Continente #085 - Feliz 1958

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Um ano bom para lembrar

Reprodução

aos leitores

P

ara quem se depara com a capa desta revista – Feliz 1958 –, à primeira vista, pode parecer que se trata de um grave erro de digitação. Ou de uma manchete escrita há cinco décadas e só agora publicada. Brincadeiras ou surpresas à parte, esta primeira edição de 2008 pretende relembrar uma época especialmente significativa para os brasileiros. Em 1958, ano que muitos consideram inesquecível, o Brasil era uma combinação de democracia, modernização, romantismo, esperança e criatividade. No penúltimo ano do governo JK, marcado pela construção de Brasília, o futebol da Seleção Canarinha conquistava a sua primeira Copa do Mundo, na Suécia; e, na música popular, nascia a Bossa Nova. Música e futebol, os temas que abordaremos nesta edição, além de serem duas das nossas maiores paixões, são provas incontestes da capacidade que o brasileiro tem de se reinventar. Dois exemplos que fazem de 1958 um ano difícil de ignorar. •Na matéria especial desta edição, o professor e pesquisador Anco Márcio Tenório Vieira compara criticamente as duas últimas biografias escritas sobre a vida e a trajetória intelectual do Mestre de Apipucos. São os livros Gilberto Freyre: um Vitoriano dos Trópicos (2005), da historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke; e a mais recente: Gilberto Freyre: uma Biografia Cultural (2007), do antropólogo Enrique Rodrigues Larreta e do crítico de literatura Guillermo Giucci. •Outro destaque desta Continente é uma irreverente re-leitura da chegada da família real portuguesa ao Brasil – que completa 200 anos em 2008 –, sob a ótica de um grupo de chargistas convidados para a festa. •Ainda nesta edição, uma conversa com a filósofa e escritora gaúcha Márcia Tiburi sobre a difícil relação entre mídia (principalmente a televisão) e o pensamento crítico.

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Hans Manteuffel/Divulgação

Divulgação

A personalidade da TV em suas vinhetas

Beijo em quadro provoca crise na arte

Festival no canavial de Aliança

CONVERSA 04 >> Márcia Tiburi defende a inteligência na TV

ARtES 48 >> Um beijo coloca em xeque a arte contemporânea

BALAIO 10 >> Nietzsche no cinema

REGIStRO 54 >> Sai biografia intelectual de Gilberto Freyre 58 >> Sociólogo é tema do Museu da Língua 60 >> Peça leva ao palco livro do pernambucano

CApA 12 >> 1958, um ano inesquecível 16 >> O começo da Bossa Nova 20 >> A vitória do nosso futebol na Suécia LItERAtuRA 24 >> Escritor uruguaio-mexicano reflete sobre a criação 26 >> A poesia de Samarone Lima 27 >> O célebre poema que Maiakovski não escreveu 29 >> A estória das contas de um colar 30 >> Homero Fonseca lança romance cinematográfico 32 >> Agenda Livros CARNAVAL 34 >> Livro com a história do frevo traz imagens inéditas tELEVISÃO 37 >> TV Jornal implanta Pólo de Teledramaturgia CINEMA 40 >> Os 100 melhores filmes de todos os tempos 43 >> O novo cinema italiano

tESES 65 >> As vinhetas de TV ao longo dos anos MÚSICA 68 >> A 4ª Semana da Música de Ouro Branco 71 >> O novo disco de Siba Veloso 74 >> As crônicas de Caruaru, por Carlos Fernando 76 >> Agenda Música LÍNGuA 78 >> Novo dicionário sobre lusofonia tRADIÇÕES 82 >> Festival Canavial em Chã de Camará AGENDA 86 >> Começa o Janeiro de Grandes Espetáculos JORNALISMO 88 >> Um livro de entrevistas históricas

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Divulgação

A cara do cinema italiano contemporâneo

Divulgação

Gilberto Freyre ganha nova biografia Siba lança seu segundo disco Beto Figueiroa/Divulgação

COLuNAS ENtRE LINHAS 36 >> Há pessoas preocupadas com a linguagem tRADuZIR-SE 46 >> Bienais de arte são instituições moribundas

A família real na mira do humor 91 >>

Kácio

SABORES 62 >> Frutas com sabor de infância MEtRÓpOLE 90 >> Um livro de afetos pelo Recife e as pessoas

ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELEtRôNICO www.continentemulticultural.com.br

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conversa

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Fotos: Divulgação

Não acho que a TV promova o tédio. O tédio é por demais criativo. O tédio é a ave de sonho que choca os ovos da imaginação

Márcia Tiburi

A TV pode não ser inimiga do pensamento 12/20/2007 12:37:08 PM


A escritora e filósofa Márcia Tiburi acredita que, do ponto de vista da forma e do conteúdo, a TV pode se tornar cada vez mais ousada e transformar-se mais em vídeo do que mera instituição da propaganda ENTREVISTA A Fábio Lucas

“M

eus olhos estão sempre tapados quando posso ver e, quando não, vejo apenas o pano que me tapa. A imagem do mundo vem desse tecido”. Este é um trecho do romance A Mulher de Costas, de 2006, segundo volume da “trilogia íntima” que começou com Magnólia e deve ser concluída com O Manto. A autora é a filósofa gaúcha Márcia Tiburi, que depois de publicar ensaios como As Mulheres e a Filosofia, O Corpo Torturado e Uma Outra História da Razão, quis provar a liberdade literária na trilha de estórias metafísicas. Professora de um curso de formação de escritores, colunista de revistas e conferencista de agenda lotada, Márcia é persona pública que tem a imagem multiplicada pela internet e pela TV. No seu blog, as notas acompanham o périplo dos eventos pelo país, e o debate vai de uma polêmica entrevista sobre publicidade até a natureza da burrice em Adorno. Entre a filosofia e a literatura, a escritora filósofa aproveita a experiência no programa Saia Justa, do canal por assinatura GNT, para refletir sobre uma filosofia da televisão – tema de um ensaio próximo. Que imagem do mundo advém do mundo da imagem? Nesta entrevista, concedida durante a Bienal do Livro de Pernambuco, Márcia Tiburi fala sobre a potência da imagem técnica, e diz que a TV pode não ser inimiga do pensamento. Algo, aliás, que os espectadores do Saia Justa já sabem, com prazer.

Tem uma canção popular que diz que “a vida passa na tevê...”, e se a gente dissecar a frase, pode descobrir que a TV faz a vida passar mais rápido, porque “gasta” o tempo, embora haja tanto tédio no espectador televisivo. Márcia, o tédio não é aquele sentimento de que se gasta o tempo com nada, de que se existe num vão? A vida passa dentro ou fora da TV. O problema é que, se lembrarmos o velho mito grego do tempo devorador, saberemos que não houve até hoje maior aliada de Chronos. Ainda que tenha sido uma aliada irônica. Quem ocupa seu tempo com entretenimento apenas o joga fora. Como você bem coloca, quem mata o tempo é por ele morto. Que lixo seria este do qual podemos nos livrar? Que esperança de superá-lo? Seria nossa preguiça – aquela letargia que nos deixa defronte da TV – a tentativa precária de superar o tempo? Não acho que a TV promova o tédio. O tédio é por demais criativo. Como diz W. Benjamin, o tédio é a ave de sonho que choca os ovos da imaginação. Com tédio criamos. Mas acho muito curioso colocar a preguiça no lugar da especulação sobre a TV, até porque a aliança da preguiça sempre foi, desde os tempos mais antigos, a melancolia. E você sabe o quanto um espectador de TV é melancólico. Um leitor de livros também pode sê-lo. Ambos vivem a esperar que as obras os livrem da vida, da sua própria. Que elas providenciem outra vida, uma de sonho. Porém, enquanto o leitor de livro pode acordar do sonho, o da TV tem chance de entrar num sono letárgico e sem fim

para o pensamento. Num primeiro momento o que nos leva a pensar isso é o conteúdo da TV, que, por ser rápido, tem enorme chance de se tornar raso. Num segundo momento é a forma da TV, que exige um olhar sem profundidade, sem pensamento por trás, sem reflexão que o sustente para que ele possa se “manter ligado”. Mas ainda penso que, do ponto de vista da forma e do conteúdo, a TV pode se tornar cada vez mais ousada, transformar-se mais em vídeo do que mera instituição da propaganda. Acho que podemos inventar nossa TV. Não é o que o Youtube nos trouxe de potencialidade. Uma nova potência das imagens técnicas está aparecendo. Para escapar do antidiálogo peculiar à sua essência — ou à sua origem — alguns programas, como o Saia Justa, e alguns telejornais, tentam simular o diálogo através de perguntas programadas, comentários de convidados, ou com a participação do público. Será que a “forma TV”, pela imitação do que está fora dela, terá chance de superar as próprias limitações, deixando de ser tela para a passividade e a contemplação não-reflexiva? Se descobrirmos a potência criativa e artística da "forma TV", promoveremos a distância entre espectador e objeto de contemplação que sempre caracterizou as obras de arte. O problema é que a TV é hoje instrumento da indústria cultural. Acho que é tempo de uma "TV arte". Já pensou que revolução? A "TV indústria cultural", porém, não superará sua limitação. JAN 2008 • Continente x

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Quem ocupa seu tempo com entretenimento apenas o joga fora. Quem mata o tempo é por ele morto

Você já viu a indústria cultural superar sua limitação sem se transformar em outra coisa ou cair em contradição? O que a indústria cultural coloca de “vanguarda” na TV, a meu ver, é apenas o começo de sua transformação ou a própria carta de demissão. O mundo não será pior com mais arte e menos indústria cultural. Mesmo que isso seja uma utopia, é por ela que devemos reger nossos passos. Você escreveu, em um artigo, que ver não é suficiente para fazer pensar: temos que olhar mais devagar. Será que é por isso que a TV repete tanto a cena que requer fixação? O ataque às torres gêmeas em Nova Iorque, em 2001, seria um exemplo típico. Mas há exemplos menos dramáticos, como o repeteco dos melhores lances e dos gols das partidas de futebol. Será que a repetição está atrás de um significado que a rapidez da TV – rapidez do olho que mira a TV – não capta? A TV usa a repetição para “ensinar”. Sim, é uma mera estratégia didática. É também, claro, estratégia para fixar uma idéia. A Igreja medieval ou moderna sempre usou esse método. A repetição seja na mídia, seja na igreja é a base do espetáculo. O nosso olho sempre pronto ao zapping já não aceita tanta repetição. Acho que internalizamos o zapping. Que olhamos hoje esperando outra coisa a cada minuto, por isso o luxo da TV a cabo é poder trocar de canal a todo momento, o que é impossível na TV aberta. Mas ao mesmo tempo o “zapear” ainda não sustenta uma

vida do olhar fora da repetição televisiva. O que eu sustentava neste artigo é algo que sempre “repito” também para fixar uma idéia que julgo boa: prestem atenção. É a nossa única chance para promover pensamento diante de tantas tentativas de extirpá-lo. Atenção quer dizer “mais pensamento”. É o começo do nosso pensamento lúcido e da nossa liberdade. Como a compreensão da filosofia como práxis – do pensar desdobrando-se no agir – afeta a sua relação com a TV? Como fazer uma crítica filosófica da TV que seja efetuada de fora para dentro, mas também se aplique de dentro para fora, da mídia criticada para os telespectadores? Que englobe, enfim, as duas direções da “televida”? A sua pergunta é mesmo complexa. Em primeiro lugar para mim especificamente “participar da TV” é uma forma de práxis filosófica. Meu projeto de vida com a filosofia envolve uma lei: falar de filosofia e em torno dela em qualquer lugar, sem preconceitos, sempre que for possível, seja numa favela ou numa mansão, na TV ou na rádio, na revista ou na rua, no prostíbulo ou no convento. Tanto faz o lugar e o veículo. Por que isso? Porque entendo a filosofia como uma prática de diálogo. É nesse sentido que me digo “filósofa”. Também só digo isso com um intuito, o didático. Não diria isso em outro tempo. Digo por julgar que nosso tempo precisa ouvir isso. Que nos fará bem enfrentar a possibilidade do convívio, da dúvida e de que pensar é uma ação concreta

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Fotos: Divulgação

Márcia Tiburi, entre as colegas Soninha, Maitê Proença, Mônica Waldvogel e Betty Lago, no programa Saia Justa, do GNT

e até funcional. Acredito que quebro preconceitos como daqueles que acreditam que ser filósofo é título honorífico. O meu livro sobre TV que, espero, fique pronto logo, é resultado da minha experiência com a televisão. Claro que eu poderia pensar em escrevê-lo se fosse também uma espectadora. Mas a idéia surgiu porque sempre busco questionar a experiência que estou vivendo. Para mim este questionamento da experiência é filosofia e eu não teria tido esta idéia se não ocupasse hoje a posição de participante de um programa. Até eu me tornar “espectadora” eu demoraria muito. Talvez nem chegasse a isso, pois gosto muito de vídeo, de vídeo arte, mas o conteúdo da TV me incomoda um pouco. E seria preciso certa paciência. Portanto, meu livro é um livro que discute mais a "forma TV" (aliás, baseia-se nesta idéia) do que seus conteúdos. Nisso ele se distingue de uma sociologia e de uma didática sobre a TV.

Se a filosofia é “pensar com”, podemos ter esperança de vislumbrar a televisão ao lado da filosofia – e não mais contra ela – num ambiente tecnológico e cultural que favoreça a interação, depois da fase longa de pura massificação? A TV digital e a democratização da informação no mundo virtual lhe dão confiança ou desconfiança acerca da disseminação da “forma filosofia”? Veja só, acho importante deixarmos de olhar para a TV como uma inimiga do pensamento. Se ela foi ou ainda é, temos que ter armas mais poderosas para combatê-la. Do contrário, só nos resta a covardia da queixa (existem muitos intelectuais que se perdem nisso). Os que reclamam dos meios de comunicação devem entrar em combate menos queixoso e mais ativo. Experimentem conversar com o inimigo ou apresentar potencialidades de ação mais interessantes às

suas “vítimas”. Daí que hoje só se vê aquela crítica de elite contra as massas. O que pomos no lugar de uma "TV lixo"? Essa é a pergunta que devem responder, do contrário não vão a lugar nenhum. O pior que esta crítica faz é tratar, de antemão, as massas como idiotas. Não tinha pensado nisso antes de ler Artaud. Digo isso porque considero tão ruim quanto a massificação a elitização. São dois opostos que se merecem. Democracia seria a potência de superação desta oposição. Seria uma reconciliação de opostos. Por isso, dá para afirmar que a democracia é uma forma de amor. Ela exige aceitar o mundo onde vivo e ter coragem de mudálo por onde eu puder fazê-lo, sem a prepotência de que “meu gosto” ou “meu ideal” é o melhor de tudo. Penso que este é um modo correto de pensar a questão da relação entre pensamento e mídia, inclusa a TV. Já a "forma filosofia" é uma prática que precisa ser maior do que a TV e estar dentro da vida em geral. JAN 2008 • Continente x

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Janeiro 2008 – Ano 8 Capa: Arquivo Cepe Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente

Flávio Chaves Diretor de Gestão

Bráulio Mendonça Meneses

Diretor Industrial

Reginaldo Bezerra Duarte

Conselho Editorial

Colaboradores desta edição:

Presidente: Flávio Chaves

AlexAndre BAndeirA é jornalista.

Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly

AlexAndre FiguerôA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. Anco Márcio Tenório é doutor em Teoria Literária e professor universitário. Bruno nogueirA é jornalista e mestrando em Comunicação Social na UFPE.

Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo

Diretor de Arte Ricardo Melo

Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira

Editor de Arte Luiz Arrais

Revisão Ayrton de Moraes

Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)

Edição on-line Mariana Oliveira

cArloS eduArdo AMArAl é jornalista e crítico de música da Revista Continente Multicultural. chriS gAldino é jornalista e pesquisadora de dança, com pós-graduação em Jornalismo Cultural. dAniel PizA é jornalista, editor-executivo e colunista de O Estado de S. Paulo e escritor. edSon nery dA FonSecA integra o Conselho Editorial da Revista Continente

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Multicultural. FáBio lucAS é jornalista. FernAndo MonTeiro é escritor e crítico cultural. JoSé TeleS é jornalista e crítico de música popular. JuAreiz correyA é poeta e editor. luiz cArloS MonTeiro é poeta e crítico cultural. MAnnuelA coSTA é publicitária, professora universitária e mestra em Comunicação

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco

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Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MAriA lecTiciA MonTeiro cAVAlcAnTi é professora.

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Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

Qualidade Parabéns pela excelente revista! Tenho comentado com uma amiga em Curitiba que temos uma grande revista cultural de qualidade. Fernando Matos, Recife-PE

Poetas e canções A matéria Grandes Poetas, Grandes Canções (novembro, 2007) está ótima. Carlos Eduardo Amaral escreve muitíssimo bem, e admirei muito o seu empenho na pesquisa que fez sobre os autores e poetas. Além disso, as demais matérias são muito interessantes, bem escritas, com ótimas fotos. Adélia Issa, São Paulo-SP

tV isenta? Eu me pergunto se é relevante gastar tanto dinheiro com essa tal TV Brasil... Por que não investir nas TVs Universitárias e na TV Cultura? Parece-me que o que vai se criar é outro grande cabide de empregos para jornalistas amigos do governo. E o que falar da audiência? Será que vale a pena atacar ainda mais o erário com um projeto que, sabemos, vai ser

assistido por parcela ínfima da população? Eustáquio Abrantes, Recife-PE

Balaio cHeio Gosto muito da nova seção Balaio. Tem informações inusitadas, como a notícia deste caubói vampiro; histórias surpreendentes, como o comportamento excêntrico do filósofo alemão Wittgenstein; humor, como na citação de Millôr Fernandes; surpresas, como a informação de que os americanos têm profundo preconceito contra os ateus, enfim, é uma seção deleitosa. Sugiro que vocês lancem um dia um almanaque com todos os balaios publicados. Paulo Cordeiro, Crato-CE

coRReçÃo • A foto de jabuticaba publicada na coluna Sabores da edição 84 (pág. 59) deve ser creditada a Délio Campos. • Os nomes de Milton Hatoum, Nélida Piñon, Jurandir Freire Costa, Tostão e Tizuka Yamasaki não foram confirmados para o Conselho Curador da TV Brasil (edição 84, pág. 63).

Revista n° 34, outubro de 2003 "A cabeça nas nuvens, os pés no chão" José Nêumanne entrevista Pedro Paulo de Sena Madureira

A capacidade de deixar de ser eu mesmo quando leio um texto – isso aprendi no mosteiro. O que menos importa na vida do monge é o que ele é. O monge se despe das circunstâncias da sua biografia, renuncia ao eu, à vontade própria. O bom editor é o leitor que radicaliza, que leva isso às últimas conseqüências. Que seria de mim sem Machado de Assis, sem Drummond, sem Borges, sem Kavafis, sem Proust? Sou uma constelação. Mas uma constelação sem luz própria: sou resultado do que li, os textos existem sem mim, eu não existo sem eles. (...) Há um ensinamento fundamental que Houaiss me transmitiu: mais importante que saber do que se trata é saber onde procurar a resposta

Pedro Paulo de Sena Madureira, editor

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Imagens: Reprodução

Nietzsche ausente O filme Dias de Nietzsche em Turim, de Julio Bressane, enfoca um dos períodos mais férteis do filósofo alemão e também o que precede seu trágico colapso mental. Bressane, um dos criadores do Cinema Marginal, nos anos 70, faz um filme “cabeça”, quase abstrato. Mas a grande surpresa está no fim, quando aparece o verdadeiro Nietzsche, já em seu eclipse, numa filmagem da época. A imagem não é a de um demente. Parece ausente, absorto num mundo interior. A certo momento, a câmera foca sua mão (as unhas pateticamente compridas), marcando o que poderia ser o compasso de uma música lenta. Para quem aprecia seu poderoso pensamento, é uma visão impactante. (Marco Polo)

Nem Borges, nem Nadine Um célebre caso de falsa autoria é o do poema “Instantes”, atribuído erroneamente a Jorge Luis Borges: “Se pudesse viver novamente minha vida / Na próxima trataria de cometer mais erros”. O poema virou pôster, foi inscrito em camisetas e louças de porcelana, chegou a ser citado por respeitadas instituições universitárias, circulou no mundo todo e mereceu um desmentido formal da viúva do escritor, Maria Kodama. Sua verdadeira autoria, entretanto, é em si uma novela. Nas primeiras investigações, foi dado como da lavra de uma poeta americana, Nadine Stair, do Kentuky. Depois, descobriu-se que ela simplesmente não existia. A origem, entretanto, estaria num texto do americano Don Herold, intitulado “I‘d Pick More Daisies” e publicado no Reader’s Digest de outubro de 1953. Foi o que descobriu a poeta Betty Veiga, após meticulosa pesquisa. Vale a pena ler no endereço: http://www.revista.agulha.nom.br/ autoria.html#betty (Homero Fonseca)

DESAFORISMOS

Pau pra toda obra Aparício Torelly, o Barão de Itararé, chegou ao Rio de Janeiro aos 21 anos e foi procurar Irineu Marinho, diretor de O Globo, apresentandose como o profissional de que o jornal estava precisando. “E o senhor sabe fazer o quê?”, perguntou Irineu. “Tudo. Desde varrer a redação até dirigir o jornal”. Ante o espanto do outro, acrescentou: “Até porque não há muita diferença entre uma atividade e outra”. (MP)

"Das várias maneiras para se atingir o desastre, o jogo é a mais rápida, as mulheres, a mais agradável; e consultar economistas, a mais segura". Georges Pompidou

O engano de Eckhout Albert van der Eckhout esteve em Pernambuco entre 1637 e 1644, a convite do conde alemão Maurício de Nassau, para retratar a fauna, a flora e os tipos humanos locais. Ele produziu cerca de 400 desenhos, pinturas a óleo e esboços. É considerado excelente documentarista, pelos detalhes de seus quadros e, principalmente, pelo olhar antropológico sobre as figuras retratadas. Apesar de seu detalhismo, ele incorreu num erro botanicamente grosseiro. Uma de suas mais famosas pinturas, Mameluca, tem ao fundo um frondoso cajueiro nordestino, de cujos galhos pendem cajus vermelhos e amarelos. Ocorre que as cores dos frutos demonstram variedades diferentes, ou seja, não poderiam nascer de uma mesma árvore. (HF)

Desleitura O percentual de adultos que lêem obras literárias nos EUA caiu de 56,9%, em 1982, para 41,3%, em 2006, segundo relatório divulgado pela Fundação Nacional das Artes da terra de George Bush (que só lê a Bíblia – e nada aprende com ela). O maior declínio ocorreu entre os jovens, o que o documento associa ao “uso elevado, por eles, do largo leque de mídias eletrônicas”. E também alerta: “a uma tal velocidade, essa modalidade de lazer tende a desaparecer em meio século”. (Fernando Monteiro)

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Dança em domicílio

O Conselho Supremo de Antiguidades do Egito permitiu que a múmia de Tutancâmon fosse exibida, 85 anos depois de descoberta pelo arqueólogo Howard Carter. A notícia foi manchete mundial, mas parece que ninguém notou um detalhe: É que o velho “Tuta” está à mostra na sua tumba, lá no Vale dos Reis, em Luxor, onde resolveram deixá-lo todos esses anos. A múmia do chamado faraó-menino (rei aos 8 anos, morreu aos 19) é a única que não habita o museu do Cairo, aparentemente por superstição dos egípcios. A fama da “maldição” que a cerca – dizem – fez com que as autoridades a mantivessem na câmara mortuária original. (FM)

A arte ainda é vista majoritariamente como um dom e, portanto, o artista não é considerado um trabalhador. Talvez, para alguns, isso possa parecer absurdo, mas é muito mais comum do que se costuma imaginar. Chamando a atenção para os direitos e deveres trabalhistas dos artistas, a bailarina carioca Cláudia Muller criou um projeto, no mínimo, inovador: Dança Contemporânea em Domicílio, com encomenda através de telefone e tudo. A proposta é “entregar” cinco minutos de dança contemporânea em locais onde ela não é esperada, buscando as brechas do cotidiano. Cláudia estará fazendo suas entregas no Recife durante a primeira semana do 16° Janeiro de Grandes Espetáculos, de 8 a 13 deste mês.

Catálogo de mulheres Em Memória de Minhas Putas Tristes (2006), Gabriel García Márquez mostra o quanto há de incestuoso – e também de isenção de culpa do personagem em relação a si mesmo – no relacionamento entre um homem de 90 anos e uma garota de 14. Além disso, a mania e o exagero de catalogar, ávida e criteriosamente, mulheres: “Lá pelos meus 20 anos comecei a fazer um registro com o nome, a idade, o lugar, e um breve recordatório das circunstâncias e do estilo. Até os 50 anos eram 514 mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez.” (Luiz Carlos Monteiro)

(Christianne Galdino)

Dança na UFPE Depois de mais de dois anos de estudos e negociações, o Movimento Dança Recife, conseguiu com o Departamento de Teoria da Arte da Universidade Federal de Pernambuco aprovar a criação de um curso superior em Dança na instituição, que começa a funcionar em 2009. Pela primeira vez na história da UFPE, uma graduação é criada a partir de demanda externa, de um pedido da sociedade – conta Rosemary Martins, coordenadora do Curso de Artes Cênicas da Universidade. (CG)

Edson Kumasaka/Divulgação

Múmia maldita

Impacto Que livro mais marcou a sua vida? Une Saison en Enfer [em português: Uma Temporada no Inferno], de Arthur Rimbaud. Após a leitura desse livro, a minha vida se divide em a.R. e d.R. (antes de Rimbaud e depois de Rimbaud). A cada página desse diário íntimo (ou catarse visceral, dirigida a um curioso destinatário), senti que havia algo que eu precisava descobrir, e que me havia sido prenunciado desde a leitura de sua correspondência adolescente e seu “desregramento de todos os sentidos”. Ao terminar o livro, pedi demissão da empresa multinacional em que trabalhava, vendi o carro, fechei a casa, larguei tudo e fui para a França, onde durante quatro meses mergulhei no Letes, que vai de Charleville a Paris, iniciando a confirmação cotidiana que seguirá até o fim de minha vida. Weydson Barros Leal, poeta, dramaturgo e crítico de arte. JAN 2008 • Continente

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CAPA

1958

O Brasil reinventado No imaginário do brasileiro, nunca na história deste país um ano foi tão bom. Estamos falando de 1958, ano em que uma convergência de boas notícias deu a impressão de que foram os 365 dias mais felizes de nossas vidas. Comemorações, portanto, não devem faltar em 2008 Ricardo Melo

A

década dourada dos anos 50 do século passado chegava ao fim em clima de otimismo e modernização. O “país do futuro” parecia querer materializar-se na construção de Brasília, cujas curvas projetadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer já podiam ser admiradas em grandes fotos publicadas pela imprensa da época. Em ritmo frenético, a construção da nova capital já não era apenas uma promessa de campanha do sorridente Juscelino Kubitschek (1956-1961) que – críticas à parte – entrou para a história como um dos mais populares presidentes que a República conheceu. Os anos JK, queiram ou não, prevalecem como sinônimos de desenvolvimento econômico, democracia e efervescência cultural. Sobre a capital que ajudou a criar, Niemeyer escreveu: “Reconheço, sem falsa modéstia, que não me faltou coragem para desenhar as cúpulas do Congresso, que espantaram até a Le Corbusier, a nos afirmar: ‘Aqui há invenção’”. O ingresso do país na era da modernidade, entretanto, não

ficaria limitado aos monumentos arquitetônicos ou ao estilo inovador de Juscelino. Na música, um acontecimento marcaria para sempre a cultura nacional naquele ano: o surgimento da bossanova. O primeiro registro do que estava para ocorrer se deu em abril, na gravação do antológico disco Canção do Amor Demais, com Elisete Cardoso interpretando músicas de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, acompanhada por João Gilberto em “Chega de Saudade” e “Outra Vez”. Em julho, a gravadora Odeon lança no mercado o disco de 78 rotações com a voz e a batida inovadora do violão de João Gilberto, em “Chega de Saudade e “Bim Bom”. Uma de cada lado. Nascia ali um novo jeito de tocar e cantar que iria influenciar fortemente as gerações seguintes de compositores e intérpretes. Os bons ventos daquele ano sopravam definitivamente a nosso favor. No futebol, estava na hora de o brasileiro lavar a alma. Mas, no meio do caminho tinha um trauma. Ou melhor, dois. A seleção brasileira,

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CAPA desacreditada desde a tragédia de 1950, em pleno Maracanã, voltaria a decepcionar em 54, fazendo feio na Suíça. A duas derrotas deram argumentos a torcedores, jornalistas e até jogadores da época, que atribuíam os fracassos no esporte à “inferioridade do brasileiro”. Nelson Rodrigues foi a exceção: “O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia”, aconselhou, pouco antes da estréia da Seleção. A impecável atuação do escrete canarinho, que deixou o estádio de Estocolmo sob aplausos do rei Gustavo VI, daria razão ao cronista. A taça do mundo era nossa! O jornalista Ruy Castro, no livro O Anjo Pornográfico, recomenda aos pesquisadores de hoje reler o que Nelson escreveu em suas crônicas e investigar se “o triunfalismo que identificam aos ‘anos JK’ não teria começado naquele 29 de junho de 1958, o do jogo com a Suécia”. O ano de 1958 foi bom às pampas (a gíria é da época). Tanto é que mereceu um livro só para ele. Escrito há dez anos pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, Feliz 1958 – O ano que não devia terminar é uma saborosa reportagem recheada de depoimentos, citações e pesquisas que comprovam a tese de que aquele, sim, foi um ano e tanto. Apesar de ter escrito um livro abrangente, o cronista e colunista de O Globo não é o único, digamos, fã do bendito ano. Entre milhões de páginas na internet que fazem referências aos anos 50, é possível garimpar algumas dezenas dedicadas exclusivamente à memória da década dourada, “quando a felicidade parecia bater às portas do Brasil”. As novidades não se resumiram a Brasília, bossa-nova e futebol. Apesar do temor de que a TV, ainda uma criança, viesse a esvaziar as salas de cinema, as chanchadas continuavam saindo a rodo – Atlântida e Herbert Richers juntas

“Não havia conspiração, ninguém organizou um movimento para derrubar estantes, vidraças, louças, livros e fazer, como em 68, a revolução tropicalistaestudantil”, segundo Joaquim Ferreira dos Santos, em seu livro sobre o ano de 1958 “Mas vem a deslumbrante vitória do escrete e o brasileiro já trata a namorada, a mulher, os credores, de outra maneira, reage diante do mundo com um potente, um irresistível élan vital”, observou Nelson Rodrigues, em Manchete Esportiva Segundo a lenda, um engraxate assoviava uma música enquanto caprichava no brilho dos sapatos do escritor Sérgio Porto. O criador das Certinhas do Lalau quis saber que música era aquela. E o garoto respondeu: “É uma bossa-nova...”

produziram 17 longas-metragens no ano – e o Cinema Novo começava a botar suas câmeras de fora. Na literatura, Jorge Amado publicava o romance Gabriela Cravo e Canela, best-seller que mais tarde viraria filme, telenovela e gibi. Um estouro de vendas. Outro destaque na área editorial foi o lançamento de um clássico do pensamento brasileiro, Os Donos do Poder, de Raimundo Faoro. Nas artes cênicas, 1958 foi palco de uma enxurrada de grandes sucessos. Por ordem de estréia e para ficar apenas na produção caseira: Eles Não Usam Black-tie (Gianfrancesco Guarnieri), O Santo e a Porca (Ariano Suassuna) e Os Sete Gatinhos (Nelson Rodrigues). Em cena, uma constelação: Maria Della Costa, Leonardo Villar, Fernanda Montenegro, Milton Gonçalves, Cacilda Becker, Ziembinski, entre outros. Naquele ano, o Brasil comemorou outra grande conquista no esporte: Maria Esther Bueno venceu o torneio de tênis de Wimblendon. No jornalismo, Amílcar de Castro assinou a reforma gráfica do Jornal do Brasil. A diagramação limpa e elegante serviria de modelo para a imprensa de todo o país. No Natal de 1958 o papa João XXIII celebrava a primeira Missa do Galo do seu curto pontificado, enquanto os brasileiros cantavam “Boas Festas”, de Assis Valente, que se matou em março do mesmo ano, tomando guaraná com formicida. Muitos ganharam de presente radinhos de pilha, o objeto do desejo na época, como os I-pods de hoje. JK fazia as contas do terceiro ano de mandato: inflação de 13% para um salário mínimo de Cr$ 3.800,00 (equivalente a R$ 500 hoje), dívida externa de 297 milhões de dólares e crescimento do PIB de 10,8%. Na retrospectiva, 1958 sorriu para os brasileiros. No réveillon, só restou desejar um Feliz Ano Velho.

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Álbum de família

Cid Sampaio discursa durante comício de campanha, em Caruaru, 1958

Carnaval em outubro contagiou Pernambuco

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ernambuco, assolado por uma terrível seca, viveria, em 1958, uma das maiores campanhas eleitorais da história republicana. A controvérsia em torno de mudanças no Código Tributário proposto pelo governo do general Cordeiro de Farias, eleito em 1954, resultou na até então inédita aliança das esquerdas com setores do empresariado. Pela primeira vez na história política do Estado, tradicional palco de embates políticos e ideológicos acirrados, patrões e trabalhadores se juntaram no mesmo palanque. A luta contra o arrocho fiscal ganhou contornos eleitorais: UDN, PTB e comunistas se aliaram contra a hegemonia pessedista. As inusitadas parcerias resultaram no lançamento da chapa Cid Sampaio-Pelópidas Silveira contra os governistas Jarbas Maranhão-

A campanha eleitoral de 1958 inspirou o maestro Nelson Ferreira a compor um novo frevo-canção: "O Bloco da Vitória está na rua / Desde que o dia raiou. / Venha minha gente pro nosso cordão / Que a hora da virada chegou (ô, ô,ô, ô!)" José do Rego Maciel nas eleições para o governo do Estado. A campanha da oposição contou com a presença do líder comunista Luís Carlos Prestes que reaparecia após uma clandestinidade de dez anos. Em seu livro de memórias (O Caso Eu Conto como o Caso Foi: da Coluna Prestes à Queda de Arraes), o advogado, escritor e ex-deputado Paulo Cavalcanti conta que “a di-

ferença de Cid sobre Jarbas Maranhão foi além dos duzentos mil votos, fato absolutamente inédito, em qualquer pleito governamental”. Em pleno mês de outubro, o pernambucano, alheio aos acordes dissonantes da turma do banquinho e violão, foi às ruas e caiu no frevo. O “Carnaval da Vitória” sepultaria por um bom tempo o PSD. O resultado do pleito alterou para sempre o cenário da política em Pernambuco. Um ano depois, Miguel Arraes, com o apoio dos mesmos atores que construíram a aliança vitoriosa - aquela altura já nem tão sólida - se elegeria prefeito da Cidade do Recife. O resto da história os pernambucanos já conhecem. Depois de cinco décadas, os desdobramentos daquele empolgante 1958 ainda se mostram presentes. (RM) JAN 2008 • Continente x

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Cena do filme Copacabana Palace, de 1962: João Gilberto e Tom Jobim cantam para as atrizes Sylvia Koscina e Mylène Demongeot

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O que havia (e ainda há) de novo na Bossa Nova Dez anos antes da Tropicália, a Bossa Nova já fazia a antropofagia pregada – mas não obtida – por Oswald de Andrade: a deglutição da influência estrangeira para sua devolução ao mundo como energia nova. E parte importante dessa mudança é o fato de que ela não nasceu como “movimento”, como uma ação de grupo a brandir bandeira Daniel Piza

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a Bossa Nova, como nas nuvens, é possível ver muitas coisas diferentes. Ela pode ser interpretada, por exemplo, como a trilha sonora de uma época, dos “anos dourados”, a tal ponto que virou adjetivo para o presidente Juscelino Kubitschek, para o arquiteto Oscar Niemeyer ou para a seleção de Pelé. Pode ser também, quase por extensão, a trilha das telenovelas da Globo que se passam entre Ipanema e

Leblon, escritas por Manoel Carlos. Do mesmo ângulo, mas com humor oposto, ela pode ser vista como um nhenhém (segundo o cartunista Angeli), uma música ambiente, “muzak”, de elevador, inimiga do silêncio, alienada ou alienante. Ou aquela obrigatoriedade na carreira de um cantor, a de gravar um disco “de Bossa Nova”, com banquinho e violão, sem precisar de muita voz nem ousadia.

Essas visões, claro, pouco se referem à música propriamente dita. Não é preciso ser nostálgico, embora tantos sejam, para folhear um livro sobre a época, ver as fotos de Tom Jobim jovem e belo na praia e pensar naquele Brasil que se prometia civilizado e descontraído ao mesmo tempo, como já não se promete. Tampouco é preciso confundir a abertura que cantores como João Gilberto deram aos “desafinados” do futuro e a real qualidade de cada um, a começar por ele mesmo, um artista de infinito rigor, tão estudioso quanto inovador, tão afinado quanto autocrítico. O que se deve tentar entender, agora que se passaram 50 anos desde o lançamento do disco Canção do Amor Demais, de Elizeth Cardoso, e do compacto de João Gilberto com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, são as características desse estilo musical que é um selo de qualidade do Brasil mundo afora. Tudo se explica em uma palavra: harmonia. O que a Bossa Nova trouxe para a música brasileira foi uma JAN 2008 • Continente x

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sofisticação harmônica que ela não tinha até então. Na verdade, alguns compositores já tinham essa sofisticação, como os geniais Pixinguinha e Caymmi, mas não da mesma forma. Os compositores da Bossa Nova embeberam o samba em jazz – Tom Jobim não gostava de ouvir que “Bossa Nova é 50% música americana”, mas jamais negou a influência que sofreu de George Gershwin – e acharam uma terceira coisa, um gênero inédito, que ainda tem batida e melodia de samba, porém entremeadas de uma harmonia mais rica. É errado pensar na harmonia apenas como um envelope sonoro, apenas como arranjo e instrumentação: ela é indissociável da melodia, a qual modifica com modulações e desenvolvimentos. No caso, o ritmo binário do samba se combina com os acordes sincopados do jazz e a melodia vai ganhando variações, pequenas oscilações nas notas e nos tempos, em diálogo com a prosódia da letra. Esse, por sinal, é um dos motivos por que as primeiras letras da Bossa Nova parecem um tanto tolas. Rubem Braga, estilista do idioma, que prezava o modo simples e claro acima de tudo, não conteve a gozação quando conheceu a letra de “Garota de Ipanema”, do poeta que tanto admirava, Vinícius de Moraes: “Olha que coisa mais linda”? Mas, além de um exercício de auto-renovação por parte de Vinícius, que começara como um sonetista bastante afetado, a idéia era usar monossílabos e dissílabos que mantivessem o swing da música, além de imagens que comunicassem aquele modo descontraído e sensual de viver. O mesmo vale para as letras de João Gilberto, propositadamente singelas, senão simplórias, como a de “Bim Bom” – praticamente uma enunciação de ditongos, como se fossem moléculas fonéticas. Foi só mais tarde, principalmente na par-

ceria de Tom com Chico Buarque, que se viu que era possível usar palavras mais longas e imagens mais elaboradas no estilo afinal tão elástico da Bossa Nova. A importância da pesquisa musical para os bossa-novistas foi representada por João Gilberto como por ninguém. Ruy Castro, no livro Chega de Saudade, o descreve cantando de tal modo que sua voz, usando um mínimo de alteração na intensidade, chegasse ao outro extremo do corredor, límpida, como um canto-falado, uma versão ainda mais cool de Chet Baker ou Mário Reis. Há também sua famosa frase sobre a intenção de colocar uma escola de samba inteira num violão só. A batida “diferente” de seu instrumento, audível naquele acompa-

nhamento a Elizeth, nada mais era que a compressão de muitas idéias numa forma de aparência simples. As modulações sutis da canção Bossa Nova querem falar ao mundo falando da aldeia, erigida a modelo de um lifestyle tão moderno quanto simpático. Têm a pretensão de vender sua despretensão ao mundo. Se João Gilberto é a melhor tradução da obstinação com que se buscou o novo, Tom Jobim é a maior expressão da grandeza que dele nasceu. Eles são, respectivamente, o Garrincha e o Pelé da Bossa Nova. Como os compositores americanos, Tom compunha ao piano, não ao violão – como fazia e faz a maioria dos compositores brasileiros. E, de fato, a música americana

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era apenas um de seus interesses. O maestro tinha como ídolo maior, como se sabe, Villa-Lobos, em especial o Villa-Lobos influenciado por Stravinsky a incorporar os ritmos brasileiros numa textura sinfônica. Adorava também Chopin e Debussy, a escola “impressionista”, que extraía climas emocionais de deslocamentos tonais, de um campo melódico-harmônico que parecia flutuar em torno de uma idéia em vez de se fixar numa escala central. (“Já me utilizei de toda a escala/ Mas no final não sobrou nada/ ou quase nada”, diz o “Samba de uma Nota Só”, que apenas os invejosos podem dizer que é plagiado da introdução de "Night and Day", de Cole Porter.) E escutava com igual paixão a chamada velha-guarda do samba e

do choro, de Noel, Nelson Cavaquinho, Orestes, Cartola, Pixinguinha e Caymmi. Dez anos antes da Tropicália ou da peça Rei da Vela, a Bossa Nova já fazia a antropofagia pregada – mas não obtida – por Oswald de Andrade: a deglutição da influência estrangeira para sua devolução ao mundo como energia nova. E uma parte importante dessa mudança é o fato de que ela não nasceu como “movimento”, como uma ação de grupo destinada a provocar efeito, a brandir bandeira. Como João Gilberto e Tom Jobim, muitos outros compositores, como o grande João Donato, buscavam a mesma coisa na mesma época antes de conhecerem um ao outro. JG na Bahia, Tom no Rio e Donato no Acre, um

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Noite do Amor, do Sorriso e da Flor: a bossa-nova conquista o público universitário

com violão e voz, outro com piano e o terceiro com acordeão, buscavam aquela renovação do samba-canção pelos módulos harmônicos leves e transitórios. Não estavam interessados em roupas chamativas e protestos políticos; estavam interessados em reinventar a música popular. Eis aqui outro aspecto curioso: aquela geração não via oposição entre esse verbo “reinventar” e o adjetivo “popular”, oposição que hoje é, explícita ou tacitamente, condutora de 99% das decisões tomadas dentro de gravadoras. A Bossa Nova mudou a MPB e se tornou a embaixadora mais refinada da cultura brasileira em todas as partes do mundo, de Cuba ao Japão, mas jamais foi exclusiva de “iniciados”, de guetos intelectualizados (que, na verdade, torceram o nariz para ela como “dissolução de jazz”, carente de nacionalismo ou erudição); ela rapidamente se tornou um sucesso de público, uma onda comercial que se ergueu no mar da indústria cultural da época, como fariam o rock e a música negra. E logo conquistaria grandes músicos do mundo todo, inclusive lendas do jazz como Stan Getz e Gerry Mulligan e cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Nem por um minuto eles confundiram Bossa Nova com plágio ou Burt Bacharach. Sim, há um caráter easy listening na Bossa Nova, uma suavidade agradável, uma ausência de incômodo, que a torna adequada para embalar esperas em consultórios e telefonemas ou para que algum candidato a artista arranhe o violão em público. Mas se queixar disso é como, guardadas as devidas e valiosas proporções, culpar Beethoven porque "Pour Élise" é literalmente executada em caminhões de gás. A Bossa Nova, cantada e tocada como se deve, com toda sua riqueza harmônica, já é um patrimônio da humanidade e assim continuará daqui a 50 anos. JAN 2008 • Continente x

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Futebol e identidade nacional A partir dos textos dos pernambucanos Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues sobre o futebol brasileiro, pode-se afirmar que a vitória brasileira na Copa do Mundo de 1958, disputada na Suécia, significou não só a consolidação do estilo nacional de jogar o esporte bretão – o dionisíaco futebol-arte –, mas igualmente a superação do secular “complexo de vira-latas” dos brasileiros Túlio Velho Barreto

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ambém (ou sobretudo) no futebol, 1958 é mesmo um ano que nunca acabou, em especial para nós brasileiros. Afinal, a seleção nacional conquistou o primeiro de seus cinco títulos mundiais, e o fez em campos europeus (a Copa do Mundo foi na Suécia). Ou seja, na linguagem futebolística, “venceu na ‘casa’ do adversário”. Tal façanha jamais foi repetida por outro selecionado, europeu ou sul-americano

– ainda que seja justo, particularmente para os mais jovens, lembrar a conquista brasileira em gramados asiáticos, em 2002, apesar de o Japão e Coréia do Sul serem considerados “territórios neutros” quando se trata da rivalidade Europa–América do Sul. Ademais, em termos futebolísticos, 1958 deu início à era de ouro do futebol brasileiro e ao reinado do maior jogador de todos os tempos: Pelé e seus cinco títulos mundiais,

três pela seleção (1958, 62 e 70) e dois pelo Santos (1962 e 63). Do ponto de vista sociológico, o feito inédito e espetacular da seleção brasileira teve pelo menos dois importantes significados para a identidade nacional. Por um lado, para usar uma idéia recorrente nos textos do escritor, antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre (19001987), a conquista consagrou definitivamente o estilo nacional de jogar o chamado esporte bretão. Por outro lado, para empregar uma expressão cunhada pelo jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), e por ele usada também de forma recorrente, a vitória levou o brasileiro a superar, finalmente, o secular “complexo de vira-latas”. Assim, ao tratarem “apenas” do futebol, contribuíram, cada um a seu modo, para a construção – ou a “invenção”, no sentido em que tal termo está consagrado na obra dos historiadores ingleses Eric Hobsbawm e Terence Ranger – do caráter e identidade nacionais.

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Jogo de Bola, óleo sobre tela de Cândido Portinari

Para quem considera isso um exagero, basta lembrar alguns textos do pernambucano de Apipucos, Gilberto Freyre, sobre o futebol brasileiro, quase sempre abordado vis-à-vis o futebol europeu, e do “carioca” nascido no Recife, Nelson Rodrigues, em especial que tratam das copas disputadas entre 1950 e 70. Pode-se, então, compreender a importância de ambos nessa construção. Há exatos setenta anos, em artigo (muito citado e pouco lido) publicado no Diario de Pernambuco

(17/6/1938), Freyre já destacava as diferenças entre os estilos brasileiro e europeu, sobretudo anglo-saxão, de jogar futebol. E relacionava tais estilos às características mais particulares de brasileiros e europeus. Para ele, a Copa do Mundo de 1938 serviu para “definir de maneira inconfundível um estilo brasileiro de (jogar) foot-ball; e esse estilo é mais uma expressão do nosso ‘mulatismo’ ágil em assimilar, dominar, amolecer em dança, em curvas ou em músicas técnicas européias ou nor-

te-americanas mais angulosas para o nosso gosto; sejam elas de jogo ou de arquitetura”. E explicava as razões para tanto: “Porque é um ‘mulatismo’ o nosso – psicologicamente, ser brasileiro é ser mulato – inimigo do formalismo apolíneo – para usarmos com alguma pedanteria a classificação de (Oswald) Spengler (filósofo alemão, 1880-1936) – e dionisíaco a seu jeito – o grande jeitão mulato”. E mais: para Freyre – pelo menos até 1958, é certo –, o fato de os brasileiros criarem um estilo próprio JAN 2008 • Continente x

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Bons exemplos de sua visão são dois artigos publicados na revista O Cruzeiro, em 18 e 25/6/1956, em que chega a professar algo que causaria calafrios em muitos dos atuais jornalistas, técnicos e jogadores: “Se, realmente, for o futebol brasileiro ‘o mais bonito do mundo’, devemos encontrar aí compensações para os nossos recentes fracassos em campeonatos mundiais”. No entanto, o foco do já consagrado autor de CasaGrande & Senzala não era apenas e necessariamente esportivo. Por isso, insistia em indagar, já respondendo: “De que importam, de um ponto de vista supradesportivo tais fracassos, se realmente estamos criando, através do futebol, um bailado em que a mestiçagem brasileira de raças e culturas encontra expressão sociológica ou satisfação estética?”. Tal visão refletia suas teses sobre a mestiçagem como traço de nossa identidade. Então, pode-se perguntar: o que faltaria ao futebol brasileiro para torná-lo, além de bonito, vencedor? Freyre mesmo responde e dá a receita, que, de fato, só seria aplicada a partir de 1958: “Precisamos conciliar esse individualismo – que dá demasiada expressão às façanhas dos heróis ou bailarinos individuais – com a disciplina, sem a qual o esforço de um grupo se degrada”. Ao remeter o leitor às derrotas brasileiras em mundiais, certamente, Freyre tinha em mente as de 1938, 50 e 54. E as duas últimas seriam temas recorrentes das crônicas de Nelson, sobretudo das que tratavam do caráter e identidade nacionais. De fato, o autor da revolucionária peça Vestido de Noiva reportava-se à derrota brasileira na final do mundial de 1950, em pleno Maracanã – quando o Bra-

sil podia empatar e marcou primeiro –, como “a nossa Bomba de Hiroshima”. Era uma evidente referência à destruição provocada pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre a cidade japonesa cinco anos antes. E assim como Freyre, Nelson mirava o futebol, mas “acertava” em alvo maior: o brasileiro, a nação e sua identidade. Por exemplo, em junho de 1966, na revista Realidade, afirmaria: “Cada povo tem irremediavelmente sua catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”. Já onze anos depois, no jornal O Globo, vaticinava: “Foi uma tragédia pior do que a de Canudos”. Mas, o que faltou ao Brasil para superar os uruguaios? Por mais de uma vez, sua explicação extrapolaria os gra-

Dois anos depois da Copa de 1954, jogada na Suíça, quando a seleção caiu diante da Hungria, e foi eliminada, Nelson escreveu na revista Manchete Esportiva: “O jogador brasileiro é sempre um pobre ser em crise. Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, mas puramente emocionais”. E lembrava que “fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionais e gratuitas”, para então concluir: “Quem ganha e perde as partidas é a alma. Foi a nossa alma que ruiu face à Hungria, foi a nossa alma que ruiu face ao Uruguai”. Mas chegou a Copa de 1958. Então, na véspera da estréia brasileira, a Manchete Esportiva publicou a crônica “Complexo de vira-latas”. Ali, Nelson explicitaria sua idéia Reprodução/Arquivo Nelson Rodrigues

de jogar um esporte inventado, em sua forma moderna, pelos britânicos, se sobrepunha aos resultados alcançados pela seleção brasileira em disputas mundiais, inclusive nas Copas de 1950 e 54.

Nelson Rodrigues mirava o futebol, mas “acertava” na identidade do brasileiro

mados: “Repito: o escrete tem de ser hoje mais Brasil do que nunca, e mais hino, e mais estandarte. Nós vamos jogar contra o Uruguai. Os uruguaios jogam exatamente como se fossem o próprio Uruguai em calções e chuteiras. Por que perdemos em 50? Porque o Uruguai era uma pátria, e nós um time”, escreveu em 1970, também n’O Globo, a propósito de outro Brasil x Uruguai, agora na Copa do México.

acerca do caráter nacional: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”. E relembra de 1950: “Perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples – porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos” – Obdulio Varela foi capitão do Uruguai.

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Reprodução: Livro Futebol Arte/Manchete Press

Pelé e Garrincha ajudaram a “driblar” o preconceito contra o negro no futebol brasileiro

Assim, mesmo destacando que os jogadores e o futebol brasileiros eram quase sempre superiores aos europeus, sobretudo tecnicamente – visão comungada por Freyre, como vimos acima –, para Nelson, o nosso estilo dionisíaco, após tantas derrotas, não parecia ser mais suficiente para levar-nos às vitórias. Nesse caso, diferentemente de Freyre, que chamava a atenção para aspectos táticos, ou seja, para aspectos coletivos do futebol, o dramaturgo entendia que era necessário deixar de ser “humilde”, de deixar de se comportar como “vira-latas” diante do outro – no caso, o estrangeiro. Tal visão o levaria, por exemplo, a defender o “pernambuquinho” Almir – autêntico precursor dos atuais bad boys – para quem dedicou as crônicas “O nosso Obdulinho” e “O divino delinqüente”, na Manchete Esportiva, em 1958 e 63, e o “possesso” Amarildo, jogador que se impunha por seu forte temperamento. E antes da Copa de 70, “absolveria” Gerson, uma das “feras do João”, quando este quebrou a perna de um peruano

nas Eliminatórias – João Saldanha foi técnico da seleção em 1969. Para tanto, bastou re-visitar velhos fantasmas: “A humilhação de 50, jamais cicatrizada, ainda pinga sangue. Todo escrete tem a sua fera. Naquela ocasião, estava do outro lado e chamava-se Obdulio Varela. O escrete do João terá onze Obdulios”. O título da crônica? Ora, “Um escrete de feras”. Para conquistar a Copa do Mundo de 1958, além de conciliar o estilo de jogar futebol – o futebol-arte – com um sistema tático mais disciplinado, por um lado, e superar o seu “complexo de vira-latas”, por outro, o Brasil teve que enfrentar o forte preconceito contra a presença de jogadores negros na seleção. De fato, após os (relativos) fracassos de 1950 e 54, a Confederação Brasileira de Desportos, através de comissão especial interna, recomendou a não convocação de negros e descendentes de índios, então responsabilizados por aquelas e outras derrotas. Portanto, como nos mostra Mario Filho no clássico O Negro no Fu-

tebol Brasileiro, o resultado alcançado em 1958, com Pelé e Garrincha em campo, ajudou a “driblar” o preconceito, ainda que não o tenha vencido por completo até hoje. Da mesma forma, o país não deixa de debater a validade ou não do estilo brasileiro de jogar futebol e sua relação com a identidade nacional a cada competição internacional. As razões para tanto? Bem, é preciso lembrar que o Brasil ficou independente de Portugal em 1822, aboliu a escravidão em 1888 e proclamou a República no ano seguinte. Portanto, nossa identidade nacional apenas começou a se “inventar” no século 20, sobretudo a partir dos anos 1930, quando o futebol já tinha aportado no país há quatro décadas. Nesse sentido, o período de 1938-58 praticamente viu nascer e se consolidar um estilo de jogar futebol brasileiro. E a vitória mundial da seleção canarinho no fim desse ciclo ajudou a abrir o caminho para transformar o futebol em um dos traços dessa identidade. JAN 2008 • Continente x

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LITERATURA

Os mistérios da criação Livro do escritor uruguaio-mexicano Victor Sosa relata vivências e reflexões pessoais sobre a criação do texto, em tradução de Maria da Paz Ribeiro Dantas Luiz Carlos Monteiro

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escritor uruguaio Victor Sosa desenvolve várias inclinações e realizações intelectuais no âmbito da escrita, como a poesia, a crítica literária e de artes plásticas, o ensaio e a tradução. É também pintor, tendo realizado exposições individuais na América Latina e na Europa. O seu livro O Impulso – Inflexões Sobre a Criação, foi traduzido agora para o português por Maria da Paz Ribeiro Dantas, escritora conhecida principalmente por seus estudos sobre Joaquim Cardozo. Publicado pela primeira vez em 2001 pela Editorial Práxis, no México (onde o autor vive desde 1983, tendo se naturalizado mexicano posteriormente), O Impulso explicita a formação francesa de Victor Sosa e suas preferências pela fenomenologia e a filosofia da vida atenta bergsoniana, pelo surrealismo bretoniano e pelo modernismo elastecido em neobarroco e concretismo, pelas vanguardas que se propuseram a ser, a seu tempo e circunstância, de algum modo inovadoras. Nada escapa ao olhar barthesiano que busca a escritura como ludismo e produto poético, a alegria inescapável do circo e o efetivo alcance das formas que permearam o século 20 e se imiscuem por este novo. No campo da poesia, no Brasil o poeta Cláudio Daniel verteu do espanhol uma

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Um telefonema anônimo que passa a ser diariamente ansiado, onde o “encanto dura na iminência da chamada”. É uma espera para escutar o silêncio, a dupla expectativa de alguém que está do outro lado da linha e não fala, de quem se sente inclinado a fruir esta presença muda, distante e paradoxalmente ausente, que seduz e vicia, exaspera e contenta: “Decepciono-me quando ergo o fone e, em vez do cálido silêncio, irrompe, pedestre a voz de um amigo e, pior ainda, de algum departamento institucional. Só desejo receber o negro e desnudo silêncio que se segue à chamada. (...) Patologia do encantamento – esperar junto ao telefone um único chamado silencioso. Ansiar por esse momento para justificar o dia, justificar minha desordenada presença na casa.” A luta travada em “Sonho com o Tigre” – expressão que poderia, também, servir como título ao texto, cuja característica visível e inicial é o fato de não ter necessidade alguma de vir titulado ou classificado – é definidora para ambos, homem e tigre, materializando-se do sonho para a narrativa, do etéreo e dissoluto para a consistência de uma forma e uma significação: “Ganhei o terreno, ganhei nesse significativo sonho – como todos os sonhos – o terreno do homem e, de alguma e de várias maneiras, o terreno do tigre. Fui tigre como o tigre refletido em meus olhos; e o tigre – pressinto-o – foi, por um instante, humano em seu furor”. O Impulso – Inflexões Sobre a Criação Victor Sosa, Tradução Maria da Paz Ribeiro Dantas, Lumme Editor, 100 páginas R$ 20,00.

boa quantidade de poemas seus, onde está incluso Dizer é Abissínia (1991), poema longo que estabelece uma clara referência ao último Rimbaud, àquele que emudeceu para a poesia nos seus tempos de aventura e comércio em terras africanas. Victor Sosa traduziu João Cabral de Melo Neto, sob o título Poesia y Composición, em 1999, resultando numa publicação mexicana da Universidad Ibero-Americana. A sua tradução do Farwell de Drummond permanece inédita. Logo nas primeiras páginas de O Impulso, percebese a presença de Bachelard em passagens que falam sobre a metáfora do caracol, comparando-o ao autor que sai de seu invólucro para o delírio inicial da escritura. Uma dialética bachelardiana das “imagens como acontecimentos súbitos da vida” revela uma fenomenologia pulsante da concha e do espaço, da casa e do universo, do ínfimo e do infindo. E ainda o desempenho borgeano que sinaliza para a tentativa de esgotamento da narração descritiva do objeto sob observação e dissecação analíticas, da abordagem incessante de detalhes, contrações, dilatações e atomizações que dão forma e visibilidade a esse objeto. O Impulso se perfaz entre a objetividade das reflexões sobre o ato de escrever e a prosa subjetiva em que isto se realiza, reunindo o vulgar e o transcendente, o reflexivo e o superficial. Em Victor Sosa, nada é recusado e tudo inclui a possibilidade de funcionar como influxo motivador para a escrita. No seu livro encontram-se textos sobre a caneta e sua (in)utilidade para a escritura e as mãos, a febre e os calafrios que a acompanham, a sujeira do corpo, a gripe que nocauteia o ser e o esforço para deixar de fumar.

Não faltam referências a Kafka, como quando este questiona a valoração da escrita pelo poeta em favor de si mesmo. Por sua vez, Sosa analisa de passagem a complexidade do pensamento e da escrita kafkiana. Ao mesmo tempo em que lê e absorve os ditos kafkianos, rejeita-os no sentido epigônico ou imitativo de um estilo: “Afinal, o que peço ao Diário de Kafka? Que imaginária revelação busco inutilmente ali? Contudo, essas palavras podem servir de guia, de bússola para minha escrita pessoal. É um deter-se a mirar – mas sem admirar –, somente para tomar alento, voltar a dar o passo necessário ao encadeamento da marcha, o ritmo, o impulso da escrita, para que esta retome seu curso”. Fica, assim, patente, na estrutura de O Impulso, as numerosas reflexões sem data, contudo situadas e encadeadas aos acontecimentos de uma época, passando a se mostrar reconhecíveis em sua eficácia de textos que mantêm a necessária autonomia e descartam a excessiva dependência em relação aos níveis ideológico e estético. JAN 2008 • Continente x

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poesia>> Samarone Lima Tempo de Vidro III As ruas do Crato me deram o chão E as janelas Os homens e suas sementes E quando cheguei ao Brejo Vivi o papel de quem vai sem saber Que está nos confins de si mesmo Até que o tempo queimou A poeira dos meus cabelos Havia o mundo por destino Os rios que subiam como leite fervido As estradas que nunca chegavam ao fim E minha busca das origens apagadas pela saudade

SOBRE O AUTOR Samarone Lima, nascido no Crato (CE) e há 20 anos radicado no Recife, é jornalista e escritor. Tem três livros publicados: Zé (1998), Clamor (2003) e Estuário (2006). Publica crônicas e poesias em dois blogs: www. estuariope.blogspot.com e www.quemerospoemas. blogspot.com.

Nunca minha solidão foi explicada Como os rios passam e não se explicam Apagaram a marca do meu destino As marcas do tempo manchando as pedras E me restou atravessar os desertos da pele IV As deliberações paternas nunca tinham sentido Chorei por razões óbvias Enquanto as palavras ardiam No fogo do silêncio Minha mãe cuidava do pranto alheio E engolia o seu Minha avó acreditava na família unida Completa e feliz Como frases de uma bandeira, uma lápide E louvava a Deus sobre todas as coisas E pessoas Meus irmãos cresceram junto aos meus ossos Dormimos juntos e sonhamos desacordados Como se cada infância tivesse sua própria poeira Minha mãe cuidava do nosso pão Mastigava seu pedaço de pedra Cozida em alguma primavera Que não tinha nascido Minha avó somou os terços, rosários, súplicas E Deus foi apenas um visitante rápido Numa tarde de domingo Fragmentos do poema inédito "Tempo de Vidro"

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O poema que Maiakovski não escreveu

LITERATURA

O equívoco que persiste em torno de célebre poema, atribuído ao poeta russo indevidamente Juareiz Correya

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m poeta brasileiro tem sido confundido, com freqüência, nas quatro últimas décadas, com o poeta russo Vladimir Maiakovski. Os equívocos cometidos, as leituras apressadas, uma provável desatenção e, até mesmo, certo descaso com a produção poética brasileira contemporânea, já produziram interpretações impensadas e informações à beira de um ataque de sandice no meio cultural brasileiro. Comentários e artigos de algumas personalidades, de gente ilustrada e lida, têm reanimado a confusão e perpetuado um erro, no mínimo, culpado por uma séria injustiça que desvaloriza um dos grandes nomes da poesia brasileira particularmente criada na segunda metade do século 20. O poeta em questão é o fluminense Eduardo Alves da Costa, nascido em Niterói (RJ) e, paulistanizado desde os anos 60, reconhecidamente um dos mais expressivos poetas de São Paulo, cidade cuja produção poética é rica também por contar, em sua geração, com nomes da Imagens: Divulgação

Vladimir Maiakovski

grandeza de um Álvaro Alves de Faria, Alberto Beuttenmuller, Eunice Arruda, Renata Pallotini, Cláudio Willer, Jaa Torrano, Érico Max Muller, Roberto Piva, entre outros. Confundem o seu nome com o de Maiakovski por causa da publicação do seu poema, justamente intitulado “No caminho, com Maiakovski”, incluído originalmente no seu livro O Tocador de Atabaque, lançado em São Paulo no ano de 1969. A Editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, ao publicar a poesia reunida de Eduardo Alves da Costa, em 1985, com o título geral No Caminho, com Maiakovski, transcreveu os versos iniciais (que é a única parte conhecida do poema) com esta nota explicativa : “A autoria deste poema tem sido atribuída, por equívoco, ao poeta russo Vladimir Maiakovski. O poema foi escrito por Eduardo Alves da Costa, em 1964.” Mas, assim mesmo, os equívocos continuaram e continuam por este Brasil desmemoriado afora. Só para exemplificar, de forma bem localizada, cito alguns equívocos cometidos por escritores e jornalistas pernambucanos que conheço. Há alguns anos, um professor, jornalista e poeta muito bem conceituado e reconhecidamente erudito, publicou, no Diario de Pernambuco, excelente artigo com a sua revelada e justa indignação sobre o momento político nacional, citando o poema de autoria de... Maiakovski! Por conhecê-lo e respeitá-lo, quando o encontrei, dias depois, lhe dei a informação sobre o verdadeiro autor do poema e ele, muito educado e consciencioso, me agradeceu a providencial correção. E outro não menos informado e culto jornalista, com coluna no Diario de Pernambuco, escreveu, em 2004, texto crítico muito bem contextualizado sobre a nossa indigente política nacional, citando “as flores do jardim” do poema de autoria de... Brecht! (Tem também este alemão na história...) Por conhecer pessoalmente o jornalista, enviei comunicação sobre o erro acidental e ele me agradeceu com informação imeJAN 2008 • Continente x

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diata divulgada na sua prestigiada coluna. Mas a confusão das identidades dos poetas continuou ainda neste ano de 2007, com a publicação de artigo corajoso, vigoroso e muito bem escrito, defendendo o Nordeste brasileiro, de autoria de conhecido professor e escritor pernambucano, em um dos jornais diários do Recife, em que Maiakovski, mais uma vez, é enaltecido como autor do poema no qual ele é citado e o autor é o brasileiríssimo Eduardo Alves da Costa. Nos outros estados brasileiros os exemplos desse tipo devem se multiplicar... e a clássica história de “quem conta um conto acrescenta um ponto” vai se transformando em algo parecido com “o poeta que é citado num poema acaba se tornando o seu autor”. É preciso que se reconheça a importância de Eduardo Alves da Costa como um dos grandes nomes da poesia brasileira do século 20. E isso não apenas por ombrearse ao gigante russo Maiakovski, caminhando ao seu lado e lhe ditando, com o sangue dos seus versos candentes, a alma mestiça da América brasileira pulsando ritmada o seu discursivo e belo poema citado, e, sim, também, pela notável criação plena de verdade e consciência crítica dos seus poemas, a exemplo de “O tocador de atabaque”, “A rosa de asfalto”, “A cama de pregos”, “Ouço ruído de tambores”, “Tentativa para salvar a poesia”, “Canção para o meu tempo”, “Sugestões para elaboração de um novo mural na ONU”, “Banana split”, “Tropas”, “Nova presença no mundo”, e “Na terra dos brucutus”, entre outros, todos (imperdíveis e leitura obrigatória para quem se sente brasileiro e latino-americano) publicados no seu livro No Caminho, com Maiakovski. E, para que não se diga que não falamos das flores do poema direito, e não se confunda mais russo com brasileiro, oferecemos, aos leitores da Continente, ajuda para iluminar a sua compreensão sobre esse problema jornalístico (não é literário porque o autor não o criou, e não é um problema editorial e cultural porque a Editora, ao publicar o poema em 1985, esclareceu, objetivamente, a questão): transcrevemos o famoso poema, pouco conhecido na íntegra, de Eduardo Alves da Costa.

“No caminho, com Maiakovski” Eduardo Alves da Costa

“Assim como a criança humildemente afaga a imagem do herói, assim me aproximo de ti, Maiakovski. Não importa o que me possa acontecer por andar ombro a ombro com um poeta soviético. Lendo teus versos, aprendi a ter coragem. Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror. Os humildes baixam a cerviz; e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo, por temor nos calamos. No silêncio do meu quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas amanhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir.

Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer mãe e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne aparecer no balcão. Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais. Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita – MENTIRA !”

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conto>> Duvenie Pessoa

SOBRE A AUTORA Duvenie Pessoa é jovem escritora, graduada em Comunicação Social pela UFPE e professora de Inglês

Contas

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il contas – vermelhas, verdes, amarelas – chacoalhando no pescoço da mulata. Burburinho. Sobe e desce, desce e sobe, as contas se agarram à pele escura temendo o ruge-ruge. A cada gota de suor, mais pânico invade seus mínimos olhinhos, se abraçam fortemente, os dedinhos roçando os corpinhos das amigas também rechonchudas. Desde que nasceu sabia que passaria toda a vida presa àquele fio de náilon, ao lado de mais algumas contas iguais a ela, mas nunca imaginara que teria de suportar tamanho sufoco para se preservar ao lado delas e a salvo. Pensava em sua infância, ora no tabuleiro, exposta aos fregueses, ora na caixinha de miçangas onde costumava brincar de esconde-esconde com as amigas. Sentia saudades do tempo que tinha orgulho de ser a mais vermelhinha, se esmerando em engomar o vestido antes de ir à feira. Agora só se preocupa mesmo é em evitar que um galego cheio de cachaça – na certa algum amásio da mulata que a comprou – encoste seus lábios descascados em seu indefeso corpinho. Tenta se esgueirar para a parte de trás do pescoço, lugar especialmente reservado para as contas mais velhas, mas, como era de se esperar, é logo expulsa, restandolhe apenas encolher-se e esperar os beiços ensebados do pagodeiro.

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Reprodução

No romance de Homero Fonseca, o personagem é um contador de histórias, e todo mundo sabe que um legítimo contador de histórias jamais permite que a verdade atrapalhe a narrativa Alexandre Bandeira

Um final feliz entre Ingrid Bergman e Humphrey Bogart em Casablanca

Publique-se a lenda

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laubert pode até ter dito que Madame Bovary era ele próprio, mas daí a afirmar que todo personagem de ficção é uma identidade de seu criador vai uma boa distância. Está aí Homero Fonseca e o seu romance, Roliúde, para provar o contrário. Porque Homero Fonseca não é Bibiu. Bibiu, para os que ainda não o conhecem, é Severino Ramos Soares da Silva, nascido em 1911 no povoado de Barra de São João, agreste pernambucano. Ele é o narrador protagonista de Roliúde – um Romance Picaresco, Aventuroso e Cinematográfico, no qual conta uma biografia tão absurda e movimentada que vai desde uma caçada a extraterrestres na Serra do Mimoso até a rendição de Adolf Hitler em pessoa pela ação de um soldado nordestino em Berlim. Desnecessário dizer que faltam documentos para provar tais façanhas, mas, para aqueles que duvidam, Bibiu é o primeiro a admitir: “A história de minha outrora afamada pessoa é uma mistura de lenda inventada e verdade verdadeira, um eninhado de acontecências que nem eu mesmo sei mais o que é de vera, o que é invenção”. Bibiu é um contador de histórias, e todo mundo sabe que um legítimo contador de histórias ja-

mais permite que a verdade atrapalhe a narrativa. Para ganhar a vida, ele recorre aos mais diversos expedientes. Foi locutor de circo, homem da cobra, camelô, adivinho, recruta do exército e, em especial, contador de filmes. Fascinado desde a primeira vez em que entrou numa sala de cinema, Bibiu viaja pelo interior do Nordeste entretendo a população local com os enredos dos filmes de sucesso da época, como ...E o Vento Levou, King Kong e No Tempo das Diligências. Como recurso narrativo, somente a sua verve dramático-humorística e sua habilidade de subverter os roteiros originais para o gosto e melhor entendimento das platéias sertanejas: “Gente boa, o filme que vou contar hoje se chama ...E o Vento Levou. É a história de uma mulher bonita mas muito ambiciosa e metida a cu-doce, com licença da palavra (...) A mocinha se chamava Scarlete... é, esses gringos têm mania de botar nome esquisito nos filhos. Ninguém vê nos filmes americanos uma moça chamada Maria do Carmo, Conceição ou Francineide.” Aqui está a grande diferença entre Bibiu e Homero Fonseca, autor de Roliúde. Enquanto o primeiro adap-

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Ana Fonseca

ta a sua narrativa ao repertório e às expectativas do seu público – chegando a incluir um final feliz entre Ingrid Bergman e Humphrey Bogart em sua versão de Casablanca –, Homero faz uma aposta arriscada ao escrever um livro que talvez só possa ser totalmente compreendido por um leitor muito específico: familiarizado não apenas com a cultura e o falar nordestinos, mas também com filmes e astros de cinema de mais de meio século atrás. Está certo que toda obra artística – as de qualidade, pelo menos – permite mais de um nível de leitura, e nesse sentido Roliúde consegue divertir a qualquer um, mesmo quem não perceba todas as intervenções de Bibiu nos enredos consagrados de Hollywood ou não atine para o sentido de todas as suas expressões. Mas é provável que somente um nordestino nativo aprecie a beleza da fala de Bibiu, talvez o maior mérito de Homero Fonseca pela verossimilhança alcançada. É texto para ser lido em voz alta e por quem conhece a cadência e a pronúncia corretas, como nesta passagem em que Bibiu é perseguido pelo próprio Diabo: “Eu me admirei que ele me conhecesse pelo nome, mas felizmente o Bute escorregou e eu alcancei uma certa vantagem. Ele se levantou de um pinote e vinha mais ligeiro ainda pro meu lado (...) Por mais que eu corresse, o Tinhoso também corria. Eu, botando os bofes pela boca, pensava: `Será possível que não dá uma dor de veado nesse filho da mãe?’” Ao não fazer concessões a um hipotético leitor médio, Homero dá uma autenticidade a Bibiu difícil de se encontrar em personagens literários. Quase como se Bibiu tivesse existido de verdade.

Fonseca: texto para ser lido em voz alta

E é claro que existiu: o próprio autor afirma que tirou a inspiração para o personagem depois de ler, num livro da arqueóloga Gabriela Martin, trecho sobre um caboclo da Amazônia que, na década de 40, saía de barco pelos igarapés contando o enredo de filmes para a população ribeirinha. Esse Bibiu matriz se perdeu nos descaminhos da história oral, que é tema recorrente na obra de Homero Fonseca. Roliúde traz em primeiro plano “uma mistura de lenda inventada e verdade verdadeira”. Se Homero – como quase todo jornalista, aliás – se revela fascinado pelo “publique-se a lenda”, Bibiu é a lenda que se publicou por conta própria. Quanto à seleção de filmes que Bibiu narra durante o romance, Homero tampouco poderia optar por sucessos mais recentes para agradar a um público mais amplo. Porque Bibiu é necessariamente produto de uma época passada, em que a modernidade – aqui representada pelo cinema – ainda não havia se espalhado por todos os cantos. Basta lembrar do recente Céu de Suely: ao voltar à sua cidade natal, no interior do Ceará, a protagonista Hermila planeja ganhar a vida com a pirataria de DVDs. Como Bibiu poderia se encaixar nesta realidade? Aliás, como poderia contar a história desse filme? Há uma melancolia nas palavras finais de Bibiu que reflete a consciência de seu próprio anacronismo. “Agora vivo esquecido neste mocambo. Quem me vê aqui, assim, nem parece...”, diz ele, próximo de concluir o seu longo depoimento a um interlocutor oculto e mais ilustrado. É de se pensar se o anacronismo não é também da própria figura picaresca – o pobre vagabundo que contorna as dificuldades pelo humor e pela esperteza, e que ao desrespeitar os “bons costumes” serve como crítica social. Não é preciso um mundo um pouco mais ingênuo para servir de “escada” ao humor do pícaro? Seja como for, Bibiu preserva uma dimensão real poucas vezes encontrada na literatura brasileira. E aqui vai uma aposta: se o livro for transformado em filme ou série de TV (o que parece um desdobramento natural), essa realidade vai sermais palpável, ganhando vida própria no imaginário coletivo para além da obra original e do seu autor. Homero Fonseca que me desculpe, mas Bibiu é Bibiu e pronto. Ou melhor: e priu! Roliúde Homero Fonseca Ed. Record 246 páginas R$ 36,00

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livros

MÚSICA

A fábula de Uoromaca

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fábula de Uoromaca, o “maciste” halterofilista que representa, alegoricamente, a opressão e a violência nos países latino-americanos, quando passa a chicotear as pessoas, e elas gostam e pedem mais, formando-se aí a instituição nacional da Surra. O casamento exótico e extremado de Rosa de Windsor, a loucura de Dino Silas observada de fora talvez por outro louco que se pretendia normal e a sina de Juarez Morente que teve sua vida pessoal abalada porque lhe roubaram toda possibilidade de silêncio, perfazem recortes do substrato ficcional de narrativas de Cláudio Aguiar, em

O Comedor de Sonhos. Neste novo livro, diferentemente de Caldeirão ou do ensaio sobre Franklin Távora, a prosa de Aguiar intenta ultrapassar, propositivamente, as fronteiras regionais. Tal prosa traz, no seu “corpus” de sonho aliado a uma espécie de erudição natural, a negação de reflexos localistas. Cada conto é iniciado pelas citações de autores ou referências a personagens de livros de domínio universal – A Bíblia, Aristóteles, Sêneca, o provérbio chinês, García Lorca, o guerreiro Napoleão. Apenas o texto “Os Cavalos Inteligentes” possui ambientação no Recife, e ainda assim, segundo o narrador, feito mistério “um tanto forçado pelas circunstâncias, se não me falasse mais alto essa inusitada compulsão de recordar um velho amigo”. (Luiz Carlos Monteiro)

> Artes e manhas de entrevistadores

> Trágica guerra de Canudos relançada

> Sobre racismos e racialismo

> Livro de estréia de jornalista alagoano

Ela é considerada a essência do jornalismo e a ponte entre o personagem da notícia e o leitor. No Brasil, já fez história a ponto de derrubar e levantar carreiras, ou servir como veículo para mudanças de comportamento. Ocupa espaço nobre em quase todos os meios de comunicação. Mas o que há por trás desta atividade chamada “entrevista”? Foi essa questão que Carla Mühlhaus procurou esclarecer neste livro. Para isso, ela conversou com dez experientes repórteres, de Joel Silveira a Paulo Roberto Pires. A abordagem, o comportamento ético, a edição e , sobretudo o feeling – indispensável a qualquer entrevistador –, são algumas das boas dicas deste grande elenco de jornalistas. (Ricardo Melo)

Chega a ser irônico o fato de A Guerra Total de Canudos, do historiador Frederico Pernambucano de Mello, ter sido publicado inicialmente pela Casa Stähli, de Zurique, em 1997. Foram necessários 10 anos, para que a editora A Girafa redescobrisse o livro, fundamental para quem quer conhecer a fundo a tragédia de Canudos. O autor tem o raro talento de conciliar uma pesquisa exaustiva com um texto impecável, cheio de estilo e força. “São sete e meia da manhã. Às oito e quinze, os últimos batalhões dessa unidade são mandados à frente com a polícia da Bahia”. Neste momento, o leitor está caminhando junto com as tropas do Exército, torcendo para que não aconteça o extermínio. Mas é tarde. (Samarone Lima)

“É claro que existe racismo nos EUA. É claro que existe racismo no Brasil. Mas são espécies distintas de racismo...” Assim começa essa coletânea de ensaios do sociólogo baiano Antônio Risério, no qual assume posição polêmica ao questionar a simples importação de modelos políticos de combate ao racismo entre nós, tão caro aos “arautos neonegros de nosso racialismo político-acadêmico”. Para Risério, combatente de toda forma de discriminação, um diagnóstico errado levará a soluções erradas. Parece um truísmo, mas não é, quando se depara com a complexidade do tema, enfrentada com base numa vasta bibliografia e vivência pessoal de baiano e mestiço. (HF)

A estréia do jornalista alagoano Carlos Nealdo dos Santos na ficção deu-se com o romance O Pianista do Silencioso, prêmio Alagoas em Cena – categoria Literatura 2006 , que tem como personagem principal um telegrafista, músico diletante, que se torna o pianista do primeiro cinema de Rio Branco (hoje chamada de Arcoverde), em pleno sertão pernambucano, nos idos de 1917. O ator americano Al Jolson, o moleque Xié e ex-pescador e dono de bar Saruaba compõem uma fauna rica de um enredo criativo cujos capítulos têm os títulos de filmes famosos. O texto, entretanto, tem certo viés jornalístico, ao abusar de informações reveladoras da meticulosa pesquisa do autor. (HF)

Por Trás da Entrevista Carla Mühlhaus Record 320 páginas R$ 40,00

A Guerra Total de Canudos Frederico Pernambucano de Mello R$ 49,00

O Comedor de Sonhos Cláudio Aguiar Editora Calibán 176 páginas R$ 25, 00

A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros Antônio Risério Editora 34 440 páginas R$ 54,00

O Pianista do Silencioso Carlos Nealdo dos Santos EdUfal 200 páginas R$ 25,00

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MÚSICA

Uma poesia realmente visceral

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poetisa norte-americana Sylvia Plath (foto) suicidouse aos 31 anos. Traída pelo marido, o também poeta Ted Hughes, foi elevada pelas feministas a mártir do machismo predatório. Para completar, ficou-se sabendo que Ted manipulou os originais de Ariel, último livro dela, substituindo poemas. Agora, em português, sai a edição de Ariel tal como idealizado pela poetisa. Frieda Hyghes, filha do casal, assina o prefácio em que rejeita a “aura” legada à mãe pelas feministas, bem como a demonização de seu pai.

Acredita que Ted agiu com boa-fé, pois muitos poemas atingiam ferozmente a mãe de Sylvia (Fora, coleante tentáculo), o pai (Papai, seu puto), o marido, etc. O livro está recheado de palavras cáusticas. De vez em quando, um sinal: Morrer/ É uma arte, como tudo o mais. / Nisso sou excepcional. Sylvia Plath faz o que no Brasil é anátema: uma poesia confessional. Mas seu confessional passa longe do inócuo e do sentimentalismo. Se há uma poesia de que se possa realmente usar uma palavra geralmente tão mal empregada – visceral – é essa poesia. Em seu último livro Sylvia tinha chegado ao nível da excelência. Três versos já seriam suficientes para caracterizá-la como um grande poeta: Sou habitada por um grito./ Toda noite ele voa/ À procura, com suas garras, de algo para amar. (Marco Polo)

> Contos do bizarro e do grotesco

> Para além da ficção científica

> Narrativas ágeis e emocionantes

> Uma estréia de primeiríssima

Mais conhecido no Brasil pelo livro infanto-juvenil A Fantástica Fábrica de Chocolate (levada ao cinema em duas versões), o escritor galês Roald Dahl possui uma intrigante obra para adultos. Projetando lançar mais três, a Barracuda editou agora o livro de contos Beijo, (com vírgula, mesmo). Mais do que contos de terror, embora alguns contenham elementos disso, podem ser melhor classificados como narrativas do grotesco e do bizarro, com reviravoltas quase nunca agradáveis e toques de humor macabro. Falam de esposas que não vão perder ótimas oportunidades de cruel vingança ou dos planos maníacos de um homem com relação à sua filhinha recémnascida. Todos com toques de sadismo que “agarram” (e divertem) o leitor.

Philip K. Dick é autor de vários livros de ficção que, adaptados, renderam filmes como Blade Ranner e O Vingador do Futuro, entre outros. Um de seus últimos romances, Valis, tem uma trama estranha e complicada, que se passa em 1978, no fim do movimento hippie. Os personagens principais são o próprio autor e seu amigo Horselover Fat que tem uma “revelação divina” e acredita que uma entidade divina (que já encarnou em Buda e Cristo) está para nascer novamente. Ele também acha que Deus não é uma entidade suprema e transcendental, mas sim um alienígena muito poderoso e perigoso. Misturando filosofia e teologia a teorias de conspiração, Dick constrói um romance complexo, para além dos limites da ficção científica convencional.

O escritor uruguaio argentinizado Horacio Quiroga teve uma vida tão tumultuada que daria um romance onde se mesclariam tragédia, drama, comédia e aventura. Mas é este último aspecto que ele explora nos Contos da Selva, destinado ao público infantojuvenil, formando parelha com o livro Cartas de um Caçador, também publicado no Brasil pela Iluminuras. Os contos têm o caráter de fábulas, em que animais e homens conversam entre si, mas sem finais moralizantes. Arraias-de-fogo em guerra com onças irritadiças, uma abelinha malandra usando toda sua astúcia para escapar da morte e a amizade entre um homem e uma tartaruga são alguns dos temas muito bem explorados em narrativas ágeis e emocionantes.

Nascida em 1977, em Santa Catarina, Ieda Magri estréia com o livro Tinha uma Coisa Aqui, composto de três narrativas. Na primeira, a personagem Pema lembra sua infância ao lado do pai (a quem às vezes chama de “meu homem”), lembra as sensações morar perto de um laranjal, lembra da aflição ante a ordem de Deus para que Abraão mate seu filho. Na segunda, um garoto se senta ao lado de Pema e recorda um pouco de sua história. De como saiu de casa e foi para a cidade ser atriz, protestar contra a ditadura e ter uma criança. Na terceira, Tina, sua filha, lamenta o abandono do marido e sua sina de mãe de uma filha mal-formada. Tudo numa prosa tensa e tersa, muito bem urdida e fluente. Uma estréia de primeiríssima classe.

Beijo, Roald Dahl Editora Barracuda 344 páginas R$ 39,00

Valis Philip K. Dick Editora Aleph 304 páginas R$ 44,00

Ariel Sylvia Plath Verus Editora 209 páginas R$ 34,30

Contos da Selva Horacio Quiroga Iluminuras 128 páginas R$ 29,00

Tinha uma Coisa Aqui Ieda Magri 7 Letras 72 páginas R$ 23,00

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CARNAVAL

Uma iguaria chamada frevo Livro documentando em texto e imagens a trajetória do frevo encerra o ciclo comemorativo dos 100 anos do gênero musical pernambucano

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Marcel Gautherod/Divulgação

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ncerrando o ciclo comemorativo do centenário simbólico do frevo (a partir do primeiro registro da palavra na imprensa, em 1907), a editora paulista Timbro vem de lançar, com patrocínio da Petrobrás e Prefeitura do Recife, o livro Frevo, 100 Anos de Folia. Com capa dura, mais de 200 ilustrações e fotografias e texto leve, em português e inglês, a obra está longe de ser um tratado acadêmico sobre o tema, o que não significa frivolidade. Com efeito, o texto dos jornalistas Luiz Augusto Falcão e Rodrigo Frevo, 100 Anos Aguiar, entremeado por citações de de Folia gente como Katarina Corte Real, José EditoraTimbro Lins do Rego, Antônio Maria, Caeta240 páginas no Veloso, Clarice Lispector, Mário de R$ 95,00 Andrade, Gilberto Freyre, Valdemar de Oliveira, Leonardo Dantas Silva e Rita de Cássia Barbosa de Araújo, revela uma cuidadosa pesquisa sobre o tema, que vai dos primórdios do gênero musical às suas novas roupagens, passando pela influência do frevo em outras regiões. A primorosa apresentação gráfica, do artista João Baptista da Costa Aguiar, é enriquecida por dezenas de fotos de Pierre Verger e Marcel Gauthorot (de valor igualmente estético e antropológico) e por reproduções de pinturas de Portinari, Vicente do Rego Monteiro, Heitor dos Prazeres, Lula Cardoso Ayres, Augusto Rodrigues, J. Borges e outros. Aparentemente despretensioso – “a idéia é propiciar ao leitor um passeio pela história dos carnavais do passado e do presente”, afirma Camilo Cassoli, coordenador editorial – o livro traz pérolas textuais ou imagéticas, como uma foto de Carmen Miranda com um turbante de sombrinhas coloridas (do filme Romance Carioca, de 1950) e o manuscrito original da letra de “Frevo de Orfeu” – de Tom Jobim e Vinicius de Moraes para o filme Orfeu do Carnaval, de Marcel Camus. Para quem nada sabe do frevo, é uma excelente introdução, dessas que cumprem fielmente sua função, que é a de despertar o gosto pelo assunto e induzir à busca por um maior aprofundamento. Para os “frevólogos” que tudo sabem do assunto, há imagens raras e informações saborosas que fazem da obra um prato requintado a ser degustado com rituais de gourmet. Sirvam-se, portanto, senhores. JAN 2008 • Continente 

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entre linhas

Luzilá Gonçalves Ferreira

Falar, escrever

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aparecimento, no mundo inm um belo livro intiteiro, de centenas, milhares tulado Seis Propostas de pessoas que se acreditam para o Próximo Milêescritores, apressados em dinio, Ítalo Calvino nos vulgar suas produções, sem alerta para o que chamou de “a terem acumulado leituras ao peste da linguagem”. O escritor longo dos anos, sem as quais italiano, há mais de vinte anos, é quase impossível a aquisição preocupava-se com o mau uso de um vocabulário rico, a posque as pessoas estavam fazensibilidade de se estruturar um do das palavras, de como o vopensamento, de se expressar cabulário por elas empregado, sua definitiva primeira pessoa. na fala cotidiana, era desvirtuE mais: pessoas ainda isentas ado, impreciso, aproximativo. das experiências existenciais Uma verdadeira epidemia, que de que fala Rainer-Maria Rilke só a literatura poderia debelar. nos Cadernos de Malte. Pois, Tinha razão Calvino. Cada Ítalo Calvino alerta para “a peste da linguagem” para se escrever, sugeria o povez mais, ao nosso redor, eta, é preciso ter visto muitas cidades, homens e coisas, exemplos não faltam de emprego inadequado de termos, sentir como voam os pássaros, que movimento fazem as em discursos e entrevistas de políticos, atores, pessoas flores ao desabrochar, pensar em regiões desconhecidas, comuns, e até em anúncios publicitários, que dificultam em momentos de preciosa calma. É preciso recordar noia transmissão da mensagem ou nos habituam ao descates de amor – nenhuma semelhante à outra –, ter permaso verbal. No ano passado ouvi, no aeroporto de Connecido junto a um moribundo, a janela aberta aos ruídos gonhas, um aviso surpreendente, transmitido por altodo mundo, esquecer mesmo as próprias lembranças, que falante: "Atenção, senhores pais, vigiem seus filhos, para só são valiosas quando se tiverem tornado sangue, olhar evitar acidentes desnecessários". Em outro lugar, um e gesto em nós. E o autor das Elegias de Duíno acrescencartaz colocado acima de grossos fios portadores de eletava: “só então pode acontecer que em uma hora muito tricidade prevenia: "Fios de alta tensão, perigo de morte, rara,” (...) “surja a primeira palavra de um verso”. proibido tocar". Ítalo Calvino é menos incisivo do que Rilke, mas suas Às vezes a imprecisão parece decorrer de elipses de propostas são de uma grande exigência. Em nossa fala, que nem mesmo o falante se dá conta. Como em entrevisem nossos escritos, é preciso que haja o que sugere Calta de um deputado outro dia, transmitida por uma granvino para o texto literário: leveza, rapidez, exatidão, viside emissora. A uma pergunta do repórter ele respondeu: bilidade, multiplicidade. Uma última qualidade deveria “Encontrei, sim, doutor Fulano, onde ele me disse que ter concluído as seis propostas, anunciadas no curso que tudo estava bem.” Na escola a gente aprende que onde é Calvino pronunciaria em Harvard, quando a morte o advérbio de lugar, ou pronome adverbial, nem sei mais, surpreendeu, em 1985: a consistência. Mas as reedições em todo caso não pode se referir a uma pessoa. Mas vai de seu livro, traduzido para muitas línguas atestam de alver que o ilustre senhor pensava não no interlocutor, mas gum modo, que ainda há pessoas preocupadas com a se referia à tal conversa havida entre os dois. Será? linguagem, com o valor das palavras. Pessoas que falam, A coisa se complica quando se trata de textos escritos escrevem, para serem ouvidas, compreendidas. Amadas, com intenção literária, poéticos, sobretudo. A internet, enfim. a facilidade de se imprimirem livros, possibilitaram o 36 Continente • JAN 2008

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Fotos: Divulgação

TELEVISÃO

Cenas das filmagens das minisséries Santo por Acaso e Cruzamentos Urbanos (abaixo), primeiras produções do novo núcleo

Yes, nós temos minisséries A

Duas produções locais realizadas pela TV Jornal marcam a implantação do Pólo de Teledramaturgia do Nordeste Alexandre Figuerôa

produção audiovisual pernambucana, depois do reconhecimento nacional alcançado pelos curtas e longas-metragens realizados no Estado a partir de 1994, abre agora nova frente de luta com a implantação do Pólo de Teledramaturgia do Nordeste, iniciativa da TV Jornal, cujos primeiros resultados foram as minisséries Santo por Acaso, dirigidas pelos cineastas Léo Falcão e Geraldo Motta, e Cruzamentos Urbanos, estréia na realização de ficção do radialista e publicitário Pablo Pólo. As duas obras foram retransmitidas para toda a Região Nordeste pelas emissoras afiliadas do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e, ao menos no Grande Recife, segundo o Ibope, alcançaram a média de audiência de 8.6 % e 9.4 %, respectivamente, índices considerados animadores pelo gestor do projeto, Valdir Oliveira. Para colocar o núcleo em atividade, a direção da emissora armou uma estratégia de captação financeira que, diferentemente do que ocorre com as produções cinematográficas, não buscou obter JAN 2008 • Continente x

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Chandelly Brás e Carlos Nigro vivem o casal Carla e Assis em Cruzamentos Urbanos

recursos nos moldes de lei de incentivo ou do Funcultura, embora os patrocinadores tenham sido o Governo do Estado e a Prefeitura do Recife. Segundo Oliveira, a TV Jornal ofereceu um pacote de mídia, assim como ocorre com o patrocínio de eventos – São João, Carnaval – ou seja, a verba corresponde a uma entrega de mídia ao patrocinador, independentemente de ser empresa privada ou governamental que tem como contrapartida as inserções da marca na programação. Para a realização, o núcleo contou com a estrutura da própria emissora, com a parceria de autores e técnicos e apoios da Sony – que emprestou uma câmera de vídeo de alta definição – e da Imagenharia – para a edição. O investimento girou em torno de R$ 1,2 milhão

e a continuidade do projeto, observa Oliveira, “vai depender da ampliação de parcerias e sensibilização dos patrocinadores a partir do que já foi realizado”. Para os técnicos e artistas envolvidos com as duas produções a expectativa de abertura de um novo mercado de trabalho é vista com entusiasmo. Para rodar Santo por Acaso, Léo Falcão e Geraldo Motta contaram com cerca de 100 pessoas que se deslocaram para o interior do Estado, entre as quais muitas delas participam da atual movimentação cinematográfica observada em Pernambuco. A atriz Nash Laila, por exemplo, atuou no filme Deserto Feliz, de Paulo Caldas, e o próprio Léo Falcão também realizou diversos curtas. Contudo, o formato minissérie, embora incorpore

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elementos da linguagem cinematográfica, exige uma série de procedimentos que ficam a meio caminho entre a telenovela e o cinema. Ela tem um ritmo próprio, pede ganchos de passagem de cada bloco e de cada capítulo e a recepção é fragmentada. Além disso, é preciso levar em consideração o fato de a veiculação ser na TV aberta e qual é o perfil do público a ser alcançado. Pablo Pólo ressalta o desafio e a complexa logística montada para realizar Cruzamentos Urbanos que foi ao ar em três capítulos com duração de 30 minutos cada. “Foram quatro meses de trabalho, dos quais um mês e 15 dias foram usados para burilar o roteiro e realização das etapas de préprodução, incluindo direção de arte, planejamento de luz, fotografia e cenários, ensaios com o elenco, mais um mês para captação, e cerca de 45 dias de edição e finalização”. Ao todo, Pólo reduziu 32 horas de imagens para a uma hora e meia que foi vista pelo telespectador. “Um negócio de louco”, confessa. Mas o resultado obtido, segundo ele, foi satisfatório e mostrou que a equipe teve competência para gerar um produto de qualidade. Apesar das dificuldades naturais de quem está dando os primeiros passos em teledramaturgia, Pólo diz ter se sentido à vontade por ter o hábito de acompanhar regularmente a produção televisiva brasileira, inclusive novelas e minisséries. “Foi muito gratificante a partir desta referência poder fazer isto aqui, colocar nossa cara, nossos hábitos, nosso sotaque na tela”. Esta mesma sensação de resgatar para a televisão local um papel de centro difusor de produções regionais – não se pode esquecer que a mesma TV Jornal nos anos 60 realizou telenovelas que foram exibidas em todo o Brasil – é compartilhada por Valdir Oliveira. “Além do cenário, da paisagem e do sotaque, é fundamental que esta produção transcenda o regionalismo e crie padrão estético diferenciado. Por isso fizemos questão de apresentar uma história passada no meio rural e outra no universo urbano e buscamos valorizar a participação dos artistas locais, a exemplo dos músicos que compuseram as trilhas sonoras como Lula Queiroga, Mônica Feijó, Parafusa, entre outros”. Analisando os trabalhos inaugurais do núcleo de dramaturgia da TV Jornal percebe-se, é claro, que ainda existe muito caminho a ser percorrido. Algo, felizmente, reconhecido pelos próprios idealizadores. A familiaridade com a atuação diante e por trás das câmeras só pode ser aperfeiçoada com a produção constante. Encontrar o ritmo exato na articulação da trama dentro dos blocos e na sua relação com o conjunto, não se deixar levar por esquemas imagéticos redundantes, equilibrar a caracterização dos personagens, prejudicada, por vezes, pelo elenco ainda pouco à vontade na gesticulação, nas expressões faciais e no tom da voz, são elementos que paulatinamente poderão ser ajustados e dar a esta iniciativa o mesmo prestígio que o cinema pernambucano vem obtendo. O importante é não deixar a peteca cair.

De cima para baixo, cena da minissérie Santo por Acaso; Pablo Polo (D) com sua equipe; a equipe de produção comandada por Léo Falcão

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A lista das listas

Um livro – com a lista dos “100 melhores filmes” – avança no duvidoso terreno das listas, com a escolha de 100 obras, a cargo do crítico inglês Ronald Bergan Fernando Monteiro

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Imagens: Reprodução

istas? Para que servem as Orson Welles durante listas dos “melhores filmes as filmagens de de todos os tempos”? TalCidadão Kane vez para ocupar o tempo – e a cabeça – de críticos que, recém-divorciados, acabam de estrear apartamento novo, num daqueles sábados longos da vida de solteiro entretida mais com velhos filmes do que com novas companhias. Seja como for, foram os redatores da respeitada revista inglesa Sight & Sound que, em 1952, começaram com a mania, elegendo “os melhores 10 filmes produzidos até o início dos anos 50”, e para isso convocando uma espécie de “colegiado” de cineastas, teóricos e (é claro) colegas – fanáticos e menos fanáticos – que terminaram elegendo os títulos do quadro 1. Os filmes empatados fizeram surgir 12 eleitos (predominando produções européias, note-se), com Chaplin emplacando duas obras nas primeiras posições, e mais a presença de algumas admirações recentes – naquela época – determinando votos de puro entusiasmo da década pós-guerra (o melhor exemplo disso é Louisiana Story, filme quase esquecido hoje em dia). Estavam inauguradas as “listas” dos melhosegunda), embora não constasse da relação inaugural res, no cinema, e a da revista britânica fixou o prados “melhores”. Em compensação, a lista reapareceu zo de uma década para promover nova votação. Em mais voltada para a Europa, na proporção de sete para 1962, portanto, veio a segunda votação, já em outro dois, segundo os critérios dos votantes da segunda ambiente cultural, com sensíveis diferenças da prirodada. Curiosamente, filmes de Chaplin nunca mais meira (quadro 2). alcançaram posição alguma, para sempre (pelo menos nas apurações de Sight & Sound). Cidadão Kane, produção americana do início da déDez anos se passaram, e, em 1972, a terceira lista cada de 40, havia chegado para ficar: passou a ser vomanteve seis obras da última votação (Cidadão Kane, tada quase sempre na primeira posição (uma vez, na 40 x Continente • JAN 2008

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A Regra do Jogo, O Encouraçado Potemkin, A Aventura, O Martírio de Joana D´Arc e Contos da Lua Vaga, também conhecido como Contos da Lua Vaga após a Chuva). Como obras novatas na consagração dos críticos, surgiram Fellini Oito e Meio (Otto e Mezzo, de Federico Fellini – Itália, 1963), Quando Duas Mulheres Pecam (Persona, de Ingmar Bergman – Suécia, 1966), A General (The General, de Buster Keaton – EUA, 1926), Soberba (The Magnificent Ambersons, de Orson Welles – EUA, 1942), e mais uma obra-prima do sueco Bergman: Morangos Silvestres (Smultronstället, de 1957). Com três edições da lista pioneira (numa prestigiosa publicação dos tempos bons da crítica, etc.), podia se falar, já, em pelo menos três títulos inamovíveis ou sempre presentes: Cidadão Kane, A Regra do Jogo e O Encouraçado Potemkin (outro bem garantido seria O Martírio de Joana D’Arc, votado mais ou menos lista sim, lista não). Orson Welles era ainda muito

reverenciado na Europa, e o seu Soberba veio para a lista pela primeira vez em 1972, embora muito distante, artisticamente, do soberbo Cidadão Kane. Não vou citar as listas subseqüentes – de 1982, 1992 e 2002 –, para não cansar o leitor talvez começando a se desinteressar pela variação apenas parcial dos títulos, na avaliação dos críticos reunidos por S&S. Apenas acrescento que, somente em 1982, uma legítima obra-prima de 1956 faria o seu aparecimento – tardio – na relação dos melhores: Rastros de Ódio, magnífico faroeste de mestre John Ford, tão bom quanto Rio Bravo, o excepcional western de Howard Hawks que nunca conseguiu ficar entre os dez nota10 da eleição mais respeitada da cinefilia. E mais: nosso assunto aqui não é a votação que Sight & Sound prossegue fazendo (na última, apareceu um filme novato no ranking – apesar de realizado em 1927: Aurora, ou seja, o americano Sunrise, dirigido pelo alemão Friedrich W. Murnau). Charles Chaplin em Em Busca do Ouro

Cena de Ladrões de Bicicleta, de Vitório De Sica

1952

1962

1 - Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette), de Vitório De Sica. Itália – 1948;

1 - Cidadão Kane (Citizen Kane), de Orson Welles. EUA – 1941;

2 - Luzes da Cidade (City Lights), de Charles Chaplin. EUA – 1931;

2 - A Aventura (L’Avventura), de Michelangelo Antonioni. Itália – 1959;

3 - Em Busca do Ouro (The Gold Rush), de Chaplin. EUA – 1925;

3 – A Regra do Jogo;

4 - O Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin), de Eisenstein. URSS – 1925;

4 – Ouro e Maldição;

5 - Intolerância (Intolerance), de Griffith. EUA – 191�;

5 – Contos da Lua Vaga (Ugetsu Monogatari), de Mizoguchi. Japão – 1953;

� - Louisiana Story, de Robert Flaherty. EUA – 1948;

� – O Encouraçado Potemkin;

7 - Ouro e Maldição (Greed), de Erich von Stroheim. EUA – 1923;

7 – Ladrões de Bicicleta;

7 - Trágico Amanhecer (Le Jour se Lève), de Marcel Carné. França – 1939;

8 – Ivã, o Terrível (Ivan Groznyi), de Eisenstein. URSS – 1944;

8 - O Martírio de Joana D´Arc (La Passion de Jeanne D´Arc), de C. Dreyer. França – 1928;

9 – La Terra Trema – Episodio del Mare, de Luchino Visconti. Itália – 1947;

9- Desencanto (Brief Encounter), de David Lean. Inglaterra – 1945;

10 – L´Atalante, de Jean Vigo. França – 1934.

9- O Milhão (Le Million), de René Clair. França – 1931; 10- A Regra do Jogo (La Règle du Jeu), de Jean Renoir. França – 1939. JAN 2008 • Continente x

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Nossa intenção é falar de uma lista – ainda maior – dos melhores filmes da história do cinema, sujeita “a chuvas e tempestades”, como é a longa relação das 100 excelências que o crítico Ronald Bergan resolveu apresentar em livro, com omissões inacreditáveis e – surpresa – a presença do brasileiro Cidade de Deus na penúltima posição. Bergan é muito respeitado, e o livro de 510 páginas (que acaba de ser traduzido e lançado pela Zahar) traz as 100 obras que ele escolheu, com os seus comentários sobre os filmes listados por muitos motivos. Não dá para resumi-los num artigo, porém aqui vai a relação (leia baixo) que o crítico elaborou debaixo do fog (às vezes “míope”) de Londres, com os seus “100 melhores” ordenados em ordem rigorosamente cronológica, conforme Bergan preferiu. Aí está. Serve para alguma coisa? Talvez sirva para um cinéfilo

iniciante se orientar, na escolha de filmes do acervo de alguma boa locadora, etc. – sem a garantia, entretanto, da plena confiança numa lista dos 100 “mais-mais” da história do cinema que não incluiu obras-primas como Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa, O Criado (The Servant, de Joseph Losey), Os Desajustados (The Misfits, de John Huston), Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha), O Leopardo (Il Gattopardo, de Luchino Visconti), Vidas Amargas (Lest of Eden, de Elia Kazan) e muitos outros filmes excluídos –, enquanto Ronald Bergan consegue encontrar lugar para coisas como O Tigre e o Dragão, O Senhor dos Anéis e Toy Story, etc. Porém, talvez as listas desse tipo só existam unicamente pelo bom motivo de termos algo para contestar, com nossas próprias escolhas, no jogo da paixão pelo cinema – que continua viva.

Os cem melhores A seleção dos melhores filmes organizada pelo crítico Ronald Bergan O Nascimento de uma Nação – O Gabinete do Dr. Caligari – Nosferatu, o Vampiro –Nanook, o Esquimó – O Encouraçado Potemkim – Metrópolis – Napoleão – Um Cão Andaluz – O Martírio de Joana d’Arc – Nada de Novo no Front – O Anjo Azul – Luzes da Cidade – Rua 42 – O Diabo a Quatro – King Kong – O Atalante – Branca de Neve e os Sete Anões – Olímpia – A Regra do Jogo – ... E o Vento Levou – Jejum do Amor – As Vinhas da Ira – Cidadão Kane – Relíquia Macabra – Pérfida – Ser ou Não Ser – Nosso Barco, Nossa Vida – Casablanca – Obsessão – O Bulevar do Crime – Nesse Mundo e no Outro – A Felicidade Não se Compra – Ladrões de Bicicleta – Carta de uma Desconhecida – Um País de Anedota – O Terceiro Homem – Orfeu – Rashomom – Cantando na Chuva – Era uma Vez em Tóquio – Sindicato de Ladrões – Tudo o que o Céu Permite – Juventude Transviada – A Canção da Estrada – A Mensagem do Diabo – O Sétimo Selo – Um Corpo que Cai – Cinzas e Diamantes – Os Incompreendidos – Quanto Mais Quente Melhor – Acossado – A Doce Vida – Tudo Começou no Sábado – A Aventura – O Ano Passado em Marienbad – Lawrence da Arábia – Dr. Fantástico – A Batalha de Argel – A Noviça Rebelde – Andrei Rublev – The Chelsea Girls – Bonnie e Clyde – Meu Ódio Será sua Herança – Sem Destino – O Conformista – O Poderoso Chefão – Aguirre, a Cólera dos Deuses – Nashville – O Império dos Sentidos – Taxi Driver – Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – Guerra nas Estrelas – O Casamento de Maria Braun – O Franco-Atirador – ET, o Extraterrestre – Blade Runner, o Caçador de Andróides – Paris, Texas – Heimat – Vá e Veja – Veludo Azul – Shoah – Uma Janela para o Amor – Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos – Cinema Paradiso – Faça a Coisa Certa – Lanternas Vermelhas – Os Imperdoáveis – Cães de Aluguel – Trois Couleurs – Através das Oliveiras – Quatro Casamentos e um Funeral – Toy Story – Fargo, uma Comédia de Erros – O Tigre e o Dragão – Amor à Flor da Pele – Traffic – O Senhor dos Anéis – Cidade de Deus – Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

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Mundo Novo, do diretor Emanuele Crialese, recebeu o prêmio revelação no Festival de Veneza de 2006

Um funâmbulo em busca do equilíbrio O cinema italiano contemporâneo, depois de um período de ostracismo, começa a restituir seu prestígio conquistado no período áureo do pós-guerra Marcelo Costa

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mparado por séculos de uma tradição e cultura imagéticas, o cinema italiano contribuiu sobremaneira para uma visão artística de se fazer e pensar cinema. Berço do Renascimento Cultural e da civilização ocidental, a Itália ofereceu aos amantes da sétima arte entradas visuais bem particulares no mundo. Sob a constante presença do conflito, o cinema italiano pautou-se na tenuidade e na contrariedade dos sentimentos, naquilo que ao tornálos opostos os unem e ao constituí-los os segregam. Como um funâmbulo, arriscou-se andar, às alturas, sobre uma corda bamba, valendo-se de um fino equilíbrio no qual cada nuance e movimento determina o trágico e o cômico, o belo e o feio, o sofisticado e o chulo, o sagrado e o mundano. O cinema italiano viveu sua época áurea no período pós-guerra, quando, destruído sob ruínas, o país foi obrigado a buscar novas formas de expressão cinematográfica no neo-realismo e abrigou uma das mais brilhantes gerações de artistas do século 20. Seja nas obras neo-realistas de Rossellini e De Sica, no conflito entre a sofisticação e as questões sociais de Visconti, nos filmes existenciais de Fellini e Antonioni, seja na polêmica engajada de Pasolini, a Itália voltou a falar para o mundo. Após a continuidade dos filmes políticos nos anos 60 e 70, dos western JAN 2008 • Continente x

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spaghetti de Sérgio Leone, das comédias de Monicelli e dos gialli de Dario Argento, entretanto, o país viu o ímpeto de sua produção arrefecer. Com exceção dos filmes de Giuseppe Tornatore – O Cinema Paradiso (1989) e Malena (2000) – e de casos pontuais de sucesso de público e crítica, como O Carteiro e o Poeta (1994), de Michael Radford, A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni, a produção italiana já não desfrutava do mesmo prestígio e tendia ao pastiche numa crise de imagem. Seus filmes mais relevantes continuaram sendo feitos por realizadores da geração de 60 e 70, como Ettore Scola, Bernardo Bertolucci ou Marco Bellochio – que recentemente apresentou um olhar feminino sobre o seqüestro e assassinato de Aldo Mouro, em Bom Dia, Noite. No entanto, a afirmação de diretores experientes aliada ao surgimento de jovens realizadores esboça um novo fôlego dos filmes italianos, que ainda padecem de certa irregularidade. Nomes menos conhecidos como o de Gianni Amelio, dos comoventes Ladrão de Crianças e As Chaves de Casa, se juntam ao de Nanni Moretti na restituição do prestígio do cinema italiano. Moretti se consolidou internacionalmente nas últimas décadas e pode ser considerado o grande nome do cinema contemporâneo do país. Dosando senso de humor, referências cinematográficas e forte crítica social e política, o cineasta se consagrou com Caro Diário (1993), quando levou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Oito anos mais tarde, emocionou platéias pelo mundo com o belo drama familiar O Quarto do Filho (2001), vencedor da Palma de Ouro no balneário francês; e em seu último trabalho, derramou ironia e sarcasmo sobre o cinema e o ex-primeiro-ministro italiano, Sílvio Berlusconi, no ótimo O Crocodilo (2006). Paralelamente, surgiram novos filmes com abordagens criativas e revigoradas para temas recorrentes na

cinematografia italiana. A infância – cuja inocência e cujos conflitos foram eternizados em Alemanha Ano Zero (1947), de Rossellini, em Amarcord (1972), filme sonho de Fellini – reaparece de formas distintas em Eu Não Tenho Medo (2003) e Respiro (2002); ambos passados no sul do país. O primeiro mostra o conflito de um menino envolvido entre a amizade de um garoto tomado como refém e o ambiente familiar; já que seu pai é um dos seqüestradores. Dirigido por Gabriele Salvatores, o mesmo de Mediterrâneo (1991), o filme se caracteriza pelo lirismo e fascínio do universo infantil em meio a poéticas imagens dos trigais. Já Respiro se trata da bela estréia do diretor Emanuele Crialese, ganhadora do Grande Prêmio da Semana da Crítica em Cannes. Com toques de Uma Mulher sob Influência, de Cassavetes, o filme conta a história de uma mãe de três filhos, cujo comportamento impulsivo leva os habitantes da Ilha de Lampedusa a rotulá-la como louca, enquanto seu filho mais velho faz de tudo para protegê-la. Em 2006, Crialese apresentou Mundo Novo no Festival de Veneza, do qual saiu com o prêmio revelação e com uma promissora carreira a construir. O filme sobre o imaginário e o sonho da imigração para os EUA, no início do século 20, foi o destaque da segunda edição do Venezia Cinema Italiano, mostra exibida no Festival, ocorrido em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. A terceira edição da mostra, realizada no mês passado, ampliou seu leque para o Recife, trazendo seis obras inéditas, apresentadas em Veneza 2007, e uma cópia restaurada do clássico A Estratégia da Aranha (1970), de Bertolucci. Mesmo com o aumento da produção, os filmes são um sinal da falta de equilíbrio do cinema italiano contemporâneo e de sua tentativa em se restabelecer. Pouco inovadores, eles transparecem as cordas que os amarram e investem em temáticas e linguagens surradas, como é o caso de Hotel Meina, de Carlo Lizzani, um re-

Em Eu Não Tenho Medo, a inocência da infância reaparece

O olhar humano de Andrea Molaioli, em A Garota do Lado

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A Doce Vida, de Fellini: filme da época áurea do cinema italiano

Sob um olhar mais humano, se destacam A Garota do Lado, de Andrea Molaioli, e Nem Pensar, de Gianni Zanasi. O primeiro é um policial que analisa as ligações familiares e afetivas de uma pequena comunidade, através da investigação de um crime chocante; algo semelhante a O Doce Amanhã, de Atom Egoyan e A Humanidade, de Bruno Dumont, embora sem a mesma sensibilidade e o brilhantismo desses. Nem Pensar, por sua vez, apresenta um painel humano tocante e simpático na comédia sobre choque de gerações e desestruturação familiar, a partir do retorno de um ex astro punk para a casa de sua família, que há muito tempo não vê. Com uma diferente proposta visual e estilística, Valsa, de Salvatore Maira investe no virtuosismo técnico para

fugir ao lugar comum. Num único plano seqüência, passado e presente se encontram numa narrativa de contornos arquitetônicos. Ao som de uma valsa executada por um pequeno conjunto musical no saguão de um hotel, uma jovem camareira e um homem mudam suas vidas nos andares inferiores, enquanto, nos andares superiores, dirigentes de futebol negociam resultados e refletem sobre a melancolia gerada por uma paixão sem ideais. Temas caros à pós-modernidade marcada pelo consumo, pela fragmentação das identidades e pelo ideal narcísico aparecem como passos de uma grande dança que nem sempre funciona. Se em alguns momentos o filme flui bem como numa valsa, em outros transparece sua engrenagem e parece seguir as instruções do um pra lá e um pra cá, deixando-nos a sensação de assistir à uma peça dos bastidores ou a um espetáculo de títeres, cujas cordas espessas sejam clarividentes. É como se o funâmbulo se amparasse nas cordas para manter o equilíbrio; mas quem sabe se liberte, para na sutileza de seus movimentos conflituosos, do alto voltar a enxergar além.

O Quarto do Filho (2001) levou a Palma de Ouro em Cannes

Hotel Meina volta ao tema dos judeus e dos nazistas

trato do enclausuramento de hóspedes judeus pelas tropas nazistas durante o armistício da Itália, e de Horário de Pico, sobre a ascensão social mediante a decadência moral e de escrúpulos. Já o Doce e o Amargo traz uma visão sem glamour da máfia siciliana, numa narrativa convencional, porém competente.

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Ferreira Gullar

Enfim, uma bienal sem obras Impossível não ver que tais instituições, como a bienal, estão condenadas a desaparecer dentro de pouco tempo

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ais de uma vez, nesta coluna, disse que as bienais de arte são instituições moribundas. E são moribundas em conseqüência da própria situação da arte contemporânea, cujo destino, a partir de determinado momento, foi determinado também pela existência e proliferação das bienais. Se é verdade que a Bienal de Veneza, a primeira, nasceu no fim do século 19 e se definiu nas primeiras décadas do século 20, foi depois da segunda guerra mundial, mais precisamente a partir dos anos 50, que esse tipo de exposição internacional proliferou. Hoje são quase duzentas. A Bienal de São Paulo parece ter sido a primeira dessa nova etapa. No que diz respeito à sua influência sobre arte brasileira, ela contribuiu para o surgimento da tendência concretista e para a difusão entre nós das principais correntes estéticas européias, nascidas no período anterior à segunda guerra. Isso se deu através de importantes retrospectivas ali realizadas. A proliferação de outras mostras internacionais pressupunha uma produção artística de qualidade em escala industrial, o que é uma contradição em seus termos. Haveria mesmo produção artística capaz de justificar tantas e tão vastas exposições? Não é preciso refletir muito para responder que não, já que é própria da criação artística a elaboração demorada, o oposto da linha de montagem. Aliás, exposições dessa natureza são mais próprias para eletrodomésticos. Mas a verdade é que as bienais se multiplicaram e

essa excessiva “oferta de exibição” – de oportunidade para mostrar suas obras – estimulou o artista a produzir com mais rapidez e com menos exigência: as instalações e especialmente as performances ajustam-se perfeitamente a essa demanda de “arte”. Nada mais oportuno para atender a isso do que a atitude expressa nas palavras de Marcel Duchamp: “será arte tudo o que eu disser que é arte”. Está resolvido o problema da produção artística em quantidade suficiente para atender à oferta de espaço expositivo! Não foi por acaso que, de duas ou três bienais que havia na década de 50 chegou-se, hoje, a cerca de duas centenas de bienais. Claro, isso não seria possível se se continuasse preso à concepção de arte que tinham, por exemplo, Picasso, Braque, Morandi, Mondrian ou Léger, artistas ultrapassados pela genialidade de um Andy Warholl ou de um Chris Burden, sem falar na verdadeira leva de artistas que passou a ocupar as bienais em todos os cantos do planeta. Sucede que esse tipo de manifestação – que por não constituir uma linguagem, não obedece a qualquer norma, princípio ou limite – terminou por se esgotar e se tornar demasiado repetitivo. Tanto mais que o fator estimulante desse tipo de manifestação só pode ser o seu caráter rebelde e inusitado. Muito cedo, nada era mais monótono do que essa rebeldia simulada, apoiada em instituições oficiais. As bienais se haviam transformado em lugares oficialmente reservados para os rebeldes manifestarem sua rebeldia. Rebeldia com hora, lugar

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Reprodução

O pavilhão da Bienal, concebido por Oscar Niemeyer, vai estar vazio na edição de 2008

marcado e, ainda por cima, prêmios. Impossível não ver que tais instituições estão condenadas a desaparecer dentro de pouco tempo. E não é que, de repente, o curador da próxima Bienal de São Paulo rasga a fantasia? Ele afirmou à imprensa que, na 28ª. edição da mostra, em 2008, “não haverá exposição no sentido formal”. Isto é, não haverá exposição de obras, não haverá obra alguma exposta! Claro, como o que se chama hoje de arte contemporânea não produz obra de arte, uma bienal coerente com essa concepção não deve expor obra alguma. Essa declaração do curador da bienal paulista vem coincidir com o que escreveu, faz pouco, um crítico, sobre a bienal anterior. Ao comentar uma das salas da mostra, afirmou: “não importa se é arte ou não”. Ora, numa bienal de arte, a única que importa – acreditamos nós – é se o que seja arte o que se expõe ali. Se isso não importa, então... A única conclusão a tirar de tal afirmativa é que já não são bienais de arte. E é isso, igualmente, que nos diz o curador da 28ª. Bienal de São Paulo, quando afirma que, nela, não ha-

verá obras expostas. Haverá o que então? Transcrevo o que diz o jornal que entrevistou o referido curador: “De acordo com o projeto de Mesquita, a 28ª.Bienal vai durar 42 dias. O térreo e o primeiro pavilhão do prédio serão transformados em uma praça, com mudanças na estrutura do prédio que seguem o projeto original de Oscar Niemeyer. Neste espaço, podem acontecer performances e concertos. O segundo pavilhão estará vazio. O terceiro andar vai abrigar uma imensa biblioteca, com arquivos das bienais a partir da primeira, de 1951, e catálogos das cerca de 300 bienais que existem hoje no mundo”. O curador admite que está fazendo “uma curadoria mão pesada”, já que “teremos uma única instalação, que será o próprio prédio da bienal, e o imenso vazio do segundo pavilhão”. Noutras palavras, as salas de exposição sem nada é que constituirão a bienal do próximo ano. Deve ser um barato caminhar por aquelas salas vazias do edifício do Ibirapuera, sem obra de arte alguma que atrapalhe. JAN 2008 • Continente x

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ARTES

Depois daquele beijo

A cambojana Rindy Sam beijou a tela branca do pintor Cy Twombly, provocando uma disputa na justiça e um debate sobre a arte contemporânea Camilo Soares

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conteceu no último 19 julho, no Sul da França, durante exposição da Coleção Lambert em Avignon. Deslumbrada com o quadro do pintor norte-americano Cy Twombly, de um branco imaculado, a jovem cambojana Rindy Sam levou os lábios sobre a tela, deixando a impressão de seu batom escarlate. Presa e levada a julgamento, a moça negou declarar-se culpada, defendendo aquilo que teria sido simplesmente um gesto de amor, ato não-deliberado provocado pelo poder da arte. Em desacordo com tal liberdade poética sobre obra avaliada em dois milhões de euros, o diretor da coleção Eric Mézil e seus advogados classificaram o ato de vandalismo, requerendo compensação financeira correspondente ao preço da peça. Meio às querelas judiciárias, mais do que apenas marcar o alvor da tela de Twombly, tal beijo parece ter levado à tona a separação entre dois mundos, o da arte e o do mercado de arte, além de ressuscitar o debate sobre a finalidade da arte em nosso tempo. 48 x Continente • JAN 2008

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Boris Horvat/AFP

A cambojana Rindy San (abaixo) foi parar na justiça depois de beijar e manchar com batom a obra do pintor Cy Twombly Reprodução

“Não considero que um beijo de mulher possa ser considerado como uma agressão”, conserta o advogado de defesa Jean-Michel Ambrosino, comparando a murros e marteladas dados recentemente sobre obras-primas em museus parisienses. De um certo aspecto, as marcas carmins de batom Bourjois (empresa que, sentindo o cheiro da ótima publicidade, aceitou revelar o bem-guardado segredo de sua fórmula para facilitar a restauração química da tela) podem até mesmo ser consideradas um complemento esperado e necessário para um trabalho artístico atual. Após descobrir os happenings e as performances, a arte contemporânea se aproximou definitivamente do público, como aponta o professor da Sorbonne Marc Jimenez em seu L’ esthétique contemporaine, pois ela "tende a se fundir na vida cotidiana, a solicitar reações do público". Vendo assim, o quadro do ilustre artista teria sido marcado pelo impulso que ele mesmo provocou; e o vermelho borrado sobre o suporte não seria nada mais do que o indício desse desejo, traços de simbologia sensual e erótica que há muito vaga pelo inconsciente coletivo. Marcas que impregnarão para sempre a obra, o tríplice Phaedrus, mesmo depois que sejam fisicamente desmaterializadas pelos laboratórios da Nasa, que se propôs JAN 2008 • Continente x

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Imagens: Reprodução

ARTES

Durante o período bizantino, beijar a obra simbolizava admiração dos fiéis

prontamente a efetuar a tarefa. A partir de hoje, não mais se poderá comentar o Phaedrus de Cy Twombly sem se falar daquele beijo. Efêmero, veloz, virtual e carnal, fusão entre objeto e observador, o gesto de Rindy Sam ainda lembra da redefinição artística fora da instituição das Belas Artes, como já pregava Duchamp há um século. O beijo como símbolo da admiração de uma obra, e do que ela representa, chegou a adquirir valor religioso durante a arte bizantina. Os fiéis expressavam a devoção beijando os ícones sagrados dos santos da

igreja ortodoxa, e ainda o fazem em países como a Rússia, a Bulgária e a Romênia. Essa relação física com a representação material de entidades causou em Constantinopla uma das mais violentas repressões que a arte conheceu, o iconoclasmo, ou destruição do ícone. Com a legalização do cristianismo por Constantino em 311, a produção de ícones religiosos explodiu, e esses objetos ganharam função primordial na sociedade. Em princípio, as imagens eram puramente didáticas, pois grande maioria da população não sabia ler. As cenas ilustradas nas paredes ensinavam-lhes as histórias bíblicas, o que dá hoje às igrejas

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ortodoxas um certo aspecto de história em quadrinhos. Também eram instrumentos para ajudar nas orações, identificando o santo para quem se estaria rogando. O problema surgiu quando começaram a atribuir a algumas imagens o poder de milagres e curas, o que se aproximava do conceito pagão de adoração ao ídolo, ou idolatria, combatido pela igreja monoteísta. Apesar disso, o clero soube muito bem tirar proveito desse filão, o que se reflete na aparição de peças "não feitas pela mão humana" (acheiropoietos), como o Mandílio de Edessa, no Monte Sinai, o mosaico de Cristo na Igreja de Housios David em Tessalônica e a Camuliana de Capadócia, que renderam generosas doações, uma espécie de primitivo mercado sacro de arte. Contudo, para evitar que a fé aos santos se transforme em idolatria aos próprios ícones, a Igreja resolveu pisar no freio no Concílio de 692, decretando, como constata Robin Cormack, talvez o que seria a

primeira censura oficial sobre a arte, no cânone 100, que dizia que "impurezas devem ser evitadas, e imagens não deveriam ser atrativas aos olhos, corruptoras das mentes, nem incentivar prazeres básicos". Para quem exercesse esse sacrilégio artístico, a excomunhão. O poder da arte, esse mesmo que teria induzido Rindy Sam, já era um assunto tratado nos tribunais religiosos em tempos de iconoclasmo, pois a capacidade transcendental de elementos estéticos sempre foi vista com desconfiança pelos detentores da ordem estabelecida, temerosos de perder o controle da situação. Assim, a tensão política e religiosa ferveu entre os séculos 8º e 9º, recrudescendo sobretudo em virtude da rápida ascensão de uma nova concorrente religião monoteísta, o islã, profundamente contrária à figuração. O iconoclasmo dominou o cristianismo durante tal período de remarcável violência que culminou com a destruição de considerável quantidade de ima-

Efêmero, veloz, virtual e carnal, fusão entre objeto e observador, o gesto de Rindy Sam ainda lembra da redefinição artística fora da instituição das Belas Artes, como já pregava Duchamp há um século

Em L.H.O.O.Q, Marcel Duchamp faz uma intervenção em uma reprodução da Monalisa, de Da Vinci

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ARTES O Beijo (1907-1908), de Gustav Klimt

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gens sacras. Uma verdadeira guerra se estabeleceu em torno da arte para saber quem eram os verdadeiros hereges da Ortodoxia, os destruidores de ícones, os iconoclastas, ou os iconófilos, defensores das imagens. Batalha não apenas política e militar, como igualmente caracterizada por profundo e fervente debate intelectual em palácios e monastérios sobre a razão de ser da arte e da estética, numa "massiva concentração de articulação e racionalização do uso da arte no cristianismo". Em fins do século 19, uma visita aos mosaicos bizantinos das igrejas de Ravena, Itália, marcaria profundamente o pintor Gustav Klimt. A influência dessas imagens religiosas tornou-se evidente em sua obra, na composição da figura humana, nas inscrições sobre a tela e escolha da tipografia, na geometria nas dobras de vestimentas e, sobretudo, no fundo chapado e na utilização do ouro, representação da luz divina nos ícones. No entanto, bem ao contrário do que tentava impedir o famoso cânone 100, o que atraiu Klimt séculos depois para essa estética foram justamente as impurezas das imagens, tentadoras aos olhos como uma irresistível gula visual banhada pela sedução das cores e pelo deslumbramento do ouro luxuriante. O beijo (1907-1908) de Klimt é tão devoto como o beijo bizantino, tão idealizado quanto e até mesmo igualmente sensual. Não obstante, a figura idealizada é agora terrena e, embora ainda inegavelmente divinizado, o desejo assume finalmente seu erotismo. O filósofo François Dadognet aponta essa ambigüidade mística como um fator importante na atual percepção da arte: "o espectador oscila entre dois pólos opostos, o que não deixa de nos lembrar dos princípios gerais da pintura religiosa: de um lado terrestre, as alusões, de outro lado, o vazio, o aéreo. E quem não ficaria incomodado por essa alternância". Depois do ataque às Belas Artes pelo modernismo, a técnica plástica do artista deixou de ser preponderante ou pelo menos incontornável. A invenção do ready-made, segundo Yves Michaud, dessubstancializou a arte, tornando-a processual, o que teria efeito duplo para o ambiente das artes plásticas,

de liberdade e de retenção: "O mundo é invadido por essa atmosfera estética. Simultaneamente, o mundo da arte ritualizado, sacralizado, apegado a sua preciosa raridade teatral, esvazia-se pouco a pouco, não somente de obras mas de participantes. Somente alguns poucos iniciados, obstinados, fanáticos e conservadores, senão francamente reacionários, se obstinam a perpetuar o ritual". A atividade artística evoluiu no século 20 numa velocidade alucinante, deixando para trás um mundo institucional da arte perplexo e cada vez mais perdido na incapacidade de avaliação. Sentindo sua legitimidade ameaçada, críticos, curadores e organizações se trancafiaram num profundo obscurantismo para justificar seus salários ou as estratosféricas cotações das peças de arte que representam nesse mercado em franca ascensão. Diante de paradoxal ressacralização de uma arte já atéia, da mercantilização de uma atividade anticapitalista e anárquica, um beijo sobre a tela revelou o desproporcional e descabido elitismo da arte contemporânea. Depois da queda da figuração, da supressão da bidimensionalidade, da revalorização do corpo como lugar de arte e após o público ser convidado a participar de criação artística, a indignação do vanguardista Cy Twombly e a soma exorbitante de ressarcimento pedido pelos organizadores da exposição espelham um irritante não-me-toquismo institucional que reenquadrou a arte como um ato nobre, caro e conceitual. Julgamento finalizado em 16 de outubro, Rindy Sam deverá verter 1.500 euros aos organizadores da exposição e aos detentores da obra e o simbólico um euro pedido pelo artista, que não quis aumentar a polêmica. Independentemente das conclusões penais, seu beijo, considerado iconaclasta pela mídia, desprendeu o nó de uma discussão sobre as evidentes limitações da arte contemporânea, do fazer artístico e do apreciar estético dentro da percepção atual. Além disso, talvez tenha mesmo esquentado um pouco a frieza desse meio, oferecendo novamente à estética o direito de ser transgressiva. "Você gosta de Twombly?", perguntou um jornalista à ex-réu. "No processo eles disseram: suas obras não deixam ninguém indiferente. Pois é, eu estou de acordo".

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Acervo: Fundação Gilberto Freyre

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Gilberto Freyre

por seus biógrafos Uma análise comparativa entre as duas mais recentes biografias do Mestre de Apipucos. Anco Márcio Tenório Vieira

Os lábios eram grossos, os ombros largos, os dentes irregulares, e a pele morena; vestia-se de maneira estudada — ternos de tecido inglês, mas também de casimira ou linho branco S-120, meias de losangos coloridos, chapéu de feltro, suéter “bariolado”, gravata amarelo canário —; perfumava-se com água-de-colônia e trazia sempre no bolso um lenço embebido em perfume francês e uma folha de papel de seda com pó-de-arroz. Na hora de se entregar aos braços de Morfeu, vestia-se com um pijama roxo. Apesar de todos esses ornamentos refletidamente escolhidos, confessava aos amigos: “Meu Deus, como sou feio!”. Feiúra que o levava a se definir como “um canhão”. No entanto, como todos esses recursos ainda não eram suficientes para encobrir sua pouca beleza, atenuava o tom moreno da sua pele com o pó-de-arroz que carregava sempre no bolso.

A

s duas biografias que, nos últimos dois anos, foram publicadas sobre o Mestre de Apipucos — Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos (2005), da historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, e Gilberto Freyre: uma biografia cultural (2007), do antropólogo Enrique Rodrigues Larreta e do crítico de literatura Guillermo Giucci — tratam, cada uma a seu modo, de como Gilberto Freyre, num longo processo de reflexão intelectual, foi, ao longo dos anos 20, revendo sua formação cientificista — que classificava os homens em “raças” superiores e inferiores e acatava o “clima” como fator determinante para o florescimento ou não de uma civilização — e terminou por transformar “a miscigenação de hipoteca em lucro”, para citar a feliz expressão do historiador Evaldo Cabral de Melo. No entanto, mesmo sendo duas eruditas biografias, a precedência de publicação da obra de Pallares-Burke terminou por expor, quando não potencializar, as insuJAN 2008 • Continente x

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Imagens: Divulgação

As duas biografias em questão

ficiências da tão prometida biografia de Larreta e Giucci (iniciada na segunda metade dos anos 90). Se ao lermos a biografia de Pallares-Burke descobrimos um Freyre completamente desconhecido, ao lermos Larreta e Giucci a impressão que temos é que tudo que lá está dito nos parece familiar. E essa familiaridade se dá, entre outros motivos, pelas metodologias distintas que foram empregadas pelos autores. Enquanto Pallares-Burke constrói sua biografia a partir do conceito de “campo intelectual”, de Pierre Bourdieu, que afirma que “[...] para se entender um intelectual no seu próprio tempo e discutir o modo como ele pode ter dado continuidade e ao mesmo tempo transcendido o mundo cultural que herdou, é imperativo um esforço de descrever o campo intelectual ao qual ele pertencia”, Larreta e Giucci tomam “como critérios centrais da presente pesquisa” “a reconstrução dos contextos de época, a análise dos autores significativos e o traçado de seu próprio horizonte de idéias e sensibilidade, apoiados no exame preciso de documentação histórica”. O fato é que Pallares-Burke persegue, através de um trabalho meticuloso e exaustivo (e com uma objetividade que só os biógrafos britânicos possuem), o campo intelectual de Freyre, desvelando seus contatos literários e científicos e, principalmente, as suas leituras, em particular as que foram realizadas entre 1918 (quando viaja para estudar na Universidade de Baylor, nos Estados Unidos) e 1933 (ano da publicação de Casa-Grande e Senzala). Mais: sua biografia nos revela como Freyre transformou “a miscigenação de hipoteca em lucro”, construiu sua “noção de ‘antagonismos em equilíbrio’” (idéia nascida durante a sua estada na Inglaterra), redefiniu o conceito de “regionalismo” (a unidade dentro da diversidade) e, principalmente, como sedimentou seus pressupostos críticos para pensar as bases de uma sociedade moderna no Brasil. Idéias que vão, ao longo das suas obras, se desdobrando em tantas outras, como a de metarraça, lusotropicologia, tempo tríbio, Região e Tradição, etc.

Para desvelar as leituras de Freyre, Pallares-Burke se vale não somente dos autores por ele citados nas centenas de artigos e ensaios escritos nesse período, mas dos livros que se encontram na sua biblioteca particular, em Apipucos. O resultado desse painel intelectual é que ao lado de um Freyre dionisíaco, ávido por conhecer a vida naquilo que ela tem de mais pulsante (o sexo, a diversidade culinária, as aventuras geográficas, o contato com gerações e classes sociais diversas), convive um jovem apolíneo, de interesse eclético, que lia avidamente quase sobre tudo, anotava as leituras com lápis, mas, na sua falta, com as próprias unhas; um Freyre que ora redimensiona a importância de certas passagens de sua vida (a exemplo do encontro com W. B. Yeats ou da impressão causada pelas aulas de Franz Boas) e, em contrapartida, atenua fatos cruciais da sua trajetória intelectual (como os diálogos e interesses comuns com Rüdiger Bilden e a relação afetiva com Linwood Sleigh). Mais: um leitor atento às idéias do seu tempo, desconfiado com os modismos modernistas e ideológicos, e que soube separar o joio do trigo; um intelectual que transforma, a partir do seu objeto de análise (a sociedade tropical; em particular, a brasileira), essas construções mentais em novos conceitos e idéias próprias (algumas revolucionárias para o seu tempo). Dessa forma, a biografia de Pallares-Burke nos leva a entender como Freyre, aos 33 anos, conseguiu escrever a mais definidora obra da moderna sociologia-antropologia brasileira (enterrando o cientificismo oitocentista) e como, ao longo dos seus 87 anos, urdiu uma das mais sólidas e instigantes (mas não menos controversa) obras das ciências sociais e humanas do século 20. Já a biografia escrita por Larreta e Giucci, nada obstante comentar algumas influências intelectuais de Freyre (muitas já exploradas exaustivamente e problematizadas em profundidade por Pallares-Burke), se prende muito mais à própria trajetória de vida do biografado do que em lançar novas interpretações

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REGISTRO

Acervo: Fundação Gilberto Freyre

das suas idéias. Pior: se valem amiúde (muitas vezes sem o rigor crítico necessário) das informações fornecidas pelo próprio Freyre, como as contidas no seu diário de adolescência e mocidade — Tempo Morto e Outros Tempos (1975) —, numa autobiografia, ainda inédita, que vinha escrevendo em seus últimos anos de vida, e na biografia — Gilberto Freyre — que Diogo de Melo Menezes publicou em 1944 (texto em que a mão de Freyre esteve presente). Sendo um construtor meticuloso da sua biografia (característica dos homens da sua geração, basta lembrar Mário de Andrade, autor de uma copiosa correspondência com os amigos, mas que sempre ocultou deles sua homossexualidade), as informações biográficas fornecidas por Freyre não podem ser simplesmente acatadas acriticamente. Basta lembrar que na velhice, quando republicou os artigos de juventude em dois volumes — Tempo de Aprendiz (1979) —, ele acresce frases e parágrafos inteiros. Detalhe: o leitor não é informado que os textos foram revistos. Daí a sensação, como já dissemos, de que o que vamos encontrar em Gilberto Freyre: uma Bio-

grafia Cultural vai nos parecer familiar. Pois quem é familiarizado com os livros citados acima pouco encontra de novo na obra de Larreta e Giucci.

Fotos: Divulgação

Outro ponto a favor de Pallares-Burke é como ela enfrenta, com rara coragem intelectual, a fortuna crítica de Freyre. Já Larreta e Giucci discutem timidamente as “verdades” estabelecidas pelos seus críticos (particularmente a chamada Escola Paulista). Afinal, não há como pensar Freyre sem repensar criticamente o que se escreveu sobre ele. Como todo autor polêmico, complexo e que se tornou um clássico na sua área de conhecimento, Freyre termina hoje por ser conhecido do grande público antes pelo o que os seus críticos escreveram sobre ele do que pela leitura da sua obra. Um bom exemplo é o mítico conceito de “democracia racial”. Imputado a Freyre pelos seus desafetos, particularmente a partir de 1964, mas que nunca foi enunciado na sua obra. Um dos poucos momentos em que Larreta e Giucci decidem enfrentar a canônica fortuna crítica de Freyre, dá-se quando eles criticam “a equanimidade A historiadora Maria Lúcia PallaresBurke (no alto); o antropólogo Enrique Rodrigues Larreta e o crítico literário Guillermo Giucci (acima)

Biblioteca particular de Gilberto Freyre JAN 2008 • Continente x

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O Intérprete do Brasil no Museu da Língua Portuguesa Chris Galdino Divulgação

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ra uma vez uma casa... brasileira, com certeza; aparentemente de “natureza” nordestina e, provavelmente, recifense. Podia ser de qualquer pessoa e de todos os brasileiros, pois assim imaginou seu criador, o cientista político, escritor, pintor, desenhista, pesquisador, sociólogo e poeta, Gilberto Freyre (1900-1987). As tantas faces deste pernambucano estão sendo apresentadas ao público dentro do seu ambiente de pesquisa: a casa brasileira, na exposição Gilberto Freyre - Intérprete do Brasil no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, aberta à visitação desde 27 de novembro do ano passado a 4 de maio de 2008. O local foi subdividido em ambientes projetados pelo cenógrafo André Cortez, que remetem ao interior de uma casa, com cozinha, sala, quarto, a vista da rua, entre outros apetrechos residenciais tipicamente brasileiros e “freyreanos”. Do acervo da Fundação Gilberto Freyre, no Recife, foram levados os objetos para dar vida aos cômodos da “casaexposição”. Além de originais das primeiras edições da maioria dos livros publicados por Freyre, fotografias,

ilustrações e até 27 quadros pintados por ele compõem o cenário. Óleos em tela e aquarelas, com temáticas variadas, como religiosidade, cenas familiares, crianças, engenhos, sua casa e auto-retratos estão sendo mostrados pela primeira vez, revelando ao público um lado pouco conhecido do autor de Casa-Grande e Senzala (1933), Sobrados e Mocambos (1936) e tantos outros títulos.

do julgamento” de Antonio Candido. Este, em prefácio à edição de 1969 de Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, coloca esta obra no mesmo patamar de importância de Casa-Grande e Senzala. Para os autores, Raízes do Brasil “não é comparável, como trabalho original de pesquisa histórica e antropológica, a Casa-Grande e Senzala”. Se a obra de Sérgio é um “ensaio juvenil” de que o próprio autor, na sua trajetória madura de historiador, “muitas vezes guardaria distância”, o livro de Freyre “fundava uma reinterpretação da questão racial brasileira e inaugurava, ao mesmo tempo, uma antropologia histórica do Brasil que continuará em seus livros futuros”. Mesmo desvelando o quanto de ideológico encontramos na crítica de Candido (uma espécie de acerto de contas da esquerda democrática com o Freyre pró-Golpe de 1964), faltou a ousadia de afirmar que a edição príncipe de Raízes do Brasil é como que uma xerox das idéias que Freyre desenvolveu em sua obra de 1933. Mais: que até mesmo a idéia de “homem cordial” de Sérgio já fora desenvolvida por Freyre em sua obra. Afinal, não é

Freyre que afirma que a sociedade brasileira se desenvolve à margem do Estado e que este sempre foi uma extensão, uma apropriação, da casa-grande?

“Sendo poeta, além de pesquisador histórico e social, os temas fundamentais de Freyre não são apenas científicos, mas existenciais. O Museu da Língua Portuguesa presta uma mais que justa homenagem àquele que foi o precursor do conceito de patrimônio imaterial, conceito este que se concretizou com enorme sucesso exatamente neste museu. É uma grande oportunidade de aproximarmos os mais jovens da obra impressionante de Gilberto Freyre”, explica Antonio Carlos Sartini, superintendente-executivo do museu, que pertence à Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo e

Creio ainda que Larreta e Giucci concluem sua obra em dívida com o leitor. Não se entende como eles dedicam dezenas de páginas a descrever a recepção crítica de Casa-Grande e Senzala e calam ante a recepção crítica de Sobrados e Mocambos (1936). Obra, em muitos aspectos, superior a Casa-Grande e Senzala. Além do que, o livro príncipe de Freyre tem sua fortuna crítica conhecida desde 1985, quando Edson Nery da Fonseca a reuniu e comentou em livro, hoje raro, publicado pela CEPE: Casa-Grande e Senzala e a Crítica Brasileira de 1933 a 1944. A impressão que fica é que faltou a Larreta e Giucci o que sobrou em Pallares-Burke: vontade de pesquisar, organizar e refletir sobre tão rica matéria intelectual. Se a fortuna crítica de Casa-Grande e Senzala fosse ajuntada com a de Sobrados e Mocambos teríamos, em primeira mão, um painel das matrizes intelectuais que vão delinear as principais correntes

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REGISTRO trabalha em parceria com o Instituto Brasil Leitor (IBL). O perfil imaterial que caracteriza o próprio Museu da Língua Portuguesa parece provocar uma busca por doses extras de interatividade em todas as exposições que ele abriga como recurso para tornar visível e palpável o conteúdo das mostras. Esta opção transforma a visitação em um ato menos contemplativo e mais sensorial, vivenciado. Em Gilberto Freyre - Intérprete do Brasil não é diferente. Nesse caso, o encontro com as obras se dá, por exemplo, via “fones-de-ouvido” em que podem ser escutados, entre outras raridades, os depoimentos de várias pessoas, que responderam as questões elaboradas pelo escritor para constatar as diferenças culturais e comportamentais dos brasileiros na década de 50 e colher material para escrever o livro Ordem e Progresso (1959). O “antes” — os processos de pesquisa — de tantas outras obras como Casa-Grande e Senzala (1933) e Açúcar (1939), além de documentos pessoais e cartas como as de Cândido Portinari, Heitor Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Florestan Fernandes e Cícero Dias, foram selecionados pelos curadores Júlia Peregrino, Pedro Karp Vasquez e Élide Rugai Bastos na Fundação Gilberto Freyre para traduzir não só os pensamentos do autor, mas também o seu entorno, o ambiente em que ele gerava e situava suas obras de ficção e realidade. “Disponibilizamos materiais inéditos, coisas que nunca saíram da fundação. Tudo para oportunizar ao público o conhecimento da vida e da obra de Freyre, que apesar de ser

críticas ao pensamento de Freyre. Fica a dívida e uma sugestão para os futuros pesquisadores. Poderíamos ainda apontar, em ambas as biografias, algumas insuficiências, a exemplo de uma maior verticalização sobre as idéias que fundamentaram o regionalismo. Regionalismo que gerou um dos momentos mais fecundos da literatura em língua portuguesa — a dos anos 30 — e que ao contrário do que foi, em um primeiro momento, o Modernismo paulista, não se restringiu ao apenas estético. Há no projeto regionalista de 1926 “algo mais ambicioso” do que um projeto estético-literário: nele se busca um projeto civilizatório. Daí a diversidade e a interdisciplinaridade dos temas tratados no 1° Congresso Regionalista do Nordeste: estética, urbanismo, sociologia, antropologia, cultura popular, história e, principalmente, ecologia (tema de um dos seus mais contundentes libelos contra a monocultura da cana-de-açúcar: Nordeste, de 1937). Toda a obra de Freyre persegue esse projeto civilizatório e, principalmente, a defesa de uma Modernidade que seja

considerado um dos maiores escritores brasileiros, com vários títulos recebidos, inclusive no exterior, ainda é muito desconhecido aqui no Brasil”, ressalta Gilberto Freyre Neto, superintendente geral da fundação. As tentativas de ambientação, de proporcionar aos visitantes experiências de pertencimento e imersão no universo de Gilberto Freyre conduziram os idealizadores da exposição a outras formas de apresentá-lo. E em feliz coincidência, eles encontraram a companhia teatral paulistana Os Fofos Encenam, recolocando em cartaz a peça Assombrações do Recife Velho, uma adaptação do diretor e dramaturgo pernambucano Newton Moreno para o livro homônimo de Freyre, publicado em 1955. A “corporificação” que eles procuravam estava ali e imediatamente surgiu o convite para alguns trechos do espetáculo fazerem parte da exposição. “A idéia é que eles apresentem ao público gratuitamente um pouco do imaginário de Gilberto Freyre através de histórias como a do Lobisomem, a do Demônio Branco de Barbas Vermelhas e a da Velha Sovina. As sessões vão acontecer nas últimas terças-feiras de cada mês até o fim da exposição, aproveitando o dia em que o museu fica aberto até as 22h, sendo o único a adotar esta política de horário alargado, em São Paulo”, conta Sartini. Fundamentada nas premissas de autoria do próprio Gilberto Freyre, a exposição em sua homenagem parece querer endossar as palavras do escritor quando afirmou que “Não há experiência de corpo que não seja também experiência de alma, o contrário sendo também verdadeiro”.

filtrada pelos conceitos de Região e Tradição. Ou seja, a Modernidade, para Freyre, seria antes uma ferramenta crítica para pensarmos os destinos do Brasil do que algo acatado como um valor em si. Tradição, Região e Modernidade são conceitos que, em Freyre, não convivem separadamente, um precisa do outro para cumprir seu destino. Resumindo: em Freyre, o local é caminho de partida para o universal e não um ponto de chegada. Daí sua admiração por James Joyce e, como lembram Larreta e Giucci, “em várias ocasiões [Freyre] escreverá que em sua árvore genealógica espiritual Shakespeare está mais próximo que Camões”. Creio ainda que outros pontos poderiam ser ainda aprofundados pelos autores de Gilberto Freyre: uma Biografia Cultural. Lembro apenas, de passagem, a relação de Freyre com Mário de Andrade. Os dois se viram apenas uma vez, em 11 de dezembro de 1928, num passeio que, em companhia de Manuel Bandeira, fizeram pelo Capibaribe, e desde esta data se odiaram para todo o sempre. Ódio que não se deu apenas pelas discordâncias intelectuais, como afirmam Larreta e Giucci, mas pelos JAN 2008 • Continente x

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Fotos: Divulgação

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izem que as boas conversas, as mais verdadeiras, acontecem na intimidade das cozinhas. E é exatamente por aí que os espectadores entram no enredo (e vice-versa) das Assombrações do Recife Velho contadas pela Cia. Os Fofos Encenam. Na cozinha de um engenho tipicamente pernambucano aparecem as primeiras “almas penadas” das histórias quase autobiográficas do livro de Gilberto Freyre entre os quitutes de uma velha cozinheira interpretada pela atriz recifense Luciana Lyra e sua espevitada ajudante Joven (apelido de Joventina), vivida por Kátia Daher. Já “se sentindo em casa”, o público é conduzido a “tomar assento” no sereno de uma rua, na “beirada” das portas e janelas, outro lugar de abrigo costumeiro das boas conversas. E é neste típico vilarejo nordestino que a maioria dos “causos” assombrados são apresentados aos espectadores, com direito a dança, música e até degustação de iguaria da culinária pernambucana. O espetáculo, que foi encenado no interior de um casarão antigo da Bela Vista, em São Paulo, na sua primeira temporada, voltou a ser apresentado em novembro e dezembro do ano passado no Espaço dos Fofos, também na Bela Vista. Sete anos após terem se transformado oficialmente em uma companhia teatral, Os Fofos Encenam inauguraram a sede própria do grupo em 16 de novembro de 2007. A idéia, segundo Edu Reyes (ator e um dos produtores do espaço), surgiu da necessidade que o grupo sentia de ter um cotidiano de pesquisa. “Com o espaço, poderemos reapresentar os quatro espetáculos do nosso repertório e expandir nossa pesquisa em algumas áreas que sempre exploramos em nossas peças”, afirma ele. Depois de Assombrações do Recife Velho, é a vez de apresentarem Ferro em Brasa, A Mulher do Trem (as duas estão em temporada de janeiro a março deste ano) e Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada. O objetivo do grupo é que esse espaço seja permanente, por isso eles procuraram um galpão amplo que pudesse se adaptar aos diversos estilos de palco: arena, italiano, corredor etc. Newton Moreno, pernambucano radicado em São Paulo, assina a direção e adaptação da peça Assombrações do Recife Velho, além de coordenar um dos quatro grupos de pesquisa dos Fofos Encenam, exatamente o que tem como tema: a memória em

SERVIÇO ESPAÇO DOS FOFOS – Rua Adoniran Barbosa, 151, Bela Vista, São Paulo. Telefones: (11) 3101.6640 e 3842.5522.

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REGISTRO cena de famílias pernambucanas. E sendo este o assunto, o sobrenatural acaba sendo “o natural das histórias e suas respectivas encenações”. Elementos místicos aparecem humanizados e personagens populares, pessoas comuns, ganham ares sobrenaturais na montagem de Assombrações. O imaginário coletivo nordestino está presente nas histórias dos fantasmas que assombravam a região e nos mínimos detalhes da montagem, dos objetos cênicos às formas de interpretação. Moreno optou por contar estes “causos” mesclando humor e mistério, colocando em cena personagens do livro de Gilberto Freyre ao lado de outros fatos, reais ou mitológicos, da história de Pernambuco. Assim, entre figuras como o Lobisomem, o Papa-figo e o Boca-de-Ouro, mistos de realidade e ficção; ouvimos em forma de embolada a trajetória de Frei Caneca, cantada na primeira pessoa pelo seu intérprete, o também pernambucano, Paulo de Pontes. O ator Carlos Ataíde e a bailarina Viviane Madureira são os outros dois recifenses que participam do espetáculo, ela como coreógrafa. Além de estar “bem-servido” de conterrâneos, o diretor pôde ainda contar com o talento e a versatilidade dos outros integrantes do grupo, quase todos desempenhando simultaneamente mais de uma função no projeto e, é claro, com o material das suas investigações individuais e as da Cia. Os Fofos Encenam, que sempre tiveram um trabalho de pesquisa muito denso em todas as suas montagens. Todos esses fatores renderam às Assombrações do Recife Velho, no ano de sua estréia (2005), a aprovação no Programa Municipal de Fomento ao Teatro de São Paulo; os Prêmios Qualidade Brasil de Melhor Espetáculo, Diretor e Ator (Fernando Neves) em Comédia; e também três indicações ao Prêmio Shell 2005, nas categorias Melhor Diretor, Melhor Direção Musical e Melhor Iluminação. As pesquisas dos Fofos Encenam se dão por meio de oficinas, cada uma coordenada por um profissional da companhia: Fernando Neves é o responsável pela parte de circo-teatro; Fernando Esteves, pianista dos espetáculos do grupo que têm música ao vivo, coordena a pesquisa sobre musicalização; Luciana Lyra é quem ministra as oficinas sobre corpo; e Newton Moreno, encabeça a já referida linha de pesquisa sobre memória em cena das famílias pernambucanas.

Somados os atributos do texto, do grupo e da direção de Assombrações do Recife Velho resultaram em uma encenação que impressiona pela propriedade; que consegue ser tradicional e contemporânea ao mesmo tempo; que diverte sem ser caricata ou artificial. Uma viagem ao Recife e ao misterioso universo da imaginação humana. Uma obra que, de alguma forma, traduz a alma do povo nordestino e que ainda clama por uma conquista: apresentar no e ao Recife as suas Assombrações.(CG)

mesmos motivos que levaram Mário a romper relações com outro companheiro de geração: Oswald de Andrade. Apesar da monumentalidade das biografias comentadas, o brilho que emana da obra de Pallares-Burke é mais forte do que o que vem do livro de Larreta e Giucci. A obra de Pallares-Burke se firma não somente como a mais importante já escrita sobre Gilberto Freyre, mas como definidora para se entender, no campo das idéias, a formação do Brasil moderno que nasce nas décadas de 1920 e 1930. Alguns próceres da geração de Freyre — a exemplo de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Portinari... — estão carecendo de biografias intelectuais tão eruditas e exaustivas como as que foram escritas sobre o Mestre de Apipucos. A sorte está lançada.

A propósito, o perfil físico no parágrafo inicial não é o de Freyre, e sim o de Mário de Andrade (foto). Em 1921, o então cientificista Freyre avista um bando de marinheiros brasileiros (“mulatos e cafuzos”) andando pela neve do Brooklyn, em Nova York. Sua impressão é “de caricaturas de homens” — “A miscigenação resultava naquilo”, conclui melancolicamente; conclusão que poderia ser de qualquer um dos seus contemporâneos. Ler as citadas biografias aqui resenhadas é percorrer uma trajetória intelectual — a de Freyre — e de como ele abandonou o eugenismo e passou a exaltar a miscigenação. No entanto, por subtração, passamos também a entender como certas idéias subsistem aos novos conceitos. O Mário que escondia sua morenidade com pó-de-arroz (a feiúra ele ocultava com as roupas meticulosamente escolhidas), revela-nos que nem sempre idéias novas significam a morte das antigas. Elas subsistem no inconsciente, mesmo dos que, em sua plena razão (como é o caso de Mário), já não acreditam mais nelas. Este talvez seja o motivo do porquê das idéias de Freyre continuarem tão atuais.

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O perfil é dele

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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Frutas de brincadeira(final) “Atrás do grupo-escolar ficam as jabuticabeiras. Estudar, a gente estuda. Mas depois, Ei, pessoal: furtar jabuticaba. Jabuticaba chupa-se no pé. O furto exaure-se no ato de furtar. Consciência mais leve do que asa ao descer, volto de mãos vazias para casa.” Carlos Drummond de Andrade (“Menino Antigo”)

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ste artigo encerra uma série de três, sobre frutas com sabor de infância, que não são servidas durante as refeições. Durante as pesquisas, outras frutas foram também sugeridas – gogoia, guabiraba, murta, piri. Sem que tenham recebido atenção, por absoluta ausência de maiores informações sobre elas. De logo encarecendo ao leitor que, caso tenha acesso a essas informações, ou conheça outras que também possam merecer essa classificação de “frutas de brincadeira”, a gentileza de uma comunicação. Pitanga (Eugenia uniflora) – O velho solar de Santo Antonio de Apipucos evocava Manuel Bandeira – “a mesa posta, com cada coisa em seu lugar” (Consoada). A mesa ali era pesadona, de jacarandá da Bahia, no meio da sala de jantar. As coisas em seus lugares eram toalha e guardanapos de linho, louça branca e talheres antigos. Mais parecia um ritual. No fim das refeições, algumas vezes mesmo fora delas, Gilberto Freyre servia seu famoso licor de pitanga. Em bandeja de prata e copos de cristal. E apenas a bem poucos amigos. O segredo da receita revelou só ao filho Fernando e ao neto Gilberto. Mas dela conhecemos alguns ingredien-

tes. As pitangas devem ser sempre maduras – “cereja brasileira”, assim chamava. E colhidas em seu próprio pomar. Dali eram levadas a um terraço mourisco todo em azulejos, quase um claustro, nos fundos da casa. As pitangas eram então cuidadosamente colocadas, uma a uma, em garrafas com cachaça de cabeça (fabricadas por amigos de confiança), depois etiquetadas e guardadas na adega. O processo recomeçava só 10 anos depois, quando recebiam os ingredientes finais: licor de violeta (ou rosa), preparado por freiras – que, recomendava, teriam que jurar ser virgens; e canela em pó, aspergida sobre o copo “num gesto clássico e pagão” – como descreve Edson Nery, parafraseando Vinícios. Por ter sabor mais forte e cor mais escura que outros licores, Gilberto Freyre o chamava, com pompa e charme, “conhaque de pitanga”. Pitanga é fruta bem pequena, arredondada, achatada nas extremidades, com sulcos laterais formando gomos. Usada também para fazer refrescos, sorvetes, geléias, chutneys.Tem sabor agridoce e, quando madura, cor vermelho brilhante. Daí vem, na língua Tupi seu próprio nome – “pi’tana”( avermelhado). A essa cor se deve também a expressão “chorar pitanga” – que, segundo Câmara Cascudo, é adaptação da expressão

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“As pitangas devem ser sempre maduras – “cereja brasileira”, assim chamava. E colhidas em seu próprio pomar. Pitanga é fruta bem pequena, arredondada, achatada nas extremidades, com sulcos laterais formando gomos." Mariana Oliveira

portuguesa “chorar lágrimas de sangue”. A partir dessa cor, vermelha como sangue, as comparações vão mudando. É “a cor do hábito de Cristo” – segundo Frei Antonio do Rosário (Frutas do Brasil, 1686). A cor da “boca mimosa e vermelha como pitanga” descrita por José de Alencar (Iracema). A cor do rosto envergonhado “que ficou como uma pitanga”, segundo Machado de Assis (Quincas Borba). São muitas, as variedades – pitanga-miúda, pitanga-pimenta, pitanga-preta. Mais conhecida é a pitanga-da-praia. A árvore é originária do Brasil. Não sendo muito exigente quanto ao solo, se dá bem em regiões de clima quente e úmido, especialmente no litoral brasileiro. Hoje é também cultivada nos Estados Unidos, em todo o Caribe, na Índia e na China. Por serem sobretudo belas são usadas em jardins, praças, parques e calçadas. Os frutos aparecem entre outubro e janeiro. As flores são brancas e muito perfumadas. Tem folhas avermelhadas, quando novas; mas com o tempo, vão ficando verdes bem brilhantes. Dessas folhas se faz um chá eficiente no alívio de dores reumáticas, no tratamento de bronquite e para baixar a febre. “Erisipela só dá com febre alta...Isto passa. Com o chá de pitanga tudo vai indo”, receita Guimarães Rosa (Sagarana).

Pitomba (Eugenia lutescens) – Pitomba é fruto pequeno e arredondado, de cor amarelo-acinzentada. Sua casca é dura e deve ser partida com os dentes. Os índios preferiam fazer isso com ajuda de pedras ou mesmo chutando, primeiros prenúncios do gosto do brasileiro pelo futebol. Daí vem, na língua tupi, o próprio nome “pi’toma” – com o sentido de sopapo ou chute forte. A polpa é fina, transparente, carnuda, agridoce, e envolve todo o caroço (a semente), que é quase tão grande quanto a fruta. Na hora de chupar, todo cuidado é pouco – que esse caroço, às vezes, escorrega pela garganta. Na literatura, são muitos os exemplos de gente que passou mal engolindo o caroço. “De noite quando Jiguê queria pular na rede a companheira dele principiava gemendo, falando que estava empanzinada de tanto engolir caroço de pitomba”, escreveu Mario de Andrade (Macunaíma, 1928). “Aos sete anos, tendo engolido caroços de pitomba, veio-me doloroso embaraço intestinal”, recordava seu tempo de infância o escritor maranhense Graça Aranha, em seu último livro (Meu Próprio Romance, 1931). Minha avó lembrava sempre que era fruta muito indigesta. Mas valia a pena arriscar. No Norte a fruta é mais conhecida como pitomba-da-mata, olho-de-boi ou grão-de-galo. Pode ser consumida ao natural ou como ingrediente de licor, caipirinha e caipirosca – feitas com perfeição, por exemplo, no restaurante Beijupirá (Porto de Galinhas). Gilberto Freyre lembra que em Pernambuco, do início do século passado, se fazia “doce até de pitomba” (Açúcar,1939). Hoje não mais. Pitombeira é originária do Norte e Nordeste do Brasil – especialmente Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Não requer muitos cuidados. Apenas clima quente e úmido. A árvore é grande, podendo chegar até 15 metros de altura. Sua copa é frondosa e de muitos galhos. As flores pequenas, perfumadas e brancas, aparecem em cachos de agosto a outubro. As folhas e as cascas, por conterem muito tanino, são usadas nos curtumes para impedir que o couro, ao ser curtido, apodreça. Experiências recentes na Universidade Federal de Mato Grosso nos dão noticia de que uma proteína (Talisia esculenta lectin), extraída do caroço, é eficiente no combate a fungos que atacam as plantações de feijão, soja e milho. Os frutos amadurecem de janeiro a março. A Festa de Nossa Senhora dos Prazeres, mais conhecida como Festa da JAN 2008 • Continente x

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receitas

Geléia de pitanga

Caipirinha de pitomba

3 Retire o caroço de 1 kg de pitanga. Leve ao fogo com ½ litro de água. Quando ferver retire do fogo. 3 Retire a água. Peneire a polpa. 3 Coloque em uma panela a polpa e o mesmo peso (da polpa) em açúcar. 3 Leve ao fogo e cozinhe até dar o ponto de geléia.

3 Coloque, em um copo, 6 pitombas descascadas. Junte uma colher de sopa de açúcar. Amasse com o socador. Complete com cachaça e gelo. Decore o copo com uma pitomba descascada, espetada em palito.

Pitomba, é realizada nos primeiros 10 dias depois da semana santa, no pátio do Parque Histórico Nacional do Guararapes. Pitombas são vendidas, na rua, em grandes cachos amarrados em feixe. Já sem os pregões de antigamente, anunciadas por vendedores que gritavam – “Ei, piripiripiripiripitomba! Menino chora para comprar pitomba! Ei pitomba!”. Hoje está em ditados populares – “Ora pitomba”, “Dançando mais que pitomba em boca de velho”, e até em músicas como “Asas de América” de Alceu Valença:

Reprodução

“Olaolô, morena flor de cheiro Sai dessa roda e quebra esse cordão te dou um doce, um cacho de pitomba vem pro meu lado e sai da contra-mão”. Pitombeira é também nome de nossa mais famosa Troça de Carnaval – que sai nas segundas-feiras do Largo do Guadalupe, em Olinda. Foi fundada em 1947 por um grupo de rapazes que, empunhando galhos de pitombeira, saíam pelas ruas da cidade, seguindo os blocos que desfilavam. Três anos depois Alex Caldas compôs o Hino da Pitombeira, talvez a música mais tocada no carnaval pernambucano: “Nós somos da Pitombeira, Não brincamos muito mal, Se a turma não saísse, Não havia Carnaval. ... A turma da Pitombeira Na cachaça é a maior E o doce é sem igual Como ponche é o ideal, Se a turma não saísse, Não havia Carnaval. Bate-bate com doce, eu também quero, Eu também quero, eu também quero Mas se é cana com doce, eu também quero, Eu também quero, eu também quero”. 64 x Continente • JAN 2008

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As vinhetas, a TV e o Brasil que você vê

Imagens: Reprodução

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Ao longo do tempo as vinhetas mudaram não só esteticamente, também ganharam uma nova função na grade de programação das emissoras Mannuela Costa

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Arquivo CEPE

o Brasil, há poucas pessoas que não sabem dizer a quem pertence um efeito sonoro conhecido como “plim-plim”. As gerações mais antigas também são capazes de lembrar do famoso “M”, marca da extinta Manchete (curiosidade maior era a trilha, originada do clássico Contatos Imediatos do Terceiro Grau, direção de Steven Spielberg, 1977). Ou ainda o pequeno índio, mascote da pioneira TV Tupi. As vinhetas fazem parte da história da TV brasileira e da memória de inúmeros telespectadores, que, embora não as conheçam por este nome, já as incorporaram em seu cotidiano. Apesar de tão antigas quanto a TV no Brasil, na literatura da área, pouco se tem registrado sobre a evolução das vinhetas, cujas origens residem nos livros bíblicos, e passaram a demandar mais recursos técnicos e cada vez mais profissionais especializados em sua produção. Vimos as vinhetas passarem de simples cartões estáticos com desenhos em nanquim para figuras animadas, coloridas, editadas, produzidas com efeitos gráficos e, atualmente, utilizando-se da mais variada gama de recursos técnicos e estéticos. Mas não foi apenas esteticamente que as vinhetas mudaram. Sua função na grade de programação das emissoras também. Nos primórdios da produção televisiva, as vinhetas – à época conhecidas como interprogramas – apareciam para que o telespectador fosse informado sobre o canal a que assistiam e também para preencher o espaço vazio entre um programa e outro (por vezes, de horas). Com a evolução da JAN 2008 • Continente x

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TESES produção e a agilidade com que a programação foi sendo preenchida com mais e mais atrações, aos poucos as vinhetas também foram assumindo um novo papel. De mera pontuação, identificando a emissora e organizando o conteúdo televisivo (indicando começo, intervalo e fim), tornou-se um produto de entretenimento como qualquer outro na TV. Tanto novelas quanto telejornais e vinhetas, parecem buscar incessantemente atenção do telespectador. Este, por sua vez, está cada vez mais mergulhado numa miríade de O pequeno índio foi o mascote da opções coloridas e intermitentes pioneira TV Tupi aceleradas pelo efeito zapping do controle remoto. Assim, a mudança das vinhetas marca também uma nova fase da TV no Brasil. Aquela em que mesmo no intervalo as emissoras têm que brigar pela audiência e marcar seu posicionamento corporativo. Os meios de comunicação, igualados às demais empresas presentes no mercado, hoje encaram seus programas como um produto igual a qualquer outro na prateleira do supermercado. Portanto, os gestores das emissoras precisam fidelizar o espectador/consumidor, evitando que ele seja tentado a mudar de canal (de marca), mesmo no intervalo. Aqui aparece com mais força a nova função da vinheta: uma peça representativa da emissora, como se fossem um anúncio institucional, que traduz a imagem, isto é, a essência da empresa anunciante, como ela quer ser vista pelos consumidores. Através das vinhetas, as emissoras se diferenciam umas das outras e apontam para a nova realidade do mercado televisivo: multiplicidade da oferta (termo introduzido por Valério Brittos, professor e pesquisador, para descrever o novo cenário da TV no Brasil), da audiência pulverizada, concorrência acirrada e mudança de posições que há muito estavam sedimentadas. Líderes de audiência são desbancadas do primeiro lugar, enquanto novos canais e novos meios de comunicação dividem a atenção do espectador. Curiosamente, o momento coincide com a entrada de novos telespectadores, majoritariamente das classes de baixa renda, que em função do plano real, obtiveram um crescimento em seu poder aquisi-

tivo. Este público passou a adquirir novos produtos e eletrodomésticos, dentre eles o aparelho de TV, cujas vendas deram um salto de 400% em 10 anos (de 1987 para 1997), segundo dados dos pesquisadores Gabriel Priolli e Sílvia Borelli. Prova maior desta mudança são as vinhetas da Rede Globo. Durante anos, as vinhetas apresentam a marca (globo) girando, surgindo de algum canto da tela. Todas eram sempre acompanhadas por vinheta sonora, cujos tons e ritmo nos lembram a fala do nome “Rede Globo”, de forma acedente e impactante. A computação gráfica tornava possível aos profissionais da Rede Globo, sob a coordenação de Hans Donner, criar visuais originais, em estilo futurista, representativos da união entre homem e máquina. Um visual rebuscado, que descartava de todo as influências mais primitivistas e simplórias, por assim dizer, da cultura brasileira. Já na década de 1980, mulheres dançavam em cenários virtuais, pairavam sobre o deserto ou surgiam da água, com um visual asséptico, duro, que em muito se assemelha à androgenia. Em meados de 1990, no entanto, as imagens ganham novo tom. Em parte, incentivada pelos novos consumidores, a Rede Globo inicia a nova série das vinhetas do “plim-plim”. Quadrinizadas, apresentamse no formato de animação gráfica mais simples, não recorrem ao texto verbal e, no final, a marca da Rede Globo (sem alteração, acompanhada pelo efeito sonoro “plim-plim”), é incorporada à peça. Abordam temas como saúde, educação, solidariedade, cidadania, educação no trânsito e redução da violência. Estas peças audiovisuais também recorrem fortemente a símbolos da cultura nacional (índios, negros, mestiços, baianas, capoeiristas, gaúchos, samba, mulatas, etc.). Assinadas por artistas gráficos e cartunistas, as vinhetas do plim-plim caminham numa direção contrária das art breaks da MTV, que se permite um alto nível de experimentação visual, fusão de estilos e técnicas, referências a estilos diferentes de escolas do design (estética punk, oriental, tecno, art nouveau, etc.). Isso sem falar nos temas e nos apelos (sexuais, violência, choque, agressividade ou apenas êxtase visual). Desde sempre, a MTV teve como padrão o não padrão. Por mais contraditória que a afirmação possa paAs vinhetas quadrinizadas da Rede Globo mantiveram o famoso "plim-plim"

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Na MTV, as vinhetas são chamadas de art breaks e não seguem nenhum padrão

recer, ela traduz com clareza a essência da MTV: uma emissora mundial, com identidade cambiante (assim como as identidades culturais pós-modernas) destinada a um público jovem, com sede do novo. Para começar, as vinhetas são chamadas de art breaks, o que reforça ainda mais a idéia do intervalo como atração televisiva, além de não terem duração prédefinida e ocuparem grande parte do intervalo comercial da emissora. Enquanto a MTV aparece como a representação da aceleração e instabilidade do mundo pós-moderno, absorvendo todas as suas referências, a Rede Globo marca uma volta às origens. Com pretensões hegemônicas, a Rede Globo não perde tempo para reafirmar, a cada vinheta, a sua centralidade no cotidiano das pessoas, além de se apropriar das tradições

regionais brasileiras para montar sua própria identidade. Na tentativa de representar o Brasil pela diversidade, a emissora incorre em estereotipações reducionistas e generalizações pouco fidedignas da realidade. É o que acontece quando representa o nordestino e as mulheres. Aqueles vestidos com roupa de sertanejo ou cangaceiro e até com cara de bobo, enquanto as personagens femininas são coadjuvantes das personagens masculinas, ocupando papéis de mãe, esposa, namorada ou objeto sexual. Como se não bastasse, registra-se a ausência completa de temas como homossexualidade e a insistência no mito da miscigenação para representar o Brasil. Sem dúvida, iniciativas como esta da Rede Globo conserva acertos, pelo menos na tentativa de divulgar temas relevantes para melhorar a vida em sociedade. Mas o perigo reside justamente no oposto. A Rede globo sedimenta temas cansados e oculta assuntos importantes, enquanto a MTV insiste, tantas vezes, no conteúdo vazio. Em se tratando do veículo mais popular do país – vale lembrar que muitas vezes é ela também que educa e faz companhia aos telespectadores – as duas linhas podem ser igualmente desastrosas. JAN 2008 • Continente x

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O árduo caminho do virtuosismo Festivais estudantis de música atraem jovens de todas as regiões em busca do aperfeiçoamento com professores de renome internacional Carlos Eduardo Amaral

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boa música deve parte de seu mérito em cativar o ser humano aos compositores, que descobrem as notas certas da melodia, os acordes mais ricos e o caráter adequado da peça. A outra parte é devida aos intérpretes, que traduzem as indicações de partituras e se sintonizam com as intenções e disposições de espírito dos autores para transmiti-las da forma mais tocante possível ao ouvinte. Falando especificamente desta segunda classe de músicos, quanto mais eles amadurecem e adquirem domínio de execução, fazendo a música parecer simples ou precisa, esquecemos que maior é o conhecimento teórico agregado. Os conservatórios são repositórios bem difundidos do saber da arte de Santa Cecília, às vezes preteridos a professores particulares, mas não os únicos. A competiti-

vidade e a especialização, como em qualquer outro ramo profissional, evoluíram: os duelos nos salões da realeza e da nobreza e as peregrinações às aulas dos maiores virtuosi estão hoje encarnados nos concursos de solistas e nas etapas estudantis de festivais de poucos dias de duração, conduzidas por professores renomados. A Continente Multicultural conheceu de perto o cotidiano de um desses festivais, a convite da 4ª Semana da Música de Ouro Branco, em Minas. Como o nome indica, o principal num festival são as apresentações musicais, porém há os que priorizam o aperfeiçoamento dos alunos participantes. A Semana da Música de Ouro Branco é exemplo desse caso, dado que ela mesma está formando público apreciador de música clássica na cidade onde se realiza, e ainda organiza con-

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Concerto na capela da Fazenda Pé de Morro, durante a 4ª Semana da Música de Ouro Branco

corrido concurso de jovens solistas. Duzentos estudantes do país inteiro e do exterior se encontraram com 33 professores durante sete dias no mês de outubro a fim de assimilar novas dicas e observações de interpretação – alguns, no intuito de conquistarem a glória de ser regidos frente a uma orquestra. Leandro Gomes, estudante de viola em Natal, participou da 2ª Semana da Música em 2005 e voltou em 2007 com outros quatro amigos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Juntando cachês, mesadas e ajuda de custo da UFRN, eles puderam encarar a viagem e ganhar gabarito para viabilizar futuras iniciativas na capital potiguar, que não dispõe de orquestra jovem regular como há em João Pessoa e Recife. O currículo do grupo contabiliza participações em festivais estudantis de Brasília, Fortaleza, Olinda, Belém e Jaraguá do Sul (SC).

Testemunha e protagonista de histórias engraçadas de bastidores de alojamentos, Leandro diz que, só na noite anterior, um violoncelista teve a estante de partituras quebrada por uma bolada e que esbravejou, de pijama, com um violinista transgressor da lei do silêncio. “Ontem saí do sério. Era meia-noite e o cara tocando. Eu me levantei e falei: ‘A gente quer dormir e tem de acordar às seis da manhã. Por favor!’”. Pouco adiantou: “A gente ficou dormindo e ele tocando lá. Nem afinado tava”, alfineta contra o aprendiz de Paganini. O toque de recolher no alojamento era à meia-noite, mas alguns concorrentes do concurso de jovens solistas quebraram a norma, num acesso de perfeccionismo. Compreensível, por outro ponto de vista. De cem inscritos, que enviaram gravações em CD de um movimento de concerto de livre escolha, 26 instrumentistas e nove cantores foram selecionados para a prova final do concurso, no primeiro dia de festival. Os finalistas tiveram direito a um único ensaio com pianista co-repetidor, um dia antes. Somente treze deles seriam classificados para se apresentar com a Orquestra de Câmara da Semana da Música. Foram mais de três horas de audição só dos candidatos instrumentistas; a prova dos cantores teve de ser remanejada e teve menos platéia por conta das aulas. Considere-se que a banca interrompia a atuação quando se julgasse satisfeita, sem que isso subentendesse boa performance. Os instrumentistas eleitos foram: o flautinista Alexandre Braga, a flautista Joana Radicchi e a violinista Martha Pacífico, de Belo Horizonte; o saxofonista-soprano Carlos Augusto dos Santos, de Brasília; o violonista João Carlos Vítor, de Salvador; e a pianista Ana Maria Otamendi, de Caracas. A seleção de tão poucos solistas não chegou a ser difícil para a banca, pois, na hora da prova – a despeito da qualidade de boa parte dos finalistas – a acuidade sonora dos solistas acima justificou o extenso currículo que eles têm, ainda na casa dos vinte anos. Ana Maria Otamendi, que atua em seu país como corepetidora e solista convidada, diz que soube da Semana da Música de Ouro Branco através de amigos e planeja participar de outros festivais estrangeiros ao tirar férias. Ela menciona o destacado trabalho do Sistema Nacional de Orquestras Infantis e Juvenis da Venezuela: “O movimento é muito grande. Começou pequeno, há 32 anos, e hoje envolve cerca de 250 mil jovens, dos quais a maioria é pobre e não teria acesso à educação musical. O resultado realmente é surpreendente: quando se escuta uma orquestra jovem lá parece que é a Simon Bolívar”. A Simon Bolívar, parâmetro de Ana, é a orquestra profissional mais conceituada da Venezuela, fundada JAN 2008 • Continente x

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MÚSICA pelo compositor e maestro Jose Antonio Abreu. O Sistema – também criado por Abreu – recebe subsídios dos poderes públicos, da iniciativa privada e de instituições internacionais, como a ONU e o BID. Entre os regentes que comprovaram a qualidade do projeto, está Sir Simon Rattle, titular da Filarmônica de Berlim, que conduziu este ano a Orquestra Sinfônica da Juventude Venezuelana Simon Bolívar. Ana Maria salienta o lado social do projeto: “É a mais importante porque trabalha com crianças que, talvez de outra maneira, fossem delinqüentes ou usassem drogas”. A Casa Música de Ouro Branco, dirigida pela pianista e idealizadora da Semana da Música Kênia Libanio, promove desde 2006 o projeto Dando Cordas, com alunos da rede pública de nove a 16 anos que recebem gratuitamente aulas de violão e cordas friccionadas (violino, viola e violoncelo, no método Suzuki). No festival eles assistiram a aulas especiais com professores convidados, a violonista e educadora musical mineira Flávia Ferraz e o violinista cearense Ademar Rocha, que ensina em João Pessoa e no Recife. Professor Ademar, o primeiro a adotar o método Suzuki no Conservatório Pernambucano de Música (CPM), enfatiza que o contato do estudante com o instrumento é a primeira ação que o educador musical deve tomar: “Nenhum aluno hoje em dia faz uma coisa só, ele está muito dividido. Então você tem de atraí-lo de alguma forma. Você não pode pensar: ‘O aluno é que vem estudar violino; se ele quiser, ele termina o curso’. Eu vejo de outra forma: ‘Se eu quiser, eu o trago pra cá pra aprender violino’”. Ele lembra que, antigamente, A pianista Kênia Liba é a idealizadora da Semana da Música de Ouro Branco

Alunos da rede pública recebem aulas no projeto Dando Cordas

muitos alunos passavam semestres aprendendo teoria musical, sem ver o instrumento que queriam tocar, e deixavam de estudar. Dois alunos de Ademar Rocha estiveram no concurso de jovens solistas: Luís Daniel Alves Lima, do CPM, e André Araújo de Souza, de João Pessoa. Eles foram os únicos representantes de seus estados na prova final. Não passaram, mas ganharam outra honra. Os professores da Semana da Música realizaram triagem com os inscritos, classificando-os para a banda sinfônica; para a orquestra de câmara, que acompanhou os jovens solistas agraciados sob o comando dos alunos da oficina de regência; ou para a orquestra sinfônica, cujos chefes de naipe eram os próprios professores e que realizou o concerto de encerramento. Os dois violinistas sentaram-se na sinfônica. Os cerca de 30 mil habitantes de Ouro Branco, cidade que gira em torno de uma usina siderúrgica na região histórica de Minas, estão se habituando à música clássica graças à Semana da Música e mereceram uma original atividade voltada a eles durante o festival: os recitais comunitários. Esses recitais, em vez de ser executados em escolas ou igrejas, surpreendiam as pessoas em lugares que elas costumam freqüentar no dia-a-dia, como banco, farmácia, padaria, oficina mecânica, supermercado e lares comunitários. O resultado foi que, quem estivesse se ocupando com outra coisa, parava para ouvir os grupos de câmara. Inconscientemente, é uma semente que pode fazer um ourobranquense, algum dia, querer ser músico e tornar-se solista em sua própria terra.

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uvir as músicas e as histórias sobre a vida de Siba serve de combustível suficiente para a imaginação se apoiar em vários estereótipos, enquanto a mente se diverte formulando como deve ser a imagem desse recifense que decidiu morar na Zona da Mata Norte para extrair, direto da fonte, seus sons. Na verdade, ele se confunde fácil na multidão. Mesmo naquela concentrada numa grande livraria, onde ele passeia de boné verde, bolsa, camisa de botão e tênis. Toma café e atende com sorrisos aqueles que o reconhecem, enquanto pesquisa os livros expostos. Siba Veloso, um dos criadores do Mestre Ambrósio, desfruta de uma certa tranqüilidade que é almejada por muitos músicos. Toda Vez que Eu Dou um Passo, o Mundo Sai de Lugar, seu segundo disco solo, já na primeira semana de lançamento teve respostas de todos os

principais jornais do Brasil. Todos na primeira página do caderno de cultura, alguns destacando que aquele era o grande lançamento do ano de 2007. “Minha vitória”, reflete o músico, “é o nível de diálogo e questionamento que consegui atingir dessa vez com a imprensa. Antes tinha aquela busca do velho contra o novo, elétrico contra acústico, estereótipos superficiais, e o tom da minha conversa com eles agora é de questionamento justamente disso”. Entender sua música é conhecer um pouco de sua história. Assim como hoje sua imagem se mistura na multidão, na adolescência Siba poderia ser confundido com qualquer garoto comum. “Não sei dizer muito bem como, mas aos 15 anos comecei a me interessar por rock. Sempre ouvia muita música em casa, do Quinteto Violado a Alceu Valença, MPB em geral, até discote-

Do rock à rabeca Fotos: Beto Figueirôa/Divulgação

No disco Toda Vez que eu Dou um Passo, o Mundo Sai de Lugar , esconde-se um pouco da história de Siba, ex-Mestre Ambrósio e importante renovador da música popular Bruno Nogueira

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MÚSICA ca dos anos 70. Tinha ainda meu pai que gostava muito de cantoria de viola, “sempre tive essas referências sem conflito”, lembra, “mas aí me envolvi com o rock. Tocava guitarra, ouvia Led Zeppelin, Black Sabbath, tive várias bandinhas de garagem que nunca se apresentaram”. O começo com a música veio bem mais cedo, quando a mãe o matriculou na escola de música do Colégio São Bento. “Mas era coisa de criança, durou uns sete anos”, explica Siba, “foi involuntário, mas me dei super bem”. Ouvindo Jimmi Hendrix por dois anos, ele aprendeu a procurar novas referências sonoras. “Até os 20 anos nunca tinha ouvido jazz, mas ele me abriu muito a percepção. Passei a ouvir reggae, música pop africana e isso foi muito importante para mim, porque era uma música tradicional se renovando, com referências do rock e da música cubana”, conta. Aos poucos, Siba encabeça o modelo ideal de identidade de um modernismo tardio, estudado por Stuart Hall na fundação de seus estudos culturais. Nesse caso, sua identidade cultural não é centrada na localidade, mas em sua mobilidade por várias camadas de produção estética. Siba absorve, para depois reproduzir e transformar um ambiente urbano que está em constante movimento. Como um retrato de uma cidade que tem, pincelado por cima, uma tela transparente de elementos regionais. E ele move essa tela, reconfigurando o cenário da maneira como acha coerente.

possíveis porque o Mestre Ambrósio quebrou aquela barreira”. Mas, antes de soar polêmico, explica, “não é que elas existam por causa do Mestre, mas a gente quebrou um lacre, sabíamos que tinha uma contribuição nossa ali”. O Mestre Ambrósio começou como um grupo de estudo para os integrantes. “Tocávamos rabeca, baixo, pandeiro, tocávamos cavalo-marinho, estudávamos toadas, forrós, depois entrava com gaita, sempre juntando as coisas, meio de improviso”, conta Siba. Uma maneira de reunir tanta informação que era trazida por membros de identidades distintas. “Eu tinha um envolvimento direto com a escola da tradição, Maurício (Alves, percussionista) vinha de uma família de ubanda e candomblé, Hélder (Vasconcelos) era um cara que pesquisava muito, comprava discos, todos estavam num processo de assimilar”. Tantas referências construíram duas bandas que, ouvidas de perto, funcionavam como uma. Mesmo depois do primeiro disco lançado, o Mestre Ambrósio (o nome vem de um personagem do cavalo-marinho, uma variação do bumba-meu-boi), era elétrico e acústico. “Eu meio que puxei a banda para que fizéssemos uma síntese, esse que seria o grande lance, com o baixo no forró, a guitarra no maracatu”, recorda Siba. O resultado ideal disso consegue ser conferido no álbum Fuá da Casa de Cabral. Paralelo à história da banda, que estava com contrato assinado com a multinacional Sony (“nunca enconToda Vez que Eu Dou um Passo, o Mundo Sai de Lugar Siba e a Fuloresta Atração R$ 26,90

Toda essa negociação acontece de maneira instintiva. “Cheguei na Zona da Mata Norte por acaso, no fim da década de 80. Fui acompanhando um pesquisador norte-americano, trabalhei um ano com ele na região, mas quando ele foi embora eu fiquei”, recorda o músico. Do envolvimento, ele absorveu a referência que usaria em 1992 ao formar a banda Mestre Ambrósio, que teve como principal importância a aproximação de um público completamente jovem ligado a música pop e rock a ritmos realmente regionais, como o forró. Parecido com o que a Nação Zumbi fez com o maracatu, mas de maneira menos pop e com ritmos que carregavam muito mais estigmas. “A gente sabia que estava fazendo parte de algo maior, isso que é chamado de manguebeat, que estava fazendo uma transformação local fortíssima, porque de repente pela primeira vez as pessoas aqui se reconheciam com um som feito no lugar”, lembra Siba. “Era possível fazer algo aqui e partir para fora, estávamos abrindo uma porta que não deveria ser fechada. Quando chegamos em São Paulo, víamos surgir novas bandas como Chão e Chinelo e o Cordel do Fogo Encantado, que só foram 72 x Continente • JAN 2008

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tramos um equilíbrio entre o que eles queriam fazer e nós”, lamenta), Siba continuava envolvido com a Zona da Mata Norte. “Eu tinha uma inquietação de fazer parcerias musicais lá, porque o que eu sempre gostei de cantar mesmo foi maracatu, essa era minha onda mesmo”, lembra o músico. Em 1996, ele passa a avisar a banda que, em um ano, iria até a Mata Norte fazer esse trabalho, “mas que não tinha a ver com terminar o Mestre Ambrósio ou sair dele”, garante. Passados seis meses, ele decide não voltar. “A banda continuava, às vezes eu até pagava passagem para ir fazer um show, mas outros conflitos levaram o grupo ao fim logo depois”. O Mestre Ambrósio encerrou em seu maior momento. “Aparecemos em todos os programas de TV, com exceção de Xuxa e Faustão, era reconhecido na rua, as pessoas paravam para dizer como nossa música tinha afetado elas. Um assédio constante, mas leve”. Siba chegou a achar que sua carreira não iria tão longe após essa fase. De volta à estaca zero, ele contava (e cantava) agora com os músicos da Mata Norte, que nunca haviam feito turnê e só tocavam juntos há três meses. “Não sabiam nem o processo da passagem de som antes do show”, recorda. Situação inversa do que acontece hoje, cinco anos depois. “A Fuloresta (como chama sua banda) poderia ter dado muito errado, gastei toda minha grana que ganhei em São Paulo, mas consegui tecer uma rede legal de parceiros”, e comemora afirmando que “chegamos no ponto máximo que queríamos”. Assim como o processo criativo de Siba não obedece a

regras geográficas, sua circulação também atende processos distintos. A Fuloresta faz poucos shows no Recife, no reflexo de uma cidade de poucos contratantes, mas tem várias apresentações na Europa. “Faz-se um certo exagero sobre isso, porque na verdade, lá o que fazemos é ocupar um espaço específico de mercado. A gente não toca na rádio, não aparece na TV, ninguém sabe quem a gente é na Europa”, explica. “Mas existe um mercado para música do mundo inteiro lá, com vários festivais interligados, chegando até a Rússia, que contam com selos e rádios independentes. Dentro desse circuito sim, temos um trabalho significativo”. Apesar do pouco anseio pelo universo pop, Siba tem consciência de que sua música se comunica com diferentes representações culturais. “Esse meu trabalho novo tem um som que se tocar no rádio, não vai incomodar ninguém. É uma linguagem que o cortador de cana entende e que um engenheiro entende. Essa é uma busca minha como artista”, se defende, mas admite, “só que nunca vai tocar. Porque esse problema das rádios é um problema muito potencial que ninguém nunca quer tocar”. Siba trabalha esses conflitos junto a uma necessidade de refinar as políticas culturais de Pernambuco, ao mesmo tempo em que se preocupa em definir os rumos da carreira. “Cada disco é um conceito, estou fazendo um agora só com rabecas [instrumento que quase não aparece no atual trabalho] com Roberto Correia, violeiro de Brasília. Também um trabalho mais elétrico, com uma viola elétrica que adaptei. Tudo como projeto solo mesmo”, adianta.

Siba e a Fuloresta pegaram a estrada e foram fazer shows na Europa

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Caruaru no compasso Disco do compositor Carlos Fernando, que está completando 40 anos de carreira, é homenagem proustiana à sua terra natal José Teles

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rônicas Musicais de Caruaru, lançado em maio passado, recebeu os devidos registros na imprensa em Pernambuco, mas não a atenção que merecia. O autor das 11 músicas do CD (com parceiros, quatro delas já haviam sido gravadas antes) é o caruaruense Carlos Fernando, que nos anos 80 aplicou a necessária dose de renovação no frevo-canção, com o projeto, idealizado por ele, Asas da América. O conceito básico do Asas da América foi posto novamente em prática em Crônicas Musicais de Caruaru, feito em homenagem ao sesquicentenário da cidade. Uma das facetas desse conceito hoje é comum, mas não em 1979, quando começou a ser gravado o primeiro álbum do Asas da América. Consiste em reunir cantores renomados, de estilos às vezes totalmente díspares, para interpretar um repertório geralmente assinado por um mesmo compositor. No Asas da América, Carlos Fernando conseguiu o feito de juntar os maiores craques da MPB da época – Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elba Ramalho, Zé Ramalho, Alceu Valença, Jackson do Pandeiro, para citar só uma parte. Nessas crônicas musicais, ele convidou Alceu Valença, Geraldo

Azevedo, Silvério Pessoa, Geraldo Maia, Geraldo Amaral, Adriana BB e Maurício Oliveira, com os quais empreende uma viagem proustiana pela Caruaru na qual ele viveu infância e adolescência. Uma viagem que acontece exatamente no ano em que se completam 40 anos da estréia de Carlos Fernando como compositor de música popular. Um início vitorioso, pois esta primeira música, Aquela Rosa, uma marcha-rancho, tirou o primeiro lugar na Feira Nordestina de Música Popular Brasileira, dividindo o posto com Chegança de Fim de Tarde, de Marcus Vinicius. Até então Carlos Fernando dedicava-se à poesia e ao teatro. Quem o levou para os caminhos da música foi Geraldinho Azevedo, na época um dos violonistas mais requisitados nos shows de MPB que aconteciam no Recife. A lógica de Geraldinho foi a seguinte: “Se você escreve para teatro, poemas, por que não tentar fazer letra de música?” Carlos Fernando topou, e nunca mais parou. Produtor de vários projetos bemsucedidos, tais como o Recifrevoé, o recente álbum duplo 100 Anos de Frevo – É de Perder o Sapato, que celebrou o centenário do gênero,

Carlos Fernando aponta esse disco dedicado à sua terra natal, como seu projeto mais ambicioso: “É um trabalho composto especialmente para uma cidade. Muitos autores já escreveram canções para o lugar em que nasceram. Caymmi, por exemplo, escreveu dezenas de músicas falando da Bahia. Pode-se fazer um disco só com a Bahia como tema, feitas por Caymmi. Este disco, no entanto, é diferente. Eu me sentei e fiz quase todas as músicas pensando em Caruaru e para um único disco”, diferencia Carlos Fernando, que concorda que a data redonda dos 40 anos de carreira influenciou esta volta ao passado. “Já conhecia sua verve para contar estórias de tipos populares de Caruaru, vez em quando lembradas em composições de sua autoria. Agora, em 10 canções, vejo a cidade por inteiro. Ela é a musa central deste es-

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Fotos: Divulgação Reprodução do livro Música de Pernambuco

Carlos Fernando (de camisa listada), com Teca Calazans e Marcus Vinicius, em 1967, recebendo do então governador Nilo Coelho o cheque pelo primeiro lugar na Feira Nordestina de MPB, e em foto atual, ao lado

plêndido CD que me cabe prefaciar desnecessariamente, pois o trabalho fala (canta) por si mesmo”. Esse trecho foi extraído do texto do encarte do CD, escrito por Aluízio Falcão (também compositor, sob o pseudônimo de J. Petronilo), cuja família morou na mesma rua em que morava a família de Carlos Fernando, em Caruaru, e que considera este álbum “o mais apaixonado perfil musical” sobre a cidade natal do autor. E Carlos Fernando vasculhou a memória por tipos e lugares que estão arquivados em suas lembranças. Em “Night Club” (com Geraldo Amaral), interpretada por Adriana BB, cita Duda Manacá: “Com seu terno branco/ cantando os tangos argentinos/ os boleros cubanos/ no Night Club de Caruaru”. “É a mãe” não é uma imprecação, mas uma homenagem às mães de ilustres ca-

ruaruenses, a letra um verdadeiro who’s who de famosos cidadãos locais, com fama nacional, na voz de Geraldo Azevedo: Mestre Vitalino, Onildo Almeida, Clóvis Pereira, os irmãos Condé, Luiz Vieira, Coronel Ludugero e grande elenco. Resgata não apenas a turma da alta, mas também personagens perdidos nos escaninhos da história de Caruaru, entre esses o garçom Seu Arroz, que atendia aos gritos e simpatizava com os comunistas. Isto no xote “O bar de Belo” (cantada por Geraldo Amaral). Poucos nomes que fizeram a história de Caruaru ficaram fora dessas crônicas abrangentes e implacáveis como no Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, com a diferença de que, pelas histórias das crônicas/letras de Carlos Fernando, os caruaruenses não perderam tempo, para usar uma expressão das antigas: “lavaram foi a égua!”

Crônicas Musicais de Caruaru Carlos Fernando Independente R$ 19,00

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Artigos operísticos de Sergio Casoy

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paixão pela música lírica e a larga experiência na redação de textos para apresentações de ópera são a força-motriz da produção do crítico Sergio Casoy, engenheiro de profissão. Em Óperas e Outros Cantares, está uma coletânea de artigos, ensaios e conferências de anos recentes preparados por Casoy para programas da Rádio Cultura FM e foFoto: Reprodução lhetos do Theatro Municipal de São Paulo e festivais diversos. Diferentemente da tendência natural de resultar numa junção de escritos esparsos, o tomo tem uma coesão que permite seguir qualquer ordem

de leitura e fortalecer o entendimento em vez de perdê-lo. A originalidade de algumas abordagens, como a análise dos conflitos entre pais e filhos nas óperas de Verdi (foto), ajuda a entender de que forma os dramas humanos inspiram a literatura dramática ocidental. Fora as óperas italianas, franÓperas e Outros cesas e alemãs do RomantisCantares Sergio Casoy mo, ganharam atenção as do Perspectiva Classicismo, as do século 20 446 págs e as missas. Um apêndice R$ 65,00 fala do Lied e de obras isoladas. Entre as curiosidades, ficamos sabendo, por exemplo, que o libretista de Colombo (vide resenha abaixo) foi o político pernambucano Annibal Falcão, usando pseudônimo. Mesmo tendo dois dedos de largura, o leitor, dependendo de sua avidez, pode digerir o livro em menos de dois dias, graças ao magnetismo típico dos melhores best-sellers. (Carlos Eduardo Amaral)

> Uma raridade ainda disponível

> A história da estética da música

> Obras russas em Campos do Jordão

> Sonhos invernais de Tchaikovsky

A história da vinda do “Descobridor das Américas” ao Novo Mundo, musicada por Carlos Gomes para participar de concursos, não foi laureada e sua fraca estréia no Rio a condenou ao ostracismo. Somente Villa-Lobos, em 1936, promoveu a segunda audição... E providenciou a encenação, pois Colombo era (é) um oratório que não conseguiu escapar da estruturação operística: a ausência da teatralidade e a baixa qualidade do texto causaram a rejeição do público em 1892 – injusta se considerarmos a beleza da ária Era um tramonto d’or. A execução dos Coros e da Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFRJ, somada à acústica e a qualidade de gravação, dão ao álbum um elevado diferencial, incrementado pelo encarte com o libreto. (CEA)

A professora de História da Música Lia Tomás resumiu as concepções musicais norteadoras da Grécia Antiga, da Idade Média, da Renascença e do Barroco e Classicismo em cerca de vinte páginas cada capítulo. A autora confrontou opiniões divergentes e apontou quais valores estéticos prevaleceram ao longo dos mais de vinte séculos em estudo, apoiada em citações de importantes autores contemporâneos e de teóricos das respectivas épocas, como Aristóteles, Boécio, de Muris e D’Alembert. Numa dissertação sucinta mas que requer atenção, Música e Filosofia abarca temas tão universais quanto: a “verdadeira” música, a relação entre moral e música, o status da música vocal e instrumental e a teleologia da música. (CEA)

Habituados à presença de Roberto Minczuk e da Orquestra Acadêmica, a platéia dos concertos do Festival de Inverno de Campos do Jordão também se acostumou às obras eslavas e brasileiras nas principais apresentações. A peça central deste CD, gravado em 2006, é a Sinfonia n° 4 de Tchaikovsky, tida pelo próprio compositor como sua obra-prima (pois ele não gostava de O quebra-nozes). Antecede a sinfonia a Abertura de Ruslan e Ludmila de Mikhail Glinka, o pai da música russa, que temperou a ópera de estilo rossiniano com a língua e as melodias de sua terra. Na última faixa, o registro da estréia mundial de Ritmetrias de Edino Krieger, escrita no período de residência no festival e que termina num animado frevo. (CEA)

Segundo conta Irineu Franco Perpétuo, no encarte do álbum, a Sinfonia n° 1 de Tchaikovsky foi a primeira composição de grande porte do russo. Estreou “aos pedaços” – e sob críticas – até ser executada por completo em 1868 e sofrer duas revisões posteriores. Os títulos que os dois primeiros movimentos receberam do compositor sugerem que peça seja programática, ao menos na inspiração: “sonhos de um dia de inverno” e “terra lúgubre, terra brumosa”. John Neschling e a Osesp aos poucos estão empreendendo a gravação completa das sinfonias de Tchaikovsky. Neste CD está incluída a abertura-fantasia Romeu e Julieta, na verdade um não assumido poema sinfônico, influenciado pelas revisões Mili Balakirev. (CEA)

Colombo Antônio Carlos Gomes UFRJ Música R$ 35,00.

Música e Filosofia – Estética musical Lia Tomás Irmãos Vitale 96 págs R$ 35,00.

Orquestra Acadêmica Roberto Minczuk Biscoito Clássico R$ 30,00

Sinfonia nº 1 e Romeu e Julieta Tchaikovsky Biscoito Clássico, R$ 30,00

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Teca Calazans, sempre suave e lírica

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compositor e violonista carioca Maurício Carrilho idealizou, com Teca Calazans (foto), tributo a seu mestre Jayme Florence, o Meira (1909-1982), natural de Paudalho e professor de Baden Powell, Rafael Rabello e tantos outros. Maurício, sobrinho do famoso flautista AlFoto: Divulgação tamiro Carrilho e defensor do choro, é daqueles que comprovam, através de partituras e dedilhados, sua declaração de que o gênero “resiste ao massacrante processo de idiotização musical imposto pela globalização e vai resistir a tudo”.

No presente CD, o repertório foi dividido entre aluno e professor – este lembrado em clássicos como "Aperto de Mão e Molambo". No fim, um bônus: "Migalhas de Amor", de Jacob do Bandolim e Fernando Brant. As canções de Meira e Carrilho se alternam sem induzir nenhum contraste ou discrepância, pois Teca encarna a emoção peculiar de cada uma delas. Paulo César Pinheiro, cuja caneta é de rara poética nos dias atuais, escreve versos pensando nas melodias do amigo Carrilho, mas que se transfiguram no sirênico timbre da cantora. Desde a primeira música, "Canção do amor distante", sua interpretação ajuda a entender por que os poetas não precisam tentar se igualar a Camões, mas buscar o Impressões sobre belo por meio do invulMaurício Carrilho & Meira gar: “Ai, a lágrima que cai Teca Calazans no meu violão / é o som CPC-UMES da música que sai do coR$ 20,00 ração”. (CEA)

> O CD Bandeira do Divino: pura MPB

> Samba intimista egresso dos bares

> Dorival Caymmi por Paulo Moura

> Rock puro nas plagas do "Hellcife"

Em Bandeira do Divino, Gilson Peranzzetta abriu mão de convidar músicos amigos para ficar a sós com o piano. Tratando canções da MPB como standards, Peranzzetta evitou turvá-las com acordes intrincados e pesados ao aliar seu talento de arranjador com o de pianista – marca pessoal em seus mais de 50 anos de carreira, salientada até por Quincy Jones. Assim, preservou a fluidez delas, como em "João e Maria", "Asa Branca" e "As rosas não Falam", à maneira do que tem feito nos arranjos das produções recentes de Mauro Senise. Nada de se estranhar em um instrumentista de trânsito livre nos palcos de Ivan Lins, Edu Lobo, George Benson e Sarah Vaughan; confira o pouco que diz Dori Caymmi na capa interna do CD. (CEA)

Assumindo as influências de Paulinho da Viola, da família Caymmi e dos bossistas, Joca Freire angariou fãs pelos bares do Vale do Paraíba e empreendeu a gravação de três CDs independentes ao longo de sua carreira, um dos quais sobre poemas de Cassiano Ricardo. Agora em Amigo Samba, Joca leva para o resto do país seu estilo intimista e equilibrado, ladeado pelo compositor e violonista João Marcondes. As onze músicas do disco, sem arrodeios e com muito despojamento, exaltam a paixão pelo Brasil (em "Samba para uma Nação" e "Mistura Brasileira") e revolvem as desilusões amorosas, sejam estas lamentadas, como em "Tudo já se Transformou", sejam superadas, como em "Cicatrizes" (“Agora vou pra ser feliz, pra isso mudarei de vez”). (CEA)

Em 1991, o clarinetista Paulo Moura gravou um LP em que propunha suas leituras para algumas canções do mestre Dorival Caymmi. Agora, mais de 10 anos depois, o material ganha um relançamento em CD pela Biscoito Fino. Entre as canções executadas com novos arranjos estão "Acalanto", "O Mar", "Dora", entre outros sucessos do compositor baiano. Neste projeto, Paulo Moura é acompanhado pelo Ociladocê ( Carlos Negreiros, Jovi, Marcos Suzano, Feijão, Paulinho Muylaert e Alex Meirelles), especialmente criado para este encontro. O grupo, que já foi desfeito, consegue imprimir um caráter afro-brasileiro ao disco, com múltiplas matizes negras, através dos tambores e dos jongos do candomblé.

Driblando com competência o fato de tocar sem baixista, o trio recifense Vamoz apresenta o seu novo trabalho, em ousado formato duplo (CD + DVD). O CD traz nove composições inéditas, cantadas em inglês bem pronunciado, com uma batida bem pegada, rock direto na mais pura emoção, junto a guitarras distorcidas, entremeadas com baladas à folk music, com arranjos bem elaborados e criativos. Já o DVD traz um material bastante diversificado, entre eles, um show elétrico-acústico, com músicas do primeiro CD, realizado ao vivo na Livraria Cultura, e, ainda clips, documentários, fotos e outros mimos da banda que já tem uma boa legião de fãs. Enfim, o negócio é aumentar o volume e curtir ao máximo um velho e puro rock'n'roll. (Luiz Arrais)

Bandeira do Divino Gilson Peranzzetta Delira Música R$ 28,00

Amigo Samba Joca Freire CPC-UMES R$ 29,90

O Som de Dorival Caymmi Paulo Moura e Ociladocê Biscoito Fino R$ 23,90

Damned Rock´n´roll Vamoz Monstros Discos R$ 15,00

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LÍNGUAS

Consagração da lusofonia Com suas 976 páginas, o Dicionário Temático de Lusofonia, do professor Fernando Alves Cristóvão, é um verdadeiro monumento à língua portuguesa Edson Nery da Fonseca Imagens: Reprodução

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grande argentino Jorge Luis Borges era apaixonado por enciclopédias. Minha paixão é tanto por elas como pelas demais obras de consulta (ou referência, como são chamadas em língua inglesa). Por isso, a disciplina do curso de biblioteconomia que mais me interessou foi Bibliografia e Referência, cujo professor era o conceituado bibliófilo e bibliógrafo Rubens Borba de Moraes, então diretor-geral da Biblioteca Nacional e promotor da terceira grande reforma da velha Biblioteca Real. Deve-se a primeira reforma (1870 -1982) ao médico e helenista gaúcho Benjamin Franklin Ramiz Galvão e a segunda (1900-1915 e 1919-1921) ao educador pernambucano Manoel Cícero Peregrino da Silva. Também ensinei a disciplina nos cursos de biblioteconomia da Universidade do Recife (depois denominada Universidade Federal de Pernambuco (19491951) e na minha querida Universidade de Brasília (1962-1971)). O que caracteriza as obras de consulta, distinguindo-as de poesia, ficção, drama e ensaio, é que não são escritas para leitura da primeira à última página, mas para esclarecer dúvidas sobre assuntos específicos (enciclopédias e dicionários temáticos), palavras (dicionários lingüísticos), livros (bibliografias) autores (dicionários biográficos), lugares (atlas e dicionários geográficos) e números (anuários estatísticos). Donde a designação obras de consulta ou, como preferem os bibliotecários de língua inglesa, reference works ou reference books. 78 x Continente • JAN 2008

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sa (Icalp), órgão sucessor do Instituto de Alta Cultura e atualmente denominado Instituto Camões. Fernando Alves Cristóvão é conhecido brasilianista que doutorou-se com uma tese sobre nosso Graciliano Ramos e recebeu pela primeira vez, por seu livro Sob o Cruzeiro do Sul, o Prêmio Casa-Grande e Senzala, instituído para galardoar anualmente a melhor obra de interpretação do Brasil. Trezentos e sessenta e nove autores assinaram os verbetes com suas iniciais, sendo quarenta e três brasileiros (dentre os quais os pernambucanos Anco Márcio Tenório Vieira, Evanildo Bechara e Mário Hélio) e os demais tanto dos oito países lusófonos como da Alemanha, Espanha, França, Galiza, Gana, Itália, República Checa e Senegal. O grande número de colaboradores explica por que a elaboração da obra durou quatro anos, fazendo com que alguns verbetes ficassem desatualizados; e evidencia a existência de especialistas em lusofonia em importantes países são lusófonos. Não me canso de citar o que escreveu Otto Maria Carpeaux a respeito de seu mestre Bendetto Croce: “Da minha capacidade ilimitada para admirar os que são realmente grandes, deduzo o direito de crítica mais severa”. É o que farei com esta obra que tanto me impressionou pela sua atualidade e envergadura. Como disse

Reprodução

Já comentei em artigos nesta revista a oportuna reedição pela Cepe do dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco de Sebastião de Vasconcellos Galvão e a publicação, pelo Senado Federal, do ABC das Alagoas de Francisco Reinaldo Amorim de Barros. São obras que, como diria o anti-retórico Gilberto Freyre, “atraem o adjetivo monumental”. O mesmo acontece com o Dicionário Temático de Lusofonia, editado recentemente em Lisboa por Texto Editores. Com suas 976 páginas, esta obra de referência é um verdadeiro monumento à lusofonia, palavra definida pelo Dicionário Houaiss como “conjunto daqueles que falam o português como língua materna ou não” e como “conjunto de países que têm o português como língua oficial ou dominante”. A palavra foi evidentemente decalcada da anterior francofonia, tendo, entretanto, um significado geográfica e culturalmente mais abrangente, como mostra seu organograma temático (em Portugal se diz e escreve organigrama), que abrange trinta e uma matérias, cada uma delas subdivididas pelos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Esta obra utilíssima e oportuna foi concebida, em 1980, pelo professor Fernando Alves Cristóvão, então presidente do Instituto de Cultura e Língua Portugue-

Otto Maria Carpeaux considerava que a admiração podia conduzir à crítica severa. Acima, a capa do livro em foco

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Flávio Gadelha

LÍNGUAS

Gilberto Freyre é mencionado apenas en passant por Fernando Alves Cristóvão

o salmista, existem limites em toda perfeição humana (Salmo 119, versículo 96), o que me permite fazer os seguintes reparos ao Dicionário Temático da Lusofonia. Omissões existem em qualquer obra do porte desta. Mas algumas são injustificáveis e, por isso, ouso apontá-las. Embora o Dicionário seja temático, alguns verbetes são onomásticos, como os referentes a poetas e prosadores dos oito países lusófonos. São dez os brasileiros contemplados com verbetes específicos: Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, Clarice Lispector, Érico Veríssimo, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jorge Amado, José de Alencar, Machado de Assis e Tomás António Gonzaga (António acentuado à maneira portuguesa). É injustificável a omissão de poetas como Cecília Meireles e Manuel Bandeira, tanto quanto de romancistas como Mário de Andrade e José Lins do Rego. Cecília Meireles e Manuel Bandeira eram rasgadamente lusófonos. O segundo livro de Cecília – Viagem (1939) foi editado em Lisboa. No primeiro livro de Bandeira – A Cinza das Horas (1917) – há dois belos sonetos dedicados a Camões e Antônio Nobre. E no Mafuá do

Malungo (1954) aparece o poema “Portugal, meu avozinho”, musicado por Ary Barroso. Manuel Bandeira foi grande conhecedor da nossa língua e a ela se refere na última estrofe do soneto “A Camões”: "Não morrerá sem poetas nem soldados A língua em que cantaste rudemente As armas e os barões assinalados". É verdade que Mário de Andrade errou ao tentar usar em seus livros a inexistente língua brasileira. Mas não nos esqueçamos de que foi ele quem planejou e organizou, no Rio de Janeiro dos anos 30, o Congresso da Língua Nacional Cantada, cujo objetivo era “fixar a pronúncia padrão usada no teatro dramático e no canto do Brasil”. A “rapsódia” Macunaíma (1928) foi um experimento lingüístico tão importante como o da posterior ficção de Guimarães Rosa. Quanto a José Lins do Rego, a pergunta que faço é a seguinte: se Érico Veríssimo foi verbetizado como renovador do romance gaúcho, por que omitir o grande renovador do romance nordestino?

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Reprodução

É injustificável a omissão de poetas como Cecília Meireles (foto) e Manuel Bandeira, que eram rasgadamente lusófonos

Gilberto Freyre é muito citado por Adriano Moreira no verbete Luso-tropicalismo (p. 657-661) e mencionado apenas en passant por Fernando Alves Cristóvão no verbete Lusofonia (p. 652-656). Mas tanto Adriano Moreira como Fernando Alves Cristóvão esqueceram que o autor de O luso e o Trópico (1961) foi, depois de Sílvio Romero, quem primeiro surgeriu a união de países lusófonos, como prova sua conferência de 1941, Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira, publicada no mesmo ano em opúsculo que tem duas outras edições brasileiras e foi reproduzido na edição portuguesa do livro O Mundo que o Português Criou. Naquele “ano terrível” de 1940, quando a Alemanha nazista ameaçava dominar o mundo, Gilberto Freyre tece a coragem de denunciar “a nenhuma base científica dos mitos de raças superiores ou raças puras, hoje proclamados com ênfase das torres de propaganda política dos partidos racistas da Europa”. E na mesma conferência refere-se à contribuição brasileira “para o futuro mundo da fala e de sentimento português, para o futuro mundo lusoafro-brasileiro de religião católica ou de comportamento cristão que hoje formamos, constituído numa espé-

cie de federação espontânea, brasileiros e portugueses da Europa, da África, da Ásia e das ilhas” (p. 10-11): e sugere, mais adiante, que os povos lusófonos deviam se prolongar “num tipo de sociedade e de cultura que é, sob mais de um aspecto objetivo – quase susceptível de ser medido para efeitos de comparação sociológica –, a expressão mais alta da ética cristã aplicada à organização social das nações”. Evidentemente não são estes pequenos reparos que diminuem a importância do Dicionário Temático de Lusofonia, obra oportuna e utilíssima para o conhecimento dos oito países lusófonos: sua antropologia, seus arquivos, bibliotecas e centros de documentação, sua arte, suas capitais, sua comunicação social, seus desportos, seu direito, sua economia, sua produção bibliográfica, seu ensino e suas pesquisas, seus espetáculos, suas forças armadas, sua gastronomia, sua geografia, sua história, suas instituições, suas línguas nativas, sua literatura, seu folclore, seus problemas migratórios e movimentos sociais, sua música, suas ONGs, sua organização políticopartidária, seu patrimônio histórico, suas religiões, sua saúde e proteção social, seu turismo e suas viagens. JAN 2008 • Continente x

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Festival realizado em Chã de Camará, Aliança, mistura sons locais e cultura popular aos sotaques do pop e bossa nova e à reflexão sobre o fazer cultural da Zona da Mata Norte Maria Alice Amorim

Canavial celebra as trocas culturais

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Fotos: Hans Manteuffel/Divulgação

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O Cavalo Marinho do Mestre Batista fez as honras da casa, em Chã de Camará

e o mestre Batista estivesse vivo, certamente gostaria muito de ver o terreiro cheio. Ele, o fundador de cavalo-marinho e maracatu rural no Sítio Chã de Camará, nos anos 50 e 60, sabia dar importância a brincadeiras que hoje subiram a um pedestal de espetáculo cult. Certamente o que o mestre Batista não gostaria de constatar hoje é que a pobreza cada vez mais se aprofunda na Zona da Mata – região da decadente indústria açucareira –, o que andou provocando períodos de quase total recolhimento dos folguedos tradicionais daquela localidade. Entretanto, apesar dos apuros financeiros, com muito gosto e esforços contínuos dos moradores e do filho Lourenço, os viventes daquela chã vêm dando seguimento aos brinquedos ali inaugurados, diante da casa-grande construída em 1930 e que compõe elegantemente a paisagem nua de atrativos urbanos. Ali, um grande mestre sambador, o respeitável Zé Duda, desde 1969 desfia versos arquitetados com sabedoria e sensibilidade poética. Ali, a ciência da jurema e do candomblé bota a brincadeira para a frente, em ritos que o Pai Mário Lopes e outros iniciados bem compreendem. Situada no percurso entre Aliança e Goiana, e num cenário aparentemente despido de chamariz para quem passa diante do casarão, quando circula pela rodovia PE-62, nesse cenário a 75 quilômetros do Recife a comunidade de Chã de Camará fincou os pés e ergue altiva a cabeça para mostrar, com dignidade, o manancial de cultura em que se banha. Após uns anos de certo marasmo decorrente da retração socioeconômica, os folgazões de Chã de Camará têm vivido dias melhores com a instalação, em 2005, do Ponto de Cultura Estrela de Ouro, sob a presidência de José Lourenço da Silva, o herdeiro e sucessor de Severino Lourenço da Silva, o memorável mestre Batista. Nesses dois últimos anos, o sítio vem angariando meios de se sustentar financeiramente como ambiente de fomento artístico-cultural e tem visto a poeira levantar mensalmente como protagonista e cenário propício a apresentações das brincadeiras locais e mais outras vindas dos arredores e cidades pernambucanas, circunvizinhas ou não. Entendam-se por brincadeiras locais as que foram criadas pelo mestre e, depois, pelo filho José Lourenço: o cavalo-marinho Mestre Batista (setembro de 1950), o maracatu rural Estrela de Ouro (1º de janeiro de 1966), o Coco Popular de Aliança e a ciranda Rosa de Ouro (ambos de junho de 1998). O boi Camará, fundado JAN 2008 • Continente x

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em 2006, já é decorrente da instalação do ponto de cultura. No último sábado de cada mês, a festa de terreiro é uma celebração liderada pelos brincantes de Camará. Na articulação dos folguedos, do restauro do imóvel da família Batista e da possibilidade de construção de nova sede, a presença de Lourenço tem sido plena, além de partilhada com os pesquisadores e produtores – Valéria Vicente, Afonso Oliveira, Severino Vicente –, a quem se deve a elaboração de projetos para a conquista do ponto de cultura e para obtenção de financiamentos públicos em favor da comunidade. Entre as atividades propostas, um festival, itinerante, tem acontecido a cada ano, desde 2006: o Festival Canavial. Desdobramento da festa de terreiro, a itinerância começou em Nazaré da Mata e, em 2007, se desenrolou justamente no terreiro de Chã de Camará. Entre o fim de novembro e início de dezembro, foram seis dias de intensa programação, com oficinas, seminários, projeção de filmes, atrações musicais, folguedos e danças populares. Artistas, jornalistas, pesquisadores, poetas, fotógrafos, daqui e de outros estados, ficaram encantados com o vigor cultural da Zona da Mata, naquele momento posto em vitrine, mas não imune a interessantes e incontornáveis trocas culturais produzidas no ambiente festivo. Quem foi ao evento, pôde conferir de muito perto desde folguedos tradicionais até mulatas naqueles trajes de “mulata-de-escola-de-samba-requebrando-na-passarela”. Para quem defende as tradições nas suas formas “mais puras” e supostamente não contaminadas pelo pulsar do tempo-espaço, ver o requebro carioca pode ter soado como um tremendo despropósito. Mas, se o foco não é dos puristas e é igualmente de quem sempre vê de longe, pela televisão, e com olhos gulosos, o que é que a sambista tem, pode-se considerar realmente imprescindível parte do show esta exibição meio fora de harmonia quanto às vozes senhoriais da Velha Guarda da Mangueira. Com o ritmo e poesia dos sambas de Chico Buarque e Cartola, a ala dos antigos também apresentou o enredo do carnaval de 2008, cujo tema homenageia os cem anos do frevo pernambucano. O interessante nessa mistura de vozes e culturas é pensar o quanto a comunidade deve ter ficado satisfeita com a chance de conferir a dança e a música de variados sotaques e tons. E não foi pouca a diversão, nem a qualidade do que foi exibido: privilegiados puderam conferir de perto o virtuosismo de Spok e Marcos César em impecável repertório de chorinho, a pesquisa e a sensibilidade da performance autoral de Alessandra Leão, a bossa nova interpretada pela cantora e compositora mineira Ana Cristina, o contagiante forró pé-de-serra de Vanildo de Pombos, entre várias outras atrações. O terreiro brilhou com as lantejoulas e miçangas de manifestações tradicionais da região. Além dos vistosos

O maracatu de baque solto é o principal símbolo da cultura da Mata Norte Abaixo, a Velha Guarda da Mangueira

caboclinhos e maracatus, as Pretinhas do Congo, do baldo do rio, Goiana, mostraram, com maracás e tambores, o imbricamento das antigas coroações de reis de congo com rituais de pajelança e candomblé. É evidente a relação que trazem as pretinhas com os maracatus, cambindas e a extinta brincadeira da Aruenda, teia que abriga um conjunto de folguedos vinculados às culturas afras. Os caboclinhos Sete Flexas e Tapuia Canindé, ambos da vizinha Goiana, e que foram vistos no terreiro festivo, são indicadores da riqueza e diversidade da região, portadores de sotaque diferenciado dos brinquedos similares da Região Metropolitana do Recife. Os maracatus de baque solto, o mais respeitado símbolo da identidade cultural da Mata Norte, desfilaram

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O Mestre Salu participou da última edição do Festival Canavial

versos e coreografias naquele que é um dos lugares considerados “típicos” para se ver caboclo de lança, em meio às plantações de cana-de-açúcar. E os mestres não deixaram por menos, a exemplo do aclamado João Paulo, que cantou numa linguagem bastante compreensível pelos companheiros de labuta diária: “os calos da minha mão / provam que fui camponês”.

Ana Cristina e o Caboclinho Sete Flexas (abaixo) também tiveram espaço em Aliança

Se as palavras “raízes”, “identidade”, “pertencimento” andam na ponta da língua em todos os debates de brincantes e especialistas, não foi diferente nas conversas promovidas em Aliança, durante o festival. Cultura e violência, cultura e turismo, política cultural para a região: “integração, convergências, debates” foram proposições oferecidas pelos coordenadores do evento, episódio integrante de ações mais amplas, como a prevista criação do Centro Cultural Chã de Camará, onde já funciona o ponto mantido pelo Ministério da Cultura (MinC). Produtos do estúdio de gravação instalado na casa-grande do sítio, três discos estão sendo finalizados: um do Coco Popular de Aliança; outro do caboclinho Sete Flexas, do mestre Nelson, de Goiana e mais um do Maracatu Coração Nazareno, grupo feminino formado por integrantes da Associação de Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam), inclusive a poeta tiradora de loas, a mestra Gil. A biblioteca, que funciona desde 2005, tem recebido leitores, entre os quais recém-alfabetizados lá mesmo. O projeto Griô, também do MinC, remunera seis mestres de cultura popular envolvidos com os brinquedos da Chã. Em meio a eventos, a episódios esparsos, ao culto à indústria do entretenimento, e, sobretudo, em meio à hipnotizante sociedade do espetáculo, desnecessário dizer que só os projetos estruturadores, que funcionem em rede, têm condições de permanecer. E, considerando necessária a poesia ao mundo, é sempre preciso eleger prioridades e dizer, como versou o mestre Zé Duda: “só canto coisa que presta”. JAN 2008 • Continente x

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Divulgação

n TEATRO

Janeiro é o mês dos grandes espetáculos Comemorando sua 14ª edição, o projeto Janeiro de Grandes Espetáculos conta com mais de 40 atrações na programação, entre produções pernambucanas e convidados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal e Portugal, além de oficinas e palestras. Em pleno período de férias, o projeto reflete em sua programação o que de mais significativo foi produzido pelo Estado, no ano anterior, nas áreas de teatro e dança, e, ao fim do evento, premia aqueles que mais se destacaram em sua categoria. As apresentações se distribuem pelos teatros Apolo, Parque, Hermilo Borba Filho, Valdemar de Oliveira, Armazém e Santa Isabel. Nesta edição, as homenagens são para nossos dois grupos teatrais há mais tempo em atividade: o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP), desde 1941; e o Teatro Experimental de Arte (TEA), desde 1962. Carol Pires/Divulgação

Cena da peça Caosmopolita

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Janeiro de Grandes Espetáculos De 9 a 23 de janeiro www.janeirodegrandesespetaculos.com Informações: 81.3423.3186

Selton Mello vive João Estrella no filme Meu Nome Não é Johnny

n CINEMA

n ESPETÁCULO

Livro-reportagem ganha adaptação

O Pastoril profano do Véio Mangaba

Meu Nome Não é Johnny está em cartaz desde 4 de janeiro. Baseado no livro-reportagem de Guilherme Fiúza, o filme narra a ascensão, apogeu e queda de João Estrella (Selton Mello), rei do tráfico da zona sul do Rio durante a virada dos anos 80/90. Jovem e inconseqüente, Estrella é retratado como filho da classe média que, sem deixar a vida boêmia, passa a vender cocaína em quantidades cada vez maiores. Capturado em flagrante, toma consciência da situação após viver um inferno na prisão e num manicômio judiciário. Apesar do ranço novelesco e do aspecto pasteurizado das produções Globo Filmes, a incomum trajetória de Estrella, aliada à trilha sonora de clássicos do rock oitentista e a boa atuação de Selton Mello garantem satisfatória experiência cinematográfica.(AD)

Ainda no clima natalino, o Teatro Santa Isabel recebe, nos primeiros dias do ano, o musical Pastoril do Véio Mangaba. A montagem, com direção de Romildo Moreira e roteiro em pareceria com Walmir Chagas, leva aos palcos a disputa entre os cordões azul e encarnado, protagonizada pelas pastoras que cantam e dançam exibindo toda a sua sensualidade e pelo véio, que coordena tudo com a irreverência e a sátira próprias do pastoril profano. A trilha sonora, composta por cocos, baiões e maxixes, é executada ao vivo, por nove músicos sob a regência de Beto do Bandolin. Estão no elenco, além do próprio Walmir Chagas, Mário Miranda, Maria Oliveira, Regina Carmen, Cláudia Bessa, entre outros.

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Meu Nome Não É Johnny Em cartaz www.meunomenaoejohnnyfilme.com.br

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Pastoril do Véio Mangaba 4 a 6 de janeiro, às 20h Teatro Santa Isabel Informações: 81.3421.8456

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n DANÇA

n INSCRIÇÕES

Oferecer recursos de aperfeiçoamento aos artistas da dança do Recife. Esse é o principal propósito do projeto ReciclArte do Grupo Experimental, que este ano chega à sua terceira edição. A bailarina carioca Cláudia Muller abre a programação do projeto ministrando a oficina Corpos, Poéticas e Políticas, voltada prioritariamente aos artistas ou estudantes de arte. No dia 12, os alunos farão apresentação pública dos resultados, realizando algumas performances e intervenções urbanas. Também participa do evento a crítica de dança do jornal O Estado de São Paulo, professora do curso Comunicação das Artes do Corpo (PUC-SP), Helena Katz, ministrando o seminário, gratuito e com vagas limitadas, Projeto, processo e criação em dança: revendo a lógica da modernidade. Na ocasião, Helena Katz aproveita para lançar o livro Um, dois, três. A dança é o pensamento do corpo, resultado da sua tese de doutorado na PUC-SP. (CG)

O Cine-Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, que se realizará entre 10 e 17 de abril, está com inscrições abertas para a Mostra Competitiva Ibero-Americana de LongaMetragem e para a Competitiva Brasileira de Curta-Metragem. Os interessados devem preencher ficha de inscrição disponível no site e enviar para a Associação Cultural Cine-Ceará até 15 de fevereiro. O resultado será divulgado em 24 de março.

Grupo experimental promove o ReciclArte

Divulgação

A pesquisadora Helena Katz

Leandro Amaral/Divulgação

Cine-Ceará com inscrições abertas O gaitista Jefferson Gonçalves é presença confirmada em Guaramiranga

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Inscrições Cine-Ceará Até 15 de fevereiro www.cineceara.com.br

n LANÇAMENTO

n MÚSICA

Livro sobre o frevo publicado em braille

Jazz e Blues em Guaramiranga

A bailarina, coreógrafa e professora de frevo Mariangela Valença lança, este mês, o livro Aula-Espetáculo: 100 Anos de Frevo, dedicado ao público infantil, elaborado a partir de sua experiência e sua trajetória nesse universo. Além de ser a primeira publicação enfocando o caráter histórico do frevo para as crianças, a obra será lançada inicialmente em braille, caracterizando-se como o primeiro registro já feito sobre o frevo em Braille. A publicação faz parte de um projeto maior de divulgação e ensino do frevo que a autora vem desenvolvendo há cinco anos, que inclui também a vídeoaula Aprenda Frevo, de 2002.

A cada carnaval, uma pequena cidade serrana do Ceará atrai o dobro de sua população para uma festa regada a jazz e blues. Entre 2 e 5 de fevereiro, o 9º Festival Jazz&Blues promoverá shows, ensaios abertos e oficinas em Guaramiranga, um recanto a 100 quilômetros de Fortaleza. Desde o ano 2000, já se apresentaram no teatro de lá nomes consagrados e novos talentos, como João Donato, Pedro Aznar, Scott Henderson, Stanley Jordan, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Danilo Caymmi e Renato Borghetti. Este ano, o trio senegalês Les Frères Guissé, o compositor Ivan Lins e o gaitista Jefferson Gonçalves são presenças confirmadas. (André Dib)

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ReciclArte De 8 a 18 de janeiro Inscrições: 81. 32241482 grupoexperimental@ig.com.br

Lançamento Aula-Espetáculo: 100 Anos de Frevo De Mariangela Valença 10 de janeiro Livraria Cultura, às 10h

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9º Festival Jazz&Blues De 2 a 5 de fevereiro www.jazzeblues.com.br JAN 2008 • Continente

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JORNALISMO

Geneton Moraes Neto reúne grandes reportagens e entrevistas de relevância histórica em um livro que é uma aula de jornalismo Renato Lima Fotos: Divulgação

O repórter Geneton Moraes Neto

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epórter. Carreira inicial do jornalismo. Depois o profissional pode “subir” para editor ou até mesmo diretor de uma redação. Mas bom mesmo é ser repórter: ter o contato com a notícia e com os personagens que vivenciaram fatos importantes. Ser, ao trazer à tona informações escondidas, personagem da própria história. Geneton Moraes Neto é desses profissionais que sobem na carreira jornalística, mas se orgulham mesmo é de ser repórter. E acaba de lançar mais uma obra reunindo reportagens, o Dossiê História. Lá está um jornalista que entrevistou Bin Laden nas montanhas do Afeganistão, o professor, a tradutora e um amigo de Mohammed Atta, terrorista do 11 de setembro, um ideólogo islâmico que prega a justiça do uso de homens-bombas e um policial que participou da fracassada operação de resgate de atletas israelenses nas Olimpíadas de 1972, em Munique. Mas não só do atual choque de civilizações é feito o livro. Há também entrevistas com um alemão que abomina tudo o que o pai fez durante a 2ª Guerra, uma sobrinha que descobriu no inocente tio o passado de médico nazista que mandava crianças à morte e o depoimento de um ex-soldado nazista que fala dos horrores que cometeu e acreditava. E ainda, como brinde, uma conversa com Carl Bernstein, jornalista do Washington Post responsável pelo furo do Watergate, que derrubou o presidente Richard Nixon. As entrevistas foram quase todas gravadas em fevereiro de 2007. Estão fresquinhas. Apesar da aparente falta de unidade do livro, é possível conectar os personagens pelos temas de fanatismo, guerra

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Na seqüência algumas das entrevistas realizadas por Geneton Moraes Neto: Abdel Bari Atwan, Henry Metelmann, Carl Bernstein, Mireille Horsinga-Renno e Niklas Frank e decepção. Dessa forma, o “Dossiê” deixa de ser um amontoado de entrevistas com personagens interessantes para ter um sentido totalizador. É o próprio horror da guerra e da intolerância que se constrói através dos relatos de determinados entrevistados. E o contraste com a defesa, disfarçada, justificada, mas não menos presente, do radicalismo islâmico. As mesmas certezas que guiaram o soldado Henry Metelmann, que concedeu a entrevista aos 85 anos e ainda hoje vive perturbado pelas lembranças da guerra, eram compartilhadas pelo então estudante de arquitetura Mohammed Atha, que estudou na Alemanha e depois seguiu aos Estados Unidos para aprender a pilotar e participar do ato terrorista do 11 de setembro. O tempo era outro e a causa também. Mas a crença na superioridade e na razão do extermínio do diferente, a mesma. “...meu pensamento original era, sim, que não apenas queríamos conquistar o mundo, mas tínhamos esse direito, como uma espécie de povo escolhido por deus”, recorda Metelmann. Pois os radicais vêem uma afronta no diferente modo de vida de ocidentais e se acham no direito de infligir “lições”. Azzam Tamimi, diretor do Instituto do Pensamento Político, confortavelmente situado em Londres,

deu uma entrevista publicada no livro. Lá, ele defende homens-bombas e apenas lamenta que, o ataque de 11 de setembro, tenha atingido mais inocentes do que culpados. “É uma bobagem morrer por um país. Em vez de morrer por um país, o que se deve fazer é lutar pela humanidade”, prega hoje o ex-soldado nazista, numa importante lição de quem já foi cheio de certezas e também adorava líderes, como Hitler e Goering. O fato de ser um produto embalado e comercializado pelo selo Fantástico atrapalha. Um título meio exagerado e uma diagramação por vezes embaralhada faz lembrar que é um livro derivado do programa que tem Cid Moreira como narrador. Aquele que usa a mesma entonação para falar de dramas de ex-nazistas às técnicas de Mister M. Mas Dossiê História é muito superior ao meramente caçaníquel Dossiê Brasília - Os segredos dos Presidentes, também um subproduto de entrevistas de Geneton para o Fantástico. Ali, francamente, não havia segredo que resultasse em Dossiê História Geneton Moraes Neto Editora Globo 312 páginas R$ 29,90

mais do que um parágrafo. O bom repórter não consegue tirar leite de pedra ou transformar chumbo em ouro. Nem ninguém. Ponto alto deste trabalho de Geneton é a descrição do processo de reportagem. Da procura do personagem ideal que participou de um fato importante da história. O bater numa porta, receber um não, insistir, a busca, como sempre lembra Carl Bernstein, da melhor versão possível da verdade. E aí fica clara a distância entre o bom jornalismo e o trabalho de Abdel Bari Atwan, o jornalista que se gaba de ser considerado confiável por Osama Bin Laden e é o primeiro entrevistado do livro. Na profissão, é sempre importante o distanciamento. Atwan, que foi até as cavernas bater um papo com Bin Laden, diz que é o único que não chamaria o líder da Al Qaeda de terrorista, exalta sua simplicidade e o compara a Buda e Mahatma Ghandi, apenas numa versão violenta. Não por acaso, Geneton Moraes Neto termina o livro lembrando as críticas de Carl Bernstein ao jornalismo engajado e enfatizando a importância de não perder a capacidade de ser sempre surpreendido. “Porque a capacidade de olhar para os fatos da vida como se estivessem vendo tudo pela primeira vez é o que distingue jornalistas puro-sangue de jornalistas burocratas”. JAN 2008 • Continente x

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metrópole

Marcella Sampaio

De afetos e felicidades

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Mariana Oliveira

este mundo cheio de modernidades, relações virtuais, contatos rápidos e efêmeros, gente que não faz amizade e sim networking, pessoas que não se encontram, mas estabelecem contratos nupciais, fiquei tão encantada quando, por intermédio de um amigo, descobri um cavaleiro de capa e espada que vive por aqui, em terras pernambucanas. Romântico talvez não seja a palavra mais adequada para descrevê-lo, porque parece que limita seu olhar em relação à vida às coisas do coração. Mesmo assim, só pode ser muito especial (e romântico) alguém que fala de amor assim: “Vou escrever na porta de casa entre, e dentro vou escrever não saia. Te amo nas bordas das saias mais distantes, nos teus dias de infância, na mais remota lembrança, contra a minha consciência e dentro de alguma certeza que nunca invoquei. Te amo a caminho de casa, nos meus dias vesgos, nas tuas mãos abertas, te dou meu coração como quem entrega o corpo no último ensaio, mesmo sem platéia.” É lindo demais o livro de Samarone Lima. Chama-se Estuário – Crônicas do Recife, e foi editado pela Bagaço em 2006. Conhecia o jornalista Samarone de ouvir falar, através de pessoas amigas que são também amigas dele, mas, por uma coisa ou por outra, nunca tinha lido nenhum dos seus textos. No meu último aniversário, dia desses, ganhei de presente o livro, que me impactou. Fiquei lendo as palavras ali escritas, todos os dias um pouquinho, para não gastar tudo de uma vez só. A sensação foi de ir, devagar, desligando o piloto automático, de alegria em descobrir que não existe uma só maneira de viver a vida, de entender que os seres humanos têm, sim, salvação. Os textos são de uma ternura morna, e lhe acolhem naqueles momentos em que você fica em dúvida sobre o que é realmente importante. Falam do Recife, mas não esse que a gente vê todos os dias nos jornais. A cidade de Samarone é muitíssimo mais bonita, tem muito mais pessoas e lugares interessantes do que imaginamos, enquanto estamos mergulhados

na correria cotidiana. O livro é convite, um convite para viver melhor, sem desperdiçar o tempo achando que ele conspira contra nós, sem deixar passar a oportunidade de viver plenamente os afetos (palavra querida do autor, que eu também gosto demais). Além dos carinhos vividos pelo próprio Samarone ou por pessoas próximas (às vezes, desconhecidos que ele encontra pelo caminho), das reflexões sobre sentimentos e sensações, as crônicas remetem a coisas tão nossas, que é impossível não se identificar com elas, principalmente os que, como eu, viveram a vida sempre do lado norte da cidade – esse povo, que só sabe o caminho do shopping e da praia, e se perde naquelas ruas cheias de contramão de Boa Viagem e adjacências. Falam (as crônicas) do Santa Cruz, do carnaval, do Poço da Panela (foto), dos mercados e da gente boa que transita nesses espaços. Mesmo quando uma certa melancolia parece tomar conta da história, o desfecho é iluminado. Adoro quando as gentes sabem buscar a felicidade sem fazer desse caminho uma coisa espinhosa, sofrida. Quem já viu? Querer ser feliz sofrendo? Aquela felicidadezinha medíocre, que acontece quando a gente compra uma roupa nova, bebe um vinho daqueles bem bons, brinca de Barbie com as filhas, vai à praia com um monte de amigos ou descobre que está se apaixonando e é correspondido, essa é que está ao nosso alcance. Samarone, não sei se consciente ou inconscientemente, escreve para quem não tem vocação para o drama. Ninguém precisa mudar a história da humanidade para ser importante. “Tenho uma paixão pelo cotidiano, e acho que isso ajuda muito a valorizar a tal felicidade. Não sou muito de esperar coisas espetaculares, heroísmos, momentos bombásticos e arrebatadores. Felicidade não se escreve com letras maiúsculas”, diz, com sabedoria, o cavaleiro. Em todos os seus escritos, deixa uma dedicatória. Acho muito justo. Esse texto é para você, querido, amigo que não conheço, mas já faz parte da minha vida. Com carinho, Marcella.

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HUMOR Imagens: Reprodução

Cerimônia do beija-mão no Palácio de Cristóvão, Rio de Janeiro, por A.P.D.G. (1826)

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família real escapou de Napoleão, mas não se livrou dos cartunistas. Logo no embarque, o príncipe regente seria vítima dos seu reais vassalos que ficaram para trás. O fato está relatado no primeiro volume de A História da Caricatura no Brasil, de Herman Lima: "Enquanto historiadores graves, pintores famosos, poetas célebres, escultores distintos e inspirados músicos celebravam os dotes do senhor D. João VI, as bondades e virtudes do príncipe fugido para o Brasil num êxodo realengo e cortesanesco, diante dos franceses invasores, aparecia nos muros da Bemposta uma caricatura – uma das mais antigas de Portugal – em que o marido de Carlota Joaquina aparece de pernas tortas, barriga saliente, a cabeça com apêndices do demônio numa caraça de ruminante de cuja boca saía uma frase caracterizadora e uma alusão aos 200 milhões de cruzados que se dizia tinham ido na armada com a corte acobardada e foragida", segundo a narrativa do historiador Rocha Martins. Na imprensa, o primeiro registro do que se conhece por humor gráfico retratando a presença da família real no Brasil é de 1826, no álbum intitulado Sketches of portuguese life, manners, costume and character (Esboços da vida, das maneiras, dos costumes e do caráter portugueses), assinado por A.P.D.G. e publicado em Londres. Segundo o pesquisador Octavio Aragão, “ali encontram-se gravuras relativas ao Rio de Janeiro com cenas da corte, comércio de escravos e festas". A caricatura brasileira durante o Império, no entanto, só ganharia expressão com D. Pedro II. O imperador, apesar de suas posições progressistas, virou alvo predileto dos humoristas. Um dos pioneiros do traço foi Ângelo Agostini (1843-1910), nas páginas da Vida Fluminense, revista carioca publicada de 1868 a 1876. A crítica de costumes predominou como mote dos cartunistas até a intensificação das lutas pela abolição da escravatura. “A partir de 1871, ano da Lei do Ventre Livre, cresceu a percepção de que D. Pedro II não era apenas um inocente útil nas mãos de políticos inescrupulosos”, segundo a análise de Octavio Aragão. Os chargistas, até então contidos nas ironias, passaram a carregar nas tintas e nas críticas às posições do imperador. Além de Agostini, Pedro II ainda foi alvo de um outro grande expoente do período, o português Raphael Bordallo Ângelo Agostini. pioneiro Pinheiro (1864-1905). (RM)

“Na cidade de Lisboa D. João de Portugal Bravo príncipe regente Glorioso e valente Era orgulho nacional Um fantasma sobrevoa Os gauleses vão à guerra João teve de escolher Se ficar posso perder Ou sou França ou Inglaterra Foi para o Brasil O reino juntar Mas não resistiu 'Eu quero é sambar'!” Letra do samba “O bravo D. João e o povão caíram na folia no Campo da Aclamação: é carnaval no Arquivo Nacional” , do bloco Libertos do Arquivo para o Carnaval de 2008.

“Essa coisa de fazer festa em torno de D. João VI é armação de carioca para promover o Rio.” Do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, atravessando o samba dos monarquistas e festeiros de plantão, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.

“Não corram tanto, ou pensarão que estamos fugindo.” Frase atribuída à rainha d. Maria I, na fuga apressada diante da invasão francesa.

“O quinto dos infernos!” Expressão que teria sido proferida pela então princesa Carlota Joaquina, a espanhola que se casou com D. João VI, ao se referir à terra que ela não fazia a mínima questão de conhecer.

“Meu reino por um sorvete!” Proposta que teria sido feita pelo príncipe regente nos corredores do Paço do Rio de Janeiro, naquele verão de 1808.

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Kleber Sales

Ô Carlota, ele ainda está lá?

Jarbas

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HUMOR

Ronaldo

“Preferindo abandonar a Europa, D. João procedeu com exato conhecimento de si mesmo (...) Sabendose incapaz de heroísmo, escolheu a solução pacífica de encabeçar o êxodo e procurar no morno torpor dos trópicos a tranqüilidade ou o ócio para que nasceu.” Tobias Monteiro, autor de História do Império: O Primeiro Reinado

Clériston

“A mulher era quase horrenda, ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas de bexiga ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena quase anã, claudicante (…) uma alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem escrúpulos, com os impulsos do sexo alvoroçados.” Octávio Tarquínio de Sousa, em História dos Fundadores do Império do Brasil.

“É positiva a recuperação das imagens de D. João VI e de Carlota Joaquina e seu resgate em relação às abordagens caricatas do tipo exibido no filme de Carla Camurati, (Carlota Joaquina - Princesa do Brazil, 1995)” José Murilo de Carvalho, historiador, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo

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Laílson

Miguel

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Kรกcio

Samuca

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