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Dois marcos a comemorar
Ivaldo Reges
aos leitores
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ois temas principais ocupam a capa desta edição da Revista: os 40 anos da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco, responsável, além da publicação do Diário Oficial do Estado, pela própria Continente, e os 10 anos do Festival Virtuosi de Música do Recife, um evento de música erudita de padrão internacional. Uma iniciativa é estatal, no caso da nossa editora. A outra, é privada, levada a cabo, com variados níveis de apoio governamental ao longo do tempo, pelo casal Rafael Garcia, maestro chileno aqui radicado há longos anos, e Ana Lúcia Altino, pianista pernambucana. A Cepe foi criada em 1967 para dar suporte à publicação do Diário Oficial e editar publicações, oficiais ou não, vinculadas à cultura pernambucana. Neste 40º aniversário, seu foco segue em dar publicidade aos atos governamentais dos vários níveis, aprimorar tanto do ponto vista gráfico quanto conteudístico a Revista, publicar obras de referência de autores pernambucanos ou sobre Pernambuco e inserir-se vigorosamente no universo das mais recentes tecnologias da informação, tendo em vista a mais ampla difusão de seus produtos e serviços nos meios digitais. A data é, portanto, de compreensível júbilo por parte de todos os que fazem nossa empresa pública. Já o Virtuosi atinge, nesses 10 anos, um patamar do mais alto nível entre os festivais similares realizados em todo o país, com uma – quase diríamos overdose musical, não fosse o termo inadequado em função dos resultados benéficos da experiência que será realizada no vetusto Teatro de Santa Isabel, entre 10 e 16 deste mês de dezembro. Com efeito, a programação deste ano conta com jóias como a estréia da Suíte Macambira para violoncelo solo, de Clóvis Pereira, composta especialmente para o grande violoncelista Antonio Meneses. E tendo como ponto alto a mais original e ousada apresentação de seus nove anos de história – o Virtuosi Pela Paz, uma maratona musical de 24 horas de duração que começará às 20h da sexta, dia 14, e incluirá a raramente ouvida por aqui Sinfonia dos Dois Mundos, de Dom Hélder Câmara (letra), com música do padre suíço Pierre Kaelin, originalmente estreada em 1980, na Suíça. Virtuosi também mostra sua cara contemporânea e híbrida, trazendo DJ e VJ alemães que dialogarão com a música de concerto, entre muitas outras atrações. São eventos que julgamos merecer a atenção dos nossos leitores, nessa última edição de 2007. Para todos, um Natal de paz e um Ano Novo de felicidades.
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O que é mesmo que o brasileiro gosta de ler?
Virtuosi: músicos em campanha pela paz
CONVERSA 04 >> Elba Ramalho reafirma sua pernambucanidade BALAIO 10 >> A estranha saga do caubói vampiro CApA 12 >> Virtuosi celebra 10 anos com megaconcerto pela paz 18 >> Debates radiografarão música erudita no Brasil LItERAtuRA 22 >> Os 100 livros mais lidos pelos brasileiros 26 >> Reunida obra poética de Deborah Brennand 28 >> Marco Polo lança coletânea de poemas 30 >> A construção lírico-épica de Audálio Alves 32 >> O Natal de Alberto da Cunha Melo 33 >> Paulo Fernando Craveiro investe no romance histórico 34 >> Agenda Livros
MÚSICA 52 >> Novo CD de Nação Zumbi é banquete sonoro 56 >> Agenda Discos tELEVISÃO 61 >> O que esperar da nova TV no Brasil tESES 72 >> Quando o poema depende do corpo CÊNICAS 74 >> A profissionalização da dança no Estado 78 >> Mais um capítulo da história teatral pernambucana REGIStRO 80 >> Tropicalismo, um abrangente não-movimento
pERFIL 36 >> Lenice Gomes, uma “contadeira” de histórias
CINEMA 84 >> Desponta um novo Sertão nos filmes brasileiros 88 >> O cinema made in Paraíba
ARQuItEtuRA 40 >> A ousadia consagrada de Zezito Goiana
AGENdA 90 >> Grupo Fluxus em mostra no Mamam
ARtES 44 >> Álbum mostra talento de F. H. Carls 48 >> O céu e o inferno na arte dos trópicos
ESpECIAL A Cepe completa 40 anos de atividades
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Fotos: Divulgação
O Recife antigo de F. H. Carls
A arquitetura de Zezito Goiana
COLuNAS ENtRE LINHAS 39 >> O justificado deslumbramento de Eckhout
Fotos: Ivaldo Reges
Digital e pública: as novidades da TV no Brasil
tRAduZIR-SE 50 >> A crítica e a arte contemporânea SABORES 58 >> Frutas com sabor de infância MEtRÓpOLE 92 >> Donzelas bobinhas e as revistas femininas A redação da Revista, durante o fechamento desta edição
ACESSE NOSSO ENdEREçO ELEtRôNICO www.continentemulticultural.com.br
A Cepe, editora da Continente Multicultural, chega aos 40 anos DEZ 2007 • Continente x
“ ” No Recife, eu me sinto em
casa, o público é caloroso,
conversa
Elba Ramalho
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Paraíba e Pernambuco numa só pessoa
ardente
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A cantora se cercou de pernambucanos em seu novo CD. Além dos amigos Lenine, Alceu Valença e Lula Queiroga, tem a Trombonada, Spock, e, representando a nova geração, Jam da Silva e Maciel Salu ENTREVISTA A Olga de Mello
A
ligação de Elba Ramalho com Pernambuco é tão intensa, que a cantora já se ofendeu quando, há anos, no Carnaval do Recife, foi apresentada como uma das “artistas de fora” a prestigiar a festa. “Fechei a cara. Imagina, meu pai é pernambucano, conheci frevo como música carnavalesca antes de samba”, lembra a paraibana Elba, que se cercou de pernambucanos em seu novo álbum Qual é o assunto que mais lhe interessa?. Além dos amigos Lenine, Alceu Valença e do produtor Lula Queiroga, o disco tem a Trombonada do Recife, o Maestro Spock, e, representando a nova geração de compositores, os jovens Jam da Silva e Maciel Salu. Aos 28 anos de carreira, Elba não gravava discos há quase cinco anos. Neste, ela experimenta novas linguagens musicais e convidou artistas como Roberto Frejat e Gabriel o Pensador para participar do disco, gravado no estúdio que montou em sua casa, no Rio de Janeiro. As canções – de diferentes gêneros, entre xote, rock e samba – falam em temas contemporâneos, como a violência urbana e o aquecimento global e, para criar um ambiente que propiciasse a reflexão, a cantora escolheu fazer shows em teatros. O novo disco foi lançado junto com o DVD Raízes e Antenas, que regista shows na Bahia, na Paraíba e no Rio de Janeiro, com participações de Lenine, Yamandú Costa, Geraldo Azevedo, Trombonada do Recife, Maestro Spok, Gabriel O Pensador, Margareth Menezes e Lula Queiroga. O pai de Elba, João Nunes, de 90 anos, também aparece em sua
casa, em Conceição, no sertão da Paraíba, cantando uma valsa com a filha. É ao pai que Elba Ramalho credita tanto sua identificação com Pernambuco quanto o amor pela música, que considera genético. Sua identificação cultural com Pernambuco é conhecida. Como você vê a cultura pernambucana? O registro de Pernambuco é muito forte para mim e para boa parte dos que vivem da atividade cultural. Embora eu não tenha nascido em Pernambuco, eu me considero um pouco pernambucana, por causa de meu pai. Existe tanta semelhança entre Pernambuco e a Paraíba... Realmente fiquei irritadíssima quando me incluíram entre os artistas de outras terras, ao lado de Alcione e Beth Carvalho, em um show de carnaval no Recife. Naquele momento, eu simplesmente não compreendi como alguém poderia me ver como uma cantora de outro Estado. Admito que meu afeto por Pernambuco até se confunde com o que sinto pelo sertão onde nasci. Não consigo separar a Paraíba de Pernambuco, aliás, acho difícil ter alguém que consiga fazer a separação desses dois Estados. O que me fascina na cultura pernambucana é sua abrangência, sua versatilidade. Em diversos campos, não apenas no musical. No Recife, eu me sinto em casa, o público é caloroso, ardente. Esse calor, essa cordialidade e entusiasmo do povo certamente contribui para a riqueza da produção cultural pernambucana, que nos deu e nos dá tantos compositores talentosos. Entre eles estão amigos muito próximos, verdadeiros irmãos, com quem sempre trabalhei, como AlDEZ 2007 • Continente x
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Gosto de mesclar sons de vários países. Já misturei música caribenha com axé
”
ceu Valença e Geraldinho Azevedo. Tive o privilégio de ser uma das primeiras artistas a cantar Lenine, que é um gênio, um poeta, um pensador, além de grande músico. Lenine é tão iluminado, que se tornou ícone rapidamente. Ele é um divisor de águas na nossa música. Essa sua ligação com Pernambuco foi o que a levou a reunir nesse disco um grande número de artistas pernambucanos? Este disco, aliás, começou de um projeto com o Lenine, que iniciou a produção ao meu lado, mas precisou atender a outros compromissos. Aí, o Lula, que também é compositor e parceiro do Lenine, aceitou continuar o trabalho. Depois começaram a surgir mais e mais pernambucanos no disco, o irmão do Lula, Tostão, o sobrinho dele, Iuri. Essa batida tecno do Lenine ficou muito presente porque o projeto começou com ele. Por fim, juntei composições de Alceu, de Lula, de Geraldinho nesse disco, apoiada por muitos músicos pernambucanos. Não foi intencional, é que Pernambuco forjou esse povo talentoso. Sua imagem é a de uma cantora nordestina, embora seu repertório inclua os mais diversos gêneros musicais. Este disco quer romper com essa imagem? Eu queria me desvincular dos rótulos e lançar um disco que não fosse datado, que não precisasse cumprir uma agenda carnavalesca ou das festas juninas. O Nordeste está em mim, é claro, até neste trabalho há algum momento regional. Sempre procurei a diversidade, outras vertentes musicais. Eu gosto de ritmos variados, de mesclar sons
produzidos em outros países com os nossos. Já misturei música caribenha com axé. O artista é tridimensional. Naturalmente, o Nordeste é minha grande referência, é o motor gerador de meu trabalho. Mas não preciso estar eternamente acompanhada por zabumbas, triângulos e sanfonas. Não me agrada a idéia de me fechar, da xenofobia musical. Fui criada ouvindo samba, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Pixinguinha e Edith Piaf. Meu pai me ensinou a perceber a música como uma linguagem universal. Restringir-se à fórmula, fazer sempre a mesma coisa, pode limitar o artista. Em casa, para as minhas filhas, eu canto de tudo, principalmente músicas folclóricas, “Boi da Cara Preta”, “Sabiá lá na gaiola”, que nos ajudam a construir nossa identidade cultural. Como foi a escolha dessas canções? Fiz um disco que pode ser compreendido e sentido no Brasil, no Rio de Janeiro, em São Paulo e na Ucrânia. Sou universalista, há 35 anos moro no Rio de Janeiro, passo boa parte do ano viajando pelo país inteiro. Então, eu procurei juntar xote, frevo, rap, mas também tem um samba maravilhoso, do João Nogueira e do Paulo César Pinheiro, “As Forças da Natureza”, que a Clara Nunes cantava. E tem música de Pedro Luís, de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Jorge Ben Jor. Gravei em meu estúdio, em casa, foi um trabalho íntimo, da maturidade, que se refere ao sertão, às recordações de minha infância, e também ao que se encontra no caminho do mar. Sou uma artista brasileira, vivo em contato com meu povo, conheço o carinho em todas as partes do Bra-
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Em seu novo disco, a cantora paraibana junta várias vertentes musicais
sil. E esse trabalho juntou amigos e novas vertentes musicais, unindo harpa, guitarra, roqueiros, rappers, sambistas. É um pouco do que se ouve hoje em dia, música de qualidade, que se renova e que renova o artista também. Como foi a escolha do título do disco? A frase é de um verso de “Tempos Quase Modernos”, de Capinam e Roberto Mendes, que eu canto com o Gabriel o Pensador. O poema do Capinam pergunta e vai se referindo a assuntos que estão nas manchetes dos jornais, alguns angustiantes, outros que nos intrigam. Fala em eutanásia, aborto, bebês de proveta, clonagem, o livre arbítrio. Não quis focalizar o bem ou o mal com este título, mas instigar a reflexão mesmo. Vivemos a democracia, ela é real ou apenas serve a um sistema de corrupção há muito implantado? Não estou afirmando nada, mas gostaria de levar esses temas à discussão. Gostaria muito também que meu disco ajudasse as pessoas a pensar um pouco em modificar a situação atual, a ter cautela no momento de escolher governantes, por exemplo. A corrupção reinante me
preocupa, porque ela se manifesta com muita veemência. E não podemos temer essas manifestações do mal, porque o medo diminui a consciência crítica. O público está acostumado a vê-la em palco comandando verdadeiras festas. Como é a reação a esta Elba mais intimista? O ambiente dos teatros já leva o público a ter uma postura diferente, a se preparar para assistir e a refletir sobre o espetáculo. Já fiz shows homenageando Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Desta vez, não tive preocupação em me limitar ao Nordeste, quis renovar, sentir-me revigorada. Não há como deixar de cantar “Banho de Cheiro” no bis.
Afinal, tenho a obrigação de cantar o que o público quer ouvir. Em qualquer show meu, sempre houve um momento para canções mais românticas, mais dolentes. Nem ousaria deixar de apresentar “Aconchego”, as pessoas pedem. Então, mostro as novas canções, canto as antigas e o público sai satisfeito, depois de ter ouvido 10 novas músicas e 10 sucessos que queriam cantar. Eu também saio contente, porque apresentei trabalhos novos e relembrei os que me trouxeram sucesso e boas lembranças. Qual é o assunto que mais lhe interessa? Certamente é o amor, o sentimento doce e nobre que nos impede de cometer equívocos. O amor é o que torna a humanidade mais forte, que nos faz suportar as adversidades e buscar soluções. Lamento apenas que não haja amor suficiente para impedir as guerras, a miséria e a destruição do planeta. É o momento certo para tentarmos entender como suplantar o que tem sido feito de ruim não apenas para o mundo, mas para nossos semelhantes, com serenidade, pois dela também nasce a força. DEZ 2007 • Continente x
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Dezembro 2007 – Ano 07 Capa: Arquivo Cepe Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente
Flávio Chaves Diretor de Gestão
Bráulio Mendonça Meneses
Diretor Industrial
Reginaldo Bezerra Duarte
Conselho Editorial
Colaboradores desta edição:
Presidente: Flávio Chaves
ALEXANDRE FIGUERÔA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle.
Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly
ÂNGELO MONTEIRO é poeta e professor de Literatura. ANDRÉ TELLES DO ROSÁRIO é jornalista e mestrando em Letras pela UFPE. ANDRÉ DIB é jornalista.
Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo
Diretor de Arte Ricardo Melo
Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira
Editor de Arte Luiz Arrais
Revisão Maria Helena Pôrto
Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)
Multicultural
Edição on-line Mariana Oliveira Estagiários Gabriela Lobo, Monique Lima Cabral e Rafael Barbosa Gestor industrial Júlio Gonçalves
CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico de música da Revista Continente
Gestor comercial Gilberto Silva
Gerente comercial e marketing Rosana Galvão Produção Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
CECÍLIA COSTA é jornalista e escritora. CHRIS GALDINO é jornalista e pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. DANIELA ARRAIS é jornalista. EDGAR REBOUÇAS é professor de jornalismo da UFPE. FERNANDA LOPES é jornalista. FERNANDO MONTEIRO é escritor e crítico cultural. ISABELLE CÂMARA é jornalista. JUSSARA SALAZAR é artista plástica, poeta e autora do livro de poemas Natália. KÁTIA AUGUSTA MACIEL é jornalista e estuda cinema em Londres. LUIZ CARLOS MONTEIRO é escritor e crítico cultural. MARCELO COSTA é jornalista e crítico de cinema. OLGA DE MELLO é jornalista. RENATO LIMA é jornalista. SAMARONE LIMA é jornalista.
Colunistas: FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão. LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros. MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestre em Teoria da Literatura e professora universitária.
Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
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Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
FAMÍLIA MADUREIRA Tenho notado que, nos últimos números, a Revista Continente tem privilegiado mais a cultura pernambucana, destacando, muito justamente, os que a fazem, sem perder seu caráter cosmopolita e universal. Na edição de novembro gostaria de elogiar a excelente seção “Documento” sobre os 30 anos do Balé Popular do Recife e a família Madureira – que sempre esteve por trás não só deste, mas de vários empreendimentos culturais genuinamente pernambucanos. Dirceu Barbosa – Caruaru
ADEUS A ALBERTO Leitor da Continente e admirador do poeta Alberto da Cunha Melo (abaixo), expresso o meu pesar pela perda deste que foi e é um dos maiores poetas brasileiros. Sua poesia, curta, competente e exata, ficará na memória de todos que não se deixam enganar pelo verbo de verniz de segunda. Domingos P. de Oliveira – Recife
SEM PINTURAS Na seção “Teses”, da Continente 83, sente-se a ausência de obras artísticas, como a pintura que se desenvolveu na época (Impressionismo) e que poderia ilustrar a matéria (que traz fotos corriqueiras). Airton Perrini – Porto Alegre
ERRATA - EDIÇÃO 83 • Na matéria sobre Abreu e Lima, o crédito pela ilustração é de Pedro Zenival; a data do retorno do general ao Recife é 1844; e o bispo D. Cardozo Aires proibiu, apenas, que o corpo fosse sepultado em cemitério católico, não em solo brasileiro. • Na página 70, o nome do compositor Camargo Guarnieri foi publicado com a grafia incorreta. • Claudia Rangel é a autora da foto da exposição Uma Vida Janete Costa e Acácio Gil Borsoi.
Revista n° 48, dezembro de 2004 Matéria: "A sociedade no divã" Arthur Aguiar entrevista Maria Rita Kehl
“
Não entendo bem o que você quer dizer com “objetividade” (em relação à qualidade da TV). Talvez você se refira à possibilidade de se impor um padrão único de qualidade a toda a programação, atendendo a critérios “objetivos” sobre o que é bom para a sociedade brasileira. Não é assim que penso a questão da qualidade da programação. Os critérios não são objetivos – são éticos, e também estéticos, ou seja: têm muito mais a ver com a subjetividade, com os anseios da sociedade, com o que consideramos bom para nós. Não há como medir essas coisas objetivamente. A sociedade é que deveria definir o que é qualidade e o que é baixaria na televisão. Essa escolha jamais poderia passar por instâncias governamentais de controle; já tivemos a experiência da censura, durante a ditadura militar, e ela foi desastrosa. A censura infantiliza a sociedade, ao tentar decidir, de cima para baixo, o que é bom para ela.
”
Maria Rita Kehl, psicanalista DEZ 2007 • Continente x
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Faça o que eu digo
Ludwig Wittgesntein (1889/1951), que na teoria filosófica usou uma lógica implacável, na vida prática era um passional. Ainda jovem, conhecendo Bertrand Russell, deu-lhe um trabalho para apreciar e pediu que definisse se ele era um gênio ou um idiota. “Por quê?”, quis saber Russell. “Porque se for um gênio serei filósofo; se for um idiota serei aviador.” Ao receber uma herança milionária, abdicou dela e arranjou um emprego de auxiliar de jardineiro. Quando entrou em contato com o Círculo de Viena, que o tinha como um mestre e herói, deixou todos constrangidos ao defender ardorosamente um irracionalista, Schopenhauer. Na universidade, só usava roupas velhas e amarrotadas e recusava as salas de aulas: ministrava-as em seu alojamento. Os alunos levavam suas cadeiras para ouvi-lo. Ao morrer, suas últimas palavras: “Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa”. (Marco Polo)
Brasil em francês
Há 10 anos, por iniciativa da jornalista e poetisa Lourdes Sarmento, o número 13 da revista Vericuetos era publicado em Paris totalmente dedicado à “Poésie du Brésil”, com textos de 83 brasileiros (37 de Pernambuco) em edição bilíngüe, português/ francês. Ilustrada por artista plásticos do nosso Estado, a revista, de 270 páginas, era distribuída na França, na Suíça e também na Argentina, Peru, Chile e Colômbia. (MP)
Quase 500 anos antes: “Os homens recorrem por vezes a sutilezas fúteis e vãs para atrair nossa atenção. Assim os que escrevem poemas inteiros em que todos os versos começam pela mesma letra. Na antiga literatura grega deparamos com poemas em forma de ovo, de bola, de asa, de machadinha, obtidos mediante a variação das medidas dos versos que se encurtam ou alongam para, em conjunto, representar tal ou qual imagem (...). É prova irrefutável da fraqueza de nosso julgamento apaixonarmo-nos pelas coisas só porque são raras e inéditas, ou ainda porque apresentam alguma dificuldade, muito embora não sejam nem boas nem úteis em si”. Michel de Montaigne, em Das Vãs Sutilezas. (Eduardo Cesar Maia)
Imagens: Divulgação
Montaigne vs concretistas
Caubói vampiro
Se alguém quisesse eleger o faroeste mais estranho de todos os tempos, o ganhador teria de ser uma loucura rodada não na Itália, mas lá mesmo nos Estados Unidos: Curse of the Undead (1959), sob a direção de um certo Edward Dein. No Brasil, o filme foi lançado com o título de Sanha Diabólica, trazendo Michael Pate no papel de um pistoleiro-vampiro chamado “Drake Robey” (de dentinhos afiados e dormindo em caixão) que, no final, vem a ser morto, no duelo de costume, pelo xerife-pastor “Dan Young” (Eric Fleming), portando uma pistola provida de balas – de prata, é claro – com cruz entalhada e tudo. (Fernando Monteiro)
Piaf reencarnada DESAFORISMOS "Idiota mesmo é o sujeito que, ouvindo uma história com duplo sentido, não entende nenhum dos dois". Millôr Fernandes
Desde já, a interpretação da jovem atriz Marion Cotillard no papel de Edith Piaf – em La Mome, de Olivier Dahan – está inscrita entre as melhores que já se viu, até hoje, no cinema não só francês. Para começar, Marion é bonita e alta, mas conseguiu ficar baixinha e feia, como a maravilhosa cantora de voz dramática. O principal da atuação de Cotillard, entretanto, fica por conta das nuances, isto é, do bem-sucedido esforço para captar a “alma” da personagem (ou que nome se queira dar ao que fez da infeliz Edith a Piaf imortal). (FM)
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No agradabilíssimo Livro dos Livros Perdidos, de Stuart Kelly (Record), está contado que um dos textos que se perdeu nas brumas dos tempos, por conta da censura ao erotismo, era de autoria de Ibn al-Shaah alThari, poeta da corte abássida (7501258), califado árabe onde hoje é o Iraque. Kelly, bem-humoradamente, salienta não se saber se a tal obra erótica era uma apologia, uma sátira ou um manual. Seu título: Masturbação. (Homero Fonseca)
Livro perdido 2
Ainda no Livro dos Livros Perdidos¸ esta história interessante: Mikhail Bakhtin, o incensado teórico russo, quando esteve exilado no Cazaquistão, entre 1929 e 1936, usou seu trabalho acadêmico sobre Dostoiévski como papel para cigarro, depois de ter fumado um exemplar inteiro da Bíblia. (HF)
Crentes e ateus 1
Os livros Deus, um Delírio, do biólogo Richard Dawkins, (Cia. Das Letras) e Deus Não É Grande, do jornalista Christopher Hitchens (Ediouro), ambos britânicos, devem ser lidos pelo muito de instrutivos que têm, noves fora a crença de cada um. Por exemplo, Dawkins afirma que nos Estados Unidos, hoje, alguém se declarar ateu publicamente equivale a uma condenação pelo resto da vida, tanto no círculo das relações privadas quanto na área profissional. Diz também que já é possívelalguém declaradamente gay ser eleito para um cargo público, mas nunca um ateu “confesso”. Dá ou não o que pensar? (Fred Navarro)
Hedonismo
Acontece cada uma! Em trechos de seu diário, publicados na revista Piauí, o crítico teatral e repórter da New Yorker, Kenneth Tynan, morto em 1980 de enfisema pulmonar, conta entre indiscrições, histórias de sadomasoquismo, festas da pesada, infidelidades e outras diatribes, como é a experiência de tomar vodca via retal. O efeito, ao contrário do que pensava, lhe valeu uma ressaca braba, com idas sucessivas ao banheiro sem conseguir evacuar e sangramento constante durante 48 horas. (Luiz Arrais)
“Casar-se pela segunda vez é o triunfo da esperança sobre a experiência.” Samuel Johnson
Edson Kumasaka/Divulgação
Livro perdido 1
Crentes e ateus 2
A propósito do grau de radicalismo a que podem chegar as divergências teológicas entre os religiosos, Christopher Hitchens, em Deus Não É Grande, afirma: “Há uma velha piada irlandesa sobre o homem que é parado em uma barreira na rua e tem de responder qual é sua religião. Quando ele responde que é ateu, ouve a pergunta: ‘Ateu protestante ou católico?’ Acho que isso mostra como a obsessão se entranhou até mesmo no lendário senso de humor local”. (FN)
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PERGUNTAS A Marcelino Freire
• Janilto Andrade, Professor de literatura. Espera ver a sociedade brasileira, tão moralista, transformada a tal ponto, que seus livros sejam estudados nas escolas? Até que, a duras penas, e por insistência de grandes mestres como você, Janilto, eu tenho sido estudado, sim, aos poucos, em escolas e universidades. Minha vontade é que isso aumente. Meus contos ganhem a boca livre do povo todo e ave! • Hermila Guedes, Atriz. O fato de você ter morado no interior de Pernambuco muda o seu olhar sobre as coisas de que você fala? Com certeza. O fato de eu ser sertanejo, de o meu ouvido ter sido criado junto a ladainhas, queixas e rimas, muito impulsionou o ritmo dos meus parágrafos. Meus personagens têm um vexame típico. Um maracatu solto, acredito. E essa memória musical, essa febre e festa, foi Pernambuco quem me deu. • Artur de Ataíde, bacharel em Letras. O teatro é uma saída para a literatura? O teatro é uma saída para a vida. Eu fiz teatro dos 9 aos 19 anos e isso foi pontual para a minha existência e literatura. Uma professora daí, Ilza Cavalcanti, foi a primeira que me dirigiu o destino. Enfim. Noutro aspecto, o teatro, sim, tem divulgado muito os meus contos. Eles subiram ao palco. Ganharam uma outra luz. Vida longa aos autores-atores e eta danado! NOV 2007 • Continente
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CAPA
Décima edição do Festival Virtuosi mantém alto nível de atrações e tem como ponto alto uma inédita jornada de concertos com 24 horas de duração Carlos Eduardo Amaral
H
á 10 anos, o encerramento da temporada de dos músicos estrangeiros é americana, nórdica, asiática concertos no Recife escapa dos triviais con- ou do leste europeu (os orientais e eslavos estudam em certos de Natal graças à ação de um casal de Memphis). músicos. Em 1998, a pianista Ana Lúcia AlA primeira noite do Virtuosi, no dia 10 deste mês, tino Garcia e o maestro e violinista chileno Rafael Gar- apresentará – em primeira mão no Recife – Antonio cia idealizaram um festival de música de nível interna- Meneses, um dos amigos inarredáveis de Ana Lúcia cional como ainda não houvera em Pernambuco e que e Rafael, em duo com Gérard Wyss, pianista suíço e chega em 2007 com o status de maior evento da música acompanhador preferido do cellista. Depois do CD da clássica no país durante dupla com sonatas de Schuo mês de dezembro. Ambert, muito vendido no Virpliando o número de apretuosi e na Mimo 2006, acasentações e convidados, o ba de ser lançado um com Virtuosi volta renovado e obras de Mendelssohn, já anuncia o maior concerto disponível nas lojas. já realizado no Brasil, em Meneses, que pela seprol do fim da violência. gunda vez no semestre pisa Homenageando Ariano Estado, ainda comemono Suassuna, o X Virtuosi, rando os 50 anos de idade Festival Internacional de completos em agosto, estreMúsica de Pernambuco, ará mundialmente a Suíte movimentará novamenMacambira para violoncelo te o Teatro Santa Isabel. solo, de Clóvis Pereira. Será Internacional não só de Ana Lúcia Altino e Rafael Garcia: uma década de Virtuosi a quarta obra do componome, mas de fato: digno sitor caruaruense estreade qualquer grande cidade do mundo, sem distorções. da num Virtuosi (as outras foram o Concertino em sol Dois grandes pólos fornecerão outra vez o grosso dos maior para violoncelo, em 2004, o Concerto em lá maior músicos convidados: Memphis, no Estado americano para violino e o Quarteto de cordas, em 2005). Após redo Tennessee, e Copenhague, Dinamarca, residências, ceber de presente o Concertino em sol maior, Meneses respectivamente, de Leonardo e Rafael Altino, dois dos encomendou ao amigo uma versão regional das suítes seis filhos do “Casal Virtuosi”. Não é à toa que boa parte de Bach. “No entusiasmo, iniciei o “Prelúdio” e aos 12 x Continente • DEZ 2007
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O Teatro de Santa Isabel será palco do maior concerto já realizado no Brasil, em prol do fim da violência
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Em compasso com as adversidades
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ão é tão adequado falar de “temporada” numa capital de vida musical minguada, onde a Orquestra Sinfônica do Recife e a Banda Sinfônica da Cidade do Recife são as únicas do gênero em atividade regular no Estado e não possuem autonomia financeira suficiente para montar um programa de concertos com antecedência anual, abarcando apresentações especiais com solistas convidados e os anunciando ao público cativo e à imprensa especializada e local. Em termos de orquestras jovens, temos apenas uma sinfônica no sentido formal, ou seja, que pertença a algum órgão público: a do Conservatório Pernambucano de Música (CPM). A outra, a Camerata Armorial (que por vezes utiliza o nome de Orquestra Jovem de Pernambuco) é obra do maestro Rafael Garcia e subsiste por empenho de seu fundador. Ele já se lamentou diversas vezes, a quem quisesse ouvir, que perdia aprendizes talentosos para outras capitais, como Aracaju, porque não tinha melhores salários a oferecer. A música sinfônica (aqui o termo está no sentido musical mesmo, “música para orquestra de grandes dimensões”) pára por aí em Pernambuco. A música de câmara (para grupos de poucos integrantes) pode ser ouvida regularmente em eventos como as Quartas Musicais, do CPM, e o recém-nascido Projeto Salão Nobre, da Musicata Cia. de Arte. Irregularmente, só quando é possível patrocínio. Quanto aos festivais, ao menos os dois únicos – a Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo) e o Virtuosi – têm projeção nacional e correspondem à avidez do público pela música clássica, tendo-se incorporado ao calendário cultural pernambucano. Paralelamente, faltam canais de divulgação eficientes para a música clássica pernambucana. A publicidade dos intérpretes e conjuntos não é boa porque os próprios músicos têm de ser produtores e divulgadores de si mesmos, em vez de se concentrarem no trabalho; não há agenciadores especializados para procurar encaixar os músicos em festivais e concertos em outras regiões do país e no exterior; não há cooperativas para auxiliar na elaboração de projetos culturais e dar consultoria de direitos autorais e economia da cultura; não há publicação dirigida ao ramo, nem mais colunas em jornais. (CEA)
A Suíte Macambira para violoncelo solo, de Clóvis Pereira, estreará mundialmente
poucos fui moldando os quatro movimentos restantes (decidi de pronto que a suíte deveria constar de cinco movimentos), onde cada um refletisse as nossas tonalidades modais”, explica Clóvis. Ele revela que abandonou a composição depois dos esboços: “Havia percebido que criara alguns problemas de contexto musical, faltando-me inspiração para resolvê-los”. Ao se reverem na última Mimo, Meneses o cobrou. “Não teve outro jeito. Dia seguinte enviei-lhe o primeiro movimento. Ele gostou e me pediu urgência para os outros. A inspiração fluiu-me tão depressa que em apenas 19 dias consegui terminar o restante”. O compositor dedicou a Suíte Macambira a João Jerônimo de Menezes (in memoriam), pai de Antonio. A peça consta de cinco partes: “Prelúdio”, “O canto do cego”, “Dança”, “Coco agalopado” e “Frevo cançonado” – mais uma peça que elege o frevo como finale; este ano teve os “Três toques emotivos” do carioca Guilherme Bauer e, em 2006, as “Ritmetrias” de Edino Krieger. Compor suítes para violoncelo solo é uma remissão arquetípica a Bach, mas na Macambira a citação ao Kantor de Leipzig não fica na mera formatação. As suítes barrocas, com efeito, eram agrupamentos de danças típicas de várias regiões européias: as sarabandas, espanholas; as alemandas, alemãs; as correntes, francesas (courantes) ou italianas; os minuetos e as bourées, franceses; as gavotas, italianas; e as gigas, inglesas. Em maio, Clóvis Pereira candidatou-se a uma vaga na Academia Brasileira de Música, porém teve três fortes concorrentes – o violinista carioca Paulo Bosísio, o musicólogo e contrabaixista mineiro Henrique Autran Dourado e o
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Dom Hélder, na estréia brasileira da Sinfonia dos Dois Mundos, em 1984, no Teatro Guararapes
pianista paulista Gilberto Tinetti; Bosísio foi eleito. Clóvis tentou ser o quarto pernambucano a ocupar uma cadeira na Academia, depois de Marlos Nobre, Padre Jaime Diniz e Valdemar de Oliveira. Fora eles, existem os patronos, falecidos quando a instituição foi fundada e escolhidos por Villa-Lobos, idealizador e primeiro presidente: Luiz Álvares Pinto (1719-1789), Thomaz Cantuária (1800-1878) e Euclides Fonseca (1854-1929). Em tempos de altos índices de criminalidade urbana, o Virtuosi preparou a mais original e ousada apresentação de seus nove anos de história para pedir o fim da violência no país: o Virtuosi Pela Paz. A maratona musical de 24 horas de duração é o ponto alto do festival e começa às 20h da sexta, dia 14. Algo parecido no Brasil houve somente em junho passado no Rio de Janeiro, na Follie Journée (Um Dia Maluco), quando aconteceram 40 concertos em 48 horas. Uma gama de atividades paralelas irá garantir a movimentação do lado de fora do Santa Isabel: feira de alimentação, artesanato, exposição de instrumentos, luteria, venda de CDs e livros. Há quem garanta que irá levar colchonete e garrafa térmica com café para virar a noite. O Virtuosi Pela Paz começa com o concerto Uma Noite na Ópera, estrelando a soprano russa Valeria Stenkina – que sucedeu a badalada diva Anna Netrebko no Teatro Mariinsky de São Petersburgo – e o tenor norueguês Johan Christer Novsjo, da Ópera Nacional Norueguesa. Acompanhados pela Sinfônica Virtuosi, sob a batuta de Rafael Garcia, o duo presta
tributo a Luciano Pavarotti, cantando árias e duetos de óperas queridas pelo falecido tenor italiano, entre elas, Os pescadores de pérolas de Bizet, O elixir do amor de Donizetti, e A força do destino, Nabuco e La Traviata de Verdi, o mais contemplado. Novsjo volta de madrugada em recital para canto e piano, e Stenkina idem na tarde do sábado, cantando as Quatro últimas canções de Richard Strauss. A cada seis horas, a partir da meia-noite, soará uma Ave Maria de um compositor diferente. Dom Hélder Câmara será lembrado ao adentrar do dia 15, na Sinfonia dos Dois Mundos. A obra, com letra do clérigo cearense (original em francês) e música do padre suíço Pierre Kaelin, estreou em 1980 na Suíça e se divide em seis movimentos ininterruptos. Kaelin requisitou uma grande orquestra, com coro misto, coro infantil e contralto e tenor solistas, criando uma sinfonia poliestilista, na qual é possível perceber várias influências, de acordo com o movimento, como Anton Webern e Carl Orff. A estréia brasileira da obra, em 1984, deu-se por iniciativa de Ana Lúcia Garcia, então diretora da Sinfônica da Paraíba: “Ele achou que não iríamos conseguir passar o texto na censura. Mas fizemos a tradução junto com ele e a equipe dele e então conseguimos a aprovação”, explica. Com a reticência do regente titular em tempos de ditadura, Aylton Escobar aceitou o convite e veio do Sudeste para reger as duas primeiras audições nacionais: no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa, e no Teatro Guararapes – Rafael Garcia foi o spalla. Ao último acorde da sinfonia, entram em cena no Santa Isabel, diretamente da Alemanha, DJ Terrible e DEZ 2007 • Continente x
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CAPA VJ Safy Sniper... Nenhum engano na informação. Em 2001, a Deutsche Grammophon inventou uma maneira de quebrar a resistência de jovens freqüentadores da vida noturna de Viena à música erudita: levá-la em versão remix para as danceterias. A equipe da Yellowlounge (que tem esse nome devido à cor símbolo da gravadora alemã, onde brilharam Karajan e Bernstein) obteve tanto sucesso que emplacou em outras cidades européias, a exemplo de Cracóvia, Zurique e Estocolmo. O Recife é a primeira cidade a receber a rave fora da Europa. O ponto alto de cada apresentação é a aparição de pelo menos um artista erudito, que interage com os DJs e VJs; a lista de convidados ilustres tem o violoncelista Mischa Maisky, o Emerson String Quartett e Sting. Atualmente, a Yellowlounge funciona numa das maiores casas noturnas de Berlim, a Cookies, e atrai de 700 a 1.200 pessoas por noite, contando os eruditos “convertidos”. No Virtuosi Pela Paz, os sons eletrônicos de DJ Terrible e as imagens psicodélicas de VJ Safy Sniper vão se revezar a cada meia hora até o amanhecer com vários instrumentistas de câmara. Na tarde de sábado do Virtuosi Pela Paz, o pianista paranaense Marco Antonio Almeida apresentará obras de seis compositores brasileiros: Villa-Lobos, Frutuoso Viana, Lorenzo Fernandez, Camargo Guarnieri, Ernesto Nazareth e Louis Gottschalk. Este último, na verdade, um brasileiro por afeição. Gottschalk (18291869), pianista e compositor de Nova Orleans, filho de um judeu inglês com uma haitiana, aperfeiçoou-se musicalmente na França com Hector Berlioz e fez vá-
Trombone 250 cc
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ão se assuste quando Christian Lindberg entrar vestido de motoqueiro em cima de uma motocicleta e imitar o motor dela com seu trombone: a obra que deve causar a maior reação do público do Virtuosi foi deixada estrategicamente para o final do festival. A inusitada aparição de Lindberg em 1989, na estréia do concerto Motorbike Odyssey (A Odisséia da Motocicleta) de Jan Sandström, já se repetiu cerca de 700 vezes até hoje, sempre despertando entusiasmo e perplexidade.
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O compositor exige do trombonista coisas do tipo: obter notas superagudas ou supergraves, exigir que o intérprete cante ao mesmo tempo em que toca em outro tom e aceleradamente o instrumento, troque algumas notas da melodia por vocalises, ou esgote o fôlego em notas longas e grite propositalmente de desespero. No Motorbike Odyssey, Sandström imaginou uma viagem mítica de motocicleta em três lugares do planeta: passeando com um crocodilo no pântano de Evergla-
Os DJ Terrible e VJ Safy Sniper trazem pela primeira vez ao Recife a rave erudita
des, na Flórida, acompanhando uma procissão na Provença e brincando com habitantes do deserto australiano. O concerto de Sandström é uma peça em linguagem musical contemporânea que se vale de sons poucos explorados do trombone e da orquestra sinfônica tradicional para reproduzir efeitos sonoplásticos: a moto fictícia de Lindberg troca marchas, solta fumaça pelo cano de escape, pifa, irrita seu dono, engata de novo, vagueia em meio a animais, camponeses e aborígenes e derruba o condutor (!). Ao se usar Paganini, Bottesini e Liszt como referências máximas
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Leonardo Altino tocará a Cantoria n° 2 para violoncelo solo, de Marlos Nobre
Christian Lindberg, considerado o maior trombonista da história da música
rias turnês no Caribe e na América do Sul. Ao deixar os Estados Unidos e conquistar a amizade de D. Pedro II, no Rio, dedicou à Princesa Isabel a “Grande Fantasia Triunfal” sobre o Hino Nacional Brasileiro, que Marco Antonio Almeida irá tocar. Depois será a vez do Trio op. 4 de Marlos Nobre, com Betina Stegmann, Antonio Guerra Vicente e Maria Luíza Corker-Nobre. No caso do Trio de Marlos Nobre – que ganhou o primeiro lugar no II Concurso Música e Músicos do Brasil no Rio de Janeiro, em 1960, e revelou o compositor pernambucano para o resto do país – será a primeira execução no Estado em que foi escrito. Por fim, às 18h, uma confraternização de orquestras jovens do Nordeste formará uma única sinfônica para encerrar o Virtuosi Pela Paz. Não bastasse conduzir essa confraternização, Rafael Garcia vai ter regido a Orquestra Virtuosi em Uma Noite na Ópera, a recém-nascida Sinfônica do Estado de Pernambuco na Sinfonia dos Dois Mundos, a Camerata Armorial na Missa da Coroação, de manhãzinha, e um ensaio da Orquestra Virtuosi: quatro concertos e um ensaio em um único dia. Ele e a esposa justificam o esforço: “Existe uma frase de Beethoven que responde tudo, ‘Música pode mudar o mundo’! É isso que gostaríamos de mostrar. É um espécie de protesto com música boa, com grandes artistas participando, todos abraçados por uma nobre causa”. Após a reinauguração do Salão Nobre do Teatro Santa Isabel em 2006, o Virtuosi preparou uma série de concertos de câmara que começava antes dos concertos de maior porte, no palco principal. O isolamento acústico
de seus instrumentos, deve-se ressaltar que Christian Lindberg, em seus 49 anos, é o maior trombonista da história da música, tendo incentivado a composição de mais de 70 concertos criados especialmente para ele por compositores contemporâneos, inclusos os dois de Sandström: o Motorbike e o Dom Quixote. A subutilização do trombone no repertório concertístico e sinfônico regular motivou Lindberg a se empenhar a elevar o status do instrumento. Um dos fatos mais destacados de sua carreira é que logo aos 20 anos ele deixou de tocar em orquestras sinfônicas para se dedicar à carreira de solista.
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Novos caminhos da música de concerto
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Revolução Industrial e a indústria fonográfica desenharam as linhas gerais do quadro das relações de trabalho da classe musical e do papel dos agentes produtores do ramo no século 20. Mesmo os festivais de música, hoje disseminados no mundo inteiro, são criações do Novecentos (vide o de Bayreuth, criado por Wagner). No entanto, nunca foi feito um mapeamento racional das atividades ligadas à música clássica no Brasil, questionando-se publicamente “Como se vive da música de concerto e para a música de concerto em cada região do país?”. Essa preocupação motivou Ana Lúcia Garcia e Marlos Nobre a elaborarem um ciclo de debates chamado “A saga da música de concerto no Brasil de hoje e na América Latina”. O ciclo, apoiado pelo Programa Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura, visa refletir sobre questões relativas aos modos de produção, organização, circulação, consumo e fomentação do mercado da música erudita, especialmente fora do eixo Rio – São Paulo. Além de evidenciar o mercado brasileiro, “A saga da música de concerto...” irá traçar estratégias de interação entre produtores e compositores do Brasil e dos países latino-americanos. Os debates são abertos ao público, sem cobrança de taxa de inscrição, e realizados em Brasília (nas tardes de 6 a 9 de dezembro, no Auditório do Departamento de Música da Universidade de Brasília) e no Recife (nas manhãs de 11 a 14 de dezembro, no Museu do Homem do Nordeste, Casa Forte). No primeiro dia, os temas – conduzidos por um expositor e desdobrados por dois debatedores – serão apresentados por Marlos Nobre, pelo professor e pianista Marco Antonio de Almeida, diretor artístico do Festival de Música de Londrina, e pela professora e pianista Beatriz Salles, diretora do Festival de Inverno de Brasília. O compositor e maestro cubano Guido López Gavillan, presidente do Festival de Havana, abrirá o segundo dia com um painel da música contemporânea latino-americana. Depois, irão introduzir os temas o violoncelista Antonio Guerra Vicente, integrante do Quarteto de Brasília e a pianista Glória Caputo, fundadora do Festival de Música de Câmara do Pará e presidente da Fundação Amazônia de Música. A pianista e produtora Maria Luíza Corker-Nobre inicia os debates do terceiro dia explicando itens de Direitos Autorais do compositor de música de
concerto no Brasil. Em seguida, o maestro Rafael Garcia e o compositor venezuelano Alfredo Rugeles, irão discorrer respectivamente a respeito das atividades das orquestras sinfônicas no Brasil de hoje e dos festivais latino-americanos de música de 1990 a 2006. Rugeles é diretor de importantes conjuntos musicais na Venezuela, incluindo a mais importante orquestra do país, a Simon Bolívar. O último dia de conferências tem início com o compositor e maestro mexicano Manuel de Elías e com o salvadorenho German Cáceres, que irão falar da música de concerto atual na América Latina, enquanto o compositor paraibano Eli-Eri Moura irá discorrer acerca da linguagem da música contemporânea de concerto. As conferências terão apresentações de obras dos compositores estrangeiros presentes. Ao final dos debates, um documento que reflita as preocupações com a música de concerto no Brasil contemporâneo e na América Latina, discutido e aprovado pelos participantes, será editado e enviado aos Ministérios correspondentes, governos estaduais e municipais, instituições de ensino no Brasil e na América Latina, produtores musicais e ao Conselho Internacional de Música da Unesco.
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do recinto ainda hoje não é dos meO Quarteto de lhores, mas o público, confirmando Brasília, uma uma crescente avidez por concerdas atrações ao cair da tarde tos, aprovou a iniciativa. Para quem pode ir direto do trabalho ou da escola para o Teatro, ou quem demoraria muito para ir para casa se arrumar e voltar para o centro, ficou ideal. O Jazz Players da Universidade de Memphis inauguram a Série Salão Nobre do Virtuosi 2007 no dia 11, às 17h, seguidos pelo Copenhagen Ensemble e pelo Quarteto de Brasília. O destaque, no dia do encerramento, será uma reconstituição hipotética do Quinteto em fá menor, op. 34 de Brahms. Ao se debruçar em sua tese de doutorado na Boston University acerca dos quintetos para piano e cordas no século19, Ana Lúcia Garcia tomou o Quinteto de Brahms como divisor de águas, pois o compositor alemão influenciou a criação de outras peças para essa configuração instrumental pouco utilizada. Ela constatou que Brahms escreveu uma primeira versão do Quinteto requisitando dois violinos, uma viola e dois violoncelos, exatamente como o Quinteto em dó maior D. 956 de Schubert. Como Clara Schumann e o violinista Joseph Joachim, amigos a quem ele sempre ouvia, não gostaram da versão, Brahms o transcreveu para dois pianos – hoje o opus 34b – antes de destruir a versão original. Professora Ana Lúcia diz que Clara Schumann novamente não gostou e aconselhou o amigo a fazer a adaptação para piano e quarteto de cordas que hoje conhecemos. “Do quinteto original não existe nenhuma referência a não ser numa carta de um amigo uma recomendação sobre uma frase do segundo movimento. Nesta mesma época ele estava editando algumas obras de Schubert. Por conta disso resolvi então fazer uma hipotética reconstrução do quinteto para dois violoncelos, usando principalmente a versão para dois pianos, à qual tentei ser fiel. Deu muito trabalho, especialmente o primeiro movimento onde existem menos vestígios do quinteto original. Qualquer nota, qualquer coisa nesta versão pode ser questionada. Quem sabe o que Brahms escreveu?”
Após a abertura do Virtuosi, com Antonio Meneses e Gérard Wyss, o palco principal da Santa Isabel abrigará a Orquestra Virtuosi, no dia 11, na continuação da Série Vicente Fittipaldi, sempre às 20h. Os solistas da segunda noite serão Christian Lindberg, no Concerto para trombone de Leopold Mozart, escrito no ano em que nasceu o filho ilustre do austríaco, 1756; e Mauro Loguercio, Antonio Meneses e Gérard Wyss, no Concerto tríplice em dó maior, op. 56 de Beethoven. Leonardo Altino abrirá o concerto do dia 13, que relembrará os 80 anos de Ariano Suassuna, comemorados em junho. Altino tocará a Cantoria n° 2 para violoncelo solo de Marlos Nobre, outra obra apoiada nas suítes de Bach. Das seis Cantorias previstas pelo compositor, DEZ 2007 • Continente x
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Os 80 anos de Ariano Suassuna também serão comemorados
três estão acabadas. A seguir, o pianista filipino Vitor Asuncion interpretará o IV Ciclo Nordestino do compositor pernambucano, em cinco movimentos, o último dos quais o Frevo, motivo de controvérsia já superada (mas sempre remoída) com o jovem pianista Vitor Araújo – tanto que surgiu o Frevo n° 2, dedicado a Ariano, que o próprio Marlos Nobre executará em primeira audição. A segunda parte do concerto terá o Concertino para flauta e cordas de Antonio Ribeiro, em dois movimentos, com Rogério Wolf como solista; o Terno de pífanos de Clóvis Pereira, e as estréias mundiais de Parandares do potiguar Danilo Guanais, para duas flautas e cordas, e de Armoriales do paraibano Eli-Eri Moura, para viola, violoncelo e cordas, a ser tocada pelos irmãos Rafael e Leonardo Altino. Esse concerto-homenagem marca uma renovação significativa no repertório da música armorial, cujo patrono, segundo Ariano Suassuna, é César Guerra Peixe. Guerra Peixe foi o primeiro maestro e compositor brasileiro de carreira a fazer anotações in loco de
gêneros folclóricos, em Pernambuco e em São Paulo, que foram transformados em material didático para seus alunos de composição e usados em obras como Museu da Inconfidência. Ele fez o mesmo que Béla Bartók e Zoltán Kodály na Hungria. Antes, só musicólogos como Roquette Pinto e Mário de Andrade caminharam pelo Brasil nesse intuito, mas o uso de ritmos, escalas e cantigas nordestinas em obras eruditas remonta a Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e José Siqueira, todos anteriores a Guerra Peixe e ao Armorial. O Movimento Armorial veio a configurar uma instrumentação padrão, em cima de similaridades sonoras entre os instrumentos eruditos e populares da mesma família, e a preponderar a rítmica popular. Ariano Suassuna é o oitavo agraciado do Virtuosi. A lista começou com o maestro gaúcho Vicente Fittipaldi, que foi o primeiro regente da Sinfônica do Recife (2000). Seguiram-se a pianista Josefina Aguiar (2001), o compositor Marlos Nobre (2003), o violoncelista Antonio Meneses (2004), o compositor e maes-
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tro Clóvis Pereira (2005) e Maestro Duda (2006). Em 2002, a homenagem foi à Semana de Arte Moderna de São Paulo. Os desejosos de saber mais do que vai ser tocado em cada concerto podem comemorar a volta do violista Marcelo Jaffé, grande descoberta do Virtuosi em 2006, mas como mestre de cerimônias. Improvisando com presença de espírito e conhecimento numa apresentação que atrasou, Jaffé acabou sendo chamado ao palco nos dias seguintes para informar e entreter a platéia. O bom humor do violista é um dos trunfos para que o público leigo não se sinta deslocado ante o repertório e para que todos se sintam prestigiados. Noutra instância, esse diálogo com o público quebra o excesso de formalidade costumeiro na música clássica. Marcelo Jaffé é um dos nomes que retornam ao festival, como a violoncelista Natalia Khoma (que ganhou o Prêmio Tchaikovsky em 1990, oito anos depois de Antonio Meneses) e os violinistas Yehezkel Yerushalmi e Benjamin Sung. Eles perdem de longe para o contrabaixista romeno Catalin Rotaru, o decano dos solistas amigos da famí-
O sueco Roland Pöntinen será solista de Concerto de Grieg
lia Garcia, com oito Virtuosi carimbados na mala. Mais do que ele, só o violinista chileno Yerko Tabilo e o contrabaixista argentino Hector Rossi, residentes na Paraíba e convidados da Orquestra Virtuosi, que terão participado de todas as 10 edições. Tabilo e Rossi vieram mais vezes que Leonardo e Rafael Altino, que são da família e estão empatados com Rotaru. No encerramento do Virtuosi, dia 16 às 20h, a Orquestra Virtuosi e maestro Rafael Garcia irão acompanhar cinco solistas em quase três horas de música, mantendo a escrita dos longos concertos de última noite. Mikkel Futtrup, spalla da Orquestra Real da Dinamarca, interpreta o célebre e exigente Concerto para violino em ré menor op. 47 de Sibelius, cujo cinqüentenário de nascimento está sendo lembrado. Leonardo Altino tocará outro concerto em ré menor, o para violoncelo do romântico francês Édouard Lalo (18231892), localizado no mesmo patamar do de Elgar e de Dvořak. Catalin Rotaru e Waldir Bertipaglia homenageiam o italiano Giovanni Bottesini (1821-1889) executando sua Passione Amorosa, para dois contrabaixos. Bottesini, conhecido como o Paganini do contrabaixo, começou a estudar violino na juventude e queria entrar no conceituado Conservatório de Milão, mas era de família pobre. Como só havia bolsas para contrabaixo e fagote, ele mudou de instrumento especialmente para o exame de admissão e nunca mais o deixou, ganhando ainda uma fama menos duradoura na composição de óperas. O norueguês Edvard Grieg, maior nome musical de seu país e falecido há 100 anos, não foi um compositor de obras orquestrais de grande porte. A única que escreveu, o Concerto em lá menor para piano e orquestra op. 16, arrebatou os ouvintes das salas de concerto do mundo inteiro. Composto em terras dinamarquesas e revisado diversas vezes, o concerto guarda diversos pontos de semelhança com o de Schumann, inclusive a mesma tonalidade. O sueco Roland Pöntinen será o solista da peça de Grieg, antes de um conterrâneo dele aprontar uma surpresa.
SERVIÇO X Virtuosi De 10 a 16 de dezembro Teatro de Santa Isabel Programação completa: www.virtuosi.com.br A produção do Virtuosi ressalva que poderão ocorrer modificações de programação até a publicação desta matéria. DEZ 2007 • Continente x
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LITERATURA
Os 100 mais vendidos Quem-compra-o-quê – no que diz respeito ao produto livro, pelo menos – é, talvez, um dos grandes mistérios brasileiros, desde há algum tempo Fernando Monteiro
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ma pesquisa – durante os meses de setembro, outubro e novembro – cruzando as listas dos livros mais vendidos no Brasil foi a minha proposta, no final de agosto passado, aos diretores desta Revista. As fontes pesquisadas seriam as revistas semanais nacionais, os sites das grandes livrarias e alguns outros endereços da web. Não sendo nada que pretendesse – nem longinquamente – reforçar o marketing de ninguém (editores, livreiros ou escritores), a proposta foi aceita, como uma tentativa de “radiografar” a atual cabeça do leitor brasileiro, esse desconhecido que ao “passar no caixa” das livrarias, por esse simples ato, detém o poder de definir a trajetória comercial de livros de qualquer gênero. O assunto tem aspectos até intrigantes. Isso porque quem-compra-o-quê – no que diz respeito ao produto livro, pelo menos – é, talvez, um dos grandes mistérios brasileiros, desde há algum tempo. E é um mistério que envolve outros enigmas verde-amarelos. Por exemplo: edita-se mais do que nunca, neste momento, no pindorama de muitas faces, e a impressão geral é de que jamais se leu tão pouco, cá na “taba” tupiniquim. Faça-se o teste em conversa numa festinha, num ponto de ônibus e até dentro de uma piscina, que você terá pouquíssimos títulos de obra a emergirem, lidas, acima dos narizes molhados, 22 x Continente • DEZ 2007
Literatura Fernando monteiro 22a22 22
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na conversação atualmente afastada vinte mil léguas submarinas do mundo dos livros. Um dos muitos livros do “fenômeno” Harry Potter estará, decerto, entre os citados – por adolescentes e/ou adultos. Afinal, só Harry Potter e a Pedra Filosofal (que foi o primeiro, lançado em 1997) já alcançou a marca dos 110 milhões de exemplares vendidos, e é o décimo colocado entre as maiores vendagens livrescas da História – logo depois do Livro dos Mórmons e de outros campeões como o Dom Quixote, de Cervantes, o Livro de Pensamentos de Mão, o Alcorão e a Bíblia Sagrada, o super-campeão, com a assinatura do autor mais lido de todos os tempos: Deus (embora Paulo Coelho pretenda desbancá-lo do ranking, em mais alguns anos, mas isso é outra história). Meu-deus. Que introdução mais louca. Quando o tema é tão simples: quais foram os 100 livros mais vendidos, de setembro a novembro, nesta pátria do mago um dia sucessor, talvez, do Autor Supremo?... Não vou listar um por um dos 100 títulos, evidentemente, porque esta é uma tentativa de análise, de interpretação dos dados – e não mera contagem e listagem já defasadas em quase um mês, a esta altura. O que se pretende aqui é ver através dos véus (alguns, bem estranhos) das muitas e muitas listas dos “mais vendidos”, cuja malha especiosa, aqui e ali, parece querer tornar simplesmente mais vendidos certos livros que não estavam entre os mais-mais, até aparecerem nas tais listas – após o que começam a ser vendidos, inevitavelmente, porque passam a ser adquiridos por quem ainda acredita em listas (círculo vicioso de malandra inspiração monetária). Por exemplo: sobre o autor mais bem-sucedido – Deus – há um livro que se manteve, durante os três meses, entre os 10 mais adquiridos, Seu título é Deus, um Delírio, de autoria não do nosso Paul Rabbit, mas de um biólogo chamado Richard Dawkins (autor também de O Gene Egoísta, outra presença nas listas). Por várias semanas, Dawkins andou empatando com A Era da Turbulência, de Alan Greenspan – o homem que tinha o poder de fazer mais calmos ou mais turbulentos os mercados mundiais, desde a sua mesa de trabalho no Federal Reserve (Banco Central americano), e que hoje escreve, sobre outras mesas, livros que concorrem, aqui no Brasil, com a obra na qual o biólogo também transformado em es-
critor “usa o seu conceito de memes (idéias que agem como os genes) e o darwinismo para propor explicações à tendência da humanidade de acreditar num ser superior”. Parece ser o livro de um ser inferior (literariamente falando, pois de biologia – transcendental ou não – eu nada entendo). Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a Maomé – reza um velho provérbio (realmente árabe?) dos tempos em que Deus era um “delírio” bem mais acreditado do que agora, nesta época de pouca fé, na qual as pessoas procuram livros que lhes fortaleçam a crença mais em si próprias do que naquele bíblico autor de longa barba, parecida com a de Brennand. E haja títulos de “auto-ajuda” entre os 100 mais vendidos aos “tolos de todo mundo (uni-vos!)”. É a ordem do Deus Marketing, todo poderoso no mercado. De acordo com isso, Os Segredos da Mente Milionária, de T. Harv Eker (que nome!), chegou a ocupar a terceira posição entre os campeões, seguido, de perto, por Transformando o Suor em Ouro, da lavra de ninguém menos que o ex-atleta e hoje técnico Bernardinho. Sim, estão transformando suor – e outras matérias secretadas pelo nosso corpo – em ouro, nas livrarias atulhadas de “autoajuda”. Você tem centenas de opções, incluindo os livros de Lya Luft, que costuma ter um ataque toda vez que é chamada – com justeza – de autora de obras de auto-ajuda (que é o que a gaúcha anda escrevendo e defendendo como se fosse literatura). Porém, a simpática senhora Luft é apenas um “fantasminha” camarada, ou seja, é fichinha, como se diz, diante dos autores internacionais dedicados ao mesmo mister, os quais não deixam ninguém em paz. Eles escrevem, escrevem e escrevem. Nas listas dos mais vendidos, apareceram, por ordem, durante os três meses, alguns títulos bem típicos: Como se Tornar um Líder Servidor, de James Hunter, A Lei da Atração, de Michael Loster, Por que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor?, de Allan Pease, Quem Mexeu no meu Queijo?, de Spencer Johnson, A Estratégia do Oceano Azul – como Criar Novos Mercados e Tornar a Concorrência Irrelevante, de W. Chan Kim e Renée Mauborene, Desvendando os Segredos da Linguagem Corporal, de Allan Pease e Barbara Pease, Pai Rico, Pai Pobre, de Robert T. DEZ 2007 • Continente x
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LITERATURA Kiyosaki, Aprender a Viver, de Luc Ferry, Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes, de Stephen R. Covey, A Ciranda das Mulheres Sábias e Mulheres que Correm com os Lobos, ambos de Clarissa Pinkola Estes, As 48 Leis do Poder, de Robert Greene, Dinheiro: os Segredos de Quem Tem, de Gustav Petrasunas Cerbasi, A Física da Alma, de Amit Goswami (um detalhe: os escritores de auto-ajuda, J. K. Rowling, autora de Harry Potter, com o ator brasileiros e estrangeiros, parecem Daniel Radcliffe gostar de nomes estranhos; Lya Luft não é tão simples como Maria da Silva, mas é certamente superado por T. Harv Eker, W. Chan Kim, C. Pinkola Estes, G. Petrasuna Cerbasi, Amit Goswami e outras excentricidades talvez escolhidas para fazer supor que a “ajuda” está vindo de extra-terrestres disfarçados de autores humanóides...). Continuando: há outros títulos na lista que revelou a presença maci- Dan Brown: máquina de fazer dinheiro Paulo Coelho: pretensão de desbancar Deus? ça do gênero que fez a fortuna de Lair Ribeiro (que desa- dendo suas consciências aos interesses do primeiro lobispareceu das listas). Não posso deixar de citar o impagável ta com mais de 10 mil dólares na cueca mal-lavada). Freakonomics: o Lado Oculto e Inesperado de Tudo que nos Cerca, de Sthepen Dubner (outro nome duvidoso) e Como dizia um outro senador – e romancista que não Steven Levitt, obra em 88° lugar na lista dos 100. Assim freqüenta a lista dos mais vendidos –, raposa maranhense como detectei a presença de algo chamado O Gerente de bigode encerado: todos esses livros, brasileiros e brasiMinuto, saído da cachola de um certo Kenneth H. Blan- leiras, se encontravam na lista dos mais procurados pelos chard, que é visto fumando um cachimbo politicamente ingênuos leitores “destepaiz” (a pérola preferida do atual incorreto nas suas fotos, com certeza para combinar com presidente – que, por sinal, não contribui com listas, boas o nome de ressonância franco-britânica (embora não se e más, como comprador de livros de qualquer natureza). No topo delas, na semana em que encerrei esta pequefume muito, nos dois lados do Canal da Mancha enevoado como muitos escritórios de escritores de auto-ajuda na pesquisa (a fim de entregar o texto no prazo), o indeque precisam da marijuana para inspirar todas as babo- fectível Khaled Hosseini – autor de O Caçador de Pipas seiras que escrevem para editoras que também publicam, – tinha o seu novo livro lá em cima: A Cidade do Sol, uma na mesma, obras destinadas a apagar o vício do fumo e coisa escrita às pressas, aparentemente, para aproveitar a “onda” de Irã, Afeganistão, Iraque, Paquistão e outros outras drogas; então publicam drogas e mais drogas)... Ainda auto-ajudando todo mundo a se “auto-ajudar”, países que estão na moda literária, seja em termos de ficJack Welch – que tem nome de boxeador de Los Angeles ção ou de “reportagem”. De Bagdá, com Muito Amor, de – comparece nas listas com Paixão por Vencer, na linha Jay Kopelman e Melinda Roth e O Livreiro de Cabul, de da Lya de Perdas e Ganhos (será que ela seguiu na trilha Arne Seirstad (ao qual se seguiu o autobiográfico Eu Sou da autora de Perdas Necessárias, Judith Viorst, também o Livreiro de Cabul, de Shah Muhammad Rais, personana lista das mais vendidas?). E três sujeitos batizados com gem real de O Livreiro), apareceram seguidamente, com os nomes de Bruce Patton, William L. Ury e Roger Fish, as suas comerciais abordagens de antigas culturas que se juntaram para escrever mais um livro na lista dos 100: principalmente a jovem Arne nunca teve o interesse de Como Chegar do Sim à Negociação de Acordos sem Con- estudar a sério. São, todos, livros descartáveis, dos quais cessões, a leitura com certeza indicada, no mês em que ninguém se lembrará em mais dois ou três anos. Com presença garantida por mais tempo, Dan Brofechei a pesquisa, para o culto senador Renan Calheiros, uma vez que ele espera mais uma vez dobrar o Senado wn freqüenta as primeiras posições de vendagem, com (onde muitos já faziam “auto-ajuda” em larga escala, ven- seus códigos davincianos de terceira categoria transfor24 x Continente • DEZ 2007
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Para alívio nosso, posso dizer que encontrei uns 11 títulos de boa – e até ótima – extração literária, no meio do joio excessivo. Vamos lá: 10o lugar (no final de outubro), estava o delicado Na Praia – o mais novo romance do excelente escritor inglês Ian McEwan –, a sinalizar que nem tudo está perdido, juntamente com Homem Comum (13o), do americano Philip Roth. Lá mais adiante, na 23a posição, o eterno Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, ainda é melhor opção do que ler Calvin & Haroldo: e Foi Assim que Tudo Começou, de Bill WaNosso país é um mercado promissor para o lixo terson (15º lugar, também em fins de outubro), enquanto editorial. Ele foi identificado como ainda de baixo “ca- o prêmio Nobel do ano passado – Ohan Pamuk – perlibre” na escala maior do consumo de obras impres- manecia atraindo leitores para o seu romance Neve, não sas, mas essa situação tem a clara tendência de ir se inteiramente ruim. Figuravam, ainda, o romance de Alan revertendo à medida que o público afluente passe a Pauls – O Passado – no qual Hector Babenco baseou seu mais recente filme, duas obras ter um pouco mais de dinheiro do Nobel colombiano Gabriel para gastar com diversão de todo Garcia Márquez (Memória de tipo, embrulhada para o mercaMinhas Putas Tristes e Cem Anos do pop/rock de consumo rápido. de solidão), um clássico americaOu, mais do que rápido, veloz no moderno (O Apanhador no como uma biografia encomenCampo de Centeio, de J. D. Salindada. Elas proliferam nas vitrines ger) e o mediano Ensaio sobre a – e continuarão proliferando. As Cegueira, do Nobel português biografias, como uma praga. Só José Saramago. O selo do prêmio o Fernando Morais ameaça com da academia sueca sempre ajuda duas, e ambas deverão se juntar às a vender livros. listas das mais vendidas do próxiE as obras brasileiras de boa mo ano, sem dúvida: as biografias estirpe? Havia algumas, sim. O (autorizadas) de Antonio Carlos clássico Vidas Secas, de GraciliaMagalhães e de Paulo Coelho, que no Ramos, surgindo próximo da Fernando aceitou escrever, sem 50a posição, enquanto A Hora relutância. Sobre o primeiro, ainda vá lá, a vida do político baia- Sérgio Buarque fecha a lista com Raízes do Brasil da Estrela, de Clarice Lispector, no recentemente falecido se confunde com os anos de se situava oito casas mais adiante. E Raízes do Brasil, de chumbo e das negociatas de arena para tornar mais Sérgio Buarque de Holanda, fechava a lista, na última po“próspero” o chamado Milagre (?) brasileiro... porém, sição do conjunto dos 100. Não é muito. Na verdade, é muito pouco, se consideescrever sobre o mago da subalquimia barateada através de chavões de gosto kitsch, já é um pouco demais, rarmos que a quase totalidade dos leitores está perdendo Morais. Entretanto, pela pura lógica de mercado, o bi- tempo com “auto-ajuda” fajuta (toda ela o é), com roógrafo de Chatô já garante figurar, por semanas, em mances de segredos e falsas conspirações submedievais futuras listas como as que pesquisamos, com lente, a – postos na moda desde O Nome da Rosa, de Umberto fim encontrar um livro de qualidade, no meio dos Elite Eco – e com leituras de um tipo ainda mais indefinido e da Tropa guindados pelo poder midiático ao platô das descartável. Enfim, aqui apenas trabalhamos com uma breve vendas deste verão de 2007 (Elite da Tropa é o livro de Luis Eduardo Soares, Rodrigo Pimentel e André Batis- amostragem das preferências dos leitores, nesta mala ta no qual se baseou o cineasta José Padilha para reali- hora. Será preciso pensar sobre isso e tentar fazer algo zar o pirateado Tropa de Elite; em tempo: leia o livro de no sentido de desenvolver, estimular ou trazer de volta, talvez, o antigo “instinto” que existia nos leitores de outrás para frente, também, que ele melhora). Sei que o leitor de bom gosto já deve estar angustiado trora (num país bem mais pobre, paradoxalmente), e que com as minhas citações desta, digamos, investigação de os levava, entre as estantes mais magras do que hoje, na três meses, que exigiu muito trabalho de consulta (e em- direção dos bons livros, como no verso do prêmio Nobel balada pela mesmíssima expectativa): nenhum livro de italiano Salvatore Quasimodo: “Como a um cego/ alguma coisa me conduzia pela mão”. qualidade entre as 100 obras mais vendidas? mados em best-sellers reforçados pela mídia e pelas versões cinematográficas quase imediatas, na máquina de fazer dinheiro em que se transformou o mundo editorial, produzindo imitações de Brown – e outros – em série (O Segredo, Muito Além do Segredo etc.). Nessa linha, A Conspiração Franciscana, de John Sack, é o mais recente “sucesso”, em 17o lugar, no momento em que parei com a coleta de dados sobre as melhores perfomances editoriais brasileiras, comercialmente falando.
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LITERATURA
Deborah Brennand: uma vida de poesia O livro que reúne a obra poética da pernambucana revela um conteúdo visceralmente lírico e uma voz muito pessoal e peculiar — uma revelação Cecília Costa
Arquivo CEPE
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ivend o e descobrindo, sempre. Quando estive em Porto de Galinhas, recentemente, para participar da III Fliporto, na tarde de sábado, uma senhora, muito bela, com cabelos brancos amarrados e rosto expressivo, estava autografando seu livro Poesia Reunida, de mais de 700 páginas. Tratava-se de Deborah Brennand, a esposa do pintor e escultor Brennand. Todo mundo, aqui no Sul Maravilha – que atualmente não é tão maravilhoso e mitificado quanto no passado, tantos são os problemas que nos cercam, tão graves quanto os do Nordeste –, conhece Brennand e costuma, quase que obrigatoriamente, visitar sua casa e ateliê nos arredores do Recife, ao fazer um passeio turístico pela cidade que nos legou tantos poetas, artistas e escritores, banhada pelo Capibaribe e pelo Beberibe. Mas acho, lamentavelmente, que são poucas as pessoas, no Rio e em São Paulo – e eu me incluo entre elas, até há cerca de 10 dias –, que sabem que Deborah Brennand é
Prisão
Cruel mensagem
Vencendo muros de pedras Flameja do sol o brasão Ó real castelo em dia aceso, Ó ruivas folhas do soberano verão Ó tempo não apertes a corrente Do meu sonho já agonizante Crestada é a terra e perto Deságua um rio de sangue Na pastagem morta
Morto foi o sonho de um jardim Por um verão servil, de cruel mensagem E eu vi raízes, a vida agonizando, Na lâmina acesa de um punhal.
Do meu coração
De cavalos alheios e famintos.
Os musgos, as heras, as papoulas, Manchavam a grama seca. E lírios, junto ao sangue das rosas, Magoados eram o pasto
Réplica de uma descendente holandesa ao poeta César Leal Se cheguei ao teu país, bem mereci. Por mais que ocultes, domei perigos. No mar pesado, em leves caravelas, Minha pele feri nas lanças do teu sol. A floresta brava, as facas nativas Mataram em vão a aventura da minha raça E, do ancestral sangue, quase desfeito, Ressurge ainda, entre flores escuras, A rosa nobre, alva e secular. 26 x Continente • DEZ 2007
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poetisa, tendo criado versos fortíssimos, de luxúria e lamento, enquanto cuidava de seu maridinho, filhos e netos, e de seu Engenho São Francisco. Já que muito do que se passa no Norte e no Nordeste não ecoa, infelizmente, nas demais capitais do país. Territorialmente, somos grandes demais, talvez, o que faz com que as trocas e intercâmbios muitas vezes se percam no meio do caminho. Por isso, eu considero muito importante a iniciativa do Governo de Pernambuco de ter aceitado a idéia de professores e pesquisadores da Universidade Federal do Estado, ligados ao Grupo de Trabalho Mulher e Literatura, de reunir num livro os sete livros de poesia já publicados por Deborah Brennand, com a obra sendo um marco comemorativo de seus 80 anos. Entre as pessoas envolvidas no projeto, destaco o aluno bolsista Márcio de Oliveira, que estudou os poemas da grande poetisa pernambucana ao longo do segundo semestre de 2006 e escreveu o posfácio do livro; as professoras Luzilá Gonçalves Ferreira e Lucila Nogueira, que estão sempre a tentar quebrar o silêncio que envolve o trabalho literário das mulheres, e Flávio Chaves, presidente da Compa-
nhia Editora de Pernambuco – Cepe. O tomo, com uma capa requintada em tom sépia e uma maravilhosa imagem angelical de Deborah na juventude, dentro de um oval, pode, apesar de sua beleza gráfica, assustar um pouco, por ter ficado extremamente pesado. Mas seu conteúdo, para quem ainda não teve a oportunidade de se aproximar da visceral lírica desta senhora, dona de voz poética muito pessoal e peculiar, é uma revelação. Rubra como a seiva de nossas veias, atordoante e dourada como o sol, triste como a mais negra solidão. Nele, estão reunidos os seguintes livros: O Punhal Tingido ou O Livro das Horas de Dona Rosa de Aragão (1965), Noites de Sol ou As Viagens do Sonho (1966), O Cadeado Negro (1971), Pomar de Sombras (1995), Claridade (1996), Maçãs Negras (2001) e Letras Verdes (2002). Contém também alguns ensaios, abrindo os livros, como o de Roberto Alvim Corrêa e Ariano Suassuna. Acho que o melhor que fazemos, no caso de Deborah Brennand, uma octogenária cheia de vida, obcecada pela passagem do tempo, a prisão da alma e ventanias, é deixar sua poesia, doída e sanguínea falar. Poesia Reunida Deborah Brennand Cia Editora de Pernambuco – Cepe 712 páginas R$ 50,00
Igual à mão
Não é crime
Velhas cortinas de renda Por sonhos bordando brasões Agulhas trançaram ouro e linha Em sombras fugazes de flores Fantasmas de um morto verão.
O degredo das flores da umidade da mata para uma varanda acesa em arcos verdes
Cobrindo vidraças, embaçando a vida, Escondes desvarios, alucinações, Olhares perdidos de condessas Caminhos ocultos na distância E o vento forte, agitando o pano Com a rudeza de sua mão.
Sempre Assim, além da cerca, eu espero, O quê? Não sei. Espero. Embora só o vento chegue todo arranhado, em gemidos, caindo e já sem sentidos
É permitido. Atar os ramos em sombras? e desatá-los na colina ou varrer as cinzas de fogueiras Na clara tarde de março Ainda, ainda Mas aquele pássaro voltando querendo entrar na gaiola já do lado de fora, do lado das rosas é uma afronta às nuvens e à brisa. Assim, matá-lo não é Crime.
Jogue aos meus pés as folhas secas. DEZ 2007 • Continente x
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LITERATURA
As viagens de Marco Polo Rafael Gomes
Em seu livro mais recente, o poeta pernambucano Marco Polo descreve uma perplexidade ímpar diante de um novo velho mundo Jussara Salazar
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carne não se espanta mais/é tarde”. É assim que, em seu novo livro Sax Áspero, o poeta pernambucano Marco Polo descreve uma perplexidade ímpar diante de um novo velho mundo, lugar de dores sem dor e dos amores inversos, da cidade com seus moradores e objetos, reluzente e ao mesmo tempo dilacerada em suas contradições. Pois a paisagem das cidades desvia, desarticula o olhar, desfaz e constrói idéias em sua impermanente e mutável mobilidade, o paradoxo. “(Sei apenas que é dia. Impossível saber a hora./Sei apenas que é dia.) Impossível saber a hora”. Caminha-se todo tempo em um mesmo diferente lugar, numa
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moderna topologia do olhar e da informação, numa mesma paisagem urbana que um dia foi a futura utopia do ser humano e que agora necessita do olhar antigo e sem pressa, na agonia de seus sóis que nascem e morrem todos os dias. A cidade que indaga: alguém ainda precisa de arte, de poesia, de beleza? E responde numa velocidade impressionante com seus entulhos coloridos, artefatos de ferro e concreto, a cidade e seus projetos para um futuro que se desmancha todos os dias. Marco Polo vive na cidade do Recife, onde nasceu. Entre o mangue e a paisagem urbana, nessa cidade desconcertante e bela em suas diferenças, seu relevo, seus azuis e amarelos, suas “flexíveis linhas de frutas”. E é assim, no alto dessa montanha de concreto, lixo, águas, flores e frutas, numa incansável e visionária atitude de amor e reflexão sobre a paisagem – e aqui se trata da sua paisagem, essa do Recife, que universal e intransferível lhe toma e seduz todos os dias – que Marco Polo pensa seus escritos, como quem desventra a mãe amada em todos os seus ângulos, todas as suas idiossincrasias, sem culpa nem medo. (“Pela manhã os pássaros vestem plumagens limpas”). No final da década de 60, Pernambuco viveu seu udigrudi caboclo com bandas de música que emprestavam as guitarras do movimento tropicalista, deflagrando um movimento único na história da música pernambucana. Surgiria aí a banda Ave Sangria, muitas vezes comparada aos Rolling Stones, mais pela atitude que pela música, com suas performances, música consistente e talento. Na época, o carisma e irreverência de Marco Polo, o jovem vocalista e letrista do Ave Sangria chamava a atenção e fazia com que a banda tivesse um séqüito fiel de fãs. O Ave Sangria se apresentou pela última vez em dezembro de 1974, com o show Perfumes y Baratchos. Marco Polo seguiu e mantém-se com sua poesia de rara delicadeza e força. Agora, com Sax Áspero, reafirma uma maturidade nessa escrita de temperatura ardente e lírica que, marcada por essa atitude de contemplação, faz pensar no monge que debruça o olhar sobre as montanhas, de sol a sol: “Aprendi que música não tem pressa/que música é outra maneira de dizer silêncio”. Divide o livro em cinco partes: “a cidaSax Áspero de”, “o ofício”, “o sexo”, “a Marco Polo existência” e “o mundo”. Edições ÁguaForte Em alguns momendo Brasil tos os poemas adquirem 96 páginas os tons de um êxtase da R$ 20,00 existência, na certeza da epifania do fim inexo-
rável, mas que nesse caso transcende e renova-se em atitude de vida e poesia: “escavar na palavra/o abismo”, ou ainda quando pensa a forma e a concretude das coisas que passam em imagens transitórias e de beleza evanescente como nos pássaros coloridos em “Variações sobre a palavra Carla”: “Carla é uma palavra clara/ muro pintado à cal/ janela sobre as águas/ pátio florido onde passeiam pássaros/ breves”. Quando propõe as delicadezas avessas de um sax áspero e silencioso, caminha como se fosse o solitário menestrel urbano que descobre a dureza da pedra, a certeza do sol: “poesia/ não é mais coisa bucólica/ mas arame e silêncio”. Desfaz ainda qualquer desejo de perfeição e rigor métrico, quando reflete: “Todo texto definitivo/ é ainda algo torto”, e perambula pelas ruas de uma cidadela de mortos :“Teve a vida que não pediu a Deus./ Devolveu”. Às vezes o poema, sinuoso, desenha imagens de beleza cotidiana que explodem sonoras sobre o campo de uma quase impossibilidade tátil:“Este pássaro, ou melhor, esta sombra/ de pássaro que passa sobre a praça/ como que risca o olho em diagonal/ tal como um grito trinca o vidro do ouvido”. Por fim, vale conferir a poesia de Marco Polo, um raro momento de lirismo e força na paisagem da poesia contemporânea brasileira. No poema “O amigo morto”, a leveza das divagações sobre a natureza daquilo que um poeta definiu como seu sendo um “sentimento do mundo”: “Lassidão no corpo:/ todo amigo é morto.// O amigo só toma/ a condição de amigo/ quando morto.// O mar contempla a praia/ calculativo, absorto:/ quantos luares preciso/ para inundar a praia?/ (e o morto?).// Bata agora a foto/ grafia do meu rosto:/ nas linhas o mar, a praia/ o amigo, a casinha de lápis.// Combustão do desconforto.// E eu me recolha/ como o repolho/ esconde a folha/ dentro do molho”. Marco Polo Guimarães nasceu no Recife. É jornalista, poeta e compositor. Publicou os livros: Vôo Subterrâneo (poesia, Edições Bagaço, Recife, 1986), Narrativas (contos, Edições Luz da Cidade, Recife, 1992), Memorial (memórias, Edições Bagaço, Recife, 1996), Brilho (poesia, Editora Comunicart, Recife, 1996), Palavra Clara (poesia, Edições Bagaço, Recife, 1998), A Superfície do Silêncio (poesia, Edições Bagaço, Recife, 2002), Caligrafias (poesia, Edições Bagaço, Recife, 2003) e Sax Áspero (Edições ÁguaForte do Brasil, Curitiba, 2007). Também cantor e compositor, gravou o disco Ave Sangria e participou das coletâneas Asas da América – Frevo I e II. Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Teca Calazans e Zezé Motta, entre outros. Atualmente é diretor da Revista Continente Multicultural. DEZ 2007 • Continente x
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LITERATURA
Zenival
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O poeta Audálio Alves, palmilhando ora os caminhos da lírica, ora os permeados pelo fôlego épico, merece ter sua obra lembrada Ângelo Monteiro
entro da concepção de García Lorca, em seu ensaio A Imagem Poética em Dom Luís de Gôngora, de que “a metáfora une dois mundos antagônicos por meio de um salto eqüestre da imaginação”, Audálio Alves fez do processo metafórico a condição fundamental de sua poética, permitindo-lhe, em função de seu poder quase sempre enigmático, ao se alimentar desse antagonismo, a passagem do plano da realidade ao plano do mito. Por isso sua épica — se assim podemos chamar ao canto celebratório e evocativo, mais próprio da ode pindárica, aos heróis do seu imaginário — supera o narrativo e participa, como em Castro Alves, no romantismo brasileiro, e García Lorca, no modernismo espanhol — duas de suas grandes influências — tanto do lírico como do dramático. Mesmo porque aquele distanciamento que tanto se requer do épico se vê suplantado por um caráter dialógico que leva em conta a relação dinâmica entre vários âmbitos da realidade, como postula o esteta espanhol Alfonso López Quintás. O grande Joaquim Cardozo, em seu prefácio ao Canto da Matéria Viva, um dos melhores livros de Audálio Alves, se refere a um “versolibrismo, às vezes extremamente vazado, sugerindo a presença de ante e pós-palavras ocultas” e também nos fala de um “estranho diálogo ad una voce” onde nós mergulhamos justamente em áreas de silêncio potencializadas por essa propriedade dialógica que vem a ser a marca distintiva de sua escrita poética. Além disso, não se lhe pode negar, quer como lírico, quer como épico, uma profunda filiação ibérica, de caráter barroco, não só no domínio métrico, mas na temática vincada pelo topos da fugacidade das coisas versus tragicidade na oposição entre espírito e matéria. Essa capacidade dialógica da poética de Audálio Alves encontra respaldo não só em filósofos da arte como Heidegger e Alfonso Quintás, porém em outras áreas de conhecimento que apontam para a crise de uma concepção de realidade e mundo sob a forma de relação sujeito-objeto. Com efeito dois biólogos chilenos contemporâneos, Humberto Maturana e Francisco Varela, em Árvore do Conhecimento, opõem-se, por igual, tanto ao representacionismo — para qual o co-
Audálio Alves: uma épica esquecida 30 x Continente • DEZ 2007
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nhecimento é puro reflexo do mundo — quanto ao solipsismo — para o qual só existe a realidade de cada um. Afirmam, por isso, numa visão superadora, que “estamos continuamente imersos nessa circular de uma inter-relação a outra, cujos resultados dependem da história. Todo fazer leva a um novo fazer: é o círculo cognitivo que caracteriza o nosso ser, num processo cuja realização está imersa no modo de ser autônomo do ser vivo”. O primeiro dos seus livros, marcado pelo predomínio do épico e, nele, por essa condição dialógica, é o Princípio Áspero de uma Canção sem Terra, em que ele trata da questão da terra, — até hoje sem solução à vista, — que começa belissimamente pelo “Oficio da Esperança”, de que citamos esta estrofe: “Frente ao mar e frente aos montes, / — oito montes que são ondas — / serenas que o mar deixou — / me ocultei. Assim oculto / tiro tinta de meu sangue / e palavras de meu nome: / sentei-me, mas, ao sentar-me, / junto a mim sentou-se a fome”. A preocupação social da totalidade do livro está em perfeito desacordo, felizmente, com o tratamento demagógico muito comum a essa temática na época. E esse desacordo se torna mais evidente na distância entre a realidade, assinalada pela necessidade e pela carência, e a liberdade e a plenitude da linguagem poética, como nestes versos da quarta parte do livro, “A Camponesa”: “O vento girava ao longe / com vozes férreas de arado / enguiçando a canta-vento. / Entre raízes e rochas / a camponesa imagina: / — era verde e vasto o campo, / bem assim os verdes eram / uma cor sem dimensão, / àquele tempo em que as terras / eram nossas, como nossas / é sempre a palma da mão”. O Princípio Áspero de uma Canção sem Terra é, do começo ao fim, inclusive em seus poemas dialogais, como a “Queda das Laranjas”, uma celebração da vida a despeito da morte, e também uma glorificação do mito face às insuficiências da própria realidade. Nietzsche já dizia que “o mito é uma imagem abreviada do mundo”. E Audálio Alves sugere essa realidade nestes versos de “A Busca da Terra”: “Ó homens rijos / — barro que caminha / na solidão — / aluvião buscais / (de água e terra) como a vinha. / Homens sem terra. / Terra sem perfil. / Raízes tenham nela / esses que semeiam / as mansas tardes de abril”. Mas é no “Romanceiro do Canto Soberano” que ele alcança o apogeu nessa forma de epicidade que, transcendendo o relato, possui o condão de eternizar suas imagens entre o fluxo lírico e o impulso dramático, como em “Romance de Gan-
gazuma”: “Tigre sem garras, mas na fúria tigre. / Faca sem gume, mas no golpe faca. / Águia sem asas, mas no vôo águia. / Fera domada com a visão de lírios, / leão laçado, cascavel de algemas, / assim chegaste ao ar americano, / ao chão de meu País, à tua arena.” Da mesma forma em “Evocação fúnebre ao general Abreu Lima”: “Dize-me o que te prende sob a terra / entre o pó do regresso, apaixonado. / Do boêmio, dize-me, desde Londres / ao cemitério inglês, como exilado. / Dize-me que te digo: ao chão avanças: / — que surda voz tão funda te detém? / Dize-me que te digo, solitário: / tão perto o mar, tão raso o prisioneiro. / Ó mar venezuelano, ao brasileiro / pede de volta o polvo a seu aquário. / Dize-me que te digo o que não dizes: / a inscrição maior de teu silêncio: / — exílio em Londres, / glória com Bolívar, / e morte e esquecimento / no Recife”. Expressão de uma épica sem o distanciamento necessário da épica tradicional, e atravessada por um diálogo a que não escapam os vivos e os mortos, nem, muito menos, a “matéria viva” das coisas — em que o herói é o derrotado e o mártir, e não o senhor inconteste das adversidades —, tal poética fez da lírica o substrato de um “canto soberano”, justamente por transcender as limitações da existência e, com elas, as que pudessem atingir o estatuto da linguagem. Além do Princípio Áspero de uma Canção sem Terra e do Romanceiro do Canto Soberano, Audálio Alves escreveu muitos outros livros, palmilhando ora os caminhos da lírica, ora os permeados pelo fôlego épico. Porém precisamente porque viveu na contínua ânsia dessa matéria viva, o lírico nele nunca está isolado e, sim, entremesclado seja por um acento dramático, seja por um acento épico: e seu alto nome de poeta — ainda que silenciado pela barbárie dominante — consegue interpelar nossa memória, mesmo quando caprichosa, em versos como estes: “Quando eu morrer, / vasculhem / o íntimo das pedras, / revistem / o interior das horas / e não esqueçam: / ponham de prontidão / o exército da vida”. DEZ 2007 • Continente x
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poesia>> Alberto da Cunha Melo Natal
Apresentação do Natal
“As raposas têm as suas covas, e as aves do céu os seus ninhos; porém o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” (Mateus, cap. 8-20)
Anunciado desde a época das grandes tribos, das roupagens amplas e soltas do deserto e antes do Cântico dos Cânticos.
Longe do Olimpo, um deus nascia roxo, a gritar, como os humanos, um deus sem flâmulas nascia, para os perdidos e os insanos; nada tinha do deus heleno o deus menino sobre o feno, era um deusinho de brinquedo no quintal do Império Romano, era o deus do povo com medo, um deus sem sorte, palestino, e sem teto, desde menino.
Visto sob a forma de pombo no alto cajueiro do pátio ocidental, e sobre as tábuas extraviadas dos mandamentos.
SOBRE O AUTOR Alberto da Cunha Melo foi jornalista, sociólogo e poeta. Autor de 13 livros de poemas, entre os quais Yacala, Dois Caminhos e Uma Oração, e O Cão de Olhos Amarelos.
Pressentido no levantar das lonas, para as litanias dos salmos nos acampamentos e na cruz loura da manhã. Arauta se propaga a voz alta na túnica dos ventos: o Primogênito do Gólgota será coroado e despido. Mas, não agora que devemos leve cobri-lo, e coroá-lo só de avelãs. Hoje somente basta que seja uma criança.
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Romance histórico Foto: Divulgação
Em seu novo livro, Paulo Fernando Craveiro desenvolve ao máximo o seu dom de construir metáforas Luiz Carlos Monteiro
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m assassinato na Confeitaria Glória, no Recife, no ano de 1930, é o motivo deflagrador da trama do 11o livro de Paulo Fernando Craveiro, Boa Terra de Ódios. Apostando no romance histórico, Craveiro retoma o momento preciso da morte do político paraibano João Pessoa. E investe também nos efeitos psíquicos que este evento vai causar nas pessoas que o presenciaram, notadamente na personagem Bianca e em seus pais Dhole e Damiana. A partir daí, do susto e do desequilíbrio provocados em Bianca e nos outros, o autor passa a fazer valer toda a sua verve de ficcionista, trazendo a lume uma gama de personagens inquietos e tristes, que transpiram vida e movimento, angústia e melancolia veladas. O escritor trata de repetir parcialmente o acontecido no futuro, no mesmo local, com novos e outros participantes, como a amante de Dhole, a ex-prostituta polonesa Zyna. Dhole considera o atentado de Damiana a Zyna, como “um plágio malsucedido” da tragédia que vitimou João Pessoa. A polaca Zyna enfeitiça o burguês Dhole, “que jamais conhecera mulher tão branca assim. Mulher nua de olhos verdes, cabelos avermelhados, rosto duro, boca bem delineada, mãos longas e magras, carnes transparentes. Vista pelo outro lado do corpo, está sempre iluminada por um foco”. Bianca deseja ardentemente sair do país, conhecer lugares como Paris e Berlim e estudar artes plásticas. Ela concretizou o sonho de viajar, e chegou a trabalhar como modelo vivo para pintores. O seu intuito principal, e algo secreto, era o de esquecer a
tarde de 26 de julho de 1930, aquele sábado em que João Dantas matou João Pessoa, e que mudou consideravelmente a história da sua vida e o andamento da política brasileira, com o estourar, dias depois, da Revolução de 30. Bianca queria afastar-se também da decadência familiar, das visitas sorrateiras de sua mãe Damiana a Romeu Acôntio, irmão de seu pai Dhole, que por sua vez freqüentava bordéis. Ela corre em busca do alemão Paulus, um dos personagens mais fortes e estranhos do romance. Viverá com Paulus um amor que vai realizar-se apenas em Paris. Ele veio ao Brasil com a missão de “provar que o nacional socialismo conta com o apoio de pastores luteranos no Brasil”. Sua espionagem nazista fracassa com sua morte, quando viajava num avião que teria sido sabotado. Paulo Fernando Craveiro, neste e em outros livros, desenvolve ao máximo o seu dom de construir metáforas. A sua ficção é densamente elaborada, com a lógica implacável de quem não quer reforçar o desmedido das ocorrências e situações Boa Terra de Ódios vistas e vivenciadas. Ele Paulo Fernando alia no seu texto preciCraveiro são e ceticismo, além Editora Nossa Livraria de um olhar pictórico 334 páginas que busca sempre nas R$ 40,00 coisas o seu colorido e a sua obscuridade. Na visão de pessoas, descobre o seu sentido humano e a sua fragilidade essencial, as misérias e mesquinharias que as perfazem, sem deixar também de reconhecer e mapear os instantes em que os seres se fazem fortes e solidários. DEZ 2007 • Continente x
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livros
MÚSICA
A insustentável dureza familiar
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ma série de conflitos familiares determina a tônica de boa parte das histórias do novo livro de Cyl Gallindo. São 12 contos sob o título geral De como Descobri que Não Existo, traduzidos anteriormente para o espanhol por Jorge Ariel Madrazo e publicados pela Editorial Francachela, de Buenos Aires. São experiências do microcosmo familiar que envolvem relações entre mãe e filho, pai e filha e outros parentes, em termos de sexualidade e religiosidade, de experiências cotidianas da convivência que geram muitas vezes desentendimentos irremediáveis. Em “Assim na Terra...”, um dos textos que traduzem em boa medida certos núcleos familiares
com a dureza, a exclusão De como Descobri e a repressão que os conque não Existo Existo, Cyl Gallindo figuram e caracterizam, o CEPE protagonista é “acusado 148 páginas R$ 20, 00 de não falar, de não se comunicar com ninguém, de falar sozinho". No entanto, ele se comunica com os seres mágicos e imaginários que originam a literatura e a criação. Alguns destes contos têm um desfecho inesperado, como o que intitula o livro, “De como Descobri que não Existo”. Ele se passa num clima de mistério e estranheza, pois não se sabe se o protagonista está vivo ou morto, pelo fato de entrar em casa, observar o que nela se passa, falar com sua mulher sem obter resposta, até que alguém telefona para uma das vizinhas, informando que ele teve um colapso no bar em que estava e morreu. (Luiz Carlos Monteiro)
> Resgate da memória familiar
> Jóia rara em embalagem ruim
> De grão em grão, > Miscelânea nasce uma escritora cultural sintética
“ Para mim, a linguagem é fundamental, pois todas as histórias já foram contadas. O que as diferencia é a maneira de contar”. Assim, Luiz Ruffato costuma definir sua relação com a literatura e seu ofício. Em De mim já nem se lembra, o escritor, mineiro de Cataguases, abre parêntese para uma história bem particular. Ao resgatar cartas que seu irmão Célio escreveu para a mãe entre 1971 e 1978, ele expõe a intimidade familiar para nos remeter ao universo do operariado emergente da região do ABC paulista, boa parte composta por migrantes. A história, cujo desfecho trágico deixou “uma chaga nunca mais cicatrizada”, é de uma simplicidade comovente, apesar do desconforto provocado pelo projeto gráfico da obra. (Ricardo Melo)
Uma editora usa todas as técnicas para seduzir o leitor. Capa sob encomenda, orelha no capricho, contracapa, algum autor conhecido para tecer comentários. No caso de Olhos Baixos, da estreante Maria Helena Nascimento, a editora Guarda-Chuva conseguiu uma orelha de livro que não diz muita coisa, e uma apresentação inusitada do global autor de novelas Gilberto Braga. Diz que Maria Helena surgiu em sua vida em 1994, “já era inteligente, sensível, bem-humorada, uma companheira de trabalho inestimável, com quem continuei a fazer novelas”. Francamente. Cabe ao leitor deixar de lado o péssimo embrulho, e mergulhar na prosa delicada e instigante de Maria Helena, que tem voz própria e sabe contar uma história. O livro é uma pequena jóia.
O último livro de Patrícia Tenório – Grãos – anuncia o nascimento de uma escritora. Desde sua primeira tentativa literária (O Major – Eterno É o Espírito), passando por As Joaninhas Não Mentem, percebe-se uma autora assumindo, aos poucos, o domínio da escrita, saltando dos exercícios de oficinas literárias para a construção de um universo particular, erguido sobre uma linguagem que se faz própria. Os contos e poemas deste novo volume, se ainda deixam entrever sinais do aprendizado (informações supérfluas e deslocadas, como aquela “Uma Cecília sem fé, eu me dizia”, do conto “Intervalo”) já ostentam belos achados, como “Ele se deitou nos meus pensamentos” (do conto “O”), prenunciando a artista madura. (HF)
De mim já nem se lembra Luiz Ruffato Moderna 104 páginas R$ 28,80
Olhos Baixos Maria Helena Nascimento Editora Guarda-Chuva 154 páginas R$ 24,00
Grãos Patrícia Tenório Calibã 124 páginas R$ 20,00
O jornalista Daniel Piza, colaborador da Continente, reúne, em livro, textos de sua autoria, publicados entre 1996 e 2006 na coluna dominical "Sinopse", atualmente nas páginas de O Estado de S.Paulo que tratam de literatura, política, cinema, comportamento e cujo conteúdo forma um bom panorama do que acontece no Brasil e no mundo. São escritos muitos deles em razão da repercussão que tiveram. Profissional competente e bem articulado, Piza diz ter feito o livro “com a idéia de registrar e analisar esse tempo passado, como se fizesse ‘história a quente’ na tentativa de esboçar contextos e perspectivas para os fatos da semana”. Para ser lido como num bar au vin, onde a gente se senta para desfrutar cada prato com o devido vinho. (Luiz Arrais) Contemporâneo de Mim Daniel Piza Bertrand Brasil 476 páginas R$ 59,00
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O sombrio desenrolar de uma relação
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ara comemorar seus 10 anos de fundação, a editora Cosac Naify publica a novela A Fera na Selva, do norte-americano naturalizado inglês Henry James (foto). O livro faz parte da Coleção Particular, da qual já foram publicados Primeiro Amor, de Samuel Beckett, monólogo de um personagem que prefere os mortos aos vivos (“cadáveres ainda não completamente no ponto”), e Bartebly, o Escrivão, de Herman Melville, novela considerada precursora do universo kafkiano. Como nas duas edições anteriores, além do alto teor literário, o cuidado gráfico chama a atenção. Na novela de
James a capa se desdobra, revelando a foto de um casal, representando os dois personagens da estória, May Bartram e John Marcher. Com seu costumeiro estilo de frases longas e quase pomposas, o escritor vai escarafunchando cruelmente as almas de uma mulher que se dedica integralmente a um homem, sem esperar retorno, e a de um homem que se acostumou a só sentir-se vivo a partir do interesse da mulher, um pouco como o senhor que precisa do escravo para se saber senhor. O final, como seria de esperar, deixa uma forte impressão desoladora: o lamento de quem só percebe que perdeu tudo depois que o jogo há muito acabou. Acompanhando o desenrolar sombrio da estória, as páginas do livro vão escurecendo lentamente até o fim. (Marco Polo)
> Separação de pais e filhos
> A inteligência como personagem
> Três décadas de poesia visual
> Poemas líricos e bem humorados
O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar é um pai que vive na pele a contemporaneidade. Separado da mulher, cria o filho enquanto ela cria a filha do casal. Seu novo livro é um olhar poético sobre essa realidade: duas casas, padrastos e madrastas, fins de semana alternados, uma situação de fragmentação em que, mais que a antiga autoridade dos pais sobre os filhos, há uma espécie de “igualdade” meio desnorteada em que o diálogo é a única ferramenta de relacionamento eficaz. É impressionante a capacidade de ternura com que o poeta trata uma situação que para tantos é traumatizante. Pelos poemas é de se supor que seus filhos, apesar das separações, vão crescer como seres humanos completos.
Ao ler esta série de ensaios do crítico literário pernambucano João Alexandre Barbosa, a respeito do poeta Paul Valéry, duas coisas saltam à vista: o fascínio que o francês exerceu sobre o crítico, e a semelhança de temperamento entre Valéry e o poeta João Cabral de Melo Neto, aliás, outro ponto focal no trabalho do ensaísta. O rigor na construção dos poemas e a fixação no racionalismo são apenas dois pontos de contato entre os dois poetas. João Alexandre Barbosa, entretanto, passa por cima disso para ressaltar principalmente o Valéry criador do personagem Monsieur Teste, a inteligência pura em pessoa, e seu projeto inconcluso de criar uma espécie de Comédia Intelectual que rivalizasse com as Comédias de Balzac e Dante.
Participantes de eventos nacionais e internacionais, como a Exposição Documental da Poesia Visual/ Experimental Brasileira, na III Bienal Internacional de Poesia Visual y Experimental del México, em 1990, o pernambucano Silvio Hansen reuniu três décadas de sua produção neste livro, editado pela Cepe. Ele integra uma tradição de poesia experimental em Pernambuco, que já tem entre seus soldados nomes como Paulo Bruscky, Pedro Xisto, Arnaldo Tobias, César Leal, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira e Vicente do Rego Monteiro, entre muitos outros. São poemas visuais e experimentais em técnicas diversas: fotos, desenhos, grafismos e montagens que mostram a diversidade de recursos do artista.
O crítico (é autor de ótimos ensaios sobre literatura), tradutor (sempre grandemente elogiado) e poeta paulista José Paulo Paes, falecido em 1998, é o autor desta coletânea de poemas em que exercita seu costumeiro humor, mesclando ironia e crítica, mas se revelando, às vezes, puramente lírico, em poemas curtos de versos curtos. Como em “Hino ao Sono”: “sem a pequena morte/ de toda noite/ como sobreviver à vida/ de cada dia?” Ou, em “Lapsus Linguae do Candidato”: “sou homem de ação/ não de palavra”. É um refrigério para a mente do leitor defrontar-se com uma poesia tão despida de retórica quanto de pompa, quanto esta. Mostra que ser sério é muito mais do que posar de sisudo. O livro traz também imagens e fotos.
Meu Filho, Minha Filha Fabrício Carpinejar Bretrand Brasil 144 páginas R$ 28,00
A Comédia Intelectual de Paul Valery João Alexandre Barbosa Iluminuras 160 páginas R$ 35,00
A Fera na Selva Henry James Cosac Naify 96 páginas R$ 32,00
Poesia Visual Silvio Hansen Cepe 178 páginas R$ 50,00
Em Tempo Escuro, A Palavra (A)clara José Paulo Paes Global 96 páginas R$ 21,00
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Lenice Gomes em montagem sobre ilustração de André Neves
A Sherazade das crianças
De como a professora Lenice Gomes se tornou uma das mais importantes autoras infantis do Brasil Samarone Lima
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uitos escritores renomados, donos de obras poderosas e imaginosas, dificilmente escutarão, após a leitura de suas obras, frases como estas, ditas por crianças: “Fica aqui para sempre.” Ou: “Vou pedir ao meu pai para levar você pra casa.” Lenice Gomes, uma pernambucana pequenininha, olhos ávidos, generosa nos gestos e nas palavras, já escutou coisas assim, comoventes, em suas andanças pelo país. Há quase 30 anos, ela escreve e conta histórias para os miúdos, e chegou ao tempo da colheita. Com 16 livros publicados, por quatro editoras diferentes, ela divide o tempo entre oficinas, cursos, congressos, bienais, numa vida tão cheia de convites, que nem teve tempo de descobrir que é uma das principais autoras do disputado mercado da literatura infantil e infanto-juvenil no Brasil. 36 x Continente • DEZ 2007
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Modestíssima, pergunta, no início da longa conversa, em uma livraria chique do Recife, se vai sair uma notinha sobre seu trabalho na Continente Multicultural. Não sabe que nos computadores da livraria, nove de seus livros estão catalogados para venda, com sete disponíveis para levar na hora. Um deles já vendeu mais de 60 mil exemplares. Dois receberam o selo de “altamente recomendável”, pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Em 2003, foi finalista do Prêmio Jabuti, o mais importante do Brasil. Poucos autores nacionais têm estas alegrias, mas ela não está muito preocupada com o glamour do mercado editorial. Seus quinhentos são outros. Ela busca o prazer de seduzir, de encantar, como uma Sherazade reinventada, que não conta para escapar da morte, mas para dar vida aos outros. No caso, os que começam a conhecer a Literatura, os que primeiro escutam, para depois buscar. Primeiro se encantam pela voz dos outros, para depois buscar a própria voz. Essa prosa é longa e não começou na Escola Polivalente, em Abreu e Lima, onde começou a trabalhar, como professora de História, no início da década de 80. Começou na infância, quando o pai, um militar aposentado precocemente, juntava a imensa família e botava o pé na estrada, buscando uma nova cidade para morar. Um homem que admirava Jackson do Pandeiro, Jacinto Silva, sabia histórias de cordel e outras tantas coisas, só pode mesmo ajudar a povoar o mundo de histórias. Começou também com a mãe, que contava histórias, dizia versos que até hoje ela repete, na amorosa recordação. Foram muitas cidades e causos. Quando a família se distraía, a menina subia em alguma árvore, com algum livro, e ficava lendo e imaginando histórias. “Ali em cima eu era a rainha, bruxa, tudo. Mas eu nunca pensei em escrever”, diz. A escritora pode ter nascido do espírito andarilho do pai, ou influenciada pelo avô, que saía a cavalo, contava histórias, dançava reisado. “Todo esse conjunto foi me cativando, me sensibilizando. Eu trouxe para os livros até os versos da minha mãe.” Mas algum dia incerto, em 1980, ela resolveu criar o “Recreio das Palavras”. Durante 30 minutos, pelo microfone mesmo, mergulhava no universo das adivinhações, cantigas, poesia, isso tudo. A escritora começava a se bulir. Com os alunos, redescobriu Ascenso Ferreira, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Joaquim Cardozo e tantos outros. Pouco depois, a escola ofereceu para que ela tomasse conta daquele espaço incerto em tantas escolas, que é a biblioteca. Começou a festa. Ela foi organizando grupos de leitura, pegando gosto pelas palavras, histórias. Alguém chegou e comentou: “Puxa, Lenice, tu és uma andarilha da palavra.” Uma confissão da autora: “Eu já era boa de contar histórias.” O barro da escritora começou a ficar moldado, e entrou no forno quando ela foi morar em Olinda e encontrou, na Escola Estadual Coração de Jesus, espaço para aprofundar esse amor DEZ 2007 • Continente x
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pelas palavras. Desenvolveu e ampliou o trabalho, até que em 1993 lançou Viva Eu, Viva Tu, Viva o Rabo do Tatu, pela Editora Bagaço. “Comecei a ir para escolas, feiras, trocar idéias com as crianças. Fui pegando gosto, pegando gosto, mas ainda era muito tímida.”Depois de um silêncio, ela admite. “Hoje, já fiquei corajosa.” Pela Bagaço, vieram outros três livros, ainda nos anos 90. Depois, deu um tempo e foi fazer uma especialização. Em literatura infanto-juvenil, claro. A monografia foi sobre “A arte de contar histórias”. Enquanto estudava, escrevia mais histórias. Ao final do curso, mandou três livros para as editoras, que não deram nem sinal de vida. A Editora Paulinas avisou que queria publicar todos os três. Quando saíram, com ilustradores do primeiro time, belas edições, ela comentou: “Meu Deus, sou autora mesmo, alguém está acreditando em mim...”. Começaram os congressos, bienais, seminários, trocas. Começou a conhecer, de perto, os autores que admirava, que tinha lido tantas vezes para os alunos. Começou a conhecer e ser conhecida. O Tempo Perguntou pro Tempo e Quando Eu Digo Digo Digo Digo ganharam o selo de “acervo básico”, da Fundação Nacional do Livro Infanto-juvenil. Isso quer dizer que toda biblioteca decente, para esta faixa etária, deve ter Lenice por perto.
“Começaram a me dizer: ‘eu quero ter um livro com você’”, lembra. A Difusão Cultural do Livro também resolveu publicar suas histórias. Foi a vez das belíssimas edições de A Mãe d’Água e Pererêêê Pororóóó, lançados em 2005. A última fase de Lenice é a que todo autor sonha – o momento raro em que as editoras começam a cobiçar seu trabalho. A editora Cortez já vinha paquerando com as histórias da pernambucana, até que saiu O que É? O que É? e A Alegria Aquece as Horas. Pela Paulinas, publicou Mafuá do Magafamágico. Mesmo com essa vida de autora conhecida, ela não arreda o pé da grande paixão, que é a de contar histórias, e ajudar a formar novos contadores de histórias. Está à frente de um projeto, em Pesqueira, junto com a Secretaria de Educação, formando uma turma 26 professores. “Tem outras pessoas que acreditam na força das palavras. O contador é um doador. É como dar um abraço, trocar”, diz. Depois de um breve silêncio, ela diz que a palavra é tudo, que pode seduzir, encantar. Lembra que escutou de uma contadora de histórias que não era mais a mesma, depois que entrou neste mundo. Três outras editoras agora querem os livros de Lenice, mas ela está sem tempo. Também pudera.
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Luzilá Gonçalves Ferreira
Eckhout, Mario e o Paraíso Terrestre
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barroco francês. O leitor do filósofo Montaigne comprearlos Alberto Asfora, um de nossos mais atenende o significado da antropofagia, para esses seres que tos e competentes diplomatas, me envia mendocumenta : e coloca um pé, dentro do cesto que a índia sagem eletrônica: o quadro intitulado Cocos, carrega, com a naturalidade de quem transporta frutos. de Albert Eckhout, estava para ser leiloado em Habituado aos frutos europeus, pequenos, de conLondres. Interessava-me? torno quase regular, cerejas, ameixas, amoras, moranAí lembrei as naturezas-mortas que o artista fixou gos, Eckhout se extasia com a forma de um ingá, de um para a posteridade, impressionado com a forma, cores e abacaxi, que cronistas e poetas coloniais celebraram; tamanho de nossas frutas. O deslumbramento do pintor estranha a aparência e tamanho de uma jaca E, a propóse justificava e confirmava o mito do Paraíso terrestre, sito de jacas, conta Noel Nutels que, ao desembarcar, em que teólogos do tempo acreditavam estar no Brasil. E o escala no porto do Recife, viu um menino que corria, fez de modo a que coabitassem, na mesma paisagem, acossado por um bando de molecotes que queriam lhe personagens e animais selvagens, como o escrevera o tomar aquilo que Nutels julgou ser um animal exótico. profeta Isaías, num livro que o protestante Echkout cerDe repente o menino cai, a jaca se abre, os moleques se tamente conhecia – serpentes ao lado de inocentes preás, lançam sobre ela, comem avidamente. Nutels se horrocomo num verdadeiro Éden; o guerreiro índio, pronto riza: como aqueles brasileirinhos podiam devorar um para a guerra, coabitando pacificamente com animais animal assim, cru, e em alguns instantes? peçonhentos como a cobra e a aranha caranguejeira, aos Não foi só Eckhout que se deixou impressionar por seus pés. As leituras que o haviam formado contribuíesses frutos tropicais. Murilo Mendes, em carta a Edson ram para aumentar a visão das coisas, poetizar, de algum Nery, lembra o conselho que Mario de Andrade lhe dera modo, a realidade que lhe ofereciam os olhos. Era aqui, quando soubera de sua viasim, em terras do Novo Reprodução gem ao Recife: beber água Mundo, que o jardim do de coco em Boa Viagem, Éden existira, aqui estava um néctar dos deuses. Alio Paraíso Perdido, diziam ás, em O Turista Aprendiz, os livros de então, viajanMário nos dá hedonísticas tes, cronistas, missionários, lições sobre como desfrutar impressionados com a harde nossas frutas nordestimonia das paisagens e o nas, e confessa que chegava estado de inocência em que a saborear de 20 a 40 cajus viviam seus habitantes, os de uma vez. bons e inocentes selvagens. Não sei se já houve o Echkout olha e recorleilão, se já existiu comda. Árvores, plantas, flores, prador para o quadro de seres humanos se apresenEckhout. Mas respondi a tam diante de seus olhos, Carlos Alberto que não transfiguram-se ante a compraria cocos tão velembrança das leituras paslhos: tantos séculos depois, sadas. Pinta com as mãos e já não conteriam mais o com o coração. Reproduz néctar dos deuses de que as flores, as plantas que lera falara Mario. na poesia de Saint Amant, Albert Eckhout, Natureza morta com cocos DEZ 2007 • Continente x
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A ousadia funcional de Zezito Goiana Profissional pernambucano ganha sala na 7ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo Marco Polo No alto, o Summerville Beach Resort, em Muro Alto. Ao lado, o Hotel Atlante Plaza, em Boa Viagem
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LITERATURA
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á faz algum tempo que o arquiteto José Goiana Leal, mais conhecido como Zezito Goiana, vem contribuindo para a mudança da paisagem urbana de Pernambuco, graças às suas criações, não apenas em casas e galerias, mas também em edifícios, shoppings e, principalmente, em hotéis cinco estrelas. Construções pioneiras – e que se tornaram verdadeiros modelos –, como o Mar Hotel, o Sheraton (hoje Dorisol), o Holliday Inn e o Atlante Plaza (este, pousada costumeira de personalidades de destaque em visita ao Estado, desde o cantor Lenine ao presidente da República, Luiz Inácio “Lula” da Silva). Com uma grande marquise – uma das marcas dos hotéis de Goiana –, o prédio do Atlante, todo em vidro azul, com três elevadores externos também no mesmo material, jardins laterais suspensos no interior do hall e piscina na cobertura, impõe-se pela elegância vistosa. Outro capítulo a destacar no currículo de Goiana são os grandes resorts como o Summerville e o Beach Class, ambos na praia de Muro Alto, em Ipojuca. No Summerville, particularmente, o jogo harmônico entre o azul do céu, o verde dos coqueiros, o azul dos telhados dos bangalôs, o verde da grama e o azul da imensa piscina que corta todo o terreno, como um lago, cria um efeito hipnótico que chega a influir no estado de espírito dos que chegam ao local. DEZ 2007 • Continente x
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No alto, o Enotel Resort & Spa, em Porto de Galinhas. Acima, vista aérea de maquete para complexo hospitalar
Completando 30 anos de prancheta, Zezito Goiana vê seu talento reconhecido ao ser convidado pelo comitê curatorial da 7a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, formado por Arnaldo Martino, Gilberto Belleza e José Magalhães Jr., para ocupar uma sala especial naquele evento, mostrando seus trabalhos. A Bienal, que tem como tema este ano Arquitetura – O Público e o Privado, acontece no Parque do Ibirapuera, de 10 de novembro a 16 de dezembro, reunindo profissionais de todo o mundo. Nascido em 1944, na cidade de Floresta, Pernambuco, Zezito Goiana teve, desde o início, uma carreira ligada a grandes nomes da arquitetura nacional. Ainda estudante da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, nos anos 60, foi estagiário no escritório de Acácio Gil Borsoi, um dos introdutores do modernismo na arquitetura do Estado. Recém-formado, trabalhou com Sergio Bernardes, no Rio de Janeiro, contribuindo com projetos para Brasília e convivendo com Lúcio Costa, Roberto Burle Marx e José Zanini Caldas. No início da década de 70 foi para Paris, fazer um curso de Urbanismo, tendo ganho concursos como o da construção do Centro Administrativo de Besançon, concorrendo com 11 arquitetos franceses. Ao contrário destes, que apresentaram projetos padrões, Goiana inovou. Ao perceber que a cidade era toda formada por prédios históricos, incluindo ruínas do
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Casa de praia, em Toquinho. Ao lado, o Sheraton Petribu, em Piedade
tempo do império romano, elaborou um prédio suspenso por pilotis, de modo a abrir um vasto espaço embaixo e redesenhar o lago ali existente; lago este que, no projeto dos outros concorrentes, seria, pura e simplesmente, aterrado. Propôs, ainda, um prédio todo recoberto de vidro espelhado, que “desaparecesse” ao refletir a arquitetura em torno. Ao voltar para o Recife, em 1976, recebeu convite para lecionar as cadeiras de projetos do Departamento de Arquitetura da UFPE (o que faz até hoje) e passou a projetar residências urbanas. Eram projetos focados na harmonia ambiental, com uma arquitetura de linhas e espaços fluidos, onde os cheios e vazios se integrassem à vegetação ambiente. Nos anos 80, com o boom da hotelaria no Nordeste, elaborou o padrão dos primeiros hotéis cinco estrelas da região. Logo em seguida, foi a vez dos resorts em praias famosas, como Maria Farinha, Cupe, Muro Alto e Porto de Galinhas. Nesse mesmo período começou a receber encomenda de casas de praia, baseadas nos bangalôs desses conglomerados, que chamaram a atenção pelo aspecto ao mesmo tempo rústico, elegante e confortável, com amplo uso de madeiras, treliças e grandes vãos. Nos anos 90, com a chegada dos shoppings centers, foi autor do projeto do Shopping Guararapes, de cuja cúpula em estrutura metálica e amplas transparências tem justo orgulho, pelo efeito de leveza e luminosidade que provoca. Um de seus últimos projetos foi o do edifício residencial Laura Caúla, no bairro da Torre, um prédio em forma de elipse com quinas vivas, de forte impacto visual, pela concepção arrojada. Assim, ao longo de 30 anos, misturando ousadia e criatividade funcionais, Zezito Goiana tornou-se uma referência na arquitetura brasileira, não só pela qualidade de suas criações, mas também pela intensa produtividade. O grande número de palestras para as quais é convidado a realizar, em diversas instituições de arquitetura de vários Estados, é uma prova disso. E sua participação especial na 7a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo vem referendar este sucesso.
Maquete do edifício residencial Laura Caúla
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Arquivo CEPE
A Companhia Editora de Pernambuco – CEPE – faz edição fac-similada do Álbum de Pernambuco e seus Arrabaldes – 1878, do desenhista e artista gráfico alemão F. H. Carls
Fotos: Divilgação
Cenas de uma cidade tranqüila
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hegando no Recife em 21 de novembro de 1859, com a esposa Sofia, o alemão Franz Heinnrich Carls, então com 32 anos, apaixonou-se de tal forma pelas paisagens pernambucanas, que em pouco tempo passou a assinar Francisco Henrique Carls e a falar do Recife como “a nossa cidade”, ou seja, pernambucanizando-se de vez. Desenhista e artista gráfico de talento, fundou, dois anos depois de sua chegada, o que viria a ser a quarta casa de litografia de Pernambuco, a Casa Litographica, a fim de aplicar a técnica de gravura em pedra calcárea, descoberta em 1796, na Alemanha, por Aloys Senefelder. Além de suas próprias obras, publicou também trabalhos de outros gravadores, como F. Kauss e L. Krauss. Deu, ainda, nova feição gráfica ao jornal Correio do Recife ao utilizar pioneiramente litografias na imprensa. Para se manter, imprimiu também diplomas, letras de câmbio, convites, rótulos de cigarros, apólices e mapas, entre outras coisas. A importante Planta da Cidade do Recife e seus Arrabaldes, do engenheiro José Tibúrcio Pereira Magalhães, por exemplo, foi publicada por Carls, em 1870. A obra, porém, que mais marcou sua presença em Pernambuco foi o projeto Álbum de Pernambuco e seus Arrabaldes – 1878, um projeto levado a cabo ao longo de vários anos, tendo-se Mmdmmdmd mdm dmdm dmd mdm Ponte de Santa Isabel, dmdmddmd com Assembléia Legislativa e Ginásio Pernambucano ao fundo. Ao lado (detalhe) imagem do frontispício do álbum
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Cais da Companhia Pernambucana, no Porto de Pernambuco
Rua do Bom Jesus, com Torre Malakoff ao fundo
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chegado a um provável total de 58 cromolitografias (em que o transporte da gravura é feito através de fotografias, processo que tinha sido recentemente inventado na França). Agora, na comemoração dos seus 40 anos de existência, a Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, faz a edição fac-similada do álbum de F. H. Carls. Para Flávio Chaves, presidente da instituição, o feito vem preencher “uma lacuna existente na história da arte pernambucana oitocentista porque, apesar de sua importância, essa é a primeira publicação dedicada à sua vida e obra, onde fica evidente o seu valor como artista e a contribuição à nossa história”. Ainda segundo o presidente da CEPE, a reedição da obra se configura “um resgate que nos leva a retroceder no tempo e observar os encantos e a vocação do Recife, de Olinda, de Escada, de Paudalho, do Cabo de Santo Agostinho – que ao longo dos anos se transformou em pólo e marco de desenvolvimento do Estado”. E, acentuando a importância do trabalho do artista alemão, complementa: “o olhar de F. H. Carls não se resumia ao alcance de sua visão. Esta é uma obra que não pode ser traduzida em palavras. Sua grandeza será avaliada através da nossa contemplação”. Para o artista plástico Paulo Bruscky, organizador da edição, a obra é enriquecida com a reprodução de um texto de Carls em que ele explica seu projeto de “publicar um álbum de vistas dos lugares e edifícios mais notáveis e belos da nossa Cidade do Recife e de seus arrabaldes”. A obra também apresenta um registro feito pelo pesquisador e historiador Pereira da Costa nos Anais Pernambucanos (volume 7, 1795-1817), em que se refere a F. H. Carls, no trabalho à frente de sua casa gráfica, como “artista competentíssimo, (que) soube dotar o seu estabelecimento dos mais modernos e aperfeiçoados maquinismos, do melhor material possível e de habilíssimos profissionais, de forma a torná-lo uma casa de primeira ordem, cujos trabalhos, em todos os gêneros, em nada deixavam a desejar dos melhores produzidos nos estabelecimentos congêneres da Europa”. De acordo com Paulo Bruscky, Carls é conhecido como um dos mais importantes gravadores de sua época e suas gravuras são raras devido às tiragens pequenas. Atesta ainda que “estas gravuras são importantes não só pelo registro das paisagens do Recife, Olinda, Cabo, Paudalho e Escada, mas também porque permitem um estudo do vestuário, hábitos, arquitetura, fauna, flora, paisagismo, meios de transportes, restauração do patrimônio histórico e da fotografia, uma vez que, segundo Pereira da Costa, diversas dessas litografias foram feitas a partir de fotografias de Augusto E. Sthal, Marc Ferrez e do pernambucano João Ferreira Vilela”. À parte o valor documental, há que se destacar também a qualidade artística dos trabalhos e a beleza dos casarios, paisagens e cenas de uma época em que a vida se passava num ritmo mais tranqüilo. (MP)
Rótulos de cigarros, impressos por F. H. Carls
Carls é conhecido como um dos mais importantes gravadores de sua época e suas gravuras são raras devido às tiragens pequenas
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Entre o céu e o inferno Exposição recupera as várias faces dos trópicos a partir do olhar da arte contemporânea Fernanda Lopes
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ma linha toca em Havana, corta o México em duas partes iguais, atravessa o norte da África, a Península Arábica, a Índia e finalmente Hong Kong. A outra, tangencia o aeroporto de São Paulo e forma a linha de separação entre a parte pobre e a parte rica do Brasil, transpõe a África do Sul, a Austrália e se perde nas lonjuras das ilhas do Pacífico. Essas linhas são separações geográficas que não podem ser vistas pelo ser humano, mas é quase impossível não senti-las. Parte desse universo pode ser visto no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, capital do maior país tropical. Os mais de cinco mil quilômetros de extensão existentes entre o Trópico de Capricórnio e o Trópico de Câncer, localizados no grau de latitude 23 dos hemisférios Norte e Sul, e os muitos séculos de história dos trópicos são percorridos pela exposição Os Trópicos – Visões a Partir do Centro do Globo. A região até o século 15 era “terra incógnita”, local de origem do homo sapiens (mais exatamente do leste africano equatorial), e da projeção de sonhos exóticos, desejos
irrealizáveis e medos de artistas, escritores, pesquisadores e viajantes. De “Paraíso na outra esquina”, como aparece no mais recente romance de Mario Vargas Llosa, ao “Inferno verde”, descrito no Aguirre, de Werner Herzog, passando pela idéia de “tristes trópicos”, dos estudos de Claude Lévi-Strauss no início do século 20, os trópicos já receberam as mais variadas leituras. “Interpretações e leituras dos trópicos assemelhamse a uma biblioteca imaginária e a um museu inventado, nos quais são conservados nossos sonhos e nossos desejos secretos. Até hoje os artistas marcam a idéia que fazemos dos trópicos”, resume Alfons Hug, diretor do Instituto Goethe, no Rio de Janeiro, um dos curadores da exposição, ao lado de Viola König e Peter Junge, diretora e curador do Museu Etnológico de Berlim. Os Trópicos – Visões a Partir do Centro do Globo traz para o Brasil 130 obras de arte antiga de países na faixa tropical do planeta (África, Ásia, Américas e Oceania), vindas do acervo do Museu Etnológico de Berlim, considerado um dos mais importantes do mundo, além de peças de arte plumária vindas do acervo do Museu do
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Fotos: CCBB/Divulgação
Em Águas Calmas Crocodilos Aguardam a Presa, videoinstalação de Marcel Odenbach. Ao lado, a videoinstalação Máscara, de Marcos Chaves
Índio, do Rio de Janeiro. Construindo uma ponte entre os tempos pré-moderno e contemporâneo, a exposição apresenta ainda 87 trabalhos de 23 artistas contemporâneos de diferentes países, dentre pinturas, desenhos, fotografias, esculturas, vídeos e instalações. “Venho observando nos últimos tempos, sobretudo na Alemanha, uma preocupação crescente de muitos artistas excelentes com os Trópicos. O movimento dos expressionistas que pesquisaram na Oceania e na África 100 anos atrás, agora está se repetindo”, aponta Alfons Hug. “A arte antiga nos mostra os trópicos antes de perderem a sua inocência e se transformarem no chamado Terceiro Mundo. Já a força da arte contemporânea reside, em contrapartida, no seu elevado grau de reflexão e no seu potencial crítico”, completa. A montagem da exposição ressalta grandes temas que atravessam os tempos, misturando obras contemporâneas e peças antigas. Entre os temas estão Natureza, Antepassados e Imagens Humanas, Poder e Conflito, Cores, e Instrumentos Musicais. A famosa instabilidade do clima tropical, por exemplo, é o ponto de partida de algumas
obras. O calor está no suor que percorre o corpo das dançarinas da boate Tropicana, em Havana, no vídeo Furor Latino, da artista espanhola Pilar Albarracín. Outro vídeo, Rain, da inglesa Fiona Tan, foi realizado durante uma tempestade de chuva e trovoadas em Jacarta. A força das águas do rio Iguaçu, localizado na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, é o ponto de partida para o trabalho do fotógrafo alemão Hans-Christian Schink.
Outros aspectos sobre os trópicos também são discutidos no catálogo que acompanha a exposição. Além de textos dos próprios curadores, a publicação também apresenta a reflexão dos críticos de arte Fernando Cocchiaralle, do Brasil, e Ticio Escobar, do Paraguai, e do artista plástico brasileiro Roberto Cabot. Depois de passar por Brasília, a exposição segue para Berlim e Rio de Janeiro.
SERVIÇO Centro Cultural Banco do Brasil – Brasília De terça-feira a domingo, das 10h às 21h. Até 10 de fevereiro de 2008. Entrada franca.
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Ferreira Gullar
A crítica e a crise
Assim como a arte, a crítica também é obrigada a rever seus conceitos e atualizar-se
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crítica de arte, na sua concepção original, tem por finalidade avaliar a qualidade da obra de arte, apoiando-se, tanto quanto possível, em critérios objetivos. Certamente, esses critérios têm variado com o tempo, em função mesmo das mudanças ocorridas no próprio universo da arte. Embora se conheçam textos sobre a criação artística, escritos na Grécia clássica, a crítica propriamente dita parece ter surgido no Renascimento juntamente com o colecionador de arte e para orientá-lo. A atividade reflexiva sobre os valores artísticos passa a desempenhar um papel importante no processo mesmo da criação estética. A formulação de normas e princípios que serviam de base ao trabalho do artista, se ofereceu considerável objetividade à avaliação crítica, também contribuiu para certa confusão entre o que era correto e o que era criativo. A reflexão desenvolvida por Goethe, nesse campo, revela bem o momento em que a teoria da arte descobre a autonomia da criação artística com respeito à realidade que ela representa, compreendendo-a como um fim em si mesma. A partir do século 19, quando os artistas passam a questionar os cânones estéticos e aprofundam a autonomia da criação artística com respeito à representação da realidade, as bases da conceituação crítica também são atingidas. Era inevitável que a ruptura drástica com o passado, como se dá na pintura de Cézanne e se aprofunda com os fauvistas, cubistas, expressionistas e, em seguida, com as linguagens não-figurativas de um Mondrian, Larionov, Malevitch, Kandinsky, era inevitável, digo, que a crítica também fosse obrigada a rever seus conceitos e atualizar-se.
E era natural também que essa atualização seguisse o rumo tomado pela própria arte que, rompendo com normas e princípios, passou a valorizar muito mais a intuição e a inventividade do que a norma. Aquela autonomia, a que Goethe se referia, atingiu então um grau que o poeta alemão jamais imaginara, chegando-se mesmo a admitir que a novidade já seria um valor em si mesma. No decorrer do século 20, essa busca do novo alcançou níveis impensáveis, resultando disso a dissolução das linguagens artísticas e, finalmente, o abandono, já não das técnicas, mas do próprio fazer e a substituição da obra pelo autor, como nas performances. A obra é ele. Esse grau de autonomia alcançado pelo artista se expressa numa famosa frase de Marcel Duchamp, quando afirma que “será arte tudo o que eu disser que é arte”. Se se aceitar essa afirmação como verdadeira, a crítica de arte torna-se simplesmente inviável, já que se negaria ao espectador da obra – seja ele um amador de arte ou um crítico – a capacidade de formular qualquer juízo de valor acerca do que vê. E há alguma coerência nisso, uma vez que, de fato, certas manifestações que caracterizavam as tendências da vanguarda do século 20 estão fora de qualquer juízo estético. Que pode um crítico de arte dizer acerca de uma manifestação que consiste em exibir larvas de moscas para serem vistas através de um microscópio? Ou estrebuchar no chão do museu sobre uma poça de tinta azul? Que poderia dizer um crítico sobre tais coisas? Quem insiste em bancar o crítico diante de tais manifestações deriva para especulações pseudofilosóficas ou pseudosociológicas, que têm tanto a ver com aquilo como com as invasões na favela da Rocinha.
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Divulgação/Paço Imperial
As obras de Lúcia Laguna, no alto, e Lena Bernstein, acima, estão em exposição no Paço Imperial, no Rio de Janeiro
Veja bem, nem por isso acho que essas manifestações deveriam ser proibidas ou que sejam um insulto ao sagrado conceito de arte. Nunca pensei tais coisas, mesmo porque, como poeta e crítico, sempre me mostrei inconformado com fórmulas e preceitos. Devem, porém, os seguidores dessas tendências admitir que não é possível defendê-las como criação artística, muito embora possam até ser um novo modo de reinventar o nosso imaginário. Só que não sou obrigado a gostar de tais coisas nem de aplaudi-las como criações geniais, que não são. De fato, o sentido inicial de tais manifestações duchampianas parece-me mais um desencanto com o caráter artesanal da arte numa sociedade que se industrializava aceleradamente. Para espanto, inclusive dele, isso virou uma tendência “artística”. Tais considerações recorrentes me voltam à mente, quando vejo, no Paço Imperial, no Rio, as obras de duas artistas que não desistiram do fazer, da linguagem plástica e a reinventam. São elas Lúcia Laguna e Lena Bernstein, a primeira, pintora, e a segunda, gravadora que extrapola, nas obras que mostra agora, a linguagem gravada. Fulana pinta o casario que vê da janela de seu apartamento, mas não o copia: abstrai-se das formas reais, lendo-as pictoricamente, como um conjunto de formas e cores, que ela reestrutura na tela; nesse processo de recriação do real, vale-se de fitas-comanda para interrompê-lo, dificultá-lo e provocar o inesperado. Lena Bernstein, que se consagrara como gravadora, descobre no trabalho com a chapa de metal, no uso do ácido que grava o desenho, um caminho novo de expressão: realiza uma verdadeira alquimia com ouro, prata e cobre que, oxidados, corrompidos, misturam-se para formar, sobre a tela, uma superfície coruscante, mágica, noturna e fascinante, que nos leva ao sonho.
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Fábio Braga/Divulgação
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Um banquete para a Nação 52 x Continente • DEZ 2007
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Fome de Tudo, sétimo disco da Nação Zumbi, reafirma a capacidade da banda de fazer manifestos sonoros baseados em crítica social Daniela Arrais DEZ 2007 • Continente x
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Nação Zumbi é mesmo uma das maiores bandas brasileiras. Prova disso é o esquema de divulgação de seu novo CD, Fome de Tudo, que chegou às lojas em outubro (mas estava, duas semanas antes, disponível para download na internet). Antes do lançamento, nada de entrevistas. Durante, só as pré-agendadas, com antecedência, pela assessoria de imprensa – assim como fazem grandes nomes da música nacional. Como de imprevistos e prazos curtos o jornalismo está cheio, quem quis falar com a banda fora desse esquema acabou ficando no vácuo. Fome de Tudo, sétimo disco da banda, reafirma a capacidade de Jorge du Peixe (vocal), Lucio Maia (guitarra), Pupilo (bateria), Dengue (baixo), Gilmar Bola 8 (percussão) e Toca Ogan (percussão) fazerem manifestos sonoros baseados em crítica social. Os músicos alcançam o objetivo sem passar perto do tom panfletário, mas, sim, criando letras e sonoridades poderosas.
Para o manifesto da vez, o tema escolhido foi a fome. Não uma fome puramente orgânica, mas uma fome metafórica, que permeia cabeça, coração, olhares e vontades. Fome de informação, de mudança, fome por referências sonoras e literárias. Uma fome que “Tem uma saúde de ferro / Forte, forte como quem come”, como na faixa que dá nome ao disco. Ou então como em “Bossa Nostra”, em que “Ninguém quer saber o gosto do sangue / Mas o vermelho ainda é a cor que incita a fome”. Para lembrar onde tudo começou, uma das referências para o disco foi o livro Geografia da Fome, escrito em 1946 pelo geógrafo e médico pernambucano Josué de Castro – para quem a fome é uma expressão biológica dos males sociológicos. A obra já havia servido de inspiração para Chico Science na criação de Da Lama ao Caos, disco de 1994 que projetou a cena manguebeat de Pernambuco para o mundo.
Divulgação/Deckdisc
Atrás, da esquerda para direita, Jorge du Peixe, Lúcio Maia, Pupillo, Gilmar Bola 8. Na frente, Dengue e Toca Ogan
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a ma es me ue m ão er ue
Nas 12 faixas que compõem o banquete sonoro da Nação, as influências vão do afrobeat ao funk, passando pelo samba. A mistura parece não ter classificação, e talvez seja esse mesmo o objetivo da banda: confundir em vez de explicar. Dar ao ouvinte uma massa de sons, referências e letras. Nada “mastigadinho” ou diluído, mas denso a ponto de precisar ser digerido a cada nova audição. Os refrãos surgem poderosos, como em “Infeste” (“Costas quentes / Dentes acesos / Olhos de espelho / Cabeça de leão / Lançando o perigo na ponta do enfeite / Estica o caminho quem manda no chão”) ou “No Olimpo” (“Todos os dias nascem deuses / Alguns maiores e outros menores do que você”). Destaque para o vocal de Jorge du Peixe, cada vez mais afinado e forte, melódico apesar de praticamente falado. Pela primeira vez, a produção de um disco na Nação saiu das mãos dos músicos e foi para uma figura externa, o produtor Mario Caldato Junior, conhecido pelas parcerias com Beastie Boys, Marisa Monte, Beck, Jack Johnson, Bebel Gilberto, Seu Jorge e Marcelo D2. O trabalho de Caldato imprimiu várias mudanças no som da Nação. Os overdubs (gravação de sons sobrepostos), tão presentes em trabalhos anteriores, como o Futura, de 2005, ficam mais diluídos. As alfaias, eternamente responsáveis pela associação da banda com o maracatu, aparecem, mas em tom mais discreto. Até os samples ganham dosagens mais homeopáticas, mas nem por isso menos interessantes. Um dos pontos altos do disco é o final de “Onde Tenho que Ir”, cujo sample fala so-
nto ué óde ma at
bre “a história de um homem que fez da fome profissão e se tornou sua vítima”. Outro destaque vai para as participações especiais. Em “Inferno”, a cantora Céu empresta seu timbre suave e sussurra que “Não demora e ele (o inferno) chega pra qualquer um”. O maestro Ademir Araújo, regente da Orquestra Popular do Recife, imprime arranjos de metais em “Nascedouro”, faixa que lembra Fela Kuti, pai do afrobeat. Money Mark, tecladista dos Beastie Boys, aparece em “Assustado”, faixa que tem vocal de Toca Ogan. Completa o time o caruaruense Junio Barreto, com “Toda Surdez Será Castigada”. O novo trabalho da Nação é o primeiro lançado pela Deckdisc, gravadora de artistas como a baiana Pitty e os gaúchos da Cachorro Grande. O disco, que chega ao mercado com 20 mil cópias em formato digipack, começou a ser preparado em janeiro, e foi gravado em apenas nove dias, entre Rio de Janeiro e São Paulo. Como costuma acontecer com bandas de prestígio, cuja base de fãs fica ansiosa pela chegada de um novo trabalho, a Nação Zumbi viu seu novo disco cair na internet antes do lançamento oficial. Um blog dedicado à música brasileira fez o upload e, logo nos primeiros dias, cerca de 800 pessoas baixaram as 12 faixas de Fome de Tudo. No mesmo mês de outubro, o Radiohead disponibilizou seu sétimo trabalho, o In Raibows, na internet, dando a opção ao usuário de pagar ou não pelo disco. Em apenas quatro dias, a banda vendeu 1,2 milhão de cópias. Os fãs desembolsaram, em média, 4 libras pelo disco (cerca de R$ 16,00). Em entrevistas à imprensa, Jorge du Peixe e Lucio Maia consideraram inviável adotar tal postura. Primeiro porque nunca venderam 16 milhões de cópias, como o Radiohead. Segundo porque no Brasil não há quem possa bancar uma estrutuFome de Tudo ra como a da Nação Zumbi banda britâDeckdisc nica, devido R$ 26,90 à crise da indústria fonográfica. DEZ 2007 • Continente x
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Tratado de liderança para maestros
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ma das profissões mais desgastantes, por conta do envolvimento direto e contínuo entre chefe e subordinados, é a de maestro. Assim, noções de liderança, que se difundem cada vez mais em funções alheias ao mundo dos negócios, também são úteis na formação profissional do regente e minimizam as tensões entre ele e suas cinco, oito ou 10 dúzias de funcionários. Regência: uma Arte Complexa, do maestro carioca Ricardo Rocha, é um livro de “técnicas e reflexões sobre a direção de orquestras e corais”, mas tais reflexões começam além da perspectiva musical. À liderança aplicada à regência, seguem-se: comuni-
cação gestual, interpretação da obra, preparação de ensaios e de afinação e a orquestra em si, da origem às atuais tendências. Em tal disposição de temas é nítida a transmutação de livro de auto-ajuda em emulação de tratado renascentista, onde assertivas triviais (“Não se ganha mais nada ‘no grito’, porém na tentaRegência: uma Arte Complexa tiva de consenso através Ricardo Rocha do esforço real de comÍbis Líbris preensão das partes 2004 R$ 30,00 envolvidas”) dão lugar a observações aprofundadas (vide os capítulos dedicados à afinação e às orquestras, concisos e historicamente rigorosos). Mérito à parte, dentro dessa “visão holística” do trabalho regencial, cabe a preocupação com a preparação corporal, item ainda desprezado pelos dirigentes musicais. (Carlos Eduardo Amaral)
> Os sons pictóricos > Guia de Villa por de Harry Crowl Clara Sverner
> Osesp e a Pastoral > Violoncelos em de Beethoven octeto
Este álbum duplo traz um recorte da produção musical de Harry Crowl de 1979 a 1999. No primeiro CD se encontram intimistas: as Sonatas I e II para piano, o Canto para violino solo, a Aluminium Sonata para violino e piano, Assimetrias para violão solo e Austrais para soprano e piano, sobre sonetos do simbolista Cruz e Souza. No segundo CD, estão duas obras sinfônicas e uma camerística. O Concerto para clarone, percussão e piano chama a atenção pelo incomum instrumento solista. O Concerto para piano e orquestra, mesmo recorrendo a um gênero tradicional, nada guarda das formas padronizadas e nada foge da estética pictórico-abstracionista peculiar a Crowl. (CEA)
Recém-vencedor do Grammy Latino de música clássica, este CD da Sinfônica do Estado de São Paulo, sob regência de John Neschling, abre com uma obra orquestral pouco executada, de Beethoven. Em Abertura “A consagração da casa”, op. 124, ele retoma o caráter das peças orquestrais festivas de Händel, como a Música Aquática. A consagração da casa precede a Sinfonia nº 6, op. 68, a mais famosa partitura programática do compositor alemão. Na Pastoral, as cenas bucólicas evocadas através dos títulos dos cinco movimentos seguem as tentativas imagéticas musicais que vêm desde o Renascimento e antecipam a criação do poema sinfônico, no Romantismo, por Franz Liszt. (CEA)
Harry Crowl CD duplo independente R$ 35,00
Ao dirigir o programa de canto orfeônico durante o primeiro governo Vargas, Villa-Lobos arranjou 137 canções infantis populares para coro à capela ou com acompanhamento e as publicou no primeiro volume do Guia Prático. Das canções com acompanhamento, o compositor adaptou 59 para piano solo e sem querer criou uma versão nacional do Mikrokosmos de Bela Bartók, tão estudada por pianistas aprendizes quanto os cadernos húngaros. O Guia, no entanto, foge da mera catalogação e atesta algumas das mais belas peças pianísticas de Villa-Lobos, ressaltadas pela notável atenção de Clara Sverner. Entre as melodias mais conhecidas, estão Acordei de madrugada e Na corda da viola. (CEA) Heitor Villa-Lobos por Clara Sverner Biscoito Clássico R$ 30,00
Beethoven – A consagração da casa e Sinfonia nº 6 Biscoito Clássico R$ 30,00
Uma das peculiares contribuições musicais de Villa-Lobos foi a utilização de um conjunto autônomo de violoncelos, particularmente nas Bachianas Brasileiras nº1 e nº5. O Cello Octet Conjunto Ibérico encomenda regularmente obras inéditas a diversos compositores contemporâneos, entre os quais Marlos Nobre. Daí surgiram as Três canções negras op. 88, o Desafio XXXII, o Canto a Garcia Lorca op. 87 e a reinstrumentação das Três canções de Beiramar op. 21 bis. A vitalidade das músicas do CD, completada com aquelas duas Bachianas, se soma ao lirismo das letras de poetas como Ascenso Ferreira. A regência é de Elias Arizcuren e a interpretação das canções do soprano Pilar Jurado. (CEA) Brazil – Cello Octet Conjunto Ibérico, Channel Classics Pedidos: mnedition@uol.com.br
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Com o gene dos cantadores
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vés de flauta, clarineta, violões, fagote, violoncelo e percussão (nunca todos tocando na mesma música), mostrando coerência entre a linha de João Omar e Elomar. Versátil, ele assume com igual desenvoltura o violão, a viola sertaneja e o violoncelo e, nas cinco músicas que assina, mergulha no choro, baião e samba. Companheiros como Armandinho (o do trio elétrico, mas que já está na hora de ser mais citado como um ás do bandolim) e o violonista costarriquenho radicado em Salvador Mario Ulloa se somam a nomes que ainda não despontaram nacionalmente, mas de qualidade a ser conferida em Corda Bamba. “Curvas do Rio”, de Elomar, Corda Bamba e “Bachianinha n° 1” de João Omar Garimpo Discos Paulinho Nogueira estão R$ 24,90 entre os “clássicos” do disco; das inéditas, vale ouvir “Kalimbaião”. (CEA)
> Os sentimentos e sons de Estamira
> Música produzida na Zona da Mata
> Marco Lobo e seu molejo percussivo
> Banda mistura coco com toré
O filme Estamira (2004), de Marcos Prado, conta a história de uma mulher portadora de esquizofrenia, que sobrevive catando lixo em Duque de Caxias. São as composições originais feitas pelo pernambucano Décio Rocha que ajudam o cineasta a apresentar o perfil desse personagem. Além de compor as 16 faixas, Décio toca baixo, metrola (espécie de alaúde feito de madeira com três cordas de violão, tocadas com arco de violino) e rochimbau (lata e cordas), esses dois últimos instrumentos construídos pelo próprio compositor. A utilização de instrumentos feitos pelo próprio Décio, a partir de materiais que podem ser encontrados até no lixo, harmonizamse com as imagens, numa verdadeira explosão de sons.
O nome da banda é uma homenagem aos ticuqueiros, trabalhadores rurais que têm como função limpar a “ticuca”, área destinada ao plantio da cana-deaçúcar. É esse mesmo personagem que boa parte das vezes forma os folguedos populares da região. O primeiro CD da Ticuqueiros, banda surgida em 2001, em Nazaré da Mata, foi batizado de Dos Canaviais da Zona da Mata, título que já revela o que se pode esperar desse trabalho. As 15 faixas reafirmam os valores culturais da Zona da Mata, fazendo uso dos mais variados ritmos locais, como o coco, o maracatu rural, o caboclinho, a ciranda, o samba... Porém os ticuqueiros seguem a tendência atual de aproximar os ritmos da terra aos ritmos urbanos, como o rock and roll, numa mistura que vem dando certo.
Em Aláfia, o percussionista Marco Lobo alterna momentos de embalante swing com devaneios em que deixa fluir sons da natureza, sempre em moto contínuo – não deixando cair o ritmo. Instrumentos de percussão tipicamente brasileiros dão o vigor das nove músicas do CD. A escrita dos arranjos, sustentáculo de “Aláfia”, merece especial atenção na faixa título (cujo nome não se refere às flores do gênero alafia, mas à pessoa que não é regida por nenhum orixá e que alcança triunfo em tudo), e em “Severino”, uma mescla inventiva do chorinho com o maracatu de baque solto. Méritos aí para a Orkestra Rumpilezz e para o saxofonista e arranjador Widor Santiago. Milton Nascimento faz participação especial em “O cavaleiro”. (CEA)
Coco de toré é um folguedo dançado em sentido anti-horário, puxado por toadas de canto e resposta, acompanhados por maracás, com uma instrumentação parecida com a de algumas formações de samba de coco. Essa mistura é o foco do trabalho do grupo Pandeiro de Mestre, que acaba de lançar o seu primeiro disco Coco de Toré. O grupo produz um coco de toré com feições urbanas, adicionando instrumentos do coco de roda e da ciranda. O grupo começou interpretando cocos de artistas antigos e novos, mas nesse primeiro disco, além de fazer releituras de torés tradicionais, já apresenta um repertório autoral, com composições de Nilton Júnior. Entre as participações especiais estão: Tiné, Siba, Coco Raízes de Arcoverde, entre outros.
Foto: Divulgação
o seu primeiro álbum solo, João Omar interpreta, ao lado de convidados, 10 composições delineadas pelas duas principais vertentes que o influenciaram, a música erudita e a regional nordestina. Esclarecer a influência paterna é útil: João Omar é filho de Elomar. Depois de atuar em CDs de Almir Chediak, de Xangai e do próprio pai, o instrumentista baiano reuniu amigos de primeiro time e prova por que recebeu o Prêmio Sharp de melhor arranjador em 1998. Sem recorrer a baixo elétrico, bateria e guitarra, as músicas ganham incrivelmente em limpidez, atra-
Estamira Décio Rocha Zazen Produções R$ 25,00
Dos Canaviais da Zona da Mata Ticuqueiros R$ 17,00
Aláfia Marco Lobo Delira Música R$ 24,90
Coco de Toré Pandeiro do Mestre R$ 20,00
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sabores
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Frutas de brincadeira(2) “Atrás do grupo-escolar ficam as jabuticabeiras. Estudar, a gente estuda. Mas depois, Ei, pessoal: furtar jabuticaba. Jabuticaba chupa-se no pé. O furto exaure-se no ato de furtar. Consciência mais leve do que asa ao descer, volto de mãos vazias para casa.” Carlos Drummond de Andrade (“Menino Antigo”)
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o primeiro artigo dessa pequena série, falamos de frutas que não eram servidas durante as refeições nem decoravam as fruteiras da sala de jantar. Frutas com sabor de infância – araçá, aratigum-apé, buriti, cruá. Aqui seguem outras – guajirú, ingá, jabuticaba, oiti, romã. Guajiru (Chysobalanus icaso) – Para os índios era ïuaïu’ru. Entre nós, é também conhecida como “abajeru”, “guajeru” e “guajirú”. Gabriel Soares de Sousa a descreve – “abajeru é uma árvore baixa como carrasco, natural donde lhe chega o rocio (orvalho) do mar, cuja folha é áspera e dá uma flor branca e pequena. O fruto é do mesmo nome e da feição e tamanho das ameixas de cá, e de cor roxa; come-se como ameixa, mas tem maior caroço; o sabor é doce e saboroso”. Marcgrave (Historia Natural do Brasil, 1648) discorda, em relação ao sabor “o fruto tem a polpa branca, de sabor não manifestadamente doce”. A árvore foi levada para a Angola, onde acabou conhecida como N’gingo; e Inglaterra, onde é cocoa plum. “Quando Aracy ouviu estas palavras cobriu-se de sorrisos, como o guajeru se cobre de suas flores alvas e perfumadas, com os orvalhos da manhã”, segundo José de Alencar (Ubi58 x Continente • DEZ 2007
rajara, 1874). No Nordeste dá, sobretudo, nas áreas de praia. Como a maioria da vegetação praieira, prefere solos pobres e bem arenosos. A fruta é redonda, bem vermelha (já quase roxa), casca macia, polpa branca que lembra o ingá e com grande semente. O gosto não é marcante. No Recife, ficou popular sobretudo por ocupar durante décadas o Segundo Jardim de Boa Viagem. Depois, esse guajiru foi sendo substituído por placas de concreto, duro preço a pagar por um progresso que não parece fazer sentido. De todas essas frutas, a que melhor se enquadra na definição de “comida de brincadeira”. Ingá (Inga edulis Mart) – O primeiro registro da fruta, em nossa terra, é de Gabriel Soares de Souza – “Engá é árvore dasafeiçoada que se não dá senão em terra boa, de cuja lenha se faz boa decoada para os engenhos. E dá uma fruta da feição das alfarrobas de Espanha, e tem dentro umas pevides como as das alfarrobas, e não se lhe come senão um doce que tem derredor das pevides, que é muito saboroso”. O fruto fica dentro de uma vagem grande. Dentro dessa vagem, sementes pretas e bem brilhantes são envolvidas por uma polpa branca parecendo algodão, macia e adocicada. São chupadas e depois jogadas fora. Essa polpa é consumida só ao natural. A árvore é originária da região Norte, onde as grandes vagens lembram cipós retorcidos. São, por isso, chamadas de ingá-cipó. É arvore de grande porte, chegando até 15 metros de altura. Com o tempo, foi-se espalhando por todo o Nordeste. Existem mais de 200 espécies diferentes. É consumida apenas ao natural. Mas também usada pela medicina caseira, no tratamento da bronquite (xarope) ou como cicatrizante (chá). Duram muito, até 15 dias depois de colhidas. Podem ser encontradas nos mercados públicos ou nas ruas. O nome vem do tupi i’na – significando embebido, empapado, provavelmente por conta de nascer sempre, a árvore, em
“As jabuticabas tinham chegado no ponto e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tlo tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora." Imagens: Arquivo Continente
regiões de beira d’água, nas margens de rios e lagoas. Para os índios da região amazônica, nunca fez parte das refeições normais. Era só alimento de fim de tarde. Permanece assim, até hoje. Jabuticaba (Myrcia cauliflora Berg). “As jabuticabas tinham chegado no ponto e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore” –, assim Monteiro Lobato descreveu o encantamento de Narizinho pela fruta (“As Jabuticabas” – fragmento do Reinações de Narizinho). Jabuticaba gostosa, toda criança logo aprende, é comida no próprio pé. E sabe também que deixam na língua a memória de sua cor roxa. São redondas e pequenas, como bolinhas de gude. A casca se rompe com uma leve mordida, soltando a polpa (suculenta, mole e esbranquiçada) que envolve a semente. �em duas safras – em agosto� setembro e janeiro� fevereiro. Diferentes de todas as outras frutas, ficam agarradas diretamente no tronco e mesmo nas raízes. “Não havia um lugar pelo seu caule que não tivesse fruta madura, pretinha, úmida ainda no orvalho”, descreveu José Lins do Rego (Bangüê, 1934). Entre suas muitas variedades, destacamse jabuticaba-açu ou graúda (de frutos bem grandes), jabuticaba-de-cabinho (que vem com cabinhos) e jabutigaba-sabará (pequena, e a mais conhecida delas).
Se não tiver a sorte de comer diretamente na árvore, cuidado quando for comprar. Escolha scolha sempre as que estiverem viçosas, firmes, brilhantes e sem rachaduras. E, sobretudo, consuma no mesmo dia da compra. Se quiser guardar, lave, enxugue bem e coloque na gaveta da geladeira. Mas, apesar de tantos cuidados, dia seguinte já não terá o mesmo sabor. Jabuticabas, além de consumidas ao natural, são também usadas na preparação de molhos salgados, doces, compotas (típicas da região de Goiás), geléias, sucos e licores. Valendo lembrar que, da sua casca, ainda se faz um eficiente chá para tratamento da asma. Só começa a frutificar muito depois (pelo menos 10 anos) de plantada; e, à medida que passa o tempo, ficam mais produtivas as árvores e mais doces os seus frutos, em tudo imitando a própria natureza humana. Delas até se pode dizer, como na frase atribuída a Bernard Shaw, que “juventude é doença que tempo cura”. Com o tempo vai se curando e ficando cada vez melhor. Como a vida. Jabuticabeira é árvore nativa da Mata Atlântica brasileira. Já existiam por aqui, antes da chegada dos portugueses. “Dessa fruta (chamada pelos índios de iauoti’kaua) fazem os índios vinho”, registrou Fernão Cardim (Do Clima e Terra do Brasil – escrito em 1584 e publicado só em 1623). A árvore não cresce muito e dificilmente chega aos 8 metros de altura. Mas dá boa sombra – “Alice, para abrigar-se do sol, procurou a sombra de uma bonita jabuticabeira, que ficava quase no centro do pomar”, escreveu Jose de Alencar (O Tronco do Ipê, 1871). Quando florescem, acabam cobertas por pequenas flores brancas, muito perfumadas. Lembram as cerejeiras (sakuras) que, no Japão, adornam o país com flores brancas ou rosadas, desde o sul temperado até a fria região de Okkaido, ao norte. Para os japoneses, cerejeiras representam a própria transitoriedade da vida. Como jabuticabeiras, para os brasileiros, representam a beleza efêmera da infância. Oiti (Moquilea salzmann) – É árvore nativa das matas úmidas do DEZ 2007 • Continente x
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receItas
Geléia de jabuticaba
Risoto de romã
3 Em um tacho de cobre amasse 2 kg de jabuticaba. Leve ao fogo sem deixar ferver.
3 INGREDIENTES 50 ml de azeite, 100 g de manteiga, 1 cebola bem picada, 500 g de arroz arbório, 200 ml de vinho branco seco, 100 ml de xarope de romã, 1 litro de caldo de carne, sementes de 5 romãs bem maduras, 100 g de queijo parmesão ralado.
3 Coe em peneira, amassando bem a polpa. Para cada medida de suco, adicione uma mesma medida de açúcar. Leve ao fogo (no tacho de cobre) até o ponto de geléia. 3 Esse ponto se prova ao colocar um pouco da geléia em copo de vidro, com álcool puro. Se o doce espalhar, ainda não está no ponto. Se ficar como uma bola consistente, chegou-se ao ponto ideal. 3 Coloque em pirex e deixe esfriar.
3 PREPARO Em uma panela, aqueça o azeite e metade da manteiga. Doure a cebola, acrescente o arroz, misture. Junte o vinho e mexa, até que evapore. Junte o xarope de romã. Vá colocando o caldo de carne aos poucos. Quando o arroz estiver al dente, coloque as sementes de romã, o restante da manteiga e o queijo ralado. Mexa bem. Decore com pedaços da casca de romã. Ideal para acompanhar porco ou carneiro assados.
Oiti (Moquilea salzmann) – É árvore nativa das matas úmidas do Nordeste. “Típica das ruas, principalmente as ainda não calçadas”, segundo Fred Navarro (Dicionário do Nordeste, 2004). O autor se refere ao oiti-da-praia, também conhecido como oiti-cachorro – espécie que, por ser mais frondosa, dá melhor sombra. São ainda conhecidos os oiti-coró, oiti-da-mata, e oiti-trubá (ou oiti-toroba que lembra, no aspecto, o abiu). Para os índios era üi’ti (üi, de “farinha”; e ti, de massa suculenta) – indicando que a fruta, além de ter consistência esfarinhada, é, ao mesmo tempo, também suculenta. Nem todos os europeus aprenderam a apreciar o seu sabor. Marcgrave, o botânico de Nassau, (História Natural do Brasil, 1648), declarou: “O fruto é comestível; eu, porém, detesto o seu cheiro e gosto”. Gabriel Soares de Sousa (Notícias do Brasil, 1587) o descreveu como tendo “grande caroço, e o que se lhe come se tira em talhadas, como as peras, e é muito saboroso; e lançadas estas talhadas em vinho não tem preço. Faz-se dessa fruta marmelada muito gostosa, a qual tem grande virtude para estancar cãibras de sangue”. Oiti-coró, hoje, só é consumido ao natural. Infelizmente, essas antigas receitas já estão quase esquecidas. romã (Punica granatum Linn) – Originária do sul da Ásia, era cultivada, sobretudo, pelos fenícios, então apenas para ornamentar seus jardins. O fruto da romãzeira sempre simbolizou prosperidade e riqueza. Até hoje é consumida, especialmente no Ano Novo e no Dia de Reis. Os caroços, manda a tradição, devem
ser chupados e guardados na carteira até o ano seguinte. Seu fruto é consumido ao natural, em saladas e molhos, ou servem para decorar pratos. Dele se faz um xarope, o “grenadine”, base de muitos coquetéis. Também se usa como remédio: as flores, em infusão, para males da garganta; a polpa e a casca da raiz, como diurético e vermífugo; o chá feito das folhas, para lavar olhos inflamados. Em caso de diarréia, ferva 30 g da casca por 10 minutos em um litro de água; adoce com açúcar ou mel e tome 1 xícara pequena, quatro
vezes por dia. Pode confiar, que dá certo mesmo. Ao Brasil, chegou no início do século 16. E virou preferência nacional. Seu nome, lido de trás para frente, resulta na palavra “amor”. É, assim se diz, um “palíndromo”. Nessa fruta se inspirou o grande Pedro Nava, no seu pequeno poema-palíndromo “Amor a Roma”: “Amora, romã Amor a Roma Amor, aroma: Amor a Roma”.
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A revolução não será televisionada: ela será a própria televisão. Pelo menos é o que a mídia eufórica vem propagando acerca do processo de conversão da bitola analógica para a digital. A mudança de paradigma está no ar desde o começo deste mês. Ao mesmo tempo, no calor do momento, entrou no ar a rede nacional de televisão pública, a TV Brasil
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a promessa de diversidade André Dib Orlando Senna, Franklin Martins e Tereza Cruvinel vão dirigir a Empresa Brasil de Comunicação (EBC)
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ara além da oportuna associação entre os dois eventos, o advento do Sistema Brasileiro de Transmissão Digital Terrestre (SBTD) parece ter servido como “choque de realidade”, para que a comunicação pública assuma seu papel de forma menos cambaleante e mais sincronizada com o país. Na Inglaterra, a BBC e seus oito canais alcança 90% da população e tem 46% do ibope nacional. Na França, o Telefrance 1 é o canal mais popular do país. São dois bons modelos de TV pública, sendo o primeiro adotado como referência pela TV Brasil, que no novo espectro digital, ocupará um dos quatro canais reservados ao serviço público. Entre o cenário mais incrementado da novela das oito e a hiper-realista partida de futebol, esperanças e desconfianças giram em torno deste novo e ambicioso projeto de comunicação pública: finalmente o Brasil estará representado na telinha? TV pública no Brasil não é novidade. Existe desde 1968, data em que foi criada a TV da Universidade Federal de Pernambuco (TVU). Muito menos transmissão pública em rede nacional. Retransmitido por emissoras associadas, o conteúdo da TV Educativa do Rio de Janeiro, da TV Cultura de São Paulo e da Rede Minas é assistido há um bom tempo por boa parte dos brasileiros. Até mesmo uma rede nacional de TVs públicas, o Sinred, foi
Marcello Casal/ABr
colocada em prática anos atrás, pelas próprias emissoras. Sendo assim, o que justifica a unificação da programação da TV Nacional (Radiobrás) e das TVEs do Rio de Janeiro e Maranhão em prol da TV Brasil? “As realidades locais poderão ser conhecidas nacionalmente, fortalecendo a identidade nacional. A rede nacional terá natureza horizontal, evitando a verticalidade convencional do campo comercial, em que uma “cabeça de rede” produz, controla e distribui de 90% a 95% de todo o conteúdo veiculado pelas afiliadas, explica a jornalista Tereza Cruvinel, presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), gestora da TV Brasil. Também foram nomeados, por decreto presidencial, Orlando Senna (diretor-geral), Helena Chagas (diretora de jornalismo), Delcimar Pires (administrativo e financeiro), Mário Borgneth (relações e rede) e Leopoldo Nunes (conteúdo e programação). Franklin Martins, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, é o presidência do Conselho Administrativo. Cruvinel informa que a grade “descentralizada” da TV Brasil irá além da fronteira tríplice “novela, futebol e jornal”. Haverá um núcleo de dramaturgia voltado para minisséries. Os documentários ocuparão bastante espaço, com absorção da produção independente. De modo que 20% da programação serão reservados para conteúdo de
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Grandes promessas, grandes expectativas. Para tanto, o governo parece ter incorporado o discurso sacramentado por ONGs, movimentos sociais, TVs educativas e comunitárias, intelectuais e produtores do audiovisual brasileiro, que participaram ativamente dos fóruns promovidos pelo Ministério da Cultura desde o ano passado. “Já naquele momento os movimentos sociais se posicionaram a favor do projeto de TV pública”, lembra o jornalista Ivan Moraes Filho, articulador estadual do Movimento Nacional de Direitos Humanos, e integrante da equipe do Centro de Cultura Luiz Freire, onde edita o site Ombuds PE (www. ombudspe.org.br). Moraes avalia que, se na teoria o governo está afinado com as reivindicações populares, sua prática tem sido dissonante com o pacto democratizante estabelecido com centenas de entidades participantes daquele processo. Primeiro, ao endossar a escolha de um sistema de transmissão digital que conserva o poder dos tradicionais feudos da comunicação comercial. Depois, ao centralizar a escolha dos integrantes da cúpula gestora da TV Brasil no presidente da república. Como forma de evitar a tentação ao autoritarismo, Moraes alerta para a necessidade de estabelecer leis para regular a nova emissora pública, criada em outubro via Medida Provisória. “Caso contrário, com a mudança de governo, o que garantirá uma gestão participativa ou recursos para a continuidade do projeto?”, questiona. De acordo com Cruvinel, o que garante à TV Brasil o status de emissora pública (e não estatal, ou mesmo “governista”) é a subordinação de sua política de comunicação a um conselho curador formado por 20 pessoas: quatro representantes do governo, um do corpo de funcionários da EBC, e 15 da sociedade civil. A princípio, conforme estabelecido pela Carta de Brasília (manifesto celebrado pelo 1º Fórum Nacional de TVs Públicas), este último grupo seria formado por representantes de classe como a Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec). “A representação fragmentada acabaria expressando grupos organizados da sociedade e não sua diversidade. Os membros do conselho curador serão indivíduos de destaque em suas áreas de atuação, de elevado conceito e credibilidade, aptos a julgar a qualidade do serviço prestado pela TV Pública”, diz a jornalista.
Até o momento do fechamento desta matéria, não havia definição de todos os membros do conselho curador. Além disso, sua aprovação pelo Congresso Nacional estava condicionada à entrada de um representante dos deputados no grupo. Mesmo assim, Cruvinel confirmou oficialmente o nome do jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti como membro do que já está sendo chamado de “conselho de notáveis”. Entre outros convidados, estão personalidades como o escritor Milton Hatoum, o exglobal Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o economista Delfim Neto, o rapper carioca MV Bill, o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo, o psicanalista Jurandir Freire Costa, a cineasta Tizuka Yamasaki, o cronista esportivo Tostão e a escritora Nélida Piñon. Especialista em legislações que regulam a imprensa em todo mundo, Cavalcanti afirma que o projeto da TV Brasil só terá sentido se buscar a integração de um país de
“Eu não acredito em coisa chapa branca. A coisa chapa branca, o mal dela, é que ela se desmoraliza por ela mesma. Não adianta você querer fazer uma coisa para falar bem do ministro da Cultura ou para falar bem do presidente da República. Isso não dura três meses”
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TVs parceiras, e 20% para produções independentes. “A produção independente no Brasil é muito rica, mas não encontra oportunidades de veiculação satisfatórias nas redes privadas. Ela tem uma importância econômica e também simbólica, na medida em que representa olhares e pontos de vista diferenciados sobre a realidade”, avalia Cruvinel.
Presidente Lula, em 17 de maio de 2007, no encerramento do 1º Fórum Nacional de TVs Públicas, em Brasília, onde ressaltou a importância de o Brasil implantar uma televisão de caráter público com alcance nacional e programação diversificada
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Alexandre Belém/JC
O conselho curador da EBC terá entre os "notáveis" o escritor Milton Hatoum, o rapper MV Bill e o advogado José Paulo Cavalcanti
identidade perdida, reconhecendo as diferenças do Brasil como um fator de riqueza. “O Brasil precisa conhecer o Brasil. Vou propor que a emissora seja o espaço da diversidade. Por exemplo, se diariamente houver um programa de culinária, que cada dia ele seja produzido por um Estado. Ou seja, uma pauta nacional composta de produções locais.” Outro ponto a ser levantado por Cavalcanti será a articulação de uma TV para o bloco dos países latino-americanos. “É uma questão de soberania entrar no mercado internacional da comunicação. Se a Amazônia for ameaçada, teremos um canal para dizer isso ao mundo”, defende. Se levado a cabo, o espaço oferecido à diversidade cultural brasileira com certeza será o maior atrativo da TV Brasil. Pernambuco é um verdadeiro manancial nesse sentido. Além das TV Universitária (mantida pela Universidade Federal de Pernambuco) e TV Pernambuco (vinculada ao governo estadual), há a possibilidade de parcerias com a TV Viva, as ONGs Auçuba e Vídeo nas Aldeias, o Canal Capibaribe, Ventilador Cultural, um sem-número de produtoras de cinema e vídeo e dezenas de Pontos de Cultura equipados com câmeras digitais e ilhas de edição. “Ter espaço numa grade nacional é tudo o que a gente quer. Mas é preciso colocar a relação com os independentes em termos de subsídio, para haver continuidade da produção”, pondera Nilton Pereira, coordenador da TV Viva, a primeira televisão de rua comunitária do país, criada há mais de 20 anos na cidade de Olinda para trabalhar inclusão social na TV. Hoje guarda mais de 500 títulos sobre cultura popular, a cena musical do Recife nos anos 90 e temas de interesse social, como agricultura familiar e registros de comunidades quilombolas. A produtora já teve seu conteúdo exibido na TV Gazeta e na TV Educativa, e há três anos ocupa espaço diário na grade da TV Universitária através do Sopa Diário, programa que alterna atrações musicais e discussões 64 x Continente • DEZ 2007
sobre cultura e direitos humanos. “Nosso foco é a população excluída. Queríamos desmistificar a idéia de que o povo da periferia é só miséria. Revelamos que em cada lugar existem poetas, artistas e diferentes detentores da história”, explica o documentarista. O fato é que 20% da grade de um canal de TV é pouco para escoar a cada vez maior produção independente. É o que diz o cineasta Antonio Carrilho, presidente da sessão pernambucana da Associação de Documentaristas Brasileiros (ABD). “O volume produzido é muito grande, e só a TV pública não teria condições de dar vazão. As TVs comerciais também precisam entrar no circuito”, avalia Carrilho. “Existe um bom espaço para conteúdo local na TVU e na TV Jornal, que há alguns anos vem obtendo audiência com conteúdo local. Outras iniciativas são muito tímidas. A última vez que Globo Nordeste produziu ficção foi há mais de 10 anos. A maioria das emissoras locais restringe-se ao jornalismo. Elas estão totalmente por fora do gosto do público.” Junto à TV Pernambuco (sistema Detelpe do Estado de Pernambuco), a TV Universitária é uma das possíveis afiliadas à TV Brasil. O que está em jogo é o destino da mais antiga TV educativa do país, por onde passaram quase todos os profissionais da televisão do Estado. Desde 22 de novembro, data de seu 39º aniversário, a TVU ampliou seu sinal para 12 cidades do interior de Pernambuco (até março estará em todo o Estado em sinal VHS), e pode ser captada por antena parabólica de qualquer local da América Latina. Quando não retransmite o sinal da TV Cultura e da TVE Brasil, a TVU exibe programas locais Curta Pernambuco e Documento Nordeste, dois fortes redutos para a produção independente, além do Sopa Diário, feito em parceria com a TV Viva. “Nossa pretensão sempre foi fazer televisão local de qualidade, e isso já está de bom tamanho, para uma emissora educativa como a nossa. De certo modo, quando se pensa em termos de Brasil,
a perspectiva do público local, que é a nossa meta, fica perdida. É sempre uma briga colocar programação no ar em rede nacional. Aconteceu com o Documento Nordeste naturalmente, quando passou dois anos no ar pela TV Cultura”, diz Luis Lourenço, o diretor de programação. Carente de recursos, estrutura moderna e funcionários, a antiga emissora pode encontrar na rede nacional o reduto necessário para seguir adiante. Afinal, quem assinar com a TV Brasil, terá uma série de facilidades de acesso a equipamentos e co-produções. O problema é que, dentro dos parâmetros reservados pela rede nacional às afiliadas, o espaço destinado à programação local não será suficiente para comportar os oito programas locais produzidos pela TVU. “Foi assim há 10 anos, quando a TV Cultura ocupava toda a nossa grade”, lembra o jornalista Cristiano Ramos, diretor do programa de debates Opinião Pernambuco, há oito anos no ar pela emissora da UFPE. Apesar de reconhecer as vantagens em se associar à TV Brasil,
Ramos não considera modificar seu programa para se adequar a uma grade nacional. “Sempre que se propõe uma abertura, supõe-se uma mudança para um modelo mais universal. Nesse caso, o que se chama de universal eu chamo de paulista, que para mim não interessa. O Opinião Pernambuco tem a cara da gente, porque cuida da realidade local”, justifica. Em entrevista recente para o programa Roda-Viva (TV Cultura), o médico norte-americano Patch Adams foi questionado sobre como fazer seu trabalho ter mais alcance. Ele prontamente respondeu: “Eu quero um canal de TV”. Resposta nada absurda, considerando que dispomos de tecnologia para tanto. No Brasil, optou-se por um sistema restritivo, que manteve intactos os tradicionais latifúndios midiáticos. De forma que os caminhos possíveis para as múltiplas expressões que fazem o Brasil do século 21 convergem para a nascente rede nacional de TVs públicas. Se ela alcançará seu propósito, em tom de suspense, só o tempo dirá.
entrevista>> Tereza Cruvinel Os conselheiros serem nomeados pelo presidente da República não compromete a independência da TV? Em todos os conselhos de TVs examinados na experiência internacional, os conselheiros são nomeados pelo chefe de Estado ou de Governo, às vezes com participação do Parlamento. Não se inventou ainda nada diferente disso. O que não impedirá, no futuro, a busca de mecanismos de escolha com participação mais direta da sociedade. Como será o jornalismo da TV Brasil? A TV Brasil terá compromisso com o bom jornalismo, pautado pela independência e pelo apego aos fatos. Para além da boa intenção ou das virtudes dos dirigentes, deve prevalecer a vigilância da sociedade e do conselho curador sobre a qualidade deste jornalismo. Não fará matérias a favor do Governo, brigando com os fatos, negando-os ou distorcendo-os. Mas também não deverá confundir independência com oposição ao Governo. Muitos têm sido, em outros países, os casos em que o conselho (ou órgão similar) interferiu para garantir o ideal do melhor jornalismo, que entende a informação como um direito do cidadão. Quais são as fontes de financiamento da EBC? Foram reservados R$ 350 milhões para 2008, no orçamento da Radiobrás, que está incorporada pela nova empresa. Este valor equivale ao que gasta a menor rede
Foto: José Cruz/ABr
comercial brasileira. Ao contrário do que ocorre em alguns países, no Brasil seria inviável a cobrança de um tributo da população para a TV Pública. A TV Brasil conta com os quatro canais que permitem o espectro digital? Não, o Governo reservou quatro canais para o serviço público, mas apenas um será utilizado pela TV Brasil. No futuro, pretende-se designar os outros três canais para educação e cidadania. A TV Brasil poderá incluir divulgação e promoção de atos do Governo em sua programação? Não, a TV Brasil terá programação generalista e diversificada, elaborada com independência pela diretoria e aprovada pelo Conselho. Para divulgar seus atos e suas realizações, o Governo disporá do canal governamental a cabo, o já conhecido NBR. A EBC terá um departamento para prestar serviços remunerados a clientes diversos. Este departamento, mediante contrato e remuneração, prestará serviços ao Governo para a manutenção deste canal. DEZ 2007 • Continente x
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Histórias de uma velha senhora Renato Lima
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ão oito canais de televisão, 10 emissoras de rádio nacionais e mais 40 locais. E uma história que supera 80 anos reportando notícias e, depois, produzindo documentários impecáveis. A BBC pode ser uma velha senhora, mas é sempre lembrada quando se fala em comunicação pública e de qualidade. A BBC não é estatal, é pública. Não é custeada por impostos em geral (exceto o Serviço Mundial), mas diretamente por um imposto pago a quem tem televisão em casa. Não é um modelo que se preste a ser copiado de forma automática para qualquer outro país, pois a BBC, surgida ainda em 1922, nasceu e cresceu ao mesmo tempo de quase toda a população atual do Reino Unido. Da 2ª Guerra Mundial à morte da princesa Diana, a BBC cobriu os fatos com a missão de educar, entreter e informar os britânicos. A forma como ela é financiada lembra a todos os britânicos que a BBC tem um custo e deve trazer um retorno proporcional. Que tal pagar quase R$ 500,00 por ano para ter acesso a uma TV pública? Poucos estariam dispostos a isso (e, mesmo no Reino Unido, não faltam críticos a esse modelo e até gente multada e presa por não ter ou se recusar a pagar), mas ele vem funcionando. Certamente seria difícil de implantar em outros países. O Serviço Mundial, do qual faz parte a BBC Brasil (http://www.bbc. co.uk/portuguese/) – que transmite, entre outras coisas, boletins pela CBN –, é financiado a partir do orçamento britânico. Faz parte da diplomacia pública do Reino Unido e é uma das principais fontes de informação confiável em zonas de conflito e países autoritários. Existe também o canal BBC World, veiculado pela TV por assinatura e com comerciais. O seu caráter público decorre do fato de não ser comandada pelo governo. Sua administração é avaliada por uma agência reguladora e regida por um conselho, formado por membros da sociedade. Em sua história, por vezes o governo foi instado a tomar as rédeas da BBC. Foi assim durante a guerra do Canal de Suez, em 1956, e durante a guerra das Malvinas. O país em guerra e um televisão pública que se postava de forma imparcial era muito desagradável para quem
ocupa o poder. Em 2004, a BBC entrou em conflito com suas próprias regras e com o governo durante a crise do suicídio do cientista David Kelly, que teria acusado o governo de maquiar um relatório para forçar o país a ir à guerra. Ele se suicidou após uma matéria do jornalista Andrew Gilligan. Um inquérito público concluiu que o jornalista havia exagerado na matéria, atribuindo falsas declarações ao cientista, o que depois fez cair o diretorgeral da BBC, Greg Dyke, que saiu acusando o governo Blair de ter interferido na empresa. Fora alguns casos pontuais, sem isenção, imparcialidade e equilíbrio, a BBC não conseguiria produzir jornalismo como faz há tantos anos. E, por isso, é um veículo que não tem opinião própria. Não há editoriais. Para se ter um exemplo, boa parte do mundo passou o ano de 2007 trovejando contra o aquecimento global. A BBC tinha um plano de lançar uma campanha de conscientização sobre o problema, mas abortou a iniciativa. Isso para não tomar partido de algo que ainda suscita muito debate. Embora, como qualquer mídia, haja sempre quem enxergue um direcionamento na sua forma de reportar (http://biased-bbc.blogspot.com/) e acuse-a de servir como um Ministério da Verdade
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Ilustração de projeto arquitetônico
A redação multimídia da BBC integra a programação de TV, rádio e internet
(http://www.tvlicensing.biz/), como no livro 1984, de George Orwell. Alguns mecanismos garantem à BBC a credibilidade que ela ostenta – a extensa rede de correspondentes (cerca de 250, além de milhares de freelancers) e a adoção de um mecanismo simples, mas que impõe muito trabalho no dia-a-dia de uma redação: a dupla checagem. Trata-se de quase não noticiar algo que não possa ser confirmado por duas fontes independentes. Outro exemplo é tratar com rigor o que pode parecer pequeno desvio, como dizer que um programa é ao vivo quando foi gravado. Em setembro, a BBC demitiu um produtor de programa que alterou o resultado para o nome de um gatinho que seria a mascote de um programa infantil. Crianças, através de votação pela internet e telefone, escolheram o nome Cookie, mas a produção preferiu Socks. O produtor foi demitido e o programa leu um pedido público de desculpas. O que deve diferenciar a lógica de uma TV pública para a de mercado? A experimentação. A aposta em produtos de qualidade que, sob a visão rígida de índices de audiência, poderiam nunca ser produzidos. Obviamente o mercado faz isso e acerta inúmeras vezes, mas a TV pública (tal como a BBC funciona) tem o estímulo e o
financiamento para tal. Mas sem se tornar uma redoma de vidro, imune a críticas e índices de audiência. Com toda essa história e credibilidade acumuladas ao longo de anos, poderia se imaginar que a BBC é um oásis no meio da televisão mundial. Não é isso o que a própria casa acha nem o público inglês. Em outubro, o diretorgeral da BBC, Mark Thompson, anunciou um programa de redução de 1,8 mil profissionais até 2013, de forma que sobrem mais recursos para que a empresa invista em novas tecnologias. O objetivo do plano é unir as redações de TV, rádio e internet, adaptando a empresa a um mundo digital. A BBC começou, em 2007, a disponibilizar parte do seu conteúdo no YouTube, criando versões para celular de programas que podem ser baixados em qualquer lugar. Sendo uma estrutura pesada, de mais de 20 mil funcionários, a BBC sabe que precisa se reinventar para garantir o apoio popular que financia diretamente, através da taxa da televisão, o seu funcionamento. Não é uma pressão diária dos mercados e anunciantes, mas planos estratégicos, de longo prazo e respeito pelo dinheiro dos contribuintes. Que fazem com que seus executivos cortem na carne, se necessário, para cumprir uma missão que teve início ainda em 1922. DEZ 2007 • Continente x
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TELEVISÃO Em junho de 2006, Hélio Costa, ministro das Comunicações, anuncia a adesão do Brasil ao sistema japonês
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caminhos, descaminhos e desafios Edgard Rebouças
“U
ma nova era está chegando: TV Digital”. Este é o slogan de uma campanha que está sendo veiculada por várias emissoras de rádio e TV desde o início de outubro. Em 30 segundos, esposa, filhos e empregada preparam o mal-informado Sr. Nascimento para as mudanças previstas para acontecer em suas vidas a partir do dia 2 de dezembro, com o início das transmissões da televisão digital no Brasil. A situação do Sr. Nascimento parece ser a mesma da maioria da população brasileira: o que vem a ser mesmo essa tal de nova TV que está chegando?
Fabio Pozzebom ABr
Por enquanto, a resposta está sendo dada apenas pelos patrocinadores da campanha: Globo, Record, SBT, Bandeirantes, Rede TV! e Cultura, em parceria com Panasonic, Philips, Semp Toshiba, Sony, Tectoy, Samsung e LG. Mas uma infinidade de perguntas ainda está em aberto... Esta breve história, que dá apenas um pequeno passo neste final de 2007, teve início em janeiro de 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo após a posse de seu primeiro governo, disse ao então ministro das Comunicações, Miro Teixeira: “Quero assistir à Copa de 2006 numa TV Digital brasileira”. Uma única frase gerou, de uma vez só, dois grandes problemas: 1) o de correr contra o tempo; e 2) o de criar um sistema nacional, em paralelo ao que já vinha sendo pesquisado nos Estados Unidos, na Europa, no Japão e na China. Para mostrar suas boas intenções, logo de saída, o governo colocou à disposição R$ 80 milhões para financiar os estudos de base sobre o que passou a ser chamado de Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Cerca de 60 institutos de pesquisa – entre eles o Centro de Informática (Cin/UFPE) e o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar) – se empenharam em cumprir com as duas tarefas presidenciais. Apresentava-se assim uma efetiva possibilidade de o Brasil não precisar depender de tecnologia estrangeira para o setor. A melhor solução seria a fabricação no país de um aparelho conversor que
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captaria qualquer sistema, sem a necessidade de gastos com um novo televisor; e no início de 2006 um relatório do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) apontava para a total viabilidade do sistema brasileiro. Era preciso apenas mais tempo para aperfeiçoar a tecnologia e chegar a um set-top box com valor compatível à realidade nacional. Após todo o tempo e os milhões investidos, no final de junho de 2006 o que prevaleceu foram os acertos feitos entre o Ministério das Comunicações, um grupo de emissoras de TV e um consórcio de empresas japonesas. Ironicamente, um dia antes da derrota do Brasil para a França na Copa do Mundo, foi publicado o Decreto nº 5.820, criando o SBTVD-T. Como principal moeda de troca estava a construção da primeira fábrica de chip em território nacional, após a debandada das empresas de semicondutores para o leste asiático, no início dos anos de 1990. Uma nova data foi marcada para o início das transmissões da TV Digital: o dia 2 de dezembro, que entrará para a história, pelo que está sendo anunciado, como um marco da revolução nas comunicações. E de junho de 2006 para cá a corrida passou a ser para quem consegue fabricar aparelhos de TV e set-top box com preços acessíveis aos brasileiros. Até o momento está difícil. O que caracteriza a futura TV Digital em oposição à tradicional TV analógica são cinco “vantagens”: o formato 16:9 da tela, a alta definição de imagem e som, a mobilidade, a interatividade (com multisserviços) e a multiprogramação. Todas precisam ser relativizadas e contextualizadas. Quanto ao formato 16:9, semelhante à tela de cinema, há algumas considerações a serem feitas. Primeiramente é necessário lembrar que o ambiente do cinema é grande e escuro, e o das salas ou quartos são pequenos e claros. Tal formato acaba prejudicando a imagem nos televisores ainda em dimensões 4:3. Com as tarjas pretas nas partes superior e inferior da tela, há uma perda de 32,5% da área de imagem; isso faz com que um aparelho de 29 polegadas passe a ter um campo de visão menor que o de um aparelho de 20 polegadas; e estes, por sua vez, mostrarão uma imagem semelhante a de uma pequena TV de 14 polegadas. Enquanto toda a conversão de câmeras e televisores não for completa – o que está previsto para os próximos 10 anos –, os aparelhos em 4:3 perderão espaço nas partes de cima e de baixo e os em 16:9 terão algumas imagens cortadas verticalmente dos lados. Em relação à alta definição de som e imagem haverá o fim de chuviscos e chiados, mas, dependendo da qualidade de gravação, edição e transmissão, pode haver o travamento ou salto de imagens, o aparecimento de pequenos quadrinhos reticulados na tela e a falta de sincro-
VOCABuLárIO DIGITAL TV Digital É uma tecnologia de transmissão de sinais de televisão, que proporcionará uma melhor qualidade de imagens e sons e uma série de novos benefícios, tais como ver televisão quando em deslocamento e interação com os programas.
Definição É o nível de detalhamento que a imagem pode possuir – esta é medida em número de linhas horizontais, padronizada no sistema ISDB em 480, 720 e 1080 linhas.
ISDB-TB (Integrated Services Digital Broadcasting – Terrestrial)
É a sigla do sistema de TV Digital Terrestre Brasileira, desenvolvido originalmente no Japão e que o Brasil adotou com algumas alterações.
EPG (Electronic Program Guide) É uma forma bem simples de interatividade, que já se vê, atualmente, nos sistemas de TV por assinatura. São dados sobre a programação dos vários canais, por exemplo, o nome e o gênero das atrações atuais e subseqüentes.
Conversor ISDB ou Conversor Digital ISDB É o componente que converte o sinal da TV Digital para exibição das imagens no televisor, conhecido em inglês como set-top box. O conversor pode ser vendido separadamente no formato Set Top Box ou estar incorporado (integrado) ao televisor.
TV ISDB Digital – Transmissão (sinal aberto) É o sinal de TV terrestre que é transmitido de forma digital. O grande benefício deste sistema é que não há perda da qualidade no processo de transmissão. A imagem e o áudio permanecem 100% com a qualidade do sinal original, eliminando os ruídos e as interferências que caracterizam o sistema analógico. (fonte: www.dtv.org.br)
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TELEVISÃO nia do áudio, da mesma forma que ocorre com os DVDs e CDs. Outro problema é que as faixas destinadas às transmissões digitais são em UHF, entre os canais 14 e 69, e a maioria das antenas e fiações de casas e condomínios são ainda para recepção em VHF (canais 2 a 13). Se não trocar tudo, o sinal continuará sendo o analógico. a alta definição tem também preocupado muito as produtoras e emissoras no que se refere à maquiagem, à iluminação e ao cenário. A partir da TV digital, sombras, defeitos de cena e rugas ficarão mais visíveis. Tal situação provocou no ano passado, em Hollywood, uma corrida prematura às clínicas de cirurgia plástica por parte de estrelas da TV. Outro ponto a ser levado em consideração com o novo sistema é a mobilidade (aliás, a principal característica do modelo japonês). Se o sinal de transmissão for forte, haverá a possibilidade de se assistir a programas em TVs portáteis. Mas a exemplo do que ocorre com os telefones celulares, em determinados locais, não há a garantia de um bom sinal. Mesmo no caso de São Paulo, onde a TV digital está sendo inaugurada, não haverá cobertura em todos os bairros. Este aspecto da mobilidade tem sido fonte de grande dor de cabeça para as emissoras de TV, pois a legislação deixa uma brecha para que empresas de telefonia entrem nesse mercado. É o que está sendo chamado de guerra do plim-plim versus o trim-trim. Esta questão revela uma disfunção histórica no setor de televisão no Brasil, onde quem produz o conteúdo também se ocupa da distribuição. A forma como está configurado o atual quadro da TV digital abre também a possibilidade inversa, de o transportador – Telefônica, Oi/Telemar, Brasil Telecom... – começar a fornecer conteúdo. A disputa ainda vai gerar
muitos atritos. Uma outra possibilidade do sistema digital é a interatividade. Aí, sim, surge a abertura para que ocorra uma efetiva mudança no modo de se fazer e ver televisão. Com a interatividade será possível uma gama de multisserviços como, por exemplo: acessar produtos e serviços, fazer compras, interagir com a emissora e com outros espectadores, participar de jogos, entre outras vantagens. Para que isso ocorra será necessária uma mudança radical na lógica linear da programação, pois o espectador sairá da cômoda posição de receptor, podendo criar sua própria grade de programas. O uso da TV tende a ficar muito parecido com o que ocorre hoje com a internet. A princípio, as emissoras estão preferindo não pensar muito nisso. Estão apostando na inércia do telespectador. Outro fator contrário à interatividade é que o acesso ao canal de retorno terá que ser pago. Por fim, a quinta “vantagem” anunciada é a multiprogramação. A princípio, estudava-se a possibilidade de transmissão simultânea de vários conteúdos pela mesma emissora, deixando a opção para o telespectador, – no entanto, isso se mostrou inviável por questões tecnológicas. Dessa forma, o modelo atual de monoprogramação será mantido, com geração simultânea em analógico e em digital do mesmo programa, só que em canais diferentes. O que será possível é o recurso da exibição de múltiplas telas, contanto que o televisor tenha está função. A multiprogramação também está associada ao “mito dos 500 canais”, onde o espectador teria a opção de acesso a uma vasta programação, com conteúdos variados. Mas não confunda TV digital com TV por assinatura. Esta continuará chegando a apenas 11% dos lares brasileiros via satélite ou a cabo. A TV digital Alexandre Belém/JC
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O dilema da TV no Brasil: mudar conteúdos ou acabar com chuviscos e chiados?
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Reprodução
oferecerá o mesmo número de canais hoje existentes, com o acréscimo de algumas poucas novas concessões, como o caso da TV Brasil, do governo federal.
as cinco possibilidades da futura TV digital Formato da tela A tela dos monitores digitais passará do formato 4:3, típico da TV analógica, para o formato 16:9, o mesmo usado nas telas de cinema.
definição de imagem e som Os primeiros aparelhos receptores de TV tinham apenas 30 linhas de vídeo. Ao longo das décadas de 30 e 40, os novos aparelhos já apresentavam 240 linhas de vídeo. Atualmente, um monitor analógico de boa qualidade apresenta entre 480 e 525 linhas. Na televisão digital de alta definição, chega-se a 1080 linhas com o padrão HDTV. Em relação à qualidade de som, a televisão iniciou com som mono (um canal de áudio), evoluiu para o estéreo (dois canais, esquerdo e direito). Com a TV Digital, passará para seis canais (padrão utilizado por sofisticados equipamentos de som e home theaters).
Mobilidade A mobilidade é a principal característica do modelo japonês adotado pelo Brasil. Se o sinal de transmissão for forte, haverá a possibilidade de se assistir a programas em TVs portáteis. Mas a exemplo do que ocorre com os telefones celulares, em determinados locais, não há a garantia de um bom sinal. Mesmo no caso de São Paulo, onde a TV Digital está sendo inaugurada, não haverá cobertura em todos os bairros.
interatividade (com multisserviços) Com a interatividade será possível uma gama de multisserviços como, por exemplo: acessar a produtos e serviços, fazer compras, interagir com a emissora e com outros espectadores, participar de jogos, entre outras vantagens. O uso da TV tende a ficar muito parecido com o que ocorre hoje com a internet.
Multiprogramação A princípio, estudava-se a possibilidade de transmissão simultânea de vários conteúdos pelo mesmo canal, deixando a opção para o telespectador. No entanto, a TV comercial optou por manter uma única programação, em prol da alta resolução de imagem. Assim, a TV Digital oferecerá o mesmo número de canais hoje existentes, com o acréscimo de algumas poucas novas concessões, como o caso da TV Brasil, do Governo Federal.
E o Sr. Nascimento, da campanha das emissoras e dos fabricantes de TV, ainda deve estar se perguntando: “E o que eu ganho com isso?!” A resposta mais honesta a dar seria: a curto e médio prazo, nada. A TV Digital se apresenta, neste primeiro momento, como um bom negócio apenas para fabricantes de equipamentos, pois terão como clientes não só os usuários que irão adquirir novos aparelhos, mas também as produtoras, as emissoras, as retransmissoras e as geradoras de telecomunicações. Mas o prazo para que tal migração ocorra por completo vai até 2016. Enquanto isso, os estoques de aparelhos em LCD ou de plasma vão sendo desaguados no mercado sem que tenham sido ainda adaptados para receber a TV digital. O que há são aparelhos que exibem em alta definição, mas que mesmo assim precisarão dos conversores, como qualquer velha TV de 14 polegadas em P&B. Para as emissoras e produtoras não haverá ganhos a curto ou médio prazo, pois não há justificativa para a alteração dos valores das tabelas de publicidade. Haverá, sim, gastos com investimentos em novos equipamentos e qualificação de pessoal. Para piorar, há ainda a ameaça das empresas de telecomunicações, que podem começar a investir pesado no setor de conteúdo. Em paralelo a toda essa movimentação, corre por fora a Internet Protocol TV (IPTV), que utiliza a rede mundial de computadores como suporte para a veiculação de qualquer conteúdo digital de áudio e vídeo. Tela de PC e de TV passam a não ter mais diferença. E este festivo 2 de dezembro corre o risco de reproduzir algo semelhante ao ocorrido na inauguração da televisão no país, em 18 de setembro de 1950, quando Assis Chateaubriand teve que importar cerca de 200 aparelhos de televisão e distribuir entre amigos e locais públicos para poder haver alguma audiência nos primeiros dias da TV no Brasil. Ou ainda dos somente 500 aparelhos de TV em cores que havia no país, quando da transmissão da Festa da Uva, no Rio Grande do Sul, em 19 de fevereiro de 1972. As previsões são que, neste final de 2007, existam pouco mais de 1.000 aparelhos com possibilidade de captar a “revolucionária” TV Digital. Diante de todo este quadro, o melhor conselho a dar para o Sr. Nascimento seria: guarde seu dinheiro, continue assistindo ao seu futebol e à sua novela por mais um tempo. Quem sabe na próxima Copa não tenhamos alguma verdadeira novidade. A preocupação de mudança na televisão brasileira deveria estar centrada mais na questão do conteúdo – este, sim, de qualidade questionável – do que de chuviscos ou chiados. DEZ 2007 • Continente x
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TESES
Miró e sua literatura performática Na obra do poeta da Muribeca, o poema depende fundamentalmente do corpo para ser transmitido André Telles do Rosário
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fim de compreender a interação entre corpo e poesia na obra de Miró da Muribeca, compila-se aqui o substrato histórico que havia nesta relação, reminiscências de outros momentos de corporalidade na recepção de poesia ao longo da História. Como o advento da imprensa marcou um afastamento da comunicação poética interpessoal, retemos traços de diferentes tempos do uso do corpo como suporte para a poesia, curiosamente, utilizando o livro, e não o corpo, como referência. A poesia de antes da difusão da prensa de Gutemberg era baseada unicamente na situação de interação pessoal. Muito mais recentemente, a partir
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Inicialmente foi usado para atacar os preceitos clássicos, do final do auge do livro, o corpo foi readquirindo imembora já fosse construindo uma gramática própria. Tais portância na poesia, até assumir a forma das poéticas experimentações começavam a pipocar junto com o ciatuais de expressão corporal, Slam e recitais, entre ounema, e seguiram até a popularização da televisão, que tros. O contexto contemporâneo dessa corporalidade disseminou de vez a cultura de massa do audiovisual a poética, que teve sua conformação histórica propiciatodos os cantos do planeta. Depois da Segunda Guerra, da na poesia jovem e alternativa das décadas de 70 e enquanto a performance se tornava um gênero das artes 80, tem como representante fundamental a poesia de plásticas e o teatro experimentava com a vocalidade poéMiró, desde seus primeiros versos até as mais recentes tica, a poesia moderna rompia com o verso, por um lado, aparições em vídeo. e ia beber nas formas da poesia popular, por outro. Foi Na relação entre a performance e o impresso, no necessário surgir o mimeógrafo e a xerox, e depois comcaso de Miró, é possível ver um crescente grau de inputadores e impressoras, barateando as técnicas de imtersemiose nos seus livretos, e que propomos ser influpressão – além de uma febre nacional por recitais, arteência da corporalidade da apresentação sobre o livro. postal e contracultura, propiciando redes de distribuição Para definir essa intersemiose, e demonstrá-la surgine público – para a poesia passar a ser fonte de renda do na obra de Miró, com a prática do artista e através desta dupla face: performance e com o avanço dos meios de edição e impresso. Assim, o corpo foi deixanimpressão, falamos de performatido a condição de mero acessório cidade no meio impresso. Enpara se tornar aspecto central, tão, lemos a Corpoeticidade de variadas maneiras, em da literatura de Miró, em uma poesia híbrida de suas três dialéticas: (a literatura e corporaliforma d)a poesia no dade. Muitos grandes corpo, (a habitação artistas têm seguido d)este corpo na ciesse modelo de prodade e (a presença dução poética, entre d)a cidade na poeeles Miró, exemplos sia. de uma poesia urbaNa poesia de na de além dos livros, expressão oral, o baseada em recitais e poema dependia tolivretos. talmente do corpo A diferença é que para ser transmitido hoje há uma pluralida– a métrica, a música, o de de momentos estéticos jogo social compunham o e históricos acontecendo ao contexto da prática dessa arte. mesmo tempo, por isso não afirCom o livro, o corpo passou a ser mamos aqui que a poesia performática desnecessário, já que cada um podia As façanhas dos é a evolução, mas, sim, que se trata de um desler sozinho os poemas. Essa mudança, ocorheróis gregos rida em séculos, modificou a poesia não apenas eram cantadas dobramento dentre vários que surgiram a parem contexto, mas também no conteúdo e forma. pelos poetas tir dos fatos que juntamos. E que hoje ela é um aedos segmento da poesia, enquanto gênero ancestral, Os temas passaram a se sofisticar cada vez mais, num universo onde o centro está em toda parte, e várias com a inclusão de questões filosóficas e uma intertextumanifestações co-habitam pós-modernisticamente: desalidade mais deliberadamente elaborada. Além do jogo de os livros da Academia e suas leituras em livrarias e sasocial e da corporalidade terem se tornado acessórios (na raus, desde as intervenções urbanas de prêmios ou salões hipótese otimista de não terem simplesmente desaparede artes plásticas e os grapixes pelas ruas, desde o rap e os cido), a poesia se separou da música, para ser executada blogs, entre outras manifestações e cenas – até a cultura solitariamente, na leitura do livro – ou, quando muito, dos recitais e impressos que descrevemos aqui. recitada nos entreatos de peças teatrais, e em eventos sociais, como passatempos cultos (e ainda em alguns moExcerto resumido da conclusão da dissertação defendida no Programa de mentos políticos importantes). Com os modernismos, Pós-Graduação em Letras da UFPE. O texto completo está disponível no: uma série de obras passa a questionar os fundamentos da http://www.ufpe.br/pgletras/dissertacoes-mestrado.htm arte e da civilização. Mas nesse momento inicial, o corpo continuava deslocado na atenção do artista e do público. DEZ 2007 • Continente x
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DANÇA
Experimento que dá certo O Núcleo de Formação em Dança, criado em 2004, pelo Grupo Experimental, consagra-se como um caminho possível para a profissionalização em dança no Estado Christianne Galdino
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m linhas gerais, um projeto sócio-cultural aposta no caráter inclusivo para que a arte e os artistas possam minimizar os efeitos da desigualdade social que povoam o país. Cidadania: este parece ser o conceito norteador da maioria dos projetos dessa natureza. Mas não é o único e, em muitos casos, também não é mais importante do que outros objetivos artísticos ou educacionais, por exemplo. A bailarina, coreógrafa e diretora do Grupo Experimental, Mônica Lira, está no grupo dos que preferem acrescentar outros conceitos ao
ofício de um projeto sócio-cultural. Baseada nesse pensamento, dona de vasta experiência de ensino em dança, e motivada pelo desejo de institucionalizar o sistema de bolsas de estudo que já praticava no seu Espaço Experimental, ela decidiu criar, em 2004, o Núcleo de Formação em Dança, atendendo a 30 adolescentes e jovens das periferias da Região Metropolitana do Recife. “Por um lado, quis achar uma forma de poder dizer sim às muitas pessoas que vinham me pedir bolsa, por outro lado sempre acreditei que dar aula é uma ótima oportunidade para os
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Fotos: Hans Manteuffel/Divulgação
Cena do espetáculo Corpometria, 2006
bailarinos ampliarem suas possibilidades de ‘viver de dança’, além de crescerem pessoal e profissionalmente, então quis oferecer aos bailarinos do Experimental uma chance de vivenciar isso no próprio grupo” –, comenta Mônica Lira, que hoje coordena o Núcleo, deixando as atribuições de professor de dança para outros bailarinos do elenco do Experimental. Talvez seja interessante pensarmos em uma expansão do significado da palavra cidadania, como fez o coreógrafo e pedagogo da dança, o paulista Ivaldo Bertazzo, quando começou a trabalhar com alunos moradores de favelas no final
da década de 90. Bertazzo criou o conceito de “cidadão-dançante”, que definiu como “indivíduos que se dispõem a conhecer melhor as possibilidades de movimento do próprio corpo”, porque, na opinião dele, a cidadania para ser vivida em sua plenitude, passa necessariamente pela consciência corporal. Esta idéia parece ter adquirido outras formas durante o percurso do coreógrafo nas comunidades, a ponto de o próprio Bertazzo dar uma outra definição para o seu conceito. Ele passou a dizer que “cidadão-dançante é alguém que por meio da arte reposiciona seu lugar na sociedade”, demonstrando um deslocamento em direção a um maior interesse pelo lado social da questão. Os depoimentos de professores e alunos do Núcleo de Formação em Dança revelam uma unanimidade: a dimensão social não é o foco do projeto. “Os benefícios sociais vêm por acréscimo, mas o nosso objetivo é a profissionalização em dança” – esclarece Mônica Lira. E para este objetivo se concretizar, os alunos-bailarinos do Núcleo, com idades entre 12 e 26 anos, dedicam cerca de 20 horas semanais às aulas de balé clássico, alongamento, dança contemporânea e o que se poderia denominar de aula teórica. Este componente da formação ficou sob a responsabilidade do jornalista e bailarino Marcelo Sena. Implantado no ano passado, o laboratório de improvisação em dança contemporânea, orientado pela bailarina e também professora de dança clássica, Ana Emília Freire, completa a grade curricular do curso, e tem ajudado a revelar muitos talentos para a criação em dança. Ela conta que “o trabalho de improvisação foi iniciado a partir das matrizes pré-determinadas. Agora está bem mais maduro e eles já criam a partir de suas próprias sugestões de movimento. Alguns até resolveram investir paralelamente em uma carreira independente, como é o caso de Gessé Rosa, que fundou o grupo Sete & Oito para iniciar-se como criador-intérprete e já conquistou até prêmio de melhor espetáculo em um festival de dança, em Minas Gerais”. Garantindo uma didática em que prática e teoria DEZ 2007 • Continente x
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DANÇA são indissociáveis, Sena trabalha com os jovens aprendizes do Núcleo história da dança (numa perspectiva que ele chama de abordagem relativizada), processos criativos e as profissões da dança. “Existem várias formas de fazer trabalhos sociais e eu acredito muito mais nos que são de caráter profissionalizante. Nossa preocupação principal aqui é ensinar uma profissão aos jovens que têm vontade de segui-la e não tiveram oportunidade. Continuidade é o grande mérito de um projeto como o Núcleo, e o que dá consistência a qualquer processo de formação” – defende o professor. Mas essa continuidade mencionada por Marcelo Sena não foi conquistada com facilidade e, infelizmente, nestes três anos de existência, o projeto teve que passar por longos períodos de interrupção, por falta de financiamento. No primeiro ano de vida, o incentivo veio através do SIC (Recife) – Sistema Municipal de Incentivo à Cultura. E o resultado do investimento apareceu de imediato, em dezembro de 2004: os alunos do Núcleo levaram ao palco seu espetáculo de estréia Reflexos do Cotidiano. Já no ano seguinte, uma nova montagem intitulada Passado Presente cumpriu curta temporada no Teatro Armazém 14. Em 2006, parcerias com a Chesf e com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Cidadania garantiram a tão desejada e necessária continuidade do projeto e a apresentação de mais um espetáculo, Corpometria.
O último espetáculo do Núcleo de Formação em Dança foi Corpometria
Os alunos do núcleo na montagem Passado Presente, 2005
Em 2007, ano de formatura dos primeiros 20 bailarinos do Núcleo de Formação em Dança, depois de interromper mais uma vez as atividades por falta de financiamento, o projeto conseguiu aprovação no SIC (Recife) e o apoio direto da Coopergás. Isto possibilitou a realização do módulo de aperfeiçoamento, que representa a etapa conclusiva da formação básica dos bailarinos; além de uma série de atividades para comemorar a conclusão da primeira turma do Núcleo. Depois de exemplificar a metodologia do curso em uma “Aula Experimental” para os apoiadores e o público convidado, realizar performances de improvisação durante exposição de arte no Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães – Mamam e dançar em vários eventos da área na Região Metropolitana do Recife, o jovem elenco se prepara para apresentar “um espetáculo de espetáculos” no Teatro Armazém, no dia 19 de dezembro, às 20h. Abrindo a noite de A formatura dos apresentações, eles primeiros 20 mostram alguns exbailarinos do Núcleo perimentos cênicos realizados nos labo- de Formação ratórios de Improvi- em Dança será sação em dança concomemorada este ano temporânea. 76 x Continente • DEZ 2007
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“Depois deste ciclo de preparação técnica, queremos aproximá-los mais da linguagem de dança contemporânea do Experimental. Por isso, orientamos os alunos do Núcleo em um processo de estudo e remontagem de alguns dos espetáculos mais significativos do repertório do Grupo. Vamos selecionar um grupo de alunos do núcleo para participar da remontagem das principais obras do Experimental, que serão apresentadas durante as comemorações dos 15 anos da Companhia, em 2008”, conta Mônica Lira. Na festa de encerramento, os bailarinos da primeira turma do projeto vão apresentar uma espécie de Remix Experimental, contendo coreografias de Zambo (1997) e Quincunce (2000), além do espetáculo Barro-Macaxeira (2001). Em um lugar como o Recife, carente de políticas culturais públicas e ainda à espera da primeira graduação em dança, a iniciativa do Grupo Experimental e de sua diretora Mônica Lira aparece como um caminho viável de profissionalização em dança contemporânea, mesmo considerando a dificuldade para traçar os limites entre ser profissional e ser amado, quando se trata da profissão de bailarino. O fato é que, somente este ano, quatro dos bailarinos do Núcleo tornaram-se estagiários do Grupo Experimental: Ramon Milanez, Daniel Silva, Jennyfer Caldas e Adelmo Andrade, todos eles atuando paralelamente em outras companhias profissionais de dança do Recife. Além disso, Ramón e Daniel trabalham também como monitores do próprio Núcleo e desde 2006 dançam com o elenco principal do Experimental. A inserção e manutenção destes bailarinos no mercado de trabalho cultural da cidade já é uma realidade. Isso quer dizer que a profissionalização começa a se consolidar como meta tangível. Sem descuidar dos aspectos sociais do projeto, Mônica Lira priorizou a qualidade artística, e os primeiros resultados parecem indicar que ela fez a escolha certa. As palavras do encenador José Manoel sobre a atuação da artista parecem endossar esses acertos, resumindo causas e conseqüências deste projeto sócio-cultural do Grupo Experimental e traduzindo duas das principais lições do Núcleo de Formação em Dança: generosidade e persistência: “Mônica é um bom exemplo da capacidade que um artista tem de reorganizar, de requalificar, de reacender em si e nos outros a chama das múltiplas possibilidades. A capacidade que Mônica tem de se refazer e de contribuir para que outros artistas sejam apresentados ao público do Recife faz com que pensemos nela como mestra da pedagogia do recomeço”.
SERVIÇO Mais informações: 81.32241482 /grupoexperimental@ig.com.br DEZ 2007 • Continente x
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TEATRO
Interstícios da memória
A história teatral pernambucana é mais uma vez documentada no terceiro volume de Memórias da Cena Pernambucana Alexandre Figueirôa
Fotos: Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana
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memória coletiva é um traço fundamental na ções e desafetos velados. Apenas acho que ter em mãos constituição de uma identidade. É por meio um documento que reconte pela voz do próprio Ariano dela que se rearticulam afinidades e se redes- Suassuna, junto com Socorro Raposo, Luiz Marinho cobrem as raízes comuns de um grupo social. e Victor Moreira como foram os acontecimentos que Ao se lançar um olhar sobre os lugares e os personagens resultaram no estrondoso sucesso de A Compadecida, que compartilharam experiências comuns, recuperam- texto e montagem, que consagraram, em 1957, o grupo se elementos essenciais que dão sentido ao presente e dirigido por Clênio Wanderley e Suassuna como drafaz-se ressurgir dos interstícios da memória a compre- maturgo; e Reinaldo de Oliveira, Fernando de Oliveira, ensão do seu sentido histórico. Assim, como já o fize- Geninha da Rosa Borges, Vanda Phaelante e, mais uma mos anteriormente, não podemos deixar de enaltecer vez, Luiz Marinho, pontuarem a história do TAP, o mais o projeto empreendido por Leidson Ferraz, Rodrigo antigo grupo teatral em atividade no Brasil, uma valiosa Dourado e Wellington Júnior de oferecer ao leitor in- fonte para os estudos teatrais. Os acontecimentos narrados sobre esses dois gruteressado na nossa história teatral o terceiro volume de Memórias da Cena Pernambucana, apresentando, nesta pos, a meu ver, revelam para o presente um dos períoedição, mais nove grupos que tiveram participação ati- dos mais ricos de nossa diversa tradição cultural, situados entre os anos 1940 e 1960, quando o teatro feito va nesta trajetória. Este novo volume, porém, aparece revestido de in- em Pernambuco atravessou as fronteiras da província teresse redobrado, pelo menos aos que se dedicam efe- e chamou a atenção de nomes como Paschoal Carlos tivamente a uma pesquisa cuidadosa sobre os palcos pernambucanos, por apresentar em suas páginas a reprodução da longa conversa mantida com os integrantes de pelo menos duas experiências cênicas que consideramos merecedoras de um olhar acurado: o Teatro Adolescente do Recife e o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). Espero que tal ênfase de minha parte não gere incompreensão, incômodo, ou desperte dos que não receberam o mesmo destaque nesta resenha sobre a obra, a impressão de que desprezo os outros relatos ou que minhas palavras ocultam inten- Cena da peça A Compadecida, que consagrou, na década de 50, o Teatro Adolescente do Recife 78 x Continente • DEZ 2007
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Isaac Amorim Filho\Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana
Guarani com Coca Cola, montagem do Teatro Universitário Boca Aberta – Tuba, em 1980
Magno, responsável pela ida do Teatro do Adolescente para o I Festival de Amadores Nacionais, no Rio de Janeiro; e que trouxe ao Recife o polonês Ziembiski, que aqui morou durante cerca de um ano, dirigindo para o TAP textos de Thornton Wilder – Nossa Cidade – e J. B. Priestley – Esquina Perigosa. O mesmo TAP capaz de se confrontar com dramaturgos do porte de Garcia Lorca e Nelson Rodrigues e que, em 1963, com direção de Valdemar de Oliveira, deu vida ao delicioso texto de Luiz Marinho Um Sábado em 30, sem dúvida, o maior êxito de sua longa história. É neste período que também vamos encontrar – algo facilmente verificável pelas notas explicativas que acompanham, no livro, as exposi-
ções dos convidados – uma intensa atividade crítica teatral sendo exercida em Pernambuco, capaz de nos revelar os principais embates estéticos e ideológicos protagonizados na imprensa local. Embates estes cujas principais polêmicas eram provenientes exatamente do saudável exercício da reflexão sobre a produção e que levou, por exemplo, Valdemar de Oliveira e Ariano Suassuna a medirem forças em torno da questão do teatro popular, época na qual assumir posições era um exercício saudável e que, infelizmente, os anos do regime militar parecem ter enterrado para sempre.
Nossa Cidade, de Thornton Wilder, montada pelo TAP
Neste sentido, parece-nos, interessante, aqui, registrar outro grupo deste volume que de alguma maneira revela como foram os anos de chumbo para a cena teatral do Recife. Trata-se do capítulo reservado ao Teatro Universitário Boca Aberta – Tuba, grupo que nasceu na Universidade Católica de Pernambuco e ocupou o espaço da cena alternativa do Recife no final dos anos 70. Apesar dos poucos espetáculos por ele produzidos, a partir do relato de Eduardo Diógenes, Manoel Constantino, Helena Pedra e Luiz Maurício Carvalheira tomamos contato com um movimento estudantil cuja ousadia traduzia-se em riscos, e que, depois da passagem do lendário Asdrúbal Trouxe o Trombone pelo Recife, em 1978, com o espetáculo Trate-me Leão, não perdeu tempo e seguindo a mesma filosofia do grupo carioca realizou pelo menos duas Mémorias da Cena montagens que, se Pernambucana não foram aclamaLeidson Ferraz, Rodrigo Dourado,Wellington Júnior das nacionalmente, tiveram o papel de R$ 10,00 espelhar as inquiemcenape@uol.com.br tações de uma geração: O Pequeno Teatro da Felicidade, texto de Márcio de Souza, e um trabalho coletivo intitulado Guarani com Coca-Cola. Embora menos marcante enquanto experimentação como foi o Tuba, seria injusto, porém, não lembrar que neste terceiro volume de Memórias da Cena Pernambucana também podemos conferir a tentativa de se formar uma cooperativa de artistas tal e qual foi empreendida por Renato Phaelante, Albemar Araújo e Marilena Breda, entre outros, quando fundaram a Cooperarteatro; o desenvolvimento do ator e o interesse pela pesquisa da linguagem teatral da Cia. Théspis de Repertório; e o teatro de bonecos do Mão Molenga, uma expressão das mais elaboradas, mas que nem sempre tem seu real valor reconhecido. DEZ 2007 • Continente x
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é agora
Exposição em comemoração aos 40 anos da Tropicália aponta aos cinco sentidos que a influência estética e cultural do não-movimento não tem fronteiras
Ilustração para o portal UOL em comemoração aos 40 anos do movimento
Isabelle Câmara
E
ra 1967. O Brasil acuado pela ditadura ganha um novo desenho que trouxe uma forma mais inquietante (e inquieta) de se olhar para o país, focado a partir de sua liberdade, suas cores, sons, gostos, sua miséria cultural. Os artistas eram Hélio Oiticica e Caetano Veloso. Oiticica era um agente provocador de todas as artes e Caetano era um jovem cantor disposto a pôr suas idéias nos ouvidos nacionais. Em abril, o Museu de arte Moderna do Rio de Janeiro recebe a exposição Nova Objetividade Brasileira e nela HO apresentava a instalação Tropicália, um ambiente em forma de labirinto com plantas, areia, pedras, araras, um aparelho de TV e capas de parangolés (termo
cunhado por Oiticica para designar uma obra de arte feita para ser usada como roupa, que só ganha sentido se vestida pelo espectador). Tropicália, a obra, deu nome à “Tropicália”, a música de Caetano. Depois da canção, “Tropicália” virou o estado-maior Tropicália: ou Panis et Circensis, álbum coletivo com caráter de manifesto, coordenado por Caetano, que selecionou o repertório e destacou canções inéditas de sua autoria, ao lado de outras de Gil, Torquato Neto, Capinam e Tom Zé. Completavam o elenco Os Mutantes, Gal Costa e Nara Leão, além do maestro Rogério Duprat. Mas, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha; a peça O Rei da Vela, montada por José Celso Martinez
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Corrêa; o romance Panamérica, do escritor e cineasta José Agripino de Paula; a Poesia Concreta dos irmãos Campos e Décio Pignatari, a poesia e filosofia antropofágica do modernista Oswald de Andrade, autor do Manifesto Antropófago e da peça O Rei da Vela, também deram o barro fundamental ao que hoje está conhecido como Tropicália. Para além de qualquer “ismo”, Tropicália é muito mais estado de invenção que se prefere não-movimento, pois assim transcende o objeto e torna-se exercício constante e experimental de liberdade e risco – um possível carnaval pós-qualquer conceito que rompe a modernidade, ainda presa à tradição, e leva o país para a contemporaneidade com uma tomada de atitude estética e política ; ações que, como disse Décio Pignatari, foram “medula e osso” na renovação da cultura brasileira. Posição de radicalidade crítica e criadora diante da realidade brasileira; pluralidade, deboche, improviso, irreverência, vanguarda cultural como sinônimo de militância, da instauração de novos processos criativos, da utilização da “cultura de massa” com a finalidade de desmascarar e ultrapassar o subdesenvolvimento através da explosão de suas contradições mais agudas; “ver” com olhos “livres”. E também moda colorida, jeito alegre de namorar e um programa de domingo para a televisão. Toda essa aura é captada na exposição cultural Tropicália: 40 anos, em cartaz no Centro Cultural Banco do Nordeste.
Diferente da nova mostra apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), até setembro passado, organizada pelo argentino Carlos Basualdo e que fez um elo com os herdeiros da Tropicália, a exposição daqui tem um caráter bem didático: exibe, pela primeira vez no Nordeste, a instalação Tropicália, que deu nome ao movimento, de Oiticica, e realiza um processo quase iniciático no espectador. A intenção se formaliza com as outras peças: a bandeira Seja marginal, seja herói; fotografias documentais utilizadas em capas e encartes de discos, realizadas pelo fotógrafo Ivan Cardoso; imagens do cenário da peça O Rei da Vela; jornais, cartazes, capas de discos e livros, vídeos; o monólogo Antônio Conselheiro, com Zé Celso Martinez; mostra de filmes; shows; reedição e lançamento de livros. São cerca de 200 peças que, aliadas às palestras e debates, trazem o calor das manifestações artísticas que propunham inquietar e estimular a ação, desconstruindo as situações habituais de recepção da arte e os limites convencionais entre elas e o espectador. “A Tropicália é uma ‘geléia geral’, por isso não se esgota”, avalia Solon Ribeiro, curador da mostra em Fortaleza. Não se esgota em forma nem em conteúdo. Quarenta anos depois, a história continua. Por isso, a pergunta que não cala: quem são os herdeiros da Tropicália? “Seria uma outra mostra”, reflete Maurício Coutinho, parceiro de Solon na curadoria da mostra do CCBNB.
Os Parangolés de Hélio Oiticica
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O espetáculo Doces Bárbaros reuniu Gil, Caetano, Gal e Betânia Um alerta de Jorge Mautner: até Carla Perez se diz filha da Tropicália
Apesar de ter se revelado tão explosiva quanto breve, com pouco mais de um ano de vida oficial, a Tropicália seguiu influenciando grande parte da música popular produzida no país pelas gerações seguintes. Até mesmo em trabalhos posteriores de grandes nomes da MPB mais tradicional, como Chico Buarque e Elis Regina, podem-se encontrar efeitos do som universal tropicalista. Sua abertura de possibilidades sonoras e quebras de barreiras entre gêneros e padrões de qualidade influenciaram direta e indiretamente as gerações seguintes, como, ainda nos anos de 1970 e 1980, a Ave Sangria, Alceu Valença, Ney Matogrosso e a Vanguarda Paulista, que incluía Arrigo Barnabé – principal representante dessa vanguarda, com sua irreverência, experimentação e invenção –, Itamar Assumpção e o Grupo Rumo. Nos anos 90, Chico Science e sua Nação Zumbi fizeram surgir uma das expressões mais fortes do panorama musical nacional, empregando recursos tipicamente tropicalistas: o diálogo estratégico de ritmos e brinquedos regionais com os universais. O estilo foi classificado como movimento, com direito a manifesto influenciado pela antropofagia oswaldiana, e ganhou o nome de Manguebeat, assumindo, também, uma postura tropicalista na atitude estética e política: ganhou ruas, praças, modos, moda e fez com que
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nos Tribalistas, reverência aos tropicalistas feita por Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes. Ainda na virada do século, a Tropicália se impôs no Brasil e ganhou um caráter mundial como um das mais inovadoras propostas musicais do século 20. Nos últimos anos, conceituadas publicações como o jornal norte-americano The New York Times ou a revista britânica The Wire dedicaram artigos extensos à Tropicália. Um revival até inusitado, que parece ter sido despertado pelo culto às obras de Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes que bandas como Stereolab, Tortoise, Nirvana, High Lamas e cantores do pop internacional, como David Byrne, Beck e Sean Lennon, admitiram já vir praticando há anos. Aliás, Beck cumprimenta Hélio Oiticica numa obra absolutamente interativa da música pop, como os Parangolés de HO, quando lançou, no final do ano passado, seu álbum pela internet e deu aos ouvintes a possibilidade de criarem suas próprias versões. Nada mais tropicalista. No Brasil, Adriana Calcanhoto, Pedro Luís e a Parede, Chico César, Zeca Baleiro, Los Hermanos, Cidadão Instigado, Zé Miguel Wisnik, Paulo Tatit e seu selo Palavra Cantada, Armandinho, + 2 (formada por Moreno Veloso, Domenico Lancelotti e Kassin), Dona Zica, além do A montagem de O Rei da Vela, por José Celso Martinez, foi uma das bases do Tropicalismo som ligado às periferias Pernambuco se renovasse social, histórica, econômica e urbanas (como o rap e o funk), trazem um forte laço culturalmente diante do mundo. E a tropicália gestada com as bases do Tropicalismo, nem tanto pela sonoripor Chico Science colocou em destaque e abriu espaço dade, mas, sobretudo, pelo aspecto da atitude libertária para artistas como: Lenine, Eddie, Otto, Mundo Livre e libertadora diante dos preconceitos que, nos anos de S.A. Mombojó, Siba, Noise Viola, Devotos, Alessandra 1960, engessaram a modernização e a criatividade no Leão, Silvério Pessoa, Lula Queiroga, Tiné, Spok Frevo país. Como alerta Jorge Mautner (homem das 10 profisOrquestra, China, que mantêm a linha de modernizar o sões artísticas: poeta, cantor, compositor, violinista, pianista, bandolinista, escritor, cineasta, cartunista e artista som local a partir de influências mundiais. A sintonia com o canibalismo oswaldiano também plástico.), até Carla Perez, com seu rebolado em cima é evidenciada em outros trabalhos, como em Pedro do trio elétrico, se declarou filha da Tropicália, o que foi Luís, Mathilda Kóvak, Suely Mesquita e Arícia Mess, aceito, em estado de emoção, por Gil. “O âmago do Braque, não por acaso, lançaram, em 1993, um projeto sil floresceu com a Tropicália. A Tropicália foi transmucom pose de movimento, intitulado Retropicália, ou tação instantânea e democrática de tudo”. José Agripino de Paula, autor de Panamérica
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angaceiros dançam forró enquanto Lampião ri, toma uísque importado e se perfuma diante da câmera. A imagem é tão curiosa quanto impactante porque o bandido raramente é visto assim tão relaxado, tão humano. Essa imagem exibida há 10 anos no filme O Baile Perfumado (1997) é também libertadora. Ela rompe a aura mitológica da iconografia do cangaço e do sertão ao mostrar um Lampião que se rende às suas fraquezas, no caso, o prazer de consumir e de se divertir como qualquer mortal. Lírio Ferreira e Paulo Caldas foram ainda mais longe ao ousar mostrar nO Baile Perfumado um sertão pulsante, verde e quase tão molhado quanto o mangue
que influenciou as músicas de Chico Science & Nação Zumbi na trilha sonora do filme. Graças à ousadia desses e outros realizadores, pernambucanos ou não, um “novo” sertão tem aparecido e ganhado representatividade nas telas brasileiras tanto do cinema quanto da televisão. Esse “novo” sertão não é mais aquele deserto miserável e violento povoado por “dragões da maldade” e “santos guerreiros” como nos filmes de Glauber Rocha. Também não é a região poética de mitos, folclore e heróis populares que encontra sua expressão máxima na literatura de Ariano Suassuna. Esse “novo” sertão é de carne e osso, como definiu o diretor Karim Ainouz no
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Em O Céu de Suely, a imensidão da paisagem seca e ocre oprime os sonhos de Suely
Graças à ousadia de realizadores, pernambucanos ou não, um “novo” sertão tem aparecido e ganhado representatividade nas telas brasileiras tanto do cinema quanto da televisão Katia Augusta Maciel
Novos ventos sopram do sertão making off do filme O Céu de Suely (2006). É um espaço habitado por pessoas com sonhos e desejos bem reais e atuais. Gente que ama, chora, compra, sonha, trabalha, enfim, vive. Essas pessoas não negam sua história, lendas, cultura, mas se identificam também com flores de plástico, eletrodomésticos, caminhões, motocicletas e aspirinas, por exemplo. Não se trata aqui de fazer apologia a um sertão globalizado, onde não há conflito de interesses e tudo circula livremente. É bom que fique claro que os problemas de acesso às terras e bens de consumo, apadrinhamentos políticos e secas periódicas, que inspiraram a criação de anjos anunciando o fim dos tempos ou heróis que lutam contra forças ex-
traordinárias, ainda existem tanto no sertão real como no fictício. Em Árido Movie (2004), por exemplo, estão a matriarca e os filhos truculentos que controlam as terras com armas e altas doses de violência. O filme também mostra a visão romantizada de jovens burgueses que projetam na região suas próprias fantasias. Em Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) e A Máquina (2005) continuam presentes também aqueles que querem deixar o sertão e tentar a sorte em outros lugares. Ranulpho, personagem de João Miguel em Cinema, Aspirinas e Urubus, por exemplo, está exaurido pela secura da terra e já não suporta mais a falta de perspectiva em sua vida, mas não tem nada de naïf. No DEZ 2007 • Continente x
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CINEMA
Deserto Feliz é um filme de 2007, ambientado no sertão
filme de Karim Ainouz, a imensidão da paisagem seca e ocre oprime os sonhos de Suely (Hermila Guedes), sem sufocar sua ousadia cosmopolita. Ainouz e Paulo Caldas colaboram com Marcelo Gomes no roteiro de Cinema, Aspirinas e Urubus. Junto com Lírio Ferreira (Árido Movie) e João Falcão (A Máquina), esses realizadores formam o grupo que tem traçado os contornos dessa paisagem sertaneja pessoal, humanizada e concreta, em contraposição às narrativas épicas e fabulosas de outros autores. O exemplo mais recente que se diferencia desse sertão de carne e osso é o da minissérie A Pedra do Reino,
Cena do filme Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes
baseada na obra de Suassuna e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. A minissérie foi exibida pela Rede Globo e também em alguns cinemas, em formato digital de alta definição. Carvalho criou um universo mítico-barroco composto de referências diretas e indiretas ao teatro, aos romances ibéricos de Cervantes, ao folclore nordestino e à literatura de cordel. Esses elementos-chaves da obra de Suassuna foram retrabalhados na narrativa audiovisual transparecendo nos ricos figurinos, cenários, e até nas performances dos atores e no posicionamento das câmeras. Mas apesar do esmero da produção, o resultado decepciona. Não por falta de
beleza nem de valor artístico, e, sim, por transformar um personagem tão humano como Quaderna em um ser mirabolante, pitoresco, rebuscado e, por isso mesmo, distante, inacessível. O público se dividiu entre os que acharam a minissérie simplesmente indecifrável, entediante e complicada, e os que embarcaram nas fantasias e agradeceram a tentativa de Carvalho de elevar a qualidade dos programas exibidos na TV aberta. Aliás, a “cruzada” de Luiz Fernando Carvalho contra os “dragões” do chamado “lixo eletrônico” começou muito antes de A Pedra do Reino. Em 1994 e 1995, respectivamente, ele adaptou para a telinha outras duas obras de Suassu-
O filme O Baile Perfumado (1997) rompeu com a aura mitológica da iconografia do cangaço e do sertão
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A minissérie A Pedra do Reino, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, diferencia-se desse sertão de carne e osso
na: Uma Mulher Vestida de Sol e A Farsa da Boa Preguiça, ambas com boa aceitação de público e crítica. Em 2001, dirigiu a minissérie Os Maias, baseada no romance homônimo de Eça de Queirós e, recentemente, foi responsável por Hoje é Dia de Maria, outro grande sucesso de qualidade e popularidade. Está provado, portanto, que é possível unir as duas coisas, e Carvalho sabe como fazer isso. O próprio Suassuna é outro exemplo. Quando se apresenta em público com suas geniais aulasespetáculos, o escritor fala de sua obra e de suas idéias de uma forma acessível, que emociona, gera identificação e a admiração mesmo de espectadores menos informados. Quando adaptou O Auto da Compadecida (1999) para a televisão e o cinema, Guel Arraes seguiu a vertente do sertão mitológico, mas soube explorar o lado humano e singelo de personagens como João Grilo e Chicó, fazendo-nos crer que qualquer um de nós um dia pode
topar com Jesus, Nossa Senhora e o diabo, e ainda sair vivo da experiência. A questão central aqui é que A Pedra do Reino (na versão audiovisual) transforma uma obra poética, mágica, tão verdadeira e tão nossa (no sentido de brasileira) quanto o romance de Suassuna num emaranhado de imagens e sons que é belo, mas que não se comunica bem, causando certa vertigem até naqueles que leram o livro. A decisão de Carvalho de exibir a minissérie somente em alguns cinemas que comportam o formato digital de alta definição só agravou a situação. Se a obra não atingiu como poderia o público de massa da televisão, mesmo contando com todo o esquema publicitário e o amplo alcance de Rede Globo, tampouco o público que pode pagar ingressos de cinema teve a devida oportunidade de conferir a versão audiovisual produzida. Será que a estratégia de lançar A Pedra do Reino em formato digital no
cinema foi mesmo uma escolha de Carvalho, ou será que foi uma conseqüência inevitável da reconhecida impopularidade do que foi criado? É certo que a arte não necessariamente tem que ser popular, e que a experimentação é essencial para oxigenar todas as formas de arte. Também não se pode comparar o sucesso de público dos filmes citados acima (a maioria produções independentes) com o de uma minissérie exibida massivamente na televisão. Mas, talvez, se Carvalho estivesse mais atento aos novos ventos que sopram do sertão e que falam da região por uma perspectiva mais pessoal e humana, ele tivesse encontrado uma forma de representar a obra de Suassuna como ela merece ser vista, como arte erudita e popular ao mesmo tempo, em uma palavra: armorial. O Quaderna não nos deixa esquecer isso, pois ele é um palhaço, movido por sua imaginação fértil, mas também, e acima de tudo, pelo amor. Há sentimento mais humano, e ao mesmo tempo sublime, do que esse? DEZ 2007 • Continente x
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A Paraíba contada pelo cinema
Fotos: Reprodução
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Os costumes, o cenário sócio-político, as transformações ocorridas em um século são desvendados sob a luz do cinema no livro Cinema na Paraíba/Cinema da Paraíba, de Wills Leal Marcelo Costa Cena do filme Cabaceiras, de Ana Bárbara. Na página ao lado, registros do set de filmagem de Menino de Engenho
A
observação participativa é um conceito introduzido na antropologia para designar o trabalho no qual o pesquisador é ao mesmo tempo agente e observador do objeto de estudo ou da cultura analisada. Prática comum na produção contemporânea de documentários no Brasil, pode-se dizer que esse tipo de análise norteia o trabalho de Wills Leal no livro Cinema na Paraíba/Cinema da Paraíba. Escritor membro da Academia Paraibana de Letras, crítico e pesquisador de cinema, a vida do autor se confunde com a trajetória da sétima arte em seu Estado, desde os anos 50, quando iniciou suas atividades. A partir do surgimento do cinema na Paraíba até os dias atuais, Leal reconstrói um rico inventário das exibições e produções no Estado, realçando-lhe os aspectos históricos e sociológicos de seu percurso. Os costumes, o cenário sócio-político, as transformações ocorridas em um século são desvendados sob a luz do cinema: como afluentes e as margens de um fluxo contínuo e intenso que foi o fascínio pela imagem em movimento projetada numa sala escura. Fruto de longos anos de extenuante pesquisa, a obra é o resultado da atualização para o século 21 de dois livros do autor: Cinema e Província e O Discurso Cinematográfico dos Paraibanos, lançados há 40 e 20 anos, respectivamente. Entretanto, como afirma o escritor, “não se trata apenas de um novo livro, mas de um livro novo”, baseado no acréscimo, nas mudanças e atualizações dos textos anteriores e na criação de dezenas de outros, compatíveis com a realidade atual.
Dividida em dois volumes, a obra vem numa caixa de luxo, num projeto que prima pela excelência gráfica, inclusive com um importante acervo de imagens dos protagonistas dessa história. No primeiro volume, O Cinema na Paraíba, o autor faz uma longa jornada numa espécie de museu cinematográfico do Estado, desde a implantação das primeiras casas de exibição e sua evolução, os movimentos e cineclubes responsáveis pela divulgação dos filmes, o papel da crítica na consolidação de uma cultura fílmica até as primeiras experiências cinematográficas. Sob o fio condutor da história do cinema, o pano de fundo ou o cenário da João Pessoa nas primeiras décadas do século 20, quando da inauguração das salas de exibição, já aparece de início, revelando-nos a grande importância histórica da obra. Em meio às minúcias e os detalhes de uma ampla pesquisa baseada nos registros, nos escritos dos principais jornais da época e no imaginário coletivo, o livro apresenta fatos importantes e emblemáticos dos costumes e da vida social daquela época até os dias de hoje. O primeiro cinema instalado na Paraíba, o Cine Pathè, em 1910, se notabilizou por colocar gentis demoiselles para a venda dos ingressos, um sinal de prosperidade numa época de machismo, e por introduzir uma cultura elitista de exibição. Destinado a “espetáculos recreativos, instrutivos e familiares”, o Pathè rivalizava com os “cinemas poeira”, voltados para a classe mais popular e que exibiam os “lascivos” filmes dinamarqueses, cujos “erotismo e fatalidade”
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eram condenados como “imorais” pelos sermões dominicais dos padres. Foi nessa zona de conflito entre o provincianismo e a modernidade que o cinema se instalou na capital paraibana como instrumento de poder político e fundador das primeiras crônicas sociais. O primeiro cinema de portas abertas foi o Rio Branco, famoso pela apresentação de músicos e pela tentativa de exibir filmes falados via sincronização de discos. Sessões especiais de agrado aos políticos também faziam parte de sua programação. Protagonistas da formação da Paraíba como João Suassuna e o próprio João Pessoa eram homenageados pelos filmes, numa simbiose entre o desenvolvimento do Estado e o apelo popular do cinema. A modernização imposta por João Pessoa, por exemplo, facilitou o transporte coletivo dos bairros para o centro, alterando a geografia das salas de exibição que, com o decorrer dos anos e com as transformações das relações de capital, hoje se restringem aos shoppings centers, reforçando uma lógica elitista., Eventos marcantes como a chegada dos filmes sonoros, o impacto de lançamentos como E o Vento Levou e o romantismo das matinês no Cine-Filipéia são contados de mãos entrelaçadas com o desenvolvimento sócioeconômico experimentado pela federação. Desenvolvimento esse que possibilitou a proliferação das salas de exibição nas cidades do interior, constituindo um rico mapeamento cinematográfico e a consolidação de uma cultura fílmica no Estado, comprovada pelos movimentos cineclubistas, pela efervescência de uma crítica ainda provinciana, e por novas propostas de exibição como o cinema-feira da década de 80: um retorno aos filmes
ao ar livre sem qualquer apuro técnico. Cinema na Paraíba O universo da produCinema da Paraíba ção dos filmes e seus proWills Leal tagonistas e personagens R$ 120,00 são o tema do segundo volume: O Cinema da Paraíba. Se no primeiro somos apresentados aos principais exibidores e difundidores da sétima arte, neste o autor homenageia os realizadores e técnicos envolvidos na laboriosa arte de se fazer um filme. Desde os trabalhos pioneiros, como o de Walfredo Rodriguez, ainda no tempo do cinema mudo, até os cineastas da nova geração, inclusive paraibanos radicados em outro Estado, como Paulo Caldas e José Joffily, são contemplados no livro. Leal reconstrói uma trajetória marcada pela falta de financiamento, pelos obstáculos técnicos e pela vontade de filmar sob uma ótica peculiar de uma região excluída pelos grandes centros de produção do país. Entretanto, são os cineastas canônicos da Paraíba, como Linduarte Noronha e os irmãos Vladimir e Walter Carvalho que, devido a sua importância, recebem uma análise mais minuciosa. Noronha é tratado como um revolucionário do cinema brasileiro, por instituir um cinema fiel à realidade e voltado para as condições sociais do nordeste brasileiro. Seu enfoque humanista é dissecado na análise de Aruanda, um marco do cinema nacional. Já Vladimir Carvalho é enaltecido pelos seus documentários sobre o homem e sua relação com o trabalho, em obras como O Homem de Areia e O País de São Saruê, enquanto Walter, pelo seu trabalho como principal fotógrafo do cinema nacional em atividade. Trata-se, portanto, de um importante registro, no qual os limites entre a história da Paraíba e a evolução do cinema são borrados de modo que seja impossível dissociá-las, assim como é impossível separar as instâncias temporais. Afinal, como dizia o poeta Vinicius de Moraes, nos versos presentes no texto de abertura do livro: “O cinema é infinito/ Não se mede/ Não tem passado nem futuro/ Cada imagem/ Só existe interligada/ a que a antecede e a que sucede”. É como o fascínio de uma criança ao olhar através do enquadramento da janela de um trem em movimento, as imagens que se fundem entre si. DEZ 2007 • Continente x
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Acervo do Grupo Fluxus no Mamam Quarenta anos depois do surgimento do Grupo Fluxus, composto por músicos, artistas plásticos e poetas, suas propostas permanecem extremamente atuais. Para comprovar tal idéia, está em cartaz no Mamam a exposição Fluxus – Acervo Paulo Bruscky. A coleção assinala o envolvimento do artista pernambucano no Grupo e o modo de participação colaborativa desenvolvido por eles. Inspirados em movimentos como o Dadaísmo, Surrealismo e o Construtivismo Soviético, os participantes do Fluxus trocavam idéias, criavam eventos artísticos inovadores e, através de correspondências, construíram uma rede de interação artística hoje só possível através da internet. Bruscky conta com obras de 47 artistas que participaram do Grupo durante as décadas de 60 e 70, além de uma grande quantidade de catálogos, arquivos e eventos do grupo, realizados durante esse período.
Elemento Desaparecendo, Elemento Desaparecido, de Cildo Meireles, em exposição no Itaú Cultural
n INSTALAÇÂO
n EXPOSIÇÃO
Seu Sami e a arte sofisticada de Hilal
A arte do presente é conjugada no futuro
Na exposição Seu Sami, Hilal Sami Hilal presta homenagem ao pai, fala das suas memórias, e estabelece um paralelo entre luz e sombra, o vazio e a matéria. A mostra está em cartaz no Museu da Vale, com curadoria de Paulo Herkenhoff. A obra de Hilal caracteriza-se pela leveza das formas em todos os aspectos: nos rendilhados, nascidos do papel elaborado pelo próprio artista a partir de trapos de tecidos, e também nos trabalhos no metal. A grande instalação é Seu Sami, um espaço infinito criado por Hilal – seqüência de luz e sombras, ocupando toda a extensão da grande sala de exposições.
A exposição Futuro do Presente, em cartaz no Itaú Cultural, apresenta 17 obras de 17 artistas, entre eles os pernambucanos Paulo Bruscky e Carlos Melo. Arquitetadas especialmente para a exposição, algumas dessas obras saem do ambiente expositivo para encontrar o público em algum outro ponto da cidade, partes de outras podem ser levadas para casa e as demais invitam a intervenção do público. Para os curadores, todo trabalho artístico aponta para o futuro, daí o nome da mostra. Foram privilegiadas obras fundadas na estética relacional, elegendo trabalhos interativos e não contemplativos.
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Fluxus – Acervo Paulo Bruscky Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM) Até 13 de janeiro Informações: (81) 3232.1694
Seu Sami Museu Vale do Rio Doce, Vila Velha – ES Até 17 de fevereiro Informações: (27) 3333.2484
Futuro do Presente Itaú Cultural, São Paulo–SP Até 10 de fevereiro Informações: (11) 2168.1776
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Marcelo Lyra/Divulgação
O Baile do Menino Deus no Marco Zero O Baile do Menino Deus é um espetáculo que foge dos natais enlatados, tem alma brasileira, sendo encenado no formato cantata natalina, no Marco Zero, pelo quarto ano consecutivo. O musical de Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antônio Madureira, com regência do maestro Nelson Almeida, conta a história de dois Mateus que, juntos a um grupo de crianças, tentam abrir uma porta para celebrar o nascimento do Menino Jesus. A montagem reúne 50 artistas num misto de teatro, dança e música e ainda conta com trilha sonora executada ao vivo pela Camerata Studio de Música e Corais Canto da Boca e Cantinho da Boca. nnn
Baile do Menino Deus Marco Zero De 23 a 25/12 Informações: (81) 3226.2366 n PEÇAS
O trabalho das mulheres com barro O Ateliê Arte da Terra inaugura, em dezembro, o Espaço Moenda. Na abertura, entra em cartaz a mostra Fragmentos que reúne trabalhos das artistas Anita Freitas, Deise Andrade, Kaia Góes, Mariana Oliveira e Márcia Terra. A matéria-prima de todas as peças, que serão comercializadas no local, é o barro. Parte da renda será destinada à manutenção das oficinas desenvolvidas no ateliê com a população carente das comunidades próximas. nnn
Ateliê Arte da Terra – Espaço Moenda Av. Dezessete de Agosto, 2527, Casa Forte, Recife-PE Informações: (81) 3269.2640
A cantata natalina O Baile do Menino Deus celebra o nascimento do Menino Jesus n MÚSICA
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60 Anos de Arte é o show que celebra os 60 anos de carreira do cantor Claudionor Germano. A grande festa será dia 7 de dezembro de 2007, às 20h, na praça do Marco Zero, com a participação de amigos como: Alceu Valença, Lenine, Antônio Carlos Nóbrega, Chico César, Coral Canto da Boca, Balé Popular do Recife, entre outros, acompanhados pela Orquestra Popular do Recife, sob a regência do Maestro Ademir Araújo. Claudionor Germano projetou-se pelo país pelas suas gravações de canções de Capiba e Nelson Ferreira.
Depois de vender seu disco em banca de jornal, em protesto contra a hegemonia das grandes gravadoras, fazendo um grande barulho, Lobão prova que é chegado a polêmicas. Ao lançar seu último CD Lobão Acústico MTV, o artista parece se contradizer, gerando muito ruído e muita confusão. Os pernambucanos vão poder conferir a performance de Lobão no show Lobão Acústico MTV, em única apresentação, no UK PUB. Com quase 50 anos, o roqueiro prova que gosta de subverter as normas, inclusive as que ele mesmo cria.
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60 Anos de Arte Praça do Marco Zero 7 de dezembro Informações: (81) 3421.8456
Lobão Acústico MTV UK Pub Dia 6/12, a partir das 21h Informações: (81) 3465.1088
Claudionor Germano 60 anos de carreira
O rock de Lobão sob a tutela da MTV
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Marcella Sampaio
Onde estão as cinzas dos sutiãs?
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eninas também podem ser boas em matemática.” “Saiba como manter a forma antes e depois da gestação.” “Qual o corte de cabelo mais indicado para atingir seus objetivos?” “Mulheres de 30: as novas regras da etiqueta sexual nessa fase da vida.” “Veja aqui como deixar seu homem apaixonado para sempre.” Essas são apenas algumas das pérolas que foram manchetes recentes de capas ou títulos de matérias de revistas femininas brasileiras, que, por sua vez, copiam um modelo que está em vigor no mundo inteiro. O que aconteceu (acontece) com essas publicações? Que tipo de jornalismo de gênero se pratica por aqui? O teor das reportagens merece uma reflexão. Já se disse que as revistas são um segmento jornalístico que está menos preocupado em informar que em entreter, o que é uma afirmativa bastante discutível. Mesmo que o argumento seja simplista, imaginemos que haja algo de verdadeiro nele. Tudo bem, todos merecemos nos debruçar sobre uma leitura leve e divertida de vez em quando. Mas daí a achar que entretenimento se confunde com falta de inteligência, vai um longo caminho. As mulheres, público-alvo dessas publicações, não raro são tratadas por elas como donzelas bobinhas, ou, num outro extremo, como femmes fatales dispostas a tudo e a qualquer coisa para ter um homem para chamar de seu. E haja linguagem tatibitate e frases no imperativo. Faça isso! Coma assim! Vista-se assado! Nós, que nascemos numa sociedade pretensamente equilibrada em relação às diferenças de gênero, costumamos engolir tais textos sem pensar muito sobre eles. Na maioria das vezes, partem de uma pauta, que, por si só, é uma grande bobagem. Recheados de frases feitas, redundantes, lotados de clichês, parecem resumos de livros de auto-ajuda dos mais fraquinhos. O pior é que não é nada fácil ser uma mulher de revista feminina. A mulher de revista feminina tem que ser linda. Bonitinha, charmosa, simpática? Esqueça. Linda, não menos que isso. Tem que ter um emprego ótimo, que pague bem e lhe permita comprar blusinhas de 550 paus e calças jeans de 1200. Tem que ter um marido, ou pelo menos um namorado, vá lá que seja, um ficante, porque ser solteira de marré definitivamente é uma atitude fora
de moda. Mesmo que ele seja um homem, digamos, pouco afeito a demonstrações de carinho, que esquece seu aniversário, enrolado com uma ex complicada ou nem tão bonito assim, vale a pena fazer um esforço para segurá-lo. Afinal, há bem mais moças que rapazes disponíveis “no mercado”, reza a lenda urbana nacional. Se você já passou dos 30, é preciso também ter um filho, já que ser mãe é uma experiência “sublime, indescritível, inominável” e sem ela nenhuma mulher é completa (quem é mãe sabe que maternidade é vocação, nunca obrigação). Naturalmente, as publicações refletem um momento social que é representativo de uma encruzilhada em que as pessoas, homens e mulheres, meteram-se. Seremos capitalistas inveterados ou dedicaremos parte do nosso tempo às emoções e “coisas simples da vida”? Queremos carrões importados ou transporte público que não emita gases poluentes? Queremos comprar sapatos Manolo em Nova York ou chinelos feitos por artesãos de Trancoso? Queremos casar, ter filhos e ser felizes para sempre ou viajar pelo mundo na hora em que der na telha? A humanidade tem uma tendência de repelir as nuances e estruturar tudo em preto ou branco, classificando e compartimentando os comportamentos em certo e errado. Nada mais contraproducente. As tais revistas ficam ditando regras nestes termos, e é uma pena que se leve isso tudo a sério. No fim das contas, grande parte das reportagens, com exceções honrosas que confirmam a regra, subestima a inteligência e o bom senso do seu público-alvo. As premissas sobre as quais se apóiam as matérias são desclassificantes, infantilóides, estéreis. É importante lembrar que, enquanto o jornalismo dito feminino faz de conta que somos independentes e seguras porque podemos pagar tratamentos estéticos, milhões de mulheres no mundo inteiro, por motivos tão diversos quanto assustadores, continuam sendo vítimas de uma herança ideológica patriarcal que humilha, violenta e mata.
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Criada em 1967, a Companhia Editora de Pernambuco - Cepe comemora quatro décadas de destacado papel na promoção do desenvolvimento cultural do Estado
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Fotos de Ivaldo Reges
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Meandros da história
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enhuma editora realiza com tanta maestria seus projetos editoriais como a Companhia Editora de Pernambuco (CEPE), o que representa motivo de orgulho para todos nós que aqui trabalhamos, sem mãos atadas, no cumprimento de nossa jornada, e na mais perfeita harmonia. Na realidade, fazemos parte da orquestração para que juntos, homens e máquinas, dêem conta, à risca, da tarefa diária, cumprida em etapas, de editar livros, revistas, publicações diversas e Diário Oficial, este último resultado do coroamento do esforço coletivo. O Diário Oficial é a mais antiga de suas publicações, uma espécie de semente boa, centenária, nascida sob a sombra da iniciativa privada, mas que o tempo – senhor de tudo – soube tão bem aproveitar. Até que na segunda década do século passado brotou o fruto com o nome de “Jornal Official”, destinado à divulgação de atos e resoluções da vida pública. O processo de criação é como uma máquina que precisa ser mantida azeitada e em funcionamento para acompanhar a evolução da sociedade - e com ele a imprensa oficial seguiu no mesmo ritmo, porém mudando várias vezes de roupagem. Foi assim que há 40 anos surgiu a Cepe – Companhia Editora de Pernambuco trazendo no seu bojo um projeto mais arrojado, até certo ponto ambicioso, de uma grande indústria gráfica e editora, que ainda hoje, em ritmo mais acelerado como resultado de tecnologias mais avançadas, cumpre à risca o seu programa editorial, tendo editado, só este ano, 112 diferentes autores. Na realidade, as ações humanas passam e, como tal, não poderia ser diferente com nossos governantes, mas suas marcas ficam registradas em palavras escritas, esta fonte autêntica, imperecível, fiel guardiã da memória ad-
ministrativa de nosso Estado. Composta por caracteres tão simples, as letras, partes que se fundem no processo de comunicação que o tempo jamais será capaz de apagar. Por mais que o mundo gire e os sistemas de conservação da memória escrita mudem, haverá sempre um espaço, por minúsculo que seja, nos arquivos das bibliotecas para abrigar textos e recortes de impressos. Reportemo-nos, agora, aos livros, ainda hoje indicadores precisos do nível cultural de um povo. Costuma-se dizer que somente Buenos Aires tem mais livrarias que o Brasil todo, por certo uma crítica ao descaso do nosso povo pelo que se produz em matéria de literatura, dentro e fora das fronteiras nacionais. Urge, porém, que deixemos de lado tanto pessimismo. Temos excelentes autores, em todas as regiões desse imenso território, em permanente processo de criação versus produção que precisa e deve ser estimulado continuamente, porque a arte de escrever é uma espécie de cartão postal de um povo. Nesse particular, a Cepe vem fazendo a sua parte, cuidando com esmero e carinho da editoração tanto de autores regionais como de outros que buscam seus serviços, algumas vezes em parceria com outros órgãos, dando cumprimento ao seu programa editorial. Todas as metas alcançadas ao longo daquilo que o sociólogo Gilberto Freyre denominou de tempo tríbio – presente, passado e futuro em permanente processo de interação – alegram nosso cotidiano e nos dão a certeza de que o orgulho de nossa gente permanece como sentinela avançada de nossa História. Flávio Chaves Presidente Recife, dezembro de 2007
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Âncora das Imprensas Oficiais do Nordeste, dotada de um dos mais modernos parques gráficos do país, a COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – Cepe nasceu no governo Nilo Bezerra Coelho (1967-1971). A estruturação editorial e administrativa da sucessora do Departamento de Imprensa Oficial, dirigido pelo jornalista Cleophas de Oliveira, foi confiada ao jornalista e advogado José do Rego Maciel (Dr. Zezito), primeiro diretor-presidente da Cepe. As atividades da recém-criada sociedade de economia mista tiveram início ainda na rua da Concórdia, na sede da Imprensa Oficial. Com a aquisição de terrenos no bairro de Santo Amaro, num total de 9 mil metros quadrados, e projeto arquitetônico de Zildo Caldas, a Construtora Rosa Borges Ltda. executou em 5 meses, numa área de cerca de 3 mil metros quadrados, a edificação da nova Cepe, de instalações modernas, porém simples e funcionais.
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Um tempo para ser lembrado
O Governador Nilo Coelho, na cerimônia de inauguração da Cepe
O ínicio O Governador Sergio Loreto criou, em 1924, o Diário do Estado e a Repartição de Publicações Oficiais, responsáveis pela impressão do jornal do governo. Em 1926, o então governador Estácio Coimbra estabelece uma lei que substituiu a Repartição de Publicações Oficiais pelo Departamento de Imprensa Oficial, que continuou editando o Diário do Estado. Somente em 1944, ele ganhou seu nome Diário Oficial, resolução do interventor Agamenon Magalhães. Ao Departamento de Imprensa Oficial, sucedeu a Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, por força de lei instituída pelo governador Nilo Coelho, em 1º de dezembro de 1967. Com a presença de autoridades brasileiras e estrangeiras e outros convidados ilustres, o governador Nilo Coelho inaugura, O linotipo, máquina de em 25 de fevereiro de 1970, as novas composição tipográfica a instalações da Cepe, além do complexo quente, comprado à época da criação da Imprensa de máquinas e equipamentos do sistema Oficial do Estado, fica em offset da moderníssima indústria gráfica exposição permanente do Norte-Nordeste. no hall da editora Colaborou Rosa Maria, autora do trabalho de pesquisa que resultará na obra Memória Iconográfica, em homenagem aos 40 anos da Cepe
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Diário Oficial: o carro-chefe parte interna (os projetos, as ementas). Essas informações são encaminhadas, já diagramadas, através de e-mail. As matérias que chegam ao D.O. são publicadas no prazo de 24 horas, com ressalva do Caderno Judiciário, que obedece ao prazo de 48 horas. Feita a recepção dos arquivos, estes são disponibilizados na rede onde existem diretórios e subdiretórios referentes às seções onde serão tratados e posteriormente inseridos nas páginas para publicação. No ato da recepção é conferida a qualidade e a extensão adequada à sua publicação.
O Diário Oficial é a principal publicação da Cepe. O jornal, de caráter oficial, divulga os atos do governo, decretos e regulamentos que devam ter execução no Estado, compreendendo os cadernos: Diário do Poder Executivo Diário do Poder Legislativo Diário do Poder Judiciário Estadual Diário do Poder Judiciário Federal Diário do Tribunal de Contas Ministério Público O processo de elaboração do Diário Oficial funciona como uma roldana onde todos têm que fazer sua parte e diversos setores do governo se afinam para que ele aconteça.O D.O. também recebe as publicações legais de empresas privadas e organizações sociais. O atendimento se divide em 4 etapas: através de e-mail, FTP, SIMP, comercial ou direto com clientes. Alguns cadernos já vêm prontos, como o Legislativo e o Executivo. No Legislativo, as notícias são elaboradas pela assessoria de imprensa da assembléia, tanto o que trata da parte noticiosa quanto da
Suplementos e Revista Para promover e difundir a cultura em todo o Estado, foi criado, em 1986, o Suplemento Cultural do Estado de Pernambuco. Inicialmente um tablóide com 16 páginas, devia ser editado pelo menos uma vez por mês e encartado junto com o Diário Oficial. Sua distribuição, através de mala-direta, incluía autoridades, artistas e intelectuais.
Ao longo de sua história, o Suplemento Cultural passou por diversas reformas gráficas e editoriais até ganhar o formato e o nome que tem hoje: PERNAMBUCO. A publicação, que circula quinzenalmente com 22 páginas, ganhou o slogan “Jornalismo em novo tempo” e um caderno destinado a estudantes. A Revista Continente Multicultural, outro produto de destaque da Cepe, foi lançada em dezembro de 2000. A atual diretoria da Cepe, sob a orientação do secretário da Casa Civil do Governo de Pernambuco, Ricardo Leitão, decidiu manter a Revista como importante ferramenta de fomento cultural do Estado. Atualmente, a linha editorial da publicação, sem desprezar o conteúdo universal, dá mais ênfase à produção cultural pernambucana.
A Cepe, desde sua criação, se empenha em ser exemplo de modernidade e vanguarda. O investimento em tecnologia e no aperfeiçoamento de suas rotinas produtivas sempre esteve presente em suas ações. A última grande renovação se deu na área da informática. No ano de 1996, durante o governo Miguel Arraes, o então presidente da Cepe, Evaldo Costa, dá início, no mês de outubro, à implantação gradativa da informatização do Diário Oficial. Quase dois anos depois, em setembro de 1998, o processo foi concluído: o Diário Oficial de Pernambuco estava 100% informatizado. A Companhia Editora de Pernambuco foi pioneira na publicação do Diário Oficial Eletrônico e também disponibiliza o acervo de edições, atingindo mais de 30 anos de publicações. Isso é possível utilizando o craqueamento digital nas edições que foram
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Renovação tecnológica na imagem do jornal e agiliza a pesquisa. O Diário Oficial contém informações importantes e de interesse público, por isso é colocado à disposição para consulta através do site www.cepe.com.br . Só é necessário se cadastrar, A informatização gratuitamente, e então começa no Governo o acesso ao Diário de Miguel Arraes Oficial Eletrônico é liberado. Vale lembrar que há duas formas de visualização pela internet: numa só é possível visualizar os textos, de acordo com o caderno e a data que o usuário escolhe para consultar, e na outra é possível visualizar o Diário inteiro, com a mesma diagramação do jornal publicadas até o ano de 2004, e nas impresso. No site estão disponíveis até edições a partir desse ano. A tecnologia as 40 últimas edições. empregada permite a busca textual
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Uma empresa a serviço do povo pernambucano
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Companhia Editora de Pernambuco – Cepe é uma sociedade de economia mista criada pela Lei Nº 6065, de 01/12/1967, e sucessora da antiga Imprensa Oficial. Tem por objeto social a impressão, distribuição e comercialização dos Jornais Oficiais do Estado de Pernambuco, de artigos escolares e de escritório, de livros, inclusive didáticos, revistas, especialmente culturais, e demais publicações oficiais e particulares. Com mais de 320 funcionários, entre efetivos, estagiários e terceirizados, que trabalham nas diversas áreas da Cepe, a empresa é economicamente sadia, superavitária e geradora dos seus próprios recursos. A Cepe é órgão vinculado à Secretaria da Casa Civil e sua diretoria é composta de três membros: diretor-presidente: Flávio Chaves; diretor de gestão: Bráulio Mendonça Meneses; e o diretorindustrial: Reginaldo Bezerra Duarte. A diretoria de gestão é composta pelas gestões de digitalização, de financeiro, de articulação, de recursos 6
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humanos e administrativa. Cabe à diretoria de gestão administrar tudo o que diz respeito ao corpo da Cepe e seus funcionários. Deve planejar, coordenar, controlar e avaliar atividades de recursos humanos e materiais, a administração financeira e contábil e os serviços gerais da Cepe. Promove a integração e articulação entre as áreas setoriais, tendo em vista o desenvolvimento conjunto de ações afins. Desde a formulação de um contrato para adquirir uma nova máquina ao controle de almoxarifado, tudo passa pelos setores desse grande cérebro que nunca pára. Seus setores financeiros são responsáveis por avaliar os custos e lucros da Cepe, o de recursos humanos é o responsável pela qualidade dos funcionários e pelo conforto e qualidade de trabalho que a Cepe propicia. Enfim, é um setor vital para o bom funcionamento de toda a empresa. A Diretoria Industrial é formada pela Gestão da Gráfica e Editora, Gestão Comercial e Gestão de Manutenção. É responsável por assistir à presidência no que diz respeito às funções de produção.
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Ilustração: Zenival Á
Cemitério de Santo Amaro
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Continente Multicultural
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Pernambuco
EXPEDIÇÃO REFEITÓRIO OFF SET DE ACABAMENTO
A Companhia Editora de Pernambuco fica localizada à Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro, Recife, Pernambuco
ACABAMENTO
ARQUIVO E BIBLIOTECA ARTE E PRÉ-IMPRESSÃO
ALMOXARIFADO
ACABAMENTO SETOR DE COMPRAS
OFF SET
GESTÃO ADMINISTRATIVA GARAGEM DEPÓSITO DE BOBINAS
INFORMÁTICA ÁREA DE LAZER
Diário Oficial
ADMINISTRAÇÃO
RECURSOS HUMANOS
MANUTENÇÃO ELÉTRICA
AUDITÓRIO PORTARIA
COMERCIAL DIRETORIAS
SETOR JURÍDICO
MANUTENÇÃO MECÂNICA DEPÓSITO DE APARAS
RECEPÇÃO
ATENDIMENTO AO PÚBLICO O atendimento ao público é feito na loja que funciona no andar térreo da Cepe, onde é possível além de comprar exemplares do Diário Oficial, revistas e livros, solicitar a inclusão de matérias legais no D.O., publicar anúncios, bem como fazer assinaturas das publicações. Lá também é feito o primeiro contato no caso de pedidos de impressão, desde folders e cartazes a livros e revistas. Profissionais especializados dão orientações quanto ao melhor papel, formatação, quantidade de páginas etc. Nas encomendas de serviços gráficos, o setor de orçamento avalia o pedido e gera o orçamento de acordo com as preferências do cliente.
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Investimento em qualidade como meta prioritária 8
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esses 40 anos, a Cepe, reconhecida como pioneira da impressão do Diário Oficial em offset, tornou-se uma empresa estável e inovadora. Com instalações amplas, um moderno parque industrial e um quadro de pessoal de reconhecida capacidade técnica, ela se insere entre as empresas aptas a produzir com rapidez e qualidade extrema todos os formatos de impressos. A Cepe imprime, distribui e comercializa livros, jornais, revistas, artefatos de papel, e ainda processa e digitaliza documentos em CD. Para livros, oferece todas as etapas de produção. Desde a criação do design editorial até a impressão de alta tecnologia, cuja qualidade se firmou nestas quatro décadas de atividade. Além de impressos, a Cepe passou a atuar na área de multimídia, produzindo CDROMs. A linha de produção, em pequena e larga escala, vai desde a gravação até o acabamento do produto. A Cepe também fornece serviços de digitalização através do processo PDF e craqueamento digital. O processo de PDF é muito simples e é feito pelo programa Adobe. O craqueamento digital é muito importante, visto que o PDF não pode ser feito em arquivos que já foram impressos e não têm seu conteúdo salvo em alguma mídia, enquanto o craqueamento pode ser feito inclusive em livros antigos. É um processo aplicado à captura e conversão de documentos, de formato tradicional em papel, impressos ou datilografados, para o formato digital, criando simultaneamente arquivos de imagens TIFF ou JPG e mantendo o layout original, isto é, cópia autêntica fac-símile. Ainda proporciona recursos de inteligência artificial, como o PDF, que permitem a pesquisa booleana, full-text, livre e ilimitada. O craqueamento digital é aplicável a textos produzidos em quaisquer idiomas, mesmo que mesclados, que utilizem o alfabeto ocidental e sinais gráficos associados, não manuscritos. Manter permanentemente a excelência no estado-da-arte da tecnologia na execução dos processos do Diário Oficial do Estado de Pernambuco e de suas múltiplas publicações e serviços, com foco na satisfação de seu público – esse tem sido o lema de sua política de qualidade.
A capacidade de impressão das máquinas é de 15 mil folhas por hora. No total, com 8 horas de trabalho, é possível chegar a 120 mil folhas. O parque industrial da Cepe conta com 41 funcionários – 11 no setor de impressão, 28 no setor de acabamento, sendo 3 estagiários e 2 que trabalham na gravação eletrônica de chapas (CTP)
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ntre as iniciativas que se têm destacado dentro da política editorial da Cepe, no intuito de promover o desenvolvimento cultural do Estado, está a publicação de livros com excelência editorial e gráfica. Duas vertentes têm orientado esta iniciativa: a edição de livros de poetas, contistas, romancistas, historiadores e pesquisadores contemporâneos; e a reedição de publicações históricas há muito fora de mercado ou que nunca antes tinham sido contempladas com uma edição moderna. Nas duas, a mesma proposta de proporcionar ao público o acesso a textos e documentos em que se evidencia a importância cultural de Pernambuco. A preocupação básica da linha editorial do suplemento Pernambuco é atrair o leitor reafirmando os valores da cultura do nosso Estado, com uma pauta bem diversificada. O novo produto busca traçar um painel amplo, envolvendo a maioria das atividades culturais, sempre preocupado em explorar ângulos não muito convencionais. Já o Saber +, um encarte do Pernambuco, que não deixa de ter identidade e linguagem especial, vem dedicando espaço ao escritor pernambucano, principalmente àqueles que são adotados nos exames dos vestibulares. Na nova proposta editorial, também o destaque para lançamentos de escritores do Nordeste. A Continente Multicultural é uma revista voltada para a disseminação das manifestações culturais pernambucanas e universais. Com média de 96 páginas e tiragem de 10 mil exemplares, dirige-se a um público letrado – estudantes do ensino médio e universitário, professores da rede pública estadual e das universidades locais e amantes do conhecimento em geral –, oferecendo um cardápio de temas que vão da poesia popular nordestina à filosofia contemporânea, da literatura universal ao que de melhor se produz no cinema, no teatro, na dança, na música, nas artes plásticas. Para que tenha uma linguagem inteligível para um público mais amplo, seu manual de redação contém duas simples regras: “Aos acadêmicos, que escrevam como os jornalistas. Aos jornalistas, que escrevam como os acadêmicos”. 10 CEPE40ANOS
Patrimônio histórico e cultural preservados
As equipes do Diário Oficial, Pernambuco, Continente Multicultural e editoração da Cepe contam com 48 profissionais entre jornalistas, designers, estagiários e pessoal de apoio. Além das equipes internas de produção e edição, as publicações da editora recebem a colaboração de jornalistas e especialistas em suas áreas de conhecimento
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OBRAS PUBLICADAS
Um balanço de 2007 Durante o ano de 2007 – marco dos 40 anos de sua existência – a Cepe publicou quase meia centena de livros. Foi uma produção eclética, reunindo obras de arte, ensaios, poesia, ficção, direito, reminiscências, história, viagens, música popular. Entre as obras editadas, avulta o álbum Casas-Grandes & Senzalas, com texto de Gilberto Freyre e cinco grandes pranchas com guaches de Cícero Dias, inserida nas comemorações patrocinadas pelo Governo de Pernambuco no centenário de nascimento do pintor pernambucano. Edição bilíngüe (português-inglês), embalada em caixa revistada de tecido. No mesmo estilo, o Álbum de Pernambuco, do alemão Franz Heinnrich Carls reproduz 54 litografias coloridas de paisagens do Recife em 1878. E ainda o álbum Carnaval 2007 – A Beleza e a Força da Arte Pernambucana, reunião de reproduções de pinturas de 12 artistas locais tendo como tema os 100 anos do frevo, comemorados este ano. Paulo Bruscky – Arte, Arquivo e Utopia, de Cristina Freire, completa as edições de livros de ou sobre arte em 2007. Um dos gêneros mais editados no ano foi a poesia, em que se destacam os livros Linha d’Água, contendo grande parte da obra poética de Jaci Bezerra, um dos expoentes da Geração 65, e o Poesia Reunida, de Deborah Brennand, um volume de 708 páginas organizado e prefaciado pela professora e poeta Lucila Nogueira. Na linha histórica, o marco foi a publicação de uma nova edição do fundamental Abreu e Lima – General de Bolívar, de Vamireh Chacon, bilíngüe (português-espanhol), com fartas ilustrações do artista Zenival. No terreno da ensaística, sobressai-se o lançamento de Torre de Babel e Outros Ensaios, do professor Nelson Saldanha. Por fim, mereceu atenção a obra A Palavra de Hermilo, coletânea de entrevistas à imprensa dadas ao longo da vida pelo dramaturgo e romancista Hermilo Borba Filho, com organização de Juareiz Correya e Leda Alves.
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• Ferreira, Redescobrindo o Paraíso – Organização de Paulo Bruscky, Jaci Bezerra e Sylvia Pontual. • Contraponto – Carlos Alberto Fernandes. • O Recife & Outros Poemas – Robson Sampaio. • Joyce-Lacan – Jacques Laberge. • Linha d’Água – Jaci Bezerra. • Torre de Babel e Outros Ensaios – Nelson Saldanha. • Falares de Portugal – Falares do Brasil – Esmeralda Moura. • Legado da Alma – Nivaldo Lemos. • A Cidadela do Espírito – Dagoberto Carvalho Júnior. • Abreu e Lima – General de Bolívar – Vamireh Chacon. • Constituição Brasileira de 1988 – Volumes I, II e III – Hélio Silvio Ourem Campos. • História em Lampejo – Ricardo Japiassu Simões. • Sob a Ótica das Meninas – Luciene Freitas. • A Mão e a Pedra – Edvaldo Bronzeado. • Crepúsculo das Coisas – Telma Brilhante. • Poesia Visual – Silvio Hansen. • Terra Úmida – J. A. Silva. • O Recife e seus Bairros – Carlos Bezerra Cavalcanti. • Baião dos Dois: Zédantas e Luiz Gonzaga – Mundicarmo Ferretti. • Memórias da Minha Terra – Toritama – Mário J. de Araújo. • De Como Descobri que Não Existo – Cyl Galindo. • Tribunal de Justiça – Nara Lúcia Santana e Fernando Menezes. • Trovas de Amor e Saudade – Yolanda Cavalcanti. • Afogados da Ingazeira – Gastão Cerquinho. • Esmape 20 Anos – A Serviço da Causa – Coord. e planejamento editorial de Joseane Ramos Duarte. • Os Gigantes Foliões em Pernambuco – Olímpio Bonald Neto. • No Compasso da Saudade – Moisés da Paixão. • Constituição de 1824 – Aderito Hilton. • Poesia Reunida – Deborah Brennand. • A Revolução Literária em Pernambuco – José Bezerra de Lemos. • A Musa Roubada – Tereza Tenório. • Kanimambo – Ivan Moras Filho. • Eu e o Diario – Vários Autores • Faces e Facetas da Vida – Tereza Cristina. • Eu – Augusto dos Anjos, “traduzido” por Djalma Xavier de Farias. • Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia – Cristina Freire. • Casas-Grandes & Senzalas – Cícero Dias & Gilberto Freyre. • Carnaval 2007 – A Beleza e a Força da Arte Pernambucana • Álbum de Pernambuco – 1878 – F. H. Carls. • Tempo – O de Dentro e o de Fora – Luís Arraes. • Proibido Retornar – Alexandre Britto. • Construindo a Cidadania – Sandra Regina da Silva Wenceslau / Sílvia Helena Lemos de Carvalho. • Trovas Humorísticas & Jurídicas – Org. Geraldo de Albuquerque Lyra e Edwaldo Gomes Souza. • O Capitão dos Índios – Ana Lígia Lira. • Colégio Americano Batista – Uma História de Amor – Glaucília Perruci, Neide Sena Abreu, José Almeida Guimarães, Garibaldi Perrusi Lopes Martins e Gelson Lopes Martins Filho.
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