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aos leitores
Sinergia em prol da leitura
C
omo ressaltamos na edição passada, os meses de agosto, setembro e outubro ganharam uma promovida configuração de Estação das Letras em Pernambuco. Primeiro, veio a Festa Literária do Recife, pela Prefeitura da cidade, seguindo-se a Festa Literária de Porto de Galinhas – a Fliporto. Agora, entre 5 e 14 de outubro, realiza-se a 6ª Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, no Centro de Convenções, na divisa entre o Recife e Olinda. Cremos que os três eventos sucessivos poderão gerar uma sinergia para a divulgação do livro e o estímulo à leitura na região. Considerada uma das feiras mais importantes do país – em 2005 da feira superou a marca de 430.000 visitantes, situando-a como terceiro evento do gênero no Brasil –, este ano a Bienal terá como linha temática Literatura: Diálogos e Interfaces, privilegiando a relação multifacetada e dialógica da Literatura consigo mesma, com literaturas de outros países e com as outras artes, intentando fazer circular um conjunto significativo de idéias e ações culturais ramificadas e interativas. Na qualidade de evento cultural de grande alcance, a Bienal vai movimentar a cena cultural pernambucana com palestras, oficinas literárias e de gastronomia, lançamentos de livros, mostra de cinema, um espaço para os universitários, um café literário e performances poéticas, musicais e teatrais. Também contemplará o público infantil, por meio do Espaço Pedagógico, com programação diária dirigida aos alunos das redes pública e privada de ensino. • Outro tema relevante desta edição está no caderno Continente Documento. O texto do jornalista Marcelo Abreu trata dos 50 anos da publicação do maior clássico da contracultura, o On the Road, de Jack Kerouac. O livro é uma descrição alucinada das experiências pessoais do autor e de amigos em viagens pelas estradas norte-americanas. É a referência maior da chamada Geração Beat e segue influenciando escritores e jovens aventureiros em todo o mundo. • Finalmente, registramos a estréia de uma nova seção, “Teses”, voltada para a produção acadêmica do Estado, e de uma nova coluna, “Entre Linhas”, assinada pela prestigiada escritora Luzilá Gonçalves. Uma atualização no aspecto gráfico da Revista complementa o quadro de novidades desta edição.
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Dani Lima/Divulgação
Para Zé do Pife, o mundo é um palco
Autor de O Ateneu morou no Recife
CONVERSA 04 >> Ignacio Ramonet critica a esquerda e elogia a direita BALAIO 10 >> Inaugurado, em Liverpool, o Museu da Escravidão
ARtES 44 >> O mergulho de três artistas no mundo da cerâmica 48 >> A eclosão das galerias virtuais na rede
CApA 12 >> Bienal de Pernambuco amplia horizontes 19 >> Alagoas consolida sua feira de livros
muSICA 54 >> A odisséia de um músico jovem e talentoso 57 >> Quinteto Violado mantém qualidade e diversidade 60 >> Noise Viola vai da tradição ao improviso 62 >> Agenda Música
AGENDA 20 >> Coleção de Janete e Borsoi no Museu do Estado de PE
tESES 67 >> Em busca de uma leitura mais precisa de Machado
LItERAtuRA 22 >> A presença de Raul Pompéia no Recife 26 >> As sextinas na rica obra de Geraldino Brasil 30 >> Agenda Livros 32 >> Uma incrível história de amor livre 34 >>A forte poesia de Micheliny Verunschk
CêNICAS 70 >> Festival de Dança do Recife se consolida 74 >> Teatro recifense da década de 60 é tema de livro
tRADIçãO 36 >> O mundo feliz de Zé do Pife
fOtOGRAfIA 80 >> Exposição aborda o universo plural dos mercados populares 86 >> Livro mostra mercados do Recife por dentro e por fora
hIStóRIA 40 >> Obra de Cabral sobre Olinda tem edição definitiva REGIStRO 42 >> Uma ponte cultural entre Nantes, na França, e o Recife
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CINEmA 76 >> Os descaminhos do novo cinema brasileiro
Olaria Ocre propõe uma residência artística em Tracunhaém
Festival de Dança do Recife chega à 12ª edição Roberta Guimarães/Divulgação
Uma crítica às leituras sociológicas de Machado
COLuNAS ENtRE LINhAS 35 >> Maurice Barrès, João Cabral e uma certa colina mARCO ZERO 38 >> Páginas de um livro inédito
Os 50 anos de um clássico da literatura marginal >> 35
tRADuZIR-SE 52 >> Cubismo continha inovações que marcam a arte do século 20 SABORES 64 >> Superstições à mesa e nos hábitos alimentares mEtRópOLE 88 >>TV pode ser inteligente e acessível ao mesmo tempo
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conversa
Ignacio Ramonet Hoje em dia, em muitas sociedades, não só na francesa, as tensões sociais são tão fortes que poderiam gerar uma guerra civil
Por uma sociedade civil planetária 2007 4 Continente • OUT 2007
Chefe de redação do Le Monde Diplomatique, o pensador Ignacio Ramonet comenta a incapacidade da esquerda de teorizar o mundo contemporâneo e elogia a inteligência da direita francesa ENTREVISTA A Mariana Oliveira
A
s relações internacionais e as questões vinculadas à globalização, ao neoliberalismo econômico e à mídia são o foco do pensamento do espanhol, Ignacio Ramonet, doutor em Semiologia e História da Cultura e especialista em Geopolítica e Estratégia Internacional. Chefe de redação do Le Monde Diplomatique, seus editoriais sobre essas temáticas pregam a emergência de uma sociedade civil planetária organizada. O jornal internacional (publicado em 23 idiomas e 34 países) passou a circular também em versão impressa, mensalmente, no Brasil, em agosto deste ano. Até então, os artigos só podiam ser lidos no país através do site www.diplo.uol.com.br. Em recente passagem pelo Brasil, Ramonet defendeu a necessidade da existência de uma diversidade midiática para que as distintas culturas possam coexistir. Em entrevista exclusiva à Continente, abordou a questão da cultura no mundo contemporâneo, tocando em pontos variados: desde a tentativa de acordo entre o governo espanhol e o grupo terrorista ETA à questão do pós-colonialismo na América Latina. Ramonet defendeu a postura
do presidente Hugo Chávez na sua opção de não renovar a licença da RCTV, entretanto não deixou de criticar a esquerda, apontando sua decomposição intelectual, tecendo elogios ao novo primeiro ministro francês, o direitista Nicolas Sarkozy. Você afirma que a diversidade cultural só é possível através da diversidade midiática. Por quê? Essa é uma proposição que eu faço para estabelecer uma relação entre diversidade cultural e diversidade da mídia. Pensamos a diversidade cultural sozinha, com a idéia de que através dela a cultura dos países minoritários vai coexistir junto às culturas dos países dominantes. Esse é um pedido humanístico. Por outro lado, se tivermos diversidade midiática aí estaremos tratando de interesses bem relevantes. Eu dou apenas um exemplo: na Venezuela, o presidente Hugo Chávez nacionalizou o sistema de telecomunicação, que pertencia a uma empresa privada (a CAMTV). Não houve problemas, ninguém protestou, mas quando tocou a Rádio Caracas Televisón (RCTV), viu-se o escândalo internacional que se armou. Para que serve que tal comunidade tenha sua diversidade cultural, se não pode expressar sua cultura na mídia? Temos que entender a diversidade cultural como a possibilidade que cada povo tem de expressar sua cultura através dos meios de comunicação: rádio, televisão e internet comunitárias. Na maioria dos países, os meios são controlados p e l o s
grandes conglomerados. Já sabemos hoje que a internet, que surgiu como uma forma de libertação, pertence também aos conglomerados. Você pode criar seu blog, mas é difícil que ele se torne um dos mais lidos da internet, enquanto que todos os endereços de grande acesso já pertencem aos grandes grupos midiáticos. Pensando ainda em termos de diversidade cultural, o que você pensa das relações de centro e periferia e do chamado pós-colonialismo na América Latina? Eu acredito que essa é uma situação que está evoluindo. Na América Latina, em particular, o problema do colonialismo foi bem complicado. Aqui foram os colonizadores que romperam com a colônia e estabeleceram sua independência como uma máscara da verdadeira independência. A população nativa, verdadeiramente colonizada, continuou marginalizada. Apesar da boa vontade dos colonizadores independentistas, foi criada uma sociedade injusta. Na Argentina, por exemplo, a exterminação dos índios patagônios se faz com o país independente. Há a necessidade de repensar. O que foi o colonialismo aqui? Que responsabilidade tem os “libertadores”? Houve uma libertação, mas também uma opressão. A América Latina foi, durante muito tempo, um continente neocolonizado, independente na fachada, mas dominado economicamente, com governos fantoches. É esse o cenário que começa a mudar. Agora, por fim, temos governos democraticamente eleitos, com um programa de distribuição e recursos para os menos favorecidos e com respeito às populações nativas. Há um impulso político OUT 2007 • Continente
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Para que serve que tal comunidade tenha sua diversidade cultural, se não pode expressar sua cultura na mídia?
e creio que esse é um novo ciclo para esse continente, um ciclo de crescimento econômico, consolidação democrática e que poderia ser também de renascimento cultural em todos os sentidos. Tratando dessas questões, como você se posiciona em relação aos escritos de Edward Said, por exemplo? O Orientalismo, texto fundamental do Edward Said, nos ensinou sobre essa folclorização, essa idéia de colocar os outros sempre dentro dos estereótipos, com uma espécie de paternalismo. Sem dúvida, hoje há esse grande debate que se expande por todas as partes. A resistência é maior no âmbito do Islã, já que, em sua maioria, são sociedades nas quais a segunda descolonização não aconteceu, onde, independentemente da religião, os governos são autoritários e ainda existem situações semicoloniais, e por isso se produzem essas resistências e os conflitos que conhecemos. Com a globalização e a difusão rápida das informações, como se pode buscar uma identidade fixa no mundo contemporâneo, pósmoderno? É muito difícil. A questão da identidade é um dos grandes problemas do nosso tempo, pois nós nos colocamos através de referências a comunidades, sociedades ou países. Os indivíduos estão órfãos de identidade, há uma enorme dificuldade de encontrar uma personalidade que não seja imitativa, mimética, o que causa um grande sofrimento. A identidade nacional também está se redefinindo: o
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que significa ser francês se você está dentro da União Européia? O que vemos é a criação de neotribos. É muito interessante ver a quantidade de gente que se tatua em nossas sociedades urbanas, para pertencer a um grupo, para ter uma identidade. Não basta ser branco, negro, é preciso ter tatuagens que façam da sua pele sua pele própria, não uma pele de branco ou negro. Esta neotribalização demonstra a vontade de encontrar uma identidade. Vemos surgir seitas novas, religiões novas, que provam a existência de uma consciência clara de que a identidade está se perdendo e que só podem existir identidades coletivas, que não interessam. Nesse contexto, existe também o fenômeno do hiperindividualismo: a vontade de singularizar-se totalmente, quase uma automarginalização, uma vontade de ser diferente para poder encontrar sua própria identidade. Qual a tendência que aponta as eleições na França, este ano? Apontam várias coisas, eu diria. Aponta uma espécie de decomposição intelectual da esquerda, uma esquerda incapaz de teorizar essa situação que estamos vivendo, funcionando unicamente com arquétipos utilitários que se acredita serem instrumentos para ganhar eleições. A esquerda esqueceu de pensar e isto lhe trouxe um mau momento. Em todo caso, estruturalmente, indica uma crise da teoria da esquerda, demonstra também um protagonismo da direita, em torno de temas muito sensíveis como a segurança, a imigração. Entretanto, o caso da França, de alguma maneira, ao invés de ser caricatural como pensávamos que seria pelo que conhecemos de Nicolas
Ramonet elogia a inteligência de Sarkozy e defende Chávez em suas atitudes em relação à Radio Caracas Televisión (RCTV)
Sarkozy, revelou-se muito mais inteligente e sofisticado. E isso tenho que reconhecer. Por quê? Porque integra as minorias em seu governo de uma forma espetacular, dando ministérios de grande envergadura a pessoas da imigração, isso a esquerda jamais havia feito e jamais havia pensado, criando um governo de união nacional, não de direita, mas de esquerda, de centro e de direita. Isso também é muito inovador, já que hoje em dia, em muitas sociedades, não só na francesa, as tensões sociais são tão fortes que poderiam gerar uma guerra civil. Não no sentido de guerra com metralhadoras, como foi a Guerra Civil Espanhola, mas uma guerra social como aquela que aconteceu em 2005. A inteligência de Sarkozy está em ter criado um governo de união nacional antes que isso acontecesse. Não posso dizer que este ano não vai haver confrontos de grande envergadura na França, é possível que eles ocorram. Creio que Sarkozy já sabe e não deve ser pego de surpresa. E, na Espanha, como você analisa a tentativa fracassada de acordo entre Zapatero e o ETA? Eu sou favorável, obviamente, a um acordo político com o ETA, por-
que quando há uma guerra tem-se que fazer a paz, e a paz só se faz com o inimigo. Não se trata de fazer concessões, de negociar com terroristas, trata-se de terminar uma guerra, como na Irlanda foi possível terminar a guerra. Por isso, a atitude da direita que diz que de nenhuma maneira se pode negociar com terroristas não conduz a nada. Na minha opinião, o problema no país basco não vai se resolver, exclusivamente, através de métodos repressivos, caso contrário ele já não existiria mais. Entre 10 e 15% da população basca estão a favor do ETA. É muita gente, é uma aberração, mas é uma realidade política, sociológica, estadística, então é necessário buscar um acordo. Você criou a expressão “tirania da comunicação”, que inclusive é o título de um dos seus livros. Como você a definiria? Vivemos em uma sociedade na qual a comunicação é um pouco tudo. A comunicação tomou uma importância que substitui a realidade mesma. Se você tem algum problema, vão lhe dizer que é porque você não sabe se comunicar, ou algo assim. A comunicação está substituindo toda a relação humana. Há uma
ditadura, uma tirania da comunicação já que dizemos, e é uma filosofia do mundo: “Se nos comunicássemos melhor, haveria menos problemas”. Se os bascos do ETA e o governo espanhol se comunicassem melhor, não haveria guerra ou se AlQaeda e EUA se comunicassem melhor, também não haveria problemas. Isso é um absurdo, porque os problemas são reais. Como você relaciona mídia e globalização? Hoje em dia não se pode perder de vista uma coisa: a globalização faz com que o primeiro poder seja o econômico e o financeiro e o segundo poder o midiático, pois o poder da mídia é o aparato ideológico da globalização. A globalização não pode funcionar se primeiro o sistema não convence a todos de que ela é sinônimo de modernismo e progresso. Quem nos convence disso? É o aparato midiático, que é o braço ideológico da globalização. Esses dois poderes aliados dominam o mundo da política e, conseqüentemente, é muito importante que a vontade política gere também a diversidade midiática, pois isso é sinônimo de introduzir diversidade ideológica. • OUT 2007 • Continente
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Outubro 2007 – Ano 07 Capa: foto de Roberta Guimarães/Divulgação
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente
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Colaboradores desta edição:
Presidente: Flávio Chaves
ALEXANDRE FIGUERÔA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle.
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ANDRÉ DIB é jornalista. ANTÔNIO PORTELA é jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico de música da Revista Continente
Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo
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Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira
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DANIEL BUARQUE é jornalista.
Multicultural.
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Edição on-line Mariana Oliveira Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Rafael Barbosa Gestor de Marketing e Publicidade Calazans Neto
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EDUARDO FRANÇA é mestrando em Teoria da Literatura pela UFPE e graduado em Psicologia na mesma instituição. FÁBIO ANDRADE é doutorando em Letras pela UFPE. FERNANDO MONTEIRO é escritor e crítico cultural. ISABELLE CÂMARA é jornalista. JOSÉ TELLES é jornalista. LUIZ CARLOS MONTEIRO é crítico literário, poeta e autor de Na Solidão do Néon; Vigílias; Poemas e O Impossível Dizer e Outros Poemas. MARCELO ABREU é jornalista e professor universitário.
Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
RENATA SORIANO DE SOUZA TAVARES é especialista em Literatura Brasileira pela Fafire. RICARDO JAPIASSU é jornalista.
Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. LUZILÁ GONÇALVES é escritora e professora universitária. É autora do livro Voltar a Palermo, entre outros. MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e professora universitária.
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BADIDA
Muito interessante a relação entre literatura e artes plásticas sugerida na obra de Badida (foto). Concordo inteiramente com a crítica feita aos artistas ditos “conceituais” que, para defenderem o conceito, esquecem a obra de arte! Fabiano Freire Neto – João Pessoa
FLIPORTO Acho que a matéria de capa do mês de setembro poderia ter se aprofundado mais na vida e nas obras dos escritores convidados pela Fliporto. Patrícia Lechev – Recife
CINEMA Homenagem mais que merecida a feita pela Continente a Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman. A sensibilidade desses dois gênios da sétima arte fará falta. Muito boa a “comparação” feita entre os dois usando como parâmetro
o silêncio, artifício usado por ambos, porém visto por eles de forma tão diferente e usados lindamente em seus filmes.Um adeus penoso de se dar. Larissa Sobral – Natal
QUADRINHOS Belíssima a Continente Documento sobre história em quadrinhos. Não tenho dúvidas de que os quadrinhos, com o nível de elaboração que alcançaram atualmente, são uma manifestação artística. Socorro Azevedo Lira – Recife
GRUPO CORPO São muito boas as matérias de Cênicas, da Continente. Vocês acertaram em cheio ao abordar o novo espetáculo do Grupo Corpo (abaixo), uma boa pedida quando se fala de dança, e ainda fizeram um panorama sobre a cena e produção da dança local. Produção essa que merece ter sempre o seu espaço garantido na Revista. Ana Paula Maciel – Recife
“
Revista nº 22 de out/2002. Matéria: Conversa Franca, com Susan Sontag Entrevistada por Luciano Trigo.
Eu perdi o meu caminho. Escrever romances foi o que sempre quis fazer, mas me desencaminhei. Os primeiros ensaios que escrevi chamaram muito a atenção, então acabei me tornando prisioneira de um sentido de dever de continuar participando do debate sobre temas que importavam muito às pessoas". “Muito preocupante é a forma como a sociedade capitalista manipula as pessoas para que se transformem em consumidores o tempo inteiro. Vejo a sociedade e o mundo hoje não como um grande espetáculo, mas como uma grande loja de departamentos. É necessário encontrar um modo de reagir a isso.
”
SUSAN SONTAG Escritora
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Temas menores
O filósofo francês contemporâneo Michel Onfray se jacta de ser o primeiro a tratar da gastronomia e, por conseqüência, dos sentidos de paladar e olfato, considerados menores, ao contrário da visão e audição, ligadas às artes plásticas e à música. Mas Gilberto Freyre (1900/1987) já havia estudado a gastronomia e a moda, temas tidos como desprezíveis por seus colegas sociólogos. O poeta Charles Baudelaire (1821/1867) também já refletira a sério sobre moda e maquiagem. E o pensador Michel Montaigne (1533/ 1592) elegeu como objetos de suas reflexões – entre outros mais sérios, como a morte –, a troca de cartas, a função dos dedos polegares e as causas fisiológicas da flatulência. Tema menor por tema menor, ele radicalizou. (Marco Polo)
Museu da escravidão
Foi inaugurado no passado dia 23 de agosto, em Liverpool, o Museu Internacional da Escravatura, dedicado à história do tráfico transatlântico de negros africanos para a exploração do Novo Mundo. Liverpool foi uma das cidades que mais benefícios colheu à custa do tráfico de seres humanos. Richard Benjamin, diretor da instituição, afirmou que o museu não será “neutral”, na medida em que foi criado para “desafiar ativamente a estreiteza de espírito, a incompreensão e o racismo”. (Duda Guennes, de Lisboa)
Invasão pela retaguarda
Depois de terem sido expulsas de Paris, as/os travestis brasileiros deram, literalmente, com as costas em Portugal. Foi o maior rebu. Logo entraram em choque com as prostitutas portuguesas, que se queixaram da “concorrência desleal” das brasileiras. O problema chegou à TV, que entrevistou uma portuguesa e uma traveca tupiniquim, aliás, muito bonita. A entrevistadora ouviu as lamúrias da portuguesa, que os brasileiros estavam a roubar-lhe a clientela, que não havia direito etc. & tal. Na vez da brasileira, esta justificou-se alegando que não tinha nenhuma culpa de os portugueses preferirem-nas às portuguesas. – E por que essa preferência? – perguntou a jornalista. E a brasileira, com uma candura de enternecer serpentes, apenas respondeu: – Porque nós somos mais putas! (DG, de Lisboa)
Não carece
Numa entrevista feita ao humorista português Raul Solnado, perguntaramlhe se em Portugal contavam-se muitas piadas de brasileiros. – E precisa?... respondeu Solnado. (DG, ( de Lisboa)
DESAFORISMOS Maldade
Conta Ariano Suassuna que recebeu a visita de um antropólogo alemão que se deslocara ao Nordeste a fim de estudar as manifestações da maldade humana, tendo como tema Lampião, para ele, um exemplo da crueldade entre os homens. Ariano, surpreso, disse que achava ter o alemão feito uma longa viagem em vão. Por quê? – perguntou o antropólogo. Porque na sua terra tem um exemplo muito maior de maldade. Quem? – perguntou o outro. Ora essa! Hitler! – respondeu Ariano. O alemão quase se engasgou e, vermelho, deu meiavolta e foi embora sem se despedir. (MP) 10 Continente • OUT 2007
"Evite acidentes: faça tudo de propósito." Carlito Maia
Falta de motivação
Do escritor e polemista Marcelo Mirisola, em seu livro de crônicas O Homem da Quitinete de Marfim (Record): “Hoje em dia, com franqueza, não vejo nenhum motivo para insistir nesse arcaísmo que é escrever. A época em que vivemos não demanda nenhum piparote do meu gênio. Raduan Nassar fez o certo: foi criar galinhas. Ainda chego lá. Só me falta um pretexto – qualquer um – para ser feliz e me bandear de uma vez por todas para o mundo animal de Fátima Bernardes, das Olimpíadas e do Galvão Bueno. Quero vibrar com os mongolóides do Big Brother e ir ao encontro da minha lenda pessoal, igualzinho o Paulo Coelho.” (Fred Navarro)
Shirley Bassey
Presença “inusitada” na vigésima sétima edição do Festival de Glastonbury (UK), Dame Shirley Bassey foi convidada para abrilhantar o encerramento do badalado festival britânico, no último domingo de junho passado. E foi isso o que fez, no alto palco, a senhora vinda de Mônaco (seu atual refúgio), agora com 70 anos e a silhueta dolorosamente afastada da imagem daquela longilínea morena gaulesa, cuja voz impregnou Goldfinger – e outros temas
de 007 – de um vigor próprio dos anos dourados do pop. Pouco a pouco, começa a ficar claro que não poderão ser compreendidos os melhores anos da sweet London, sem encontrar o nexo quase perdido entre os geniais Beatles e a linda Bassey, ora intimista e ora avassaladora nas suas criações de intérprete de John Barry e outros. Viva Glastonbury, então, por ter trazido a Dame para o meio dos seus 177 mil jovens, neste ano! (Fernando Monteiro)
Eduardo Prado Coelho
No final de agosto, faleceu em Lisboa o ensaísta, crítico e escritor Eduardo Prado Coelho (1944/2007), um dos intelectuais portugueses de maior prestígio, dentro e fora de Portugal. Sua atividade foi dividida entre a reflexão teórica e política, a crítica literária e artística, com vasta obra publicada e a coluna diária – “O Fio do Horizonte” – que mantinha no jornal Público. Conhecido pelas suas polêmicas, sabia ser elegante e ao mesmo tempo firme, no seio da divergência. (FM)
O descobridor
Está no livro Falares de Portugal, Falares do Brasil, de Esmeralda Camacho (Cepe, 2007): ao contrário do que conta a história oficial, o Brasil foi descoberto pelo navegador português Sancho Brandão, em 1340. (HF)
Histórias de detetives
O romancista e ensaísta argentino Ricardo Piglia afirma em O Último Leitor (Cia.das Letras) que O Longo Adeus (LP & M), de Raymond Chandler, talvez seja o melhor romance policial já escrito. Há controvérsias, diriam os admiradores do pioneiro Edgar Alan Poe e os de O Falcão Maltês, de Dashiell Hammett. Os romances também geraram filmes: O Falcão Maltês, de 1941, dirigido por John Huston, que escreveu o roteiro com Hammett, com Humphrey Bogart e Mary Astor, e O Perigoso Adeus (de Chandler), dirigido por Robert Altman, em 1973, com Elliot Gould perto da genialidade no papel do detetive Philip Marlowe. (FN)
“A loucura é diagnosticada pelos sãos, que não se submetem a diagnósticos.” Samuel Johnson a um candidato a escritor
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PERGUNTAS A Nelson Saldanha
• Lucila Nogueira professora e escritora. Como é ser poeta, jurista, professor de Filosofia/Sociologia/História e precursor, assim, dos estudos interdisciplinares em nosso país? Alguém tem de gostar de várias coisas e pensar sobre vários campos. O especialismo é tanto um modo pessoal de ser, quanto uma propriedade de determinada época. Nunca fui um jurista em senso estrito; sociólogo um pouco, principalmente historiador de idéias. Mas agradeço pelo título de precursor dos estudos Interdisciplinares no Brasil, exagero, mas próximo do que venho tentando fazer. Agradeço também a alusão ao poeta • José Cláudio, artista plástico. Qual o livro que você não escreveu e não gostaria de morrer sem ter escrito? Pergunta difícil. O que eu gostaria era de ter escrito com mais amplitude e mais aprofundamento dois ou três de meus livros. Mas se eu tomar coragem, talvez tente alguma coisa nova em filosofia. Geralmente o meu livro mais recente me parece o melhor. • Fábio Lucas, jornalista e mestre em filosofia. Filósofos e cientistas têm publicado livros contundentes em favor do ateísmo, enquanto outros vêem a face de Deus na física quântica. Como vê essa disputa? Acho saudável que filósofos e cientistas divirjam, inclusive sobre assunto de religião. Sou cheio de dúvidas, mas acho importante repensar tudo isto. A crença, de qualquer modo, não provém do saber científico; nem ela nem o ateísmo. Crer é encontrar e é encontrar-se, mas é algo que acontece a cada um. No século 17 alguém (creio que Francis Bacon) disse que a pouca ciência afasta de Deus, a muita aproxima. OUT 2007 • Continente
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CAPA
BIENAL 2007 A Literatura no meio do redemoinho A linha temática da 6ªBienal Internacional do Livro de Pernambuco privilegiará a relação multifacetada e dialógica da literatura consigo mesma, com literaturas de outros países e com as outras artes Luiz Carlos Monteiro 12 Continente • OUT 2007
CAPA
Clarice Lispector, homenageada
Considerada uma das feiras mais importantes do país, chega à sua sexta versão a Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, que concentrará suas atividades no Centro de Convenções de Olinda, de 5 a 14 de outubro de 2007. A linha temática trabalhada Literatura: Diálogos e Interfaces privilegiará a relação multifacetada e dialógica da literatura consigo mesma, com literaturas de outros países e com as outras artes, intentando fazer circular um conjunto significativo de idéias e ações culturais ramificadas e interativas. A edição de 2005 da feira superou a marca de 430.000 visitantes, registrados pelas catracas do Centro de Convenções de Pernambuco, na fronteira entre o Recife e Olinda, situando-a como terceiro evento do gênero no país. Na qualidade de evento cultural de grande alcance, a Bienal vai movimentar a cena cultural pernambucana com palestras, oficinas literárias, oficinas de gastronomia, lançamentos de livros, mostra de cinema, um espaço para os universitários, um café literário e performances poéticas, musicais e teatrais. E também contemplará o público infantil, por meio do Espaço Pedagógico, com uma programação diária dirigida aos alunos das redes pública e privada de ensino. Uma das atrações desse segmento será a comemoração pelos 25 anos do livro e espetáculo Hipopocaré, o Rei da Galhofa, de Antônio Guinho, que já vendeu mais de 10.000 exemplares e foi assistido por mais de 60.000 pessoas. Na abertura da feira (na sexta-feira, dia 5), haverá homenagem a Clarice Lispector, pela passagem dos 30 anos de sua morte. Clarice teve fortes ligações com Pernambuco, pois viveu parte de sua infância no Recife. Seu nome será dado ao auditório principal da feira. Participarão da homenagem Fátima Quintas, Luzilá Gonçalves, Dulcinéia Santos, Carlos Eduardo Guilherme e José Mário Rodrigues, que falarão sobre vários aspectos da obra da escritora, além da exibição do vídeo Clarice: o Recife em mim, resultante de um projeto de conclusão de curso em Jornalismo da Unicap, tendo como autoras Mayra Rossiter, Maria Isabel Chaves e Raquel Carneiro Leão. No sábado, haverá homenagem também aos 90 anos do escritor e teatrólogo palmarense Hermilo Borba Filho, com mesa de debates formada por Luís Reis e Cristiano Ramos, sob a coordenação de Leda Alves. O auditório Clarice Lispector funcionará como local dos principais debates, oficinas, mesas-redondas, palestras e intervenções, representando uma justa homenagem àquela que foi e é uma das grandes escritoras brasileiras, tendo sido reconhecida como tal já no início de OUT 2007 • Continente
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CAPA sua carreira em texto de Antonio Candido. Neste espaço, serão estabelecidos diálogos pontuais entre a literatura brasileira e outras literaturas, com a presença de autores de países diversos, além do acontecimento geral de encontros entre público e escritores e da realização de um bom número de interfaces. Além disto, as oficinas literárias, sob a responsabilidade do romancista Raimundo Carrero, serão também realizadas neste auditório. As oficinas terão modalidades e características diversas, embora não deixem de estar ligadas à literatura. Uma oficina de produção textual será realizada por Flávia Suassuna, uma de poesia popular pela equipe da Unicordel, uma sobre teatro em sala de aula por Luiz Felipe Botelho e a oficina de Arte Terapia “O Corpo como Expressão”, pela goianense Dora Santoth. No Espaço Universitário, Carlos Eduardo Amaral apresentará a Oficina de Apreciação de Música Erudita. A Bienal receberá escritores de países como Portugal, Moçambique, Alemanha, França e Venezuela, o que se mostra de extrema importância para o conhecimento recíproco e a troca de informações, livres de bairrismos desnecessários. Da literatura portuguesa, os participantes da Bienal poderão interagir com os escritores Jorge Reis-Sá (poeta e prosador da nova geração de autores portugueses, autor do romance Todos os Dias, recentemente lançado no Brasil pela Record, responsável pela Quasi Edições), Maria João Cantinho (poetisa, jornalista
Férrez (acima) e Santiago Nazarian mostram duas faces da Literatura: a afirmação dos excluídos e a expressão transgressora
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e autora de Caligrafia da Solidão, editado aqui pela Escrituras) e Luis Carlos Patraquim (poeta moçambicano, que trabalha também com teatro, cinema e jornalismo). Da literatura alemã, virão a Pernambuco Ariadne von Schirach (autora de Dança em Torno do Prazer, livro de ensaios que suscitou polêmica no seu país, pela carga de erotismo e sexualidade de suas páginas) e Berthold Zilly (premiado tradutor de Os Sertões para o alemão e professor do Instituto América Latina da Universidade Livre de Berlim). Venezuelanos e franceses (os cartunistas Jean Paul Rabaté e Olivier Sokal) também farão parte do evento. No campo das interfaces, serão trabalhadas relações entre a literatura e outros ramos da cultura e da arte. “Literatura e Underground”, por exemplo, sugere a dissociação entre o que se referenda como oficial e permitido e o que se passa nos subterrâneos da resistência cultural comum a qualquer geração mais nova e que luta por se afirmar. Terá como expositor o escritor Santiago Nazarian, que vive em São Paulo e é uma das revelações da ficção brasileira dos últimos anos, autor de Mastigando Humanos, romance publicado recentemente. Outra interface que prima pela atualidade é “Literatura e Censura”, mostrando os efeitos devastadores da censura à edição de livros, através de sua apreensão e impedimento de circulação, do enfrentamento de processos por seus autores. Esta interface será debatida por Paulo
Ariadne Von Schirach causou polêmica na Alemanha com Der Tanz um die Lust (A Dança em Torno do Prazer)
César Araújo, autor de Roberto Carlos em Detalhes, que suscitou polêmica e censura talvez apenas pelo capricho e narcisismo de Roberto Carlos. “Literatura e Filosofia”, uma interface que se estende ao longo do tempo, pela interpenetração da filosofia na poética e vive-versa, sempre logrou abrir espaço para as discussões de questões éticas, estéticas e expressivas. Terá a exposição da filósofa gaúcha Marcia Tiburi, que é doutora em Filosofia e publicou vários livros de filosofia, entre eles Metamorfoses do Conceito e dois volumes de ficção, Magnólia e A Mulher de Costas, que fazem parte da Trilogia Íntima. “Literatura e Periferia” ficará com Ferréz, pseudônimo do paulistano Reginaldo Ferreira da Silva, ligado ao movimento hip hop e autor do romance Capão Pecado, sobre o cotidiano violento do bairro de Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde ele vive. A intrincada e enviesada relação entre “Literatura e Televisão” terá como um dos eixos de abordagem a forma como estas linguagens se inter-relacionam, no referente a adaptações de obras literárias para telenovelas ou minis-
séries televisivas, com o necessário deslocamento lingüístico de uma modalidade artística para outra, da linguagem peculiar à obra literária ao ato de torná-la compreensível e popularizada, sem demasiadas distorções. Esta interface contará com a contribuição da ficcionista e jornalista Cíntia Moscovich, autora de Por que Sou Gorda, Mamãe?, e do escritor Márcio Sousa, que teve obras suas transplantadas para a TV, a exemplo de Mad Maria, que se transformou em minissérie de sucesso. Depois do lançamento de seu livro O Texto, ou: A Vida, onde traça sua autobiografia correndo paralelamente à criação romanesca, o gaúcho Moacyr Scliar vem com fôlego bastante par dar seu testemunho na interface “Literatura e Vida”. Márcia Denser, paulistana de quatro gerações, falará sobre “Literatura e Política”, pois vem escrevendo ficção (entre outros, na área do romance Caim e os contos de Animal dos Motéis e Diana Caçadora) e uma série de artigos político-culturais que publica toda semana no site congressoemfoco.com.br. A interface “Literatura e Música” trará aos palcos o cantor e compositor Lirinha, o músico de linhagem armorial Zoca Madureira e o poeta Jaci OUT 2007 • Continente
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Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado: ponte entre Literatura e Música
Os organizadores esperam público recorde superior a 500 mil pessoas
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Bezerra, que lançou recentemente o livro de poemas Linha D’água. Lirinha (José Paes de Lira Filho) é vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado, escreve poemas e textos para teatro, mostrando-se sempre um grande declamador de poesia popular e erudita. Jaci e Zoca realizaram um projeto conjunto, de alta qualidade estética, com os poemas do primeiro sendo musicados pelo segundo no CD Inventário do Amor. “Literatura e Psicanálise” será trabalhado pela psicanalista baiana Urânia Tourinho Peres, abordando “Macunaíma, um Herói sem Pai” e analisando também, do ponto de vista psicanalítico, outras obras da literatura. Mais outras interfaces acontecerão ainda, como “Literatura e Arte” (com a poetisa Jacineide Travassos e os artistas plásticos José Cláudio e Badida), “Literatura e História” (com o jornalista e escritor Paulo Santos e a historiadora e professora da UFPE Socorro Ferraz), “Literatura e Coronelismo” (com o escritor e diplomata André Heráclio do Rego e o escritor José Nivaldo Souza), “Literatura e Teatro” (com o escritor e autor de textos teatrais Cláudio Aguiar e Camilo Cavalcanti), “Literatura e Humor” (com Marcelo Mário Melo e Diego Raphael), “Literatura e Novas Mídias” (com Cláudia Cordeiro e Cida Pedrosa). Na Bienal 2007, uma das grandes novidades é o enfoque dado à relação entre “Literatura e Gastronomia”, que se intensifica cada vez mais em termos de mídia e mercado, através de lançamentos de livros ou colunas nos jornais e na internet. No espaço O Pátio Café Literário haverá oficinas gastronômicas e palestras vinculando a gastronomia à obra de grandes escritores, como por exemplo, “À Mesa com Alexandre Dumas”, por Cecília Vieira, “À Mesa com Gilberto Freyre”, por Raul Lody, “À Mesa com Eça de Queirós”, por Dagoberto Carvalho, “À Mesa com Cervantes”, por Vicente Massip, com uma listagem que se estende por vários outros autores e palestrantes. A colunista da Revista Continente Multicultural, Maria Lectícia, falará sobre vários outros autores, entre poetas e ficcionistas. O restaurante O Pátio Café & Cozinha abrigará oficinas gastronômicas como “Drinks com Café”, com Cecília Vieira, “Cozinha Thailandesa”, com Bira Oliveira, “Cozinha Italiana II: Risotos”, com Fernanda Marino; e outras. Para as crianças, Cecília Vieira e Bira Oliveira farão duas oficinas intituladas “Cozinhando para Crianças – Receitas da Dona Benta”. O Pátio Café Literário abrigará leitura de obras de ficção e poesia por Cida Pedrosa e Silvana Menezes (trechos do livro As Filhas de Lilith), contos de Ronaldo Correia de Brito, lidos pelo próprio (livro Sapo), e poemas de Marco Polo (livro Sax Áspero), interpretados por gente de teatro. Delmo Montenegro, Milton Torres e Orismar Rodrigues apresentarão poemas inéditos, em sessões distintas. Marcelino Freire lerá o inédito Rasif, Mar que Arrebenta. Serão feitas entrevistas com escritores convidados pela equipe do Café Colombo. Aliás, nO Pátio Café Literário, vale ressaltar um recital poético coordenado por Delmo Montenegro, dia 10/10. O próprio Delmo estará acompanhado do músico Thelmo Cristovam (saxofone, trombone e outros instrumentos, mais intervenções eletrônicas). Outros poetas também recitarão: Pietro Wagner (solo), Jacineide Travassos (solo) e Fábio Andrade acompanhado do músico Arnoldo Guimarães (violoncelo).
CAPA No Cine Letras, que representa outra novidade desta Bienal, poderá ser conferida a interação entre o cinema e a literatura. Ministrarão palestras Paulo Bruscky, artista multimídia, e Fernando Monteiro, escritor e especialista em cinema. O público presente à feira poderá participar, também, de uma Oficina de Roteiros, com Antonio Guinho. Esta interação cinema X literatura é necessária, pois sempre causaram polêmica as adaptações de obras literárias para o cinema, ao trazer os seus lados de eficácia e malogro. Monteiro mostrará, justamente, um caso de adaptação bem-sucedida (O Céu que nos Protege, de Paul Bowles, dirigido por Bernardo Bertolucci) e um exemplo de fiasco (Moby Dick, de Hermann Melville, adaptado por John Houston). Serão exibidos os quatros episódios sobre Casa Grande & Senzala, de Nelson Pereira dos Santos. Poderão ser vistos filmes como Bicho de Sete Cabeças, que traz uma convincente interpretação de Rodrigo Santoro, no papel de um jovem rebelde que terminou internado num manicômio pelo seu pai, o ator Othon Bastos. O ponto alto, entretanto, será a exibição do cultuado O Cheiro do Ralo, do diretor pernambucano Heitor Dhalia, baseado numa novela de Lourenço Mutarelli, seguida de debates com o escritor Marçal Aquino, roteirista do filme. Os presentes poderão conferir também filmes histórico-biográficos como Villa Lobos e Carlota Joaqui-
na e filmes para o público infantil, como por exemplo Castelo Ratimbum, Asterix e a Grande Luta e Ziraldo, O Eterno Menino Maluquinho. O Espaço Universitário, uma arena montada à maneira do programa Roda-Viva da TV Cultura, é outra aposta significativa do evento, pois visa trazer a público a produção intelectual das universidades locais com a participação da equipe da revista Crispim. Ainda no Espaço Universitário, cumprindo uma “missão eminentemente social”, como enfatiza Rogério Robalinho, presidente da Bienal, serão disponibilizadas aulas abertas para estudantes pré-vestibulandos das redes pública e privada. Os editores da revista Crispim estarão debatendo, já no primeiro dia da Bienal, o “Jornalismo Cultural em Pernambuco”. Imediatamente após esta discussão, será aberta outra, sob o título “O Papel Social da Universidade”, enfocando ações como o Jornal e a Biblioteca do Coque, com a presença do jornalista João Neto. Outro tema debatido nesse espaço será “Ciência Hoje”, com o subtema “Os Limites da Ciência: Questões Éticas”, pelos professores Jonatas Ferreira, da UFPE e Marcos Costa Lima, editor da revista Ciência em Rede; “Arquitetura e Inclusão Social”, por Carlos Newton Jr.; “Discutindo a Comunicação”, pelo professor da UFPE Alfredo Vizeu e Heitor Rocha da Unicap; “A Obra de Evaldo Coutinho”, pelo poeta Paulo Gustavo e por Marcos Henrique Lopes.
Cíntia Moscovich estreou com louvor no romance
Jorge Reis-Sá, expressão do novo romance português OUT 2007 • Continente
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O poeta César Leal agora é membro da APL
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Outra mesa de interesse evidente é “A Importância do Teatro Pernambucano”, por João Dennys e Alexandre Souto Maior, abordando a obra de autores como Ariano Suassuna, Joaquim Cardozo, Osman Lins, Luiz Marinho e Hermilo Borba Filho. Não se pode deixar de registrar outros encontros promovidos na arena do Espaço Universitário como “Literatura e Preconceito”, com o subtema “Os Personagens Marginais na Literatura Brasileira”, pelo poeta Raimundo de Morais; “A Filosofia e o Homem Comum”, em dois painéis, “A Utopia em Tempos Pós-modernos”, por Brenda Carlos de Andrade, Erlon Paschoal (Ministério da Cultura) e Michel Zaidan (UFPE) e “A Filosofia no Recife: Ontem & Hoje”, por Vincenzo di Matteo e Alfredo Moraes, ambos professores da UFPE. No campo das homenagens, a principal instituição agraciada será a Academia Brasileira de Letras, pela passagem dos seus 110 anos de fundação, com a presença de acadêmicos, entre os quais Marcos Vinícios Villaça, Evanildo Bechara, Domício Proença Filho, Murilo Melo Filho. Nesta sessão, será homenageado ainda Ariano Suassuna, pela passagem dos seus 80 anos. Será feita uma sessão especial da Academia Pernambucana de Letras, homenageando os três novos acadêmicos: o poeta e crítico César Leal, a poetisa Deborah Brennand e o escritor José Paulo Cavalcanti Filho.
CAPA Numa palavra, manifestações artísticas, literárias e culturais sofrem prejuízos e ficam minimizadas, tanto na sua excelência como na sua mediocridade, quando não provocam a discussão, o debate e o questionamento. O processo serve para impulsionar a compreensão e o alcance dos produtos da escrita e das outras manifestações culturais que não podem ser percebidos, receptados ou captados pela indiferença e omissão muitas vezes dedicadas a eles. Tanto influem no seu esclarecimento a anuência e o consenso como as discordâncias e confrontos, principalmente ao nível externo às próprias obras. O grande desafio da Bienal 2007 será o de contribuir efetivamente para preencher parte dessas lacunas, que não deixam de existir pelo descaso e pela ignorância daqueles que não valorizam a Literatura, a cultura e as artes. Nesta perspectiva, cumprirá o papel de promover e divulgar a literatura, proporcionar o encontro de escritores e artistas de variada tendência, oriundos de âmbitos locais, nacionais e internacionais. Acompanhe a programação completa e atualizada diariamente no site: www.bienalpernambuco.com •
Alagoas, uma Bienal crescente Promovida pela Universidade Federal, a festa do livro alagoana ocorrerá de 19 a 28 de outubro
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a onda positiva de eventos literários, Alagoas promoverá a sua 3ª Bienal Nacional e 1ª Internacional do Livro, no Centro de Convenções do Jaguará, de 19 a 28 de outubro. Realizada pela Universidade Federal, via a Edufal – Editora Universitária, a festa do livro alagoana cresce a cada ano, sob a coordenação incansável da responsável pela editora, professora Sheila Maluf. A área de exposições terá 4.727m2, ocupados por 118 estandes, e envolverá uma programação eclética que inclui debates, palestras, mesas-redondas, conversas no Café Literário, oficinas literárias e de criação, além de espaço para lançamento de livros e autógrafos. A Bienal de Alagoas, promovida que é por uma instituição universitária, tem um forte viés didático e acadêmico, oferecendo um grande leque de oportunidades de discussão e reflexão sobre a educação, o ensino, a produção literária local e de fora e a realidade em que estão inseridos esses tópicos, como a questão do populismo político e o acesso à informação nos dias correntes. Entre os convidados confirmados estão o jornalista Luiz Gutemberg (DF), o cartunista Paulo Caruso (RJ), o poeta Jessier Quirino (PE), os escritores Rubem Alves (MG) e Carlos Heitor Cony (RJ), entre outros. Contará também com participações do México, Peru, Portugal e França. A programação completa pode ser acessada pela internet no endereço: http://www.edufal.com.br/bienal2007/ • OUT 2007 • Continente
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Carlos Vasconcelos/Divulgação
n CÊNICAS
A ópera O Elixir do Amor será encenada em outubro
Grupo da Gente comemora 25 anos O Grupo da Gente (Grudage), natural do Cabo de Santo Agostinho, comemora seus 25 anos de “resistência” com uma programação especial e totalmente gratuita, no período de 22 a 27 de outubro, no Teatro Municipal Barreto Júnior. A equipe foi responsável por vários espetáculos que circularam por festivais nacionais conquistando prêmios, como as versões dos infanto-juvenis O Sapateiro do Rei e O Enigma de Cid, dirigidos, respectivamente, por Ednaldo Oliveira e Williams Sant’Anna; além das montagens adultas Uma Mulher Dama, dirigida por Carlos Alberto Moraes e Guiomar, Sem Rir e Sem Chorar, sob direção de Buarque Samot. Abrindo as comemorações, haverá o lançamento dos livros Memórias da Cena Pernambucana – 01 e 02, organizado por Leidson Ferraz, com exposição da história do Grudage.
n ÓPERA
n LIVRO E PEÇA
O Elixir do Amor volta aos palcos
A memória é tema de espetáculo e livro
Composta pelo músico italiano Gaetano Donizetti, uma das mais conhecidas óperas cômicas do século 19, O Elixir do Amor volta à cena no Recife, com a Companhia de Ópera do Recife (CORE), em duas únicas apresentações. A obra baseia-se na fábula de Tristão e Isolda, na qual uma mulher cruel rende-se aos braços de um pobre apaixonado, pela ação mágica de um elixir do amor. Ciúmes, jogos de interesses, muita graça e leveza estão presentes em toda a trama, escrita em dois atos no período de ouro da ópera italiana.
Tomando como base uma imagem na qual três pessoas se encontram numa sala de arquivos de uma velha estação de televisão que será demolida, o escritor André Resende escreveu a peça Maçã Caramelada, montada agora pelo grupo Utrópicos. A peça, inicialmente pensada para o teatro, mas que já virou livro, traz ao público, com melancolia e humor, temas como a memória, a vida real e aquela que se imaginava um dia ter. A direção da peça é de Cláudio Lira, com Alfredo Borba, Alexandre Sampaio e Sandra Rino no elenco.
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Grudage: 25 anos de resistência. Teatro Municipal Barreto Júnior Ingressos para toda a programação na bilheteria do teatro Informações: 9972 7593 grudage@ig.com.br
O Elixir do Amor Diias 2/10, às 19h30, no Teatro de Santa Isabel, e 21/10, às 17h, no Teatro da UFPE. Iingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia entrada). Informações: 9252 7600 ou 9111 4981
Maçã Caramelada Shopping Paço Alfândega Outubro e novembro. Sextas e sábados, às 20h, e aos domingos, às 16h30.
Marcelo Ferreira/Divulgação
A peça Quando o Sol Vem na Janela faz parte programação
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n EXPOSIÇÃO
Uma Vida a Dois: Janete Costa e Borsoi Inquietos e incansáveis, Janete Ferreira Costa e Acácio Gil Borsoi, nomes que se destacam no cenário da arquitetura nacional, construíram uma vida a dois no casamento e na arte. Para mostrar o belíssimo acervo do casal, colecionado ao longo de suas vidas, o Museu do Estado de Pernambuco abre as suas portas até novembro, num maravilhoso passeio pelo mundo das artes: são cerca de 700 peças, entre esculturas, pinturas, desenhos, arte sacra, art nouveau, art decó, arte africana, arte popular brasileira, cerâmica pré-colombiana, cerâmica inglesa, pratarias, coletadas durante 40 anos de pesquisa. A curadoria é da própria Janete Costa. Além da exposição, está programado um ciclo de debates com palestrantes de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. nnn
Manoel Ferro/Divulgação
Uma Vida a Dois Coleção de Arte Janete Costa e Acácio Gil Borsoi Museu do Estado de Pernambuco Av. Rui Barbosa, 960 Graças, Recife–PE Até novembro. Informações: (81) 427-9322
Divulgação
Vik Muniz em dose dupla: exposição e livro
n ARTE
Panorama da Arte Brasileira no MAM
Vik Muniz lança livro e expõe em São Paulo
No dia 20 de outubro, o MAM–SP realiza a abertura do seu Panorama da Arte Brasileira 2007, exposição bienal que já se fixou no calendário das artes visuais do país como uma das mais representativas dos vértices da produção atual. A curadoria da edição 2007, que leva o título Contraditório, é de Moacir dos Anjos, ex-diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM – Recife) e co-curador da atual edição da Bienal do Mercosul. Na abertura, o coletivo Chelpa Ferro apresenta performance no Auditório Lina Bo Bardi. O catálogo da mostra trará, além de um ensaio do curador e de informações sobre as obras expostas, um conto inédito do escritor Milton Hatoum e um CD de remixes produzido por DJ Dolores, especialmente para a publicação.
Reflex – Vik Muniz de A a Z é de fato um livro de artista. Além de contar toda a trajetória do artista brasileiro Vik Muniz, residente em Nova York desde a década de 60, o livro foi escrito pelo próprio artista, que conduz o leitor na história da sua vida e no seu processo de criação. O livro foi lançado inicialmente em inglês para acompanhar uma mostra itinerante nos EUA, em 2006. Através da obra, descobre-se a história do menino que teve dificuldade para aprender a ler e escrever e foi aproximando-se das imagens e dos desenhos até tornar-se um dos artistas brasileiros de maior destaque internacional, utilizando materiais como chocolate, açúcar, pedaços de papel e até diamantes em seu trabalho.
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Vaso em cerâmica na exposição Uma Vida a Dois
n LIVRO E MOSTRA
Panorama da Arte Brasileira 2007 – Contraditório, MAM–SP – Parque do Ibirapuera, Até 6 de janeiro de 2008 Informações: (11) 5085-1300. www.mam.org.
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Reflex – Vik Muniz de A a Z Vik Muniz, Cosacnaify, 204 páginas, R$ 85,00 As séries Pictures of Earthwork e Pictures of Junk estão em exibição no Paço das Artes, em São Paulo. Informações: (11) 3814-4832. OUT 2007 • Continente
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LITERATURA
O escritor fluminense Raul Pompéia
Um olhar impressionista Poucos sabem da presença de Pernambuco na obra de Raul Pompéia. Por volta de 1885 o escritor carioca morou no Recife Ricardo Japiassu
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LITERATURA
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ecantado, sobretudo, pela feitura da obra-prima O Ateneu, Raul Garcia d’Ávila Pompéia legou à literatura brasileira uma constelação de expressões literárias: romance, novelas, folhetins, contos, canções sem metro, crônicas e escritos políticos. No bojo desta seara, há – embora que completamente desconhecidos dos leitores pernambucanos – textos que desnudam particularidades do cotidiano recifense. Neste sentido, a primeira pergunta é: como o autor estreitou este conhecimento de Pernambuco? Por defender, com fúria, idéias republicanas e abolicionistas, em 1885, após concluir o terceiro ano de Direito, em São Paulo, na Faculdade do Largo do São Francisco, foi obrigado a transferir-se para o nordeste brasileiro, onde concluiria, sem exaltação, o bacharelado. Aqui, manteve o hábito da escrita, embora sem publicação local. É o caso do conto “O Natal”, publicado, originariamente, pelo periódico Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, a 1º de janeiro de 1886. “Para nós, que não temos inverno nem tradições, o Natal passa despercebido e dezembro acaba, como os outros meses, farto de primavera perpétua e, como os outros meses, preocupado simplesmente com enfadonhas banalidades da vida cotidiana. Nem alegrias infantis no lar, nem a melancólica poética do inverno para cercar o quadro.” Rico em detalhes e informações, neste texto o autor faz uma comparação dos natais realizados na Europa, sob a influência do seu clima frio, e os festejos no Recife, mais precisamente no arrabalde da Várzea, que se atingia pela estrada monótona da Caxangá, povoação distante uma légua do centro da cidade. Neste sítio, com seu olhar perceptor das tintas impressionistas da natureza, Raul Pompéia lembra que, nos trópicos, é sempre primavera, campos cheios de matos. Na obra, o personagem principal segue para os festejos natalinos, que duram dois meses inteiros, com a abertura das rixas dos pastoris, na noite de 24 de dezembro, culminando com a queima da lapinha. Na qualidade de crítico – iniciante – é muito claro que Raul Pompéia, nem na qualidade de autor, viveu o que chegou a descrever, apenas observa esta sociedade, a ele, inteiramente diversa e mofina. Por entre o texto, porém, apresenta a sua percepção social, o que o fez aguerrido engajado. Escreveu: “Nada falta em roda, nem mesmo o episódio mínimo e ignorado do mendigo de seis anos, que espia, à noite pelas vidraças, as crianças felizes a folgar, no agasalho das casas ricas, festejando o advento de Deus ao mundo, olha de fora o paraíso vedado e morre ao romper do dia, morre de frio, invejando perversamente aquilo.” Noutro texto, classificado pelo pesquisador, catalogador e organizador de toda a obra de Raul Pompéia, Afrânio Coutinho, as canções sem metro, o jovem estudante de Direito, na academia do Recife, procedeu a uma reflexão sobre a densidade da palavra, em brevíssimo texto – trata-se de característica da canção sem metro – da obra do inglês Shakespeare, Hamlet. Datado de abril de 1885, foi publicado pelo jornal A Semana, do Rio de Janeiro, a 23 de maio de 1885. “Vãs e nulas são as palavras, Hamleto; mas a obscuridade que as degrada é a mesma sombra invulnerável e tremenda, alma negra do universo, tormento perpétuo do teu cérebro.” A
Ilustração de O Ateneu, obra-prima de Pompéia
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LITERATURA narrativa apresenta, como marca característica do autor, tons impressionistas: combinação cromática das sílabas e, posteriormente, o tingir negro das trevas. Isto tudo por entre reflexão demasiado humana: “o mundo vive e persiste, indefinido sempre, absurdo e misterioso.” Desta forma, procedendo à leitura das entrelinhas, percebese uma angústia, inquietação intensa e profunda sobre a existência. Um homem em reboliço interior que soube, através da arte, transcrever seus sentimentos, mesmo que amargos e prenhes de inteligência arguta, presentes neste homem de espírito que, afora no romance O Ateneu, abraça sempre os estilos literários concisos. Como homem público engajado, contra o modelo imperial de governo imposto por Dom Pedro II, Raul Pompéia nunca deixa de manifestar descontentamento. Aqui, cabe olhar mais crítico, pois que o olhar político do autor é demasiado áspero, ácido e mesmo pleiteador de respostas. Acontece assim nos escritos políticos A Câmara dos Deputados e a Imprensa Neutra, publicado pelo Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, a 1º de janeiro de 1886. “À oposição, que desde o começo dos trabalhos não tem perdido o ensejo de esmiuçar quanto fato sem importância tem ocorrido no País depois de inaugurada a atual situação política, nada mais resta-
va da carga que se propôs fazer ao Governo. Esgotada esta matéria; e ainda bem que o estava, porque a discussão que se abriu requeria outra elevação, muito fora dessa que somente tem propriedade em justificativa e requerimentos.” Há de se observar a penetração de Raul Pompéia e sua credibilidade junto à imprensa da Corte. Em Pernambuco, por exemplo, o que publicou? Desconheço qualquer ação neste sentido. Ele reflete o fato de o candidato eleito no Segundo Distrito, ou seja, Pernambuco, após eleições, não ser diplomado. E qual a causa? Corrupção e despotismo do poder monárquico. Ainda com Pernambuco na memória, a 24 de junho de 1886, na capital fluminense, compara a luta abolicionista do líder José Mariano àquela de José do Patrocínio, embora inventando, pela primeira vez, texto leve e pleno de fuzarca, o qual intitula “Descritério e fanfarrice”, publicado, também, pelo Jornal do Comércio, do mesmo Rio de Janeiro, a 23 de junho de 1886. “Nada resiste aos ímpetos da fanfarrice de que só encontra em toda sociedade dous corifeus dignos de si, os Srs. José do Patrocínio (maior líder abolicionista da Corte/grifo meu) e José Mariano.” Até o momento, Raul Pompéia tem apresentado laivos – em se tratando de escritos políticos – concernentes a Pernambuco. Quero dizer: não
Praça de Independência, no Recife, no tempo em que Raul Pompéia viveu na cidade
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LITERATURA
Pompéia manteve uma relação contraditória com Joaquim Nabuco
Para o escritor, o Carnaval do Rio era o mais representativo
há uma análise crua e acurada sobre a posição pernambucana no ranking político nacional, pelo menos sob a ótica do autor. Mesmo assim, é indispensável atestar a importância dos pequenos comentários sobre a pernambucanidade, quer quanto à História quer quanto à literatura. Já quando o tema é o grande pensador e líder abolicionista Joaquim Nabuco, a figura muda de tom, há muito abandonados os tons impressionistas contidos nas invenções de Raul Pompéia e brada: “A nomeação escandalosa”, publicada pelo Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, a 13 de fevereiro 1887. “O seu rompimento com a política e os partidos, a contradição dos seus escritos e opiniões, o fazem um espírito sem objetivo, para não dizer desnorteado.” No mesmo periódico, porém, quatro dias depois, publica “A despedida do Sr. Joaquim Nabuco”, que é banido para Londres por obra e graça de Sua Alteza Imperial, Dom Pedro II. Um tanto magoado, outro tanto furioso, o autor fluminense lamenta, apesar das controvérsias acima apresentadas, a perda de um homem cheio de idéias – repleto de inimigos – que coadjuvava com a juventude libertário do Brasil, desejosa de novos moldes políticos e econômicos, sobretudo o fim do regime servil. Embora reconhecendo que apenas seus correligionários escutariam seu brado, Raul Pompéia encontra nos escritos políticos uma forma de manifestar idéias de uma coletividade, representada por sua pena. De fato, Joaquim Nabuco foi um dos mais
ilustres pernambucanos e Raul Pompéia, desta forma, nos outorga este tributo, acrescentando tintura de intensidade telúrica. Por fim, como não poderia deixar de acontecer, Raul Pompéia se debruça sobre o Carnaval recifense – vive-o –, publicando, como fruto maduro, no periódico carioca Gazeta da Tarde, a 10 de março de 1886, a crônica “O Carnaval no Recife (Impressões de viagem)”. “(...) O povo alvoroçado derrama-se pelas ruas. Encarapitamse às guarnições de ferro das pontes, formando verdadeiros cachos humanos, cujo aspecto caprichoso a placidez das águas reproduz em grandes manchas escuras incertas que o refluxo do rio não consegue dissolver. Apinham-se ao longo das calçadas e em toda a linha do cais; enchem as praças.” Obviamente ele reinventa os acontecimentos da época quando, submisso ao seu olhar impressionista, repara, por exemplo, o crepúsculo, às margens do rio Capibaribe, no centro da cidade, onde as pessoas das classes populares começam a se aglomerar ao som de bandas, enquanto, das sacadas dos sobrados, mulheres, jovens e senhores abastados dançam isoladamente, ante o barulho do entrudo que toma as ruas ao anoitecer, varando a madrugada. Na opinião do autor, somente no Rio de Janeiro, em se tratando de Brasil, o Carnaval era tão representativo. Ao que me parece, neste ensaio, esta foi a impressão – a do entrudo – mais aguçada que o autor teve, durante os dois anos de viagem na capital pernambucana. • OUT 2007 • Continente x
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LITERATURA
O fazedor de poesias
Apesar de obra tão rica, em Geraldino Brasil as sextinas se destacam por ser um gênero raro e complexo Renata Soriano de Souza Tavares
O poeta com sua filha, Beatriz
“O
poeta não deve se orgulhar do que faz. Eu apenas dou graças quando a poesia consente em se apresentar por meu intermédio.” Essas palavras são de um poeta de talento inquestionável e que, hoje, parece estar no limbo do esquecimento literário nacional. Nascido em Alagoas em 27 de fevereiro de 1926 e falecido no Recife em 7 de janeiro de 1996, Geraldino Brasil, pseudônimo de Geraldo Lopes Ferreira, é autor de uma obra poética ampla, que vai de versos livres a sonetos e sextinas rigorosamente estruturados. Existe um, entre tantos autores brasileiros, que deve ser lido e visto de for-
ma mais atenta pelos críticos e leitores. Como também não é raro, Geraldino teve maior reconhecimento em outros países. A poesia de Geraldino foi, por exemplo, reconhecida e aplaudida na Colômbia, através do poeta Jaime Jaramillo Escobar. Após ter contanto com seus poemas, Escobar, além de divulgar a obra de Geraldino, reuniu e publicou numa edição bilíngue (português/espanhol), intitulada Poemas Útiles de Geraldino Brasil (2003), em Madri, Valencia e Buenos Aires. De certa forma, essa relação entre poesia/leitor era bem definida por Geraldino, o qual acreditava que a poesia merecia algo mais que um grande público; o que
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LITERATURA se sobressai, para ele, é a importância dos verdadeiros amantes desse gênero. As palavras de Geraldino são esclarecedoras: “Muito me têm (sic) perguntado sobre a poesia de hoje: Quem a escreve? Quem a lê? As editoras raramente investem em livros de poesia. Os poetas pagam os seus livros e ainda têm que enviá-los para os amigos, pois nenhum distribuidor aceita fazer o trabalho de colocá-los nas livrarias. Há quem diga que a poesia está com os dias contados. No entanto, para mim, quem está com os dias contados são esses que pensam que a poesia está terminando. A poesia foi e sempre será de uma minoria. Perseguida, desde o começo tem sido assim. (...) Enquanto houver o número 3, aquele sobrante, haverá necessidade do livro particular, do livro companheiro, a poesia sendo aquilo que a poesia é. Porque a vida é que alimenta a poesia”.( Encontro, 1996) De fato, as palavras de Geraldino são legítimas. Retomando o questionamento das primeiras linhas acima citadas, qual o valor dado ao verdadeiro poeta? Os poetas são os que se restringem ao ato de vender livros ou aqueles que, por amor à poesia, se ocupam com a doação ao poema e os fazem tematicamente ou estruturalmente, respeitando, antes e sobretudo, a poesia? Apesar de obra tão rica, em Geraldino Brasil as sextinas se destacam por serem um gênero raro e comple-
xo. As sextinas são, tradicionalmente, poemas compostos por seis sextetos (sextilhas), nos quais as últimas palavras se repetem durante todo o poema, e dois tercetos. Gênero criado por Arnaud Daniel, no século 12, para quem Geraldino dedicou uma sextina, foi seguido por autores canônicos como Dante e Camões. Mas Geraldino é mais que um “fazedor” de sextinas. Além de dominar esse gênero com muita habilidade, G.B. é, sem dúvidas, um inovador. Compôs 126 sextinas, das quais 52 são “originais” e 74 são multiplicações. Com enfático respeito ao poeta Antonio Agostino Torti, G.B. se dispôs a não ultrapassar as 52 sextinas feitas pelo precursor, e é a partir daí que, no intuito de não parar de escrever sextinas, e mantendo, ao mesmo tempo, a sua promessa, foi que as multiplicou, pois, mesmo que multiplicada, a sextina teria valor único. Diz Geraldino: “Esclarecia que era a minha homenagem ao poeta Antonio Agostino Torti que, no século16, alcançara o número máximo em todos os tempos – 52 sextinas. Não queria e não deveria ultrapassá-lo” (Sextinas Múltiplas, 1994). Geraldino é, portanto, um inovador, mesmo que trabalhando com uma forma estrófica rigorosa como a de uma sextina. Das 126 sextinas publicadas, apenas duas apresentam o terceto final, a coda. As outras são compostas apenas por seis sextetos. Talvez isso justifique as
palavras de Geraldino, quando diz: “Sempre me dei bem no verso livre. E não é o fato de fazer sextinas que me obriga a um rigor formal. Acho que o poeta, nesse gênero de poesia, tem de ser como é em toda poesia que faça. Se ele mudar, ele se desnatura e desnatura a sextina. Quero ser tão fluente e natural escrevendo sextinas como sou nos outros poemas. A sextina me encanta. O prazer que dá lembra o êxtase do amor: para se repetir tem que amar outra vez. Não existe o último poema. Nenhum poeta ainda o escreveu. O poema é uma sucessão. A poesia não cede não”( Encontro, 1996). Inicialmente, as palavras de Geraldino parecem con-
traditórias. Como é possível fazer sextinas, gênero de estrutura fixa e rigorosa, e atender a um estilo livre de poesia? Mais uma vez, ratificam-se, aqui, a inovação e a habilidade desse autor. Em determinada sextina feita por Dante, por exemplo, a forma estrófica sofre alterações: as seis estrofes não mais tinham seis versos, mas três estrofes de 12 versos. Com a mesma ousadia e competência, Geraldino inova a estrutura sem alterar a beleza e o valor da sextina tradicional de Arnaud Daniel. Em seu primeiro, Livro de Sextinas, publicado em 1992, foram publicadas 31 sextinas e, no mesmo ano, no segundo livro, 52 Sextinas, republicou as 31 do primeiro OUT 2007 • Continente x
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LITERATURA livro e escreveu mais 21. O grande feito de Geraldino foi o terceiro livro, Sextinas Múltiplas, no qual faz a duplicação de 20 das 52 sextinas já publicadas, sendo 12 do primeiro livro e oito das acrescentadas no segundo. O próprio G.B. diz, no prefácio do livro 52 Sextinas, que todas as sextinas são dignas de serem multiplicadas, mas nem todas permitem tal multiplicação. Algumas transformaram-se em duplas, triplas, quádruplas, sêxtuplas, sétuplas ou décuplas. Apesar de multiplicar 20 das 52 sextinas, duas merecem destaque: “Sextina para Van Gog” e “Sextina do Deslumbramento”, essas pelo fato de pertencerem à quindecies, ou seja, no seu quarto livro, Sextinas de Sol, Geraldino as multiplica ao número 15. Se escrever sextinas provoca êxtase, não é à toa, apesar de ser um gênero complexo, de estrutura tão exigente e da inovação do autor alagoano, que G.B. tenha sido, talvez, um dos maiores “fazedores de sextina”, pelo número das publicadas e pelas multiplicações. Ora, se uma sextina é considerada um gênero difícil, que dirá, a partir de uma, fazer quindecies. Por isso, as sextinas são tão especiais para Geraldino:“Um dia, eu estava aqui, neste mesmo canto onde estou agora, quando me lembrei de dois tercetos de um soneto que nunca cheguei a concluir, porque os quartetos não vieram com a naturalidade dos tercetos. E eu não sou de nenhum terreno onde não seja natural. Assim, surgiu minha primeira sextina e, dela, quase ao correr da pena, escrevi a ‘sextina da solidão’. (...)Se eu pudesse dizer alguma coisa que outros poetas que não fazem sextinas pudessem ouvir... mas não posso. No céu da poesia há muitas moradas. Porém acredito que os fazedores de sextinas ocupam um lugar especial” (Encontro, 1996). Além de Geraldino, Marcus Accioly e Mário Hélio são autores de sextinas, e evidenciam a grandeza de G.B. no gênero. Um texto tão nobre e de pouco conhecimento dos críticos, dos leitores e dos próprios autores. De fato, os “fazedores de sextinas” merecem um lugar especial no céu da poesia , mas, acima de tudo, na literatura. Outro fator é de grande importância na obra de Geraldino: a ligação com a pintura, sobretudo nas próprias sextinas. Essa ligação se estende desde a temática às referências nas capas dos livros. Além de dedicar uma sextina para Van Gogh, como já havia sido mencionado, as imagens desse poema interagem com as telas do pintor. Dos quatro livros de sextinas, duas capas es-
Geraldino Brasil com sua esposa, a artista plástica Creusa Maurício
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LITERATURA tão relacionadas ao Girassol e um ao Semeador, ambos de Van Gogh, todos pintados por Creusa Maurício. As palavras que se repetem no final de cada sextilha também são sugestivas: manso, trigais, sol, amarelo, desespero e doido. Senão, vejamos a primeira estrofe da “Sextina para Van Gogh”, de 52 Sextinas: “Os meninos zombavam do homem manso/ que gostava de sol e de trigais./ Onde houvesse trigal e houvesse sol/ iluminando o dia de amarelo,/ ia com seus pincéis e desespero./ Só por isso diziam que era doido”. Como se pode ver, esses versos aludem não apenas à obra como à vida de Van Gogh, fazendo com que se estreitem ainda mais a relação poesia/pintura e poeta/ pintor, questão trabalhada nas 15 sextinas dedicadas ao pintor holandês. Mas a relação poesia/pintura se estende, além das sextinas dedicadas e relacionadas a Van Gogh, a outro grande pintor, Cézanne. No livro de sonetos intitulado Um Soneto de Sol para Cézanne e Outros Sonetos, o autor alagoano, mais uma vez, recorre a poemas de forma estrófica rica. É como se esses pintores devessem ser relacionados às formas mais especiais da poesia. De forma que, constantemente, em todos os seus livros, Geraldino faz referências ao sol. E não poderia ser diferente com o poema dedicado a Cézanne, “Soneto de sol para meu irmão de tristeza, Cézanne”, no qual G.B. reforça sua ligação ao pintor. Assim, a poesia de Geraldino Brasil é consistente e múltipla. Capaz de reunir em alguns versos toda a rigorosidade da tradição e a espontaneidade da renovação poética. Um autor que, distanciando-se da monotonia, recria versos únicos e traz à tona a complexidade dos homens em simples palavras. Como um “fazedor de manhãs”, que com todo cuidado mostra ao mundo que a poesia é livre e como “um doido nada esconde, é como um sol”. •
Sextina para Van Gogh Os meninos zombavam do homem manso que gostava do sol e de trigais. Onde houvesse trigal e houvesse sol iluminando o dia de amarelo, ia com seus pincéis e desespero. Só por isso diziam que era doido. “Sem ser um lavrador, só sendo um doido. “E bem parece não ser doido manso. “No amarelo se vê o desespero que outro pintor não punha nos trigais. “E mais que nos trigais era o amarelo do agitado e nervoso olhar do sol”. “Não se pode dizer que é doido, o sol “Então quem pinta um sol assim é doido, porque injeta vermelho no amarelo. E o mais revelador: um doido manso ficaria mais calmo nos trigais, em lugar de aumentar seu desespero”. “Quem nos trigais aumenta o desespero – em vez de se acalmar – e pinta um sol de sono em pesadelo nos trigais, está provado: é com certeza um doido. “Até podia ser, se doido manso, que os trigais não queimasse de amarelo.” E condenaram a casa de amarelo. A cidade ficou em desespero. “Se alguém de tal maneira pinta o sol – requereram ao prefeito – não é manso. “É preciso expulsar esse homem doido que ameaça incendiar nossos trigais.” Deixou Arles pensando: “Inda há trigais além, iluminados de amarelo". Disseram: “Deus te leve” ao homem doido que levou seus pincéis e desespero. ...E onde chegou estava o mesmo sol de corvos que mataram o homem manso.
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MÚSICA
livros
Cardápio indigesto em texto saboroso
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colhem o seu sangue, dão-no de beber para em gosto para tudo. O canibaDevorando o Vizinho as crianças e mulheres e esquartejam o corpo, lismo, assunto tão assustador – Uma História do para depois ser assado e consumido. E, ainda, quanto fascinante, fundado nos Canibalismo Daniel Diehl e Mark o ato de comer carne humana in extremis: em descalabros da natureza humana, é o Donnelly epidemias de fome, desastres e guerras, com o tema deste livro. Os autores, Daniel Globo, 344 páginas propósito da sobrevivência, mesmo quando a Diethl, historiador da cultura e Mark R$ 34,00 cultura dos envolvidos rejeita tal prática. P. Connelly, antropólogo e historiador No capítulo segundo, o principal e mais atramedieval, dissecam a prática mórbida tivo, são narrados 15 casos famosos e infames de forma minuciosa, num estilo inforde canibais, espalhados dos Estados Unidos à mal e jornalístico, dando ao texto um Europa e Japão, alguns dos quais inspiraram sabor de leveza. O cardápio é variado. filmes como Psicose e O Silêncio dos Inocentes. Como entrada, no primeiro capítulo, os São histórias de arrepiar, algumas com certa autores fazem uma análise da prática no pitada de humor, como a do clã de Sawney passado distante em mitos, lendas, folclore e ficção, suas origens arcaicas, descobertas arqueoló- Bean, que aterrorizou por 25 anos as costas da Escócia; a gicas e seu uso espalhado em rituais, religião e ritos mági- do barbeiro Sweeney Todd e as deliciosas tortas de carnes cos. Aqui, tem-se o primeiro relato objetivo da prática em de sua mulher na Londres do século 19, culminando com terras brasucas pelo alemão Hans Staden. Este narra o que Armin Meiwes, que recrutou, pela internet, voluntários os tupinambás fazem com um prisioneiro: matam-no, re- que pediam para ser comidos. (Luiz Arrais)
> Amor e abandono > A verdade por em O Passado trás das máscaras
> Miguel Arraes contado em versos
> O lugar da arte no mundo moderno
A relação do amor com as despedidas tem sido tema recorrente na Literatura. Em O Passado, o escritor argentino Alan Pauls faz uma ressurreição da memória, ao contar a história de Rímini e Sofia, que se separam após 12 anos intensos e felizes. Em quase 500 páginas, a devoção amorosa, o mergulho na dor, um enlouquecimento atmosférico, a queda livre, o desespero, e frases como a de Sofia:“Ninguém se separa, Rímini. As pessoas se abandonam”. Numa narrativa forte, densa, pulsante, Pauls mergulha na alma humana com dor, paixão, medos e abandonos, chegando ao sublime. O grande achado do livro é não buscar reflexões sobre sentimentos, apenas mostrar como vive um casal com suas feridas, quando a obra de arte se despedaçou e não há como restaurar. (Samarone Lima)
O poeta Juareiz Correya, admirador histórico do ex-governador Miguel Arraes de Alencar, político que alcançou a dimensão do mito no imaginário nordestino, reuniu, ao longo de anos, folhetos de cordel e registro de cantorias de viola que compõem, como ele mesmo definiu, “uma quase biografia poética” do personagem importante na história política brasileira da segunda metade do século 20. E publicou o material de oito cordelistas e sete repentistas no livro Arraes na Boca do Povo, recém-lançado pela Fundação João Mangabeira, do Partido Socialista Brasileiro, ao qual o ex-governador era filiado. São versos saborosos, criados às vezes no calor de acontecimentos, como a primeira eleição para governar Pernambuco e, até, sua morte, em agosto de 2005.
Tomando como base central do seu raciocínio o pensamento de Nietzsche, Priscila Porto Nascimento analisa o papel e o lugar da arte em tempos pós-modernos, na chamada sociedade do espetáculo, começando sua retrospectiva no século 19, quando as mudanças na industrialização atingiram também o paradigma de percepção vigente. A análise de um quadro de Seurat, feita por Jonathan Crary, é o ponto de partida para instauração desse novo modelo de subjetividade e também da construção teórica da autora. Nesse percurso, ela levanta as principais questões envolvendo o universo artístico no mundo contemporâneo, reportando-se às idéias de Guy Debord, Fredric Jameson, entre outros, destacando a sugestão de Nietzsche de que a sociedade precisa de uma nova ética. (Mariana Oliveira)
O Passado Alan Pauls Cosac Naify 480 páginas R$ 55,00.
“Cada qual se veste com a sua dignidade por fora”, escreveu Pirandello, “mas sabe muito bem tudo de inconfessável que se passa no seu íntimo”. Em Vestir os Nus, está presente o recorrente tema pirandelliano da vida como uma farsa em que todos vestem máscaras de homens de bem, mas ocultam sentimentos e pensamentos inconfessáveis. Neste caso, a personagem Ercília, uma jovem criada que, após a morte acidental da criança de quem cuidava, foi abandonada pelo noivo e tentou suicidar-se. Mas aos poucos percebemos que ela explora a própria tragédia. Um atrativo à parte dessa nova edição é que o texto do mestre do teatro moderno italiano foi traduzido (ou transubstanciado) por Millôr Fernandes. (Eduardo Cesar Maia) Vestir os Nus Luigi Pirandello Civilização Brasileira 207 páginas R$ 20,00.
Arraes na Boca do Povo Organização de Juareiz Correya Fundação João Mangabeira 84 páginas, R$ 20,00.
A Relação Ética da Arte na Sociedade do Espetáculo Priscila Porto Nascimento EdUFF 111 páginas R$ 25,00.
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MÚSICA
Obra-prima esconde significados diversos
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arrativas que se superpõem, discursos em clave de alucinação, sonhos prenhes de utopias, transcrições de cartas, tudo em registros e estilos diversos, ao lado de um improvável, mas perturbador, encontro de Franz Kafka com Adolf Hitler, formam a matéria de Respiração Artificial, romance de Ricardo Piglia (foto), em que se procura pesquisar e examinar (separando o que é verdadeiro do aparentemente verdadeiro, mas falso) a biografia de um homem até então tido como herói, mas que pode ser um possível traidor. Tido por 50 escritores argentinos como um dos 10 mais impor-
tantes romances da literatura daquele país, Respiração Artificial figura ao lado de O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, fazendo de Piglia o melhor escritor argentino vivo. Composto de camadas sobre camadas de significados, como num palimpsesto, que vão sendo arrancadas das narrativas, num jogo de sentidos que se multiplicam num túnel de espelhos, o livro ilustra as idéias teóricas de Piglia quando argumenta que nos tempos pós-modernos as estórias criadas por escritores devem possuir, sempre, no mínimo, mais um significado por trás do que se mostra mais Respiração Artificial evidentemente. O que Ricardo Piglia torna a leitura de seus Iluminuras 208 páginas livros uma verdadeira R$ 36,00. aventura em que o leitor é chamado a participar e descobrir a verdadeira verdade. (Marco Polo)
> Poesia vocálica e performance
> Sexo atrapalhado na beira da estrada
> Reter ou deletar na era da internet
> Educação do mal em prisão cruel
Dialogando com várias correntes teóricas, cotejando e relacionando diversos ramos do saber – Antropologia, História, Lingüística, Sociologia, Teoria Literária, Filosofia –, o suíço Paul Zumthor é um desses autores fundamentais para poetas insatisfeitos com as formas tradicionais de fazer poesia e que buscam na performance, na música e na nova tecnologia, outras formas de expressão. Medievalista, poeta, romancista, estudioso das poéticas de voz e polígrafo, Zumthor desfaz as tradicionais oposições entre poesia oral e poesia escrita. Para ele, os meios eletrônicos podem ampliar e materializar a voz humana, voz esta que inclui, na sua expressão, a participação do corpo através da performance.
Por causa de uma malsucedida relação sexual, na tentativa de perder a virgindade, Íris Bahar, tão logo é desmobilizada do exército israelense, coloca uma mochila nas costas e parte numa viagem pela Ásia, em busca de uma vida sexual mais ativa e prazerosa. Acontece que, apesar de atraente, ela entra em pânico toda vez que a coisa está em vias de se realizar, o que torna tudo mais problemático. À maneira de Woody Allen, ela escarnece dos outros, mas também de si própria e até mesmo de seus irmãos judeus. É um humor às vezes ácido e até mesmo escatológico, pois Íris Bahr não tem medo de ser politicamente incorreta e dar às coisas os seus nomes verdadeiros e mais crus. Enfim, um livro divertido.
Um dos dilemas da sociedade atual, em que a quantidade de informações parece acumular-se monstruosamente em questões de segundos, é decidir quando se deve guardar um documento, a fim de garantir sua consulta em alguma circunstância vindoura, ou destruí-lo para não se ficar soterrado pelo acúmulo de material. Avançando por áreas diversas como descrição histórica, hermenêutica e morfologia, procurando borrar fronteiras entre as ciências e criando relações entre o presente, o passado e o futuro, o historiador do livro e da leitura, Roger Chartier, em Inscrever & Apagar desembainha a espada da dúvida a fim de abrir um caminho de decisões certas em meio a um cipoal de falsas certezas.
Edward Bunker ficou conhecido mundialmente ao trabalhar como ator fazendo o personagem Mr. Blue, no filme Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino. Antes disso, porém, já era famoso nos Estados Unidos, onde nasceu, pelos romances que escreveu a partir da experiência dos 18 anos que passou em várias prisões por roubo, agressão e outros delitos. Em Fábrica de Animais ele relata a “educação” de um jovem traficante que cai na Penitenciária de San Quentin, um lugar onde a pessoa é obrigada a renunciar a quaisquer valores morais que ainda tenha, para se tornar violenta e até matar, caso queira escapar de humilhações, espancamentos e estupros. Um livro duro sobre uma realidade dura.
Performance, Recepção, Leitura Paul Zumthor Cosacnaify 129 páginas R$ 29,00
Aventuras de uma Pseudovirgem Íris Bahr Conrad 264 páginas R$ 34,00
Inscrever & Apagar Roger Chartier Editora Unesp 336 páginas R$ 35,00
Fábrica de Animais Edward Bunker Editora Barracuda 256 páginas R$ 35,00
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conto >> Santiago Roncagliolo
Amor livre
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m amigo meu – chamemos-lhe “P” – apaixonou-se. Foi um sentimento fulminante, desapiedado e, o mais importante, correspondido. O casal passou junto um fim de semana de sonho. Na segunda-feira seguinte, meu amigo decidiu que ela – chamemos-lhe “Y” – era a mulher de sua vida. Para declarar seu amor, enviou-lhe flores e a convidou para jantar. Ligou pela manhã, e depois pela tarde. Disse-lhe coisas bonitas. À noite, ela deu por terminada a aventura. – Não quero a pressão de uma relação estável – explicou . Eu necessito ser livre. – Não fazem falta os compromissos – propôs meu amigo, que não queria perdê-la . Tenhamos uma relação livre. Decidiram tentar. Durante algumas semanas, meu amigo deixou de enviar flores ou de dar presentes, e a obrigou a pagar sua parte na conta quando saíam para comer. Continuou dizendo coisas bonitas até que compreendeu que isso a fazia sentir incomodada. Então decidiu guardar silêncio. Só de vez em quando, para romper o gelo, a chamava de “maldito lixo” ou “vadia”, algo que ela achava tremendamente atrativo. Mas ela é uma mulher de hoje e ainda se sentia por demais pressionada. Meu pobre amigo teve que desprezá-la durante um mês, e ainda passou três semanas sem atender aos seus telefonemas. Tudo para fazê-la feliz. Como de todo modo ela tinha medo de se comprometer, “P” teve que radicalizar para conservá-la. Buscou outras mulheres e dormiu com elas na cama de “Y”, calculando a hora para que ela entrasse e o descobrisse. Para “Y”, foi um alívio comprovar que ele tinha outras relações e não se sentia atado. A última vez que decaiu o interesse dela, meu amigo decidiu enganá-la com sua melhor amiga, para deixar claro que não pensa em tratá-la como a uma namorada convencional. Ao pobre, essa garota sempre lhe pareceu insuportável. E ter que beijála o angustiava. Mas para “Y” pareceu toda uma gentileza de sua parte, e sua relação saiu desse lance muito consolidada. Hoje me chegou a notícia do matrimônio entre “P” e “Y”. Para deixar claro que esta é uma relação livre, ele não pensa em comparecer à cerimônia. Sempre é um prazer ver meus amigos felizes. Tradução : Eduardo Cesar Maia 32 x Continente • OUT 2007
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SOBRE O AUTOR Santiago Roncagliolo – Lima, Peru, 1975. Seu livro Abril Rojo (Abril Vermelho) o converteu no ganhador mais jovem do Prêmio Alfaguara de Novela, e está sendo traduzido em mais de 10 idiomas. Seu romance Pudor foi levado ao cinema. Além disso, publicou El Príncipe de los Caimanes e os contos de Crecer Es un Oficio Triste. Colabora com o jornal El País da Espanha.
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poesia>> Micheliny Verunschk O sol devolve cada coisa que a noite furtou com sua língua de gata. E tudo retorna ao seu lugar usual. No entanto, nem tudo se recupera: o jardim de feras em chamas que há nos sonhos, e entre o abismo e o unicórnio, Eurídice, o meu olho cego.
Abismo 801
Ela sentada na cadeira de balanço. O pai, fumando na sala a fumaça se entretendo no pai o pai dentro da caixa a caixa dentro do pai. A mãe cega, tateando pela casa com as cinco chagas de Cristo e uma tesoura a lhe fazer companhia. Do lado de fora somente ela. Ela e o mundo entre as suas pernas. Ela e a dança das leoas. Só muito tarde é que o irmão pôde compreender e viu os dedos brilhantes borboletas úmidas de casulo e viu asas e viu a manhã em rajadas e viu e nessa hora caiu.
HQ
A cidade, lâmina de papel em que bailarinas tristes se desbotam, incendeia.
SOBRE A AUTORA Micheliny Verunschk nasceu em Arcoverde, Pernambuco, em 1972. É autora de Geografia Íntima do Deserto.
Os miados dos gatos sobem aos céus em balões inflados pelo hálito das ruas e um cravo arde nas luzes de mercúrio. Deus fia um sudário colorido para aquecer a gente insone. Dos outros, ninguém sabe.
A Barata
A barata tensa atônita atenta frente à folha pegajosa do poema. Um calafrio quase na carapaça dura e o poema agridoce acenando acendendo dentro da madrugada escura. O dia nasce parindo um novo solstício e ela, impressa, presa no poema-suícidio.
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entre linhas
Luzilá Gonçalves Ferreira
João Cabral, Barrès e uma certa colina
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aurice Barrès escreve, em A Colina Inspirada, que há lugares que parecem transmitir mensagens, falar ao coração, ao espírito. Que guardam lembranças de acontecimentos e pessoas, ou são carregados de mitos, simbologias religiosas ou profanas. Ligados a fatos que nos foram contados e nos impressionaram. Ou que, simplesmente nos tocam pela beleza de um sítio privilegiado, propício Humberto a viagens da imaginação. A poucos quilômetros de Carpina, não longe de Tracunhaém, uma colina impressionou um poeta. Ainda coberto por um resto de mata, única elevação em meio a uma vasta planície, o Alto do Trapuá ganhou a honra de um poema e um pedido por parte de João Cabral de Melo Neto: queria ser enterrado ali. A história da colina é interessante. Muitos anos antes que inspirasse Cabral, um proprietário do engenho sonhou que os pais, já mortos, lhe apareciam. Diziam habitar numa enorme cajazeira existente no cimo da colina. Pediam que construísse ali uma capela, para que descansassem em paz. E se houvesse necessidade de serrar algum galho da árvore, que se recolhesse e guardasse o pó retirado. Obediente, o filho não só construiu a capela como edificou um túmulo para si, à sombra da bela cajazeira. Essa história impressionou meus 12 anos, quando passava férias no Engenho Trapuá. Meus primos Rilda e Adalberto administravam o engenho, e, muitas vezes com Rilda e minha irmã, subimos a ladeira da colina, não longe da casa-grande. Uma casa-grande onde, como em toda casa-grande que se preza, se ouviam à noite gemidos e arrastar de ferros. E onde, emoldurado na parede do salão, seu Olinto, o antigo dono, que repousava na colina, nos olhava, severo. Não sei se João Cabral conhecia essas histórias. Mas,
do alto do Trapuá, o poeta descobriu a cabeleira encardida do algodão, “o abacaxi entre sabres metálicos, o agave às vezes fálico, a palmatória bem estruturada e a mandioca sempre em parada”, inseridos numa paisagem “que o mato prolixo completa sem qualquer ritmo”. Do outro lado da colina, seu olhar amansou ante o canavial, a fala se tornou doce ao descrever as “canas longilíneas de cores claras e ácidas, femininas, aristocráticas”. Em meio a essa paisagem vegetal, surge uma espécie estranha, com algo de humano, de ventre baldio, onde “o enorme abdome terá a proporção de sua fome”. Como exprimir, de modo mais contido, a compaixão do poeta diante daquela “planta indigente” que tanto se multiplica em nossa Zona da Mata? A recente edição de O Artista Inconfessável, organizado por Inez Cabral, sua filha, e a entrevista que esta deu a um de nossos jornais, me lembra uma longa e despretensiosa conversa com o poeta, há anos, o mar de Boa-Viagem ao fundo. Cabral se queixava do silêncio dos críticos com relação à emoção existente em sua poesia. Comentavam o extremo rigor no uso das palavras, a linguagem escolhida, a secura do estilo. Mas ninguém assinalara o erotismo na descrição da figura feminina, seu olhar amoroso sobre a terra e a paisagem pernambucana. E acrescentei: o modo como expressara a simpatia pela gente do sertão, pelos cassacos do engenho, para os quais o menino lia os cordéis comprados na feira, com sua pequena mesada. O Alto do Trapuá, publicado em Duas Águas (1954), como tantos escritos de João Cabral, prova que não são necessários derramamentos líricos para se falar de amor. E dá razão a Maurice Barrès quando lembrava que existem, sim, lugares onde sopra o Espírito. Em tempo: o professor e crítico Janilto Andrade prepara um longo ensaio sobre o erotismo em João Cabral. Aguardemos. • OUT 2007 • Continente x
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TRADIÇÕES
Zé do Pife
Para o artista de São José do Egito, radicado em Brasília, o mundo é o palco Eduardo Cesar Maia
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onheci o Zé no aeroporto de Fortaleza. Íamos, ambos, para o encontro “Mestres do Mundo”, que estava sendo realizado em Limoeiro do Norte, no Ceará. O homem saiu desembestado da área de desembarque: duas sacolas grandes na mão e direção nenhuma na cabeça. A mulher da condução, depois de que eu alertasse que o mestre do pífano era aquele senhor baixinho, mesmo, foi correndo atrás. Quando conseguiu segurar o homem pelo braço, perguntou: – “E o senhor ia pra onde?” – “E num me chamaram aqui pra tocar? Tava indo...” Quando criança, na chuva ou no sol, mas sempre na enxada, Tide (apelido que Zé ganhou da família) assistia admirado as bandas de pífanos que passavam pela cida-
de de São José do Egito. O avô, então, comprou-lhe seu primeiro instrumento: uma zabumba. Com 10 anos, aprendeu sozinho, “de ouvido”, a tocar pife. Depois, começou a produzir seus próprios instrumentos, também conhecidos como pífaros ou, simplesmente, pifes, feitos de bambu do reino, para usar e vender. A produção desse instrumento é artesanal e tem seus segredos. Zé do Pife utiliza um fogareiro, separa ferros de diferentes calibres e vários pedaços de bambu. Os furos do pífano, feitos com esses ferros esquentados nas brasas, precisam ter exatidão milimétrica, ou a afinação é comprometida. O próprio artesão é também o “testador” da qualidade sonora dos pifes produzidos. Os instrumentos que faz custam de 10 a 40 reais, “as vendas
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TRADIÇÕES são como maré: tem dia, semana, que não vende nada, daqui a pouco, vende tudo de uma vez...”. A formação musical precária de Zé do Pife é compensada por um ouvido bem treinado. Vê sua habilidade e talento de forma pragmática (mas, ainda assim, bonita): “É uma forma de ganhar a vida sem perder a alegria. Eu não tenho tristeza comigo, não. Quero? Faço. Minha vida todinha eu só fiz o que quis”. Tem, hoje, 64 anos, mas ninguém diz. Canta o tempo todo e toca para tirar “a perturbação do pensamento”. Seu maior ídolo é João do Pífano: “Uma vez toquei com o João, o maior tocador de pife do Brasil, e ele disse: ‘Os pife desse Zé são tudo afinadinho’”, orgulha-se. O rei do baião, claro, também é referência, “Gonzagão fazia bonito e não fazia cachorrada, como essas bandas de forró de hoje em dia”. Gosta de dizer também que as músicas do Trio Nordestino são obrigatórias no seu repertório.
De São Paulo, partiu para Brasília, sem contatos prévios e sem saber como seria o dia seguinte. Como sempre, as coisas foram se ajeitando e Zé acabou se identificando com a capital federal, lugar onde mora até hoje. Sua rotina é percorrer as ruas da cidade, as rodoviárias, as festas improvisadas e mesmo as faculdades para difundir sua arte. Ao fim das apresentações, o tocador vira vendedor e mostra ao público os pifes que leva em seu sacolão. Recentemente, deu uma oficina de pífanos para alunos da Universidade de Brasília; ensinou a tocar e a fabricar. Confessa emocionado que não conteve as lágrimas quando viu seus alunos tocando com desenvoltura. Segundo o mestre, dos 75 alunos que teve, apenas um não aprendeu. Eu devo admitir, por dever jornalístico, que fui o segundo incompetente.
A arte e a liberdade – Zé do Pífano conseguiu, do único modo talvez possível para alguém de sua condição e circunstância inicial, alcançar uma nova perspectiva de vida, baseada não mais exclusivamente na necessidade, na busca pela sobrevivência diária, mas na escolha e no prazer (e no risco!). “A arte é uma esperteza que Deus deu. E o homem ainda se diverte”, diz. Pergunto a Zé o que ele entende por “cultura” e ele Vida de viajante – Seu parceiro na roça responde que é algo como uma espécie de lembrança que do sítio Riacho de Cima e na música era cada pessoa leva consigo, “todo presente que ganho guarseu irmão, Zeca do Pife, pois “o pife não é do, mesmo que seja qualquer trocinho velho de qualquer instrumento para ser tocado por um, sozicoisa, porque atrás disso tem uma recordação, algo que nho”, conta. Em 1973 fez a primeira viagem eu carrego junto comigo. Uma música, uma poesia, pode para Palmares e depois não parou mais. ser uma lembrança Como quase todos da terra, da mãe, do os imigrantes de sua pai, de uma época terra, tomou o rumo que não volta”. de São Paulo. TrabaZé não tem apolhou na construção sentadoria e nem casa civil e seu talento foi própria, mas se diz descoberto quando satisfeito porque “o fez um pife para se homem sendo artista divertir nos intertem mais possibilidavalos das obras com a peãozada. des quando está velho. Seus conterrâneos o batizaram Nas construções não artisticamente como “Zé do Pife“ estão empregando (seu nome de batismo é Francisnem com 40, quem co Gonçalves da Silva). Em 1974, dirá com mais de 60 incentivado pelos colegas e pelo anos”. É casado e tem patrão, arriscou-se nos programas quatro filhos, mas nedo Chacrinha, Raul Gil e Sílvio nhum tem o dom do Santos. Neste último, no famoso pife. “E o que é ‘dom’ Show de Calouros, tirou nota boa para você, Zé?”, percom todos os jurados, menos com gunto. “É quando o Zé Fernandes, “que todo mundo cabra aprende sem sabe que era um bicho chato e não muito aperreio”. • dava nota pra ninguém”. Zé do Pife toca com Antônio Hortêncio e o sanfoneiro Camarão OUT 2007 • Continente x
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Alberto da Cunha Melo
A noite da longa aprendizagem (I) A natureza da poesia é, portanto, virtual. (Ermelinda Ferreira)
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o contrário da maior parte dos ficcionistas, a maioria dos poetas (pelo menos dos que chegaram ao meu conhecimento) não é muito chegada a estabelecer uma regularidade para o ato de escrever. Enquanto não é difícil encontrar ficcionistas que escrevem diariamente, a coisa mais rara do mundo é localizar um poeta que o faça. O ato de escrever poesia ainda está sobrecarregado de certa sacralidade, enquanto o exercício da prosa, da prosa literária, de ficção, é algo mais burguês e secularizado. Não é à toa que, na lista dos livros mais vendidos, a prosa de ficção sempre está a muitos quilômetros à frente de qualquer volume de poesia. Pelo menos aqui no Ocidente a prosa de ficção é a atividade literária que mais se ajustou ao gosto e às aspirações da sociedade capitalista, “emergente” ou não. O tônus da sacralidade (que considero um indicador sociológico de tradicionalismo) é mais uma barreira, um estereótipo, a distanciar o produto poético da condição de mercadoria. Não sou favorável a que tudo neste mundo — do amor erótico ao filial, dos valores religiosos aos valores artísticos — se transforme em mercadoria. Mas arte é fazer, e o esforço quase braçal dos pintores necessariamente não impediu o triunfo da pintura em vários séculos. A atividade dos pintores é uma lição para os poetas. Quando vejo Miguel dos Santos construir uma belíssima obra agindo como um operário, pois chega todos os dias pela manhã ao seu ateliê e trabalha até o anoitecer, mais e mais se confirma em mim a idéia de que arte é também (ou principalmente, às vezes) trabalho, mesmo a arte poética. A sacralidade do poético explicita-se, manifesta ou latentemente, no culto à inspiração, muito caro à tradição poética e, em particular, à poética do Romantismo
(os teóricos espíritas talvez resolvessem isso conceituando mediunicamente a “inspiração). Daí uma tão equivocadamente aplaudida semi-esterilidade dos poetas, “que só devem escrever quando estão “inspirados”. Sacralizar a atividade poética é, também, dispensá-la do mundo dos homens comuns, marginalizá-la, reforçar-lhe o estigma platônico. Sou daqueles que defendem o exercício diário da poesia, e procuro fazê-lo na medida do possível. É preciso que os poetas criem o hábito de escrever como se adquire o hábito de ler ou de fumar. E os poetas, mais que os ficcionistas, estão precisando submeter-se ao esforço quotidiano de manipular o mundo simbólico, de testar, dia e noite, os recursos expressivos da linguagem. Aliado ao hábito de escrever diariamente, devem ainda cultivar a saudável humildade de sempre autocriticar impiedosamente tudo que escreve, rasgando sempre o que considerar imprestável. O perigo de escrever pouco é maior do que o de se escrever muito (falo em escrever e não em publicar), porque a tendência de quem escreve pouco é sempre aproveitar o máximo do pouco que escreveu, e o comum mesmo é aproveitar todo esse máximo. Ora, quanto menor o número de poemas escritos, menor o número de alternativas para a escolha. Não defendo uma perspectiva meramente quantitativa da arte, e muito menos da arte da poesia, o que defendo mesmo é a prática diária, é o hábito, o vício de escrever. Acho que essa atitude, quando menos, leva ao aperfeiçoamento formal, principalmente se o artista está interessado mesmo em aperfeiçoar-se. Uma fórmula provisória: escrever e rasgar muito, mas só publicar o mínimo possível, ou digitar e deletar muito, conforme o jargão da nova era virtual. Essas anotações, meus milhões de leitores, eu as es-
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crevi em 28 de abril de 1978. Fazem parte de quatro volumes – quase mil páginas manuscritas – do livro inédito A noite da longa aprendizagem. Notas à margem do trabalho poético. Abro o registro sem demover-me da proposta do exercício poético, mesmo neste novo suporte de resistência: o “ciberespaço”, onde “opera-se uma mudança de uso, de natureza do público e de sua relação com o texto, o que representa novos desafios”, como tão bem assegura em inusitado ensaio, a escritora Ermelinda Ferreira, no prefácio do livro poetas@ independentes (Livro Rápido, 2007).
Metamorfoseada no vir-a-ser, a poesia é, sempre, virtual. Mas eu sou um construtivista incurável, como informei na minha mais recente entrevista ao grande poeta paulista Álvaro Alves de Faria, em maio deste ano de 2007. E mais, embora meu primeiro rascunho surja de uma palavra, um fato, um romance etc., como produto final, o poema só surge depois de até seis versões, é um trabalho desesperado. Portanto, para mim, a poesia só se presentifica plena na fornalha do trabalho artístico, cujo resultado, o poema, mostre-a enquanto tecnologia de ponta da palavra. • OUT 2007 • Continente x
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HISTÓRIA
Olinda definitiva Olinda Restaurada, de Evaldo Cabral de Mello, clássico da historiografia brasileira, é relançado em nova edição, saudada como definitiva Antônio Portela
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ogo na folha de rosto, depois de “3ª edição”, dá-se o registro: “definitiva”. Desde 1975, quando veio à luz Olinda Restaurada – Guerra e Açúcar no Nordeste – 16301654, Evaldo Cabral de Mello duas vezes fez acréscimos a esse seu trabalho. Foi em 1998, na luxuosa 2ª edição lançada pela Topbooks, e, agora, nessa anunciada nova e completa versão de uma obra que, há mais três décadas, é saudada, cá e fora do Brasil, como um dos clássicos da historiografia brasileira. A Olinda Restaurada definitiva que está chegando às livrarias trata-se de uma obra que “manteve o mesmo argumento e a organização temática” de quando foi publicada pela primeira vez, mas é, ao mesmo tempo, um livro que “foi reescrito de cabo a rabo de maneira a integrar os resultados de pesquisas ulteriores e das contribuições surgidas nesses últimos 30 anos” – nas palavras do próprio autor, no prefácio à 3ª edição. Em suma, é basicamente o mesmo trabalho historiográfico – seguido ao longo dos anos de tantas outras obras de primeira plana publicadas pelo autor – que inaugurou o estilo de Evaldo Cabral de Mello, de produzir uma história total, abrangente dos aspectos social, econômico, político e militar da presença holandesa no Brasil. O historiador recifense (1936), diplomata de carreira por muitos anos (a exemplo do irmão falecido, o poeta João Cabral de Mello Neto) e doutor em História por notório saber pela Universidade de São Paulo, cuida nessa obra de demonstrar como foram as guerras holandesas, guerras do açúcar nas acepções tanto de guerra pelo açúcar (a luta pelas fontes de produção) como de guerras sustentadas pelo açúcar, isto é, pelo sistema socioeconômico instalado no Nordeste para produzir e exportar o açúcar ao mercado europeu. Numa abordagem pioneira, Evaldo Cabral de Mello dividiu a dominação holandesa no Brasil em três períodos, excluído o da ocupação de Salvador (1624-25). Ao primeiro, que vai de 1630, quando se deu a queda de Olinda, a 1637, quando o exército hispano-lusobrasileiro (Portugal ainda sob o domínio da Espanha) abandonou Pernambuco, chamou guerra de resistência. Ao segundo, de 1637 a 1645, denominou Idade de Ouro do Brasil Holandês, quando houve o governo de Maurício de Nassau e, também, o início da insurreição luso-brasileira. Por fim, de junho de 1945 a janeiro de 1954 deu o nome de guerra de restauração, que pôs fim à presença holandesa no Brasil. O autor, contrariando teses historiográficas anteriores, opôs-se, com Olinda Restaurada, à ênfase por elas posta no nativismo. “A historiografia oitocentista”, diz, no prefácio à nova edição, “supôs uma relação causal entre o domínio holandês e a origem do sentimento nativista ou da consciência nacional, mas não chegou a estabelecer o nexo entre ambos os fenômenos, de modo a analisar o problema com rigor, libertando-o da suspeita de refletir apenas o equívoco lógico do post hoc, propter hoc.” E completa: “Vai além a insuficiência historiográfica, supondo que o nexo é mecânico. Mas entre o restabelecimento da suserania portuguesa em 1654 e a eclosão do sentimento nativista em 1710 medeou mais de meio século, que se relega ao esquecimento”.
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HISTÓRIA A seu ver, “a realidade radical da dominação batava foi a guerra, não a paz; e seu interesse reside primordialmente no impacto da guerra sobre a sociedade colonial que se desenvolvia no Nordeste – e não na tentativa, aliás fracassada, de implantação de instituições e valores da Europa mais avançada, como queria a historiografia nativista; ou ainda nos processos de choque e acomodação de cultura entre protestantes do norte da Europa e católicos portugueses, postos de relevo mais recentemente”. No primeiro dos oito capítulos de Olinda Restaurada, Evaldo Cabral de Mello, incluindo as guerras holandesas no contexto mundial, define-as como um episódio colonial da Guerra dos 30 Anos (1618-1648) e do longo conflito entre Espanha e Holanda (1568-1648), a Guerra dos 80 Anos. Examina as estratégias adotadas por portugueses e brasileiros, assim como pelos holandeses, estratégias essas que condicionaram a mobilização de recursos locais. A produção, o comércio e a navegação luso-brasileiras são alvo dos capítulos um e três. As finanças da luta, do quarto; o recrutamento de tropas, do quinto; no sexto, é analisado o problema de obter provisões para essas tropas. No capítulo sete mostra-se a adaptação da arte militar européia às condições do Nordeste e às diver-
gências de conceito entre exército convencional e “guerra volante” ou “guerrilha”. No último capítulo, fala-se do conflito de interesses entre os proprietários de engenhos confiscados pelos holandeses e os novos donos de origem luso-brasileira que os compraram do governo holandês durante a ocupação. Tal é a versão, ora dita acabada, da desde sempre definitiva obra de Evaldo Cabral de Mello, no rastro inovador e brilhante da qual vieram outras igualmente festejadas da historiografia nacional, como O Norte Agrário e o Império, 1871-1889 (1984), Rubro Veio: o Imaginário da Restauração Pernambucana (1986), O Nome e o Sangue: uma Fraude Genealógica no Pernambuco Colonial (1989), A Fronda dos Mazombos: Nobres contra Mascates, Pernambuco, 1666-1715 (1995), O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste , 1641-1669 (1998), A Ferida de Narciso: Ensaio Regional (2001), Um Imenso Portugal: História e HistoOlinda Restaurada, riografia (2002), A Outra Guerra e Açúcar no Independência: o FederaNordeste – 1630-1654 Evaldo Cabral de Mello lismo Pernambucano de Editora 34 1817 a 1824 (2004) e Nas383 páginas R$ 49,00 sau: Governador do Brasil Holandês (2006).
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REGISTRO
Diálogo poético entre duas cidades Franceses da cidade de Nantes vêm ao Recife para criar uma ponte de intercâmbio cultural Fábio Andrade
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Festival Recifense de Literatura vem marcando a vida cultural do Estado de maneira notável. Primeiro, por dar voz às mais diversas dicções poéticas locais, às iniciativas solitárias e aos grupos que aqui e ali despontam, guerrilhas anônimas que são, trabalhando, geralmente, no subterrâneo da vida literária. Segundo, por, unindo-se a uma iniciativa que já data de pelo menos quatro anos, aproximar nossas vozes a tonalidades novas. A aproximação com a França e poetas franceses, principalmente com os da cidade de Nantes, é um dos contatos que vem se afirmando desde 2003. Três nomes franceses de destaque estiveram no Recife nesta última edição do festival: Dominique Coffin, Jean-Pascal Dubost e Henri Deluy, este último editor da revista Action Poétique. A presença deles também assinala o produto concreto dessa cooperação: a antologia bilíngüe Um Olhar Transatlântico, que intensifica esse diálogo rico em promessas. A rápida entrevista com Dubost e Coffin, que resumimos aqui, teve como intermediário e tradutor o poeta Everardo Norões. Dominique Coffin é encarregada da Mission Lecture (Missão da Leitura), que promove na cidade de Nantes,
junto à prefeitura e às bibliotecas da cidade, o estímulo à leitura e à escrita, desenvolvendo um interessante trabalho com crianças e idosos. São organizadas, por exemplo, antologias com textos produzidos pelas crianças que participaram de passeios pelos vários bairros da cidade, possibilitando certo olhar para a complexidade urbana de um mundo cheio de diferenças e que elas ainda não conhecem plenamente. Segundo suas próprias palavras, e valendo-se da paisagem costeira da cidade, ela vê o programa que coordena como um barco que está, por sua vez, conectado à biblioteca nacional, que seria o porto ou almirante desse movimento articulado que tem como objetivo a expansão do sentimento de cidadania. Para ela, a cidadania depende diretamente das atividades de leitura e escrita. A escrita é encarada não apenas como um instrumento da cultura, mas como a principal ferramenta da cidadania. A literatura, como se vê, é tomada sempre e primeiramente como forma de inclusão social. Jean-Pascal Dubost, que é presidente da Maison de la Poèsie de Nante (Casa da Poesia de Nante), poeta também editado na antologia Um Olhar Transatlântico, vê como extremamente positiva a presença deles para a
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REGISTRO
Dominique Coffin e Jean-Pascal Dubost, da cidade de Nantes (à esquerda), em visita ao Recife
A antologia Um Olhar Transatlântico, lançada aqui e na França, traz poemas franceses traduzidos para o português e poemas pernambucanos com versão em francês intensificação efetiva do diálogo entre as duas cidades. Disse-nos ainda que, de seu encontro com Fernando Duarte, presidente da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, nasceram muitas idéias, algumas que já começam a se realizar. Três nomes de poetas já estão cotados para uma visita a Nantes e à Maison de la Poèsie: Everardo Norões, autor de A Rua do Padre Inglês (Sete letras, 2006), Cida Pedrosa, autora de Gume (edição de autor, 2005) e Pedro Américo de Farias, autor do cordel Alice nos Sertões do Ex-Cangaço (Edições Língua de Poeta, 2004). A idéia é que a Maison de la Poèsie, de Nantes, como nos adiantou seu presidente, mantenha uma residência para receber poetas pernambucanos que nela se estabelecerão para dar conferências sobre nossas letras, durante um certo período, além de conhecer a produção poética da cidade francesa. Jean-Pascal acredita que essa residência para autores do Recife será uma forma inédita de ampliar o diálogo e promover a descoberta mútua dos nossos poetas e dos de sua cidade. Ele mesmo confessa conhecer muito pouco a nossa poesia e a poesia brasileira recente, em geral. Os franceses contam com muitas traduções de poetas portugueses – o poeta Henri Deluy traduziu, inclusive,
Fernando Pessoa. Nossos mais novos poetas, entretanto, são desconhecidos dos leitores e escritores franceses. A antologia assim cumpre, inicialmente, uma dupla função: firma o início de uma colaboração mais sólida e dissemina um pouco da poesia pernambucana em terras francesas, com a vantagem para nós de um conhecimento da literatura que se faz além-mares. Nós, pernambucanos, sofremos muitas vezes de uma espécie de isolamento crônico, fechados num resto de orgulho que enxerga a diferença como ameaça ao nosso posto de pioneiros da cultura nacional. É contra esse provincianismo que a poesia de Jean-Pascal Dubost, Philiph Beck, Albane Gellé, Hélène Cadou, Jean-François Dubois, Bernard Brétonnière, Paul-Louis Rossi, Guy Bellay, Daniel Biga e Jean-Claude Pinson pode nos proteger. Além disso, conhecer também (ou melhor) a poesia de Alberto da Cunha Melo, Everardo Norões, Esman Dias, Marco Polo Guimarães, Miró, Déborah Brennand, Cida Pedrosa, Jaci Bezerra, Lucila Nogueira e Pedro Américo terá igual utilidade: proteger-nos contra a repetição empobrecedora de nossos hábitos de ler e ver o mundo. Cumprindo aí uma terceira função: revelar a nós mesmos as faces de nossa poesia. • OUT 2007 • Continente x
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Os artistas plásticos Joelson Gomes, Dantas Suassuna e a fotógrafa Roberta Guimarães trazem ao Recife o resultado do projeto Olaria: Ocre, desenvolvido em Tracunhaém André Dib – Fotos: Roberta Guimarães
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izem os escritos antigos que a criação do homem partiu de uma escultura de barro e de um sopro divino. Essa poderia ser uma boa explicação para a longevidade da arte feita de barro, uma tradição milenar da qual o Brasil participa, e que se recria a cada nova geração de artistas. A experiência mais recente vem de um projeto encampado pelos artistas plásticos Joelson Gomes e Dantas Suassuna, e pela fotógrafa Roberta Guimarães. Seus frutos serão compartilhados com o público nesta segunda quinzena de outubro, com a abertura da exposição Olaria: Ocre. Desde o começo do ano, eles montaram um ateliê dentro de uma olaria comercial, situada em Tracunhaém, um pequeno município da Mata Norte pernambucana. Por volta dos anos 60, esta cidade a 63 km do Recife viveu um boom no comércio de panelas, santos, leões e outros objetos de barro. Desde então, virou referência nacional nesse segmento do mercado. Uma vez dispostos a criar e interagir nesse contexto, veio a escolha da Olaria do Baixinha como quartel-general desta verdadeira residência artística. Lá, artefatos de barro estão em todos os lados, mudando de aparência de acordo com a inclinação e intensidade da luz ao longo do dia. Quase sempre utilitários, esses produtos fabricados em série variam entre pratos, jarras, vasos, fogareiros, filtros d’água e objetos de decoração, que estimulam o olfato, e reclamam para que as mãos percorram suas superfícies arenosas e recém-saídas do forno. “Talvez aqui seja a maior olaria do Nordeste”, avalia Joelson, com a autoridade de quem viajou por toda a região pesquisando as diferentes formas de tratar o barro. Essa odisséia se deu há pouco mais de três anos, quando participou do coletivo Corgo com Dantas Suassuna, Cristina Machado, Zé Paulo, Rinaldo e Maurício Silva. O nome vem de córrego, e foi retirado de um pensamento encontrado num catálogo de arte popular , de autoria do artista popular Nhô Caboclo. No livro, ele teria declarado que todo artista teria em si uma entidade chamada corgo, que vem do “tridimensional” e passa pela “existência”. “É um caminho a ser percorrido”, interpreta Joelson. Na busca desse caminho, o trio de artistas subverte as formas convencionais de abordagem e tratamento do barro. Uma vez fabricadas pelo assistente Valdick Graciliano – considerado pelos conterrâneos o mais habilidoso oleiro da cidade –, as peças passam a sofrer as interferências
Ao lado, os artistas Dantas Suassuna, Joelson Gomes e Roberta Guimarães
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ARTES artísticas. “Minha maior meta aqui é tirar a utilidade das coisas”, brinca Joelson. “Se Valdick faz uma vasilha, eu a fecho. Duas jarras, eu junto numa peça só”, explica o artista. Seu trabalho inclui esferas, pêndulos e objetos menos definíveis, sempre simétricos ou gêmeos, e com certa dose de erotismo. Ex-pupilo de Francisco Brennand na arte da cerâmica, Dantas Suassuna utiliza-se deste conhecimento para aplicar em pratos e vasilhas seus desenhos influenciados em inscrições rupestres e outros primitivismos. Em determinada peça, utilizou uma forma cilíndrica que seria um filtro de barro, para criar uma espécie de totem com símbolos medievais. Como opção do ocre – pigmento natural de cor amarela, que quando oxida em alta temperatura se torna avermelhado – , quer no futuro utilizar a técnica de vitrificação, aprendida com o mestre ceramista. As composições fotográficas de Roberta Guimarães estabelecem o terceiro eixo produtivo do Olaria: Ocre. Mais do que documentar a cria-
ção dos companheiros, ela empresta ao todo um olhar específico, baseado na luz especial daquelas locações. “Não quis simplesmente fotografar o processo, porque isso não traria nada de novo”, explica Roberta, que então estabeleceu três temas: os vestígios deixados pela fabricação dos artefatos; o ambiente natural onde o ateliê está inserido; e a impressionante fabricação de objetos em série, principalmente na sala que ela batizou de “primitiva”, onde várias peças são mol-
O trio de artistas subverte as formas tradicionais do tratamento do barro
dadas s i mu lt a neamente pela mesma pessoa. “Movimentando-s e entre os vasos, o homem fica quase na posição de feto. Chamou-me a atenção ver hoje, num tempo industrial, um trabalho em série desse tipo”, conta Roberta. E não somente as dependências rústicas da olaria servem de influência para o trabalho dos artistas. A paisagem natural, principalmente o onipresente Morro do Engenho
A Olaria do Baixinha foi escolhida como QG da residência artística
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Trapuá, referência para toda a região, tornouse símbolo da exposição que será montada no Recife. Síntese da inspiração buscada pelo grupo, o morro rodeado de plantação de cana por todos os lados foi fotografado por Roberta em dois tipos de filme: o preto-ebranco, antes da colheita, em que a textura da plantação varia devido à distância; e em infravermelho, após as queimadas, que deixa a região cheia de recortes geométricos de borda escurecida. Esse contraste existencial entre o tempo do plantio e o da colheita revela o que parece ser a nova prioridade do grupo: a rendição ao tempo, que é o ciclo mais ancestral da natureza. Duração essencial para moldar, secar e queimar o barro. E o misterioso e indeterminado período necessário para a criação. Tanto que, numa das colunas de madeira do ateliê, há um trecho extraído de Lavoura Arcaica, livro de Raduan Nassar, em que o pai faz, na mesa do jantar, um sermão sobre o tempo da natureza como o maior do mundo. Por isso, a exposição no Recife será montada exatamente como o ateliê da olaria, desde as prateleiras até a disposição das obras. “Primeiramente tínhamos resolvido expor em ambientes diferentes. Uma sala para fotografia, uma para mim, e outra para Joelson. Um dia isso irá acontecer, mas vai ficar para depois. Agora queremos trazer o processo inacabado, um trabalho em andamento, porque essa é a verdade. E pode ser que continuemos com este processo pelo resto da vida”, pondera Dantas, que na ocasião também abrirá as páginas do seu diário de desenhos, outro resultado parcial desse mergulho nas origens da criação humana. • OUT 2007 • Continente x
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Arte na rede
Nos sites Your Gallery e no Stuart qualquer artista de qualquer lugar do mundo se cadastra, monta um perfil e inclui vídeos e fotos das suas obras Daniel Buarque 2007 48 Continente • OUT 2007
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artistas e os grandes admiradores, que expõem e visitam a Your Gallery e no Stuart, dois projetos-sigrandes museus e movimentam muito dinheiro, enquantes parceiros promovidos pelo milionário to uma outra grande quantidade de artistas menores não das artes Charles Saatchi, qualquer artista consegue sequer expor seus trabalhos simplesmente por de qualquer lugar do mundo entra no site, falta de um contato certo ou de uma boa indicação. Esque foi criado como extensão da galeria real de Saatchi, sas pessoas ficam sem chances de lidar com vendedores cadastra-se, monta um perfil e inclui vídeos e fotos das e marchands e a internet muda isso, pois permite que suas obras. qualquer pessoa exponha seus trabalhos para qualquer Algumas das melhores idéias da humanidade parepessoa do planeta”, resume, empolgada. cem absurdamente óbvias quando realizadas. Utilizar a “O site é inteiramente gratuito”, ressalta Wilson. Além internet para democratizar o mundo e o mercado das de democratizar o acesso e a divulgação, a galeria virtuartes plásticas, por exemplo, seguindo o que aconteceu al funciona especialmente para novos artistas. Por isso o com a música, o vídeo e a literatura. Como ninguém tiprojeto iniciado em maio de 2006 cresceu em novembro nha pensado nisso antes? Faz somente um ano que isso do mesmo ano. Além da Your começou a acontecer de forma Gallery, a instituição presidida intensa, a partir da Inglaterra, por Charles Saatchi criou o Stumas com abrangência internaart, site semelhante voltado apecional. Sem assumir nenhum nas para estudantes de artes de interesse econômico e sem fazer todo o planeta (o próprio nome publicidade, a Your Gallery e o vem da junção das palavras estuStuart, dois projetos-sites parceidante e artes em inglês). É como ros promovidos pelo milionário um orkut, um site de relacionadas artes Charles Saatchi, já têm mentos especializado em artes. em média 40 milhões de cliques “Tenho recebido informes de por dia, volume de visitantes que outros artistas e muitos convites vem crescendo ininterruptamenpara exposições. Fui convidate desde sua estréia. O sucesso é a ACESSE da até para a Bienal de Veneza. arte de descobrir o óbvio. Sem dúvida o site tem retorno”, O funcionamento da Your ◗ Your Gallery - http://www.saatchi-gallery.co.uk/yourgallery disse a estudante paulista RoGallery segue os exemplos ante- ◗ Stuart - http://www.saatchi-gallery.co.uk/stuart sangela Aparecida da Conceição, riores da música, com o MySpace, ◗ Rosangela Aparecida - http://www.saatchi-gallery.co.uk/ que tem perfil no Stuart desde o ou dos vídeos, no YouTube. Qual- stuart/StudentArt/ast_id/23883 início deste ano. Em sua página quer artista de qualquer lugar do ◗ DavisLisboa - http://www.saatchi-gallery.co.uk/yourgallery/ pessoal dentro da rede de estumundo entra no site, que foi cria- artist_profile/Davis+Lisboa/10248.html dantes, há imagens digitalizadas do como extensão da galeria real de 16 obras suas, e ela está ligada de Saatchi, fechada para reforma a outros cinco estudantes de diferentes lugares do mune mudança de endereço no início de 2006, cadastra-se, do, com quem pode trocar informações, experiências e monta um perfil e inclui vídeos e fotos das suas obras. até mesmo inspirações. A partir daí ele está em contato com outros mais Para os visitantes, é possível ver as obras de diferende 20 mil artistas que já estão cadastrados, além de tes artistas, buscando por nome, por cidade e país de curiosos, colecionadores e galeristas atraídos pela griorigem, ou mesmo ir navegando entre diferentes perfis fe Saatchi – publicitário nascido em Bagdá e criado na interligados. Até o final de junho deste ano, não havia Inglaterra, responsável, há 10 anos, pela mostra Sensanenhuma resposta para a busca por artistas de Pernamtion, que mudou os rumos da arte britânica e lançou ao buco, Recife ou Olinda, mas já há várias dezenas de mundo o trabalho de nomes como Damien Hirst. Uma brasileiros, a maior parte de São Paulo. Entre os já “proproposta que dá mais visibilidade que muita galeria fissionais” da Your Gallery, em oposição aos estudantes “real”, e tudo sem indicação, sem favor, sem influência, do Stuart, um empolgado representante brasileiro é o totalmente democrático. artista radicado na Espanha, Davis Lisboa, que tem um “Em termos da forma como as pessoas vêem e comperfil com obras digitalizadas, currículo e contato. “As pram arte, o site tem um aspecto revolucionário”, explipessoas que fazem trabalhos artísticos têm uma grande ca Rebecca Wilson, editora da Your Gallery e do Stuart. dificuldade de comunicação visual. Com a internet, há “É uma fantástica plataforma alternativa para encontrar um diretório com imagens em alta resolução que peruma audiência para arte. O mundo das artes é muito semitem que se tenha contato com a obra apesar da disgregado e desigual. Há um enorme vazio entre os grandes OUT 2007 • Continente
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Obra da artista paulista Rosângela Aparecida da Conceição que tem perfil na Stuart (ao lado) Ao centro, obra do artista brasileiro Davis Lisboa, radicado na Espanha, que participa da Your Gallery
tância. As páginas do Saatchi concentram tudo, gerando muitas oportunidades”, disse. “É muito democratizador não apenas para os milhares de artistas que não teriam como expor, mas também para as pessoas que gostam de arte e podem se tornar potenciais compradores, colecionadores, mas se sentem inibidas num ambiente de uma galeria real. Na internet não há isso. O colecionador pode entrar em contato diretamente com o artista, conhecer seu trabalho, suas obras, de forma próxima e amigável. Isso tudo sem ter que dar uma comissão de 50% à galeria, o que facilita ainda mais”, explicou a editora dos sites. E, se os artistas brasileiros ainda não são muitos, o país é o quarto maior público dos sites e um dos que mais crescem em número de visitantes. “Vocês ficam atrás somente da Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha”, diz Wilson. “Não tenho dúvida de que a internet é o futuro da arte. Faz uma diferença abismal ter uma página na web. Para mim, abriram-se muitas oportunidades. Chega a ser assustador. Recebo tantos convites que não consigo responder ao todos. São mais de 250 por ano, e não sou uma fábrica de obras de arte”, conta, empolgado, Lisboa, que entrou na Your Gallery há pouco tempo e que também tem um site pessoal independente para a divulgação dos seus trabalhos. 50 Continente • OUT
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A força da vitrine virtual contrasta com a das galerias reais. Enquanto o site recém-criado já tem mais de 3 milhões de visitantes diários, o Louvre, em Paris, e a National Gallery, de Londres, dois dos endereços mais importantes do mundo das artes, têm, cada um, cerca de duas dezenas de milhares de visitantes por dia. Financiados pela instituição da Galeria de Saatchi, os dois projetos fazem uma intermediação indireta entre artistas e compradores, não participando das negociações e não cobrando comissões, o que faz com que não haja sequer controle sobre a quantidade de negócios já gerados pelo contato de milhares de artistas com milhões de visitantes. “Não temos controle sobre as vendas, mas temos muita informação sobre colecionadores que entram para procurar trabalhos novos. Há muitas galerias que estão montando exposições basicamente com artistas encontrados na galeria on-line”, disse Wilson. A ausência de controle do site se expande à qualidade das obras expostas. Como qualquer pessoa pode se dizer artista, criar um perfil e expor virtualmente suas obras, é de se imaginar que nem tudo o que se encontra lá tenha a qualidade das obras que se encontram nas já citadas National Gallery e no Louvre. “Não temos nenhum tipo de censura, o que permite, sim, que haja trabalhos de menor qualidade, mas isso é raro. As pessoas respeitam bastante
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The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living, de Damien Hirst, foi exposta na mostra Sensation, produzida por Charles Saatchi
o ambiente e não fazem brincadeiras. Temos um espírito democrático e igualitário, e estamos preparados para uma mistura real, que inclua artistas muito talentosos, mas também alguns trabalhos menos valiosos”, disse Wilson. Contraponto – Se tudo parece uma maravilha, expositores e artistas se empolgam tanto, alguns críticos ainda torcem o nariz para esta inovação. Para Teixeira Coelho, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo (Masp), a internet nunca vai ter toda essa força revolucionária. “Acho um pouco apressado dizer que a internet é o futuro das artes plásticas. Uma pessoa só compraria pela internet se já soubesse exatamente o que quer comprar, se já conhecesse o artista”, disse. Para ele, o fato de uma galeria ter um site é algo como ela vender um catálogo de uma exposição, jamais vai substituir o efeito da obra de arte original. “A internet é uma muleta. As artes plásticas têm um caráter presencial muito importante. Fotografias, internet, vídeo, nada consegue reproduzir o efeito presencial da arte”, disse. Nem mesmo o papel democratizador de um site que divulga trabalhos novos é válido, segundo Coelho. “Como ferramenta de divulgação pode funcionar da
mesma forma, como uma muleta. Eu não chamaria um artista pelo que ele apresenta apenas pela internet.” “Alguns dos trabalhos são realmente terríveis”, descreveu o crítico inglês Tom Lubbock, do jornal Independent, que louva a iniciativa, mas se diz um tanto suspeito em relação à capacidade real de a galeria virtual suplantar as galerias reais. Segundo ele, a postura do site vai se prender mais a trabalhos menores e mais baratos, para enfeites domésticos, do que para a negociação de obras de valor suficiente para os melhores museus do mundo. Críticas à parte, o império virtual de Charles Saatchi não pára de crescer. Recentemente, enquanto completava um ano do lançamento da Your Gallery, o grupo lançou uma versão do site em mandarim, para atender ao mercado chinês, um dos que mais crescem atualmente nas artes plásticas, um “mercado explosivo”, segundo Wilson. E ainda há planos para mais: um site em espanhol e outro em russo. “Chegamos aonde estamos sem nenhuma publicidade e queremos crescer ainda mais. Vamos começar a criar exposições reais das obras que são reunidas on-line. Vamos montar stands com algumas obras, mas permitindo que se veja também o que está na internet. Queremos estar presentes nas maiores feiras de arte do mundo”, disse a editora. • OUT 2007 • Continente
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Vagas, só para oboé
Desejo de tocar flauta na banda da escola esbarrou na concorrência, mas Isaac Duarte conheceu um novo instrumento e, graças a ele, partiu de Peixinhos para a Suíça
Fotos: Talita Corrêa\Rafael Gomes
Isaac Duarte e sua esposa, Mônica Kato Duarte, em passagem pelo Recife, no Teatro de Santa Isabel
Carlos Eduardo Amaral 54 x Continente • OUT 2007
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o final da década de 70, Ademir Araújo, o popular maestro Formiga, regia a Banda Sinfônica Juvenil Pernambucana e deu ao jovem Israel Guerra uma requinta. Israel acabou trocando a aguda clarineta em mi bemol pelo violino, que lhe fez protagonizar o episódio mais memorável de sua vida. A história ficou célebre no antigo programa de TV Caso Verdade: ao ser perseguido como um ladrão no centro do Recife, Israel teve de provar inocência tocando o instrumento diante da imensidão de pedestres. Daí o menino violinista de Peixinhos seguiu para a Espanha e só regressa a Pernambuco em visita a parentes e amigos. A Banda Sinfônica, coordenada na época pelo maestro Formiga e pelo professor José Amaro, nasceu na escola Jonas Taurino, em Peixinhos, periferia de Olinda. O lugar era chamado na vizinhança de “Escola Caranguejo”, porque só se podia chegar até ele metendo os pés na lama, vinda dos manguezais. O conjunto instrumental ainda existe e funciona no mesmo canto, porém, segundo Ademir Araújo, está sem condições de estimular a formação de novos talentos. Ele ilustra a situação narrando os reencontros com ex-alunos bem-sucedidos e lamentando não ter visto o recital de um deles, dia 25 de julho passado. O convite veio por telefone, do próprio pupilo de 30 anos atrás... Ademir Araújo contou que esse aluno, aos 13 anos, queria ser flautista da banda, mas não encontrou a vaga pretendida – então lhe deu uma clarineta e, sem querer, um problema. Isaac era muito franzino e tinha as mãos pequenas, por isso os dedos não alcançavam as chaves e mal davam para articular as notas sem sofrimento. Ao surgir uma vaga de oboísta, o professor aproveitou para corrigir a situação. Dirigiu-se ao garoto; este pediu de novo a flauta ou o flautim. “Olha, flauta e flautim não tem. Só tem vaga pra oboé”, ouviu resignado. Isaac Duarte aceitou aquele instrumento de nome curioso e som penetrante. Teve aulas com o fagotista João Caetano da Silva, Valdemiro Lima, Wascily Simões, João Johnson dos Santos e passou em concurso para a Sinfônica do Recife, em 1982, depois de um ano de estágio. A amizade com o clarinetista Ricardo Gatzmann, duplo cidadão suíço-brasileiro, rendeu-lhe uma chance para ingressar no Conservatório de Zurique em 1987. Como precisava de um pianista acompanhador no exame de admissão, Isaac ficou sabendo de Mônica Kato, que fora para a Suíça no mesmo período e com o mesmo objetivo dele.
Aprovado, Isaac tornou-se aluno de Peter Fuchs e foi contratado pela Orquestra AML, hoje Sinfônica de Lucerna. Junto com a paulistana Mônica, começou a fazer recitais e formou o Duo Pasárgada, por volta de 1994 – desse convívio a formarem um casal de fato foi questão de tempo. Com o sobrenome em comum, Mônica Kato Duarte sugeriu que o Pasárgada se chamasse DuoArte. Atualmente, o par mora em Wetzikon, a 25km de Zurique. Ele saiu da AML para integrar o quadro da Orquestra da Tonhalle de Zurique em 1990 e ela segue carreira de acompanhadora de lieder e professora. Nas últimas férias de meio de ano, o DuoArte apresentou-se em São Paulo e no Recife. O programa do recital de São Paulo, mais longo, incluiu arranjos de peças de Verdi, Pasculli e VillaLobos. Gravado em 1999, o CD Palheta Brasileira reúne obras de quatro compositores: o paraibano José Siqueira, o médico gaúcho Breno Blauth, o paulista Osvaldo Lacerda e Wascily Simões. Para o segundo disco, Palheta Brasileira 2, será inevitável a elaboração de outros arranjos para oboé e piano, pois no Brasil há poucas composições escritas nessa combinação. Quanto aos concertos, será uma tentativa de integrá-los ao repertório internacional, ao lado de Vivaldi, Ditters von Dittersdorf e dos compositores que Isaac considera desafiadores, não só no aspecto técnico: “Bach é difícil pelo fraseado e pelo estilo, mas nesse ponto eu diria que os concertos de Mozart e (Richard) Strauss são os mais difíceis, sem falar nas peças de vanguarda”. A idéia do Palheta Brasileira 2 está quase definida: evidenciar o oboé como um “cantor”. “A intenção é tentar montar um disco que tenha a ‘Bachianas Brasileiras nº 5’ como peça central. O ideal seria um álbum com canções,
O nome oboé vem do francês hautbois, justaposição de haut e bois (“o buá”), que significa instrumento alto, contralto das madeiras OUT 2007 • Continente x
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MÚSICA equipe da Continente ao Teatro de um ‘oboé cantado’. Estamos pensando, Santa Isabel, local da conversa com por exemplo, em incluir as ‘Cinco canPara o segundo disco, a reportagem. No chão de um corções populares do Ernani Braga’ .”Isaac “Palheta Brasileira redor, Isaac dava dicas de limpeza diz que a escolha de arranjos de can2”, será inevitável do oboé a outro oboísta no interções deve-se à rara ocorrência de peças valo de um ensaio da Sinfônica do originais como a “Sonata T. 14”, de Brea elaboração de Recife, com os três “companheiros no Blauth, que consta no primeiro CD: outros arranjos para de trabalho” acomodados na mo“Como o repertório oboístico brasileiro chila. A manhã estava destinada ao é limitado – se você for comparar com oboé e piano, pois bate-papo para esta matéria, que piano, violino, flauta, essa é uma das no Brasil há poucas incluía a sessão de fotos, e ao reenpoucas sonatas de porte para oboé”. composições escritas contro com colegas da Orquestra. O oboé descende dos aulos gregos e Em comum com o violinista Israel da medieval charamela. O musicólogo nessa combinação Guerra, amigo dos tempos da JoAlexandre Ribeiro, no livro Sobre os insnas Taurino, Isaac Duarte não se trumentos sinfônicos – e em torno deles, explica que o instrumento foi um aperfeiçoamento da adaptou ao primeiro instrumento, correu atrás de bons charamela, surgido na França do Seiscentos e estreado em mestres ao passar para o segundo e ganhou o mundo sem 1657, na ópera L’Amour malade, de Jean-Baptiste Lully. A (como é preocupação dos conterrâneos) perder as raízes. potência sonora do oboé barroco era maior do que em Ademir Araújo confirma essa espontaneidade e relembra nossos dias, graças ao tamanho da palheta; mesmo assim a primeira música que Isaac conseguira dedilhar, “Asa seu som amplo, anasalado e estável já o havia credenciado Branca”. O aluno se queixava: “O clarinete era muito largo, para servir de diapasão – instrumento afinador – dos de- eu tinha de abrir bastante os dedos para alcançar as chamais integrantes da orquestra. O nome oboé vem do fran- ves, mas ainda assim consegui tocar na banda, com muito esforço”. Em breve surgiria uma vaga para cês hautbois, justaposição de haut e bois (“ô buá”). Significa outro instrumento. Pena (ou sor“madeira alta”, ou mais propriamente “o instrumento te) que não foi para a sonhada alto/contralto das madeiras”, dado que o soprano flauta. • era a flauta. A palheta é um conjunto de duas lâminas de bambu paralelas, confeccionadas à mão, que são unidas por um cordão e encaixadas no tudel. Ao soprar-se a palheta, as lâminas batem uma contra a outra rapidamente e ocasionam a vibração do ar no interior do oboé. Muito popular no Barroco e de timbre mais fechado, o oboé d’amore possui tudel levemente curvo e pavilhão em forma de pêra. Voltou a ser requisitado na música moderna por Richard Strauss, na “Sinfonia doméstica”; Debussy, nas “Gigues”; e Ravel, no “Bolero”, onde é o quinto instrumento a executar solo. Isaac Duarte aproveitou a visita à terra natal para reservar algumas horas às escolas onde estudou, no intuito de orientar alunos e professores. Um flash dessa orienO DuoArte pretende lançar em breve o cd tação foi flagrado Palheta Brasileira 2 na chegada da 56 x Continente • OUT 2007
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O itinerário do Quinteto
Com mais de 30 anos na estrada, o Quinteto Violado mantém sua qualidade e diversidade musical, além de continuar seguindo o lema de ir aonde está o seu público José Teles
Imagens: Divulgação
O espetáculo Mané Gostoso é um trabalho do Quinteto junto com o Balé Stagium
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Quinteto Violado é o grupo brasileiro que mais leva a sério esta história do artista ir aonde o povo está. Nos anos 70, o ônibus no qual o QV viajava pelo país alcançou a impressionante marca de 1 milhão de quilômetros rodados. São 36 anos de estrada, mas o Quinteto não pára. No início de setembro, tinha agendadas apresentações do espetáculo Mané Gostoso com o Balé Stagium, em São Paulo, em Fortaleza, e na Síria. Em sua cidade natal, o Recife, o Quinteto faz bem menos espetáculos do que desejaria. Apresentou o Mané Gostoso no Teatro de Santa Isabel, em julho (e no Festival de Inverno de Garanhuns). Em agosto, no mesmo teatro, com o Sa Grama, prestou uma homenagem ao escritor
Hermilo Borba Filho, um dos maiores incentivadores do grupo no início de carreira: “O público recifense, quando tem oportunidade, valoriza o artista local. Há naturalmente um cuidado do Quinteto em não se exceder com apresentações locais. A agenda do grupo está muito voltada para o Brasil, mas todas as vezes em que se apresenta no Recife, tem casa lotada. Por outro lado, gostaríamos de ter um “ponto de encontro” com o público no Recife”, explica Marcelo Melo, o violonista do grupo. Este “ponto de encontro” é necessário pelo fato de a nova geração musical de Pernambuco, surgida e formada nos anos 90, tanto os consumidores quanto os que produzem música, ter voltado as costas para a OUT 2007 • Continente x
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O Quinteto Violado já lançou mais de 47 discos ao longo de sua carreira
geração dos anos 70, aos seus principais nomes: Geraldo Azevedo, Alceu Valença, e o Quinteto Violado. Isto se deve em grande parte à pouca exposição que seus discos, desde a última década, têm recebido na TV e rádios locais (embora eles mantenham um público cativo, capaz de, como disse Marcelo Melo, lotar as casas de shows, ou praças públicas, onde tocam): “ Concordamos com a pouca exposição, sobretudo nas rádios e TVs, principalmente nas rádios que recebem programação de fora e às quais não conseguimos ter acesso”, complementa Marcelo. Paradoxalmente, o grupo, ao longo da carreira, excursio França, com um repertório que enfatiza a poesia de Ascenso Ferreira. Em Portugal, gravou a Ópera do Bandoleiro, com o grupo Trigo Limpo, um disco inédito no Brasil, que canta a saga de dois bandidos, o brasileiro Lampião, e o luso Zeca do Telhado. Gravou com artistas de Cabo Verde. Ainda na efervescência do manguebeat, tentou mostrar que naquele caritó havia lugar para outras espécies de caranguejos, com o disco Farinha do mesmo saco, onde misturam “Coco dub” e “Macô” de Chico Science e Nação Zumbi, com “Pra ficar chique”, do Querosene Jacaré, “Ligação direta”, de Fred 04, com Jackson do Pandeiro, Djavan, Lenine e Caetano Veloso. Não foram bem-entendidos, provavelmente porque o disco não tocou no rádio: “A mudança e a atualização fazem parte da nossa trajetória. Para um grupo que surgiu no início dos anos 70, temos a preocupação de não nos afastar da proposta inicial. O nosso arranjo para “Asa Branca” mantém-se atual, como outras leituras da obra de Gonzaga e no contemporâneo, também de Chico Science. Esta é uma forma de não nos permitir envelhecer. Em geral, a nova geração passa a conhecer o QV através dos pais, que mostram os primeiros discos. Os que ouvem o trabalho atual se apaixonam, viram fãs e ainda reclamam da pouca presença na mídia”, volta o violonista Marcelo Melo. Ele e Toinho Alves são os dois únicos remanescentes da formação original do QV, que começou como uma empresa, cada integrante com sua cota. Foi provavelmente o primeiro grupo musical da época a adquirir um ônibus. Patrocinados pelo extinto Banco Nacional do Norte, o Quinteto Violado fez centenas de apresentações em lugares públicos, principalmente na década de 70. Eram shows concorridos porque então o grupo era também um dos grandes vendedores de discos do país. O LP de estréia, saído com selo da Phillips (atual Universal Music) emplacou vários sucessos. Pela primeira vez a ciranda, o cavalo-marinho, passaram a ser cantados Brasil afora. Em 1972, em matéria de capa, do caderno cultural do Jornal do Commercio, o QV era chamado, pelo crítico Medeiros Lins, de “Pop nordestino”. O grupo foi tão bem-sucedido, que fez surgir vários grupos com a mesma formação e repertório com ritmos regionais (aqui, no Recife, o que mais perto se aproximou do QV foi a Banda de Pau e Corda). ORIGEM – O embrião do Quinteto Violado pode ser rastreado em meados dos anos 60, quando havia no Recife uma efervescente movimentação bossa-novista, com vários combos de samba-jazz, nos moldes do Zimbo Trio. Marcelo Melo, Toinho Alves, Luciano Pimentel, Generino (primeiro flautista do Quinteto Violado, quando a banda ainda nem tinha nome, ele não chegou a gravar com o grupo) e Fernando Filizola faziam parte destes grupos (Filizola foi também roqueiro, companheiro de Reginaldo Rossi, no Silver Jets). Mas eles só se reuniriam no começo dos anos 70, no TVU-3, trio formado por Toinho Alves, Luciano Pimentel e Sérgio
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MÚSICA Kyrilos, para tocar na recém-inaugurada TV Universitária, então uma estação de TV modelo. Marcelo Melo havia voltado da França, onde participou da gravação do último disco de Geraldo Vandré, nas Terras do Benvirá, e chegou a acompanhar a cantora Francoise Hardy, uma das estrela do pop francês dos anos 60. Foi numa apresentação com Marcelo Melo e Fernando Filizola que Toinho Alves sentiu que o grupo poderia render muito mais do que faziam na TV Universitária. Sai Generino, e entra Alexandre Johnson, garoto prodígio de 13 anos, vindo de uma família com gerações de músicos (entre eles Jones Johnson, um dos formatadores do frevo) e formação erudita. Sando foi o primeiro membro original a sair, para a entrada de Zé da Flauta. Luciano Pimentel seria o segundo. Incentivado pelo percussionista Djalma Correa, ele se aventurou na carreira solo de percussionista, mas não foi bem-sucedido. Saíram Zé da Flauta e Fernando Filizola. Nos anos 80, o grupo sofreu várias modificações, até se firmar com os integrantes atuais: os citados Marcelo Melo (violão, viola) e Toinho Alves (baixo), mais Ciano Alves (flauta), Dudu Alves (teclados) e Roberto Medeiros (percussão). Valendo frisar que o Quinteto passou a ser praticamente uma empresa familiar, pois apenas Marcelo Melo não pertence à família Alves (Roberto Medeiros também tem o “Alves” no sobrenome). Além de gravações e shows, o grupo mantém, há 10 anos, a Fundação Quinteto Violado, que desenvolve vários projetos, sempre em torno da música: “Temos, por exemplo, o Cidadão das Artes, que visa capacitar jovens a trabalhar no mercado musical, isto como roadie, iluminador, técnico de som, é um projeto desenvolvido com a Secretaria de Ação Social do governo. Estamos para iniciar um seminário de capacitação de agentes culturais em territórios rurais”, enumera Marcelo Melo. Em São Paulo, na segunda semana de setembro, ele participou de reuniões com os dirigentes da organização SOS Mata Atlântica. A intenção é criar um projeto Cantos e Recantos da Mata Atlântica: “Ou seja, trabalhar os remanescentes dos povos que habitavam a Mata Atlântica, sempre com o viés da música”, explica Melo. É também da fundação, o Cantos do Semi-Árido, responsável pela descoberta da pifeira Zabé da Loca. Por fim, já concluído, está o projeto Som do São Francisco – quatro CDs registrando a música das populações ribeirinhas do baixo São Francisco. Os discos serão lançados, dia 6 de outubro, em Paulo Afonso. •
A formação atual do QV: Sentados: Marcelo Melo, Dudu Alves e Ciano Alves; De pé: Roberto Medeiros e Toinho Alves
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Babel musical Unindo as raízes pernambucanas às raízes modernas da América do Norte, o grupo Noise Viola, nos palcos desde 2003, lança CD homônimo que prima pela excelência Isabelle Câmara
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oise, em inglês, quer dizer “alarido”, “barulho”, “som”. Mas barulho é o que menos se ouve do “Noise Viola”, grupo de instrumentistas que surge quando se acredita que o pernambucano não tem mais para onde se reinventar musicalmente: o conjunto une as raízes africanas da América do Norte com as raízes pernambucanas e procura uma nova forma de modernidade – como experimentar e criar uma música tradicional onde caibam o improviso e mais um pouquinho? E o som que se ouve é a emoção criativa usada para transformar sentimentos em música. Formado hoje por Paulo Barros (violões), Fred Andrade (guitarra), Renato Monteiro (contrabaixo), Leonardo César (viola), Cacau e Rafael Santiago (percussão), o Noise Viola estreou em novembro de 2003 na Semana de Música do Conservatório Pernambucano, com uma outra formação (Fred Andrade, Breno Lira [viola e violões], Paulo Barros e Tomás Melo [percussão]) e com a proposta de fundir elementos da música popular pernambucana, como o frevo, xote, baião, maracatu e coco, com a música erudita, enfatizando os arranjos e improvisos para cordas. O resultado dessa miscelânea é uma música forte, original, espontânea, criativa, e carregada de sentimento – que consegue ser mundial, mas
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O grupo Noise Viola em apresentação no Teatro de Santa Isabel
preserva sua identidade regional sem ranços nem provincianismos. Uma música que transita pelo jazz, pelo rock progressivo, pela música impressionista e se ergue sobre a rapsódia, fantasia instrumental que utiliza temas e processos de composição improvisada tirados de cantos tradicionais ou populares de um determinado país. A rapsódia surgiu junto com o Romantismo, quando o poema perdeu a forma fixa, mas manteve o ritmo, os versos, as idéias e uma liberdade poética e musical que define as composições que não seguem uma estrutura fixa. O disco – Com os recursos do programa Funcultura, o disco do Noise prima pela excelência, configurando-se como um nobre produto pernambucano. São 12 faixas (das quais nove são autorais) que se sustentam nas escalas modais e revelam diversas aventuras histórico-poético-musicais. Nele, estão envolvidos Fred Andrade com sua guitarra limpa, porém não ao ponto de ani-
quilar o sentimento; Breno Lira com a viola que mantém um diálogo permanente com a guitarra – chamadas, respostas e ousados improvisos; Paulo Barros com a base firme no violão, que faz as vezes de um contrabaixo; e Tomás Melo que dita a pulsação, preenchendo os compassos com efeitos percussivos eruditos – batuques não tão distantes, mas raramente lembrados. O disco conta também com a participação de músicos convidados em algumas faixas, como Ebel Perrelli (bateria), Bozó (violão sete cordas), Cláudio Negrão (baixolão); e Passarinho Gomes (pandeiro), dentre outros. A faixa de abertura, “Primeira Pá de Cal”, é um prelúdio em violão tenor que se sustenta nas melodias das músicas populares européia, pernambucana e da Idade Média. Em “Música Feia” – a própria rejeição dos formalismos e da linearidade – vemos o caráter introspectivo e híbrido do grupo no mais alto patamar, com um toque do impressionismo de Debussy em cordas rasqueadas e dissonantes. “São Jorge Só Tem Um” caminha por várias melodias: sai de um lamento, vai para o baião e termina numa ciranda. E na leitura de “Nino, O Pernambuquinho”, do maestro Duda, é visível a sobriedade dos músicos no frevo, com direito a belos improvisos por cima de uma rica base harmônica. O frevo também dá seus passos em “Lídio Macacão”, de forma empolgante e surpreendente. Em tom armorial, “Espelho Cego” revela a mágica de associar sons às imagens. Talvez a mais impressionista de todas as faixas, ela fala das pessoas que não conseguem se enxergar, “de quem mesmo olhando diretamente na frente do espelho não consegue se encontrar”, como revela Fred Andrade. “Baião de Dois” é exatamente como a comida típica cearense: a dialogia entre o rock e o baião. Já “Vou sonhar mais um pouquinho que é pra dar tempo de você ver” passeia pelo maracatu e é a descrição em si mesma. Mimetismo, mistura, mescla, diálogo (e por que não dizer debate?) Noise Viola mosaico, fusão, ebulição. E também NoiseViola, alumbramento, verdade, despreocuindependente, pação com tendências, brincadeiras, R$ 25,00 ausência de estruturas fixas. Todas essas palavras são válidas para se definir o Noise Viola, pois rapsódia é exatamente isso: a possibilidade de agregar com naturalidade vários modos de expressão musical, de maneira a criar algo novo, liberto. E isso, definitivamente, é encontrado nesse grupo: fantasia instrumental em estado de graça. • OUT 2007 • Continente x
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MÚSICA
Marlos Nobre: vida e obra
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Buscando semelhanças com escritores oncedido desde 1996 pela FunMarlos Nobre como García Márquez e Vargas Llosa, Todación Autor, o prêmio Tomás El Sonido del más Marco justifica o título do estudo: Luís de Victoria agracia, anualRealismo Mágico Tomás Marco, “Marlos Nobre me parece um excelente mente, um compositor ibero-ameriFundación Autor, 222p exemplo do realismo mágico aplicado à cano pelo conjunto de sua obra. Em + CD encarte. R$ 60,00. música. Realismo porque não renuncia 2005, na sexta edição, Marlos Nobre mnedition@uol.com.br aos elementos próprios nem às novas lintornou-se o primeiro brasileiro eleito guagens; mágico porque transfigura a matée a Fundación Autor promoveu então a publicação de Marlos Nobre – El Sonido del Realismo ria americana e a converte em uma mensagem poética Mágico. A dissertação – que inclui esboço biográfico, de extraordinária grandeza e de grande capacidade de análise de obras, de linguagem, de pensamento, estilo e multiformidade”. Uma seleção sonora em CD, feita pelo atualização de catalogação e discografia – foi incumbida próprio Marlos Nobre, acompanha o livro. Entre as ao espanhol Tomás Marco, também compositor. Distan- peças, estão: “Yanomami op. 47”, para tenor, coro te da mera citação e dos comentários pontuais, o autor misto e violão, “Tango op. 61” e “Frevo op. 43”, situa a obra de Marlos Nobre na música contemporâ- para piano, e “Passacaglia op. nea e se aprofunda em capítulos sobre peças pianísticas, 84” para orquestra, vocais, violonísticas, orquestrais, para percussão, de câ- que deu origem ao mara e para balé e cinema. Peca no entanto por errar a balé Saga Marista. grafia de vários nomes em português. (Carlos Eduardo Amaral)
> Carlos Gomes, além de O Guarani
> O piano de Guerra Peixe
> Vozes sagradas e contemporâneas
> Alma brasileira em segunda edição
É uma aposta bastante válida pensar que a atmosfera exótica de O Guarani tenha, ao mesmo tempo, projetado o nome de Carlos Gomes logo na estréia de sua primeira ópera escrita na Itália e causado o desinteresse posterior por dramas que ele mesmo julgara mais consistentes, como Fosca. Então, eis um CD, infelizmente de curta duração, com oito cenas que nada remetem à história de Peri e Ceci. São árias, duetos e coros de Fosca, Salvador Rosa, Maria Tudor e de Colombo (nomeado “poema vocalsinfônico”); ainda há o belo noturno orquestral de Condor. A interpretação é do Coro e da Sinfônica da Escola de Música da UFRJ, regida por Ernani Aguiar. Os solistas: Carol McDavit, Fernando Portari, Inácio de Nonno e Maurício Luz. (CEA)
Há várias décadas, as peças para piano solo de Guerra Peixe não despertavam a menor atenção dos intérpretes que tomavam conhecimento delas. Isso, aqui no Brasil. Então, Midori Maeshiro, japonesa radicada no Rio de Janeiro, resgatou as partituras das duas Sonatas, das duas Sonatinas e das Valsas nº 2 e 3 e teve acesso a várias anotações de pesquisas de campo do compositor. Os manuscritos e apostilas datilografadas contêm observações únicas sobre os gêneros de música popular que serviram de base às obras e impeliram Maeshiro (que domina o português) a se aprofundar na pesquisa. Típico da disciplina nipônica, a pianista atribuiu-se a tarefa de assistir a apresentações de música folclórica a fim de se familiarizar com a multiplicidade de manifestações e corresponder com uma convincente execução. (CEA)
Prestes a completar 10 anos e dono de uma confortável versatilidade de interpretação, o Sacra Vox ampliou seu repertório ao ponto de dar conta da música barroca à hodierna com ame smas ubstancialidade.M as, para o primeiro disco, delimitou de modo extremamente claro o seu foco de atuação, tal qual diz o subtítulo (“Músicac orals acrac ontemporânea brasileira”). Assim, o grupo vocal de câmara encontrou um modo de prestigiar e divulgar as peças de compositores com os quais convive no cotidiano da Escola de Música da UFRJ, de onde surgiu. Entre eles: Rodrigo Cichelli, Julio César Fioravante, Jorge Armando e Pauxy Nunes. Destaque para a "Missa brevis II" de Ernani Aguiar e "Atalanta fugiens", de Eduardo Biato. (CEA)
O segundo CD da série Música brasileira no tempo, gravado pela Orquestra Sinfônica Nacional da Universidade Federal Fluminense, contém composições que abrangem de 1913 a fins da década de 20, diretamente marcadas pela I Guerra Mundial e pela Semana de Arte Moderna. As peças contemplam os célebres Villa-Lobos ("Choros nº 5" e "nº 10"), Lorenzo Fernandez ("Suíte reisado do pastoreio") e Francisco Mignone (Caramuru, poema sinfônico), mas também os quase esquecidos Francisco Braga ("A paz" e "Cortejo" para coro e orquestra), Glauco Velásquez ("Alma minha gentil") e LucianoG allet(" Tango-Batuque"). À frente da OSN, a maestrina Ligia Amadio; ao piano, no "Choros nº 5", Luiz Carlos de Moura Castro. (CEA)
Guerra Peixe – Midori Maeshiro Maeshiro, ABM Digital Preço: R$ 20,00.
Sacra Vox UFRJ Música, Preço médio: R$ 25,00.
Alma brasileira, Produção independente Preço médio: R$ 25,00
Carlos Gomes Cortina Lírica UFRJ Música Preço médio: R$ 25,00
sacravox@ig.com.br
vendas@abmusica.org.br
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MÚSICA
Pastoril profano em CD
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pastoril, encenação que representa a visita dos pastores ao menino Jesus, surgiu na Península Ibérica e manteve uma relação estreita com as tradições da Igreja Católica. No Brasil, alguns grupos acrescentaram aspectos jocosos e obscenos, consolidando, assim, o pastoril profano, ou pastoril de ponta-de-rua. Com o objetivo de documentar esse tradicional folguedo popular do Nordeste, surgiu o projeto Antologia do Pastoril Profano, que reúne em CD e CD-ROM, 13 músicas, vídeos, bibliografia, discografia, fotografias. No repertório, estão seus principais clássicos, com canções de domínio público e outras de autoria de artistas como o Velho Xaveco, um dos principais intérpretes e homenageados. O projeto tem direção musical de Walmir Chagas e Beto do Bandolim e conta com a participação de Silvério Pessoa e Alessandra Leão, que cantam o popular “Casamento da Pastora”, Reinaldo Oliveira,
Josildo Sá, Arlindo dos 8 baixos e Jeison Wallace (Cinderela), entre outros. No CD-ROM, estão registradas as publicações sobre o tema, vídeos feitos pelo cineasta Fernando Peres, com imagens inéditas dos velhos, sem falar na seção "Artistas", que reproduz obras de Corbiniano, Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Bajado (capa), todas com o tema do pastoril. Um documento detalhado e bem cuidado sobre esse folguedo tão tradicional na região.
> Clara Sandroni entre as estrelas
> Gaita inspirada presta homenagem
> Vitalidade afro em Cacau Brasil
> Tributo a um mestre do blues
Depois de quase 20 anos sem gravar um trabalho solo, a intérprete carioca Clara Sandroni lança agora seu mais novo CD, depois de quase seis anos de produção. Em Cassiopéia (nome inspirado em uma constelação de 30 estrelas), ela resgata algumas canções que sempre quis gravar, de compositores que sempre fizeram parte do seu repertório como Chico Buarque, Milton Nascimento, Silvio Rodrigues, Carlos Sandroni e também compositores contemporâneos que nunca tinha gravado. Com sua voz doce, Clara Sandroni arrisca-se no violão e divide o vocal com convidados em alguns faixas. O resultado é um CD eclético, mas extremamente romântico. Na canção “Música”, a carioca revela o trabalho da compositora pernambucana Maria Olívia.
Declaradamente inspirado no universo do forró e da música nordestina, Arapuca, novo trabalho do gaitista brasiliense, radicado no Rio de Janeiro, Gabriel Grossi, é uma homenagem a dois ídolos do artista: Hermeto Pascoal e Sivuca, referências na sua formação de instrumentista e compositor. Grossi explora todos os limites da gaita cromática, instrumento que permite a execução melódica de composições em qualquer tonalidade, passeando por vários gêneros da música brasileira. Entre as canções estão quatro do próprio Gabriel Grossi, uma do produtor do CD, Daniel Santiago, além de “Festa em Olinda”, de Toninho Horta, “Sete anéis”, de Egberto Gismonti, “Forró da Penha”, de João Lyra, e “Spock na Escada”, de Hermeto Pascoal.
Já na primeira faixa do seu novo CD, Imaginário, o cantor e compositor Cacau Brasil evoca o candomblé, a capoeira, o samba, o maracatu e a serenata, deixando clara toda a diversidade do seu trabalho. “Apito do Trem” é uma fusão de sons, fortemente marcada pela vitalidade afro, com uma intensa percussão, característica dos trabalhos desse mineiro, radicado no Ceará. É dentro dessa amplitude de ritmos que Cacau Brasil imprime uma cara “glocal” aos seus trabalhos, deixando o provincianismo e o cosmopolitismo excessivos de lado, sobretudo neste quarto disco. Entre seus principais parceiros está o pernambucano Alceu Valença, que participa do CD soltando a voz na faixa “Sonhei de cara”, uma canção dançante com claras inspirações no xote.
Comemorando 20 anos de carreira, o Blues Etílicos, banda de maior tempo de estrada nesse segmento no Brasil, lança seu mais recente CD, em que presta um tributo ao mestre do blues e grande inspirador da banda, McKinley Morganfield, mais conhecido como Muddy Waters, nascido no Mississipi e cujo estilo influenciou músicos como Jimi Hendrix, Santana, Rolling Stones e muitos outros. A banda é formada por Greg Wilson na voz e guitarra, Cláudio Bedran no baixo, Pedro Strasser na bateria, o irriqueto Otávio Rocha, que não pára um momento sequer de tirar solos de sua guitarra e Flávio Guimarães em grande fase, com um arsenal de notas quase infinito em sua gaita impecável. (LA)
Cassiopéia Clara Sandroni, independente R$ 25,00.
Arapuca Gabriel Grossi, Delira Música R$ 26,90.
Antologia do Pastoril Profano Independente R$ 25,00 sambadacom@gmail.com
Imaginário Cacau Brasil, Toca Brasil R$ 18,00.
Viva Muddy Waters Blues Etílicos Delira blues R$ 26,90. www.deliramusica.com
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
Superstições à mesa “Ainda o pomar em volta com suas interdições para todos os moleques: manga de noite é veneno; abacate dá sezões; goiaba, dor de barriga; jaca-mole, hidropisia; para morrer de repente, talhada de melancia”. (“Cantiga do Engenho Cavalcanti”, Mauro Mota)
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uperstição é mesmo crença sem lógica. Vem do latim superstitio – “excessivo receio dos deuses”. Para Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro), “participa da própria essência intelectual do homem, e não há momento na história do mundo sem sua inevitável presença”. E, para Voltaire, era como se fosse “a filha muito maluca de uma mãe muito sábia” (la fille très folle d’une mère très sage). Seja, então. E são muitos os que padecem desse mal. “Era supersticioso Napoleão e era também Bismarck. É livre de toda superstição qualquer jumento, o que prova que a liberdade do espírito não é incompatível com o comprimento das orelhas”, escreveu, em Lisboa, Carlos Cirilo Machado, (De Rebus Pluribus, 1923). De Portugal nos vieram muitas dessas superstições. Como não passar debaixo de escada; ou se livrar de espelho quebrado; ou correr de gato preto. Ter medo do número 13, também. Sobretudo quando o dia cai numa sexta-feira. Como há sempre uma explicação por trás de toda crença, a versão é reforçada apenas pela coincidência de fatos. Jesus foi crucificado numa sexta-feira 13. Em outra sexta-feira 13 (outubro de 1307),
a Ordem dos Templários foi declarada ilegal pelo rei Filipe IV, da França. Seus membros acabaram presos, torturados e executados. Santo Antônio, em outro 13 (junho de 1231), pronunciou suas últimas palavras “estou vendo o meu Senhor”, e as crianças gritaram pelas ruas “morreu o santo, morreu o santo”. O Papa João Paulo II foi baleado também num dia 13 (maio de 1981). O número foi ficando marcado. Na Europa e nos Estados Unidos, não aparece nas poltronas de teatro, no andar de hotéis e de hospitais. Nos carros de corrida foi também abolido – desde que Lorenzo Bandini, numa Ferrari 13, morreu carbonizado no Grande Prêmio de Mônaco (1967). Sem esquecer que, durante o regime militar, o AI-5 foi decretado também numa sexta-feira 13 (dezembro de 1968), fechando o Congresso Nacional, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores. E o AI-13 (5 de dezembro de 1969) endureceu ainda mais o regime militar – institucionalizando a expulsão de qualquer cidadão que se opusesse ao regime. Na culinária, esse número 13 é também complicado. Tanto que nunca devem sentar, numa mesma mesa, 13 pessoas. Por terem sido 13 os que participaram da Última Ceia – Jesus e mais 12 apóstolos. Um deles, Judas, nessa mesma noite vendeu seu Mestre e se enforcou numa figueira, atormentado pelo peso da traição. Nossos índios, em suas mesas, tinham superstições diferentes. Apenas evitavam comer os animais totens – aqueles que lhes protegiam. Mas isso ocorria apenas em algumas tribos, que os “orizes, botucudos da Bahia, comiam a acauã a quem prestavam culto”, segundo Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil). Já escravos africanos não deixavam restos de comida no prato nem ossos com carne,
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Algumas crenças curiosamente surgiram só da tentativa do colonizador português em ensinar bons hábitos à mesa – como nunca dizer nome feio, sentar sem camisa ou usar chapéu
J. B. Debret , Voyage Pittoresque... Paris,1853
para que não fossem aproveitadas por espíritos atormentados. Algumas dessas crenças curiosamente surgiram só da tentativa do colonizador português em ensinar bons hábitos à mesa – como nunca dizer nome feio, sentar sem camisa ou usar chapéu. Nem comer em pé, porque “a comida não assenta”. Nem cantar à mesa, pois “quem come cantando, morre chorando”. Mas as superstições à mesa não param por aí. Nunca se deve passar saleiro diretamente para a mão de quem pediu. Que dá azar. Nem comer o primeiro ou o último bocado. Que fará mal. Nem deixar ninguém beber o resto do copo. Que revelará todos os seus segredos. Pratos, pegar sempre com a mão direita. E devolver com a esquerda, para trazer fartura à mesa. Quando cair um talher, é que chegará visita – se for garfo, homem; se colher, mulher. Vinho derramado é alegria. Sal, na toalha, é mau agouro; e dinheiro, miséria. Farinha no chão é sinal de progresso. Não cumprir esses rituais, segundo
a crença popular daqueles primeiros tempos, seria grande ofensa ao Anjo da Guarda – que estava presente em todas as refeições. E donzelas, bom lembrar, não devem servir sal, passar o paliteiro ou cortar galinha. Se estiver menstruada, as claras batidas do ovo não crescem. Com as grávidas acontece o contrário, crescem e muito. Cumprindo lembrar às que estejam grávidas que, se por acaso comerem banana-gêmea, terão grandes chances de ter gêmeos também. E se tiverem problemas de pele, caso comam planta que enrame, a enfermidade se alastra (como a própria rama). Há superstições, também, em outros hábitos alimentares. Como o de acender o fogo, no tempo em que fogões eram ainda todos a lenha, claro. Se esse fogo demorar a pegar, nunca praguejar – que isso atrai os maus espíritos. Nunca acender com papel, que a comida ficará sem gosto. E, se começar a sair faísca, é bom jogar alho – para mandar embora os maus espíritos. Na hora de apagar o OUT 2007 • Continente x
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receita
Compota de frutas secas (que frutas secas trazem sorte, segundo superstição que nos vem dos antigos gregos e romanos) INGREDIENTEs
PREPARO
3 200 g de damascos secos
3 Passe todas as frutas secas na água. Coloque tudo em panela grande.
3 200 g de maçãs secas 3 200 g de passas sem caroço 3 2 paus de canela 3 5 cravos 3 Um pedacinho de gengibre fresco sem casca 3 100ml de mel 3 1 e ½ litro de água
3 Junte o mel e a água. Junte também canela, cravo e gengibre (amarrados em um saquinho de gaze). 3 Deixe ferver e abaixe o fogo. Cozinhe até que as frutas fiquem bem macias. 3 Retire o saquinho das especiarias, despeje a compota em uma tigela e pode servir.
fogo, nunca usar água, nem pisar nas brasas – por conta das dificuldades que se terá em acendê-lo novamente. E se receber em casa alguma visita inoportuna, jogue sal no fogo. Segundo os entendidos, com certeza ele vai logo embora. Na hora de cozinhar, sugerem-se alguns cuidados. A comida deve ser sempre mexida em uma única direção e por uma única pessoa – para que não fique sem gosto. Não usar faca para misturar a comida na panela – que “fará mal a quem comer”. Não deixar nunca a colher dentro da panela, nem descansando na borda – que altera o ponto de cozimento. Nem bater com ela na borda da panela – que desanda (perde o ponto). E quando uma mesma panela queimar a comida várias vezes, é que “ficou viciada”. Melhor então colocá-la de lado. Algumas dessas superstições referem a mistura de comidas diferentes, ou de bebidas com comidas. Horácio, um dos maiores poetas da Roma antiga (65 a.C. – 8 a.C.), em seu Sermonum liber Secundus (Sátira II), já aconselhava não misturar os alimentos. Alertando para os problemas de saúde que poderiam acontecer a quem insistisse. O Visconde de Seabra (1799–1895), em Portugal, também, dava conselhos em versos (sem nenhuma inspiração). “Se envolveres o cozido, o assado,/ E com os tordos o marisco a um tempo/ Tudo o que tem de bom se muda em bílis,/ E mover-te-á no estômago alborotos.” Por aqui não é diferente. Aprendemos a não misturar nunca cachaça com leite – que “talha dentro do organismo”; nem com banana, farinha, manga, melancia e ovos duros – porque “empanturra, empacha”. Leite misturado com banana-anã, jaca, manga e pinha – “é veneno puro”. E, depois de peixe – “não escapa com vida”. Tem até ditado, em Portugal, que diz:
“depois de peixe, mal é leite”. Nem mesmo a inocente água está livre de superstições. Depois de coalhada, dá “hidropisia”; de café quente, “estupor”; de pinha, “hepatite”; de melancia, “febre”. Mas perigo mesmo, é depois de “comida de azeite”, segundo muitos baianos. As superstições mais comuns referem o excesso nas comidas. Que provocam males, de todo tipo. Muito açúcar, por exemplo, dá “lombrigas”; cana chupada, “blenorragia”; coco, “tosse”; farinha seca, “dor no fígado”; jaca dura, “enfartamento”; laranjas, “feridas”; manga, “coceiras e brotoejas”; manteiga, “diminui a inteligência”; melancia, “esquentamento”; pepino, “indigestão”; peixe de couro, “doenças de pele”; pitombas, “oclusão”; queijo, “prejudica a memória”; umbu dá “diarréia”; e engolir muito caroço de limão dá “fome canina”. Sem contar que dormir, ou tomar banho depois das refeições, “interrompe o trabalho do estômago”. Principalmente se for feijoada, sarapatel, buchada ou mão de vaca. Banho é um capítulo à parte. Os portugueses que aqui chegaram ficavam horrorizados ao ver nossos índios pulando nos rios, depois de comer. Apesar disso, certo é que tomar banho ou dormir não traz problema algum. O que não se deve fazer é exercício intenso – que dificultará a digestão, provocando enjôo, suor frio ou tontura. Por via das dúvidas, leitor amigo, melhor se proteger. A próxima sexta-feira 13 será em julho de 2008. E, nele, poderá acontecer de tudo. Por isso, recomenda-se usar figa, ferradura, pé de coelho, trevo de quatro folhas, ramos de arruda e de alecrim. Para completar, bater na madeira e tomar banho com sal grosso. Claro, todos sabemos que nada disso tem fundamento científico. É só superstição. Mas, pelo sim pelo não ... •
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As desleituras machadianas
TESES
Na obra de Machado de Assis, a análise do Brasil, do brasileiro e de suas particularidades, na verdade, é decorrência de um estudo muito mais amplo sobre o Homem e sua psicologia universal Eduardo França
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Arquivo CEPE
em dúvida, o Brasil está presente na obra de Machado de tal forma que não podemos considerar inócua ou obsoleta qualquer tentativa de interpretação sociológica ou antropológica de sua obra. No entanto, devemos ter plena consciência de que seu projeto não era nacionalista, ou de denúncia ideológica, mas absolutamente estético. Tomando emprestadas as palavras de Nabuco, o palco de Machado era o mundo e não somente o Brasil. Seu sistema literário era o ocidental e não exclusivamente, ou principalmente, o nacional. A tocha que Machado recebeu (como quer chamar Antonio Candido), menos veio de Macedo, Manuel Antônio ou Alencar e mais de Sterne, Cervantes e Swift.
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A crítica literária – e por que também não a teoria – brasileira vem sofrendo durante seu percurso um duro prejuízo decorrente de sua forte perspectiva sociológica. De forma geral, essa perspectiva tem a mania de um nacionalismo literário que, sempre tentando ressaltar (desnecessariamente) uma espécie de nacionalidade da obra de Machado, acaba relegando ao segundo plano aspectos fundamentais da sua retórica e ficcionalidade. Definitivamente, já é hora de admitirmos que não é possível concebermos o nascimento do narrador das Memórias Póstumas simplesmente a partir do contexto social brasileiro do século 19. Parafraseando Sergio Paulo Rouanet, Machado de Assis não é um mestre na periferia do capitalismo: é um mestre, e ponto final. Porém, não sejamos totalmente injustos com os críticos literários. Os próprios escritores (iberoamericanos), de forma geral, durante o século 19, também sofreram desse mesmo mal "históricorealista-nacionalista". Segundo Carlos Fuentes, eles buscaram fazer um romance facundo. Isto é, uma prosa que tinha como principal tema a conjunção da identidade nacional com a história. O romance do século 19, segundo Fuentes, pregava a análise social, a fotografia da terra, o retrato do caudilho e o monumento da língua. Schwarz defendeu uma leitura sociológica da literatura machadiana Eis que surge Machado de Assis, um verlonge eu iria fazer uma visita”. Caro leitor, certamente dadeiro milagre literário. O bruxo do Cosme Velho é diria Machado, sejas mais atento. Releia as Memórias, e, um hiato, não somente na literatura brasileira ou iberodesta vez, não esqueças do prólogo. americana, mas na literatura ocidental. Foi ele quem na Cada leitor deve ficar à vontade para ler qualquer livirada do século 19 para o século 20 resgatou a tradição vro com bem entender, inclusive reduzindo o seu valor legada por Cervantes e Sterne; a tradição do tributo à literário à legitimação de leituras sociológicas (como faz ficção e à fantasia. E isso se deu somente porque ele foi Schwarz) ou históricas (como faz John Gledson). Concapaz de conciliar sem compromissos ideológicos e natudo, vale lembrar que foi o próprio Machado quem cionalistas a tradição com a modernidade. A corrente afirmou ser a arte a única coisa que tem seu fim em si crítica (mais especificamente o pensamento de Roberto mesma. Daí ela não ter contrato firmado com a históSchwarz) que desde a década de 70 se instituiu entre os ria, com a nacionalidade, com a legitimação ou com a estudos machadianos quase como um dogma, parece contestação do que quer que seja. Sua única obrigação fazer vista grossa – ou como diriam os psicanalistas, é para como leitor. denegarem – o fato do próprio Machado textualmente Ao mesmo tempo em que As Memórias Póstumas declarar no prólogo d'As Memórias Póstumas de onde de Brás Cubas é um brinde ao estatuto ficcional, é tamveio a forma do seu romance e a volubilidade de seu bém, e acima de tudo, uma divertida lição de como se narrador. Permitam-me, em tom de brincadeira-séria, pode brincar com as palavras. Machado escreveu uma ser machadiano por um breve momento: Ora leitor, não obra transparente, na qual desde o início sua filiação sejas obtuso ou ignaro, não lembras que foi o próprio é anunciada e seus estratagemas retóricos se autoiroMachado quem assumiu ter escrito seu romance “a fornizam. Se é possível estabelecermos alguma relação ma livre de um Sterne”? E que Sterne, por sua vez, no entre a volubilidade do seu narrador e algum referente Tristram Shandy, declarou que tomou a forma “do inque não seja a própria Retórica, essa não seria com o comparável cavaleiro de La Mancha, a quem seja dito de descompasso ideológico nacional, mas com a volubipassagem, eu amo mais a despeito de todas as sandices, lidade (universal) do espírito humano que, tal como a do que ao maior herói da Antiguidade e por que mais 68 Continente • OUT 2007
FLIP/Divulgação
TESES
narrativa de empreendida por Brás, é volúvel e caprichosa. Sterne e Machado, através de suas narrativas, demonstram não estarem acorrentados ao dever de denúncia social ou da retratação local. Suas obras permanecem universais e vigorosas, pois até hoje nos transmitem, sem descuidar da forma e cair no sociologismo ou psicologismo, a constante mutabilidade do espírito humano. Machado, certamente influenciado por Montaigne, acredita na indefinição psicológica do indivíduo, na contradição inevitável das nossas ações e na impossibilidade de nos mantermos os mesmos por um simples segundo. Por isso, ao lermos Montaigne afirmando que “quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado”, sabemos que tanto isso poderia ser atribuído ao espírito incerto de Brás e Tristram, quanto à narrativa digressiva e volúvel d'As Memórias Póstumas de Brás Cubas e d’A vida e Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy. Neste momento, algum crítico sócio-histórico-realista-culturalista deve estar nos acusando de classificar As Memórias Póstumas como um romance abstratamente ocidental e sem qualquer laço com o Brasil ou sua tradição literária. Não é o caso. Pois o que nos faz considerar a obra de Machado um clássico universal, e por conseqüência brasileiro, é que sua inserção na tradição literária tupiniquim se daria principalmente por ele ser capaz de parodiar a estrutura formal da Sátira Menipéia e dos humoristas ingleses, ao mesmo tempo em que as articula a notas locais, sem que essas sejam determinantes para a forma de sua ficção. Este processo é apenas um dos indícios que nos levam a crer que, na obra de Machado de Assis, a análise do Brasil, do brasileiro e de suas particularidades, na verdade é decorrência de um estudo muito mais amplo. Estudo esse sobre o Homem e sua psicologia universal. •
Imagens: Reprodução
TESES
O retrato de Machado de Assis, por Henrique Bernadelli (1905)
Fac-símile da folha de rosto da obra de Sterne
Machado não estava acorrentado ao dever de denúncia social ou da retratação local. Suas obras nos transmitem, sem descuidar da forma e cair no sociologismo ou psicologismo, a constante mutabilidade do espírito humano
Reginaldo Faria interpretando Brás Cubas, no cinema OUT 2007 • Continente
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Marc Coudrais/Divulgação
TEATRO CÊNICAS
A Cia. Mathilde Monnier vem da França e apresentará o espetáculo Tempo 76
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CÊNICAS
Festival consolidado O cearense Ernesto Gadelha chega, pela segunda vez, à curadoria do Festival de Dança do Recife, trabalhando para que o evento seja um projeto contínuo Christianne Galdino
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urante mais de 10 dias de múltiplas atividades (11 a 21 de outubro), o Recife se converte literalmente em palco da dança. Já em sua décima segunda edição, o Festival de Dança do Recife vem construindo um perfil que prioriza a diversidade e não abre mão da descentralização e das ações formativas, iniciadas antes mesmo da mostra de espetáculos. “Não existe um tema pré-definido, mas, sim, um eixo-temático que surge dos próprios trabalhos inscritos, da demanda, das questões que a própria cena coloca”, explica o coordenador-geral do festival, Arnaldo Siqueira. Para ele, este é um ano de consolidação do formato, ampliação das ações e maior internacionalização. Desde 2005, o Festival de Dança do Recife faz parte do Circuito Brasileiro dos Festivais Internacionais de Dança, e isto facilitou a vinda de renomadas companhias internacionais. Serão mostrados trabalhos de cinco países, entre eles a Alemanha, a Argentina e a França, que terá a Cia. Mathilde Monnier apresentando Tempo 76, sua mais nova produção. Esta fatia “estrangeira”, porém, não diminui a participação das companhias nacionais e locais, que têm lugar garantido na programação dos teatros municipais e outros espaços, que também serão palco do XII Festival de Dança do Recife (ver programação completa no site www.recife.pe.gov.br). OUT 2007 • Continente
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CÊNICAS A turma da ONG Alpendre, liderada pelo documentarista Alexandre Veras, vem ministrar pela segunda vez consecutiva um curso de videodança no festival. Outras ações de formação acontecem também no Nascedouro de Peixinhos; no Ginásio Geraldão; na praia de Boa Viagem; na Universidade Federal de Pernambuco; na Escola Estadual Assis Chateubriand, em Brasília Teimosa, e no Parque Treze de Maio – locais que recebem ainda performances, intervenções urbanas, mostras de videodança e lançamento de livros da área, espalhando dança em todos os cantos da cidade. Com evidentes preocupações de aproximar teoria e prática e diminuir o hiato entre quem faz e quem pensa a dança, os organizadores do festival incluíram em sua pauta de prioridades duas mesas-redondas, em torno das proposições: Dança e Memória e Corpo Dançante. E decidiram continuar apostando no diálogo entre público e criadores, mantendo a realização do Dança Falada, um encontro para propiciar contato direto dos espectadores com os autores das obras coreográficas. Em uma edição marcada pela continuidade, o festival repete também seu curador. Esta difícil tarefa está novamente nas mãos do cearense Ernesto Gadelha. “No início, eu tive dificuldade em aceitar o convite, por saber que o Recife tinha uma cena de dança complexa, com alguns conflitos fortes. Depois, encarei como um desafio, como
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A história do curador – Natural de Fortaleza, Ernesto já tinha mais de 20 anos quando se rendeu à dança, o que é considerado um início tardio. O começo da carreira foi Imagens: Divulgação
Preto no Branco, espetáculo do grupo ArteFolia, participa do evento
uma possibilidade de tentar propor algo que pudesse vir ao encontro de algumas demandas dos artistas locais e também colocar questões para esta cena, com a qual direta ou indiretamente eu já tinha alguma aproximação”, conta Gadelha. Mas esta é uma função complicada, principalmente em um país plural como o Brasil, onde são raras as faculdades de dança e não há nenhum curso específico de curadoria. Intuitivamente a própria cena de cada lugar foi construindo o perfil ideal de um curador e, mesmo resguardando as diferenças geográficas e culturais, todos concordam em um ponto: para assumir este papel, a pessoa tem que conhecer bastante o assunto, neste caso, a dança. E, de preferência, transitar com propriedade por várias linguagens da mesma. Talvez a trajetória profissional de Ernesto Gadelha possa justificar o saldo de acertos que, agora, no segundo ano consecutivo de trabalho e mais próximo ainda da cena recifense de dança, ele só tende a aumentar. Conhecer alguns capítulos da sua história pode ajudar a entender os pensamentos que estão por trás das suas escolhas.
CÊNICAS na Costa Rica, além de ter em 1983, na sua cidade natal, mas atuado como professor em no ano seguinte embarcou para vários países da Europa e Campinas, já na condição de estaem Israel. giário do corpo de baile da Escola Depois de mais de 10 Lina Penteado, onde permaneceria anos de “ciganices” munpor três anos, saindo de lá como do afora, pelo caminho da principal solista da companhia. “Já pedagogia, ele acabou se iniciei minha carreira com o privilétornando gestor em dangio de receber salário para aprender ça, primeiro do Colégio de a dançar. Por conta da proximidade Dança de Fortaleza, depois da capital paulista e das freqüentes do Curso de Habilitação ofertas vindas de lá, Lina pagava os Profissional de Técnico rapazes do corpo de baile na tentaem Dança, e por último na tiva de mantê-los em Campinas”, função de coordenador de recorda. Mesmo com este cuidado dança do Centro Dragão da dona da escola, a vida levou-o do Mar de Arte e Cultunaturalmente ao elenco do Balé da ra. Paralelamente a isto, Cidade de São Paulo que na época experimentava-se como trabalhava basicamente com um curador, fazendo parte da repertório neoclássico, todo pauta- Gadelha é curador pelo segundo ano consecutivo equipe que programava a do na técnica da dança clássica com Bienal de Dança do Ceará e coordenando o I Festival pequenas inserções de dança moderna. de Dança do Litoral Oeste. Com toda essa bagagem, e “A veia cigana que todo cearense tem acabou me muita vontade de se aproximar, de contribuir, Ernesto levando a aventurar uma possível carreira internacioGadelha chega à curadoria do Festival de Dança do Renal. Resolvi tentar trabalho nas companhias de dancife, norteado por algumas questões: Qual o papel de ça da Europa. Depois de dois meses fazendo audições um festival? Como um evento desse pode estimular a e ainda sem nenhum contrato à vista, consegui um qualificação de uma cena? Ele acredita e trabalha para trabalho em uma companhia que não pagava salário, que o festival seja um projeto contínuo, com um perfil mas nos dava moradia e decidi ficar na Holanda”, condefinido, e quer que este evento possa adquirir cada vez ta Ernesto. Mas sua passagem por Amsterdã duraria mais consistência, para ter uma “cara”, independenteapenas seis meses, os outros sete anos e meio seguintes mente de quem seja o curador. As respostas que comeele passaria trabalhando em teatros e companhias da çaram a se desenhar no ano passado agora ganham Alemanha, ora como bailarino, ora como professor ou força. No intervalo de um ano, sem dúvida, a produção coreógrafo. Em 1992, uma lesão nos quadris o afastou de dança do Recife avançou significativamente. E, pelo dos palcos, mas levou-o à formação em Pedagogia da visto, esse “passo à frente”, rumo ao amadurecimento e Dança pelo Instituto de Danças Cênicas de Colônia, à profissionalização estarão visíveis no XII Festival de que trabalhava com o ensino da dança clássica e dança Dança do Recife. criativa para crianças a partir do método Laban. A forte presença das tradições nas produções locais A experiência na Alemanha continuou no terrede dança e a lacuna causada pela ausência do ensino no do ballet clássico e suas variáveis até o dia em que superior são características apontadas pelo curador, ingressou como aluno convidado no curso de Estuque prefere definir a realidade da dança do Recife como dos Complementares em Dança Contemporânea da “uma cena que tem frescor, curiosidade e potencial e Folkwang Hochschule, uma faculdade de Essen, Aleque, ao mesmo tempo, parece inquieta e ansiosa dianmanha, freqüentada por bailarinos e professores da te da quantidade de informações e conexões possíveis companhia da coreógrafa Pina Bausch. “Isso foi uma percebidas num curto espaço de tempo. É interessante coisa totalmente nova para mim, uma quebra de paquando você expõe seu trabalho a outros olhares, ouradigmas. A escola era voltada mais para dança-teatro tras opiniões, outras maneiras de perceber, de analisar e eu estava muito ligado ao que alguns chamam de dança. Não para acatar ou se moldar a um mercado, ballet contemporâneo. Atordoado, eu procurava conemas para se referenciar. Afinal, a gente se conhece tamxões com meu repertório, mas não conseguia ligações bém através do olhar do outro”, defende Gadelha. Mais com nada, aquela forma de dançar era completamendo que uma vitrine, o festival se estabelece como espate nova para mim”, revela Gadelha, que antes de voltar ço de diálogo, de troca, de construção coletiva. • para Fortaleza, em 1998, passou ainda uma temporada OUT 2007 • Continente
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CÊNICAS
Conversa de camarim O teatro feito no Recife na década de 60 é tema do livro de Benjamim Santos, piauiense que fez parte da cena pernambucana no período Alexandre Figueirôa
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história do teatro pernambucano permanece uma via de muitas lacunas. Algumas iniciativas foram empreendidas, mas por razões que a própria razão desconhece apenas quem de certa maneira vivenciou o seu percurso no próprio palco, ou sobre ele escreveu, consegue vislumbrar sua relevância para a cena brasileira. Neste sentido, podemos citar o trabalho de Joel Pontes, que, há mais de três décadas, esboçou um primeiro levantamento da produção local; de Luís Maurício Carvalheira, autor de uma obra de fôlego sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco; deste que vos escreve, quando participei de um projeto da Assembléia Legislativa e resgatei os principais fatos da vida teatral local, desde o tempo dos jesuítas até o início dos anos 60, resultando num livro que, infelizmente, pela tiragem limitada, circulou entre poucos; do louvável projeto Memória da Cena Pernambucana, de Leydson Ferraz e Rodrigo Dourado; e da excelente e completíssima pesquisa de Antonio Cadengue sobre o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), fruto de uma tese de doutorado para a USP, e que, incompreensivelmente, nunca foi editada nem aqui, nem alhures (atenção editoras!). Nesta constelação de astros desgarrados, onde podemos incluir ainda os nomes de Carlos Reis, Milton Bacarelli, Luis Reis, chega agora às minhas mãos este Conversa de Camarim - O Teatro no Recife nos Anos 60, uma edição da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, assinada por Benjamim Santos. O autor é um piauiense que, no final dos anos 50, veio morar no Recife e aqui descobriu o mundo do teatro ao ver uma montagem de Medéia, pelo Teatro Universitário de Pernambuco, no Santa Isabel. Para sua felicidade, logo depois aconteceu o I Festival Nacional de Teatro de Estudantes, organizado por Pascoal Carlos Magno, e que trouxe à capital pernambucana alguns dos melhores grupos da cena brasileira em atividade na época. Desde então, Santos não conseguiu se livrar do sonho da ribalta. Em 1961, largou o curso de Direito
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e foi para o Seminário de Olinda, mas como uma espécie de precursor de Guilherme Coelho – que começou fazendo peças no Mosteiro de São Bento e abalou a cena recifense com o Vivencial Diversiones – , o piauiense de Parnaíba transformou o claustro em palco e não demorou muito lá estava ele no Teatro de Arena, localizado na avenida Conde da Boa Vista, dirigindo o espetáculo de sua autoria, intitulado Cantochão, cujo elenco tinha a participação, entre outros, da atriz e cantora Teca Calazans. Em seguida, ele foi para o Rio de Janeiro e dedicouse, sobretudo, à direção de shows musicais. Conversa de Camarim é, assim, a trajetória narrada em primeira pessoa do protagonista deste e de outros episódios. Benjamin Santos foi também um dos integrantes do Teatro Popular do Nordeste, o mítico TPN de Hermilo Borba Filho, e teve uma coluna teatral no Jornal do Commercio, entre os anos de 1966 e 1969. Portanto, é alguém que conheceu de perto como era a vida cultural do Recife naqueles anos de tantas transformações culturais e políticas na cidade. Suas memórias, se forem vistas por este prisma, não deixam de lançar alguma luz sobre os principais acontecimentos da época e, embora, por vezes, recaiam em aspectos de impressões muito pessoais e até pretensiosas sobre o seu próprio papel nesse contexto, contribuem na compreensão da nossa cena. Por ser
CÊNICAS um observador atento, ele dá algumas pistas curiosas de como Valdemar de Oliveira e o TAP exerciam uma espécie de soberania absoluta no Recife, do gosto pela comédia do público recifense, da importância de Hermilo e do TPN para o teatro brasileiro, e ainda da ascensão de Ariano Suassuna como autor de peso. Aliás, chega a ser divertida a forma como Benjamim revela seu fascínio por estes dois nomes. Para se ter uma idéia, Santos não hesita em contar que ia à missa das 11 da manhã em Santo Antônio, pois lá sempre estavam Ariano Suassuna e sua família, e várias vezes – só para vê-los mais – ele o seguia pela Guararapes até que tomasse o ônibus elétrico de volta para casa. Completa a obra uma coletânea dos textos publicados no Jornal do Commercio. Textos estes que nos fornecem informações valiosas dos acontecimentos mais relevantes do período em que Santos permaneceu no Recife e que vão do registro da estréia de Viva o Cordão Encarnado, de Luiz Marinho, com montagem de Clênio Wanderley, às principais dificuldades de se fazer teatro no Recife e o incentivo militante de sua coluna para que novos artistas dessem continuidade a esta forma de expressão tão valiosa na afirmação da identidade de um povo, algo de que, sem dúvida, o TPN é a prova inconteste, como nos faz ver Benjamim Santos – e que ainda está por merecer um estudo capaz de restaurar seu lugar de destaque no teatro nacional. • Fotos: Reprodução
De cima para baixo, cenas das peças Onde Canta o Sabiá, O Melhor Juiz, o Rei e O Inspetor, todas montadas no Recife, na década de 60
Conversa de Camarim – o teatro no Recife na década de 60, Benjamim Santos, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 160 págs, R$ 20,00.
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CINEMA
A intenção é levantar um tipo de questão talvez varrida para debaixo do tapete da sala de visita do cinema mais acarinhado do que analisado: o filme brasileiro atual é tão bom quanto o argentino e o mexicano? Fernando Monteiro
Cena do filme Cão sem Dono
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Do Cão ao Fuscão 1348
Imagens: Divulgação
CINEMA
Cena do filme Baixio das Bestas
The room was full of nobodies. (Groucho Marx, sobre uma cerimônia do Oscar)
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stá tudo ao contrário, no Brasil 2007: manetes de avião na posição errada, o Cristo Redentor derrotando a velha Acrópole como nova Maravilha do Mundo, e, no cinema tupiniquim, o documentário mais afinado com as platéias do que o cinema de ficção. Estou preparado para levar as cacetadas (ou, mesmo, um tiro de “papo-amarelo” tipicamente disparado da zona da mata pernambucana) por dizer isso e um pouco mais, neste texto que não pretende, entretanto, provocar ou atacar ninguém, nem nada. Trata-se de perguntar (pois perguntar não ofende): o que estamos a ver, atualmente? É o super-homem, é um avião? Não, é o nosso “supercinema” derrapando, aqui e ali, como um avião saindo do roteiro nos aeroportos embelezados por fora, maquilados para parecerem melhores do que são. No Brasil dos acidentes, é meio acidental também um filme que aterrisse direito, sem as barbeiragens que o público reconhece. O público não é uma besta, nos baixios onde se colam elogios ao “audiovisual” brasileiro (penso sempre em slides, quando ouço essa palavra parada no ar de Brasília). O nosso cinema levantou-se, e conseguiu decolar, mesmo depois da canetada de Collor, extinguindo a Embrafilme (com a ajuda do hoje merecidamente esquecido Ipojuca Pontes), para pôr exatamente coisa alguma no lugar. Depois da “espetacular” decisão collorida, ficamos sem política cinematográfica durante um bom tempo, e só a partir de 1995, Carlota Joaquina, de Carla Camurati, e alguns outros filmes vieram consertar uma espécie de “lua-de-mel” mais com a imprensa cultural do que com os espectadores raramente premiados com obras que (eles também sabem reconhecer) mostram legítimo interesse pelo que se passa longe do umbigo das câmeras. Agora mesmo, no Recife, quatro ou cinco filmes da safra mais recente estrearam com ares – exteriores – de quase “obras-primas”. Serão? O objetivo, aqui, é fazer a pergunta – mais do que respondê-la. A intenção nossa é indagar, levantar um tipo
de questão talvez varrida para debaixo do tapete da sala de visita do cinema mais acarinhado do que analisado, mais “excelente” por antecipação do que por real mérito junto aos pagantes de ingresso. Tentando fazer o “saneamento básico” da questão, o fato é que deparamos tanto com o filme do mesmo nome – produção pelo menos bem-humorada –, como com o Cão sem Dono das ruas de Porto Alegre, filme de Beto Brant e Renato Ciasca , com reluzente coleira de aplausos da turma do “tá-tudo-muito-bom”, “tá-tudomuito-bem”. Está? Não, não está – exceto nas asas do desejo dessa gente entusiasmada demais com os nossos “filmes de enredo” (como eram chamados). Isso porque os documentários de longa duração, realizados nos últimos anos, são inequivocamente melhores do que os dramas, como cinema e como consciência (do ótimo Ônibus 174 aos admiráveis mergulhos de Eduardo Coutinho na “Brasilíndia” – agora seguidos pelos jovens pernambucanos Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, autores de KFZ-1348, documentário excepcionalmente exibido em rede, pelo SBT, no primeiro domingo de agosto passado). No terreno, ou no terreiro da ficção, só raramente se vê algo parecido com os trabalhos de cineastas do México e da Argentina (para citar dois exemplos de cinematografias continentais em muito boa fase, atualmente). É um assunto um tanto arriscado, em especial ao reportarmos o Cão objeto de palmas e elogios que eu só posso atribuir à franca torcida para que o “audiovisual” cá de Pindorama esteja em ciclo digno das leis de incentivo, arrecadadoras de vultosos recursos para o setor. E o que se faz com tanto dinheiro? Tenho visto filmes de ficção tão sem rumo como um cão latindo para um carro. O Cão de Brant & Ciasca apresenta um roteiro – baseado em romance de Daniel Galera – que, como tantos outros, precisaria ser trabalhado e retrabalhado, antes de se transformar em imagens. Aliás, não é de hoje que o roteiro se mostra como o calcanhar de Aquiles do cinema brasileiro (vamos deixar essa história de “audiovisual” para lá). Parecemos ter pressa e, certamente, temos desejos alados como um avião da TAM querendo taxiar na pista escorregadia do Oscar ou, então, na rota do olho gordo OUT 2007 • Continente
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CINEMA va da Fundaj: o jovem Ciro mora sozinho, longe da casa dos pais. Ciro é filho único, deduz-se, e só faz a barba de semana em semana. Ciro é apresentado como “tradutor de russo”, embora não pareça tradutor de língua nenhuma. Ciro fala com pouco domínio até do português de Porto Alegre, e se interessa por um cachorro (não muito) e por uma moça (mais ou menos). Ciro... Bem, aqui já terminou. O filme acaba de acabar, antes que Ciro reaja como qualquer ser humano comum das ruas de cães sem (e com) dono. E não há mais nada a fazer, senão esperar passar a chuva, no saguão do cinema do Derby. Nessa espera, calamos sobre mais um filme levado no tapa (cinematográfico) dos roteiros malcosturados da média de produções dos jovens cineastas brasileiros egressos do cinema publicitário, que se regula justamente por essa “apatia” dos Ciros que calculam e não calculam, pensam e não pensam, vivem e não vivem.
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no “mercado” (veja-se a Globo Filmes, com Daniel Filho à frente, insistindo em fazer aquelas porcarias disfarçadas de comédias românticas cariocas, com elencos globais que ninguém agüenta mais, com ou sem rima), e temos, ainda, esse Cinema do Umbigo do Cão, olhando para algum microcosmo autocentrado – como um cachorro olha. Ouvi o filme ser chamado de “melhor” da safra recente. Com suas frases melífluas como se fossem declamações ensonadas para a TV, flagrei o oitentão Sérgio Britto dando pinta de pretender cortejar a “moçada”, no seu programa de variedades culturais da TV Cultura, ao elogiar, mais do que enfaticamente, “essa obra com a marca tão pessoal de Beto Brant” (apesar da co-direção de Ciasca). Na mesma emissora, o programa Cadernos do Cinema Brasileiro também elevou às culminâncias “o filme de Beto” (assim, com a intimidade já a caminho da complacência). Então, resolvi enfrentar um final de tarde tempestuoso de julho, para conferir a obra da dupla de realizadoCena do documentário res (en passant: é impressioKFZ-1348, de Gabriel Mascaro nante como se faz filmes em e Marcelo Pedroso duplas!, desde a “retomada” ao quadrado). Saí molhado, e não por algum orgasmo secreto na poltrona vermelha do cinema da Fundação local. Saí vermelho de vergonha por não ter entendido nem a metade dos diálogos travados em portalegrês autêntico, e, pior, por não ter percebido que Cão sem Dono havia terminado (com um dos finais mais bruscos e toscos da história do cinema ou do “audiovisual”, como se queira). Alguns jovens espectadores de bolsão de couro – nascidos depois da morte de Glauber Rocha (1981) – cairiam de tapa, talvez, em alguém que dissesse isso em voz alta, ou denunciasse que a cena inicial parte de nenhum ponto para chegar ao lugar algum da última, mais que inesperada. E eu não ficaria surpreso com isso. Na verdade, seria atitude até previsível, numa geração de garotas e garotos submetidos à “dieta” atual, ou seja, formados e já acostumados com obras sobre os “Ciros” não apenas indecisos a respeito do que fazer na vida. Resuma-se o que (não) acontece na fita, para a “galera” que preferiu não enfrentar a água, até a sala alternati78 Continente • OUT 2007
As obras que os retratam se caracterizam por escarafunchar naquele orifício (êpa) que todos possuímos no meio do corpo, de preferência bem-lavado. E os demais filmes, nem isso!, sob as assinaturas (?) dos Daniel Filho, dos Jaiminho Matarazzo et caterva global platinada. Meus jovens colegas de espera pela chuva passar não sabem – ou parecem não saber – que já houve, “neste país” (conforme enfatiza o Mandatário), um desbotado grupo de jovens realizadores suados na antiga lida, antes das leis de incentivo, renúncia fiscal e outras bene$$es, neste país
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CINEMA
Cena do bem-humorado Saneamento Básico
O objeto do desejo, no interessante Cheiro do Ralo
das ênfases erradas. Com corações e mentes, uma idéia na cabeça e a câmera na mão muito longe do umbigo, eles fizeram filmes como Assalto ao Trem Pagador, Porto das Caixas, Cinco Vezes Favela, Rio Zona Norte. Os Fuzis (prêmio Urso de Prata, em Berlim, 1964), Vidas Secas (prêmio do Office Catholique International du Cinema, em Cannes, no mesmo ano), São Paulo S.A, A Falecida, Todas as Mulheres do Mundo, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe (prêmio Luis Buñuel, em Cannes, 1967), Macunaíma (prêmio Condor de Ouro, em Mar del Plata, 1970), Lição de Amor, A Lira do Delírio, Memórias do Cárcere, O Rei da Noite, São Bernardo e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (que o diretor Glauber Rocha não permitiu ser indicado para concorrer ao Oscar, em 1969, alegando, entre outras coisas, que o prêmio seria ruim para a sua carreira, por expressar o “endosso do cinema americano” através da estatueta dourado-caipira que, de fato, nada pode acrescentar a um cinema que já conquistou a Palma de Ouro). Estou citando esses – e poderia citar outros 10, 20 filmes – da mesma geração de cineastas que não apenas esnobavam o Oscar. Quase todos também estavam possuídos do desejo de decifrar o país, de defrontar a nossa alma um pouco mais do que no cheiro do ralo (funcione psicanaliticamente ou não, essa boa imagem do interessante filme de Heitor Dhalia/Selton Mello). Da safra de 2000 para cá, o Ralo é o terceiro do trio de obras ficcionais – junto com Cronicamente Inviável , de Sérgio Bianchi, e Madame Satã, de Karim Aïnouz – digamos que “compatíveis” com aquelas da geração que não sonhava (longe disso!)
com o dia de subir o tapetão do palco hollywoodiano, ao chamado de Billy Cristal ou qualquer outro fazedor de piadas maltraduzidas nas madrugadas da transmissão planetária, para a TV domesticada. Não, nós não precisamos de Oscar, porém ainda precisamos (e muito) de uma visão – no estilo da que Glauber Rocha portava e que o baiano viria a transformar num furacão de alucinações para o bem de todos e, até, a possível consumação daquelas “profecias” sebastianistas do sertão perdido de gritos. Precisamos voltar a ter esse “cinema de visões” (já não glauberianas, é evidente – pois as de Glauber foram as da sua época, que já passou), ou uma coisa qualquer para fora do ego perdido na terra de ninguém dos cães sem dono. Pois um Humberto Mauro era dono de suas visões, um Mário Peixoto era dono do seu delírio inovador de imagens à solta no final da década de 20 (no Limite que permanece a linha-mestra do Novo), e até o “estrangeiro” Alberto Cavalcanti guardava as suas visões de incompreendido. Nós já tivemos, um dia, aquelas imagens de recorte xilográfico – visionárias como nas gravuras de mestre Oswaldo Goeldi. E elas vinham da idade da terra e do mar, tentando fazer o oceano virar sertão e o sertão virar talvez a “cachoeira” da frase famosa de Mauro. Nós tínhamos um cinema, e não Glauber: “berrando” por uma apenas os produtos da ancinavesca povisão brasileira do lítica da Lei do Audiovisual, para tentar cinema defrontar um Brasil ainda por se revelar a si mesmo, antes de virar sucata como o ônibus 174 ou o Fuscão 1348, o dos oito donos decrescentes na escala social do país dos carros latindo para os cães. Tudo errado pra cachorro. • OUT 2007 • Continente
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FOTOGRAFIA
Retratos do mercado Grupo Paspatu documenta cotidiano dos mercados públicos do Recife, propondo enfoque na interação entre os fotógrafos e a comunidade registrada
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Entrada do Mercado da Boa Vista, fotografada por Hugo Lima
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Box do Mercado da Encruzilhada, foto de Marta Gouveia
Alberto Benning retrata o corredor central do Mercado de São José
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s mercados públicos são conhecidos como ambientes onde se pode encontrar tudo. Esta atribuição deriva do entrelaçamento da existência destes espaços com a própria história de formação das cidades, onde os mercados agregavam os fluxos de comercialização de mercadorias e serviços, transformando-se em áreas de intercâmbio social, econômico e cultural. Essas características agregadas à diversidade de produtos, à beleza arquitetônica, ao jeito acolhedor dos mercadantes, à cantoria dos poetas, ao corre-corre das crianças e à transformação dos corredores e pátios em extensões do próprio lar, com suas cadeiras de balanço e cochilos após o almoço, têm gerado trabalhos em diversas áreas, a exemplo da fotografia, que vem sendo utilizada na atividade que o jovem Grupo Paspatu está desenvolvendo há cerca de um ano, no Recife. O coletivo é composto pelos fotógrafos Adauto Júnior, Alberto Benning, Ana Lira, Cláudia Jacobovitz, Damião Santana, Daniel Guedes, Giancarlo Ful-
FOTOGRAFIA co, Helerina Novo, Hugo de Lima, Josivan Rodrigues, Ladjane Santos, Marcelle Honorato, Marta Gouveia, Paz Sales, Régia Sofia, Rildo Moura, Sílvia Almeida e Simone Albuquerque. O principal enfoque do grupo está no convívio com a comunidade fotografada e, por isso, o Paspatu interage em cada um dos estabelecimentos por até três meses, antes de realizar os varais fotográficos que caracterizam o encerramento das atividades. Até o momento foram registrados os mercados da Boa Vista, Encruzilhada, Madalena e São José, que completou 132 anos de fundação em setembro. O Paspatu pretende concluir o projeto Retratos do Mercado abrangendo todos esses espaços públicos na cidade. O segundo ano de atividades começou pelo Mercado de Casa Amarela, que já está sendo fotografado pelo coletivo. (Ana Lira) • Relojoeiro no Mercado da Encruzilhada, foto de Damião Santana
O fotógrafo Paz Sales registra um detalhe no Mercado da Madalena OUT 2007 • Continente
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FOTOGRAFIA
Açougue no Mercado da Boa Vista, foto de Josivan Rodrigues; abaixo, o da Encruzilhada, na ótica de Cláudia Jacobovitz
O Coletivo Paspatu interage em cada um dos estabelecimentos por até três meses, antes de realizar os varais fotográficos que caracterizam o encerramento das atividades
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FOTOGRAFIA
Em sentido horรกrio, cenas do Mercado da Encruzilhada, registradas pelos fotรณgrafos Giancarlo Fulco, Ana Lira e Rildo Moura
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Fotos Damião Santana
FOTOGRAFIA
Mercados do povo por dentro e por fora Livro enfoca os cinco mais importantes mercados populares do Recife, mesclando a história oficial com a versão dos mais velhos freqüentadores destes espaços de convivência Marco Polo 86 Continente • OUT
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Mercado de São José, visto de dentro para fora
Mercado de São José, no Recife, primeiro exemplar da arquitetura de ferro no Brasil, foi construído em 1875. Com seu prédio idealizado pelo engenheiro francês Louis Léger Vauthier, que tomou como modelo o grande mercado central de Paris, Les Halles, tem, atualmente, 757 pontos de venda onde são oferecidos peixes, crustáceos, carnes, charques, frios, cereais, frutas, verduras, artigos para católicos e umbandistas, material para costura, bordados, flores, vasos, roupas, sapatos, bijuterias, brinquedos, malas, redes, pratos, grelhas, panelas, raspa-coco, cestas, artesanato em madeira, couro, tecido, corda, ferro, barro etc. Nas comemorações do seu centenário, em 1975, foi organizado um torneio futebolístico que se firmou nos anos seguintes, com times formados pelos vendedores de diferentes produtos. Em 2002, por exemplo, a final foi disputada entre os times Carne X Sopa, com o primeiro sagrando-se campeão. Em 2003, o Artesanato levou o campeonato. Em 2004, foi a vez do Frango. O time da Sopa, entretanto, revelou-se o melhor de todos, consagrando-se tetracampeão pela vitória nos anos 1999, 2000, 2001 e 2005.
FOTOGRAFIA O Mercado da Boa Vista chama a atenção desde a entrada pelos arcos de sua fachada. Ao se atravessar os portões de ferro dá-se com um pátio quadrado, coberto de árvores, cercado de compartimentos comerciais e botecos. Apesar da aparência conventual, é ponto de boêmios há muito tempo. Ali, recitava-se literatura de cordel, contavam-se anedotas, trocavam-se livros e revistas, tornando o mercado um centro de convivência da cidade. É no Mercado da Boa Vista que até hoje resiste a instituição que antecedeu os cartões de crédito , a caderneta, onde os fregueses deixavam anotados seus débitos, a serem saldados no final do mês. Cobrindo lacunas de fontes histórias, há versões populares que revelam a origem do Mostruário de chaveiro no Mercado da Madalena Mercado de Casa Amarela. Até o final dos históricos, num saboroso caldeirão que lembra o próprio anos 20, ele funcionava na Caxangá, quando um “coroambiente destes lugares. nel” (título comprado, naquele tempo, por quem tinha Segundo a coordenadora da publicação, a produtora muito dinheiro), que morava perto, encontrou uma bancultural Cynthia Mahon, a idéia é transmitir com leveza ca de feira barrando o caminho do seu carro. Irado, manconhecimentos bem fundamentados. A pesquisa ficou dou seu motorista tirar a banca da frente e redigiu, em por conta de Marcelo Lins e a redação final foi de Maria papel de pão mesmo, uma carta ao prefeito exigindo que Adélia Bandeira de Mello. Com 120 páginas e bilíngüe, o tirasse o mercado de perto da casa dele. Como o antigo volume é ilustrado por gravuras de época e fotos de DaMercado da Caxangá era todo em estruturas de ferro, foi mião Santana. A designer Fátima Finizola amarrou tudo desmontado e transferido para Casa Amarela. num produto visual sóbrio e limpo, evitando as pirotecAs informações acima foram retiradas do livro Mernias formais que terminam disputando com o texto e as cados do Recife, no qual os cinco principais mercados imagens a atenção do leitor. populares da cidade são enfocados numa mistura de hisO resultado é um livro leve, divertido, agradável de ler tória formalmente pesquisada, informações arquitetônie ver, além de trazer informações que teriam se perdido cas e sociológicas, “causos” e versões populares de fatos se a equipe não tivesse entrevistado os mais velhos freqüentadores ou donos de boxes daqueles lugares, sempre dispostos a recordar os velhos tempos, mostrando como a vida era boa e como aconteceram, de fato, os fatos. O livro Mercados do Recife faz parte da coleção Recife no Bolso, que contará ainda com os volumes Boa Viagem nos Tempos do Veraneio, que mostra como era o bairro no período de 1910 a 1950; Bairros de Engenho, enfocando os engenhos que se tornaram bairros, na região que vai da Madalena à Várzea; e Histórias e Estórias, revelando os costumes sociais no centro da cidade, entre 1930 e 1950, quando ainda era uma área residencial. • Mercado de Casa Amarela: conserto de eletrodomésticos OUT 2007 • Continente
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metrópole
Marcella Sampaio
Q
uase nunca vale a pena ser saudosista, mas há dias em que a nostalgia é inevitável e irresistível. Quem hoje sofre para tentar desviar a atenção das suas crianças da interminável Malhação, provavelmente sofrerá ainda mais quando lembrar que houve um tempo em que o horário televisivo antes da novela das seis era ocupado pelo programa Armação Ilimitada. Em agosto, 10 episódios selecionados da série foram lançados em DVD duplo. São seis horas e 33 minutos de entretenimento da melhor qualidade, com texto de Antônio Calmon e Euclides Marinho e direção de Guel Arraes. Além de divertir, principalmente os trintões que curtem festas trash oitentistas, o trio Zelda, Juba e Lula, acompanhados da melhor amiga Ronalda Cristina e do pequeno Bacana (que ninguém sabe se é filho de alguém ou apenas mais um na turma) evoca mensagens muito interessantes, ainda hoje ousadas. Para começar, a jornalista estressada Zelda, personagem da atriz Andréa Beltrão, tem dois companheiros com quem divide a vida, considerados, para o padrão da época, homens irresistíveis, no melhor estilo “menino do Rio”. Entre as fãs do seriado, inclusive, havia as partidárias de Juba (Kadu Moliterno) e as adoradoras de Lula (André di Biase), cada uma com listas de argumentos para justificar a escolha. O fato de Zelda ser namorada dos dois não causa estranheza, nem é motivo para muitas explicações. Sem levantar a bandeira do feminismo, a série é uma homenagem à figura da mulher independente, tipo físico the girl next door, que vive sua vida da maneira que lhe convém. Zelda não tem cabelão, nem peitão, nem bundão, e isso não diminui o interesse dos seus rapazes, que também não a consideram galinha ou coisa que o valha. Ronalda, por sua vez, é gordinha, não está nem aí, e faz questão de exercitar seu poder de sedução usando os recursos da sua beleza renascentista. Ela arrasa sem precisar fazer regime. A criança da história, o precoce Bacana, interpretado com muita graça por Jonas Torres, não mora com a mãe (que não é Zelda), como seria de se esperar. Aliás, a mãe dele é uma figura que não é mencionada com freqüência. Bacana vive sob os cuidados de Juba e Lula, que ganham a vida realizando trabalhos pouco convencionais, e mui88 Continente • OUT 2007
Armação Ilimitada: TV acessível e inteligente
Reprodução
O meio não é a mensagem
tas vezes é a voz mais sensata da casa. O texto da série faz questão de não menosprezar a inteligência infantil, coisa que não é muito comum nos produtos televisivos. Ao romper com o esquema da família tradicional, Armação Ilimitada projetava uma realidade que começava a estabelecer como regra, e não como exceção. O tom era de naturalidade, de leveza, de alegria. Os recursos visuais utilizados são uma delícia de ver, com destaque para as cenas entre Zelda e o seu chefe, diretor de redação do jornal Diário do Crepúsculo, interpretado por Francisco Milani. Há uma brincadeira em torno da metáfora muito legal – as falas de Zelda são traduzidas em imagens literais, numa tentativa de reproduzir a lógica do entendimento das crianças. Milani é caracterizado como mãe, anjo, “cheio de dedos”, Hitler e por aí vai. Guel Arraes desconstruiu a forma de utilizar as metáforas invertendo sua função, com ótimos resultados. A série tornou-se popular, além de querida da crítica. Vale destacar também as participações especiais de gente como Luiz Fernando Guimarães, Chico Anysio, Cláudia Raia, Tony Tornado, Patricya Travassos, Cláudio Ferrario e tantos outros. Num dos episódios, Luiz Fernando Guimarães é candidato a prefeito, e entre os seus argumentos para conquistar os eleitores estão “nunca fui síndico de prédio nem visitei São João Del Rey”. Impagável. A Armação Ilimitada é uma prova de que a TV pode ser inteligente e acessível ao mesmo tempo. Nesse caso, o meio não é mensagem. •
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