Continente #083 - Cinema realidade

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Sobre os documentários

Fotos: Divulgação

aos leitores

U

ma das características proeminentes do mundo contemporâneo é a porosidade e a dissolução de fronteiras. Não vivemos mais num período em que os gêneros e as demarcações entre eles são sólidas e bem delimitadas, quiçá Zygmunt Bauman tenha razão ao dizer que vivemos numa Modernidade Líquida. O que dizer, então, dos fluxos e refluxos existentes entre a produção cinematográfica documental e a ficcional? Embora essa mistura de gêneros esteja presente em muitas produções brasileiras, para muitos o melhor do cinema brasileiro está no que se convencionou classificar como documentário. Nesta edição, voltamos nosso olhar para essas questões, destacando a safra recente de documentários brasileiros, como a produção Jogo de Cena, do mestre brasileiro do documentário Eduardo Coutinho. No filme, Coutinho mistura depoimentos de mulheres “reais” com os de algumas atrizes, fazendo o espectador perder o parâmetro entre quem diz o quê e quem interpreta o quê. A produção pernambucana não é esquecida num resgate histórico dos principais documentários produzidos por aqui desde os tempos de Maurício de Nassau até os dias atuais, com o Eu Vou de Volta, de Camilo Cavalcante e Cláudio Assis, e o instigante KFZ 1348, dos jovens talentos Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Buscando referências internacionais, encontramos, em Londres, o seminário Crossing the line between fact and fiction que tratou, justamente, deste ponto de interseção entre o documentário e o drama. A Caminho de Guantánamo, que intercala entrevistas com dramatização, é um forte exemplo de um gênero híbrido que desponta nas telas: o docudrama. O caderno Continente Documento traz, nesta edição, um texto que percorre a rica história, que agora completa 30 anos, do Balé Popular do Recife junto à trajetória artística da família Madureira. E essas são histórias que se confundem: o teatro e a música acabaram conduzindo André Madureira, fundador, diretor e coreógrafo do Balé Popular do Recife, ao universo das danças populares. Hoje ele sabe que alguns momentos anteriores foram acendendo uma vontade, que se converteu em idéia, que foi transformada em pesquisa, traduzida em metodologia e tornou-se o fenômeno Balé Popular do Recife, estabelecendo um jeito único de se dançar o popular. Um perfil dos versáteis artistas Zoca e Antúlio Madureira e uma série de depoimentos sobre o Balé Popular do Recife encerram esta edição.

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Reprodução

Foto: Divulgação

Teatro nacional em festival no Recife

Jogo de Cena: documentários em evidência

Guto Muniz/Divulgação

A mão sinuosa do desenhista Luiz Sá Divulgação

CONVERSA 04 >> Ferréz: “A periferia é um antro de cultura” BALAIO 10 >> A prosa arrevesada de Aquilino Ribeiro CApA 12 >> Os jogos da verdade no documentário brasileiro 17 >> O registro da migração nordestina em Eu Vou de Volta 18 >> O documentário pernambucano de ontem e de hoje 20 >> Os novos rumos do documentário 22 >> Os limites entre a realidade e a ficção AGENDA 30 >> Olinda tem arte em toda parte LItERAtuRA 32 >> Alberto Moravia e o existencialismo 34 >> A permanência de Alberto da Cunha Melo 38 >> Coletânea traça panorama do conto em Pernambuco 40 >> O povo na literatura de Gilvan Lemos 42 >> A poesia de Orismar Rodrigues 44 >> Agenda Livros

ARtES 54 >> A arte multifacetada de Maria Carmen 60 >> Janete e Borsoi: objetos de uma vida inteira tESES 65 >> O embate entre o Brasil e o Simbolismo MÚSICA 68 >> Poesia transformada em música erudita 72 >> A palavra afi(n)ada de Chico Buarque 76 >> Era uma vez quatro músicos revolucionários 79 >> Festa de 100 sanfoneiros no Recife 80 >> Agenda Música HIStÓRIA 82 >> Abreu e Lima em livro de Valmireh Chacon REGIStRO 84 >> Luiz Sá, o desenhista dos bonecos redondos DOCuMENtO 89 >> O Balé Popular do Recife e a família Madureira

CÊNICAS 46 >> Recife, palco do teatro brasileiro 50 >> Os Sertões e a agressividade programada

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Reprodução

Divulgação/Arquivo Última Hora

Flávio Lamenha

Foto: Divulgação

Objetos de uma vida inteira A poesia bela e cética de Orismar

COLuNAS MARCO ZERO 36 >> O estigma de ser poeta

O mundo onírico de Maria Carmen

Acervo: família

As astúcias de Chico Buarque

ENtRE LINHAS 43 >> No passado o Nobel era coisa séria tRADuZIR-SE 52 >> O talento de Eliseu Visconti SABORES 62 >> Alimentos com sabor de infância MEtRÓpOLE 88 >>A nova cara do samba

ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELEtRÔNICO www.continentemulticultural.com.br

A saga de uma família musical >> 89 NOV 2007 • Continente x

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conversa Ferréz

Imagem: Hans Manteuffel/Divulgação

Vender livros

nete país é pior do que vender geladinho nas

ruas ou engraxar sapatos

Uma voz da periferia na literatura

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O polêmico escritor paulista, saído do Capão Redondo, fala sobre literatura marginal, violência, o poder da mídia e defende o “direito” dos excluídos de roubar dos mais abastados ENTREVISTA A Marcelo Sandes

R

eginaldo Ferreira da Silva, 31 anos, nasceu e vive em São Paulo, no Capão Redondo, distrito da região sudoeste da capital. Trabalhou como balconista, arquivista, vendedor de vassouras e hoje é escritor, empresário da periferia e, em determinadas ocasiões, porta-voz da favela. A trajetória literária junto ao grande público teve início em 1997, com o lançamento de um livro de poesia concreta publicado de maneira independente. Ganhou notoriedade, contudo, só em 2000, com o romance Capão Pecado. O sucesso de vendas foi responsável pelo lançamento de O Manual Prático do Ódio, o segundo romance, pela editora Objetiva. É também autor do livro de contos Ninguém é Inocente em São Paulo (Objetiva, 2006), da história em quadrinhos Os Inimigos não Mandam Flores e da obra infanto-juvenil Amanhecer Esmeralda, além de colaborador da revista Caros Amigos. Ferréz, seu nome literário é um híbrido de Virgulino Ferreira (Lampião) e Zumbi dos Palmares. Não é controverso prestar homenagem a um homem como Lampião? Se você pegar todos os mártires que a gente teve, é tudo vilão. Todo mártir que fez alguma e que veio da classe “d”, “e”, é vilão. Se você for pegar a história mesmo, de fato, ele é um cara do tempo dele, como o Osama Bin Laden é hoje. Quem é mais vilão: o Bush ou Osama Bin Laden? Quem era mais vilão na época: a

volante ou o Virgulino? Então eu fico com o exemplo do cara mais destroçado, e que teve a família destroçada. Mas ele não destroçou mais famílias do que foi destroçado? Há estudiosos que divergem dessa opinião. Eu tenho Virgulino como herói, não o tenho como vilão. Meu pai era parente da família de Lampião, por isso eu sou Ferreira também, embora meu pai tenha vergonha de falar. Agora eu acho que a cultura nordestina não é muito valorizada. Lampião é um só cara no meio de toda uma geração que teve as indumentárias e uma cultura própria e a gente não pára nem para ver. Na escola, a gente nem sabe quem é Lampião. É como Zumbi – nas escolas, é só um negro fujão. Seus dois romances (Capão Pecado e O Manual Prático do Ódio) estão ambientados no Capão Redondo, lugar onde você vive. Quais as semelhanças entre Ferréz e os seus personagens? Não tem diferença nenhuma, mano. Eu sou um moleque desse que está dentro do livro. Tenho a mesma vida, os mesmos amigos, as mesmas mulheres (não tantas), as mesmas companhias, aventuras e desventuras, e é por isso que é verdadeiro. O livro e o autor, quando divergem muito, é sinal de algum problema. Os críticos têm refletido sobre sua literatura ou sempre enfatizam a sua origem social? A maioria da crítica me avalia muito pela minha condição; por ser uma pessoa que veio da periferia, eles querem mostrar que algumas pessoas da periferia conseguem: “oh, tá vendo ali, o cara consegue, você é que não tá batalhando”. A classe média e a

classe alta brasileira têm um discurso de que o pobre é pobre porque num tá trabalhando. Isso passa de pai para filho, e pra quebrar é uma barreira muito grande, às vezes a gente é usado como esse exemplo também, o que é uma pena. Na epígrafe de Capão Pecado, você diz: “querido sistema, você pode até não ler, mas tudo bem, pelo menos viu a capa”. No entanto, a primeira edição esgotou em menos de três meses. O sistema, afinal, não foi tão adverso... Para você fazer literatura neste país tem que ser, primeiramente, chato, irritante. Vender livros neste país é pior que vender geladinho na rua, engraxar sapatos. Eu vi um menino na porta do hotel engraxando sapatos, uns três. Eu ali, com livro, não vendia dois. Tanto que a gente é esquema das editoras. Hoje o autor é esquema. Eu sou esquema de editora. Vou pra tudo que é lugar, a editora vende o livro, a gente passa a maior dificuldade e tem que levar livro na bolsa pra ganhar 30%, já que a editora, quando vende, o autor ganha 10%. Eu já disse pro meu pai: “isso não vai durar muito, eu não nasci pra ser esquema”. Em O Manual Prático do Ódio, alguns personagens são classificados como “guerreiros justos”. E geralmente são sujeitos que roubam, matam por dinheiro, “atiram para ver a queda”. Que padrão de justiça seria esse? Ninguém tem idéia de quantas crianças o Maluf já matou. Quando ele roubou o dinheiro da merenda, quantas crianças, por não comerem na escola, ficaram com nanismo e NOV 2007 • Continente x

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“ Hans Manteuffel/Divilgação

Sinceramente, mano, como é que vou julgar um cara que precisa de R$ 300,00 pra viver? Eu não posso julgar o cara

acabaram não aprendendo a ler? Essa criança já foi assassinada, já foi excluída socialmente. Então, quem é pior: o cara que mata o outro ali pelo relógio ou o político que mata 100, 200, 300, desviando verba? Eu chamo de guerreiro porque é uma guerra e o cara está na batalha, está sobrevivendo. É sem julgamento. Eu não faço literatura de julgamento. Mas nenhum dos dois é justo... Nada é justo, mano. Ninguém é inocente em São Paulo. Como você enquadraria a literatura marginal e quem estaria junto a você nessa literatura, hoje, no Brasil? Se eu enquadrasse a literatura marginal, eu ia ser polícia... (risos). Então, não posso enquadrar de jeito nenhum! Quando comecei a escrever, os críticos não me punham como escritor contemporâneo, nem na geração 90. Eu num me enquadrava nesses pontos. E aí eu vendo as entrevistas do Plínio Marcos, do João Antônio, matérias de jornal da época falavam “ah, João Antônio é aquele autor da literatura marginal” e desdenhavam, assim como desdenham da favela hoje, “o cara é da favela, é da periferia”. Eu peguei o nome como forma de orgulho e comecei a assinar como literatura marginal. Depois a gente montou a revista Literatura Marginal, convidou vários autores e virou um movimento. O que no seu livro tem influência de editora? O Manual Prático do Ódio teve algumas mudanças. Eu falava o nome das pessoas diretamente, tipo: “Datena é um safado”. Falava que o cara tinha que “pegar” a Hebe Camargo! Então,

a editora me orientou: “tira isso porque o livro pode ser recolhido”. Uma questão jurídica. Em Ninguém É Inocente em São Paulo, disseram que a polícia podia mover uma ação. Eu falei: “eu seguro o rojão, põe tudo em meu nome, ninguém é inocente mermo”. Não fiz mudança nenhuma. O narrador de Capão Pecado é mais polido e adota uma linguagem diferente da utilizada pelos personagens (o que não acontece em O Manual Prático do Ódio). Qual a razão da mudança? A gente aprende, né? Quando eu fiz o Capão Pecado, eu morava em um quarto que tinha um sofá e um computador; não tinha contato com nenhum escritor, foi escrito sem ninguém ver uma linha... Nem o Paulo Lins? Nem Paulo Lins eu topava naquela época, não o conhecia. Eu saía na favela e falava “tô escrevendo um livro tal, mano, que tá assim... O personagem assim... O cara vai trair a mulher...” E os moleques: “dá hora, Ferréz, mas cê viu a moto nova que saiu, mano?”. Então os caras falavam da cultura deles e cortavam meu assunto, num tinha parada de papo pra tratar de literatura com ninguém, e ainda não tenho, até porque ninguém vai lá. O leitor tem que saber que você tá conversando com ele e depois os personagens tão falando entre eles. É uma coisa que eu fiz e também não quero nem saber se tá certo. É meu jeito de escrever. O Manual Prático do Ódio está, desde 2003, com os direitos vendidos para se tornar filme. Sua escrita se presta à linguagem do cinema?

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Divulgação

O Capão Redondo possuiu uma das mais elevadas taxas de violência de São Paulo

Eu acho que facilita, porque a gente acaba escrevendo também de uma forma bem cinematográfica. Mas eu nunca penso em outras mídias quando escrevo. Eu penso na minha satisfação como autor de tá escrevendo uma história de que tenho orgulho. Inclusive, eu fiz uma história que se chama Pensamentos de um Correria, e é uma resposta ao Luciano Huck, que foi assaltado. Eu queria até pedir um minuto de silêncio pelo Rolex do Luciano Huck. Ferréz já foi assaltado? Ah, já, muitas vezes. Já roubaram meu carro, já roubaram minha loja, já roubaram um monte de coisas... Mas é justo. É justo o cara roubar. A gente tá vivendo em um país em que, ultimamente, você não tá tendo o direito de ter as coisas mais. Tem que começar a entender isso. Mas aí é uma deformação legal. É um crime... Não, não é. Sinceramente, mano, como é que vou julgar um cara que precisa de R$ 300,00 pra viver? Eu não posso julgar o cara. A literatura que eu escrevo é sobre ele, entendeu? É um pensamento meu, acho que ninguém tem que concordar comigo. E se os R$ 300,00 não servirem para comprar comida, para

ajudar a família, para extrema necessidade, mas para comprar droga, você repensa a questão? É o que ele precisa. Cada um precisa de algo e vai atrás do que precisa. Sendo assim, estão nos mesmos níveis de valores: o arroz de casa e a cocaína... Dependendo da precisão dele para entender o mundo, ele vai preferir a cocaína mermo. Embora eu passe todo dia na rua e fale pro moleque: “não usa essa porcaria”. Eu já peguei moleque que falou na minha cara: “eu não vou comprar o livro hoje, mano, porque tem uns trecos para eu usar...”. Foi sincero, pelo menos. Qual a importância de Paulo Lins para sua literatura? Paulo Lins é para mim um exemplo de escritor. Quando eu perdi meu emprego, trabalhava no Bob’s fritando hambúrguer. Eu catei o dinheiro, subi no Shopping Ibirapuera e comprei um livro dele. Aquilo mudou minha percepção do que era escrever. Eu estava escrevendo o Capão Pecado e no meu livro era tudo perfeito, ninguém cheirava ou fumava, um não traía o outro. E, quando eu li o Paulo Lins, pensei “nossa, mano, a favela é isso, por que eu tô fazendo outra coisa?”. Aí eu entendi a problemática.

Quais foram os autores que o decepcionaram? Os autores brasileiros são medrosos, já começa por aí. 90% é bundão. A gente tem que falar a verdade: “é bundão!”. Porque você chama o cara para ir pra sua quebrada, pra ir almoçar, tal, e o cara num vai. E quando eu vou, os caras nem me aceitam na portaria. Quando marca, toda vez o cara tá de saída. Eles confundem as coisas. Fala um monte na palestra, mas quando sai... Vai tomar o uísque dele, pegar o carro importado, é outra pegada. Tem que tomar cuidado com que a mídia vende e com o que de fato o cara é. O que passa no jornal, na televisão é um produto. A pessoa é outra coisa. Você acha que acabou a capacidade de diálogo entre os “incluídos” e os “excluídos”? O dialogo da cultura sempre vai existir. O resto é conversa de ongueiro. Como está a sua grife, a 1dasul? É quem paga a prostituta chique, que são meus livros, e a vida de escritor que eu tô levando. 1dasul é uma marca de periferia que eu criei. A gente parou de usar I Love NY, Adidas, e agora só usa roupa da quebrada. Faz calças, camisas, boné... Ainda não faz tênis, mas vai fazer. É tudo feito no bairro e vendido no bairro. A gente passou quatro anos sem vender nada, porque as pessoas não entendiam: “eu vou no Shopping escrito Capão na minha camisa, você tá doido?”. Mas agora as pessoas têm orgulho. A periferia é um antro de cultura, de talento também, não é só crime. Se ela fosse criminosa, não enchia ônibus lotado todo dia pra trabalhar no centro. A gente é batalhador pra caramba. NOV 2007 • Continente x

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Novembro 2007 – Ano 07 Capa: foto de Roberta Guimarães Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente

Flávio Chaves Diretor de Gestão

Bráulio Mendonça Meneses

Diretor Industrial

Reginaldo Bezerra Duarte

Conselho Editorial

Colaboradores desta edição:

Presidente: Flávio Chaves

ANDRÉ DIB é jornalista.

Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly

ASTIER BASÍLIO é jornalista, escritor, dramaturgo e autor do livro de poemas Antimercadoria (2005). CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico de música da Revista Continente Multicultural

Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo

Diretor de Arte Ricardo Melo

CHRIS GALDINO é jornalista e pesquisadora de dança, com pós-graduação em

Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira

Editor de Arte Luiz Arrais

FERNANDO MONTEIRO é escritor e crítico cultural.

Revisão Maria Helena Pôrto

Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)

GERMANO RABELLO é jornalista.

Edição on-line Mariana Oliveira

ISABELLE CÂMARA é jornalista. KLEBER MENDONÇA FILHO é jornalista, crítico de cinema e cineasta. LUIS CARLOS MONTEIRO é crítico de literatura.

Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Rafael Barbosa Gestor industrial Júlio Gonçalves

Jornalismo Cultural.

Gestor comercial Gilberto Silva

Produção Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira

MARCELO COSTA é jornalista e crítico de cinema. MARCELO SANDES é formado em Publicidade e apresenta o programa de rádio Café Colombo. MARIA EDUARDA ANDRADE é jornalista, mestra em Documentários pelo Goldsmiths College. Seu primeiro filme, Just Like Mom, foi exibido na ultima edição do Britdoc Festival, em Oxford. PERON RIOS é doutorando em Teoria Literária e professor do Colégio de Aplicação.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

PLÍNIO PALHANO é artista plástico. RAUL AZEVEDO DE ANDRADE FERREIRA é mestrando em Teoria Literária pela UFPE. RODRIGO DOURADO é jornalista, diretor teatral e mestrando em Comunicação Social pela UFPE.

Colunistas: ALBERTO DA CUNHA MELO é jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Yacala; Dois Caminhos e Uma Oração; e O Cão de Olhos Amarelos. FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros. MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e professora universitária.

Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

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cartas

Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

DOCUMENTO KEROUAC Engraçado saber que um dos maiores escritores da Geração Beat era politicamente tão conservador. Parece que toda grande figura literária possui algo de paradoxal, de complexo, para nos mostrar que o mundo não é preto nem branco, mas meio acinzentado... Ana Cristina Caraciolo – Natal

CONVERSA Ignacio Ramonet (fac-símile abaixo) defende as imposturas do presidente Hugo Chávez porque tem a sorte de viver em uma sociedade aberta e ser chefe de redação de um jornal que tem a liberdade de publicar a asneira que quiser. É o típico caso do intelectual europeu “engajado” que adora que experiências políticas “revolucionárias” sejam feitas em países latinoamericanos ou africanos, mas

nunca no seu próprio... Diogo de Castro – Recife

QUINTETO VIOLADO Queremos comunicar nossa satisfação pela matéria de José Teles sobre o Quinteto Violado. Como sempre, parabéns pela qualidade e diversidade que vêm sendo mantidas pela Revista.

Revista n° 53, maio de 2005 Matéria: "Eça de Queiroz e a questão judaica" Autor: Eduardo Cesar Maia

Marcelo Melo – Recife ZÉ DO PIFE

Interessante o perfil do músico/artesão Zé do Pife publicado na Revista. Acho que a cultura popular mais cedo ou mais tarde tem que deixar de ser tratada como coitadinha. Maria Elisabeth Miranda – Juazeiro do Norte

ERRATA O crédito pela foto publicada na edição n°82, de outubro de 2007, pág. 57, do espetáculo Mané Gostoso, é dos fotógrafos Rildo Moura e Sílvia Almeida.

O que mais irritava Eça de Queiroz na atitude do povo alemão é que covardemente recorria ao Estado para suprimir as conquistas dos judeus, sem tentar superá-las por mérito próprio. E o Estado, por sua vez, simpatizava com essa atitude, por tirar o peso das suas costas e jogá-lo na de um bode expiatório: é importante lembrar que a Alemanha vivia um período de crise comercial, de problemas na agricultura, decadência industrial e a classe média estava sufocada por excesso de imposto e por um pesado serviço militar. Aquilo que veio a acontecer algumas décadas depois da publicação dessas clarividentes linhas de Eça, todos já sabemos: a ascensão do Nazismo, a oficialização do anti-semitismo e o Holocausto foram a culminação de um movimento que já vinha se desenhando há muito tempo na sociedade e no Estado alemães.

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Caleidoscópios

Imagens arbitrárias surgem da cristalo­grafia do­s caleido­scópio­s. Miçangas, lantejo­ulas, canudinho­s picado­s e pedaço­s de vidro­ são­ alguns do­s artefato­s co­lo­rido­s a serem co­lo­cado­s entre três espelho­s, dentro­ de um tubo­, para mo­ntar o­ fascinante brinquedo­. Fo­i inventado­ em 1816, na Inglaterra, pelo­ físico­ esco­cês David Brewster, que uniu as palavras gregas kalos (belo­), eidos (imagem) e scopien (visão­), para fo­rmar “caleido­scópio­” (visão­ de belas imagens). Pernambuco­ tem um especialista no­ assunto­: Gio­vanni Bo­sco­, que mo­ra na praia de Pau Amarelo­ (Paulista, PE). Interessado­s em co­nhecer, co­nstruir o­u co­mprar caleido­scópio­s po­dem agendar visitas pelo­ fo­ne (81) 3435.3286. (Marco Polo)

Frevo africano?

Mestre Alberto­ Co­sta e Silva, co­mo­ lembra recente edição­ da Revista de História, da Biblio­teca Nacio­nal, escreveu no­ livro­ Um Rio Chamado Atlântico que assistiu, em 1972, na Co­sta do­ Marfim, a um grupo­ de músico­s executando­ uma música tradicio­nal que lhe pareceu “indiscutivelmente um frevo­”. E daí fez a ilação­ de que o­ frevo­ seria africano­ e não­ recifense (nascido­ no­ final do­ século­ 19, co­m a aceleração­ do­s do­brado­s executado­s durante o­ Carnaval po­r bandas militares, à frente do­s quais desfilam o­s capo­eiras que criaram o­ passo). É apenas uma hipótese, sem embasamento­ maio­r. Mas que mexe co­m o­ estabelecido­. Co­m a palavra, po­is, musicólo­go­s, histo­riado­res e etnógrafo­s. (Homero Fonseca)

Aquilino Ribeiro

Os resto­s mo­rtais do­ escrito­r po­rtuguês Aquilino­ Ribeiro­ (1885/1963) fo­ram trasladado­s para o­ Panteão­ de Santa Engrácia, o­nde ficará co­m o­utro­s no­ve craques das letras e da fadista Amália Ro­drigues. Aquilino­ é escrito­r interessante. De mais da metade de sua vasta o­bra (69 livro­s, sendo­ 17 ro­mances), co­nfesso­, não­ percebo­ bulhufas. Faz-me lembrar alguns o­rado­res baiano­s pelo­s termo­s estrambótico­s utilizado­s. Um exemplo­: «O VAGANAU – Quando­, nesse dia, a grande zo­rata se escabajo­u, facho­na e esampada, lastraram-se o­s macanjo­s, não­ o­s mais co­itanaxes, mas o­s futres. As récegas, ainda mal fo­rjicadas po­r uns chambris sem galilé, experluxaram to­das murzangas e resulhas, debaixo­ do­ meso­neiro­. Perto­, esbago­avam-se as caipo­ras no­ seu o­usio­ brês e so­lerte, empanizando­ o­ mandril das chedas mais cainhas, enquanto­ o­ bo­m do­ garifalte, cada dia mais zambro­ e so­mítego­, estro­ncava zarcamente o­ bajo­ujo­”.(Duda Guennes, de Lisbo­a)

DESAFORISMOS "A tradição é cultuada pelos que não sabem renová-la." Carlos Drummond

Pior filme

Na sua auto­bio­grafia, o­ grande Jo­hn Husto­n não­ co­nco­rda co­m a quase geral o­pinião­ de que a adaptação­ de Moby Dick tenha sido­ o­ seu pio­r filme. Surpreendentemente, ele elegeu o­ único­ autêntico­ faro­este que realizo­u (O Passado não Perdoa, 1960), na lo­nga carreira, co­mo­ “o­ seu pio­r mo­mento­” de direto­r de cinema. (Fernando Monteiro)

Bang-bang

Um faro­este co­meço­u a despo­ntar, no­s EUA, entre as maio­res arrecadações de bilheteria deste ano­: 3:10 to Yuma, refilmagem do­ clássico­ (do­s ano­s 50) Galante e Sanguinário, de Delmer Daves, co­m Glenn Fo­rd e Van Heflin. A no­va versão­ fo­i dirigida po­r James Mango­ld, e tem Russell Cro­we e Christian Bale no­s papéis do­s do­is astro­s do­ passado­: um pequeno­ rancheiro­ e um perigo­so­ fo­rada-lei preso­ numa cidadezinha do­ Oeste. (FM)

Ópera em Olinda

Depo­is de lo­tar as igrejas do­ Sítio­ Histórico­, em setembro­, a Mostra Internacional de Música em Olinda pensa mais alto­ para 2008: quer mo­ntar uma ópera ao­ ar livre, po­ssivelmente no­ Pátio­ da Igreja da Sé. (Carlos Eduardo Amaral)

24 horas

Que tal um recital de Anto­nio­ Meneses de madrugada? Se vo­cê fo­r melômano­ crônico­, daqueles de o­uvir um CD atrás do­ o­utro­, e fã de música clássica, espere o­ próximo­ Virtuosi e prepare seu co­lcho­nete. (CEA)

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O Drible

Relativismo cultural 1

A que po­nto­ chegamo­s. Parece que tudo­ ago­ra se equivale, tanto­ faz extirpar o­ clitóris das mo­ças o­u to­mar um chá das 5h, apedrejar adúlteras o­u praticar eleições diretas... Tudo­ é legítimo­ em no­me da “diversidade cultural”. No­ campo­ do­s atuais estudo­s literário­s, esse relativismo­ é muito­ claro­. Crítico­ literário­ pós-estruturalista, o­ americano­ J. Hillis Miller escreveu: “um julgamento­ ético­ é sempre um po­sicio­namento­ infundado­, sempre injusto­ e injustificado­, po­rtanto­ sempre sujeito­ a ser substituído­ po­r o­utro­ (...), mo­mentaneamente mais fo­rte o­u persuasivo­, mas igualmente infundado­”. (Eduardo Cesar Maia)

Relativismo Cultural 2

A o­nda relativista não­ é no­vidade. Na década de 30 do­ século­ passado­, Ro­bert Musil, descrevendo­ hábito­s tribais, já iro­nizava o­s po­liticamente co­rreto­s em seu O Homem sem Qualidades: “É verdade que eles batiam nas cabeças e cuspiam um no­ o­utro­, mas assim faziam apenas devido­ a co­nsiderações culturais superio­res”. (E.C.M.)

Teatro online

No­ ar desde o­ mês de o­utubro­, o­ po­rtal www.teatrope.com fo­i criado­ para funcio­nar co­mo­ uma vitrine da pro­dução­ lo­cal. O site é um palco­ aberto­ para discussões e debates so­bre as artes cênicas no­ Estado­, co­m edição­-geral do­ jo­rnalista e pro­fesso­r de teatro­ Ro­drigo­ Do­urado­. São­ po­stadas no­tícias, críticas, pro­gramação­ do­s teatro­s, curso­s e entrevistas, em seções diversas. (Mariana Oliveira) Information Overload, Fernando Peres

O cineasta mo­çambicano­-brasileiro­ Victo­r Lo­pes, auto­r do­ belo­ do­cumentário­ Língua – Vidas em Português, está filmando­ seu primeiro­ lo­ngametragem de ficção­, co­m o­ título­ pro­visório­ de O Drible. So­mar-se-á às po­ucas o­bras do­ cinema nacio­nal que abo­rdam o­ futebo­l, esta paixão­ nacio­nal inexplicavelmente po­uco­ vista nas telas. O filme é pro­duzido­ po­r Cacá Diegues. (HF)

Artes online

Está em cartaz no­ portal 2pts (www.doispontos.art.br) a Mostra Catálogo 2ptos, co­m patro­cínio­ do­ Funcultura e apo­io­ do­ Canal Co­ntempo­râneo­. A ação­ desdo­bra-se até 12 de dezembro­, na po­stagem semanal de trabalho­s de 12 artistas pernambucano­s o­u residentes em Pernambuco­, selecio­nado­s po­r uma co­missão­ curato­rial. Junto­ ao­s trabalho­s, são­ publicadas análises de seis crítico­s. (MO)

Confetes

Na última Bienal do Livro de Pernambuco, a escrito­ra paulista Marcia Denser, que não­ co­stuma alisar ninguém, desmancho­u-se em elo­gio­s a esta Continente. Desvanecida, a equipe agradece.

"Só a obra interessa. O autor não vale o personagem." Dalton Trevisan

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PERGUNTAS A Leda Alves

• Luís Reis, crítico de teatro. Além de Hermilo, quais diretores teatrais têm a admiração da atriz Leda Alves? Por quê? No­ Recife: Carlo­s Carvalho­, Vital Santo­s, Jo­ão­ Denis, Quiercles Santana – po­r afinidades de co­ncepções cênicas. Cadengue, Maro­ndis Lima, Ro­berto­ Lúcio­, Jeiso­n Wallace, Mano­el Co­nstantino­: pela seriedade, respo­nsabilidade pro­fissio­nal e amo­r ao­ Teatro­. • Luis Carlos Monteiro, crítico literário. Como se processa, hoje, o retorno dos direitos autorais da obra de Hermilo? Po­r alvará expedido­ po­r juiz da Vara da Família, fui co­nstituída administrado­ra da o­bra de Hermilo­ Bo­rba Filho­. Quanto­ ao­s direito­s auto­rais, decidi abrir mão­ do­ percentual que de direito­ me cabe, ficando­ para o­s filho­s de Hermilo­. Os entendimento­s e acerto­s passam po­r mim. • Geninha da Rosa Borges, atriz. Leda, Ledoria (como a chamo com carinho), também incomoda a você essa desvinculação, ou não-respeito, ao que era usual à época da fundação do Santa Isabel, em 1850? Ho­je, em 2007, cinco­ ano­s depo­is da reabertura definitiva do­ Teatro­ de Santa Isabel, na gestão­ do­ Prefeito­ Jo­ão­ Paulo­, tento­ dar as melho­res co­ndições ao­s artistas e ao­ público­. E no­ seu palco­ se apresentar o­ que há de excelente na cena brasileira. NOV 2007 • Continente

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CAPA

Os

Jogos

Kleber Mendonça Filho

Roberta Guimarães

da Verdade

Apontar o documentário como o principal manancial do cinema brasileiro, hoje talvez soe desnecessário, especialmente na encruzilhada de estilos que temos observado, na qual o registro filmado parece estar se questionando

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O documentário pernambucano Uma Cruz, uma História e uma Estrada

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CAPA Divulgação

H

Em 2002, José Padilha, diretor de Tropa de Elite, realizou o documentário Ônibus 174

RioFilmes/Divulgação

á um momento não exatamente chocante, mas certamente inusitado no último filme de Eduardo Coutinho, nosso mestre brasileiro do documentário, o autor de Cabra Marcado Para Morrer (1985), Edifício Master (2002) e O Fim e o Princípio (2005). Nesta nova obra, que se chama Jogo de Cena (2007), Coutinho mente descaradamente na frente da câmera, desempenhando o papel de um entrevistador que joga no próprio jogo que ele mesmo propôs uma atuação discreta e perfeitamente verdadeira no seu fingimento filmado. É um momento e tanto para um realizador que construiu uma carreira baseada em imagens do real por ele captadas, e que parte agora para desconstruir essa noção de “verdade” e “realidade” num filme notável. A referência que vem à mente é Orson Welles no seu F For Fake (1973), aquele filme-ensaio brilhante sobre as diferentes matizes da verdade. Alguns poderão concordar que, numa primeira leitura acerca da produção brasileira, as maiores alegrias da produção cinematográfica nacional têm existido no gênero documentário. Obviamente, o parâmetro de comparação é a ficção, que tem se recuperado positivamente ao longo dos últimos 15 anos, nesse período de retomada pós-Governo Collor. Apontar o documentário como o principal manancial de nosso cinema, ainda hoje, talvez soe algo desnecessário, especialmente na encruzilhada de estilos que temos observado. Um filme como Jogo de Cena, exibido no mesmo Festival do Rio – realizado em setembro último – que trouxe desconstrução semelhante em filosofia num outro filme chamado Juízo (2007), de Maria Augusta Ramos, nos leva a crer que o registro filmado no Brasil parece estar se questionando. Tanto Jogo de Cena como Juízo parecem expor, neste final da década de 2000, uma certa crise da verdade no cinema moderno, ou talvez seja uma crise da ficção, ou mesmo das narrativas como um todo. A verdade existe numa idéia? Na condição humana resgatada em histórias contadas pela segunda, ou pela terceira pessoa que finge falar em primeira pessoa? Ou a verdade existe apenas na documentação de som e imagem instantâneos de, por exemplo, uma rua verdadeira, com transeuntes verdadeiros, indo e vindo? Não deixa de ser curioso, por exemplo, que um dos maiores sucessos do cinema brasileiro nesta década, Tropa de Elite (2007), de José Padilha, uma ficção, utilize uma imagem normalmente associada ao relato documental, uma câmera trêmula de reportagem de guerra que filma como um efeito especial constante, honrando uma idéia de cinema da verdade. Ironicamente, o filme anterior de Padilha, Ônibus 174 (2002, um documentário), tinha a respiração, som, música e aparência geral de um filme de ficção. Como estão distantes (e ao mesmo tempo

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Divulgação

Em Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, o espectador perderá o parâmetro de quem diz o quê, quem interpreta o quê

próximas) as noções tradicionais de “cinema verdade” e “cinema direto” dos anos 60 das escolas Robert Drew ou de Jean Rouch. Por outro lado, o que dizer do último filme de um outro mestre como Vladimir Carvalho (A Bolandeira, O País de São Saruê, Conterrâneos Velhos de Guerra), que fez de O Engenho de Zé Lins (2007) um delicioso relato emotivo-documental dentro de uma escola mais convencional? Este é um filme que dá zoom na lágrima de um entrevistado, e que identifica com legenda num outro as datas de nascimento e morte (com estrela e cruz), detalhes que não fariam parte de uma idéia moderna no registro. No entanto, o evidente interesse do realizador pelo tema (a vida e arte de José Lins do Rêgo, a Paraíba, o Nordeste) é tão forte que uma espessa capa de verdade cobre a obra como um todo.

Nesse sentido, o filme de Eduardo Coutinho parece somatizar essa rica confusão de gramáticas disponíveis, dentro de uma verdade autoral muito pessoal. Ele já parece ter explorado essas possibilidades tradicionais ao longo da sua trajetória, e parece partir agora para investigar o real não exatamente da imagem, mas dos sentimentos, da narração emotiva, e manda a grande questão para o espectador ligeiramente atônito, ao final da sessão: o que ali era verdade, se tudo não apenas parecia, mas soava tão real? Em Jogo de Cena, mulheres contam histórias pessoais, mas há algumas atrizes ali inseridas, umas famosas, outras desconhecidas. Ouvimos histórias que se repetem nas reinterpretações das atrizes. Coutinho utiliza ao seu favor a fama dessas artistas (Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres), mas aos poucos vai desconsNOV 2007 • Continente x

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Fotos: Divulgação

CAPA

O mordomo Santiago é o protagonista do documentário homônimo de João Moreira Salles

truindo isso, pois logo o espectador perderá o parâmetro de quem diz o quê, quem interpreta o quê, e sobre quais seriam as verdades e as mentiras. Em Juízo, algo semelhante e igualmente notável. Ramos, dando continuidade ao universo revelado no seu filme anterior, Justiça (2004), e, ao que parece, fortemente inspirado numa estética-temática do francês Raymond Depardon, registra audiências entre juízes e menores infratores. Exatamente por serem menores de idade, ela não pôde tê-los no filme. Deflagra, portanto, um mecanismo de ficção aliado a aspectos básicos da própria linguagem do cinema (o plano e o contraplano), e o resultado ainda é um registro documental. Ela filma outros menores não-infratores como atores que interpretam o que os verdadeiros réus disseram originalmente. Na montagem, esses falsos depoimentos (mas carregados de verdade e tensão) são anexados às participações verdadeiras de juízes, advogados, promotores, pais e mães registrados pela câmera. Assistir à Justiça e a Juízo com uma platéia brasileira revela aspectos importantes das tensões sociais no Brasil, hoje, algo também observado nacionalmente em Jogo de Cena e Tropa de Elite, e que Juízo parecem muita discussão gerou. A experiência cinemaexpor, uma certa tográfica de ir a uma crise da verdade sala de projeção nesno cinema se país está atrelada a

O Engenho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho, é um delicioso relato emotivo-documental

uma noção de classe dominante, uma vez que as classes identificadas como C e D não vão, reconhecidamente, ao cinema. Os três filmes, a título de exemplificação, lidam com o crime e a violência, e as reações observadas não são muito cívicas. A desconstrução de um assaltante sem domínio é do português perante um juiz nos filmes de Ramos, ou mesmo o combate via tortura e execução sumária de traficantes em Tropa de Elite ganham sonora aprovação de platéias nervosas que parecem obter satisfação ao ver aquilo que temem (crime, violência, pobres) ser desmontado em imagens poderosas ali na tela. Não importa se imagens do real, ou da ficção.

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Divulgação

Idas e vindas

Documentário mostra a dignidade dos nordestinos que ainda hoje migram para São Paulo Mariana Oliveira

A

s estradas e rodovias, os deslocamentos e as migrações já deram origem a muitos filmes e livros interessantes. Central do Brasil e Diários de Motocicleta, ambos de Walter Salles, são filmes ligados organicamente às estradas. O documentário Eu Vou de Volta, dos cineastas pernambucanos Cláudio Assis e Camilo Cavalcante, também é um road movie que apresenta a realidade da migração entre o norte e o sul deste país de dimensões continentais. Os cineastas acompanharam dois ônibus clandestinos que faziam o trajeto Caruaru – São Paulo e São Paulo – Caruaru, dando voz aos viajantes e aos motoristas que expressam seus anseios, desejos e esperanças durante as longas horas na estrada. A idéia inicial foi de Cláudio Assis que, em 2002, convidou Cavalcante para realizar, em conjunto, um documentário que registrasse a viagem de volta de alguns nordestinos de São Paulo a Arcoverde. Com o argumento pronto, os cineastas conseguiram a verba do Programa Itaú Cultural Rumos do Cinema e Vídeo para desenvolver o roteiro. Durante a pesquisa, descobriram que além dos ônibus de bandeira oficial, havia um bom número de ônibus “clandestinos” que ofereciam o trajeto por metade do preço. Camilo viajou para São Paulo no ônibus clandestino e voltou junto com Cláudio no ônibus oficial. Ficou claro para os dois que o percurso feito pelos veículos não oficiais era bem mais interessante e que, além de mostrar as ilusões, as esperanças e os desejos daqueles que seguiam para terra da garoa, era relevante mostrar também o retorno dos nordestinos à sua terra natal. Em julho deste ano, com o patrocínio da mesma instituição, Cláudio Assis embarcou no ônibus que fazia o trajeto Caruaru – São Paulo, e Camilo Cavalcante pegou o caminho de volta com destino à cidade de Caruaru, simultaneamente. Os dois veículos deveriam se encontrar em uma das paradas, mas um imprevisto provocou o desencontro. A idéia dos cineastas era imergir naquele universo de fluxos e refluxos, deixando as coisas acontecerem livremente, sem invadir a privacidade dos viajantes, durante as 48 horas de viagem. Os personagens terminaram sentindo-se à vontade para contar a história

das suas vidas àqueles outros viajantes que traziam uma câmara na mão. Nos seus 54 minutos, os viajantes revelam seu amor pela terra natal ou atestam as oportunidades de trabalho oferecidas pela cidade grande, alguns estão ali voltando para casa definitivamente, depois de trabalhar anos e juntar um bom dinheiro, outros seguem para encontrar seus parentes que se aventuraram antes nesse fluxo migratório. Há ainda aqueles que arriscam tudo, largam o emprego, arrumam as trouxas, acreditando que no sul a vida será melhor. A narrativa é construída em cima dos depoimentos dos personagens, alternando o discurso dos que vão e dos que voltam, revelando os perfis diversos e honestos de brasileiros que depositam na estrada suas esperanças. “Eu Vou de Volta é um grande painel humano do povo brasileiro. É um filme que fala justamente dessas migrações de pessoas que estão sobre o fio da navalha, mas estão sempre indo e voltando e buscando uma forma de ser feliz, uma forma de subsistência”, explica Camilo. Apesar de ter produzido algumas obras de ficção que flertavam de alguma forma com o gênero documental, Eu Vou de Volta é o primeiro documentário do cineasta Camilo Cavalcante, que já teve seus curtas de ficção premiados e vai exibir o inédito O Presidente dos Estados Unidos, no Festival de Brasília, no final deste mês. Para ele, o cerne da questão que envolve os documentários é o respeito por aquilo que você está olhando, a questão da honestidade. Eu Vou de Volta foi exibido entre os dias 25 e 31 de outubro, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e deve passar este mês, junto com os outros cinco documentários produzidos dentro do Programa Rumos, por Belém, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Um DVD contendo os resultado dos projetos aprovados no programa, incluindo Eu Vou de Volta, também deve ser lançado. Segundo Camilo Cavalcante, muita coisa que foi registrada na viagem terminou ficando de fora dessa primeira montagem e ele espera que, em 2008, possam começar a trabalhar numa versão ampliada deste documento sobre a migração nordestina. NOV 2007 • Continente x

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Gil Vicente

CAPA

Maracatu, Maracatus documentário com direção de Marcelo Gomes

Imagens e representações de Pernambuco Um panorama do cinema documental no Estado Marcelo Costa

S

ob a ótica européia, as primeiras imagens e representações de Pernambuco foram concebidas ainda no século 17, quando da presença holandesa no Nordeste brasileiro. A fim de registrar os feitos do governo holandês, o Conde Maurício de Nassau convocou os serviços dos pintores Frans Post (1612-1680), para retratar em tela a paisagem e a topografia, bem como as conquistas militares e a arquitetura da cidade que construía, e Albert Eckhout (1610-1665), encarregado da representação dos habitantes do Brasil, sobretudo os nativos e os negros, além da fauna e da flora. Quase três séculos se passaram desde essas primeiras representações até a possibilidade do registro através do cinema. Entretanto, os primeiros na arte de documentar em película em Pernambuco também vieram do velho continente e seguiam propósitos semelhantes. Há registros de cinegrafistas de companhias européias rodando em Pernambuco na década de 10, mas os pioneiros oficiais são os italianos Ugo Falangola e seu sócio J. Cambieri, que criaram a primeira produtora de registros cinematográficos do Estado, a Pernambuco Film, em 1920.

Por encomenda do governo estadual, eles filmavam inaugurações de obras públicas, os carnavais da época, o sistema de transportes públicos do Recife antigo e a passagem do dirigível alemão Graf Zeppelin. As imagens documentais então produzidas seguiam a tendência estabelecida pelos Irmãos Lumière: o melhor enquadramento para capturar ambientes naturais, cenas do cotidiano, um instante da realidade filmado. Era o início de uma trajetória documental marcada pelo forte caráter institucional dos filmes e pela fragilidade dos meios de produção, evidenciada numa história construída sobre a euforia de ciclos e a apatia de vazios cinematográficos. O advento do som, as inovações tecnológicas, e posteriormente a cor, foram alguns dos obstáculos para a esparsa produção documental pernambucana. Ainda na década de 30, em meio à escassez fílmica, o libanês Benjamin Abrahão acompanhou e registrou o bando de Lampião durante meses pelo interior do Estado, expandindo as possibilidades do registro fílmico. Em 1941, Firmo Neto realizou o primeiro filme com gravação de som simultânea sobre um grupo de balé do Colégio Vera Cruz.

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tários em Pernambuco. Depois do marasmo dos anos 80 e início dos 90, quando a produção se restringiu aos vídeos de pequena circulação financiados por entidades sociais, houve uma renovação do documentário local na retomada do cinema brasileiro. Sob influência da cena musical do Estado, que ganhava o mundo ao som do Manguebeat – registrado em O Mundo é uma Cabeça, de Bidu Queiroz e Cláudio Barroso –, o cinema documental procurou investigar as raízes e a diversidade da cultura popular ao mesmo tempo em que se abria para o mundo numa linguagem dinâmica e moderna. Maracatu, Maracatus, produzido por Cláudio Assis e dirigido por Marcelo Gomes, é um dos marcos dessa guinada. O filme mistura realidade e ficção para investigar as diferenças culturais entre as gerações de integrantes do maracatu rural, ritual afro-indígena originado nos engenhos de açúcar de Pernambuco. Dez anos depois, um outro filme rodado na zona da mata também borrava as fronteiras entre documentário e ficção num exemplar do cinema-veritè. O Homem da Mata, de Antônio Carrilho, traçava um perfil de José Borba da Silva, cantor, canavieiro e pai-de-santo que interpreta Jack, justiceiro defensor dos canavieiros da região. Juntamente com Simião Martiniano, o Camelô do

Fred Jordão

Fred Jordâo

Divulgação/RioFilmes

Seguindo os altos e baixos da produção, o Estado reviveu um movimento em torno da sétima arte no início dos anos 50, com os filmes de Almir Larouche e um longa de Firmo Neto sobre o carnaval, de 1952. No mesmo ano, Alberto Cavalcanti rodou o clássico pernambucano O Canto do Mar que, apesar de uma ficção, trazia consigo elementos do documentário numa linguagem neorealista. O filme estimulou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais a patrocinar os documentários fotografados pelo pernambucano Rucker Vieira, um dos responsáveis pela gênese de um estilo genuinamente brasileiro, como atesta Glauber Rocha: “Sua luz é dura, crua, sem refletores e rebatedores… Ele entrava na imagem viva, na montagem descontínua, no filme academicamente incompleto e inaugurava assim o documentário brasileiro”. Após novo esfriamento, Fernando Monteiro e Fernando Spencer garantiram uma certa regularidade da produção na década de 70. O primeiro filmou documentários sobre a obra de João Câmara e o Mercado de São José, enquanto Spencer dedicou-se ao registro do artesanato local e investiu em outros formatos, introduzindo o Ciclo do Super 8 que possibilitaria a câmera na mão e o tornaria o principal realizador de documen-

O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas apresenta a vida nos subúrbios

No alto, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, produtores de KFZ 1348. Cena do curta O Mundo é uma Cabeça NOV 2007 • Continente x

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CAPA Cinema, de Clara Angélica e Hilton Lacerda, um retrato lírico-biográfico de um camelô cujo amor pelo cinema o leva a realizar filmes em VHS, o curta evidencia uma característica da produção atual a busca pelo que o sujeito tem de singular. Sob a tendência dos documentários brasileiros contemporâneos – o centro passa a ser os marginalizados urbanos, a vida no subúrbio, a exclusão e a violência social – O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas pode ser considerado o apogeu dessa geração. O longa de Paulo Caldas e Marcelo Luna é um exemplar do cinema urgente, capaz de unir filme e realidade num tecido social ao tratar da violência urbana na comunidade de Camaragibe. Dois personagens, Helinho, matador profissional com cerca de 40 mortes nas costas, e Ganinzé, percussionista da banda Faces do Subúrbio, nascidos no mesmo lugar, sob condições semelhantes, mas com rumos distintos. Com grande parte do filme rodado sem incentivos oficiais, a obra tornou-se um exemplo de independência financeira e criadora, fundamentais para tirar a viseira de um olhar condicionado e vislumbrar novas formas de expressão no campo do documentário. Um bom exemplo disso é o projeto Carranca de Acrílico Azul-Piscina, de Marcelo Gomes e Karim Ainöuz, sobre o sertão e a modernização esdrúxula

que a região atravessa. Numa abordagem filosófica, o filme investiga essa encruzilhada cultural influenciada por elementos da cultura arcaica – a carranca – e da cultura moderna – o acrílico azul-piscina. Um conflito

No rumo do documentário U

m dos fatores que contribuíram para a realização e divulgação dos documentários em festivais e salas de exibição na chamada retomada do cinema brasileiro foi o financiamento de filmes pela iniciativa privada. Um bom exemplo disso é o programa Rumos Itaú Cultural Cinema e Vídeo, cuja ação já apoiou a realização de mais de 35 filmes e vídeos, além de atividades para estimular o pensamento crítico nos últimos 10 anos. O livro + DVD Sobre Fazer Documentários é mais uma das iniciativas do projeto. Resultado de uma série de palestras realizadas em 13 cidades, a obra apresenta reflexões de pesquisadores e cineastas sobre os processos de realização e as tendências temáticas e estéticas dessas produções dentro de uma perspectiva histórica. As informações e os questionamentos levantados ajudam a traçar um panorama da produção nacional, desde as produções do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), entre 1936 e 1945, que promoviam uma imagem favorável e harmoniosa do país até a produção contemporânea, marcada tematicamente pela violência e exclu-

são que norteiam a sociedade brasileira e, esteticamente, pela diversidade de linguagens. Para fins didáticos, a produção foi dividida em três períodos: documentário moderno (1960-1984), tempos de vídeo (1984-1999) e documentário da “retomada” (1999 em diante). No primeiro momento dominou o “modelo sociológico”, através do qual o autor-cineasta estabelece um diagnóstico sobre situações sociais abrangentes. Nos anos 70, por sua vez, expandidas as técnicas de captação de som direto, prevaleceu a idéia de dar voz ao outro. Observa-se um empobrecimento estético para que o outro de classe assuma o discurso e não seja abafado pela voz do cineasta. Entretanto, não se problematiza a mediação do dar a voz de maneira satisfatória, e o olhar continua a ser do cineasta. Tratado como um divisor de águas, Cabra Marcado para Morrer (1984) introduz a entrevista como espaço de negociação e, juntamente com Di de Glauber Rocha, apresenta as novas possibilidades da linguagem documental expandidas no documentário contemporâneo.

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Reprodução

Fernando Spencer garantiu uma certa regularidade da produção na década de 70

entre vazios espaciais e a rarefação de vestígios da civilização e a profusão de ícones: do outdoor, da televisão, do comercial… Crente no poder da imagem, a obra foge ao lugar-comum dos depoimentos e investe na edição de imagem e som; algo próximo do cinema de Dziga Vertov e de Sem Sol, de Chris Marker. Diante dessa força criadora e das novas formas de fomento ao documentário, a estrutura de produção do gênero no Estado cresce e dá indícios de uma consolidação. Só neste ano, três projetos foram exibidos em rede nacional. Contemplado pelo do DocTV, Uma Cruz, uma História e uma Estrada, de Wilson Freire, se utiliza de elementos da cultura popular para tratar do conflito entre o efêmero e o eterno, o humano e o divino. Através dos depoimentos de poetas, cantadores e pessoas comuns, o road-movie investiga as cruzes nas beiras de estrada como simbologia cristã da dor da perda e da certeza da morte. Já em KFZ 1348, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso utilizam-se de um fusca abandonado para compor um rico desfile de tipos humanos. A partir da reconstituição da trajetória do carro que repousa em um ferro velho, o filme constrói

Os paradigmas dessa produção é a questão predominante do livro. Tendências como subjetividade e a reflexologia – filme voltado para si mesmo – são investigados sob a luz de Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut e 33, de Kiko Goifman, nos quais os documentaristas são os protagonistas da história; enquanto a auto-retratação é dissecada em O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, cujas imagens foram concebidas pelos próprios prisioneiros. A questão do filme-dispositivo também aparece para desfazer a idéia de retratação de uma realidade objetiva preexistente. “Para esses diretores, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas pode até mesmo provocar acontecimentos para serem capturados pela câmera”, afirma a documentarista Consuelo Lins, que analisa a obra de Cao Guimarães. O próprio cineasta mineiro sai em defesa do filme como um exercício de reciprocidade. Para Guimarães, a percepção dos aconte-

o perfil e o cotidiano dos seus sete proprietários para mostrar a desvalorização do produto brasileiro ao longo dos anos. Objeto de desejo da indústria automobilística no ano de seu lançamento, 1959, o fusca funciona como um dispositivo que permite aos documentaristas transitar livremente entre as classes sociais e realçar as crenças, as lembranças, a visão de mundo, as singularidades de seus personagens; componentes de um grande painel chamado Brasil. Entre as belas imagens de arquivo e o registro convencional do cotidiano dos personagens e do fusca no ferro velho, o filme é pontuado por planos detalhes e trilha sonora típicos da videoarte, conferindo-lhe um tom poético e delicado. Diferentemente da versão exibida na TV, a nova edição tem quase o dobro da duração e se encontra em fase de finalização, assim como O Circo Pindorama, de Léo Crivellare, Lula Queiroga e Roberto Berliner, documentário sobre um circo formado por sete irmãos anões, que também exibido em canal aberto recebe os ajustes para a versão em longa-metragem. É sinal da autonomia de uma produção por muito tempo amarrada à idéia da propaganda institucional e submetida ao olhar dominante europeu das nossas origens.

cimentos reais sempre estará relacionada com o mundo imaginário, e o cinema do real seria a arte desse encontro que leva a um lugar desconhecido, muitas vezes mais forte e intenso do que se imaginava. Diante de tantos vieses e caminhos sinuosos, o livro deixa a sensação de que o documentário jamais deve ser entendido como um gênero de contornos precisos. Desde o cinema-verdade e a multiplicidade de aspectos da realidade, passando pela incorporação de elementos típicos do documentário – equipamentos leves, som e imagens sincronizadas, roteiro mínimo em cima de personagens reais; pelo cinema ficcional do pós-guerra – o Neo-realismo, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo –, até o cinema experimental, houve a fluidez das fronteiras entre o documentário e a ficção, entre o real e o imaginário. Nada melhor para abrir caminho a novas idéias e alertar para os perigos da manipulação do discurso, talvez o maior instrumento de poder de nossa era. (Marcelo Costa) NOV 2007 • Continente x

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CAPA CAPA

Realidade ou ficção? O seminário Crossing the line between fact and fiction (Ultrapassando o limite entre realidade e ficção), ocorrido em Londres, no final de setembro, discutiu os limites entre a produção documental e a ficção Maria Eduarda Andrade, de Londres

Battle for Haditha dramatiza os eventos que ocorreram na cidade iraquiana de Haditha, em novembro de 2005

É

tão forte a cultura de documentários na Inglaterra que, no horário nobre, enquanto os brasileiros se mobilizam para ver novela e esquecer da vida, os britânicos assistem a filmes de não-ficção. O telespectador pode escolher entre vários temas que não dizem respeito somente à cultura e história. Os documentários abordam de tudo, desde a situação do rio Ganges na Índia ao impacto do consumo humano no meio-ambiente. Mas nem tudo é uma maravilha. A produção de documentários na televisão vem passando por uma crise de credibilidade e ética. A BBC exibiu em julho deste ano o clipe de um documentário sobre os bastidores da monarquia, em que a Rainha Elizabeth II aparece sendo fotografada por Annie Leibovitv. A cena mostra a rainha saindo de uma sala com

ar enfurecido depois de ter sido fotografada, mas isso na realidade não aconteceu. A ordem dos acontecimentos foi alterada na edição, sob o argumento de “dar mais sentido” à seqüência. O episódio rendeu discussões sobre o que é verdade daquilo que se vê na televisão, e a necessidade de questionar o veículo. O diretor da BBC1, Peter Fincham, pediu desculpas públicas, assumiu ter enganado a audiência e renunciou ao cargo. O diretor da produtora RDF, Stephen Lambert, que produziu o filme, também renunciou. A essência de documentários é a representação de pessoas reais, e esta essência é um abrigo profícuo para polêmica e discussões éticas. Até que ponto o diretor pode manipular a montagem de um documentário e continuar sendo honesto com os personagens

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Fotos: Divulgação

Em Forgiven (Perdoado), o diretor Paul Wilmshurst cria personagens fictícios baseados em pessoas reais

e a audiência? Paul Watson, um dos mais respeitados documentaristas britânicos, diz ter sido “bode expiatório” da crise de credibilidade da televisão. Em julho deste ano, a ITV exibiu seu filme Malcolm and Barbara: Love’s Farewell (Malcom e Bárbara: Despedida de Amor), a continuação de um documentário feito por Watson nove anos antes, onde o diretor acompanhou a luta do pianista Malcom Point e da sua esposa Bárbara contra o Alzhaimer. O press-release da emissora divulgou erradamente que o filme mostraria “os últimos instantes” de vida do compositor. Na verdade, Point morreu três dias depois da gravação da última cena, que pode ser entendida como o seu momento final de vida. Isso bastou para causar polêmica e questionar a integridade do diretor, por supostamente exibir o momento de morte de um homem. Mas qual a relevância desta nuance como na representação geral da história? Para Bárbara Malcom, a discussão não tem nenhuma importância. “O filme termina com uma imagem congelada, simples e delicadamente sugerindo que Malcom morreu... fim da história. Qual a relevância se ele morreu dois minutos, dois dias ou duas semanas depois daquele ponto? Todo esse debate e sobre uma cena que dura no máximo alguns minutos. As pessoas deveriam estar falando sobre uma hora e 28 minutos que realmente importam”, declarou em entrevista a BBC. Nem sempre o documentário tradicional é a melhor forma de contar uma história real. Na constante busca por novas formas para falar da realidade, o docudrama cai no gosto da audiência, e vem se tornando um gênero cada vez mais comum na Inglaterra. O assunto foi tema do seminário Crossing the line between fact and fiction (Ultrapassando o limite entre realidade e ficção), ocorrido durante três dias em Londres, no final de setembro. O encontro reuniu produtores, executivos e diretores, referências do cinema e da televisão no país, como Ken Loach (Ventos de Liberdade), Stephen Frears (A Rainha) Pawel Pawlikowski (Meu Amor de Verão) e Nick Broomfield (Battle for Haditha), e não encerrou as discussões sobre as nuances e implicações da mescla entre realidade e ficção. Nick Broomfield é o exemplo de um diretor que levou para a ficção a experiência de documentarista. Em Ghosts (Reino Unido, 2006), NOV 2007 • Continente x

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Fotos: Divulgação

CAPA

A Caminho de Guantánamo (Reino Unido, 2004), do diretor Michael Winterbottom, é um exemplo conhecido de docudrama

Broomfield encena o drama vivido por imigrantes ilegais no país, uma população estimada em três milhões de pessoas, através da tragédia que resultou na morte por afogamento de 23 chineses catadores de mariscos na baía de Morecambe, no norte da Inglaterra. A opção em fazer do filme uma ficção, e não um documentário convencional, foi mais estética do que pragmática. “Eu quis me equilibrar na linha que separa a ficção do documentário, por um lado utilizando pessoas reais e improvisando diálogos, mas ao mesmo tempo impondo uma estrutura narrativa”, explica. A interpretação de atores não profissionais pode soar tosca algumas vezes, mas o universo de realismo do filme transporta a audiência para o mundo real dos personagens. Durante o seminário, Broomfield mostrou clipes do novo filme Battle for Haditha, que estreou na edição deste ano do London Film Festival. O filme dramatiza os eventos que ocorreram na cidade iraquiana de Haditha, em novembro de 2005, quando uma bomba exploNem sempre o diu matando o combatente documentário americano Miguel Terratradicional é a zas. Nas horas seguintes ao ataque, seus companheiros melhor forma mataram 24 civis iraquiade contar uma nos, entre crianças e idosos. história real Nem os americanos nem os

iraquianos gravariam entrevista sobre um assunto como este em um documentário formal. Num caso assim, a saída foi dramatizar o ocorrido. Para dar a atmosfera de realismo ao filme, o diretor usou ex-combatentes de verdade para o papel dos soldados americanos. Nenhum dos rapazes havia trabalhado como ator antes. Eles foram escolhidos precisamente para interpretar em frente às câmeras o que viveram na vida real. Todos sofrem de estresse pós-traumático e vivem à base de tranqüilizantes, para lidar com as lembranças do que viram e fizeram durante a barbárie da guerra no Iraque. “A idéia era representar a sensação de estar no meio daquela batalha. Ambos os lados têm suas diferentes justificativas para o que fizeram. O mais difícil foi humanizar o papel dos soldados americanos. Seria muito fácil fazer um filme que humanizasse somente as vítimas iraquianas, mas a verdade é que os soldados enviados ao Iraque são quase adolescentes que não sabem direito o porquê de estarem ali”, explica. A maioria dos intérpretes iraquianos também foi escolhida sob o critério de dar o maior nível possível de realismo ao filme: eles também viveram na vida real o drama encenado para o cinema. Uma família inteira vivendo em Faluja, cidade na Jordânia onde o filme foi gravado, foi escolhida para as gravações, que aconteceram na casa onde viviam, transportando uma técnica usada em documentários para ficção. A intérprete da perso-

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Em Ghosts, o diretor Nick Broomfield leva para a ficção a experiência de documentarista

chada com luzes estroboscópicas e henagem que tem o filho assassinado por O seminário metal num barulho ensurdecedor. soldados americanos viveu exatamente discutiu as nuances avy Um documentário tradicional jamais o mesmo drama na vida real. daria à audiência uma sensação tão As contradições em produções deste e implicações real do que foi vivido pelas vítimas. tipo residem justamente na tênue (e fas- da mescla entre O diretor Paul Wilmshurst, presencinante) divisão entre o que é verdade e realidade e ficção te ao seminário Crossing the line, diz criação. Em documentários convencionais, onde pessoas reais dão depoimentos, cada discur- que ao criar personagens fictícios baseados em pessoso sobre um mesmo fato contém uma dose particular as reais, ele lida com outra esfera de representação, e de verdade. A própria linguagem usada na reprodução não precisa se manter estritamente fiel aos fatos. Wilde uma história dá espaço a diferentes interpretações. mshurst mostrou trechos de seu último filme Forgiven No caso de filmes baseados em fatos reais, é difícil saber (Perdoado), exibido na televisão em agosto passado. o limite entre o que aconteceu na vida real e a liberdade O docudrama é desconcertante pela sutileza com que aborda a pedofilia do ponto de vista do pedófilo. Steartística do diretor. A Caminho de Guantánamo (Reino Unido, 2004), phen, um inglês de classe média que abusa sexualmendo diretor inglês Michael Winterbottom, é um exemplo te da filha de 10 anos, é descoberto pela mulher Liz e conhecido de docudrama. O diretor intercala entrevis- condenado à prisão. Depois de passar por reabilitação tas com dramatização da tragédia vivida por três jo- e terapia, é perdoado pela esposa e volta ao convívio do vens ingleses de origem paquistanesa numa viagem ao lar. A história aconteceu na vida real, mas jamais poAfeganistão, logo depois dos acontecimentos de 11/09. deria ser abordada por um documentário tradicional, Shafiq Rasul, Asif Iqbal e Ruhel Ahmed, que estavam devido às leis de proteção à criança no país. Wilmshurst numa viagem de férias, foram torturados pela inteligên- entrevistou a família e baseou o roteiro na pesquisa. O cia americana como terroristas, e confinados na base de diretor manteve-se fiel ao quadro geral da história, mas Guantánamo, sem nenhum contato com a família ou encontrou espaço para interpretar criativamente a readvogados, por mais de dois anos. Os rapazes falam em alidade. Talvez essa seja a razão pela qual um número entrevista sobre as experiências de tortura, e na cena se- cada vez maior de documentaristas esteja se arriscando guinte, os atores aparecem acorrentados numa sala fe- no mundo da ficção. NOV 2007 • Continente x

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Tropa de uma elite perdida

Fotos: David Prichard/Divulgação

CINEMA

Além de suas qualidades como cinema, o polêmico filme apresenta um retrato de um Brasil que perdeu toda delicadeza, engolfado na pobreza, na violência e na corrupção e criou uma espécie de herói nacional torto Homero Fonseca

O

povo não vai ao cinema. Vê filmes na televisão ou por DVDs, piratas em sua maioria. Creio que não é só o preço absurdo dos ingressos dos cinemas de shoppings centers o fator de afastamento da plebe rude das salas de exibição, embora isso conte, e como. É que o povo não se vê nas telas, ocupadas, em grande parte, por imagens inodoras de uma classe média atrapalhada ou angustiada, conforme o gênero seja comédia ou drama, ou por versões estereotipadas de pobreza ou regionalismos que, com maior ou menor grau de qualidade estética, não alcançam os corações ou mentes dos quase 190 milhões de brasileiros, que em sua maioria andam de ônibus ou bicicletas. Claro que aventuras melífluas de trapalhõe$ & xuxa$, movidas a milionárias campanhas de marketing e impulsionadas por nomes estelares do universo televisivo, atraem grandes massas de público. Mas não é esse o caso de Tropa de Elite, que, não obstante a pirataria desbragada, caminha celeremente para o pódio dos campeões de bilheteria. Com poucas semanas de exibição, já se aproximava da marca de 2 milhões de espectadores (apesar dos DVDs piratas). O filme de José Padilha faz parte de um cardápio onde estão listados Dois Filhos de Francisco (mais de 5 milhões de espectadores), Carandiru (mais de 4 milhões) e Cidade de Deus (mais de 3 milhões). Além do tremendo sucesso de público, o que os une é o fato de pôr o povo como ele é ou parece ser na telona. E que bate, de alguma forma, com a percepção que o povo

tem de si mesmo. Esse é o diferencial. Cidade de Deus e Carandiru, por exemplo, levaram ao Teatro do Parque, aqui no Recife, a preços populares, gente que nunca havia pisado lá. Entretanto, Tropa de Elite produziu a maior comoção jamais causada por um filme brasileiro, extrapolando o universo cinematográfico para se constituir num fenômeno social. Provavelmente será o fato cultural do ano. E mais que isso. Além dos debates já exaustivamente veiculados (é facistóide, é de esquerda etc., etc.), elevou o capitão Nascimento à categoria de espécie de herói nacional torto. Narrado em primeira pessoa, cria uma empatia com o público, inerente a essa forma narrativa (vejase o calhorda Bentinho, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis: toda a célebre ambigüidade da história repousa nessa estratégia narrativa). Utilizando uma linguagem próxima do documentário, em que a câmera na mão, trêmula e nervosa, registra cenas de grande impacto, pela violência e crueza, assume ares de cinema-verdade do ponto de vista da recepção do

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O ator Wagner Moura, como Capitão Nascimento

O produtor Marcos Prado e José Padilha, o diretor do filme

público. Tudo a ver: sabemos que aquilo é verdade. A corrupção policial (mostrada, entretanto, de uma forma nunca antes tão explícita), a desumanização de traficantes e policiais, a tortura, a extorsão, a compactuação e hipocrisia da classe média-branca-consumidora de drogas, a violência como alternativa possível. O som impactante, o ritmo alucinado, os cortes bruscos compõem uma arquitetura fílmica de padrão internacional (leia-se Hollywood), o que não é um mal em si (como se discutiu esterilmente na estréia de Cidade de Deus) e revela domínio técnico do métier. Afinal, a estética da fome de Glauber, significativa no contexto da resistência ideológica de um certo período, foi entendida e consumida só por intelectuais, o que é um paradoxo, em tese. O diretor José Padilha teve, nas entrevistas de lançamento do filme, que esgrimir sua outra obra, Ônibus 174, para se livrar das acusações de fascista, apólogo da violência etc. A questão não é essa. A obra escapou ao domínio do criador, como todas as realizações apropriadas pelas multidões. O que importa é a decodifi-

cação pelo público. A impressão que me ficou é de que realmente o espectador confirma sua crença de que violência se combate com violência e ponto. Cadê as pesquisas rigorosas dos Departamentos de Ciências Sociais para aferir tecnicamente isso? Restringimonos, pelo que sei, ao blá-blá-blá dos debates de sempre. (Alguém aí tem dúvida sobre um eventual plebiscito sobre a pena de morte no Brasil? Basta lembrar a consulta sobre o desarmamento.) Os meninos nas escolas da classe média brincam de Capitão Nascimento. Nas lojas de produtos eróticos já se vendem simulações de fardas de militares do Bope para as fantasias sadomasoquistas. “Bota na conta do Papa” – é um bordão que rola por aí. A verdade é que somos um país sem qualquer delicadeza, onde a banalização da violência perpassa todas as classes sociais e onde a elite política e econômica, narcisista, egocêntrica e vazia, foi/é historicamente incapaz de construir um projeto de Nação. O filme não levanta qualquer questionamento ético sobre o uso da violência e da tortura pelo Bope, espécie de Os Intocáveis tupiniquins (o sociólogo Luiz Eduardo Soares já disse que a situação retratada piorou, pois os caras reais do Bope deixaram de ser, como seria de se esperar, incorruptíveis). A “crise existencial” do protagonista é patética: decide-se a cair fora não por um desconforto moral diante do universo brutal no qual é produto e produtor, mas apenas porque vai ter um filho e pode morrer no primeiro tiroteio e quem vai criar meu filho etc. e tal. Mas o fato é que a sociedade não se faz aquele questionamento, noves fora esparsas manifestações de protesto pela paz e pela violência quando um filho das classes abastadas é a vítima. Deve-se por isso condenar Tropa de Elite? Nunca. Trata-se apenas de um retrato, parcial como todo retrato ou representação da realidade, para ir mais longe, da nossa sociedade patológica. E, além de suas qualidades propriamente cinematográficas, teve o mérito de acirrar a discussão. Mas trata-se apenas de um filme. NOV 2007 • Continente x

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Fotos: Divulgação

n INDÍGENA

Projeto Rito de Passagem no Recife O público recifense vai ter, pela primeira vez, a oportunidade de se sentir dentro de uma legítima aldeia indígena, com direito a conhecer cerimônias fechadas e tradicionais realizadas por povos de diferentes etnias do país. A iniciativa é do Projeto Rito de Passagem – Canto e Dança Ritual Indígena que durante os dias 9, 10 e 11 de novembro vai mostrar a cultura original de povos nativos numa cerimônia cheia de força. Para a apresentação, será construído um espaço com condições ideais para que a cerimônia seja fiel aos rituais. O local escolhido foi o Marco Zero, ao ar livre, com terra batida e elementos presentes nos pátios de cerimônias das aldeias – fogo, água, terra e ar. Serão construídas arquibancadas com capacidade para abrigar mil pessoas – que ficarão de frente para o mar, isolando por completo o contato com o ambiente urbano. A proposta é aproximar os habitantes da cidade dos povos indígenas que conservam a vida tradicional nas aldeias, por meio da arte e dos rituais.

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Rito de Passagem – Canto e Dança Ritual Indígena Marco Zero. De 9 a 11 de novembro às 20h.

Fotografia de Stuart Franklin, da agência Magnum

n POPULAR

n FOTOGRAFIA

Festival de cultura na Zona da Mata

Exposição apresenta imagens da Magnum

A imprescindível e cada vez mais reconhecida riqueza cultural da mata norte pernambucana ganha ainda mais visibilidade com a presença da Velha Guarda da Mangueira, durante a nova edição do Canavial – Festival de Cultura da Zona da Mata. Itinerante, este ano o evento se realiza no município de Aliança, berço do Maracatu Estrela de Ouro. Inédito, o encontro dos veteranos da verde e rosa com os anfitriões será na noite de sábado. Também na programação, Isaar de França, Nelson da Rabeca, Lia de Itamaracá e Maestro Spok. (André Dib)

Alguns dos principais fatos da segunda metade do século 20 foram retratados por fotógrafos ligados à agência de fotografia Magnum, que acaba de completar 60 anos. Marcando a data, chega ao Rio de Janeiro a exposição Magnum 60 Anos. Composta por fotografias do arquivo da agência, de nomes como Henri Cartier Bresson, a mostra apresenta 50 imagens, divididas em seis capítulos: A Tradição da Magnum; Momentos; Retratos; Novas Perspectivas; Fotografia Documental Contemporânea e Magnum in Motion.

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Canavial 2007 De 27 de novembro a 2 de dezembro, no Ponto de Cultura Estrela de Ouro (Aliança, a 75 km de Recife). Entrada franca. Informações: http://www.estreladeouro.org/

Magnum 60 Anos Caixa Cultural, RJ – Galeria 1, Centro Até 2/12, de terça a domingo, das 10 às 22h. Entrada franca. Informações: 21 2544-4080. www.caixacultural.com.br

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n ARTE

Olinda de portas abertas para arte

As fotografias de Verger serão expostas no Recife

Em sua sétima edição, o Olinda Arte em Toda Parte faz duas grandes homenagens. A primeira delas é referente aos 25 anos de recebimento do título de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela cidade, e a outra a Aloísio Magalhães, artista que foi um dos responsáveis pela conquista desse título. O projeto reúne obras de 400 artistas e movimenta bares, restaurantes, pousadas, igrejas e outros espaços públicos com exposições de arte e visitação a mais de 120 ateliês espalhados pela cidade, mantendo a fórmula que faz sucesso até hoje: congregar ateliês e espaços culturais numa imensa galeria de arte, aberta gratuitamente ao público. n EXPOSIÇÃO

O Brasil de Pierre Verger no Recife Como forma de homenagear os 60 anos da chegada de Pierre Verger ao Brasil e os 10 anos de sua morte, organizou-se a exposição O Brasil de Pierre Verger, que está sendo exibida no Recife, no Instituto Cultural Banco Real. A exposição é uma viagem pelo Brasil dos anos 50 e contempla 18 temáticas, entre elas: Festas populares; Mestres da arte; Vida urbana; Cotidiano e trabalho; Cultos afro-brasileiros; além de outros campos ainda desconhecidos do grande público: os sertões pernambucano e baiano e seu encontro com os Estados de Alagoas e Paraíba. Estão em exposição 200 fotografias, muitas inéditas, que mostram a magia do olhar de Verger. nnn

O Brasil de Pierre Verger Instituto Cultural Banco Real Até 18 de novembro. Entrada franca. Informações: (81) 3224 1110 instituto.cultural.banco.real@br.abnamro.com

n MÚSICA

Circuito Sinfônico corta o Nordeste Em novembro, os 70 jovens instrumentistas da Orquestra Sinfônica Jovem, nascida no Conservatório Pernambucano de Música, fazem concertos em capitais nordestinas no Circuito Sinfônico 2007. O evento passa por Recife, Caruaru, Campina Grande, Maceió, Olinda, João Pessoa, Natal e Fortaleza. No repertório, os maestros José Renato Accioly e Sérgio Nilsen Barza elencaram peças como: As variações Enigma de Elgar; o Concerto para Trompete e Orquestra em Mi Maior de Hummel; e Finlândia, do compositor Sibelius.

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Olinda Arte em Toda Parte Sítio Histórico de Olinda. De 22 de novembro a 2 de dezembro.

Grupo de artistas participantes do projeto

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Circuito Sinfônico 2007 1º/11, Maceió – Teatro Deodoro às 20h 9/11, Olinda – Catedral da Sé às 20h 10/11, João Pessoa – Igreja de São Francisco às 19h 12/11, Natal – Teatro Alberto Maranhão às 20h 14/11, Fortaleza – Teatro José de Alencar às 20h 27/11, Recife – Teatro de Santa Isabel às 20h. OUT 2007 • Continente

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LITERATURA

ALBERTO MORAVIA O precursor do romance existencialista O romance realista do tipo existencialista tem um precursor que estaria completando 100 anos de nascimento neste mês de novembro Fernando Monteiro

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lberto Pincherle – que se tornou mundialmente famoso com o nome de batismo mudado para o sonoro “Alberto Moravia” – nasceu em Roma, em 28 de novembro de 1907, no seio de uma família de origem judaica por parte do pai, um arquiteto (e pintor de domingo) casado com uma católica mais de 20 anos mais jovem. Alberto foi um daqueles meninos introvertidos por natureza e cujo temperamento – talvez herdado do pai que “parecia um personagem saído de um romance de Italo Svevo” – vem a se agravar por motivo de doença. Aos nove anos, ele contraiu tuberculose osteoarticular e, durante 10 anos, passou a conviver com o ambiente de sucessivos sanatórios médicos, com os estudos interrompidos e horas e mais horas disponíveis para ler autores como Dostoievsky, Stendhal, Manzoni, Goldoni e Shakespeare. O jovem paciente Pincherle leu – ou “devorou” – livros de outros autores, porém esses quatro são, já, suficientes para explicar um pouco do Moravia que irá despontar no menino de 13 anos que começou escrevendo poemas vagos, e, logo aos 17, já estaria empenhado na elaboração de um romance audacioso, tratando de uma família da média burguesia decadente que era a classe do autor verde como as colinas de Roma. Verde? Ninguém diria isso, ao ler a obra – Os Indiferentes – publicada em 1929, com o nome definitivo estampado na capa de uma edição Giardini. Nas palavras do próprio escritor: “Fui a Viareggio e vi, ali, o livro nas vitrines. Gli Indifferenti, de Alberto Moravia, uma edição paga por meu pai, com recibo por mim assinado para o arquiteto Pincherle e tudo mais. Eu estava apaixonado, então, por uma mocinha de 17 anos – francesa de Zermatt –, que me

saiu da cabeça naquele mesmo momento. Não era assinante de jornais e não sabia que o romance já se encontrava nas livrarias. Logo depois, recebi uma carta do editor Giardini, que me pedia: ‘Faça pelo menos uma coisa, leve o livro para G. A. Borgese, pessoalmente’. Borgese era o mais conhecido crítico literário do Corriere Della Sera. Fui. Ele me recebeu com muita amabilidade, mas cometi uma gafe enorme porque, na hora de escrever a dedicatória, eu perguntei: ‘Como é que o senhor se chama? Giulio ou Giuseppe?’ E Borgese respondeu: ‘Será que o senhor é tão futurista a ponto de ignorar o meu nome?...” Não, não se tratava de nenhum futurista distraído. Na frente de G. A. Borgese (Giuseppe? Giulio?) estava um autor de 22 anos que, com Os Indiferentes, antecipava o romance de recorte existencialista. A história literária só tardiamente reconheceu isso, porém ainda a tempo de premiá-lo com um mérito valioso para o Moravia que, aos 82 anos, deixou claro o orgulho de ser assim considerado pela crítica (principalmente francesa): “Eu não pertenço à escola do romance neo-realista. Cesare Pavese, Elio Vittorini e outros foram neo-realistas, mas eu sempre fui um realista de tipo existencial, que é uma coisa completamente diferente. Enquanto a maioria dos escritores italianos era atraída pelo modelo americano de Adeus às Armas (de Ernest Hemingway), que é uma crônica autobiográfica e quase jornalística levada a um nível lírico, eu me apresentei, desde 1929, como um escritor da escola franco-russa de romances construídos à maneira, digamos, de Dostoievsky. Em Os Indiferentes, pretendera unir algo de Manzoni ao senso dramático, ou teatral, que um relato da decadência moral da burguesia pedia, a qualquer romancista que não fosse um repórter.

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ra, Le Mépris etc.), enquanto o Desse projeto inicial, fui cair popular autor também escrena antecipação dos climas de via argumentos cinematográA Náusea e O Estrangeiro (resficos e mantinha até uma colupectivamente de Jean-Paul na de crítica cinematográfica. Sartre e Albert Camus) – amO romance 1934 é uma subos publicados 10 anos depois perior captação da atmosfera – sem fazer parte, é claro, do não só de Capri, mas da Itália grupo existencialista que ainque via a Alemanha despontar da nem existia.” como potência de novo periA ação do livro não decorgosa sob os gritos coléricos de re em mais do que 48 horas, Hitler. Capri já fora descrita com cinco personagens se por Axel Munthe, Ivan Bunin movimentando entre três cae – como dizem os portuguesas. Lembra, de fato, uma peça ses – uma “data” de escritode teatro – com a diferença de res que moraram na ilha, sob se ouvir mais do que os diáloaquele “céu pintado” que degos, pois também sabemos os saba no antigo e turquesa Mar pensamentos que se ocultam Tirreno. na mente dos personagens Moravia refugiou-se na clandestinidade, em 1941 É a isola das loucas pessoas do circuito claustrofóbico daqueles “indiferentes” presos na camisa-de-força da sua refinadas que namoravam o inesperado e o perigo – ainda “romântico” – nos cenários dominados por algum sorticlasse social. O ano em que surgiu o romance foi também o da con- légio perdido: exatamente o caso da ilha italiana à qual se solidação, em 1929, do governo fascista, com a assinatura recolheu o louco imperador Tibério, para escrever poeda “concordata” entre Mussolini e a política de avestruz do mas e ser completamente perverso. O personagem princiVaticano daquela época. Todos puderam ler, no romance pal de 1934 se enamora de uma loura (alemã, é claro) não do jovem estreante, um retrato sem retoques da burguesia menos que fascinada pelos discursos do Führer. Moravia nunca esqueceu a lua-de-mel com Elsa Moromana “demissionista” em relação ao endurecimento do fascio (quando não acumpliciada com o regime do mes- rante, numa Capri muito diferente da de hoje, desfigurada pelo turismo. Embora o casal logo se visse obrigado tre-escola improvisado em ditador). Inevitavelmente, as obras de Moravia irão ser proibi- a fugir da polícia nazi-fascista de Nápoles (internando-se das tanto pelo governo quanto pela força do “index” da no cenário montanhoso de La Ciociara até retornarem à Cúria romana, que considerava “escandalosas” as cruas capital italiana, para enfrentar os anos de “reconstrução” cenas moravianas de sexo. Em 1941, com a publicação nacional, depois da guerra), o amor e a beleza em meio do seu romance La Mascherata, o escritor foi obrigado ao perigo mantiveram as duas personalidades poderosas a viver na clandestinidade, refugiando-se no meio rural – “Morante-Moravia”, como eram chamados – unidas da Emília, juntamente com a escritora Elsa Morante, com pelo casamento até 1962, quando Elsa e Alberto tomaram caminhos diferentes, na arte e na política. quem acabara de se casar. Moravia foi um entusiasta – imediato – das revoCom o final da guerra, viria o reconhecimento interna- luções cubana e chinesa (a “cultural”), e se apresentaria cional do “Amaro Gambarotta” (“amargo perna-de-pau”, como candidato independente ao Parlamento Europeu, apelido de Alberto entre os romanos, num trocadilho pelo PCI, em 1984. E, depois da Morante, o velho romano com o nome de um conhecido vermute e o defeito físico ainda se casaria com Dacia Maraini e com a espanhola Carmen Llera, quase 50 anos mais nova. que lhe restou da tuberculose óssea). Concluindo esta breve celebração do centenário de um A estatura do seu primeiro romance teria continuidade com Agostino, O Conformista e 1934, entre as muitas escritor que permanece importante quase 20 anos após a obras publicadas pelo prolífico autor que chegou a ocu- sua morte (em 26 de setembro de 1990), reforcemos a nepar a presidência do Pen Club, entre 1959 e 1962. Muitos cessidade das novas gerações conhecerem pelo menos os diriam que já não era o “mesmo Amaro”, porém a leitura romances Os Indiferentes, Agostino, O Conformista e 1934. – em profundidade – de um romance como 1934 des- E valeria citar, ainda, o último que foi escrito por Alberto mente uma certa má- vontade da crítica com relação ao Moravia – Viagem a Roma – como um ajuste quase psiMoravia do pós-guerra, de grande êxito nas vendagens de canalítico do escritor com a cidade que o viu nascer, há romances inclusive adaptados para o cinema (La Ciocio- exatos 100 anos. NOV 2007 • Continente x

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Fotos: acervo da família

Alberto da Cunha Melo (1942-2007)

O Poeta emigrou Morre o escritor que renovou crítica e criativamente a força da tradição poética pernambucana Astier Basílio

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ernambuco rendeu ao mundo duas das maiores vertentes poéticas da lírica brasileira: Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Podemos dizer que Alberto da Cunha Melo, assimilando as heranças dos conterrâneos, promoveu em sua obra um inusitado encontro destas duas vozes, reprocessando-as de maneira particular e original em sua poética, aliando forma e conteúdo com inteligência e talento fora do comum. O autor de Yacala é um caso único: a síntese destas duas linhas matrizes da poesia nacional. Cunha Melo equilibrou em seus poemas o milagre do simples de Bandeira, dentro de uma plataforma estilística de elaboração sofisticada, melhor herdeira do cerebralismo de Cabral. Com um rigor de geômetra que não se compraz em deixar à mostra os instrumentos de luta, Cunha Melo atualizou a lição de Bilac que em um famoso soneto afirmou: “Arte pura, inimiga do artifício, / É a força e a graça na simplicidade”. Se João Cabral usava a sua (anti) métrica e (anti) rima, com o fim de causar ruídos, igual a um automóvel passeando em uma estrada esburacada, em Alberto da Cunha Melo, o metro e a rima, e até mesmo o verso branco, octossílabo ou não, muito usado por ele, prestavam-se exatamente ao contrário: não chamar atenção para si. Eram os versos de Cunha Melo espécies de sereias homéricas ao avesso, cujo canto não tem a intenção de causar desvio ao curso dos navegantes. Alberto da Cunha Melo foi um lírico – em que pese toda a carga ao redor desta palavra. Mas o seu lirismo nada tinha de mágico, lúdico ou humorístico. Foi um lírico, mas um lírico da estirpe do lirismo de Manuel Bandeira – o lirismo sujo de vida dos bêbados e dos loucos –, e foi segurando nas mãos destes, não como um guia, mas como um igual, que Alberto da Cunha Melo desceu mais fundo nas valas e nos círculos da condição humana, extraindo de lá, destes lugares, sem piedade nenhuma, uma beleza para a qual não temos coragem de olhar por muito tempo. Um exemplo disso? “Grandezas da madrugada”, do livro O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas (A Girafa, 2006): “Quem fala/ do que fez/ e do que foi/ já não faz/ e já não é; / e nos deixa aflitos/ nessas madrugadas de bar, / comandando mortos, / amando mulheres/ que hoje engordam nas cozinhas, / exibindo uma coragem sem testemunhas; / e ficamos, ainda, mais aflitos, / quando a voz começa a engrolar, / e não sabemos em que beco, / ou pensão da periferia, desembarcar/ nossa grandiosa ruína”. Se a simplicidade de Alberto esconde o seu vigor estilístico, a forma como todos os elementos poéticos se subordinam à idéia expressa no poema feito um

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RegistRo conjunto harmônico e quase indissociável do texto, acaba soterrando o grande artífice do manejo com as palavras que é Alberto da Cunha Melo. Ele é uma espécie de Augusto dos Anjos ao avesso, nesse sentido. O autor de Eu conseguiu extrair poeticidade de palavras científicas, esdrúxulas, arrimando-as em sua métrica impecável e em sua imagética arrebatadora; já o poeta pernambucano garimpou as palavras chãs, simples e sabendo em qual lugar estas mesmas palavras se iluminariam. Não é a um tordo ou ave de maior ostentação a quem dedica o Cunha Melo um poema, tomemos as aves aqui como metáforas, mas a um pardal, no livro Meditações Sobre os Lajedos (Edufrn, 2002). Como um maestro, Alberto elevou à condição de sublime, no contexto do poema “O Presente”, algumas palavras gastas, corriqueiras, como “série”, “jovem”. O poeta soube utilizá-las no momento correto e no ritmo adequado, orquestrando os demais elementos de composição ao pensamento, utilizando para isso, quando necessário, o enjambement como elemento a favor da clareza e não do exibicionismo “(...) Eis o que é jovem a cada lembrança/ porque não tem data/ e série, para envelhecer. / O que hoje recebes/ não pode ser devolvido”. Do ponto de vista de pensar o Nordeste, Alberto da Cunha Melo pôs em crise, sem fazer barulho em torno disso, emblemas de um imaginário composto de imagens surradas, lugares-comuns e estandartes. Seus poemas, quando se referiam à região, desde a escolha do ritmo e dos temas, procuravam abordar algo além, ir adiante desta perspectiva curta e viciada. Não lhe interessavam as mitificações, nem as construções simbólicas, mas uma funda investigação da realidade e do homem. Neste sentido, é emblemático o poema “Help aos periféricos”, do livro Noticiário (Edições Pirata, 1979). Aqui, os rebeldes e agitados anos 60, emblematizados pelos Beatles, não passaram sem eco nem mesmo nos rincões sertanejos ou mesmo no santuário dos repentistas nordestinos, a cidade de São José do Egito, guardiã da tradição nordestina, onde nasceram poetas populares que ele tão bem conhecia e a quem dedicou alguns livros-reportagem como o que escreveu sobre Lourival Batista. No poema em questão, Alberto cruza, no tempo e no espaço, dois símbolos míticos costumeiramente indissociáveis, fundindo tradição e modernidade. Vale a pena lê-lo na íntegra: “Londres, a antiga/ capital dos estranguladores, / compôs esta música, / este ganido de socorro, / quando todos sonhavam habitá-la. / É uma canção que os moços/ cantam em São José do Egito, / aos domingos, bebendo/ seu vinho barato e fumando/ uma erva doce, crescida/ à sombra dos cactos. / Londres pedia socorro/ aos que nela buscavam/ refugiar-se”. Sem contemporizar nem fazer da poesia palco para

instalação da arte pela arte ou para ser mais atual, da invenção pela invenção, antes trazendo as coisas para o chão duro e difícil do dia-a-dia, Alberto, pela integridade com que investigava o homem, acabou, em alguns momentos, transcendendo-o, realizando, por um mecanismo de ação transversa, uma poesia sublime, sem pieguice, de altos valores espirituais e de uma aposta permanente no amanhã, como um misticismo sem fé ou uma fé sem Deus. O exemplo melhor é a obra-prima “Relógio de Ponto”: “Tudo o que levamos a sério/ torna-

No alto, Alberto ao lado da esposa Cláudia Cordeiro, em 1992; acima, o poeta com o amigo de infância, Pedro Vicente Costa Sobrinho

se amargo. Assim os jogos, / a poesia, todos os pássaros, / mais do que tudo: todo o amor (...)”. Se o Brasil conhecerá a poesia de Alberto da Cunha Melo da mesma forma como já conhece a de Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto – pernambucanos que, ao contrário do conterrâneo de Jaboatão dos Guararapes, emigraram para o Sudeste e de lá, no caso do diplomata, para o mundo –, é algo que nem eu nem ninguém saberá responder. Todavia, a poesia de Alberto da Cunha Melo renova a tradição e a força da poética pernambucana no âmbito da literatura nacional, mesmo que continue a ser, por enquanto, limitada a poucos iluminados. NOV 2007 • Continente x

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Alberto da Cunha Melo

A noite da longa aprendizagem (II) — Larga de ser vagabundo, Ascenso. Ascenso Ferreira, no poema “Noturno”.

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a edição de setembro/outubro de 1964, a revista Cadernos Brasileiros transcreveu o julgamento do poeta Joseph Brodsky, então com 24 anos, por um tribunal de Leningrado. O poeta havia sido condenado, por vadiagem, a cinco anos de trabalhos forçados e, posteriormente, foi libertado do presídio onde estava trabalhando há vários meses, como carregador de estrume. Um dos pregões do julgamento dizia: “PROCEDIMENTOS LEGAIS CONTRA O ELEMENTO VADIO BRODSKY”. Eis algumas linhas do julgamento: JUIZ: E qual é o seu trabalho real? BRODSKY: Eu sou um poeta. E um tradutor de poesia. JUIZ: Quem reconheceu o senhor como um poeta e quem lhe deu um lugar entre os poetas? BRODSKY: Ninguém. E quem me deu um lugar entre os da raça humana? A crer no que lemos, embora creia cada vez menos, o que chamo de estigma platônico – encontro do estereótipo de que o poeta é um alienado com o atributo negativo de não produtor de mercadoria, segundo minha livre aplicação da teoria do estigma de Goffman – não é só privilégio da sociedade capitalista. Pior para os poetas e pior para o mundo. O que deve ocorrer é que o racionalismo ocidental marginaliza o poeta de uma maneira mais disfarçada, enquanto o racionalismo socialista o marginaliza abertamente, assume o princípio: a cada um de acordo com o que produz de socialmente valorizado; ou seja, no Ocidente, só os miseráveis desclassificados são enquadrados juridicamente como vadios, se quisermos tirar conclusões menos favoráveis para nós. Quando dois sistemas econômicos seguramente dessemelhantes possuem a mesma imagem estereotipa-

da ou preconceituosa do trabalho poético, é de crer-se que ainda não soou a hora da poesia. O tão contraditório Garaudy reafirma, numa entrevista, o seu desencanto por um mundo onde o homem é considerado mero produtor-consumidor, e onde o trabalho foi eleito como um fim em si mesmo. Brodsky foi acusado de vadio e até mesmo de psicopata. Foi preso e só a interferência de alguns intelectuais de sua pátria conseguiu livrá-lo da pena de escrever versos como estes: Monumento a Pushkin Uma rua vazia. E um monumento a um poeta. Uma rua vazia E a música da tempestade. E uma cabeça Curvado de cansaço. ... Nessa noite Agitar-se na cama É mais agradável Do que manter-se Em pedestais. Em 1978, escrevi estas anotações, meus milhões de leitores, e só vim saber mais sobre Joseph Brodsky em 1987, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura: “Pelo seu trabalho de autor literário em áreas distintas do pensamento, das quais se destacam a clareza do pensamento e a sua intensidade poética”. Hoje, não sei se sua cabeça está exposta em algum monumento. Posso apenas ratificar a paradoxal honra X desaire – de qualquer artista, o poeta em mais alto grau – de ser sacrificado em vida e exaltado depois da morte. Não vai aqui uma queixa, mas uma constatação exemplar do

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estigma platônico, como prefiro rotular, pois pontuado em numerosos exemplares da sociologia e da psicologia social, principalmente. Nosso Ascenso Ferreira sabia disso e registrou no poema “Noturno”, um dos mais líricos do seu regionalismo. Todos os poetas um dia sentiram com ou sem o humor de Ascenso a carga desse estigma. A atitude mais coerente que um poeta deveria tomar, diante de uma sociedade que só o tolera na medida em que ele nada lhe exige, seria a de assumir a sua relativa marginalidade? A de manipular maquiavelicamente o seu estigma? Entre os mais próximos da minha geração, Severino Filgueira é o poeta que verdadeiramente atingiu uma incapacidade visceral de convivência com o mundo, a mesma que nos últimos anos de vida esteve isolando Ascenso de seus amigos, que procuravam esquivarse dele e de seus convites extemporâneos para comer pão-doce com caldo de cana no Mercado de São José. É claro que os altos cargos de seus amigos já não lhes permitiam, segundo o padrão deles, essa espontaneidade. Ascenso morreu sem saber que certa poesia erudita rima mais com uísque estrangeiro do que com cachaça.

A sua poesia, portanto, como a de Augusto dos Anjos, era uma coisa solitária como ele. O assunto é estigma e para melhor ainda constatá-lo, reviro a página e o tempo, às avessas do ponteiro, para o meu livro inédito A Noite da Longa Aprendizagem. Notas à Margem do Trabalho Poético, onde transcrevi um diálogo que mantive com Severino Filgueira, em 16 de junho de 1978: Severino: – Hoje, quando alguém me chama de poeta, eu tenho vontade de dar-lhe três tiros na cara... Eu: – Por quê, Biu? Severino: – Porque penso que está me maltratando, me chamando de criminoso ou marginal... Depois que ele desapareceu na esquina da rua onde eu morava, com seu passo apressado, mas inseguro, a Rede Globo apresentava uma ligeira entrevista com João Cabral sobre futebol, pois o Brasil disputaria, logo mais, o terceiro lugar da Copa do Mundo com o time italiano. Mas isso é história para depois, o que eu queria mesmo saber é por anda Severino Filgueira. Aproveito-me de você, que chegou até o final deste artigo, para fazê-lo ler meu anúncio: Procura-se o poeta Severino Filgueira. • NOV 2007 • Continente x

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São 114 autores, desde Medeiros e Albuquerque, que nasceu em 1867, até Liana Ribemboim, nascida em 1983 Luiz Carlos Monteiro

Uma panorâmica da narrativa em Pernambuco

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ma vasta tipologia de autores compõe a coletânea Panorâmica do Conto em Pernambuco. Organizada por Antonio Campos e Cyl Gallindo, que também participam com textos de apresentação e contos, a edição da Panorâmica resultou da parceria entre o Instituto Maximiano Campos, de Pernambuco, e a Escrituras Editora, de São Paulo. Lançado durante a Fliporto 2007, em Porto de Galinhas, o volume contém, substancialmente, 896 páginas e contempla 114 autores, cuja exigência básica para dele fazer parte foi ser de Pernambuco, estar radicado no Estado ou pelo menos ter vivido por aqui em algum tempo de suas vidas. Dentre os antologiados encontram-se escritores renomados, pouco conhecidos, anônimos, bissextos, diletantes, veteranos, estreantes, vivos e mortos. No caso destes últimos, há gente consagrada como os poetas Ascenso Ferreira, Joaquim Cardozo e Mauro Mota, os ficcionistas Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Hermilo Borba Filho, José Condé, Maximiano Campos e Osman Lins. E ainda mais, embora um pouco de viés, talvez

pela predominância de outras atividades intelectuais e artísticas em detrimento da prosa de ficção, autores respeitáveis feito um Barbosa Lima Sobrinho, um Gilberto Freyre, um Luís Jardim ou um Nelson Rodrigues. Alguns contos coincidem em termos do assunto central: José Condé (“O Regresso”) e José Rodrigues de Paiva (“Como as Nuvens que Passam”) escreveram sobre o retorno à terra de origem, à aldeia da infância, aos mortos antigos. Juareiz Correya (“O Dia em que a Cidade Endoidou”) e Cláudio Aguiar (“O Comedor de Sonhos”) teceram seus contos a partir da saga dos loucos cotidianos que podem causar sensação numa cidade interiorana ou estar confinados e isolados na redoma de um quarto de casa de família. Surgidos aos pares, e como os outros também revelando coincidências temáticas, ao retratar épocas diversas e os hábitos de seus jovens, numa vertente memorialista, situam-se os contos de Paulo Caldas (“Refresco de Cajá”), retratando um quadro da vida suburbana recifense, com o esforço do personagem para “vencer na vida”, e de Francisco Bandeira de Mello (“Crônica de

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IMC/Divulgação

Álbum de Família

Reprodução

LITERATURA

Clarice Lispector, Hermilo Borba Filho e Maximiano Campos: três expoentes do conto em Pernambuco

uma Tarde de Domingo”), que mos- só vendo a hora de se livrar e sair pro tra as dificuldades indizíveis que a sol lá fora e pra vida, um suspiro de perspectiva de um início de namoro vez em quando por parte da viúva, provavelmente podia provocar em só pelas conveniências, só de amosdécadas passadas, quando os jovens trada ah fingida, doida que o pobre usavam “lenço colorido no bolso esticasse as canelas vivia ela, e agora do paletó, camisa de seda, perfume, estava ali, de olho vermelho, vai ver que esfregou cebola. Pois no silêncio óleo no cabelo”. O texto “O Enterro de João”, de de repente Zefa veio correndo, berLuzilá Gonçalves Ferreira, alia a ação rou: – Minha gente, a cheia”. Todos trágica de um enterro que passa a debandam do velório, inclusive a desinteressar a todos que nele faziam mulher e um irmão do defunto. Resa sentinela, depois da notícia repen- tam apenas três amigos, o narrador tina de uma cheia, às circunstâncias oculto, Quimedes e Tonho, que carquixotescas em que os únicos ami- regam o caixão até onde agüentam, gos que ficam vão executá-lo. Um soltando-o depois na correnteza: “O parágrafo do início da história ante- caixão rodopiou, um, dois, três rocipa as peripécias que os companhei- dopios, encontrou a corrente. E se foi ros do morto enfrentarão pela tarde: rio adentro, flecha, barca, peixe”. Várias gerações de escritores “Foi assim: já se estava naquela hora de silêncio sem jeito, todo mundo pernambucanos estão bem represó esperando pra despachar o que sentadas na coletânea: a geração que se formou a restou do hopartir dos anos mem quando a Panorâmica do Conto em 60 (além dos alma briga com Pernambuco nomes já citados o corpo e bate Org. Antonio Campos e Cyl Galindo no decorrer do asas para meEscrituras Editora texto, figuram lhores paragens, 896 páginas representativase é quê. Todo R$ 80,00 mente os escrimundo calado,

tores Fernando Monteiro, Raimundo Carrero, Marco Polo Guimarães, Marcus Accioly), e as duas gerações imediatamente posteriores a ela. A geração que se consolida literariamente a partir dos anos 80 conta com textos de Alberto Lins Caldas, Flávio Chaves, Luiz Arraes e Vanja Carneiro Campos. O escritor, político e jornalista pernambucano Medeiros e Albuquerque (1867-1934) é o mais velho da antologia, desenvolvendo em “As Calças do Raposo” recortes da vida num internato, com seus alunos levados e de variada estirpe, seus bedéis carrancudos e grotescos, seus professores à antiga e seu diretor que nos faz pensar no Aristarco de O Ateneu. Do lado oposto, Liana Ribemboim Fieldman (nascida em 1983), com o texto “Dela, Adina”, se mostra como a mais jovem participante da Panorâmica e escreve o seu conto com desprendimento e segurança, podendo mesmo ser tida como uma promessa e uma esperança de escritora em meio à grande carência de ficcionistas reinante em Pernambuco. NOV 2007 • Continente 

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LITERATURA

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s histórias sobre lugares e pessoas da periferia sempre tiveram boa aceitação pelo público ledor em nosso país. Basta lembrar a repercussão do trabalho de escritores como João do Rio e Lima Barreto, João Antônio, Rubem Fonseca e Carolina Maria de Jesus, e mais recentemente, Ferréz e Luiz Ruffato. Surge agora, em Pernambuco, uma obra que se passa inteiramente numa rua inventada, a Padre Silva, e numa cidade real, o Recife. Seu autor, o ficcionista Gilvan Lemos, é detentor de mais de duas dezenas de títulos publicados a partir do longínquo 1956, e assim já obteve, há muito, o reconhecimento da crítica. Alinha, entre o que escreveu, romances memoráveis: Emissários do Diabo, Os Pardais Estão Voltando, A Lenda dos Cem; as novelas de A Noite dos Abraçados; e os contos de O Defunto Aventureiro e Morte ao Invasor. Ele talvez não venda seus livros como esperado, o que demonstra uma equação contraditória e que ainda deve ser resolvida, haja vista a sua performance e competência de escritor.

Na Rua Padre Silva traz 12 histórias que aparecem juntas, formando um todo organizado, embora possam ser lidas em separado. As situações vividas por diversos personagens se entrelaçam e vão emergindo no decorrer dos textos, que também finalizam, como contos fechados, em seu próprio contexto e desenvolvimento. Relatos independentes que fogem de algum modo à classificação costumeira da novela, texto corrido e sem subdivisões do tipo demarcadas por títulos. Contudo, quando menos se espera, ressurge um personagem e sua circunstância, com a psicologia e o andamento que o caracterizam, a exemplo do velho Ageu, que aparece no início do volume e em textos mais à frente. A desmemória flagrante do velho Ageu o leva a tatear as palavras, repetindo o feitio de uma prosa de gago, e até a esquecer o nome de Das Dores, filha com quem mora no presente: “Como se refletidas no teto, o velho Ageu via caras, situações, atitudes; ouvia vozes, barulhos familiares, tons de discussões ou de conversas

O povo, esse personagem raro Novo livro de contos de Gilvan Lemos traz de volta à cena literária um personagem cada vez mais escasso: o povo

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Alexandre Belém

fiadas. Após momentos de indecisão reconhecia alguns rostos, que lhe transmitiam variadas recordações. Sim, a mulher havia morrido. Há quantos anos? Filhos. Fora pai de... quantos? O mais velho saíra de casa ainda adolescente, mudara-se para São Paulo, jamais dera notícias. Ou dera? Um tinha morrido de... De quê?” Cada texto revela, à maneira da prosa tradicional do conto, a abundância de diálogos, uns poucos personagens, ambientação e trama, enredo e conclusão, ficando a sensação do elaborado e do acabado. Um dos vários parágrafos sobre a rua Padre Silva mostra como o personagem Vitorino se situa nela e o modo como a mesma aparece para o exterior: “Na Rua Padre Silva as casas se amparavam umas nas outras, com medo de cair. A maioria de porta e janela, sem terraço ou oitões livres. Sem calçamento, sem meio-fio, a de Vitorino era uma das poucas que tinham calçada de frente, feita por ele mesmo. As demais, quando muito, possuíam uma pedra lajeada, à porta de entrada,

onde comumente as pessoas se sentavam para bater papo ou quentar sol.” Chico Roda Frouxa que atira em Casco-fino e o mata apenas para testar o revólver e a macheza. Este Casco-fino, que morava debaixo de uma gameleira, é o mesmo José de Souza Miranda, para quem chega uma carta que todos supõem ser o aviso de uma herança, e que nunca foi encontrado, pois seu nome de batismo perdeu-se para si mesmo e para o mundo. A herança de Casco-fino ficou sendo um saco vazio, que Chico pega e abre tempos depois para ver o que contém: “Caixas de fósforos vazias, tampas de garrafa, pregos, quinquilharias incontáveis, entre as quais uma velha carteira profissional, de capa dura roída, do tempo em que Casco-fino era operário da fábrica da Torre, de que se gabava nos seus porres monumentais. Chico abriu-a, trêmulo. O retrato de Casco-fino, jovem, até bem-parecido. E logo abaixo o nome completo: José de Souza Miranda.” Outro personagem, o taxista Luiz da Praça, que faz uma pesquisa entre os coNa Rua Padre Silva nhecidos sobre o comGilvan Lemos portamento da mulher Editora Nossa Livraria após o casamento, e 142 páginas acaba concluindo que é R$ 25,00 melhor ser amigado do que casar. No entanto, através do Dr. Samuel, um freguês rico, chega a solução: um casamento coletivo, cujos papéis a mulher assina enganada, pensando ser um contrato de trabalho do companheiro, astúcia do advogado Samuel. Não faltam também os pivetes Lambada e Fininho, que acabam se dando mal com a polícia. As ocorrências de uma sexualidade clandestina dos moradores da rua atingem a viúva Tica e o barqueiro Zimbo, vizinhos que travam um diálogo sugestivamente malicioso: “E Tica terminou por confessar que sempre tivera uma queda danada por ele. Não se atirava porque era amiga de Nelinha que, por outro lado, confiava cegamente nela. A Zimbo logo agradou a confissão. Disse, meio baixo: – Posso dizer uma coisa? Não nego que gostava de olhar suas pernas. E imaginava você tomando banho, ensaboando as partes...” Um acontecimento trágico pode se transformar, de repente, numa história bem-humorada, bem ao gosto da marginália, de quem vive na miséria, mas faz piada acerca de tudo. Gilvan Lemos não mede palavras e expressões para comunicar os acontecimentos, por indesejados que sejam, ou o ramerrão da monotonia, do tédio. Seu desempenho lingüístico realiza-se nos meandros da linguagem popular sem artificialismos nem escamoteações, sem a necessidade de forçar a mão.(LCM) NOV 2007 • Continente 

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poesia>> Orismar Rodrigues Outono Barcos no Capibaribe, sol branco num céu cinzento. Os pescadores lançam as redes. Os peixes que arrecadarem iluminarão suas mesas. Ao longo do Cais José Estelita arremesso ao Capibaribe meu olhar descrente e carente. Não recolho peixes. À mesa sento-me sozinho. Bebo a angústia da solidão e deslizo em águas turvas dentro de um carro confortável.

Face real Acreditar em quê? Acredito nos vinte anos, na realidade do tempo, na angústia que me amedronta a alma. O espelho é verdadeiro. Reflete-me a face real. Em prantos faz-me ver um rosto angelical sorrindo-me iluminado. Acredito, sim, nesse instante revelador da dor e da certeza de que o caminho será de sombras. Acreditar em quê?

Transitório

SOBRE O AUTOR

Para Mirella Andreotti

O que anunciam os vôos coloridos das solitárias borboletas? Partidas? Chegadas? Que importa? Como tudo é fugaz, assim são elas: chegam e também se vão. O que é real e verdadeiro é que me fazem festa. Se o amanhã é incerto, a dor é sabida. Se só tenho esse momento, que ele me baste, até porque não sei se ele me pertence ou existe.

Orismar Rodrigues nasceu em Gravatá–PE, em 21 de abril de 1943, e faleceu no Recife, em 23 de outubro de 2007. Publicou os livros de poemas Destino das Águas (1987), Navegador do Tempo (1993), Ritual dos Sonhos (1997), Poemas de Amor Erótico (2000), Poemas do Oriente e Outros Reinos (2002), Antologia Poética, (2004). Tem, inédito, Havana e Recife (título provisório).

Dúvida Serei teu amante e até te farei feliz. Amor? Amanhã consultaremos as estrelas.

Réquiem A insatisfação inquieta-me a alma, aprisionada a essa realidade. Fecho os olhos, reinvento a vida. Amanhã vestirei o meu luto.

Os deuses são tiranos. Roubam os sonhos que nos dão e expõem nossas cicatrizes ao sol. Acredito nos vinte anos que me olham de frente obrigando a conviver com esse desencanto.

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entre linhas

Luzilá Gonçalves Ferreira

Um Nobel coroou, em 1947, uma obra que revela sua sinceridade “na busca da felicidade e da verdade, com desdém pelos preconceitos e regras da moral”, conforme atestou um crítico. E tantos outros nomes que orgulham a quem, com seriedade e humildade, busca servir à literatura e entender seu lugar e papel num mundo desatento e conturbado. Há uns anos, um grupo de amigos pensou em indicar um brasileiro – nunca tivemos um Nobel!– para Doris Lessing, ganhadora do Nobel o Prêmio. Um poeta que construiu uma obra empenhada, engajada para com sua gente, sua linguagem, sua vocação, sua luta contra aquilo que Ítalo Calvino chama de flagelo lingüístico, tão corrente hoje em dia, quando as palavras são usadas de modo casual, descuidado, e em que se diluem significados. Especialistas, professores de grandes universidades nacionais e internacionais deram testemunho por escrito, uma antologia de poemas publicados, em francês, em inglês, foi acrescentada à documentação; uma coletânea editada na França acompanhou o envio, entregue, pessoalmente, na Suécia. Nada feito. Restou o sentimento de injustiça, decepção, e a inevitável pergunta: – Como se escolhem hoje os Nobéis de Literatura? Sei não. Nada contra Doris Lessing, que deve estar feliz. Vou vasculhar, na desordem de minha biblioteca, algum livro seu, perdido num mar de páginas, vestígios sofridos de quem lutou com palavras e, bem ou mal, tentou repartir com outros humanos sua visão de mundo. Quanto a mim, fiz minha mea culpa de ignorante no começo desta página. Horresco referens, significa “refiro-me com horror”, tenho vergonha de o confessar, algo assim. Traduzo para quem não estudou latim no colégio, antigamente a gente tinha essa sorte, que os estudantes de hoje não têm, graças a esses senhores que vivem modificando (para pior) os programas escolares: estudar uma disciplina que desenvolve o raciocínio, uma literatura que enriquece a cultura e o senso crítico dos espíritos, brasileiros, no caso. Mas isto já é uma outra história. Divulgação

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m amigo jornalista telefona: – “O que você acha do Prêmio Nobel para Doris Lessing?” Estremeço. Nobel? Doris Lessing? onde encontrar essa escritora no escaninho da memória? De repente lembro de ter lido um romance dela, O Carnê Dourado, nem sei quando, tão pouco o livro marcou a leitora. Busco algum dado, a trama, uma frase. Nada. Horresco referens, tenho de confessar minha distração, respondo ao amigo com uma resposta que não é uma: –“E ela está viva?” O interlocutor riu: –”Muitas pessoas já me disseram isso”. Consulto o dicionário. Toda feliz encontro Lessing, bom, pelo menos vou aprender alguma coisa hoje. Nesse engano da vida ledo e cego, como não diria Camões, vejo que o Lessing do Larousse é Gotthold Ephraim, escritor alemão (1729–1781). Tento imaginar Doris, que, como todo escritor reconhecido, certamente escreve bem, acredita no que escreve, ama sua profissão, deseja acrescentar uma pedra à construção do mundo, “ para ser digna desta lua”, como sugeriu lindamente Katherine Mansfield. O Nobel lhe seria a coroação de uma carreira? Resultado de conjunção política, que desconhecemos? Essas coisas são meio imponderáveis, vez em quando a gente se surpreende com um nome desconhecido, coroado com o Prêmio e se pergunta: – Como e por quê? No passado, o Nobel era coisa séria, seríssima. Visava celebrar autores que, de algum modo, haviam contribuído a questionar o destino dos homens sobre a terra, tentado, através de palavras escolhidas, se servir da linguagem para acrescentar ao mundo uma beleza que não existia antes. Que escreviam, como o afirmou Cecília Meireles, não no intuito de salvação, mas por uma contemplação afetuosa e participante (cito de memória). Lembro nomes: Albert Camus, cujo discurso, à entrega do prêmio, é um belo atestado de engajamento para com a vocação de homem, de escritor atento ao seu tempo, às suas injustiças, num momento histórico marcado por acirradas e vergonhosas guerras, entre Estados, entre classes sociais. Lembro Romain Rolland, um dos mais incisivos pacifistas no século 20 com Jean-Christophe, romance que formou personalidades de jovens no mundo inteiro, premiado em 1916. Lembro Selma Lagerloef, que em tantas obras ficcionais nos fez partilhar seu amor e sua visão da Suécia natal, descrevendo a saga de gente humilde ou não, que trabalha para levar adiante um projeto de igualdade para o país. Lembro André Gide em quem o Nobel

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MÚSICA

livros

Hermilo, o homem e a obra

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ão 19 entrevistas (uma inédita por problemas com a Censura durante a ditadura militar), feitas entre 1947, quando Hermilo Borba Filho começava a se consagrar como homem de teatro, e 1976, poucos dias antes de sua morte. Nelas, respondendo a perguntas de jornalistas e encenadores, o dramaturgo e romancista pernambucano se expõe por inteiro, como homem e autor. Autor de uma sólida obra nas áreas do teatro, literatura e ensaio e dono de uma erudição sem alarde, o antigo professor da UFPE comenta, com sinceridade às vezes desconcertante, temas como estética, política, sexo, religião, formação, sem pôr panos mornos, mas também sem contundência desnecessária. Ao longo das 230 páginas desta coletânea, recém-publicada pela Cepe, organizada pelo poeta Juareiz Correya e pela atriz Leda Alves, sua viuva, a biografia do escritor vai-se desenrolando paulatinamente aos nossos olhos, recheada por análises de sua própria obra e de outros autores, umas poucas frases de efeito e um

compromisso com a verdade, pelo menos a sua (dele) verdade. Muitas opiniões expressas são do conhecimento de quem conviveu ou acompanhou a produção literária e teatral deste filho de Palmares, mas, reunidas em conjunto, formam um painel muito preciso do seu pensamento e seu modo de encarar o mundo e a vida. Imperdível.

> A clonagem no divã

> O dedo de classe no olhar estético

> Grande Sertão em quadrinhos

> Língua do P, do blog ao livro

O filósofo Gaston Bachelard, em 1937, relacionou a evolução do saber científico ao instrumental freudiano, com a obra A Psicanálise do Fogo. Através do que chamou de “obstáculos epistemológicos”, Bachelard fundava então a psicanálise do conhecimento. Psicanálise que se presta agora ao exame de mitos modernos que envolvem a atividade científica, na polêmica sobre a clonagem humana. Em A Psicanálise do Clone, Fábio Lucas, jornalista e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco, apresenta três complexos, com este propósito: o Complexo de Rousseau, que analisa o mito do “bom selvagem”; o Complexo de Frankenstein, que perpassa a engenharia genética; e o Complexo de Jeckyll e Hyde, que leva os cientistas à corte do bem e do mal.

Conceitos como “arte pura” e “arte impura”, “alta cultura” e “cultura popular” foram dissecados por Pierre Bourdieu, à luz das teorias sociológicas e estéticas. Nesta obra de final dos anos 70, agora relançada em edição esmerada, o sociólogo expõe os resultados de pesquisa de campo realizada entre várias classes sociais na França. E deita por terra certos mitos neoformalistas, mostrando como as leis do mercado e a diferença social explicam certas percepções da arte que parecem universais e verdadeiras. Questionando o papel das vanguardas, relativiza postulados que põem em campos opostos, “nós, os cultos” e o populacho interessado apenas no “fácil e digestivo”. Bourdieu procurou sempre desmascarar a ideologia por trás dos julgamentos estéticos.

A aridez do sertão, inesgotável fonte inspiradora das grandes artes, finalmente encontra tratamento digno nas histórias em quadrinhos, em Estórias Gerais, de Wellington Srbek (roteiro) e Flávio Colin (desenhos). Influenciada pelos mestres Guimarães Rosa, Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto, a narrativa descreve a morte e vida de cangaceiros, justiceiros e coronéis em Buritizal, um rincão de terra do norte de Minas Gerais, durante os anos 20. O livro impressiona não só pela riqueza conceitual, mas também pelo fascinante desenho de Colin (1930-2002), um preto e branco alto contraste que se assemelha às xilogravuras da cultura popular. Interface entre Literatura e HQ em alto nível. (André Dib)

Obras literárias são digitalizadas às pencas na internet. O caminho inverso – textos que são escritos nos blogs e depois viram livros – vem sendo trilhado mais lentamente, mas sinalizando claramente que se trata de uma via de mão dupla. É o caso de Língua do P., recentemente lançado, que reúne crônicas, poemas, prosa poética, aforismas, de autoria do publicitário Pedro Fonseca. Segundo Marcelo Pereira, jornalista e poeta, “Língua do P. exala frescor de linguagem e tem uma bem sacada diagramação (assinadas por Matheus Barbosa e Daniel Pinheiro, uns craques)”. Os textos, em geral curtos, falam de amor e de morte, porres, psicanálise, iniciação sexual, alegria e miséria, praia e favela. Um exemplo: “O solitário morre quando o solidário nasce”.

A Distinção – Crítica Social do Julgamento Pierre Bourdieu Edusp-Zouk 556 páginas R$ 80,00

Estórias Gerais Wellington Srbek e Flávio Colin Conrad Livros 152 páginas R$ 24,00

A Psicanálise do Clone Fábio Lucas Edição do autor 142 páginas R$ 20,00 fabiolucas@uol.com.br

A Palavra de Hermilo Juareiz Correya e Leda Alves (organizadores) Cepe 228 páginas R$ 25,00

Língua do P. Pedro Fonseca Edição independente 216 páginas R$ 30,00 p@linguadop.com.br

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MÚSICA

Por um mundo sem superstições

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ascido em 1959, o francês Michel Onfray (foto) vem desenvolvendo, com a publicação de 30 livros, um projeto de hedonismo ético, político, erótico, pedagógico, epistemológico e estético. É fundador, também, da Université Populaire de Caen, onde dá aulas de contra-história da filosofia, ou seja, identificando pensadores que por algum tipo de preconceito cultural ou religioso foram pouco ou nada estudados. Ateu militante, ele está publicando o Tratado de Ateologia, em que combate as três grandes religiões monoteístas que dominam o mundo: o judaísmo, o cristianis-

mo e o islamismo. Para ele, estas religiões têm em comum um profundo ódio à inteligência, à razão, à liberdade, aos livros, à vida, ao corpo, ao sexo e às mulheres. Em contrapartida, exaltam a superstição, a submissão cega e o irracional. Todas as três, segundo ele, se guiam por uma pulsão de morte, que desvaloriza a vida neste mundo em troca de outra futura, num “paraíso” hipotético. Acrescenta, ainda, a longa história de guerras e horrores perpetrados em nome da religião. Como exemplo óbvio, cita as Cruzadas, a Inquisição e o terrorismo muçulmano atual. Para Onfray, o mundo está mergulhado num profundo niilismo, necessitando da criação de uma ética que valorize a vida, sem medo nem culpas, ou seja, sem religiões. (Marco Polo)

> Sem concessões aos inocentes

> Nomes básicos da Sociologia

> Jogos eróticos de meninas perdidas

> Uma redescrição da realidade

Como todo poeta consciente, o alagoano Maurício de Macedo faz da própria palavra e do poema (máquina de palavras) tema de diversos poemas. Assim, em “Olho d’Água”: O que tenho a dizer,/ direi aos poucos/ feito um gago/ tartamudeando palavras de pedra. Ou, em “Ao Leitor”: Sou o poema náufrago. / E peço ao leitor/ a respiração boca a boca/ que me faça sobreviver. Ou, ainda, em “Por Trás do Poema”: As palavras por trás do poema/ não voltam o rosto para mim. E assim se estende por vários textos deste Fragmento, pavimento de palavras. E fala também de escritores: Borges, Rosa, Saramago. Não faz concessões; aliás, em “Mutilado”, ele avisa: Não velarei o sono dos inocentes. Ou seja, Maurício de Macedo não faz concessões com a sua poesia.

Em artigos de quatro páginas, em média, vários autores, sob coordenação do professor de sociologia, John Scott, dão os traços biográficos e as principais idéias de sociólogos famosos como Augusto Comte, Émile Durkheim, Aléxis de Tocqueville e Max Weber, mas também de outros obscuros fora do mundo anglo-saxão, alguns, na verdade, mais engajados na reforma social do que teóricos. A série é complementada com pensadores que, embora não fossem sociólogos, refletiram sobre a sociedade de forma profunda e produtiva, como Sigmund Freud, Ferdinand de Saussure, Gyorg Lukács, Karl Marx, Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Enfim, uma boa ferramenta, principalmente para iniciantes, até porque traz uma variada bibliografia.

Não é de hoje que Alan Moore subverte o imaginário coletivo ocidental com seu gênio libertário. Em Wacthmen, ele desconstruiu os super-heróis, símbolos máximos da supremacia americana. Em V De Vingança, detonou a frágil democracia contemporânea. Sua mais recente provocação é a trilogia Lost Girls. Através da exuberante arte de Melinda Gebbie, três ícones da literatura infantil – Alice no País das Maravilhas, O Mágico de Oz e Peter Pan – são reinterpretados eroticamente. Tudo se passa no ano de 1913, quando Alice, Wendy e Dorothy, já bem crescidas, se encontram num hotel austríaco. Entre confidências, fantasias e passeios, partem para uma busca dionisíaca de prazeres que vão bem além da moral e dos bons costumes. Freud explica. (André Dib)

“Uma cultura pós-metafísica não me parece mais impossível que uma pós-religiosa e é tão desejável quanto esta.” A frase é do filósofo norteamericano Richard Rorty, falecido este ano, considerado um iconoclasta e desestabilizador da cultura por pregar um tipo de pragmatismo filosófico. Para ele, as idéias devem ser avaliadas pelo que contribuem para o progresso social concreto e não por sua proximidade de uma “realidade” independente da linguagem ou da “verdade”. E como fazemos descrições do mundo, uma forma de criar uma nova alternativa viável de compreensão é redescrevendo tudo.É o que Gideon Calder demonstra neste livro de iniciação, em linguagem clara, mantendo o rigor dos conceitos.

Fragmento Maurício de Macedo Editora Catavento 96 páginas R$ 20,00

50 Sociólogos Fundamentais John Scott Editora Contexto 224 páginas R$ 45,00

Tratado de Ateologia Michel Onfray Editora Martins Fontes 220 páginas R$ 39,80.

Lost Girls – As Terras do Nunca Alan Moore e Melinda Gebbie Devir Livraria 112 páginas; R$ 65,00

Rorty e a Redescrição Gideon Calder Editora Unesp 64 páginas R$ 11,00.

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TEATRO TEATRO Guto Muniz/Divulgação

Palco Brasil Festival Recife do Teatro Nacional chega à 10ª edição, confirmando sua vocação como vitrine da cena brasileira contemporânea Rodrigo Dourado

O grupo Galpão apresentou A Rua da Amargura, espetáculo com concepção e direção de Gabriel Villela, na primeira edição do Festival

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eatro do Parque lotado, políticos, intelectuais e artistas na platéia. Começa a encenação dA Pedra do Reino, romance adaptado por Romero de Andrade Lima para o palco. Alguns minutos de espetáculo e uma parcela da classe teatral deixa a platéia. Burburinho no foyer do teatro. Em cena, os atores se esforçam para ler os textos que trazem à mão, com uma única lâmpada incandescente iluminando o palco. Ao final da apresentação, metade do público aplaude efusivamente o espetáculo, enquanto a outra parcela vaia impiedosamente o trabalho. Confusos, alguns espectadores se perguntam o que está acontecendo. A polícia é chamada, mas somente após alguns bons minutos, os ânimos se acalmam e todos conseguem deixar o teatro. Assim foi a abertura do I Festival Recife do Teatro Nacional, em 1997, evento que este ano chega à 10a edição, contabilizando uma série de avanços e conquistas para o movimento teatral pernambucano, e outras tantas polêmicas com a classe. O protesto daquela noite sinalizava não somente a insatisfação de uma parcela dos artistas diante da política cultural vigente, mas questionava especialmente as opções daquela encenação, mais próxima de uma leitura dramatizada, que assumia o papel de representar o teatro pernambucano numa mostra de caráter nacional; mais do que isso, o acontecimento histórico apontava para a importância que o Festival Nacional assumiria como espaço de formação, circulação e debate para a cena local.

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Hans Manteuffel/Divulgação Marcelo Lyra / Divulgação

A peça Fernando e Isaura , de Carlos Carvalho, também passou pelo Festival

Mucurana, o Peixe (acima) ; abaixo, Hoje É Dia do Amor

O Festival Nacional tem ainda alguns problemas a resolver, no entanto, preserva o papel de ser um momento de suspensão em que os artistas e o público podem viver intensamente o Teatro

Divulgação

Guto Muniz/Divulgação

Ainda naquele ano, o Recife teria oportunidade de assistir no Festival pela primeira vez ao trabalho do Grupo Galpão, de Minas Gerais, uma das companhias mais importantes do Brasil, que trouxe os espetáculos A Rua da Amargura e Um Molière Imaginário; a cidade reencontraria também a cena carnavalizante e orgiástica de Zé Celso Martinez Corrêa com o seu Para Dar um Fim no Juízo de Deus (Teatro Oficina/SP), que a partir do original de Antonin Artaud causou furor na platéia com cenas de masturbação, coleta de sangue e uma escatológica passagem em que um ator defecava às vistas do público. No ano seguinte é a vez de Álbum de Família (Núcleo de Pesquisa Teatral/SP), com direção de Cibele Forjaz e texto de Nelson Rodrigues, ser o alvo das maiores polêmicas. Com um grupo de atores jovens, a emergente diretora paulista concebeu uma encenação experimental, palco nu, em que a família retratada no texto desfilava, como numa mesa de jantar, suas taras e perversões. Cenas de nudez, incesto e homossexualidade garantiram a presença maciça da platéia e a realização de sessões extras. Mas foi também nessa edição que o Grupo Imbuaça (SE) mostrou a força do teatro de rua nordestino com sua veemente encenação do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente. Apesar do sucesso alcançado nesses dois primeiros anos, o Festival sofre uma parada em 1999, por motivações políticas e orçamentárias, e retoma com força total em 2000. Depois de homenagear a atriz Arlete Salles (1997) e o dramaturgo Hermilo Borba Filho (1998), a mostra é dedicada a Valdemar de Oliveira e a abertura fica por conta de Um Sábado em 30, grande sucesso de bilheteria do Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). Nesse ano, a Sutil Cia. de Teatro (PR) traz para o Teatro do Parque o impressionante espetáculo A Vida É Cheia de Som e Fúria, a partir do romance Alta Fidelidade, de Nick Hornby. Numa adaptação vigorosa, o diretor Felipe Hirsch distende os limites da linguagem teatral, dialogando com o cinema e a cultura pop, utilizando um enorme filó colocado na boca de cena, sobre o qual imagens de grande força poética são projetadas. Em cena, o ator Guilherme Weber surpreende com seu carisma. Ainda em 2000, o não menos importante grupo Tapa (SP) traz ao Festival A Serpente, de Nelson Rodrigues, e Navalha na Carne, de Plínio Marcos, revelando a força de um conjunto cujo projeto criativo tem como norte o respeito à dramaturgia. Do Rio de Janeiro, vêm a Armazém Cia. de Teatro e a Cia. dos Atores. A primeira, com Alice Através do Espelho, montagem que mobiliza grande aparato cênico, colocando a platéia para viajar junto com Alice; a segunda, com sua versão de O

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TEATRO Rei da Vela, que revisita não somente o texto de Oswald de Andrade, mas a montagem inaugural do Movimento Tropicalista, realizada em 1967 pelo Teatro Oficina. Mas é o próprio Oficina quem responde pelo grande momento da mostra, com o espetáculo Cacilda!, direção de Zé Celso Martinez Corrêa. A montagem conta de maneira livre a trajetória da grande diva do teatro brasileiro, a atriz Cacilda Becker, e mantém, ao longo de suas quatro horas de duração, a platéia em estado de êxtase com a inventividade e a beleza das soluções cênicas, a profusão de signos e as atuações brilhantes das atrizes Beth Coelho e Leona Cavalli.

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A partir de 2001, o Festival Nacional assume novos contornos. Se, antes, a seleção recaía sobre os grandes grupos e encenadores da cena brasileira, a partir de então, a programação contemplará produções de menor repercussão e notoriedade. O número de espetáculos escalados oscila de uma edição para a outra, a política de preços populares que garante o amplo acesso do público continua e as ações formativas ganham maior relevo. Nesse mesmo ano, tem início a série de publicações que focaliza o ho-

menageado da mostra, com a edição das peças do dramaturgo Joaquim Cardozo; seguida de Barreto Júnior, Osman Lins, Luiz Marinho e Luiz Mendonça. Em 2006, o projeto editorial sofre reformulação e é lançado o livro O Diálogo como Método: Cinco Reflexões sobre Hermilo Borba Filho, que não mais contempla o homenageado do ano (Nelson Rodrigues). Ainda no biênio 2001/2002, entre as presenças de relevo estão a Cia. dos Atores, com o divertidíssimo Melodrama; o Folias D’arte (SP), com a Maldição do Vale Negro, a partir da obra de Caio Fernando Abreu; a Cia. Teatro do Pequeno Gesto (RJ), com o Jogo do Amor e do Acaso, de Marivaux; a Cia. Livre de Teatro (SP), com a versão da diretora Cibele Forjaz para Toda Nudez Será Castigada, tendo Leona Cavalli no elenco. A partir de 2003, o Festival sofre nova reviravolta. Se, antes, a pluralidade era uma marca do evento graças às curadorias mistas, desse ano em diante o jornalista e dramaturgo Amimar Labaki passa a responder sozinho pela seleção. A partir de um conceito, a mostra é pensada, e é assim que se configuram os temas: Dramaturgias (2003), Identidade e Contemporaneidade (2004), Cultura e Brasi-

A Cia. Livre de Teatro (SP) apresenta, este ano, o espetáculo Vem-Vai

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lidade: homem comum e homem político (2005), Dramaturgia e Pós-Dramaturgia: Modernidade e Palavra (2006). Esse modelo causa enorme descontentamento no meio teatral da cidade, especialmente à medida que uma curadoria local, formada por representantes das entidades de classe e da imprensa, começa a perder importância. Se, antes, nomes como dos críticos Macksen Luiz, Mariângela Alves de Lima e do pesquisador Edélcio Mostaço tinham condições de oferecer uma visão algo ampliada da cena brasileira, embora ainda restrita às produções do eixo Rio–São Paulo, para os artistas a centralização da curadoria numa única pessoa torna as escolhas personalíssimas e comprometidas. Além disso, a seleção a partir de um conceito padece de um estrangulamento evidente, sendo notórios desde então os espetáculos que pouco ou nada têm a ver com a idéia central da mostra. Mesmo que bastante irregulares se tomadas individualmente, as programações montadas por Labaki conseguiram ainda assim fornecer um panorama das diversas tendências da cena contemporânea, com trabalhos de novos dramaturgos brasileiros como Bosco Brasil em Novas Diretrizes em Tempos de Paz (SP) e Gero Camilo

em Aldeotas (SP); dramaturgos estrangeiros contemporâneos como Sarah Kane em Ânsia (SP) e dramaturgos pernambucanos como Newton Moreno em Agreste (SP). Ao longo desses quatros anos, foi possível ainda confirmar a maturidade e a excelência de grupos já conhecidos do público recifense como o Galpão, bem como da Armazém Cia. de Teatro. Travar contato com grupos iniciantes e que nunca haviam pisado em terras pernambucanas como o Espanca! (MG) e Os Satyros (SP). Ou mesmo reverenciar o trabalho de artistas como Aderbal Freire Filho com o excepcional O Que Diz Molero (RJ) e Denise Stoklos em Louise Bourgeois – Faço, Desfaço, Refaço (SP). Não é demais lembrar que uma iniciativa importante ganhou corpo também a partir de 2003, o projeto O Aprendiz Encena, do Centro Apolo-Hermilo, que une encenadores iniciantes e atores veteranos. A partir do tema e do homenageado da mostra, são construídas encenações que têm a tarefa de abrir o Festival, como aconteceu com O Mistério das Figuras de Barro (Osman Lins, 2003), Corpo Corpóreo (Luiz Marinho, 2004), As Três Viúvas de Arthur (Arthur Azevedo, 2005) e Nelson Crônico (Adaptação de crônicas de Nelson Rodrigues, 2006). Nesta edição 2007, em que o homenageado será novamente o dramaturgo Hermilo Borba Filho, pelos seus 90 anos de nascimento, será encenado o texto O Bom Samaritano. O Festival Nacional tem ainda alguns problemas a resolver, como uma maior representatividade da produção local e da produção nacional para além do eixo Rio–São Paulo. No entanto, ele preserva o papel de ser um momento de suspensão em que os artistas e o público podem viver intensamente o teatro ao longo de 10 dias. Para o Recife, ele significa a possibilidade de assistir a espetáculos que, em função de questões operacionais e financeiras, jamais passariam pela cidade; de acompanhar o trabalho de artistas consolidados e de conhecer os caminhos que o teatro contemporâneo vem trilhando. O tema da mostra este ano, que acontece entre 8 e 18, com curadoria do jornalista Kil Abreu, será Teatro do eu, teatro do mundo – a cena brasileira contemporânea. Entre os destaques, alguns velhos conhecidos e outros novatos em terras pernambucanas: Pequenos Milagres, com o grupo Galpão (MG); O Continente negro, do chileno Marco Antônio de la Parra, direção de Aderbal Freire Filho (SP/ RJ); Otelo da Mangueira, adaptação de Gustavo Gasparani a partir de Shakespeare, direção de Daniel Herz (RJ); História de Amor, do badalado dramaturgo francês JeanLuc Lagarce, Teatro da Vertigem (SP); Amores Surdos, de Grace Passô, Grupo Espanca! (MG); e ainda Vem-Vai, com a Cia. Livre de Teatro (SP), dramaturgia de Newton Moreno e direção de Cibele Forjaz (SP). NOV 2007 • Continente x

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TEATRO

O carnaval organizado de Zé Celso

Luís Augusto Reis Fotos: Ana Guieva/Divulgação

Zé Celso entre os atores, em cenas do espetáculo Os Sertões

Temporada recifense de Os Sertões, do Oficina Uzyna Uzona, suscita reflexão sobre a “tradição da transgressão”

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m janeiro de 1968, ainda sob o impacto de ter assistido à estréia carioca da histórica encenação que o diretor teatral José Celso Martínez Correia (Zé Celso) concebeu para a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, o crítico teatral Yan Michalski escreveu o seguinte: “Espero e confio, pelo menos, que o próprio Teatro Oficina, embora compreensivelmente satisfeito e envaidecido com o merecido sucesso da sua realização, saiba sair logo em busca de novas maneiras de ir além daquilo que acaba de fazer, como tem sempre feito até hoje. Da mesma forma como Pequenos Burgueses, Os Inimigos e Andorra, por exemplo, O Rei da Vela é um espetáculo de capital importância para o nosso teatro, mas não deve nem pode ser considerado como uma realização definitiva, a ser simplesmente desenvolvida, aperfeiçoada e imitada de agora em diante”. Terminada a recente temporada recifense de Os Sertões, quando os cinco espetáculos que compõem essa grandiloqüente obra cênica puderam ser vistos em conjunto, um a cada noite, o eco da preocupação expressa há quase 40 anos por Yan Michalski volta a se fazer ouvir.

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TEATRO Entre os críticos teatrais mais importantes da história recente do teatro nacional, talvez tenha sido Michalski, por sua sensibilidade, por sua luta contra a censura e, especialmente, por sua disposição para dialogar com o novo, quem melhor soube apreender e interpretar as mudanças decisivas que foram acontecendo nos palcos brasileiros, sobretudo a partir da década de 1960. Ele soube, por exemplo, reconhecer prontamente o inegável gênio criador de Zé Celso. Mas também foi capaz de vislumbrar, talvez antes de qualquer outro, a perigosa armadilha que ameaçava se colocar na trajetória artística do diretor do Oficina: a contradição entre um discurso que se apóia em uma agressiva defesa da transgressão e uma prática que, após ser testada com sucesso, pode paradoxalmente ir se perpetuando como uma fórmula. É evidente que Michalski, com sua inteligência e com sua bagagem teatral, não desprezava o valor do traço autoral na criação artística. Percebe-se, por sinal, na própria crítica que escreveu sobre O Rei da Vela, o seu enorme prazer de reencontrar a personalidade criativa de Zé Celso, sendo corajosamente revelada em ângulos que ainda não haviam aparecido nas criações anteriores do encenador. Talvez tenha sido esse, em especial, o motivo que o fizera considerar O Rei da Vela como “uma formidável e fascinante explosão de vitalidade e ímpeto criador”. Daí, também, a justificativa do seu receio de que, mediante a avassaladora repercussão obtida pela montagem, a beleza e a força advindas do que ali existia de verdadeiramente inovador fossem se exaurindo, se repetidas como uma receita. Para o desapontamento de Michalski, apenas algumas semanas depois, em sua apreciação do espetáculo Roda-Viva, de Chico Buarque, ele constata que o seu alerta sobre o risco de Zé Celso se acomodar à sombra do oportuno rótulo de eterno transgressor não era totalmente descabido. Sob o título de Onde ‘a roda’ se torna quadrada, ele afirma o seguinte: “A atitude intelectual do encenador de Roda-Viva é comparável à atitude de uma criança de três anos que faz xixi no meio de um salão cheio de visitas e fica espiando com curiosidade a reação refletida no rosto dos pais e dos convidados”. As décadas passaram, alguns muros caíram, outros tantos se ergueram, e parece que Zé Celso ainda continua tentando escandalizar as pessoas da sala de jantar. O problema, porém, e isto Michalski talvez não tenha podido antecipar, é que agora, ou melhor, já há muitos anos, em vez de se horrorizarem, as visitas se reúnem em grupos e dizem: “Vamos lá ver o nosso querido menino-velho fazer xixi no meio do salão outra vez, é muito divertido!”.

O fato é que hoje em dia, em um mundo onde o Marketing parece ter assumido o lugar que era antes ocupado por Deus, a teatral rebeldia cultivada pelo Oficina corre o risco de se tornar apenas mais uma mercadoria, disputando um lugar na confusão das vastas prateleiras do entretenimento pós-moderno. Um produto do tipo “alternativomainstream”, com mercado dentro e fora do país. Assim, Zé Celso segue em sua paradoxal e incansável repetição da transgressão – algo que não deixa de ser comovente, como são comoventes todas as obstinações. Nesse intento, não faz muita diferença se ele invoca o nome de Genet, Eurípides, Artaud, Shakespeare, Nelson Rodrigues, Cacilda Becker ou Euclides da Cunha, pois todos serão igualmente transformados em coadjuvantes nas longas horas narcíseas desse “teatro-ritual” (todo o

teatro é ritual!). Não importa o pretexto, o que se dá a ver, na verdade, é sempre o mesmo olhar de Zé Celso, achando feio tudo o que não lhe parece ser espelho, materializando no palco uma espantosa sucessão de contradições: orgia sem tesão, carnaval organizado – com direito a instruções de comportamento para a platéia –, irracionalismo patrocinado, esperteza ingênua, entusiasmo sem alegria, democracia absolutista, tédio efusivo, protesto sem alvo, transe comedido e agressividade mansa. No entanto, o que faz de Zé Celso um artista tão especial, digno de tanta reflexão, é o fato de que, apesar de todos esses seus paradoxos, ou quem sabe justamente por conta deles, ainda existe beleza em sua arte. Aqui e ali, no longo corredor-palco do seu teatro, podem surgir cenas de indiscutível força, pequenos achados – alguns talvez inesquecíveis – que terminam fazendo com que mesmo aqueles espectadores que não o amam não o deixem. NOV 2007 • Continente x

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Ferreira Gullar

Visconti, pintor e designer

O ecletismo era um traço dominante na arte de Eliseu Visconti, cuja obra pictórica se vale de diferentes estilos e influências

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liseu Visconti foi um de nossos artistas mais talentosos e talvez o único de sua geração a explorar as possibilidades expressivas não apenas da pintura como também das artes decorativas, realizando trabalhos em cerâmica, estamparia de tecidos, papel de parede, luminárias, além de desenhos de selos e marcas. Uma parte de sua criação, como designer, pode-se ver na exposição a ele dedicada pelo Centro Cultural da Caixa Econômica, no Rio de Janeiro. O interesse de Visconti pelas artes decorativas surgiu, certamente, em sua primeira estada em Paris, para onde foi em 1892, no gozo do Prêmio de Viagem à Europa do Salão Nacional de Belas Artes. No ano seguinte, matriculou-se na École de Beaux-Arts e também no curso de arte decorativa de Eugène Grasset, na École Guérin, onde estudou até 1897. Nesse período, as artes decorativas ganharam notável destaque na vida artística da Europa, particularmente em Paris e Londres. Tal ressurgimento deveu-se, sobretudo, à influência do movimento Arts and Crafts, liderado por Williams Morris, que representou uma reação à banalização do artesanato, como conseqüência da industrialização acelerada. Ao chegar Visconti a Paris, o interesse pelas artes decorativas se evidenciava nas exposições

que se realizavam em galerias de arte e nos museus. O pintor brasileiro, que já tivera uma iniciação artesanal na Escola de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro, encontrou na nova linguagem decorativa inspiração para explorar também esse campo da criação plástica. Neste sentido, desempenhou um papel pioneiro na arte brasileira, já que até então nossos pintores e escultores não se interessavam por atuar nesse âmbito da arte. A referida exposição nos mostra alguns exemplos de sua criatividade no terreno das artes decorativas, como estudos para estampagem de tecidos, onde predomina o estilo art nouveau. Aliás, em boa parte de sua produção decorativa, esse é o estilo que prepondera, certamente porque era a linguagem adotada no curso da École Guérin e em toda a produção decorativa da época. Cabe aqui observar que o ecletismo era um traço dominante na arte de Eliseu Visconti, cuja obra pictórica se vale de diferentes estilos e influências. Na fase inicial, sofre forte influência do Simbolismo, que se manifestava não apenas nas figuras aladas e outros ícones típicos daquela escola artística, como também na transparência diáfana das cenas e imagens, próprias da linguagem simbolista. Em seguida, a influência impressionista passa a predominar

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Divulgação/Caixa Cultural

Eliseu Visconti trabalhou com as artes decorativas em cerâmica (página ao lado) , tecido (abaixo) e papel(àdi reita)

nas paisagens e nas cenas. Logo depois, impõe-se a visão realista que se alia a um forte cromatismo, muito distante do colorido suave e transparente do início. Seguem-se paisagens em que a linguagem impressionista ganha feição do pontilhismo, mais característico do pós-impressionismo de Seurat. Mas Visconti nunca se identificará com a objetividade do pontilhismo seuratiano, mais próximo da teoria científica das cores, aprendida em Chevreul do que da atmosfera evanescente dos simbolistas. Na fase final, a pintura de Visconti ganha uma nova expressão impressionista, de fatura mais larga e mais solta. A mostra se enriquece com uma série de estudos para a decoração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Seu primeiro trabalho para aquele teatro foi-lhe encomendado em 1905, quando o prédio estava em construção: um painel para o pano de boca de cena, que se mantém até hoje, bem como os murais posteriores. Esse pano de boca foi pintado em Paris, uma vez que Visconti não dispunha no Rio de um ateliê suficientemente amplo que lhe permitisse pintá-lo. Mais tarde conceberia os murais para o foyer do teatro, considerado por todos a sua obra-prima, no qual sua arte de pintor alcança uma

sutileza e uma força poética raras. Finalmente, muitos anos depois (1934-36) pinta o novo friso para o proscênio. Alguns dos estudos para esse friso, que estão nesta mostra do Centro Cultural da Caixa, atestam a alta qualidade de seu desenho anatômico. É curioso observar que o estilo art nouveau e o movimento de valorização da arte decorativa, na Europa do final do século19, era uma tendência oposta à estética funcionalista da arquitetura moderna, que excluía toda e qualquer decoração. O princípio básico dessa arquitetura foi expresso pelo norte-americano Louis Sullivan, ao afirmar que “a forma segue a função” e, mais radicalmente, pelo alemão Adolf Loos, que declarou, em 1902, que “o ornamento é um crime”. Essa visão racionalista e despojada da arquitetura, que também se estenderá à pintura, irá desembocar nas vanguardas construtivas do século20 e nada tem a ver com a arte de Visconti, que buscava expressar a imaterialidade dos sonhos ou a delicadeza de cenas e paisagens idealizadas. Não obstante, no fim de sua vida, Visconti não se dizia nem passadista nem futurista, mas “presentista”, certo de que a arte muda sempre, como muda a sociedade. NOV 2007 • Continente x

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ARTES

O poder onírico em

Maria Carmen A desenhista, pintora e escultora pernambucana marca a arte brasileira com um trabalho intenso e pessoal Plínio Palhano 54 x Continente • NOV 2007

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ARTES

Fotos: Flávio Lamenha

Ateliê da artista, em Olinda À direita, O Beijo, escultura em bronze, 1963

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m dos pilares da obra de Maria Carmen é o desenho. Nele, iniciou o seu caminho como artista criadora com um universo próprio, único, que a fez percorrer uma espiral ascendente de realizações na pintura, na gravura, na escultura, na estamparia e na sua visão humana sobre as coisas e a vida. Tão surpreendentemente — como ela confessa, ao se sentir em estado de iluminação, quando dos primeiros passos nos desenhos — que não tinha consciência da importância das imagens que lhe saíam da mão, da magia encontrada na sua natureza, no seu castelo, nas suas moradas: animais partidos; corpos humanos; vegetais; mundos ínfimos; traços; pontos; ângulos; a noite; a luz; a explosão em lavas de um psiquismo que só esperava um nascimento; mapas não decifrados em palavras, mas para o prazer do olhar na teia de puro grafismo — o encontro do seu ser, sem máscaras, com uma verdade que não poderia ser negada. Só os mais próximos, aqueles que têm um olhar límpido e crítico, despertaram-na da escrita automática, mostrando-lhe o valor daqueles desenhos realizados: “O bico da pena saía da sua mão como uma ave desesperada, ora navalha, ora facão, teias e ranhuras, o linear e as massas de claro-escuro, densidade às vezes indevassável e que não perdia a finura, copas que se abrem em transparências de fios de seda — um concerto para violino e orquestra —, uma inesgotável germinação de arabescos e seres surpreendentes, infernos que se multiplicam e que não poderiam ser forjados: Maria Carmen trazia a marca de uma autenticidade que talvez àquela época a ela própria escapasse” — como diria José Cláudio, na apresentação, em 1962, da exposição inaugural da artista, através do Movimento de Cultura Popular, na Galeria de Arte do Recife, pertencente ao Movimento. E, nesse mesmo ano, recebe o Primeiro Prêmio de Desenho e Escultura, no Museu do Estado de Pernambuco. José Cláudio foi um dos primeiros a divulgar o trabalho de Maria Carmen em Pernambuco; posteriormente, em São Paulo, apresentou-lhe os amigos pontas-de-lança, como o desenhista, gravador, escritor e jornalista Arnaldo Pedroso d’Horta. Na mesma mostra, estavam as esculturas, fruto dos cursos orientados pelo escultor Humberto Cozzo, no final da década de 1950, no Rio de Janeiro. Relacionar os desenhos e todo o seu percurso artístico a movimentos, estilos, escolas internacionais ou brasileiras é um trabalho que se distancia da realidade da artista. A similitude identificada é com o Expressionismo — e alguns especialistas fazem menção ao Surrealismo,

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Quadro da série O Homem e a Cidade, acrílica sobre tela, 2004

Maria Carmen, desenhista, pintora e escultora

pelo fantástico das imagens elaboradas em sua obra. Mas diríamos que Maria Carmen possui o seu expressionismo na maneira de ver e concretizar as coisas e os seres no desenho, na gravura, na pintura, na escultura: um expressionismo natural. É como um Vincent van Gogh, que, mesmo influenciado pelo Impressionismo, querendo realizar obras impressionistas, não conseguia a essência daquele movimento, mas ser ele próprio, vangoghianamente, em pinceladas. Como Maria Carmen nos diz: “Só fui ter conhecimento dos movimentos artísticos e, especificamente, do Expressionismo, depois da realização dos trabalhos; aí resolvi ler e visitar os grandes museus, onde encontrava aquelas obras sobre as quais comentavam o parentesco com os meus desenhos e as minhas pinturas. Fiquei curiosa quando começavam a lembrar Chagall, Van Gogh, o Expressionismo, e, alguns, o Surrealismo — então, fui confirmar”. Ariano Suassuna, na época da segunda exposição individual dos desenhos da artista, realizada no Masp, organizada por Pietro Maria Bardi, em 1964, relata sua impressão: “Os desenhos de Maria Carmen causam-me a sensação de que foram retirados — como acontece, aliás, com toda obra de arte verdadeira — de sua carne, de seu sangue, de suas entranhas. Lembro-me perfeitamente da grande impressão que me causaram, quando vi, pela primeira vez, aquelas estranhas formas que enchiam papéis enormes e que, de longe, pareciam abstrações terrificantes”. E o crítico francês Edouard Jaguer escla-

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Sem Título, desenho em nanquim sobre papel, 2007

rece sobre o automatismo da sua escrita gráfica: “A mão de Maria Carmem, entretanto, diferente da dos médiuns, guia o sonho até nas suas ramificações pelo menos tanto quanto por ele se deixa guiar”. A partir das exposições individuais, lança-se a intensificar os estudos contínuos no desenho. Alimentava-se da experiência em cada realização e encontrava os caminhos inesperados, uma força da natureza que a impulsionava, apresentando uma geometria circular, que alguns identificaram como “mandalas”, termo escolhido por Thermira Brito, ou “a loucura organizada”, no conceito de Adão Pinheiro, ou “magiado circulares”, na visão de João Câmara, e que Maria Carmem os intitulou simplesmente “redondos”. É preciso ressaltar que o desenho permanece — mesmo quando constrói sua obra em outras técnicas e linguagens — fazendo parte, em separado, de sua produção. Neste ano, já foram realizados vários desenhos que lembram a escrita dos primeiros. São Paulo foi a cidade que lhe ofereceu guarida, onde encontrou admiradores fiéis que lhe deram sustentação para toda uma realização nos 50 anos como artista. Excelentes admiradores, vale salientar. Intelectuais, artistas, marchands, jornalistas, críticos. A começar por Bardi, o diretor e fundador do Museu de Arte de São Paulo, que, entusiasmado pelos desenhos, lhe pede para trabalhar com ele, no Museu, possibilitando-lhe um ateliê, e, dois

anos após, organiza-lhe a exposição no Masp, consagrando-lhe no centro das atenções artísticas. À época, Maria Carmen publica os desenhos no jornal O Estado de S. Paulo, numa seção diária, atraindo o olhar mais exigente da metrópole. Um momento rico em seu percurso ao encontrar as afinidades e o apoio. O crítico Walter Zanini, acompanhando as publicações, interessa-se em conhecer a autora dos desenhos e faz-lhe a proposta de participar de uma exposição coletiva que circularia o mundo, do Grupo Austral do Movimento Internacional FHASES, inicialmente realizada no Museu de Arte Contemporânea da USP, importantíssima mostra que marcaria a história cultural da cidade. O nascimento da pintura e da cor surgiu dos seus trabalhos de padronagem para estamparia — em fábricas de tecidos —, como desenhista e colorista, na companhia do poeta Orley Mesquita, em Pernambuco. Foi essa experiência (anteriormente ela realizava pintura direta no tecido para confecção de vestidos), com as misturas das cores para uma boa padronagem, que lhe deu a intimidade com as nuanças, os contrastes, os contornos, a composição plástica modelada. A partir daí, acrescenta ao seu olhar, impondo ao desenho – tão familiar e obsessivo –, outro fator que seria determinante como elemento de expressão: a cor. Mais uma vez aí a presença da ligeira siNOV 2007 • Continente x

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Jerimum, óleo sobre eucatex, 1972

Vera, óleo sobre eucatex, Londres, 1977

militude com o Expressionismo, porque prossegue o desenho com o acréscimo das vibrações da luz e da cor e as pinceladas rápidas que brotam da sua natural concepção, percorrendo toda a superfície do suporte num só fôlego. “Nos meus trabalhos de pintura que realizei nesse período, eu vejo, hoje — não sei se os outros percebiam —, os desenhos e as esculturas e fiz questão que aparecessem com a força das cores e os reflexos dos volumes”, lembra Maria Carmen. Maria Isabel Branco Ribeiro testemunha o mergulho da artista na pintura: “(Maria Carmen) começou a pintar em 1972, e o sentido da cor em sua obra está relacionado ao trabalho que desenvolveu criando padrões para a indústria têxtil. A pincelada incisiva e a manutenção da linha de contorno são sobrevivências do desenho em sua pintura, que registra aspectos do cotidiano, da flora e da paisagem do Agreste”. A pintura foi também o seu veículo libertador. A coragem com que penetrou nos mistérios pictóricos sur-

preendeu todos. Maria Carmen encontrou na técnica do óleo — e, depois, da tinta acrílica — um veio natural, dando-lhe uma nova perspectiva. São frutos, nus, paisagens, partes da natureza, cabeças, atos de amor, flores, santos. Sempre a pincelada como um selo de identificação, uma escrita que ninguém lhe pode negar. Apenas num pedaço da pintura podemos reconhecer a autoria. Os olhos amendoados das cabeças, a quebra das regras anatômicas das figuras, os frutos feitos como corpos sensuais, as flores como sexos e a força que sai de uma luta entre pinceladas: nada se revela fácil, e ela acredita que dói, no ato criador, uma dor que liberta a luz e que faz a artista herdeira de uma tradição que vem desde as pinturas rupestres, da necessidade de a humanidade deixar o seu sangue impresso na criação. Renato Carneiro Campos, o amigo e extraordinário cronista que animava a vida cultural do Recife, disse sobre sua pintura: “Florais, santos, cópulas, nus, naturezas-mortas, estranhas cabe-

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ARTES ças judaicas, ela vai pintando, errando, acertando, dando a impressão, no conjunto, pelo menos a mim, de que se trata, sem dúvida nenhuma, de uma das maiores artistas que este país já possuiu”. Três cidades foram importantes para a consolidação da obra de Maria Carmen: Recife, São Paulo e Olinda. Apesar de ter usufruído, no Rio de Janeiro, da convivência com outros artistas e, principalmente, das aulas de escultura — que lhe foram úteis para a modelagem e o volume, ainda lembrados na pintura, a exemplo do desenho que está presente em maior ênfase — com o escultor Humberto Cozzo e ter realizado exposições individuais em galerias importantes, foi nas outras cidades mencionadas que o seu trabalho encontrou um prolongamento de sucessivos fatos que deram a base, o lance e a estabilidade na sua vida como artista. São Paulo deu-lhe a expansão e a solidez crítica, e o Recife, o encontro e início de um conhecimento construtivo com uma geração de artistas de primeiríssimo time que sustenta, até hoje, em valor, um produto inigualável e difícil de retornar com o mesmo entrelaçamento de trabalho e idealismo. Esses artistas, nos seus ateliês coletivos, compartilhavam idéias e concepções, reuniam-se em encontros. Fizeram história, a exemplo da criação do Atelier Coletivo, na década de 1950, liderado por Abelardo da Hora, e do Movimento de Cultura Popular. Em sua residência, na Rua das Crioulas, reunia-se a nata. Escritores, poetas, desenhistas, pintores, críticos e músicos. Uma verdadeira embaixada para os críticos que vinham a Pernambuco. Como também foi no ateliê de José Cláudio, com as famosas caranguejadas oferecidas aos amigos, recheadas de humor e música. E, sempre aos domingos, nos anos 1960, no Engenho São Francisco, na casa de Francisco Brennand.

Mandalas, desenho em nanquim sobre papel, 1970

Olinda, cidade que recebeu várias gerações de artistas, foi o contato e o prolongamento da convivência, através do Atelier +10, na Rua do Amparo, 164, com Vicente do Rego Monteiro, Anchises Azevedo, Jorge Tavares, Liêdo Maranhão, Montez Magno, Wellington Virgolino, João Câmara e Vera Bastos, sua filha. A cidade abriu-lhe a vegetação para o trabalho. As flores, os frutos, os troncos, o azul e o verde da paisagem deramlhe o substrato para penetrar na pintura com prazer e intensa cor. E, até hoje, é lá que tem instalado o seu ateliê, onde exerce o ofício diariamente, atendendo ao universo que sempre esteve em turbulência no seu mundo interior e, no dizer de José Cláudio, “(sendo) animista, acredita, como um bruxo, numa selva espiritual que a liga — e a todos nós — aos bichos, às pedras, aos espaços, aos seres vegetais, e a sua pintura é uma espécie de umbanda por meio da qual chama a divindade das coisas...”. • NOV 2007 • Continente x

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Fotos: Divulgação

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Luminária de mesa em bronze e vidro

Uma vida em bronze e vidro Coleção de Janete Costa e Acácio Borsoi reúne peças dos mais diferentes tempos, lugares, materiais e técnicas Marco Polo

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uadros a óleo do paisagista Roberto Burle Marx, incluindo um que retrata o casario olindense, datado de 1935; peças do artesanato brasileiro em barro e madeira, entre as quais, cataventos e seres fantásticos (uma mulher montada num pavão gigante ou uma árvore de cabeças); sofás e mesas franceses da art nouveau; carrancas e cabeças de santos; luminárias, pratos, vasos, taças e esculturas; uma porta de igreja e um cavalo de carrossel; mais peças de cerâmica pré-colombiana adornadas por formas geométricas abstratas; e o vigoroso artesanato africano, com totens, urnas e, sobretudo, más-

caras rituais, são os objetos que integram a fascinante exposição Uma Vida, composta pela coleção dos arquitetos Janete Costa e Acácio Gil Borsoi, em cartaz no Museu do Estado de Pernambuco até dois de dezembro próximo. “Não se trata de uma coleção de colecionador e, sim, de uma busca por peças e móveis de bom desenho, seja antiga ou contemporânea,” explica Janete. Pelas feiras, antiquários e galerias, nas viagens pelo Brasil e pelo mundo, os dois foram, ao longo de uma vida (daí o título da mostra), comprando peças que não são, necessariamente, raras ou caras, mas que afetaram positivamente o seu gosto pessoal.

Acima, Janete Costa. À esquerda, dançarina em metal, marfim e mármore

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Paisagem de Olinda, Roberto Burle Marx, 1935

Máscara Capacete, etnia ekoy, Nigéria

Burle Marx, amigo do casal, ocupa uma sala, com quadros abstratos e estamparias em tecido. Outro destaque é o artesanato brasileiro, com peças de mestres como Manuel Galdino e Sil de Capela. Uma coleção de colares em metal do Tibet faz contraste com os vidros de farmácia Baccarat. Uma seqüência de expressivas cabeças de santos se complementa com figuras de outros santos em corpo inteiro, todos em madeira, e se contrapõe a elegantes nus femininos em bronze. Há, ainda, um grande número de peças em vidro, trabalhos em luz e transparência, uma das paixões de Janete, desde criança. A pernambucana de Garanhuns, Janete Costa, que é também a curadora da exposição, é considerada uma das melhores decoradoras de ambiente em todo o país, tendo destaque por ter sido a primeira a utilizar o artesanato popular com elegância, sensibilidade e inteligência. Já o carioca Acácio Gil Borsoi, seu marido, é, ao lado do português Delfim Amorim, o introdutor do Modernismo na arquitetura pernambucana, nos anos 50, sendo hoje uma referência nacional. Não é, portanto, de estranhar que em coleção tão eclética, vinda de tantas épocas e lugares distintos, realizada em técnicas tão díspares, em materiais tão diferentes como bronze e vidro, mantenha-se ainda assim um forte fio de amarração que os unifica num todo global. E esse fio – quem visita a mostra pode constatar – é um irretocável bom gosto. Numa época em que o que mais se discute é a barbárie que parece ter tomado conta do mundo, a exposição pode ser vista, também, como um exemplar mostruário da capacidade humana em criar coisas belas, no decorrer de uma longa e, muitas vezes, sofrida história.

SERVIÇO Exposição: Uma Vida – Coleção Janete Costa e Acácio Borsoi Local: Museu do Estado de Pernambuco Av. Rui Barbosa, 960. Graças – Recife. Fone: (81) 3427.9322 Visitação: de terça à sexta-feira, das 9 às 17h. Sábados e domingos, das 14 às 17h Até 2 de Dezembro

Vidros de farmácia Baccarat, França NOV 2007 • Continente x

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Frutas de brincadeira "Na planície estendiam-se os canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca." Joaquim Nabuco (Minha Formação, 1900)

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lguns alimentos têm sabor de infância. Devolvem-nos a esse território mágico que acompanha o homem pela vida como uma sombra, e logo passa como o vento. Entre esses sabores estão, sobretudo, o de frutas muito especiais – araçá, aratigum-apé, buriti, cruá, guajiru e ingá, referido na primeira parte deste artigo; e também jabuticaba, oiti, pitanga, pitomba, romã – que estarão no próximo número da Revista. Todas trazendo lembranças de um tempo que já vai longe – brincadeiras, trelas, férias, os amigos da escola, a casa dos nossos avós. Colhidas nos quintais, num tempo em que ainda se vivia em casas com quintais. Ou compradas na porta de casa, de homens que carregavam balaios de vime na cabeça e em varas penduradas nas costas – anunciando o produto em pregões que nossos ouvidos de antes não conseguem esquecer. Ou ainda roubadas nas árvores dos vizinhos, como ensina Carlos Drummond de Andrade em “Menino Antigo”. Sem que se saiba por quê, toda gente sabe disso: fruta roubada é sempre mais saborosa. Talvez por lembrar pecado, a fruta proibida do jardim do Éden. Em comum, nessas frutas, o fato de que não eram servidas durante as refeições e nem decoravam as fruteiras da sala de jantar. Permanecem assim, até hoje. Como se estivessem relegadas a um segundo plano. Mas têm todas, ainda hoje, um gostinho muito especial. Porque saborear uma dessas frutas é, sobretudo, voltar no tempo.

Araçá (Psidium araçá Raddi) – Para nossos índios era ara’sa um de seus frutos preferidos. E logo passou a ser também muito apreciado pelos portugueses. Tudo como atestam alguns cronistas da época: “Há uma fruta que se chama araçazes, são como nêsperas e não fazem mal à saúde” – Gândavo, Tratado da Província do Brasil, 1576. “Os frutos são amarelos, vermelhos, verdes, são gostosos, desenfastiados, apetitosos por terem alguma ponta de agro” – Cardim, Do Clima e Terra do Brasil, 1584. “A fruta se come inteira, e tem a ponta azeda, muito saborosa, da qual se faz marmelada, que é muito boa e melhor para os doentes de cãibras” – Gabriel Soares de Sousa, “Notícia do Brasil”, 1587. “São muito bons e doces” – Francisco de Assis Soares, “Coisas Notáveis do Brasil”, 1590. A árvore é originária do Norte e do Nordeste do Brasil. Pode chegar a, no máximo, 6 metros de altura. Não muito exigente quanto ao clima, resiste inclusive a geadas. Mas, deci-

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Sem que se saiba por quê, toda gente sabe disso: fruta roubada é sempre mais saborosa. Talvez por lembrar pecado, a fruta proibida do jardim do Éden Imagens: Arquivo Continente

didamente, prefere solos secos e úmidos. Suas folhas são avermelhadas quando nascem, e depois ficam verdes. O contrário da maioria das plantas, onde o vermelho prepara o amarelo que precede a queda das folhas. Suas flores são de um branco-esverdeado. Araçá é fruta pequena, arredondada, esverdeada, ficando amarela à medida que amadurece. Lembra goiaba, com polpa macia e cheia de sementes. Não por acaso pertencem a mesma família – das Myrtáceae. Em algumas regiões da Bahia é, inclusive, comum chamar goiaba de araçá. Mas, no gosto, são bem diferentes. Que araçá é bem mais ácido. Variedades são muitas – araçá-branco, boi-do-mato, da-praia, do-campo, de-festa. Os frutos mais doces são consumidos ao natural. Os mais ácidos usados na fabricação de doces, geléias e sorvetes. Aratigum-apé (Annonna salzmannii) – É nativo das matas úmidas do litoral nordestino. Para os índios, arati’ku (fruto mole). Foi registrado pelos primeiros cronistas que vieram para o Brasil. Gabriel Soares de

Sousa disse que “araticu é uma árvore do tamanho de uma amoreira, cuja folha é muito verde escura, da feição da laranjeira, mas maior; a casca da árvore é como de loureiro, a madeira é muito mole, a flor é fresca, grossa e pouco vistosa, mas o fruto é no tamanho como uma pinha”. Além de consumido ao natural, pode-se do aratigum fazer doces e bebidas que levam o sabor forte e perfumado de sua polpa. Buriti (Mauritia vinifera) – Também conhecido como muriti ou muruti, para os índios era ïrï’tï. Trata-se da mais alta palmeira do Brasil, chegando a 35 metros de altura. Prefere terrenos alagados de brejos, várzeas e rios. Essas águas são responsáveis por disseminar suas sementes, formando verdadeiros bosques.“Perto dali havia um bosque frondoso de buritis que formavam no meio do tabuleiro uma grande ilha de formosas palmeiras”, assim os descreveu José de Alencar (Iracema, 1865). Dessa palmeira tudo se aproveita. Das folhas grandes e brilhantes, em forma de leque, se extrai uma fibra usada na confec-

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receitas

Doce de araçá 3 Coloque 1 kg de araçá na panela e deixe ferver, até que fiquem bem desmanchados. 3 Passe na peneira. 3 Coloque em uma panela a mesma quantidade da massa de araçá e de açúcar (por exemplo, se a massa pesar 1kg, colocar também 1 kg de açúcar). Leve ao fogo, sempre mexendo, até que comece a soltar do fundo da panela

Creme de araticum 3 INGREDIENTES ½ kg de polpa de araticum, 1 litro de leite, 1 copo de iogurte natural, açúcar a gosto. 3 PREPARO Afervente o leite e depois deixe amornar. Junte o iogurte e deixe descansar por oito horas. Acrescente a polpa e o açúcar. Bata tudo no liquidificador até obter consistência cremosa. Colocar na geladeira até a hora de servir.

Doce de buriti 3 INGREDIENTES 1 kg de polpa de buriti, 500 g de açúcar, 2 pedaços de pau de canela, 1 colher de sopa rasa de manteiga 3 PREPARO: Misture a polpa de buriti, o açúcar, a canela e a manteiga. Leve ao fogo, sempre mexendo, e deixe até que fique com consistência cremosa.

ção de cestos, balaios, cordas, esteiras, mantas, redes, urupemas. Os frutos (conhecido pelo mesmo nome) nascem a partir de flores que aparecem entre dezembro e abril, em grandes cachos de até 3 metros. São coquinhos amarronzados com duras escamas que vão escurecendo, à medida que amadurecem. Para colher, melhor cortar no alto o talo. Com facão bem- afiado, para não machucar a palmeira. É comum ver o sertanejo pulando no chão, com as enormes folhas da palmeira na mão, imitando um pára-quedas. Dentro dos coquinhos está sua polpa carnosa, amarela, oleosa e doce. Para retirar a polpa é preciso antes amolecer aquelas escamas – mergulhando em água morna ou abafando em saco plástico. Da polpa se faz doce, rapadura, raspas (polpa raspada e posta ao sol para secar), paçoca (misturando às raspas um pouco de farinha de mandioca e de rapadura), sorvete, refresco, cremes, geléias, licores. Do broto terminal, retira-se um palmito muito grosso e apreciado. Do caule pode ser tirada, por incisão, uma seiva adocicada usada na fabricação do vinho-de-buriti. Do tronco se extrai uma fécula, cha-

mada ipurana, cujo sabor é muito semelhante ao sagu. Do caroço, um óleo vermelho cor de sangue, usado na culinária e curiosamente usado também para envernizar couro e pele; e dele se faz, inclusive, um remédio, usado no tratamento de queimaduras (aliviando dores e ajudando na cicatrização) e vermes. Cruá (Sicana odorífera) – É trepadeira nativa das regiões Norte e Nordeste do Brasil. O fruto, para os índios ka’rauã (talo armado de espinhos), tem sabor doce e cheiro bem forte – em razão do que é também conhecido como fruta-de-cheiro ou cabaça-de-odor; sendo muito usado na aromatização de tecidos. Tem cor roxa e casca lisa, como a berinjela. Polpa suculenta, como o melão (chamado também de melão-caboclo). E tamanho grande, como o jerimum. O fruto é normalmente consumido ao natural. Mas dele também se faz eficiente remédio no alívio de febre e no tratamento de tuberculose. O grande pintor pernambucano José Cláudio, pai do também grande pintor Manuel Cláudio (o popular Mané Tatu), fala com emoção das lembranças do cruá. Seu pai, Amaro Silva, era dono de loja de colchões em Ipojuca. Também fazia caixões de defunto. Previdente, e tendo um parente tuberculoso, que morava em Camela, resolveu fazer logo seu caixão. Que, nessa época, a doença não tinha cura. Assim estaria prevenido, para caso de vir o doente a falecer em dia de feira ou festa. O caixão era roxo, por ser solteiro o futuro defunto. Ironicamente, a mesma cor dos cruás – por coincidência, único remédio para aliviar os sintomas da tuberculose. Pronto o caixão, acabou guardado numa dependência da loja. No mesmo lugar em que eram também depositados os cruás, esperando portador para Camela. E assim ficavam juntos – frutas e caixão da mesma cor. José Cláudio, sempre que vê um desses caixões, se lembra saudoso do depósito, da loja, dos cruás e do pai.

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Uma poesia alienada? O destino singular que a herança simbolista recebeu no cenário literário brasileiro Raul Azevedo de Andrade Ferreira

Acervo Biblioteca NAcional/Reprdução

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o olhar para trás e observar como a poesia se transformou desde a última metade do século 19, o leitor que possua alguma curiosidade na história da literatura poderá facilmente perceber que, no que diz respeito à poesia ocidental, o conjunto de tendências que no início do século passado se convencionou denominar de Simbolismo constitui trecho inevitável do percurso que vai de Baudelaire à poesia moderna do século 20. A Paris das décadas de 1880 e 1890 presenciou um período de fermentação de idéias que não apenas estimulou os grandes nomes da poesia da época – Verlaine, Rimbaud, Mallarmé –, mas que também serviu para orientar qual deveria ser o vetor da nova literatura dos anos seguintes, a ponto de escritores de obras tão diversas, como Valéry, Rilke, Yeats, Eliot, Darío, serem considerados como herdeiros do cénacle simbolista. Caso diverso poderá ocorrer caso este leitor seja brasileiro, pois ele terá que se deparar com um fenômeno um tanto estranho: a constatação do destino singular que a herança simbolista recebeu no território de seu país. Pode-se dizê-lo estranho devido ao contraste que ele faz com o que ocorre no resto do mundo ocidental: ao passo que lá a transformação da poesia operada pelo Simbolismo frutificou na tradição moderna (também à medida que continuava o alto romantismo alemão), aqui ela foi sempre diagnosticada, nas palavras do crítico Nelson Werneck

Cruz e Sousa foi o maior poeta do Simbolismo no Brasil

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Sodré, como uma “coisa estranha, produto exótico” em nossa tradição literária. É sabido que o desenvolvimento de uma tradição literária é feito tanto de continuidades quanto de rupturas; o olhar crítico-historiográfico, contudo, costuma voltar à massa desordenada do passado cultural dotado de uma intenção analítico-ordenadora, que separa e organiza o caos das relações estabelecidas entre os textos literários numa ordem compreensível à contemporaneidade. Muito da pluralidade e riqueza do passado é sacrificado neste processo, pois várias de suas peças simplesmente não encontram o encaixe adequado dentro da figura montada pela perspectiva histórica. É como se o historiador possuísse mais peças do que o necessário para montar a imagem de seu quebra-cabeça, pois a imagem desejada não pertence ao próprio passado, mas ao olhar que o procura. A tendência simbolista, por mais que suas orientações houvessem produzido ressonância em numerosos escritores brasileiros, não conseguiu encontrar espaço cômodo na linha traçada por nossa historiografia literária. Dentro dela, o Simbolismo parece estar alocado numa dimensão à parte, ou, no máximo, incluído à maneira de um órgão malformado, um apêndice que em nada contribuiria à totalidade do organismo. Na lógica de nossa sucessividade, à geração naturalista-parnasiana suceder-se-iam imediatamente os modernistas paulistas, que teriam suas propostas antecipadas por alguns escritores que os críticos resolveram chamar de Pré-modernismo. Os simbolistas restariam na beira da estrada, onde é possível enxergar apenas os vultos de Cruz e Sousa e Alphonsus Guimaraens. Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, afirma que “o Simbolismo não exerceu no Brasil a função relevante que o distinguiu na literatura européia”, e que ele teria tido “algo de surto epidêmico” dentro de nossa cultura. Bosi identifica que tal configuração do simbolismo brasileiro decorre de uma não-correlação do movimento com o “solo cultural” do país; os poetas simbolistas, que foram contemporâneos dos prosadores naturalistas e poetas parnasianos, não teriam, diferentemente daqueles, se inserido no que ele chama de “teia da vida social”; não teriam participado dos problemas da nação, e por isso não teriam sido “homens representativos do seu tempo”. As conclusões de Bosi caminham no mesmo sentido do já referido Nelson Werneck Sodré, que via no afastamento da poesia simbolista do público “o exemplo típico de alienação cultural”. Cumpre-se inicialmente assinalar que os críticos não estão equivocados quando concluem que a poesia simbolista procurou um afastamento do público e da

Imagens/Reproduçãoção

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Charles Baudelaire, autor de Flores do Mal

Stéphane Mallarmé, autor de Jogo de Cartas

Ao procurar nos textos do Simbolismo uma conexão com a vida social, nossos críticos buscam um modelo de literatura que deixava de existir desde Baudelaire

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TESES vida social; o que não parece apropriado é a interpretação que eles conferem a este fenômeno. Paul Valéry identificava o solo comum dos escritores simbolistas não numa estética compartilhada, mas numa postura ética de negação. O Simbolismo, mais do que um conjunto homogêneo de propostas literárias, foi uma fraternidade de escritores que rejeitaram a realidade social de seu momento histórico. A negatividade simbolista aproveita o frisson nouveau de Baudelaire e dá a tônica da poesia do século 20. Com ela ocorre uma revolução severa na ordem dos valores literários, pois, nas palavras de Valéry: “substituem progressivamente a noção das obras que criam seu público pela das que solicitam o público”. Isto quer dizer que à literatura, depois do Simbolismo, não cabia mais a função de corresponder às expectativas do grande público, antes ela passa a se colocar diante dele através de uma postura transgressora de seus valores e dos preconceitos vigentes na sociedade. O Bulevar dos Capuchinhos (1873), Claude Monet. Uma cena das ruas de Paris Isto tudo implica uma reconfiguração do modo como a literatura pode ser uma for- literatura a ociosidade fundamental de que ela necesma de conhecimento do mundo. Antes se esperava que sita para se fazer literária; sempre lhe caberia a função ela devolvesse ao leitor o seu mundo conhecido; este de promover uma identificação com uma imagem prédespertaria o efeito estético mediante o reconhecimento via do país, algo parecido ao que acontece com a nossa de sua vida no texto: a arte imitaria a vida, tal como a atual produção cinematográfica. Os críticos, portanto, vida imitaria a arte. Ao se fazer negativa, a literatura passaram a adquirir o costume de entender o seu traestabelece uma dissonância fundamental entre a vida balho como a procura daquilo que o país é nos textos, e o texto. Vendo no texto algo diferente do mundo, a e quando eles se deparavam com algo que ele não é, literatura permite o seu conhecimento não por aquilo o texto é prontamente descartado. Por isso não deve que ele é, mas por aquilo que ele não é. Ao fazer assim, causar estranheza que os poucos estrangeiros que se a literatura possibilita um alargamento do sentido de preocuparam com a literatura brasileira parecem se realidade do ser humano, pois ele passa a encontrar, na entusiasmarem mais com os escritores simbolistas do experiência estética, alternativas impossíveis de serem que os próprios críticos brasileiros, a exemplo do poeta experimentadas enquanto ele se resume na mediocri- nicaragüense Rubem Darío e a crítica norte-americana Anna Balakian. dade de sua vida cotidiana. Ao procurar nos textos do Simbolismo uma coneEsta nova configuração da literatura cria uma pro- xão com a vida social, nossos críticos procuram um blemática nas nações traumatizadas pelo processo de modelo de literatura que já deixava de existir desde colonização que inexiste nos centros europeus. O pro- Baudelaire. Dessa forma, a resistência à estética simbocesso de independência promovido por esses países lista torna-se índice de uma problemática que vai muireservou à literatura uma função estratégica: estabele- to além da situação particular de alguns escritores de cer representações de unidade nacional. A obrigação nosso passado literário, ela indica a própria dificuldade imposta pela política de emancipação não permitiu à de nosso pensamento em se modernizar. NOV 2007 • Continente x

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MÚSICA

Grandes poetas, Recital de Adélia Issa e Ricardo Ballestero divulga raras parcerias entre os maiores nomes da literatura e da música clássica brasileiras Carlos Eduardo Amaral

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ocê pode até não ser um leitor habitual de nossos poetas maiores ou um profissional das letras, mas certamente se lembra dos tempos em que estudava literatura no segundo grau (hoje ensino médio) e ouvia os versos de Manuel Bandeira: Vou-me embora pra Pasárgada/ Lá sou amigo do rei/ Lá tenho a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei. Já lhe ocorreu tentar cantarolar esses versos e pensar como seria a melodia ideal para eles? Pois saiba que Bandeira foi um dos escritores mais musicados do Brasil e que “Vou-me embora pra Pasárgada” não ficou esquecida pelos compositores. Ela se transformou numa bem-humorada partitura de Guerra Peixe e se soma a outras do rol musical inspirado pelo pernambucano, como a sentimental “Pousa a mão na minha testa”, melodiada por Camargo Guarnieri, e a dançante “Dona Janaína”, de Francisco Mignone. Villa-Lobos, então, era companheiro constante: vide a “Seresta n° 2”, o segundo movimento da “Bachianas Brasileiras n° 5” ou a “Invocação em defesa da pátria”.. No entanto, o cancioneiro nacional registra parcerias que vêm desde o século19. Canções que reúnem nomes consagrados da música e da literatura motivaram o soprano Adélia Issa e o pianista Ricardo Ballestero a criar um recital que estreou em 2006 em turnê no Sul do país, através do projeto Circulação de Música de Concerto Petrobras-Funarte. Ao pesquisar peças brasileiras para voz e instrumentos acompanhadores, Adélia e seu marido, o violonista Edelton Gloeden, entraram em contato com compositores, bibliotecas e herdeiros. Descobriram raridades dos tempos do Parnasianismo e do Realismo, como canções de Alberto Nepomuceno sobre textos de Olavo Bilac e Machado de Assis. Em viagens anteriores ao Estados Unidos, Ballestero observou o repertório de outros pianistas acompanhadores de canto e se inclinou às mesmas

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Adélia Issa e Ricardo Ballestero criaram um recital que reúne nomes consagrados da música e da literatura

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Imagens: Arquivo CEPE

Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade tiveram suas obras musicadas por compositores como Guerra Peixe e Camargo Guarniere (acima), entre outros

No projeto de Grandes Poetas, Grandes Canções, as obras aparecem no programa agrupadas pelo nome do poeta, não pelo do compositor, significando um gesto de reconhecimento à poesia pesquisas de sua amiga Adélia. Ambos conceberam uma versão internacional do Grandes Poetas, Grandes Canções em 2003, na qual constavam, por exemplo, Verlaine musicado por Fauré e Debussy, Heine por Brahms e Schumann, James Joyce por Samuel Barber. Só em 2006 surgiu a versão nacional. Em 2007, o duo se apresentou no interior de São Paulo e em junho veio ao Recife para o III Virtuosi Brasil. Adélia e Ricardo preparam a gravação de um CD e planejam fazer uma nova turnê pelo Brasil. “Para a seleção das canções do programa Grandes Poetas, Grandes Canções, Ricardo e eu estabelecemos critérios pensando na fluência e na integração do texto com a música. Também procuramos incluir obras de compositores que tiveram estreita amizade ou conviveram com os poetas que eles musicaram, obras essas cuja concepção musical e literária mostram conceitos estéticos muito próximos”, diz Adélia. Ambos costumam comentar aspectos de interpretação e curiosidades antes de cada música. Eles contam que em “Uma nota, uma só mão”, do paulista Osvaldo Lacerda, a melodia se assenta numa única nota e o pianista executa o acompanhamento somente com a mão esquerda – recursos de estilo condizentes com a repetitividade da letra: a famosa “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. E, em “Retrato”, da também paulista Lina Pires de Campos, a compositora resolveu preservar

a força dramática do poema de Cecília Meireles optando pela utilização de trechos simplesmente declamados, não cantados. Por sinal, obras de compositoras mulheres não são exceção em Grandes Poetas, Grandes Canções. Ao lado de Lina Pires de Campos, estão Kilza Setti, Eunice Catunda e Helza Camêu, pouco conhecidas, mas de trajetória extensa. Em 1960, Kilza Setti comprou um livro de Hilda Hilst e musicou a “Trova de muito amor para um amado senhor” (Nave./ Ave./ Moinho./ E tudo mais serei/ Para que seja leve/ Meu passo/ Em vosso caminho). Poucos meses depois, inscreveu a peça e obteve o primeiro lugar no primeiro concurso “A Canção Brasileira”, da Rádio MEC, cujo júri contava com nomes do porte de Manuel Bandeira e do pianista Frutuoso Viana. Kilza lembra que a matéria acerca da premiação saiu em jornais cariocas e paulistas: “A seguir Hilda Hilst me telefonou entusiasmada, afirmando que queria me conhecer pessoalmente e que marcaria um encontro, porém ela nunca mais me procurou. Daí, nunca cheguei a conhecê-la em pessoa. Sei que a “Trova...” foi posteriormente musicada por outros compositores brasileiros. No nosso caso, não houve uma parceria como ocorre na MPB, já que não houve interlocução entre compositor e poeta”. A canção é uma forma de síntese de duas “artes liberais”, assim chamadas na Idade Média: a música e a retórica. A retórica fazia parte do trivium (gramática,

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Divulgação/Editora Globo

retórica e dialética) e a música, do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Mais do que isso, a canção agrega e funde música e poesia, entoação e discurso e, à medida que a literatura e a música mudavam seus paradigmas estéticos, a canção evoluía junto. Ricardo e Adélia apontam que, a partir do final do século 19, no Brasil, as obras literárias nacionais de peso começaram a ser melodiadas por músicos da terra, como acontecera algum tempo antes na Alemanha e na França: o lied alemão desenvolveu-se com o surgimento da literatura romântica e a mélodie francesa impulsionou-se com a poesia simbolista. Contrariando compositores e críticos que consideravam o português impróprio para o canto, Alberto Nepomuceno introduziu nossa língua em obras vocais de concerto, no tempo em que a música clássica brasileira ainda não possuía identidade. Por isso, “Numa concha”, de Nepomuceno e Bilac, é um lied em vernáculo, se comparada à “Toada pra você”, de Oscar Lorenzo Fernandez e Mário de Andrade, pós-Primeira Geração Na- "Trova de muito amor para um amado senhor", de Hilda Hilst (acima), foi musicado por Kilza Setti (ao lado) cionalista. No programa de Grandes Poetas, Grandes Canções, as obras aparecem no programa “agrupadas pelo nome do poeta, não pelo do compositor, significando um gesto Paulo Costa Lima e Cláudio Santoro –, a pesquisa das de reconhecimento à poesia e também uma outra forma partituras resultou na descoberta de obras menos conhede interpretação e apreciação das obras vocais, sob um cidas de Mignone, Guerra Peixe, Villa-Lobos e do próprio olhar literário mais crítico”. Assim, o texto passa a ser no- Guarnieri, e na constatação da riqueza e do alto nível de tado verdadeiramente como elemento central da melodia, elaboração da canção de câmara brasileira. Ela observa: “não sendo simplesmente um componente secundário ou “Sempre gostei de poesia e das canções de câmara com poemas mais elaborados, mais intensos, pois acredito que de ornamentação dela”. a perfeita integração música-poesia possibilita recursos O duo explica que “pode-se constatar a relação entre as de interpretação mais amplos”. Na posição de compositora, Kilza Setti corrobora: idéias da poesia e a elaboração musical correspondente, no sentido de apontar escolhas composicionais certa- “Quando seleciono um texto, dedico-me inteiramente a mente sugeridas pelo texto, e que contribuem definitiva- dar uma forma sonora a ele. Sobre isso, troquei algumas mente para uma maior comunicação expressiva. Trata-se idéias com nosso incomparável Carlos Drummond de de uma postura interpretativa de estruturas musicais em Andrade, do qual já musiquei alguns poemas”. – Que tal função da intensificação das idéias, do realce de estados agora um desafio em forma de brincadeira? Leia a inesde espírito, da evocação do meio social, do momento his- quecível “Quadrilha” de Carlos Drummond, já musicada – magistralmente – por Francisco Mignone, e crie você tórico e das tradições culturais contidas nos poemas”. Para Adélia Issa – que atuou em estréias mundiais de mesmo uma melodia espirituosa para os célebres versos composições de Guarnieri, Mignone, Jocy de Oliveira, “João amava Teresa que amava Raimundo...”. 71

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MÚSICA

Uma parcela do público que reclama da falta de militância das mais recentes letras do compositor não percebe as sutilezas do Chico de hoje

Chico Buarque Peron Rios

e a astúcia da linguagem

C

hico Buarque de Holanda é daqueles artistas que são vítimas de uma unanimidade. Muitos o reverenciam e, às vezes, sem saber findam por decretar o seu ostracismo pela via perversa do hors concours, a qual, aliás, é um álibi perfeito para escamotear uma renitente obtusidade diante de sua obra. Os temas políticos, a alteridade feminina, a inserção do que há de mais autêntico em nossa cultura, são a semeadura cintilante com que desenham a constelação de sua música. Muito se exige e se lamenta do Chico atual em relação ao anterior, e várias ciladas, desse modo, o espreitam. O maior dos enganos parece advir daqueles que deslizam para o desejo apenas das canções que revelam uma sociedade destoante ou as injustiças políticas. O mais grave, porém, ainda não é isso: é a querência pela escritura com intenções claras de militância e de reivindicação. Em outros termos, a arte panfletária (e, aqui, o adjetivo sufoca o substantivo), que fez tantos outros caírem nas suas armadilhas. O fato é que a febre de suas canções é subversiva e ataca sem dar os seus sinais: o corpo a camufla. A música muitas vezes serve como um antipirético eficaz para a quebra de homeostase causada na linguagem. Um lirismo profundo às vezes se forja na melodia e lhe oferece uma ingenuidade aparente. E a poesia por debaixo vai minando as defesas do organismo social. Tomo como exemplo duas canções, uma mais declarada, outra mais sutil, quanto ao seu viés político. A primeira à qual me refiro é “Iracema voou” (veja letra na página ao lado), segunda faixa do disco As Cida-

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des, de 1998. Vejo ali uma escritura que tem como tema central o problema da identidade. Mas ver apenas isso é demasiado fácil. O problema é como Chico atingiu seus propósitos com sucesso estético e sem ser, na sua denúncia, um declarado porta-voz. Iracema, personagem do romance homônimo de José de Alencar, é reelaborada pelos tempos, nas mãos do artista de agora. É jogada nas turbulências da modernidade, retirada de seu espaço genuíno. E aí se constrói uma rede de ambigüidades costurada nas dimensões de léxico e sintaxe. “Iracema voou para a América”, inicia-se a canção. Mas qual América? A que seu nome traz nas letras embaralhadas e que se opunha ao núcleo dominante da Europa? A que se insurge como possibilidade de uma contracorrente, de uma salvação pelas raízes? Ou o nome é o reimantado, que aponta imediatamente para a América do Norte, mais precisamente, para a América dos Estados Unidos? Chico deixa claro, logo após, a qual delas se refere (“não domina o idioma inglês”), dando ao texto um desenho de ironia. Iracema é emigrante, sim, exilada de seu clima, sua língua e nutrindo esperanças de sucesso, o que o andar lépido sugere. Para se manter, “lava chão numa casa de chá”, antítese refinada pelo jogo de linguagem, com a aliteração da linguopalatal e a oposição da tônica nasal com a tônica aberta. Iracema guarda essa condição subserviente, como lembram José Miguel & Guilherme Wisnik, “acompanhando a leva de subempregados brasileiros que joga sua sorte no mundo, equilibra a sua condição precária com pequenas esperanças e provisoriedades, certa altivez entre resignada e esperta”.


ARTES Iracema voou Iracema voou Para a América Leva roupa de lã E anda lépida Vê um filme de quando em vez Não domina o idioma inglês Lava chão numa casa de chá

Lucas Bori/Divulgação

Tem saído ao luar Com um mímico Ambiciona estudar Canto lírico Não dá mole pra polícia Se puder, vai ficando por lá Tem saudade do Ceará Mas não muita Uns dias, afoita Me liga a cobrar: – É Iracema da América

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Bom Tempo ARTES Um marinheiro me contou Que a boa brisa lhe soprou Que vem aí bom tempo O pescador me confirmou Que o passarinho lhe cantou Que vem aí bom tempo Dou duro toda semana Senão pergunte à Joana Que não me deixa mentir Mas, finalmente é domingo Naturalmente, me vingo Eu vou me espalhar por aí No compasso do samba Eu disfarço o cansaço Joana debaixo do braço Carregadinha de amor Vou que vou Pela estrada que dá numa praia dourada Que dá num tal de fazer nada Como a natureza mandou Vou

Satisfeito, a alegria batendo no peito O radinho contando direito A vitória do meu tricolor Vou que vou Lá no alto O sol quente me leva num salto Pro lado contrário do asfalto Pro lado contrário da dor

Reprodução

Um marinheiro me contou Que a boa brisa lhe soprou Que vem aí bom tempo Um pescador me confirmou Que um passarinho lhe cantou Que vem aí bom tempo Ando cansado da lida Preocupada, corrida, surrada, batida Dos dias meus Mas uma vez na vida Eu vou viver a vida Que eu pedi a Deus

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MÚSICA Ora, a ambigüidade do título, associada à data da O auge da forma escritural, no entanto, se revela na composição e a paralelismos com outras canções, torna última frase da canção. Ironicamente na voz da própria difícil não acentuar desconfianças. Na verdade, “Apesar Iracema que, sem ter a menor consciência, cria uma pode Você ” e “Meu Caro Amigo” parecem um desmemlivalência sintática, deixando o verso radioativo de sentibramento de “Bom Tempo”, o qual é uma antecipação dos. De fato, após dar um telefonema a cobrar, identificados dois sambas posteriores. Chico já havia condense: “– É Iracema da América”. Aqui se instala o paradoxo: sado o tom profético da primeira, a descrição do amidentifica-se relativizando a sua identidade. Podemos ter biente nacional da segunda, mas sem as suas evidências. aí no mínimo três interpretações: 1 ) é Iracema que perAmor, samba e futebol, em “Meu Caro Amigo”, são as tence ao continente americano, em oposição ao europeu, jogadas possíveis contra o xeque-mate de esperanças. por exemplo – ideologia alencariana, ao escrever o seu “Bom Tempo” explorou esses elementos pela imagem de romance; 2 ) é Iracema, falando da América, mas não já Joana, do próprio samba que “disfarça o cansaço” e das o continente, apenas os Estados Unidos, dos quais Amé“vitórias do seu tricolor”. rica virou perversa e imperialista metonímia; e 3 ) – o “Apesar de Você”, por sua vez, aponta que “amanhã pior está nessa possibilidade : é Iracema pertinente a essa vai ser outro dia”. Para Chico, longe de ser uma certeza, América ianque, e que já perdeu, na dissolução gradual isso não passava de um dossel de esperanças, na canção de saudade e memória, a identidade, ou melhor, ganhou de 68, assinaladas pelo marinheiro e uma outra, destilando a original. A pelo pescador. Alguns e poderosos inúltima leitura ganha força se levar- Há um maniqueísmo mos em conta o indício deixado no modo de pensar dos dícios servem para enfatizar essa leitura política da canção. O ato de pôr em pelo narrador, de que Iracema “tem saudades do Ceará, mas não muita”. brasileiros. Uma cultura linguagem, nos tempos amargos do domínio militar, as profecias de desaWisnik diz com alguma razão que sem dialética. Não são nuviamento, as juras “dos profetas emse trata de uma contenção de sentibriagados”, são uma tônica do Chico mentos que a personagem de Chico raros os que pensam militante. Além disso, por mais avesso apresenta. Penso, no entanto, que ser alienação escrever que seja alguém a laborar, é de causar podemos ir um pouco além desse liricamente em tempos espanto que estabeleça equivalências olhar. Trata-se aqui de uma denúnentre o trabalho e a dor. O que significia da descaracterização gradual da como o nosso ca, então, ir “pro lado contrário da dor”, identidade pela perda da memória. última frase de “Bom Tempo?” O artifício é similar ao A saudade é uma conseqüência do apreço às lembranças. utilizado na música “A Banda”, com a mesma inocência Assim, ampliando um pouco o episódio, jogam-se farpas aparente, com a mesma dor da qual todos se despediam também no descompromisso historicista que o sentipara ir ver o espetáculo passar. Pão e circo, saídas solitámento de indiferença com o seu chão vem acusar. rias para os labirintos do poder, que exercita nos súditos Essa encruzilhada de sentidos criada na sintaxe não a genuflexão. São músicas que, na superfície, têm a teré uma exceção nas canções de Chico Buarque. “Cálice”, nura da pétala e, por baixo, o espinho à espera. O ouvincom seu “vinho tinto de sangue”, já apontava nessa direte caiu mais uma vez no mesmo truque forjado por um ção. Explorar essa elasticidade que a língua oferece exige compositor maior. Chico lança seus explosivos e distrai do compositor uma atenção estética, um pacto com a a todos, para ganhar tempo e fazer efeito. Ele joga a exlinguagem que os artistas menores quebram, seja pela pressão Bom Tempo e depois investe numa das acepções, preguiça que os encarna, seja pela carência de talento deixando a outra à deriva e atuante. que o labor vai afiando. É com essa aparente despretenPor tais motivos, coletâneas como Chico, o político exsão que a consciência política do compositor se acomocluem a canção de 1968. Isso é certamente o resultado de da. Com efeito, para o ouvinte distraído, tudo não pasum vezo maniqueísta instalado no modo de pensar dos saria de uma crônica para entretenimento, e fatos como brasileiros que não passaram por uma cultura dialética. a denúncia do anagrama américa/iracema seguramente Assim, não são raros os que pensam ser um ato alienante não lhe sorveriam a atenção. escrever lírica em tempos de épico, como são os tempos Outra canção, pertencente ao álbum Chico Buarque de guerras e conflitos. É com duas versões de “O que será” v. 3, de 1968, traz também marcas, mas quase apagadas, – à flor da pele e à flor da terra –, por exemplo, que Chico de crítica social. Efetivamente, “Bom Tempo” (letra na Buarque desmonta esse hábito tacanho de reflexão e cria página ao lado) parece um mero desabafo de um trabaum paralelismo de inquietações, deixando claro que crílhador que, no fim-de-semana, anseia sol e calor para tica social e veio lírico não são excludentes, mas apenas usufruir de “uma praia dourada”, ao lado da Joana “cardois vieses da mesma realidade humana. regadinha de amor”. NOV 2007 • Continente x

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MÚSICA

O único LP do Quarteto Novo, lançado em 1967, completa 40 anos, influenciando gerações de músicos Germano Rabello

Discretamente revolucionário

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em muito alarde, um dos discos fundamentais da nossa música completa 40 anos. O único LP do Quarteto Novo, lançado em 1967, foi suficiente para iniciar uma grande renovação no panorama instrumental brasileiro. É daqueles trabalhos que já nascem clássicos. Embora pouco conhecido do grande público, permanece influente para várias gerações de músicos. Difícil explicar o Quarteto Novo. É o fruto de uma época em que ainda havia muito a ser desbravado? É a soma dos talentos individuais de seus integrantes: Airto Moreira, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Theo de Barros? “Eles descobriram uma linguagem de tocar música brasileira mais internacional. À primeira vista, você pode pensar que é jazz, mas não é jazz” diz o bandolinista Hamilton de Holanda. Naná Vasconcelos chama de “explosão de criatividade” o trabalho do grupo, ressaltando que o trabalho posterior de Airto influenciou a revista Downbeat – bíblia do jazz – a estrear um espaço sobre percussão. Egberto Gismon-

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MÚSICA ti lembra que aprendeu com eles a olhar atentamente para a música do Nordeste. Yamandu Costa destaca no Quarteto “a inteligência da concepção de mostrar uma coisa brasileira até hoje contemporânea, um trabalho atemporal”. Antes de existir o Quarteto, a música instrumental brasileira estava dominada pelo samba-jazz, corrente que misturava algum tempero de samba e bossa-nova ao ritmo norte-americano. Mas a mudança estava a caminho. Heraldo e Hermeto se conheceram no Recife, ainda nos anos 50. Viriam a tocar por um tempo na boate Delfim Verde, bairro de Boa Viagem. Heraldo nascido aqui; Hermeto vindo das Alagoas. Então o êxodo para São Paulo, lá onde estavam Airto e Theo, onde existiam oportunidades mais interessantes para os músicos. Nas boates e bares de Sampa, alguns do quarteto ocasionalmente tocavam juntos. Uma dessas bandas, com Hermeto no piano, Airto na bateria, mais Humberto Cleiber no baixo, era o Sambrasa Trio, que chegou a gravar o disco Em som maior, lançado em 1966. Predominantemente jazz, com lampejos de música brasileira, o trabalho tem umas canções conhecidas e outras inéditas, inclusive uma de Hermeto – contradizendo as fontes que consideram “O ovo” a sua primeira composição gravada. “Coalhada” veio primeiro. Se eu fosse criativo, poderia fazer um trocadilho com esses nomes... Em 1966, um evento de moda determina a formação do Quarteto – a empresa têxtil Rhodia estava unindo desfile e música ao vivo, em várias cidades do Brasil, sob a direção de

Clara Salina/Crossroad Jazz

Arquivo Continente

Kris Knak/Divulgação

Divulgação

Em sentido horário: Airto Moreira, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e Theo de Barros

Livio Ragan. Momento decisivo para a moda nacional, com o espaço dado a nossos estilistas e a diversos artistas plásticos de cujas pinturas se extraíram estampas. No campo da música, Ragan queria a participação de Geraldo Vandré, estrela em ascensão na MPB, e uma banda que fosse bem regionalista. Os músicos que Vandré recrutou eram quatro – mas o albino Hermeto teve seu nome excluído da ação pelo diretor da Rhodia. Não é folclore: para Ragan, o músico era feio demais para figurar no evento, daí a banda ficou sendo o Trio Novo. No mesmo ano, “Disparada” conquistou o coração do público ao ser defendida por Jair Rodrigues no Festival da Record (música de Theo, letra de Vandré). Curiosamente, Jair cantou acompanhado do Trio Marayá nos vocais de apoio e pelos instrumentistas de um Trio Novo –, mas era um trio homônimo formado por outros músicos. Na verdade, Airto, Heraldo

e Theo estavam em Natal, acompanhando o compositor paraibano em suas apresentações. O Quarteto nasce assim que Hermeto ocupa seu lugar no grupo, ao final da turnê. Além de servirem como banda de apoio, eles começam a ganhar vida própria, experimentando arranjos instrumentais, fazendo seus improvisos. Em um ano, estavam prontos para fazer as gravações do repertório, mas para isso tiveram que ir ao Rio de Janeiro – Heraldo, experiente músico de estúdio, diz que na época era o Rio que gravava as coisas mais rebuscadas, enquanto em São Paulo “a gente gravava bolerões, coisas assim, de brega”. Não levaram muito tempo no estúdio: os músicos estavam afinadíssimos. Desde o lançamento do disco, as ramificações da semente plantada por ele estão em todo lugar. A pesquisa de timbres em percussão deve muito ao pioneirismo do grupo, assim como a NOV 2007 • Continente x

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MÚSICA inclusão da viola em grupos musicais da classe média e a aceitação crescente dos ritmos que caracterizavam o Nordeste. “Eles deram um passo importante para mostrar a potencialidade melódica, harmônica e rítmica da música nordestina”, diz Marcelo

Melo (Quinteto Violado), obviamente influenciado pelo Quarteto. Mesmo que os quatro encerrem por volta de 1969 as atividades do grupo, basicamente em busca de mais reconhecimento e estabilidade financeira, sua vida breve só reforça o status de

mito. A naturalidade e a criatividade com que eles costuraram influências tão diversas – e sua música parece estar sempre em mutação, indo da bossa ao xaxado, do baião ao jazz num piscar de olhos – permanecem um exemplo e inspiração.

entrevista>> Heraldo do Monte Como foi o lançamento? O disco foi lançado em 1967 e a gente já tinha ensaiado um ano. Eu sou ruim pra data, mas foi isso, a gente ensaiou um ano pra fazer o disco. Porque a gente não levava nada escrito, não elaborava nada em casa; justamente pra ter a cara de todo mundo e não ter a cara de ninguém, elaborava as coisas no ensaio. Era muito trabalhoso, era “que tal essa idéia, vamos desenvolver essa idéia” e depois que você decora aquela idéia, alguém diz “vamos partir para essa”, apaga tudo que foi feito.Uma coisa democrática, tinha um ou outro arranjo em que um ou outro dava a maioria das idéias, mesmo assim não se pode dizer que o arranjo foi feito por aquele sujeito. Porque sempre tem “pitaco”, idéias dos outros... Quem foi que produziu o disco do Quarteto Novo? A gente mesmo. Já tava tudo arranjado, né? Tem um negócio engraçado, o Vandré queria tomar parte na marra de uma das faixas. A gente morava em SP na época, Vandré também. A EMI pediu que a gente fosse gravar no Rio, por causa do estúdio, não sei quê. O Vandré queria de todo jeito participar do disco instrumental. E ninguém aceitou, mas o Hermeto falou “Olhe, na minha música, ‘O Ovo’, você pode gritar RARRAI!”. Aí pronto, foi a única participação dele no disco. E não teve ninguém mais. Qual era a tecnologia? Dois canais? Só dois canais! Tinha faixas em que a gente mudava de instrumento. Tinha o piano que o Hermeto tocava, o técnico colocava uma porção de feltro, uma coisa pra não fazer barulho durante a gravação, então ele parava de tocar piano, pegava a flauta e já tinha microfone no piano, depois colocava a flauta no feltro, no abafadorzinho. Eu trocava a guitarra pela viola, gravando. Não tinha playback na época, não tinha como parar e dizer “depois eu boto essa viola”. Não. Você tinha que fazer o arranjo de maneira que tivesse um certo “buraco”, né? pra você trocar de

instrumento. Então, o Theo também trocava de violão pra baixo acústico em algumas músicas. No disco tem algo que o incomoda, que você acha fora do lugar? Não, eu sou o maior fã do Quarteto Novo. Acho que não houve nada parecido na música brasileira instrumental até hoje. Tinha muita qualidade e, para a época, era inovador demais. Um tipo de improvisação que não se fazia, uns timbres que não se faziam antes etc. Se você fosse só inovador e ruim... mas a gente conseguiu juntar as duas coisas, inovador e bom, de ótima qualidade. Miles Davis vivia querendo roubar o disco do Hermeto e do Airto, quando ia lá no apartamento deles. Muito músico americano ficou gamado por aquele disco, porque alguns que já estavam cansados daquela linguagem de bebop, queriam realizar alguma coisa diferente, acharam que era uma abertura de caminho para eles. Claro que eles não iam fazer, tocando de um jeito nordestino que a gente tocava. Seu último disco, Guitarra Brasileira, saiu em 2004. Então, são três anos sem lançar disco... Você está compondo sempre? Acumula composições? Eu tô com vontade de passar uns 10 anos sem gravar, eu faço isso de vez em quando. É gostoso. Senão você fica se repetindo, não se repetindo, mas é que não sai com um certo frescor. Essa coisa de um por ano cai numa certa rotina. Repetição de idéias, por mais que você seja original. E é cômodo você ficar um tempo sem gravar. Só componho quando eu tenho uma data.

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MÚSICA

A sanfona faz a festa O 10° Encontro de Sanfoneiros do Recife celebra a tradição, a música e a cultura nordestinas Gabriela Lobo

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sanfona, o forró, o xote e o baião são elementos mais do que importantes na cultura nordestina e tiveram como seu maior divulgador Luiz Gonzaga, primeiro artista nordestino a conquistar os grandes centros. Com a indumentária de vaqueiro e um linguajar típico, ele levou a todo o território brasileiro, através de sua música, os costumes, o folclore, os valores da cultura da sua terra. Derrubou preconceitos e abriu as portas entre todas as classes sociais. Na época do Rei do Baião, a arte da sanfona teve “voz” e projetou o sertanejo e o nome de Pernambuco nacional e internacionalmente. Contudo, depois de mais de uma década da morte de Gonzaga, os sanfoneiros têm encontrado certa dificuldade para mostrar suas obras. Com o intento de homenagear, não o primeiro, mas o sanfoneiro que foi um marco na música

brasileira, e contribuir para a divulgação e confraternização dos sanfoneiros nordestinos, o garanhuense Marcos Veloso idealizou o Encontro Anual de Sanfoneiros, que chega esse ano à sua décima edição. O encontro teve início em 1998 e desde então tem forte apoio popular, chegando a reunir cerca de 7000 pessoas vindas da região metropolitana, do agreste, do sertão, da zona da mata bem como de outros Estados nordestinos. O evento acontece sempre no mês de dezembro, mês do nascimento de Gonzagão, e todo ano homenageia um sanfoneiro. Já receberam a honra nomes como Arlindo dos 8 baixos, Genaro, Camarão, Terezinha do Arcodeon, Chiquinha Gonzaga, Domiguinhos, e, na última edição do evento, os homenageados foram Duda da Passira e, em memória, Félix Portifílio, com show especial do Mestre Camarão, primeiro sanfo-

neiro a receber o título de patrimônio vivo da nossa cultura, e mais 70 sanfoneiros. Nesta edição, o evento conta com a participação de 100 sanfoneiros e, como forma de comemorar os 10 anos do Encontro de Sanfoneiros do Recife, vai reunir em uma apresentação os mestres da sanfona do estado de Pernambuco. Além dos shows, o encontro proporciona uma feira de artesanato e culinária pernambucanos, exposição de sanfonas com a participação de alguns afinadores, e um pequeno cinema onde serão exibidos filmes sobre Luiz Gonzaga e o instrumento que o imortalizou. No mesmo espaço também serão ministradas palestras. O 10° Encontro de Sanfoneiros do Recife vai acontecer nos dias 30 de novembro e 1e 2 de dezembro, no Pátio de São Pedro. Serão 3 dias de festa e reverência à tradição, à música e à cultura nordestina. Fotos: Divulgação

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MÚSICA

Um genuíno crossover

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a passagem do centenário de Radamés Gnatalli, há mais de um ano, a Petrobras Sinfônica promoveu um concerto-homenagem com três peças do compositor gaúcho, híbridas do erudito e do popular. O primeiro movimento da Sinfonia Popular transporta o ouvinte de imediato para um festival de seresta e antecede uma cantilena, um baião estilizado e um dobrado típico das bandas marciais do interior. O Concerto nº 3 para violino e orquestra, a cargo de Antonella Pareschi, começa inesperadamente com uma cadenza, a parte solo de exploração técnica. A orquestra,

sob o inconfundível Isaac Karabtchevsky, fica discreta enquanto não chega o terceiro movimento. A obra que completa o programa exibe um dos membros da família de instrumentos mais popular e que – apesar do apreço de um Ravel ou um Villa-Lobos – nunca se incorporou à orquestra sinfônica. O Concertino Concerto do para saxofone alto e orCentenário Radamés Gnatalli questra de câmara pode Produção independente ser todo detalhado em Pedidos: partitura, mas Leo Ganwww.opes.com.br delman não o faz parecer, traduzindo a informalidade pretendida por Gnatalli (o concertino poderia muito bem ser executado ao ar livre, nos Arcos da Lapa ou na Praça do Arsenal). E se Gnatalli pode ser chamado de híbrido, é porque foi genuíno e preciso em reproduzir o caráter de gêneros populares dentro da sinfônica. (Carlos Eduardo Amaral)

> Festival de > Festival de Campos do Jordão I Campos do Jordão II

> Mignone, o rei das valsas

> Trompete em verde-amarelo

O badalado maestro Kurt Masur ficou tão entusiasmado com o desempenho da orquestra do Festival de Campos do Jordão, em 2005, que chegou a dizer que este álbum duplo, gravado ao vivo, “é o melhor documento a respeito do futuro da música clássica na América do Sul”. No CD 1, o alemão rege o famoso Adágio para cordas de Samuel Barber, a Abertura Festival Acadêmico de Brahms, a Sinfonia nº 1 de Mahler e a Dança Eslava nº 10 de Dvořak. Já no CD 2, Roberto Minczuk conduz a suíte Quadros de uma exibição de Mussorgsky (orquestrada post mortem por Ravel), que resulta cinematográfica, a Abertura de O Guarani, onde é possível ouvir todos os naipes durante o tutti, até os fracos contrabaixos, e as inéditas Variações sinfônicas de Almeida Prado. (CEA)

Mesmo morando em Londres, a pianista carioca Clélia Iruzun nunca descuidaria das comemorações de nascimento de Francisco Mignone, a quem conheceu na infância. Com a ajuda da viúva do compositor (a também pianista Maria Josephina), Clélia compilou “clássicos” como os Estudos Transcendentais, uma transcrição da Congada e a Lenda Sertaneja nº 2. Não poderiam faltar as valsas tão elogiadas por Manuel Bandeira: algumas Valsas brasileiras, Valsas-Choro e Valsas de Esquina. Mais fiel à linha universalista do que Villa-Lobos, Mignone, porém, declarava: “Todo o meu esforço está dirigido para a criação de uma música autenticamente brasileira”. E esse compromisso é observado até nas peças de inspiração infantil, como No fundo do meu quintal. (CEA)

Com um currículo que inclui trabalhos com Ed Motta, Rita Lee, Stevie Wonder, Roberto Carlos e outros astros do universo pop, o trompetista Paulo Mendonça tem sólida base na música de concerto e reuniu uma série de partituras brasileiras pouco conhecidas. Dos originais e das transcrições que resultaram no presente CD, Mendonça, em duo com a pianista Maria Teresa Madeira, abarcou do lirismo boêmio de Noite e dia de Ronaldo Miranda e da Cantilena de Ernani Aguiar à idiomática Sonata de Sérgio di Sabbato. A redução do Concerto de Guerra Vicente e a Sonatina de Alexandre Schubert variam nas exigências técnicas e se complementam na singeleza de mensagem das Cinco Cirandas de Mignone. As gravações aconteceram na Sala Cecília Meireles, no Rio. (CEA)

Kurt Masur/ Roberto Minczuk /Orquestra Acadêmica Biscoito Clássico Preço: R$ 33,00

Fica para o ouvinte a escolha do melhor CD da Orquestra Acadêmica. Se os anteriores ou este, de 2004, onde somente Minczuk rege. Constam os mesmos Dvořak e Brahms, porém a obra maior da ocasião foi a Sinfonia nº 8 do tcheco, e a interpretação resultou digna de ser lançada por uma Deutsche Gramophon, convicta e transparente. Dvořak colabora por agregar a excelente capacidade estruturadora do alemão com a capacidade melódica direta dos eslavos, patente em um Tchaikovsky, e isso é ressaltado através da batuta de Minczuk. Brahms desta vez ficou como faixa-bônus (Dança Húngara nº 5), ganhando com o tom decisivo e fluido da regência, presente ainda na cinematográfica Kabbalah, op. 96, de Marlos Nobre, que foi estreada mundialmente. (CEA) Roberto Minczuk / Orquestra Acadêmica Independente Preço médio: R$ 16,00

Francisco Mignone – Piano music Lorelt Preço médio: R$ 30,00

O Trompete na Música Brasileira ABM Digital Preço: R$ 25,00 Pedidos: vendas@abmusica.org.br

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MÚSICA Fotos: Divulgação

A contemporaneidade de China

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esde a publicação da famosa obra Simulacros e Simulações do francês Jean Baudrillard, comenta-se que vivemos num mundo hiper-real dominado por imagens. Não é à toa que China batizou seu segundo trabalho solo de Simulacro: do latim simulacru, significa imagem de divindade ou personalidade pagã, ação simulada para exercício ou experiência, falsificação ou imitação. A faixa que finaliza o CD foi batizada de “pastiche” (cópia grosseira, malfeita), outra característica da chamada pós-modernidade. Evitando o tom apocalíptico de alguns teóricos, o artista nos apresenta um trabalho de 10 composições que trazem referências do samba, do psicodelismo e do rock dos anos 60, em canções extremamente contemporâneas, com experimentações que não repetem ou imitam as tendências do passado, mas propõem releituras. China consegue aproveitar-se da dinâmica do

mundo contemporâneo, com suas simulações, cópias, repetições, artificialidade, em favor da sua música. Alguns dos integrantes da Mombojó, que junto com China formam a banda Del Rey, cujo sucesso no palco é garantido, participam do CD, provando que essa fusão também funciona no estúdio. Em Simulacro, que foi produzido por Pupilo, as semelhanças entre o trabalho de China e de seus colegas da Mombojó ficam claras, assim como a mão forte do produtor. (Mariana

> Conexão Cuba, Rio e Cabo Verde

> Edu Lobo em jazz-camerístico

> Gaita travessa de Einhorn

> A outra praia de Swami Jr

“Uma rumba-coladeira sambada” ou “Cesária Évora numa roda de choro com congas e claves”. Essas visões dadaístas são só um experimento de metáfora para Das ilhas mestiças, quinto CD do bandolinista Rodrigo Lessa, que une os ritmos de três terras marcadas por um passado de cultivo da cana-deaçúcar e mão-de-obra escrava: Rio de Janeiro, Cuba e Cabo Verde. Entre as participações especiais do disco, estão os cubanos Julio Padron e Jose Izquierdo, os caboverdianos Toi Vieira e Vaiss, os cantores portugueses Janita e Vitorino Salomé e os pianistas brasileiros Tomás Improta e João Donato. Preponderando a sonoridade ora de uma, ora de outra nação, a fusão entre as batidas caribenhas, africanas e tupiniquins se fundem num embalante som atlântico.

O saxofonista e flautista Mauro Senise levou a Edu Lobo a idéia de fazer um álbum só com arranjos instrumentais dos principais temas do compositor. Dada a carta branca, Edu Lobo ainda se empolgou em escrever seis novas peças para Senise – quatro delas para grande orquestra, que vão aguardar outra oportunidade: as duas mais intimistas couberam melhor na proposta do CD: "Arpoador" e "Valsa carioca". Seria difícil deixar de fora temas como "Beatriz", "Choro bandido", "Ponteio" e "No cordão da saideira". Assim, Gilson Peranzzetta, Paulo Russo, Ivan Conti e outros convidados receberam a confiança de Senise para dar o brilho necessário ao trabalho. A única voz que aparece entre os instrumentos é a do próprio Edu Lobo, encerrando o disco em "Canção do amanhecer". (CEA)

O músico Maurício Einhorn, filho de gaitistas poloneses, seguiu os passos dos pais: aos cinco anos começou a tirar os primeiros sons de uma gaita e aos 10 já se apresentava em programas de rádio. Hoje, com mais de 60 anos de carreira, é considerado o maior gaitista do jazz brasileiro, um improvisador nato e um melodista de primeira. Em Travessura, seu mais recente trabalho, depois de 28 anos sem lançar um disco solo, Einhorn reaproxima-se do samba-jazz e da bossa-nova, ritmos que o consagraram anteriormente, com canções novas, em boas parcerias com Eumir Deodato, Sebastião Tapajós, entre outros. Em Travessura, destacam-se a primeira faixa “Já Era” e “Artimanhas”, parceria de Einhorn com Alberto Araújo, com arranjos de César Camargo Mariano.

Depois de produzir e participar das gravações de trabalhos de artistas como Chico César, Fagner, Zeca Baleiro, Mundo Livre S.A, Tom Zé, Rita Lee, Ortinho e tantos outros, o violinista, baixista, compositor e arranjador Swami Jr. lança seu primeiro disco solo: Outra Praia. No CD estão gravadas canções de sua autoria em parceria com alguns eternos colegas da MPB. Além de compor e fazer os arranjos, o artista solta a voz em “Noites Assim” e “Vou na Vida” . Destaque para a faixa dois, “Duas Ilhas”, na qual Zeca Baleiro canta e Swami Jr. cuida dos arranjos e toca o violão 7 cordas. Chico César, que compôs junto Swami Jr. a faixa “Outra Praia”, que dá nome ao CD, declara sobre o amigo: “Revela-se aqui compositor denso. Completo: harmonia, melodia e letra”.

Das ilhas mestiças Rodrigo Lessa Rob Digital R$ 22,00

Casa Forte – Mauro Senise toca Edu Lobo Biscoito fino R$ 28,90

Oliveira) Simulacro Candeeiro Records R$ 15,00 www. candeeiro.com.br

Travessura Maurício Einhorn Delira Música R$ 24,90

Outra Praia Swami Jr Chita Discos R$ 14,93

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HISTÓRIA

Abreu e Lima em foco Num momento em que o general Abreu e Lima é lembrado em acordos políticos, a CEPE reedita o livro Abreu e Lima: General de Bolívar, de Vamireh Chacon André Dib

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reedição da biografia do general José Ignácio de Abreu e Lima chega num momento em que sua importância se recontextualiza diante do atual panorama político e econômico na América do Sul. O presidente Hugo Chávez, principal responsável por esse retorno, guarda bons motivos para reavivá-lo na memória coletiva: pouco conhecido em seu país natal, Abreu e Lima é o único brasileiro entre os oficiais que lutaram para a vitória de Simón Bolívar contra a dominação espanhola. A partir dessa exaltação de antigas lutas libertárias é possível entender por que, para Chávez aprovar a parceria entre a Petróleos de Venezuela S/A (PDVSA) e a Petrobras na construção da nova refinaria em território brasileiro, foi decisiva a escolha do nome e local. Quando soube que Pernambuco, terra natal de Abreu e Lima, estava entre os candidatos aptos a receber o projeto, virou questão de honra que essa nova colaboração entre países se chame Refinaria Abreu e Lima. De forma que Abreu e Lima, sua trajetória e suas idéias, ganharam novo fôlego com o gigantesco empreendimento que leva seu nome. Orçada em US$ 4 bilhões, esta será a quinta maior refinaria do país. Seu porte e importância histórica – foi esperada por quase meio século – emprestam ao herói da América espanhola um prestígio que ele nunca teve em vida. Desde o lançamento de sua pedra fundamental, em 2005, Abreu e Lima esteve novamente no discurso de estadistas, intelectuais, jornalistas e até de cineastas: o documentarista baiano Geraldo Sarno está em plena produção de um filme sobre o general.

“Abreu e Lima já é nome de cidade ao norte de Recife, onde se travou um dos combates da Rebelião Praieira, e, ao sul da capital pernambucana, surge empreendimento industrial de repercussão internacional evocando sua participação bolivariana”, escreve o historiador e cientista político Vamireh Chacon, na apresentação à nova edição de Abreu e Lima: General de Bolívar, um cuidadoso projeto da Companhia Editora de Pernambuco.

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HISTÕRIA

Chacon, há mais de 30 anos professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, é um dos maiores estudiosos da História do Brasil, tendo 23 livros publicados, entre eles História das Idéias Socialistas no Brasil, Vida e Morte das Constituições Brasileiras e História dos Partidos Brasileiros. Além de Abreu e Lima, dedicou-se a traçar biografias de Gilberto Freyre e Joaquim Nabuco. O livro, escrito em 1983, ocasião do bicentenário de nascimento de Bolívar, é o mais completo e abrangente estudo sobre o general. Esta terceira edição, bilíngüe (português e espanhol), revista, ampliada e ilustrada, ganha um capítulo a mais. Ele trata do período em que Abreu e Lima foi condenado à prisão perpétua em Fernando de Noronha, em 1848, junto com os demais ideólogos da Praieira. Lá, escreveu o que provavelmente é o primeiro tratado científico sobre o local, cujo aspecto descreve como “lúgubre e triste”. Nascido em berço nobre no Recife de 1794, José Ignácio de Abreu e Lima teve uma vida de glórias e infâmias. Pagou o alto preço por defender convicções contrárias às do poder vigente, como a da igualdade social e a liberdade de culto religioso. “Hoje, sou o primeiro a confessar que vamos muito mal (...) O Brasil seria hoje tão importante como os Estados Unidos, se não fôssemos descendentes dos portugueses”, diz em carta endereçada ao General Paez, companheiro de campanhas bolivarianas. Em 1817, graduado capitão de artilharia pela Real Academia Militar, cumpria pena na Fortaleza de São Pedro, na Bahia, quando foi obrigado a assistir ao fuzilamento do pai, o Padre Roma, por ordem do Vice-Rei Conde dos Arcos. “Uma mão de ferro me arrancava o coração; meu pranto e minha dor comoviam a todos os que se achavam presentes; era mister separar-me então para dar alívio às minhas lágrimas, e me conduziam a outra prisão, donde voltava depois a poder das minhas súplicas, até que foi forçoso arrancarem-me de seus braços para sempre”, descreve Abreu e Lima, na carta a Paez. A partir de 1819 se uniu a Bolívar como jornalista, escrevendo para o periódico Correo Del Orinoco, e como estrategista, assumindo a frente de batalhas decisivas para a libertação popular do jugo espanhol. “Sem embargo, servi em Colômbia com os mais distintos chefes, e apesar de muitas intrigas de que fui vítima, adquiri a reputação de um chefe valente, ilustrado e muito fiel – acom-

panhei a Gran Colômbia até a sepultura! Então eu não tinha pátria, e fiz de Colômbia a minha pátria”, escreve a Paez. Após a morte de Bolívar, Abreu e Lima retornou ao Brasil nomeado general de brigada. Ele via em D. Pedro I um novo Simón Bolívar, e acreditava que o melhor sistema político seria a monarquia constitucionalista, em vez do império absolutista que tomava conta do país. Suas idéias, no entanto, foram mal-recebidas. Primeiro, pelos cariocas, por quem foi tido como “um aventureiro de Roma, disfarçado de general Lima, um atrevido, e um vil falador, aventureiro na Columbia, foragido, em uma situação pouco favorável” e ameaçado pelas palavras de Evaristo da Veiga: “por toda a parte seríeis apedrejado como um assassino; e um par de balas vazando-vos essa cabeça, vos daria melhor juízo”. Ao que respondeu Abreu e Lima: “sou um dos muitos, sou membro desse todo que desprezais a cada instante, e a quem tendes chamado vil canalha mais de uma vez, depois de tê-lo enganado para encher a vossa bolsa”. Quando voltou a morar no Recife, em 1941, fundou junto ao Partido da Praia os jornais Diário Novo e A Barca de São Pedro, instrumentos de protesto contra os exagerados privilégios da elite pernambucana. A polarização entre “praieiros” e “gabirus” terminou na mais sangrenta rebelião do Estado, em que seu irmão Luís Roma foi um dos assassinados. Seus últimos anos foram marcados pelo aprendizado da medicina homeopática, mas principalmente por brigas e desentendimentos com autoridades católicas, como o monsenhor Pinto de Campos. Em defesa do ecumenismo religioso, publicou bíblias protestantes traduzidas do inglês, difamadas por seu opositor de “falsificadas” e “venenosas”. Quando Abreu e Lima morreu, em 1869, o bispo Dom Cardoso Ayres proibiu que seu corpo fosse enterrado em solo brasileiro. Obteve abrigo no Cemitério dos Ingleses, hoje bairro do Santo Amaro. Uma cruz celta marca o local onde jaz esse eterno estrangeiro. Em 1948, o deputado Paulo Cavalcanti propôs a transferência dos restos mortais de Abreu e Lima para o Cemitério do Santo Amaro, sem sucesso. Meses atrás, alguns conflitos diplomáticos colocaram em risco a participação da Venezuela na construção da Refinaria Abreu e Lima. Apesar do ônus político e econômico, fica a contribuição daquele país, como mais uma retribuição aos serviços prestados por esse brasileiro aos países vizinhos. Uma tentativa de corrigir uma injustiça histórica para com esse personagem que, mesmo depois de morto, continua lutando para ser aceito entre os seus. Abreu e Lima: General de Bolívar Vamireh Chacon CEPE 408 páginas R$ 70,00

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No ano em que completaria 100 anos, Luiz Sá ganha uma homenagem à altura do seu legado e ainda é cultuado como o primeiro modernista do desenho de humor brasileiro

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Luiz Sá, na visão do companheiro de ofício, o caricaturista Nássara

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mãe dele vivia dizendo “menino, você não vai dar pra nada”, quando via o pequeno Luiz Sá enchendo o caderno com desenhos do Tom Mix. Francisca Sá de Araújo era professora de Desenho da Escola Normal e costumava reunir, toda semana, seus dois filhos e seus muitos sobrinhos numa grande mesa em sua casa para desenhar. Enquanto a maioria reproduzia os modelos, Luiz Sá de Aráujo já se insinuava em traços originais e cheios de personalidade. Ironicamente, foi justamente ele, o único da família, a seguir carreira de desenhista. Teria sido o nome do avô? Luiz Félix Sá (1845 – 1898), referenciado como o primeiro artista a fazer uma exposição individual no Ceará, foi um dos mais atuantes nomes da intelectualidade local na segunda metade do século 19. Sempre presente nas questões culturais de Fortaleza, foi um dos 20 fundadores da Padaria Espiritual. Também atuou na política,

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Luiz Sá foi um dos principais e mais ativos colaboradores da revista de quadrinhos O Tico-Tico, a primeira do gênero no Brasil, criada em 1905

Página de quadrinhos com o célebre trio Réco-Réco, Bolão e Azeitona, inspirado em amigos de infância do cartunista

participando do Centro Republicano Cearense. Luiz Sá, o neto, nasceu em Fortaleza, em 28 de setembro de 1907. Publicou seus primeiros desenhos ainda na imprensa cearense, em 1927. Em 1929, fez uma pequena exposição com caricaturas e, incentivado pelo irmão, mudou-se para o Rio de Janeiro. Na cidade maravilhosa fez de tudo: trabalhou como pedreiro, encerador de escritórios e até vigia noturno de hospital. Noite adentro, decidiu fazer versões bem-humoradas de fatos históricos do Brasil, que deram origem à série Galeria de Quadros Célebres da História do Brasil, o que viria a ser o primeiro trabalho de Luiz Sá no estilo que o consagraria como um dos mais originais artistas brasi-

leiros: as linhas firmes e curvas, difíceis de serem reproduzidas, e que se tornaram sua marca registrada – na verdade, quase obsessiva. Sim, não há no seu traço, nas suas centenas de desenhos veiculados nos mais diversos meios, uma linha que seja reta, desde os bonecos até os cantos de paredes e móveis. Absolutamente tudo ganha um movimento sinuoso na mão do desenhista. O caricaturista e pintor Pacheco Queiroz, conterrâneo de Luiz Sá, então trabalhando no Diário Carioca, ao ver os desenhos do colega, levou-o ao editor Adolfo Aizen, que gostou do trabalho e passou a publicá-lo no periódico semanal Eu Vi e nO Malho. No início de 1931, Aizen pediu a Luiz Sá que fizesse algo

direcionado à criança, para tentar publicar na pioneira e mais famosa revista de quadrinhos brasileiros, O Tico-Tico. Foi assim que, inspirado em amigos da infância, Sá criou o trio célebre “Réco-Réco, Bolão e Azeitona”. Os personagens animaram a infância de muita gente, entre os anos de 1930 e 1950. E se analisados por um antropólogo, podem ser vistos como a genuína representação do povo cearense. A trinca ficou tão conhecida nacionalmente, que Renato Aragão, num dos quadros do programa Os Trapalhões, passou a chamar seus companheiros Zacarias, Dedé e Mussum de “Réco-Réco, Bolão e Azeitona”. Além do trio famoso, Luiz Sá deixou sua marca em outros personaNOV 2007 • Continente x

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Imagens: Divulgação/CCBN

O chargista Fortuna entrevista Luiz Sá, em 1975. Ao lado, reprodução de esboço recolhido para exposição em homenagem ao cartunista cearense

Peteleco, Maria Fumaça, Faísca e Pinga-Fogo (abaixo), da "família" Luiz Sá: referências da HQ nacional até a chegada de Walt Disney

gens: “Pinga-Fogo – o detetive Errado”–, “Maria Fumaça”, “Louro, Catita e Totó”, “Peteleco” e o papagaio “Faísca”, feito bem antes do famoso Zé Carioca, de Walt Disney , que o referenciaram nos quadrinhos nacionais durante décadas. O artista realizou sua primeira exposição individual no Rio de Janeiro, numa mostra que reuniu cerca de 50 originais das séries História do Brasil, História Universal, Temas Bíblicos e Provérbios Ilustrados. Jornais e revistas festejaram seu trabalho e surgiu a frase “Luiz Sá e os seus bonecos redondos”. A partir de então, sempre que seu nome fosse citado na imprensa, essa frase seria repetida. Com o seu talento reconhecido, passou a colaborar também com outras publicações: Para Todos, Cinearte, Fru Fru, Careta, Fanfarra, Fon Fon, Walkyrias, Almanack do Capivarol e outros almanaques de farmácias. De tudo ele desenhava: capas, cartuns, ilustrações para textos, anúncios, caricaturas, histórias em quadrinhos, campanhas de leite e de saúde, figurinhas de chiclete, cenário para teatro de revista – o que fez com que ele fosse destacado pela imprensa como “o artista cujos desenhos são os mais vistos no Brasil”. Em 1938, retornou a Fortaleza, trazendo a exposição que realizou no Rio de Janeiro. Todos os principais jornais da época destacaram a mostra e o re-

torno de Luiz Sá à terra natal, depois de nove anos distante. Até jantar de despedida ele mereceu. Mas essa foi a segunda e última exposição do artista na cidade. Mesmo que os coetâneos desconheçam, Luiz Sá está presente todos os dias no jornal O Globo: foi ele quem criou graficamente o bonequinho que bate palmas ou dorme de apatia diante da telona nas críticas cinematográficas do jornal (publicado durante 40 anos com seu traço e atualmente reformulado pelo desenhista Marcelo Monteiro). O humor do seu trabalho também chamou a atenção de Luiz Severiano Ribeiro que, em 1944, o convidou para ilustrar os cinejornais de sua empresa: Esportes na Tela, Notícias da Semana e Atualidades Atlântida. Exibidos em cinemas de todo o país, esses cinejornais popularizaram ainda mais os desenhos de Sá, que passaria as duas décadas seguintes produzindo cartuns para cinejornais, tornando-se o único desenhista brasileiro a fazê-lo. Entre 1938 e 1939, tentou realizar de forma independente seus próprios desenhos animados. Foram produzidos dois desenhos de maneira quase amadora, cada qual com uma média de três minutos. O de 1938 foi deixado em um laboratório e apagado para aproveitamento do celulóide. O outro, de 1939, Luiz Sá tentou mostrar a Walt Disney quando este visitou o Brasil, em 1941, mas foi barrado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas. Desestimulado, desistiu de produzir desenho animado e vendeu a única cópia que tinha

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Desenho da série Galeria de Quadros Célebres da História do Brasil, publicado na revista Eu Vi

para o dono de uma loja de projetores, que cortou o filme em diversos pedacinhos para dar de brinde a quem comprasse uma máquina. O artista ainda fez pontas em chanchadas da Atlântida. Mas enigmático mesmo é um desenhista ter trabalhado num meio que dispensa a imagem: o rádio. Luiz Sá estreou no veículo com Enigmas Pitorescos, no qual fazia um desenho que escondia um enigma qualquer, para que alguém no auditório tentasse decifrar. Este se tornou um dos quadros de maior sucesso do programa Rapsódia Carioca, da Rádio O Globo. Logo após a estréia do programa, a imprensa carioca noticiou o sucesso e destacou-o como o primeiro desenhista a fazer parte de uma programação radiofônica. Em 1975, internado devido a uma tuberculose, o artista é entrevistado pelo cartunista Fortuna. A entrevista sai na revista O Bicho, resgatando um Luiz Sá quase esquecido, em virtude da entrada triunfal dos super-heróis norte-americanos. Para Fortuna, ele “estava dentro do espírito de modernidade deslanchado desde a Semana de 22. Com seu estilo primitivo ou ingênuo, ele era um praticante da antropofagia. Engoliu de um sorvo as técnicas de comunicação de massa e espalhou que o mundo era redondo, em tudo quanto foi cinema e através de quadrinhos. Foi um mestre da comunicação, como se sabe. Um desenhista à solta, alheio aos padrões de cima”. Neste mesmo ano, o cineasta

Roberto Machado Jr. produz e lança um documentário de nove minutos com Luiz Sá, gravado logo após dele ter recebido alta. em 14 de novembro de 1979, aos 72 anos, Luiz Sá morre, vítima de um infarto, em casa, debruçado sobre um último desenho inacabado. E deixou mais de 300 outros inéditos. Foi sepultado em cerimônia simples e sua morte foi noticiada em alguns poucos jornais cariocas, na revista Veja, telejornais e no Fantástico, da Rede Globo. Só hoje, numa primeira mostra oficial sobre o artista, organizada pelo quadrinista Weaver Lima, é que seu traço complexo e sutil, mas também simples e puro, redondo por todos os lados, personalíssimo, original e ousado, é que o artista ganha uma homenagem à altura da sua memória. Numa dura garimpagem em sebos, arquivos pessoais, da família e de colecionadores, o curador da exposição realizada no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza, conseguiu reunir um conjunto que figura como uma excelente demonstração da genialidade de um artista que teve uma identificação avassaladora com o público, por tratar de temas comuns ao povo. Talvez também porque as cores utilizadas por ele, tão solares e abertas, dialogam com o observador menos preparado. Hoje, poucos lembram dele, mas, se o homem Luiz Sá morreu, agora revive em sua obra. NOV 2007 • Continente x

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Marcella Sampaio

Só se foi quando o dia clareou

O

samba está de volta. Desde que o bairro da Lapa virou point dos cults, descolados e da very trendy people do Rio de Janeiro, o reino dos pagodeiros melosos vem perdendo terreno para a música de raiz brasileira mais representativa da nossa identidade. Já não era sem tempo. E, ainda que o movimento seja reflexo dos modismos característicos da sociedade do espetáculo em que vivemos, essa constatação não tira o seu brilho, o seu vigor. Há toda uma nova geração de compositores e cantores (principalmente cantoras), nem sempre sambistas de formação, que agora flertam com o samba sem medo de parecerem ultrapassados ou anacrônicos. A cantora Roberta Sá, de 26 anos, por exemplo, é uma moça linda e muito talentosa, participou do programa Fama, da Rede Globo, e só agora foi “descoberta” pela crítica e pelo público em geral. O seu disco, Que belo estranho dia pra se ter alegria, é, basicamente, uma reunião de vários sambas, alguns com uma levada mais pop e outros mais tradicionais, todos bonitos, gostosos de ouvir, de cantar e de dançar. Participam do CD de Roberta os pernambucanos Lenine, Lula Queiroga e Junio Barreto, trio que consegue sinceramente conceber música sem preconceitos de qualquer natureza. Eles são quase onipresentes nos lançamentos dos modernos da MPB, justamente porque a sua concepção de arte é atual, contemporânea, aberta às referências do passado e do futuro.Transpiram tudo de verdade e nada de afetação. E é esta a nova cara do samba. Não tem fricote; tem, 88 x Continente • NOV 2007

sim, beleza e sofisticação. Não tem rima de “paixão com coração”, nem pagodeiro gemendo com cara de dor aos domingos no programa do Faustão. Tem Tereza Cristina, Roberta Sá, Maria Rita, e tantas outras representantes desse resgate que conta com a bênção de grandes como Lecy Brandão, Paulinho da Viola, Beth Carvalho e Almir Guineto. O mais legal é que toda uma geração que nunca tinha ouvido falar em compositores como Candeia e D. Ivone Lara está tendo a oportunidade de entrar em contato com uma música que, além de bonita, é muito gostosa. Quem participou das rodas de samba da velha guarda da Mangueira e do Salgueiro, que aconteceram em setembro e outubro no Clube Líbano, em Boa Viagem, pôde constatar que por aqui todo mundo é neguinha, como já disse Caetano certa vez. Foi um “se joga” geral, gente que transita em todas as rodas mandando ver no rebolado. Nada mais democrático. Vale dizer que o ritmo, na real, sempre esteve vivo em seus locais de origem, mas ficava restrito aos iniciados. Se era interessante manter uma certa aura de gueto – não deixa de ser charmoso ir àquele lugar onde só os escolhidos têm acesso –, esse isolamento também fazia com que os artistas do samba não conseguissem viver da sua arte. Hoje eles são gravados aos montes, e por gente de categoria. O movimento gera quantidade, e da quantidade se extrai qualidade. Outro dia, há uns 20 anos, mais ou menos, Paulinho da Viola cantou: “Há muito tempo eu escuto esse papo-furado dizendo que o samba acabou; só se foi quando o dia clareou”. É isso aí.


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