Continente #081 - Fliporto

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Divulgação

EDITORIAL

Ariano Suassuna na Festa Internacional de Literatura de Porto de Galinhas, 2006

Estação das letras

U

m fenômeno interessante ocupa o calen­ dário cultural pernambucano nesses meses de agosto, setembro e outubro: uma espécie de “estação das letras”, acontecimento que coloca a Literatura definitivamente em nossa agenda, pelo menos sazonalmente. São três eventos seguidos – no Recife, em Porto de Galinhas e Olinda –, sem conexões entre si, exceto o tema. O 5º Festival Literário do Recife – A Voz e a Letra deu início à temporada, no mês de agosto, enfocando o perfil plurifacetado da literatura atual em sua relação intrínseca e privilegiada com as manifestações orais, escritas e gestuais. Este mês, terá lugar a 3ª Festa Internacional de Literatura de Porto de Galinhas – Fliporto, no litoral sul do Estado, no balneário de mesmo nome, a 60 km do Recife, a realizar­se entre os dias 27 e 30. O evento terá como destaque a literatura latino­americana e caribenha, com a presença de mais de 60 escritores de países diversos. Entre as muitas atrações da Fliporto, destaca­se a programação paralela da Fliportinho, que contemplará o público infanto­juvenil. Também o

Concurso de Poesia ao Vídeo, a Casa da América Latina e o lançamento de quatro antologias de escri­ tores latino­americanos durante os quatro dias da festa. Entre os nomes confirmados estão os dos escri­ tores Nélida Piñon, Thiago de Mello, Moacyr Scliar, Antonio Carlos Secchin, Ivan Junqueira e Sábato Magaldi, além de autores de vários países latino­ americanos. Por fim, em outubro, será a vez da 6ª Bienal Inter­ nacional do Livro de Pernambuco, fechando o ciclo da “estação das letras”. Assim, durante três meses, Pernambuco vive a curiosa experiência de três eventos literários sucessivos, o que, no mínimo, tem o mérito de colocar o livro e a leitura na pauta diária do per­ nambucano. A secção Documento desta edição aproveita a realização do Festival Internacional de Humor e Quadri­ nhos de Pernambuco (FIHQ) para abordar essa lin­ guagem que, hoje, vive um momento de ascensão, e é incorporada pela mídia e pelas diversas esferas artís­ ticas, adquirindo um status cult e um prestígio que nunca teve. • Continente setembro 2007

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CONTEÚDO

Divulgação

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A prêmio Nobel, Gabriela Mistral, é uma das homenageadas na Fliporto

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Grupo Corpo apresenta novo espetáculo

CONVERSA

MEMÓRIA

04 Gringo Cardia: "Ressignificar é o grande trabalho

47 Morre Joel Silveira, colunista da Continente

criativo contemporâneo"

BALAIO

TRADIÇÕES 50 Xilogravura de cordel completa 100 anos

10 A contraditória relação dos poetas com a delicadeza

CAPA 12 Fliporto, um mar de livros na festa literária

CÊNICAS 52 Grupo Corpo estréia espetáculo com música de Lenine 56 Plataforma Recife de Dança estuda discurso do corpo

15 Fliportinho, edição para crianças

AGENDA

ARTES 59 Badida, uma pintora apaixonada pela literatura

20 SPA das Artes vai estimular a produção

66 A relação das crianças com as obras de arte

LITERATURA

HISTÓRIA

74 A forte presença de D. Leopoldina por trás de D. Pedro I 26 Os contos concisos de Luís Arraes CINEMA 30 John Keats: Invenção e beleza, palavra e verdade 76 A simbologia do silêncio em Bergman e Antonioni 32 Kabalah Editorial abre espaço para os desconhecidos 33 A poesia em voz baixa de Heitor Araújo 34 Dona Tonha e seu jeito para o bailado e para a maldade CULTURA 86 As complexas relações da Cultura com a Economia 36 Agenda Livros

24 Livro de Cristovão Tezza pode ser eleito melhor do ano

MÚSICA

DOCUMENTO

38 Maior contralto da atualidade vem para a Mimo

89 HQs ganham status de arte e invadem nichos da cultura

42 Beatlemania perdura em Pernambuco 44 Coquetel Molotov integra os outsiders do Estado 48 Agenda Discos Continente setembro 2007


Flávio Lamenha

CONTEÚDO o açã ulg Div

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Imagem de Sin City: HQ no cinema

Ateliê da artista plástica Badida

Colunas

MARCO ZERO|Alberto da Cunha Melo 26 No túnel do tempo com Joaquim Cardozo

TRADUZIR-SE|Ferreira Gullar 64 Sem limites, não há liberdade nem rebeldia

SABORES PERNAMBUCANOS|Mª Lecticia Monteiro Cavalcanti 70 A comida da aristocracia portuguesa no tempo de D. João VI

DIÁRIO DE UMA VÍBORA|Joel Silveira 73 A prisão de Monteiro Lobato na ditadura Vargas

METRÓPOLE|Marcella Sampaio 88 As mulheres sexuais e maternais, ternas e ousadas de Dani Acioli

Acesse nosso endereço eletrônico: www.continentemulticultural.com.br

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CONVERSA

GrinGo CArdiA

“Eu sou o Gringo da periferia” Um dos principais nomes das artes gráficas do país, o designer e arquiteto Gringo Cardia, fala sobre suas criações nesse conturbado mundo visual e defende a estética vinda das ruas Olívia Mindêlo

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le nasceu gaúcho e Waldimir. Hoje ele é Gringo e tem sotaque carioca. Mais do que a simples aparência de galego estrangeiro que lhe rendeu o apelido no Rio de Janeiro, para onde se mudou ainda jovem, Gringo Cardia se tornou uma grife, o nome por trás das grandes criações em design de entretenimento no Brasil. É dele o cenário engenhoso da coreografia Vasos, aquele que desce ao palco cheio de peças chinesas penduradas, por entre as quais, sem poder vacilar, os bailari­ nos da Cia. Deborah Colker dançam no espetáculo 4 x 4. São dele, aliás, quase todas as cenografias do grupo. A fama de Colker também deve a ele, sem dúvida. Mas Gringo bem que poderia se chamar “Ataque Cardia” (com a licença do trocadilho), visto a quantidade de projetos que esse jovem de 50 anos dá conta por mês. São cenários para teatro, dança, passarela de moda e música, capas de disco, projetos de museu, vídeos, cli­ pes, sites, exposições e tudo que se possa imaginar em arte gráfica. Além disso, ele mantém uma ONG, a Spetaculu, onde passa a alunos da periferia um pouco do que aprendeu em sua intensa carreira de designer, arquiteto, enfim, “artista da imagem”, como se define. Este mês, ele realiza a primeira exposição de sua tra­ jetória, no Centro Cultural dos Correios (RJ), onde podem ser vistos os prin­ cipais trabalhos de seu currículo. Vários deles premiados.

Se deixar, eu faço um avião. Mas, às vezes, só se tem dinheiro para a bicicleta...

Imagens: Divulgação

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Cena do espetáculo Vasos, da Companhia Deborah Colker, cujo cenário foi projetado por Gringo Cardia

Você realizou recentemente a exposição Estética da periferia – diálogos urgentes, no Mamam – Recife, e, há qua­ se dois anos, iniciativa semelhante no Rio de Janeiro. Você aprendeu com a periferia, ou ela sempre foi uma fonte de inspiração? Sempre foi uma fonte de inspiração. Eu agora estou conseguindo, digamos assim, ser o mestre de cerimônia do trabalho da periferia. Antes eu usava mais nas minhas coisas, e ainda uso. Mas agora estou conseguindo abrir espaço para poder trazer os movimentos da periferia para a cena, dentro do possível. Então, mudou um pouco isso, mas eu sempre gostei da rua, de ficar ligado nela. Adoro esse universo caótico. Quando chego a uma cidade, a primeira coisa que eu quero é ir a um mercado, para ver o que é uma cidade de verdade. Porque ela pasteu­ rizada é igual em qualquer lugar do mundo. Essa globali­ zação destruiu muito o sentido de cultura no geral. Mas a cultura é muito forte, é viva. Aparecem coisas incríveis na sua televisão, mas você não tem grana para comprá­las, então você tem que reinventar. Ressignificar é o grande trabalho criativo contemporâneo. Você se autodenomina “artista da imagem”. Como é trabalhar com a linguagem visual num mundo em que ela está tão massificada? Na verdade, eu peguei o começo dessa explosão visual, porque nos anos 80, quando eu estava me formando na

faculdade de arquitetura, foi a época em que começou a aparecer o computador, as artes visuais explodiram... Como eu sou um curioso, que gosta de fazer tudo, além de ser arquiteto por formação, sempre fui um autodidata num monte de coisa. Sempre quis criar e inventar coisas. As pessoas, no começo, me chamavam de multimídia, porque eu trabalhava em várias coisas. Hoje todo mundo é multi­ mídia. Mas no começo era um pouco engraçado, porque eu peguei o início dessa fase. Para mim, é muito legal tra­ balhar em várias áreas, porque envolvem linguagens. E o que é melhor na área visual é você trabalhar com a lingua­ gem. As pessoas me perguntam o que eu gosto mais de fazer. Eu gosto de tudo, não gosto de fazer uma coisa só. E as pessoas perguntavam: “O que você faz? O que você é?” E eu não sabia responder, então eu falava “artista da imagem”. Mas o Gringo cenógrafo fala mais forte. Por quê? Acho que foi uma questão de destino, porque desde criança já fazia cenário na minha casa. Eu sou gaúcho, mas morava em Curitiba nessa época. Meu pai era da aero­ náutica e trabalhava com meteorologia, aí ele levava muitos papelões para casa e peças de transmissores franceses, aquela sucata toda, e eu ficava brincando com aquilo, de montar e desmontar. Eu também gostava de desenhar. Além disso, a gente morava num quartel e tinha um espaço muito grande para brincar. E aí eu fazia cenários, trazia um Continente setembro 2007


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CONVERSA

monte de mato para dentro de casa e desenhava o trem­ fantasma, e depois destruía.... Fazia a Roma antiga e depois botava fogo nela, queimava, ficava fazendo arte. Então, eu tinha uma certa vocação para desenhar e construir. Quan­ do fui fazer faculdade, não sabia se fazia artes plásticas ou arquitetura. Optei pela arquitetura, porque fiquei com medo de ficar duro e minha família não tem muito dinheiro. Mas foi ótimo, porque a arquitetura me deu uma base sólida para pensar as coisas. Por isso que a cenografia bate forte, porque é onde eu posso construir. Ainda trabalha com projetos arquitetônicos propria­ mente ditos? Trabalho. Eu não faço casas, edifícios. Já fiz alguns, mas logo no começo. Hoje, eu trabalho mais com design de interiores. Faço museus, fiz a parte interna do espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, que é todo tecnológico. Minhas criações são sempre arquitetônicas. Quando eu faço cená­ rio para a Deborah Colker, tem uma coisa de arquitetura. Nós somos parceiros desde que o grupo começou e ela é uma das poucas artistas com quem eu trabalho que, na verdade, utiliza o cenário como arquitetura. Eles (os baila­ rinos) interagem, entram, manipulam. Os espetáculos da companhia existiriam sem os seus cenários? É difícil falar isso, acho que a gente criou junto uma linguagem que é a marca do trabalho da Deborah, que a diferenciou dos outros grupos de dança. Tanto que a gen­ te viaja o mundo inteiro e as pessoas já conhecem o nosso trabalho. Agora, mesmo, vamos dirigir o novo espetáculo do Cirque du Soleil, que vai estrear no Canadá em 2009. Continente setembro 2007

Exposição cenográfica sobre a Amazônia

E é exatamente em cima desse trabalho em arquitetura e dança. Mas você se identifica com a dança da Cia. Deborah Colker? Identifico­me, porque eu já fui acrobata, fiz ginástica olímpica durante sete anos. Eu sempre fui de corpo. Dirigi por 10 anos a Intrépida Trupe. Na verdade, eu sou um dos fundadores. Então, eu já tinha uma ligação com a lingua­ gem corporal. Acho que se eu não fosse artista gráfico, eu seria bailarino, ou acrobata. Eu estava até perto disso, mas eu sou muito tímido, sempre detestei palco. E para a música, o teatro e a moda, como se dá o seu processo de criação? Música, na verdade, foi um dos principais caminhos que eu desenvolvi na minha arte, porque foi ela que abriu o mundo do espetáculo para mim. Comecei a fazer capa de disco, como artista gráfico. Meus grandes trabalhos conhecidos nesse sentido foram para a Blitz. Já trabalhei com quase todo mundo de música no Brasil. Marisa Monte, Maria Bethânia, Chico Buarque... Só os medalhões? É, mas eu trabalho também com Marcelo D2, Planet Hemp. E uma coisa eu aprendi: não ter preconceito. Nun­ ca tive, porque quem gosta de andar na rua não pode ter preconceito. Os grupos sertanejos já me chamaram para fazer cenários. E você foi? Fui. No começo, eu pensei: “Será? Essa música brega?” Mas aí eu fui, fui ganhar dinheiro. Mas, na verdade, eu aprendi coisas e foi muito legal.


CONVERSA E teatro? Teatro é ótimo, é o lugar onde você experimenta linguagens. Porque para viajar com cenários de show muito pesados não dá, a indústria da música é muito cor­ rida, tem que ser leve, rápida de montar, incrível e caber numa pastinha de bagagem de mão. E em teatro é diferente, você pode criar. É um grande laboratório de arte e eu gosto muito de fazer. Agora, hoje em dia é muito difícil, porque eu não gosto de fazer cenário realista, nunca gostei. Gosto de fazer um cenário que não é literal, ele tem que ajudar o diretor a falar sobre aquele texto, sendo um coadjuvante, aju­ dando­o a aparecer. Tem que ter algo de funcional O cenário da peça Fica Comigo esta Noite foi um dos trabalhos em teatro de Gringo Cardia também? Tem que ter. A arquitetura me Existe um site na internet chamado Aguarrás, onde há deu isso. As pessoas falam: “Vamos fazer um cenário leve”. um texto de um designer recém­formado que se chama Mas não adianta, porque se quiser subir nele tem que ser “Quero ser Gringo Cardia”. Você se sente um privilegia­ pesado, senão cai. A Deborah fala: “Vamos ver o peso, o do? avião...”. Não tem jeito: nossos cenários têm seis, oito, dez Não. Acho que todo mundo pode ser um Gringo Car­ toneladas. dia. Na verdade, eu cheguei ao Rio com 15 anos e era E são caros, não é? totalmente sem turma. A minha família não tinha grana. São caros. Mas eu aprendi a lidar com essa coisa de Então, eu consegui enfiando a cara. Blefando, dizendo “eu dinheiro. Para mim é muito fácil gastar. Se me derem sei fazer”, quando eu não sabia. A vida inteira arriscando R$50 mil ou R$1 milhão, eu gasto num segundo, porque muito. Aí, confiei muito na minha capacidade, no meu eu quero, na verdade, experimentar. Quando eu fui traba­ talento. No máximo, o cara ia me mandar embora, enten­ lhar com os sertanejos, eu fiz cenários que eu sempre quis deu? Ralei muito. E você também não pode se contentar fazer, mas não tinha dinheiro. Se deixar, eu faço um avião. nunca com as coisas. Deve sempre querer mais, ser ambi­ Mas, às vezes, só se tem dinheiro para a bicicleta... cioso. Eu sou ambicioso. Eu quero tudo. Se puder ir à lua, Você compra material de cenário em mercados, feiras, eu quero. Quero fazer tudo que é possível. Quero viajar o na Rua 25 de Março, em locais como esses? mundo inteiro, conhecer cada lugarzinho dele. Eu acho Compro. Por exemplo, em Nó (espetáculo da Cia. que tem que ser assim. Se você é assim, consegue ser Grin­ Deborah Colker), fomos comprar cordas no estaleiro, cor­ go Cardia, ser qualquer pessoa. A Madona era uma dan­ das antigas. E, como cenógrafo, você tem que estar ligado çarina e conseguiu. Tem que ter ambição, mas tem que ter no mercado, tem que andar nas ruas mesmo. ética. Meu trabalho mudou muito nos últimos sete anos, Que influências, fora a rua, você tem? porque eu achei que chegou a um momento em que eu Influência pop. Eu vim da geração pop, sou cria dela. De tinha que dividir um pouco as coisas. É muito legal, por­ Andy Warhol, Roy Lichtenstein e todos os artistas pop que eu passei a trabalhar com o terceiro setor. Comecei a norte­americanos. Essa coisa de se pegar o trivial e trans­ trabalhar com o Afroreggae, com a Cufa, a Central Única formar em arte faz parte da minha formação. Eu também das Favelas. Aí eu fiquei totalmente na periferia. Eu sou o sempre gostei de filme de terror, de coisas fantásticas. Gringo da periferia. • Continente setembro 2007

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CRÉDITOS Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente Flávio Chaves Diretor de Gestão Diretor Industrial Bráulio Mendonça Meneses Reginaldo Bezerra Duarte

Continente Multicultural

Conselho Editorial: Presidente: Flávio Chaves Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca e Marco Polo Diretor de Arte Ricardo Melo Editores Eduardo Cesar Maia e Mariana Oliveira Editor de Arte Luiz Arrais Diagramação Hallina Beltrão e Vivian Pires Ilustrações Zenival Edição de Imagens Nélio Chiappetta Editoria On-line Mariana Oliveira Revisão Maria Helena Pôrto Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Talita Corrêa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto Gestor Gráfico Júlio Gonçalves Gestor Comercial Gilberto Silva Equipe de Produção: Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira

Setembro 2007– Ano 07 Capa: Montagem de Ricardo Melo

Colaboradores desta edição: Almir CAstro BArros é poeta. André luiz BArros é jornalista. AnCo márCio tenório é crítico literário e professor do Departamento de Letras da UFPE. André diB é jornalista. Bruno nogueirA é jornalista e mestrando em Comunicação Social pela UFPE. CArlos eduArdo AmArAl é jornalista e crítico de música da Revista Continente Multicultural. ChristiAnne gAldino é jornalista e pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. dAniel PizA é editor-executivo, colunista de O Estado de S. Paulo e escritor. FernAndo monteiro é escritor e crítico cultural. FernAndo Weller é pesquisador e professor de Cinema e Audiovisual. Mestre em Comunicação e Imagem pela Universidade Federal Fluminense. geisA AgriCio é jornalista. geneton morAes neto é autor – entre outros títulos – de Dossiê Drummond, que acaba de ser relançado pela Editora Globo, em versão revista e ampliada, para marcar os 20 anos da morte de Carlos Drummond de Andrade. JonAtAs FerreirA é sociólogo e professor. KleBer mendonçA Filho é jornalista, crítico de cinema e cineasta. luiz CArlos monteiro é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon;

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas: 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação: 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. mArCelo CostA é jornalista e crítico de cinema. mArCos toledo é jornalista. olíviA mindêlo é jornalista.

Colunistas: AlBerto

dA

CunhA melo é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de

poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FerreirA gullAr é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. Joel silveirA é jornalista e autor de livros de reportagens e crônicas, como A Milésima Segunda Noite de Avenida Paulista e O Inverno da Guerra. mArCellA sAmPAio é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e professora universitária. mAriA leCtiCiA monteiro CAvAlCAnti é professora.

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CARTAS

Rabeca

Noto que a Continente Multicultural está cada vez mais pernambucana, o que na minha avaliação é ponto positivo. A capa da edição de agosto com o Mestre Salustiano está linda e as reportagens refletem bem seu trabalho e a forma encontrada por ele para sobreviver através da cultura popular. Ana Maria Ribeiro, Recife – PE

Presente Tenho lido com regularidade e atenção a multicultural Revista Continente, o que considero um presente dos colaboradores e colunistas inspirados a cada número editado. É um complexo ideal a combinação de cores, impressão e fotografias, além das matérias pu­ blicadas para deleite de todas as camadas de leitores. Ela revela o sabor e o bom trato, assim como a orientação segura e responsável dos editores. E. A dos Santos, Recife – PE Cavani Foi uma feliz surpresa encontrar Cavani Rosas nas páginas da Continente Multicultural. Esta publicação pernambucana tinha que abrir espaço para o seu filho pródigo. Jailton Costa Pinto, Olinda – PE Diversidade A Revista Continente Multicultural é fantástica, atual e a cada número traz sempre assuntos diversos e interessantes. Fico muito feliz por ela ser pernambucana! Andréia Santos, Recife – PE

Fotografia O ensaio fotográfico da edição n° 79 desta Continente Multicultural está lindo. É impossível não elogiar o fotógrafo Paulo Pereira pelos cliks que fez de algumas das manifestações populares brasileiras mais interessantes. Para­ béns e continuem a publicar ensaios fotográficos, afinal, foi­se o tempo em que havia dúvida sobre as qualidades artísticas da fotografia. Henrique dos Santos, Recife – PE Oiticica Bela e surpreendente a matéria sobre a família Oiticica, publicada na n° 79. Apesar de ser um apaixonado pelas artes, desconhecia a linhagem artística da qual o nosso grande Hélio Oiticica fazia parte. Agora, a genialidade está explicada. Juarez Bragança, Fortaleza­CE Parabéns Considero esta a melhor revista cultural dis­ ponível. Parabéns pelo trabalho desenvolvido. Luciana Miranda, Recife – PE

Censura Extremamente pertinente a matéria de capa do mês de julho, da Continente Multicultural. Pode não parecer, mas a censura ainda está presente nas nossas vidas, haja vista a confusão envolvendo o livro sobre a vida de Roberto Carlos e as recentes atitudes do presi­ dente venezuelano Hugo Chávez. O assunto é delicado e merece uma discussão ampla e aprofundada. A Continente fez um panorama, mas o debate seguramente não termina aí. Rogério Magalhães, Recife – PE Agendão Gostei bastante do novo espaço titulado de agendão. Encontramos dicas de eventos, exposições, cursos e shows que merecem a recomendação da Continente. No aguardo das próximas dicas! Carolina Silva, Recife – PE

Onde? O grande problema da Revista é que ela não é encontrada. Em SP é lenda! João Cardoso, São Paulo – SP

Arquivo Continente “Alimento uma séria desconfiança por Borges, creio que ele é superestimado” Eu sei que poderei ser apedrejado pelo que vou confessar... Sempre fui muito complacente com essas comparações, era receio de não parecer esnobe ou arrogante, até porque o fato de ser uma pessoa reclusa me vestiu de certa imagem pernóstica. Mas vamos lá: alimento uma séria desconfiança por Borges, creio sinceramente que ele é superestimado. Concordo inteiramente com Nabokov, que o tinha como um autor de portais, praticamente nada além disso. O próprio argentino afirmava não ser um escritor, embora, aí, sim, eu acredite que era charme, máscara. Claro que tive meu tempo de

admirador da literatura borgiana, e minhas críticas não anulam o respeito pelo intelectual que ele era. Porém, ser fascinado pelos seus portais é algo para espíritos mais disponíveis. Por Calvino tenho mais apreço, gosto muito de sua modernidade. E pelo Vladimir Nabokov tenho uma admiração irrestrita, este, sim, foi e continua sendo uma referência para minha obra, principalmente no que diz respeito à criação de personagens.

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(Fernando Monteiro, Continente Multicultural, n° 35, novembro de 2003)

Revista Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 - Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

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BALAIO PoEsia E dEliCadEza

"Par délicatesse j'ai perdu ma vie" (por delicadeza eu perdi minha vida), o célebre verso de Rimbaud, poderia ter sido o epitáfio do poeta Austro Costa (1899–1953). Quando o ônibus em que viajava bateu num poste, ele, único passageiro em pé, foi lançado fora, tendo morte imediata com fratura na base do crânio. Detalhe: tinha acabado de ceder seu lugar a uma dama. Já o poeta Ascenso Ferreira (1895–1965), também viajando de ônibus, ao ouvir a mulher ao seu lado reclamar de que ele estava ocupando dois terços do banco, deu um suspiro fundo e com sua característica voz retumbante respondeu: "A senhora pede que eu feche as pernas porque evidentemente não sabe o que é sentar com dois ovos entre elas". (Marco Polo)

EQUIPE CONTINENTE E COLABORADORES

Civilização E barbáriE Três nativos da Terra do Fogo foram levados por cientistas a Londres e, em pouquíssimo tempo, adaptaram-se completamente à língua inglesa e aos costumes europeus. Grande foi a decepção de Charles Darwin quando, em sua famosa viagem a bordo do "Beagle", em companhia dos três fueguinos que viajavam de volta à sua terra, percebeu que aqueles homens, ainda mais rapidamente do que tinham aderido à civilização, voltavam ao “estado de barbárie” original. "As aparências exteriores de civilização são apenas efêmeras", meditou o evolucionista. Estas e outras histórias sobre Darwin e sua obra mais importante estão em A Origem das Espécies de Darwin [Uma Biografia], de Janet Browne, recém-lançado pela Zahar. (Eduardo Cesar Maia)

o PatétiCo E o draMátiCo

Depoimento de Joel Silveira a Geneton Morais Neto: "Eu nunca disse que não gostava de Nélson Rodrigues. Apenas convivi pouco com ele. Fomos colegas de redação. Gosto da peça Vestido de Noiva, mas a verdade é que não nos entrosávamos. Uma vez, eu estava escrevendo alguma coisa – escrevo depressa na máquina, porque no fundo sou mesmo é um bom datilógrafo. De repente, Nélson Rodrigues caminha em minha direção, fica parado diante de mim com um cigarro pendendo na boca e exclama: "Patético!". Em seguida, foi embora, em silêncio. Quando acabei de escrever, fui até a mesa de Nélson – que batia à máquina com dois dedos – e fiz a mesma coisa. Fiquei em silêncio vendo-o escrever. Depois, disse, simplesmente: "Dramático!". Fui embora. Nosso único diálogo resumiu-se a estas duas exclamações – "patético" e "dramático".

Mal CoMParando

a ótiMa Maria CarPEau... Iniciativa louvável da Secretaria de Cultura do Ceará, o Seminário Cultura 21 reuniu especialistas de várias áreas para discutir o tema. Participei de uma mesa sobre Jornalismo Cultural. Agora, saiu impressa a seleção dos textos. À certa altura, falei sobre gente do primeiro time que escrevia sobre Literatura em jornais diários. A falta de uma revisão rigorosa das transcrições pôs na minha boca um elogio aos críticos Álvaro Lins e "a ótima Maria Carpeau". Pobre do Otto: não bastasse terem lhe omitido o prenome e o x final do sobrenome, ainda por cima mudaram-lhe o sexo! (Homero Fonseca) Continente setembro 2007

“Pense duas vezes antes de não dizer nada.” Lawrence J. Peter

Bouvard e Pécuchet, o romance "enciclopédico" de Gustave Flaubert, destinado a ironizar os avanços da ciência e o conhecimento inútil acumulado pela humanidade, continua na lista dos livros mais engraçados de todos os tempos, apesar da concorrência desleal de Paulo Coelho e Patrícia Melo, que, longe de escreverem tão bem quanto o mestre francês, levam o leitor mais exigente às gargalhadas com suas tentativas. Quem duvidar, que tente ler os dispensáveis O Zahir, dele, e Mundo Perdido, dela. (Fred navarro)


Quando Michelangelo Antonioni visitou o Brasil em agosto de 1994 (para participar do Festival de Gramado), ele e a mulher, Enrica, desembarcaram em São Paulo. Algumas pessoas que ela tivera o cuidado de consultar, na Itália, garantiram-lhe que o calor aqui seria de mais de 30 graus, e que, portanto, deviam trazer suas roupas mais leves. Foi o que fizeram, porém, já no desembarque, o casal deparou com um frio de 8 graus, na capital paulista, e ambos tiritavam, cercados por gente com grossos casacos, no aeroporto. (Fernando Monteiro)

Divulgação

antonioni 1

antonioni 2

Chung Kuo-Cina é o título do documentário (até hoje inédito no Brasil) de Michelangelo Antonioni sobre a China, realizado em 1972. Consegui ver o filme na versão italiana (era a única obra do cineasta que eu ainda não conhecia), e agora posso afirmar que a obra de certo modo encerra a mesma lição já oferecida por um padre missionário: "Os sábios chineses costumam dizer que os estrangeiros que ficam um mês na China escrevem um livro; os que ficam um ano, escrevem um artigo, e os que ficam dois anos não escrevem nada". (FM)

“Seu livro é bom e original, mas a parte que é boa não é original e a parte que é original não é boa.” Samuel Johnson a um candidato a escritor

Mais óPEra

Numa cidade do porte do Recife, acontecerem duas óperas num mesmo ano é um milagre. Mas O Cientista, de Sílvio Barbato, foi sucesso em abril e a fila de ingressos só perdeu para a da gravação do DVD de Antonio Nóbrega. (Carlos Eduardo amaral)

sobrEMEsas PrEdilEtas Em Açúcar, livro que estará sendo relançado e m outubro, Gilberto Freyre lista as sobremesas preferidas de intelectuais, artistas e políticos brasileiros. Eis algumas: Machado de Assis (doce de coco), Rui Barbosa (doce de batata), Juscelino Kubitschek (baba-de-moça), Carlos Drummond (leite-creme), Chico Buarque (doce de jerimum cremoso), Burle Marx (doce de jenipapo), Graciliano Ramos(docedelaranjacristalizada),Guimarães Rosa (doce de laranja-da-terra), Ariano Suassuna (massas de goiaba), Rubem Braga (doce de coco), Mário Palmério (doce de miolo de mamoeiro), Rachel de Queiroz (cocada), Josué Montello (doce de coco), Octávio de Farias (doce de coco). Como se vê, o doce de coco ganha, com meu protesto pela exclusão da musse de maracujá. (HF)

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PERGUNTAS A LUZILÁ GONÇALVES

1 – lourival Holanda, escritor: se pudéssemos dividir sua obra em três partes: a) a produção acadêmica; b) os textos de testemunho sobre as mulheres; e c) os textos de celebração, como esse magnífico e premiado Muito Além do Corpo, onde você colocaria maior ênfase? Estes três aspectos fazem parte de um todo, a expressão de uma mulher inteira chamada Luzilá, curiosa, interessada pelo que aconteceu à gente feminina através dos séculos... E pelo que acontece nela própria. Nossa história é uma história de exclusão, de apagamento. Como foi possível que fossem caladas tantas vozes que tinham tanto a dizer, e que representavam metade da humanidade? Quando escrevo, não é com intenção de resgatar, de protestar, mas só desejando colocar diante do leitor personagens que contribuíram de algum modo para que o mundo fosse mais o lugar onde vale a pena passar um tempo. Quanto à ênfase, prefiro os textos de celebração. 2 – Cristina buarque, secretária especial da mulher, do Governo de Pernambuco: Como aparecem as mulheres na vida e na obra de luzilá Gonçalves? Como seres marcados pelo desejo de ocupar um espaço na sociedade, no mundo. Minhas personagens femininas são fortes, voluntariosas. Muitas escritoras, que leio e releio, fizeram de mim um pouco do que sou: Katherine Mansfield, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lou Andréas Salomé, Marina Tsvetaeva, Anna Akhmatova. Na vida mais real: minha mãe. Professora aos 16 anos de idade. Fotógrafa no interior, quando só uma mulher em Pernambuco havia exercido essa profissão, Herminia da Costa, no Recife do século 19. Dona de casa que nunca esquentava a cabeça com nada. Mulher de fé que, diante dos maiores problemas, conversava com o seu Deus e ia dormir em paz. Sempre tranqüila, a cantar hinos enquanto lavava nossa roupa no fundo do quintal.


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CAPA 13

Tendo como tema central a integração cultural latino-americana, a 3ª Fliporto firma-se como evento de porte internacional Luiz Carlos Monteiro

estimado em cerca de 25.000 pessoas. Entre as muitas atrações da Fliporto, destaca-se a programação paralela da Fliportinho, que contemplará o público infanto-juvenil. Também o Concurso de Poesia ao Vídeo, a Casa da América Latina e o lançamento de quatro antologias de escritores latinoamericanos durante os quatro dias da festa. Além disso, será montada uma feira de livros coordenada pela Livraria Saraiva, livraria oficial do evento. O resort, em Muro Alto, ambiente para eventos do hotel, localizado na praia de Muro Alto, abrigará os principais painéis, palestras e mesas de discussões da Fliporto, com a diferença de que tais atividades serão transmitidas on-line pelo site www.fliporto.com. Divulgação

P

ara quem se interessa por debates, palestras, recitais, painéis e lançamentos de livros, a 3ª Festa Internacional de Literatura de Porto de Galinhas – Fliporto, no litoral sul do Estado, no balneário de mesmo nome, a 60 km do Recife, realizar-se-á entre os dias 27 e 30 de setembro. O evento terá como destaque a literatura latino-americana e caribenha, com a presença de mais de 60 escritores de países diversos. A idealização do novo formato da Fliporto 2007 se deve à parceria entre o Instituto Maximiano Campos e a agência de publicidade Publikimagem, que se uniram para dar uma dimensão internacional à festa, com o intuito principal de trazer ao evento um público

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14 CAPA

Reprodução

Frida Kahlo é lembrada pelo centenário de seu nascimento e pela importância de sua obra para as artes plásticas no século 20

A abertura da Fliporto dar-se-á no dia 27 de setembro, ao final do dia, pelo curador da festa e presidente do Instituto Maximiano Campos, o escritor e advogado Antonio Campos. Na ocasião, uma série de atividades está programada: um coquetel de confraternização, a apresentação de um coral de 100 crianças e um recital de boasvindas aos escritores, visitantes e turistas, por dois declamadores experimentados, o poeta Marcus Accioly e o escritor Edson Nery. Haverá, além disso, uma palestra da escritora e acadêmica Nélida Piñon. Um outro recital terá lugar com o poeta amazonense Thiago de Mello, um dos símbolos da resistência à ditadura brasileira, autor de vários livros de poemas de conhecimento obri ga tó rio por qual quer poeta, a exemplo do antológico Faz escuro mas eu canto. O lançamento da antologia Panorâmica do Conto em Pernambuco, publicada pela editora Escrituras, de São Paulo, com organização de Antonio Campos e Cyll Gallindo, promete também movimentar a abertura da festa. Sobre o processo de coleta e execução da antologia, esclarece Antonio Campos: “Conseguimos reu nir 114 escrito-

res, após a leitura de cerca de 500 trabalhos em livros, revistas, internet e os que foram enviados pelos próprios autores. Registramos excelentes descobertas, desde a inédita Margarida Cantarelli até o ex-governador de Pernambuco Barbosa Lima Sobrinho; na extensão do conceito de pernambucanidade, fizemos ainda a inclusão de Graciliano Ramos, porque morou em Buíque dos dois aos nove anos de idade, e ali fez os seus primeiros estudos, assim como a de Clarice Lispector, que se confessava recifense porque aportou no Recife criança e também estudou nesta cidade”. O volume Panorâmica do Conto em Pernambuco tem o patrocínio do Instituto Maximiano Campos, que vem desenvolvendo um trabalho significativo para a literatura no que concerne à edição de livros e promoção de atividades literárias e culturais diversas, entre elas, o prêmio literário anual de contos Maximiano Campos para autores novos e estreantes, que buscam um lugar ao sol na seara da literatura. Ainda neste primeiro dia, a Fliporto renderá homenagem a várias personalidades da cultura, das artes e da literatura brasileira e internacional, o que se efetiva como uma das grandes razões de ser do evento. Entre os 11 homenageados, na categoria dos mortos, encontra-se a pintora mexicana Frida Kahlo (1907 – 1954), que é lembrada pelo centenário de seu nascimento e pela importância de sua obra para as artes plásticas no século 20, sendo uma referência mundial para o feminismo dos nossos dias. Os 90 anos de nascimento do dramaturgo e escritor pernambucano Hermilo Borba Filho (1917 – 1976) são lembrados pela sua contribuição inestimável à cultura pernambucana, tanto erudita quanto popular, e pela sua dinâmica como agitador cultural no Estado. É lembrada também a passagem da morte da poetisa chilena Gabriela Mistral (1889 – 1957), prêmio Nobel de Literatura de 1945, que tem o lirismo como principal característica de sua poesia. Serão enfocados os 30 anos da morte da ucraniana Clarice Lispector (1920 – 1977), que passou parte


de sua infância no Recife, e posteriormente foi morar no Rio de Janeiro. Clarice Lispector escreveu sua ficção num estilo único e difícil de ser imitado. Seu romance A Maçã no Escuro e os contos de Laços de Família, da década de 60, estão entre as obras definitivas da prosa brasileira. A homenagem ao editor paulista José Olympio (1902 – 1990) se justifica pela sua grande contribuição à divulgação da literatura no Brasil. Quando em atividade, publicou os mais importantes escritores brasileiros. Sua livraria, no Rio de Janeiro, foi um point obri-

gatório de encontro de escritores e intelectuais durante décadas, a partir dos anos de 1930. Merecerá reverência ainda o general recifense José Inácio de Abreu e Lima (1794 – 1869), que lutou ao lado de Bolívar pela libertação da América espanhola. Também escritor e político, publicou, entre outros, os livros Compêndio de História do Brasil e O Socialismo. Colaborou em vários jornais pernambucanos, a exemplo do Diario de Pernambuco. Os vivos homenageados abarcam gente ilustre como o paraibano Ariano Suassuna,

Reprodução

CAPA 15

Homenagem: Hermilo Borba Filho faria 90 anos se vivo fosse

Fliportinho cria espaço para crianças A Fliportinho, cujos eventos acontecerão paralelamente à Fliporto, nas manhãs e tardes, será um espaço destinado às crianças, com o objetivo de proporcionar uma gama de atividades lúdico-pedagógicas, buscando através da literatura uma integração mais efetiva da criança com o mundo e a vida. A escritora pernambucana Elita Ferreira será a grande homenageada da Fliportinho 2007. Pesquisadora da cultura popular, em particular das lendas regionais e cantigas de roda, Elita desenvolveu em vários de seus textos a literatura infanto-juvenil. Através deste universo, será disponibilizada toda uma programação volta-

da para suas obras, no “Pólo Histórias do Encantado”. Tudo isso ficará centrado no Espaço Arena, ambiente localizado na entrada de Porto de Galinhas e no qual serão realizadas as oficinas de literatura, aulas de leitura e apresentações teatrais da Fliportinho. Os personagens Zé Lanceiro e Catirina, de uma obra de Elita Ferreira, desfilarão numa carroça enfeitada e equipada com livros, esteiras e som, puxada por um cavalo, que irá circular pela Vila convidando as pessoas para visitar o “Pólo Histórias do Encantado”, levando leitura e alegria para os mais diversos locais. Os alunos da rede pública de ensino do município de Ipojuca, sede do balneário de Porto

de Ga li nhas, terão aces so às atividades. A organização da Fliportinho está a cargo da Cia. do Lazer, empresa especializada em atividades para crianças e que é situada em Porto de Galinhas. No entanto, os trabalhos da Fliportinho já vinham sendo antecipados nas escolas do município de Ipojuca desde o dia 26 de agosto de 2007. A Trupe Literária, composta por quatro arte-educadores, teve a missão de fazer uma apresentação e oficina em cada escola escolhida, tendo como elemento motivador prin ci pal o livro Per nam bu co Terra da Poesia, organizado por An to nio Cam pos e Cláu dia Cordeiro. Foi lançado também um concurso literário com o tema “Lendas que ainda não foram contadas” para turmas do ensino fundamental. O prêmio será a publicação de um livro destinado aos autores e escolas participantes, em regime de co-edição entre a Fliporto e as Edições Bagaço, com o apoio da Prefeitura de Ipojuca.

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16 CAPA

O poeta Ivan Junqueira participará da mesaredonda "Literatura na ABL"

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radicado desde adolescente no Recife e que completa agora 80 anos. Sua obra abrange o romance, o teatro e a poesia. No teatro, é bastante conhecida e admirada a peça Auto da Compadecida e na ficção O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-eVolta. O jornalista e escritor Gabriel García Márquez é homenageado, também, pelos seus 80 anos. Cem Anos de Solidão é sua obra mais conhecida, sendo lida no mundo inteiro. É o relato fantástico da família Buendía em Macondo, cidade inventada pelo autor. García Márquez foi o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1982. Um de seus textos recentes é Memória de Minhas Putas Tristes, em que conta sutilmente, sem estigmas pornográficos, o envolvimento amoroso entre um homem de 90 anos e uma menina de 14. Moacyr Scliar antecipou-se a seus possíveis antologistas, críticos e biógrafos com a escrita de um novo livro de título O Texto, Ou: A Vida – Uma Trajetória Literária. De descendência judaica, mas nascido em Porto Alegre, passou boa parte de sua vida no bairro do Bom Fim, ele é, sem dúvida, um dos escritores de maior relevância do Brasil de agora. Sua idade corresponde praticamente à quantidade de livros que publicou, pois ambas se situam na casa dos 70. A romancista Nélida Piñon nasceu em 1937, no Rio de Janeiro. Foi a primeira mulher a co man dar a

Academia Brasileira de Letras, rompendo o machismo reinante naquela instituição. São obras importantes de sua lavra A Casa da Paixão, romance, e Sala de Armas, contos, ambas dos anos 70. Em 1995, incrementa ainda mais seu pioneirismo com a conquista do Prêmio Internacional de Literatura Juan Rulfo, o mais importante da América Latina e do Caribe. O poeta pernambucano Marcos Accioly receberá a homenagem pelo seu livro Latinomérica (2001) e não por alguma data redonda. Este livro representa um épico da América Latina, que passa pela fundação do continente, contemplando seus personagens principais e as lutas de seus países pela independência, seus poetas, estadistas, guerreiros e revolucionários. A Fliporto explorará a relação privilegiada da literatura com as outras artes, enfocada através de apresentações teatrais e performances musicais. Isto poderá ser visto na Casa da América Latina, situada à beira-mar da praia de Porto de Galinhas, no espaço Vila do Galo, que oferecerá a estrutura para a programação social do evento, abrigando as festas e apresentações de grupos artísticos. Na Casa da América Latina, será montado um palco profissional, tenda de projeção e telão, boate dançante com DJs diversos. Um salão de autógrafos imitará uma “charutaria cubana”, havendo no local um quiosque personalizado para a livraria Saraiva, onde estarão os livros a serem lançados. A Casa terá, ainda, sala especial de imprensa, bares, serviço de buffet volante. Um jardim tropical terá decoração temática e abrigará mesas, cadeiras e puffs entre os coqueiros. A noite do dia 28 será dedicada às mulheres na Casa da América Latina, iniciandose com a sessão “Encontro com Escritoras Brasileiras”, coordenado por Sonia Ramalho. Beth Brait Alvim conversa com Isabel Moliterno, Edla Van Steen conversa com Cecília Costa, Luzilá Ferreira conversa com Anamélia Maciel e Mirian Fraga conversa com Wilma Martins. Serão feitas palestras sobre as homenageadas da Fliporto por Antonio Maura, Lucila Nogueira e Rei Berroa. Maria Della Costa discorrerá sobre o tema


CAPA 17 “Cinqüenta Anos de Teatro Brasileiro”, com exibição de vídeo em que ela surge no Canto da Cotovia como Joana D’Arc. Duas poetisas pernambucanas lançarão livros: Terêza Tenório lançará A Musa Roubada e Deborah Brennand Obra Poética Reunida. Este segundo dia será finalizado com coquetel e apresentação artística. A Casa da América Latina dará prosseguimento aos seus trabalhos, na noite do dia 29, com uma grande “Roda de Poesia Latinoamericana” tendo a participação, entre muitos outros, de Alfonso Pena (Costa Rica), Cesar Secco (Venezuela), Eduardo Moches (México), Edwin Madrid (Equador), Etnairis Rivera (Porto Rico), Fabian Casas (Argentina), Félix Contreras (Cuba), Francisco Ruiz Udiel (Nicarágua), Gary Daher Canedo (Bolívia), Martin Palácio Gamboa (Uruguai) e José Mário Rodrigues, Juareyz Correya, Laura Esteves, Marcelo Pereira, Orismar Rodrigues e Marco Pólo (Brasil). Outra novidade da Fliporto é o Concurso Poesia ao Vídeo, que objetiva o estímulo da produção, leitura e interpretação de poemas. Receberá o prêmio maior o melhor poema interpretado e editado em vídeo, podendo concor rer qualquer cidadão do mundo, desde que o poema interpretado seja de autor latino-americano em sua língua original, português ou espanhol. Segundo o regulamento do Concurso, os três primeiros lugares receberão, em solenidade antecedida pela exibição dos vídeos, os seguintes prêmios em valor líquido: R$ 3.000,00 para o primeiro lugar, R$ 2.000,00 para o segundo e R$ 1.000,00 para o terceiro. Estes três primeiros colocados ganharão passagens e hospedagens para participar da Fliporto 2007. Além disto, os 10 primeiros classificados receberão certificados de classificação e participação e um kit da Fliporto, além de ter seus videospoemas editados em DVD. Está prevista a realização de mais de 10 painéis, distribuídos ao longo do evento. No dia 28, a manhã será dedicada ao painel “Os Festivais de Poesia na América Latina”, com seus idealizadores e executores Alex Pausides (de Havana), Fernando Rendón (de Medel-

lín), Luiz Alberto Crespo (de Caracas), tendo como coordenador José Maria Memet (do Chile). Na mesma seqüência, farão leituras de poesia peruana Arturo Corcuera, Hildebrando Perez e Odi Gonzales. Outro grupo lerá poesia colombiana, coordenado por Amparo Osório. Serão lançadas duas antologias: uma de poesia peruana e outra de poesia colombiana. A antologia O Rio que Fala, de poesia peruana, foi traduzida e organizada por Everardo Norões, editor da Ensol, que publica o livro em conjunto com a editora 7 Letras. Podem ser conferidos poemas de César Vallejo, Antonio Cisneros, Marcos Martos, entre outros. A outra antologia, intitulada Mundo Mágico: Colômbia tem tradução e organização de Floriano Martins e Lucila Nogueira. Chegam ao Brasil versos de 40 poetas colombianos, que se estendem desde o modernismo de um José Asunción Silva até poetas de atuação mais recente. Na tarde desse segundo dia, reiniciam-se os trabalhos com a palestra “A Revolução do Poema em Che Guevara”, por Xose Lois Garcia, da Galicia. O painel “Literatura e Resistência” fica sob a coordenação de Cláudio Aguiar. Marcus Accioly proferirá a palestra “Latinomérica”. A obra de Hermilo Borba Filho, objeto do painel “Literatura e Compromisso em Hermilo Borba Filho”, será discutida por Cristiano Ramos, Luis Reis e Ricardo Noblat. Neste mesmo painel, tendo a organização de Juareyz Correya e Leda Alves, será lançado o livro A Palavra de Hermilo, sendo apresentadora Virgínia Celeste Carvalho. Edson Nery, um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Gilberto Freyre, fará a palestra “Latinidade e Americanidade em Gilberto Freyre”, tendo como debatedor o professor da Universidade Federal de Pernambuco Anco Márcio Tenório Vieira. O fechamento da sessão fica a cargo do poeta e crítico César Leal, com a palestra “O Recife como Centro Cultural da América Latina”.

Antonio Carlos Secchin, Nélida Piñon e Thiago de Mello são nomes confirmados na 3ª Fliporto


Arquivo CEPE

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terá a participação dos acadêmicos Antonio Carlos Secchin, Ivan Junqueira, Moacyr Scliar e Sábato Magaldi. Em seguida, Antonio Campos prefere a palestra “A Importância da Integração Latino-americana”, que é justamente a temática central da Fliporto 2007. “Latinomérica de Marcus Accioly”, será objeto de debate pelo editor José Mário No terceiro dia da Fliporto, pela manhã, Pereira e o poeta Pedro Lyra, coordenados será apresentado o painel “Literatura e Eco- pela crítica literária Nelly Novaes Coelho. logia” por Márcio Souza, Thiago de Mello e Os poetas Amador Ribeiro Neto, Cláudio Vital Correia de Araújo, coordenados por Daniel, Delmo Montenegro, Horácio Costa, Aspásia Camargo. Logo após, outro painel Jomard Muniz de Britto, Micheline Vemovimenta o debate, “América Latina entre runschk e Pedro Américo de Farias trabao Mito e o Surrealismo”, tendo como coor- lharão a relação “Poesia & Performance”. denadores Adriane Hoffmann e Bruno O último dia da Fliporto começa com a Piffardini. Esta manhã será coroada com o mesa-redonda “Literatura Francófona na lançamento da Antologia de la Poesia Brasileña, América Latina, com discussões estabelecidas organizada por Floriano Martins e José Ge- por Lourival Holanda, Heloísa Arcoverde, raldo Neres e editada em Madri, pelas edi- Roland Walter, Sebastien Joachim e coordeciones Huerga y Fierro, contemplan- nação de Yaracilda Coimet. Prossegue com do alguns poetas de 1950 em “O Relevo entre Nós da Tradução Literária”, diante, espalhados pelo país sob a coordenação de Sueli Cavendish e com e traduzido por autores de a participação de Angel Zuazo, Luis Carlos vários países . Entre os Nevese e Marta Spagnuolo. Novos painéis poe tas pu bli ca dos, são instaurados: “América Latina e Letramenencontram-se Glauco to Literário”, coordenado por Aldo Lima e Mattoso, Donizete Gal- tendo como participantes Graça Paulino, Helvão, Nicolas Behr, Leon- der Pinheiro e Rildo Cosson. Para finalizar a tino Filho e Rodrigo manhã, será ministrada a palestra “Oitenta Petronio. Anos de Ariano Suassuna” por Maria do Os trabalhos da tarde Amparo Tavares Maleval, acontecendo, logo co me çam com a mesa- após, aula-espetáculo do próprio Suassuna. redonda “A Construção da O painel “Literatura Digital” dá prosI d e n t i d a d e L a t i n o - seguimento às atividades, sob a coordenação americana”, onde estarão de Deonísio Silva. “Oitenta Anos de García presentes os críticos e histo- Márquez”, será um outro painel discutido riadores literários Bella Josef e por Alberto Poza, Ligia Militz e Juan Pablo Eduardo Coutinho. Outra mesa- Martin. Cyll Gallindo coordenará o painel redonda, “Literatura na ABL”, “Panorama do Conto Latino-americano”,

“Unida aos companheiros escritores do Brasil estará uma equipe de praticamente todos vizinhos de língua espanhola. Na 3ª Fliporto nasce uma versão verdadeiramente cultural do Mercosul” Antonio Campos, idealizador e curador da Fliporto 2007


CAPA que terá Carlos Aranguiz Zuñiga (Chile) e German Cáceres (Argentina). A mesa-redonda “A Imprensa Literária” será coordenada pelo poeta pernambucano Flávio Chaves, com a participação de Carlos Véjar Perez Rubio (México) e José Kameniecki (Argentina). Aqui, haverá o lançamento dos livros traduzidos pela Revista e Editorial Francachela, que tem como autores Abdias Moura, Cyll Gallindo, Humberto França, Maria de Lourdes Hortas e Olímpio Bonald. A mesa-redonda “Leitura de Ficção Latino-americana” terá como participantes Antonio Torres e Ignácio Padilla (México). “Homenagem à África” será realizada por Raimundo Carrero e José Eduardo Agualusa. O painel “Vozes Pernambucanas”encerrará o evento. Antonio Campos, idealizador e curador da Fliporto 2007, escolheu como lema desta terceira versão do evento a “Integração Cultural Latino-Americana”, intentando cada vez mais uma aproximação real em direção aos países hispano-americanos. Ao chamar a atenção para esta integração cultural entre povos, pela via da literatura, ele arremata, com realismo e esperança característicos e equilibrados: “Unida aos companheiros escritores do Brasil estará uma equipe de praticamente todos os países de língua espanhola, vizinhos de geografia, história, alegria, sofrimento e esperança. Assim, na III Fliporto, sob os auspícios do IMC, nasce uma versão verdadeiramente cultural do Mercosul, na qual não se compram nem se vendem, mas trocam-se conhecimentos, experiências, afetos, harmonia e uma proposta duradoura de convivência entre países vizinhos, que o futuro haverá de avaliar sem paixões”. O Estado de Pernambuco e os pernambucanos se sentem honrados com a deferência e o privilégio de ter um evento de tamanha importância e magnitude realizado em seu território, na área nobre e de beleza ofuscante de Porto de Galinhas, que nada fica a dever a outros grandes eventos brasileiros e internacionais. •

DESTAQUES Homenagens Abreu e Lima, Ariano Suassuna, Clarice Lispector, Frida Kahlo, Gabriel García Márquez, Gabriela Mistral, Hermilo Borba Filho, José Olympio. Nomes confirmados Moacyr Scliar, Nélida Piñon, Maria Della Costa, Alfonso Pena (Costa Rica), Carolina Álvares (Venezuela), Eduardo Moches (México), Edwin Madrid (Equador), Etnairis Rivera (Porto Rico), Fabian Casas (Argentina), Félix Contreras (Cuba), Francisco Ruiz Udiel (Nicarágua), Gary Daher Canedo (Bolívia), Maria do Carmo Barreto Campelo (Brasil), Martin Palácio Gamboa (Uruguai). Lançamentos Antologia O Rio que Fala, de poesia peruana; Antologia Mundo Mágico: Colômbia; Antologia de la Poesia Brasileña e livros traduzidos pela Revista e Editorial Francachela, que tem como autores Abdias Moura, Cyll Gallindo, Humberto França, Maria de Lourdes Hortas e Olímpio Bonald. Painéis "Festivais de Poesia na América Latina" "Literatura e Resistência" "Literatura e Ecologia" "América Latina entre o Mito e o Surrealismo" "Literatura Digital" "Panorama do Conto Latino-americano" "Vozes Pernambucanas"

Para saber mais sobre a programação, o leitor deve acessar o site www.fliporto.com Continente setembro 2007

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AGENDA

Cinema e psicanálise

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om o intuito de mostrar os diálogos possíveis entre a história do cinema e outras áreas, como as artes visuais e a psicanálise, o Espaço Cultural Marcantonio Vilaça promoverá a partir do mês de setembro o curso Conexões: Cinema, Arte & Psicanálise. O curso está dividido em três módulos: A História do Cinema Mun­ dial, apresentada por Sérgio Moriconi; Imagens Móveis: Cinema experimental, Videoarte rumo à multimídia, ministrado por Elyeser Szturm; e Cinema e Psicanálise, com Tania Rivera. A abertura do evento será realizada no dia 5 de setembro, com um debate com os três palestrantes e a apresentação do conteúdo de cada módulo. Os encontros acontecerão às segundas e quartas, de 10 de setembro a 12 de dezembro, sempre das 19h15 às 22h, e as inscrições vão até o dia 6/9, para os módulos I e II, e até 14/11, para o módulo III; são gratuitas e poderão ser realizadas pelo telefone 3316­ 5221, em horário comercial. Conexões: Cinema, Arte e Psicanálise, Auditório Ministro Pereira Lira, Tribunal de Contas da União, Brasília–DF, de 10/9 a12/12/, das 19h15 às 22h. Informações: (61) 3316-5221.

Play Recife C

om a proposta de ser mais um importante elo da rede latino­americana de videodança e inscrever o Recife no cenário produtivo de dança & tecnologia, surge o PLAY REC 2007– I Mostra Internacional de Videodança do Recife. O evento realizar­se­á de 3 a 5 de setembro, no Teatro Hermilo Borba Filho, com todas as atividades gratuitas. Haverá exibição de videodanças, mesas de discussão contando com a presença de artistas e convida­ dos de instituições culturais, per for­ mances de dança e, na última noite, um panorama da produção nacional na mostra Outros olhares e o trabalho da com­ panhia inglesa DV8, The Coast Of Living. Para finalizar o encontro, Helder Vasconcelos apre­ senta um trecho do seu solo Por si só, ainda inédito no Recife. Além das exibições e das discussões, há ainda o Laboratório de criação para reunir pessoas da dança e do audiovisual, coordenadas pelo cineasta Oscar Malta e pelo coreógrafo Helder Vasconcelos. PLAY REC 2007 – I Mostra Internacional de Videodança do Recife, Teatro Hermilo Borba Filho, de 3 a 5 de setembro às 19h. Continente setembro 2007

Machado revisitado L

ição de Botânica, com texto de Machado de Assis e produção da Teodora Lins e Silva, volta para uma nova temporada no Recife. O espetáculo é uma ótima oportunidade para conhecer o lado dra­ maturgo de Machado de Assis, mais conhecido pelos contos e romances. O enredo trata da natureza humana através de um embate entre a ciência e o amor: o Barão Sigismundo de Kernoberg é um homem rígido, devotado à ciência, e que acredita que o casamento é incompatível com a sua natureza profissional. Até que conhece Helena, que usará todo seu charme para dissuadi­lo. A montagem, concebida pelo diretor Roberto Lúcio (do premiado Agnes de Deus), não economiza no humor elegante. Os atores aparecem travestidos: homens nos papéis femininos e uma atriz no papel do barão. A peça antecipa a passagem do centenário de morte de Machado, que se dará em 2008. Lição de Botânica. Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Recife Antigo), de 8 a 23 de setembro, sábados e domingos às 20h. Ingressos: 14,00 e 7,00 (meia). Telefone: (81) 3224.1114

Estrutura óssea

Cumprindo uma temporada por todo o mês, a Cia. Etc. leva ao Tea­ tro Hermilo Borba Filho a sua mais nova criação, o espetáculo Pele e Ossos. A montagem é fruto do desenvolvimento de um experimento artístico baseado na estrutura óssea humana e suas particularidades, e começou a ser desenvolvido por José W. Júnior, através de sua par­ ticipação por dois anos na companhia francesa Marianne Isson. Participam como intérpretes­criadores o próprio José W. Júnior, Marcelo Sena e Saulo Uchôa. A iluminação é de Sávio Uchôa, a trilha sonora de Henrique Maia e o acompanhamento da pesquisa do artista plástico Pedro Buarque. Pele e Ossos. Teatro Hermilo Borba Filho (Avenida Martin Luther King, Bairro do Recife), sábados e domingos de setembro às 20h. Ingressos: 10,00 (inteira) e 5,00 (meia). Telefone: (81) 3232.2030.

Caos Corra é um trabalho de pesquisa e experimentação da linguagem cênica, envolvendo o conceito do ator­narrador para falar da Teoria do Caos, que busca no aparente acaso uma ordem intrínseca determinada por leis precisas. Partindo desse ponto, o espetáculo retrata o cotidiano caótico e, aparentemente, desordenado das nossas vivências como seres ativos da urbanidade, interligados com o resto do universo. Na interpretação, o ator apresenta, narra e interpreta os personagens, é a visão de alguém que vivencia os fatos e conta para outros – o público. A estrutura da peça é fragmentada em três cenas sem ordem cronológica e independentes entre si. Cada uma delas possui estórias conectadas por vários fios condutores que costuram a vida dos personagens. Corra. Teatro Capiba – Sesc Casa Amarela (Avenida Professor José dos Anjos, 1109 – Casa Amarela), sábados e domingos de setembro às 20h. Ingressos: 10,00 (inteira) e 5,00 (meia). Telefone: (81)3267-4410.

Divulgação

CÊNICAS

CINEMA

Imagens: Divulgação

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AGENDA

Experimentações

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onsiderado um dos maiores renovadores da cena artística contemporânea do Recife , o artista Paulo Bruscky apresenta, na Amparo 60 Galeria de Arte, a exposição De homens, máquinas e sonhos. Uma coletânea inédita que reúne experimentações com máquinas da década de 70 e todos os filmes e intervenções urbanas já realizadas por Bruscky ao longo de sua carreira. A exposição, que tem curadoria de Cristiana Tejo, representa uma referência ao universo das invenções e suas subversões. Algo que nasce de sonhos e que ao serem concretizados podem tanto ser usados para o bem como para a destruição. As duas pontas da exposição são uma instalação com escadas de aviões, que não levam a lugar algum, um trabalho criado especialmente para esta mostra, e que foi pensado antes da tragédia envolvendo o avião da TAM. “Mas depois dela, adquiriu um sentido de melancolia, pesar e fracasso”, salienta Tejo. De homens, máquinas e sonhos, até 27 de setembro na Amparo 60 Galeria de Arte (Av. Domingos Ferreira, 92A, Pina – Recife). Informações: (81) 3325-4728.

Individual

O jovem artista plástico Fernando Alves realiza sua primeira individual entre os meses de agosto e setembro deste ano, no restaurante Maison do Bomfim, em Olinda. Na mostra estão sendo apresentados cerca de 22 trabalhos, sendo 14 inéditos e 8 já exibidos na Semana de Artes Visuais de Recife – SPA 2006. A mostra, com o título Outras Impressões, reúne telas envolvendo a temática religiosa e traduzindo cenas e situações do cotidiano comum. Outras Impressões, durante o mês de setembro, no Maison do Bomfim (Rua do Bonfim 115, Olinda). Informações: www.falves.com.br

A relevância da imagem A artista plástica Vera Chaves Barcellos teve boa parte de sua obra exposta em Porto Alegre, no Santander Cultural, entre maio e julho deste ano, na mostra O Grão da Imagem. Junto com a mostra, foi produzido o livro homônimo com textos dos três curadores que conceberam a exposição: Agnaldo Farias, Fernando Cocchiarale e o pernambucano Moacir dos Anjos – três figuras de peso no uni­ verso da crítica e curadoria de arte no país. As obras da artista trabalham sempre com a questão da imagem, refletindo sobre a suposta realidade da mesma e suas fragmentações. No livro, que é mais que um simples catálogo de exposição, estão registradas boa parte das obras expostas, que passeiam entre a instalação, a fotografia e a videoarte, com textos críticos e analíticos dos três curadores. O material, com mais de 200 páginas, marca importância do trabalho de Vera Chaves Barcellos nos seus mais de 40 anos de carreira para a arte brasileira. O Grão da Imagem, Santander Cultural, 60,00.

SPA 2007 O

SPA das Artes chega este mês à sua sexta edição com uma programação mais ampla e bem­distribuída. Uma das novidades deste ano é que o evento, que acontecia em uma semana, passa a ser realizado em duas, distribuindo melhor a vasta agenda que inclui exposições individuais ou coletivas, residências de artistas, intervenções urbanas, performances, instalações, exibição de videoarte, palestras e oficinas. O SPA das Artes – Recife ´07 é um dos principais eventos de artes visuais de intervenção e ação urbana e se consolida como um evento democrático tanto para os artis­ tas, que encontram um canal para expor seus trabalhos, quanto para o público, que pode ter acesso à arte em pleno espaço urbano. Este ano o enfoque central será o estímulo à produção. Entre os artistas que vão expor durante a progra­ mação do evento, realizado pela Prefeitura do Recife, em parceria com a Sociedade de Amigos do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), estão: Cristina Machado (PE), Maurício Silva (PE), Milena Travassos (CE), entre outros. Na lista das palestras e debates, estão nomes nacionais e internacionais de peso. Kevin Power e Mônica Carballas, da Espanha, Paulo Cunha e Silva, de Portugal, jun­ tam­se a representantes nacio­ nais, como Alexandre Dias, autor do livro Mídia e Arte: aber­ turas contemporâneas, para discu­ tir questões relevantes, como a integração internacional no uni­ verso das artes, Arte de Rua x Público, Vídeo experimental e novas mídias na arte. SPA das Artes – Recife 07, de 16 a 30/9. Informações:www.ufodesign.com.br/spa

FOTOGRAFIA

Latinidade O Fórum Latino­Americano de Fotografia de São Paulo – Pa­ ralelos e Meridianos da Latinidade, que acontecerá de 2 a 6 de outubro, abre as inscrições até dia 16 de setembro, para os workshops e leituras de portfólios. O evento, organizado Itaú Cultural e pelo fotógrafo e curador Iatã Cannabrava, conta­ rá com, além das atividades citadas, mesas para discutir fotografia, um seminário de políticas públicas, relatos de experiências e entrevistas com fotógrafos renomados; todo o Fórum será acompanhado pela mostra Sutil Violento, com trabalhos de fotógrafos do Peru, Guatemala, Panamá, Venezuela, Argentina, Chile, Paraguai, México, Cuba e Brasil. Os seis workshops serão realizados de 2 a 4 de outubro, nos dias 5 e 6, organizadores de eventos, editores, curadores do Brasil e do exterior examinarão o portfólios de 35 participantes previamente selecionados e os 10 melhores serão expostos no site do Itaú Cultural. 1º Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo – Paralelos e Meridianos da Latinidade, De 2 a 6 outubro.Inscrições: abertas para os workshops e a leitura de portfólios até dia 16 de setembro, pelo site www.itaucultural.org.br Continente setembro 2007

Imagens:Divulgação

ARTES PLÁSTICAS

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MARCO ZERO

Alberto da Cunha Melo

Joaquim Cardozo: No túnel do tempo "É preciso ler muito." Joaquim Cardozo

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m 26 de agosto, 1972, estive frente a frente com uma das maiores personalidades literárias bra­ sileiras, o poeta Joaquim Cardozo. Tenso, como uma pedra, lembrava­me que o jornalista Lazio Kovacs foi conversar com o poeta Ezra Pound, em Veneza, e entrevistou o silêncio. Pound, um dos maiores expoentes da poesia moderna mundial, recusou­se a falar de literatura. Aos 86 anos, 13 dos quais passados encarcerado como traidor de sua pátria, os Estados Unidos, o autor do famoso poema inacabado “Cantos”, desencantou­se com a palavra (após ter feito com ela o que bem quis e através dela ter alcançado um extraordinário prestígio no Ocidente), o nosso Drummond se recusava terminantemente a dar entrevistas e foram raras as oportu­ nidades em que tivemos o poeta e sua lavra de palavras ao vivo. Essas divagações diziam da expectativa de não conseguir a entrevista com o então arredio mestre. Mas o encontro aconteceu e se tornou uma das mais importantes experiências minhas como repórter e como poeta. Por isso, meus milhões de leitores, entro no túnel do tempo e registro os momentos especiais com Cardozo, em que a genialidade de suas palavras eterniza­se necessariamente para todos, especialmente para aqueles que cultivam a arte poética. EM OUTRA VENEZA Em outra Veneza, a brasileira, um repórter mestiço aproxima­se com certa timidez de uma velha casa do Espi­ nheiro, então residência do poeta Joaquim Cardozo, que possui inúmeros pontos de coincidência com Pound: poli­ glota, vanguardista, descobridor de talentos e, principal­ mente, grande poeta. Cardozo, que completara 76 anos, estava vestido com um leve pijama azulado e conversava com uma pessoa de sua família. A minha chegada trans­ tornou o ambiente, obrigando as gentis irmãs do poeta, as Continente setembro 2007

“três Marias”, como ele o diz carinhosamente, a se deslocarem com o televisor portátil para outro aposento. A imagem amarga e silenciosa de Pound vai desaparecendo da cabeça do jornalista e dando lugar a outra, a de um “tio tranqüilo”. Diante de mim está um homem magro e encanecido, mas cheio daquela paciência conquistada a custo de muito desespero triturado, de muito angústia vencida na própria foz. Apesar de não ter passado pelas agruras por que passou Pound, o poeta brasileiro foi alvo de ciladas perversas, de muito mal­ entendido consciente e do voluntário esquecimento por parte de alguns críticos da literatura. Mas, ao contrário de Pound, sua voz continuou límpida e pródiga, como convém a um grande artista da palavra, seguro de suas dimensões e desígnios. DA MANGA AO CAJU De início, após ter desistido de trocar o pijama por outras roupas menos amigas, Cardozo fala sobre aquela pequena mangueira defronte do casarão e informa que está acompanhando a sua floração. Todas as manhãs, um regalo que lhe faltava no Rio. Da manga ao caju foi um passo. O repórter aproveita a oportunidade para perguntar sobre o poema “Chuva de Caju” e o poeta conta as circuns­ tâncias que o determinaram. – Eu estava lendo quando, de repente, ouvi ruídos de passos, como se alguém acabasse de entrar na sala. Logo percebi que era a chuva, uma chuva de grossos pingos, que pulava pela janela e invadia o aposento. E lembra que morava nessa época no “Beco do Caju”, o que explica o título da obra­prima. Daí em diante, a con­ versa vai ficando animada e uma pergunta surge sobre como se estava sentindo no regresso à capital pernambuca­ na. Cardozo diz que, apesar de ter passado 32 anos no Rio de Janeiro, sentia­se “como se nunca tivesse saído daqui”.


MARCO ZERO

ARISTÓTELES MENOR QUE PLATÃO Não é difícil conversar com Joaquim Cardozo, embora não seja fácil ser para ele um bom interlocutor. Os homens eruditos sofrem de uma espécie de solidão coloquial. A massa de informações que possui sobre diversos assuntos anula inocentemente as tímidas investidas da maioria dos interlocutores. O poeta preenche os vagos da conversação quando ela envereda por áreas só por ele dominadas. E o assunto livros é território de Joaquim Cardozo por excelên­ cia, por direito de conquista. O poeta aprecia os velhos autores. O nome de Aristóteles, não sei por quê, cai na sala de repente. Enchem agora a sala os autores medievais e são apresentados por Cardozo como velhos conhecidos. Após a saída deles, o tempo vai se encurtando e já estamos perto dA Montanha Mágica de Thomas Mann, uma de suas grandes admirações. Depois de contar o enredo do romance, o poeta começa a se queixar da falta que lhe está fazendo a sua vasta biblioteca, deixada temporariamente no Rio. É PRECISO LER MUITO Achando que perguntou pouco sobre a própria obra do entrevistado, o distônico repórter, em certo momento, pede­lhe uma explicação sobre alguns trechos do seu gran­

de poema “Visão do Último Trem Subindo ao Céu”, particularmente sobre aquelas passagens em que utiliza símbolos e sugestões das ciências exatas. Após esboçar uma tentativa de esclarecimento, Cardozo compreende que não pode ser acompanhado em seu raciocínio e diz: “É preciso ler muito”. A frase, que pode ser dita por qualquer mestre­ escola, ganha um peso especial quando pronunciada por um “imenso” poeta e tem um efeito duradouro e forte na consciência do assustado repórter, repercutindo, alastrando­ se. O conselho do manso e encanecido poeta, dado assim com aquele ar de um tio cansado, que acaba de chegar de uma longa viagem, é mais do que o fecho esperado para esta reportagem, dirigida principalmente para os jovens escritores brasileiros. É noite e o poeta do “Signo Estrelado”, que vem sendo freqüentemente visitado, precisa recolher­ se aos seus livros, às suas lembranças, aos novos e revolucionários poemas. O repórter, como qualquer vendedor de livros embaraçado, sai mais humilde do que entrou. Despede­se de Joaquim Cardozo e de suas três irmãs e volta para o planeta das urgências rasas, onde é engolido pela escuridão e pelo esquecimento, nessa bela hora em que “as estrelas passam sobre Olinda”. • Continente setembro 2007

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A dor do pai Novo livro de Cristovão Tezza trafega entre o romance e a autobiografia, em torno da dor "irremovível" do nascimento de um filho portador de deficiência Geneton Moraes Neto

Tezza dilui, em seu livro, a fronteira entre gêneros

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escritor Cristovao Tezza, 55 anos, romancista, catarinense radicado em Curitiba, professor da Universidade Federal do Paraná, acaba de cometer uma façanha e criar um problema para a literatura brasileira. A façanha : recém-lançado, O Filho Eterno já desponta como favoritíssimo ao título de melhor do ano. O problema: O Filho Eterno foi publicado pela Editora Record na categoria de "romance brasileiro", mas é um texto escancaradamente autobiográfico. Tezza descreve, sem jamais cair no melodrama ou na pieguice, um acontecimento que o fez se sentir como se fosse um boi cabeceando inutilmente contra as paredes do corredor de um matadouro: o dia em que recebeu a notícia de que o primeiro filho, tão esperado, tinha Síndrome de Down. Não é exagero carimbar O Filho Eterno, desde já, como o lançamento do ano. O site de literatura Todoprosa, mantido por Sérgio Rodrigues, também concedeu este título antecipado do livro. Ainda é agosto. Mas, pelo menos na categoria de "romance brasileiro", a disputa

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literatura pelo campeonato de melhor do ano parece resolvida. Que se apresentem os outros candidatos. Pergunte-se a um leitor médio, aquele que desembarca na livraria simplesmente em busca de uma bela descoberta : o que é que define uma boa leitura? Nove entre 10 dirão que boa leitura é aquela capaz de apreender a atenção. Que outra coisa pode querer um autor? E excelente leitura é aquela que arrebata. É o caso de O Filho Eterno. Tezza acaba de criar o Expresso 222 da literatura. As 222 páginas de O Filho Eterno voam, arrebatadoras, como se fossem 20. Referir-se a si próprio na terceira pessoa virou sinônimo de vaidade desde que Pelé – e outras celebridades menos votadas – caíram nessa tentação. O autor de O Filho Eterno se enquadra na categoria dos que falam de si próprios na terceira pessoa por outro motivo: o excesso de pudor na hora de subir à ribalta para se expor aos olhos do público. É compreensível. O fato de a narração ser feita na terceira pessoa é, provavelmente, o único detalhe que impede O Filho Eterno de se enquadrar na categoria de autobiografia. Resta o “problema” literário criado por O Filho Eterno: a partir de que momento uma narrativa amparada em fatos deixa de ser uma autobiografia para se transformar em “romance”? É tudo uma questão de primeira ou terceira pessoa? Estudantes de Letras, se é que existem, mãos à obra! O Filho Eterno poderia também ser qualificada como uma peça do chamado “novo jornalismo”, uma reportagem irretocável, merecedora de todo aplauso numa época em que texto jornalístico, golpeado pelos “idiotas da objetividade”, cabeceia, também ele, como se fosse um boi no corredor de um matadouro. O livro não deixa de ser uma bela reportagem autobiográfica de um pai que toma para si uma tarefa dificílima: a de narrar uma dor inenarrável ou, para usar uma palavra que é cara ao autor, “irredimível”. A certa altura do texto, Tezza confessa ser um daqueles autores que, em nome da devoção incondicional à literatura, são capazes de engolir durante anos a fio recusas de editoras e eventuais fracassos de venda. Ainda assim, vão adiante, porque crêem que o que conta é o embate original com as folhas de papel em branco (ou com a tela alva do computador): neste cenário íntimo, pessoal e intransferível, os Cristovão Tezza entregam-se à acidentada tarefa de tentar traduzir a vida em palavras, “dar nome às coisas”. Todo o resto é acidente, vaidade, desvio, perda de tempo, mera conseqüência. “Os escritores brasileiros somos pequenos ladrões de sardinha, Brás Cubas inúteis”, diz, a certa altura do livro. Imagina-se, lá pelas tantas, autor de livros que ninguém lerá – e pai de um filho que não poderia amar. Mas persiste, porque, para ele, escrever é uma escolha radical, uma predestinação que não depende de coisas tão pequenas quanto os humores das editoras ou as leis de mercado. Quem termina a travessia arrebatadora das 222 páginas de O Filho Eterno haverá de sentir um alívio e uma alegria. O leitor concluirá que, feitas as contas, o poeta Drummond tinha toda razão ao dizer que nossa existência é “um sistema de erros”, “um vácuo atormentado”, “um teatro de injustiças e ferocidades”, mas, no caso de Cristovão Tezza, tanta dor, tanto tormento, tanto espanto, tanto vácuo, tanto remorso, tanta incredulidade, tudo, enfim, foi recompensado com uma bela contrapartida, o melhor prêmio que um escritor poderia esperar: concebeu um livro que todos deveriam ler sobre um personagem que todos haverão de amar. Chama-se Felipe. É este o nome do filho eterno. •

Trechos "Eu não posso ser destruído pela literatura; eu também não posso ser destruído pelo meu filho – eu tenho um limite: fazer, bem-feito, o que posso e sei fazer, na minha medida." (...) “Sem pensar, pega a criança no colo, que se larga saborosamente sobre o pai, abraçandolhe o pescoço, e assim sobem as escadas até a porta de casa." (...) "Durante todos esses anos sentiu o peso ridículo de ser escritor, alguém que publica livros aos quais não há resposta, livros que ninguém lê; e resistiu bravamente, e pelo menos nisso teve sucesso, ao consolo confortável, à coceira na língua, quase sempre calhorda, de despejar no mundo as culpas da própria escolha." O Filho Eterno, Cristovão Tezza, Editora Record, 224 páginas, 34,00.

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literatura No novo livro de contos de Luís Arraes, situações cotidianas e prosaicas se tornam matéria ficcional inventiva Luiz Carlos Monteiro

Entre a palavra e o silêncio

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prática da narrativa curta pelos autores con­ temporâneos tem se revelado uma tendência estética assumida por escritores conhecidos e estreantes. Talvez pela velocidade exigida pelo modo de vida e vivências atuais, ou por uma questão de driblar o tempo ou a sua falta, cai em relativo desuso cada vez mais a história longa, de enredo mirabolante, nume­ rosos personagens e espacialização que se abre em muitos lugares e extensões. É nesta perspectiva minimalista da prosa de ficção, com inclinação acentuada e preferencial para o conto, que o ficcionista Luís Arraes entretece os textos de O Silêncio É de Prata e a Palavra É de Ouro. Professor universitário e médico por formação, Luís Arraes transita com desenvoltura, como muitos outros profissionais de áreas diversas, pela criação literária. Sua bibliografia inclui, entre outros, trabalhos como O Rastejador, publicado no Recife em 1991, passando por O Remetente (2003), até chegar ao irônico e irreverente Anotações para um Livro de Baixo-Ajuda (2005), ambos editados pela 7 Letras no Rio de Janeiro.

Divulgação

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literatura Na primeira parte intitulada “O Silêncio”, os textos Kafka, Manuel Bandeira, Anton Tchekhov. Augusto aparecem numerados até 35, entre estes alguns também Monterroso, hondurenho naturalizado mexicano, é, titulados. Neste último caso, encontra­se o incisivo “Con­ certamente, uma grande influência em Arraes. É to em forma de posfácio”, de número 30, que vale por um Monterroso (1921–2003) quem dá a tônica da segunda verdadeiro auto de fé do contista: “Escrevo contos. parte, “A Palavra”. O microconto de Monterroso “O Pequenos contos. Cada vez menores. Talvez, uma Dinossauro” (“Quando acordei, o dinossauro ainda esta­ metáfora da vida. Tudo é inútil ou as palavras vão rare­ va lá.”) é parodiado, citado, invertido e parafraseado em ando até tornarem­se apenas silêncio absoluto. O eterno 40 textos que Arraes intitulou “Variações”. O texto destas silêncio”. A criação se confunde com a morte por descré­ variações já tinha sido publicado em outras ocasiões, sozi­ dito na vida, ou apenas pelo que ambas representam de nho, como parte de livros ou na internet, no site “Dubito silêncio cético e “eterno”. Ainda mais, pela necessidade e Ergo Sum”, subintitulado “Sítio cético de literatura e espan­ urgência da vida, pela escassez de vida to”. Referem­se diretamente a Monterroso fruindo em direção aos sentidos e ao pra­ as variações de 11 a 13, onde nesta última zer, um prazer quase sempre banalizado, Arraes lança luz sobre os sentimentos, que artificial, extremamente efêmero. podem sugerir e esclarecer, em termos do Não é demais lembrar o que o escritor fantástico e do surreal, sobre a presença do curitibano Dalton Trevisan afirmou, certa dinossauro na vida do hondurenho: “O vez, em depoimento sobre seu próprio dinossauro não sobreviveu mais que uns processo criativo: “Para escrever o menor poucos dias à morte do escritor Augusto dos contos a vida inteira é curta”. Isto Monterroso. Dessa forma, descobriu­se o mostra que o alcance de um texto, em ter­ que as ossadas existentes não revelaram: os mos de eficácia, não requer, necessaria­ dinossauros eram dotados de sentimen­ mente, que ele tenha a extensão de um tos”. tomo ou um tratado. Não há regras Mesmo que o texto de Luís Arraes O Silêncio É de Prata e a Palavra demasiado rígidas para a dimensão de tenha um andamento convencional em É de Ouro, Luís Arraes, Editora textos, para o estabelecimento das 7 Letras, 25,00. termos de sintaxe, o leitor é surpre­ fronteiras entre conto, novela e romance. endido, quase sempre, com uma frase Apenas cada gênero encontra a sua forma e, ao amoldar­ inusitada, uma expressão diferenciada que abala e se a ela, recebe a designação que lhe é devida e peculiar, muda o contexto, um verbo, um pronome, uma sem confundir­se com os outros. conjunção aplicada de forma absurdamente inventiva No texto seguinte, “Posfácio como conto”, Luís e infreqüente. É o caso, por exemplo, do texto 14: “Na Arraes reafirma o seu desejo de escrever – ou voltar a vida cabe tudo. O canto e o silêncio. A alegria e a escrever estória/história: “Escrever uma estória é meu tristeza. O sono e a vigília. A fina consciência das ideal, contar uma boa história. Maupassant. Tchekhov. coisas e a cegueira total. O domingo de futebol e o Um pequeno painel de vida, um pedaço de realidade e domingo lavando carro. A sede e a embriaguez. Cabe dos sonhos; tudo contido numa narrativa, com começo, tudo. Só não cabe a tragédia; esta já é do lado da meio e fim. Os detalhes que falam; o elefante atraves­ morte”. Situações cotidianas e prosaicas se tornam sando a sala que ninguém percebe”. Percebe­se que o matéria ficcional dos microcontos de Arraes: a família autor não faz opção radical pelo texto mínimo, deixando à mesa, assaltos, crimes, batidas de carro, enterros, em aberto a possibilidade de escrever um romance mar­ certo viés inédito da vida universitária, doenças, a cante e definidor para sua vida, arte literária e ofício de boemia e os amigos. O texto 5, sem título, resume­se escritor: “Só depois desse romance, minha alma se apa­ a “O celular não estava funcionando. Nem eu”. ziguará, só depois dele, quem sabe deixarei de ser alguém Poderia ser confundido com um poema marginal da que escreve livros para ser, de fato, um escritor”. geração 70. Reflete como as duas máquinas, a humana Ao longo de O Silêncio É de Prata e a Palavra É de e a metálica podem, de repente, ameaçar a normalidade Ouro, Luís Arraes vai subliminar ou diretamente forne­ da vida com a sua parada ou com a sua falta de cendo pistas sobre seus autores preferenciais – Franz funcionamento temporário. •

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Rosselini e a promessa que não se cumpriu Romance de Cícero Belmar flagra o Recife anos atrás, numa trama bem-urdida Anco Márcio Tenório Vieira

Rossellini entrevistado ao desembarcar no Recife: planos não realizados

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oi em 1958 que Roberto Rossellini desembarcou no Recife, depois de uma breve estadia no Rio de Janeiro. Decidido a filmar Geografia da Fome, de Josué de Castro, buscava locação para o seu documentário. Apresentado a Gilberto Freyre, sinaliza com a possibilidade de também levar às telas Casa-Grande & Senzala. Entre uma promessa e outra, nenhuma se cumpriu. Foi mais um projeto, entre tantos que enunciou, que ficou na intenção. É dessa quase esquecida visita do cineasta italiano que trata o último romance de Cícero Belmar: Rosselllini Amou a Pensão de dona Bombom (FCCR, 2006). Visita, frise-se, que serve como pano de fundo para a estória de Arcângela (dona Bombom), prostituta decadente e proprietária de um cabaré na rua do Rangel, no bairro de Santo Antônio. O livro de Belmar não esconde o bom jornalista que ele é. A frase é clara, o texto flui sem atropelos, as estórias de Arcângela e de Rossellini vão se encaminhando pouco a pouco para o seu entrelaçamento, e quando vemos o cotidiano recifense de 50 anos atrás tomou conta de nós; cotidiano de personagens fictícios (Edilza, Irmã Salete, Evilásio Praxedes, Bianca, Bibiana e Marechal), mas também dos que, na vida real, fizeram sua história: Aloísio Magalhães, Gilberto Freyre, Di Cavalcanti, Josué de Castro, Lula Cardoso Ayres, Carlos Pena Filho. No entanto,

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apesar de toda a leveza do texto, ele encerra alguns problemas estruturais que, se não o comprometem, tira um pouco do seu brilho. O primeiro deles é quando o romancista cede ao jornalista, como num ato falho. É assim no 2° capítulo, quando o narrador descrevendo os medos e as sensitividades da personagem Arcângela (que é filha de Oxum), além de um certo clima sobrenatural que existiria no Recife, diz: “Tanta gente já viveu e morreu no Recife, cidade secular, uma das mais antigas do Brasil, por onde passaram holandeses, portugueses, judeus, espanhóis, aos montes, e que agora eram almas penadas” (p. 24). Esta informação, que no conjunto da obra se faz desnecessária, dita apenas para mostrar o cosmopolitismo de uma urbe secular, omite que esta cidade foi habitada também por negros e índios. É o que também vamos notar no capítulo 14, quando o narrador explica o nome da cidade: “Por isso o nome da cidade era Recife, devido àquela muralha em frente ao cais. Uma proteção segura para a fúria do mar, pois se ela não existisse a terra firme seria alagada” (p. 103). Ainda no mesmo capítulo, Arcângela constata que a cidade sempre fora ligada ao porto. Logo, um lugar de marinheiros e prostitutas. Constatado tal fato, conclui o Rosselini Amou a Pensão de narrador: “Fora assim desde a época da colonização, com dona Bombom, Cícero Belmar, a soldadesca portuguesa e holandesa atravessando os Fundação de Cultura Cidade séculos dos bravos guerreiros, aclamados inclusive no do Recife, 240 páginas, 20,00. Hino Oficial do Estado de Pernambuco, até a Segunda Guerra e os dias atuais” (p.25). Não somente é uma informação duvidosa, como o narrador parece ceder aos reclames que cantam as belezas da capital de Pernambuco. Exaltação que se confirma na página 94, quando lemos que “o Recife era uma cidade de procissões. Terra de muito frevo, de muito maracatu, mas também de muita religiosidade”, e se completa na penúltima página do romance: “carnaval era festa mundana, que faz o povo esquecer as tristezas. Um bloco lírico, desses muitos comuns no Recife, terra do frevo e do maracatu e de muita folia. Os blocos líricos dão um toque de nostalgia quando a multidão parece ferver. À frente um flabelo, cartaz ornamentado, com o nome do bloco: “Todo Mundo Quer Chupar Bombom”, assim mesmo, com duplo sentido, pois toda agremiação carnavalesca do Recife, sem patrão nem comandante, tem um quê de irreverência e de comicidade, para casar com a animação” (237–238). Se o romancista volta e meia cede ao jornalista, aqui o jornalista parece ceder ao discurso oficial. Por fim, há algumas incoerências internas no texto. Somos informados, logo no início do romance, de que Arcângela nunca lê jornais nem ouve rádio. Mais adiante, no 8° capítulo, quando tenta arranjar casamento para as prostitutas Bianca e Bibiana, medita que dentre os freqüentadores do seu bordel, nenhum servia: eram homens formados, grã-finos, de sociedade, e que iam ao seu bordel apenas para se divertir. “Aqueles homens os jornais viviam colocando nas nuvens” (p.67). Mais adiante, contradizendo sua descrição do Recife como uma cidade de tantas revoluções, de “bravos guerreiros”, o narrador afirma que Austro Camargo, “como bom recifense”, era um “conservador”, “ridicularizava todos os novos comportamentos” (p.137). O fato é que se temos alguns poucos problemas estruturais que se perdem ao longo de uma romance de mais de 230 páginas, este, por ser tão bem-urdido, supera os seus próprios senões, e se faz leitura obrigatória para quem gosta de cinema e para quem pretende conhecer melhor um Recife distante e ainda tão presente em nossas vidas. Mais: o livro de Belmar penetra no cotidiano do Recife da década de 50 perpassando todas as classes sociais e revelando toda a diversidade do seu dia-a-dia social. Que venham outros romances. • Continente setembro 2007


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Sem amarras Ousadia formal garante a John Keats um lugar na modernidade Almir Castro Barros

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ontra o flagelo social, psicológico e moral, de quando em quando o acaso oferece às criaturas um eficaz remédio. Por esse meio, a esperança pode encontrar força num livro de grandeza, que há anos está só e de pé na pra­ teleira de uma estante. Aconteceu­me isto, na releitura de Poemas de John Keats, edição de 1985, com notas e tradução exemplar de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Da primeira leva de românicos ingleses (integrantes de segmento literário, e não sonhadores alienados, como se diz pejorativamente), Keats conseguiu impressionar e mesmo influir na poé­ tica de Alexander Pope, Lord Byron (seu quase depreciador) e Percy Shelley. Este último, diz­se, morto por afogamento em mar de tempestade, conduzia num dos bolsos o “Endimião”, poema longo e prenunciador de outros que alçariam Keats ao topo de reconhecida glória. Continente setembro 2007


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Imagens: Reprodução

Sua rápida existência dedicou à verdade e à beleza. E em cartas a amigos e Fanny Brawne, a doce amada, formulou conceitos sobre estes dois pilares da humanidade. A semente epistolar em Keats, certamente, pro­ duziu funda raiz em suas futuras Odes. Ele viveu somente 26 anos, de 1795 a 1821. Ainda assim, foi querido e odiado ao mesmo tempo, pela maneira como dirigiu o seu viver passageiro: recluso, mas conhecedor da alma de variadas gentes. Em “Ode Sobre Uma Urna Grega”, o poeta afirma perante o mármore: Quando a velhice destruir a geração de agora, Tu permanecerás, no meio de outras dores, Não das nossas, amiga do homem, a quem dizes: “A beleza é a verdade, a verdade a beleza” – é tudo O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber. Causa espécie a magia de que se vale o autor para enxergar e transmitir as pequeninas coisas, quase sem valor. E num tempo ostentoso, de arquétipo literário condicionante e rígido, só permitindo aos criadores beberem na fonte clássica e mitológica. Na “Ode a um Rouxinol”, Keats não contraria os dísticos do seu tempo, mas comete diatribes, já, a torto e a direito, capazes de encantar artistas vindouros – como W. B. Yeats ou T. S. Eliot, poeta e crítico literário de mérito, para acadêmicos e estudiosos de literatura. Pois bem. Do condorzinho em miniatura, do cambalhoteiro e desafiador de vácuos – o rouxinol – registra o vate: Ao longe, ao longe! Para ti quero voar, Não no carro de Baco e seus leopardos, Porém nas asas invisíveis da poesia, Embora o cérebro, pesado, hesite e me retarde. Invenção e palavras em Keats – ousam, ousam, ousam. Para deixá­lo sem amarras, e consorciado apenas com a prodigalidade. Entre nós, Augusto dos Edição em inglês das obras completas de John Keats, da The Wordsworth Anjos e Sousândrade perseguem a mesma índole de Poetry Library criação. Em sua arte cometeram assimetrias poéticas que os fizeram rebeldes geniais, ante preceitos esté­ tico­escravocratas “goela abaixo”, lecionados pela Europa de sempre. Quer enfoque a vida, o riso, a dor, estão no mesmo ritmo as outras odes e poemas de Keats, só ombre­ ado com as flâmulas do futuro. Numa combinação de fogo, rosa e lágrimas, confira­se isso na “Ode sobre a Indolência”, “Ode sobre a Melancolia”, “Ode ao Outono”, “Hino a Pã” etc. A leitura atenta desta poesia, meio egocêntrica e já próxima da modernidade, autoriza a conclusão: as obras­ primas estão sempre atreladas ao profético. Elas são como indormido progresso, sem nenhum controle de época e de mentes. Neste particular, vale focalizar o poema “Bardos da Paixão e da Alegria”, no qual o autor converte o tangencial da vida na imortalidade das almas, “que vivem outra vez em regiões novas.” Por fim – nas visões e transcendência de suas odes, o poeta faz mesmo um vaticínio dos atuais dias. Pobres dias, em que o mundo acabará numa montanha sórdida, onde os bons e indulgentes não ultrapas­ sarão o rés dessa andaimaria de feição desértica. E no seu topo – uns poucos – acenarão para nada, abarro­ tados de jaça. E perdidos de nenhum céu. • Continente setembro 2007


LITERATURA A Kabalah Editorial, do escritor Sidney Rocha, abre espaço para bons escritores ainda desconhecidos da mídia

Reprodução

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Talita Correa

Uma nova editora

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escritor cearense Sidney Rocha, nascido na cidade de Juazeiro do Norte e radicado no Recife há 20 anos, tem o gosto pela expe­ rimentação e a qualidade. Em 1992 publi­ cou Sofia, uma Brisa para Dentro, seu terceiro romance, vencedor do Prêmio Osman Lins de Literatura. A obra já denuncia o perfil detalhista e criativo do autor: além do projeto gráfico ousado, em que o livro apresenta na posição tradicional o texto em português e, de cabeça para baixo, em espanhol, é acompanhado por um CD, com as duas versões gravadas. “Na minha terra aconte­ ce assim: a gente ouve os contadores de história e vai recontando, refazendo, reescrevendo”, confirma Rocha, que destaca, ainda, em trabalhos como esses, a impor­ tância de adequar a arte literária a deficientes visuais. Inconformado com o número de autores de boa qua­ lidade que, entretanto, não têm encontrado editoras para veicular seus trabalhos, Sidney Rocha criou, há um ano, o projeto Kabalah Editorial que, apesar do nome de apa­ rência esotérica, nada tem a ver com o sistema religioso­ filosófico inquisidor da natureza divina. Pelo contrário, realista, prima pela qualidade que qualquer boa editora precisa ter, se quiser se impor no mercado, tratando o livro como um produto. “A experiência que apresentamos sob esse selo tem um viés de irritação com o lugar­co­ mum, com a falta de audácia de ini­ ciativas editoriais absolutamente aventureiras”, explica Sidney. A Kabalah já editou quatro obras. As duas mais recentes são Entre o Alho e o Sal de Lupeu Lacerda e Depois da Capela Tem um Abismo, um poema épi­ co de Marcos Leonel, todas duas com projeto gráfico diferenciado. Entre o Alho e o Sal, A primeira traz na capa (que se Lupeu Lacerda, desdobra numa espécie de sobrecapa) 136 páginas, montagens com histórias em quadri­ 16,00. Continente setembro 2007

nhos, com o título em alto relevo e, no interior, ilustrações de Leugim. Em texto de apresentação, Ângelo Roncalli classifica os poemas de Lupeu como “cânticos de beira de estrada”, uma “poeticidade de língua de trapo de poeta sem meias palavras”. Já o livro de Marcos Leonel tem a lombada à direita, e, à esquerda, as páginas coladas, o que leva o leitor a manusear o volume, intrigado, até descobrir que a capa, presa por um imã, se abre ao contrário, como um enve­ lope. Nela e nas páginas do miolo há ilustrações medievais e do século 18. Uma curiosidade a mais: o tipo da letra escolhida para compor os poemas é o Baskerville, dese­ nhado pelo inglês John Baskerville (1706­1775) e que é considerado o primeiro alfabeto transicional entre o estilo antigo e o moderno. O poema conta a viagem de um grupo de peregrinos até o Santo Sepulcro, partindo de um Cariri cenográfico e mágico, para além da história e da geografia. Para Mário Hélio, é uma “poesia de nervos e de ossos”. Ao criar a Kabalah, Sidney Rocha teve a preocupa­ ção de fugir ao rótulo de ser uma editora pernambuca­ na. “O livro não é livro de Pernambuco, de Alagoas ou de Sergipe. O livro é o mesmo em todo lugar”, obser­ va, ressaltando que, sem estereótipos regionais, o livro deve ser conhecido como um produto com significado universal. “As experiências editoriais, pelo menos em Pernambuco, são, quase sempre, frutos de modelos somente apaixonados, que pouco se espelham na realidade do mercado”, afirma ele. A Kabalah, é verdade, partiu de uma paixão pelos livros, mas, desde seu começo, houve a intenção de apresentar o livro como Depois da Capela um objeto comerciável. É como se Tem um Abismo, Sidney Rocha dissesse: é possível Marcos Leonel, 112 páginas, 20,00. sonhar, mas sem se iludir. •


Poemas de

Heitor Araújo

Heitor Araújo

POESIA

Ela

A Evaldo Coutinho

Como uma montanha Eu a contemplo E ela infinita

Passeio Mudo Preto, branco

Vigília

A fita que à vista desfila No horizonte quadro a quadro Das janelas do ônibus avenida adentro Recorta redenteada franja Do mormaço azul No alto Da contínua tela

Aguardo Até quando o pão O vinho, o chão Breve, vierem Aos que se E a eles, querem

Ora, Bela! Infanta Aqui estou Acorde Me olhe Levante Vamos, enfrentemos Mano a mano Fronte à frente O longo, o largo, o inverso O subido, o sublime O verso

O vinho e o vulto Vai um vinho entranha adentro Adentrando um soturno só Soturno que só divide Com vulto operoso, velho Antigo naquele lugar Afeito ao seu mister Ou descobrir ou ocultar

Travo sempre um pouco mais Três ou quatro sentidos Quando estou fora Côo o que escoa ao entorno Sem alarde Iluminada sombra de sorriso frágil Que sempre assume papel no meu semblante Dissimula e mascara Quando só velo, quando sou velante Recolho-me a escafandro imerso Em mim autônomo Pelo qual olho as telas móveis Das janelas Quase não há pessoas nelas Sim, as há Instantâneas inexistências Seqüências trêmulas, passageiras Da cidade que é Um filme só abruptos imóveis chapados Em contínuo aviamento Quando na cidade Me envulto Parado Quando na cidade Seu vulto Percurso, cinzento

Heitor Araújo é poeta e arquiteto pernambucano.

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PROSA

Dona Tonha Jonatas Ferreira

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crime e olhos terríveis sempre me ligaram à minha avó materna. Antônia Maria da Conceição se chamava. Nome de camponesa, bóia-fria; corpo ágil de dançarina de bumba, voz surpreendente, capaz de entoar ornamentos complicadíssimos, microtonais, ecos mouros em meu coração e na sua garganta. A boca banguela, maxilares castrados de canto a canto desde a adolescência. Assim é que se afirma em minha família, e com razão, que Deus escreve certo por bocas murchas. Tivesse Ele lhe preservado os dentes, alguns poucos marfins, e a história da monocultura nordestina poderia ter sido outra. Não que ela tivesse qualquer consciência política revolucionária, mas sabia odiar bem a mão que a maltratava. “Odiava numa intensidade com a qual não sabia amar”, disse-me dela certa vez meu avô. Haviam juntado os trapos e os bichos-de pé não sei bem como, mas o motivo da separação era comemorado pelos dois quando se tornaram primos e amigos outra vez. Isso só veio a acontecer quando ambos contavam perto de setenta anos. Riam muito das traições e vinganças mútuas, novas traições e novas respostas e, acredito, muitas bordoadas nos intervalos. “Aquela mulher era capaz de qualquer coisa... O mesmo jeito que tinha para o bailado, para o coco-de-roda, tinha para a maldade”, disse-me certa ocasião meu avô, enquanto macerava cascas de coco apodrecidas. Mandou-a embora quando percebeu que seus olhos brilhavam mais que a faca que ela passara o dia acariciando com um esmeril. Depois que deixou meu avô (o Senhor João da Manteiga, ou João da Ursa, ou João Marques) e minha mãe, esta ainda de colo, levou uma vida cigana por esse vasto mundo que é a cultura canavieira nordestina. Levava consigo meu tio José e uma cadela que amava muito. Sua companheira. Deveria ter um nome, pois minha avó tinha um talento enorme para botar nome nas coisas, fazer imitações perfeitas dos defeitos alheios, e tomar aguardente. Não inventarei um nome qualquer para o seu animalzinho porque certamente ficaria lhe devendo em qualidade, inventividade e bom-humor. Mas a cadela era sua querida companheira de sofrimento, privação e fugas constantes. Companheira que em um belo dia cruzou com um vira-lata qualquer (um Piaba ou Xaréu da vida) e pegou um bucho, de onde nasceram cinco cãezinhos. A cadela pariu durante uma das idas de minha avó à roça no único local que lhe pareceu confortável e acolhedor o suficiente: o catre onde dormiam minha avó e meu tio. Ao chegar em casa depois de um dia no cabo da enxada, minha avó contemplou o espetáculo da vida, e seus líquidos, e talvez alguns dos versos finais de Morte e Vida Severina tenham se produzido inconscientemente em seu cérebro. Seus olhos desatinados, fatigados, porém, diziam algo diferente. Pegou um a um os pequenos cãezinhos e arrebentou-os na parede da pequena tapera. Em seguida quebrou o pescoço da cadela e como não houvesse nada mais por fazer em relação ao caso, correu em volta de seu casebre durante duas horas. Parou afinal exausta, diante de uma goiabeira frondosa, e tentou derrubar a árvore a testadas. Não obteve sucesso na empreitada. Após algumas tentativas, caiu inconsciente no chão. Meu tio José, de seus cinco anos de idade e desnutrição, assistiu a tudo paralisado num banco-de-pelar-porco abandonado no quintal. Dona Tonha acordou sozinha e foi lavar os seus lençóis e limpar a casa do sangue dos pobres animais. Apagou entre lágrimas, mas sem emitir um som, as marcas de seu depoimento. Continente setembro 2007


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Naquele ano a goiabeira teve uma floração estranha. De cada pequena flor amarela que se abria não se percebiam as pequenas e finas pétalas amarelas tão comuns nesse tipo de árvores, mas gritos, gritos intensos que assombraram por um mês os moradores daquelas paragens. Ganidos, uivos, gritos humanos, terríveis gritos de dor compondo uma

sinfonia macabra. Quando essas pétalas sonoras caíram, aos poucos uns frutos estranhos, bizarros cresceram de seus receptáculos. Dentes humanos! Dentes humanos, perfeitos, expostos à chuva, ao sol e ao verde do canavial. • Jonatas Ferreira é doutor em Sociologia e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Continente setembro 2007


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AGENDA/livros Gênese de O Capital

Crônica do crime anunciado Relançado o livro em que Ana Maria César reconstitui vividamente o assassinato de um bispo por um padre na década de 50

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o dia 1º de julho de 1957, Garanhuns, cidade do Agreste Meridional de Pernambuco, ganhou as manchetes dos jornais do mundo ao ser palco de um crime insólito.” Assim começa A Bala e a Mitra, livro­reportagem de Ana Maria César, relançado recentemente pela Editora Bagaço, do Recife. Na noite anterior àquele dia, o padre Hosana de Siqueira e Silva, pároco de Quipapá, assassinara com três tiros o bispo dom Expedito Lopes, que o suspendera de ordens dias antes, em vista de notícias escandalosas das relações do sacerdote com uma empregada de sua residência. As circunstâncias absolutamente incomuns do fato abalaram a Igreja, criando enorme comoção à época. Mais de três décadas depois, a advogada e bacharela em Letras Ana Maria César, filha do juiz que presidiu a um dos julgamentos do padre Hosana, caiu em campo para reconstituir os inusitados feitos que desaguaram naquele dia cinzento e frio do inverno de Garanhuns. A pesquisa minu­ ciosa baseou­se em peças dos inquéritos policiais e dos julga­ mentos, nas notícias da imprensa, em cartas e outros docu­ mentos de primeira mão e em diversos depoimentos de tes­ temunhas e do próprio assassino, transformado num fazen­ deiro de cabelos brancos depois de cumprir metade da pena e ser posto sob liberdade condicional. O ponto alto da narrativa é a notável reconstituição da época, com descrição vivaz e ágil de costumes e paisagens, num for­ midável painel social onde estão presentes a rotina das pequenas cidades, a religiosidade, a política partidária, o odor de flores, a ondulação dos canaviais e o trepi­ dar do trem. A personalidade do padre­assassino é desvendada, paulatinamente, assim como suas motivações, numa teia tecida com os fios de uma narrativa finamente literária. (Homero Fonseca) A Bala e a Mitra, Ana Maria César, Edições Bagaço 352 páginas, 30,00. Continente setembro 2007

O Capital de Marx, do jornalista Francis Wheen, conta de maneira instigante como se deu a gestação de Das Kapital, de Karl Marx – um livro que, para o bem e para o mal, mudou o rumo da História e influenciou (e segue influenciando) várias gerações. A ori­ gem das idéias e do estilo literário emprega­ dos por Marx são investigados e colocados junto aos fatos do seu tempo e de sua vida pessoal. A importância da obra, asse­ gura Wheen, está em formulações pioneiras, como a que fez sobre a globalização, o mal­estar da modernidade, o declínio da alta cultura, o progresso técnico etc. O Capital de Marx: Uma Biografia, Francis Wheen, 136 páginas, 29,90.

Crítico bolchevique Nos verões de 1922 e 1923, quando o res­ caldo da Revolução de Outubro ainda fumegava, o homem que participara ativa­ mente da sublevação bolchevique e de­ sempenhava, então, ao lado de Vladmir Lênin, papel central na condução do novo regime, León Trotski, teve tempo para escrever um livro de crítica literária. O mais surpreendente é que, mesmo em meio a retumbantes declarações do que seria certo ou errado na ótica revolucionária, defende a criação artística livre da tutela do Partido e revela­se um humanista ao tratar dos suicídios de Maiakovski e Iessênin. (HF) Literatura e Revolução, Leon Trotski, Zahar Editor, 249 páginas, 32,00.

Antes da Guerra

Gertrude Stein, escritora americana, foi mentora e anfitriã de boa parte da geração de intelectuais, escritores e artistas de todos os matizes que vivia na Paris dos anos 20, em saraus regados a vinho e discussões literárias, na rue des Fleurus, 27. Paris França é o relato de suas memórias pré­Segunda Guerra, na cidade adotada por ela, escritas em seu estilo peculiar, onde se misturam memórias de infância, moda, o temor da guerra avizinhando­se e até os gatos da cidade­luz. O livro foi publicado no primeiro dia do cerco alemão à França. Paris França, Gertrude Stein, José Olympio, 154 páginas, 27,00.

Arte + mídia

Muito mais que apontar o uso dos meios tecnológicos pela arte ou a forma como ela é veiculada pelos meios de comunica­ ção de massa , o doutor e professor da PUC–SP Arlindo Machado tenta expli­ car como essas duas “entidades”, a arte e a mídia, com históricos tão distintos entre si, relacionam­se e apropriam­se uma da outra no mundo contemporâneo. Todas as controversas ques­ tões intrincadas nessa dita aproximação são analisadas por Machado, que termina tocando nos principais pontos que envolvem a discussão sobre a cultura na contemporaneidade. Arte e Mídia, Arlindo Machado, Jorge Zahar, 88 páginas, 22,00.


Mestre maneirista Edição do diário do pintor italiano Iacopo Pontormo faz justiça ao seu gênio

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urante muito tempo o estilo de pintura chamado de Maneirismo foi tido como um “vácuo entre dois cumes” (o Classicismo renascentista e o Barroco), um estilo afetado e decadente. Foi só a partir do início do sécu­ lo 20 que se começou a perceber o Maneirismo como uma escola importante, capaz de impor na arte o subjetivismo e o emocional, através de distorções e contrastes agudos. É com a valorização da escola que também começa a se dar a merecida importância ao trabalho de Iacopo Carucci, mais conhecido como Iacopo Pontormo (1494­ 1557), pintor contemporâneo de Miguelan­ gelo que, por sinal, o admirava. Parte do descrédito em que esteve mergulhado Pon­ tormo se deve à descrição que dele fez o arquiteto Giorgio Vasari, autor de biografias de artistas de sua época. Vasari o descreve como um “miolo mole”, tentando amenizar como inconseqüentes, diante da Inquisição Em Nome do nascente, a crueza de seus quadros. Corpo, Iacopo Pontormo é também autor de um curio­ Pontormo, Ateliê so diário, escrito nos três últimos anos de sua Editorial, 204 vida, em que entremeia relatório dos regimes páginas, 40,00. alimentares a que se submetia, com descri­ ções de achaques, episódios cotidianos e seus progressos no trabalho, ilustrando­os com desenhos. É este o texto que Homero Freitas de Andrade traduziu e que o Ateliê Editorial publica em edição bilíngüe, com os desenhos origi­ nais. Complementam o livro estudos sobre o trabalho do pintor italiano e sua importância na história da arte. (Marco Polo)

Transitório e transcendente Apesar da pouca idade (nasceu em 1979), a paulista Mariana Ianelli já é autora de quatro livros de poesia bem­recebidos pela crítica especializada. Agora, publica este Almádena, dividido em 12 partes, abertas por epígrafes do Padre António Vieira, em que reafirma um texto forte, mas também elegante, o que, aliás, condiz com sua definição de poesia como “um exercício amoroso de resistência contra a bestialidade”. Se em seu primeiro livro, Trajetória do Antes (1999), havia uma mescla de angústia e sensualidade; se no segundo, Duas Chagas (2001), questiona os homens e o mundo; se no terceiro, Passagens (2003), tenta renomear o mundo que desabou no caos; e, se no quarto, Fazer Silêncio (2005), vai do homem à metafísica, neste Almádena, cada parte é tomada por um poema longo, abordando temas como o nascimento do ser, a despedida e a perda, a eternidade da morte e a violência do êxtase, entre outros, num leque em que reafirma a potência do poema como arco que liga o transitório ao transcendente. (MP) Almádena, Mariana Ianelli, Iluminuras, 104 páginas, 29,00.

AGENDA/livros Questionamentos

Neste livro o pensador Luciano Cânfora destrói as ilusões que ainda possam rondar o conceito de democracia quando aplicado na prática. Ques­ tionando o que se convencionou qualificar como valor perene demonstra contundentemente como e quanto a retórica que cerca a democracia é manipulada pelos donos do poder para nele se perpetuarem, justificando o comando da maioria por um pequeno grupo. Boa reflexão para um mundo que aplaude em uníssono as “virtudes” do neoliberalismo. Crítica da Retórica Democrática, Luciano Cânfora, Estação Liberdade, 120 páginas, 27,00.

Sentimentos recalcados

Este livro inicia a coleção Elementar, meu Caro Leitor com que a Bom Texto Editora pretende mostrar que romance policial não se limita às velhas fórmulas do policial inglês, com um detetive cerebral diante de um enigma criminoso, ou da vertente norte­americana, com detetive durão trocando socos e tiros com bandidos. O romance de Miriam Mambrini privilegia o aflorar de sentimentos recalcados de uma família burguesa, diante do seqüestro de uma criança. A necessidade de culpar o outro, a insegurança, os ciúmes e frustrações crescem diante da visão de um cotidiano destruído por uma ação maléfica. O Crime mais Cruel, Miriam Mambrini, Bom Texto Editora, 231 páginas, 39,00.

Ensaios sobre arte A coletânea de artigos de Rodrigo Naves, com­ pilados sob o título O Vento e o Moinho – Ensaios sobre arte moderna e contemporânea, traz à tona as principais questões que envolvem a transição da chamada arte moderna para a arte contemporâ­ nea, em textos escritos nos últimos 30 anos. O autor crê que a produção moderna só pode ser comparada, em termos de quantidade e diversidade, à produção da Renascença. A produção atual vive um momento de grande visibilidade e de mudanças contínuas que, segundo ele, representam mais um estado da situação social contemporâ­ nea que o ímpeto das próprias manifestações artísticas. O Vento e o Moinho – Ensaios sobre arte moderna e contemporânea, Rodrigo Naves, Companhia das Letras, 512 páginas, 59,00.

Economia e cultura Em A Economia da Cultura, Françoise Benhamou tira do universo acadêmico os estudos e análises desse não tão novo nicho de conhecimento, tratan­ do as diversas áreas culturais e suas cadeias produ­ tivas como produtos economicamente ativos. Com um vasto conhecimento sobre a economia cultural no ocidente, faz um retrospecto cronológico das teorizações dos últimos 40 anos sobre o tema, tecendo comentários interessantes sobre as políticas culturais francesas, centralizadas na mão do Estado, e a descentralização dessas propostas no mundo anglo­saxão. A Economia da Cultura, Françoise Benhamou, Ateliê Editorial, 200 páginas 32,00. Continente setembro 2007

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MÚSICA

Laboratório de regentes Quarta edição da Mostra Internacional de Música de Olinda aumenta o número de concertos nas Igrejas de Olinda Carlos Eduardo Amaral

Imagens: Divulgação/Sidney Waismann

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Isaac Karabtchevsky ministrará um curso de regência, inédito no Brasil, para 15 alunos previamente selecionados

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arcar compassos, indicar entrada de instrumentos, cuidar do equilíbrio do conjunto sonoro. Práticas básicas da arte e da técnica da regência, mas que por si sós não garantem a boa atuação da orquestra. Existem outras noções que diferenciam o maestro meramente técnico do maestro artista e intérprete e que se assemelham a uma verdadeira homilética. Com a carência de cursos de aperfeiçoamento para profissionais desse mister musical, a Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo) promove pela primeira vez no Brasil o curso de regência ministrado por Isaac Karabtchevsky, que vive há sete anos em Riva del Garda, Itália. Dos 15 alunos participantes, selecionados por currículo e análise de performance gravada em DVD, os seis de melhor desempenho ao longo da primeira semana de setembro regem a Petrobras Sinfônica no concerto de encerramento do curso, na manhã do dia 8 de setembro, na Igreja da Sé. O programa estabelece peças consagradas nas salas de concerto brasileiras e internacionais: o Prelúdio da Bachianas Brasileiras nº 4 de Villa-Lobos, a protofonia de O Guarani de Carlos Gomes e a Sinfonia nº 5 de Tchaikovsky – bem-conhecidas dos músicos e sem maiores dificuldades de execução, porém, por isso mesmo, imperdoáveis ante eventuais deficiências de expressão do regente. Continente setembro 2007


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MÚSICA Muitos candidatos se habilitaram a tomar parte somente como ouvintes, o que motivou Karabtchevsky a adaptar o conteúdo de modo a também envolvê-los nas aulas. “Nelas pretendo um cotejamento de diversas experiências, visto que o panorama brasileiro, pela ausência de orquestras à disposição de jovens talentos, não é definitivamente alentador. O conceito então é o de se aproveitar 15 alunos, distribuídos em grupos, com aulas práticas e teóricas.” Oportunidade rara tanto pelo peso do conteúdo quanto pelo preço: a inscrição é gratuita,

Considerado um dos maiores violoncelistas da atualidade, Antonio Meneses estará mais uma vez na Mimo

quando, em circunstâncias normais, os interessados desembolsariam o equivalente a mil euros. Karabtchevsky salienta os principais obstáculos de um maestro em início de carreira e que justificam suas preocupações: “O instrumento dele é a orquestra. Enquanto um pianista tem o seu dentro de casa, um violinista carrega o seu para onde for e um cantor se locomove com a própria voz, um regente na maior parte das vezes trabalha com um conjunto de jovens alunos, iniciantes como ele, em cursos oficiais existentes, mas quase nunca ante

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uma orquestra profissional, com repertório cristalizado”. O maestro explica que formar um coral tem sido uma alternativa que não chega a preencher todas as ambições e necessidades. “É fundamental ao seu aprimoramento e ao encontro consigo mesmo praticar com grandes orquestras.” Meneses – Depois de iniciar as comemorações de seus 50 anos no Sudeste e dar andamento a seu projeto de encomenda de obras brasileiras inéditas para cello, Antonio Meneses realizará recital que inclui arranjos das Bachianas Brasileiras nº 2 e nº 5 de Villa-Lobos, a Sonata para violoncelo e piano nº 3 do tcheco Bohuslav Martinu, e duas preciosidades: as Três Peças para Violoncelo e Piano, da lendária Nadia Boulanger, e a Sonata para violoncelo e piano nº 1, de Camargo Guarnieri, acerca da qual Mário de Andrade em 1935 escreveu: “Trata-se de uma obra fortíssima, extremamente bem arquitetada, severa mesmo na sua construção. (...) Há nela um sopro escaldante de asperidade fosca, trágica às vezes”. Marcam presença inédita os Czech Chamber Soloists, grupo formado por solistas de câmara que integram a Filarmônica de Brno, na República Tcheca. O ensemble existe há mais de três décadas, criado sob direção do spalla Miroslav Matyá para suceder o famoso Collegium Musicum Brunense e é formado por 12 cordas e solistas de piano, cravo e sopros. A música de câmara na Mimo terá também a Camerata Petrobras, que dedicará um concerto a Piazzolla e outro a Vivaldi. A


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Ladeiras – A idéia de distribuir concertos entre as várias igrejas da cidade histórica e fazer o público percorrer as ladeiras que as separam – induzindo-o naturalmente a visitar ateliês e a admirar o antigo casario – vingou e firmou Pernambuco no calendário nacional da música clássica. A Mimo veio fazer companhia ao “Virtuosi e variações (Virtuosi Brasil e Virtuosi na Serra)” e concedeu cadeira cativa à Petrobras Sinfônica, que só ficou de fora da primeira edição. Naquela ocasião, em 2004, a Sinfônica do Recife tocou com Nelson Freire no Alto da Sé. Hoje em dia, a platéia de concertos sinfônicos do Estado pode comparar a interpretação das duas orquestras e a do Virtuosi. Além dos concertos, a Mimo oferecerá uma série de atividades paralelas, destinadas a estudantes de música e ao público em geral. A mais prestigiada será o curso de regência ministrado por Karabtchevsky, inédito no Brasil. Dos 15 alunos selecionados para a semana de aulas, os seis mais destacados conduzirão a Petrobras Sinfônica num concerto especial da programação principal. Já os estudantes de instrumentos terão master classes com: Antonio Meneses (violoncelo), Cristiano Alves (clarineta), Maria Clodes Jaguaribe (piano), Nathalie Stutzmann (canto lírico) e integrantes do Czech Chamber Soloists (música de câmara). As oficinas de formação de orquestra contam com a participação de músicos atuantes em grupos sinfônicos e de câmara, entre eles: o violonista Caio Cezar, o bandolinista Marco César

e o violoncelista David Chew. Os workshops trazem Yamandu Costa, Hamilton de Holanda e o Uakti. A Mimo para Iniciantes levará aulasespetáculo para crianças da rede pública de ensino, entre 8 e 12 anos, a fim de promover o primeiro contato das crianças com os instrumentos que compõem uma orquestra. •

O clarinetista Paulo Moura e o pianista João Donato exibirão o repertório do CD Dois Panos pra Manga

Divulgação / Joaquim Nabuco

Camerata será formada por integrantes da Petrobras Sinfônica. Como a Mostra não contempla só a música clássica, os fãs da MPB instrumental vão poder assistir ao clarinetista Paulo Moura e ao pianista João Donato na exibição do repertório do CD Dois Panos pra Manga. O álbum é uma homenagem a Frank Sinatra e Nat King Cole e aos compositores que influenciaram o formato da bossa-nova: Braguinha, João Gilberto e George Gershwin. Outro show reunirá o “multi-violonista” Yamandu Costa e o bandolinista carioca Hamilton de Holanda, recém-vencedor do Prêmio Tim 2007, como melhor solista de música instrumental.

Mostra Internacional de Música de Olinda,de 3 a 9 de setembro, nas igrejas da cidade alta. Entrada gratuita. Mais informações: www.mimo.art.br

Aula com Jerzy Milewsky (violino) e Aleida (piano), na Mimo para Iniciantes

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Beatles forever na terra de Luiz Gonzaga

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o início ao fim da carreira, os Beatles sofreram diversas transfor­ Nos 40 anos de mações, tanto no aspecto físico quanto no sonoro – da cara limpa, lançamento do álbum cabelo certinho e o iê­iê­iê de Please, Please Me (1963) à barba e Sgt. Pepper's Lonely bigodes, cabelo largado e o som quase progressivo de Let It Be Hearts Club Band, vários (1970). Este ano, quando o revolucionário álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club grupos recifenses têm Band completa quatro décadas, vários grupos atuam no Recife tendo como como repertório as repertório canções imortalizadas pelo Fab Four. A atualidade do que os quatro rapazes de Liverpool fizeram não distingue músicas dos Beatles Marcos Toledo

Beatles Again: Rogério, Fernando, Roberto e Wellington

idade. Pessoas que vivenciaram os hits do grupo na época em que estes subiam nas paradas de sucesso dividem hoje o palco com jovens que nem tinham sido concebidos. Jovens de ambos os sexos, capazes de formar um Fab Four só de

Flávio Lamenha

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mulheres. E nem sempre são quatro. Número, gênero, idade, profissão, crença, nada disso conta. O importante é perpetuar a beatlemania. “Não é cover na essência, porque não tem a confi­ guração, a imitação. É mais uma banda tributo”, define o guitarrista Wellington Gadelha quando fala de sua banda Beatles Again. Junto com os irmãos Roberto e Rogério (vozes) e Fernando Martins (guitarra), mais o baixista Afonso, todos na casa dos 50 anos de idade, eles têm como motivo de orgulho o fato de terem vivido o frisson da época do conjunto no qual se espelha, com exceção do baterista Fábio, que tem 22 anos. É Fernando Martins quem explica por que os Beatles eram mais que o coral perfeito e belas harmonias. “Naquela época, nos Estados Unidos, os jovens questio­ navam a guerra do Vietnã. Em maio de 1968, os jovens se sublevaram na França. Aqui, surgiu o Tropicalismo, que era uma forma de se contrapor à ditadura através de um derivativo cultural. A música dos Beatles permeava isso tudo. Eles não faziam só música; deixaram um legado de revolução cultural. Valeu a pena viver aquele tempo porque aprendemos a nos preocupar por uma sociedade mais justa. A procurar exercer a justiça. De certa forma, devo isso a pessoas como Che Guevara e aos Beatles. Hoje em dia sou aberto a tudo graças ao que aprendi naquela época. Tenho meu ponto de vista mas estou disposto a ouvir o ponto de vista do outro”, conclui Fernando. A Beatles Again chegou até a gravar recentemente um CD com 16 canções de várias fases da carreira do quarteto formado por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. “Não se trata de saudosismo. É satisfação”, fala Wellington.

A Rec Beatles, outra banda dedicada a tocar músicas do Fab Four foi formada em 2004 como The Beatles Cover, quando chegou a tocar 17 vezes em um só mês em casas noturnas e em festas particulares no Recife. Atualmente formada por Murilo Nóbrega (bateria, voz e percussão), Waldir (baixo – um Hofner da Epiphone semelhante ao usado por McCartney –, violão, teclado e voz), Carlos Vilanova (guitarra, sintetizadores e violão) e Vinicius Uaide (guitarra, violão e voz), a Rec Beatles não tenta ser igual aos originais. “Mas tem coisas que não podem ser mexidas, como as vozes”, exemplifica o bate­ rista, que faz a voz de Lennon. “A gente procura ouvir o som dos caras e sintetizar do jeito da gente. O que é marcante em cada música – um som, um riff, um jeito de cantar – não pode ser mexido.” Foi da Rec Beatles a idéia de criar na cidade o Clube dos Beatles, atualmente ancorado no bar Confraria da Jaqueira, na Zona Norte da cidade. O evento, que conta com o apoio do Beatles Box, programa produzido pela jornalista Evelynne Oliveira (sábados, às 16h, na rádio Universitária AM – 820 kHz). Agora, a Rec Beatles se prepara para representar o Brasil, em dezembro deste ano, em um concurso anual na Argentina, que reúne bandas que fazem tributo do Fab Four. O vencedor ganha a chance de tocar no lendário Cavern Club, na Inglaterra, onde os Beatles fizeram história. A paixão pelos Beatles mexe com tanta gente que quatro garotas, um dia convidadas para animar uma fes­ ta, acabaram se rendendo ao repertório do quarteto inglês. Essa história já tem cinco anos, tempo que Iana (voz), Patrícia Cedraz (baixo) e Isabel Wanderley (bateria) formaram a 10 pras 4. Atualmente com Rebe­ kka Klaus na guitarra, o conjunto diz que continua sem pretensão e toca apenas para se divertir. “A maioria das músicas a gente escolhe pela energia”, conta Iana, que é também vocalista da banda de rock Carfax. “Muita gen­ te quer ver porque fica curiosa se as meninas sabem tocar”, diz. E as garotas não decepcionam ninguém, optando por uma leitura simples das canções dos Beatles, com uma sonoridade limpa e eficiente. Junto com outras, como a recente Fab Five e a veterana Revolution, essas bandas mantêm viva a beatlemania na terra de Luiz Gonzaga. • Continente agosto 2007

Divulgação

Ringo, Paul, George e John: Beatles continuam influenciando gerações


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Rupturas nas cenas do Recife Com uma revista, shows mensais e um festival anual, além do programa de rádio, o Coquetel Molotov conquista seu espaço na cena cultural da cidade Bruno Nogueira

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ara o acadêmico Howard Becker, os grupos sociais são criados a partir de regras, cujas infrações, aplicadas a um grupo, constituem um desvio comportamental . Ou seja, o outsider – aquele fora do padrão de comportamento – não é o indivíduo, mas, sim, como as várias pessoas se comportam a partir de suas transgressões. Sob quase todos os aspectos, o grupo de produtores – geralmente chamados de coletivo – do Coquetel Molo­ tov são os mais sinceros outsiders gerados em Pernambuco. Em 2004, ano em que aconteceu seu primeiro festival, o público de música jovem e “tradicionalmente alternativa” do Estado tinha duas opções de diversão. O Festival Abril pro Rock, no mês que carrega no nome, e o palco pop do Carnaval, chamado Rec Beat. Ambos, em suas histórias, com o apoio conquistado da mídia tradicional como rádio e Tv. Até então, uma banda como a escocesa Teenage Fanclub não tinha motivo para ser comentada na cidade. Seus fãs, esses próprios uma representação social fora do comportamento comum, jamais imaginariam vê­los ao vivo no Recife. “Tivemos a oportunidade de trazer a banda e pensamos que seria legal montar um festival para isso”, lembra a ponta da pirâmide do Coquetel Molotov, Ana Garcia. Naquela tempo, o grupo de estudantes de jornalismo que tinha se conhecido na Universidade Católica de Pernambuco apresentava um programa de rádio – como extensão das


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Costa Neto/Divulgação

Ana Garcia, Jamerson de Lima e Tathiana Nunes, o trio que faz o Coquetel Molotov

atividades universitárias – e distribuía um fanzine de papel pela cidade. Outras bandas, que tinham como referência não apenas a escocesa, mas outras bandas fora do circuito de rádios, também jamais pensariam fazer parte de um festival. “Profiterolis e Mellotrons só tinham demos, nunca haviam tocado além de festas pequenas”, comenta Ana. Foi no mesmo período que o grupo decidiu lançar um site. “Acho que quando as pessoas se referem a nós como coletivo, falam de um coletivo de atividades diferentes”, reflete o jornalista Jarmeson de Lima. Hoje, além dele e de Ana Garcia, o grupo também é formado pela jornalista e mestre em comunicação social Tathianna Nunes. Outros membros entraram e saíram ao longo dos anos, “mas na verdade não são apenas três pessoas, porque trabalham, junto à Mooz, uma equipe de designers e nossas famílias, que também participam das nossas pro­ duções”, reforça Ana. Seus pais, o maestro Rafael Garcia e a pianista Ana Altino, são os responsáveis pelo Festival Virtuosi, que acontece há 10 anos no Recife. A partir deste momento, o grupo começou a tomar proporção na cidade. Bastante similar ao que o sociólogo

Dick Hebdige delimita quando dá o conceito de sub­ culturas, foi criada uma tensão fundamental entre aqueles no poder para fazer algo acontecer no Recife e aqueles que até então eram condenados – palavras de seu Subculture: the meaning of style – a vidas de segunda classe. “Foi tudo muito natural, começamos fazendo algo com bandas de que nos gostávamos e foram aparecendo outras pessoas”, comenta Tathianna. “Uma cena não nasce de uma pessoa só, é preciso pré­disposição para isso, com várias coisas funcionando ao mesmo tempo”, completa Jarmeson. Várias coisas, sim, quase todas partidas do próprio Coquetel Molotov. Hoje, o grupo tem controle sobre a fomentação de seu próprio público, organizado shows mensais na Livraria Saraiva, um programa de rádio semanal na Universitária FM, uma revista trimestral, o festival, um selo para lançar e distribuir bandas (Bazuka discos) e um circuito de shows anuais chamados Invasão Sueca, onde trazem bandas da Suécia para turnês no sudeste do Brasil. Paralelamente, passaram a fazer também assessoria de imprensa para o Festivaal Virtuosi e o Recbeat. Também estão começando a organizar eventos em casas noturnas da cidade. O Coquetel Molotov vira então exemplo para a pró­ pria crítica de Michel Thorton ao conceito de subcultura de Dick Hebdige, quando entram no campo da desterritorialização. As ações do grupo de produtores não são mais uma subversão do fluxo principal da cultura. A participação do público nos eventos do Coquetel não é para gerar oposição a outros eventos, mas para construir um coletivo próprio. “A carência da cidade é tão grande que quase não temos críticas”, confirma Tathianna. Uma das poucas críticas relevantes feitas ao trabalho do grupo é a programação – do festival e da rádio – baseada em bandas que estão fora do alcance para quem não tem acesso, por exemplo, à internet. “Sempre nos colocamos como público, então trazemos bandas que queremos ver, mas em determinado momento sentimos necessidade de pesquisar mais coisas e com isso os gostos vão mudando naturalmente”, explica Ana Garcia. Apesar da crítica ter seu valor, os produtos do Coquetel Molotov têm a participação de artistas nacionais numa proporção ainda superior aos de fora. Continente agosto 2007

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Cristiano Andrigheto/Divulgação

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A banda Supercordas, do Rio de Janeiro, será uma das atrações do Festival No Ar: Coquetel Molotov

Festival No Ar: Coquetel Molotov 2007 14 e 15 de Setembro Centro de Convenções da Universidade Federal de Pernambuco PROGRAMAÇÃO SEXTA-FEIRA 14.9 Sala Cine UFPE Backstages (PE) Fóssil (CE) Elma (SP) Teatro da UFPE Volver (PE) Supercordas (RJ) Love is All (Suécia) Prefuse 73 (EUA) SÁBADO 15.9 Sala Cine UFPE Conceição Tchubas (PE) Suburban Kids With Biblical Names (Suécia) Hello Saferide (Suécia) Teatro da UFPE Vamoz! (PE) Wado (AL) Cibelle (SP) Nouvelle Vague (França)

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A contrapartida que o Coquetel aponta para a questão é que existe um apro­ veitamento das bandas que vem de fora. “Trouxemos o Berg San Niples para o festival, marcamos uma data também em São Paulo e eles acabaram sendo convidados para fazer a trilha sonora de um dos desfiles da São Paulo Fashion Week”, comenta Ana Garcia. As trocas também funcionam para as bandas de Pernambuco e, se antes nunca esperavam sair do circuito de festas de amigos, hoje bandas como as Backing Ballcats Barbis Vocals e Profiterolis têm um currículo com apresentações em São Paulo, são representados por um selo e conseguem até projetos em leis públicas. Atualmente, o Coquetel Molotov pode ser considerado uma das potenciais produ­ toras de música em Pernambuco. Em 2007, pela primeira vez, o festival conseguiu o apoio do Funcultura, patrocínio gerado pela Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), além da participação privada de empresas como Redbull e Tim entre os patrocinadores do evento. Se, no Recife, as ações cresceram, eles agora entram num estágio em que são menores em relação ao Brasil, não fazendo parte, por exemplo, da Associação Brasileira dos Festivais Independentes (Abrafin). “Já existem novas bandas que têm o perfil do Coquetel Molotov, mas conseguiram conquistar espaço independente de nós e isso é algo legal de se perceber”, aponta Tathianna, no que Jarmeson de Lima completa: “Hoje as bandas tem tomado mais iniciativas, sem esperar por festivais, vendo que as coisas podem acontecer”. E como formadora de uma nova cena, a equipe do Coquetel já aponta novas carências da cidade, “principalmente em shows internacionais que passam por São Paulo e Rio de Janeiro, mas não chegam ao Nordeste, mesmo tendo público aqui para isso”, diz Ana Garcia. Mesmo com a nova proporção local, o Coquetel Molotov não se vê antagonista de outras cenas. “Naturalmente éramos mais fechados no começo, porque conhecíamos poucas pessoas, mas fomos amadurecendo e começando a interagir”, explica Ana Garcia. “Concorrência de mercado sempre existe, claro, mas o Recife ainda tem espaço para outros eventos”, completa Jarmeson. Questões maduras, que agora fazem parte do cotidiano de um grupo que começou na tentativa de trazer uma banda de que gostavam para tocar em sua cidade. •


Joel Silveira (1918 – 2007) Colunista da Continente Multicultural e “maior repórter brasileiro” faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de agosto passado

Os leitores da Revista Continente Multicultural já estavam habituados às crônicas históricas e às tiradas ferinas do “Diário de uma Víbora”, a coluna assinada por Joel Silveira desde o n° 7 de nossa publicação. Lembranças de episódios importantes eram mescladas com impressões pessoais mais do que indiscretas; teste­ munhos sobre eventos políticos decisivos para história brasileira eram alternados a crônicas simples sobre o homem e a vida comuns... Nesta edição, com o título de Monteiro Lobato e a Censura: um diálogo impossível, Joel se despede com a verve e o brilhantismo de sempre. Jornalista e amigo íntimo de Joel, Geneton Morais Neto conta que o “víbora” recebeu este apelido de Assis Chateaubriand, pois sempre foi especialista em destilar veneno e ironia em seus textos. O poeta Manuel Bandeira se referia ao seu estilo como “uma punhalada que só dói quando a ferida esfria”. Em reportagem para a Revista O Cruzeiro, que entrou para a história do jornalismo brasi­ leiro, pintou, com palavras elegantes e irônicas, um retrato devastador das grã­finas paulistas, na década de 40. A união entre a vocação de repórter que busca a notícia onde ela estiver e a capacidade de escrever com inte­ ligência, graça e ironia deram a Joel Silveira a merecida alcunha de “maior repórter brasileiro”. Ele impri­ mia seu tom autoral em qualquer matéria, coisa cada vez mais rara nos jornais brasileiros. Uma noite, após de sair do Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, amargando uma tentativa frustrada de entrevista com Getúlio Vargas, escreveu: “Lá para a meia­noite, entrei no Danúbio Azul, um bar que não

MEMÓRIA

existe mais numa Lapa que também não existe mais; e lá fiquei até que a manhã me fosse encontrar – uma das mais radiosas manhãs de abril já neste mundo surgida, desde que existem mundo e manhãs de abril”. Joel conta desta forma o que, segundo ele, foi o maior vexame profissional que cometeu: – “Uma vez, em Roma, depois da guerra, vi Ernest Hemingway tomando conha­ que sozinho num bar que ele costumava freqüentar. Fiquei em dúvida sobre se deveria abordá­lo. Fui ao banheiro remoendo a dúvida. Quando voltei, ele já tinha ido embora. É um dos meus grandes fracassos profissionais. O pior que poderia acontecer seria levar um soco de Hemingway. Nesse caso, pelo menos o lead estaria garantido”. Em relação às suas crenças religiosas, Joel se classi­ ficava como agnóstico, e dizia concordar com o que disse o poeta Murilo Mendes: – “Deus existe, mas não funciona”. Nos Diários Associados, Joel acabou sendo escalado por Assis Chateaubriand como correspondente de guerra. As inesquecíveis palavras de Chatô para seu subor­ dinado foram: “Vá para guerra, seu Silveira, mas, por favor, não me morra! Não me morra, seu Silveira! Repór­ ter não é para morrer. Repórter é para mandar notícias”. Bom conselho. •

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AGENDA/MÚSICA Talento familiar Nem sempre ter um familiar consagrado e admirado é algo fácil para os descendentes que enveredam na carreira artística. Sem dúvida, não foi simples para Maria-na de Moraes, neta do poetinha Vinicius de Moraes, lançar seu primeiro disco solo, depois de mais de 20 anos de carreira. Em Se é Pecado Sam­ bar, lançado nos EUA e no Japão anteriormente, a cantora passeia por canções clássicas da MPB, fazendo suas leituras pessoais. “Fotografia”, de Tom Jobim, abre o CD, cujo nome vem da música homônima de Roberto Martins, um clássico dos anos 50. O jazz americano também ganha interpretações da neta de Vinicius, que está presente no trabalho da neta com a canção “Medo de Amar”, de sua autoria. Se é Pecado Sambar, Mariana de Moraes, Lua Music, 22,50.

Samba + Forró Qual a relação entre o samba e o forró? O disco Samba de La­ tada, de Josildo Sá & Paulo Moura, é um resgate dessa relação entre dois ritmos que compõem o imaginário da brasilidade. Antigamente, no Nordeste, forró e samba eram a mesma coisa: ambos representavam as festas onde se tocava um pouco de tudo, do baião ao chorinho. O samba carioca era adaptado para a sanfona, o triângulo e a zabumba, e era conhecido na região como “samba de matuto” ou “samba de latada”. É essa diversidade, do forró misturado com o samba, que encanta, na voz de Josildo Sá e nos solos e harmonias de Paulo Moura. O repertório, cuidadosamente escolhido, revive os tempos áureos do samba de latada da década de 60. Samba de Latada, Josildo Sá & Paulo Moura, Rob Digital, 25,00

Parcerias

Mais rabeca...

epois de destacar o Mestre Salustiano, na edição de D agosto desta Continente Multicultural, chega à redação o CD de um grupo que, pode-se dizer, se inspirou de

alguma forma no Mestre. O grupo Rabecado, formado por jovens músicos, lança seu primeiro trabalho, provando que a tradição da rabeca pode e deve ser mantida por grupos jovens, que trabalham o instrumento junto às tendências mais contemporâneas. O forró produzido por Gustavo Azevedo, Publius, Juliano Holanda, Bruno Vinezorf e Carlos Amarelo dispensa a sanfona, a zabumba e o triângulo e se faz com rabeca, bandolim, pífano, percussão e baixo, num ritmo contagiante. O repertório executado nos shows passeia pelo baião, pelas marchinhas, pelo carimbo, executando obras autorais e de outros compositores. O CD, batizado com o nome do grupo, traz 10 composições inéditas, exceto pela faixa “Dois Unidos”. Algumas das canções revivem temáticas nordestinas bem típicas, sempre se aproximando da tradição da cultura popular regional. “O dia da feira” abre o disco mostrando a que veio o Rabecado e seus músicos; destaque também para a faixa “Viuvinha”, de domínio público, que ganha uma bela execução. O CD conta ainda com a participação do cabo-verdiano Thida em “Se Foi”, e de Mavi e seu Forró de Gesso, em “Trapiche do Meio”. Rabecado, Rabecado, independente, 5,00

Pé-de-serra

Francis Hime, Wagner Tiso, Jacob do Bandolim, Egberto Gismonti e John Neschling são alguns dos parceiros do poeta Geraldo Carneiro nas canções apresentadas no seu novo CD Gozos da Alma, que faz parte da série Poetas da Canção, do Sesc Rio. Dando voz às letras das músicas, outro hall de grandes artistas: Danilo Caymmi, Olívia Hime, Lenine, Olívia Byington, entre outros. O grupo Afroreggae interpreta “A aquarela dela”, parceria de Geraldo com mais seis artistas. “Luz de Tango” revela um dos belos trabalhos do brasileiro junto com Astor Piazzola, com quem conviveu e trabalhou durante um largo período, em Roma. Fechando o CD, Danilo Caymmi canta “Choro de nada”, canção gravada por Vinicius de Moraes e Tom Jobim.

Em tempos de forró eletrônico e muito brega, os aficionados pelo forró tradicional, pé-deserra, feito com sanfona, triângulo e zabumba não têm muitas opções com destaque na mídia. O novo trabalho do pernambucano Toinho Vanderlei surge como uma possibilidade de qualidade nesse cenário. Com 14 faixas, quase todas de autoria de Toinho em parcerias com outros artistas, o disco promete animar qualquer festa e fazer todo mundo dançar, com destaque para a canção que dá nome ao CD “O Forró É Fogo”. A primeira faixa “A sanfona e o rei” é uma homenagem a Luiz Gonzaga e clama para que o baião nunca deixe de ser tocado, para que o rei nunca seja esquecido.

Gozos da Alma, Geraldo Carneiro, Lua Music, 24,00.

O Forró É Fogo, Toinho Vanderlei, independente, 10,00

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AGENDA/MÚSICA

Um convicto anarquista

O multiestilista

maestro e compositor Jorge Antunes é um músico sobre quem podemos fazer observações além de “interessantes”. Ele foi: 1) o primeiro a realizar experiências de música eletroacústica e concreta no Brasil; 2) criador de uma peça coral onde as vozes humanas imitam sons eletrônicos, sem nenhum efeito especial; 3) proponente de uma tese de equivalência entre as notas musicais e as cores, apoiado em sua outra formação, de físico; 4) organizador de uma triagem de buzinas de carro para utilização numa sinfonia e de uma seleção para escolher um maestro a ser enforcado em cena, numa ópera sobre o dramaturgo Qorpo Santo; 5) autor de uma ópera sobre Olga Benário, de uma inquietante elegia para um padre assassinado em El Salvador, escrita na estadia em um kibutz, e de um ciclo de canções com letra extraída de ofícios-resposta de um banco; 6) inventor de um violino construído com palitos de fósforos. A história desses fatos (e diversos outros) é contada pelo poeta, e amigo de Jorge Antunes, Gerson Valle, sem nenhuma maquiagem ou dissociação da história do músico. Valle detalha a imagem assumida de um artista e militante inquieto, que passou por três partidos políticos (hoje está no quarto, o PSol) e se identificou crescentemente com o espírito ultralibertário de Proudhon, pensador socialista caro desde a juventude. A diversidade na manifestação estética de Antunes revela-se coerente com uma audaciosa anarquia, que chegou a ironizar Fernando Henrique Cardoso em uma sinfonia encomendada pelo próprio governo FHC, cujo último movimento inclui um “Hino Nacional Alternativo,” composto na época da Constituinte de 1988. (Carlos Eduardo Amaral)

The Essential Igor Stravinsky reúne em dois CDs uma coletânea daquele que é conhecido como “O Picasso da música”, pelas diversas fases de sua obra. O primeiro CD contém trechos de peças de 1908 a 1929, ou seja, de antes dos “Ballets russes” (O pássaro de fogo, Petruschka e A sagração da primavera) até metade da fase neoclássica (Pulci­ nella, Octeto para sopros e Concerto para piano e sopros), passando pela fase ragtime (Ragtime para 11 instrumentos e A história do soldado). A gravação da Piano Rag Music (1919) é uma raridade: Stravinsky a interpreta em 1934. Na maioria das gravações, inclusive, o compositor está regendo. O segundo CD abrange a produção de 1930 a 1996 – da segunda metade das obras neoclássicas (Sinfonia dos Salmos, Concerto para violino e orquestra, Jeu de cartes, Dumbarton oaks e outras) até a fase serialista (Elegia para JFK, Fanfarra para um novo teatro e Cânticos de Réquiem), incluindo um arranjo do hino americano de 1942 e pelo divertido Ebony concerto, com Benny Goodman na clarineta. O encarte traz um resumo do repertório, explicado pelo crítico Tim Page e os detalhes de todos os registros. Méritos também para as gravações regidas por Michael Tilson Thomas e Esa-Pekka Salonen. A última faixa vale por si só: Stravinsky em suas próprias palavras. (CEA)

O

The essential Igor Stravinsky, Sony Classical, R$ 36,00.

Instrumentos sinfônicos

Integrante da Petrobras Sinfônica e do Ensemble Jocy de Oliveira, Paulo Passos tem encomendado diversas obras para saxofones, clarinetes e clarone a amigos compositores, algumas coligidas neste lançamento. Assim, encontramos os arrojados Três movimentos para clarinete e piano, de Caio Senna, Azul­escuro, de Luiz Carlos Csekö, Transformantes II (que amplia o som do clarinete com a ajuda da caixa de ressonância do piano), de Flo Menezes, e a delicada Fantasia para sax alto e piano, de Ronaldo Miranda. Virtuosísticos e mais familiares ao ouvinte são a Brasiliana nº 7, para sax tenor e piano, de Radamés Gnatalli, e principalmente os Três estudos para clarinete e piano, do comemorado José Siqueira, que abre o disco. Passos, sempre acompanhado pela pianista Sara Cohen, ainda interpreta Altiplano, de Roberto Victorio. (CEA)

Saber quais os instrumentos geralmente utilizados numa orquestra contribui inegavelmente para a apreciação do iniciante em música clássica e o faz entender por que a sinfônica é o maior agrupamento artístico que se desenvolveu em todas as civilizações, isso há cerca de 250 anos. Sobre os instrumentos sinfônicos não tem fotos, vale-se de poucas figuras e possui vastas informações para cada um dos membros da orquestra, além de mencionar instrumentos pouco convencionais e dedicar uma parte só para a voz humana. Mas a melhor virtude do livro é ter se elevado das citações habituais e agregado aspectos tão diversos como etimologia, concepção, evolução, processo de fabricação e outras características dos instrumentos – sem a pretensão de ser um ensaio acadêmico. Incrementando as explicações formais, o autor injeta centenas de dados agregados em sua memória. Se os iniciandos podem ir direto ao verbete desejado, os experientes dispõem de capítulos essenciais, no melhor estilo de “tratados hiperconcisos”, que versam sobre acústica, regência, instrumentos eletrônicos, movimentação do ar expirado, ressonância do som vocal, comando cerebral da voz e outros temas. A aparência de calhamaço do livro poderia desanimar um leitor indeciso, mas uma simples folheada o fará levá-lo para casa. (CEA)

Música brasileira para clarinete/sax e piano, ABM Digital, R$ 25,00. Pedidos: vendas@abmusica.org.br

Sobre os instrumentos sinfônicos – e em torno deles, José Alexandre dos Santos Ribeiro, Record, 460 páginas, R$ 49,90.

Jorge Antunes – uma trajetória de arte e política, Gerson Valle, Sistrum, 366 páginas, R$ 40,00.

Clarinetes e saxes

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TRADIÇÕES

Xilogravura e cordel: 100 anos A presença da xilogravura na literatura de cordel está completando 100 anos neste mês de setembro e é registrada em livro e exposição Monique Cabral

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presença da xilogravura – processo de gravação em relevo que utiliza a madeira como matriz e possibilita a reprodução da imagem gravada sobre papel ou outro suporte adequado – na literatura de cordel está completando 100 anos nesse mês de setembro. Em 1907, no Nordeste, Francisco das Chagas Baptista trouxe a primeira xilogravura em um folheto – segundo o pesquisador Jeová Franklin. Em seu livro-reportagem Xilogravura Popular na Literatura de Cordel, ele conta que a imagem aparecia numa página interna e não havia título nem outro tipo de apresentação, “apenas a legenda pura e simples com o nome de Antônio Silvino. Um homem de chapéu de couro, com bacamarte na mão e espada na cintura, mais parecido com o tipo europeu”. No ano de 1925, ainda em página interna, a figura de Antônio Silvino, mais parecido com

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TRADIÇÕES

o homem nordestino, passou a ru e Bezerros, em Pernambuco, e em ilustrar a História Completa de Juazeiro do Norte, no Ceará. O tempo foi Lampião. passando, e Franklin conta que o desejo de “Os primeiros folhetos de cordel conhecer mais sobre a xilogravura crescia. Fez eram publicados em tipografia e se amizade com J. Borges e sempre que visitava espalharam na região nordestina, pelas o Nordeste o procurava, juntamente com praças e feiras. Era um sistema de jorCosta Leite, Marcelo Soares, Abraão nalismo matuto que funcionava com Batista, Zé Lourenço e Amaro Borges. notícias e anúncios de morte de personagens “Deles trazia (para Brasília) gravuras e matrizes históricos, como Antônio Silvino e Lamde madeira. Vali-me também de exposições pião”, explica o pesquisador, cuja obra está realizadas anualmente na Feira de Livros de dividida em cinco partes: “Xilogravura Brasília”, explica. O historiador possui um acervo popular na literatura de cordel”; “Entrede 4 mil cópias xilografadas e digitalizadas, e mais vistas”; “Principais xilogravadores nordes3 mil xilogravuras em capas de cordel, também tinos”; “Capas comemorativas” e um digitalizadas, além de matizes de madeira. “Dicionário onomástico de xilogravadores Exposição – O centenário da xilogravura na populares do Nordeste”. O literatura de cordel foi comemorado com uma livro narra desde a chegada exposição, no Palácio do Planalto, do entalhador italiano, entre os meses de junho e julho Agostini, contratado para deste ano, com curadoria de Jeová esculpir as portas da Matriz Franklin. Todo o protocolo do de Juazeiro do Norte, até a local foi quebrado, pois o influência da xilogravura no cordel, a xilogravura, o forró e Cinema Novo brasileiro e as comidas típicas do Nordeste nos trabalhos de Ariano fizeram parte da festa. Na ocaSuassuna, como exemplo, as sião, ainda foi comemorado o ilustrações do romance A aniversário de 80 anos do draPedra do Reino. E ainda presta maturgo paraibano Ariano homenagem a artistas descoSuassuna que idealizou o nhecidos – ao lado de nomes Movimento Armorial, todo como J. Borges, Mestre calcado na valorização do Noza e Nena, a primeira romanceiro corrente no Normulher do time. deste, utilizando algumas vezes Foram quase 30 anos de a xilogravura para ilustrar as pesquisas até Jeová Franklin capas de suas publicações. concluir o livro. O trabalho Também participaram da começou com uma coleta de exposição os cordelistas Ariedados no início da década de valdo Viana e Marcus Hauré80, na Revista do Interior, para lio, declamando o cordel feito a realização de reportagens em parceria especialmente para Xilogravura Popular na Literatura de Cordel, Jeová Franklin, LGE Editora, R$ 30,00. nas cidades do Recife, Caruaa ocasião. • Continente setembro 2007

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CÊNICAS

Brilho de Breu Com música de Lenine, o Grupo Corpo estréia seu novo espetáculo intitulado Breu Geisa Agricio

No espetáculo Breu, a música é de Lenine e a coreografia de Rodrigo Pederneiras


“D

ivirta-se”. Essa foi a única exigência que Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo, fez ao pernambucano Lenine ao convidá-lo para compor a trilha sonora do novo espetáculo da companhia de dança mineira. Somente depois de ouvir os três primeiros temas da obra em processo é que o contratante Pederneiras “descobriu” de que trataria sua peça: “com tais batidas, força e pungência, fala de violência”, intuiu o coreógrafo, que se diz arrebatado pela música. Assim nasceu Breu, montagem a que o Grupo Corpo dá vida desde agosto em estréia nacional.

“O espetáculo permeia uma escuridão densa, absoluta, que não vislumbra nenhuma luz no fim do túnel, nenhuma saída. É uma reflexão do momento que estamos vivendo, sobre essa falta de esperança, configurada por uma disputa desleal de espaço em que as pessoas não medem esforços para se sobrepor aos demais”, conta Pederneiras. A trilha, pontuada principalmente por momentos frenéticos, costura uma coreografia ágil e desnorteante, acentuada pelos figurinos sombrios de Freusa Zechmeister e pelo cenário de Paulo Pederneiras, uma caixa preta e espelhada que dá aos movimentos dos bailarinos uma sensação ainda mais claustrofóbica, descartando a neutralidade do fundo preto do teatro elisabetano.

José Luiz Pederneiras /Divulgação

CÊNICAS

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CÊNICAS São corpos pesados, tensos, que se lançam ao chão como se não se sustentassem de pé diante de tanta sobrecarga. A pressão pode ser não só metaforicamente atmosférica como provinda da agressão do outro, do esforço na briga, por um lugar ao sol, de jogar o concorrente para baixo. A verticalização do espetáculo, baseado no solo, comprova o domínio e a destreza que poucas companhias no mundo desenvolvem com proporcional criatividade. A desmedida entrega, elemento marcante da trajetória da companhia – que a exemplo da inspiração às escuras da criação de Lenine, já havia trabalhado em plena confiança e liberdade com relevantes nomes da música brasileira, como Caetano Veloso, José Miguel Wisnik, Tom Zé, Arnaldo Antunes e Uakti – é a peça-chave para perceber como Breu é superação do Corpo pelo próprio Corpo, a renovação de si mesmo. Ao mergulhar sem restrições na pulsante trilha de Lenine, o grupo se desprende do lirismo bucólico, ensejado pela poética da cultura popular nacional, e se lança sobre o cáustico e caótico universo urbano, exploA trilha de Breu, com seus momentos frenéticos, originou uma coreografia ágil e desnorteante

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rando seus contrastes, como o preto, do breu, e o branco, do pó, insinuados no espetáculo. O brilho de Breu está na ousadia de abordar sobre o que nos é, de maneira inerente, terrível e inevitável, sem moralizar o discurso. Não aponta vilania ou vitimiza personagens, não busca culpados, nem estigmatiza uma solução. Apenas oferta, como a prerrogativa dada ao compositor, à platéia um “toma, faz disso o que quiser”, deixando-nos com intrigante incômodo apesar do êxtase de contemplar tamanha beleza plástica. O não se contentar com tracejo comum para discutir a violência e se obrigar a optar por um caminho estético que de certa maneira sutilmente contradiz a própria identidade, ao sobrepor o soturno em detrimento do lírico, surge um Corpo mais forte, complexo e prolixo. A Sonoridade Soturna – A trilha de Lenine tem em seus pontos áureos a mistura de materiais densos que vai dos ríspidos metais de um frevo em decomposição, como a obra Secular que remete ao centenário do ritmo; ou ainda a introduções de elementos intensos contem-


Fotos: José Luiz Pederneiras /Divulgação

Divulgação

CÊNICAS

Lecuona, espetáculo do Grupo Corpo com música do cubano Ernesto Lecuona, de 2004

porâneos como mixagens de rock e hip hop. Coincidência ou não, a violência está na raiz da música, já que a dança do frevo surgiu de uma luta, a capoeira, e o hip hop e a break dance partiram das brigas de gangues americanas. Lenine diz que a música de Breu é provavelmente seu trabalho mais autoral, por uma natureza de ineditismo em diferentes aspectos. Depois de produzir trilhas para o cinema, TV e musicais como Cambaio, essa foi sua primeira experiência em dança. Além disso, após dois discos ao vivo, redesenhando antigos sucessos, o encontro com o Corpo lhe proporcionou um retorno ao estúdio, ao trabalho de artesão na busca de sons e timbres. Para auxiliá-lo na empreitada, o músico convidou sem receio parceiros de estilos distintos que ajudam a justificar a natureza pulsante e plural da trilha, entre participações de Júnior Tostoi, Bocato, Spok e Iggor Cavalera. “Ainda estou sob o impacto de ver pela primeira vez a tridimensionalidade, o relevo da música, de maneira tão delicada. Perceber o estímulo sonoro que leva os corpos dos bailarinos a frasearem como se cada um correspondesse a um instrumento. Sinto-me honrado de ter participado”, comenta o compositor. Para Além da Escuridão – Aos 32 anos, o Grupo Corpo apresenta a trigésima coreografia de Rodrigo Pederneiras. A turnê de Breu, no Brasil, é complementada pelo espetáculo que há mais tempo não é exibido no

O cantor e compositor Lenine teve liberdade total na criação da trilha sonora de Breu

país, Sete ou oito peças para um balé, de 1994, com música do norte-americano Philip Glass e do Grupo Uakti, cuja última exibição nacional ocorreu em 1999. Da estréia em São Paulo, a companhia parte para apresentações em programas no Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, para então dar início à temporada internacional. Breu será exibida com Ongotô (peça, cuja trilha é assinada por Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, de 2005) para 10 apresentações na Europa, passando por Palma de Mallorca, na Espanha, e nas cidades francesas de Paris, Tarbe, Toulouse e La Rochelle. De volta ao Brasil, de novembro a dezembro, é tempo de mostrar Breu e Lecuona (com música do cubano Ernesto Lecuona, de 2004) em Curitiba e Porto Alegre e dar continuidade ao programa em Buenos Aires. Em 2008, o Grupo Corpo faz, pela segunda vez, num feito inédito para uma companhia brasileira e raríssimo para trupes de todo mundo, a abertura de gala do Brooklyn Academy of Music (BAM), teatro de maior referência para a dança contemporânea. As apresentações acontecem de 25 a 28 de março. Ainda não há previsão de turnê pelo norte-nordeste do Brasil. Para o futuro, a companhia planeja a criação de um centro cultural a ser construído em Belo Horizonte nos próximos anos, que comportará um teatro adequado às demandas de espetáculos de dança, além de comportar cursos de formação para desenvolvimento do setor.

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CÊNICAS

O discurso do corpo A Plataforma Recife de Dança – Ano 3 discute a linguagem da dança que se faz no Recife Christianne Galdino

O

corpo fala? Os artistas da dança garantem que sim, alimentam-se desta crença e testam sua veracidade a cada experimento que põem em cena. No Recife, desde os anos 70 consolidam-se múltiplas gramáticas corporais, escrevendo diversidade e profissionalizando-se cada vez mais. Apesar disso, a projeção e o reconhecimento nacional e internacional ainda é para poucos. Mas que língua é esta que falam os corpos do Recife, de que é feita e o que falta para que esse vocabulário possa ser decodificado em qualquer lugar do mundo? A Plataforma Recife de Dança – Ano 3 traz esta questão para o centro das discussões, na tentativa de servir de “norte” da intensa proliferação da dança, evitando os prejuízos do crescimento desordenado e do desnivelamento entre o discurso

Hans Maunteuffel/Divulgação

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CÊNICAS das palavras e o do corpo. “A cada ano, é a demanda dos artistas da dança que define o formato da Plataforma. Nesta terceira edição, decidimos retirar o sobrenome para não colaborar com o separatismo, e discutir todas as formas de dança que são produzidas no Recife”, conta Marília Rameh, coordenadora do Movimento Dança Recife, coletivo responsável pela realização do evento. Em suas versões anteriores (2005 e 2006), a Plataforma era segmentada por estilo, duas foram dedicadas à dança contemporânea enquanto a outra foi exclusivamente para apresentação dos espetáculos de companhias populares. Conscientes dos limites impostos pelos rótulos, os organizadores optaram, desta vez, por falar indiscriminadamente de criações em dança, de qualidade artística, de profissionalização e desenvolvimento, a partir deste dançar de sotaques tão variados e características tão uníssonas. As questões converteram-se nos temas que serviram de critério para a escolha dos espetáculos e performances da programação, e também de ponto de partida para os debates: Os genes da dança do Recife; Alquimias dos corpos: as pesquisas em dança hoje; Estéticas da dança brasileira e o lugar do Recife no cenário nacional. “Muitas pessoas dançam no Recife, mas são poucas as que pensam a dança. E ainda existe muito preconceito, até mesmo entre os próprios bailarinos de vertentes diferentes”, opina o capoeirista Fábio Costa, que há setes

anos atua também como bailarino profissional e atualmente é intérprete-criador da Unione Cia. de Dança. A história dele, que se repete incontáveis vezes, nos dá uma pista... Não há como falar em dança no Recife, sem considerar a hibridização cultural; com forte presença da tradição, do popular; como matéria-prima. E este conteúdo de natureza híbrida tem gerado férteis combinações, que dão origem, por sua vez, a múltiplas formas de um mesmo dançar. O coreógrafo e bailarino Marcelo Sena, diz que “hoje há mais comunicação entre os grupos e entre criadores e intérpretes, até mesmo porque a própria questão da autoria é vista de uma forma bem mais realista. E as criações coletivas são bem mais freqüentes”. Esta disponibilidade para o diálogo e vontade de teorizar a prática quase automatizada que ainda vigora em grande parte dos grupos e companhias, também é apontada pelo gerente de dança da Fundação de Cultura da Prefeitura do Recife, Alexandre Macedo: “nós dançamos muito e há muito tempo, mas sem o hábito de refletir sobre este fazer, sem saber porque e para quê. A teoria é imprescindível à profissionalização do artista, e esta sempre foi a parte falha da nossa formação”. Talvez por isso, a Plataforma tenha reservado espaço de destaque para uma conversa intitulada “Fundamentos da Dança na Universidade”, levantando mais uma vez esta que é uma das principais “bandeiras” do Movimento Dança Recife, a implantação de uma Licenci-

Conceição, do Grupo Experimental de Dança

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CÊNICAS Gabriela Zanori /Divulgação

Versatile, da Cia. Unione

atura em Dança na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, projeto do Centro de Artes da instituição, que vem sendo discutido com a categoria desde o ano passado. O encontro vai acontecer propositadamente no próprio campus da UFPE, uma das apoiadoras do evento, que conta também com patrocínio da Prefeitura do Recife e parceria da Fundação Joaquim Nabuco e Acervo RecorDança. Adotando pela primeira vez o caráter itinerante, a Plataforma Recife de Dança vai realizar de 27 a 30 de setembro (programação completa e mais informações no site www.dancarecife.net), com entrada franca para as atividades diurnas e preços promocionais para os espetáculos. A bailarina e coreógrafa Mônica Lira, diretora do Grupo Experimental, e também coordenadora do Movimento Dança Recife, afirma que “este é um momento muito positivo para a dança local. Como sempre trabalhei com o ensino da dança, circulei por vários espaços, e vi muitas tentativas de articulação que não conseguiram êxito. O Movimento, fundado por nós em 2004, parece que chegou na hora certa e tem conseguido colaborar com o crescimento, a visibilidade e a profissionalização, garantindo muitas conquistas para os artistas da dança”. O Recife vem se consolidando como pólo de criação e difusão da dança, por que então os olhares de fora parecem continuar alheios a esta qualidade evidente da caligrafia pernambucana? Na busca de razões para esta hipótese, encontramos na dança pernambucana vestígios persistentes de um comportamento “colonial” que durante muito tempo ditou a regra de que é preciso negar o local e copiar os Continente setembro 2007

modelos das “metrópoles” para tornar-se universal. “Infelizmente, ainda existe um bairrismo e uma necessidade de encaixar a dança do Recife no formato das produções coreográficas do eixo Rio-São Paulo”, desabafa Lira. A produção atual da dança recifense mostra que estar “fora dos padrões” não significa ser inferior ou atrasado. Evidenciando suas diferenças, sejam elas frutos das culturas populares ou da intersecção com outros saberes, bailarinos e coreógrafos levaram à cena, somente no primeiro semestre de 2007, uma gama variada de novos trabalhos como Preto no Branco, da Artefolia; Entre Nós, da Vias da Dança; Conceição, do Grupo Experimental; Des-encaminhado, da Compassos; Recife Paralelo 8, da Dante; Versatile, da Unione e tantas outras declinações deste mesmo idioma. A dança do Recife vive neste trânsito, alimentando-se do cruzamento de técnicas e incorporando a diversidade como marca. “Agora é o momento de se discutir o que cada sujeito desta dança está fazendo pela sua própria dança e pela dança da cidade. E a Plataforma é o lugar ideal para estimular este pensamento crítico”, comenta Marcelo Sena. “Mais do que uma mostra dos tantos espetáculos que a dança pernambucana produz, a Plataforma quer ser um espaço de informação, de discussão, contribuindo, assim, para a formação não só dos profissionais envolvidos como das platéias presentes, sempre carentes de educação para as artes, no sentido mais amplo desta expressão”, completa Rameh. Se o corpo fala, então, por que não ouvi-lo?


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Fotos: Flรกvio lamenha

ARTES

A arte literรกria de Badida

Declarando seu am or primordial pela liter atura, a pintora Badida cons trรณi universos fantรกsticos que transpassam a tela e entram na sua vi da Mariana Oliveira

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ARTES Fotos: Flávio Lamenha

Acima, Badida com sua neta Bárbara; ao lado, seu ateliê em Olinda

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sualmente, os escritores são amantes da literatura, as atores da encenação teatral, os músicos da música, os pintores das artes plásticas. Mas o que dizer de uma pintora que se revela, antes de tudo, uma apaixonada pela lite­ ratura? Pois esse é o caso raro da pintora Marisa Moreira da Costa Campos, Badida, que tem uma devoção toda especial à literatura. E o que faz ela entre tintas e pincéis ao invés de rodear­se de papéis para escrever? Seu severo senso crítico não lhe permitiu, ainda, alçar vôo no ramo das letras, mas sua habilidade como pintora lhe deu a possibilidade de reinventar suas próprias histórias e as histórias dos outros. Filha de Moreira Campos, um dos maiores escri­ tores cearenses, Badida, também natural do Ceará, cons­ truiu sob a influência do pai seu apreço pelas artes literárias. Com tanta responsabilidade transferida por esse parentesco, ela até hoje não se sente à vontade para publicar seus escritos, que estão muito bem–guardados, em sua casa. “Eu costumo dizer que a minha grande paixão é a literatura, infelizmente meu vôo é rasteiro para escrever, mas para ler eu sou fascinada. Minha obra sempre esteve inspirada na literatura, que, para mim, é a arte maior, até porque eu tive um pai que era um grande escritor. Como eu não escrevo, é como se eu fizesse meus contos, minhas crônicas, através da pintura. Eu até já tentei desassociar, mas não consigo.”

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Centro Cultural Banco Real/Divulgação

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Monstros, A Consequência do Retrato / A Gaivota, óleo sobre eucatex, 2001, 120 x 80 cm


ARTES Centro Cultural Banco Real/Divulgação

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Traidor das Tálidas / Eu Vivi 64, óleo sobre eucatex, 2001, 122 x 180 cm

Os últimos trabalhos de Badida têm inspiração declarada no trabalho do poeta e roteirista italiano Tonino Guerra, a quem a pintora foi apresentada por um documentário de TV. Desde então, ela implementou uma busca por alguma publicação do poeta. Demorou, mas uma amiga lhe presenteou com um exemplar de O Livro das Igrejas Abandonadas, editado em Portugal. As palavras do poeta italiano agora inspiram suas mais recentes obras, que devem fazer parte de uma exposição individual programada para novembro. Enquanto isso, quatro trabalhos dessa série podem ser vistos dentro da exposição Delas por Elas, no espaço cultural da Le Lis Blanc, em Casa Forte, junto com obras de Guita Charifker, Maria Carmem e Marianne Peretti, com curadoria de Pedro Frederico. Em paralelo às leituras de Tonino Guerra, Badida pinta ainda o poeta Ledo Ivo, sem esquecer suas lem­ branças junto ao “paizinho” e a “mãezinha”, ainda no Ceará. A sua única neta, Bárbara, é sempre ouvida pela avó, tanto que em uma das suas últimas exposições os

quadros expostos foram titulados por Bárbara, antes mes­ mo de serem pintados. “Recentemente, Bárbara estava me falando sobre como deveria ser ruim a vida de um passarinho numa gaiola e disse que só ficava imaginando como uma sereia viveria num aquário. A partir daí pintei um quadro.” Essa obra faz parte de uma série atual intitulada Silêncio, na qual Badida pinta sobre madeira talhada em forma de instrumentos musicais. “Eu tinha várias frases que amava e que falavam em música. Daí resolvi pintar em cima de instrumentos e coloquei essas frases nos quadros. Num desses quadros está a frase ‘esses sons domésticos que são meus e têm a suavidade de música,’ que é uma frase do meu pai.” Nos seus trabalhos, a figura humana está sempre presente. “Eu ilustro histórias. As histórias dos seres humanos somos nós, nós conhecemos o mundo. A grande carga emotiva está na figura do ser humano”, e como ela mesma diz, se quiser colocar um animal, é preciso humanizá­lo como fez Graciliano Ramos com a cadela Baleia. Suas obras interligam o “mundo real” com Continente setembro 2007


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ARTES

o “mundo dos sonhos”, revelando universos fantásticos, que transpassam a tela, invadem sua casa/ateliê, suas roupas, seu modo de vida. É nessa casa surreal, na rua do Amparo, em Olinda, que funciona atualmente o Espaço Badida, onde a pintora recebe sempre com muita simpatia visitantes e seus estimados alunos. Nas paredes, além das suas recentes pinturas, residem frases, livros, recortes, fotos; no sofá vermelho, escritos à mão, nomes e frases de grandes pintores de diversas épocas. Juntos, esses elementos tornam­se uma alegoria da arte de Badida. Apesar dos rasgos surrealistas saltarem aos olhos, ela prefere definir­se como simbolista (apesar da diferença ser sutil), alegando que em suas obras há sempre, ao final, a moral da história. Perguntada sobre a pintura no mundo contemporâneo é categórica, afirmando que a pintura não morreu, não vai morrer, e que há espaço para todo mundo. “O problema da arte contemporânea, da arte conceitual, é que o conceito está vindo sem a obra”, explica, lembrando a história A roupa Continente setembro 2007


ARTES

Seus últimos trabalhos compõem o visual fantástico do seu ateliê

nova do rei, como uma metáfora da situação das artes na atualidade. “No lugar da obra está o conceito, o conceito dizia que a roupa era lindíssima, tudo bem, mas cadê a roupa? Aí a criança, um ser de pureza total, que ainda não se limitou na vida, diz: o rei está nu. Evidente que há grandes artistas conceituais, basta um Cildo Meireles, mas há muitos equívocos, na minha ótica.” Pintando um quadro por vez e também lendo um livro por vez, Badida, que iniciou como uma diletante, vendeu todas as obras expostas na sua primeira exposição individual em Fortaleza, e conseguiu sobreviver através da arte, acredita que a felicidade do artista legítimo é expor. Este ano, por fim, depois de um longo período habitando a fronteira com o mundo da imaginação, Badida aterrissa outra vez no Recife (esquecendo seu pavor de voar, felizmente) para apresentar seu universo fantástico, criado e recriado através das suas fábulas e das fábulas dos outros. •

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TRADUZIR-SE Ferreira Gullar

Todo mundo é artista? Como a chamada "arte contemporânea" é pura improvisação arbitrária – não tendo nem linguagem nem limites de qualquer natureza –, não pode ser passada como conhecimento e técnica a ninguém

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rte não se ensina”, essa frase é um lugar-comum. Não obstante, é verdadeira, quando se refere à criação de uma obra de arte. De fato, é impossível ensinar alguém a criar uma obra-prima como O Baile, de Edward Munch, ou uma natureza-morta de Giorgio Morandi. Apesar disso, nenhuma dessas obras nasceu de um passe de mágica ou de um milagre: resultou do domínio de técnicas da linguagem pictórica, domínio esse que o pintor adquire no estudo e na prática de pintura, tanto em cursos de arte ou na condição de autodidata, tendo como referência as obras que existem. Ou seja, talento não se ensina, mas técnica e domínio da poética, sim. Pode parecer uma obviedade discutir tais questões, mas a obviedade às vezes se torna necessária, quando verdades básicas – e óbvias – são ignoradas. Faz-se por desconhecer que, se os museus guardam obras que, através dos séculos, despertaram a admiração das pessoas, isso se deve à criação, elaboração e permanente reinvenção de uma linguagem artística que não nasceu de mero improviso. Basta ler os textos teóricos, diários e anotações escritos por artistas e pensadores do fenômeno artístico, desde a Grécia, passando pelo Renascimento e se estendendo à Idade Moderna, para entender que a arte é, além de imaginação, técnica e conhecimento. A reflexão sobre o trabalho dos criadores é que possibilitaram a criação de tantas obras e o surgimento de novas possibilidades expressivas, como a invenção do espaço tridimensional da perspectiva clássica, por exemplo, ou a implosão desse mesmo espaço pelo dinamismo barroco, na exploração das nuances, grafismos, transparências e faturas pictóricas. Deve-se atentar, também, para o fato de que essas criações especificamente técnicas e semânticas Continente setembro 2007

estão, ao mesmo tempo, vinculadas a temáticas que envolvem valores espirituais, tanto religiosos quanto científicos e históricos, constituindo um complexo universo imaginário que expressa e constrói a história da civilização ocidental e de sua aventura criadora. Se essas considerações valem para a arte anterior à época moderna, valem também para a revolução estética que se inicia na segunda metade do século 19, quando, por assim dizer, começa uma espécie de desconstrução daquele universo. A associação dessa tendência que desagregou a linguagem da arte à gradativa substituição da temática religiosa por outra, naturalista, implicou a troca do ideológico e da fantasia pela representação naturalista. Minha tese é que a alternativa que os artistas encontraram para superar a objetividade do naturalismo – da cópia tout court do real – foi violentar a linguagem pictórica. Isso começa com Cézanne e se estende por uma série de movimentos de vanguarda no início do século 20. Sem mais versar temas religiosos, políticos ou mitológicos, a pintura fez de sua própria linguagem o seu tema fundamental – o que conduziu à desintegração dessa linguagem. Outro fator que influiu nesse processo foi a academização da arte de pintar, quando regras e métodos substituíram a intuição criadora. Foi a época em que, equivocadamente, se acreditou que era possível ensinar arte, já que, dentro dessa concepção, ela se reduzia à correta aplicação daquelas normas. Em oposição a essa visão, os artistas modernos passaram a buscar a expressão espontânea e livre, fora de toda e qualquer regra. Henri Matisse afirmou que seu ideal era pintar como uma criança, mas chamava a atenção para o fato de que isso não significava pintar sem


TRADUZIR-SE

Reprodução

Como é que se Explicam Quadros a uma Lebre Morta, Joseph Beuys, performance de 1965

exigência e sabedoria. Tomava-se conhecimento da dimensão inconsciente da mente humana e de sua influência no trabalho criador do artista. Não obstante, o abandono de toda e qualquer norma e princípio iria manifestar-se também na busca de novos procedimentos e novos materiais, e resultou na redução do controle consciente do artista sobre seu trabalho. No curso do século 20, essa tendência se ampliou, chegando-se a manifestações como a body art e as performances, em que todos os meios e técnicas artísticos foram abandonados, uma vez que o próprio artista tornou-se a obra de arte, se assim se pode dizer. Todos conhecem as manifestações mais extremas dessas tendências, surgidas no final da década de 60, que são, na verdade, uma negação da arte. Veja bem, não sou quem afirma não serem essas manifestações expressões artísticas: são os seus próprios autores. Quando alguém põe merda numa lata, assinando nela seu nome e a envia para galerias de arte, não deixa dúvida de que, para ele, arte e merda são a mesma coisa. No entanto, ainda há críticos de arte que insistem em ver nisso uma manifestação estética. Este comportamento da crítica é outro fenômeno que deve ser estu-

dado, como parte do processo de desmonte do universo imaginário e do artista como mestre de sua linguagem. Mas a questão que desejo, por fim, colocar aqui é outra: se tais expressões anti-arte não obedecem a qualquer regra ou princípio nem seguem nenhum procedimento técnico, é impossível passá-las aos jovens, seus herdeiros pressumíveis. Como a chamada “arte contemporânea” é pura improvisação arbitrária – não tendo nem linguagem nem limites de qualquer natureza – não pode ser passada como conhecimento e técnica a ninguém. Ela se propõe a ser nada ou pura genialidade. Como, em toda a história da arte, os gênios são raros... Devemos então chegar à conclusão de que todo mundo é gênio, nasce sabendo, não precisa aprender. Não estou inventando nada, pois quem disse que “todo mundo é artista” foi Josef Beuys, um dos expoentes da nãoarte. De fato, para se banhar em tinta ou pôr cocô na lata, ninguém precisa adquirir métier algum.. Felizmente, esse fenômeno se limita ao campo das artes plásticas, uma vez que, nos demais domínios artísticos, as ricas experiências da vanguarda vieram enriquecer a linguagem atual da literatura, do teatro, do cinema, da música, da dança. Mas ainda um outro ponto a considerar: depois de quase 50 anos de improvisações e vale-tudo – mutilação do pênis, corte e sangramento vaginal, crucificação na traseira de um fusca etc –, hoje nada disso choca as pessoas e, por essa razão mesmo, já ninguém se anima a fazê-las. As coisas mostradas nas últimas Bienais não têm graça, são uma espécie de academização do inconformismo, isto, um novo conformismo. Sem limites, não há liberdade nem rebeldia. A crítica e as instituições artísticas, por tudo aceitarem, induziram a vanguarda ao suicídio. Como desistiram da obra de arte, essa antiarte do eventual ficará na história apenas um registro, uma notícia. • Continente setembro 2007

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ARTES

As crianças apreciam as "cabeleiras" criadas por Tunga, artista plástico pernambucano radicado no Rio de Janeiro

Arte para crianças

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Para os artistas, crianças se relacionam com as obras de arte sem a autofiscalização dos adultos. Não trazem idéias prontas nem valores já dados e, assim, têm acesso direto ao aspecto lúdico da obra André Luiz Barros

té os anos 1870, mais ou menos, crianças não tinham nenhum acesso às artes plás­ ticas, a não ser pegando carona na devoção dos pais diante de obras sacras. Depois daquela data, os artistas começam a incorporar o tosco, o primitivo e mesmo o infantil em seus traços: da arte africana à haitiana e chinesa, com Gauguin e Van Gogh, chegou­se a um olhar francamente infantil diante de um mundo cada vez menos doce e paradisíaco. Ao longo do século 20, surgiriam Picasso, Matisse, Duchamp, Miró, Paul Klee e muitos outros. Por trás desse movimento de expansão formal estava a idéia de que a arte brota de uma região ilógica do homem e, como Continente setembro 2007

tal, deve manter a aura dessa origem, como um rio que seca deixa extinguir o vigor da nascente. Tal nascente, no caso da arte, foi logo identificada com o inconsciente, aquela região inacessível que, segundo Freud, conteria a história afetiva da infância e, portanto, os segredos do adulto. Estava feita a identificação moderna entre o artista e a criança: o homem seria o “filho da criança”, ou seja, formar­se­ia emocionalmente a partir do que viveu na infância. Porém, se artista e obra modernos se fazem infantis, onde fica a criança real, destinatária e público em potencial de arte? O tema um tanto inexplorado reaparece diante do sucesso da exposição Arte para Crianças, no


ARTES

Paul Klee (no alto) e Miró foram artistas que exploraram um certo "olhar infantil"

Museu Vale do Rio Doce, em Vila Velha, no Espírito Santo, na qual nada menos de 16 mil crianças viram e, em alguns casos, puderam tocar e interagir de várias formas com obras de Amílcar de Castro, Tunga, Ernesto Neto e até Yoko Ono, entre outros. “O artista contemporâneo é filho do modernismo de Picasso, de Brancusi, de Duchamp, que se encantou com o primitivismo de Rousseau. A diferença é que eles tinham um ímpeto de descobrir o mundo, notaram que o mundo não era só a Europa. Hoje resta pouca coisa para descobrir”, compara Ernesto Neto, cujo filho, em recente mostra no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com obras do século 19 em diante, preferiu exatamente a arte contemporânea. “Ele escolheu, para desenhar, as obras recentes. É uma prova da identificação da garotada com a arte de hoje”, diz. Em Vitória, Ernesto expôs seus “úteros”, como são conhecidas obras como Uni Verso Bebê II Lab, já que o visitante entra em vãos da escultura de pano como se

entrasse num aconchegante corpo gigante. Foi um sucesso: “Gostei daquele que parecia um útero, dava para brincar e se emocionar”, conta Vítor Bezerra Nunes, 14 anos, da 8ª série. Obras lúdicas como essa, tributária dos experimentos de Lygia Clark, Hélio Oiticica e outros artistas con­ ceituais dos anos 60 e 70, aproximam a visita dos garotos de uma excursão com direito a intensa atividade corporal. Nada mais distante da antiga contemplação passiva que se pedia do receptor diante de uma – sempre suposta – obra­de­arte. Para o gravador Rubem Grilo, a falta de censura aumenta a liberdade e o sentido de brincadeira no olhar dos meninos: eles dispensam mediações intelectuais ou morais. “Eles deixam o jogo acontecer sem a autofiscali­ zação dos adultos. Não trazem idéias prontas nem valores já dados e, assim, têm acesso direto ao aspecto lúdico da obra”, diz. Grilo, que publicou suas gravuras na imprensa até 1985 e, de lá para cá, fez mais de 1.800 mini­gravuras Continente setembro 2007

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ARTES

Árvore do Desejo, de Yoko Ono

Eduardo Sued criou uma estrutura colorida como uma casa vazada

de objetos ou animais minúsculos e desimportantes do cotidiano (“Coisas e bichos que raramente são retratados pelos artistas”, define), lembra que, aos 14 anos de idade, Picasso pintava como o renascentista clássico Rafael. “E passou o resto da vida tentando pintar como uma criança.” Para ele, pintores como o espanhol buscavam incluir o malfeito, os garranchos na arte, de forma antiacadêmi­ ca. “Nesse sentido, as crianças são como os loucos. Artur Bispo do Rosário requisita para si toda a origem do processo criativo, dispensando os códigos aceitos da arte. Ele cria um mundo, não só uma obra para ser aplaudida”, diz. Mas ter crianças como público­alvo de exposições não significa necessariamente ser didático ou impor minicursos de História da Arte diante de cada obra. Mesmo que a aproximação entre meninos e obras­de­arte se dê, hoje, graças à mediação das escolas. Evandro Salles, curador da mostra Arte para Crianças, é contra a mania de contextualização dos professores e currículos atuais. “Em geral, os projetos de arte e educação trazem equívocos. Não é preciso explicar a arte, nem contar sua história em poucos minutos, para que a garotada tenha contato com as obras. O contato direto, aliás, é mais importante que qualquer aula Continente setembro 2007

sobre arte do século 19”, diz. Artista, além de curador, conhecido de Yoko Ono, a quem pediu obras para a mostra e foi agraciado com as Wish trees (Árvores do desejo), onde o visitante pendura papéis com seus desejos escritos, para que “frutifiquem”, Evandro crê que a contextualização tende a impor um único sentido a cada obra. “Nenhuma obra­de­arte contém uma explicação única”, conclui. Ronaldo Barbosa, diretor do Museu Vale do Rio Doce, vê crianças interagindo mais facilmente com a arte contemporânea do que os adultos. “Elas são seres livres. Estão em plena formação da linguagem, tanto a verbal falada quanto a escrita e a icônica, ou seja, de imagens. Por isso, tudo que lhes mostram elas assimilam com muita facilidade”, diz. Desde sua criação, há nove anos, o Museu Vale privilegia a formação de público bem jovem, com visi­ tas e workshops contínuos, a cada nova mostra, seja adulto ou não. A média de visitação de alunos das 14 escolas das regiões próximas é de 3.500 por mês. E o que seria arte para esses meninos e meninas, depois de tanta aula e visitação? “É expressar a realidade através das obras, da pintura, da música, dos filmes etc.” define Leonardo Oliosi, 16 anos. “É uma coisa que a gente


Eder Santos expõe uma gaiola, onde a luz é o “pássaro” aprisionado

imagina e põe em matéria”, rebate Alysson Augusto Guimarães, 13. A imaginação pode fazer parte da própria curadoria de uma mostra voltada para crianças. O cenário da sala onde estavam as pequenas gravuras de Rubem Grilo seguia a dimensão das obras: tinha tetos rebaixados para proporcionar aos visitantes­mirins – muitos deles indo a um museu pela primeira vez – a sensação de certo personagem famoso da literatura: “Quando se pensa na criança como público­alvo, é preciso adequar a própria encenação da mostra. A sala das gravuras parecia uma cena do Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Meninos e meninas se sentiam como Alices em uma sala que encolheu, e onde as obras estavam na altura de suas vistas”, diz Nos workshops, tanto os promovidos pelo Museu de Vitória quanto os da NAU, Núcleo de Arte da Urca, que costuma levar alunos de várias idades a mostras de artes plásticas no Rio de Janeiro, a garotada pode ter contato com obras­de­arte como se fossem jogos propostos por gente imaginativa. Num primeiro momento, que nos desculpem os críticos, mas diversão é fundamental. Só que tais passeios não se resumem à gazeta: “Não se trata de um parque de

diversões. Os professores devem incluir a reflexão, senão perde o sentido”, diz Ernesto Neto, que vê no avanço tecnológico e na avalanche de imagens e temas uma diferença gritante em relação aos artistas modernos que se esforçavam por ampliar seu repertório formal e de conteúdo. “Nosso problema hoje é o excesso: além de nosso museu virtual, é difícil achar algo sobre a Terra que já não foi mostrado, da viagem espacial às pinturas rupestres”, diz. De fato, se a geração de fins do século 19, em plena revolução industrial, se fascinava com o primitivismo dos homens da caverna, hoje essa nostalgia pelo naïf não tem como ser idealizada em contraponto à corrida científica, tecnológica, genética e bioquímica. “Hoje, o artista convive com fotografias incríveis de Marte e a arte indígena. São vários tempos convivendo”, diz Grilo. No fim das contas, portanto, os desafios dos artistas de hoje se aproximam dos das crianças, como numa correspondência de lugares: uns como outros se esforçam para sintetizar tantas imagens e informações de modo a compreender o mundo e as dimensões simbólicas em jogo atualmente. Ou então, como diz a aluna capixaba Kamila Alves, 16 anos, apenas para “expressar seus sentimentos”, sua definição pessoal da função da arte. Continente setembro 2007


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SABORES PERNAMBUCANOS Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti

Sabores da Independência

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edro de Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gon­ zaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bour­ bon é responsável por nossa “Independência”. Aqui, era Pedro I. Em Portugal, Pedro IV, o “Rei Soldado” – por ter pessoalmente combatido o irmão D. Miguel, na Guerra Civil de 1832. Dois nomes para o mesmo homem. Nada a estranhar numa terra em que Santo Antonio é de Lisboa e é tam­ bém de Pádua. Chegou ao Brasil com 10 anos, fugindo das tropas de Jean­Andoche Junot, comandante das tropas de Napoleão. O general francês era velho conhecido da corte portu­ guesa, desde quando foi embaixador da França em Lisboa. É dessa época registro, em seu diário, do primeiro encontro que teve com o futuro rei de Portugal, D. João VI, – “Meu Deus! Como é feio! Como é feia a princesa! Meu Deus! como são todos feios! Não há um só rosto gracioso entre eles, exceto o do prínci­ pe herdeiro”. Esse príncipe era D. Pedro. Voltou Junot a Por­ tugal, três anos depois, numa missão nada diplomática – invadir o país por ter ficado ao lado da Inglaterra, então em guerra com Napoleão. Primeiro tomou Abrantes. Não pela quantidade de ouro que dali se extraía nas areias do Tejo – daí vindo a origem latina do próprio nome da cidade, “Aurantes”. Mas por ser importante reduto de defesa natural. Depois recebeu título de Primeiro Duque de Abrantes. De lá se preparava para tomar Lisboa. Nessa espera, todos os dias, um emissário relata a D. João – “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Enfim chegou a Lisboa por uma das sete colinas que a cercam, o Alto de Santa Catarina. A tempo de ver partindo para o Brasil as oito naus, cinco fragatas, três brigues, uma charrua de mantimentos, 30 navios mercantes e quatro navios de guerra britânicos, com a rainha D. Maria I – “a Louca”, seu filho o príncipe regente D. João VI, a nora Carlota Joaquina, o restante da família (incluindo D. Pedro), quase toda a nobreza e o clero, no total mais de 12 mil homens, objetos de arte, 60 mil livros, manuscritos, móveis e pratarias. Junot ficou “a ver navios”. Não encon­ trou resistência, entre os portugueses que ficaram em terra. Apesar de seu exército “mal­armado, maltreinado, faminto Continente setembro 2007

e fatigado”, segundo Eduardo Bueno (Brasil: Uma História). Autoproclamou­se governador­geral. Instalou­se com pompa e circunstância no palácio do barão de Quintela, e passou a exigir, do anfitrião, tratamento de rei. Sua esposa, Laure Saint­Martin­Permon, recebia sempre com elegân­ cia. E, sobretudo, sabia cozinhar. Contam que ganhou de presente, do coronel Restac, o livro de receitas saqueado da biblioteca das freiras dominicanas do Convento de Alcântara. Adorou a lembrança. E passou a fazer receitas do livro em todos os banquetes oficiais do marido – entre elas o famoso doce de ovos e Perdizes à Convento de Alcân­ tara, recheadas com fois gras e marinadas em vinho do Porto. A comida da aristocracia portuguesa, por esse tempo, não era muito diferente da francesa. “Comia­se tão bem em Lisboa quan­ to em Versailles”, observou Alfredo Saramago. Em verdade não dava, Napoleão, muita importância à comida. “Não sabia comer. Morreu ignorando um bom prato. Almoçava em oito e jantava em 15 minutos, impossibilitado de sentir sabor no que comia”, segundo Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil). Mesmo antes de Junot, “o francesismo invadiu as mesas portu­ guesas” – como bem observou Gilberto Freyre (Açúcar). Tudo por conta de um cozinheiro francês contratado pela rainha D. Maria, o mestre Lucas Rigaud. Foi uma revolução na culinária local. Rigaud substituiu o uso exagerado de condimentos (aça­ frão, anis, cárdamo, cominho, gengibre, malagueta) por ervas (alecrim, cerefólio, coentro, estragão, funcho, manjericão). Valorizou o consumo de sopas, aves, borrego, caças, carneiro, peixes, presunto – para ele, a única parte nobre do porco. Legumes também – aipo, alcachofra, aspargos e chicória. Deixou tudo registrado em O Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha (1780). Nele, só para lembrar, apenas uma vez se refere à batata – ao ensinar que “depois de cozidas em água e peladas, comem­se com molho de manteiga e mostarda”. Não foi fácil a viagem da família real ao Brasil. Por 64 dias tiveram dificuldades com a inconstância dos ventos. Uma epi­ demia de piolho obrigou muita gente a raspar a cabeça. A água era cuidadosamente armazenada em pipas e fiscalizada, durante a viagem, pelo “fiel da aguada” – um título que resiste, até hoje,


SABORES PERNAMBUCANOS na Marinha do Brasil. Mas essa água, no fim da viagem, já era pouca e ruim. A comida era preparada pelo cozinheiro de bordo, com ingredientes que pudessem resistir à longa travessia – carne seca salgada, chouriço, galinha, paio, peixe em salmoura, porco, presunto, toucinho. Como tempero, alho, alecrim, cebola, pimenta, sal, azeite e vinagre. Mais azeitonas, ameixas em con­ serva, biscoitos, confeitos, cereais, fartéis, marmelo, mel, queijo do Alentejo e vinho. Finalmente, em 8 de março de 1808, che­ garam ao Rio de Janeiro. A cidade era malcheirosa, suja e des­ cuidada. “Que horror. Antes Luanda, Moçambique ou Timor”, teria dito a princesa Carlota Joaquina. Ficaram a princípio no Paço do Vice­Rei. Depois, na Quinta da Boa Vista – ofertada por Elias Antonio Lopes, um rico traficante de escravos. Para alojar os outros viajantes, cerca de duas mil casas foram requisitadas e seus moradores desalojados. Sobre as portas eram então marcadas as letras P.R. (de príncipe regente), que a irre­ verência carioca logo traduziu para “propriedade roubada”. Dom Pedro e seu irmão Dom Miguel cresceram soltos pelo Rio de Janeiro. Dizem até que Dom Miguel não era filho de D. João, mas fruto de um amor escuso de D. Carlota com um nobre famoso pelos banquetes exagerados que oferecia, o mar­ quês de Marialva. Não só ele. Também outros quatro, dos nove filhos de D. João, seriam ilegítimos. Lembrando que todos nas­ ceram em Portugal, inclusive D. Antonio, que morreu antes da família real chegar ao Brasil. Mas essa é outra história. Certo é que Dom Pedro andava nas ruas com roupas de algodão, cha­ péu de palha, tomava banho nu na praia do Flamengo e brin­ cava com outras crianças. Adorava andar a cavalo e caçar. Tocava clarinete, cravo, fagote, flauta, trombone e violino, além de ins­ trumentos menos nobres, como lundu e violão – que aprendera na Taverna das Cornetas, à rua das Violas. Tinha também gran­ de talento como marceneiro e ferreiro – atividades consideradas, à época, mais próprias para escravos. No físico herdara “os lábios grossos do pai, os olhos vivos da mãe e um robusto braço plebeu capaz de derrubar touros no picadeiro”, assim o descre­ veu Pedro Calmon (O Rei Cavaleiro, 1933). Com a queda de Napoleão, já não valia a desculpa usada pela corte para se manter no Brasil. E, assim, na madrugada de 25 de abril de 1821, partem o agora rei Dom João VI, a rainha D. Carlota Joaquina, o filho D. Miguel, as seis princesas, os restos mortais de sua mãe louca, 4 mil cortesãos, parte do tesou­ ro real e 50 milhões de cruzados sacados do Banco do Brasil. Até consta que, ao pôr os pés no navio, D. Carlota teria batido um sapato no outro dizendo “nem nos calçados quero como lembrança a terra do maldito Brasil”. Dom Pedro ficou por aqui mesmo, tornando­se príncipe regente. Casou com Carolina Josefa Leopoldina, arquiduquesa da Áustria – filha do imperador Francisco I e líder do império austro­húngaro. Irmã de Maria Luisa, segunda esposa de Napoleão. Ironicamente, D. Pedro tornou­se concunhado do homem que obrigou sua família a fugir de Portugal. D. Leopoldina era

culta e refinada. Amiga do poeta alemão Johann Goethe e do compositor austríaco Franz Schubert. Dizem que ficou deslumbrada quando viu o noivo. Tanto que registrou, em seu diário, a emoção da primeira refeição que tiveram – “Conduziu­me ao salão de jantar, puxou a cadeira e, enquanto comíamos, piscou­me o olho e enlaçou a perna dele na minha debaixo da mesa”. O jantar, servido sempre entre uma e duas horas da tarde, era naquele tempo a mais importan­ te das refeições. No cardápio palmito, cordeiro, perdiz, pombo e “galinha mourisca” (pedaços de galinha, frita em toucinho; depois cozida no vinho, junto com salsinha, hortelã, louro e coentro, e servida sobre fatias de pão, e coberta com ovos cozi­ dos polvilhados com canela). Também queijos, tâmaras e doces de pêra e de pêssego, trazidos de Portugal. Apesar de já ter o Rio de Janeiro vacas leiteiras, continuou a corte a preferir man­ teiga irlandesa, salgada e rançosa. O pão de trigo passou, no Rio, a ser conhecido como “pão francês” – por começar a ser feito, por aqui, com a chegada da Missão Artística Francesa encabeçada por Debret. Nas mesas nobres, logo esse pão subs­ tituiu os feitos com farinha de mandioca ou milho, bem mais pesados. A refeição era regada a vinho do Porto, Madeira e Carcavelos. Dom Pedro não se contentou apenas com D. Leopoldina. Teve amantes muitas. Entre elas a dançarina Noemi Thierry e Domitila de Castro Canto e Melo, futura Marquesa de Santos, com quem teria 4 filhos – uma das filhas acabou Duquesa de Goiás. Não era bonita, nem de família nobre e já tinha se separado do marido sob a pecha de lhe ter sido infiel. Ao todo foram 18 filhos, todos oficialmente registra­ dos. Dona Leopoldina, coitada, acabou morrendo. De tristeza. Domitila pensou que iria se casar novamente. Mas D. Pedro preferiu D. Amélia – uma bela princesa alemã, que lhe garantiu um exílio feliz, em uma Paris já sem Napoleão. Foi esse Pedro de muitos nomes que, em 14 de agosto de 1822, partiu do Rio de Janeiro na direção de São Paulo – que, segundo informações do Ministro Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva, estava em pé de guerra. Naquele tempo, teve que atravessar matas fechadas e rios. Mas, no vigor de seus 24 anos, não se intimidou – “Dormirei sobre uma esteira e farei de travesseiro uma canastra (caixa revestida de couro, onde se guar­ dam objetos). Alimentar­me­ei de feijão e, à falta de pão, não desdenharei a farinha de mandioca”. O desembargador Estevão de Rezende, para diminuir o desconforto, pretendia organizar um roteiro de pousadas, incluindo até uma cozinheira. O prínci­ pe não quis. Reuniu uma pequena comitiva, composta de seus amigos Francisco de Castro Canto e Mello e Luiz Saldanha da Gama, dois criados, o padre Belchior e o português Francisco Gomes da Silva, conhecido como “Chalaça” – seu secretário particular que, como ele, gostava de bebidas, de mulheres, de violão e de capoeira. Andaram 96 léguas em 11 dias. Um feito. Esse caminho que percorreram, 100 anos depois, seria trans­ formado na estrada Rio ­ São Paulo. Continente setembro 2007

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SABORES PERNAMBUCANOS São muitos os registros da alimentação, durante esse trajeto. Levaram uns poucos mantimentos que completariam com o que encontrassem. Na maior parte do tempo, teve a comitiva que se contentar com arroz, carne seca (frita ou assada – que substituía a fresca, de difícil conservação), farinha de mandioca, feijão, porco defumado, tatu e toucinho. O milho era destinado aos animais e às pessoas simples da comitiva. Mas John Mawe, primeiro viajante estrangeiro que pôde entrar pelo território pau­ lista e mineiro (autorizado em 1809 pelo príncipe regente), pens­ ava diferente dos portugueses: “Ora essa! Enquanto houver milho e água, os viajantes não morrerão de fome”. Na comitiva também queijo curado puro, ou acompanhado do doce de alguma fruta. O cientista francês August Saint­Hilaire, em seu Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro et de Minas Gerais (1830), estranhou esse cardápio. Por considerar doce com queijo uma “heresia culinária”; ainda lembrando, horrorizado, o exa­ gero no Brasil do uso do açúcar, que “mascara o sabor dos fru­ tos”. Quando paravam, soltavam seus animais e faziam uma fogueira sobre a qual armavam o tripé de pau em que se pendu­ rava o caldeirão com feijão e carne­seca, além da chaleira de café fumegante. Na caminhada saudades tiveram apenas das fartas e generosas refeições servidas em fazendas de café – Real Fazenda de Santa Cruz, Olaria, Três Barras e Pau d'Alho. Ali, tudo era luxo e requinte – toalhas de linho rendado, talheres de prata, porcelanas, cristais, baixelas de prata e até de ouro (na casa de Manoel José de Mello, em Guaratinguetá). Nas mesas leitões assados inteiros (decorados com limão na boca), guisados de frango e de lebre, virado de feijão com torresmo. Dessa viagem, que mereça registro, só fato ocorrido na sun­ tuosa sede da Fazenda Pau d'Alho. Quando o coronel João Ferreira de Souza saiu cedo de casa, com o filho Francisco, para receber D. Pedro na estrada e levá­lo até a casa. Sua mulher, D. Maria Rosa de Jesus, cuidava dos últimos preparativos para o jantar. Uma enorme mesa de madeira foi coberta com toalha de linho rendada e arrumada com louça inglesa, copos de cristal francês, talheres de prata portuguesa, baixelas de prata. Em tra­ vessa azul um leitão assado com o obrigatório limão na boca, guisados, virados, frangos, pratos variados de arroz, pudim de clara e de pão, bolo de coalhada, abóbora em pedaços, arroz­do­ ce e furrundum (cidra ralada, melado e gengibre). Foi quando, atravessando a fileira de coqueiros que rodeava a casa, lhe che­ gou um jovem cavaleiro empoeirado. Identificou­se como inte­ grante da comitiva real e confessou ter chegado na frente apenas por estar faminto. Pediu alguma comida. “Banquete e mesa não”, disse ela, por se destinar ao príncipe que logo viria. Mas, roída pela piedade, ofereceu­lhe um prato da comida dos peões, servido em mesa de canto. Só mais tarde voltou o coronel. E logo beijou a mão daquele jovem faminto e brincalhão – o pró­ prio príncipe D. Pedro. D. Maria perdeu a fala. E a fome. Na manhã seguinte, Dom Pedro plantou, junto a sua casa, uma palmeira “imperial”. Depois ainda voltou quatro vezes ao local Continente setembro 2007

­ plantando, em cada vez, uma nova palmeira. Essas cinco pal­ meiras continuam vivas, até hoje. Muitas receitas portuguesas foram adaptadas nas ricas fazendas do Vale do Paraíba, pelo uso de ingredientes locais. Entre elas leitão pururuca recheado. Depois de ficar uma noite no tempero, acrescenta­se recheio feito com miúdos do porco, farinha de mandioca ou pão velho. E vai ao forno, até que a carne comece a dourar. Unta­se então com gordura fervendo e borrifa­se com água fria. Volta ao forno. A pele fica crocante (pururuca). Era receita copiada dos leitões feitos em Portugal, na região de Bairradas. Também arroz com suã (espinha dorsal do porco, com as costelinhas), e guisados de lebre (com os pedaços grandes do animal). Só em 25 de agosto chegou D. Pedro a São Paulo. Ao con­ trário do que esperava, tudo por lá estava calmo. Foi recebido com missas, fogos de artifício e muitas festas. Numa delas, levou bofetada de uma bela mulata, que não o reconheceu. Noutra, foi apresentado a Domitila. Em 7 de setembro, às margens do ria­ cho Ipiranga, foi alcançado pelo major Antonio Ramos Cor­ deiro e pelo carteiro real Paulo Bregaro. Ao imperador foi entregue um maço de cartas. Uma era de seu pai, D. João VI, avisando que perderia o status de regente, passando a ser mero delegado da Corte; e dando conta que a Assembléia portuguesa exigia a demissão de todos os ministros por ele (Dom Pedro) nomeados. Esses ministros do Brasil seriam, a partir daquele momento, indicados por Lisboa. Duas outras cartas eram de José Bonifácio e da esposa D. Leopoldina. Ambas lhe aconse­ lhavam romper com Lisboa. Assim se deu. D. Pedro pisoteou as cartas, arrancou do chapéu o laço com as cores vermelha e azul (que representavam o Reino Unido de Brasil e Portugal). Montou em seu cavalo foi até o topo da colina e gritou “Amigos, as Cortes de Lisboa nos oprimem e querem nos escravizar... Deste dia em diante, nossas relações estão rompidas”. Arrancou a insígnia portuguesa de seu uniforme, sacou da espada e gritou “Por meu sangue, por minha honra e por Deus farei do Brasil um país livre”. Depois: “Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será Independência ou Morte”. Dizem que o príncipe não estava bem, naquele dia. Era vítima de terrível diarréia “que o obrigava o tempo todo a apear­se para prover”, segundo o padre Belchior. Por conta da água salobra de Santos ou de algum prato condimentado da viagem. Apesar disso montou em seu cavalo, foi até o topo da colina e proclamou a Independência. Independência política. Que no reino dos sabores, feito da mistura democrá­ tica de ingredientes dos índios, dos jeitos de fazer dos escravos africanos e das receitas portuguesas aqui adap­ tadas, desde muito antes a culinária brasileira já era inde­ pendente.


DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira

Monteiro Lobato e a censura: um diálogo impossível

A

prisão de Monteiro Lobato, em março de 1941, é um dos mais perfeitos exemplos do poder de coerção da Ditadura de Vargas, o mesmo Poder que, anos depois, iria reviver, igualmente implacável e sangrento, nas sucessivas ditaduras militares que imperaram neste país a partir do golpe de 1º de abril de 1964. Por que Monteiro Lobato foi preso? Simplesmente porque havia escrito uma carta a Vargas, em caráter confidencial, criticando a política do governo ditatorial para o problema do petróleo brasileiro! (o petróleo acabara de se tornar uma realidade, para profundo pesar dos trustes anglo-americanos, com os recentes, embora ainda tímidos, esguichos dos poços pioneiros de Lobato, no Recôncavo baiano). Apesar de confidencial (ou seja, para ser lida apenas por Vargas, de quem, aliás, Monteiro Lobato fora amigo pessoal), a carta logo se tornaria pública: cópias e cópias se espalhavam pelas redações. Dias após ter sido escrita e entregue ao destinatário, já não era uma missiva “confidencial”: parecia uma carta aberta. A fúria de Vargas (e os que o conheceram de perto sabem a que ponto ela podia chegar) chegou ao máximo: aquilo não podia ficar assim! O que é que Lobato estava pensando? Só porque era um grande escritor, talvez na época o maior escritor brasileiro vivo, achava-se no direito de duvidar da infabilidade do

Chefe? Prisão para o atrevido, acione-se o DOPS, convoque-se o Tribunal de Segurança Nacional, processe-se o petulante. Que ele seja julgado e, o que era mais importante, devidamente condenado! Às 14h30 do dia 20 de março de 1941, dois investigadores da polícia foram buscar Monteiro Lobato em seu escritório, modestamente instalado na capital paulista.

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HISTÓRIA

A importância de uma imperatriz Livro que compila as cartas de D. Leopoldina, esposa de D. Pedro I, revela uma mulher culta, com forte influência na História do Brasil

A imperatriz Leopoldina, D. Pedro I e filhos, em óleo de Simplício de Sá (1826)

Imagens: Reprodução

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Marco Polo

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ducada em uma das mais tradicionais cortes da Europa, a do imperador austríaco Fran­ cisco I, seu pai, a arquiduquesa Leopoldina, depois imperatriz do Brasil, manteve duran­ te toda a vida o hábito de escrever cartas. O livro Cartas de uma Imperatriz é resultado de pesquisa em instituições e arquivos da Áustria, Portugal e Brasil, que revelaram um total de 850 cartas, das quais foram selecionadas 315, dispostas em seqüência cronológica a fim de mostrar a evolução de sua personalidade. Nascida em 1797, Maria Leopoldina Josefa Carolina de Habsburgo morreu amargurada, aos 29 anos, deixando seis filhos, entre eles D. Pedro II. Seu casamento com D. Pedro I obedeceu a conveniências políticas, mas ela acabou se apaixonando pelo futuro imperador do Brasil, apesar de se queixar da famí­ lia real portuguesa, rude e mal­educada segundo os padrões vienenses, e de achar que ele era des­ preparado para governar o Brasil, principalmente depois da independência do país, evento para o qual ela ardentemente o incentivou. As primeiras cartas mostram uma Leopoldina ainda ingênua para as coi­ sas da vida adulta, mas Cartas de uma Imperatriz, D. mui to interessada por Leopoldina, Estação Liberdade, no vos conheci mentos, 496 páginas, R$ 72,00. como o estudo da música, Continente setembro 2007

das ciências naturais e do desenho, para o qual já revela talento. Mostra­se encantada com as viagens, como a que fez a Praga, onde, aos 13 anos, descobriu sua paixão pela mineralogia, paixão que manteria a vida toda. Ainda menina, aproveitava os passeios com a família para coletar plantas e minerais. Tempos depois, nunca deixou de enviar do Brasil para museus austríacos espécies animais, sementes de plantas exó­ ticas e pedras raras. Leopoldina teve uma adolescência “melancólica”, segundo suas próprias palavras. Suas irmãs, inclusive Luísa, a quem era muito apegada, já tinham se casado e partido para outros países, e a morte da madrasta, conselheira fiel, a deixou órfã pela segunda vez (sua mãe falecera quando ela tinha 10 anos). Aos 20, entretanto, sua vida dá uma guinada radi­ cal: foi prometida, por Francisco I, ao jovem D. Pedro,


HISTÓRIA

Aquarela da jovem Leopoldina, retratando o Palácio de Luxemburgo. Abaixo: Leopoldina (à esquerda) ao lado da irmã Maria Clementina, em medalhão sem autor identificado

representante no Brasil de seu pai, D. João VI, rei de Portugal. Já no novo país, começam os choques com os “ataques de nervos” do marido, bem como sua persona­ lidade temperamental e desconfiada. Um homem rude, “acostumado a que se lhe faça sempre a vontade”, escreveu, acrescentando: “até tenho que aturar algumas grosserias”. Quando a isso tudo se seguiu uma sucessão de infidelidades, não restou à austríaca senão assumir uma atitude de condescendência e altivez. Em 1821, desiludida com a vida matrimonial, Leopoldina descobre a vida pública. Esquecida das ilusões infanto­juvenis, e já se considerando brasileira, apoiou com firmeza o príncipe regente, que estava hesitando recusar­se a voltar para Portugal, originan­ do o famoso Dia do Fico. E, diante do desprepa­ ro de D. Pedro, aconselhava­o, escrevia seus discursos e buscava aliados confiáveis. Quando o projeto de independência do Brasil começou a desenhar­se, insistiu para que o marido mantives­ se o brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva, cujo intelecto e postura moral ela respeitava, a fim de aconselhar de perto o príncipe regente. Chegou até a contatar o Padre Sampaio, ex­professor de reli­ gião de D. Pedro, para que comple­ tasse sua formação intelectual. E, mais, depois da independência, foi Leopoldina o principal agente a promover o reconhe­

cimento do novo país pelas cortes européias. Esta mulher surpreendente entrou em colapso quando seu marido assumiu publicamente sua ligação com a Marquesa de Santos. “Nós, pobres princesas” – escreveu, lamentando a pouca margem de decisões que podia tomar sobre sua vida –, “somos tais quais dados que se jogam”. Morreu de um aborto em dezembro de 1826, seis meses antes de completar 30 anos. O livro das cartas de D. Leopoldina é comple­ mentado por ensaios sobre a vida e o tempo da impe­ ratriz Leopoldina. Uma reflexão sobre o século 19 é feita pelos historiadores István Jancsó e André Roberto de A. Machado. Betina Kann, da Biblioteca Nacional da Áustria contextualiza o império dos Habsburgos na Europa durante a juventude de Leopoldina. A histo­ riadora Andréa Slemian traça um painel da vida da imperatriz no Brasil e a psicanalista Maria Rita Kehl traça um perfil psi­ cológico da mesma, garimpando seus senti­ mentos entre as frestas de uma escrita protocolar, característica de quem fazia parte da aristocracia européia e ocupava um posição pública. Continente setembro 2007

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76 CINEMA

Os silêncios de Bergman e Antonioni 1918 – 2007

1914 – 2007 Os dois grandes cineastas trabalharam, cada um a sua maneira, a simbologia do silêncio Marcelo Costa

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urante as décadas de 50 e 60, notadamente, o cinema viu surgir uma geração de realizadores preocupados em mostrar, entender e até intervir no mundo ao seu redor, que passava por uma reestruturação radical em virtude do pós-guerra. Nesse contexto de destruição física e espiritual da Europa, surgiram grandes artistas, cujas obras lançaram a linguagem cinematográfica a patamares nunca antes vistos. Numa encruzilhada entre o destino e o acaso, dois dos últimos remanescentes dessa geração deram seu adeus silencioso no mesmo dia: Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleceram em 30 de julho. Pouquíssimos cineastas deixaram uma filmografia tão valiosa e coerente quanto eles. Ambos se valeram da era sonora do cinema para cultuar, da forma mais íntima e minimalista, a angústia do silêncio numa época em que a reflexão, a busca por respostas ou mesmo a resignação pareciam nortear uma geração desamparada. Para o sueco Bergman, o silêncio é uma forma de imersão ou sublimação da alma humana, em meio a diálogos atormentados pela certeza da morte, por dúvidas em relação à existência e pela culpa que nos recai sobre os ombros. É o cavaleiro Antonius Blok em sua cruzada pelo sentido da vida, enquanto enfrenta a morte num duelo de xadrez no clássico O Sétimo Selo (1956); ou o idoso professor de medicina – interpretado por Victor Sjöstrom, referência do cinema mudo sueco – que, prestes a receber a última homenagem, se submete a um revisionismo existencial, em Morangos Silvestres (1957). Já em Antonioni, o silêncio é o símbolo da rarefação, do esvaziamento existencial e banalização do indivíduo que desconhece o porquê de sua ação, que busca algo, mesmo sem um sentido para a busca. Isso fica evidente em obras-primas de sua fase em cores como Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) e Profissão: Repórter (1975), nos quais os personagens se assemelham ao Mersault, de O Estrangeiro de Albert Camus. Se, em Bergman, os indivíduos contraem as vísceras para expor toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes, Antonioni vai se valer dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas para compor uma ode ao tédio e à melancolia. Seu primeiro sucesso foi A Aventura (1960), que inauguraria a célebre “trilogia da incomunicabilidade”,


formada por A Noite (1961) e O Eclipse (1962). Marcados pela presença de sua musa Monica Vitti, os filmes revelam um olhar crítico e humano de uma burguesia imersa em desencontros, superficialidades e na angústia de uma vida banal. Também Deserto Vermelho (1964), seu primeiro filme em cores, trazia Vitti num espetáculo fotográfico sobre a incomunicabilidade e a solidão. Um quarto vermelho com quatro mulheres taciturnas foi o ponto de partida de Bergman para compor Gritos e Sussurros (1975), um estudo sobre a morte e as relações humanas. Filho de um pastor luterano de ríspida educação religiosa com uma mãe fria e distante, fato retratado em Fanny e Alexander (1982), Bergman tem sua obra ressoada pela sua biografia, os relacionamentos vividos e os estudos em história da arte e teatro. A fragilidade da fé e do indivíduo, as marcas deixadas pelos cisalhamentos das relações humanas (Cenas de Um Casamento e Sonata de Outono), o desnudamento psicológico de seus personagens são recorrentes em sua obra, esteticamente marcada pela influência do expressionismo alemão, do cinema mudo sueco e do norueguês Carl Theodor Dreyer, em cujos filmes ecoam os conflitos do existencialismo cristão de Soren Kierkegaard. Os planos psicológicos, o jogo de luz e sombras e os closes eróticos nos rostos femininos, executados com maestria por Sven Nykvist, estão em Persona (1966). No filme, uma atriz de teatro emudece (Liv Ullmann) ao interpretar Electra, e a partir de sua relação com a enfermeira Alma (Bibi Andersson), Bergman disseca a fragilidade da identidade humana numa fusão de personalidades. Curiosamente, ambas as atrizes foram musas e esposas do cineasta. A questão da identidade, ou da falta dela, também foi explorada por Antonioni. Em Profissão: Repórter, Jack Nicholson é o jornalista que assume a identidade de um traficante de armas na África, numa atmosfera que remete à vida e ao suicídio social do inquietante poeta Arthur Rimbaud. Com um desfecho memorável – plano seqüência de dez minutos – Antonioni traduz bem sua linguagem. Seus filmes seguem um ritmo lento, sob um tempo que se arrasta, oposto à velocidade e às associações projetivas do cinema hollywoodiano; incompatíveis com a vida. Mesmo em seu filme americano, Zabriskie Point (1970), Antonioni não conseguiu se aproximar do público, talvez pela lentidão, talvez pela ambigüidade, já demonstrada no desaparecimento não explicado de A Aventura ou em Blow Up. Parecia não se importar, afinal, queria pôr tudo pelos ares. O próprio Bergman era admirador do desinteresse e do tom visionário de alguns filmes de Antonioni. Diferenças de visões de mundo e de estilos à parte, trata-se de dois pensadores que perpetuaram idéias e sensações através da arte. Seus nomes estão eternizados no museu do inconsciente coletivo do cinema. Entretanto, numa civilização fatigada de referências visuais, sonoras e culturais, não sabemos bem que tipo de visita suas obras irão receber nessa era “pós-moderna”, na qual o silêncio e a contemplação estão encobertos pelos ruídos, bips e as vozes da falta de comunicação entre os indivíduos.

Imagens: Reprodução

CINEMA 77

Em Bergman, os indivíduos expõem toda a fragilidade e falibilidade humana em diálogos cortantes. Antonioni se valia dos espaços vazios que se estabelecem entre seres humanos sem perspectivas, para, na ausência do diálogo, compor uma ode ao tédio e à melancolia Continente setembro 2007


Gunnar Seijbold/Corbis

O diretor e roteirista sueco era um tipo de realizador cada vez mais raro no cinema, seja de onde for: um homem querendo decifrar os segredos humanos, as sujeições do tempo e as transformações da psique

Bergman

Fernando Monteiro


Imagens: Reprodução

CINEMA 79

Making-off de um cineasta

E

stas imagens são apenas algumas das muitas que existem, documentando o trabalho de Bergman. Falecido no penúltimo dia de julho, a Europa lamentou o desaparecimento de um gênio continental – e não apenas de um grande cineasta sueco retirado para longe deste insensato mundo, na ilha de Faröe, desde meados da década de 1980. Sua morte teve o tamanho daquelas grandes mortes que nos empobrecem mais do que gostamos de admitir. Foi assim quando o inglês Charles Chaplin disse adeus ao planeta que maltratou a sua infância (e ele nunca se

Imagens de Ingmar Bergman no trabalho de direção, em sets de alguns dos seus filmes

curou disso), quando Federico Fellini acenou seu último ciao de provinciano-universal de Rimini, e não poderia ser diferente no caso do homem de cinema (e de teatro) chamado Ingmar Bergman. Nascido em 14 de julho de 1918, na bela Uppsala – ao norte de Estocolmo –, sua carreira foi bem-acompanhada ao longo de quase 50 filmes, alguns dos quais recebidos, de imediato, como autênticas obras-primas. Nesta condição, creio que devem ser citados pelo menos cinco títulos: O Sétimo Selo (1956), Morangos Silvestres (1957), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972) e Fanny e Alexander (1982).

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80 CINEMA

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Michelangelo Antonioni foi um autor inconfundível nos seus temas do impasse da comunicação e da perda da identidade

Antonioni

A paixão de Bergman pelo trabalho no cinema pode ser avaliada – ainda que precariamente – nessa seleção de imagens que a Continente divulga, como uma forma de assinalar a morte do artista que, em 1945, já confessava: “Fazer filmes é para mim um instinto, uma necessidade como comer, beber ou amar”. E é isso que fica patente nos momentos colhidos pelo still (fotógrafo de cena), em diversas locações, para algumas das produções do talento generosamente prolífico que foi Ingmar. Admirando tais fotos, delas ainda podemos recolher um pouco da aura que esse nórdico sabia instilar, como uma impregnação criativa, em cada set onde se filmava “um novo Bergman”. Sua impressão digital de diretor gravou-se nos rostos mais das atrizes do que mesmo dos atores que dirigiu com a segurança de homem dos palcos. Nessas mulheres (Maj Britt Nilsson, Harriet Andersson, Bibi Andersson, Ingrid Thulin, Eva Dahlbeck, Ulla Jacobsson, Liv Ullmann) e suas máscaras, o realizador de Persona em parte se confiou, ao mesmo tempo em que inevitavelmente as deixava diferentes de si mesmas, após o último dia de tomadas de filmes tão pessoais. Segundo todas (e todos), o cineasta conseguia ser gentil e exigente ao mesmo tempo. E rigoroso e bem-humorado simultaneamente, com a sua paciência sem limites para com crianças – que gostava de dirigir, pondo-se a brincar com elas sem qualquer receio da perda da necessária autoridade de quem comanda uma produção cinematográfica (“tempo nunca é dinheiro, para ele; é tempo, apenas, e ele pode ser capaz de parar, com a equipe em volta, a fim de admirar uma nuvem se desfazendo” – Liv Ullmann). Ao vê-lo aqui, com o seu gorro desabado, magro e sempre meio desajeitado – como quase todos os homens altos –, percebe-se que esse “maestro” sabia tirar o melhor dos seus músicos. A intimidade das conversas com um Sven Nykvist (fotógrafo da maioria dos seus filmes) revela que o futuro morador de Faro entendia que “homem algum é uma ilha” – e isso já é metade do acerto, na arte coletiva do cinema. Isto é, “coletiva” em parte. Coletiva, sim, naquilo que ela tem de agregador, como arte de equipe. Mas, solitária, naquilo que ela põe sobre os ombros dos diretores que precisam ter a certeza do que querem alcançar. Olhando-se essas imagens, não se pode ter a menor dúvida: aqui estava trabalhando um tipo de realizador cada vez mais raro no cinema seja de onde for. Aqui havia um homem querendo decifrar os segredos humanos, as sujeições do tempo e as transformações da psique – cercado de gente capaz de entendê-lo e com ele se acumpliciar, na tarefa de criar filmes artisticamente concebidos para serem (o mais possível) belos e sinceros: “Que o cinema seja o meio pelo qual me expresso é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me comunicar com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, de maneira quase voluptuosa, escapam ao controle do intelecto. I. B.” Bons tempos! Adeus, Bergman.


Rick Maiman/Corbis

N

o momento em que esta Revista estiver circulando, fará um mês, já, da morte de Michelangelo Antonioni – e todos os jornais e revistas terão informado seus leitores, suficientemente, sobre a importância do cineasta italiano, nascido em 29 de setembro de 1912, na cidade onde ele “treinou o olhar para as coisas”. A frase está no autobiográfico Comincio a capire – e nele Antonioni fala, com orgulho e carinho, dos cemitérios da sua Ferrara. “Um deles mostra toda uma família judia, em banquete de mármore e bronze” – e tal lugar, diz ele, era um dos seus preferidos para passear “sob a névoa da manhã, evitando a Giovecca e o centro de ruas com as pedras todas mudadas”. O título do livro revela bem a surpreendente modéstia do artista que achava que “o passado e a vida estavam por se fazer mais entendidos (por ele) somente agora”. Num ano já longínquo, visitamos a cidade – eu e uma amiga da juventude – e não me lembro de ter feito associações senão com a literatura. Para mim, em 1969, Ferrara e suas fumaças se mapeavam, na moderna cultura italiana, muito mais pela família Finzi-Contini – do romance de Bassani – do que pela certidão de nascimento do filho pródigo do cinema, agora sepultado num dos cemitérios daqueles “passeios” da sua juventude. Há 32 anos, teria sido uma boa oportunidade para tentar vê-la com os olhos do grande diretor... mas os meus – e outros olhos inquietos, no pós 68 – estavam então “enevoados”, à sua maneira, pela arrogância da juventude que nunca quer ver nada pelos olhos alheios. Agora, que tudo me surpreende, e, nesta época tão mudada quanto as pedras ferrarenses de Antonioni, tento rever a imagem do diretor naquela Roma da primavera de 1970: ágil e elegante, aos 58 anos, num restaurante francês da Via Mangili, muito longe da sua cidade e morada agora definitiva. O restaurante era francês porque G. o escolhera para a nossa piccola extravagância. Minha colega de turma no Centro Sperimentale era filha de um romano e de uma francesa de Montpellier (onde a luz do sul participa da cozinha da França). Mas o La Piscine não correspondeu em nada à sua expectativa, dessa vez, e ela estava chateada – enquanto

O Michelangelo do cinema italiano


82 CINEMA Imagens: Reprodução

ambos temíamos o tamanho da conta partilhada porque os tempos eram duros e restaurantes eram caros para estudantes. Sorríamos, porém a nossa preocupação ainda se distraía com a mesa ao lado, onde havíamos assistido ao diretor Michelangelo Antonioni ser o tempo todo servido com grande solicitude (naturalmente extensiva às duas senhoras que o acompanhavam e que riam mais do que a minha lisa paciência podia suportar). O que querem? Era 1970, eu tinha 21 anos – e a minha geração tinha raiva de tudo. Hoje, a pasmaceira não permite que se compreendam jovens como nós fomos, no Rio, no Recife ou em Roma. Ficamos, eu e G., de algum modo atraídos para a mesa vizinha, com a sua respectiva personalidade internacional deixada em paz (romanos civilizados fingiam não reconhecer até o Mastroianni). O cineasta parecia um homem extraordinariamente calmo, sereno. Apenas esboçava um sorriso quando as mulheres riam, talvez mais atento ao jogo da luz enviesada iluminando trutas e outras iguarias nos pratos. “Todos comem pouco quando fumam” – dizia a minha amiga. “Por isso é que ele é tão magro?” Na dúvida – e antes de pagarmos a conta bem-examinada – G. se levantou e, com o largo menu na mão, dirigiu-se a Antonioni, para... pedir um autógrafo?! Não acreditei nos meus olhos enevoados, ou não, pelo monte de liras gastas (e não com trutas delicadas). Fiquei “na minha”, mal acompanhando, pelo canto do olho, a acolhida por parte da celebridade: o meio sorriso mais uma vez esboçado e o rápido sacar de uma caneta muito grossa – uma espécie de “pincel atômico” –, retirada do bolso a fim de assinar, com segurança, na carta do La Piscine. Quando G. voltou, eu não lhe disse o quanto me sentia envergonhado, mas perguntei – retoricamente – por que lhe interessava o autógrafo daquele “solene amontoador de caixas vazias” (usando de uma definição meio invejosa que nem sequer era minha, mas de Orson Welles, que só admitia o gênio próprio). Ela sabia tanto da minha admiração pelo diretor de Cidadão Kane (e por Godard e Straub)... quanto da minha antipatia, naqueles anos, pelo “cineasta da incomunicabilidade”. Talvez porque esse tema me parecesse um luxo no mínimo dispensável de admiração na minha região remota e, ainda fervendo, debaixo das botas, para comunicar os gritos de Ligas Camponesas Continente setembro 2007

Alain Delon e Monica Vitti em O Eclipse, filme que encerra a trilogia da alienação, de Antonioni

entre os canaviais queimados. (Podia ser apenas uma frase, mas a nossa geração acreditava em frases – para bem e para mal – e o “leso” do Antonioni ainda por cima era casado nada menos que com Monica Vitti, maravilhosa... e ausente naquela mesa de restaurante.) Com o autógrafo de 20 cm (e “quilométrica vaidade”, denunciei) na mão, a minha amiga apenas sorriu – ainda mais serenamente do que o signore que acenaria de volta, para ela, ao sairmos... jovens e imortais na primavera romana (G. lançando um último olhar – ! – para a mesa cheia de cinzeiros com pontas de cigarro). Faz muito tempo. Eu mudei. O mundo mudou, entre cores e cinzas, filmes memoráveis e discursos sinceros sobre a transformação – ainda possível – dos mundos que portamos todos, incomunicáveis. Não sei onde G. se encontra, hoje. Ou sei que andou por Nova York, durante alguns anos. (Ainda estará lá, agora?) Michelangelo Antonioni morreu, e o que eu posso dizer, hoje, quando suponho estar mais amadurecido e saber pouco, embora ainda ame os filmes do cineasta mais refinado do cinema italiano? Faz falta o rigor de construção das suas obras cinematográficas, a fatura pictórica de filmes como Deserto Rosso e, enfim, a marca do mestre ambivalente do preto-e-branco e do uso da cor (como em Blow-up: a grama pintada de verde!), “regendo” as imagens de um autor inconfundível nos seus temas do impasse da comunicação e da perda da identidade. Nas Ligas Camponesas, já não se fala muito. E Antonioni agora está morto – um dia depois do


CINEMA 83 Cena de Blow-up, depois daquele beijo, um dos filmes mais cultuados de Antonioni

desaparecimento de outro gigante, o sueco Ingmar Bergman. Por mais informações que se passem sobre um ou outro, fica difícil dizer – para as novas gerações – o que perdemos no meio do vazio de uma ilha do mar Báltico e o que silencia sob os muros de pedra do incomunicável, na morte desses dois homens tão diversos um do outro, no temperamento artístico, no estilo e no modo de ver o mundo. Não há mais cineastas como eles – isso devem ter repetido os obituários, no planeta inteiro, mas a questão ainda é mais penosa para poder acompanhar suas carreiras retas, aguardando filmes que seriam

programados, fatalmente, nos “cinemas de arte” de cidades de jovens (hoje grisalhos) ansiosos pelos filmes da noite de aventura, guiando cegos pela mão da insônia: filmes da perdida cera do cinema sumido com o preto-e-branco, filmes de antes da água pesada de cores da fontana, lavando o cinza de Roma: nunca mais a veremos como era quando mais romana, na hora antes da alva do dia mais longo: este que lava Cinecittà sob a chuva artificial eastmancolor. Filmes do Morandi do cinema italiano: come un cieco m’hanno portato per mano (“como um cego, eles me levaram pela mão”), Michelangelo. (Fernando Monteiro). Continente setembro 2007


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CULTURA

Imagens: Divulgação

A Cultura como questão econômica Filme realizado na década revolucionária de 60 e seminário recente expõem as tensões entre Cultura e Economia Fernando Weller O cineasta Octavio Getino

“Q

uando um indivíduo olha mais para trás do que para adiante, é porque ele não sabe para onde está indo.” A frase colhida em meio à fala apaixonada do cineasta e teó­ rico dos meios de comunicação, Octavio Getino, dá conta das transformações no campo da Cultura e de suas relações com o chamado “mer­ cado” nos dias de hoje. Getino, atualmente coordenador regional do Observatório Mercosul do Audiovisual, na Argentina, esteve recentemente no Recife, a convite do Seminário Internacional em Economia da Cultura. O encontro reuniu, na Fundação Joaquim Nabuco, pesquisadores, produtores e gestores culturais do país, além de convidados internacionais e um público de apro­ ximadamente 300 pessoas inscritas. Ao longo dos quatro dias de evento, as mesas e conferências debateram um tema que nos últimos anos tem assumido cada vez mais centralidade: as implicações econômicas das práticas cul­ turais e seu papel no chamado desenvolvimento social de um país, enfim, o momento presente da cultura. Foram discutidas questões relacionadas às políticas públicas e privadas de financiamento da cultura no Brasil, nos países integrantes do Mercosul, assim como na França, país que esteve representado na fala de outros Continente setembro 2007

dois conferencistas internacionais: o filósofo Jean Galard, ex­diretor cultural do Museu do Louvre, e a economista Françoise Benhamou, pesquisadora da Sorbonne. Os quatro dias de seminário acabaram por expor os impasses e desafios contemporâneos que resultam da necessidade de se financiar as atividades culturais e, ao mesmo tempo, preservá­las da lógica selvagem do mer­ cado. Os agentes culturais demandam uma inserção des­ sas atividades no universo econômico e, paradoxalmente, reivindicam um lugar de exceção para a Cultura. Tais impasses se refletem, por exemplo, nas disputas no âmbito da Organização Mundial do Comércio entre os interessados em uma liberalização maior dos serviços e bens culturais e os que defendem a necessidade de políticas protecionistas. A esse respeito, o setor audiovisu­ al é emblemático e recebeu um maior destaque na fala dos conferencistas. Getino apresentou os números do setor nos países do Mercosul e as dificuldades enfrentadas para a distribui­ ção dos filmes entre os países membros. Ainda consumi­ mos majoritariamente as produções norte­americanas e, apesar dos esforços realizados através do convênio firma­ do em 2003 entre a ANCINE e o INCAA argentino (Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales), os


CULTURA filmes argentinos não chegaram em 2006 a ocupar 4% das estréias em salas de cinema no Brasil. A realidade não é diferente na Argentina. Atualmente, vivemos o início de um novo ciclo audiovisual nos dois países, com o aumento insuficiente, porém considerável de produções, passada a crise do início dos anos 90, e, no entanto, não dispomos de políticas consistentes para a dis­ tribuição dos conteúdos audiovisuais nos países vizinhos. A percepção do domínio audiovisual como um campo econô­ mico estratégico por parte do Mercosul (algo que nos EUA sempre ocorreu) é um passo importante para a con­ solidação das ainda frágeis indústrias nacionais. Pouco antes de sua participação no seminário, Octavio Getino foi ainda convidado a falar no programa DOC em pauta, também na Fundaj, e a exibir o clássico filme realizado por ele e pelo cineasta Fernando Solanas, La hora de los hornos, de 1969. Nada mais adequado ao tema “economia da cultura” do que a exibição de um filme que se propunha, justamente, a questionar a relação entre esses dois campos. La hora de los hornos (em português, “a hora dos for­ nos”, uma referência ao clima incendiário na América Latina do final da década de 60) pretendia ser um “filme­ manifesto”, um documentário de denúncia do neoco­ lonialismo, da dominação econômica e cultural dos Estados Unidos sobre os países latino­americanos. Foi por muitos anos um filme maldito que ocupou os cine­ clubes clandestinos, sindicatos, universidades e outros espaços não­convencionais de exibição em vários países. La hora assumiu por muitos anos o status de um Encouraçado Potemkin latino, tal a sua força nos círcu­ los revolucionários da época. Ele se insere em uma proposta maior de constituição do chamado tercer cine, um terceiro cinema defendido por Solanas e Getino, essencialmente engajado na luta revolucionária e que se opunha ao cinema hegemônico norte­americano e ao chamado cinema de autor europeu, tido como alie­ nado. Tal era o modelo de cultura em questão naquele momento: uma cultura libertadora que promoveria a autonomia dos povos latino­americanos frente ao poder hegemônico. Entre o filme de Getino e Solanas e a conferência proferida no seminário, o que mudou? Basicamente, podemos afirmar que, há 40 anos, a Cultura acreditava ser capaz de se libertar das amarras econômicas, buscar uma autonomia utópica, ao passo que, hoje, é prioritaria­ mente pelas vias econômicas que são pensadas soluções para os seus problemas.

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De fato, durante todo o debate e em sua fala no semi­ nário, Getino olhou muito pouco “para trás”, para o espí­ rito revolucionário das décadas passadas e das hoje ana­ crônicas palavras de ordem que tanto efeito tinham na época. Seus planos estão na constituição de uma rede de produção e circulação de informações acerca do mercado audiovisual nos países do Mercosul. O filme, no entanto, nos faz pensar no presente. Assisti­lo não significa um nostálgico “olhar para trás”,

Acima, cena do filme argentino A Menina Santa. Ao lado, cartaz de La Hora de los Hornos

ou um retorno a discursos como os dos “adolescentes que vivem se queixando”, usando as palavras de Getino. A exibição de La hora de los hornos foi uma oportunidade para nos darmos conta de nossos impasses atuais, da ain­ da tensa e não­resolvida relação entre economia e cultura. O discurso marxista radical de La Hora contrasta com as palavras de Getino durante o seminário: “por muitos anos”, afirma, “as chamadas indústrias culturais foram demonizadas pela esquerda e pelos meios acadê­ micos. Ora, todos os países, seja qual for o modelo econô­ mico, possuem indústrias culturais”. A fala de Getino, Continente setembro 2007


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CULTURA

“A economia não pode ser pensada como um fim, mas como um meio para a cultura” Françoise Benhamou

como se poderia supor à primeira vista, não é uma simples negação de discursos, hoje anacrônicos, por um cineasta transformado pelo tempo. Muito menos um sinal de incoerência, posto que ela ainda é uma fala essencialmente política. O seu sentido é mais pro­ fundo e aponta para as novas formas de agenciamento entre os campos da Cultura e da Economia no con­ temporâneo. Desde o fim da guerra fria, parece que a dimensão econômica passou a assumir uma importância nunca antes vista em todos os campos sociais. Cultura, ciência, educação, saúde, esporte, cada um desses campos subme­ teu seus discursos internos e suas práticas a uma lógica comum: a da necessidade de financiamento como ponto de partida, como pré­requisito. É fácil, então, com­ preender que, em meio a esse consenso em torno do econô­ mico, pela primeira vez certos agentes culturais, artistas, cineastas ou teóricos, tenham encontrado e abraçado finalmente a ilusão do “saber para onde vamos”, um saber que dispensa o passado, que se dá acima de qualquer temporalidade. Mas para onde vamos afinal? É possível pensarmos ainda em um tercer cine, expressão de uma cultura livre e libertadora, nos dias de hoje? Certamente, não nos moldes pensados à época de La hora de los hornos. Parece que vive­ Continente setembro 2007

mos atualmente diante de um só cinema, não mais o modelo hegemônico norte­americano, nem o autoral independente. Estamos diante do cinema com financiamento. Atualmente, há uma brutal redução das discussões em torno do fazer cinematográfico, limitadas às questões referentes ao financiamento dos filmes, entendido não só como recursos para a produção, como também meios de distribuição e exibição. Certamente, discutir formas de financiamento para a indústria audiovisual é algo de extrema importância. Entretanto, é preciso dar sentido aos mecanismos de financiamento, que devem ser pensados através de uma verdadeira política cultural. Passados quase 40 anos desde La hora, é ainda no campo da política que os problemas da cultura precisam ser enfrentados. A importância de eventos que discutem a economia da cultura não está apenas na discussão de formas de financiamento, de novas leis de reserva de mercado e isenções fiscais. Tais discussões, por mais urgentes que sejam, necessitam de um debate anterior e mais profundo. O evento na Fundaj foi extremamente oportuno na medi­ da em que trouxe à tona a necessidade de se discutir que modelo de cultura está em jogo no contemporâneo e que sociedade se reflete a partir desse modelo. Quando se compara a cultura ao turismo e ao esporte, por exemplo, que concepção de cultura está em jogo?


CULTURA

“A intervenção do Estado na economia da cultura enfrenta hoje um sério dilema” Jean Galard

Para essas questões, não existem certezas ou caminhos únicos. A lógica simplesmente econômica não dá conta. É preciso uma concepção outra de economia que seja, sobretudo, ética. Nesse sentido, a economia pode e deve ser entendida sob a ótica da cultura e não o contrário. Como afirmou Françoise Benhamou em sua conferência no seminário, “a economia não pode ser pensada como um fim, mas como um meio para a cultura”. O esgotamento de um “modelo” no contemporâneo para a cultura se fez evidente na fala dos dois conferen­ cistas franceses. A intervenção do Estado na economia da cultura, sempre tomada como exemplar, enfrenta hoje um sério dilema. As políticas de incentivo às atividades cultu­ rais na França conseguiram incrementar fortemente o chamado turismo cultural naquele país, o que gera conse­ qüentemente grandes recursos. No entanto, a visão restrita de cultura – pensada somente em termos de museus, bibliotecas, enfim, pensa­ da em termos institucionais – fez com que as políticas culturais na França, ao invés de promoverem uma real inclusão de novos públicos, intensificassem o consumo cultural das camadas já incluídas. Em outras palavras, não aumentou o número de leitores, espectadores de cinemas, museus ou teatros, mas, sim, a freqüência e diversidade de opções de consumo para um mesmo público restrito.

Tal impasse enfrentado pelos franceses é um alerta para as ainda insuficientes políticas culturais no Brasil e em nossos países vizinhos. A experiência francesa no campo da cultura demonstra a necessidade de se retomar algumas questões que foram postas em segundo plano no momento presente como, por exemplo, a relação incon­ tornável entre Cultura e Educação. O investimento em educação e a sua reaproximação com o campo da cultura surgem na fala dos confe­ rencistas franceses como uma necessidade urgente para que qualquer modelo de financiamento da cultura dê os resultados esperados em termos de inclusão social. As secretarias ou ministérios da Cultura, de fato, um dia já foram unidas às secretarias de Educação. Hoje, elas cada vez mais se aproximam dos esportes e do turismo, o que é um sinal dos tempos. O Seminário em Economia da Cultura não se esgota nos quatro dias do evento. Ele é o primeiro passo de uma parceria entre a Fundação Joaquim Nabuco e a Univer­ sidade Federal do Rio Grande do Sul, que esse ano dão início à primeira turma do curso de Especialização em Economia da Cultura, no Recife. Que as relações, sem­ pre tensas, entre esses dois campos, possam ser repen­ sadas para além da frieza dos cálculos ou dos discursos puramente queixosos. Continente setembro 2007

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METRÓPOLE

Marcella Sampaio

O estado da arte e as mulheres de Dani

A

exposição da artista plástica Dani Acioli, que esteve em cartaz no Recife em julho, reacen­ deu – ao menos para mim – questionamen­ tos sobre o fazer artístico. Os valores que são impressos às obras, o quanto de arte tem numa camiseta ou num objeto é um tema caro à contemporaneidade, que se acostumou a ver embalados para presente, numa febre ico­ noclasta, cânones representativos de uma estética que está no imaginário da coletividade. E aí, “dá­lhe” cópias da Monalisa penduradas em molduras baratinhas ou impres­ sas em copinhos de cerâmica. Há quem diga que quem compra os tais copinhos não tem idéia do que representa a imagem que está levando para casa. Pode até ser, mas, pelo menos, abre­se um precedente. O caso de Dani não tem necessariamente a ver com os copinhos, mas é representativo de um caminho que a arte vem percorrendo ao longo do tempo. Novos suportes, diferentes das tradicionais telas, mas que também não fazem parte do grupo das instalações e afins, dão vida ao trabalho da artista, que, corajosamente, flerta com a van­ guarda ao mesmo tempo em que procura reconhecimento e espaço no mercado. Ao intervir na própria pintura, utilizando os recursos tecnológicos hoje disponíveis, Dani faz arte sobre arte, e

Ao intervir na própria pintura, utilizando os recursos tecnológicos hoje disponíveis, Dani faz arte sobre arte, e se reinterpreta

se reinterpreta. Suas mulheres, sexuais e maternais, ternas e ousadas, são, segundo ela, a representação da natureza, no que a palavra (natureza) tem de mais literal. A sexu­ alidade delas não é burguesa, não se reflete nos corpos perfeitos dos comerciais de cerveja. É um retrato do que todo o ser feminino carrega em si, desde o nascimento até a morte. O pudor não cabe, até porque ele não tem razão de ser. Natural, portanto, que Dani seja também despu­ dorada em seu fazer artístico, e brinque com a tal sacralidade da arte. O que ela fez nesta exposição é pintura? É ilustração? É intervenção sobre pintura? Quais as fronteiras que definem esse batismo? O que a técnica diz sobre a quali­ dade do trabalho de um artista? A diversidade de suportes banaliza ou democratiza? As questões se acu­ mulam e as respostas ainda são escassas. De um lado, temos movimentos mais radicais cujo conceito de arte prescinde até da existência física da obra. De outro, o conservadorismo que busca manter a “aura” do trabalho artístico, como dizia Walter Benjamin, aplacando em nós, pessoas comuns, o desejo de exclusividade, de pertencer à classe dos únicos. O talento de Dani Acioli, no entanto, não deixa margens a dúvidas, seja qual for o caminho que ela escolha.

Divulgação

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Obra de Dani Acioli, que esteve exposta em julho




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