. Alegou invasão de privacidade. E o juiz Maurício Chaves de Souza Lima, da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro, determinou que fossem interrompidas a publicação, a distribuição e as vendas da biografia. Mais que 10 mil exemplares foram recolhidos do estoque da editora e das livrarias. Em qualquer país, salvo nos tirânicos, tal ordem seria considerada um escândalo. Em países como os EUA e a Inglaterra é muito comum ver as chamadas “biografias não-autorizadas”, que narram histórias de ídolos como atores e cantores e não poupam detalhes sobre vida sexual, uso de drogas e outros temas. Os biografados protestam, negam as supostas revelações, e entram com pedidos de indenização. Não raro, ganham – e ganham fortunas. Para isso, é preciso que o autor não prove os fatos que relata. Mas o mais importante é que ninguém retira exemplar nenhum de circulação. O livro cai em des-
Agência Estado
Sentado à beira da censura
Censura ao livro de Paulo César Araújo abre precedente perigoso Continente julho 2007
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Arquivo Última Hora
crédito, e a vida segue. Até porque não falará editora para publicar com todo o auê do mundo a “biografia autorizada” do ator e cantor, cheia de boas intenções como o inferno... O que aconteceu no caso brasileiro foi bem diferente. Não se julgou o mérito de cada “acusação” específica. Muitos dos pontos de confronto, afinal, parecem consistentes. O acidente, por exemplo, já havia sido relatado por jornais como o Diário Popular, que sofreu processo por isso, mas venceu; Araújo teve o cuidado de colher testemunhos adicionais, os quais só ratificaram a versão. Sobre a história das fotos de Myriam Rios para a Playboy e o sofrimento final de Maria Rita, igualmente, os testemunhos coincidem. Já os casos com Maysa e Vanderléa são difíceis de provar, até porque, em geral, foram contados ao autor por colegas de geração, não são algo que possa ser comprovado por fotos ou cartas de cunho íntimo. E Araújo não diz que Roberto Carlos participou das orgias da Jovem Guarda. O livro falha em não dar crédito a todas as reportagens de época a que recorreu. Isso não significa que os fatos ali relatados não tenham ocorrido. Seja como for, Roberto Carlos não estava brigando por uma versão mais precisa da história. Note que o juiz não aponta erros factuais na biografia. Dificilmente seria assim, aliás: o autor é fã confesso do cantor e seu livro – como acontecem nas biografias brasileiras, “hagiografias” em verdade – é uma verdadeira exaltação de Roberto Carlos como o “rei” da MPB, o compositor popular mais importante do país, mais até do que Cartola, Noel, Caymmi, Jobim ou Chico Buarque. Se Araújo tinha um interesse, esse certamente não era o de denegrir a imagem de Roberto Carlos. Todas as pessoas que leram o livro saem, ao contrário, com um conceito muito melhor a respeito de sua batalha, talento e caráter. Continente julho 2007
Entre os trechos do livro que desagradaram Roberto Carlos estão os que fazem referências a casos amorosos com as cantoras Maysa e Vanderléa
O que o juiz argumenta é que o livro aborda intimidades da vida pessoal do artista que não dizem respeito ao leitor e ao fã, apenas ao próprio artista. E esse é seu maior engano. A mim, por exemplo, me interessa bem pouco quem Roberto Carlos namorou, quando, etc. Esperava do livro mais discussões sobre sua carreira, em particular sobre a queda de qualidade de suas canções a partir dos anos 70, quando passou de um artista ao mesmo tempo inovador e melódico – capaz de canções como “Nas Curvas da Estrada de Santos”, “Sua Estupidez” e “Sentado à Beira do Caminho” – para o “romântico” anacrônico, de medalhão e ombreira, o preferido de tecladistas e caminhoneiros nas churrascarias do país. Mas não posso dizer que uma informação biográfica como as citadas seja dispensável. Além de ajudarem a estabelecer o clima narrativo, essas informações podem ter significados distintos para as pessoas. Saber que ele foi atropelado por um trem quando criança talvez não faça entender o fundo triste que existe mesmo em suas canções mais alegres? Sim, Ezra Pound, o escritor americano, disse que um mau crítico se conhece quando começa a discutir o poeta em vez do poema. Mas Pound se referia a críticas, não a biografias; e não disse que não se deve discutir o poeta. Como entender, por exemplo, o minimalismo pessimista de Samuel Beckett, se ignoramos o que sofreu com doenças e, especialmente, com uma terrível insônia? E como não ver a importância da relação de Machado de Assis com sua esposa, Carolina, na fase madura de seus romances e no sofrimento nostálgico de seus últimos textos, a tal ponto que ela é utilizada como modelo para Dona Carmo em Memorial de Aires? “Nossos instrumentos para relacionar vida e obra são ainda muito grosseiros”, costuma dizer
Em artigo para o jornal Folha de S. Paulo, o escritor Paulo Coelho reprovou a atitude do cantor e da editora que também publica seus livros
Divulgação
A poesia Concreta desde a década de 1950 já realizou uma síntese radical da herança das vanguardas, ainda não plenamente assimilada por nossos poetas e críticos literários.
o crítico americano Harold Bloom. Mas não há como negar que essa relação existe, nos mais diversos níveis de complexidade. Invasão de privacidade é outra coisa. É, por exemplo, um paparazzo tirar foto sem solicitar de uma celebridade em local privado, como o interior de sua casa. Mas não é se ele a fizer em espaço público, digamos num restaurante ou parque ou loja. Pessoas públicas estão sujeitas a isso, como a própria qualificação indica. Foi o que Paulo Coelho, outra personalidade brasileira extremamente
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famosa, tentou dizer a Roberto Carlos em artigo na Folha de S.Paulo, reprovando inclusive o comportamento de sua editora no episódio. Outra questão são as supostas mentiras. Suponhamos que Araújo, por documentos ou testemunhos, não conseguisse provar um dos fatos que descreve no livro. A editora e ele teriam de pagar uma quantia ao cantor. Isso é líquido e certo: ninguém pode sair a público dizendo que um cidadão – qualquer cidadão – fez isso ou aquilo, contravenção ou não, e seguir impune, caso não tenha como provar. Jornais, por exemplo, são obrigados a fazer correções e publicar retratações ou direitos de resposta. (Claro que há abusos, como o de querer que a réplica tenha o mesmo tamanho do texto original, quando apenas parte deste tinha conteúdo reprovável.) No caso de um livro, pode-se fazer acordo sobre futuras edições, mas a praxe internacional é mesmo que se pague indenização. O suposto “estrago”, por assim dizer, está feito – tanto é que o livro de Araújo continua a circular pela internet, ele continua a participar de eventos e suas revelações polêmicas são de conhecimento geral. Já a imagem de Roberto Carlos... •
A vida como ela foi A polêmica Roberto Carlos versus Paulo César de Araújo será tema de debates tanto na Feira Internacional do Livro de Parati (Flip) , este mês, quanto na Bienal do Recife, em outubro, reunindo o autor de Roberto Carlos em Detalhes e o escritor Fernando Moraes - que também teve obra proibida pela Justiça. Moraes teve seu livro Na Toca dos Leões retirado de circulação, por ter atribuído ao deputado Ronaldo Caiado (então PFL–GO) declaração, segundo a qual, caso fosse eleito presidente da República, iria esterilizar as mu-
lheres nordestinas para acabar com a superpopulação no país. Meses depois, a decisão foi cassada e o livro voltou a circular. A censura também bateu à porta de outro biógrafo, Ruy Castro. Seu livro Estrela Solitária, que narra a história de Garrincha, foi impedido de circular porque as filhas do jogador não gostaram do capítulo “A máquina de fazer sexo”, que dava conta do vigor sexual do craque. O caso tramitou até a sentença definitiva: “disposição sexual, pelo menos no Brasil, não é ofensa a ninguém”. •
Biografia de Garrincha, de Ruy Castro, teve sua venda interrompida a pedido das filhas do jogador Continente agosto 2003
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Ao centro, passeata de artistas contra a censura, Rio de Janeiro, 1968. Abaixo, o ex-ministro Fernando Lyra: "paguei o pato".
Arquivo CPDOC-FGV
Arquivo Fundaj
À direita, cena de Je Vous Salue, Marie, censurado depois da censura
A censura, a Virgem Maria e o rei da Jovem Guarda
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o dia 29 de julho de 1985, quatro meses depois de tomar posse como ministro da Justiça do primeiro governo civil pósditadura militar, o pernambucano Fernando Lyra reuniu cerca de 700 intelectuais brasileiros no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro. Ali, solenemente, revogou as leis que censuravam as diversões e espetáculos públicos, bem como os veículos de comunicação social. Esse “entulho autoritário”, como então definiu o ministro, somava 39 leis, decretos e portarias editados no Brasil entre 31 de março de 1964 e o fim do regime militar. Lyra, atualmente presidente da Fundação Joaquim Nabuco, lembra que, ao assumir, “a Censura era algo grande no Ministério da Justiça, era a função que mais empregava gente”. “Censura, nunca mais!” – bradou com seu vozeirão o caruaruense, que havia sido, quando deputado federal durante o regime de exceção, um baluarte da luta pela redemocratização e liberdade de expressão, angariando os aplausos do distinto público. Continente julho 2007
O clima era de euforia entre os intelectuais e artistas que lotaram o Casa Grande naquela noite. Com efeito, haviam sido liberadas as últimas obras ainda censuradas no país: os livros Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; Aracelli, Meu Amor, de José Louzeiro, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; e os filmes Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade; Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirszman; Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias; Os Condenados, de Zelito Viana, O Homem que Virou Suco e Doramundo, de João Batista de Andrade. Uma ducha fria arrefeceu os ânimos, poucos meses depois, trazendo uma névoa de decepção ao cenário idílico. Foi a proibição do filme Je Vous Salue, Marie, de Jean-Luc Godard, lançado na Europa no começo do ano. No filme, a Virgem Maria é uma frentista de posto de gasolina, fala palavrões e aparece nua, embora permaneça casta e conceba sem contato sexual, como na Bíblia. Fernando Lyra conta o episódio: “Sarney me chamou ao Palácio (do Planalto) e me disse que estava
O revelador episódio sobre o fim (não tão definitivo assim) da censura no Brasil e os sentimentos religiosos de um consagrado compositor e cantor popular Homero Fonseca
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MEMÓRIA Divulgação
sendo pressionado pela Igreja, inclusive dom Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência dos Bispos do Brasil, que tinha sido um importante aliado na luta contra a ditadura, e pelo chefe da Casa Militar (o general Rubens Bayma Denys), um catolicão. Eu disse que não censuraria o filme. Sarney me pediu então que eu segurasse (a liberação). Fui à Polícia Federal assistir ao filme. Não tinha nada demais. Aliás, não gostei, mas não tinha nada demais. Voltei ao presidente e disse isso a ele. Sarney então afirmou que proibiria o filme. Isso foi em setembro, outubro. Dali a uns meses eu estaria deixando o Ministério. Se o presidente assinasse a proibição, eu, como ministro da Justiça, teria que assiná-la também. Pensei em antecipar minha saída, renunciando ao cargo. Resolvi consultar o Zé Paulinho (o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, secretário-geral do Ministério), o Cristovam (Buarque, então chefe de gabinete do Ministério) e o Joaquim (Falcão, assessor no Ministério). Joaquim, com menos vivência política, achou que eu deveria renunciar. Zé Paulinho e Cristovam me aconselharam a ficar, ponderando que uma renúncia seria considerada uma bravata política, essas coisas. A consulta dava dois contra um, eu fiquei. Decisão se toma, não se consulta. E assim eu paguei o pato”. O episódio se tornou rumoroso, como não podia deixar de ser. Antes da decisão, os conservadores de
todo o país haviam se mobilizado, até passeata uma certa Associação das Donas de Casa promoveu em Belo Horizonte. Após a proibição, foi a vez de intelectuais e artistas protestarem, assumindo postura de desobediência civil, patrocinando exibições alternativas do filme proibido. É quando surge em cena um personagem inesperado, pouco afeito a participar desse tipo de discussão pública. Conforme narra o jornalista Paulo César Araújo, no livro agora proibido de circular por decisão judicial, Roberto Carlos se manifestou publicamente a favor da censura, enviando até um telegrama a Sarney, parabenizando-o pela decisão. Indagado se teria assistido ao filme, respondeu: “Não vi e não gostaria de ver. Sou contra esse tipo de filme que mexe com divindades. Acho que deve haver respeito para com a Virgem Maria. Pelo que li sobre o filme estou de acordo com o presidente Sarney sobre sua proibição”. Irritado, Caetano Veloso publicou artigo em jornal, criticando “a burrice de Roberto Carlos”, elogiando a obra de Godard e afirmando que o telegrama de apoio à censura envergonhava a classe artística. Segundo Paulo César, Roberto Carlos ficou “bastante chateado” com a reação de Caetano Veloso e também manifestou isso publicamente: “Caetano foi muito deselegante. Apoiei o veto por absoluta conciência de que o filme de Godard deturpa e desrespeita a história sagrada. Continuo contra a sua exibição porque sou um homem religioso e os valores cristãos são muito importantes para mim.” A lembrança desse episódio de duas décadas atrás traça uma linha de coerência nas atitudes e ações do cognominado Rei da Jovem Guarda, um artista conservador até os poros. Só que agora, surpreendentemente, ele provocou a crítica não de Caetano, o eterno enfant terrible da música popular, mas do “olímpico” Paulo Coelho. • Para aprofundar mais o tema, leia os livros: Mecanismos do Silêncio: expressões artísticas e censura no Regime Militar (1964 – 1984), de Creuza Berg, editora da UFSCar, 2002. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, Beatriz Kushnir, editora Boitempo, 2007. Continente julho 2007
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MÚSICA
Transparências
Conhecendo a música clássica ocê sabe o que é o sprechgesang? Já ouviu falar em Paul Dukas ou Dietrich Buxtehude, ou conhece o som de um contrafagote? Para o público leigo, a música clássica geralmente se resume às peças mais conhecidas de Bach, Mozart, Beethoven e mais 10 ou 12 nomes. Já os mais familiarizados com esse universo sentem falta de um maior conhecimento sobre os marcos mais importantes da História da Música e da vida dos compositores. A fim de oferecer uma noção introdutória ao assunto, a Saraiva Mega Store promove a segunda edição do Curso de Iniciação à Música Clássica. O curso, ministrado pelo jornalista Carlos Eduardo Amaral, colaborador da Continente, é dirigido a apreciadores e a estudantes iniciantes de música , de artes em geral ou de crítica cultural, e apresenta as principais peculiaridades das obras dos grandes mestres da música, os detalhes biográficos dos mais paradigmáticos deles e o contexto em que se deram as mais significativas mudanças de concepções estéticas, familiarizando os participantes com diversos estilos e escolas musicais e indicando as melhores fontes de informação. Em 16 semanas, o minicurso abrange dois módulos. O primeiro módulo trata dos instrumentos da orquestra sinfônica, dos tipos de vozes líricas, dos gêneros de composição e das formas de estrutura musical. O segundo reproduz a linha cronológica da Grécia Antiga aos compositores contemporâneos. Todas as aulas serão ministradas com o auxílio de slides, software editor de partituras, audição de peças em MP3 e CDs. A turma terá 50 alunos e os participantes receberão apostila, CD com material de apoio e certificados.
Imagens: Divulgação
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Curso de Iniciação à Música Clássica. De 13 de julho a 30 de novembro, na Saraiva Mega Store do Shopping Center Recife. Inscrição: R$ 50,00. Informações: 8831.9700. Hans Von Manteuffel /Divulgação
Festival em Londrina O 27º Festival de Música de Londrina será realizado entre os dias 5 e 21 de julho, sob a direção artística de Marco Antonio de Almeida. Com duas estruturas básicas, pedagógica e artística, o festival procura evidenciar a música brasileira, mantendo sempre o alto nível de artistas e professores convidados para a programação. Na programação artística acontecerão 80 concertos em teatros, espaços abertos, creches, hospitais, penitenciárias e cidades da região. Na grade pedagógica, haverá presença de 53 professores e 68 cursos, distribuídos nos seguintes módulos: práticas de conjunto, regência, instrumentos e voz, música histórica, estruturação musical, música popular, professores, oficinas especiais, cursos para crianças, encontros e master classes. O 27º Festival ainda presta homenagem, na grade artística, a Heitor Villa-Lobos (120 anos de nascimento), Camargo Guarnieri (100), Tom Jobim (80), Noel Rosa (70) e ao contemporâneo Ronaldo Miranda. 27º Festival de Música de Londrina. Informações: (43) 9101.1080 e 9942.1995, site:www.fml.com.br Continente julho 2007
Conceituada arquiteta, designer, curadora e cenógrafa, Janete Costa reinventa a si mesma e revela um outro lado de seu potencial artístico, até então desconhecido por muitos. Com a exposição Transparências, Janete exibe cerca de 30 peças, em vidro e ferro, criadas ao longo dos últimos 20 anos. O resultado são delicados trabalhos com tons coloridos e formas múltiplas e que, além decorativos, são funcionais, servindo como castiçais e vasos. Transparências . Até 12 de julho, na Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92A, Pina – Recife). Informações: (81) 3325-4728.
Musicais
Capiba O sucesso do musical Capiba: Madeira que o Cupim não Rói foi tanto, que o grupo volta ao palco do Teatro de Santa Isabel, dessa vez com uma novidade: o CD homônimo será finalmente lançado no período de 4 a 7 de julho. Tanto o show quanto o CD reúnem amigos, canções e causos divertidos da vida de Lourenço da Fonseca Barbosa, o saudoso Capiba. Capiba: Madeira que o Cupim Não Rói, no Teatro de Santa Isabel . De 4 a 7 de julho, às 20h. Ingressos: R$ 15,00 e R$ 30,00 (platéia e frisas) e R$ 10,00 e R$ 20,00 (camarotes de 1° e 2° andares). CD: R$ 15,00. Informações: (81)3423 3186 / 3232 2030.
Cenas: o Melhor dos Musicais é uma produção trazida ao Nordeste pelo grupo recifense O Elenco, composto por cantores com formação popular e erudita. O espetáculo faz um releitura de grandes clássicos como Cats, Hair e O Fantasma da Ópera, numa proposta diferente. Timbres variados, vozes versáteis, arranjos inovadores, uma orquestra sinfônica, um pouco de teatro e bastante emoção. Cenas: o Melhor dos Musicais, em João Pessoa (14 e 15/7), Campina Grande (28 e 29/7), Natal (31 e 1º/9) Informações: (81) 3222 4912/ 3222 5906.
AGENDA DANÇA
ARTES PLÁSTICAS
icções é uma exposição composta por três importanF tes obras da artista Regina Silveira: Mirante, uma proposta intimista que leva o visitante a uma sala escura
onde estaria contido o cosmos; Entrecéu, um gigantesco túnel celeste, amplo e coletivo, que toma conta da nave principal do galpão de exposições; e Mil e um dias (foto), uma projeção de quatro minutos que alterna dias e noites, levando o observador a olhar o conceito temporal com uma nova perspectiva. São leituras inéditas do espaço e da arquitetura através de singulares desconstruções estéticas. A mostra, uma realização da Fundação Vale do Rio Doce, terá também uma sala com maquetes e desenhos de Regina. Segundo o curador Adolfo Montejo, esse trabalho está intimamente relacionado com o movimento e com o conceito de tempo e de distância das coisas.
Studio homenageado
ma Mulher Dama, comédia da dramaturga paraibana Lourdes Ramalho, é um espetáculo realizado pela Troupe Cênica Express’Art, que leva ao palco três atores, num revezamento constante de personagens. A histriônica Agatóclides, uma professora aposentada, junto ao seu subserviente assistente, Afonsino, e ao funcionário de um auditório, o meticuloso senhor Pedro, é obrigada a substituir os artistas de um espetáculo que não aparecem para viver seus papéis no dia marcado para a apresentação. Tudo porque mil ingressos já foram vendidos! A montagem presta uma homenagem ao teatro de fantoches e marionetes – com uso da tenda de bonecos em vários momentos e a manipulação aparente entre os próprios personagens – e denuncia, com muita irreverência e num ritmo bem ágil, fatos engraçados da história corrupta no Brasil e dos bastidores das produções teatrais. No elenco, Geraldo Cosmo, Alex Sandro Silva e Cindy Fragoso.
m sua quinta edição, a Mostra Brasileira de Dança firma-se como um grande painel democrático, voltado cada vez mais para as produções locais. No evento, como únicas atrações convidadas de outros Estados, duas companhias paulistas reconhecidas internacionalmente pela sua dança contemporânea: a Cisne Negro Cia. de Dança (foto abaixo), comemorando 30 anos de existência sob direção artística de Hulda Bittencourt; e o Ballet Stagium, com 35 anos de elogiada carreira sob a direção de Márika Gidali e Décio Otero. Nesta edição, o projeto vai reverenciar a mais importante escola de formação em dança em Pernambuco: o Studio de Danças (foto acima), coordenado por Ruth Rozenbaum e Lúcia Helena Gondra. A homenagem inicia as comemorações pelo 30º ano da instituição – que serão completados em junho de 2008. Entre as atrações, o Studio de Danças apresentará trechos de seis ballets, como Dom Quixote, La Bayadère, Giselle e A Bela Adormecida. Ainda na programação, duplas de dança de salão nos mais variados ritmos, como Demetrius Gonçalves e Aneska França no estilo caribenho do zouk; Everaldo Lins e Sulema Tavares, esbanjando sensualidade numa instigante salsa. Já a Trupp Cia. de Dança, voltada para a dança contemporânea, vai apresentar a coreografia Daqui Pra Lá, do coreógrafo Ivaldo Mendonça, com trilha sonora de DJ Dolores. Outras participações confirmadas são o Balé Afro Majê Molê, Marcelo Pereira & Duda Braz, a Escola Municipal de Frevo Maestro Fernando Borges e a Cia. Árabe Hannah Costa. O maior objetivo do evento, além de fortalecer o mercado de trabalho para artistas e técnicos dessa área, é apresentar o que vem sendo feito de melhor na produção local, com uma pequena parcela de convidados de outros Estados e o investimento em oficinas de reciclagem.
Uma Mulher Dama. Canal das Artes (Rua Vigário Tenório, 117, Recife Antigo), até 29 de julho, somente aos domingos, 20h. Ingressos: R$ 10,00 e R$ 5,00 (meia). Informações: (81)3458 0723.
V Mostra Brasileira de Dança. Teatros de Santa Isabel (Praça da República, sn, Santo Antônio) e Parque (rua do Hospício, 81, Boa Vista). De 12 a 25 de julho, às 19h. Ingressos: De R$ 15,00 a R$ 5,00. Informações: 81.3423 3186 / mostrabrasileira@gmail.com
TEATRO
Comédia
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Reginaldo Azevedo /Divulgação
Ficções. De 27/7 a 27/9, no Museu Vale do Rio Doce (Antiga Estação Pedro Nolasco s/n, Argolas. Vila Velha – ES). Informações: (27) 3333 2484.
Douglas Fagner/Divulgação
Marcelo Lyra/Divulgação
Divulgação
Diálogo com o espaço
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MARCO ZERO Alberto da Cunha Melo
Antropofagia poética Alberto da Cunha Melo
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os velhos tempos – no “Recife, ano 446 da deglutição do Bispo Sardinha” – da coluna “Arte pela Arte”, do Jornal da Tarde, da qual fui colaborador, lembrei o movimento antropofágico de 1928, liderado por Oswald de Andrade, ao deparar-me com um diálogo entre um sacerdote e uma velha índia, no relato Atuação dos Jesuítas na Formação do Brasil, de Irineu Cavalcanti: – “Minha avó, se eu lhe desse um pouco de açúcar, ou outro bocado saboroso de lá de minha terra, minha avó comeria?” Responde ela: – “Meu neto, nenhuma coisa da vida desejo; tudo já me aborrece; só uma coisa me abriria o apetite: uma mãozinha de um tapuia de pouca idade, tenrinha, para chupar aqueles ossinhos, creio que, então, tomaria algum alento, mas, coitada de mim, não tenho quem vá flechá-lo.” Não gosto de fazer citações longas, mas, essa, tenham paciência, não resisti em fazê-la, porque me mostra um outro lado da antropofagia brasileira, diferente do que eu estava acostumado a encontrar nos manuais. O fato ocorre antes de 1759, ano em que os jesuítas foram expulsos do Brasil. Os antropólogos me diziam que a antropofagia praticada por nossos índios era eminentemente ritualística. As palavras da velha índia me mostram que, por trás, vamos dizer assim, dessa função manifesta – para usar Robet K. Merton – pode esconderse uma função latente, ou seja, é manifestamente ritualística e latentemente gastronômica, para não falar chic. Para horror dos monótonos e delicados vegetarianos, confesso minha desconfiança de que a carne humana deve ser saborosa, tão saborosa que os pigmeus da Melanésia, dizem os Indiana Jones, a chamavam de “porco comprido”. Continente julho 2007
Dizem que o padre Anchieta ficava freqüentemente furioso quando sabia de colonos brancos mergulhados na antropofagia, como remotos precursores, às avessas, de nossos modernistas, a ponto de exclamar: “já se achou cristão a mastigar carne humana!” Quem sabe não seria carne de algum tapuia criança tão desejada pela velha índia? Falando no modernismo antropofágico, tento lembrar que ele procurava absorver os valores alienígenas para reformulá-los em produto nativo de exportação. Isso seria um arremedo contra a tal da globalização que não é de hoje. Para nós, povos subdesenvolvidos, ela começou na década de 50. Ao invés de deglutir o bispo enlatado de uma cultura de massa, para transformá-la em coisa nossa, em criação autóctone, estamos sendo literalmente deglutidos e vomitados à imagem e semelhança dos grandes canibais. Essa retomada antropofágica me veio, ao lembrar da mais que deglutida e vomitada arte, a arte poética. Nestes tempos da velocidade cibernética, ela gera um paroxismo: enquanto se afirma como instituição social, degrada o seu perfil estético. Por isso, gostaria de legar aos meus milhões de leitores, o nada antropofágico conceito de poesia, que tento engendrar desde que a arte poética me tomou a vida e me deixou vazios os bolsos. Um risco que só me anima a correr esse vergar dos anos debruçados em centenas de exemplares de teoria literária e coleções inumeráveis de pesquisas sobre o assunto, em diversas fontes, inclusive a mídia eletrônica. Raciocinando em termos de condições necessárias e suficientes, utilizando o conceito de arte simbólica de Ernest Cassirer, o de linguagem descontínua de Olavo de Carvalho, e o de ritmo de Octávio Paz, além de outro atributo poético universal como a conotação, cheguei à
MARCO ZERO
seguinte e provisória definição de texto poético: • ser estruturado de modo descontínuo é condição necessária para um texto ser considerado como poesia, mas não é uma condição suficiente, porque há textos em prosa – um rol de roupa, por exemplo – de natureza descontínua, que não são poesia; • ser conotativo é condição necessária para um texto ser considerado como poesia, porque não há texto poético sem conotação, mas não é condição suficiente, porque os textos de prosa artística são de natureza conotativo-denotativa, mas não são poesia; • ser rítmico é a condição necessária para um texto ser considerado como poesia, mas não é condição suficiente, pois a prosa artística, a crônica, por exemplo, utiliza um certo ritmo, mas não é poesia. A poesia seria, portanto, uma arte verbal conotativa, descontínua e rítmica? É pouco, mas pode gerar esta definição transitória: a poesia é uma linguagem simbólico-verbal, que se expressa de modo descontínuo, rítmico e conotativo. Em termos de método aristotélico de gênero e diferença específica, a definição seria a mesma, uma vez que a poesia pertenceria ao gênero (próximo) linguagem simbólico-verbal, e sua diferença específica em relação às outras espécies é que se expressa de modo descontínuo, rítmico e conotativo. Desses raciocínios, cheguei a estas indefinições de poesia: sintonia fina da linguagem/ tecnologia de ponta da palavra/ quintessência da linguagem humana/ essência e consciência cósmica exteriorizadas existencialmente através do poema (poesia: essência; poema: existência). Para Ernst Cassirer, a arte é linguagem simbólica. A literatura seria, então, linguagem simbólico-verbal. Para Olavo de Carvalho, a distinção entre verso e prosa é apenas uma distinção entre duas formas mais gerais da quantidade: a quantidade contínua e a quantidade descontínua; Para Octávio Paz, “sem ritmo, não há poema”. Não sei se esses conceitos serão deglutidos e vomitados por quem chegou até esta linha, mas é o que, no momento, tenho de carne-poética para oferecer aos meus milhões leitores. • Continente julho 2007
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LITERATURA
Que país é este?
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Walter Craveiro/Divulgação Flip
Não Verás País Nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, tem edição comemorativa de 25 anos, com "bônus" como o Diário de Trabalho do autor sobre seu processo criativo Luiz Carlos Monteiro
sentido alegórico do totalitarismo de um mundo desertificado, massificado e alienado faz-se presente nas páginas de Não Verás País Nenhum, romance de Ignácio Loyola Brandão que recebe agora uma edição comemorativa, a vigésima-quinta, 25 anos após a primeira. Publicado em 1981, provavelmente foi concebido durante a década de 1970 e traz assim a marca das duas décadas, além de atender a uma inclinação futurística revelada ao longo dos anos posteriores, culminando nos nossos dias com as discussões recentes sobre as conseqüências mais destrutivas e urgentes do aquecimento global. Reafirma então a denúncia do colapso ambiental, com a escassez de água e a morte indiscriminada do verde de árvores e plantas. E, mais ainda, a luta do sujeito contra o Esquema que a tudo uniformiza e que dimensiona a vida nos moldes da repetição, da rotina e da banalização. Não se pode deixar de lembrar o 1984 de George Orwell, livro familiar e indispensável a todos que de algum modo esperaram pelo cumprimento das Continente julho 2007
suas proféticas colocações a respeito da grande opressão que se abateu sobre os indivíduos a partir das primeiras décadas do século passado, com a ascensão indiscriminada do capital ou, nos grupos stalinistas, a defesa ideológica de um regime de terror e de imponderáveis e indesejadas intervenções, em detrimento dos valores e atributos mais caros ao homem. Nos regimes duros e massificados não se admitem coisas como a liberdade de mover-se interna ou externamente no país em que se vive, sem permissão prévia. Assim como não se tolera a convivência de pessoas em grupos sociais com o intuito de desenvolver idéias próprias e coletivas, além de intentar perfazer escolhas que incidam sobre o trabalho e o lazer, pois ali prevalece “a vida metodizada, racionalizada”. Souza representa o indivíduo comum que se rebela – ensinou História, trabalhou na burocracia e, sem ser avisado, foi aposentado compulsoriamente. Por não se curvar às inumeráveis regras do Esquema, sofreu retaliações, torturas e castigos, até perder tudo, inclusive a mulher, Adelaide, de longa e
LITERATURA calada convivência. No Diário de Trabalho, da época em tentes histórico-didáticas, vai se tornar realidade alguns que estava coletando material para o texto, e que anos depois, pois ainda é de recente memória o “apagão” acompanha esta nova edição, Loyola esclarece que tudo que o país sofreu. Há situações absurdas e surreais, a se iniciou com o seu próprio conto “O Homem do Furo exemplo do grande congestionamento que faz com que na Mão”, de 1972, que virou também um volume de todos os carros fiquem sem combustível e, parados no contos em 1987. O título do conto já consiste em apontar centro de São Paulo, enferrujem e virem sucata. Em a “diferença” que estabelecerá, em conseqüência, a “ou- certos momentos, talvez pela linearidade do cotidiano e tridade” do personagem – pela consciência radical suge- pelo enquadramento, mesmice e vigilância das relações rida e em relativa atividade que ele, Souza, detém no ro- sociais e humanas, a evolução do fluxo narrativo torna-se mance –, e o desempenho acanhado, medroso e passivo extremamente vagarosa e monótona. Não Verás País Nenhum é o que se poderia chamar de muitos outros seres da mesma sina com quem trava relações. Texto inaugural que funciona, portanto, como o de um clássico da literatura contemporânea brasileira. embrião de Não Verás País Nenhum, fornecendo a idéia E, como a maioria dos clássicos, tende a cristalizar-se central e o esteio inicial para a elaboração progressiva das numa forma ou, por outra, na contextualização de peripécias e revolta do protagonista no decurso de seu uma época. Loyola Brandão, que estreou com os contos de Depois do Sol (1965), escreveu romances social simulacro de vida, paixão e desrazão no romance. Outra chave para a compreensão da obra emerge e expressivamente demolidores como Zero (1975) e como a ficção científica, embora o personagem Tadeu es- insidiosamente autobiográficos como Dentes ao Sol tranhe o fato de o Brasil mergulhar no mundo moderno (1976). Teve adaptações de livros seus para o cinema através dela e de alguns de seus autores: “Lembra-se de e o teatro. É de uma geração que estampa nomes de quando líamos os livros de (Arthur) Clark, (Isaac) Asi- importância óbvia – Rubem Fonseca, Raduan Nassar, mov, (Ray) Bradbury, (Alfred Elton van Vogt), (Kurt) Affonso Romano de Sant'Anna, Moacir Scliar ou, Vonnegut, (Stefan) Wul, (Walter) Miller, (John) entre os mortos, um Roberto Drumond, um João AnWyndham, (Robert) Heinlein? Eram supercivilizações, tônio. No entanto, ele sempre construiu um caminho tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo (...) ficcional solitário e independente, sem se esquivar de bem-estar. (...) Um país subdesenvolvido vivendo em interagir com outros artistas e escritores. No caso clima de ficção científica”. A ironia é flagrante e dirigida, deste livro, que não perde o sabor premonitório que o estigmatizou, o papel de denúncia e conspois escancara um país, uma São Paulo cientização visava à maioria, a parte de compostos de monstrengos “carecas” forjaquem sofreu a opressão, o medo e o terror. dos pelo Esquema, desdentados, retirantes, E nisto consiste algo da persistência polítimendigos e “despelancados”, que a capitalco-ideológica que carrega, pois a sociedade mor do país com seus Civiltares e Militecbrasileira ainda continua a se embater nos nos não pode, mesmo que queira, expulsar. termos de uma ética política fragilizada, de E que também não pode, assim, dar-se ao uma proposta sócio-ambiental pífia e do luxo de sonhar com a vida civilizada e combate incipiente às manifestações da avançada das nações inteligentes. A crise violência, da corrupção e do assalto aos energética que o autor preconiza e questio- Não Verás País Nenhum, na, através de diálogos que incluem ver- Ignácio de Loyola Brandão, bens públicos. • Global Editora, 414 páginas, R$ 65,00.
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LITERATURA Zenival
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O Rimac deságua no Capibaribe Antologia El Rio Hablador/O Rio que Fala revela ao Brasil meio século da recente produção poética do Peru Lourival Holanda
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stranha geografia poética: o Rimac – rio que atravessa Lima – deságua enfim no Capibaribe. Depois de décadas de desconhecimento da produção poética do Peru, surge uma antologia El Rio hablador/ O Rio que Fala, preparada por Everardo Norões, com Pedro Américo e Sônia Lessa. A tradução, trabalho a quatro mãos, de Diego Rafael e Everardo Norões. Estranho ainda, pela proximidade, nosso desconhecimento se salda pela surpresa: a qualidade de certos poemas, a modulação feliz de certas vozes, apontando o que perderíamos se continuássemos desconhecendo esses poetas peruanos. É verdade que depois da adequação poucas vezes bem-sucedida das escolas européias – resultando na anemia parnasiana, na retórica simbolista e no romantismo Continente julho 2007
dessorado, que assolou o Continente, fazendo do coração, tripas – ficamos com a ilusão de reconhecer o tom da poesia latino-americana. Esta antologia reúne 50 anos da poética peruana contemporânea. Suas vozes surpreendem, somando a si as vanguardas européias sem no entanto perder a voz própria. Basta contemplar certas imagens de José Watanabe, vendo as mãos do pai como “duas terníssimas frutas apagadas”. Ou em Juan Gonzalo Rose: “Tenho na alma uma varanda em sombras”. É ainda ele que funde, de modo feliz, paisagem e sentimento: “Gosto de ti porque tens a cor dos pátios/ das casas tranqüilas... quando chega o verão./ E mais precisamente: gosto de ti porque te amo”. (p.151). Anúncio de um tom, vibrante e certeiro: “Um galo cego ilumina a noite/ com a faca limpa de seu canto” (Hildebrando Pérez Grande).
LITERATURA A poesia moderna é homenagem e violação ao que a tradição trouxe. Cada poeta com seu modo de reagir a ela: “dançar com meus amigos sobre a língua de Vallejo”. César Vallejo segue sendo um ícone da poesia moderna. (Assim, tradição não barra ou impede – antes, impele ao desafio da criação). Os poetas aqui apresentados são muito diversos, menos no tempo que na postura, trazendo, como coesão comum, o empenho em fazer valer sua palavra ante a feeria ou a ferocidade do mundo. Mas com um tom novo: “Estoy harto de escombros y de sombras./ Quiero salir al sol/ verle la cara al mundo” (Alejandro Romualdo – ele que, criando, reage à morte que teme vir, traiçoeira, “como um jaguar silencioso”). Ás vezes, a poesia se diz busca: “Por este áspero atalho – oh! Negro poço – aonde iremos/ de que estrela viemos?” (Arturo Corcuera). A antologia é coexistência de realidades e visões diversas. Às vezes, a palavra embala; outras vezes, surge surda, em bala. Alguns poemas celebram; outros, como ácido, corroem a realidade como a ferrugem o ferro. Não é raro que poetas muitos jovens e generosos tropecem em seus sonhos. A derrocada dos poderes políticos no Peru, ao largo destes anos, mostra a garra dessa poesia que em tantos pontos se irmana com a nossa. Desde a poesia engajada, de pauta alta – mas limitada pelos moldes estritos que cabem a todo credo – às experiências mais ousadas, como o poemaconto de Jorge Pimentel (“O lamento do sargento de Águas Verdes” – memória amarga de vidas disparatadas). Naquele momento, os anos 70, o horizonte social do Peru e o brasileiro estavam simultaneamente antenados com o pior impasse político. Ao poeta cabia habitar o futuro, quando a realidade o rechaçava. A voz de Marcos Martos fazendo do Peru, donde é natural, país de eleição: “se tivesse de escolher/ o elegerias de novo/ para construir aqui/ todos os teus sonhos”. (p.173). A poesia recente está mais empenhada em dizer o absurdo e o sórdido, o fantástico e o atroz da sociedade contemporânea: “en la innoble morada de la realidad/ nutres un sentido más hondo/ Del que ya ha cesado todo vestigio humano” (Juan Ojeda).
A marca feminina – o silêncio de antes mais comove pela força dessas vozes – vem com os poemas de Blanca Varela: “e a estrela do oriente/ emparedada/ e o osso do amor/ tão roído e tão duro/ brilhando em outro prato”. (p.55). Ou a sensualidade de Maria Emília Conejo: “Guardo em minha memória / teus lábios explorando meu corpo”.(p.177). Rossela di Paolo traz também uma consciência do corpo – “essa lúcida arquitetura/ de ossos quietos e pele arrebatada” – com cor quase heráldica: “Ah, esse corpo alegre como um cachorrinho/ com seu sexo desperto saltando à porta”. (p.195). A poesia contemporânea salva a realidade recente do Peru das depredações do esquecimento e reinstaura o movimento da vida. Javier Sologuren reencontra a memória histórica (Memória de Garcilaso, o Inca) enquanto Jorge Eielson celebra a memória miúda, cotidiana e essencial: “poesia /do abandono na mesa engalanada/ a toalha bordada; a triste e antiga/ cristaleira, e O Rio que Fala – Antologia da Poesia dedos feito garra” (p.125). Tam- Peruana, tradução de Everardo Norões e Diego Raphael, Ensol/ 7 bém é memória de dias duros o Letras, 228 páginas, R$ 35,00. sentimento de Juan Cristóbal ante a morte, dedicado ao poeta nicaragüense Ernesto Cardeal: “Jamais te falei da solidão ou dos trigos/ simplesmente construí minha vida/ com teus silêncios e teus temores”. Cardenal ou Dom Pedro Casaldáliga: a orfandade que resulta da ausência da referência forte que foram. A chuva que rareia em Lima avolumou-se nesses anos de desencontro e agora chega ao Recife como esse Rimac – O Rio Que Fala. Cabe-nos escutar essa fala como um solo de flauta, convocador de coro. (Ainda que de um coro de vozes singulares: “Solitários são os atos do poeta/ como os do amor e da morte”. Luis Hernández). Ao menos, um diálogo com os poetas daqui, dando maior força à função da poesia. Afinal, os poetas sempre crêem, como a magia antiga, poder interferir na ordem do mundo e exorcizar o caos que, cada dia, ameaça já nas fronteiras mesmo do cotidiano. • Continente julho 2007
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LITERATURA
Eça, o místico Relançado minucioso estudo da presença da arte sacra na obra do grande romancista português Homero Fonseca
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Retábulo da capela de Tormes – alegoria a Eça de Queiroz/ Reprodução do livro A Cidadela do Espírito
reze anos depois de uma acanhada primeira edição, sai agora pela Cepe, com apoio cultural do Real Hospital Português, nova tiragem de um livro notável do sr. Dagoberto Carvalho Junior: A Cidadela do Espírito – Considerações sobre a Arte Sacra na obra de Eça de Queiroz. Em suas 152 páginas, o surpreendente texto descreve, com erudição e rigor, a presença de elementos sacros na obra do grande romancista lusitano do século 19, confrontados com um roteiro percorrido pelo ensaísta brasileiro, detentor de um mestrado em História, com especialização em arte sacra. Nessa confrontação, emerge em geral um Eça “crítico consciente da importância da obra de arte a resgatar e documentar literariamente em seus escritos. E ele o faz com incrível conhecimento de história da arte e a mais absoluta sensibilidade para a crítica”. Em algumas passagens, Dagoberto flagra pequenas imprecisões ou incorreções no texto eciano, insuficientes entretanto para denegrir o conceito de acurácia e “absoluto domínio do tema” revelado pelo conjunto da obra do ficcionista e ensaísta. São abundantes as transcrições de trechos em que “o interesse de Eça pela Arte Sacra não se limitaria ao arquitetural, à imaginária e às artes decorativas”, alcançando “o Sagrado também, pelo devocional e pela música, como manifestação artística do culto, tamanho o fascínio que sobre ele exerceu a liturgia católico-romana.” O autor desfia citações de várias obras de Eça – O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio, A Cidade e as Serras, Correspondência de Fradique Mendes, A Relíquia, A Tragédia da Rua das Flores, as quais, percebidas agora em conjunto, além de ostentarem valiosas informações histórico-religiosas, traçam de forma muito nítida a posição do escritor a respeito da ritualística católica, especialmente, como não poderia deixar de ser, no Portugal carola e hipócrita do seu
LITERATURA
tempo. Há padres levantando a saia de imagem da Virgem em busca de “formas, redondezas, uma carne branca”. Há um São Miguel, o Vingador, que, indiferente aos pecados, “não abandonava por tão pouco os confortos do céu”. Em casas pias, salas eram “uma imensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto”. Flagram-se “meninos Jesus frisados com o ventrezinho gordo e a mão abençoadora” assim como “S. Sebastiões bem frechados”. Em procissão em Lisboa, percebe-se “uma cruz negra, com um enorme Cristo branco... os longos cabelos lúgubres caindo sob a coroa de espinhos”... Devotas interesseiras guardavam supersticiosamente bilhetes de loteria sob imagem de São Vicente de Paula. Um pintor pretende pintar o Cristo “absolutamente tal qual era: miserável, com a cabeça embrulhada num turbante sírio, amarelecido, como uma pele de camelo; a barba hirsuta, o olhar doido de tanta visão e inflamado das areias do deserto, com a face cavada, curtida, enegrecida, requeimada; medonho” por oposição à “legenda plástica do Cristianismo” (onde a imagem do Mestre era serena) “sempre com uma barba bem penteada, o cabelo bem aparado”. No pátio da Sacré-Coeur, em Paris, “pelos cantos, velhas agachadas resmungavam a Ave-Maria”. Num altar de um oratório, Eça pinta um Cristo “riquíssimo, maciço, todo de ouro, suando ouro, sangrando ouro, (que) reluzia preciosamente”. Dagoberto Carvalho Junior reconhece ser impossível ao escritor português estar infenso ao ambiente de “uma civilização inteiramente sacralizada”. Não obstante, busca, por sob as camadas de textos tão contundentes, um substrato místico. “No que pese – argumenta – o acendrado anticlericalismo – como crítico intransigente da burocratiA Cidadela do Espírito – Considerações sobre a Arte Sacra na obra de Eça de Queiroz, Dagoberto Carvalho Junior, Cepe, com apoio zação da Igreja em Portugal – (...) por trás cultural do Real Hospital Português, 154 páginas, R$ 20,00. do anticlerical, havia o crente”. E arremata: “Para escrever as Lendas dos Santos, como A Morte de Jesus, O Suave Milagre, O Sonho do Raposão, O Milhafe, não bastaria – como observou Luís de Oliveira Guimarães, no In Memoriam – ter sido um artista, era necessário também ser um crente”. Pode-se talvez discordar das conclusões do autor, mas o extraordinário tour de force para pesquisar tal ângulo inexplorado da obra do romancista português, sua grande erudição no tema e a comovente convicção em suas idéias fazem desta obra de Dagoberto Carvalho Junior algo valioso, como é muito bem enfatizado nos prefácios e comentários à primeira edição. Vale. • Continente julho 2007
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LITERATURA
Entretanto Maturação e atualidade Nova revista de literatura, editada por escritores pernambucanos, tem textos contemporâneos e visual elaborado Artur A. de Ataíde
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ma pequena introdução – os últimos anos têm testemunhado um novo fenômeno em matéria de literatura. Suas proporções, é bem verdade, são algo tímidas, mas pronunciadas o suficiente para, ao menos, fazer-se notar pelos que acompanham mais de perto, ou assim tentam, o metabolismo da cultura, que nunca pára. O caso é que os suplementos, jornais, revistas e sites sobre literatura parecem vir proliferando e, com eles, as antologias de novos autores e os eventos que aqui e ali repontam sobre o tema. E daí a pergunta: teremos resolvido reabilitar o gosto pela assim chamada literatura, exilada, já havia tempo, da vida pública dos jornais, e acolhida nesse recesso pelos poucos amigos que a pesquisam nas universidades? Apesar de a pergunta, por si só, já parecer algo falaciosa, por pressupor que a cultura funcione como uma engrenagem perfeita de perguntas e respostas, de ações e reações na proporção de 1:1, é comum que cedamos no mais das vezes ao impulso de, prontamente, responder que “não, não pode ser esse o caso”. Afinal – diríamos –, o mercado “é burro”, e uma pretensa alta da literatura poderia se dever a muita coisa, como capas atraentes, modas passageiras ou centenários deste ou daquele autor, mas, de forma alguma, a algum discernimento crítico por parte dos “consumidores”, esses seres sem alma. Esse é o cenário freqüentemente esboçado. Deixando à parte as discussões sobre a maior ou menor validade dessa teoria do mercado, que mais parece uma teoria da conspiração, uma coisa é certa: aqueles que Continente julho 2007
acreditam de fato no que os textos ditos literários têm a oferecer, aqueles que, apesar de tudo, ainda se esforçam por levá-los a sério (sem exageros, claro), podem (e devem, segundo pensamos) se aproveitar dessa aparente boa maré para disseminar suas idéias, e, quem sabe, fazer desse fenômeno editorial pretensamente “oco” um fenômeno cultural que repercuta de fato nos circunstantes. A idéia é não ficar de braços cruzados: não parece ser outra a proposta da Entretanto – Revista de Literatura, que chega às livrarias depois de quase três anos de maturação e trabalho. Um índice inconteste da maturação por que passou está, literalmente, estampado na capa: os desenhos da série Inimigos, de Gil Vicente, não só fizeram um ótimo par com o nome da publicação, mas foram muito bem-harmonizados com as texturas, os padrões e as tonalidades introduzidas pela Balão Comunicação, responsável pelo projeto gráfico. Se é verdade que a exuberância gráfica possa aqui e ali ameaçar a leitura, sobretudo se o leitor está mais habituado aos livros, é também verdade que essa é a tônica dos melhores projetos gráficos de hoje que não abrem mão da ousadia. O que fica difícil, em todo caso, é não querer folhear o volume – ainda que não passe de uma “mera” revista de literatura. Como a apresentação gráfica já anuncia, a diretriz primeira dos editores – Delmo Montenegro, Fabiano Calixto, Marcelino Freire, Micheliny Verunschk e Raimundo Carrero – foi a atualidade: ao leitor da Entretanto é dada uma boa amostra da diversidade literária atual, com exem-
LITERATURA plos de dentro e de fora de Pernambuco. Os nomes vão dos mais consolidados aos mais novos. Há o caso, por exemplo, dos poemas inéditos de Jorge Wanderley, poeta que, falecido em 1999, deixou-nos, entre outras (muitas) traduções, uma do Inferno de Dante. Entre os outros nomes mais conhecidos estão os de Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Brito e Fernando Monteiro, que colaboraram com contos inéditos, além de Marcelino Freire, que participa com um ensaio sobre Manuel Bandeira. Com uma espécie de dicção similar à de Marcelino, em que texto e voz parecem indissociáveis, há o texto de Jomard Muniz de Britto, que põe em diálogo T. S. Eliot, Joaquim Cardozo e, por exemplo, a Rua da Moeda, localizada no centro do Recife. Já Lourival Holanda, conhecido antes por suas reflexões sobre literatura, colaborou com um conto: Agalopado, e Sueli Cavendish, que já publicou na Continente Multicultural sua tradução de Carcassonne, de William Faulkner, contribuiu com a tradução de outro conto do mesmo autor: Ad Astra. Micheliny Verunschk e Fabiano Calixto, autores novos que já vêm ganhando espaço, além de editarem a revista, contribuem com textos de criação. A diversidade que esses nomes possam sugerir, no entanto, é ainda mínima diante do espectro de nuanças que podemos imaginar, por exemplo, entre o silêncio cheio de perplexidade ao fim de cada verso de Almir Castro Barros e a experimentação lingüística ostensiva de “Açougue-soul”, de João Filho; entre os poemas homoeróticos de Amador Ribeiro Neto e a aspiração, nos poemas de Pietro Wagner e Jacineide Travassos, a um mundo povoado de deuses elementais; entre o tom leve de crônica de “O riso e a resistência”, de Marcius Cortez, e o desmonte paciente e minucioso de (pré-) conceitos empreendido por Luiz Costa Lima em seu texto sobre a brasilidade, ou a pesquisa documental levada a cabo por Delmo Montenegro em seu texto sobre a poesia visual pernambucana dos séculos 17 e 18. Enfim: há material de sobra para os leitores interessados, embrulhado para presente pelo trabalho gráfico. A Ateliê Editorial, encarregada da distribuição, tem estado por trás de projetos primorosos em todos os aspectos, da qualidade gráfica ao discernimento crítico na escoEntretanto – Revista de Literatura, Ateliê Editorial, 116 páginas, lha dos textos. A Eneida traduzida por Odorico R$ 20,00. Mendes, as traduções dos poemas picantes de Falo no Jardim e a tradução de A Balada do Velho Marinheiro, de Coleridge, que corremos o risco considerar a definitiva, são exemplos que estão muito acima da média habitual de nossa produção poética. Ao que parece, a atual efervescência em torno da literatura caracteriza-se por um esforço, digamos, antologizante, ou seja, pela tarefa de fazer o levantamento da produção atual e a ela dar vitrine, seja impressa ou eletrônica. No atual contexto, em que tantos querem ser escritores, e poucos, inclusive entre os escritores, querem ser leitores, o trabalho é grande. Pode ser que, em breve, o vetor diversidade chegue à sua maioridade, e, à variedade de formas, tão importante para que se divulgue o quão múltipla pode ser a manifestação literária, venha se somar a variação do grau de pertinência de cada uma delas frente aos leitores de hoje. Em outras palavras, temos visto, aos poucos, tornar-se público o que é a literatura hoje produzida; falta-nos tornar público o debate necessário sobre o que queremos dela hoje, exercício crítico que oscila entre a sensibilidade e o argumento razoável. Quando aí chegarmos, será um grande prazer poder contar com as próximas edições – já esperadas – de revistas como a Entretanto. • Continente julho 2007
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AGENDA/LIVROS Mínimas
Genealogia quatrocentona Romance de Beatriz Bracher tece o intricado labirinto das relações de uma família paulista, revelando facetas obscuras e mazelas corriqueiras dos personagens
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história de Benjamim, “o filho morto” e redivivo em outra geração, movimenta todo um complexo genealógico que, embora formado por um grupo numericamente pequeno de pessoas, empreende a conjunção narrativa da riqueza e das misérias da vida de uma família paulista quatrocentona. Vivências trazidas a lume pela multiplicidade de “personas” e atores que nela interagem cotidianamente. E que revelam as suas facetas familiares obscuras e suas mazelas corriqueiras, as trajetórias individuais de figuras as mais díspares removendo-se num mesmo espaço. O avô Xavier, pai do primeiro Benjamim, um sonhador que exerceu funções como as de editor, crítico de arte e dramaturgo. Um sujeito que não cessou a continuidade e a reprodução, mesmo com suas inclinações e empreitadas artísticas consideradas extremamente fantasiosas e utópicas pelos que o rodeavam. Na estrutura romanesca de Antonio, Beatriz Bracher apresenta, como possíveis substitutivos aos capítulos, três personagensnarradores: a avó Isabel, os amigos da família Haroldo e Raul. Cada relato vai destecer o fio fino e leve que une vida e morte, a aparição de outros personagens definidores para a trama, como o sempre lembrado Teo, o pai do segundo Benjamim, que deixa São Paulo para se aventurar pelo sertão. “Preparação do Corpo”, o fortíssimo e pungente texto final, parece ter sido elaborado paulatinamente, para criar o inevitável clímax, com a morte de Isabel. A neta Laura reclama do odor excessivo das flores: “Que cheiro forte, vai deixar todo mundo tonto”. Ao que uma florista, ali presente, responde com “falsa distração”: “O cheiro do cadáver fica cada vez pior, por isso as flores. Os dois se misturam e a gente acha que a tontura vem só das flores, não é tão chocante”. (LCM) Antonio, Beatriz Bracher, Editora 34, 192 páginas, R$ 28,00. Continente julho 2007
Casamento: o casamento indissolúvel é dissolvido pelo divórcio, pela morte e pelo tédio. Poesia: o poeta é um mentiroso que acaba dizendo as mais belas verdades. Essas são algumas das “mínimas” que Carlos Drummond de Andrade reuniu em O Avesso das Coisas. São aforismos escritos em formato de dicionário, de A a Z, que trazem experiências vividas pelo grande poeta – “que não chegam a alcançar a sabedoria, mas que são resultados do viver”. Com muito humor e tom crítico, o livro traz as suas definições improváveis, acompanhadas por ilustrações curiosas e bem-humoradas de Jimmy Scott. (Mariana Oliveira) O Avesso das Coisas, Carlos Drummond de Andrade, Record, 224 páginas, R$ 17,00.
Introdução a Ariano Ariano Suassuna – Um Perfil Biográfico, de Adriana Victor e Juliana Lins, não tem grandes pretensões teóricas, mas funciona como uma perfeita introdução ao universo mental e ficcional do autor do Romance d’A Pedra do Reino e do Auto da Compadecida. No bojo das comemorações pelos 80 anos do escritor, o texto é dirigido a um público não-iniciado e traz fotografias, hipertextos, bibliografia, incluindo as adaptações da obra suassuniana para TV e cinema e uma lista de obras, elaborada pelo próprio Ariano, que influenciaram a sua formação intelectual. Ariano Suassuna – Um Perfil Biográfico, Adriana Victor e Juliana Lins, Zahar, 136 páginas, R$ 29,00.
Retratos sucintos O jornalista Moacir Assunção, ao publicar Os Homens que Mataram o Facínora – inicialmente uma série de reportagens –, anunciou pretender evitar mais uma biografia do cangaceiro, focando sua pesquisa nos chefes das volantes policiais que o perseguiram e por fim o mataram. Mas o livro limita-se a traçar retratos muito sucintos daqueles personagens. Sem qualquer metodologia, traz interessantes episódios do cangaço. Como a reclamação recorrente entre as forças policiais de os bandidos estarem melhor armados, como ocorre hoje na luta contra o narcotráfico. Os Homens que Mataram o Facínora, Moacir Assunção, Record, 280 páginas, R$ 40,00.
Vidas Antagônicas
Em meio à Revolução Cultural chinesa, nascem dois meninos de um poderoso general de Mao. Um legítimo, Tan. O outro, Shento, filho de uma pobre camponesa que se mata à hora de seu nascimento. Nesta trama repleta de conspirações, violência e paixões exacerbadas, numa China ainda envolvida com suas tradições e autoritarismo militar, suas vidas tomam rumos diferentes e, mais tarde, os dois irmãos viram inimigos ferozes tanto no campo político quanto no pessoal, ao se apaixonarem pela mesma mulher. (Luiz Arrais) A Montanha e o Rio, Da Chen, Editora Nova Fronteira, 496 páginas, R$ 49,90.
Um líder completo Em edição trilíngüe – português, latim e grego – a vida do imperador romano Júlio César
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uma bela edição, a Estação Liberdade está publicando as duas biografias de Júlio César, escritas no século 1 d.C, apresentando os originais em latim, do livro O Divino César, de Suetônio, e, em grego, César, de Plutarco. Através desses dois relatos complementares, embora conflitantes em alguns detalhes, ficam claras em César algumas características dos homens de sucesso: direcionamento obstinado para as suas metas, desde a juventude, e uma incrível capacidade de sobreviver num ambiente hostil. No caso, a instabilidade política de Roma, onde intrigas, traições e subornos eram moeda corrente, e no que César era mestre consumado. A narrativa de Suetônio é mais seca e objetiva. Já Plutarco, interessado em ressaltar o caráter do biografado, faz digressões que dão mais colorido ao seu relato. Alguns pontos de destaque na personalidade e potencialidade física de César enquanto miliVidas de César, tar: uma enorme capacidade de se avultar Suetônio e Plutarco, Estação nos campos de guerra, marcando presença nas linhas de frente das batalhas, com uma Liberdade, 272 páginas, R$ 41,00. coragem que em certos episódios beirava inegavelmente a temeridade; total disposição para caminhadas rápidas em regiões inóspitas, apesar de epilético; grande percepção estratégica; solidariedade para com seus soldados a ponto de ir dormir ao relento para ceder sua tenda a um doente. Enfim, um líder completo, com todos os vícios e virtudes inerentes. (Marco Polo)
Duro e profundo Alguns amigos de Kafka contam que ele ria às gargalhadas quando lia em voz alta suas narrativas mais cruéis. A escritora norteamericana Flannery O’Connor dizia que, seus contos, também impiedosos, a faziam “rolar de rir”. O’Connor, entretanto, tem parentesco maior com seu conterrâneo sulista William Faulkner do que com o escritor tcheco. Os contos de É Difícil Encontrar um Homem Bom se passam no mesmo território, a chamada região dura e profunda dos Estados Unidos, onde ignorância e arrogância, mais que rimas, são sinônimos. Não é para menos que o escritor catarinense Cristóvão Tezza fala que “talvez não seja exagero dizer que, lendo Flannery O’Connor, entendemos um pouco melhor como funciona a cabeça do presidente Bush”. Ora impassível, ora sarcástica, ela relata cenas onde o ridículo e o trágico se confundem. São personagens incômodos, que ficam com a gente após a leitura, brilhantemente revelados em diálogos cortantes, num cenário expressionista, traçado em pinceladas rápidas e sombrias. Livro excepcional. (MP) É Difícil Encontrar um Homem Bom, Flannery O'Connor, ARX, 288 páginas, R$ 32,00.
AGENDA/LIVROS Aventuras retorcidas
Leon Cakoff, que atuou como repórter e crítico de cinema, criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que já chegou à sua 30ª edição consecutiva, e as Edições da Mostra, sobre cinema e cineastas. Agora lança uma coletânea de crônicas, a maioria focando suas viagens a diversos países, em busca de filmes para a Mostra. Observador preciso, com vocação para se meter em trapalhadas, ele conta suas aventuras num fraseado meio retorcido – o que dá um tempero especial às narrativas. No livro, um show à parte é o projeto gráfico de Daniel Trench, quase que um encarte, rico de imagens e significados. Ainda Temos Tempo, Leon Cakoff, CosacNaify, 126 páginas, R$ 39,00.
Ante a morte
A Bem-Te-Vi é uma dessas simpáticas editoras pequenas, dedicadas a publicações de tiragem limitada, mas com um bem-cuidado projeto visual. É dela a Coleção Arquivinhos, caixas onde são colecionados fac-símiles de originais, cartas, fotografias, desenhos e fragmentos de escritores como Vinicius de Moraes. Dentro de sua Coleção Canto do BemTe-Vi, que já tem 10 volumes de poesia, está o Ante-sala, de Astrid Cabral, viúva do poeta Afonso Félix de Souza. O livro trata do homem enquanto “ser-para-a-morte”, em poemas fortes que mesclam uma linguagem sóbria com salutares rasgos de prosaísmo. Ante-sala, Astrid Cabral, Editora Bem-Te-Vi, 92 páginas, R$ 20,00.
Colagem híbrida O mineiro Pedro Maciel tem colhido elogios de gente como Ivan Lessa e André Sant'Anna, a propósito deste seu primeiro livro, A Hora dos Náufragos. Dentro da perspectiva pós-moderna que tende a tornar híbridos os gêneros, o livro é catalogado como romance, embora se componha de aforismos, ou seja, fragmentos ora filosóficos, ora poéticos. Às vezes também soam como o depoimento gago de alguém, presa do espanto, ante a incoerência da vida. Desta maneira, o escritor obriga o leitor a construir o romance junto com ele, juntando os cacos, colando as pontas soltas, tecendo o rumo da história. A Hora dos Náufragos, Pedro Maciel, Bertrand Brasil, 192 páginas, R$ 29,00.
Galeria do mal Os sete ditadores enfocados neste livro – Hitler, Stalin, Mussolini, Mao, Pol Pot, Franco e Pinochet – não esgotam, infelizmente, o número de tiranos que ao longo da história esmagaram a liberdade em nome de supostas ideologias; mas são emblemáticos dos regimes totalitários de direita e esquerda que afogaram a humanidade ao longo dos últimos anos. Num estilo simples e jornalístico, Antonio Ghirelli traça uma galeria de retratos destes “demônios do poder” que, muitas vezes, tiveram o beneplácito e até a admiração dos povos que oprimiram. Leitura que acende a atenção sobre os candidatos a tiranos de hoje. Tiranos, Antonio Ghirelli, Difel, 322 páginas, R$ 39,00. Continente julho 2007
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PROSA
Fogo e Fumaça Clávio Valença
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e tudo se soube quando os aqui-pra-nós explodiram na praça. No interior é sempre assim. Os grandes escândalos começam a ser divulgados a partir de confidências, pequenos segredos, murmúrios, depois vão alargando seu espaço até a praça. Não uma praça igual a tantas que as cidades grandes possuem, com seus jardins, monumentos aos heróis maiores e menores, terminais de linhas de transportes urbanos. Falo daqueles largos, que se confundem com o adro da capela, a área em volta do coreto, o terreno usado pelos alunos da escola quando do recreio entre as aulas, que se limita pela fachada do bar frente à prefeitura, em contraposição ao sobrado habitado, nos dias de feiras, pelo fazendeiro abastado. Ali as notícias, com detalhes, chegam num só tempo. Luiza, tinha de ser ela, espevitada desde criança, parece ter sido quem primeiro bateu com a língua nos dentes. Claro, ninguém lhe deu ouvidos. Suspeitíssima ela e, mais ainda, qualquer mexerico dela proveniente. Sem qualquer reserva, sabia-se ser amante do genro do farmacêutico. Daí, para a calúnia, um leve passo. E, se não acreditavam, também não a desmentiam. Tampouco existiu alguém para contradizê-la ou, pelo menos, deixar de tocar a infâmia pra frente. E, que infâmia. Calúnia, com certeza, com todo o manequim de difamação. Laura seria isso e aquilo. Certas horas mais isso, noutras mais aquilo, de qualquer modo mais, sempre mais. De menos, só o diploma, provável falsificação. Achegava-se ao balcão por pura esfregação inconseqüente. Preferia, isto sim, atender as mocinhas. Caixas de absorventes, reguladores de ovulação. Indagações acerca da menarca, enfim, absoluto desinteresse das coisas de machos, salvo gravatas e paletós para consumo próprio, que de batas nada tinham. Luiza, diziam, perigosa, interesseira e interessada, inescrupulosa, seria capaz de qualquer coisa para denegrir o conceito de Laura. Na cara, seu interesse nos passos, pernas sabedorias e entrepernas do doutor. De modo diverso, Laura, trabalhadeira e honesta, ainda adolescente mandou-se para a capital, donde retornou trazendo debaixo de um braço o diploma de médica. Sob o outro, um marido, seu colega de profissão. A reconhecida competência do pai e sogro, somada à fidelidade da freguesia, contudo, impediulhes a prática da ciência. Ela, as vezes arriscava atender um ou outro na botica. Esparadrapo, gaze, drágeas de aspirina. Vermífugos nem pensar, que só os iletrados desconhecem os efeitos colaterais. Jamais ali, onde não se dispõe dos suportes laboratoriais. Não estudara tanto para fazer pajelanças. Vaidoso, o marido não fazia concessões. Se o povo procura o dono do estabelecimento, ele que se agüente. Não vou sair por aí caçando e catando doentes. Nem adiantaria. As doenças dos lugares pequenos, pequenas são. Capacitado para as cirurgias cardiológicas, para os transplantes, não irei, de uma hora para outra, extrair unhas encravadas. Não podia perder a admiração que o povaréu lhe dedicava. Cultivava-a mantendo-se distante. Juntos, distância e admiração, mais uns agrados financeiros distribuídos pela sogra, perpetuavam-lhe o mandato de vereador obtido logo na primeira eleição ocorrida após sua chegada. Na Câmara, mesmo nas duas sessões de cada mês, pouco fala com os pares, uns ignorantes. Prefere permanecer no gabinete cujas portas fechadas apenas se entreabrem para dar passagem à Luiza, quando a secretária sai em busca de café ou gelo. Nesses momentos, de relance se vêem as prateleiras de estante enorme e, nelas, imenso, o Tratado de Tisiologia. Aos curiosos mais ousados explica Continente julho 2007
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que não se pode tratar do coração sem que se saiba de tudo a respeito dos pulmões. Ficam juntos, pontifica. Nas poucas paredes, antigas chapas radiológicas emolduradas, pois também não se pode cuidar do presente, muito menos do futuro, sem o conhecimento do passado. Das febres espanhola e asiática, por exemplo. Cumpria, o doutor, sua segunda legislatura quando a minguada bancada, eleita pela oposição, começou a exigir concurso público para preenchimento dos cargos na Casa de representação popular. As funções, poucas, já ocupadas por pessoas de absoluta confiança, obrigaram as lideranças à solução possível: nomear uma assessora para cada oposicionista e realizar a seleção para mais um integrante de cada gabinete parlamentar.
Luiza, que então comparecia nos dois expedientes, aos poucos passou a desempenhar suas atribuições na residência do esculápio. A tarefa lhe toma as tardes. Organiza o guardaroupa do chefe, opina na sua alimentação. Dá ordens aos serviçais, toma, pois, conta da casa. Essas tarefas fúteis que tomam o tempo que Laura pode dedicar ao negócio. Faz 15 dias Laura precisou viajar. Luiza, que ocupou todo o poder, arrumou as malas manhã seguinte e, também, pegou a estrada. Hoje, de Luiza, do que ela vier a dizer, se um dia disser, inexistirá qualquer dúvida. • Clávio Valença, pernambucano de São Bento do Una, advogado, cronista, é contista bissexto. Continente julho 2007
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POESIA
Poemas de
Luis Benítez O que o poeta dizia Sou teu inimigo que não terá piedade. Guerra te chamarei e tomarei contigo as liberdades da guerra. E nas minhas mãos teu rosto escuro e atravessado, no meu coração o país que ilumina a tormenta. (Ives Bonnefoy)
Cedo nos lançava a noite seus grandes olhos de deusa havia nessas ruas outra luz que não conhece o dia e nada nem ninguém sabia da morte vinha atrás de ti longa e enigmática presença onde me reconheço outros cantem a glória do evidente e farão o justo eu viverei sempre nesta pele estas mãos, e este corpo banhado por outra luz outra presença. Outra guerra há que a do pão outra embriaguez que a do vinho outra terra há nesta terra: Eterna é nossa primavera.
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Para Marcel Schwob Esse esplêndido encaixe de terrores luxuosos, essa trágica risada que veste nos dias sobre homens e coisas, não abandonou o mundo contigo, Marcel Schwob. Te evocar é uma tarde em teus livros, minha, e uma noite de escrivaninha, tua: o tempo, que é o mesmo, confunde escuridões. Ninguém descobre nada, tão somente desenterra segredos esquecidos, verdades descartadas. Vê? Esta é a mulher que amo: não tem lido teu Monelle que é sua irmã, não conhece tuas Vidas e como a de todos, a sua é imaginária. Suas horas completam minhas tardes, tuas palavras. Entre nós três pactamos: Nenhum sabe o quê, como nem quando. Luis Benítez nasceu em Buenos Aires, em 1956. É membro da Academia Ibero-Americana de Poesia, da World Poets Society (Grécia), da International Society of Writers (EUA), de Advisory Board de World Poetry Press (Índia), membro honorário da seção argentina de IFLAC (International Fórum for a Literature and a Culture of Peace) e da Sociedade de Escritoras e Escritores da Argentina. Recebeu o título de Compagnon da Poèsie da Association La Porte des Poetes, com sede na Université de La Sorbonne, Paris, França. Publicou Poemas da Terra e a Memória, Fractal, Selected Poems, Jorge Luis Borges: As Trevas e a Glória e A Tarde do Elefante e Outros Poemas.
Hans Manteuffel/Divulgação
CÊNICAS
Teatro da intimidade O espetáculo A Filha do Teatro, com texto de Luís Reis e encenação de Antonio Cadengue, não teme assumir uma escolha corajosa e sincera de circunscrever a encenação num espaço para poucos e potencializar uma relação entre o teatro e o seu espectador Alexandre Figueirôa
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screver este artigo no espaço de tempo mais curto possível após ver A Filha do Teatro, texto de Luís Reis, vencedor do Concurso de Dramaturgia da Funarte em 2003, com encenação de Antonio Cadengue, pareceu-me uma obrigação incontornável. Explico: quis esboçar nele as impressões acerca do espetáculo, ainda movido pela emoção de assisti-lo, estando entre os cerca de 25 convidados que testemunharam a pré-estréia da montagem da peça no início do mês passado (ela só é exibida, a cada sessão, para 30 espectadores). Refeito do impacto de ter tido a Continente julho 2007
oportunidade de apreciar um dos bons textos da dramaturgia brasileira contemporânea, não podia, de forma alguma, deixar escapar de minha memória detalhes preciosos dos instantes vividos no espaço do Teatro Hermilo Borba Filho. Para comentar o que vi é necessário ter ainda o odor do perfume usado pelas três atrizes em cena, entranhado nas minhas narinas; também se faz imprescindível que seus olhares diretos me fixando a poucos passos de distância, durante a encenação, estejam gravados com nitidez na minha retina; e mais: suas vozes precisam estar ressoando em todo o meu corpo.
CÊNICAS
A peça A Filha do Teatro tem texto de Luís Reis e encenação de Antonio Cadengue
Tudo isto pode parecer exagero, mas não consigo pensar de outra maneira diante desta experiência para a qual eu ousaria atribuir até mesmo uma definição: um teatro da intimidade. Como não classificar assim um espetáculo que não teme assumir uma escolha corajosa e sincera de circunscrever a encenação num espaço para poucos e potencializar uma relação entre o teatro e o seu espectador, beirando o sagrado? Poucas vezes, nos últimos anos, uma montagem teatral de um grupo local me deixou tão favoravelmente impressionado – Angu de Sangue foi talvez uma das raras exceções. Com A Filha do Teatro pude renovar minha crença do quanto a arte de representar, nestes dias de tantas mediações por instrumentos tecnológicos, ainda pode revelar-se uma vivência ímpar e abissal. Sou acusado por muitos de ser uma pessoa estranha às artes cênicas. Permitam-me, agora, uma afirmação de clara inspiração barthesiana (em agosto, os leitores da Continente Multicultural me compreenderão melhor). Não nego que tenho ido pouco ao teatro, mas, vez por outra, quanto prazer em trocar a imagem projetada uma tela pelo jogo da cena ao vivo. Naquele dia, por sinal, estava em exibição ali ao lado, no Teatro Apolo, o documentário de João Moreira Salles, Santiago. Contudo, um filme pode-se ver a qualquer momento. O espetáculo teatral permanece único a cada apresentação, e a escolha de conferir mais uma montagem da Cia. Teatro de Seraphim foi, sem dúvida, uma escolha auspiciosa. A força do texto de Luís Reis é inquestionável. Quanta precisão e habilidade para articular uma narrativa capaz de conjugar uma linguagem requintada – toda pontuada por artifícios metalingüísticos – com o melodrama, sem ser, com isto, pretensioso ou inacessível. Estruturada em três monólogos que se entrecruzam, Reis vai do mais prosaico à profundeza da alma de suas personagens, três mulheres unidas por laços de parentesco e pelo palco (do teatro e da vida), sem nunca perder de vista o essencial para um texto dramático atingir o seu objetivo, manter do início ao fim uma tensão que devora os protagonistas e contagia o espectador. E também, é preciso dizer, compartilhando da observação sábia e justa do professor Anco Márcio Tenório: muito bem escrita. Como em toda primeira vez que um espetáculo chega à cena, naquela noite ainda faltavam alguns ajustes. Entre as atrizes, por exemplo, ainda não estava bem resolvida a projeção da voz quando elas não estão voltadas para nós, uma vez que a platéia é disposta em torno de todo o espaço da encenação. Embora, não tenha receio de afirmar que, tanto Lúcia Machado, quanto Marilena Breda e Cristina Romeiro estão soberbas nos seus papéis. Também não me escapou observar que não gostei muito do figurino – apesar de compreender o seu propósito, achei-o excessivo, pesado. Porém, como seria Continente julho 2007
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CÊNICAS dos momentos mais emocionantes da encenação, quando lamentável não ter podido mergulhar uma das atrizes relembra de sua relação com duas peças naquele confronto de vozes que falam de Garcia Lorca – Yerma e A Casa de Bernarda Alba –, diretamente ao nosso espírito. sentada num dos recantos, espectadora como nós, Embarcar na poética de uma estava Geninha da Rosa Borges, uma grande cena em que se rompe o espaço intérprete do dramaturgo espanhol (ela empresta entre aquele que representa “por convicção e sua voz no texto que se ouve ao fundo e integra consciência do seu gesto” e o que representa a bela trilha do espetáculo). Trêmula de “sempre”, sem disso muitas vezes se dar conta, é emoção, nela víamos emergir, por seu o mistério que Cadengue soube muito bem rosto em êxtase, as lembranças de sua explorar e nos oferecer na sua leitura do texto de longa vida de atriz e das inúmeras vezes Luís Reis. em que fora criatura de Lorca. Foi um É esta proximidade arquitetada, quase instante mágico e inesquecível. E aqui palpável, seja no jogo dos papéis ou na endosso as palavras de Edélcio Mostaço disposição dos elementos cênicos que A Filha constante no programa: “o teatro só dá frutos do Teatro se imiscui em nosso íntimo e quando se nutre de sua própria carne. Quando se prolonga o seu efeito, mostrando o quanto oferece generoso como banquete à platéia, ávida de dramaturgo e encenador compartilham de uma dramas, voraz consumidora de emoções”. Somos mesma convicção: a teatralidade de nossas todos filhos do teatro. • existências brota desta teia invisível que une as criaturas no gozo e na dor, nos desígnios do destino ou nas garras do acaso. E foi este acaso que per- A Filha do Teatro. Temporada todo o mês de julho, terças e quartasmitiu, naquela primeira vez do texto completo, vivo e ex- feiras, às 20h, no Teatro Hermilo Borba Filho (Cais do Apolo, s/n, Bairro do Recife). 33 lugares por apresentação. R$ 10,00 (inteira) posto, presenciar uma cena comovente para a ribalta per- R$ 5,00 (meia). Reservas e informações: (81) 3228 3734. nambucana e que só o teatro é capaz de viabilizar. Num As atrizes Cristina Romeiro, Lúcia Machado e Marilena Breda
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CÊNICAS
Imago/Divulgação
O videodança Elástico, da Companhia Cais do Corpo, 1993, dirigido por Lírio Ferreira
Para não esquecer a dança Documentando a memória da dança que se faz no Recife, será lançado, este mês, site com o acervo digital do projeto RecorDança Christianne Galdino
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eatro de Santa Isabel, 1986 – abrem-se as cortinas para a apresentação da ópera de Carlos Gomes, Lo Schiavo (O Escravo – 1889), com coreografia de Dayse Caraciolo e direção de Lúcio Lombardi. No elenco, entre os “índios” da trama ambientada no Rio de Janeiro colonial, entra em cena o então bailarino, e hoje comunicador, Roger de Renor. Mais um passo e o cineasta Lírio Ferreira aparece em 1993 como diretor do vídeo Elástico, em que dançam Maria Eduarda Gusmão e Márcia Tinoco da extinta Cia. Cais do Corpo, considerado primeira videodança do Recife. Hoje estas cenas podem parecer improváveis, mas basta revirar um pouco as gavetas do esquecimento para comprovar que são reais. A necessidade de ter acesso a registros como estes motivou Valéria Vicente a pensar na construção de um acervo sobre a memória da dança do Recife, compreendendo também como campo de estudo a Região Metropolitana da cidade. Liana Gesteira e Roberta Ramos juntaram-se a ela para coordenar o audacioso projeto. A imensidão do objeto pedia um recorte no tempo e as décadas mais decisivas foram escolhidas como foco. Assim surgia, em 2004, o acervo digital RecorDança, documentando a memória da dança que se fez no Recife, de 1970 a 2000. A equipe cresceu e conseguiu importantes apoios como a consultoria do Itaú Cultural, a parceria com a Fundação Joaquim Nabuco – Fundaj, além do incentivo do Funcultura. “Desde o começo acreditávamos que só colheríamos
os frutos do RecorDança a longo prazo. E que somente depois de alguns anos perceberíamos a real importância da preservação desta memória, por se tratar de informações ainda tão recentes. Mas a receptividade das pessoas nos surpreendeu, fazendo nosso trabalho render mais e alcançar também projeção nacional”– conta Vicente. No entanto, o acervo em CD-ROM entregue a quatro instituições públicas culturais do Estado, ao final da primeira etapa, não conseguiu suprir a crescente demanda e alcançar os objetivos propostos. Então, uma nova fase foi planejada e realizada, o que resultou no RecorDança On Line, que será lançado no dia 23 deste mês. Os capítulos desta história se juntam agora em forma de website. O ‘passo-a-passo’ da dança do Recife é contado agora na rede, por 99 registros em vídeo entre espetáculos e coreografias; 170 impressos, entre programas e cartazes; 150 fotografias e 24 entrevistas. No quesito raridade encontramos “pérolas” como o vídeo da coreografia do tcheco, radicado no Recife desde a década de 80, Zdenek Hampl (falecido em março deste ano): A Festa da Pedra (1989). Mas para que serve tudo isso? E o que fazer com esses vestígios do passado? Liana Gesteira, coordenadora do RecorDança On Line, arrisca uma possível resposta quando, falando de sua experiência, diz que “trabalhar com a memória da dança faz com que a gente reflita sobre a nossa realidade a partir do que vimos no nosso passado e isso pode ajudar os criadores a pensar novas formas de se fazer dança”.
Black Escobar em Os Guaranis,1992
Acervo Recordança
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Guto Muniz/Divulgação
Esta preocupação em construir uma história da dança no Brasil é o combustível de muitos pesquisadores, gente que não compreende a separação, que vigora no país, entre criação e memória e para quem cada capítulo é importante, imprescindível, inesquecível. Neste time está o mineiro Arnaldo Alvarenga (UFMG), recém-eleito líder da instituição que representará todos os pesquisadores de dança do Brasil (chamada provisoriamente de Associação dos Pesquisadores de Dança do Brasil), que há mais de 10 anos assumiu a missão de descobrir, colecionar e sistematizar as lembranças da dança do seu Estado. Estas lembranças e as estratégias para não esquecê-las estiveram em pauta no I Encontro de Pesquisa sobre Memória da Dança Brasileira em Minas Gerais, que reuniu profissionais de dança de todo o país com o anfitrião Alvarenga, em Belo Horizonte. Valéria Vicente, coordenadora geral do RecorDança; professor Arnaldo Siqueira (UFPE), um dos pesquisadores pioneiros de história da dança do Recife; Mônica Lira, Marília Rameh, representando o Movimento Dança Recife, e a bailarina Helijane Rocha, do Grupo Experimental, foram a voz de Pernambuco no evento. Proteger esses acervos para que nenhum arquivo seja involuntariamente esquecido ou intencionalmente queimado é a razão que impulsiona Alvarenga. “É muito perigoso tentar apagar a memória para querer que o mundo comece a partir de quem a mandou queimar. Se a gente está aqui hoje, é porque alguém esteve antes. Precisamos mergulhar nesse lugar da memória, sim, buscar inspiração no passado, mas alavancando alguma coisa para a frente”, defende. Mas como tornar inesquecível um espetáculo, o que é que faz com que uma dança se torne memória? Pensar a dança como patrimônio cultural é entendê-la passível de registro, inventário, tombamento, e necessitando de todas as salvaguardas para ser preservada. E quando partimos desta idéia, deparamo-nos imediatamente com um desafio paradoxal que ronda todos os bens imateriais e particularmente a dança, já que sabemos dos limites impostos pela especificidade desta linguagem que, apesar de ter o corpo, tão palpável, como matéria-prima, tem o movimento, tão efêmero e fugaz, como idioma. Cabe aqui mais um “alerta” de Alvarenga: “Esquecer voluntariamente é diferente de ser privado da informação”. Destes mosaicos de informação é que se fazem os arquivos para imortalizar o que é naturalmente passageiro, para saber de onde se veio (e por quais caminhos) e, conseqüentemente, para onde se vai. A memória esteve presente não só nas falas dos debates como nos corpos dos bailarinos que se apresentaram no Encontro, afinal se pode dizer que é o corpo o primeiro acervo da dança. No espetáculo Por que tão solo?, a intér-
Gabriela Christófaro coloca em cena, no espetáculo Por que tão solo?, a importância da preservação da memória da dança
prete-criadora Gabriela Christófaro, da Marcenaria Centro de Criação Cênica, de Belo Horizonte, coloca em cena toda a discussão sobre a importância de preservação desta memória. Além de dançar com imagens projetadas e fotografias de outros bailarinos que construíram e ainda constroem a história da dança em Minas Gerais, ela incorpora literalmente estas informações e oferece aos olhares de hoje os caminhos do ontem, como se trouxesse para fora os genes de dança daquele lugar. Por que tão solo? nos faz ver que afinal não somos tão solos, trazemos no nosso próprio corpo uma coleção múltipla de referências. Estejamos nós conscientes ou não deste fato, somos “museus vivos” e em movimento. Esta hipótese também nos ajuda a entender o lugar do corpo e da dança na memória coletiva, funcionando como arquivo vivo da sociedade. A partir desta percepção, reafirmar e garantir o “lugar” da dança nas histórias oficiais é uma urgência que não pode mais ser adiada nem tampouco esquecida. E isto não vale somente para os corpos que dançam. • RecorDança On Line. Lançamento: 23 de julho às 19h, no Cine-teatro José Carlos Cavalcanti Borges, Fundaj – Derby. www.fundaj.gov.br/recordanca Continente julho 2007
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A vez do
cinema romeno Num panorama internacional guiado por festivais e pela crítica sempre à procura de um novo foco sobre “novas cinematografias”, os romenos chegam aonde os argentinos e coreanos estiveram recentemente Kleber Mendonça Filho
H
á algo de impressionante acontecendo com o novo cinema romeno, e a 60ª edição do Festival de Cannes, que aconteceu em maio, pontuou isso com a Palma de Ouro consensual para o filme 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamini si 2 Zile), de Cristian Mungiu. Num panorama internacional guiado por festivais e pela crítica sempre à procura de um novo foco sobre “novas cinematografias”, os romenos chegam aonde os argentinos e coreanos já estiveram recentemente, talvez com intensidade maior. É uma safra composta por pequenos grandes filmes feitos por uma nova geração de cineastas que mescla humanidade marcante e precisão cirúrgica na encenação do realismo. Como uma obsessão coletiva enfrentada, os fil-
mes têm também importante pano de fundo na sociedade romena durante e depois da queda do regime comunista. Para chegarmos até 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, é importante entender esta safra como um panorama coeso de filmes que encontraram em Cannes vitrine de primeira grandeza. Começando em 2005, Cannes exibiu, na mostra paralela Un Certain Regard, A Morte do Senhor Lazarescu (Moartea Domnului Lazarescu), de Cristi Puiu, obra que já tem lugar reservado na lista dos 10 melhores filmes desta década. O filme passou no mesmo ano que viu Cinema Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, na mesma mostra e nos apresenta uma crônica realista de uma morte anunciada já no próprio título do filme.
4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, de Cristian Mungiu, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, este ano
Fotos: Acervo Kleber Mendonça Filho
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CINEMA
O Sr. Lazarescu, viúvo aposentado com gosto pela vodka, morador de um apartamento em Bucareste com desenho e identidade comunista, sentese mal num sábado à noite e uma ambulância vem socorrê-lo. Com incrível poder de observação da alma humana, do deficit social que existe entre um sistema de saúde moribundo e o povo que deveria cuidar, além do próprio processo de falência física e espiritual do corpo humano, Puiu nos apresenta um painel sobre a vida e a morte, a fraternidade e a medicina, somando à tragédia doses inusitadas de um humor cortante que amplifica o todo. A Morte do Senhor Lazarescu, que infelizmente permanece sem distribuição no Brasil, ganhou o prêmio de melhor filme da mostra Un Certain Regard daquele ano. Ambientado nos dias de hoje, a associação do triste destino de seu personagem principal com o da Romênia comunista de Ceausescu foi amplamente decodificada, abrindo espaço para mais três filmes que nos levariam aos anos que testemunharam a queda do comunismo no país, no final dos anos 80. Dois desses títulos, ambos com distribuição garantida nos cinemas brasileiros, são Ao Leste de Bucareste (A Fost Sau n-a Fost?), de Corneliu Porumboiu, e Como eu Vi o Fim do Mundo (Cum Mi-am Petrecut Sfarsitul Lumii), de Catalin Mitulescu, realizador que ganhou em Cannes 2003 a Palma de Ouro do curta-metragem com o filme Traffic. Ao Leste de Bucareste revela-se uma análise inteligente do que significa a história, as versões para um fato, e como esse fato, por ser de ordem política, pode permanecer envolto numa nuvem bêbada de incertezas. É significativo que o eixo principal deste filme exista numa sequência espetacularmente longa, ambientada num programa de TV, onde o tema discutido não apenas lembra o aniversário da queda de Ceausescu, mas também procura definir se a pequena localidade em questão pronunciou-se heroicamente num microensaio de revolução. O apresentador, com seus dois convidados, logo entrará em hilariantes discordâncias sobre o que ocorreu naquele dia, as lembranças borradas por desejos retroativos de heroísmo e prováveis bebedeiras, pioradas pelas participações de telespectadores que telefonam para esclarecer fatos e desmascarar rudemente as versões dos convidados. O espectador começa a achar que Rashomon tem nesse filme romeno um bisneto de respeito, desdobrando a idéia original das versões e apropriando-se no sentido mais pessoal possível. O filme de Porumboiu resulta num ensaio sobre a cegueira da história, típica de algumas heranças políticas que não inspiram em muitos o simples desejo de serem lembradas. Ao Leste de Bucareste, que passou na Quinzena dos Realizadores, saiu de Cannes 2006 com o prestigioso prêmio Câmera de Ouro, dado ao melhor filme de um estreante. O segundo filme nos dá um relato sobre o mesmo período pelos olhos de Eva, adolescente que equilibra seus dramas íntimos típicos da idade com a percepção de que seu país está mudando rapidamente, e essas mudanças irão desencadear um novo estilo de viver. Um pequeno incidente na escola ilustra bem o tom desta crônica, quando Eva e o namorado quebram acidentalmente um busto de gesso de Ceausescu, desencadeando uma série
Para chegarmos até 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, é importante entender esta safra como um panorama coeso de filmes que encontraram em Cannes vitrine de primeira grandeza. Começando em 2005, Cannes exibiu, na mostra paralela Un Certain Regard, A Morte do Senhor Lazarescu (Moartea Domnului Lazarescu), de Cristi Puiu, obra que já tem lugar reservado na lista dos 10 melhores filmes desta década
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CINEMA de eventos políticos e pessoais. Mitulescu filma como se seguisse um diário pessoal de anotações feitas na época, num filme que cheira à verdade. A atriz Doroteea Petre, que interpreta Eva, ganhou prêmio de interpretação feminina na Un Certain Regard. Em 2007, mais dois romenos dominam as premiações. Além da Palma de Ouro e Prêmio da Crítica Internacional (Fipresci), conquistados por 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias, California Dreaming, de Cristian Nemescu, ganhou como melhor filme na Un Certain Regard, repetindo o feito de A Morte do Senhor Lazarescu, em 2005. Nemescu, que faleceu precocemente em agosto do ano passado num acidente de carro, aos 27 anos, desenhou um painel pessoal da Romênia a partir de uma inusitada interação entre os moradores de uma pequena vila e um grupo de soldados americanos que ali pára por problemas burocráticos. Estão a caminho de Kosovo, em 1999, e o filme foi inspirado num acontecimento real. Esse painel cultural sobre a província e o mundo externo foi apresentado em Cannes na versão que Nemescu trabalhava na época da sua morte. Ficou uma obra ainda longa, mas que ilustra com enorme coração as relações multiculturais entre ricos e pobres na era da globalização,
Os diretores romenos Corneliu Porumboiu, Cristian Mungiu e Catalin Mitulescu, em Cannes
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tema recorrente no cinema contemporâneo, especialmente numa Romênia que se abre para o mundo externo 10 anos depois do comunismo. Ponto especial do filme é a participação americana, cuja presença inspira uma onda de brutalidade, mas sem qualquer participação direta na violência. Saem sem sujar as mãos. Curiosamente, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias se passa em 1987, dois anos antes da queda do regime, e resulta numa espécie de thriller de dimensões humanas sobre liberdade e fraternidade. O eixo dramático é o desejo de uma universitária de fazer um aborto, tendo sua melhor amiga como acompanhante para questões morais e logísticas (incrível atuação da atriz Laura Vasiliu). A complexa operação é realizada clandestinamente num quarto de hotel na companhia de um médico, “o Sr. Bebe”, o que levará as duas mulheres a uma série de decisões morais e pessoais tomadas num processo filmado com enorme respeito pelos personagens e alto grau de desconforto para o espectador. Mungiu filma, num momento especial, o corpo feminino tomando toda a tela larga projetada. Parece também enfatizar a idéia de que, naquele período da história romena, decisões vinham sempre acompanhadas de negociações, um dos pontos mais fortes aqui explorados.
CINEMA
A Morte do Senhor Lazarescu, de Cristi Puiu, deu o pontapé inicial no reconhecimento do cinema feito na Romênia
Curiosamente, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias se passa em 1987, dois anos antes da queda do regime, e resulta numa espécie de thriller de dimensões humanas sobre liberdade e fraternidade. O eixo dramático é o desejo de uma universitária de fazer um aborto, tendo sua melhor amiga como acompanhante para questões morais e logísticas
Num encontro durante o Festival de Cannes, com um grupo de jornalistas, eu perguntei a Mungiu, Porumboiu e Mitulescu sobre esse desejo impresso nos seus filmes por representações tão precisas do realismo. Mungiu começou sugerindo que “logo depois da queda do regime, o cinema romeno continuou numa espécie de piloto automático. Os filmes continuavam abordando ‘grandes temas’ com mão de ferro, e não uso esse termo como trocadilho, eram visões estereotipadas. O que mais chamava a atenção na época é que o cinema romeno parecia dar continuidade ao cinema feito durante o regime. Acho que a diferença com nossos filmes hoje é que filmamos o que se encontra imediatamente ao nosso redor, partimos do íntimo, do pequeno, para traçar um painel que, no final das contas, é amplo”. O fato de os três apresentarem-se juntos, em Cannes, para este grupo de jornalistas, denota um desejo de participar de uma idéia de movimento. Puiu, que cancelou sua participação no encontro por causa da morte do pai, foi creditado como peça-chave nessa noção de “novo cinema romeno” com a repercussão de A Morte do Senhor Lazarescu. “Eu morava no mesmo quarteirão de Mungiu, e acho que, de uma certa maneira, nós enxergamos a mesma Romênia.” • Continente julho 2007
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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar
A atualidade de Maria Helena Vieira da Silva Basta ver as obras da pintora para perceber que, em que pese a realização imprevisível, o quadro está madura e plenamente realizado, sem que nada exceda nem falte
A
exposição de Maria Helena da Silva, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, que visitei em recente ida àquela cidade, só veio consolidar, em minha avaliação, a certeza de que a pintura é uma arte viva, independentemente de que rumo tenham tomado ou tomem as manifestações que não se valem da tela, nem dos pincéis nem das tintas. A visita àquela exposição, além de proporcionar-me sucessivos momentos de prazer estético, de emoção e descobertas, fez-me refletir sobre umas tantas questões suscitadas pelas experiências e reflexões nascidas na época moderna. Não falo da crença de alguns no fim da pintura – e de outras formas de arte ditas tradicionais –, mas de certas discutíveis verdades que se consolidaram durante o último século, marcado pelo surgimento e esgotamento das vanguardas artísticas. Uma dessas supostas verdades é a de que deve o artista seguir um rumo coerente de “pesquisas” e que, nessa coerência, residiria a confirmação de uma mais significativa trajetória. Dentro dessa perspectiva, a arte de Piet Mondrian, por exemplo, teria uma seriedade e uma verdade que faltariam à obra de outros artistas. O mesmo poder-se-ia dizer de Giorgio Morandi, voltado para a exploração de naturezas-mortas, valendo-se de uns mesmos objetos. Minha observação consiste, não em negar o valor desses dois grandes pintores, mas, sim, em dizer que aquela coerência, essencial numa opção estética como as suas – e que diferem entre si –, é dispensável na obra de outros Continente julho 2007
artistas que estabeleceram uma relação distinta com a criação pictórica. É o caso, por exemplo, de Maria Helena Vieira da Silva, em cuja obra o improviso e a liberdade temática resultam em uma notável riqueza de expressão e num prazer também especial para quem observa seus quadros. Esses exemplos deixam claro que tanto a criação quanto o prazer estético não se submetem a normas pré-estabelecidas, nem num sentido nem no outro, ou seja, tanto a obra de arte pode ser concebida dentro de determinados parâmetros estabelecidos pelo artista como fora de todo e qualquer parâmetro. No caso de Mondrian, que citamos acima, a adoção dos ritmos verticais e horizontais, como norma construtiva do quadro, é um limite deliberadamente adotado pelo pintor, que buscava tirar dele resultados estéticos determinados, dentro de uma nova poética pictórica, como a construção assimétrica que enriquece a composição limitada a formas ortogonais e cores básicas, como o vermelho, o azul e o amarelo, complementadas pelo cinza e o negro das linhas verticais e horizontais que definem a estrutura da obra. Tal opção pictórica elimina deliberadamente o improviso do desenho intuitivo, as inesperadas variações cromáticas e tonais. E é precisamente no contrário disso, na poética do inesperado, que reside o encantamento da arte de Maria Helena Vieira da Silva. Esse predomínio do improviso não exclui, porém, o domínio da linguagem, a mestria no uso dessa linguagem. Pelo contrário, o fato mesmo de iniciar o quadro como quem parte para uma aventura de conseqüência
TRADUZIR-SE Divulgação/MAM
Rua do Ouvidor, Maria Helena Vieira da Silva, 1943
imprevisíveis, exige do artista sensibilidade e lucidez – uma lucidez outra – que evita a prolixidade e o excesso, mesmo porque é condição essencial à plena realização da obra de arte, a economia da expressão, o máximo de conteúdo no mínimo de forma; noutras palavras – a plenitude. E basta ver as obras de Maria Helena Vieira da Silva para perceber que, em que pese à realização imprevisível, o quadro está madura e plenamente realizado, sem que nada exceda nem falte. Deve-se observar também que essa atitude aberta em face da criação não exclui a recorrência de determinados temas, que são explorados até seu esgotamento. No caso desta pintora, um dos temas mais constantes – e talvez centrais de sua obra – é a desconstrução do espaço perspectivo. A perspectiva renascentista, como se sabe, foi a invenção do espaço reacional tridimensional, na tela, ou seja, o nascimento do espaço imaginário pictórico, que não existia antes, e que surgiu como a construção idealizada do espaço real. Simplificando, pode-se dizer que esse espaço imaginário – que sofreu transformações através do século
16 ao 19 – foi destruído pelo Cubismo e pelas sucessivas vanguardas que surgem a partir de então. Mas o fascínio daquele espaço imaginário se manteve em alguns movimentos artísticos modernos, como o Surrealismo, e em alguns artistas que o reinventaram de outro modo. Vieira da Silva recupera o espaço imaginário e passa a explorar-lhe as potencialidades, criando, dentro dele, uns labirintos de outros espaços, que escapam à racionalidade da perspectiva, ou melhor, violentam-na, desconstroemna, criando subdivisões absurdas de espaços, numa lógica incoerente, que nos parece conduzir a outras dimensões do real. Como se a construção espacial geométrica enlouquecesse, gerando uma espécie de danação da perspectiva. Nascida em Lisboa, em 1908, Maria Helena Vieira da Silva estudou escultura e pintura na França e na Itália. Em 1939, já casada com o pintor Arpad Szenes, em função da Segunda Guerra Mundial, decidiu mudar-se para o Brasil, onde o casal viveu até 1947. De volta à Europa, fixaram residência em Paris, onde ela veio a falecer em 1992, consagrada e reconhecida como uma das maiores pintoras de sua época. • Continente julho 2007
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ARTES
Imagens: Divulgação/Etain Escritório de Artes
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O tempo de Cavani Rosas Radicado em São Paulo há quase uma década, o artista pernambucano revela seus múltiplos projetos que vão dos quadrinhos à ilustração científica Daniel Buarque
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odo o tempo do mundo é pouco para dar conta de todos os projetos na cabeça e na rotina do multiartista pernambucano Cavani Rosas. Seria preciso mais, muito mais que 24 horas por dia, e nem mesmo entrando pela madrugada é possível imaginá-lo conseguindo conciliar o desenho de ilustração científica, a iconografia, os quadrinhos, a pintura, a escultura (em cerâmica, concreto, bronze e mais recentemente mármore), os storyboards... Ele deve conseguir parar o relógio! “Eu gosto muito de estratégia, e tenho uma montada para todos os meus projetos acontecerem de forma encadeada, mas, se der tudo certo, eu estou lascado de tanto trabalho”, brincou, dizendose louco para ter este tipo de problema, durante uma longa conversa no ateliê em que desenha, na parte de baixo do mesmo casarão em que vive, expõe e produz sua arte, no bairro do Morumbi, em São Paulo. “Estou com 54 anos. Preciso começar a correr pra fazer tudo o que eu quero”. Seus planos imediatos começam a se consolidar, e não são poucos. “Eu vou lançar um livro de desenhos da iconografia de São Paulo, quero fazer uma exposição no lançamento, aí fazer uma exposição no Recife, com a iconografia local, e lançar esses trabalhos em um outro livro, e também estou preparando um livro de histórias em quadrinhos, pensando em fazer esculturas em mármore, querendo fazer uns trabalhos no Rio de Janeiro”, contou. Continente julho 2007
ARTES “Desde dezembro, eu tenho vendido um bocado, e recebido muita encomenda também. Tem sido um ano sensacional para mim”, disse. Depois de fazer um tour de visitação pelas obras expostas na casa, de conversar sobre os mais variados temas, enquanto tomava um capuccino, Rosas explicou sua rotina de trabalho, que alia obrigações de emprego matutino na ilustração científica de serpentes no Instituto Butantan com o mergulho noturno no mundo dos quadrinhos. “Gosto muito de trabalhar de madrugada. Fico aqui concentrado enquanto está tudo em silêncio na cidade, tudo parado”, disse. Na casa em que ele mora atualmente e que serve como ateliê e local de exposição do seu trabalho, “tudo está à venda”, diz, enquanto caminha por entre desenhos, pinturas e esculturas dos vários pisos da casa, explicando cada obra, sua técnica, sua época, sua inspiração, para logo depois de comemorar, reclamar do mercado das artes. “É extremamente irregular. Outro dia veio aqui um grupo de 40 pessoas, mas aí não adianta, porque ninguém compra nada.” O local é aberto à visitação de curiosos e, especialmente, compradores. Logo na entrada, dois cães labrador recebem o visitante, que logo se depara com uma outra proteção para a casa, uma escultura de um quadrúpede com uma cabeça humana: “Um Guardião”, como diz Rosas, “a primeira escultura que fiz em minha carreira artística”, contou, finalizada em 1983. “Eu já fui salvo por um guardião”, conta Rosas, relatando uma tentativa de roubo que sofreu, quando tentaram levar uma
Na página ao lado, Diante da Estrela, bico-de-pena, 2006. Abaixo, Corpo de mulher, 2006
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estátua que “protegia” a casa em que morava. A tentativa culminou num acidente automobilístico envolvendo dois veículos, mas poupando Rosas e o seu patrimônio de qualquer dano. O relato, encadeado entre um comentário e outro a respeito do método de trabalho e do mercado de artes no Brasil, dá uma mostra do quanto o foco variou durante a entrevista, sempre de forma leve e informal, passando do momento profissional que vive atualmente à violência urbana do Recife e a preocupação com os filhos que ficaram na cidade natal, pulando então para aventuras vividas na Croácia, para aí voltar à produção artística que vem desempenhando há 37 anos, nove deles longe do Recife. O mercado das artes de São Paulo, muito mais movimentado que o de Pernambuco, foi a principal razão alegada por Rosas para trocar a cidade do mangue pela terra da garoa, quase uma década atrás. “Eu precisava dar uma arejada”, explica num sotaque pernambucano ainda bastante carregado. “O Recife já estava saturado de trabalhos meus, e aqui em São Paulo é muito mais fácil expor e vender, por mais que a concorrência seja muito maior e eu seja muito menos conhecido do público”, detalha, e completa: “Mas eu confesso que também estava fugindo do calor pernambucano”. De fato, na capital pernambucana é difícil ir de uma esquina à outra sem passar por algum trabalho de Rosas. “O Recife é
Signo de Virgem, Série Zodíaco, 2006
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um museu de obras minhas a céu aberto. Estou em muitas praças, em ruas, em prédios, até em casas por toda a cidade”, conta. E Rosas também está no interior pernambucano, como em Nazaré da Mata, onde se podem ver algumas de suas esculturas mais recentes: Os caboclos de lança, construídos com mais de dois metros de altura, inteiramente coloridos com mosaicos.Em São Paulo, as paisagens pernambucanas deram lugar a um trabalho que figura o Estado mais rico do país, seja capital ou interior, que agora vão fazer parte de um livro, em projeto já aprovado pela Lei Rouanet. “Falta só encontrar o patrocinador”, conta. Ele também desencadeia uma série de planos relacionados com a capital paulista, desde o livro, passando por museus, o parque da Luz, e até praças públicas. “Tenho vontade de descobrir onde o povão pernambucano que vem morar em São Paulo vai morar. Outro dia ouvi dizer que era no bairro do Braz, onde antigamente havia italianos. Quando souber onde é, vou tentar construir outra série de caboclos de lança gigantes para colocar numa praça desse bairro, em homenagem ao povo de Pernambuco”, disse, aumentando sua lista de projetos. Desenhos em foco – Mesmo divagando entre projetos variados, Rosas admite estar mais focado atualmente no desenho com bico-de-pena. “Eu comecei no
ARTES
Malassombrado, história em quadrinhos, parceria com Bráulio Tavares, 2007
meio artístico por aí, e estava percebendo que o desenho está se tornando uma expressão artística menos valorizada, por isso resolvi me focar nisso”. Nesta forma de expressão, ele se diz encantado pela iconografia urbana, iniciada no Recife, com continuidade em São Paulo.Depois de desenhar tantas diferentes imagens urbanas das duas cidades, Rosas diz não haver diferença entre as duas, do ponto de vista do trabalho artístico. “Quando paro em frente a uma imagem que quero desenhar, não faz diferença ser o Recife, São Paulo ou qualquer outra cidade do mundo”. Pouco depois, levado pela conversa a falar da capital paulista, ele se mostrou um apaixonado pela paisagem dela. “Tem cada coisa incrível aqui em São Paulo.” Ao ser perguntado se havia alguma imagem que mais o encantasse, ele pensou um pouco, mas respondeu: “O pan, o fauno do parque Trianon, em São Paulo, me encanta profundamente. É algo de mágico, de fantástico ali no meio de uma paisagem tão real e concreta”. Esta forma de trabalho artístico se alia à ocupação menos livre, mas ainda bastante artística, da ilustração científica de serpentes no Butantan, na zona oeste de São Paulo. Além
Ovo, bico-de-pena, 1987
de usar a mesma técnica de desenho, “a ilustração serve como estudo para desenhos artísticos, especialmente agora que estou pensando em desenvolver uma série de trabalhos relacionados com cobras”. A grande diferença nos dois trabalhos é que a atividade científica não permite nenhuma criação. “Cada uma dessas escamas da cobra existe e está exatamente nesta ordem”, conta, enquanto mostra um desses desenhos. Segundo ele, no registro dos estudos para o qual desenha, há informações exatas sobre os tipos, números e tamanhos das escamas das cobras, bem como correlações entre elas e os órgãos internos, por isso a necessidade do altíssimo nível de detalhes. “Quando eu vim para São Paulo pela primeira vez, em 1979, foi quando mergulhei nessa coisa de ilustração científica. Fiquei dois anos ilustrando gastrocirurgia. É um detalhismo que só o bico de pena consegue alcançar, melhor que a própria fotografia”, disse. Segundo ele, é também uma forma de garantir seu sustento econômico, já que é uma ocupação muito mais garantida que a venda de suas obras de arte. Continente julho 2007
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ARTES “A insegurança econômica me deixa muito inquieto, por mais que tantos projetos caminhem ao mesmo tempo.” Os tantos projetos ainda incluem histórias em quadrinhos, que Rosas quer publicar ainda neste ano. “Dois vendedores concorrentes, de terno e gravata, entram num elevador. Um sorri para o outro. E então, armado com uma faca, um deles ataca o ‘inimigo’ no pescoço, e logo os dois se transformam em galos-de-briga, numa luta violenta, vermelhos como sangue, e se tornam então cães raivosos, com caninos afiados e olhos assassinos, até que o vermelho sangue se torna a cor de duas betas, o peixe de briga, dando continuidade a esta luta surreal, que culmina numa cena final em que os dois saem do elevador como se nada tivesse acontecido”, descreve Rosas, enquanto mostra a série de desenhos e estudos que realiza ao preparar uma história em quadrinhos, baseadas em textos de Bráulio Tavares e Fred Navarro. Rosas não pensa em voltar a morar no Recife. Não deixa de ter, entretanto, planos profissionais, como desenhar todo o bairro da Várzea, e pessoais, já que seus filhos, e os filhos deles, vivem na capital pernambucana, que hoje não tem um local para expor e vender seus trabalhos. “Manter um escritório, um ateliê, no Recife, significa assumir muitos custos financeiros que não são facilmente resolvidos.” Na conversa entrecortada em seu ateliê, entre trabalhos próprios de desenho e escultura, livros de anatomia humana, modelos perfeitos de crânios e de esqueletos completos, tudo muito iluminado, para evitar um clima mórbido, Rosas falou sobre a “colônia” pernambucana em São Paulo. “Tá todo mundo por aqui atualmente. E todos acabam sempre se encontrando, sentando para tomar uma cerveja num bar.” Depois de se debruçar sobre a mesa de desenhos por um segundo – enquanto às suas costas há uma escultura de uma imensa cabeça humana com a boca aberta, de onde saem tentáculos, que se espalham pelo rosto – ele tem a idéia para mais um projeto. “Já pensou, que legal, ir a um bar e ter uma mesa no formato do mapa de Pernambuco, todo colorido com mosaico? Acho que vou propor para alguém. Seria fantástico.”
Na página ao lado: Fauno, bico-de-pena, 2006. Acima, o artista Cavani Rosas em seu ateliê. Abaixo, o projeto da obra Parque dos Lanceiros, executada em Nazaré da Mata
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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti
Sobre abóboras, chuchus e contos-de-fadas
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lguns alimentos estão intimamente ligados a contos-de-fadas. Aqui escolhi dois. Um antigo e um novo. Um que deu certo e outro que não deu. No primeiro, tudo começa quando uma abóbora é transformada em carruagem. No segundo, deu-se que um chuchu acabou candidato a Presidente da República. O que há em comum, entre os dois, não é o destino feliz dos heróis. Não está escrito, em nenhum livro, que contos-de-fadas têm que dar sempre certo. Mas a circunstância de estarem os alimentos no centro dessas histórias. Vamos conferir.
ABÓBORA – Cinderela primeiro perdeu a mãe. Depois, perdeu também o pai. Em casa ficaram só a madrasta e suas duas malvadas filhas. Assim começam as desventuras daquela pobre Cinderela – sonhando secretamente, em seu quarto humilde, com um príncipe encantado que redimisse o seu destino. Engraçado é que essa história nem sempre foi contada assim. A primeira versão que se conhece veio da China (860 a.C). Era, por esse tempo, quase um conto-de-terror. Outra versão é a de Jacob e Wilhelm Grimm, quando publicaram Deutsche Sagen (1818), adaptando antigas lendas – Branca de Neve, João e Maria, Rapunzel, O Ganso de Ouro, O Alfaiate Valente, Os Músicos de Bremen e, claro, Cinderela também. Só que, nessa versão dos irmãos Grimm, as filhas da madrasta têm os olhos perfurados por pombos. Depois de tantas desgraças, no final do século 17, o francês Charles Perrault decidiu converter esse drama triste em um conto infantil – inspirado na popular história italiana A Gata Borralheira. E assim passamos a conhecer uma nova Cinderela, protegida por bondosa fada madrinha – que transforma trapos em vestidos de festa, ratos em cavalos e abóboras em carruagens. São muitas as variedades dessas abóboras, todas pertencentes à família das Curcubitáceas – a mesma do chuchu, do pepino, do melão e da melancia. São mais de novecentas, espalhadas pelos cinco continentes. Entre elas a cucurbita maxima Continente julho 2007
Imagens: Divulgação
SABORES PERNAMBUCANOS ou “moranga”, originária das Américas Central e do Sul. Foi, junto com milho e batata, o principal alimento de astecas, incas e maias. Há mesmo registro de sementes encontradas em túmulos dessas civilizações. Mas, para o índio brasileiro, nunca teve a importância que dava à mandioca. Europeus, antes de chegar às Américas, já conheciam outras espécies dessa abóbora. Como a chila, bem menor que a nossa, muito usada em Portugal para fazer doces e bolos. Também a cucurbita pepo, originária da Ásia e África (para portugueses, “abóbora-da-quaresma”), que tem registro em nove receitas no De re coquinaria (séc. 1) – o famoso livro do gastrônomo romano Marco Gavio Apício; e que aparece, também, no quadro renascentista Madonna col Bambino – do pintor veneziano Carlo Crivelli (1430 – 1500). A mesma espécie que africanos chamavam de “jerimum” – um nome que acabou adotado, no Nordeste, para designar qualquer tipo de abóbora. Outro tipo é a pumpkin, cultivada nos Estados Unidos. Nesse caso, usada não só como alimento, mas também no “Halloween”. Para tanto, em todo 31 de outubro, crianças retiram seu miolo com ajuda de uma faca, furam a casca e fazem olhos, nariz e dentes, colocando dentro uma lamparina ou vela. Essa festa, bom lembrar, tem origem em antigo rito pagão dos celtas – povo que dominou toda a Europa Ocidental, entre os séculos 6 e 7 a.C. Por acreditar, ditos celtas, que essas máscaras horripilantes impediam os espíritos dos mortos de entrar no corpo dos vivos. O costume foi levado aos Estados Unidos pelos ingleses. Chegou ao Brasil em fins do século passado. E só agora, como resultado dos modismos culturais, começa a fazer (algum) sucesso entre nós. Da abóbora tudo se aproveita. Sementes, salgadas e tostadas no forno, são excelente tira-gosto; e, trituradas junto com açúcar, servem para curar bronquite. Folhas recém-brotadas, chamadas “cambuquiras”, são usadas em sopas e caldos. Delas se faz, também, eficiente remédio para combater erisipela. As flores, muito saborosas, podem ser servidas à milanesa ou refogadas na cebola, para acompanhar saladas ou rechear omeletes. A polpa carnuda, que vai do alaranjado claro ao vermelho, é usada no preparo de pratos doces – bolos, pães, pudins, tortas e doces em calda, batido ou seco. Salgados também – gnocchi, omeletes, purês, refogados, risotos, saladas, sopas, suflês. Como acompanhamento indispensável de charque e cozido. Ou, ainda, recheando pastéis e pastelões. Com tantas e tão boas qualidades, não era mesmo de estranhar que a fada-madrinha tenha escolhido essa abóbora, transformada em carruagem, para levar Cinderela a seu Príncipe Encantado, com quem foi feliz para sempre. Para quem acredita em contosde-fadas, claro. CHUCHU – Não houve, naquele tempo, povo mais civilizado deste lado do mundo. Os Astecas apreciavam livros – escritos em nauatle, uma mistura de ideogramas com escrita fonética. Construíam aquedutos, diques e estradas. Tinham organização militar bem desenvolvida. Dominavam técnicas avanContinente julho 2007
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SABORES PERNAMBUCANOS
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RECEITAS
Divulgação
çadas de astronomia, metalurgia (sabiam trabalhar ouro, prata e cobre) e, sobretudo, agricultura e irrigação – usando meios bem mais modernos que os então empregados na Europa. Eram mestres no cultivo de abóbora, algodão, batata, cacau, feijão, milho, pimentão, tomate. E também chuchu. O nome vem do quíchua – chufehuf. Os franceses, quando chegaram às Antilhas, passaram a chamá-lo de chou-chou – daí vindo o nome, em português. Só que chuchu, para essa gente, por ter gosto suave e ser de fácil digestão, era mais alimento de doentes e convalescentes. Depois, em 1519, o espanhol Hernan Cortés chegou àquelas terras e destruiu o grande império asteca. Como depois Pizarro entrou em Cuzco e destruiu a quase tão grande civilização inca. Sobrou pouco, deles. Para a Espanha levaram ouro, pedras preciosas e mudas daqueles alimentos – dos quais os de maior prestígio foram a batata e o cacau, usado para fabricação do chocolate. Chuchu também. Como tantos outros alimentos, foi e depois voltou; chegando ao Brasil com os primeiros navegadores portugueses. E por não ter gosto marcante acabou apelido de candidato a Presidente da República. Perdeu. Ninguém é perfeito. Nem o próprio chuchu. Diferente do que geralmente se imagina, chuchu (Sechium edule) não é tubérculo. Mas fruto de uma trepadeira, da mesma família (Cucurbitácea) do melão e da melancia. A cor varia, do branco ao verde escuro. Podem ser arredondados ou em forma de pêra. Com casca lisa ou espinhosa, dependendo da espécie. Frágeis, duram no máximo cinco dias depois de colhidos. Na geladeira até oito, se embalados em saco plástico. Chuchu normalmente é servido cozido – em gratinados, pudins, refogados, saladas, suflês. Empanados ou fritos – acompanhando carne, galinha ou peixe. Por ser diurético, é usado como remédio para baixar a pressão. E, rico em fibras, acabou sendo eficiente regulador de intestino. Faltando só dizer que esse chuchu é também sinônimo de coisa sem graça. Sem sabor. “Pra chuchu” significa em grande quantidade – por força do excesso de safra do chuchuzeiro – que, quando começa a frutificar, não pára mais. Chuchu, na gíria carioca, é também “mulher bonita, atraente, sedutora”. Por conta de Chouchou – uma francesa dona da pensão Imperial, no bairro da Lapa no Rio de Janeiro. O novo significado se espalhou pelo Brasil todo. Por essa os astecas não esperavam. Recentemente provei salada incrivelmente saborosa com chuchu cru – no Restaurante Celeiro, no Rio de Janeiro. O gosto é mesmo surpreendente. Lembra melão. Vale conferir a receita. •
SOPA DE ABÓBORA INGREDIENTES 750 g de abóbora (descascada e cortada em cubos) 3 batatas (descascadas e cortadas em cubos) 3 tomates (cortados ao meio) 1 ½ litro de caldo de carne 1 pitada de noz-moscada 20 g de manteiga 1 caixa de creme de leite Sal e pimenta do reino PREPARO: • Numa panela, coloque abóbora, batatas, tomates e caldo de carne. Tempere com sal e pimenta. Deixe em fogo brando, por 30 minutos. • Passe tudo no liquidificador. Volte para a panela. Verifique os temperos. Junte noz-moscada, manteiga e creme de leite. Sirva bem quente, com torradas.
Talita Corrêa
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SALADA DE CHUCHU INGREDIENTES: 1 ½ kg de chuchu cru descascado, cortado em juliana (tiras bem finas) 1 colher de sopa de sal 1 colher de sopa de pimenta rosa Para o molho: 6 colheres de sopa de maionese 6 colheres de sopa de iogurte natural ½ colher de sopa de açúcar 2 colheres de sopa de suco de limão PREPARO: • Misture o chuchu com o sal e deixe em uma peneira, para que saia toda a água. • Prepare o molho: junte maionese, iogurte, açúcar, limão e misture bem. • Na hora de servir, junte o chuchu ao molho e misture bem. Decore com grãos de pimenta rosa. Sirva imediatamente.
DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Paciência de “mendigo de feira” para homenagear Graciliano
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s 5h35 do dia 20 de março de 1953, Graciliano Ramos morria na casa de saúde São Vítor, na Praia de Botafogo, onde fora internado em princípios de janeiro. Quinze anos antes, em maio de 1938, aparecia Vidas Secas, que muitos críticos consideraram a obra principal do escritor alagoano. Gente importante foi a Maceió: Jorge Amado e Aurélio Buarque de Holanda, dois velhos amigos do romancista, falaram do homem Graciliano e de suas obras. Encerradas as homenagens em Maceió, quando os ilustres convidados já haviam se despedido, convidei d. Heloisa Ramos, viúva de Graciliano, para um tour pelos lugares, no interior do Estado, onde o romancista nasceu, viveu e escreveu os primeiros livros. O convite foi prontamente aceito. O roteiro Maceió – Quebrangulo – Viçosa – Palmeira dos Índios fielmente cumprido. Quando estive pela primeira vez em Palmeira do Índios, estranhei não ter encontrado na cidade qualquer indicação – um nome de rua, um busto, uma placa evocativa – que testemunhasse a admiração dos palmeirenses por Graciliano Ramos, que na cidade viveu alguns anos decisivos de sua vida e onde escreveu dois de seus melhores romances – Caetés e São Bernardo. O mesmo acontecia em Quebrangulo, berço do grande romancista, a menos de 30 km de Palmeira dos Índios: também ali, no decadente lugarejo apertado entre pirambeiras, até 1972 a presença de Graciliano só existia na claudicante lembrança de algumas poucas pessoas, velhíssimas, que o haviam conhecido criança.
1978. Folguemos todos em saber que a situação é bem outra. Em Quebrangulo o prefeito Aloísio de Góis estava prestes a conseguir os cem mil cruzeiros de que necessitava para a compra do casarão, na hoje praça dr. Getúlio Vargas, onde Graciliano nasceu. Para isso, ele me conta, “tive que suar muito e me munir de uma paciência de mendigo de feira”. • Continente julho 2007
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O Brasil na ótica de Verger Viaja pelo Brasil a exposição itinerante com fotos do fotógrafo francês apaixonado pelo País, Pierre Verger Mariana Oliveira
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lheio à teoria e à rigidez acadêmica, o francês Pierre Verger (1902–1996) deixou um legado que é um verdadeiro estudo antropológico sobre o Brasil. Depois de peregrinar pelo mundo fugindo do universo da burguesia francesa, Verger encontrou a liberdade que buscava no Brasil, nos terreiros de candomblé. Quando desembarcou na Baía de Todos os Santos, em agosto de 1946, apaixonou-se pela terra e principalmente pelo povo tupiniquim e terminou ficando. Essa paixão pelo povo brasileiro, da cidade ou do campo, está expressa em seu acervo de fotografias que ganha um recorte especial inédito para marcar as comemorações dos 60 anos da sua chegada ao país, iniciadas no ano passado. A exposição já passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre e Curitiba, com mais de 290 imagens realizadas na primeira década de sua temporada brasileira. As fotos selecionadas sob a curadoria do também francês Alex Baradel – da Fundação Pierre Verger, na Bahia – formam um grande mosaico do cotidiano, da arte e da história brasileira, com imagens do frevo, cavalo-marinho, carnaval, literatura de cordel, embarcações de Penedo, vaqueiros, entre tantas outras alegorias que fazem o Brasil. No total são 18 temáticas, algumas quase desconhecidas pelo grande público, que têm como referência apenas seu trabalho vinculado à cultura afro-brasileira. “A exposição enriquece nosso momento cultural e ao mesmo tempo nos orgulha. Solicitada em diversos países e por diferentes públicos esta fantástica exposição vem resgatar a memória da forte influência na complexa relação entre a África e o nordeste do Brasil”, explica Margot Monteiro, diretora do Museu do Estado, que está negociando a possibilidade de trazer a mostra a Pernambuco. Segundo o curador, 1/3 das fotografias exibidas foram feitas nas andanças de Verger por Pernambuco, daí a importância de virem ao Recife. A última exposição do fotógrafo na cidade aconteceu em 2002, no Instituto Cultural Bandepe, e estava centrada nas imagens da cultura negra. “É muito
Acima, o fotógrafo Pierre Verger. Ao lado, Festa dos Navegantes, Salvador, 1948
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Poetas populares, Salvador, anos 50
Frevo, Recife ,1947
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Acima, Carnaval, Rio de Janeiro,1940 – 1941 Ao lado, Colheita de caroá, Bom Nome, 1947
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importante que essa exposição visite Pernambuco porque boa parte das imagens foi feita no Estado e são pouco conhecidas. O material sobre o frevo, por exemplo, ganhou destaque este ano por conta dos 100 anos do frevo”, explica Baradel. Essa conexão com Pernambuco também está expressa na trilha sonora de Antúlio Madureira que acompanha a parte interativa da exposição – uma sala com projeções de 800 imagens do fotógrafo e outra com computadores que “linkam” Verger a outras referências. Observando suas fotos em preto e branco, realizadas com uma rolleiflex, que retratam o cotidiano e a diversidade cultural dos anos do pós-guerra no Brasil, percebe-se não apenas uma referência ao passado, mas também uma atualidade pulsante, que reflete a memória da pobreza e das desigualdades sociais, ainda muito fortes neste Brasil do século 21. “Verger transcende o fato histórico, ele consegue fazer um trabalho muito mais alegórico que histórico. É atemporal”, diz Baradel. Além do rico acervo fotográfico, o francês quase brasileiro, que adotou, em 1953, o nome Fatumbi – “nascido de novo graças ao Ifá” –, por conta de seu interesse extremo pela religiosidade africana, deixou algumas publicações importantes sobre o candomblé e sobre a cultura africana de forma geral. Entretanto, o fotógrafo, etnólogo e historiador jamais foi afeito à rigidez acadêmica e à ortodoxia científica. O que caracteriza todo o seu trabalho, seja ele fotográfico ou não, é a liberdade, palavra fundamental para compreendê-lo. “Pierre Verger é talvez o único homem livre que conheço”, declarou Théodore Monod, em 1954. • Continente julho 2007
Festa dos Navegantes, Salvador, 1959
Vitalino, Caruaru ,1947
Canudos, 1946
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Fotos: Gina Lollobrigida
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Um mito chamado
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FOTOGRAFIA Considerada a maior estrela do cinema italiano, Gina Lollobrigida trocou a tela grande pela fotografia, pintura e escultura Fernando Monteiro
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que torna uma atriz uma estrela? Beleza e talento? Sorte e marketing? Carisma e papéis talhados para ela?...A pergunta ronda o cinema há quase um século (incluindo atores transformados em astros, evidentemente – mas que os outros cuidem deles). Aqui, eu pergunto sobre as divas – na nuvem do seu mistério, que pode (e deve) ser investigado de muitas maneiras. Conseguiria a indústria – tão poderosa – do cinema alcançar a suprema mágica de fabricar uma Vênus, de forjar uma Garbo, de inventar um mito, digamos, a partir do nada “transformável” naquele tudo inextrincável de carisma e sorte, talento, publicidade e beleza que faz de uma estrela uma estrela, no sétimo céu da chamada sétima arte? E quem ainda chama o cinema de “sétima”...? Quase ninguém. É um apelido do passado – quando existiam verdadeiras estrelas. Mesmo então, provavelmente ninguém (também) saberia explicar o que fazia surgir um mito no céu pintado dos estúdios, poderosa e misteriosamente – onde antes só havia a carne frágil de starlets lutando por um lugar ao sol. “Poderosa” é, por sinal, a palavra ideal para a mulher que é nosso assunto: a filha de um carpinteiro de Subiaco, pequena cidade da região do Lazio, italianinha nascida no dia 4 de julho de 1927.
Garota romana passa e desperta a admiração dos rapazes diante da Escadaria Espanhola
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No alto, flagrante da vaidade masculina. Acima, o ator e poeta Eduardo De Filippo: jogo de espelhos
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Ainda garota morena da província, ela participou de concursos de beleza – naquela Roma típica de Fellini e das fotonovelas, meio grega e meio brega no cultivo da beleza das belas mulheres. Depois, ela conseguiu chamar a atenção de um caça-talentos com pinta de gigolô de Trastevere, e assim estreou num estúdio de cinema latinamente cheio de gritos de comando e maccaroni no intervalo das filmagens de Aquila Nera, um ano depois do final da guerra que devastara o seu país. No mesmo ano de 1946, faria mais dois filmes: Elisir d'Amore e Lucia di Lammermoor. Apesar de muito requisitada, o sucesso de verdade só viria em 1952, quando a jovem atriz estrelou Fanfan la Tulipe – na ponta do cinema comercial – e Esta Noite é Minha, na ponta mais artística, dirigida por mestre René Clair. E foram os franceses que, então, de imediato, batizaram de lollobrigidienne a qualidade de magnetismo animal que a protagonista trouxe para ambos os filmes, a partir de um dos rostos mais bonitos já filmados por uma câmera 35mm. Claro que estamos falando de Gina Lollobrigida (ou – simplesmente – La Lollo). Os fãs de Sophia Loren que me desculpem, mas está fazendo 80, este mês, a maior estrela do cinema italiano. Par da Loren na trajetória internacional, Lollobrigida atuou em obras tão refinadas como O Diabo Riu por Último – comédia de humor negro de John Huston,
fotografia realizada em 1954 – e co-estrelou filmes tão populares como Trapézio, de 1956, ao lado dos astros hollywoodianos Burt Lancaster e Tony Curtis. Num dos seus últimos filmes (Woman of Straw, 1964), Gina comprovou seu alto talento, mais uma vez ao lado de uma dupla de atores estimados pelos dotes dramáticos (Sean Connery e o shakesperiano Ralph Richardson). Pouco a pouco, entretanto, ela foi abandonando os estúdios e as locações, para desenvolver um raro olhar de fotógrafa, ocupando a aposentadoria cinematográfica não com as atividades de “perua” da Loren, mas com uma câmera fotográfica através da qual já homenageou a Itália, a sua cidadezinha natal, seus amigos célebres e seus compatriotas anônimos, nas ruas que percorre como uma cidadã qualquer, de óculos escuros. Em tempo: no início deste ano, os Correios de San Marino homenagearam a atividade artística da atual embaixadora da boa-vontade da Organização Mundial para a Agricultura e Alimentação (FAO), com quatro selos
dedicados à fotógrafa, à pintora, à escultora e à “atriz italiana número um”, segundo os Correios da pequena república. O selo de 0,85 euros mostra GL com a máquina fotográfica ao pescoço – contra o fundo de uma das fotografias em que tentou retratar a “Índia profunda”. O selo de 0,65 euros traz um auto-retrato a carvão de Lollobrigida, e o selo de 1 euro apresenta a homenageada numa cena do filme O Corcunda de NotreDame (1956), ao lado de uma das esculturas em bronze da sua autoria. O selo mais caro – de 3,20 euros – documenta o encontro da bela atriz com a feiinha (por fora) madre Teresa de Calcutá, em foto tirada no mês de março de 1990. Resta que a Posta italiana faça o mesmo em torno da atriz ainda viva – e ainda fotografando – na Roma que ela ama. Em modesta homenagem desta Revista, os leitores podem apreciar um pequeno ensaio com algumas das mais expressivas imagens obtidas pelo mito chamado Lollo. •
Cena de rua, em Roma. A fotógrafa Gina Lollobrigida esmerou-se em captar aspectos característicos das cidades italianas Continente julho 2007
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ENTREMEZ Ronaldo Correia de Brito
E se Deus não fosse brasileiro? Como há muito tempo perdi a fé em Deus e no Estado Brasileiro, eu sofri
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i a foto de uma enfermaria de hospital americano durante a epidemia de gripe espanhola que matou mais de 20 milhões de pessoas, nos anos 1918 e 1919. Na imagem em preto e branco, aparecem dezenas de camas arrumadas em duas fileiras, num pavilhão comprido, em que mal se enxerga o fim. Não há revestimento de azulejo nas paredes, o que revela que a enfermaria foi improvisada. Como se não bastasse a calamidade da Primeira Guerra Mundial, veio outra em seguida. Quem escapou de morrer por um balaço de canhão ou fuzil, corria o risco de não sobreviver ao ataque do vírus da influenza. A representação do sofrimento pela gripe não lembra em nada as terríveis pinturas a óleo da peste bubônica, feitas por artistas da Idade Média. A ausência de cores fortes como o vermelho e o amarelo talvez contribuam para essa diferença. Na foto americana, o preto e o branco, a sombra e a luz sugerem silêncio e calma, uma quase placidez. Mas será apenas pelo efeito das cores e da luz que os artistas alcançaram comunicar gradações diferentes do horror? No retrato da epidemia espanhola a ordem do ambiente, a disposição dos móveis e a postura de médicos e enfermeiras também contribuem para essa aparente serenidade. Os pacientes estão deitados em camas, com livros abertos nas mãos, parecendo concentrados na leitura. Ao vê-los, ninguém imagina que sofrem de febre, dores musculares intensas, cefaléia, falta de ar e outros sintomas. Por que diferem tanto as imagens? Os pintores medievais viam epidemias, guerras, doenças e morte como sobrenaturais, castigos divinos por pecados cometidos. Num plano, anjos tentam salvar os justos e demônios arrastam os maus para o inferno. Noutro, devassos são cozinhados em caldeirões com azeite fervendo ou sofrem empalados. A sexualidade aparece disforme e patológica, pois a Igreja Católica reprimia o Eros e suas manifestações. Nada mais adequado que simbolizar na peste bubônica o castigo pelos excessos. No terceiro plano de um quadro, no mais elevado céu, Deus contempla os horrores do mundo terreal, interferindo vez ou outra através de seus anjos, a favor deste ou daquele piedoso. Não lembro se existe na fotografia americana, no alto de alguma parede, a imagem do Cristo. Esse crucifixo tão comum nos pavilhões dos hospitais brasileiros, mantidos na maioria por instituições católicas, não deveria existir nos Estados Unidos, um país em
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que predominou o protestantismo, sobretudo calvinista. Na foto, também é possível a leitura de uma hierarquia, bem diversa da que descrevemos na pintura medieval. Já me escapam detalhes, por conta do tempo em que a vi. Mas lembro que os pacientes estão deitados em camas de ferro, supostamente pintadas de branco, e acima deles, firmes e de pé, os médicos e as enfermeiras. São eles os representantes de uma nova hierarquia de poder, não mais religiosa, a Ciência. Somente ela explica as doenças e pode curá-las. É possível que o artista que retratou a cena desejasse expressar a nova ordem do mundo, num país que desde a metade do século 19 cantava através dos seus poetas as conquistas do progresso, da tecnologia e das ciências naturais. Deus até poderia agir, mas se o fizesse, seria através de mapas e roteiros traçados no plano terreal, em que tudo se explica nos fenômenos físicos, químicos e biológicos. Na fotografia, feita num hospital do Kansas – mas sua existência já não possui importância, pois um raciocínio se construiu em torno dela, atribuindo-lhe realidade –, o que mais impressiona é a serenidade dos pacientes, entregues à leitura, numa representação da busca do conhecimento. O fotógrafo parece conhecer a pintura medieval e sua escatologia, o terror em que a Igreja Católica manteve subjugados os seus fiéis. Professo de uma nova religião científica, ele tenta nos convencer de que na doença já não existem dores, esgares, nem pânico, e que ali todos esperam a cura, cheios de fé em um novo deus científico. Por que a lembrança dessa fotografia retornou ao meu consciente, se ela estava guardada no esquecimento? Acho que me impressionou a imagem de americanos lendo em locais públicos. Num avião de Nova York para San Francisco, esperei quase uma hora pela decolagem. Sentados nas poltronas, os 220 passageiros liam livros, jornais e revistas, trabalhavam ou se divertiam em laptops, ouviam música nos iPods. Nada foi informado pelo comandante de vôo e ninguém se agitava nem fazia perguntas. Acho que o único ansioso era eu. Após cinqüenta minutos de espera o comandante pediu desculpas pelo atraso e informou que um nevoeiro impedira a decolagem, e que agora seria dado início aos procedimentos de partida. As pessoas continuaram em suas atividades. Perguntei-me se elas também sentiram angústia durante esse tempo e pareceu-me que não. Acho que além de acreditarem na tecnologia, elas também confiavam na ação do Estado. Talvez pensassem que nada poderiam fazer além de esperar. Que em qualquer situação alguém estaria agindo na defesa dos seus direitos, cuidando em protegê-las e respeitá-las. Como há muito tempo perdi a fé em Deus e no Estado Brasileiro, eu sofri. E é bem possível que continue sofrendo pelo resto dos meus dias. •
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AGENDA/MÚSICA
Confluências barrocas
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harmonia de um violino fabricado em 1699, tocando peças compostas em 1720, dentro de uma igreja construída em 1710. Uma configuração ideal para se ouvir música barroca, restando se certificar de quem toca o violino. Pois quanto ao DVD Bach in Tiradentes não há essa preocupação: o executante é o cipriota Haroutune Bedelian, vencedor aos 20 anos da BBC Concerto Competition. O instrumento é um Rogeri, fabricado em Brescia, na Itália, que dá voz à obra para violino sem acompanhamento de Bach, dentro da Igreja Matriz de Santo Antônio, em Tiradentes, Minas Gerais. A idéia do violoncelista David Chew, amigo de Bedelian, rendeu uma descoberta que elevou a qualidade da gravação: a ressonância resultante da forma alongada da construção e do antigo assoalho de madeira, sob o qual existe o vazio de túmulos. Embora desconhecido dos brasileiros, Bedelian vem com as “cartas de recomendação” de Chew e do violista e maestro Russell Guyver. Mais do que ter “credenciais”, restaria saber se ele executou bem o repertório. Outra preocupação a menos. Bach não admite aventureiros e as três Partitas e três Sonatas para violino solo são tidas por partituras máximas para o instrumento. Somente outros violinistas exímios poderiam, para fazer contestações (se é que há alguma em Haroutune). Cabe ao ouvinte (e admirador) eleger sua versão preferida, dentre estas e as existentes em CD. São extremamente populares as Suítes para violoncelo solo de Bach – Meneses e Yo-Yo Ma as impulsionaram aqui no Brasil – , mas as Sonatas e Partitas para violino solo nem tanto; e faltava um primeiro registro mundial em DVD. A vontade de falar bem de todo o DVD esbarra no ponto fraco da produção: a edição de imagem, cujos cortes de cena às vezes são toscos. Talvez pecado maior seja o making off, onde Chew e sua câmera de mão passam a maior parte do tempo passeando pela cidade e fazendo comentários pitorescos e pouco audíveis em inglês (ou seja, um vídeo de turista). A entrevista de Haroutune a Chew revela a percepção de um violinista acerca das obras em questão, mas as perguntas são fracas e parecem premeditar respostas. Porém, já que o importante é a música, a iniciativa é altamente válida, ainda mais porque valeram a pena os cuidados que evitaram ruídos externos de gravação. As duas horas de duração do vídeo resultaram de cinco noites na igreja, graças aos turistas diurnos, às interrupções da chuva e ao barulho dos carros. (Carlos Eduardo Amaral) Bach in Tiradentes – Haroutune Bedelian, Rob Digital, R$ 49,00. Continente julho 2007
De coração para coração Irmão menos conhecido do poeta Amadeu Thiago de Mello, Gaudêncio largou a carreira de técnico de futebol, depois dos 30 anos, para estudar música. Tocou violão, fundou a banda de jazz Amazon em Nova York e se projetou como percussionista especializado em instrumentos criados com materiais naturais, os quais classificou de percussão orgânica. Nos arranjos do violonista gaúcho Daniel Wolff, as melhores músicas de Thiago receberam tratamento camerístico e interpretação dele e do próprio Wolff, acompanhado de um quarteto de cordas com músicos da Sinfônica Brasileira e participação de Carlos Malta (sax e flauta) e Paulo Sérgio Santos (clarineta). Os melhores resultados da alta sensibilidade dos arranjos estão em “Ventos do sertão” e “Cunhã-tan do Andirá”, mas a recomendação é para o CD inteiro. (CEA) The Right Seasons – Heart to Heart, Ethos Brasil. R$ 21,50.
Camaradas de partitura O Quinteto Amizade é um conjunto formado por um quarteto de cordas com clarineta que se reúne para curtas temporadas, durante a visita anual do violista húngaro Sándor Thurzó a seus amigos no Brasil. Neste primeiro CD do conjunto, estão as primeiras gravações nacionais de “Sonho Oriental” (no arranjo original), do russo Alexander Glazunov, e de “Três epigramas para quarteto de cordas”, do belga naturalizado brasileiro Arthur Bosmans. A beleza de ambas as peças só é ofuscada pela do “Quinteto para clarineta op. 34 em si bemol maior” do alemão Carl Maria von Weber. Os quatro movimentos do Quinteto, desenvolvidos em forma clássica, transitam do bom humor mozartiano à serenidade dos adágios de Mendelssohn. Weber consegue uma expressão idiomática da clarineta que só viria a ser retomada anos depois por Brahms. (CEA) Quinteto Amizade interpreta Glazunov, Bosmans e Weber. Produção independente. R$ 34,00. Pedidos: www.musicaerudita.com
Abstrações sonoras O mineiro Harry Crowl, radicado em Curitiba, é um dos compositores brasileiros mais executados no exterior nos últimos anos e busca referências da literatura e das artes plásticas para recriar ambientes sonoros abstratos. Essa é, inclusive, a tônica do CD Espaços imaginários, cujo nome é tirado da primeira faixa, um trio para violino, violoncelo e piano. A criativa reconstrução do fugidio de Crowl revela uma continuidade em relação às outras duas peças do CD, de anos anteriores, “Imagens rupestres” e “Na perfurada luz, em plano austero – Quarteto de Cordas nº1”. As interpretações são do Trio Fibonacci, de Montreal, do George Crumb Trio, de Linz (Áustria) e do Moyzes Quartet, de Bratislava (Eslováquia). (CEA) Espaços imaginários – Harry Crowl. Clavicorde Records. R$ 22,80.
AGENDA/MÚSICA Forró e poesia Com letras baseadas em poesias de cordel, a Fim de Feira marca presença nas salas de forró do Recife e do interior, há três anos. Em 2006, a banda participou do Festival de Inverno de Garanhuns e do Fliporto; muito a ver para um conjunto que reverencia poetas populares como Pinto do Monteiro, Manoel Filó e Lourival Batista – e consagrados, como João Cabral de Melo Neto, Paulo Leminski, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira. Com alegria e despojamento, o repertório da Fim de Feira equilibra forró urbano e rural, inspirado em Jackson do Pandeiro, Sivuca, Dominguinhos e Jacinto Silva, e em Chico Buarque, Tom Zé, Edu Lobo e os tropicalistas. Batizando o primeiro CD, um título digno dos “causos” mirabolantes do Sertão: O incrível coice do preá. (CEA) Fim de feira – O incrível coice do preá. Independente. Pedidos: www.fimdefeira.com.br
Joyce canta Flávio Chamis Chamis abandonou o curso de engenharia aos 19 anos para estudar música. Formou-se e rodou meio mundo, encontrando o famoso maestro Leonard. Bernstein e se tornando assistente dele. A formação erudita que recebeu não o impediu de rascunhar bossas-novas e sambas-jazz, ainda que muitas referências tenham vindo do universo clássico. Coube a Joyce dar seu toque em seis faixas. A conseqüente sofisticação de algumas composições de Chamis não tira a simplicidade delas, como na “Modinha fora do tempo”, em ousado compasso 5/4, ou no “Tristan’ blues”, onde piano e gaita de boca fazem variações sobre o primeiro acorde do Tristão e Isolda de Wagner. As inspirações de peso também vêm de Guimarães Rosa, Tom Jobim e Pedro Álvares Cabral. Tudo isso torna o CD uma verdadeira especiaria. (CEA)
What's Mawaca? ete mulheres cantam a folclórica “Como quieres”, da região espanhola da Sanabria, e de repente desatam S num engenhoso baião-embolada. Isso é uma amostra do
Mawaca (palavra que em haússa, língua do norte da Nigéria, quer dizer algo do tipo “cantores-xamãs”). O Mawaca é formado pelo exótico e afinado hepteto vocal e por sete instrumentistas, que compõem o acompanhamento “acústico”: contrabaixo, violoncelo/flauta, violino, acordeom, sax tenor/soprano e dois percussionistas que revezam instrumentos de várias partes do mundo. Concebido das pesquisas etnomusicais de Magda Pucci, arranjadora e diretora musical do grupo, o Mawaca já lançou cinco CDs, reeditados recentemente num box especial, e agora divulga o primeiro DVD, gravado no Sesc Pompéia, em São Paulo. O show de uma hora e meia é um desdobramento do CD Mawaca pra todo canto (2004). O repertório passa por canções sefaraditas, japonesas, albanesas, da Ásia Menor, de Portugal e de escravos brasileiros e consegue fundir outras tantas, nipônicas, brasileiras e indígenas. A apresentação do convidado Thomas Howard contagia a platéia com seu violão flamenco em “Tango dos Chavicos”, enquanto a performance de Zuzu Abu encarnando a deusa Kali quase a leva ao transe. As sete mulheres do Minho parece ser o carro-chefe do show, porém o coco de zambê “Eh, boi!”, anotado por Mário de Andrade e transformado num baião minimalista, atrai as palmas do público. Encontrar semelhanças entre um horo búlgaro, um canto dos tupari de Rondônia e uma canção de runa finlandesa reforça a alta percepção de semelhanças em substratos musicais diversos. Há até algumas cirandas indianas e uma mescla de coco com maracatu indefectível. E tem mais no DVD... Enfim, como as sete vocalistas cantam, é “Mawaca pra qualquer santo”. (CEA) Mawaca pra todo canto. Azul Music. R$ 45,00.
Especiaria – Flávio Chamis. Biscoito Fino, R$ R$ 28,90.
Interior
Trompete
No imaginário das cidades de interior, são comuns as bandas de coreto tocando numa praça. É esse o clima que o clarinetista Nailor Proveta traz no seu novo trabalho: Tocando para o Interior. Natural de Leme (SP), filho de Geraldo Azevedo, Proveta faz, através das faixas, uma viagem musical que vai se aproximando dos tons e sons do meio urbano, o que evita um tom excessivamente saudosista. O CD é composto por valsas, choros e maxixes, alguns de autoria do próprio clarinetista e outros de companheiros como Edson Alves e Laércio de Freitas, entre outros.
De Recife a Paris, uma homenagem à capital do Frevo, é o primeiro CD solo do trompetista pernambucano Roque Neto. As composições que fazem parte do CD foram feitas durante os três anos em que Roque Neto esteve em Paris estudando no conservatório municipal, entre 2000 e 2003. O resultado final é uma mistura de frevo, maracatu, chorinho, valsa e forró. O trompetista convidou nomes ilustres da cena musical para acompanhá-lo no trabalho, entre eles Dalva Torres, Gildo Vieira e Valmir Chagas. De Recife a Paris, Roque Neto. Independente, R$ 10,00.
Tocando para o Interior, Nailor Proveta. Núcleo Contemporâneo, R$ 21,00. Continente julho 2007
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O álbum Ecce cor meum recebe o maior prêmio da música clássica inglesa e destaca trajetória erudita do ex-beatle, iniciada há mais de 15 anos Carlos Eduardo Amaral
Paul McCartney em concerto
N
o último dia 3 de maio, a expectativa na entrega do Classical Brit Awards inusitadamente girou em torno de dois roqueiros da velha guarda que enveredaram na música clássica e concorriam a “Melhor álbum do ano”, fato inédito na história da premiação. Um foi Sting, que lançou no ano passado Songs from the Labyrinth, no qual interpreta canções do renascentista conterrâneo John Dowland (1563 – 1626), acompanhado pelo alaudista bósnio Edin Karamazov; o outro foi Paul McCartney, que acabou levando o prêmio com Ecce cor meum (Eis meu coração), um oratório em quatro movimentos, para soprano, coro misto, coro infantil masculino e orquestra. O álbum de Paul McCartney desbancou não somente Sting, mas o tenor Alfie Boe, o barítono galês Bryn Terfel e outros seis CDs. A eleição da categoria não foi realizada pela crítica; votaram os leitores da rádio Classic FM, organizadora do evento, e da Classic FM Magazine, a revista da emissora. Claro que teve peso uma terceira categoria de eleitores: os fãs de McCartney, equivalente a não-se-sabe quantas vezes a soma dos outros nove concorrentes e que lhe dão uma força em qualquer ocasião, mesmo tratando-se de incursões em outros gêneros.
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O ex-beatle acaba de ser premiado por um trabalho erudito. Na página ao lado, Paul e seus companheiros no início da carreira
Thiago Suruagy/Divulgação
Ano passado, a estréia mundial de Ecce cor meum, na Inglaterra, e a estréia americana, em pleno Carnegie Hall, mais do que premières em si, tornaram-se eventos de tietagem, conforme o New York Times cobriu: “De um camarote central, cercado por celebridades da mesma categoria, o compositor distinguia os gritos, os cliques das câmeras e as bandeirolas em uma casa cheia, que parecia quase relutante em voltar a atenção para o palco”. Ao voltar-se à peça em si, o repórter Bernard Holland não optou pela moderação: “A grandeza da sensibilidade de McCartney esconde sua insignificância. Aumentando sua intensidade, ela não se aprofunda em qualidade. Ao contrário, ela afunda a música e a mensagem em um tipo de sentimentalidade viscosa. (...) Usando um vocabulário de cordas cantantes, golpes nos tímpanos, floreios de metais e explosões virtuosísticas do órgão, o Paul McCartney que avaliamos se traduz pobremente”. Um julgamento meio pesado para um aprendiz esforçado, e que merecia ser dirigido a investidas anteriores de Sir James Paul McCartney. Ecce cor meum é o quarto CD de uma “carreira erudita” debutada em 1991. Naquele ano, o Liverpool Oratorio (Oratório de Liverpool) atraiu a atenção da mídia e lançou mão de cantores solistas de peso na estréia. O tenor Jerry Hadley recebeu o papel do protagonista Shanty, que nasce em plena Segunda Guerra, mata aula na escola, perde o pai ainda jovem, casa-se com Mary Dee (personagem de Kiri Te Kanawa), passa por instabilidades financeiras e conjugais e vive a felicidade de ter o primeiro filho. Shanty podia atender por Paul, pois o enredo é, (mal) disfarçadamente, autobiográfico. O Oratório de Liverpool é um oratório no sentido romântico, ou seja, uma peça do gênero que não aborda necessariamente um tema sacro – que resulta, portanto, numa ópera para sala de concerto, sem encenação – e foi composto em colaboração com o maestro Carl Davis, já que Paul McCartney só tivera algumas lições de piano na infância e nunca aprendeu notação musical. A ajuda era imprescindível para tarefas mais complexas, a exemplo da estruturação de idéias melódicas, da orquestração e da incrementação da harmonia. A má recepção da crítica à iniciativa de um artista pop se aventurar pela música clássica não atrapalhou a vendagem: o CD permaneceu no topo mundial dos álbuns clássicos por várias semanas. O elementar impedimento da falta de alfabetização musical não inibiu a EMI, com quatro anos de antecedência, de encomendar a Paul uma grande obra para
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celebrar o centenário de fundação da gravadora. Daí surgiu Standing stone (1997), um poema sinfônico (mais propriamente, coral-sinfônico) em quatro movimentos que comportam 19 sessões. Em geral, os poemas sinfônicos são em movimento único; a divisão é justificada pelos 75 minutos de duração da peça, baseada num poema (literário) de Paul que recria o mito do surgimento do universo, da vida e da existência humana a partir do ponto de vista celta. Além do poema sinfônico, duas telas a óleo derivaram dos versos originais. Imagens: Divulgação
Da desordem intencional das primeiras notas – tocadas sem dedilhado nas cordas e nos sopros, conotando o caos e a incipiência – ao canto final do coro – que balbucia e forma uma letra depois de passar outros movimentos entoando vocalises –, a música celta é o cerne dos temas, exceto por uma pincelada atonal, na cena Lost at sea. Desta vez, um software e um teclado especial permitiram a Paul McCartney caminhar sozinho, sob orientações técnicas de Richard Rodney Bennett e outros amigos. Standing Stone (que quer dizer “a pedra que jaz em pé”, um menir à la Stonehenge) foi o último trabalho de antes do falecimento de Linda McCartney e ostenta uma importante referência dela. A foto de capa do CD, tirada por Linda, é oriunda do primeiro CD de Paul (McCartney, 1970). Enquanto Standing Stone estava sendo concebido, surgiram outras quatro peças isoladas. Duas delas, Spiral e A leaf, integram o terceiro CD da linhagem. Ocorre que Working Classical (1999) está mais para uma coletânea de arranjos: das 14 faixas, nove são reinstrumentações para quarteto de cordas de canções pop, extraídas de cinco CDs anteriores de Paul. As inéditas Haymakers e MidContinente julho2007
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MÚSICA wife, para quarteto, e Tuesday, para orquestra, completam o repertório instrumentado por R. R. Bennett e Jonathan Tunick. Em A leaf, McCartney ainda arriscou um trecho em estilo mozartiano alla turca. Haymakers, Midwife e o arranjo de Junk são peças plácidas e graciosas; Warm and Beautiful e My Love guardam uma emotividade tipicamente britânica, com melodias românticas mas não passionais. Maybe I'm amazed é bem ritmada e fiel à peça original. Isso tudo é dito no que se refere à atmosfera das obras, porque a qualidade delas oscila; em boa parte das composições, faltam densidade harmônica e um melhor aproveitamento do quarteto, principalmente do violoncelo. Quanto ao sucesso de vendas, tanto Working Classical quanto Standing Stone conseguiram emplacar nas paradas clássicas do Hemisfério Norte. Em 2000, surge o CD Garland for Linda, cujo objetivo era arrecadar fundos para a organização The Garland Appeal, estabelecida para combater o câncer de mama. Não se trata de um álbum autoral (por conta disso, não contabilizado no catálogo erudito de Paul) e,
sim, de uma coletânea de peças corais de compositores ingleses de várias épocas, como John Rutter, John Taverner, Ralph Vaughan-Williams e Micheal Berkeley. Paul McCartney dá uma de maestro e rege sua Nova, a primeira criação pós-refrigério, num ato que significou o fim do luto pela morte de Linda. A auto-referência da criação musical erudita de Paul parece evidente até aqui. O Oratório de Liverpool (cuja adaptação para apresentação cênica está sendo preparada pela atriz Kate Robbins) retrata a vida do próprio McCartney. O poema Standing Stone inspirou as duas telas e o poema sinfônico e um revival discográfico compõe Working classical. Linda pode ter sido a forçamotriz, considerando só as peças clássicas, de Nova, em Garland for Linda, mas ela se fez mais presente em Ecce cor meum, iniciado em 1998 e concluído em 2005. É interessante assinalar três pontos desse evocativo “Réquiem para Linda”. Apesar de Ecce cor meum possuir frases em latim, nada complexas e que fazem a mídia divulgar o libreto como bilíngüe, elas não somam mais de 10% dos versos. Apesar de Ecce cor meum ser nominal-
A gênese do Sgt. Pepper Álbum que instigou a história da pop music completa 40 anos A passagem dos Beatles pelo mundo foi arrasadora, rápida e revolucionária. Desde 1962, quando eles começaram a invadir as paradas de sucesso do mundo inteiro, sua influência espalhou-se por áreas distintas do comportamento. Houve Mary Quant e a minissaia, popularizou-se a idéia da criação de uma nova civilização, desenvolveu-se e alastrou-se o estilo do mundo hippie com suas cores, amor livre e drogas, falou-se exaustivamente de paz e amor, numa época de conflitos, onde a guerra do Vietnam era o seu maior contraponto. É emblemático que às portas do cabalístico ano de 1968, os Beatles tenham lançado Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, o álbum que mudou a história da música contemporânea. Não há dúvida de que foi também um marco divisório na carreira da banda. Os Fab Four, exaustos com o ritmo das turnês, as dificuldades de locomoção entre os países e até sofrendo ameaças físicas, devido a recentes declarações de John Lennon de que eram mais famosos que Jesus Cristo, acendendo ódios e fogueiras de discos na direção Continente julho 2007
deles, retirava-se das apresentações ao vivo e passava a gastar mais tempo em estúdio. Agora tinham todo o tempo do mundo para “fazer a cabeça” e burilar idéias e experimentos que tinham começado à altura de 1965, entre os discos Help, Rubber Soul e Revolver e que incluíam o uso de distorções, loops, feedbacks e toques orientais, bem como o uso de orquestração e instrumentos estranhos ao rock da época. No disco, cuja gravação foi a mais longa da carreira da banda – 700 horas de estúdio, de dezembro de 1966 a abril de 1967 –, há momentos de psicodelismo, música clássica, rock puro e progressivo, mudanças bruscas de andamento, vinhetas, assim como grandes elaborações de produção a cargo de George Martin (considerado o quinto beatle), que teve de conseguir, além de várias trucagens de estúdio, gravações de ruídos bucólicos, como os sons de um galo cantando, relinchos, mugidos, despertadores, uma orquestra de 40 músicos para tocar sem partitura e assim por diante. Incomuns para os padrões de
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Reprodução
mente um oratório, não tem a linha narrativa que caracteriza esse tipo de obra; é, a rigor, uma cantata. E apesar dos oratórios tradicionais remeterem a episódios bíblicos, Ecce cor meum é um caso único de oratório deísta, pois evoca não a Deus, mas ao Espírito: “Spiritus, spiritus, lead us to love”. Se Paul fosse aluno de composição, teria merecido uma boa nota em sua emulação dos oratórios ingleses – só não agradaria aos professores mais progressistas. O crítico Allan Bozinn, também no New York Times, avaliou os recentes mergulhos de vários roqueiros no universo erudito, e, sem tocar nos méritos das experiências, observou que “Astros do rock que se interessam por música clássica são grotescamente conservadores. Eles podem tocar os materiais musicais mais eletrificados, distorcidos e de acentuação agressiva, mas quando decidem escrever música clássica, ou o que eles pensam ser música clássica, em-
Paul, John e George Martin em gravação à 1h37
então, as letras, além de alusões ao uso de drogas, incluíam sonhos à Alice no País das Maravilhas (“Lucy in the Sky with Diamonds”), amizades (“With a Litlle Help from my Friends”), circo (“Being for the Benefit of Mr. Kite”), crônicas do cotidiano (“A Day in the Life”) e antecipações de um futuro, à época, bem distante (“When I'm Sixty-Four”). Ironicamente, Paul McCartney, hoje com 65 anos e, ao contrário dos boatos recorrentes que cercavam o disco, sempre insinuando sua morte, é o único vivo e trabalhando, já que John foi assassinado, George partiu do mundo material e Ringo é um morto-vivo musical. Tratava-se de um álbum conceitual, onde cada canção parecia estar ligada uma à outra praticamente sem interrupções. O seu grande legado foi tirar o rock da repetição exaustiva e mecânica dos shows ao vivo, para a experimentação (sim, experimentava-se de tudo, naquela época) sem limites dos estúdios.
punham uma pena em vez de uma caneta. Com a exceção notável de Frank Zappa cujos rascunhos refletem a fascinação dele por Edgard Varèse e outros modernistas, músicos de rock parecem pensar que as convenções do século 19 são o idioma atual de música clássica”. Ecce cor meum se enquadra nessa constatação. Mas o êxito da obra se deve justamente por tocar no gosto da maioria dos apreciadores de música clássica, como opinam os blogueiros Darren De Vivo, da rádio WFUV de Nova York, e David R. Dunsmore. “Surpreende-me que alguém que escreveu para uma das correntes principais da música popular de nosso tempo também possa compor um trabalho aceitável no campo clássico. Independentemente de observações críticas secundárias, Ecce Cor Meum é um trabalho especial”, diz De Vivo, enquanto Dunsmore opina entusiasmado: “Adoro a jovem natureza positiva de Paul e sua inventividade melódica. Posso ver Ecce cor meum se tornando uma peça muito querida, por que não? Nem toda grande música precisa causar rugas na testa ou deixar o ouvinte emocionalmente esgotado”. •
Até a capa do trabalho foi um caso à parte. Foi criada por Peter Blake, artista plástico inglês, a partir de idéias dos Beatles. Trazia uma colagem de fotos de pessoas presentes em seu universo: Elvis, Dylan, Oscar Wilde, Aldous Huxley (autor de Portas da Percepção), Marlon Brando, entre muitos outros. Os caras, à frente, em uniformes militares vitorianos com instrumentos de banda marcial. E, as caras, totalmente mudadas, com largos bigodes, costeletas, óculos de aro fino e uma atitude de maturidade, em contraponto à época dos terninhos e caras de almofadinhas, obrigados a exibir por Brian Epstein, empresário desde o início e que, um mês depois do lançamento do álbum, faleceu por dose excessiva de drogas. Foi a primeira a conter as letras das músicas impressas. Também incluso um colorido protetor de papel para o vinil e um brinde com várias figuras para serem recortadas, inclusive um bigode de papelão. O fim dos Beatles deixou toda uma geração viúva e até hoje há lamentos. Só que ao contrário do que acontece com outros grupos que se desfizeram, o mundo ainda ouve suas canções. Mesmo quem não viveu o tempo deles tem saudade. Porque esta é uma paixão que passa de pai para filho. (Luiz Arrais) • Continente julho 2007
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Cantando a terra Três pernambucanos, Geraldo Azevedo, Geraldo Maia e Zeh Rocha lançam novos discos no mercado José Teles
“T
odos cantam sua terra, eu vou também cantar a minha”. Os versos do poema “Minha terra”, de Casimiro de Abreu, é o link que une os novos discos de Geraldo Azevedo O Brasil existe em mim, Geraldo Maia, Samba de São João, e Zeh Rocha, Tear. Curioso é que enquanto estes veteranos assumem, sem pejo, sua pernambucanidade (termo meio exaurido pelo uso indiscriminado, mas que define bem estes trabalhos), os músicos da nova cena do Estado correm do regionalismo como o capeta da cruz. Deve ser o tal generation gap, como se costumava dizer em tempos outros. O petrolinense (do distrito de Jatobá) Geraldo Azevedo lança disco de inéditas num ano especial para ele. Há quatro décadas, Geraldinho compôs com Carlos Fernando a marcha-de-bloco “Aquela rosa” que, defendida por Teca Calazans, ganhou a II Feira Nordestina de Música Popular Brasileira. Detalhe: “Aquela rosa”, foi a composição de estréia tanto de Geraldo Azevedo quanto de Carlos Fernando. No encarte de O Brasil existe em mim (Geração/SonyBMG), Geraldo Azevedo se deixou fotografar em pleno São Francisco, que banha sua cidade natal. Nas canções ele não é tão explicitamente pernambucano, ao menos nas le-
Fotos: Divulgação
No sentido horário, Geraldo Azevedo, Zeh Rocha e Geraldo Maia: veteranos que assumem, sem pejo, sua pernambucanidade
tras, mas abre o repertório com um maracatu, “O que me faz cantar” (com Geraldo Amaral). Estão aqui o talentoso violonista e o não menos inspirado melodista. Características que marcam não apenas este CD, mas a obra de Geraldo Azevedo como um todo. “Chorinho de criança” (com Capinam), de cujos versos foi pinçada a frase que dá título ao disco, é um belo samba, cerzido por um trombone. “O paraíso agora” (com Fausto Nilo) é uma balada típicamente azevediana. Lembra, no início, “Dia branco”, na segunda parte assume um discreto balanço latino. A velha amiga, Elba Ramalho, dá uma canja no arrasta-pé, “São João Barro” (com Carlos Fernando). Esta seria para tocar no rádio, se o rádio ainda tocasse músicas assim. O timbre inconfundível da guitarra de Paul Rafael, abre a dylaniana, “Farol luar” (com Geraldo Amaral). O parceiro de longas datas, Alceu Valença, solta a voz no xote “Já que o sonho não acabou” (com Geraldo Amaral), canção que confirma que, aos 62 anos, Geraldo Azevedo não perdeu o pique. “Em sonho” é mais uma balada, suave, enquanto “O nome do mistério” é parceria póstuma com Torquato Neto, de quem Geraldo Azevedo tornou-se amigo pouco antes que o poeta piauiense cometesse suicídio. Esta letra permaneceu na gaveta por 35 anos (ele tem mais duas letras inéditas de Torquato). “Eu poderia dizer que agora é tarde/ E o nosso amor é outro/ Que o nosso tempo agora/ É o fim de tudo”, versos com a precisão da lavra Torquato Neto. “Você, minha ilha” (com Capinan), “Ver de novo” (com Zama, e participação da filha Clarice Azevedo), “Serena cor” (com Geraldo Amaral) e “Tudo é Deus” (única que não saiu da lavra de Geraldinho; é de Kalifa) completam o repertório de um artista que alguns acusam de não inovar, sem entender que, assim como o mestre João Gilberto, ele simplesmente refina um estilo todo pessoal de fazer música. Ressalva para o remix de “O paraíso agora”, mera curiosidade eletrônica. Continente julho 2007
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MÚSICA Zeh Rocha é da mesma turma de Lenine, Geraldo Maia, Lula Queiroga, Dudu Falcão, integrantes do que Lenine já chamou de “Geração imprensada”. Ou seja, um grupo de cantores e compositores que entrou em cena quando o rock brasuca tomava conta das paradas de sucessos e fazia tilintar as caixas registradoras das gravadoras. Eles nem faziam MPB tradicional nem eram roqueiros. Tiveram pois que habitar o limbo durante toda a década de 80. Assim como os demais, Zeh Rocha mudou-se para o sul maravilha, mas não se demorou tanto quanto, por exemplo, Lenine. Seu segundo CD, Tear, sai agora, uma preciosa coleção de 13 composições suas e com parceiros (Lenine, Jessier Quirino, Juliano Holanda, Erasto Vasconcelos, Lulu Oliveira). Todas sobre ritmo pernambucanos. A faixa “Secas de março” pode surpreender incautos, pela semelhança com “Águas de março”, de Tom Jobim. A música não apenas faz citações e paráfrases da canção de Jobim, mas também resgata um tema popular nordestino, do qual igualmente se valeu o autor de “Garota de Ipanema”. Zeh Rocha ratifica em Tear o domínio do idioma dos vários ritmos pernambucanos, com os quais compõe canções bem-estruturadas, harmônica e melodicamente, além das boas letras. Ele pode ir de ciranda (“Mar cirandeiro”), maracatu (“Salve o Rei do Congo”), ou o balanço afro-latino de “África é uma só”. Como cantor, está contido neste disco. Algumas faixas mereciam que soltasse mais a voz, ou apelasse para os “universitários”, quer dizer, para a a azeitada banda que o acompanha, Lulu Oliveira, Tostão Queiroga, Cesinha, Caca Barreto, entre outros (conta com participações especiais de Jessier Quirino, Carolina Pinheiro e Geraldo Maia). “Samba de São João”, de Geraldo Maia, nem é um disco de samba nem junino, mas a música é pernambu-
O Brasil existe em mim, Geraldo Azevedo, Geração SonyBMG, R$ 24,90. Continente julho 2007
cana da gema, embora pouco conhecida, ou pouco lembrada. O embrião do repertório está numa pesquisa de Renato Phaelante sobre compositores do passado em Pernambuco. Desde que voltou de Portugal (onde viveu por 10 anos), Geraldo Maia reincorporou-se à cena musical do Recife, mas trafegando sempre por mares nunca (ou raramente) navegados. Neste CD ele vai em busca das canções perdidas de João Pernambuco, Irmãos Valença, Luperce Miranda, Manezinho Araújo, Eustórgio Wanderley, Meira, Osvaldo Santiago e, por fim, mas não menos importante, Stefana de Macedo, cantora e compositora injustamente esquecida, não apenas em Pernambuco, mas no Brasil. Ela foi uma das pioneiras do disco no país. Desse pessoal Geraldo Maia interpreta pérolas como “Ronca o bizouro na fulô” (de João Pernambuco e Stefana Macedo), com participação do Arabiando, “Xô-xô”, (Luperce Miranda), “Por que me abandonas” (Eustórgio Wanderley), esta em dueto com Claudionor Germano, ou “Começo de vida” (Capiba). Entre as mais conhecidas estão “Serenta suburbana” (Capiba), e “Pra onde vai valente?” (Manezinho Araújo). As canções são antigas, mas este não é um disco passadista, e nem pelo fato de terem sido pelos arranjos, mas porque boa música não fica datada. “Samba de São João”, a música que dá nome ao disco, é uma embolada de Luperce Miranda, gravada em 1928 por outro grande do passado, esquecido no presente, Minona Carneiro. Da capa ao repertório, passando pelos arranjos e intepretação, este não apenas é um grande disco, é também o melhor trabalho solo de Geraldo Maia, que aqui recebe canjas de Geraldo Azevedo (em “Eternamente”, de Osvaldo Santiago e Aldo Taranto), e Azabumba (em “Pra onde vai valente?” de Manezinho Araújo). •
Samba de São João, Geraldo Maia, independente, R$ 15,00.
Tear, Zeh Rocha, independente, R$ 27,90.
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