Continente #086 - Rap rep

Page 1


Anúncio


Tradição e renovação

Zenival

aos leitores

O

conflito entre tradição e renovação na cultura é desses temas recorrentes, no qual a formulação teórica é mais fácil de se impor do que a práxis. Que a cultura é dinâmica, todos sabem. Que é importante preservar a tradição, a maioria concorda. Que a renovação é essencial para evitar uma necrose anunciada é quase um truísmo. O problema é a dosagem. Dialeticamente, a tradicional equação tradição x renovação talvez deva ser vista com um sinal diferente: tradição + renovação. Quando alcançam isso, as culturas se fortalecem, mantendo os alicerces sobre os quais se erguem e acrescentando soluções criativas para os desafios da contemporaneidade e da globalização. Esse tema meio esotérico vem a calhar quando descobrimos que, sem muito alarde, um diálogo quase impensável vem colocando nos mesmos palcos, em várias partes do Brasil e com ênfase neste Pernambuco tão cioso da tradição e tão experimental ao mesmo tempo, dois registros poéticos aparentemente inconciliáveis: a cantoria de viola e o hip-hop. De comum, têm o caráter de improviso de seus versos e a intenção de retratar a realidade em que estão inseridos. A cantoria, cuja fonte é o Sertão mítico, vem se atualizando, mas mantendo-se ciosa da tradição e orgulhosa de sua condição de jóia da coroa da poesia popular. O rap, importado dos guetos negros norte-americanos, logo se vestiu da roupagem de nossas periferias, em forma e conteúdo. Em que esse contato vai dar, ainda é cedo para avaliar. Mas que alguma coisa nova está brotando, no terreno fértil do hibridismo que, no fim das contas, preside a própria constituição cultural brasileira, não parece haver dúvidas. É essa Confluência (nome da banda recifense onde tem ido mais longe essa miscigenação), entre o Repente e o Rap, o tema de capa desta edição. • Em matéria especial, esta edição também presta homenagem ao poeta Alberto da Cunha Melo, colunista desta revista desde o número zero e falecido no fim do ano passado. Num artigo clarificante sobre sua importância, o também poeta e professor de filosofia Ângelo Monteiro o situa como um poeta de sangue, em contraste com os poetas de mármore e de gesso. O crítico Hildeberto Barbosa, por sua vez, ressalta o elemento narrativo fortemente presente nos textos do pernambucano. E a professora de Literatura Ermelinda Ferreira faz uma seleção de alguns dos textos mais representativos da trajetória poética deste que já pode ser considerado um dos grandes nomes da literatura brasileira.

Editorial_1.indd 1

1/29/2008 4:26:12 PM


Edertone/Divulgação

O Corpo em imagem e palavra

Lia de Itamaracá vai à luta

Ricado Melo

Fábio Zanon executa obras inéditas e raras Lula Côrtes: uma vida inteira de arte Sueli Meireles/Divulgação

CONVERSA 6 >> Lia de Itamaracá quer incentivo real à cultura BALAIO 10 >> Um catálogo dos folhetos de cordel portugueses CAPA 12 >> Rep-Rap – o diálogo entre a cantoria e o hip-hop 19 >> Improviso une vertentes separadas pelo mercado LITERATURA 22 >> Em versos, a saga das revoluções pernambucanas 26 >> Poesia completa de Laurenio de Melo é relançada 30 >> Os acertos de um futurólogo francês do século 19 TESES 37 >> Estilos e visões de dois cronistas da marginalidade ESPECIAL 38 >> A poesia de sangue de Alberto da Cunha Melo 41 >> A narratividade como elemento essencial 44 >> A identidade do poeta em seus poemas 48 >> Agenda Livros

José Luiz Pederneiras/ Divulgação

CARNAVAL 50 >> Na festa de Momo Recife se torna outra cidade 56 >> Um extraterrestre no Carnaval de Olinda MÚSICA 58 >> O frevo experimental e o frevo tradicional 60 >> Fábio Zanon divulga obras inéditas e raras 64 >> O violão endiabrado de Nonato Luiz 68 >> Agenda Música ARTES 70 >> Elizângela Nascimento, a arquiteta das palafitas PERFIL 76 >> Lula Côrtes, alquimista dos sons, cores e palavras CÊNICAS 83 >> Livro analisa a trajetória do Grupo Corpo 83 >> Três Compassos excursiona pelo Nordeste AGENDÃO 90 >> Festival de Jazz no frio de Garanhuns CONJUNTURA 92 >> Indicadores orientam economia da cultura

2  Continente • FEV 2008

Sumario_2_3.indd 2

1/29/2008 4:27:19 PM


Hans Manteuffel

A mistura do hip-hop com o repente

As palafitas coloridas de Elizângela

BetâniaUchôa Cavalcanti-Brendle

Uma “cidade” que surge no Carnaval

Camila Leão

Arquivo d

ENTRE LINHAS 34 >> O lugar onde Cícero Dias criava a beleza

a família

COLUNAS

TRADUZIR-SE 74 >> A vegetação geométrica de Marília Kranz SABORES 80 >> O inesquecível cheiro dos doces no tacho METRÓPOLE 96 >> O corpo em evidência no século 21

ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELETRÔNICO www.continentemulticultural.com.br

Tributo ao poeta Alberto da Cunha Melo FEV 2008 • Continente 

Sumario_2_3.indd 3

3

1/29/2008 4:27:34 PM


Fevereiro 2008 – Ano 8 Capa: Montagem de Zenival sobre foto de Hans Manteuffel

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente

Flávio Chaves Diretor de Gestão

Bráulio Mendonça Meneses

Diretor Industrial

Reginaldo Bezerra Duarte

Conselho Editorial

Colaboradores desta edição:

Presidente: Flávio Chaves

ADRIANA DÓRIA MATOS é jornalista e professora. Mestra em Teoria da Literatura.

Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo

Diretor de Arte Ricardo Melo

Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira

Editor de Arte Luiz Arrais

Revisão Ayrton de Moraes

Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)

BRÁULIO TAVARES é escritor e roteirista de cinema e televisão.

CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico de música da Continente Multicultural.

CAVANI ROSAS é artista plástico.

Edição on-line Mariana Oliveira

CHRIS GALDINO é jornalista e crítica de dança.

DELMO MONTENEGRO é poeta.

ERMELINDA FERREIRA é professora e doutora em Literatura.

FERNANDO MONTEIRO é escritor e crítico cultural.

Estagiária Gabriela Lobo Gestor industrial Júlio Gonçalves

ÂNGELO MONTEIRO é poeta e professor de filosofia.

HILDEBERTO BARBOSA é escritor e crítico de literatura. Publicou o livro Às Horas Mortas,

Gestor comercial Gilberto Silva

entre outros.

Gerente comercial e marketing Rosana Galvão

ISABELLE CÂMARA é jornalista.

Produção Aluísio Ricardo, Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira

JOSÉ TELES é escritor e crítico de música.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br

KLAUS BRENDLE é arquiteto.

LUIZ CARLOS MONTEIRO é poeta e crítico literário.

MARCELO MÁRIO DE MELO é poeta e escritor.

OLÍVIA MINDÊLO é jornalista.

Colunistas: FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema Sujo, Dentro da

Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br

Noite Veloz, Muitas Vozes e Cultura Posta em Questão.

Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE

Palermo, entre outros.

Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora

LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a

universitária.

Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

4  Continente • FEV 2008

Expediente_Cartas_8_9.indd 4

1/29/2008 4:28:39 PM


cartas

Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

BEIJO PROIBIDO Fiquei abestalhado com a matéria “Depois daquele beijo” . Nem tanto pela atitude da cambojana tresloucada em tascar tamanho ósculo na tela imaculada do pintor vanguardista Cy Twombly e, sim pelo valor de mercado da “obra”, três telas em branco, avaliadas em dois milhões de euros.

ESPAÇO PARA O CARTUM Interessante o material sobre a vinda da corte de D. João VI ao Brasil, em forma de cartuns. Acho que a revista deveria ter um espaço permanente para cartunistas da terra e de outras plagas, que decerto enriqueceria visualmente a mesma.

Antonio Souto Bezerra, Recife-PE

Thiago Pinheiro, Recife - PE

A RELATIVIDADE DO BELO A propósito da nota "Jóia rara em embalagem ruim", sobre Olhos Baixos, de Maria Helena Nascimento, a Editora Guardachuva gostaria de manifestar sua satisfação pelo reconhecimento de seu acerto na parte mais fundamental e nobre do trabalho editorial, a prospecção de autores e títulos. Respeitando o juízo do autor da nota sobre a "embalagem" do livro como uma opinião pessoal, gostaríamos de observar que capas, orelhas e quartas capas, cuja principal missão é, como a própria nota enfatiza, "seduzir o leitor", jamais agradam a todos.

HUMOR HISTÓRICO Excelente a concepção da charge publicada por vocês na edição de Janeiro, de autoria de Samuca. Desde os tempos de D. João VI, a situação dos mais desfavorecidos parece que não mudou tanto quanto deveria!

Editora Guarda-Chuva, RJ

Maria Eduarda Lacerda, Recife-PE

NOTA DA REDAÇÃO Na edição de Setembro de 2007, a matéria que trata de HQ e Literatura informa que a adaptação de Morte e Vida Severina, de João Cabral, para quadrinhos, feita por Miguel Falcão, foi uma edição independente. Na verdade, a responsável pela publicação foi a Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco.

Revista n° 12, dezembro de 2001 Matéria: Um dilema chamado Brasil Homero Fonseca entrevista Roberto DaMatta

No Brasil, somos esquerdistas na rua, espaço onde lutamos pelo progresso sob qualquer ordem, somos cidadãos igualitários, feministas e igualitários, sobretudo com as mulheres e os empregados dos nossos inimigos. Mas em casa, no meio da família e com os empregados e amigos, somos patriarcais, reacionários . (...) Os intelectuais nacionais têm horror ao Brasil e abominam a chamada “cultura popular”. Se, como minha obra demonstra claramente, as coisas mais sérias do povo brasileiro são o jogo do bicho, a cachaça, o carnaval e o futebol, e se os nossos intelectuais sempre olharam para fora (ou, o que dá no mesmo, para dentro, com os óculos de fora), eles jamais poderiam estudar, filmar, pintar ou escrever sobre essas coisas! Como Marx e Derrida não falam em carnaval ou futebol, eles também não falam.

Roberto DaMatta, sociólogo

FEV 2008 • Continente 

Expediente_Cartas_8_9.indd 5

5

1/29/2008 4:28:44 PM


conversa

Lia de Itamaracá Itamaracá não tem indústria, uma coisa que puxe o dinheiro. Já que não tem isso, vamos jogar pra cima do turismo. Mas o que querem é botar é esse negócio de Calcinha Preta

Fotos: Ricardo Melo

A guerreira foi à luta

6 x Continente • FEV 2008

Conversa Lia_6_7_8_9.indd 6

1/29/2008 4:29:50 PM


Destaque da Mangueira no Carnaval de 2008 e com um novo CD na praça, a cirandeira, que é ponto de referência da Ilha em que mora há 64 anos, diz que se cansou de correr atrás de apoio para sua arte ENTREVISTA A Fábia Fragoso, Leni Coutinho e Sandra Ferreira

M

aria Madalena Correia do Nascimento, a Lia de Itamaracá, nascida na Ilha há 64 anos, é merendeira de uma escola estadual, e nas horas vagas faz da ciranda sua identidade. Lia descobriu a vocação de cantora aos doze anos. Mais tarde, passou a se apresentar em bares e festas da comunidade. Cabelos presos, camiseta, short jeans, pés grandes e descalços, ela nos recebeu formalmente, e só no decorrer na entrevista ficou à vontade para falar e abrir seu largo sorriso. Ao falar da atividade como artista, a cirandeira retoma o ar grave e diz que falta incentivo das políticas públicas na região, e não disfarça sua insatisfação: “Lá fora, as pessoas valorizam quando a gente canta”. Lia só se apresenta mediante cachê que varia de R$ mil a R$ 2 mil. Seu empresário, Beto Hees, é quem organiza a agenda de shows pelo Brasil e no exterior. O reconhecimento agora é sinônimo de remuneração condizente: “Só canto se rolar um dindim”, avisa a cantora, do alto de seu um metro e oitenta de estatura. A Petrobras é quem patrocina o CD de Lia, “Ciranda de Ritmos”, em fase final de edição e com lançamento previsto para este mês, em todo o Brasil. O Centro Cultural de Jaguaribe, do qual ela é co-proprietária, foi reaberto em janeiro, depois de lenta reforma. Lia de Itamaracá é uma das maiores estrelas da cultura popular de Pernambuco, e por isso foi convidada para ser destaque na Marquês de Sapucaí, no desfile da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira de 2008, em homenagem à cidade do Recife e aos 100 anos do frevo. A espectativa dela é a de que a exposição na mídia nacional se reverta em mais convites para shows. Questionada sobre se teria alguém que levaria adiante seu trabalho, ela diz que chegou a pensar na sua sobrinha Chica, “mas esta não quer saber de ciranda e só pensa em fazer doces”. FEV 2008 • Continente x

Conversa Lia_6_7_8_9.indd 7

7

1/29/2008 4:29:54 PM


Hoje eu posso me chamar de Lia, levantar minha cabeça, sair de peito erguido. Tenho meus trocadinhos no banco, vou e pego na hora que eu quiser

A senhora começou a gostar de cantar porque já tinha ciranda aqui em Itamaracá? Se tinha eu não alcancei. Tinha a Totinha, mas a coitada ficou aí sem ter patrocínio de ninguém, uma pessoa que ajude. Eu é porque sou guerreira e muito astuta, mesmo. Eu meto a cara e corro atrás. Mas se não fosse isso eu estaria num mato sem cachorro também. Dona Lia, por que cantar e dançar ciranda? Como é o espaço para a ciranda aqui em Itamaracá? Todo o meu sonho era cantar. E o que caiu com a ficha foi ciranda. Me perguntavam: “Lia, por que você não faz outro gênero de música?” Mas a gente canta maracatu, coco, ciranda. Estou até gravando um novo CD. Eu não paro, não. Eu estou no meio do mundo. Vou pra fora, para São Paulo, Rio, Brasília. Pra onde tem contrato eu vou. Pra Noronha já fui duas vezes. Em Santa Catarina fiz 15 shows em 15 dias. Mas eu já ralei muito pra ser Lia hoje. Falta incentivo? Demais. Olha: coco de roda, cavalo marinho, fandango não se vê mais. Pastoril infantil só em época de festa e olhe lá. Aqui já foi mais animado. Itamaracá não tem indústria, uma coisa que puxe o dinheiro. Já que não tem isso, vamos jogar pra cima do turismo. Entra muita gente na Ilha. Bota um negócio para esse povo ver. Mas o que querem botar é esse negócio de trio, Calcinha Preta, não sei o quê. No meu tempo não tinha isso, não. Tira, tira calcinha! (canta). O Espaço Cultural, foi a senhora quem bancou? Eu comprei com uns empresários

da Alemanha. Sozinha eu não podia comprar. Somos sócios. Já faz mais de uns três anos. Estou querendo ver o Estado é agora cair em frente e saber o que está faltando, o que se pode fazer. Eu não vou mais correr atrás de apoio. Já fiz muito isso. Já fiz muita coisa por Itamaracá de graça. Não faço mais não. Não tenho mais condições de fazer. Tem que pagar o som, funcionário da cozinha do bar. No Espaço Cultural recebe o pessoal do Pilar, os veranistas. Aqui tem muita casa de veranistas. Aqueles que vão para o Hotel Orange sempre perguntam, querem saber quando tem ciranda. Antes, ligavam de São Paulo para saber quando é que tinha ciranda. O Centro Cultural foi reaberto para o projeto Ciranda das Artes, que vai até março. No resto do ano recebe uma ajuda de R$ 700 da Petrobrás. Estou esperando há dois anos a aprovação pelo Ministério da Cultura do Projeto Ponto de Cultura. Dona Lia, e como é que surgiram estes convites para sair de Itamaracá e se apresentar lá fora? O meu produtor é um empresário que tem muito conhecimento lá fora. Ele é da Alemanha. Foi também quem produziu o CD da Selma do Coco. Canto nas praças, nas universidades, em clubes. Já cantei até em porta de igreja. O padre até me disse: “Dona Lia, danou-se! Mas isso é muita zoada, não?” As dificuldades que a Lia vem enfrentando em Itamaracá são maiores hoje? Já foram piores. Hoje eu posso me chamar de Lia, levantar minha cabeça, sair de peito erguido. Tenho meus trocadinhos no banco, vou e

8 x Continente • FEV 2008

Conversa Lia_6_7_8_9.indd 8

1/29/2008 4:29:56 PM


Fábia Fragoso

As oficinas culturais do Centro Cultural de Lia oferecem cursos para mais de 100 crianças e adolescentes da Ilha de Itamaracá

pego na hora que eu quiser. Antigamente não era assim não. Sou merendeira ainda, me aposentei pelo município. Trabalhava no turismo. Agora só falta o Estado. Ainda faltam quatro anos. Estou vendo aí se eles vão me tirar da cozinha. Hoje estou dando merenda aos filhos dos meninos que estudaram lá. Eles me dizem: “Olha aí, Lia, é pra tu. Crie esse aí”. Mas eu gosto muito de trabalhar com criança. A senhora é chamada para levar a ciranda às escolas? Eu estou fazendo este trabalho pelo Patrimônio Vivo. Faço isso em qualquer lugar, até aqui em Itamaracá. Explico para meninos de todas as séries. Até para os pirralhinhos que não sabem nada, tenho que explicar a eles como dançar. Muitos vêm me entrevistar. Na escola em que eu trabalho, no recreio, a gente canta com eles, dança ciranda, explica como é. Eles vieram perguntar a mim de onde foi que surgiu a ciranda: “Dona Lia, a ciranda veio dos negros?” No Es-

paço Cultural, a gente dá oficina de instrumentos, de dança. Tem o mestre Nado, de Olinda, que vem e faz material de barro, panela, prato. Tem fotos, vem um fotógrafo pra ensinar. Quando se quer saber alguma coisa sobre a ciranda, as pessoas vêm diretamente para a casa da Lia. Não existe um acervo que fala da história de Itamaracá... A própria Secretaria de Turismo precisa de um lugar. Pra chegar à secretaria e perguntar: estou em Itamaracá, o que eu posso fazer aqui, onde eu posso encontrar Lia? Olha, você pode encontrar Lia no Espaço Cultural. O turista hoje vem e pergunta onde ele encontra Lia e eu estou na cozinha fedendo a cebola, a alho. Todo o município tem um guia turístico. O turista chega e não tem um barco que dê uma volta na Ilha. A volta na Ilha é muito bonita. Outro dia o governador fez uma reunião aí. O assessor dele disse que para chegar ao espaço de Lia, tem que passar pelas favelas.

Ali perto do Espaço Cultural tem umas caiçaras. O fumo rola ali. E esse projeto de tirar o presídio daqui e construir hotéis. Se esse projeto vier, pode mudar pra melhor? Se eles vão fazer como estão prometendo, melhora porque o pessoal já fica com menos medo. Quando eu tiver com meus 80 anos, quem sabe... Quando a senhora parar com a ciranda, tem alguém para ocupar seu lugar? Olha, da minha família não tem ninguém. Nem sobrinho, ninguém... O povo anda fazendo uma fezinha em Chica (sobrinha), mas Chica só faz doce. O Isaac (sobrinho) disse que vai ser a continuação do meu trabalho. Eu disse “que bom”. Fui pra Alemanha e o meu marido comprou um tarol pra ele. Ta lá mofando em cima do guardaroupa. O negócio dele é jogo, essas coisas. E se tem alguém que queira, não me procura pra eu ensinar. FEV 2008 • Continente x

Conversa Lia_6_7_8_9.indd 9

1/29/2008 4:30:00 PM


Imagens: Reprodução

Sobre a cegueira Um rapaz, bem peronista, viu Jorge Luis Borges – solitário – tentando atravessar a larguíssima Avenida 9 de Julho. Aproximou-se dissimulando o ódio que tinha pelo ancião e se ofereceu para ajudá-lo a chegar ao outro lado. Sua intenção era deixar Borges a mercê de sua cegueira e do tráfego intenso. Na metade do trajeto, o jovem revelou-se: “Borges, eu sou peronista”. O velho se manteve impassível e, em tom de consolo, respondeu a seu acompanhante: “Não se preocupe, jovem, eu também sou cego.”(ECM)

Despedida A “Meditação 17”, de John Donne (1572-1631), inspirou o título do romance Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway. Nesse texto, reproduzido parcialmente a seguir (tradução de Paulo Vizioli), Donne reflete sobre a morte e a vida dos que permanecem. Trata-se de um trecho amplamente conhecido e citado, embora nem sempre quem o cita saiba associar o texto ao autor. "Nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme. (...) A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido; por isso, nunca mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti". Dedicado a Ricardo Paiva, in memoriam. (Eduardo Cesar Maia)

Verne brasileiro Pouca gente sabe da existência de um Júlio Verne brasileiro, ou seja, do primeiro escritor de ficçãocientífica tupiniquim. Trata-se de Augusto Emílio Zaluar (18251882), português de Lisboa que se naturalizou brasileiro, formou-se em medicina e era entusiasta das realizações científicas do século dezenove. Autor de O Doutor Benignus, foi nesse romance que ele pôs em cena um grupo de viajantes brasileiros e estrangeiros embrenhados na selva, sob o comando de “Benignus”. Eles partem de Minas Gerais e alcançam a região do rio Araguaia, onde resgatam um cientista inglês prisioneiro da tribo carajá. Ao longo da exótica narrativa (350 páginas), Zaluar introduz – à maneira típica de Verne – seus conhecimentos e defende teses sobre zoologia, botânica, geografia, mineralogia, demografia, etc. O livro passou 119 anos esquecido, até ser reeditado pela editora da UFRJ, com prefácio de José Murilo de Carvalho. (Fernando Monteiro)

DESAFORISMOS "O seu direito de usar um casaco de poliéster verdechiclete termina quando começam os direitos do meu olho." Fran Lebowitz

Da arte de ser artista Num encontro de pesquisadores, promovido pelo Observatório do Itaú Cultural, em São Paulo, abordando o tema Indicadores Culturais: Reflexão e Experiências, a socióloga Liliana Segnini (professora da Unicamp), uma das convidadas, apresentou os resultados de um projeto que ela coordena: “Formação e Trabalho no campo da Cultura: professores, músicos e bailarinos (2003/2007)”. Os dados revelam um aumento crescente nos ocupados em arte no Brasil nos últimos anos, ainda que a informalidade continue predominando, e mostra que os artistas têm mais anos de estudo formal que a média da população ocupada do país. (Christianne Galdino)

Cultura S/A A cultura na Europa dos 27 empregava, no ano de 2005, quase cinco milhões de pessoas, o que equivale a 2,4 por cento do mercado de emprego na União Européia, o que representa mais do que o setor automobilismo. Cultura é grana. (Duda Guennes, de Lisboa

10 x Continente • FEV 2008

Balaio fevereiro_10_11.indd 10

1/29/2008 4:30:42 PM


O pior do escravismo é que, mesmo após a abolição oficial do cativeiro, como ocorreu no Brasil em 1888, a escravidão, como categoria psíquica, permanece introjetada nas pessoas. Nos domingos (dia de folga do trabalhador), nos parques da cidade, é comum ver jovens senhoras claras conversando entre si, enquanto babás escuras cuidam das crianças. Além de um triste corte nas relações mãe-filho (Rousseau já condenava esse distanciamento como nefasto), a cena revela que na cabeça dessas jovens damas, algumas autopercebidas como progressistas, a casa-grande e a senzala permanecem solidamente erguidas. (Homero Fonseca)

Nobreza obriga As expressões “arre!” e “arre égua!”, consideradas vulgares ou popularescas por muitos pretensos entendidos, têm história, tradição e até mesmo um pouco de nobreza em seu passado, já que originalmente eram usadas pelos integrantes da Corte portuguesa para incitar seus cavalos. O mesmo vale para “meizinha”, “troncho” e “avoar”. Por isso, antes de julgarem e apontarem o dedo acadêmico para alguém que fala “errado”, é recomendável, antes, checar as boas fontes. Por exemplo, o dramaturgo e trovador Gil Vicente (1465-1536), que usa as expressões em seus autos religiosos, farsas e sátiras. (Fred Navarro)

Divulgação

Cena do século 19

O cordel português

As várias modalidades de folhetos populares portugueses – poesia, narrativa, teatro, crítica, auto, farsa, desafio, conto, oração, testamento, décimas, canções, dentre outras – é a principal diferença que o pesquisador Arnaldo Saraiva oferece no catálogo “Folhetos de cordel e outros da minha colecção”, recentemente publicado na cidade do Porto, pela Biblioteca Municipal Almeida Garrett. O catálogo foi produzido para acompanhar exposição, em Lisboa e no Porto, de folhetos antigos, e todos raros, do acervo pessoal de Saraiva. Em Portugal os cordéis não são mais produzidos atualmente, como ocorre no Nordeste do Brasil. (Maria Alice Amorim)

Definição definitiva Segundo o escritor norte-americano de ficção científica Philip K. Dick, autor do texto que deu origem ao filme Blade Runner: “Realidade é aquela coisa que continua ali depois que a gente não acredita mais nela.” (Marco Polo)

Oscar Wilde

IMPACTO Como o frevo entrou em suas veias?

Eu sempre gostei do frevo, sempre tive contato com o frevo. Morava na Boa Vista e, no carnaval, sempre passavam em desfile por lá blocos como os Lenhadores e os Batutas de São José. Tinha até o costume dos participantes do bloco passarem com a bolsinha na mão para recolher dinheiro para o bloco. Hoje em dia não tem mais isso. Não é mais como antigamente. Mas o frevo sempre fez parte da minha vida. O meu encontro fatal com o frevo se deu em 1959 quando Capiba me convidou para cantar em um disco dele. Foi o disco de comemoração de 25 anos da carreira dele, o “Capiba 25 anos”. Foi um marco na minha vida. Aí não teve mais jeito. Gostei tanto da coisa que daí para frente eu me abracei com o frevo, o frevo se abraçou comigo e a gente não se desgrudou mais. Claudionor Germano Cantor, 60 anos de carreira. FEV 2008 • Continente

Balaio fevereiro_10_11.indd 11

11

1/29/2008 4:30:47 PM


CAPA

Encontros entre grupos de hip-hop e repentistas nordestinos se sucedem, sem muito alarde, por todo o País, resultando numa surpreendente miscigenação cultural entre elementos aparentemente incomunicáveis. As resistências e dificuldades vão sendo quebradas e surgem interações que ainda é cedo para saber em que vão dar. Mas um trabalho conjunto de um grupo de rap local e um jovem cantador de viola aponta as possibilidades de novos caminhos Homero Fonseca (com colaboração de Bárbara Cristina)

12  Continente • FEV 2008

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 12

1/18/2008 9:33:51 AM


Foto: Hans Manteuffel

Um encontro memorável

MC Maggo, DJ Big e cantador Adiel Luna: fusão original

FEV 2008 • Continente 

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 13

13

1/18/2008 9:34:06 AM


A temática do hip-hop é relacionada ao universo dos jovens pobres do Recife (violência, marginalidade, exclusão, aspirações e sonhos) com referências ao sertão mítico, de valores abstratamente rurais

N

a noite do sábado, 29 de dezembro de 2007, na Torre Malakoff, um público apenas regular mas caloroso presenciou um encontro desses que têm tudo para ficar na história. O único problema é que não foi registrado nem em áudio nem em vídeo, apenas uma bateria de fotos do fotógrafo Marcelo Lyra. Nem por isso os observadores mais atentos deixaram de perceber o enorme salto qualitativo ocorrido no pequeno palco armado do bairro do Recife Antigo. Alguma coisa de novo aconteceu ali, na noite clara recifense. A programação natalina patrocinada pela Fundarpe no local propunha-se explicitamente a incentivar o diálogo entre gêneros musicais diversos que, eventualmente, vai muito além disso, configurando mesmo uma interação entre manifestações culturais tão díspares a ponto de parecer impensável misturá-las. No caso, o que se assistiu foi a uma apresentação conjunta da banda Confluência, vinculada ao movimento hip-hop, e do violeiro Adiel Luna, legítimo representante do chamado cancioneiro popular nordestino. Um visitante distraído que entrasse no anfiteatro quadrangular se depararia com uma platéia cujos signos de identificação (vestuário, idade, atitudes) estavam tão embaralhados que ele não entenderia nada: alguns casais circunspectos, trajados à moda interiorana tradicional (nada a ver com as caricaturas molambentas das antigas quadrilhas matutas) e uma maioria de jovens típicos da chamada periferia, com suas roupas coloridas, cabelos afros, tatuagens. Em resumo, havia duas tribos,

Marcelo Lyra/Fundarpe

Preta Anna, Maggo e Adiel Luna no show da Torre Malakoff

14  Continente • FEV 2008

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 14

1/18/2008 9:34:13 AM


Esse sincretismo atrairia para o olho do furacão os repentistas violeiros, a elite dos improvisadores, com sua poética mais sofisticada, sujeita a métrica e rima rigorosas, e desdobrada em dezenas de gêneros

curiosamente sem qualquer sinal de estranheza entre si. Na primeira parte, Adiel Luna e Arnaldo Ferreira (seu pai) protagonizaram um típico desafio de viola, com direito a troca de (falsos) insultos, sob aplausos mornos do público. Em seguida, entrou a banda Confluência, sob a liderança do DJ Big e do MC Maggo, com as vocalistas Preta Anna e Nina, o guitarrista Jarbas, o baixista Daniel e o percussionista Samuel. O som da banda, em si, conceitualmente faz a junção do rap com elementos da poesia popular do Nordeste (daí seu nome). A levada da batida hip-hop é misturada nas picapes do DJ Big e nas vozes e atitudes dos vocalistas, especialmente o MC Maggo, a elementos da cantoria de viola, do cordel, do recitativo popular. A temática é toda relacionada ao universo dos jovens pobres do Recife (violência, marginalidade, exclusão, aspirações e sonhos) com referências ao sertão mítico, de valores abstratamente rurais. Uma terceira e mais longa parte é iniciada com a incorporação do violeiro à festa, quando são quebrados os limites entre gêneros, numa mistura de galope à beira-mar, hip-hop, quadrão, samba, cordel, coco, parte em versos decorados parte improvisados, com resultados surpreendentes. No samba vertiginoso resultante da fusão de um samba-rock da década de 70 (“Falar é fácil, difícil é fazer”, de Sílvio César) intercalado com o mote de desafio “No mundo o que me falta fazer mais?” (em célebre glosa do cantador Otacílio Batista), Adiel se apresenta sem viola, dialogando com Maggo, no embalo dos scratchs e sampler do DJ Big. Nas músicas finais, “Coco malcriado” e “Coqueiro da Bahia”, os dois verse-

Divulgação

Zé Brown, de Faces Subúrbio: MC edo embolador repente tatuado Zé Brown, do no braço Faces do Subúrbio: antecedente

jadores enveredam pelo improviso, alternando formas de versos, numa interação sem precedentes neste tipo de experiência. “Foi um passo à frente”, resumiu Big, do alto de seu 1,82m e 140 quilos (mais ou menos).Para entender esse passo à frente, vamos aos precedentes dessa miscigenação cultural que o DJ classifica, confiante, de “futurista”. Tudo começou no início da década de 90, no Alto Zé do Pinho, outrora uma das áreas marginais mais violentas do Recife, hoje celeiro de bandas jovens e movimentos sociais. Foi lá que nasceu a banda Faces do Subúrbio, formada por jovens da periferia, num esquema recorrente por esse mundo afora: sob forte influência do movimento hip-hop americano, reduto do protesto e da consciência social de jovens negros excluídos nas grandes cidades americanas. “Eu também já fui muito influenciado pela cultura norte-americana – conta o líder do grupo, Zé Brown –, usava uns casacos grandes,

além de uns pingentes invocados e umas correntes. Depois de um tempo, eu passei a perceber que a gente vivendo num clima desse, extremamente quente, e eu usando roupas como se estivesse no Pólo Sul.” Zé, que ganhou o apelido porque vivia pra cima e pra baixo com um disco de James Brown nas festas de break no Alto, e seus companheiros, não apenas trocaram os pesados casacos pelas camisetas e bermudas como vestiram suas letras com a temática da realidade circundante, como, grosso modo, ocorre com o movimento hip-hop por toda a América Latina. Por fim, cada vez mais, essa identificação com o universo local levou às famosas raízes: Zé lembrava quando menino ia à cidade com sua mãe e ouvia encantado nas praças os emboladores Caju e Castanha, Rouxinol e Beija-flor improvisando ao som do pandeiro, numa sucessão de rimas em alta velocidade. Adulto, já conhecido como um rapper de respeito, percebeu algumas afinidades entre os dois gêneros, especialmente nos versos livres, rimas FEV 2008 • Continente 

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 15

15

1/30/2008 3:07:50 PM


Em 2005, na programação do Ano do Brasil na França, no Carreau du Temple e, depois, na Torre Eiffel, o mais consagrado dos cantadores nordestinos, Ivanildo Vila Nova (foto), se apresentou com o Faces do Subúrbio Reprodução de vídeo/Fundaj

repetidas e na batida rítmica, e passou a compor, escrevendo as letras e colocando a embolada, a poesia do rap com a batida da embolada. Hoje, Zé Brown (José Edson da Silva, 33 anos, nascido no Recife, Segundo Grau completo), além de músico é arte educador, participando de projetos sociais com crianças em situação de risco em bairros pobres como Arruda e Santo Amaro, além do próprio Alto José do Pinho. Paralelamente, em São Paulo e no Rio ocorria algo semelhante, isto é, a adaptação do movimento hip-hop à realidade do cotidiano dos jovens pobres (e negros em sua maioria) nas letras e na ação dos participantes. E como a presença nordestina é forte nessas comunidades pobres, não tardou a se fazer sentir a influência dos emboladores no rap local. Thaíde, um dos mais famosos rappers paulistanos, participou, em 1994, de um vídeo com o poeta repentista e embolador Raio de Luz, que costumava se apresentar nas ruas do centro de São Paulo. Ele também foi levado ao interior do Ceará para conhecer o lendário Patativa do Assaré, num encontro repleto de significados (e, claro, gerador de razoável repercussão na mídia). Rappin Hood, outro rapper da Paulicéia, gravou um disco com a famosa dupla Castanha e Caju, no rastro do que fizera também Faces do Subúrbio, quando Zé Brown teve a oportunidade de gravar com os emboladores que ouvira na infância e, desde então, mergulhou numa pesquisa no universo do coco de embolada que o fez conhecer vários mestres anônimos do que resultará um DVD a ser lançado este ano, seguido de excursão na companhia dos artistas populares.

De repente (sem trocadilho) e como seqüência natural, esse sincretismo atrairia para o olho do furacão os repentistas violeiros, a elite dos improvisadores, com sua poética mais sofisticada, sujeita a métrica e rima rigorosas, e desdobrada em dezenas de gêneros. Não é o caso, aqui, de descrever as grandes mudanças vividas nas últimas décadas pela cantoria de viola, à luz da transformação do Brasil de nação rural a predominantemente urbana. (Veja a Continente no 25, janeiro de 2003). Hoje, os poetas são profissionais que se dirigem a um público urbano, nos grandes festivais e congressos ou por meio das rádios e televisões regionais. Cultuam, claro, o universo mítico em que se originou sua arte mas incorporam, sempre, temas da atualidade em seus

desafios, como aliás os folhetos de feira (ou de cordel) sempre fizeram. Os poetas passaram a ser procurados por alguns rappers, na maioria dos casos numa atitude reverencial, na qualidade de mestres da poesia. As iniciativas mais notáveis, a partir de meados desta década, receberam as atenções do poder público (leiase MinC), que passou a incentivar o “diálogo entre as culturas”. Em 2005, por exemplo, na programação do Ano do Brasil na França, no Carreau du Temple e, depois, na Torre Eiffel, o mais consagrado dos cantadores nordestinos, Ivanildo Vila Nova, se apresentou com o Faces do Subúrbio. Ao que consta, com sucesso de público. A experiência seria repetida no Rio, desta vez entre Ivanildo e os rappers BNegão, Bernardo e Gabriel o Pensador. E, em outu-

16  Continente • FEV 2008

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 16

1/18/2008 9:34:23 AM


Pela primeira vez, uma banda de hip-hop e um autêntico cantador nordestino misturavam suas vozes, suas rimas, seus ritmos, num amálgama que ainda é cedo para saber no que vai dar Cenas do vídeo Repensando o Repente, da Funaj (sentido horário): Tahide e Patativa do Assaré, BNegão, Moacir Laurentino e Ivanildo Vila Nova, Verde Lins e MC Gaspar e Sebastião Marinho

bro passado, na cidade de Campina Grande, foi realizado o 1º Encontro Nacional de Rappers e Repentistas, com resultados controversos – críticas à organização, à programação, à divulgação, à temática etc. Independentemente do dedo do estado, entretanto, a aproximação entre as duas “culturas” vem se tecendo nas “quebradas”, de maneira não muito fácil, como veremos adiante. Essa movimentação, aliás, foi flagrada no belo trabalho da Massangana Multimídia da Fundação Joaquim Nabuco Poetas do Repente – um conjunto de quatro documentários em vídeo, produzidos em 2006 para o projeto TV Escola do Ministério da Educação. Com direção dos cineastas Hilton Lacerda, Cynthia Falcão e Eric Laurence, um dos quatro programas – Recriando o Repente

– trata exatamente da interação entre essas diversas formas de expressão poética. Mescla cenas de shows conjuntos e depoimentos de rappers, poetas populares, produtores, jornalistas, teóricos. Nele, aparecem lado a lado nomes como Zé Brown e Tiger da Faces do Subúrbio, os rappers Thaíde e MC Gaspar, de São Paulo, Siba Veloso, as duplas Rogério Menezes e Hipólito Moura, Raimundo Nonato e Nonato Costa(os célebres Nonatos da Paraíba), Ivanildo Vila Nova, Sebastião Marinho, o embolador Verde Lins, entre outros. Pelos depoimentos, percebe-se a riqueza da situação e suas dificuldades. Afinal, não se faz por decreto a união de formas poéticas diversas no tempo, no espaço, nas classes sociais, nos objetivos, no posicionamento mercadológico. O poeta (erudito e popular) paraibano Astier Basílio resume o que está em jogo: “A cantoria vive dessa contradição de ser rígida e ao mesmo tempo possibilitar várias renovações. É um código que tem pilastras que não se alteram, mas ao mesmo tempo essas pilastras se renovam de forma diferente. Não é possível pensar a contemporaneidade como algo adversativo à tradição. (...) A possibilidade de diálogo teria de crescer muito mais. É muito mais possível ao rapper brincar com elementos formais da cantoria, introduzindo na sua performance, do que o cantador jogar a viola de lado, pegar um microfone e colocar uma base. Por que ele não pode fazer isso? Porque o código em que ele se insere não permite esse tipo de procedimento.

Quando se estabelece essa relação de diálogo, ela é muito mais possível pela liberdade que o rapper faz com outras coisas – com o samba, com outros elementos musicais, pode fazer com a cantoria. (...) Essa renovação segue uma exigência do mercado. Não pode dissociar. Não é só uma fruição estética... A cantoria tem exigência de mercado, de aperfeiçoamento, de adaptação”. Assim, nessa dialética entre tradição e renovação, a cantoria de viola, do alto dos seus quase 150 anos de prática, encara agora o diálogo com os jovens do hip-hop brasileiro, nascido em meados dos anos 80. Até aquela noite de 29 de dezembro, as experiências eram como que “simultâneas mas separadas”. “Eles cantando da maneira deles e a gente da nossa”, como enfatiza Ivanildo Vila Nova, 62 anos, natural de Caruaru, vencedor de inumeráveis concursos de repente, dezenas de CDs gravados, participação em excursões pelo Brasil e pelo exterior. Ivanildo é considerado um divisor de águas na cantoria, o camarada que impôs uma visão estritamente profissional da atividade poética, ao lado da alta qualidade de seu trabalho, ao lado, claro, de outros grandes nomes, como Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, João Paraibano, João Furiba e tantos mais. Ivanildo não se nega a participar desses encontros, mas tem sempre um pé atrás, respaldado no que considera a superioridade do trabalho dos violeiros em relação aos rappers e mesmo aos emboladores, menos exigidos em suas rimas mais simples e repetidas, sem obediência restrita a uma métrica rigorosa etc. “Cantoria – explica ele – é sempre é uma coisa nova. Cada cantador FEV 2008 • Continente 

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 17

17

1/18/2008 9:34:25 AM


O que é hip-hop Assim a Wikipedia define hip-hop: “É um movimento cultural iniciado no fim da década de 1960 como forma de reação aos conflitos sociais e à violência sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade urbana. É uma espécie de cultura das ruas, um movimento de reivindicação de espaço e voz das periferias, traduzido nas letras questionadoras e agressivas, no ritmo forte e intenso e nas imagens grafitadas pelos muros das cidades. O hip-hop como movimento cultural é composto por quatro manifestações artísticas principais: o canto do rap (sigla para rythm-and-poetry), a instrumentação dos DJs (disc-jockeys) , a dança do break dance e a pintura do grafite. O termo música hip-hop refere-se aos elementos rap e DJ, sendo hip-hop também usado como sinônimo de rap. No Brasil, o movimento hip-hop foi adotado, sobretudo, pelos jovens negros e pobres de cidades grandes, como Rio de Janeiro, Brasília, Porto Alegre e São Paulo e Recife (acrescentamos nós), como forma de discussão e protesto contra o preconceito racial, a miséria e a exclusão. Como movimento cultural, o hiphop tem servido como ferramenta de integração social e mesmo de ressocialização de jovens das periferias no sentido de romper com essa realidade”. A indústria cultural, como sói acontecer, logo se apropriou do movimento, transformando-o em produto comercial que rende bilhões de dólares (música, cinema, moda etc.). Alguns dos seus protagonistas se tornaram milionários, desfilam em carros extravagantes, vivem como pop stars e, eventualmente, têm ligação com o crime organizado (são os gangsta). É uma realidade complexa, em que a essência inicial do movimento não se perdeu de todo. No Brasil, o componente social e de protesto é muito vigoroso. (HF)

Glossário Atitude – Palavra indispensável no vocabulário do hip-hop. Para fazer parte do grupo não só é preciso ter consciência, mas também atitude. Termo que sintetiza a linha de conduta que o grupo espera de cada um. B-boy – O público hip-hop e seu estilo indumentário. Possuem verdadeira adoração por marcas esportivas. Break –Dança do hip-hop. Os movimentos são quebrados, mecânicos. Free-style – Um dos ramos do hip-hop caracterizado pelo verso de improviso. MC– Mestre-de-cerimônias, cantor de rap. Mixagem – Mistura de músicas feita pelo DJ, utilizando-se do aparelho mixer. Rap – Iniciais de rhythm and poetry. Tipo de música falada e ritmada acompanhada geralmente pela bateria eletrônica, pelos sintetizadores, pelos samplers controlados por um DJ. Sampler – Instrumento que grava digitalmente qualquer som, que pode ser tocado com auxílio de teclado, bateria eletrônica ou computador. Scratch – Utilização de toca-discos como instrumento musical, destacando determinadas partes de uma canção ou movimentando no sentido anti-horário os discos de modo a produzir o som de arranhado. Seqüência – Montagem feita pelo DJ com vários sucessos do momento.

Divulgação

que você ouvir é uma coisa diferente. Aí, o pessoal do rap está vendo que na cantoria o buraco é mais embaixo. Tem métrica, concordância, as rimas são intercaladas, coerência de oração, de sentido, e é bem mais complexa que a embolada. Na cantoria a coisa é toda sistemática, muito convencional, muito ortodoxa.” Apesar disso, procurado pelo pessoal da Confluência, concordou em se apresentarem juntos no Rec Beat, o espaço de música alternativa do Carnaval do Recife, em 2007. No esquema “simultâneos mas separados”. Primeiramente, o MC Maggo e o DJ Big apresentaram sua música eletrônica misturada à poesia popular, até que o jovem Mestre de Cerimônias chamou o cantador famoso ao palco, apresentando-o como “influência, fonte de inspiração” e arrematando com a frase:. “Pra mim é o maior poeta do Brasil”. Declamou uns setessílabos bem metrificados e ouviu Vila Nova elogiar a proposta do grupo, glosando o mote: “Confluência deseja, sonha e clama / longa vida aos poetas imortais”. Dando um balanço de toda a movimentação, Ivanildo deixa de lado a ortodoxia e concede que “a cantoria ganhou espaço”. Cita cantadores mais jovens e se permite antever que, brevemente, “eles vão estar se misturando com roqueiro, com metaleiro, com rapper”.Sua previsão vem sendo concretizada no encontro do pessoal do Confluência com o violeiro Adiel Luna. O DJ Big (Anderson Oliveira dos Santos, 30 anos, recifense, morador de Água Fria, 2º grau completo, ex-técnico em eletricidade e hidráulica, arte educador que ministra cursos na ONG Pé no Chão) é uma espécie de “ideólogo” da fusão. Foi ele quem descobriu Maggo (Edílson Cândido da Silva, 24 anos, recifense, também arte educador na mesma ONG, onde fez curso de DJ com Big). Foi ele quem mostrou um disco do cantador Guriatã do Norte ao jovem parceiro, então já mergulhado no mundo do break. Maggo, dotado de real vocação para a poesia, se apaixonou pela romanceiro popular. Ambos, cuja formação e influências musicais são as mais ecléticas, logo descobriram o filão que tinham à frente. Maggo danou-se a pesquisar, leu cordéis e livros de poesia popular (Zé de Cazuza, Francisco Linhares e Otacílio Batista) e, com sua enorme facilidade para a versificação, daqui a pouco estava escrevendo versos, sobre os quais Big colocava a base, “a batida rap”. Assim, sumariando, nasceu a Confluência. O encontro com o jovem violeiro Adiel Luna (23 anos, filho de cantador e criado entre o mundo urbano e rural, também portador do 2º grau e repito a informação para acabar com a falsa idéia de semi-letrados que muita gente ainda tem por conta de textos antigos de Câmara Cascudo e outros) deu a liga que faltava para um encontro histórico. Pela primeira vez, uma banda de hip-hop e um autêntico cantador nordestino misturavam suas vozes, rimas, ritmos, posturas, num amálgama que ainda é cedo para saber no que vai dar. Até porque a apresentação, não tem data para se repetir. Cada qual continua a trilhar seus próprios caminhos. Mas a avaliação deles próprios sobre o show – “Uma coisa mágica, entranhada, futurista” – e a recepção calorosa da platéia eclética na Torre Malakoff apontam um dos caminhos possíveis na dinâmica da cultura, seja popular ou erudita. Quem viver verá.

 • FEV 2008 18  Continente

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 18

1/18/2008 9:34:27 AM


J. Borges

CAPA

O verso que cai do céu Esse fenômeno do diálogo entre o Repente e o rap tem um lado mercadológico e um lado cultural. Em termos de mercado, não se compara à gigantesca máquina que existe por trás do hip-hop Braulio Tavares

O

Repente é uma forma de criação artística ainda não consignada nos manuais, talvez por não ter sido abordada (ao que eu saiba) por Aristóteles, Hegel ou outros formatadores de nossa consciência estética. É uma arte transversal, ou seja, pode ocorrer

em diferentes atividades. Um pouco como a Arte da Narrativa, que hoje já é objeto de estudo específico (a Narratologia) que examina sua presença ubíqua na literatura, no cinema, na poesia, no teatro, nas histórias em quadrinhos, etc. E o Repente? O repente, tam-

bém chamado de improviso, é a arte do instante, a arte de criar no próprio momento da execução da obra. Isto é mais visível na música e na poesia oral. Um grupo de jazz expõe um tema musical, e a certa altura cada instrumentista tem algum tempo para improvisar, comFEV 2008 • Continente 

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 19

19

1/18/2008 9:34:31 AM


CAPA por intervenções melódicas dentro do padrão rítmico e harmônico proposto. Todo improviso é um misto de execução (repetição de algo já sabido) e composição (invenção de coisas novas). O mesmo se dá na cantoria de viola nordestina. Ao cantar “no pé da parede” (a denominação tradicional para a cantoria clássica), a dupla está misturando versos já sabidos e versos inventados na hora. Numa cantoria de três ou quatro horas, improvisar tudo é tão impossível quanto trazer tudo decorado. O repertório de versos que um cantador traz na memória é assombroso, mas ele os vai recordando e encaixando na medida do avanço da cantoria, às vezes por conta própria, às vezes em combinação com o parceiro. Mas ele está sempre pressionado ao improviso. Mesmo quando canta decorado, não tem a comodidade dos cantores de música popular, que se limitam a repetir as canções sabidas de cor, sem que ninguém espere deles o acréscimo de novas estrofes. O ator de teatro também improvisa. Os “cacos” (frases inseridas no texto original pelo ator) nem sempre são 100% improviso, são piadinhas que o ator planeja em casa e guarda na memória para usar na hora certa. O improviso real é o que ocorre quando algo inesperado acontece no palco ou na platéia e o ator reage de acordo, inventando uma nova fala ou uma nova ação, e incorporando ao espetáculo aquela surpresa. É claro que isso é muito mais possível de acontecer com quem faz teatro de rua, ou em outro ambiente propenso a interferências externas, do que quem trabalha num palco distanciado diante de uma platéia silente e respeitosa. Os improvisos jazzísticos e da cantoria lembram de certa forma o trabalho dos atores teatrais da Commedia Dell’Arte, que subiam

Arquivo CEPE

Os improvisos jazzísticos e da cantoria lembram de certa forma o trabalho dos atores teatrais da Commedia Dell’Arte, que subiam no palco sabendo as linhas gerais do que iriam fazer (perfil de cada personagem, e a situação proposta), deixando que o resto corresse ao sabor das circunstâncias no palco sabendo as linhas gerais do que iriam fazer (perfil de cada personagem, e a situação proposta), e deixando que o resto corresse ao sabor das circunstâncias. Todos eles se garantem pela longa experiência, por um assombroso repertório de truques e recursos, e pela consciência de que é necessário um foco total da atenção no aqui e agora. Com isso, eles se encaminham para o palco murmurando para si mesmos a frase mágica: “Na hora eu me viro”.

Um cantador de viola já me confessou certa vez: “Eu só sei o verso que fiz na hora que escuto minha boca dizendo”. Essa leve dissociação psíquica faz com que a mente articuladora dos versos pareça uma instância independente da mente central. Esta última talvez prepare a deixa e as três rimas de uma sextilha, mas no fragor da batalha o teor discursivo dos versos é deixado a essa mente menor e mais rápida. Prodígio? Nem tanto. Todos nós improvisamos o dia inteiro – só que em prosa. Nenhum de nós prepara e decora o que vai dizer no dia-a-dia, e quando tenta fazê-lo (declaração de amor... entrevista de emprego... depoimento à polícia...) geralmente dá com os burros n’água. Somos todos improvisadores – mas em prosa. O Repente genuíno é tudo que é criado no calor do momento, sem que seja possível voltar atrás e consertar os detalhes, os pequenos defeitos, porque criação e exibição ao público foram simultâneos. É claro que quando um poeta está escrevendo em casa ou um músico está sentado ao piano podem brotar improvisos brilhantes, mas nesses casos não há testemunhas, e a função desses improvisos é trazer material novo, idéias novas, que o artista irá voltando atrás e retrabalhando, pelo tempo que for necessário, até considerá-los prontos. Toda criação artística, por mais vagaroso que seja seu processo, tem uma grande parte de vislumbres intuitivos, incorporações do inesperado, idéias que parecem caídas do céu, mas que não passam de, por assim dizer, fagulhas resultantes do atrito entre o inconsciente e o consciente, onde o primeiro produz e o segundo aproveita, elimina, desbasta, organiza. Mesmo nas artes de longo prazo como o cinema existem momentos

20  Continente • FEV 2008

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 20

1/18/2008 9:34:32 AM


privilegiados de improviso, de administração do acaso e do acidente, de soluções mágicas inventadas no derradeiro instante possível. Só não são repentes autênticos porque só serão vistos pela platéia meses depois. Uma cobertura ao vivo pela TV, por outro lado, é também um momento privilegiado em que o operador de câmara e o repórter que fala ao microfone precisam responder de forma instantânea ao que ocorre à sua volta, e muitas vezes produzem pequenas obras-primas de criação estética – até onde é possível usar esse termo em se tratando de atividades que em princípio não fazem parte do mundo da arte. O Repente também existe no futebol (e outros esportes) e consiste naquela jogada brilhante concebida e executada em poucos segundos, e que resolve de maneira admirável um problema que surge em circunstâncias impossíveis de prever. Há jogadas que o craque já vem de casa sabendo; e há outras que ele (ou eles, no caso daquelas complexas tabelas coletivas, em velocidade, na direção do gol) tem que criar no aqui e agora. No Nordeste podemos considerar repentistas artistas tão diferentes quanto o cantador de viola, o embolador de coco, o aboiador, o mestre de maracatu, o glosador de mesa de bar, o tirador-de-verso no coco de praia... Cada um lida com formas e rituais diferentes, mas em todos existe esse foco no verso feito na hora, muitas vezes respondendo à provocação de um adversário ou aos imprevisíveis pedidos da platéia. Mais recentemente tem surgido, principalmente em nossas periferias urbanas, a prática do improviso nos grupos de hip-hop ou rappers. É uma prática que nos chega dos Estados Unidos, e que por essa origem bastarda nos incomoda ou

Arquivo CEPE

O repente também existe no futebol e consiste naquela jogada brilhante concebida e executada em poucos segundos, e que resolve um problema que surge em circunstâncias impossíveis de prever. Há jogadas que o craque já vem de casa sabendo e há outras que ele tem que criar no aqui-e-agora nos assusta. Que direito (perguntamos) tem essa música americana de se superpor às formas de Repente que cultivamos aqui, há um século e meio, ou mais? O DVD Poetas do Repente (quatro programas produzidos pela Fundação Joaquim Nabuco) aborda a certa altura diversas apresentações feitas em São Paulo nas quais subiram juntos ao palco cantadores de viola, emboladores de coco e rappers paulistanos. Uma tentativa de aproximação e de início de diálogo, que teve eco na re-

alização do 1º Encontro Nacional de Rappers e Repentistas ocorrido em outubro passado em Campina Grande (PB), por sugestão, ao que se diz, do próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil. Esse fenômeno tem um lado mercadológico e um lado cultural. Em termos de mercado, não se compara à gigantesca máquina que existe por trás do hip-hop, manipulando dezenas de selos, milhares de artistas, centenas de milhões de dólares. Perto desses transatlânticos, as modestas jangadas dos repentistas nordestinos correm o risco de sucumbir, não num possível confronto, mas na simples marola provocada pelos pesos pesados. Por outro lado, o repente nordestino e o hip-hop descendem da poesia oral africana. No âmbito da poesia popular, nosso Repente tem tudo de africano: a propensão lúdica ao jogo de palavras puro e simples; a vocação agonística, competitiva, dos grandes desafios; o sentido profundo de que dois poetas são porta-vozes de suas comunidades; e até mesmo recursos específicos como o trava-língua, a enumeração, as perguntas-e-respostas. Isso é muitíssimo visível no coco de embolada e no free style do hip-hop; menos visível na cantoria de viola, que em nossa cultura do Repente é o lado mais clássico, mais apolíneo, mais ibérico e letrado. A aproximação entre o repente nordestino e o rap do hip-hop cria delicada convivência entre formas de arte com uma origem comum e um espírito semelhante, separadas pelo abismo entre o gigantismo financeiro que uma veio a atingir (mesmo tendo origem e tendo destino com as comunidades negras e periféricas) e a eterna pindaíba em que vive a outra, que existe há 150 anos no Nordeste, mas sempre foi vista com desdém pela maioria dos nordestinos ricos e letrados. FEV 2008 • Continente 

Capa REP RAP_12_a_21 .indd 21

21

1/18/2008 9:34:33 AM


Pernambuco em versos

Imagens: Reprodução

LITERATURA

Romançal Paranambuco, de Marcos Cordeiro, cantando a saga das revoluções pernambucanas, é relançado em edição vastamente ilustrada Luiz Carlos Monteiro

Santo Antonio de Igarassu, Frans Post, óleo s/ tela, c. de 1632

22 x Continente • FEV 2008

Romançal_22_23_24_25.indd 22

1/17/2008 2:54:45 PM


O

sentimento de amor e apego à terra é o elemento motivador de muitos trabalhos de prosadores e poetas. O primeiro poema brasileiro conhecido foi escrito pelo cristão-novo Bento Teixeira em 1601, uma louvação às terras pernambucanas, assim como, na prosa e na poesia de épocas posteriores, livros de Oliveira Lima, Pereira da Costa, Gilberto Freyre e João Cabral de Melo Neto. Nesta linha de escrita, um longo poema épico em 43 cantos, Romançal Paranambuco, é relançado por Marcos Cordeiro, que atua também como artista plástico e autor teatral. Pelas edições Pirata, na década de 1980, publicou três livros de poesia, entre eles Vesperal da Solidão, e na condição de dramaturgo, ganhou três vezes o prêmio Elpídio Câmara, da prefeitura do Recife, sendo o mais recente Orfeu em África, que narra o degredo de Gregório de Matos em Angola. Este Romançal Paranambuco traz um vasto painel de ilustrações que inclui pinturas, desenhos, xilos e murais públicos distribuídos entre vários artistas – o próprio Marcos Cordeiro, Teresa Costa Rego, Sérgio Lemos, Maria Carmen, Francisco Brennand e Cícero Dias, além de vitrais do Palácio do Campo das Princesas da lavra de gente como Rugendas e Franz Post. Sem que se perceba a intenção cronológica, o autor vai construindo um roteiro dos principais fatos e eventos históricos de Pernambuco em cantos ou romançais. Ele utiliza formas e metros variados, desde a sextilha, passando pelo galope e pelas quadras, até as formas sem classificação vérsica aparente, embora não abandone jamais o esforço de rimar. Canta as origens, a fundação, a invasão holandesa, as lutas libertárias e revoluções pernambucanas, as execuções do Campo da Pólvora, a Confederação do Equador, o martírio de Frei Caneca. Elabora poemas sobre lugares como a várzea do Capibaribe, o planalto da Borborema, Fernando de Noronha, os sertões do Moxotó e do Pajeú, os lagos de Itaparica e Sobradinho e as comarcas de Alagoas e do São Francisco.

O artista plástico e escritor Marcos Cordeiro, com sua neta

FEV 2008 • Continente x

Romançal_22_23_24_25.indd 23

23

1/17/2008 2:54:48 PM


LITERATURA No Canto I ou Romançal das Origens, em “Biografia Épica” a tônica é a liberdade, palavra e idealização que servirá como mote de muitos outros poemas e trechos de poemas, além da vinda dos conquistadores a Parnambuco: “Dom Duarte e Dona Brites/ vindos lá de Portugal,/ aqui fincando o brasão,/ ergueram um pedestal/ a Pernambuco nascente,/ fortaleza senhorial.// A fé de um povo guerreiro/ com a terra se associa./ No altar dos Guararapes/ a liberdade nascia./ Nesse dia Pernambuco/ com o Brasil se inicia. //Herói de espora e alcova/ na guerra ou no amor,/ é Jerônimo de Albuquerque/ o grande conquistador/ das terras de Pindorama/ e da mulher sedutor.”

Alegoria à República, em vitral no Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco

Há um forte teor religioso no Canto IV ou Romançal da Alma Pernambucana, notadamente no poema “Da Primeira Procissão de Olinda” que tem estrofes regulares (“Caminha a procissão caminha/ de mendigos e desvalidos,/ vão em busca de Jesus,/ vão em busca de si mesmos/ carregando sua cruz.”) seguidas de coros diversificados em torno do “Rogai por nós” (Espelho da Justiça – Rogai por nós/ Vaso honorífico – Rogai por nós/ Rosa Mística – Rogai por nós”). Mas também poemas sobre a Prosopopéia de Bento Teixeira, os libertadores, os senhores de engenho, os folguedos de Pernambuco, os carnavais de Recife e Olinda e até a cachaça pernambucana. A gastronomia pernambucana com seus quitutes e beberagens aparece no Canto V ou Romançal do Banquete Oferecido na Casa Grande do Engenho Megaípe para Maria Graham quando de sua estada em Pernambuco em 1817. Um dos textos em que ele mais se esmera é o Canto XXXVI ou Romançal do Sertão do Moxotó e do Pajeú, que representa boa parte da genealogia tradicional de Sertânia, inclusive do próprio Marcos Cordeiro, que nasceu nesta cidade. Tendo como subtítulo Galope de Cordel – Romance do Boi Enganoso, ele poetiza toda a saga da perseguição a Enganoso, boi brabo e astucioso, tendo sido convocados moradores, famílias, fazendeiros e vaqueiros afamados de todo o sertão e das redondezas de Sertãnia. Os momentos finais da pega do boi, são traduzidos na narrativa do poeta e na fala que o boi personifica: “Dei um salto de três metros/ não sei o que aconteceu,/ Gonçalo Gomes colado/ foi quem primeiro correu,/ no seu cavalo Dourado/ João Baé não esmoreceu.// Dei mais doze canga-pés,/ pulei por quinze penedos,/ mordi, mugi e espumei/ como um bicho sem medo,/ derrubei mais três vaqueiros/ por dentro do arvoredo.// Fui perseguido outra vez/ por Zé Torres em Vingador/ dei mais sete saltos soltos/ Pedro Cordeiro chegou,/ na vassoura do meu rabo/ ele quase que pegou.// De repente eu esbarrei/ num imenso precipício,/ se eu fos-

24 x Continente • FEV 2008

Romançal_22_23_24_25.indd 24

1/17/2008 2:54:53 PM


se um passarinho/ não sofreria suplício/ dali do alto eu voaria/ para longe de Patrício.// Na disparada que eu vinha/ não consegui esbarrar,/ escorreguei lá do alto/ sem poder me amparar,/ caí, quebrei o pescoço,/ só assim eu fui parar”. A defesa de Pernambuco é feita com veemência no último canto, em trechos do poema “Réquiem para Pernambuco Ocupada”: “Eu me chamo Pernambuco/ Leão do Norte já fui,/ quanto mais o tempo passa,/ mais minha mágoa reflui.// Hoje estou bem reduzido,/ meu presente é bem inglório,/ agora só tenho história/ e a Bahia o território”. A harmonia entre os homens é solicitada através da religião, embora eles estejam o tempo todo inquietos em movimentos de defesa e conquista da terra e no domínio de outros homens, subdivididos entre a guerra e a paz. Na épica de Marcos Cordeiro esta paz é quebrada para sempre quando da ocupação da Comarca de São Francisco pelos baianos.

Abaixo, Batalha dos Guararapes (detalhe), Francisco Brennand, painel cerâmico do Grupo Safra

Romançal Paranambuco Marcos Cordeiro Polys Editora 196 páginas Preço a definir

FEV 2008 • Continente x

Romançal_22_23_24_25.indd 25

25

1/17/2008 2:54:55 PM


LITERATURA

Delmo Montenegro

Imagens: Reprodução

O Retorno de Laurenio

Reedição da obra poética de José Laurenio de Melo faz sua definitiva reinserção no universo literário de Pernambuco

26 x Continente • FEV 2008

Laurênio_26_27_28_29.indd 26

1/18/2008 9:32:15 AM


Em foto de 1961, em pé: Gadiel Perrucci, Ana Mae Barbosa, Márcia Canvedish Wanderley, Jorge Wanderley, Jorge Carneiro da Cunha, Ana de Mello, José Laurênio de Mello, Alexandre Eulálio, Elza de Hollanda. Sentados: Lise da Costa Ferreira, Maud Perrucci, Orlando da Costa Ferreira, João Alexandre Barbosa, Luiz Costa Lima, Zélia Costa Lima, Gastão de Hollanda

A

poesia de José Laurenio de Melo está ligada a dois marcos fundamentais da literatura de Pernambuco. Palhano, o seu livro de estréia, de 1950, foi o primeiro publicado pelas Edições TEP (Teatro do Estudante de Pernambuco), com prefácio de Hermilo Borba Filho (diretor do TEP) e ilustrações de Aloísio Magalhães. O segundo, As Conversações Noturnas, foi o primeiro livro produzido pelo lendário grupo do Gráfico Amador. Fundado em 1954, por José Laurenio de Melo, Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda e Orlando da Costa Ferreira o Gráfico Amador seria um divisor de águas na história da editoração de livros no Brasil, pela excepcionalidade de seus projetos gráficos, que logo alcançariam reconhecimento internacional. Para Pernambuco, mais que isso: entre os títulos que produziu estão Memórias do Boi Serapião (1955) de Carlos Pena Filho, Ode (1955) de Ariano Suassuna, Pregão Turístico do Recife (1955), Vários poemas vários (1957) e Aniki Bobó (1958) de João Cabral de Melo Neto, A Tecelã (1956) de Mauro Mota, História de um Tatuetê (1958) de Hermilo Borba Filho e os livros de estréia de Sebastião Uchoa Leite, Dez sonetos sem matéria (1960), e Jorge Wanderley, Gesta e outros poemas (1960). José Laurenio de Melo faleceu em 2006 sem que nenhum órgão da imprensa de Pernambuco desse notícia do seu desaparecimento. O que fez com que seu nome fosse tão radicalmente apagado de nossa História? De produção escassa e pouco afeito a divulgação de sua obra, José Laurenio de Melo ficou à sombra de gigantes. Palhano, de 1950, reuniu poemas escritos entre 1946 e 1949. Em 1947, Poemas de Joaquim Cardozo é publicado pela Editora Agir, do Rio de Janeiro, com prefácio de Carlos Drummond de Andrade. No mesmo ano de 1947, em Barcelona, pelo selo O Livro Inconsútil, João Cabral de Melo Neto publicaria Psicologia da Composição (contendo também a Fábula de Anfion e Antiode, escritos entre 1946 e 1947). Em 1950, seria a vez de O Cão Sem Plumas. Poderíamos ainda citar Belo belo (1948) e Mafuá do Malungo (1948) de Manuel Bandeira ou as estréias em livro de Mauro Mota, com Elegias (Rio de Janeiro: Edição Jornal de Letras, 1952), Carlos Pena Filho, com O tempo da busca (Recife: Edição Região, 1952) e Edmir Domingues, com A Rua do Vento Norte (Recife: Editorial Sagitário, 1952), como amostras do quanto o cenário poético de Pernambuco vivia um dos seus momentos mais ricos. Tão intenso a ponto de poder ocultar até hoje obras seminais como a de Vicente do Rego Monteiro, que, em 1952, publicaria em Paris (pelo selo La Presse à Bras) os livros Concrétion e Cartomancie, antecipadores em pelo menos quatro anos de procedimentos poéticos normalmente associados ao movimento da Poesia Concreta (que eclodiu para o Mundo em 1956), ou magnífica, enxuta e exata poesia periférica de José Laurenio de Melo. Graças aos esforços do grande crítico João Alexandre Barbosa (responsável pela seleção e organização dos textos) e do editor Plínio Martins Filho, mais uma vez circula entre nós – tendo agora a chance de uma nova avaliação crítica – a obra poética de José Laurenio de Melo, coligida no livro As Conversações Noturnas & Outros Poemas (Cotia: Ateliê Editorial, 2007), com um prefácio de Ariano Suassuna. Trazendo FEV 2008 • Continente x

Laurênio_26_27_28_29.indd 27

27

1/18/2008 9:32:16 AM


LITERATURA boa parte do livro de estréia, Palhano (1950), a íntegra do segundo, As Conversações Noturnas (1954), mais onze poemas inéditos em livro, finalmente podemos prever o retorno de Palhano e a sua definitiva reinserção no movimento das Letras de Pernambuco. “Minha viagem é densa: / conduzo sementes, pus / e uma vaga superstição. / Como é tempo de Carnaval / visto-me de dinheiro velho / e preparo-me para o nojo. / Meus irmãos me dispensaram, / pediram vinagre, beberam, / sopraram os fusos horários / e se dispersaram. / Por isso, aqui estou / perdido e farto de memórias. / Letra e verbo já não existem, / mesmo como frutos” (de Palhano, “Prelúdio à Treva”), “Talvez fosse de manhã. / Eu não via com exatidão. / Um cavalo percutia na lápide / (demolidos o cálculo, a linha, o centro) / um compasso de regresso e desespero. / Depois, apurei: / uma cidade presa que, / como muita teimosia / um cavalo tentava libertar. (de Palhano, “Armistício 1945”) – sobre os escombros de uma época, partindo uma língua desgastada, fissurada, Jose Laurenio de Melo compõe o seu oratório de cinzas, o seu “sôbolos rios” de

matriz expressionista que é Palhano. Tem como modelo, sem dúvida, o Langston Hughes de poemas como “The Negro Speak of Rivers” (“I’ve known rivers: / I’ve known rivers ancient as the world and older than the / Flow of human blood in human veins. //My soul has grown deep like the rivers. […]”), “Harlem” (“Here on the edge of hell / Stands Harlem- / Remembering / The old lies, / The old kicks / In the back, / The old “be patient” / They told us before. […]”) e “I, Too” (“I, too, sing America. / I am the darker brother. / They send me to eat in the kitchen / When company comes, / But I laugh, / And eat well, / And grow strong. […]”), como bem nos ensina Hermilo Borba Filho, no texto da apresentação original do livro (infelizmente não reproduzido nesta nova edição). Em As Conversações Noturnas, José Laurenio de Melo amplia ainda mais a contenção de sua linguagem. De sua garganta, um ocluso sol surge, destilando imagens simultâneas de geração e destruição, de desejo sexual e impotência, do nascer e do morrer, do feminil e do masculino. José Laurenio de Melo constrói em As Conversações Noturnas o seu grande poema hermético, o seu grande enigma alquímico: “Breve procura delineada / neste ser imperfeito. / A pena, o silêncio, a agonia / e algo que, não pressentido, / resvala na triste espessura, / desvairam em secreta solidão. / Solvem-se os ígneos sinais / detidos na fronte do penedo / nascido de extinto pântano.” (de As Conversações Noturnas, “Parte 3”), “Criaste os substitutos do sonho / com o mesmo desespero lúcido / de quem restaura o ícone / e o íntimo deste não pode ouvir / embora ao próprio ícone se assemelhe. / Por que te negas a ti mesmo? / Antes, muito antes de ti, / cumpremse os desígnios, / propondo-se velhos jogos, / à luz de velhos castigos. / Vai e descobre dentro da urna / o sistema convulso das raízes.” (de As Conversações Noturnas, “Parte 5”), “De amor substancial esta noite. / Os elementos, de suas moradas, / negociam-se mútuos mistérios. / Não te Ilustração de Aloísio Magalhães para primeira edição do livro Palhano, de Laurenio

28 x Continente • FEV 2008

Laurênio_26_27_28_29.indd 28

1/18/2008 9:32:18 AM


desfiz de tuas lembranças, O grupo do TEP, da esquerda / debalde me atordoei, só para a direita: Aloísio Magalhães, Ariano Suassuna, contra o mundo, / contra a Gastão de Holanda, Hermilo vida, contra a morte. Mas Borba Filho, Joel Pontes, Fernando da Rocha Cavalcanti eu te esperava. / Amargo, e José Laurenio de Melo áspero, noturno, iracundo, / eu te esperava, rosa insensata. / A traição foi imensa, consciente, contínua. / Atirei-me aos lances banais, menti, / trafiquei com o teu nome o teu segredo, / indiferente ao clamor do teu existir. / Mas eu te esperava. Sabia que havias de vir. // Vem. Espalha o teu vermelho abrupto e cru / nas minhas retinas, abre tua corola fatal, / espanca as sombras do tédio e do nada. / Deita-me de novo tua secreta bênção, / rosa insensata, purificadora dos loucos” No depoimento que abre esta nova coletânea, “LauNovas chaves se abrem para a obra de José Laurenio de Melo através da leitura dos seus Inéditos. Graças renio e Eu”, Ariano Suassuna afirma categoricamente: ao mérito do crítico João Alexandre Barbosa, muito do “Quando ao Poeta, o que devo adiantar aqui é que, enlaboratório do poeta é descortinado, suas influências tre as influências que recebi na minha formação de hoseminais se apresentam, sobretudo em poemas como mem e de escritor, nenhuma foi tão grande quanto a de José Laurenio de Melo”. “Torneio pluviátil. PasQuando foi editada tiches” e no belíssimo pelo Gráfico Amador, “Rosa (após ler The em 1954, a tiragem de Rose – 1893 – de W.B. As Conversações NoYeats)”, no qual a força turnas foi apenas de do tradutor perfeito de 100 exemplares (nuJohn Keats (procurem merados). Cinqüenta conhecer a sua tradução e quatro anos depois, da “Ode on a Grecian esperamos que a LiteUrn”) aparece em toda ratura Pernambucana a sua íntegra: “Renasesteja preparada para ces. Do fundo da treva dar a José Laurenio tu renasces. / E surges de Lima o seu justo insensata, frívola, desespaço. Que a rosa de pudorada, / como eu Palhano mais uma vez te esperava. Debalde te atraiçoei, / debalde me Palhano, editado em 1950, e a obra poética , na atual edição atualizada floresça. apresses por conhecê-los. / Deixa que eles, comovidos / com tua paciente espera, / se renovem e se descubram. / Só então notarás / o pássaro ou a planta / e terás novos mistérios.” (de As Conversações Noturnas, “Parte 7”). Não sem razão, o escritor Ariano Suassuna aproxima passagens deste longo poema com o pathos terrível de San Juan de la Cruz em “La Noche Escura” (“En una noche oscura, / con ansias, en amores inflamada, / ¡oh dichosa ventura!, / salí sin ser notada, / estando ya mi casa sosegada. // A oscuras y segura, / por la secreta escala, disfrazada, / ¡oh dichosa ventura!, / a oscuras y en celada, / estando ya mi casa sosegada. // En la noche dichosa, / en secreto, que nadie me veía, / ni yo miraba cosa, / sin otra luz y guía, /sino la que en el corazón ardía. [...]”).

FEV 2008 • Continente x

Laurênio_26_27_28_29.indd 29

29

1/18/2008 9:32:22 AM


LITERATURA

ALBERT ROBIDA

Mais ousado do que Verne Jornalista, ensaísta, poeta, político, crítico, chargista e ilustrador, praticamente desconhecido no Brasil, foi mais longe que seu compatriota ao antecipar ficticiamente a realidade do século 20 Fernando Monteiro

Q

uem já ouviu falar de um francês chamado Albert Robida? Pelo menos eu jamais ouvira falar nele, até folhear – num velho sebo do Largo da Trindade, em Lisboa – um caríssimo álbum de imagens medievais que haviam sido feitas para a Grande Exposição parisiense de 1900, quando o século novo foi saudado com a inauguração da torre Eiffel, entre outras comemorações francesas. O alfarrabista que me atendeu, saindo da poeira do seu pequeno escritório cercado de livros, gentilmente explicou que eu estava admirando o trabalho, “hoje esquecido”, de um chargista e ilustrador cujos desenhos e gravuras eram muito apreciados na Paris do fim do século 19, e eu anotei aquele nome – “Robida, Albert” –, para saber mais sobre ele, algum dia. Corte. Estamos em janeiro de 2008. E eu estou lendo isto: “A atmosfera e os rios se encontram poluídos, e numa única gota de chuva podem ser contados 590 mil micróbios. O homem se expõe a todos os tipos de doenças, causadas por

30 x Continente • FEV 2008

Mais ousado que Verne_30_31_32_330 30

1/17/2008 10:25:45 AM


uma industrialização levada ao extremo e pelo uso de substâncias químicas na produção de alimentos”. Você pensa que dei algum pulo sem nexo e que acabo de citar o trecho de algum relatório da OMS? Ledo (e Ivo) Engano. Isso que você acabou de ler é um fragmento do livro O Século XX, editado em 1883, na França, pelo seu autor, Albert Robida, jornalista, ensaísta, poeta, político, crítico, chargista e ilustrador nascido em Campièges, em 1848 – e cujas antecipações, nesses e noutros livros, nos seus artigos e ensaios (para muitos dos seus contemporâneos “simplesmente enlouquecidos”), foi ainda mais ousado do que o seu compatriota mundialmente famoso, Jules Verne – ou “Júlio” Verne, como aqui ficou conhecido, como um tio velho que todos conhecem e admiram. Só Albert Robida é que jamais foi divulgado cá em Pindorama e noutros lugares onde ninguém sabe, s acredito, sequer ninguém sabe uponho, sequer quem foi ele – como eu também não sabia. Quando fiquei sabendo, mal acreditei que alguém assim tivesse realmente existido. Um “maluco” como não se faz mais – Robida (nome que lembra o de um personagem do próprio Verne, Robur, “o conquistador”, comandante de um dirigível) foi um daqueles seres extremamente inquietos que a atmosfera dezenovesca da Revolução Industrial produziu entre balões, invenções extravagantes e carruagens circulando pelas capitais agitadas da Europa entre duas fronteiras do tempo. Albert foi co-proprietário de La Caricature, uma revista de charges políticas que figura entre as mais antigas do continente europeu – e da qual só Umberto Eco,

ao que se sabe, possui a coleção completa. O hábil desenhista tinha atração simultaneamente pelo passado e pelo futuro, além do olhar atento para os ridículos de então, como chargista que punha em evidência as atitudes absurdas de muitos figurões da segunda metade do século retrasado. Sua assinatura – de autor e ilustrador – está numa coleção de livros voltados para a glória medieval de cidades da França, da Espanha, da Itália e da Suíça, assim como a encontramos virada para o futuro, no verdadeiro catálogo do amanhã que é O Século XX, obra de cerca de 600 páginas de “descrição”, em detalhes, do que tendia a ser a realidade social, econômica, política e, principalmente, tecnológica, do vigésimo século. Sobre a Paris de 1960, por exemplo, ele previa: “será uma imensa aglomeração cosmopolita de 11 milhões de habitantes, com mais de 40 distritos que se estenderão até Meaux e Rouen. O subsolo da cidade será entrecortado por uma rede subterrânea de tubos pneumáticos por onde passarão cápsulas metálicas com a correspondência urgente e pequenas encomendas. Duzentas e cinqüenta pontes e viadutos cruzarão o Sena. E o bosque de Bologne, arrasado em nome do progresso, terá cedido espaço a concentrações de fábricas e vilas operárias (...) as ruas serão domínio exclusivo dos pedestres; sobre suas cabeças, como uma gigantesca teia de aranha, uma rede de fios elétricos, e, no teto dos edifícios haverá locais para o pouso de aeronaves, dirigíveis e helicópteros de pouso vertical (atenção: Robida escrevia há 125 anos!). Os prédios terão até 20 andares e serão construídos com estrutura de metal e paredes

FEV 2008 • Continente x

Mais ousado que Verne_30_31_32_331 31

31

1/17/2008 10:25:46 AM


LITERATURA

pré-moldadas de fibra de papel prensado, 20 vezes mais leve que a madeira”. Jules Verne possuía uma imaginação imensa, mas algo mecânica, que precisava de se basear em possibilidades técnicas mais ou menos já embutidas no progresso do seu tempo. Albert Robida ia muito mais longe, e avançava no terreno das grandes mudanças sociais e políticas do futuro quase um século e meio distante do seu olhar de profeta do caos: “A política se transformará numa atividade como outra qualquer (...) sem exigir nenhuma qualificação especial, embora talvez vá existir uma universidade política, mantida pelo governo, onde estudarão os futuros candidatos a cargos eletivos. Seus professores serão velhos ministros e senadores...” – escreve Robida, ameaçando com um futuro onde os franceses candidatos à carreira política correriam o risco de ouvir aulas dos Zés Dirceus e Renans de lá. Bom burguês como Verne, seu colega futurólogo de Campièges via a França como o centro do mundo (o que ela era, em parte, em meados do século 19), e se preocupava com o destino político do seu país: “A França terá um governo parlamentar temperado por crises regulares de gabinete (...) e cada deputado será vigiado por seus eleitores, que o interpelarão frequentemente e que nomearão delegações destinadas a acompanhá-lo, aconselhá-lo e censurá-lo, quando necessário”. Ou seja, Robida era um otimista, por sobre todas as novidades

que enxergava nas nuvens do porvir, não sem alguma dose do humor de um talentoso chargista: “O chefe do governo será um autômato. E com um presidente mecânico, teremos estabilidade política (Robida, nós que hoje estamos com um, podemos garantir: a estabilidade política vai além da mecânica; fecha aspas). Esse robô governamental só funcionará quando acionado por pelo menos duas de três chaves entregues aos presidentes do Conselho de Ministros, da Câmara dos Deputados e do Senado. E quando isso acontecer, a máquina poderá julgar friamente o valor das leis propostas à nação.” Não há notícia de qualquer referência à automação, anterior a essa, escrita por um homem que parecia ser capaz de inventar o futuro – mais do que simplesmente prevê-lo por indicações e tendências do seu tempo. Isso porque Robida viria a antecipar nada mais nada menos que a mais importante revolução do mundo moderno. Saindo da futurologia para a bola de cristal – Com margem de erro de apenas cinco anos, esse francês (capaz de ir mais longe do que os Vernes e os Wells) previu, ou melhor, adivinhou: “Haverá uma importante experiência socialista a partir de 1922. Ela começará na Rússia dos czares.” Se você acha isso um tanto vago, saiba que Robida foi preciso com relação ao desenvolvimento da imprensa, incluindo meios de comunicação que só surgiriam um século depois. Há um desenho dele no qual vemos um repórter transmitindo notícias pelo rádio ainda longín-

32 x Continente • FEV 2008

Mais ousado que Verne_30_31_32_332 32

1/17/2008 10:25:48 AM


vez mais poderosos, associados com a nova arma aérea – em larga escala –, farão com que um observador possa acompanhar sem dificuldade os movimentos do inimigo”. Também fala numa tal de “bombarda de motor elétrico”, cujo desenho é muito próximo do tanque de guerra. Vai mais além: “canhões de miasmas serão parte essencial dos exércitos das Grandes Potências” (em outras palavras, a moderna guerra química). “Mas todo esse progresso trará um amolecimento nos costumes e na saúde do homem, no século 20” – avisa Robida. Ele menciona certo tipo de relação “pré-matrimonial”, que será dos costumes – mais permissivos – da era futura, e fala da saúde combalida, nessa época: “nenhum adulto chegará aos 40 anos sem contrair doenças, porque o corpo estará enfraquecido pelo progresso. Para curá-lo, será necessário um perí-

quo, pelos fios elétricos: “A fada da eletricidade – escreve o autor de O Século XX – irá se transformar na grande escrava do homem. E o telégrafo será destronado pelo telefone, e depois pelo telefonoscópio (televisão), uma extraordinária invenção que permitirá ver e ouvir cenas distantes; os jornais não serão mais impressos. As salas de redação enviarão as notícias por telefone para seus assinantes. Cada um terá em casa um aparelho receptor que funcionará automaticamente durante a noite, e, pela manhã, bastará abrir a caixa receptora e apanhar o rolo impresso de notícias”. Robida é um profeta enxergando na sombra das carruagens das senhoritas em flor e, na metade do século de Victor Hugo (com quem guarda certa semelhança física), é capaz de descrever o mundo do amanhã que veio a se concretizar: “Haverá fotolivros e fotobibliotecas, e, no lugar de páginas impressas, haverá cópias fotográficas guardadas em estantes especiais. Se algum assinante se interessar por determinado texto em particular, ele poderá pedir por telefone e recebê-lo em casa, através de um mecanismo parecido com o telefonoscópio...” Albert Robida também errou – que ninguém é infalível. Ele previu que certas profissões iriam acabar: “A de pintor será uma delas. Esse profissional será substituído pelo técnico que pinta quadros usando máquinas automáticas fotográficas (isso é algo parecido com a arte feita no computador). O músico profissional será substituído pelas companhias radiofônicas que transmitirão concertos através do rádio”. Robida poderia ter acertado, se houvesse previsto não a extinção dos pintores e dos músicos, mas a sua transformação em “instaladores” e autores da música-de-elevador (e coisas piores) que hoje escutamos, num mundo que já substituiu a qualidade pela vulgaridade, etc.

O tanque de guerra como antecipou Robida

Outras antecipações: em Le Vrai Sexe Fragile, Albert Robida antecipou a onda feminista que varreria o século 20: “a mulher, libertada de suas responsabilidades caseiras, ganhará liberdades e direitos iguais aos do homem”. Um artigo por ele assinado, anunciava que a locomotiva francesa (maravilha da época) iria ficar exposta no Museu de Cluny: “no futuro, os passageiros viajarão em veículos de alta velocidade, dentro de tubos, sob um sistema de propulsão elétrica que será sem ruído ou trepidação”. E, para pagar a passagem, bastará apertar o cartão pessoal postal (esse homem fantástico estava prevendo o uso do cartão de crédito – e só esqueceu, aparentemente, de prever que o cheiro de sovaco iria inundar, um dia, os vagões do metrô parisiense, nas horas de rush). Robida sabe que as guerras continuarão no século 20 – mesmo que sob o pretexto de fazer a guerra “para acabar com todas as guerras”. Ele anuncia: “navios cada

odo de repouso em Parques Nacionais, onde não haverá poluição e onde o homem voltará a sentir o contato direto com a natureza. Micróbios enfraquecidos (leiase: antibióticos) serão ministrados aos pacientes para forçar seu organismo a lutar contra a doença. Haverá restaurantes medicinais, onde o paciente poderá comer apenas certos alimentos que não lhe causam mal, e o Grande Remédio Nacional, amplamente divulgado por todos os meios, será microbicida, tônico e reconstituinte. O próprio governo se encarregará da sua produção”. Isso tudo Albert Robida previa para a França – pois um bom francês só pensa nela. Robida só não previu Nicolas Sarkozy – certamente porque nem um visionário poderia adivinhar que a maioria gaulesa viesse a preferir, um dia, a “barbárie” conservadora talvez disposta a consumar os piores aspectos das adivinhações robidescas. FEV 2008 • Continente x

Mais ousado que Verne_30_31_32_333 33

33

1/31/2008 9:48:19 AM


entre linhas

Luzilá Gonçalves Ferreira

O atelier do artista

"E

mundo possuem alguma tela que atesta dessa sua partile não deixava ninguém entrar aqui." cipação em importante momento da arte do Ocidente. Raymonde, que dividiu mais de quaMas o garoto de Jundiá está ali, Pernambuco está ali. Os renta anos de vida com Cícero Dias, abre a amigos daquela época se fazem presentes nas fotos, nos porta do atelier onde ele trabalhava. Com livros, nos recortes de jornal. Correspondência de Picasso fundo musical sempre, Cícero gostava de Chopin, ela com Apollinaire, poemas de Paul Eluard, de René Char, acrescenta. Espalhados pela peça, objetos os mais hetecompanheiros de todos os instantes. Pouca gente sabe, róclitos, sobretudo aqueles que lembravam ou reconstipor exemplo, que Cícero atravessou a França levando estuíam parte do Brasil: panelas de barro, figurinhas, reprecondido entre papéis, o poema Liberté, canto de coragem sentações de cultos religiosos afros ou indígenas. Uma e de esperança que Eluard envivava aos companheiros de rede num canto fala de repouso, da moleza nossa assinaclandestinidade e que seria distribuído no escuro da noite lada por Mário de Andrade, amigo do pintor. numa Paris ocupada, burlando a vigilância do inimigo. Cícero Dias trabalhava aqui. Pincéis, paletas, bisnagas Comovente pensar que tanta beleza começou aqui. de tinta estão como os deixou. Daqui saíram as meninas Muitos pintores passaram para suas telas seu ambienna janela, os grandes olhos olhando passar a vida, na mote de trabalho. Penso em Rembrandt, em Courbet. No notonia da cidadezinha do interior. Aqui brotaram fruatelier de Cézanne, nos arredores de Aix en Provence, os tas, árvores, visões que o garoto do Engenho Jundiá guarinstrumentos de trabalho silenciosos, as botas e a capa dara da infância, saltando todas dos longes da memória de chuva ainda se achampenduradas em um canto, que para o espaço claro da tela. Além da porta envidraçada, serviam para as longas caminhadas do artista em torno Paris continua a viver, pessoas passam, ignorando que ali da Montanha Sainte Victoire, dos pinheiros do Tholonet, viveu um grande artista. Não totalmente ignorando: na que ele imortalizou. No atelier de Rodin, onde o jovem fachada do prédio 123 da Rua de Longchamp, a dois pasRilke aprendeu com o escultor a “trabalhar, trabalhar, sos do Bosque de Boulogne, uma placa assinala que ali trabalhar”, um grande Balzac desfeito pela chuva que morou um pintor brasileiro que participara da Resistênentrara pela janela, mostra um primeiro esboço do que cia Francesa durante a ocupação do país pelos nazistas. A seria a estátua do romancista. paisagem lá fora é a mesma que Cícero contemplava cada Reprodução Raymonde vai mudar de casa, o dia, as pessoas passam, lentas, apesar apartamento se tornou grande dedo frio do inverno parisiense, tudo mais para uma mulher sozinha, ela tão diferente do calor de Jundiá, que explica. O atelier de Cícero está senformou o menino que Cícero nunca do transportado, peça por peça. Será deixou de ser. idêntico ao anterior, a alguns passos Como muitos artistas de seu moda mesma casa, rua de Longchamp. mento histórico em Paris, Cícero Não vai ficar apenas na eternidade, viveu em Montparnasse, conviveu com seus quadros suspensos no ar, com Picasso e Braque, fez-se cubiscomo o quarto de Manuel Bandeita, os grandes quadros com figuras ra. Na parte superior do novo apargeométricas, explodem em cores petamento a escada é de difícil acesso, los cômodos do apartamento, onde Raymonde não poderá subir ali Raymonde e Sílvia, a filha também com freqüência. pintora, cultivam sua lembrança, e – Mas me basta saber que ele mais que lembrança, sua presença. O pintor pernambucano Cícero Dias está ali, ela afirma. Cubista sim, os grandes museus do 34 Continente • FEV 2008

EntreLinhas_34.indd 34

1/29/2008 4:36:59 PM


TESES

Dois cronistas, duas épocas João do Rio e Fernando Bonassi, cronistas do cotidiano das metrópoles brasileiras do século 20

Acervo Biblioteca Nacional/Reprodução

Divulgação

Adriana Dória Matos

T

oda comparação é arbitrária? Quer dizer, quando decidimos comparar uma pessoa, objeto ou obra a outra, estamos sendo voluntariosos? Ou há como estabelecer padrões de comparação? Ao relacionarmos um irmão a outro, em geral, usamos os termos da paternidade e da educação para tirar conclusões. Se repararmos bem, estamos sempre comparando as coisas, buscando simetrias, contrastes, justificativas para qualificações. Digamos, de uma forma bem simplificada, que na literatura comparada agimos assim também, buscando aproximações, parentescos, filiações, influências e oposições entre autores e obras que, ainda que distantes em tempo e espaço, guardam traços comuns entre si. Em Flagrantes de Rua – Centros Urbanos e Marginalidade nas Crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi, busco relações entre autores que – aparentemente – nada têm nada em comum, cotejando o livro A Alma Encantadora das Ruas (1908), do primeiro, e 100 Coisas (2000) e Passaporte (2001), do segundo. Mas, a idéia de arbitrariedade na escolha pode ser abandonada se considerarmos aspectos que aproximam João do Rio (1881-1921) e Fernando Bonassi (1962). FEV 2008 • Continente x

Teses_35_36_37.indd 35

35

1/29/2008 4:37:43 PM


es

TESES Ambos são autores que escrevem sobre marginalidade urbana, aspecto mais evidente da aproximação. Contam histórias incríveis sobre homens e mulheres que povoam as ruas, inventando formas de viver, de trabalhar e de se divertir, nem todas lícitas. Antes que sigamos, vale esclarecer que marginalidade aqui é noção derivada do olhar do privilegiado social, que observa os desprovidos como “o outro”, aquele que não compartilha bens, posição e hábitos semelhantes aos seus. João do Rio e Fernando Bonassi se interessam pelos párias e, enquanto lhes confere forma textual, revelam a realidade das duas maiores metrópoles brasileiras do século passado, o Rio de Janeiro, capital nacional e centro cosmopolita da belle époque, e São Paulo, cidade superpopulosa e violentamente desigual do novo milênio. O gênero em que se exercitam João do Rio e Fernando Bonassi é a crônica. Ainda que esta não seja uma analogia enfatizada na dissertação, é interessante notar que, assim como os personagens retratados pelos dois escritores, a crônica é um gênero marginalizado pela crítica literária. Isto bem provavelmente se deve ao seu caráter híbrido, mestiço, meio literatura, meio jornalismo, porque tradicionalmente escrito para ser primeiro publicado em jornais, sendo de feitio ligeiro, efêmero, informal e nunca esquecido do comentário do cotidiano. Algo que não se leva muito a sério, já que não é feito para “durar”, como ambiciona a “grande” literatura. Nos textos escolhidos para análise, o lugar de onde falam esses autores são as páginas de jornal diário e a forma por eles encontrada para contar o mundo é o texto-crônica, que se permite buscar referências na realidade objetiva, nos fatos do dia-a-dia, misturando-a com imaginação, criação e memória. A crônica cumpre, tanto no João do Rio da aurora do século 20 quanto no Bonassi finissecular, a função de agilizar a produção do texto literário, difundi-lo a um maior número de leitores e prover a sobrevivência, ou, ao menos, parte constante dela. A esse respeito, devemos nos lembrar que boa parte dos autores hoje canônicos da literatura brasileira passou por redações de jornal, exercendo funções de repórteres, editores, revisores, articulistas e cronistas. E eles não estavam ali apenas pelo amor ao ofício ou pela vaidade, que a tantos atiça, mas porque o jornalismo lhes garantia o provento que a literatura não lhes era capaz de oferecer. Entre outros, José de Alencar, Machado de Assis, Joaquim Manoel de Macedo, Aluísio e Artur Azevedo, Olavo Bilac, Mário e Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira foram cronistas, além de romancistas, contistas, dramaturgos e poetas. Isto sem falar em Rubem Braga, que foi o cronista e “apenas” isto. Mas, se houve aproximação entre jornalismo e literatura desde quando a imprensa nacional foi instituída, no segundo decênio do século 19, até os anos 1980, a realidade é diferente nas redações atuais. Por conta de sucessivos cortes de custos e acirramento no uso do espaço redacional para produção de notícias curtas e objetivas, não-ficcionais, a presença da crônica vem-se

João do Rio e Bonassi escrevem sobre a marginalidade urbana. Contam histórias incríveis sobre homens e mulheres que povoam as ruas, inventando formas de viver, de trabalhar e de se divertir, nem todas lícitas

36 x Continente • FEV 2008

Teses_35_36_37.indd 36

1/31/2008 10:11:30 AM


Fotos: Reprodução

Vista da Avenida Central, Rio de Janeiro, na década de 1920. Abaixo, Manuel Bandeira e Mário de Andrade

tornando cada vez menor nos impressos, havendo uma migração significativa do gênero às páginas eletrônicas da web. Também, sobre o arrefecimento do gênero na grande imprensa nas últimas décadas, deve-se considerar o amadurecimento do mercado editorial no Brasil, favorecendo a profissionalização do próprio escritor que, ainda em casos raros, pode viver do seu ofício independentemente da atividade jornalística. Além de oferecerem panorama instigante dos contrastes do cenário urbano do início e do fim do século 20, colocadas lado a lado, as crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi são testemunho das transformações ocorridas na imprensa e na literatura, especificamente no gênero crônica. João do Rio foi contemporâneo de transições. A república fora recém-inaugurada e a imprensa abandonava seu tom excessivamente retórico, panfletário, passando a se interessar cada vez mais pela reportagem, reflexo de sua industrialização. No que diz respeito à literatura, sofria enorme influência da cultura francesa, com rescaldos do realismo, simbolismo, impressionismo e parnasianismo, mas, sobretudo, constituindo-se de uma literatura ornamental, que o crítico José Paulo Paes associou ao estilo que nas artes plásticas e na arquitetura ficou conhecido como art nouveau. Se houve, nos dois primeiros decênios do século 20, a busca pela simplificação da linguagem e aproximação à cultura local, que marcariam os textos modernistas, levando alguns estudiosos a chamarem o período de pré-modernista (numa evidente nomeação a posteriori), isto se deveu em parte à atuação de escritores na imprensa. Foi este o caso de João do Rio, um autor marcado por sua atuação jornalística, a quem se atribui o epíteto de primeiro repórter do Brasil. Em A Alma Encantadora das Ruas, ele embaralha estilos, em textos em que há o método investigativo da reportagem, a estrutura narrativa do conto e a oralidade da crônica. Fernando Bonassi chega aos jornais numa época em que tempo é dinheiro e o espaço redacional, curto. Supõe-se que o leitor quer notícia rápida e sintética. A urbanização ocorreu de forma desumana, arrastando para as bordas da cidade os pobres e desempregados. Riqueza é para poucos. Assim, seus textos expressam a velocidade e a violência dos novos tempos. Em 100 Coisas e Passaporte, o autor se aproveita de sua formação em cinema, propondo leituras ágeis de textos curtíssimos, não tendo cada história mais de oito linhas. Há nele uma forma drástica de contar o mundo e sua narrativa é análoga à foto instantânea, pela possibilidade de captar o fragmento do banal, que se dissipa num instante. • Adriana Dória Matos defendeu a dissertação Flagrantes de Rua - Centros Urbanos e Marginalidade nas Crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi. FEV 2008 • Continente x

Teses_35_36_37.indd 37

37

1/31/2008 10:11:31 AM


Ilustração: Zenival

ESPECIAL

38 x Continente • FEV 2008

2especial alberto_38 _47 .indd 38

Uma poesia de sangue 1/29/2008 4:40:05 PM


P

Na poesia de Alberto da Cunha Melo, é o rigor a virtude por excelência de uma arte que vai além das palavras da tribo para alcançar o universal da linguagem Ângelo Monteiro

odemos considerar, pelo menos, três formas de poesia: a de sangue, a de mármore e a de gesso. A de sangue se caracteriza pelo intercâmbio vital entre o homem e a realidade, mesmo quando se constela de significados que a ambos possam transcender. A poesia de mármore pela propriedade de superar as crispações do seu tempo, por habitar estrategicamente um espaço impenetrável tanto aos ventos quanto às ondas. E a poesia de gesso que, à margem quer das exigências do tempo, quer dos sopros da eternidade, é fofa e oca mas — porque irremissivelmente decorativa, pois ninguém reza a santos de gesso — tende ao solene e a um solene que não conheça nenhuma forma de contradição. Nem mesmo a de confundir continuamente fôrma com forma. Alberto da Cunha Melo pertence à poesia que, entranhada no sangue, como a de um Augusto dos Anjos, no Brasil, e a do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, em Portugal, pouca relação aparenta com o mármore e, menos ainda, com o gesso. O poeta que escreve: “Viver, simplesmente viver,/ meu cão faz isso muito bem:/ quero dentes mais fortes,/ quero a poesia que for possível,” se não demonstra boa compreensão com a águia e a serpente nietzschianas — o vôo aquilino da razão e o retorno à circularidade da terra — , muito menos se acomodaria com os passarinhos de gesso ou com os anjinhos de procissão. Enquanto a poesia de mármore resiste às afecções das conjunturas, como em um Rilke ou em um Fernando Pessoa ortônimo, a de sangue faz dessas mesmas conjunturas o alicerce do próprio canto. O poeta para quem “a palavra Deus está fria/ como uma máquina ao relento”, sabe o que vale o peso da historicidade para o pulsar do próprio sangue, e embora não pretenda enfrentar o mundo com a consistência e a constância do mármore, do mesmo modo estará distante de acreditar em monumentos de gesso que, ao iludirem pela faiscante brancura da aparência, costuma fazer da superfície toda sua profundidade. Apesar de uma poesia aberta às vicissitudes temporais, Alberto da Cunha Melo, em vez de aderir a um tipo de flexibilidade que nivela no mesmo estalão a disciplina e a indisciplina estéticas, amplificou, desde a longa fase dos octossílabos, a utilização de outras FEV 2008 • Continente x

2especial alberto_38 _47 .indd 39

39

1/29/2008 4:40:08 PM


Arquivo da família

ESPECIAL

Livros e objetos pessoais do poeta em seu escritório

formas fixas, inclusive as criadas por ele, como a retranca dos seus últimos livros: Meditação sob os lajedos, Yacala e O cão de olhos amarelos, sempre nadando na contracorrente da pós-modernidade que, em seu vale-tudo, abarca concepções como, no domínio das artes plásticas, a arte conceitual, essa maneira enviesada de suprir a ausência de qualquer pique criador. O rigor, portanto, com que Alberto da Cunha Melo trabalhou a matéria poética não se esmoreceu nem mesmo quando ele chegou a conclusão de que “poema nenhum, nunca mais/ será um acontecimento,/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos,/ para um público dos ermos,/ composto apenas de nós mesmos”, como ele anuncia em um dos seus últimos livros, Meditação sob os lajedos. Isso vem apenas comprovar que nem sempre uma concepção um tanto desconfortável da existência — e qual delas é mais confortável? — tem que vir necessariamente desacompanhada de parâmetros de valor estético, de caráter axiológico, ainda quando estes pareçam contraditórios com essa mesma existência. Por outro lado o seu confesso construtivismo nunca se fundamentou sobre fórmulas em desacordo com sua própria experiência existencial, como se a poesia fosse uma coisa e a vida uma bem outra, ou

um exercício inofensivo que dispensasse quaisquer conseqüências sobre a sociedade e a cultura. O que seria, no mínimo, bastante estranho a um poeta que pregava: “A poesia não é mais feita/ de água, de colírio indulgente:/ mude de verso, se não pode/ mais, nunca mais mudar de vida”. Mas independentemente de uma visão construtivista — como a dele e a de João Cabral — ou criadora e inspirada, no sentido de Jorge de Lima, é o rigor a virtude por excelência de uma arte como a poesia que deve ir além das palavras da tribo para alcançar o universal na linguagem. E esse é o elemento mais distintivo dessa poesia em comparação com as seduções facilitárias que costumeiramente parecem rondar a produção poética brasileira contemporânea. A partir de Círculo Cósmico, e intensificando-se em Oração pelo poema e Publicação do corpo, há uma temática constante no poeta: a necessidade de uma poesia que transcenda a circunstância e a certeza de que essa transcendência é impossível, por não conseguir se realizar além da linguagem, como ele nos mostra numa das estrofes de Oração pelo poema, o único de seus livros de caráter místico: “Dá-me uma canção que me salve/ no tempo em que as canções

40 x Continente • FEV 2008

2especial alberto_38 _47 .indd 40

1/29/2008 4:40:12 PM


Arquivo da família

morreram,/ para tocá-la no piano/ velho, cada noite mais alto”. Tal temática converge para a morte que, “nova prosódia/ de uma palavra sem sentido”, durante a adolescência se esconde, traiçoeira, no seio da vida: “que só no engano a gloriosa/ lâmpada breve dos mortais/ pensa brilhar mais que uma rosa/ ou essa lasca de lajedo/ que da eternidade tem medo”, como a define no poema Adolescência, em Meditação sob os lajedos. A impossibilidade de realizar a transcendência e, de igual modo, a certeza inescapável da morte transforma essa poesia numa espécie de Imitação de Cristo às avessas: por não prometer nenhuma imortalidade, ao contrário da de Tomás de Kempis, a poesia é um dom dado aos mortais apenas para ser um dom, e nada mais que isso. Como responder outra coisa à pergunta que se encontra em Yacala: “Quando mudar é, simplesmente,/ ser no outro ser, sob a promessa/ de assustadora eternidade/ que a alma do cosmo atravessa,/ que gorjeios de anjos essa gente/ suporta ouvir eternamente?”. Ora, foi justamente a consciência dessa fragilidade intrínseca à condição mortal, que levou Alberto da Cunha Melo a incorporar em sua grande obra o legado da tradição para revestir de rigor e fulgor a palavra em língua portuguesa e, dessa forma alcançar para o verso a mesma necessidade da poesia de mármore: a perenidade de todas as coisas na linguagem. E isso faz a maior diferença — sobretudo na atualidade — em relação aos pólos gesseiros quase infinitos da poesia nacional.

O idioma essencial em Alberto da Cunha Melo A narratividade é um dos elementos centrais da poesia de Alberto da Cunha Melo Hildeberto Barbosa Filho

E

m todas as obras do poeta Alberto da Cunha Melo – veja-se particularmente Yacala – o lirismo se consolida em técnicas de fabulação, onde os episódios vividos, as ações experimentadas e os personagens tendem a desempenhar um papel fundamental. Cada poema parece contar um fato. Cada fato parece se confirmar enquanto alegoria da condição humana. A presença dos personagens, em suas situações-limite, me dá a convicção de que estou nos arredores de um conto breve, de uma narrativa trágica. Poemas como “Marta”, “Gonçalo”, “Lena”, “Onório”, e tantos outros de O Cão de Olhos Amarelos, mesclam o lirismo que brota do animus do eu poético, quase sempre distanciado e irônico, com as fagulhas inesperadas do drama. É curioso, de outra parte, como a substância concreta destes casos absurdos, de repente se transmuda, pela força da forma verbal, em sugestões cognitivas de surpreendente impacto filosófico, fundindo, na mesma percepção - e já agora percepção estética – o grotesco e o sublime, a verdade e a beleza. Não é muito comum, pelo menos no âmbito da lírica, o poema narrativo. Penso em Drummond, com a “Morte do Leiteiro” e “Caso do Vestido”, ambos de A Rosa do Povo. Só que em Alberto, o processo me parece essencial. Por quê? Ora, porque aponta para uma das fontes seminais de sua poesia. Quero me referir à tradição oral do cancioneiro popular de linhagem ibérica, que tanto fertiliza a criação literária dos nordestinos. Observem-se, por exemplo, um João Cabral de Melo Neto e um Ariano Suassuna. Não me prendo à métrica e ao ritmo de poemas como “O Cantador de Monteiro” e “Serra, Serrote, Serrita”, vazados em estilística de cordel (assunto do qual o poeta é estudioso), mas me atenho especificamente ao procedimento interno de compor um texto dentro de um foco, a rigor narrativo, que FEV 2008 • Continente x

2especial alberto_38 _47 .indd 41

41

1/29/2008 4:40:14 PM


põe os vocábulos ao rés do chão, sem perder, contudo, o vigor lírico da palavra, sobremaneira pelos contrastes ideativos, pela energia das imagens e a organização melódica dos versos. O mais significativo é isto: em Alberto, a trama que se emoldura em cada poema nunca elide a configuração verbal do impulso lírico. O traço salvo engano, advém dos veios germinais da tradição popular. E daí, mais um ingrediente que pode confundir o leitor: Como um poeta tão erudito, leitor de Kafka e Eliot, um poeta filosófico e metafísico, não se descola das matrizes tradicionais? Ora, a escolha temática e a maneira de operá-la tornam a poesia de Alberto estranhamente misturada, estilisticamente híbrida, dentro daquela linhagem a que Edmund Wilson, em O castelo de Axel, chama de família do coloquial-irônico, que pode abrigar, por exemplo, as figuras de Corbiére, de Lanforque, de Pound e de T.S. Eliot.

Arquivo da família

ESPECIAL

Para além da narratividade, consideremos, ainda, certos procedimentos retóricos que, de um modo ou de outro, imprimem tonalidade especial à sua lírica. Eliotiano, o autor de Oração pelo Poema também procura expressar a emoção através do chamado “correlativo objetivo”. Segundo o poeta de Quatro Quartetos, no ensaio “Hamlet”, “o único meio de exprimir emoções em forma de arte é através de um correlativo objetivo: em outras palavras, o conjunto de objetos, uma situação e uma cadeia de acontecimentos que sejam a fórmula para esta emoção particular, de tal modo que, quando os fatos externos, que devem terminar em experiência sensorial, são apresentados, as emoções são evocadas”. A utilização desta técnica empresta maior objetividade ao lirismo e chama a atenção sobre a obra em si mesma enquanto estrutura autônoma e independente. Se não esvazia o conteúdo emocional do poema, o que seria contrário à sua natureza estética, e mais ainda à categoria lírica, elimina, no entanto, seus nutrientes confessionais e subjetivos. A narrativa e o aspecto aperceptivo, que me parecem intrínsecos à poética albertiana, pagam o devido tributo a este componente discursivo. Os exemplos são muitos e recorrem em todos os momentos de sua poesia. Selecionemos alguns de sua última obra publicada. Em “Distâncias”, a compaixão é vista como uma freirinha magra dos caminhos / e que anda muito devagar”; em “Marlene”, exibe-se esta construção: “Nos jarros da sala, as flores, / cabeças pendidas, 42 x Continente • FEV 2008

2especial alberto_38 _47 .indd 42

1/29/2008 4:40:18 PM


“O Nordeste nos dá, mais uma vez, depois do paraibano Augusto dos Anjos (presente de modo subliminar na atmosfera de várias passagens de Yacala), do alagoano Jorge de Lima e dos pernambucanos Carlos Pena Filho e João Cabral, a sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia como a de Alberto da Cunha Melo, cujo nome secreto é – resistência.” (Alfredo Bosi – prefácio do livro Yacala.) “(...) desta vez, num longo poema narrativo (ou, de outro ângulo, numa alentada alegoria dramática), Cunha Melo amplia a lição cabralina, resumindo e expandindo sua própria arte a ponto de tornar irrefutável sua definitiva presença entre os grandes de nossa lírica. A linguagem pungente e específica, tão concreta quanto alusiva e simbólica – leia-se: o idioma servido sem complexidades ornamentais, aquele que em momento algum faz um dialeto de si mesmo – foi desde sempre a marca registrada deste maggior fabbro à inglesa, de timbre telúrico e fôlego metafísico à maneira (e à altura) de um Herbert, um Donne, ou um Hill hoje” (Bruno Tolentino, revista Bravo, outubro de 1999, sobre o livro Yacala.) “Dessa forma, Alberto da Cunha Melo cultivou com obsessão o octossílabo, mais do que o fizeram juntos todos os poetas da língua portuguesa (incluindo Cabral e Pessoa) e realizou, com Carlos Drummond de Andrade e, quiçá o próprio Cabral, a poesia política mais autêntica do Brasil, e, quase unicamente, a mais bem – sucedida e original poesia fundada em ciência econômica da língua portuguesa.” (Mário Hélio, Recife, PE, 1989 – posfácio do livro Poemas Anteriores.) “ ... a sua obra posterior (...) não apenas reafirma as suas preocupações formais como o coloca entre os grandes nomes da poesia brasileira da segunda metade do século 20.” (Anco Márcio Tenório Vieira in Biblos. Enciclopédia VERBO das Literaturas de Língua Portuguesa. Lisboa/São Paulo. Editora Verbo, 1999.)

seriam / corpos de bebês enforcados”; em “Lena”, a personagem “Para mostrar-se, se abrigava / sob o esqueleto de um ipê, / tão desfolhado quanto ela”; em “UTI”, veja-se um elemento abstrato em pura imagem concreta: “Eis o zênite da agonia: / a dor não aumenta, se parte / como vidro, dentro do corpo, / tirando-lhe toda elegância antiga / diante da morte”; em “Praieira” aparece esta correlação: “Enquanto isso, a vida passa /incógnita, levando o seu / saco de sementes nas costas”. Ao correlativo objetivo funde-se, não raro, o acento expressionista da imagem, o imagismo plástico tão característico de Alberto (“Era um cão de olhos amarelos / com uns tons de urina boiando / pelo ferro podre das órbitas”), compactando a dicção. Outro traço estilístico, notado inclusive pelo crítico Mário Hélio, em “A ordem fatal das coisas”, prefácio a Dois Caminhos e uma Oração, consiste na vocação aforismática que, segundo seu entendimento, vindo desde os primeiros octossílabos, “continuou nos Poemas à Mão Livre, ampliou-se em Carne de Terceira, não arrefeceu em Yacala (poema narrativo) e mais se acentua agora”. Diria apenas que o aforismo, na mais das vezes, inicia os poemas numa espécie de apresentação da idéia que, por sua vez, deverá ser glosada com os fatos e vivências narrados ou descritos. Em “Turíbulo”, por exemplo, a estrutura é esta: “Deus se esconde, mas não confessa / seu horror de não morrer nunca”. O resto do texto se desenvolve, com os correlativos objetivos, com a tactilidade e a visualidade das imagens e com as “melhores palavras possíveis na melhor ordem possível”, conforme Coleridge conceituando a poesia, elucidando o significado poético e filosófico dos versos inaugurais. O mesmo se dá com o poema “Varrendo o Salão” (aliás, observe-se bem o título na sua insinuação irônica!): “Qualquer vida é longa demais / para quem não pode escolhê-la”. Assim também com “Tílias”: “Para as tílias e para tudo / que vive, toda vida é a última”. Assim também com tantos e tantos textos, no idioma essencial do seu longo poemário.

“(...) Inventando uma forma fixa, Alberto da Cunha Melo ingressou em um fechadíssimo clube de poetas, entre os quais sobressaem Giacomo da Lentino, inventor do soneto, e Arnaut Daniel, criador da sextina.” (César Leal, Diário de Pernambuco – Recife - PE, 13.7.1998 – sobre o livro Carne de Terceira.) FEV 2008 • Continente x

2especial alberto_38 _47 .indd 43

43

1/29/2008 4:40:21 PM


A morte deveria ser um território interditado às palavras. A perda de um amigo é algo tão delicado e indizível que as palavras, com seus dedos pesados, são capazes apenas de profanação Alberto da Cunha Melo

Tributo silencioso Ermelinda Maria Araújo Ferreira

P

or ocasião da partida de Alberto da Cunha Melo – aclamado como um dos maiores poetas da língua portuguesa graças a sua poesia de devastadora e dramática beleza –, e diante do desafio que me foi proposto de “apresentar a sua obra para os leitores desta revista”, ocorreu-me insistentemente lembrar do que disse certa vez o poeta Rainer Maria Rilke: “Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas”. Pensei, então, que não poderia fazer melhor uso destas páginas, já tão familiares ao jornalista que as freqüentou ao longo de sete anos na sua coluna Marco Zero, do que deixar falar o poeta em sua grandeza nesta seleção de poemas extraídos dos livros que publicou ao longo da vida. Breve, brevíssima seleção, muito pessoal – perdoem-me os leitores – mas que permite entrever a intensidade da luz que emana da fonte. A idéia de que escrever é uma persistente e reiterada prece ao inefável e ao inelutável, e a reflexão de que a vida não passa da noite de uma longa aprendizagem são, dentre tantas outras, duas poderosas mensagens lapidadas nestes versos. Um minuto de silêncio para Alberto da Cunha Melo. Que a sua poesia fale.

44 x Continente • FEV 2008

2especial alberto_38 _47 .indd 44

1/29/2008 4:40:23 PM


Alberto da Cunha Melo em pincel seco, por João Câmara

FEV 2008 • Continente x

2especial alberto_38 _47 .indd 45

45

1/29/2008 4:40:25 PM


ESPECIAL Oração pelo Poema – 1966

Clau – 1980

Yacala – 1999

II

Poema para Clau

Exórdio

Senhor, dá-me a palavra brisa, irmã das fontes, dá-me agora, qualquer palavra que suavize a minha vida, para sempre.

Ainda não acredito no teu corpo tão perto, nos teus cabelos cobrindo meus olhos com medo de te perder; ainda não acredito na tua voz vazada em vento leve de arvoredo distante; ainda não acredito que chegaste; depois de passar tanto tempo esquecido que havia, atrás das folhagens do mundo, uma possibilidade de ti.

Levamos fogo, não esponjas, ao trono sujo de excremento, disputando o mesmo vazio de uma estrela no firmamento;

Dá-me uma canção que me salve no tempo em que as canções morreram, para tocá-la no piano velho, cada noite mais alto. Cobre várias vezes com a gaze de tuas nuvens o vocábulo ferido (como eu) na cidade dos cegos, pisado por eles. Levanta as brancas persianas sobre a manhã – que só começa quando ouvimos pronunciar o nosso nome, uma palavra. Dá-me novamente a esperança de transmitir todas as coisas novas, que a noite me disse ou que teus anjos me disseram. Noticiário – 1979 Chegada de um camponês à rodoviária És tão pouco, tão pobre, tão nada, como chegaste até aqui? Todos esperavam receber, pelos ruídos que vinham do Nordeste, alguma coisa coletiva e numerosa, alguma coisa majestosa. Mas, chegaste, criatura despedaçada, uma após a outra, no teu humilde e poderoso chegar.

Poemas à Mão Livre – 1981

jarros negros e estrelas, tudo é uma busca de conteúdo; ou somos renúncia ou cobiça, atravessando esses planaltos feitos de cinza movediça; mas todos estamos em casa, como os vôos dentro das asas. Meditação sob os Lajedos – 2002 Casa vazia

Ela Que salto Por cima de todos os pactos; que fuga que alisa todas as rugas; que gesto que apaga o longe e o perto; que sono, que fim de todos os sonos. Carne de Terceira – 1996

Poema nenhum, nunca mais, será um acontecimento: escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos, para esse público dos ermos composto apenas de nós mesmos, uns joões batistas a pregar para as dobras de suas túnicas seu deserto particular, ou cães latindo, noite e dia, dentro de uma casa vazia.

Medo de ter deixado aberta alguma grade e, tudo já trancado, o próprio medo invade; medo de um novo Iago na passagem do cargo; de matar por asfixia (travesseiro de penas) o sonho de um só dia; de sorver-se em poeira: lágrima em chão de feira.

46 x Continente • FEV 2008

2especial alberto_38 _47 .indd 46

1/29/2008 4:40:36 PM


O Cão de Olhos Amarelos - 2006 Marta “... a palavra só consegue louvar a beleza sensual, mas não reproduzi-la” Thomas Mann Como dizer aquela forma, sem esvaziar seu fulgor? Como dizer aquela forma, sem esvaziar seu fulgor? Tinha a cor sólida do chumbo das estátuas sob as neblinas, dos trilhos, dos peixes-espada. das estátuas sob as neblinas, dos trilhos, dos peixes-espada. Mais vigorosa do que isso: tinha o pardo do leopardo retesado sobre o rochedo. tinha o pardo do leopardo retesado sobre o rochedo. Não, não era nada disso, mudemos de espaço, tentemos seguir agora suas linhas. mudemos de espaço, tentemos seguir agora suas linhas, feitas de seiva, do melaço que escorre em finíssimo fio, ou da saliva dos insetos. que escorre em finíssimo fio, ou da saliva dos insetos. Não eram de asas, mas de nuvens de caderno escolar, as linhas leves mas altas do seu corpo. de caderno escolar, as linhas leves mas altas do seu corpo. Não era nada disso, apenas era a beleza que se louva mas não se pode copiar.

2especial alberto_38 _47 .indd 47

J

osé ALBERTO Tavares DA CUNHA MELO, jornalista e sociólogo, é filho de poetas. Nasceu em Jaboatão, Pernambuco, em 1942. Seu primeiro livro – Circulo cósmico – foi publicado em 1966, ano em que o historiador Tadeu Rocha rotulava de Geração de 65 o grupo de poetas surgidos das páginas do Diário de Pernambuco. Completou, no ano de 2006, 40 anos de trabalho poético ininterruptos. Cunha Melo publicou 17 livros, 14 de poesia, e participou de 35 antologias, duas delas internacionais. Vale destacar as editadas na virada do século (2001): Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século (São Paulo: Geração Editorial), organizada por José Nêumanne Pinto, e 100 Anos de Poesia. Um panorama da poesia brasileira no século XX (O Verso/ MINC), organizada por Claufe Rodrigues e Alexandra Maia. Na década de 1990 seus poemas saem das fronteiras de Pernambuco e ganham o Brasil e o exterior com o livro Yacala, lançado na Universidade de Évora, em Portugal, com prefácio do crítico literário e professor da Universidade de São Paulo, Alfredo Bosi. O livro Meditação sob os Lajedos, (Edufrn e Editora Bagaço), depois inserido no livro Dois Caminhos e uma Oração (A Girafa Editora), foi considerado um dos dez melhores livros publicados no Brasil em 2002, por um júri de 400 especialistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em sua primeira versão 2003. A consagração da poesia de Alberto da Cunha Melo veio em 2006, com a publicação, pela A Girafa Editora, do livro O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos, uma edição comemorativa dos seus 40 anos de poesia, que foi escolhido pela Academia Brasileira de Letras, em 2007, como o melhor livro de poesia publicado no ano de 2006, no Brasil, recebendo o Prêmio de Poesia 2007 da Academia Brasileira de Letras. Alberto da Cunha Melo faleceu em 13 de outubro de 2007, em Recife.

Arquivo da família/Claudia Cordeiro

Retrato de Alberto da Cunha Melo (óleo sobre tela de Ana Vaz)

LIVROS PUBLICADOS Círculo Cósmico Recife: UFPE, separata da revista Estudos Universitários, 1966. Oração pelo Poema Recife: UFPE, separata da revista Estudos Universitários, 1969. Publicação do Corpo In: Quíntuplo Recife, Aquário/UM, 1974. Dez Poemas Políticos Recife, Pirata, 1979. Noticiário Recife: Edições Pirata, 1979. Poemas à Mão Livre Recife: Edições Pirata, 1981. Soma dos Sumos Rio de Janeiro: José Olympio, 1983. Poemas Anteriores Recife: Bagaço, 1989 Clau Recife: Imprensa Universitária da UFRPE, 1992. Carne de Terceira com Poemas à Mão Livre Recife: Bagaço, 1996. Yacala Recife: Gráfica Olinda, 1999; livro de arte. Yacala Natal: EDUFRN, 2000, edição fac-similar, prefácio de Alfredo Bosi. Meditação sob os Lajedos Natal/Recife: EDUFRN, 2002. Dois caminhos e uma oração São Paulo: A Girafa, 2003. O cão de olhos amarelos & Outros poemas inéditos São Paulo: A Girafa, 2006.FEV 2008 • Continente x 47

1/29/2008 4:40:42 PM


livros

MÚSICA

Noche selvagem em São Pablo

T

odo escritor é, ao mesmo tempo, construtor e subversor da linguagem e da língua em que foi formado. Se apenas desconstrutor, fica impossível de ser lido; se muito submisso aos padrões lingüísticos de sua época e lugar em que vive, pode levar sua escrita à monotonia, à chatice e ao tédio. Quando mistura a fala dos imigrantes dispersos na cidade de São Paulo, desde os oriundos do sertão nordestino aos de latino-americanos ali dispersos, a experiência lingüística resultante no texto do jornalista e escritor Xico Sá é uma salada literária contendo ingredientes os mais

absurdos, delirantes e envenenados. Tal performance de uma língua demasiadamente afiada está presente no romance – ou anti-romance – Caballeros Solitários Rumo ao Sol Poente, que contém histórias de “Fulgor, sexo e morte na mais longa noche de San Pablo”. O cavaleiro solitário Fodasno “que rastejava, Caballeros Solitários réptil de tudo, yacaré Rumo ao Sol Poente del amor e de la suerte”, Xico Sá Editora do Bispo a jovem Esperanza, que 144 páginas o biógrafo Don Augusto R$ 28, 00 Sombra revelou ser “uma dessas Penélopes que tecem o interminável manto da inadaptação e da estranheza”, o taberneiro sr. Knut, “que bancava os caixões e as taxas burocráticas de todas as criaturas que freqüentavam o seu estabelecimento”, representam personagens tão loucos quanto incríveis, verdadeiros ratos noturnos ou abutres desgarrados em busca de prazer e esquecimento. (Luiz Carlos Monteiro)

> Trágico menino de engenho

> Álvaro Lins, um crítico humanista

> O intelectual e o colonialismo

> Um olhar sobre nossa pobreza

Para coroar 25 anos de carreira

Os grandes críticos, assim como os grandes artistas, não vêem contradição essencial entre forma e conteúdo – são partes indissociáveis de toda obra de arte. Álvaro Lins, crítico dessa estirpe, aliava erudição, sensibilidade e coragem em cada comentário emitido. Na era dos especialistas, resgatar os ensaios deste grande humanista que andava um tanto esquecido serve como demonstração aos críticos contemporâneos de que é possível pensar a literatura em diálogo com os fatos da cultura e da política. Como comenta o professor Lourival Holanda – organizador da coletânea em parceria com o escritor Humberto França –, “Em Álvaro temos um pensamento crítico de um vigor que extrapola as clausuras disciplinares”. (Eduardo Cesar Maia)

Em 1957, o professor e escritor tunisiano Albert Memmi publicou um libelo arrasador contra um dos maiores flagelos da humanidade, então: o colonialismo. Seu Retrato do Colonizado, Precedido do Retrato do Colonizador é um tratado psicológico, histórico, político, social e cultural de uma situação insustentável. Sem maniqueísmo, ele registrava a injustiça da dominação de um povo ou nação por outra, o dilaceramento da alma de colonizados e colonizadores, a contradição econômica e política que levaria ao fim do sistema, já anunciado pelos primeiros movimentos de libertação. O livro, prefaciado por Sartre, teve grande repercussão e, sem dúvida, contribuiu poderosamente para o conhecimento do problema. (HF)

O sociólogo e professor Délio Mendes é um militante pós-comunista, defensor de que o socialismo do terceiro milênio integre conquistas liberais, como a liberdade e a democracia, com a generosidade do socialismo “que resgata a grandeza do ser social”. É sob essa ótica que se enfeixam as análises do seu recém-lançado Região Metropolitana do Recife: Globalização e Política, onde o fenômeno das periferias pobrezas é dissecado em artigos produzidos ao longo dos últimos 10 anos. Sua lente, inicialmente focada no processo mais amplo da modernização excludente, vai se fechando sobre o espaço definido do Grande Recife, aplicando uma visão marxista-pós-queda-do-muro-deBerlim aos problemas concretos das populações pobres da RMR.

Divulgação

literária, Paulo Caldas lançou o romance A Lua em Sagitário, que trata da história de Miguel, um menino pobre que sai do interior a fim de trabalhar na casa de um compadre de seu pai, gente rica da capital. Nessa época, ainda adolescente, desafiara a ira e o preconceito do pai, ao gostar de brincar de boneca feito as meninas. Com o passar do tempo, descobre suas inclinações homossexuais, apresentando-se numa boate travestido na pele de Michele e imitando sua amiga Lenora, terminando tragicamente seus dias. (LCM) A Lua em Sagitário Paulo Caldas Edições Bagaço 136 páginas R$ 25,00

Álvaro Lins: ensaios de crítica literária e cultural Álvaro Lins Editora Universitária da UFPE 425 páginas R$ 20,00

Retrato do Colonizado, Precedido do Retrato do Colonizador Albert Memmi Civilização Brasileira 192 páginas, R$ 30,00

Região Metropolitana do Recife: Globalização e Política Délio Mendes edição do autor 176 páginas

48  Continente • FEV 2008

Agenda Livros_48_49.indd 48

1/29/2008 4:41:50 PM


MÚSICA

Heranças e mudanças da contracultura

P

ara uma parcela dos jovens brasileiros, viver nos anos 60 e 70 significava ter que optar entre duas posições: a luta armada contra a ditadura ou o desbunde contra o sistema. Os que fizeram a segunda opção acreditavam que, ao invés de sacrificar o presente em prol de um futuro melhor (posição dos marxistas) o que valia a pena mesmo era virar a mesa agora: através da música, do vanguardismo estético, da liberdade e igualdade sexuais, do comportamento co-

munitário e uso das drogas, abraçaram a contracultura. Transgressão para uns, instituição de uma sociedade alternativa, para outros, no fim dos anos 70, entretanto, “o sonho acabou”. E hoje, o que resta de tudo isso? Esta é a pergunta que o seminário Por que não?: Rupturas e continuidades da contracultura, realizado no final do ano passado, na Universidade Candido Mendes, do Rio de Janeiro, procura responder, e cujo resultado foi transformado em livro. Através do depoimento de quem vivenciou a época ou de acadêmicos que se dedicam a estudar o assunto, fica a conclusão geral de que, sim, a contracultura deixou uma herança positiva, embora hoje ela assuma características específicas relativas à situação atual. Vale conferir e concordar; ou não. (Marco Polo)

> Dificuldade de ser > Familiaridade e força da morte com todo respeito

> Curiosa palestra de um professor

> A filosofia através do jornalismo

Engenheiro de profissão, Ruy Proença traz para a poesia o cálculo e a exatidão. Poesia clara e criativa em que se retorce pelo avesso o esperado. Quase sempre tematiza a dificuldade de ser, como em Tiranias. “antigamente/ diziam: cuidado,/ as paredes têm ouvidos// então/ falávamos baixo/ nos policiávamos// hoje/ as coisas mudaram:/ os ouvidos têm paredes// de nada/ adianta/ gritar”. A ferida de nascer e a ferida de morrer perseguem a ferida do viver. Tudo é risco, em tudo trisca a ponta da asa do anjo exterminador. A capa do livro, sobre trabalho do artista plástico Marco Buti, é coerente com o texto ao explorar a textura de uma superfície ferruginosa. Como se sabe, a ferrugem é a morte do ferro.

Esta curiosa peça teatral em forma de monólogo, traz o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein para um cara a cara com a platéia. Ele é um professor que fará palestra sobre seu pensamento e, também, sua vida. Coisa aparentemente difícil de conciliar porque se como pensador, Wittgenstein foi de um rigor lógico impecável, como vivente pareceu se pautar por arrebatamentos e paixões que deixavam intrigados seus contemporâneos. O poeta paulista Contador Borges se dispõe, entretanto, a tecer esta trama ambígua e dilacerada. A peça começa com a impactante frase “O enigma não existe”. E termina com a célebre máxima do pensador austríaco “O que não se pode falar, deve-se calar”.

Acusados de superficialidade na abordagem de temas mais complexos, os jornalistas podem argumentar que há grandes e brilhantes exceções. É o caso de Anthony Gottlieb, editor da The Economist e autor desta obra que enfoca a história da filosofia com o método e a linguagem de um jornalista de escrita clara e direta. Dos présocráticos – protótipos dos cientistas atuais – ao nascimento da filosofia moderna no século 17, o estudo de Gottlieb é baseado, principalmente, na consulta de fontes primárias. O autor comenta os principais pensadores dentro do contexto de suas épocas, além de compará-los entre si e com a filosofia e a ciência contemporâneas. A época moderna será tratada num segundo volume. (Eduardo Cesar Maia)

Visão do Térreo Ruy Proença Editora 34 112 páginas R$ 24,00

Diz muito bem Silviano Santiago que Julián Fuks, antes de ser um ficcionista ou biógrafo é um arqueólogo. Seu livro sobre três escritores que padeceram de deficiências visuais é construído através de citações de poemas, textos e biografias, aos quais o autor acrescenta a argamassa de seus comentários e descrições. O poeta e escritor argentino Jorge Luis Borges, o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto e o escritor irlandês James Joyce são recriados em seus períodos finais de vida, num clima poético, mas intenso. Apesar de serem três autores densos e eruditos, são apresentados com uma leveza clara. A familiaridade respeitosa com que Fuks os trata, aproxima-os do leitor, de repente impregnado de suas intimidades. Histórias de Literatura e Cegueira Julián Fuks Record 160 páginas R$ 30,00

Por Que Não? Vários autores 7 Letras 264 páginas R$ 35,00

Wittgenstein! Contador Borges Iluminuras 80 páginas R$ 26,00

O Sonho da Razão Anthony Gottlieb Editora Difel 560 páginas R$ 69,00

FEV 2008 • Continente 

Agenda Livros_48_49.indd 49

49

1/17/2008 2:46:46 PM


O carnaval e a cidade temporária Arquitetura de festa, ritmos, corpos e sonhos presidiu temporariamente o espaço do Recife, transformando-o em outra cidade, agora desmontada Klaus Brendle, de Lübeck

A

cabeça do Galo está no meio da rua perto de sua gigantesca cauda. Um guindaste transporta lentamente seu tronco até o chão. O tráfego sobre a ponte ainda está interrompido e suas guirlandas douradas balançam contra a luz do sol da manhã. Nas ruas vazias do centro do Recife, vê-se somente homens trabalhando. Eles limpam o chão, desmontam e empilham as estruturas de ferro retiradas das construções, e de vez em quando param para um alegre bate-papo. Uma cidade vai ser desmantelada, empacotada e retirar-se. Os grandes palanques são desmontados, os aparelhos de ares-condicionados móveis removidos, os pisos e os andaimes desparafusados. Apesar de terem sido artisticamente decoradas e pintadas há poucos dias com ornamentos, emblemas e letras, as chapas coloridas estão esquecidas e empi-

lhadas nas ruas sem nenhuma atenção. Alguns dos “moradores temporários da cidade” ainda dormem em suas barracas de vendas, nas cadeiras de plástico ou mesmo no chão, precariamente protegidos por papelões, na falta de uma pequena privacidade. Outros que encontraram lugar para armar uma tenda no cais do Capibaribe, preparam o café da manhã, cuidam de seus filhos pequenos e depois começam da mesma forma a desmontar seus bares de rua e voltar para a periferia ou favela onde vivem. Uma “cidade temporária” e seus moradores deixa de existir. Seus construtores a dilaceram em pedaços e seus organizadores comandam a execução logística da retirada. Recife no carnaval: um território na cidade de milhões é delimitado. Um enclave surge no centro histórico, ou é um exclave de um outro mundo sonha-

50 x Continente • FEV 2008

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 50

1/18/2008 11:00:00 AM


Fotos: Betânia Uchôa

CARNAVAL do? Barreiras, bloqueios, placas e arcos de entrada são construídos. Atrás deles surge outra cidade. Já se pode reconhecê-la de longe – através de suas cores, de suas figuras coloridas monumentais, das guirlandas brilhantes sobre as pontes e dos grandes balões suspensos no céu. Sobre ela voa às vezes barulhentos helicópteros da TV Globo. Seu morador é o carnavalista, fantasiado, disfarçado, brincalhão, risonho e divertido enlevado pela bebida e pelo prelúdio da festa com maquiagem, máscaras, perucas, etc. Ele não entra em cena sozinho. Ele está decidido a se misturar com os outros – ele está pronto para a festa. Como argumenta Hans-Georg Gadamer (19002002), filósofo alemão autor de Die Aktualität des Schönen. Kunst als Spiel, Symbol und Fest (A Atualidade do Belo. Arte como Jogo, Símbolo e Festa), quando alguma coisa está associada com a celebração da festa, se nega qualquer tipo de isolamento de uma pessoa contra as outras. Festa é sempre para todos. Atrás dos arcos de entrada coloridos o carnavalista está aberto para tudo e para todos. Ele passeia sob as árvores artisticamente decoradas, ao longo de filas inteiras de barracas, bares, me-

sas e cadeiras onde os vendedores de rua oferecem bebidas geladas, fantasias e todo tipo de acessórios para enfeitar o corpo no carnaval. Entre as esculturas imensas que ornamentam as ruas se movimenta uma vida alegre e divertida. E em toda parte domina outra sonoridade – não é o ruído normal da rua, da buzina dos carros mas de música, vozes, cantos, os gritos dos vendedores, risos, e sempre a música das orquestras dos blocos de frevo que surge de algum lugar e penetra na imensa corrente de gente. Por uma semana o carnaval derrama outra forma de vida na cidade. Bonecos gigantes, palcos imensos, guirlandas brilhantes, postos de emergência médica e

Fim de festa: o Galo da Madrugada só aparecerá no próximo ano FEV 2008 • Continente x

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 51

51

1/18/2008 11:00:05 AM


O planejamento da infra-estrutura de tráfego e segurança é fundamental na produção da cidadecarnaval

52 x Continente • FEV 2008

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 52

1/18/2008 11:00:14 AM


CARNAVAL metros de altura colocada sobre a Ponte Duarte Coepolicial, sanitários provisórios sujos, torres de alto-falho. Gigantesca, a figura marcante do Galo é percebida lantes, estandes de fantasias e perucas, e milhares de de longe entre as casas e edifícios do centro rompendo vendedores de comidas e bebidas. toda e qualquer escala urbana de seu entorno quando Assim como na cidade real, a produção da cidadevista do outro lado do rio, nos bastidores da cidadecarnaval surge da tradição e do planejamento da incarnaval no começo da Avenida Conde da Boa Vista. fra-estrutura, do tráfego e da segurança. Bem organiAo lado das tendas e carros policiais e de primeizada, ela funciona basicamente como a outra cidade. ros socorros, inúmeros estandes, barracas, bares de Na maioria dos locais de entrada cujo acesso é feito rua e lugares improvisados para por transporte público, táxi ou cozinhar formam, ao longo das automóvel até os locais de estacalçadas, a multidão dos conscionamento, estão localizados trutores desta “outra cidade”. os grandes portões – “os arcos Vendedores ambulantes, bares de triunfo” – estruturas de aço improvisados e suas mesas e caforradas com chapas pintadas, deiras ocupam as faixas de trânde 10 metros de altura e largura sito e de pedestres. Eles oferecem fixadas no chão. Nas ruas e crutudo que o corpo, a alma e os zamentos por onde os blocos olhos precisam. Cada entrada e vão desfilar são construídos pacorredor de casa ou edifício se lanques em casas, climatizados torna um pequeno restaurante, com ares-condicionados mócada janela é equipada com um veis. As fachadas das estruturas tocador de CD cujo som ressoa metálicas são pintadas lá mesnas ruas. Cada um consegue promo na cidade, alguns com molduzir em torno de si barulhos da des, mas pode-se observar os cidade-carnaval que podem ser pintores que aplicam com peralto e baixo, perto e distante, pefeição artística os desenhos, emnetrante ou muito pessoal. Uma blemas e letras à mão livre. Os maravilhosa figura mascarada espaços que servirão de fundo cria e executa sua própria dança à transmissão de televisão são desaparecendo repentinamente tomados por anúncios comerAo lado das tendas e carros sem deixar vestígios na multidão ciais das firmas patrocinadoras. policiais e de primeiros como se fosse uma bola de sabão O belo edifício dos anos 30 do que estourou no vazio do ar. Correio Central na Guararapes socorros, inúmeros As pessoas circulam por esta está coberto com banners, ouestandes, barracas, bares de cidade-carnaval de acordo com tdoors e o gigantesco logotipo anual do carnaval. Na área em rua e lugares improvisados seu próprio cosmo e universo – elas escolhem seu caminho – frente, um enorme baldaquim para cozinhar formam, para ver alguma coisa outra vez, marca o ápice e apogeu do desao longo das calçadas, a seguir a programação dos shows file. As ruas e as pontes sobre o multidão dos construtores ou se meter no burburinho do Capibaribe são ornamentadas Eu Acho é Pouco e seu brilhante com elementos decorativos que desta "outra cidade" dragão vermelho e amarelo que todos os anos se renovam. Nas bloqueia a saída da rua: um rosto conhecido me olha, árvores são pendurados adornos feitos com plástico agarra meu braço e me puxa para debaixo do dragão. reciclado em composições especiais de cores, formas e Eu me torno prisioneiro e parte deste bloco que como detalhes de muita imaginação. Elementos verticais do um animal comprido cheio de massa humana furioespaço urbano da cidade como postes de iluminação sa preenche e divide mais uma vez o espaço da cidade pública são cobertos com invólucros coloridos e de superlotada. A música contagiante e rasgada oferece noite se transformam em belas esculturas de luz. Para tempo, direção e ritmo. Eu sou um corpo desse corpo, realizar esse trabalho a prefeitura da cidade entrega me sinto liberto e danço. essa tarefa aos arquitetos e artistas. Recife, cidade-carnaval! Um espaço feito de música que se sobrepõe a si mesmo inundando os ouvidos e O famoso bloco Galo da Madrugada confecciona toguiando o olhar. Os ritmos e movimentos – como ondos os anos suntuosa figura de aproximadamente 17 FEV 2008 • Continente x

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 53

53

1/18/2008 11:00:25 AM


CARNAVAL batalha eram razões suficientes para a reforma, mudandas de um rio se cruzam com as orquestras e os grupos ça de decoração ou reorganização da cidade. Segundo dançantes – formam espaços e subespaços, se dividem, Anja Buschow e Werner Oechslin, em Festarchitektur. se reúnem e como as águas do Rio Capibaribe – adenDer Architekt als Inszenierungskünstler. (Arquitetura da sam-se ou se abrandam nas tranqüilas ruas paralelas. Festa. O Arquiteto como Artista de Encenação), a arquiBlocos seguem seus rituais e regras tradicionais – eles tetura de festa tem sido área especial de trabalho para tomam posse do espaço urbano e o definem. Como arquitetos e artistas desde o século 12. Antigamente o desfile do Maracatu Nação com seu casal real sob o eram construídos em Roma os “portões de honra” para amparo do baldaquim seguido pelas figuras da corte. a passagem do papa. Isso se Os passos da dança vão para frente e repetiu no século 20, quanpara trás e seguem uma graciosa cedo o famoso arquiteto ausrimônia espacial barroca onde o vaitríaco Gustav Peichl projeta e-vem dançante rompe-se no rodoum pódio e um trono para pio das piruetas das saias redondas o papa em sua visita a Viena das rainhas. Há um compasso próem 1983. A partir do século prio nesta cidade, um espaço de cor14, para recepcionar perpos mascarados e uma musicalidade sonalidades portadoras de que funciona conforme o desejo do honrarias são construídos folião ou o programa oficial, exataportões de boas-vindas de mente como num modelo “normal” madeira, tela e tinta. O objede cidade. tivo era criar um símbolo esDecorações e funções carnavalespacial e um lugar de prazer, cas conferem uma idéia de espaço púde alegria, de encantamento, blico temporário construído no qual de triunfo e honra que deveuma vida alegre e cerimonial pode ria apresentar “adequadaacontecer. O espaço da cidade-carnamente” os acontecimentos e val é como outra variante da cidade fatos ao público. “real” com sua própria definição de Até o século 18 se detempo. Ainda segundo Hans-Georg senvolvem regras para a Gadamer, “o característico da festa é que ela se dá através de seu próprio O carnaval pernambucano construção de objetos temporários como colunas, pitempo de festejo. Por isso o tempo encena o repertório râmides, obeliscos, epígrademora a passar. Isto é a celebração”. fes, portões, entre outros, Esta cidade é uma festa – a festa é a completo da histórica com significados e objetivos cidade – constituída de imagens de arquitetura de festa distintos. Na execução dos ruas, de espaços de ornamentos e sigeuropéia na forma de projetos surge uma retórinificados. Esta cidade resulta de uma “arquitetura para a festa”, planejada retórica urbana temporária ca urbana: o arquiteto vai para as horas saudosas. Depois ela criada para uma ocupação ser responsável ainda pelos shows pirotécnicos e pelos vai desaparecer novamente. feliz e espontânea de uma opulentos cenários de jogos e alegorias. Nas festas veneNa Rússia antiga, Potemkim man“outra cidade” zianas eram comuns os cardava construir cenários de edifícios ros com construções móveis, efeitos de fogo e estátuas, que duravam poucas horas ou dias, apenas para simuas “macchina” de espanto e admiração. As festas eram lar riqueza na passagem do Czar pelas aldeias e povoaespacialmente organizadas e grandiosamente produzidos. Já construir para o carnaval no Recife não significa das com figuras imensas como os dragões místicos e a nenhuma simulação, mas a abertura do espaço urbano coreografia dos atores, figurantes e músicos. As encepara abrigar outra cidade, outros moradores. A cidade nações eram apresentadas de maneira a proporcionar festiva e solene que reaparece todos os anos, terminana participação do público e com isso criar um mundo do sempre na quarta-feira de cinzas. “real” momentâneo. Os enormes objetos do espetácuNa história da arquitetura constata-se que o planelo eram publicados em tratados e gravuras de cobre e jamento e construção para ocasiões festivas, tais como assim os acontecimentos e festas temporárias se tornacelebrações religiosas, entronizações, festas de boasvam permanentes para orgulho dos príncipes. vindas e casamentos ou a volta vitoriosa dos campos de 54 x Continente • FEV 2008

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 54

1/18/2008 11:00:37 AM


No Sambódromo, o desfile perdeu a espontaneidade das ruas e adotou disciplina e rigidez dignas de uma parada militar do Kremlin

A arquitetura de festa torna-se um campo de experimentos artísticos ideais e imaginários e de divulgação de idéias e projetos não construídos. De caráter efêmero, ela é temporariamente “realizável” através do uso de materiais de construção facilmente desmontáveis como madeira, telas, chapas, gesso e tinta. A idealização de novas idéias arquitetônicas vai expressar ideais políticos, especialmente depois da Revolução Francesa. Da iconografia espacial e repertório de imagens e símbolos voltados para o destaque do príncipe, a arquitetura de festa torna-se com o passar do tempo a encenação da própria cidade e de sua manifestação arquitetônica e entre os séculos 18 e 19 já é usada para festas populares como o carnaval. As festas públicas do povo agora são celebradas com e para as massas. A festa torna-se uma “realidade própria” e o objeto construído, o modelo de outra – mesmo temporária – cidade e realidade. Muitos desses elementos arquitetônicos históricos e organização espacial encontram-se na cidade temática do carnaval. O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro recebeu em 1983 do arquiteto Oscar Niemeyer o projeto de um lugar de festa, a passarela do samba ou “sambódromo”. O cerimonial carnavalesco que acontecia nas ruas cariocas arrefeceu e o espetá-

culo passou a ser representado em grande estilo com a opulência da televisão, e a sua disciplina e rigidez de encenação chega a lembrar as paradas do Kremlin – usando um glamour erótico de nus e penas e uma maquinaria de decoração idêntica às “macchina” da história da arquitetura européia. Dos arcos de triunfo, da decoração das ruas e pontes, das figuras esculturais dos passistas flutuantes do Rio Capibaribe e do Marco Zero, das ruas cobertas por baldaquins, das fachadas decoradas, revestidas e pintadas, o Recife constrói todos os anos uma “nova cidade”, a cidade-carnaval, produzida especialmente como pódio – palco e arquibancada do espaço urbano. O carnaval pernambucano encena o repertório completo da histórica arquitetura de festa européia na forma de retórica urbana temporária criada para uma ocupação feliz e espontânea de uma “outra cidade”. Um urbanismo de saudade... para dias saudosos! Recife, a cidade de dois milhões de habitantes constrói seu coração histórico e o transforma em sedução e tentação. Com isso, a cidade como um “castelo azul” pode por alguns dias ostentar seus espaços e sonhos: temporariamente dançante, musical e sonora. Tradução: Betânia Uchôa Cavalcanti-Brendle FEV 2008 • Continente x

Carnaval_50_51_52_53_54_55.indd 55

55

1/18/2008 11:00:40 AM


QUADRINHOS

56 x Continente • FEV 2008

Cavani Quadrinhos_56_57.indd 56

1/17/2008 10:31:05 AM


FEV 2008 • Continente x

Cavani Quadrinhos_56_57.indd 57

57

1/17/2008 10:31:11 AM


MÚSICA

Na frente,Isaar França e Cacá Barreto. Em segundo plano, Ademir Araújo, Siba e Fábio Trummer

Frevo em dose dupla Dois discos – um inovando na leitura do ritmo pernambucano e outro mantendo uma tradição de bom gosto – reafirmam a possibilidade de ouvir frevo o ano inteiro

J

á há algum tempo, a recorrente discussão entre conservadores e renovadores do frevo parece haver perdido o sentido. Isto porque, à margem das discussões teóricas, mas sem perder o tom polêmico, os compositores, intérpretes e produtores têm atropelado o processo, criando uma música cada vez mais contemporânea, a exemplo do que Chico Science e Fred 04 já tinham feito com o maracatu, na década de 90, no Movimento Manguebeat. Contemporaneamente aqui quer dizer várias coisas. Não apenas o uso das guitarras elétricas, no qual os baianos foram precursores – antes de Caetano e Gil – com

o trio elétrico de Osmar e Dodô (trio de dois, na lógica baiana), influenciados pela célebre passagem por Salvador do Clube Vassourinhas, em 1951. Significa também novas formas de interpretar, novos fraseados, incorporação de outros ritmos, uso de recursos de programação eletrônica. O primeiro a sacolejar o coreto foi o saxofonista Felinho (Félix Lins de Albuquerque), na célebre variação sobre o “Vassourinhas” (ou “Marcha nº 1”), num fraseado digno de um Charles Parker alucinado. Na década de 80, o compositor caruaruense (para os mais distraídos: autor de “Aquela Rosa” e “Banho de Cheiro”) produziu vários

58 x Continente • FEV 2008

Frevo_58_59.indd 58

1/17/2008 2:19:20 PM


João Donato (E) interpreta “Fogão”; Edu Lobo (C), "Maria"; e Gonzaga Leal, "Aquela Rosa"

Fotos: Divulgação

discos no projeto Asas da América, reunindo artistas consagrados da MPB, do calibre de Caetano, Chico, Gil, Elba e Alceu, cantando frevo com arranjos inovadores. Desde então as rupturas se sucederam vertiginosamente, culminando com a explosão da Spok Frevo Orquestra, num nível de sofisticação impressionante. Agora, a pernambucana Candeeiro joga no mercado além-carnaval (“pra tocar o ano inteiro”, velho bordão coberto de sentido) o Frevo do Mundo, um disco merecedor de toda a atenção. Suas 12 faixas são quase que um laboratório: frevos-canção, frevos-de-bloco e alguns frevos-de-rua (instrumentais) são executados com releituras as mais diversas, misturando ritmos, sampleando, citando, num repertório propositadamente isento de obviedades. O resultado é inovador, desigual, instigante, como seria de se esperar. De João Donato a Mundo Livre S/A, de Edu Lobo ao Cordel de Fogo Encantando, da banda Eddie a Siba e a Fuloresta, de Céu à Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, passando por Isaar de França, Ortinho, Erasto Vasconcelos e Orquestra Imperial, o frevo é miscigenado numa proporção inusitada. A própria feitura do disco subverteu a lógica de submeter arranjos previamente feitos para execução pelos intérpretes. Aqui, cada um gravou a seu modo e um primeiríssimo time de arranjadores (Duda, Spok, Clóvis Pereira, Ademir Araújo, Forró, Nilson Amarante) colocou, depois, os naipes de metais. É como se, metaforicamente, cada um tivesse liberdade para voar, sendo os maestros chamados a corrigir a rota, trazendo os experimentos para o frevo renovado. E haja frevo com batidas inspiradas no maracatu, no rock, na ciranda ou no hip-hop, com programação eletrônica, com registro de guitarra distorcida ou viola nordestina. Se a cultuada jovem cantora e compositora paulistana Céu, com sua voz miúda de veludo, destoa um pouco com sua interpretação meio aguada do “Frevo de Saudade”, de Nelson Ferreira, o “monstro sagrado” João Donato quase transforma o frevo-metaleiro “Fogão”, um dos ícones do nosso carnaval, num chá-chá-chá puro e

simples, não fosse a batuta categórica do maestro Duda, na faixa talvez mais estimulante do repertório. Mas o disco contém também interpretações tradicionais, como a de Edu Lobo para “Recife – Frevo nº 2” , de Antônio Maria, e a límpida participação de Isaar de França cantando “Paraquedista”, de Roberto Bozan, com destaque para o acompanhamento de trombones nostálgicos. Além dos compositores já citados, receberam roupagens novas músicas de Capiba, Irmãos Valença, Maestro Nunes e outros menos votados. Diametralmente oposta é a proposta de outro disco recém-lançado nas ondas do carnaval. Para Sempre Sonhar, de Gonzaga Leal com a Orquestra Popular do Recife, do maestro Ademir Araújo, passa ao largo de releituras e experimentos, baseado todo na alta qualidade interpretativa do psiquiatra tornado cantor, sempre requintado em seu repertório. Em seu quinto álbum, interpreta algumas pérolas da música carnavalesca (pernambucana, principalmente, mas não só), alinhando David Nasser, Lamartine Babo, Nássara, Paulo César Pinheiro e irmãos Valle a Carlos Fernando, Antônio Maria, José Menezes, Nelson Ferreira, Dalva Torres, J. Michiles e Capiba. Com participações especiais de Carlos Fernando (não o compositor caruaruense mas o cantor paulista ex-Novelle Cuisine), Cezinha do Acordeón, Dalva Torres, Claudionor Germano, Expedito Baracho, Luiz Tatit e até trazendo à ribalta Voleide Dantas, famosa na década de 50 no Recife. Se não tem o animus mutandi do lançamento da Candeeiro, o CD vem a calhar para Frevo do Mundo os que se comprazem em idealizar Vários intérpretes velhos carnavais como espaço idíCandeeiro Records/Independente lico de amores e saudades, tão bem R$ 30,00 expresso na capa com a foto “Pierrô Escutando”, de Paul Nadar (1820– 1910), tudo embalado no mais apuPara Sempre Sonhar rado bom gosto. Gonzaga Leal P.S.: A esplêndida letra de “AqueLeal Produções/Independente la Rosa”, de Geraldo Azevedo e CarR$ 25,00 los Fernando, está incompleta no bem cuidado encarte. (Homero Fonseca) FEV 2008 • Continente x

Frevo_58_59.indd 59

59

1/17/2008 2:19:26 PM


O violão de prata de Fábio Zanon

Fotos: Divulgação

MÚSICA

Premiado concertista comemora 25 anos de carreira divulgando obras inéditas e gravações raras de compositores brasileiros Carlos Eduardo Amaral

60 x Continente • FEV 2008

Violão de Prata_60_61_62_63.indd60 60

1/17/2008 3:38:39 PM


H

á doze anos, Fábio Zanon ganhava num curto espaço de tempo dois dos principais concursos internacionais para violão, o 14° Guitar Foundation of America (GFA) e o 30° Francisco Tarrega. Foi a recompensa de uma árdua preparação dirigida a competições de grande porte. Nesse intuito, o jovem violonista, paulista de Jundiaí, havia se mudado para Londres em 1990, onde teve a chance de se aprimorar com Julian Bream. Aquelas láureas não formaram marcos divisores por si sós na então tímida carreira de Zanon: surtiram efeito em conjunto e somadas a uma quase terceira vitória, na Naumburg Competition, em Nova Iorque. Ao chegar à final da Naumburg de 1996, sob o impacto dos primeiros lugares na GFA e no Tarrega, havia uma expectativa em torno de seu nome que não se concretizou, gerando controvérsia porque outros finalistas contavam com professores entre os jurados. Assim, a crítica especializada e os não competidores protestaram contra o resultado. No entanto, a polêmica fez um bem maior a Zanon: rendeu-lhe o tão almejado convite para lançar um disco de peso (a integral da obra para violão solo de Villa-Lobos, revisada pelo violonista) por uma grande gravadora (a Music Masters, uma divisão da BMG Classics na época). Os contratos de turnês e gravações subseqüentes liberaram-no da penitência cíclica de competir, ganhar e subsistir até o próximo torneio, a ponto de o próprio virtuose ter declarado certa vez: “Hoje eu tenho total ojeriza a concurso, me revira o estômago mesmo. Aquela apreensão de esperar o resultado é um horror”. Tal visão parece se agudizar a cada participação em bancas de concursos, pois o paradoxo de julgar estudantes que se submetem a uma tensão incomum, como ele se submetia, ainda hoje o incomoda – nada de revolta implícita, apenas um desabafo quanto ao sistema angustiante ao qual muitos intérpretes jovens não escapam, se querem fazer carreira. Zanon tem se dividido desde então entre master classes, recitais, pesquisas, produção radiofônica, gravações (dividendos dos três concursos de 1996) e, uma vez perdida, regência. Sua primeira atuação profissional como maestro, praticando o que aprendera no curso superior de violão, aconteceu em novembro de 2006, na estréia sul-americana da ópera O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, do britânico Michael Nyman, baseada no livro homônimo de Oliver Sacks. Sobre o futuro à frente de orquestras, Zanon responde: “Até tem uma vaga possibilidade de eu ir atrás disso, mas estou muito preguiçoso”.

Foto: Edertone

A rotina de competições projetou Fábio Zanon internacionalmente

FEV 2008 • Continente x

Violão de Prata_60_61_62_63.indd61 61

61

1/17/2008 3:38:49 PM


MÚSICA

Francis Hime ensaiando com Raphael Rabello o concerto para violão e orquestra, que este lhe encomendara em 1992

Para Zanon, Francis Hime é um compositor de música popular. E a orquestração dele não é transparente como a de outros compositores Suas gravações têm demorado a serem lançadas por conta da agenda. Um exemplo é a da transcrição das Sonatas de Scarlatti para violão, encomendada com o CD de Villa-Lobos, gravada em 2000 e lançada em 2006. Há um disco de peças contemporâneas para flauta e violão, em duo com Marcelo Barboza, que aguarda previsão de lançamento, fora os planos em gestação: os 12 Estudos de Francisco Mignone, a integral para violão solo de Radamés Gnatalli e o Romancero Gitano para violão e coral, do italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968) com texto de García Lorca, gravada neste mês na Inglaterra com o Coro Cervantes. Uma parcela da “preguiça” de Zanon decorre da estréia de diversas obras que tem realizado. No caso do exigente Concerto n° 2, do irlandês Benjamin Dwyer, ano passado, o compositor mandou-lhe a partitura do segundo movimento a apenas vinte dias da estréia e o aprendizado teve de ser rápido. “Depois disso, fiquei meses exausto, me arrastando atrás dos compromissos. Foi paulada, porque quando você vê concerto para violão e orquestra é um divertimento, né? O cara nunca escreve uma música muito pesada, com ambição estética e profundidade psicológica; vai mais para o lado light. O Dwyer, não; ele fez um Mahler para violão e orquestra”.

Para 2008 estão previstas as estréias de duas obras brasileiras sob responsabilidade do violonista. A primeira é um concerto para violão e grande orquestra de Francis Hime – escrito para Raphael Rabello (19621995), mas não tocado, devido ao falecimento dele – cuja estréia, prevista para o semestre que passou, foi adiada pela Sinfônica do Estado de São Paulo. Zanon acrescenta que o violão atua o tempo inteiro e que só a parte do instrumento tem 50 páginas, a mais longa que já encarou. “O Francis Hime é um compositor de música popular. E a orquestração dele não é transparente como você está acostumado a ouvir em outros compositores. Ele mandou ver ali e vai meter um puta microfone no violão”. Desatando num “sambão”, o “traquejo” popular requerido por Hime nunca foi intransponível para Zanon. No hall de parceiros do ramo estão o Duo Assad, Yamandu Costa, Renato Braz e Ney Matogrosso. Ao lado de Ney Matogrosso em 2006, participou de um show em homenagem a Pixinguinha, Villa-Lobos, Dorival Caymmi e Tom Jobim. Ele relembra: “Fazia muito tempo que o Ney não cantava com violão solo. Tocamos duas músicas do Villa-Lobos (de A floresta do Amazonas); foi o maior barato. Nunca tinha me apresentado com um cantor popular dessa forma, e eu que fiz os arranjos”.

62 x Continente • FEV 2008

Violão de Prata_60_61_62_63.indd62 62

1/17/2008 3:38:53 PM


A segunda obra a ter primeira audição mundial em 2008 nas mãos de Zanon carrega um título extenso: E que sejam luminárias: no céu fogoágua. Música concertante para violão e três percussionistas in memoriam Haroldo de Campos, de Harry Crowl. Baseado no livro Bereshit, do escritor concretista, e inspirado nos ruídos da capital paulista, dos quase mudos aos mais estrondosos, Crowl utiliza a percussão para evocar o burburinho citadino ao mesmo tempo em que o solista “passeia” pela cidade. A recomposição musical de fragmentos de idéias extraídos de poesias é marca do compositor mineiro radicado em Curitiba. O intuito de Fábio Zanon ao resgatar peças desconhecidas – tal qual o concerto de Mignone, esquecido durante 25 anos – e estimular compositores a criarem novas é criticar positivamente a falta de circulação, fora das universidades, das pesquisas acadêmicas de levantamento de repertório. Em outras palavras, quebrar o esoterismo musicológico e levar o produto da criação musical para as pessoas. “Porque as músicas não estréiam pra fazer currículo, é pra alargar o escopo do repertório, que está muito restrito às mesmas 200 músicas dos mesmos 20 compositores e eu acho que a música é muito maior do que isso. É um fenômeno de diálogo e de cultura”, defende. Esse resgate não se restringe apenas à música erudita. Após produzir e apresentar uma série de 26 programas na Rádio Cultura FM, A arte do violão, Zanon idealizou um verdadeiro documental radiofônico: O violão brasileiro, que ultrapassou a centésima edição em dezembro. As pesquisas decorrentes da preparação dos roteiros obrigaram o violonista a buscar partituras e gravações de músicos famosos ou em ostracismo, mas cruciais para a história nacional do instrumento. Para fazer uma edição sobre Baden Powell (1937-2000), precisou ouvir 60 LPs, quando tinha somente dois em casa. Zanon pretende buscar mais informações sobre o violão colonial brasileiro, lembrando o poeta Gregório de Mattos (1623?-1696), um branco que tocava violão ao lado das escravas. Sobre os primeiros concertistas clássicos, ele diz que eram totalmente limítrofes, aliando música erudita e popular, e cita o mato-grossense Levino Albano da Conceição (1895-1955). “Levino era cego, então as duas missões que procurou cumprir foram a de levar música para os rincões do país e promover a causa dos deficientes visuais. Ele foi professor de Dilermando Reis (1916-1977) e colega de Agustín Barrios (1885-1944), que chegou a tocar suas composições”. Entre os virtuoses nordestinos destacados em O violão brasileiro, Zanon cita com entusiasmo o baiano Nicanor Teixeira (1928), o potiguar Henrique Brito (1908-1935), Canhoto da Paraíba (de quem exalta a facilidade de execução, o fraseado completamente fora da norma e a ad-

Harry Crowl compôs um concerto inspirado em livro de Haroldo de Campos

miração de Jacob do Bandolim (1918-1969) e Radamés Gnattali (1906-1988)), João Pernambuco (1883-1947) (“Uma contribuição incrível da música nordestina na formação do choro carioca”) e Antonio Madureira, este por trazer a estética armorial para o violão solo, mesclando o modalismo sertanejo a procedimentos de música renascentista. A primeira vez que Zanon esteve em Pernambuco foi em 1986, a convite do maestro Rafael Garcia e de Ana Lúcia Altino Garcia, para tocar na série Shopping in Concert. A última foi no III Virtuosi Brasil, em 2006, também através do casal, quando fez recital solo no Santa Isabel. O palco principal do teatro o impressionou a tal ponto que, em plenos vinte e cinco anos de carreira, completos em 17 de outubro último, ele revelou: “O Santa Isabel é o melhor teatro do Brasil. Eu o acho espetacular porque dá um ótimo resultado de violão sem microfone, sem o menor suor. Foi um prazer enorme tocar ali”.

SERVIÇO Sobre o programa O violão brasileiro, acesse: http://vcfz.blogspot.com/ FEV 2008 • Continente x

Violão de Prata_60_61_62_63.indd63 63

63

1/17/2008 3:39:03 PM


Fotos: Divulgação

MÚSICA

Do forró à bossa nova, do blues ao baião, da música barroca ao flamenco, o violonista Nonato Luiz toca de forma tão intensa e original que se confunde com o próprio instrumento Isabelle Câmara

Um violão vermelho 64 x Continente • FEV 2008

Musica Nonato_64_65_66_67.indd 64

1/17/2008 3:06:47 PM


E

xistem violonistas, alguns conhecidos apenas no meio, dos quais se identifica o som pela cor. Desse time fazem parte Canhoto da Paraíba, João Pernambuco, Baden Powell, Dilermando Reis, Henrique Annes, Raphael Rabello, entre outros poucos. Nonato Luiz pertence a essa estirpe. E se de fato existe uma cor para definir uma nuance de violão, nas mãos dele ela é vermelha. Sua interpretação é forte, vigorosa e intensa, alcança grandes escalas de tons. Desde o timbre mais metálico da guitarra ao aveludado som do piano, passando pelos efeitos percussivos, ele faz estripulias com seus dedos bailarinos deslizando no verniz e ainda inventa no instrumento mil arabescos e insondáveis harmonizações, fazendo-o pulsar entre o ataque sertanejo, a erudição de Bach, o pique flamenco, o dengue afro e a pisada indígena – num mosaico cultural de espontaneidade e de liberdade de criação, mas que revelam um violonista de extraordinária técnica, mestre das digitações nas cordas. Nonato vai misturando a raiz do erudito ao popular da mesma maneira. É um menestrel que reúne todas as influências, tornando-as única e magistral sem, no entanto, desviar-se da sua identidade maior, as raízes nordestinas e brasileiras da forma anterior à influência do jazz. É filho direto de Baden e neto de João Pernambuco na pegada, no balance, na exploração de cada curva do violão, com a sensibilidade do amante que conhece cada poro, cada cheiro e cada reação da mulher.

Respeitado e admirado por artistas do quilate de Pedro Soler, Turíbio Santos, Raphael Rabello, Fagner e Milton Nascimento, o compositor e instrumentista é conhecido no eixo Rio–São Paulo apenas pelos aficionados. E não porque esteja no Ceará. Na verdade, ele pousa por lá, porque seu destino é voar para a Europa. Hoje em dia é um dos violonistas brasileiros mais prestigiados no mundo, mesmo que pouco conhecido e reconhecido na sua cidade por adoção, Fortaleza, e no seu país. Seu “Suíte Sexta em Ré”, livro de partituras com suas composições, editado pela Henry Lemoine, Paris, sob a coordenação dos irmãos Assad e uma referência da música – do forró ao jazz, da bossa-nova ao blues, do baião à música barroca –, abriu caminho para sua produção ser incluída no repertório de alguns dos maiores violonistas e nas melhores salas de concerto do planeta. É imensa a lista de violonistas que executam obras suas: o japonês Shin-ichi Fukuda gravou “Mosaico”, da “Suíte em Ré Menor”. Já o “Baião Cigano”, uma peça à altura da melhor tradição brasileira de violão, recebeu letra de Fausto Nilo, virou “Baião da Rua” e venceu um Prêmio Sharp, chegando a ser gravado nos Estados Unidos por uma cantora de jazz, April Aloisio. Nas suas andanças, foi o único músico brasileiro a representar o país nos dois extremos do planeta: França e Coréia do Sul, nos respectivos Festivais de Virtuoso do

Nonato Luiz junto a Milton Nascimento

FEV 2008 • Continente x

Musica Nonato_64_65_66_67.indd 65

65

1/17/2008 3:06:51 PM


MÚSICA Violão, em setembro e outubro de 2007. Nonato iniciou sua carreira no início dos anos de 1970, quando chegou em Fortaleza o violonista Darcy Villa Verde. Timidamente, telefonou para o hotel e pediu que Darcy ouvisse suas músicas. Ele concordou, sem muito entusiasmo. Bastou ouvi-lo para Nonato ser incorporado à trupe de Darcy. Dali, praticamente sem ser notado pela crítica, começou uma carreira genial.

Nonato Luiz junto ao contrabaixista Dininho, Copinha (flauta), Maestro Radamés Gnattali, Luciana Rabelo, Raphael Rabello e Dino, no Estúdio da extinta CBS.

Cearense de Lavras da Mangabeira, começou sua história artística aos 4 anos de idade. Aos 15 já era o segundo violino da Sinfônica de Fortaleza. Nessa época, numa tendência clara entre o popular e o erudito, optou pelo violão como instrumento definitivo. Nunca estudou música, mas em 1975, o já compositor Nonato Luiz ganha o 1° prêmio do concurso para violonistas da extinta TV Tupi, em São Paulo. Seu primeiro disco, “Terra”, conta com participação de Fagner, João Donato, entre outros. Grava também disco com o guitarrista flamenco Pedro Soler. No mesmo ano, grava outro trabalho em homenagem a Pablo Picasso, lançado também na Europa, em companhia de Mercedes Sosa, Paco de Lucia e Rafael Alberti. Em 1984, participou de outro trabalho, desta vez em homenagem ao pintor Pablo Picasso, lançado na Europa. Esse disco foi feito em parceria com Mercedes Sosa, Paco de Lucia e Rafael Alberti. Naquele mesmo ano, em Johannesburgo, África do Sul, Nonato Luiz concluiu trabalho pelo selo SABC. Em 1985, realiza sua primeira turnê na Europa, oportunidade em que toca, pela primeira vez, no Mozarteum, em Salzburg, templo dos grandes instrumentistas mundiais. Nessa mesma época, grava, em Paris, o álbum “Guitarra Brasileira”, com composições próprias. No retorno ao Brasil, participa de discos e shows com Chico Buarque, Fagner, Nara Leão e Luiz Gonzaga. Em 1992, após a já habitual turnê européia, realiza temporada, patrocinada pela Unesco, na Salle de Cinéma, em Paris, onde grava também “Terra à Vista”, tema oficial da ECO 92. No ano seguinte, realiza excursão por cinco países na Europa: Alemanha, Áustria, Itália, Suíça e Espanha. Em 1994, dedica um trabalho à obra de Luiz Gonzaga, lançando o CD “Nonato Luiz – Baião Erudito”, disco no qual as músicas de Seu Lua são adaptadas para o violão.

Já no ano de 2000, abre mais ainda sua universalidade com o lançamento de uma obra inédita em homenagem aos Beatles, com uma releitura para violão das canções que fizeram a história dos rapazes de Liverpool. Em 2002, Nonato Luiz prestou tributo aos seus conterrâneos, gravando o disco “Ceará”, no qual dá um toque muito pessoal à obra de 18 compositores do seu estado de origem. Com mais de 700 músicas compostas, e várias parcerias com letristas brasileiros, Nonato já foi gravado pelos principais nomes da nossa música, como Nara Leão, Geraldo Azevedo, Belchior, Fagner e outros. Além de uma extensa discografia, atualmente com 31 discos e várias participações, lançou também outros cinco livros com as partituras de suas composições, como o recém-lançado “Baião Erudito”. Para 2008, o projeto é lançar um kit, composto por CD, DVD e livro.

66 x Continente • FEV 2008

Musica Nonato_64_65_66_67.indd 66

1/17/2008 3:06:52 PM


Contudo, não basta lê-lo ou ouvi-lo em disco. Como diz o compositor e poeta Dílson Pinheiro, “E agora vem Nonato / Pra nos encher de emoção / Um com o outro acostumado / Que causa até confusão / Eu me confundo de fato / Se o violão é Nonato / Ou Nonato o violão / Nosso Nonato Luiz / Que solta acordes tão finos / Seus dedos são bailarinos / Deslizando no verniz / Vai misturando a raiz / Do erudito ao popular / Quem o escuta tocar / Sente logo o coração / Vibrar de tanta emoção / Tocando junto também / Esse dom só ele tem / De ser gente e violão”. Então, é preciso vêlo, porque o coração sente. E escutá-lo com os olhos é êxtase. Por trás de suas aparentemente simples melodias, encontram-se sólidas e entrelaçadas tramas composicionais, que revelam o artesão paciente, capaz de transformar as relações matemáticas da música em matéria de puro estado de graça. Mesmo sem querer, ele é performático e imprime ao violão uma vibração sincopada e retumbante, uma vitalidade limpa e rubra, que não permite à audiência a quietude e o silêncio, mesmo que sem palavras.

Com mais de 700 músicas compostas, e várias parcerias com letristas brasileiros, Nonato já foi gravado pelos principais nomes da nossa música, como Nara Leão, Geraldo Azevedo, Belchior, Fagner e outros. Além de uma extensa discografia, atualmente com 31 discos e várias participações

Em parceria com Dominguinhos FEV 2008 • Continente x

Musica Nonato_64_65_66_67.indd 67

67

1/17/2008 3:06:55 PM


MÚSICA

Sopros nacionais inéditos

O

quinteto de sopros tornou-se ao longo do último século uma formação camerística tão comum quanto o trio clássico para piano (violino, violoncelo e piano) e o quarteto de cordas, embora a quantidade de composições para ele continue escassa. Na condição de mais antigo grupo do gênero no Brasil, o Quinteto Villa-Lobos empreendeu um demorado levantamento das respectivas obras nacionais e selecionou 13 delas para o projeto deste álbum duplo, incluindo a editoração das partituras que ainda estivessem manuscritas. Democraticamente, ficaram de fora compositores já gravados pelo

Quinteto, como Gnatalli, Villa-Lobos, Ronaldo Miranda e Mário Tavares. Emblemática nesta coletânea é a Suíte, op. 37 (1927), de Oscar Lorenzo Fernandez, a mais antiga de todas – indício de quão recente foi a adoção do quinteto de sopros no Brasil. Quintetos de Seu movimento inicial, sopro brasileiros Pastoral – Crepúsculo – 1926/1974 no Sertão, serve como 2 CDs Rádio Mec/ Rob Digital um belo prelúdio ao R$35,00 CD graças à sua feitura impressionista. Até chegar ao caleidoscópico Quinteto de Lindembergue Cardoso, há obras de Cláudio Santoro, Osvaldo Lacerda, José Vieira Brandão, Marlos Nobre, Ernst Mahle, Camargo Guarnieri, José Siqueira, Brenno Blauth, Ricardo Tacuchian e Sergio Vasconcellos Corrêa. Oito dos quintetos constam como primeira gravação mundial. (Carlos Eduardo Amaral)

Foto: Reprodução

> O grande russo poliestilista

> Cordas brasileiras contemporâneas

> Sonatas para viola da gamba

> Um reencontro através de Piazzolla

Alfred Shnittke (1934-1998) é referendado como o nome mais importante da música russa nos últimos trinta anos – vide a quantidade de gravações de suas obras na Europa, só comparável à de Shostakovich. Dono de um estilo eclético, Shnittke criou uma música original que interliga inusitada e conscientemente a atmosfera emocional de vários compositores do barroco ao século 20; seus seis concerti grossi, por exemplo, atestam essa fusão sonora. Ainda que Música para todos os tempos funcionasse melhor se tivesse sido estruturado pelas ricas análises musicais que contém, em lugar da narrativa cronológica, ele se torna estimulante quando detalha o contexto das artes na URSS e os horrores da censura do regime comunista. (CEA)

A Sinfonietta Rio, orquestra de cordas regida pelo violinista alemão Erich Lehninger, reuniu peças de compositores nacionais de várias tendências estéticas, compostas nos anos 70 e 80, no intuito de promover um registro diferencial do repertório para essa formação instrumental. O CD abre com a misteriosa Sinfonieta para Fátima de Ricardo Tacuchian, seguida das contrastantes Suítes de Dawid Korenchendler e Carlos Cruz e as altamente introspectivas Nove meditações sobre o Stabat Mater de Amaral Vieira, com violino obligato. Os fugazes Instantes II de Ernani Aguiar, no final do CD, são o ponto alto por melodiosidade direta, de raízes nordestinas – em particular no último movimento. (CEA)

Não se sabe ao certo em que época Bach compôs as três sonatas para viola da gamba e cravo, em estilo corelliano (BWV 1027 a 1029); apenas que foi em pleno Setecentos, quando o instrumento antecessor do cello já estava em relativo desuso. Nesta gravação recém-lançada, a gambista francesa Emmanuelle Guigues corresponde à desenvoltura e à precisão ornamental requeridas pelas sonatas enquanto o cravista mineiro Bruno Procópio observa o volume certo no obligato (quer dizer, em que a segunda melodia é tão importante quanto a primeira e não a sobrepuja). Os músicos completam o disco com duas atuações solo: a transcrição do Prelúdio da quinta suíte para violoncelo e o Concerto italiano para cravo. (CEA)

Hoje residentes no Brasil, o violinista Daniel Guedes, o violoncelista Fábio Presgrave e o pianista Rami Khalife se conheceram em Nova Iorque, quando concluíam cursos superiores nos EUA. Lá uniram-se através da música de Astor Piazzolla, e o escolheram para celebrar o reencontro em solo carioca em 2003. O trio executa arranjos que o violoncelista argentino José Bragato, atuante aos noventa anos, escreveu para Oblivion e para as Quatro estações portenhas. O programa, com ressalvas pelo tamanho (caberia num LP), se encerra com uma série de variações sobre o acalanto árabe Ya mariamu, que conta com participação especial do clarinetista Cristiano Alves e surpreende com um coral finale formado pelos três amigos. (CEA)

Shnittke – Música para todos os Tempos Marco Aurélio Scarpinella Bueno Algol 396p R$ 57,00.

Sinfonietta Rio RioArte Digital/ABM Digital R$ 20,00

J. S. Bach - Sonates pour viole de gambe et clavecin Paraty R$ 28,00

Ya Mariamu Uirapuru Records R$ 20,00

68  Continente • FEV 2008

Agenda Musica_68_69.indd 68

1/18/2008 9:35:17 AM


Blues de lá e de cá

A

UpTown Blues Band, liderada pelo baterista e ativista musical Giovanni Papaléo, comemora uma década de estrada lançando seu primeiro CD: Do Mississipi ao Capibaribe. O título resume a proposta musical desse disco que, se aparentemente veio tardio, traz o signo inconfundível da maturidade. Inicialmente executando apenas versões dos clássicos do blues, a banda pernambucana evoluiu para um trabalho autoral, criando suas próprias composições incorporando elementos da cultura pernambucana, numa miscigenação cada vez mais Alexandre Belém/JC Imagem

generalizada em um meio Do Mississipi ao às vezes bastante conserCapibaribe UpTown Blues Band vador, como é o ambiente Independente cultural pernambucano. R$ 15,00 Exemplo disso são as faixas “Frevo Blues”, de Papaléo e do maestro Edson Rodrigues, “Arrasta-pé”, de Papaléo, as versões bluesadas de estandardes locais, como “Asa Branca” e “Vassourinhas”, ao lado de composições de Herbie Hancock e Roonie Earl. Ao esperar uma década para se lançar em disco, a banda compensou a demora pela definição clara de uma identidade própria, de alta qualidade. Sua formação atual – Giovanni Papaléo – bateria; Jackson – baixo; Daniboy e Thomaz Lera – guitarras; Ed Staundinger – teclados; Vera Porto e Adriana Nascimento – vocais – ganha no disco o reforço de gente do quilate de Edson Rodrigues, Jefferson Gonçalves, César Michiles, Roberto Silva e outros cobras. (Homero Fonseca).

> Tributo à musa do > Jazz e swing com samba-canção toque brasileiro

> De volta, o bom e velho samba

> Bahia de Caymmi reinterpretada

Em homenagem à cantora e compositora mais saudosa do sambacanção – Dolores Duran, falecida há quase 50 anos – surgiu este CD com 21 de suas músicas, onde ecoam os intermináveis lamentos de amores fracassados. Dedicado a Marisa Gata Mansa, em cuja voz as canções de Dolores perduraram, cada faixa ficou a cargo de um ou dois artistas diferentes. Tamanha variedade de estilos permite ao ouvinte dispensar algumas releituras menos interessantes, mas o valor sentimental da coletânea, o cantar inconfundível de um Fagner ou uma Fafá de Belém, e as interpretações de Jane Duboc, Claudette Soares, Zezé Motta e Denise Duran tornam Dolores um feliz e oportuno resgate musical. (CEA)

O Trio Pouca Chinfra e a Cozinha, grupo que tem promovido animadas rodas de samba em vários pontos do Recife, e que apresenta no repertório, entre outros, Adoniran Barbosa, Originais do Samba, Nelson Cavaquinho e Noite Ilustrada, mostra agora sua vertente autoral em CD homônimo, com 4 composições próprias: Amaria, Tem dó Paulinho Galocha, Sinuca de Bico e Todynho pro mago. Os dez músicos que fazem o Trio Pouca Chinfra e a Cozinha, “dispostos a levar adiante a tradição do samba”, retomam, com refinamento e roupagem própria, os elementos básicos do velho ritmo, tanto nas composições quanto na execução. Destaque para o bom humor e boas sacadas nas letras de Demóstenes do Cavaco. (Eduardo Cesar Maia)

O segundo CD do paulista Mateus Sartori – um arquiteto que se decidiu pela música depois de formado e que já cantou ao lado de Ivan Lins, Guinga, Toquinho e Guilherme Arantes – contempla a Bahia e a música de Dorival Caymmi. Não à toa, o álbum se chama “Dois de Fevereiro”, dia de Iemanjá e nome de um clássico do ilustre baiano. Altamente intimista, Sartori sempre canta acompanhado por um único violonista, embora sete amigos convidados atuem no CD (Guinga entre eles). O timbre feminino de Mateus, muito parecido com o de Simone, porém mais contido, é um atrativo pouco convencional, que pode não ser unânime, mas funciona bem, dentro da mansidão típica de Caymmi. (CEA)

Dolores – A Música de Dolores Duran Lua Music R$ 25,00

Identidade é o cartão de visita do baterista band-leader, compositor e arranjador Guto Maradei no exterior e no Brasil. Aliando jazz, swing e ritmos brasileiros, Guto exerce uma execução diferenciada do instrumento, evidenciando-o sem o sobrepor aos conjuntos instrumentais. Estes variam de um simples duo de baixo e bateria a uma orquestra de metais completa, incluindo, por fora, guitarra, clarineta e vibrafone. Dando a cada música a pulsação certa, com criativas variações de batida, o músico demonstra versatilidade nos coloridos arranjos. Vale observar a atuação do flautista Beto Sporleder e dos percussionistas Arlem Ribeiro e Aluá Nascimento em faixas como Deixar-se levar e São Paulo. (CEA) Identidade Guto Maradei CPC-UMES R$ 23,00

Trio Pouca Chinfra e a Cozinha Trio Pouca Chinfra R$ 7,00 (preço sugerido)

Dois de Fevereiro Mateus Sartori interpreta Dorival Caymmi Tratore R$ 23,00

FEV 2008 • Continente 

Agenda Musica_68_69.indd 69

69

1/18/2008 9:35:23 AM


ARTES PLÁSTICAS

A artista plástica Elizângela Nascimento recria, a partir de materiais reutilizados, réplicas em miniatura dos barracos de papelão e madeira que ainda são a moradia real de muita gente Olívia Mindêlo

H

á cerca de três anos, portanto muito antes de o artista plástico carioca Sérgio Cezar preparar alunos de uma comunidade de baixa renda no Rio de Janeiro para construir a maquete da favela que vai ao ar na abertura da novela “Duas Caras”, da Rede Globo, Elizângela Nascimento, no Recife, já fazia suas miniaturas. A artista plástica pernambucana se autodenomina “arquiteta das palafitas”. Já Cezar batizou seu ateliê-escola de Arquitetura de Papelão. Parece imposição televisiva, mas não é. Elizângela nunca foi aluna do carioca, tampouco havia visto uma de suas criações – e vice-versa. As coincidências que os unem, no entanto, não são à toa. E vão além da vocação ou mesmo da origem social de ambos. Depois que a Rocinha caiu na graça de turistas e a classe média passou a admirar a arte de grafiteiros, por exemplo, a periferia virou moda; aliás, “a estética da periferia”. Não por acaso, a saga de Aguinaldo Silva na comunidade da Portelinha e outros programas do tipo, como o de Regina Casé (Central da Periferia), dão audiência. O mesmo acontece com as peças de Elizângela, que já integraram exposições importantes e atraem cada vez mais admiradores, sobretudo com passaporte estrangeiro.

Nem mesmo ela acreditava que saindo de Moreno, município da Região Metropolitana do Recife, pudesse um dia viver na capital da própria arte. “Acho que é um trabalho delicado que, nos detalhes, consegue retratar a realidade. Chega a ser tocante para quem vê, as pessoas se comovem com essa vida”, procura justificar a “arquiteta das palafitas”. Sejam quais forem as razões para o fenômeno, não faz vergonha hoje em dia retratar a cultura da favela. Há para ela, aliás, lugar em museus, galerias, filmes e debates acadêmicos, onde quase sempre aparece no status do politicamente correto. A própria Elizângela já expôs sua obra na Galeria dos Reciclados da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenneart) e no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), no Recife, em mostra organizada pelo cenógrafo e designer Gringo Cardia (o mesmo dos cenários da companhia de dança de Deborah Colker). Só na semana do Olinda Arte em Toda Parte, em 2007, ela chegou a vender cerca de 20 réplicas de suas palafitas.

70 x Continente • FEV 2008

arte Palafitas_70_71_72_73.indd 70

1/17/2008 3:25:53 PM


Fotos: Camila Leão

Arquivo CEPE

A arquiteta das palafitas FEV 2008 • Continente x

arte Palafitas_70_71_72_73.indd 71

71

1/17/2008 3:26:00 PM


ARTES PLÁSTICAS “Algumas pessoas às vezes me criticam, perguntando por que eu faço palafitas, em vez de outras coisas mais bonitas. Mas eu vejo beleza na favela, adoro a periferia, gosto de retratar o que vejo no dia-a-dia”, diz a artista, que comercializa atualmente suas peças numa casa do sítio histórico de Olinda, por valores que variam de R$ 20 a R$ 3 mil. São objetos com zelo escultórico, mas feitos a partir de materiais absolutamente simples e frágeis – papelão, resto de madeira, durepox, argila, tinta, cola etc., que resultam num trabalho naif, sem preocupação com regras ou proporções. A uma primeira vista passam comuns a um olhar brasileiro, mas basta um passo à frente para adentrarmos numa viagem inventiva e curiosa, cuja riqueza reside na minúcia dos detalhes, a maioria deles bastante pitoresca.

bacia, com sabão de coco, podem ser espiadas no barracão do cabaré. “Uma americana chegou a passar duas horas, das 9h às 11h, observando essa peça. Queria comprar, mas não podíamos vender durante o Olinda Arte em Parte”, conta Claudionete Lira, sócia de Elizângela no ateliê da Cidade Alta e sua maior incentivadora.

No “Cabaré de Biu Véia”, melhor ainda são as frases e os anúncios colados nas paredes externas do mocambo, alguns de cunho filosófico, como “A arte é a mentira que nos permite a verdade”; outros de bandeira social, a exemplo do anúncio de violência contra a mulher. “Muitas frases eu fotografei da exposição ‘Estética da Periferia’, no Mamam”, credita a artista, que costuma clicar tudo que gosta para depois trabalhar a partir das imagens. Ela, aliás, nunca havia visto uma palafita antes de chegar ao Recife, o lugar onde, segundo conta, se descobriu artisticamente. “Mas eu morei em condições parecidas em Moreno. Convivi com essa realidade. Como minha casa ficava perto do rio, foi tomada várias vezes pela enchente. Numa delas, perdemos documentos, móveis e eletrodomésticos”, conta. Elizângela, diferente da mãe, que é analfabeta, concluiu o ensino médio e já fez cursos de arte. “Sempre sonhei em ser arquiteta. Quando eu era criança, desenhava a fachada da escola e a minha casa, e fazia meus brinquedos com caixas de fósforo”, lembra. Além das palafitas tradicionais (com os paus de sustentação sobre Inspirado num prostíbulo de Limoeiro, o "Cabaré de Biu Véia" é a maior obra da artista a lama ribeirinha) e do cabaré (palafita grande), a artista já criou outras peças exclusivas “Quenga de luxo é 15 real”, anuncia o letreiro do seu na mesma linha, como uma borracharia, em memória a “Cabaré de Biu Véia”, inspirado no estabelecimento de um amigo borracheiro falecido; um lar para um casal de uma cafetina do Limoeiro, do interior pernambucano, lésbicas, com direito à bandeira gay de arco-íris, para o que costumava fazer do seu bar um ponto de prostigrupo Divas, em prol da diversidade sexual; e uma casa tuição, do tipo “beira de estrada”. A representação feita com uma cena de crime, que batizou como “Tropa de por Elizângela vai além da realidade. É do tipo “beira de Elite”, depois que viu o filme de José Padilha. Elizângela mangue”. Criativa, resume vários aspectos da pobreza, também faz quadros com cenas da favela em alto relesobretudo com muito humor. E a disparidade entre o tavo, mas o que tem chamado atenção são, de fato, seus manho dos bonecos e os objetos que eles seguram ajuda trabalhos tridimensionais. Ela já recebeu até promessa a dar mais vida a essa caricatura. Há de um tudo nessa de expor na Itália e na Alemanha. “Meu sonho agora é obra da artista, a maior feita por ela até agora. Mesinhas que com o dinheiro dessas casinhas eu consiga comprar de bar, isopor de cerveja, cascos de bebida, banheiro sujo, a minha própria casa”. Os “entendedores” de arte já capquartos com mosqueteiro e, claro, luzes vermelhas para taram o recado. Agora é esperar que os colecionadores e acender na tomada. Tem até um mini-som que toca. E os museus, principalmente preocupados com a memónão pára por aí. Clientes, “mulheres da vida”, bêbados e ria da cidade, façam o mesmo. até garotas fazendo strip-tease ou lavando “as partes” na 72 x Continente • FEV 2008

arte Palafitas_70_71_72_73.indd 72

1/17/2008 3:26:06 PM


Arquivo CEPE

Com o dinheiro da venda de suas casinhas, Elizângela pretende comprar a sua própria casa FEV 2008 • Continente x

arte Palafitas_70_71_72_73.indd 73

73

1/17/2008 3:26:09 PM


traduzir-se

Ferreira Gullar

Vegetalização da geometria Marília Kranz utiliza-se com suavidade do elemento geométrico como suporte de uma nova linguagem em tons de verdes, azuis e rosa

M

arília Kranz pertence à geração que começou a pintar na década de 1960, ou seja, após o surgimento do concretismo e o neoconcretismo, cujo surgimento ocasionou a ruptura com a tradição modernista nascida na Semana de Arte Moderna de 1922. Ao contrário dos artistas modernistas, cuja arte era figurativa e “nacional”, o concretismo e o neoconcretismo eram não-figurativos e não-nacionais. Os pintores que iniciam sua carreira nos anos 60, na sua maioria, encontra na arte não-figurativa e geométrica uma linguagem nova a ser explorada, mesmo porque a arte de Di Cavalcanti, Portinari, Segall e Guignard, independente da qualidade que tivessem, estava demasiado vinculada a um passado que a segunda guerra mundial tornara anacrônico. O pósguerra acenava com um novo mundo, que, no campo das artes, se exprimia no intenso intercâmbio entre os países europeus e os do lado de cá. A guerra mudara a correlação de forças entre as nações dominantes e isso influía sobre a atividade cultural e artística. Por todas essas razões, uma nova linguagem artística, desvinculada do passado, era estimulante para a geração que surgia. É nesse contexto que Marília Kranz, como outros pintores jovens da época, começa a pintar, sem no entanto se inserir nas normas do concretismo nem no experimentalismo radical dos neoconcretos. Desse modo, abre-se a possibilidade de uma reinvenção da lingua-

gem pictórica, a partir de seus elementos essenciais, se assim se pode dizer, muito embora a adoção da geometria seja produto de uma opção intelectual e não meramente sensorial. É certo que, em alguns casos, com o de Marília Kranz, o elemento geométrico é utilizado sem o rigor que a arte geométrica, em sua origem, pressupõe. Trata-se de valer-se daquelas formas de modo intuitivo para obter uma composição. Cada pintor, nesse período, inventou seu próprio caminho dentro da nova linguagem; o de Marília revelou-se bastante pessoal, donde se originaria um estilo próprio e um universo pictórico inconfundível. A sua exposição, aberta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, bem como o livro sobre sua obra, que acaba de ser editado, permitenos acompanhar a trajetória que ela descreveu ao longo de 50 anos de pintura. Creio que o dado principal a assinalar é a relação que ela estabelece com a linguagem geométrica, objetiva demais para seu temperamento lírico e subjetivo. Isso talvez explique o uso que faz das formas geométricas que, depois de uma primeira etapa, pouco criativa, afastam-se da objetividade impessoal e abstrata para ganhar em expressividade e emoção: a cor passa a exercer papel fundamental na concepção dos seus quadros. Refiro-me especialmente a suas obras dos anos de 1980, quando triângulos e retângulos se tornam elementos de paisagens geométricas.Nelas, as formas curvas são exceções, embora já anunciem as composições futuras, quando passam a predominar.

74 x Continente • FEV 2008

Traduzirse_74_75.indd 74

1/17/2008 3:19:08 PM


Imagens: Divulgação

É ainda na década de 1980 que isso acontece, culminando com a eliminação quase total da geometria: os temas predominantes passam a ser formas vegetais, ainda que estilizadas. Ao mesmo tempo, a cor também sofre mudança essencial, não apenas porque desaparecem os ocres, marrons e cinzas, substituídos por verdes, azuis e rosa, como porque buscam nos envolver numa espécie de dimensão onírico-vegetal, que caracterizará a pintura de Marília Kranz até os dias atuais. Cabe aqui tecer algumas considerações a respeito do papel que desempenhou a geometria na pintura moderna, a partir do Cubismo e mais especificamente do Neoplasticismo de Mondrian. A eliminação da figura na criação pictórica teria que conduzir à geometria como suporte de uma nova linguagem, que se queria menos conjuntural e limitada. A tendência construtiva que nasce, então, vai ganhar nova formulação com Max Bill e os artistas da escola de Ulm, que terão influência sobre a arte brasileira da década de 1950. Sucede que, àquela altura, essa linguagem já estava praticamente esgotada. Aos artistas brasileiros da geração de Marília Kranz restaria ou partir para as criações sensoriais de Lygia e Oiticica ou encaminharse para a optical art, de Vasarely. O caminho seguido por Marília Kranz difere desses, já que, na verdade, realiza uma volta à arte figurativa, ou mais precisamente um reencontro, noutro plano, da linguagem modernista, vinculada à nossa vegetação, à nossa paisagem. Não é por acaso que, guardadas as devidas proporções, sua pintura de hoje evoca sob certos aspectos a pintura pau-brasil e antropofágica de Tarsila do Amaral. A pintora paulista, sob a influência do cubismo de Fernand Léger, geometrizou a paisagem brasileira. Marília Kranz supera a herança concretista vegetalizando a geometria.

Sem Título, 1981, 100x83cm

Elas Duas, 2007, 90x90cm

FEV 2008 • Continente x

Traduzirse_74_75.indd 75

75

1/17/2008 3:19:10 PM


PERFIL

Vida fértil em arte e transgressão Cantor, compositor, escritor e pintor, o pernambucano Lula Côrtes tornou-se uma lenda viva José Teles

L

enda viva é um clichê que não deveria ser empregado para adjetivar o pintor, escritor, cantor e compositor Lula Côrtes, que passa por longe de todo tipo de clichês. Mas neste caso o clichê é bem empregado. O recifense, de Boa Viagem, Lula Côrtes é uma lenda viva da cultura pernambucana, principalmente por seu papel no chamado movimento udigrudi dos anos 70, do qual ele e sua então mulher foram principais catalisadores. A empresa de programação visual que criaram, a Abracadabra, virou selo de disco independente, responsável por, entre outros, álbuns como Satwa (1973), Marconi Notaro no Sub-reino dos Metazoários (1973), e Paêbirú – o Caminho da Montanha do Sol (em parceria com Zé Ramalho). Mais conhecido pela música, no entanto, a pintura foi sua primeira forma de expressão: “Comecei a pintar menino, intuitivamente. Fiquei órfão aos 12 anos (a mãe foi vítima de meningite, o pai de tifo), e fui para a casa do meu avô materno, na Fazenda Soledade, em Lagoa do Carro. A cidade pequena, a paisagem bonita me inspirou a desenhar e meu avô me incentivou muito”, diz Lula Côrtes. Aos 15 anos foi morar em São Paulo na casa de um tio, no Brás: “Nessa época comecei a elaborar uma pintura absolutamente surrealista e psicodélica que chamei de Atípicos, eram organismos de uma natureza não existente e que até hoje me acompanha; de tempos em tempos eu volto a abordar esse tema”. Com a série Atípicos ele arriscou uma amostra em Juiz de Fora (MG). Para surpresa sua vendeu todos os trabalhos, o que o levou a se mudar para a cidade mineira: “Lá o movimento pictórico era muito intenso. Comecei a freqüentar a Galeria Celina onde tive o prazer de conhecer e conviver com Carlos Bracher, grande expoente da pintura mineira, que hoje tem atelier em Ouro Preto”, continua Lula, que por essa época começou a escrever poemas, alguns publicados na Gazeta Mercantil, a compor e tocar. 76 x Continente • FEV 2008

Perfil Lula Cortes_76_77_78_79 .76 76

1/17/2008 3:24:16 PM


Fotos: Sueli Meireles/Divulgação

Quadro da série Atípicos, que mescla plantas e órgãos sexuais

Lula Côrtes: alquimista de sons, cores e palavras

A música poderia ter entrado mais cedo em sua vida, afinal ela corria nas veias, herdadas dos avós paternos. O avô foi flautista da Filarmônica de Juiz de Fora, e a avó tocava piano: “Entrei para uma banda, a TNT4. A gente já fazia uns rocks autorais, meio parecido com o que faz a Má Companhia (banda que o acompanha há anos no Recife). Depois veio a Capeta 5, também em Juiz de Fora”. De Minas, o inquieto adolescente foi para o Rio de Janeiro, onde se engajou num movimento autointitulado Beat Nick, vivendo e expondo nas ruas da cidade. Mais uma breve passagem por São Paulo e a volta ao Recife: “Voltei para Pernambuco com 18 anos de idade e conheci Kátia Mesel, pessoa que foi de importância fundamental para minha carreira, porque tinha uma visão muito aberta em relação às artes em geral, e nos casamos. Nesse período, por estarmos ligados diretamente às artes gráficas, comecei a publicar meus primeiros ensaios e a pintar as paisagens de Itamaracá, lugar que freqüentávamos assiduamente”. Vieram mais exposição e os livros Hábito ou Vício (pela Imprensa Universitária), e Rarucorp (procurar ao contrário), um livro-objeto, dividido em três, interativo, cujos poemas podiam ser remontados pelo leitor. Em seguida O Livro das Transformações, feito em parceria com Kátia Mesel, responsável pela programação visual ousada até para a atualidade, hoje uma raridade bibliográfica, mais difícil de encontrar do que seus dois discos lançados pela Abracadabra: “A gente, eu e Kátia, só conseguíamos realizar estes projetos de discos e livros, porque a empresa da gente era pioneira no ramo aqui no Recife, e tinha algumas contas de empresas grandes”, explica Côrtes. FEV 2008 • Continente x

Perfil Lula Cortes_76_77_78_79 .77 77

77

1/17/2008 3:24:19 PM


Exposição individual de Lula Côrtes na Galeria Arte Plural, realizada no segundo semestre do ano passado

Psicodelia nordestina. “Eu tinha viajado para o Marrocos, e trouxe uma cítara de lá. Foi quando conheci Laílson e o pessoal que fazia música. Todo mundo se encontrava no Beco do Barato (refere-se ao bar Drugstore Beco do Barato, localizado na Conde da Boa Vista, na altura do Colégio São José). Laílson tinha um dinheiro, e pretendia ir para os Estados Unidos, mas acabou empregando a grana em Satwa. A música é baseada em todos os ritmos nordestinos com a interferência oriental”. O parceiro Laílson dá seu depoimento sobre o amigo e o disco pioneiro que arquitetaram juntos: “Quando juntos criamos Satwa, uma interface musical entre os hemisférios do pensamento ocidental e oriental canalizada através da sonoridade nordestina, tínhamos a certeza de que estávamos criando algo que era maior do que cada um de nós e que nos levava simultaneamente ao passado e ao futuro. Por ser também desenhista, encontrei no trabalho de Lula Côrtes abordagens que me surpreenderam, tanto em sua técnica quanto em sua concepção. Sua poesia visceral, sua busca por uma coerência entre a arte de ser e viver, tornaram seus textos em registros de uma época e expressão de uma existência”. Preciosidade da discografia brasileira, Satwa foi reeditado, em CD e vinil, nos EUA, por uma pequena gravadora especializada em psicodelia dos anos 70, a Time-Lag. A mesma gravadora relançou Marconi Notaro no Sub-reino dos Metazoários, e está prestes a lançar Rosa de Sangue, um dos discos mais raros da música brasileira, do qual foram fabricadas apenas algumas dezenas de cópias. Na época em que havia terminado de gravá-lo, Lula Côrtes foi contratado pela Ariola, empresa alemã que entrou no mercado brasileiro com furor em 1980, formando um cast que tinha Chico Buarque, Alceu Valença, Milton Nascimento: “Meu disco na Ariola estourou (fala do álbum O Gosto Novo da Vida), eu ia receber

um disco de ouro, quando surgiu a Rozenblit na história e me prejudicou, porque Rosa de Sangue não era da Rozenblit, mas meu. Só meu, nem da Abracadabra era, porque quando fiz eu já havia me separado de Kátia”, conta Lula Côrtes, que nem teve Rosa de Sangue lançado pela Rozenblit, e ainda ficou queimado na indústria fonográfica (a Ariola retirou O Gosto Novo da Vida de catálogo): “Eu ainda deixei um disco pronto na Ariola, A Mística do Dinheiro, que ainda tenho vontade de lançar, mas não sei como isto poderá ser feito”. Sua obra mais conhecida, ou pelo menos mais comentada, é o mítico Paêbirú – o Caminho da Montanha do Sol, para os padrões da época (1975), um marco. Um álbum duplo, com cada face dos LPs dedicada a um dos quatro elementos básicos (terra, ar, fogo, água). Zé Ramalho, ele conheceu na Paraíba, apresentado pelo também músico Jarbas Mariz (com quem gravaria em 1990 o álbum Bom Shankar Bolenath): “Tinha ido conhecer a pedra do Ingá, um sítio arqueológico, no meio do sertão, com umas inscrições rupestres e cercado de misticismo. O Paêbirú – o Caminho da Montanha do Sol surgiu de uma conversa com Raul Córdula. A gente gravava em casa, em Apipucos, chamava as pessoas para participarem, e veio quase todo mundo que fazia parte daquela movimentação musical do Recife. A turma do Ave Sangria toda participou, menos Marco Polo, que acho que estava viajando, acho que no Rio, uma coisa assim. Na Rozenblit foi feito tudo ao vivo, em no máximo três tomadas. Ali não tem nenhum efeito eletrônico, foi todo feito em apenas dois canais”, conta Lula. Como o estúdio da Rozenblit não era mais tão solicitado, eles podiam começar gravando às duas da tarde, varar a madrugada e acabar as sessões com o dia claro: “Se bebia, fumava, rolava cogumelo, muito ácido. A música que mais representa o disco talvez seja O Regato da Montanha, mas o fundamental é o todo. Descobrir

78 x Continente • FEV 2008

Perfil Lula Cortes_76_77_78_79 .78 78

1/17/2008 3:24:23 PM


PERFIL Ao lado, Lula com o tricórdio, nos anos 70. Abaixo, capas dos discos Satwa e Lula Côrtes e Má Companhia. Mais abaixo, em apresentação com o mesmo grupo

que a música estava aqui, não precisava vir de fora, mais ou menos o que Chico Science fez anos depois” analisa. Paêbirú, no entanto, tornou-se outra raridade, graças às enchentes periódicas do Rio Capibaribe: “Logo que foi fabricada a primeira edição, houve a cheia. O disco com a capa dupla, grossa, o encarte de várias páginas molhou e inchou, e a mesa onde estava virou. Recuperamos as matrizes, mas só conseguimos fazer 300 discos; depois disto a matriz, que também tinha sido atingida pela cheia, ficou ruim”. Paêbirú também terá relançamento, e igualmente no exterior. Está sendo reeditado, em CD e vinil, pela gravadora inglesa Mr. Bongo”. Com Zé Ramalho, ele percorreria o sertão do Pajeú, numa kombi, registrando o canto da região, principalmente repentistas, para o documentário Nordeste, Repente, Canção, de Tânia Quaresma. Os dois ainda fariam parte por algum tempo da banda Trem de Catende, que acompanhou Alceu Valença, no show Vou Danado pra Catende (uma performance dos três pode ser vista no site Youtube, no link http://youtube.com/ watch?v=rnc84s-i3ew. Aos 58 anos (59 em maio), como ele próprio diz, de drogas, sexo e rock and roll, Lula Côrtes depois de longo tratamento está conseguindo controlar um câncer na laringe, e dedica-se hiperativamente à pintura, à literatura e à música. Realizou no segundo semestre do ano passado uma exposição na galeria Arte Plural, está para lançar um livro de contos, e mais um disco, ironicamente batizado de Tarja Preta: “Pela quantidade de remédio tarja preta que já tomei, e tomei tudo! Mas depois deste tratamento minha vida mudou completamente. A dores se foram, parei de tomar morfina, também não estou bebendo. Durmo cedo e acordo muito cedo. Às quatro da manhã já estou de pé, pinto muito e escrevo poesia o tempo inteiro. O próximo projeto deste beatnik único brasileiro é decorar todos os faróis das costas do Brasil (sic): “Quero viver enquanto estiver útil”. FEV 2008 • Continente x

Perfil Lula Cortes_76_77_78_79 .79 79

79

1/17/2008 3:24:27 PM


sabores

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Doce no tacho (1) “Numa velha receita de doce ou bolo há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com as modas.” Gilberto Freyre (“Açúcar”)

I

mpossível esquecer o cheiro do doce quase no ponto, incensando a casa de banana, caju, coco, goiaba, e avisando que vinha chegando a hora de raspar o tacho. Esse tacho era de cobre pesado, herança portuguesa, duas alças, largo quase três palmos grandes, ardendo sobre velhos fogões de lenha. Tudo sob o olhar vigilante de velhas pretas que, com experiência e sem pressa, cuidavam para que não passasse do ponto. A doçaria nordestina foi se formando assim, aos poucos, nesse ambiente de gostos e fumaças, fino equilíbrio entre as cozinhas portuguesa, indígena e africana. Na medida certa e com muita harmonia. Aproveitando imagem de Ronald de Carvalho, nossa própria alma foi nascendo também assim – “da saudade portuguesa adoçada pela sensibilidade ibérica, da inquietação índia e do travo do sentimento resignado dos africanos”. Mas esse açúcar, tão essencial para o preparo dos doces, nem sempre existiu por aqui. Que na cultura indígena, antes do colonizador português, doce era o mel de abelha. Tomado puro, apenas como gulodice. Ou em bebidas fermentadas, preparadas de muitos jeitos. Às vezes apenas combinando mel e água. “Com mel pode-se preparar licor, sem levá-lo ao fogo, apenas misturando-o com água da fonte e deixando-o ao relento”, observou Johan Nieuhof (Memorável Viagem Marítima e Terrestre ao Brasil,1682). Outras vezes, misturavam aquele mel a raízes e frutas. Com mandioca faziam aipij, caracu, caxiri, cauim (de todas, a mais conhecida), paiauru, tikira; com batata-doce, ietici; com milho, abatií, aluá e aruá; com pacova, pacobi; com ananás, nanai; com caju, acaijba; com jenipapo, ianipapa. Para as crônicas da época eram bebidas deliciosas, no sabor, mas repugnantes na preparação. É que as raízes e frutas desse preparo, primeiro mastigadas, acabavam depois cuspidas em jarras de barro, já misturadas com saliva, para dar início à fermentação. “As mulheres é que fazem

a bebida. Tomam as raízes de mandioca que fervem em grandes potes. As moças sentam-se ao pé e mastigam essas raízes”, assim descreveu Hans Staden (Viagens e Aventuras no Brasil, 1554) o preparo do cauim. Índias moças, segundo Gândavo (História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos de Brasil, 1576). Ou velhas, segundo Marcgrave (História Natural do Brasil, 1648). Tanto faz. Steinen (Entre os Povos Nativos do Brasil Central, 1884) se referia a essas bebidas como “ponche de ptialina”. Só lembrando, a palavra “ponche” tem raiz no Indostão (atual Índia), onde “pânch” significava “cinco”, o número dos ingredientes que entravam em sua composição – açúcar, aguardente, canela, chá, limão. De lá vieram para a Inglaterra (“punch”), França (“ponche”) e ganharam o mundo. Cada tribo fazia sua própria bebida. Nas festas iam os da terra em peregrinação, de uma oca a outra, bebendo tudo que lhes fosse servido. Durante a noite inteira cantavam e dançavam entre fogueiras. Até a exaustão. “Bebem sem comer e comem sem beber”, escreveu Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil, 1983). Depois passou a concorrer com as poucas bebidas que o português trouxe com ele, para o Brasil colônia – um fermentado (vinho), um destilado (bagacei-

80 x Continente • FEV 2008

Sabores_80_81_82.indd 80

1/17/2008 3:34:36 PM


Arquivo

Durante muito tempo se acreditou que a cana-de-açúcar teria chegado nessa terra, a que primeiro chamaram Vera Cruz, em 1532 Foto: Ana Bizzotto

ra) e sangria (mistura de vinho, água, açúcar e rodelas de limão). Para os nossos índios essas bebidas, vindas de tão longe, eram “cauim-tatá” (bebidas de fogo). Negros da África Oriental e Mediterrânea conheciam bem o açúcar – produzido a partir de canas plantadas nessa região por árabes, que as trouxeram da Índia. Mas não os escravos que por aqui chegaram, todos vindos da África Ocidental (Angola, Guiné, Gana). Também eles usavam mel, na preparação de suas receitas. A cana só se popularizou, ali, a partir do século 16 – quando já havia começado, no Brasil, o ciclo da escravatura. Foram aqueles árabes, bom lembrar, que desde muito antes difundiram o mel pela Europa, ensinando como usá-lo na preparação de bolos e doces. Em Portugal as colméias, tão importantes eram, que por segurança acabaram cultivadas sempre perto das casas. Havia “meleiros” – que retiravam o favo das colméias; e “apicultores” – que viviam de vender o mel. No reinado de D. João III, tanto prestígio tinham que até impostos podiam ser pagos com ele. Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores desse mel – usado então, especialmente, para preparar sobremesas e fabricar velas. Havia neles fartura

de tudo, em razão das heranças deixadas por famílias ricas ou por pecadores interessados na redenção de suas almas. Como D. Maria Francisca Isabel, filha do rei D. Pedro II – o português, claro. Que o Pedro II brasileiro, filho de D. Pedro I (que em Portugal era Pedro IV), não foi nunca rei na terra em que morreria velho e triste. Conta-se que essa princesa chegou a pagar a fortuna de 1.200.000 réis por 12.000 missas, a serem celebradas após sua morte. Dada tanta opulência, ou pela origem nobre de freiras educadas no requinte da corte, nesses mosteiros se fazia banquetes que em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas. Foi assim, especialmente, do reinado de D. Afonso IV, “O Bravo” (início do século 14) até o fim da inquisição. Em decreto de 19 de dezembro de 1834, ainda no reinado de D. Miguel I, “O Absoluto”, o ministro Joaquim Augusto Aguiar aboliu as ordens religiosas e confiscou seus patrimônios. Além de ter ratificado a expulsão dos jesuítas, em 3 de setembro de 1759, e a extinção da ordem, em 21 de julho de 1773; passando a ser por isso conhecido como “o Mata-Frades”. Aqui chegaram receitas de bolos e doces que, em Portugal, continuavam usando mel de abelha. Como o bolo de mel e o folhado com mel. Ou como o alfenim, pelo povo mais conhecido como alfeninho – do árabe “al-fenie”, que significa “cor branca”. Diz-se também, em corruptela, de pessoa delicada e melindrosa. Trata-se de massa seca e muito alva, feita com mel (depois, também com açúcar), farinha e clara de ovo. Ao chegar ao ponto, é moldada em diferentes formatos – reproduzindo animais, flores e santos. Nas mesas portuguesas era servido em bandejas de prata, somente a nobres e pessoas de posses. Mas, em Pernambuco, foi sempre doce popular. Cumprindo ainda falar do alféloa (ou alfelô ou alfeloa), do árabe “al-halaua”, que chegou a Portugal com a invasão moura no século 8. Por considerá-la privilégio de mulheres e crianças, proibiu D. Manuel I, “O Venturoso”, fosse vendida por homens. Sob pena de prisão e açoite. Em Pernambuco passamos a fazê-lo também com mel de engenho (ou açúcar). O mel vai ao fogo até ficar em ponto firme – sendo a pasta então esfriada aos poucos, enquanto se puxa com as mãos até embranquecer. Por conta desse jeito de preparar, acabou conhecido como “puxa-puxa”. À Europa o açúcar chegou, oficialmente, só no século 11. Por mãos mouras. Transportado em caravanas terrestres que vinham da Ásia para os portos de Veneza FEV 2008 • Continente x

Sabores_80_81_82.indd 81

81

1/17/2008 3:34:39 PM


RECEITA

Doce de laranja-da-terra em calda  Retire a casca bem fina de 10 laranjas-da-terra. Corte em 4. Retire também a polpa, deixando apenas a parte branca da laranja.  Deixe de molho durante 3 dias, trocando a água durante várias vezes ao dia.  Dê uma ligeira fervura. Mude a água novamente. Deixando a laranja em uma peneira para escorrer completamente a água.  Leve ao fogo com 1kg de açúcar, água e alguns cravos.  Quando a calda estiver em ponto de fio brando o doce estará pronto

e Gênova, daí seguindo pelo resto do continente. A princípio, era usado apenas como remédio – calmante, cicatrizante, digestivo, diurético. “Entrou no mundo pelo laboratório dos boticários”, disse Brillat Savarin (A Fisiologia do Gosto), em fins do século 18, quando afinal se tornou gastrônomo – depois de ser juiz de direito e fugir da Revolução Francesa, sobrevivendo na Suíça de ensinar francês e violino. Diferente no aspecto de como o conhecemos hoje, esse açúcar tinha então a forma de cristais grandes, irregulares, perfumados com essências de violeta e limão. Para os portugueses seria “sal índico” – pela semelhança de seus grãos com o sal marinho e pela origem do lugar em que primeiro foi produzido o açúcar, a Índia. Também conhecido como “açúcar-cande” (ou “Cândi”) – o nome vindo do sânscrito “khanda”, que os árabes converteram em “qándi”. Naqueles boticários passaram a ser vendidos ainda o “shurba”, um xarope escuro de aparência viscosa; e um açúcar em ponto de bala, aromatizado com ervas, conhecido como “bolas de sal doce”. Aos poucos passou o açúcar a ser usado também para conservar frutas por mais tempo. E acabou tomando o lugar do mel, na elaboração das receitas dos conventos –com a gema de ovo que ali era entregue pelas vinícolas. Que do ovo, à época, se usava apenas as claras – para purificar vinhos e engomar roupas. Açúcar e gema passaram a ser base de todas as sobremesas. Sendo usado, ainda, na fabricação de vinhos de missa e de licores. Com esse açúcar chegaram à península ibérica, também trazidos pelos árabes, outros ingredientes que começaram a fazer parte das receitas de bolos e doces – amêndoas e cardamomo (Java), canela e anis (Ceilão), cravo e gengibre (Moluas), figos (Turquia), noz-moscada (Banda), passas (de Málaga), tâmaras (Síria), damasco, nozes, avelãs, pistache (Índia). Mas o açúcar, naquele tempo, continuava sendo privilégio

de bem poucos. Nele “estava uma fonte de riqueza quase igual ao ouro”, escreveu Gilberto Freyre (Açúcar, 1939). Em 1440, uma arroba (15 quilos) de açúcar valia 18,3 gramas desse metal. Produzir açúcar passou a ser sonho de reis. Uma tarefa difícil, na Europa, por exigir solo rico, úmido e, o que quase não havia por lá, especialmente quente. Com o domínio das técnicas de produzir, cumpria buscar terras mais amplas. Navegar era preciso. O Brasil estava pronto para ser descoberto. Durante muito tempo se acreditou que a cana-deaçúcar teria chegado nessa terra, a que primeiro chamaram Vera Cruz, em 1532. Com Martim Afonso de Souza, na capitania de São Vicente. Só mais recentemente vindo a público registro da alfândega de Lisboa, indicando pagamento de direitos sobre o açúcar já produzido em Pernambuco desde 1526. Mas o primeiro engenho oficialmente reconhecido em Pernambuco foi o de Jerônimo de Albuquerque, instalado no mesmo ano que aqui chegou (1535) – acompanhando seu cunhado, o donatário da capitania Duarte Coelho Pereira. Era o “São Salvador”, depois conhecido como “Engenho Velho de Beberibe”. Ficava bem perto da cidade de Olinda, em lugar hoje conhecido como “Forno da Cal”. Por ser generosa essa terra, e como em se plantando tudo nela dava mesmo, engenhos foram tomando o lugar da Mata Atlântica nas várzeas dos rios – Beberibe, Capibaribe, Jaboatão, Una. Dado se prestarem esses rios, magnificamente, “a moer canas, a alagar as várzeas, a enverdecer os canaviais, a transportar o açúcar”, descreveu Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala, 1933). Depois se espalhou por todo o Nordeste. E assim, como nas palavras de João Cabral de Melo Neto, tudo foi se transformando “num mar sem navios” formado “pelo anônimo canavial” (“O Vento no Canavial”).

82 x Continente • FEV 2008

Sabores_80_81_82.indd 82

1/17/2008 3:34:45 PM


Fotos: José Luiz Pederneiras/Divulgação

CÊNICAS

Uma viagem pelo Corpo Livro reúne ensaios que analisam a competência do Grupo Corpo, criado em Minas Gerais há mais de 30 anos Marco Polo

Z

Danielle Ramalho e Janaina Castro em Santagustin

uenir Ventura e Humberto Werneck, Marco Gianotti, Renato Janine Ribeiro, Eliane Robert Moraes, Maria Rita Kehl, Arthur Nestrovski, Luís Fernando Veríssimo. Dois jornalistas, um artista plástico, um professor de filosofia, uma professora de literatura, uma psicanalista, um crítico de música e um escritor falam do Grupo Corpo, companhia de dança mineira que em 2005 completou 30 anos de ascendente qualidade e sucesso. Eles foram reunidos pela ex-bailarina e, atualmente, crítica de dança, escritora e cineasta Inês Bogéa, no livro Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo, partindo sua perspectiva pessoal e profissional, para analisar o trabalho do grupo. O resultado é um livro que – além de poder ser usufruído pela beleza gráfica – é lido com prazer, graças à inteligência, sensibilidade e clareza dos textos. FEV 2008 • Continente x

Dança.Grupo Corpo_83_84_85 .indd83 83

83

1/29/2008 4:46:21 PM


CÊNICAS

Janaina Castro e Edgar Dias em Lecuona

Boa parte desta força vem do objeto de estudo. Criado em 1975, em Minas Gerais, pela família Pederneiras, o Grupo Corpo vem acumulando experiência criativa ao mesmo tempo personalíssima e bem-sucedida. Alguns paradigmas podem-se aferir das propostas do grupo. Um deles é que as coreografias são compostas a partir dos estímulos da música. O movimento pode interpretar a música. Vem daí outro, que é uma total recusa de narrativa; ou seja, o espetáculo não deve ser apreendido através da linearidade facilitadora de uma estória, mas sim pelas alusões, referências e expressividade propriamente dita. Mais uma característica do grupo é que todos os elementos interagem a fim de compor o espetáculo: figurino, luz, cenário, todos os elementos fogem ao acessório ou decorativo para se tornarem parte ativa no espetáculo, realçando, reforçando, sublinhando, desdobrando, e, ao mesmo tempo, integrando tudo numa mesma unidade. Como bem explicita Inês Bogéa, “a dança, para o Corpo, precisa sair de si mesma, para chegar ao máximo de si”. Finalmente, partindo da técnica clássica associada a elementos da dança contemporânea, o grupo incorporou passos de danças populares e, principalmente, o movimento das ruas, ou seja, a maneira como os brasileiros se movimentam ao andar e gesticular, o que confere uma impregnada brasilidade aos espetáculos do grupo Brasilidade aqui, bem entendido, sem nenhuma referência a noções de “pátria” ou “nacionalismo” (que quase sempre 84 x Continente • FEV 2008

Dança.Grupo Corpo_83_84_85 .indd84 84

1/29/2008 4:46:27 PM


Flavia Couret, Ana Paula Cançado, Silvia Gaspar e Juliana Meziat em Santagustin

Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo Inês Bogéa (Organização) CosacNaify 224 páginas R$ 68,00

derivam para a xenofobia e o fascismo). Muitíssimo menos brasilidade como sinônimo de “macumbapra-inglês-ver”. Brasilidade, enfim, como essência. É, aliás, essa brasilidade que Veríssimo ressalta no seu artigo. Ele fala do sentimento de exaltação que toma conta do público quando assiste a um espetáculo do Corpo: “uma grande alegria por compartilhar desta coisa que é ser brasileiro”.

Cena de Sete ou Oito Peças para um Ballet

Gianotti se espelha nos conceitos de arte clássica e barroca para situar o trabalho do grupo. Enquanto o clássico isola as formas, dispondo-as estáticas, mas harmonicamente num espaço definido, sob uma luz clara e uniforme, no barroco forma e fundo se fundem, os corpos são fragmentados, a iluminação é teatral e o movimento envolve tudo num turbilhão uno. Não é preciso dizer que ele identifica o Corpo com o barroco, aliás, coerente com sua origem mineira. Maria Rita mostra como o grupo mescla sensualidade com ironia, de modo a criar um distanciamento dentro do envolvimento, um movimento pendular que faz o espectador oscilar entre a emoção e a percepção intelectual. Werneck traça um histórico do processo criativo do grupo, mostrando como cada coreografia nasce das anteriores, ao mesmo tempo que, à sua nova luz, as modifica. Renato Ribeiro fala menos do Corpo do que das melhores maneiras de absorver seu impacto. Como toda arte contemporânea, as coreografias do grupo pedem menos uma explicação pacificadora e redutiva do que apreensão desarmada, que aceita ser fecundada pelo que vê. Nestrovski esmiúça questões técnicas da construção dos espetáculos do Corpo: o contraponto de movimentos aparentemente díspares mas auto-integrantes, o virtuosismo dos pás-de-deux, a capacidade de surpreender quando julgávamos que nada mais poderia nos espantar. Zuenir, por sua vez, termina seu artigo com uma paráfrase do título de um romance de João Ubaldo, sintetizando suas impressões: “Viva o Corpo brasileiro!”, exclama. Oito ou Nove Ensaios sobre o Grupo Corpo vem enriquecido com 34 fotos em P&B de vários espetáculos do grupo, privilegiando cenas referidas nos artigos; e, também, com versão em inglês de todos os textos. FEV 2008 • Continente x

Dança.Grupo Corpo_83_84_85 .indd85 85

85

1/29/2008 4:46:30 PM


Fotos: Thomas Baccaro/Divulgação

DANÇA

Arte como espaço de transformação

Cecília Brennand leva 60 adolescentes em turnê pelo Nordeste com o espetáculo de canto e dança Três Compassos Chris Galdino

O

Recife tornou-se nos últimos anos destino obrigatório de grandes companhias nacionais e internacionais de balé clássico. E todas as vezes que esses ‘mestres das sapatilhas’ aportam por aqui o que se vê são teatros lotados, sessões extras igualmente preenchidas, ingressos esgotados e muita gente sem conseguir entrar. É previsível que em um lugar de fortes tradições populares como o Nordeste brasileiro, em que o corpo e a movimentação do cidadão comum quase se confundem com o gestual e as coreografias dos brincantes das manifestações folclóricas, as tradições importadas e eruditas ganhem novas formas, contornos diferentes. Mas seja nos moldes convencionais europeus, seja nas versões latinas ou nas suas diversas releituras brasileiras, a verdade é 86 x Continente • FEV 2008

Dança_86_87_88_89.indd 86

1/30/2008 3:53:47 PM


Cecília Brennand, ao centro, com sua trupe

que a dança clássica continua exercendo fascínio indescritível nas platéias pernambucanas. Talvez pelo virtuosismo dos bailarinos, talvez por ser o lugar dos sonhos românticos de um mundo desejável de ilusões, as tais doses de utopia de que o ser humano necessita. Deixando as suposições de lado, o fato é que este estilo tão antigo, que chegou ao Brasil no início do século 20, continua no topo da lista de preferências dos espectadores e também das crianças e jovens que querem aprender a dançar. Mesmo que não valha como regra geral, pelo menos é este o diagnóstico da bailarina Cecília Cavalcanti Brennand, diretora da escola de dança Aria, que funciona desde 1991, em Piedade, Jaboatão dos Guararapes e abriga desde 2004 o projeto Aria Social. “Cecília sempre gostou de montar espetáculos na linha da dança criativa, da expressão corporal, mas tivemos que abrir algumas exceções por insistência dos alunos. Pela vontade deles, todas as montagens do Aria seriam de balé clássico de repertório”, conta Déborah Priston, coordenadora, psicóloga e uma das professoras da instituição. Por isso, o clássico é a principal atração dos cursos oferecidos pela escola. Além dele, o módulo intitulado Canto e Dança, conta também com aulas de dança criativa, teoria musical, história da música, história da dança, e dança contemporânea; e é exclusivamente freqüentado por participantes do projeto social, residentes em comunidades de baixa renda próximas a Piedade. FEV 2008 • Continente x

Dança_86_87_88_89.indd 87

87

1/29/2008 4:47:38 PM


O espetáculo de canto e dança Três Compassos reúne 60 adolescentes, num repertório eclético que vai da música popular à erudita

Somente neste módulo de Canto e Dança são cerca de setenta participantes, com idade entre 13 e 25 anos, que dedicam três manhãs por semana ao aprendizado. Ao todo, o projeto atende mais de 350 alunos, de 4 a 25 cinco anos. Apesar de ser uma iniciativa focada na inclusão e utilizar a arte, principalmente, como “ferramenta de transformação humana”, o Aria Social – patrocinado há dois anos pelo programa Democratização Cultural do Grupo Votorantim – acaba abrindo portas para a profissionalização. Isso porque mesmo se tratando de grupo amador, a direção faz questão de imprimir um caráter profissional aos espetáculos, realizando produções bem cuidadas em todos os aspectos. A montagem mais recente, Três Compassos (2006/2007), revela essa excelência nos mínimos detalhes. Exemplo disso é o tratamento dado ao cenário e figurinos, assinados por Beth Gaudêncio, que concebeu uma transformação gradativa para a passagem de um bloco a outro, talvez uma alusão à ‘transformação humana’ que é o mote do Ária Social. Adereços, roupas e elementos vão aos poucos anunciando a mudança, e quando o público percebe a cena já está tomada por novas cores. Outro universo aparece ali quase que imperceptivelmente, graças à criativa concepção de

Gaudêncio, que funciona praticamente como diretora de arte do espetáculo. “O roteiro de Três Compassos foi elaborado por Cira Ramos. E agora Beth está trabalhando na idéia que se transformará no novo espetáculo do Aria Social. Ainda não temos previsão para a temporada de estréia, mas posso adiantar que será baseado em poemas”, revela Cecília Brennand. O pianista Gilberto Santos e a maestrina Rosemary Oliveira, ambos professores de música do projeto, são os responsáveis pela seleção da trilha sonora de Três Compassos. O eclético repertório traz desde “Agnus Dei” (Michel W. Smith), passando pelas populares “Feira de Mangaio” (Sivuca) e “Asa Branca” (Luiz Gonzaga) até os clássicos da cantata Carmina Burana, do compositor alemão Carl Orff. “A idéia inicial era realizar um musical exclusivamente erudito, depois decidimos aproveitar o repertório que eles já estavam ensaiando e assim surgiu Três Compassos: com o primeiro trecho de música sacra, o segundo e de maior duração, de canções populares, e o último dedicado a musica erudita”, conta a diretora-geral do espetáculo Cecília Brennand, que também faz participação especial como bailarina. Além de cantarem e dançarem, alguns jovens intérpretes do elenco também tocam percussão, com instrumentos

88 x Continente • FEV 2008

Dança_86_87_88_89.indd 88

1/29/2008 4:47:43 PM


DANÇA estudando a possibilidade de apresentações no Sudeste do país. E mesmo sendo a primeira experiência fora do Estado vão apostar na ousadia de levar na turnê os 60 adolescentes e jovens de baixa renda que compõem o elenco do musical. Esta é, inclusive, uma condição que a diretora não abre mão: “Apesar dos elevados custos e responsabilidades da viagem, o espetáculo foi concebido para um elenco numeroso e muito da sua força e beleza vem daí, por isso optei por manter a idéia original, que ganhará nesta nova versão mais momentos de dança”, diz Cecília Brennand. O tcheco radicado no Recife, Zdeneck Hampl (falecido em 2007) coreografou a obra com Ana Emília FreiO Projeto Aria resgata jovens carentes de Jaboatão re e Carla Machado, professoras de dança do Ária. São fortes os traços da expressão corporal e nítidas confeccionados por eles mesmos a partir de material as influências da dança moderna e contemporânea reciclável. “A iniciativa partiu dos próprios estudantes. nas cenas, mas, como não poderia deixar de ser, preE agora não prescindimos da participação deles em domina uma linguagem derivada do balé clássico, a nenhuma apresentação. Além disso, criamos o módubase da formação do elenco e da proposta pedagógilo de percussão, em que eles mesmos se exercitam no ca da própria escola. papel de professores”, explica a coordenadora Débora Ainda que a obra não seja remontagem ou adapPriston. tação de um clássico de repertório e que a multiculO Aria Social se prepara para realizar sua primeira turalidade típica de Pernambuco apareça em quase turnê pelo Nordeste, com Três Compassos, financiada todos os momentos, é da técnica clássica vivenciada pela Fiori, assim como a gravação do DVD do espenas tantas aulas semanais da escola que surgem os táculo, que acaba de ser finalizado. Olhando para o movimentos. É de grand jetés e piruetas que são feitos cenário da produção cultural independente em Peros sonhos destes aprendizes. E, ao que parece, quanto nambuco, este é um quadro mais que privilegiado, mais perto de torná-los realidade, mais apaixonados um benefício que nem as companhias profissionais de pelo balé clássico e seu imaginário de sonhos eles dança alcançam, salvo financiamentos pontuais e alficam. Nem o rigor dos exaustivos treinamentos os gumas raras exceções. Patrocínio e captação de recurassusta, e pelo contrário, parece que os instiga. Talvez sos, mesmo de projetos aprovados nas leis de incentiesta preferência e esperança tenham sido construídas vo, continuam sendo obstáculos desafiadores para os em cima de mitos de perfeição e promessas de glaartistas da dança. Com o apelo do social aliado ao alto mour. Mas trabalhos como os do Aria Social estão nível artístico do espetáculo, Cecília Brennand e equiaí para mostrar que a carreira de bailarino clássico pe conseguiram convencer os investidores do ‘poder não é um sonho impossível, e principalmente para transformador da arte’, tarefa nada fácil. provar, como repete a idealizadora do projeto Cecília No itinerário da circulação de Três Compassos estão Brennand, que “a arte é um espaço privilegiado para capitais e cidades do interior do Nordeste, incluindo Pera transformação humana”. nambuco, e privilegiando os estados vizinhos, mas ainda FEV 2008 • Continente x

Dança_86_87_88_89.indd 89

89

1/30/2008 3:54:05 PM


Bruce Weber/Divulgação

n MÚSICA

Garanhuns Jazz Festival

Rodrigo Andrade/Divulgação

O jazz do Senegal será ouvido durante o carnaval, mais especificamente nas altitudes de Garanhuns, numa iniciativa que, os mais antenados já decifraram, emula o já consagrado Festival de Jazz de Guaramiranga, Ceará, realizado sempre durante os dias da grande festa profana. A idéia, de Giovanni Papaléo, é esta: aproveitar a bem-sucedida experiência cearense e trazer para cá uma opção de qualidade para os não-adeptos da folia. O 1º Garanhuns Jazz Festival, junta bandas locais, nacionais e internacionais movidas a jazz e blues. Entre as atrações, está a senegalesca Les Fréres Guissé, no dia 4/2, o guitarrista americano Kenny Brown, o também guitarrista portenho-brasileiro Victor Biglione, a Dixie Square Jazz Band, de São Paulo, e a cantora cult Taryn Szpilman, considerada “a diva do jazz brasileiro”. Papaléo também abre espaço para músicos garanhuenses, inclusive a Orquestra de Frevo e Jazz de Garanhuns, que tocará nas ruas, criando um clima meio new-orleansnesco na temperada cidade pernambucana. (HF)

A cantora Luciana Lazulli, uma das atrações do festival

Multidão na partida de vôlei de praia Brasil x EUA, em 1986 n LANÇAMENTO

n FOTOGRAFIA

Poeta do Ceará lança A Anatomia do Frevo

O Brasil na visão do estrangeiro

O poeta Abraão Batista, natural do Juazeiro do Norte (CE), lança no Pátio de São Pedro, o livro A Anatomia do Frevo, publicado, ano passado, na sua cidade natal. O lançamento é promovido pela Panamérica Nordestal Editora com o apoio cultural da CEPE – Companhia Editora de Pernambuco/Governo de Pernambuco e Fundação de Cultura Cidade do Recife/Prefeitura do Recife. O livro, ilustrado com 175 xilogravuras do autor, é um longo poema de cordel, composto de mais de 160 sextilhas, onde o poeta apresenta a origem do frevo, sua história centenária, os passos da dança criados pelo povo, a manifestação popular viva em Olinda, no Recife e em várias cidades pernambucanas.

O Paço das Artes exibe a exposição fotográfica Brasil: desFocos (O Olho de Fora), que reúne 77 obras de 28 artistas estrangeiros, compondo um mosaico livre de estereótipos e preconceitos com relação ao país. Além de contar com trabalhos de fotógrafos dos EUA, da Inglaterra, da Espanha, da Itália, da China, da Sérvia, do México, de Portugal, da Alemanha e da Argentina, a exposição traz entre os destaques, fotografias do fundador da Pop Art, Andy Warhol, do cantor escocês David Byrne e do artista multimídia Matthew Barney. A exposição destaca as visões particulares de cada artista sobre o Brasil, registrados em momentos distintos nas últimas três décadas.

nnn

nnn

Garanhuns Jazz Festival De 2 a 4 de fevereiro www.garanhunsjazz.com.br

Lançamento – A Anatomia do Frevo 23 de fevereiro Bar Banguê (Pátio de São Pedro), às 10h

nnn

Exposição: Brasil: desFocos (O Olho de Fora) Paço das Artes (Cidade Universitária. São Paulo) A partir de 22 de janeiro Informações: (11) 3814-4832

90 Continente • FEV 2008

Agendão_90_91.indd 90

1/29/2008 4:48:53 PM


n EXPOSIÇÃO

n EXPOSIÇÃO

“Marilia Kranz são duas. Mas cada uma delas, muitas. E sendo tantas e apenas uma, em tudo o que faz, como cidadã e artista plástica, revela-se solidamente coerente.” Assim começa o texto do crítico de arte e pesquisador Frederico Morais no livro que marca a trajetória de quatro décadas de atividade de Marilia Kranz, um dos nomes mais sólidos do panorama visual do país. O MAM – Rio promove a exposição Marilia Kranz 1968 – 1974 relevos e esculturas que mostra a etapa em que, em sua obra, Marilia Kranz, que pinta hoje aos 70 anos com o mesmo vigor dos 20, antecipando tendências se lançou a materiais e tecnologias que não eram utilizadas por outros artistas naquela ocasião. (leia mais na coluna Traduzir-se)

O Centro Cultural Benfica da Universidade Federal de Pernambuco, promove a exposição ARTE ARMORIAL – Do Regional ao Universal, sob a coordenação do museólogo Albino Oliveira. A mostra é composta por setenta e quatro peças recém-restauradas que compõem a Coleção Armorial do centro. Entre os artistas que terão obras expostas, estão: Ariano Suassuna, Fernando José Torres Barbosa, Aluísio Braga, Fernando Lopes da Paz e Gilvan Samico, que terá uma sala dedicada aos seus trabalhos. A Arte Armorial tem como principal característica a busca por uma expressão genuinamente brasileira, com origem nas raízes populares da nossa cultura e tem base teórica desenvolvida nos anos 1970 com Ariano Suassuna.

nnn

nnn

Marilia Kranz 1968 – 1974 relevos e esculturas 5 de dezembro de 2007 a 10 de fevereiro Museu de Arte Moderna Rio de Janeiro Informações: (21) 2240 4944 / www.mamrio.org.br

ARTE ARMORIAL – Do Regional ao Universal 4 de outubro de 2007 a 29 de fevereiro de 2008 Centro Cultural Benfica (Rua Benfica, 157, Madalena) Informações: (81) 3227.0657

A arte inovadora de Marília Kranz

A memória do Armorial

A geometria de Marília Kranz no quadro Soma de tudo

Divulgação

Cena do filme Pequena Jerusalém, de Karin Albou

n CINEMA

Clandestina Liberdade Reconhecer o diferente e respeitar experiências distintas não tem sido fácil para as populações humanas. Ao longo de sua história, o cinema se provou um excelente veículo para a expressão de reflexões sobre este tema, abordando vários aspectos da questão da identidade. Agora, uma mostra realizada pelo Centro Cultural Banco do Brasil reúne, pela primeira vez 14 filmes que tratam da imigração no mundo contemporâneo. São produções recentes, algumas inéditas. Logo no primeiro dia, o público tem oportunidade de conferir A Promessa, um dos mais premiados filmes dos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, também inédito no circuito comercial brasileiro. nnn

Clandestina Liberdade 12 de fevereiro a 2 de março Cinema do Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília Ingressos: R$ 4,00 e R$ 2,00 Informações: (61) 3310. 7087 Divulgação

FEV 2008 • Continente

Agendão_90_91.indd 91

91

1/29/2008 4:48:56 PM


CONJUNTURA

A hora e a vez da economia da cultura

C

A gestão e formulação de políticas culturais no Brasil começam a se orientar por estudos e pesquisas, mas os primeiros indicadores mostram que ainda estamos longe dos padrões desejáveis Marcelo Mário de Melo

omo planta insistente brotando no concreto, a questão da economia da cultura vem avançando no Brasil, com o estímulo das correntes internas e sob a influência decisiva dos encontros e resoluções da Unesco, que colocaram em pauta a questão do desenvolvimento cultural e a necessidade de se elaborarem os indicadores relacionados à cultura. O passo importante neste sentido foi a realização, em agosto de 2002, na Fundação Joaquim Nabuco, do Seminário Internacional sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento – Uma Base de Dados para a Cultura, promovido pela Unesco, o IBGE e o Ipea. O documento A Imaginação a Serviço do Brasil – Programa de Políticas Públicas de Cultura, do qual sou signatário, que serviu de inspiração ao governo Lula e é assumidamente marcado pelas diretrizes constantes do Relatório da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da Unesco (1992), possui no arrazoado um item denominado Cultura como ativo econômico. E nas propostas, no título Economia da Cultura, está inscrito: “implementar, com o IBGE, Ipea, secretarias estaduais e municipais de Cultura, instituições culturais, associações e sindicatos, uma Rede de Informações Culturais voltadas para a produção sistemática de dados culturais (censo cultural, dados estatísticos e constituição de um banco de dados integrado que dê suporte à ação do Estado, da sociedade e do mercado”). A primeira conseqüência desse alinhamento político-cultural foi a assinatura, em 2004, do Convênio entre o Ministério da Cultura, o IBGE e o Ipea, retomando o trabalho do Seminário de 2002, inclusive com a mesma equipe, para gerar informações relacionadas ao setor cultural, construir indicadores, culturais, fomentar estudos, pesquisas e publicações. O resultado concreto foi o Sistema de Informações e Indicadores Culturais, publicado em fins de 2006, que está disponível nos sites do IBGE e do Ministério da Cultura, podendo também ser adquirido em CD-ROM. As informações culturais foram construídas a partir do cruzamento de dados recolhidos em pesquisas já realizadas pelo IBGE: Censo Demográfico, Amostra de Domicílios, Economia Informal, Orçamentos Familiares,

92 x Continente • FEV 2008

Economia da Cultura_92_93_94_95.92 92

1/29/2008 4:49:57 PM


Padrões de Vida, Pesquisa Mensal de Emprego, Informações Básicas Municipais, Cadastro Central de Empresas, Pesquisas Anuais Serviços, Industrial-Empresa e Industrial-Produto. Foram estudados os segmentos culturais para os quais não há nenhuma dúvida sobre o seu enquadramento no guarda-chuva da cultura, como edição de livros, jornais, revistas e periódicos; rádio, televisão, teatro, música, bibliotecas, arquivos, museus, patrimônio histórico. Compondo uma “zona cinza”, segundo a pesquisadora do IBGE Cristina Pereira de Carvalho Lins, foram incluídas “as atividades de comércio atacadista de equipamentos de informática e de telecomunicações, atividades de processamento de dados, etc., para as quais nem sempre está explícita a associação com o setor cultural”. Vale salientar a importância da Pesquisa de Informações Básicas Municipais, voltada para a identificação e a quantificação dos equipamentos culturais como biblioteca pública, museus, teatros ou salas de espetáculo, cinemas, clubes e associações recreativas, estádio ou ginásio poliesportivo, banda de música, orquestra, vídeo locadora, livraria, loja de discos, CDs e fitas, shopping center, estações de rádio AM e FM, unidades de ensino superior, geradora de TV e provedor de internet. Paralelamente ao domínio das informações e ao estabelecimento de indicadores específicos, colocaram-se em discussão, nos fóruns internacionais e nacionais, o conceito de cultura como economia criativa, suas potencialidades como fator de desenvolvimento, seu alto poder de empregabilidade e suas relações com a sustentabilidade. Além das necessidades de as políticas culturais trabalharem para a criação de ambientes favoráveis à expressão da diversidade, à informação e à difusão da cultura. E no país se realizam inúmeros estudos e pesquisas sobre ca-

Um histórico

O

s estudos sobre a economia da cultura tiveram início nos Estados Unidos nos anos 1960. Na década de 1970 a Unesco convocou os seus membros a produzirem estatísticas sobre cultura. A França foi um dos primeiros países a tomar a iniciativa. No Brasil, o primeiro grande estudo sobre o assunto surgiu com Celso Furtado à frente do Ministério da Cultura, que encomendou pesquisa à Fundação João Pinheiro dando conta do peso da cultura no Produto Interno Bruto e na balança comercial. Na pré-história dos estudos e dos debates sobre a economia da cultura no Brasil, vale ressaltar a cobrança por eles nos encontros e documentos culturais de Pernambuco a partir de 1985, ao lado da reivindicação do Cadastro Cultural do Estado. Nas perdas e ganhos assinale-se, na gestão de Naílton Santos na Sudene, durante o governo Sarney, no ano de 1977, a constituição do Grupo de Política Cultural – GPC, coordenado por Janice Japiassu, que promoveu a realização do I Encontro Nordestino de Política Cultural, em cujas resoluções se colocava a necessidade dos estudos de economia da cultura. Com a eleição de Collor, o GPC foi deletado. No governo de Miguel Arraes (1989-90), com Tarcísio Pereira na Fundarpe, o poeta-sociólogo Alberto da Cunha Melo coordenou a pesquisa de campo do projeto-piloto do Cadastro Cultural de Pernambuco, no município de Caruaru, extensiva à área rural e incluindo um item sobre a participação da atividade cultural na renda familiar, sendo cadastrados em torno de 1.400 produtores culturais da cidade e dos sítios. Esse trabalho foi abandonado pelo governos seguinte. Fabio Rodrigues Pozzebom - ABr

O Ministério da Cultura, com Gilberto Gil à frente: preocupação com indicadores culturais FEV 2008 • Continente x

Economia da Cultura_92_93_94_95.93 93

93

1/29/2008 4:49:58 PM


CONJUNTURA

IBGE e MinC apresentam raio-X

P

esquisa realizada pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –, em parceria com o Ministério da Cultura – MinC, durante o ano de 2006 e divulgada em setembro de 2007, revela números sobre as atividades culturais dos 5.564 municípios brasileiros. O trabalho, intitulado "Informações Básicas Municipais", apresenta dados sobre órgãos gestores de cultura e sua infra-estrutura, recursos humanos da cultura, instrumentos de gestão, legislação, existência e funcionamento de conselhos e existência e características de fundo municipal, recursos financeiros, existência de Fundação Municipal de Cultura, ações, projetos e atividades desenvolvidas. O trabalho também levantou números sobre os meios de comunicação, quantidade de equi-

pamentos, atividades culturais e artísticas existentes no município. O IBGE levou em consideração a distribuição desigual da população. No Brasil, 71% dos municípios têm até 20 mil habitantes e reúnem 17,6% da população total (ou 32,5 milhões de pessoas). Na outra ponta, apenas 36 municípios (0,6%) têm mais de 500 mil habitantes e reúnem 28,0% (51,6 milhões de pessoas ) da população. De acordo com os números de outra pesquisa do IBGE – "Sistema de Informações e Indicadores Culturais"–, divulgada em dezembro de 2007, o governo federal ampliou seu volume de gastos no setor cultural entre 2003 e 2005, mas ainda é a esfera menos representativa, em termos proporcionais de investimento. (Ricardo Melo)

Gestão

Feiras e festivais

Teatro

Em 72% dos municípios brasileiros a cultura está acoplada a outras políticas setoriais, geralmente com a educação. Em 6,1% dos municípios ela está vinculada diretamente à chefia do Executivo.

Entre as atividades culturais existentes nos municípios , os destaques foram as exposições de artesanato (57,7%); as feiras de artes e artesanato (55,6%); os festivais de manifestação tradicional popular (49,2%); festivais de música (38,7%); festivais de dança (35,5%); concursos de dança (34,8%); e de música (31,9%). Os festivais de cinema atingem cerca de 10% dos municípios. O Rio de Janeiro se destaca (28,3%), embora o Nordeste apresente, entre as regiões, o segundo maior percentual, justificado pela participação dos estados do Ceará, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

Os grupos artísticos de teatro são os que mais recebem incentivos das prefeituras (80,5%). As bandas, orquestras, grupos de manifestação tradicional popular, dança , coral e artesanato recebem o apoio de pelo menos 50% do poder público municipal onde é reconhecida a sua existência .

Empregos A cultura emprega 58 mil pessoas nas prefeituras brasileiras, ou 10,4 funcionários por município.

Investimentos Os municípios gastam, em média , R$ 273,5 mil com cultura, o que corresponde a apenas 0,9% do total da receita arrecadada municipal. A região que mais destinou recursos para a cultura foi a Nordeste (1,2%, do total da receita arrecadada). As regiões Norte e Sul destinaram 0,8%, e as regiões Sudeste e Centro-Oeste, 0,9% e 0,6%.

Gastos PÚBLICos

O bordado é a atividade artesanal mais presente nos municípios do Brasil, encontrada em 75,4% deles, seguida das atividades com madeira (39,7%), artesanato com barro (21,5%) e artesanato com material reciclável (19,5%).

Meios de comunicação Entre 1999 e 2006, cresceu em 178% o número de municípios brasileiros com provedor local de internet. Os provedores se espalharam pelo país: em 1999, estavam em 16,4% dos municípios e, em 2006, se encontravam em 45,6%. Este foi o maior crescimento da pesquisa: 178%. A TV aberta estava presente em 95,2% dos municípios brasileiros.

Política cultural Em 57,9% dos municípios há uma política para o setor. Este é um dos principais indicadores da importância que o setor tem do ponto de vista da gestão. Cerca de 42% dos municípios não têm uma política cultural formulada.

Livrarias e bibliotecas

Incentivos Em 5,6% dos municípios existe legislação de incentivo à cultura. No Brasil, 83,8% das cidades possuem despesas realizadas na “função cultura”.

Artesanato

Fonte: IBGE

O percentual de municípios com livrarias existentes no Brasil caiu 5,5% em sete anos, passando de 35,5% dos municípios para 30% (1667). As bibliotecas públicas são o equipamento cultural que mais recebe apoio das prefeituras (97,8% dos municípios têm ao menos uma biblioteca mantida pelo poder municipal).

94 x Continente • FEV 2008

Economia da Cultura_92_93_94_95.94 94

1/29/2008 4:49:59 PM


Hans Manteuffel/Divulgação

Ao lado dos indicadores específicos, a discussão sobre o conceito de cultura como economia criativa é um item que começa a entrar em pauta

deias produtivas na área da cultura, merecendo destaque o trabalho de Luiz Carlos Prestes Filho sobre a música no Rio de Janeiro. Aqui em Pernambuco, no rol mais recente das perdas e ganhos, pesquisa sobre o mesmo item, coordenada pelo Centro Josué de Castro, foi interrompida por falta de recursos. Mas no contraponto, a Fundação Joaquim Nabuco realizou um Seminário Internacional sobre Economia da Cultura, cujas palestras estão disponíveis no seu site, e que vai gerar livro e DVD. E também deu início ao curso de pós-gradução em Economia da Cultura, em parceria com a UFRS. Toda essa produção de conhecimento vem exigir atitudes de ruptura por parte do poder público. Por exemplo, retirar o debate sobre a economia da cultura do campo restrito às leis de incentivo e ao marketing cultural, passando às políticas macro, que envolvam cadeias produtivas, formação, tecnologia, estudos de mercado, etc. Assim como se procede em relação à agricultura, à indústria, ao turismo, etc., segmentos em que não se questiona o papel regulador e indutor do Estado. No que diz respeito à cultura, esse papel é mais do que indutor, se considerarmos, por exemplo, o fato de que o Ministério da Educação realiza anualmente gigantesca compra de milhões de livros didáticos, sendo o principal sustentáculo desse segmento editorial. Considere-se também que, no terreno da cultura, formar mercado sig-

nifica formar platéias, facilitar o acesso a bens culturais, disseminar informações e facilitar a expressividade das comunidades. O que remete à gestão cultural. E exige os traços de união entre as políticas culturais e educacionais. Estamos, portanto, ante a exigência da reformulação das políticas culturais, segundo convocação da Unesco. É necessário romper com as óticas marcadas pela segmentação, o mero calendário de eventos e o imediatismo do balcão de atendimentos, sob o arbítrio todo-poderoso dos gestores do momento. Para tanto que se estabeleçam, a exemplo do que ocorre nas áreas da educação e da saúde, as obrigações específicas do Município, do Estado e da União, com a definição dos equipamentos e serviços culturais básicos sob a responsabilidade de cada um e a vinculação dos recursos orçamentários. E que se estabeleçam planos a longo prazo para que essa rede seja implantada em todos os municípios do país. O avanço nas questões relacionadas à economia da cultura não foge a esse contexto. E para provar que, apesar dos novos conhecimentos estatísticos, ainda estamos muito longe do modelo desejado, basta constatar que os recursos orçamentários despendidos com a cultura se destinam, majoritariamente, ao calendário de eventos, e não aos equipamentos e serviços permanentes. Para tirar a prova, é só tomar como referência a prefeitura mais próxima. FEV 2008 • Continente x

Economia da Cultura_92_93_94_95.95 95

95

1/29/2008 4:50:02 PM


metrópole

Marcella Sampaio

O corpo é meu universo

E

Free Stock Images

m tempos de pós-virada de ano, quando as cidades parecem incorporar uma ode ao futuro, com planos de mudanças tão radicais quanto inconsistentes, um outro fenômeno, além das modificações efêmeras de comportamento, fica evidente: a exposição e supervalorização do corpo. O corpo como espaço das manifestações individuais e coletivas, o corpo como resumo do ser, o corpo como evidenciador de personalidades e tendências. Esse corpo físico, no entanto, não se resume mais à sua porção biológica, mas incorpora elementos externos a ele em variadas dimensões, numa condição que se convencionou chamar de pós-humana. Segundo correntes de pensamentos pós-estruturalistas, o binarismo que costumava inspirar temas caros ao ocidente, tais quais claro/escuro, matéria/espírito, emoção/ razão, diz a pesquisadora Lucia Santaella, estão sendo desconstruídos sistematicamente pelas novas fronteiras (ou ausência delas) do humano. Não é necessário muita teorização nem pesquisa aprofundada para que o cidadão comum, morador de uma metrópole como o Recife, perceba tais atividades, ainda que não faça uma reflexão sobre o tema. O próprio verão, estação que deixa literalmente os corpos em evidência, potencializa o efeito de um comportamento que é mundial. A individualização característica da urbes limitou os espaços de convivência e elevou o próprio corpo à condição de uma espécie de outdoor, onde as pessoas podem manifestar seus desejos e expressar necessidades, principalmente de aceitação e de adequação. Um dos fenômenos mais emblemáticos dos últimos tempos foi a comoção que a cantora Britney Spears causou ao fazer uma apresentação estando “fora de forma”, segundo a mídia especializada do mundo inteiro. A performance da artista foi classificada de “decadente”, “deprimente”, “sofrível”, entre outros

adjetivos pouco lisonjeiros, principalmente por causa das gordurinhas a mais que ela apresentava na cintura, sem entrar no mérito da qualidade do trabalho. Após o evento, Britney lançou um CD muito elogiado, onde ironizava a própria condição de garota problemática e produtora de escândalos, e sua atitude tornou-se, para parte dos mesmos críticos de outrora, “autêntica”. Todos os adjetivos dirigidos a ela, no entanto, tinham como pano de fundo a utilização do próprio corpo como provocador de reações. As próteses, as plásticas, o botox e o restilane, a incorporação de elementos externos como piercings e tatuagens, os transplantes, os clones, as células-tronco, são exemplos de intervenções que caracterizam o ser humano do século XXI, embora nem todas elas sejam, a princípio, novidades. A novidade, na verdade, é a cada vez mais evidente transformação do espaço do corpo em coisa pública, passível de comentários, julgamentos e afirmativas vindas do outro, ou dos outros. A manipulação estética para a transformação da superfície corporal é um fenômeno que traduz muito da importância que a aparência, em detrimento do conteúdo, possui para a sociedade ocidental, e não há nessa afirmativa nenhuma pretensão de julgamento, apenas de constatação. Vem o carnaval, e a coisificação do corpo, no Brasil, vira movimento de massa. Nem as mulatas escaparam de virar esculturas de músculos e silicones. Infelizmente, perderam a suavidade e a graça dos movimentos, que ficaram pesados, duros, automáticos. Como elas, milhares de pessoas buscam transformar a própria aparência para se enquadrar em determinada condição que lhes permita estar entre os escolhidos. Eu, particularmente, gostava mais das chacretes, que tinham bundas de verdade. Acho que estou ficando velha.

96 x Continente • FEV 2007

Metropole_96.indd 96

1/29/2008 4:50:50 PM


Anúncio



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.