Continente #087 - Pecados digitais

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Conhecimento versus propriedade

Reprodução

aos leitores

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iante das recentes mudanças da indústria da cultura, toma nova conotação a certeza marxista de que tudo o que é sólido se desmancha no ar. A revolução tecnológica atinge praticamente todas as esferas da atividade cultural. A mudança de paradigma causa embates fervorosos entre conservadores e liberais. Corporações consolidadas ao longo do século 20 hoje perdem espaço para empresas em busca do ouro, nascidas na era digital. Consumidores se entorpecem com a abundância de produtos ao alcance de um clique. O assunto é quente: não se sabe onde termina o direito ao conhecimento e onde começa o direito à propriedade. Estirado entre tensões opostas, está o autor. Músicos, cineastas, escritores, profissionais da comunicação; está no “cognitariado”, diz a professora Ivana Bentes, o futuro do capitalismo. E como proteger os direitos autorais entre ruínas de antigas muralhas e as crescentes invasões bárbaras? Se a internet é pivô da maior crise da indústria fonográfica, também se tornou ferramenta imprescindível para a mesma – como mostra a matéria de capa desta edição. • Trazemos também matéria especial comemorativa do centenário de Solano Trindade. Nascido em 24 de julho de 1908, no bairro de São José do Ribamar, no Recife, Francisco Solano Trindade, além de poeta, foi pintor, ator, folclorista, teatrólogo, animador cultural e pioneiro na luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra no Brasil. • Em entrevista exclusiva, o presidente da Funarte, Celso Frateschi, diz que está na hora de União, estados e municípios trabalharem juntos em prol da cultura, assim como de músicos, atores e outros artistas especializados abandonarem o corporativismo de classe para se apoiarem como um todo. • Já o cineasta paraibano Vladimir Carvalho constrói grande mosaico de imagens e depoimentos no documentário O engenho de Zé Lins; uma tentativa de resgatar a importância do escritor José Lins do Rego e impedir que seu nome e obra caiam no esquecimento. • Por fim, uma novidade: a estréia da coluna Agenda pontocom, que traz dicas sobre portais na internet de interesse para o leitor; mais uma prestação de serviço da revista Continente, para promover e divulgar a cultura.

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Reprodução

As igrejas coloridas de Mário Nunes

Divulgação/MinC

A crise do direito autoral

A "nova" Funarte de Frateschi

CONVERSA 4 >> Celso Frateschi quer uma Funarte realmente nacional BALAIO 10 >> A seriedade do humor na literatura CAPA 12 >> As tecnologias digitais e o direito autoral 16 >> Ronaldo Lemos explica o Creative Commons 18 >> A consolidação do mercado digital 22 >> Estilo musical das periferias se impõe AGENDA PONTOCOM 24 >> Os endereços digitais indispensáveis LITERATURA 26 >> A experimentação na linguagem de Nélson de Oliveira 30>> Tchekhov e a antecipação da questão climática 32 >> Agenda livros 34 >> Colóquio Cecília Meireles em forma de livro CINEMA 36 >> Vladimir Carvalho resgata José Lins do Rego 39 >> Curta mostra ficção de Clarice Lispector 40 >> David Lean, o mais articulado e límpido dos diretores

CÊNICAS 52 >> Arquivinhos homenageiam Nélson Rodrigues 56 >> Balé Popular do Recife encena a Paixão de Cristo 59 >> Cia. dos Homens dança embaixo d’água TESES 65 >> A presença do hermetismo na atual poesia brasileira ESPECIAL 68 >> O centenário do poeta negro Solano Trindade MÚSICA 80 >> Marcelo Jaffé: o mestre-de-cerimônias da música 83 >> Banda instrumental Rivotrill lança primeiro CD 86 >> Agenda música DEBATE 88 >> Multiculturalismo ou interculturalismo PERFIL 90 >> Hugo Martins, o apóstolo do frevo HISTÓRIA 94 >> Portugueses brancos vendidos como escravos

ARTES 44 >> Igrejas de Pernambuco pelo pincel de Mário Nunes

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Divulgação

Reprodução

Alexandro Auler/ Divulgação

Rivotrill grava primeiro CD

COLUNAS ENTRE LINHAS 35 >> Diário de um soldado holandês TRADUZIR-SE 50 >> A evolução da gravura de Anna Letycia

Cia. dos Homens estréia balé submarino

Reprodução

Nélson Rodrigues nos Arquivinhos

Solano Trindade Os 100 anos do guerreiro

SABORES 62 >>Os rituais do açúcar no tacho METRÓPOLE 96 >> Frevo e flamenco são jazzísticos

ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELETRÔNICO www.continentemulticultural.com.br

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conversa

Celso Frateschi A gente tem um paradigma muito fechado do ponto de vista da corporação. Teatro pensa no teatro, música na música. Devemos pensar que somos um todo

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Alexandre Belém/ JC Imagem

Por uma Funarte de fato nacional 2/28/2008 3:24:23 PM


Presidente da Funarte diz que no Sistema Nacional de Cultura, União, estados e municípios trabalham juntos. Todo esforço é federalizar. Não ver só Ipanema, mas o Brasil por inteiro ENTREVISTA A Olívia Mindêlo

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omo o ministro da Cultura, Gilberto Gil, Celso Frateschi teve de largar os palcos temporariamente para se dedicar à causa política. Atual presidente da Fundação Nacional de Arte (Funarte), vinculada ao MinC, o ator e diretor de teatro, com mais de 30 anos de carreira, volta-se agora para a missão de descentralizar as ações do governo federal pelo Brasil. A ordem é percorrer as regiões do país para democratizar e ampliar o apoio à cultura nacional, nas mais diversas manifestações artísticas, colocando em prática a inversão das atenções para o eixo Rio-São Paulo. No Recife, ele já esteve duas vezes, desde que assumiu a pasta, há cerca de um ano. Conversou com instâncias do poder estadual e municipal para firmar parcerias, assim como com as classes de dança e música. Ficou de fechar um projeto de fomento à formação, para a Funarte e a demanda local, uma das principais urgências. Essa não é a primeira experiência de Frateschi na política cultural: já atuou como secretário de Cultura em Santo André (SP), na gestão de Celso Daniel, e no começo da segunda gestão do PT no município. Na capital paulista, durante o governo Marta Suplicy, exerceu, nos dois primeiros anos, o cargo de diretor do Departamento de Teatro e, nos dois seguintes, de secretário de Cultura. Essa, no entanto, é a função de maior responsabilidade. As conseqüências são nacionais. Mesmo com veia paulistana, ele não abre mão de conhecer o que existe para além das fronteiras da paulicéia, que ainda concentra a

maior parte dos recursos do país, e isso inclui também a cultura. Nesta entrevista, concedida durante visita a Pernambuco, ele fala sobre as metas e os esforços da Funarte, o andamento do Sistema Nacional de Cultura, a distribuição de recursos na área, sua relação com a arte e suas críticas em relação às leis de incentivo à cultura. Como se dá a descentralização da Funarte, preconizada pelo ministro Gilberto Gil? Minha obrigação é ir constantemente às regiões do país para ter um diálogo do ponto de vista de cada região. O fato de a Funarte estar sediada no Rio de Janeiro não a transforma numa entidade carioca. Ela é nacional. Todo o esforço do ministro tem sido regionalizar as ações da Funarte, para a gente chegar ao conjunto do Brasil de uma forma mais equilibrada. Hoje em dia, a grande maioria da porcentagem dos recursos vai para a região Sudeste, principalmente São Paulo. Pode-se dizer que lá há maior demanda, mas também existem muito mais investimentos e fomentos. Então, a idéia do ministro é regionalizar de uma forma radical, estadualizar mesmo. Alguns prêmios que estamos desenvolvendo, por exemplo, estamos estadualizando. A Funarte tem escritórios no Rio, Brasília, São Paulo e Minas. Por que não há uma base no Nordeste? Não sei se o fato é ter ou não escritórios e unidades. Acho que temos que trabalhar junto às representações do MinC, tendo uma visão mais integrada da ação cultural. Porque, o que o ministro preconiza? MAR 2008 • Continente x

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A lei de incentivo à cultura tem o seu lugar e deve continuar apoiando uma estruturação da indústria cultural, mas deve passar por uma séria revisão

É o Sistema Nacional de Cultura, em que União, estados e municípios trabalham juntos. Todo esforço é federalizar. Não ver só Ipanema, mas o Brasil como um todo. Existe hoje em dia uma grande quantidade de recursos, que, além de estar concentrada no Sul/Sudeste, é voltada para a produção de eventos. A gente acredita que a produção cultural se faz através de um tripé: a produção, mas, talvez até antes dela, a formação e difusão desse produto. Hoje você tem em São Paulo, na área de teatro, cerca de 800 estréias semanais, mas não há o aproveitamento dessas 800 estréias semanais. O que significa essa concentração de recursos na região Sudeste em números se compararmos com o restante do país? Não tenho um número preciso, mas falando de dança, um número que me chocou muito, a região Sudeste concentra 84% dos recursos. A gente não pode dizer que o Nordeste não se expressa através do corpo, não é? Então, é uma distorção que tem que ser corrigida. Já foi corrigida no edital do Prêmio Funarte de Dança Klauss Viana, mas precisamos avançar mais. E só se avança se houver sinergia entre as instâncias de poder federal, estadual e municipal, e os grupos organizados da sociedade. O padrão de realização do Recife é diferente do padrão paulistano. Isso não significa melhor ou pior. Por que se eleger a sulista como a que deve receber o recurso? Ainda vivemos um País “paulicêntrico” e isso tem que se quebrar. Que outras ações estão no projeto de descentralização cultural? A grande ação seria avançar no Sis-

tema Nacional de Cultura. A outra, já discutida, é a construção de uma lei de fomento às artes. Havia uma demanda das artes cênicas, que chegou a avançar nas câmeras setoriais, mas estamos propondo que não seja uma lei geral de teatro, mas uma lei geral das artes, que garanta um fomento independente da Lei Rouanet, um fomento direto do estatal, seja ele municipal, estadual ou federal. A idéia é que não se fique dependendo, para o desenvolvimento das artes, de dinheiro de empresa. Qual a previsão para o Sistema Nacional de Cultura virar realidade? A lei está sendo discutida no Congresso. É uma lei complexa de ser aprovada, porque mexe com divisão orçamentária, restrição, reserva de orçamento para a área cultural. Criamos uma rede parlamentar bastante significativa de apoio. Os parlamentares, aliás, criaram uma frente de apoio à cultura bem ampla. Envolve todos os partidos com mais de 300 deputados apoiando as ações na área cultural. Estamos contando com eles para aprovar a PAC, que estamos chamando de lei geral das artes. Dentro do sistema? Tudo vai entrar no sistema. A gente tem um paradigma muito fechado do ponto de vista da corporação. Teatro pensa no teatro, música na música... Quer dizer, não se pensa como um sistema. Isso é a grande contribuição que o ministro está dando: vamos pensar que nós somos um todo, que necessariamente se alimenta e não se destrói. O senhor apóia as leis de incentivo à cultura?

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Marcelo Lyra/Divulgação

Para Frateschi, o padrão de realização do Recife, como o balé Grial, é apenas diferente do padrão paulistano, não melhor ou pior

Tenho muitas críticas às leis existentes hoje. Elas são uma realidade. Se não existissem, não existiria a produção cultural brasileira. Então, não dá para você simplesmente apoiar ou não. Agora, Temos que fazer uma análise crítica para que elas se aperfeiçoem. Se por um lado a lei criou uma indústria cultural, por mais incipiente que seja, também criou distorções graves, que precisam ser analisadas tecnicamente. Por exemplo, gerou-se o quê? Particularmente não acredito que gerou o aumento da atividade cultural do País como um todo. No teatro, antes da lei, faziam-se oito sessões por semana. Hoje, em São Paulo, se fazem até duas. Então, não se pode dizer que se teve um incremento à atividade teatral. Houve aumento de produções, um maior número de espetáculos estreados, mas não um maior número de público nem de apresentações. Gerouse uma situação de que vale mais a pena estrear um espetáculo, do que manter um em cartaz. É mais inte-

ressante, do ponto de vista econômico, agradar o diretor de marketing da empresa do que o público. Precisamos refletir sobre isso. Mas eu acho que a lei tem o seu lugar e deve continuar apoiando uma estruturação da indústria cultural, que, do meu ponto de vista, deve passar por uma séria e profunda revisão. E a Lei Rouanet? É a mesma, é o paradigma das leis de incentivo. Temos experiência em São Paulo e em outras cidades que propõem um fomento de forma diferenciada. Existem vários fundos de cultura e leis municipais em que se tem um acesso direto. São experiências que não são analisadas do ponto de vista federal. Porto Alegre, acho que o Recife e Londrina têm estruturas de financiamento mais públicas. Mas o paradigma é a Lei Rouanet. Infelizmente não só no Brasil. Você vai em alguns lugares aí fora e eles acham que é solução. Isso é terrível.

Qual o papel da fundação para o fomento e divulgação da cultura nacional? A Funarte já existia antes do Ministério da Cultura. A vocação original, dos militares até agora, mudou muito. Teve um papel fundamental, de resistência, de intervenção direta nos estados para garantir que o mínimo de arte pudesse ser construído durante o período da ditadura. Teve um papel social, portanto. Foi destruída no período do Collor e reestruturada no seguinte de uma modo Frankenstein, juntando tudo no mesmo lugar. Sua vocação, hoje, ainda não está completamente definida. Não acredito que seja disputar espaço com as instâncias federadas, mas firmar parcerias. Não tem que existir um teatro da Funarte no Recife. Quero estimular que as municipalidades desenvolvam vários teatros e a gente apóie esse serviço. Essa é a vocação da Funarte: mais estruturante, parceira e estimuladora da criação artística no país. MAR 2008 • Continente x

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Março 2008 – Ano 8 Capa: Rafael Gomes Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente

Leda Alves Diretor de Gestão

Bráulio Mendonça Meneses

Diretor Industrial

Ricardo Melo

Conselho Editorial

Colaboradores desta edição:

Presidente: Leda Alves

ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA é doutor em Teoria Literária e professor universitário.

Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly

ANDRÉ DIB é jornalista

BRUNO BRITO é jornalista.

CHRISTIANNE GALDINO é jornalista e crítica de dança.

Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo

Diretor de Arte Ricardo Melo

Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira

Editor de Arte Luiz Arrais

Revisão Ayrton de Moraes

Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)

Assistente de Edição Thiago Lins

Edição on-line Mariana Oliveira

Estagiária Gabriela Lobo Gestor industrial Júlio Gonçalves

CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico de música da revista Continente.

CARLOS NEWTON JR. é poeta e ensaísta.

EDVALDO RAMOS é procurador do Ministério da Saúde.

EDUARDO GUENNES é jornalista.

FÁBIO ANDRADE é doutor em Teoria da Literatura.

FERNANDO MONTEIRO é escritor e crítico cultural.

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GERMANO RABELLO é jornalista.

Gerente comercial e marketing Rosana Galvão

INALDETE PINHEIRO DE ANDRADE é escritora e ativista do Movimento Negro.

Produção Débora Lôbo, Eliseu Barbosa, Joselma Firmino, Lígia Régis e Roberto Bandeira

GUSTAVO LIMA é desembargador do Estado de Pernambuco.

LUÍS AUGUSTO REIS é jornalista, professor de teatro, mestre em comunicação e doutorando em Teoria da Literatura.

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

LUIZ CARLOS MONTEIRO é poeta e crítico literário.

MARCELO COSTA é jornalista e crítico de cinema.

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noite veloz, Muitas vozes e Cultura posta em questão.

Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema sujo, Dentro da

LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros.

MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária.

Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.

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cartas

Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br

2008 OU 1958? Achei extremamente intrigante a capa da edição 85 desta Continente. Ao passar pela banca, fiquei surpresa com uma capa dedicada ao ano de 1958. Ainda sou estudante e não vivi esse período de otimismo. Espero apenas que um clima parecido possa uma vez mais chegar ao Brasil. Estamos precisando. Catarina Barbosa, Olinda-PE

1958: GRANDE ANO Fiquei bastante emocionado com a edição de janeiro deste ano que traz como tema de capa o ano de 1958. Recordo-me bem daquele ano feliz, em que todos acreditavam que tudo poderia dar certo. Hoje o clima é outro, 2008 se apresenta, para mim, como um ano de poucas ilusões. Espero, com meus 75 anos, estar errado. José Roberto Antunes, Recife-PE

ARQUITETA DAS PALAFITAS Linda a matéria publicada em fevereiro sobre a artista Elizângela Nascimento. Tinha visto alguns trabalhos da artista em uma

exposição que me deixaram curiosa. A Continente acerta ao abrir espaço para gente nova, pois a arte pernambucana não é apenas aquela feita pelos medalhões da tradição. Roseane Castro, Recife - PE

REP E RAP Mais uma vez a Continente acertou na escolha de sua pauta. Interessante e bastante contemporânea, a matéria de capa aponta a tendência da hibridização cultural, através das aproximações entre o Rap e o Repente. Com isso, a publicação demonstra que está conectada com as principais discussões, acadêmicas ou não, na contemporaneidade. Marcílio Oliveira, João Pessoa-PB

NOTA DA REDAÇÃO Na matéria Perfil, sobre Lula Côrtes, intitulada Uma vida de artes e transgressão, a causa da morte de seus pais estava incorreta. Augusto Eugênio Villani Côrtes e Diva Martins Côrtes morreram em 2 de setembro de 1962, em acidente automobilístico na cidade do Rio de Janeiro.

Revista n° 57, setembro de 2005 Matéria: Conversa Fábio Lucas entrevista Alberto Oliva

O valor filosófico de uma teoria científica pode ser aferido por sua capacidade de influenciar os modos de pensar e as visões de mundo e de homem. Uma filosofia da mente pode, por exemplo, se beneficiar dos resultados alcançados em neurociência. Mesmo os imperativos da análise conceitual não podem desprezar o que foi empiricamente comprovado. Por mais que a ciência não chegue a resultados explicativos definitivos, a filosofia não deveria contrariar suas constatações ao formular suas reflexões. A filosofia pode funcionar como alter ego da ciência, apontando-lhe os pressupostos nos quais se baseiam suas práticas. Se os cientistas fazem, por exemplo, inferências indutivas, podem os filósofos indigitar o quanto a indução é problemática e como se assenta em pressupostos metafísicos como o do curso uniforme da natureza. É assim que avança o conhecimento

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O humor na literatura é muito maltratado pela academia, que parece considerá-lo um gênero menor. Deve ser resquício da visão aristotélica que, em seu precário embasamento anatômico, colocava o humor como gerado na parte inferior do corpo. Também a maldição do romantismo alemão, que considera a vida uma catástrofe e a literatura a porta de entrada nos Infernos. O humor denuncia e, quando autoaplicado, nos ensina a não nos levar tão a sério. E é mais difícil fazer rir ou sorrir do que chorar. Para isso (fazer chorar), basta juntar uma mulher bondosa, um órfão e um vilão. (Homero Fonseca)

Nos trinques No capítulo 3 de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, Mário de Andrade escreveu: “É lá que vive Ci agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela.” O livro, sabemos todos, é de 1928. A gíria atual “nos trinques” não passa, pois, de uma recaptura de expressão antiga, como acontece com mais freqüência do que se pensa. (HF)

Um tal de Census Bureau and the National Endowment for the Arts entrevista, desde 1982, milhares de americanos sobre hábitos de leitura, e o quadro anualizado demonstra que 56,9% dos pesquisados haviam lido, em 1982, pelo menos uma obra literária durante o ano. O percentual caiu para 54% em 1992 e para 46,7% em 2002. Em novembro passado, a instituição realizou uma nova pesquisa e seus dados evidenciaram que “pouca habilidade para a leitura tem relação íntima com falta de emprego, baixos salários e poucas oportunidades de crescimento profissional”, na armada América do presidente Bush. Pergunta: se pesquisassem aqui, o que diriam esses americanos que acham que seus compatriotas estão perdendo não só o gosto pela leitura, “mas também a capacidade de ler”? (Fernando Monteiro)

DESAFORISMOS

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Imagens: Reprodução

Humor e preconceito

Pouca leitura

Palmas para eles Fruto do Balé Popular do Recife, o bailarino Ângelo Madureira, radicado em São Paulo, está pela segunda vez na lista de melhores do ano da Associação Paulista de Críticos de Arte-APCA. Em 2003, ele e sua parceira, a paulista Ana Catarina Vieira receberam o prêmio revelação em dança. Agora, na seleção de 2007, os críticos Christine Greiner, Helena Katz e Marcos Bragato, criaram uma categoria exclusivamente para estes dois intérpretes-criadores. Ângelo e Ana Catarina ganharam o prêmio Percurso de Pesquisa. Outro pernambucano na seleta lista da APCA, desta vez como melhor bailarino, foi Dielson Pessoa de Melo, ex-integrante do Grupo Experimental que há alguns anos atua no Balé da Cidade de São Paulo. É a dança de Pernambuco conquistando público e crítica no Brasil e no mundo. (Christianne Galdino)

Nós, como objetos "A loucura é diagnosticada pelos sãos que não se submetem a diagnóstico." Carlos Drummond de Andrade

Encontrar indicadores quantitativos e qualitativos, econômicos e nãoeconômicos que possam mapear a realidade cultural de determinado lugar ou povo é o desafio de muitos pesquisadores. A dificuldade, na opinião do professor Paul Tolila, ex-diretor do Départment des Études, de la Prospective et des Statistiques do Ministério da Cultura da França, é que pesquisar no campo da cultura significa ‘olhar para nós mesmos, tratar de nós mesmos’. Segundo o pesquisador francês : ‘nas Ciências Sociais, somos nosso próprio objeto’. (CG)

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O valor daquilo Em 1953, plena ditadura salazarista, a Câmara de Lisboa fez publicar a Portaria nº 69.035, destinada a preservar a ordem e a família. Rezava assim, e transcrevo: “Verificando-se o aumento de atos atentatórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm verificando nos logradouros públicos e jardins e, em especial, nas zonas florestais Montes Claros, Parque Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se á Polícia e Guardas Florestais uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes. Assim, e em aditamento àquela Postura nº 69.035, estabelece-se e determina-se que o artº 48º tenha o cumprimento seguinte: 1º Mão na mão (2$50); 2º Mão naquilo (15$00); 3º Aquilo na mão (30$00); Aquilo naquilo (50$00); Aquilo atrás daquilo (100$00). Parágrafo único – Com a língua naquilo 150$00 de multa, preso e fotografado”. (Duda Guennes, de Lisboa)

Em 1931, quando Leon Trotsky se encontrava desterrado na ilha de Prinkipo, no mar de Mármara, sua biblioteca se incendiou. No outro lado do mundo, um anticomunista empedernido, o crítico e jornalista norte-americano H.L. Mencken, “compadeceu-se” da perda do intelectual russo e imediatamente escreveu-lhe oferecendo como doação alguns livros para que ele começasse a refazer a biblioteca. Trotsky nunca respondeu, mas suponho que as obras oferecidas por Mencken não se adequariam ao gosto, digamos “marxista”, do revolucionário. (Eduardo Cesar Maia)

Admiração Segundo Nietzsche, "todas as coisas boas estimulam à vida, mesmo um bom livro escrito contra a vida". A generosidade (ou grandeza de alma) do pensador romeno E. M. Cioran confirma isso. No livro Exercícios de Admiração gasta nada menos que 40 páginas elogiando a obra de Joseph de Maistre (1753-1821). Não pelo reacionarismo atroz do francês – elogiava a Inquisição –, mas pela maneira brilhante como defendia suas idéias indefensáveis. (Marco Polo)

"A arte não reproduz o visível, mas faz visível aquilo que nem sempre é." Paul Klee

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Diálogo impossível

IMPACTO

Um livro pesado e libertador “Li aos 14 anos Notas do subterrâneo, de Dostoiévski e nunca mais me esqueci. Nunca mais me esqueci do enredo? Não, em Dostoiévski – de quem passaria então a ler todos os livros – não é bem o enredo que fica em nossa memória. Nunca mais me esqueci do tom, daquela voz que parece um murmúrio delirante que de vez em quando irrompe em explosões emocionais. Notas do subterrâneo (também traduzido como Memórias do subsolo) é um livro que antecede muitos, como O estrangeiro, de Camus, e ainda não foi superado por nenhum em seu impacto. O narrador, um aposentado que se sente encurralado pelas situações sociais (descritas na segunda parte, que tem o belo título A propósito da neve molhada), persegue nada menos que a indiferença completa aos outros seres humanos, mas se vê num turbilhão moral e mental que nos leva juntos. Você acha pesado para um garoto de 14 anos? Para mim, porém, teve a leveza da libertação. Daniel Piza, jornalista. MAR 2008 • Continente

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As tecnologias digitais acrescentaram nova e irreversível dimensão ao mundo da arte e do conhecimento. Nunca foi tão fácil acessar, criar, disseminar quanto nos últimos tempos. Essa mudança de paradigma tecnológico, que está tornando a internet a maior biblioteca da humanidade, também levanta uma questão central para entender a atual crise da indústria de bens culturais: como garantir e proteger o direito dos autores e produtores sobre suas obras? Reprimir e criminalizar a livre circulação de filmes, músicas, softwares e outros arquivos digitais têm sido uma atitude nada estratégica, adotada pela indústria que estabeleceu as regras do jogo no século passado. Enquanto isso, desponta uma nova economia da cultura, sob o olhar eletrônico de novos titãs do capitalismo, nada surpresos em constatar que o futuro do planeta está mesmo é nas mãos de quem cria e dissemina a produção imateral.

Emissoras de TV estão em plena campanha para instalar bloqueadores de gravação nos aparelhos de recepção do sinal digital (set top box). Desde janeiro, a rádio virtual Last.fm paga diretamente a artistas independentes, cada vez que suas músicas são transmitidas; até a metade do ano, a EMI pretende demitir quase metade de seus funcionários no Brasil; países da Europa compensam o prejuízo causado por cópias privadas ao embutir uma “taxa digital” em aparelhos eletrônicos. Após três meses de greve, 10 mil roteiristas de Hollywood voltam ao trabalho, agora recebendo porcentagem pela veiculação de filmes e seriados em novas mídias. Eis algumas das notícias a desfilar pela passarela da mídia nos últimos meses. Todas têm como pano de fundo uma mudança de tecnologia iniciada há tempos, e que vem progredindo exponencialmente. Uma mudança que atinge praticamente todas as esferas de atividade humana, da economia ao ativismo social, da política à filosofia do direito. Economia da cultura virou assunto estratégico. Se por muito tempo a regra do jogo foi ditada pelas majors, as grandes corporações de mídia que fizeram a história do século 20, hoje parece estar nas mãos de qualquer um disposto a investir num computador com acesso banda larga ou se dirigir até a esquina mais próxima e comprar CDs e DVDs a preço de banana. Indignada, a indústria em peso resolveu tomar as dores de um personagem essencial, e partiu em defesa dos direitos do autor.

Roteiristas em greve: sinal dos tempos

André Dib

(com colaboração de Thiago Lins) MAR 2008 • Continente x

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As propostas de alteração serão definidas pelo Fórum ao longo de 2008, mas já é possível apontar para alguns horizontes. “A obra do autor faz parte da cultura da sociedade. Quando um direito impede outros essenciais, como o direito ao conhecimento, o Estado precisa intervir. Não pensamos o direito autoral como direito civil, mas como política cultural. Está na Constituição: propriedade intelectual tem que cumprir uma função social”, diz o especialista, que exemplifica com a lei que impede que qualquer livro seja fotocopiado nas universidades, até mesmo livros esgotados ou em domínio público. José Vaz informa que, nos debates correntes, a pauta passa longe de ameaçar os direitos do autor. Pelo contrário até: a idéia é aumentar as garantias de que ele esteja preservado dos chamados contratos leoninos. “Não estamos colocando os produtores como vilões, mas eles precisam se adequar ao interesse social. Hoje o autor pouco domínio tem sobre sua obra. Para entrar no mercado, ele tem que ceder sua obra, muitas vezes de forma universal e perene, para editores geralmente ligados a majors, que cuidam da divulgação desses produtos. A legislação não prevê salvaguardas para proteger esses autores, geralmente prejudicados pelas gravadoras, que por sua vez estão numa posição muito privilegiada e cômoda”, argumenta. Outro ponto passível de ajustes diz respeito às atividades do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), instituição que fiscaliza e cobra pela execução de obras musicais em todo o território nacional. “O Ecad tem o monopólio desse serviço, que precisa de supervisão pública”, afirma o representante do MinC. Márcio Fernandes, gerente-executivo de arrecadação do Ecad, informa que o serviço de fiscalização já vem sendo desempenhado pelas próprias associações as quais o escritório representa e repassa os valores arrecadados. “Além disso, mantemos auditoria anual, feita por empresas escolhidas entre as principais do país, que acompanha

Divulgação

No Brasil, discutir a lei que regula os direitos autorais tornou-se tão imperativo que será prioridade do Ministério da Cultura. Lançado pelo ministro Gilberto Gil no fim do ano passado, o Fórum Nacional do Direito Autoral almeja, ainda em 2008, propor revisões na legislação existente, uma redefinição do papel do Estado nesse setor, e construir uma política autoral para o próprio MinC. No total, cinco seminários nacionais e um internacional, mais 11 oficinas e fóruns regionais aprofundarão o assunto de forma representativa. “Nossa lei é das mais restritivas, e isso é prejudicial para a cultura. Temos o diagnóstico de que ela precisa ser mexida. Como nessa área existem muitos interesses envolvidos, precisamos construir um consenso em torno de um processo democrático”, diz José Vaz, especialista em políticas públicas da coordenação de direito autoral do MinC. A lei a que Vaz se refere é a de número 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, considerada moderna em certos aspectos, mas que ao mesmo tempo considera ilícito converter um CD legalmente adquirido para um iPod. “A lei brasileira diz muito bem o que não pode ser feito com obras autorais, mas simplesmente não foi feliz ao regulamentar o que pode ser feito com as criações intelectuais. Nossa lei, quando comparada com outras legislações mundiais, perdeu o equilíbrio entre os direitos de exclusividade e os direitos de acesso”, avalia Ronaldo Lemos, advogado especialista no assunto.

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Joedson Alves/Agência Estado

Repressão à pirataria tem sido a estratégia mais defendida pela indústria de entretenimento

e comprova a transparência de nosso balanço patrimonial”. A assessoria de imprensa do Ecad informou que os titulares ficam com 75% da arrecadação total, as associações intermediárias recebem 7%, e os 18% restantes vão para as despesas administrativas do próprio Ecad. Fernandes justifica a existência da instituição sob uma perspectiva histórica. “No início do século 20, associações foram criadas naturalmente em cada região do país para cuidar dos interesses dos autores com os usuários de música. Por volta de 1970, a coisa começou a ficar complexa, e houve a necessidade de haver uma única entidade para arrecadar de forma centralizada”.

Divulgação/ CCBB

Discutir a lei que regula os direitos autorais é uma das prioridades do ministro Gilberto Gil

A arte é uma propriedade como outra qualquer? A pergunta, elaborada pelo documentário Rec Beat e a propriedade intelectual – caos e toda coreografia possível, de Pedro Bayeux, está no cerne de uma das maiores crises da indústria cultural. A questão é colocada logo após Glória Braga, funcionária do Ecad, afirmar de que sim, uma composição musical deve ser protegida como um quinhão de terra, um carro ou uma fórmula química registrada no Instituto Nacional de Patentes. “O enfrentamento do século 21 gira em torno da propriedade dos bens simbólicos. Porque nunca foi tão possível compartilhar, e ao mesmo tempo eles (as corporações) nunca tiveram tanta sede de lucratividade”, declara no mesmo filme o sociólogo Sérgio Amadeu, notório defensor do software livre e da inclusão digital. “As idéias estão no mundo. Quando eu lanço um disco, uma determinada pessoa me ouve de tal forma que, num determinado tempo, meu trabalho estará na produção dessa pessoa, e eu posso nem perceber isso. Por isso, quando faço uma música, em parte ela deixa de ser minha, para ser de quem a ouve e a divulga. Existe uma reação exagerada das grandes corporações em querer monopolizar o controle sobre esse novo mercado”, avalia Siba, compositor e pesquisador, que relativiza: “Por outro lado, inaugurou-se uma discussão inversa ao extremo, de defender o fim do direito autoral. As pessoas começaram a defender o acesso irrestrito para fazer remix e colagens. Quem cria já faz isso, mas processando de um jeito novo. Existe um processo para se apropriar do que é do outro e criar algo”. Um bom guia para entender como funciona a “cultura do remix” está nas páginas do livro Cultura livre, do professor de direito Lawrence Lessig. Disponível para download em português (http://tramauniversitario. uol.com.br/compartilhe/cultura_livre.jsp), e com edição em papel distribuída gratuitamente por um projeto da gravadora Trama, o livro de Lessig traça uma perspecMAR 2008 • Continente x

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entrevista>> Ronaldo Lemos

Por dentro do Creative Commons

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lickr, Wikipédia, Overmundo. Com certeza você já acessou um site com conteúdo Creative Commons. Quem responde pelo projeto no Brasil é o diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ, o advogado Ronaldo Lemos. Na entrevista a seguir, ele explica o que é e como está evoluindo este novo sistema de licenciamento baseado na generosidade intelectual, e que já soma 150 milhões de obras mundo afora.

tiva histórica para provar que a livre apropriação de bens intelectuais é o que garante o processo de criação, principalmente em momentos de inovação tecnológica que permitem o surgimento de novas mídias. No nosso caso, a internet. Nem é preciso dizer que no Brasil, com sua cultura autofágica e tropicalista, as idéias defendidas por Lessig se tornaram sucesso tão grande quanto sua mais famosa criação, o Creative Commons. Seu encontro anual, o iSummit, reúne centenas de pessoas interessadas em discutir ciberativismo, propriedade intelectual e criações colaborativas. Em 2006, o evento foi sediado pelo Brasil. Este ano, o encontro da “coalizão” da cultura livre será em Sapporo, no Japão, e congregará representantes de 60 países. O problema é que, mesmo com o engajamento de toda uma ge-

O que é o Creative Commons, e por que optar por ele? O Creative Commons é uma ferramenta jurídica para que autores e criadores intelectuais possam

ração, estamos num momento de transição que não permite respostas exatas sobre como remunerar a atividade criativa, e ao mesmo tempo aposentar palavras como “pilhagem” e “pirataria” a cada vez que alguém ouve música ou assiste a um filme no computador. Flexibilizar o direito do autor, ou reprimir o direito de acesso? O compositor mineiro Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento em muitos sucessos, defende a cultura do “todos os direitos reservados”. Certa vez, durante a abertura da edição 2006 do Festival de Cinema do Rio, Brant, que também é diretor-presidente da União Brasileira de Compositores, declarou que “flexibilizar os direitos autorais é um retrocesso, não um avanço. É voltar ao tempo da barbárie sob verniz tecnológico. É, supostamente, democratizar o acesso à cultura e, certamente, matar o autor de fome”.

dizer para a sociedade que autorizam alguns usos de suas obras. Cabe a cada autor decidir quais são esses usos. O mais importante do CC é seu caráter voluntário: só usa quem quiser. Nesse sentido, as razões para optar por ele são várias, como incentivar modelos participativos de criação e garantir o acesso e maior circulação às obras. O CC sofreu alterações para se adaptar à cultura brasileira? Sim, o modelo original do CC passou por um processo de adaptação de mais de 18 meses para que as licenças fossem compatíveis com o sistema jurídico brasileiro. Esse processo contou com

Equivocado ou não, o pensamento de Brant levanta uma questão pertinente, a mesma que caiu como uma bomba numa Hollywood que sofreu prejuízo de cerca de 2 bilhões de dólares com a greve de seus roteiristas. O motivo? Uma parcela dos lucros obtidos com novas mídias. “Em países como EUA, com fortes atividades sindicais, de roteiristas, atores, esse 'cognitariado', os produtores culturais vão ter que obter outras garantias, que não a da carteira assinada, mas talvez de uma renda universal, ou seja, se você é um precário, com ocupação sazonal, tem que ter 'um salário para existir'. Essa é a proposta de teóricos do capitalismo cognitivo. E mais radical ainda, em vez de direito autoral para poucos, um salário para existir e produzir criativamente para muitos ou para todos”, avalia a professora da UFRJ, Ivana Bentes.

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a colaboração de professores, advogados e diversos especialistas na área. Com isso as licenças hoje são totalmente válidas de acordo com a lei brasileira.

Como ele é totalmente baseado no direito autoral, quem viola os termos da licença está violando também os direitos autorais do criador da obra. Com isso, o criador tem à sua disposição todas as formas permitidas pela lei para fazer valer os termos da licença (da busca e apreensão a até mesmo medidas criminais).

O CC tem o poder de interceder pelo licenciado em caso de transgressão? Não, o CC não tem esse poder.

O CC pode ajudar o autor ou criador a ganhar dinheiro com sua obra? O CC tem sido uma importante ferramenta para a experimentação com novos modelos de negócio. Um sintoma disso é que vários sites colaborativos o usam como fundamento de seu modelo de licenciamento. Esse amplo uso ocorre principalmente porque o CC acaba propiciando bases jurídicas para a colaboração na rede.

Tem sido comum ouvir críticas ao CC, principalmente vindas de grandes produtores da indústria cultural e de associações de criadores ligados a ela. Como você as avalia? O CC sofre críticas principalmente do Ecad e das sociedades arrecadadoras de direitos autorais ligadas a ele. Trata-se de uma oposição compreensível. Com o início do século 21, a criação intelectual se democratizou radicalmente. Hoje a quantidade de pessoas envolvidas no processo de criação é infinitamente maior do que o número de afiliados das sociedades coletoras de direito autoral. E esses novos criadores, que são a maioria, estão buscando novas formas de gerenciar sua criação. Formas que sejam mais simples e diretas e que não estejam em guerra com o potencial que a tecnologia traz.

Assim como vem ocorrendo com a produção musical, o barateamento dos equipamentos, de captação, edição e distribuição vem facilitando a produção de filmes e de mercados paralelos ao da grande indústria. Dois exemplos estão na Índia (Bollywood), e mais recentemente, na Nigéria (Nollywood). “Os filmes são produzidos de forma baratíssima, cerca de 10 mil dólares cada um, e vendidos nas ruas por camelôs a três dólares. Ou seja, música ou filme, há uma explosão concreta da indústria cultural fordista, cara. Trata-se de criar nova cadeia produtiva para o audiovisual e a possibilidade de produção nova, uma renovação de quem produz, pois esse consumidor se torna produtor também. No Brasil,

com a possibilidade do digital estamos vendo a explosão da produção de documentários, mas ainda há um fetiche de festivais e do mercado pela “película” e salas tradicionais de cinema, o que não tem muito sentido”, diz Bentes. Diretor de programação do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, Kleber Mendonça Filho confirma a situação: “Salas estão passando por uma erosão. Tem filme que é exibido em Cannes em maio, depois no Festival do Rio em setembro. Quando a gente vai exibir aqui, chega alguém e diz que já viu. Isso me causa profunda irritação. Antigamente, você tinha ou não tinha visto um filme. Agora, tem a coisa do 'eu baixei'. Você pode ter visto ou não, mas baixou”.

Mais rápido do que qualquer conclusão a respeito do motivo das baixas bilheterias, o modelo tradicional de exibição parece ter encontrado nos camelôs o seu golpe de misericórdia. O “fenômeno” Tropa de elite talvez seja a maior prova disso. Bentes aponta uma possível saída: “Tem que baixar a margem de lucro. O filme já chega pago no cinema, incentivado, patrocinado. Mesmo com a pirataria, muita gente vai comprar o DVD original, vai ver o filme no cinema. Esse é um novo paradigma, é o que podemos chamar de apropriação social. O espectador não quer nem saber. Quer ter o acesso, pelo camelô, pela internet, pelo celular, na lan house. Essa circulação livre da produção cultural, com custo baixíssimo ou de graça, já está criando uma outra economia, de abundância. Não adianta querer criar escassez reprimindo”.

Após cinco anos de criação, como você avalia a evolução do CC? Ele cresceu rapidamente e se desdobrou em iniciativas que abrangem várias áreas. Por exemplo, o projeto Science Commons é um braço do CC voltado para a disseminação do conhecimento científico, e é um dos poucos exemplos da chamada “web 3.0”, ou “web semântica”. Além disso, há também o CC Learn, braço educacional com o objetivo de produzir e disseminar materiais didáticos .

Cultura livre Lawrence Lessig Trama Universitário Grátis (somente por download)

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A economia das novas

mĂ­dias

Mercado digital vem se consolidando por internet e celular

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Reprodução

A mudança provocada pela convergência de mídias digitais, aliada ao advento da internet rápida, coloca em questão o papel dos distribuidores, revendedores e demais intermediários entre obra e público. Até mesmo o limite entre autor e consumidor está se dissolvendo diante da emergência do “proconsumidor”, nascido da interatividade das criações colaborativas. Recentemente, a banda inglesa Radiohead chamou a atenção ao liberar o novo álbum para download, mediante contribuição voluntária a ser definida pelo próprio ouvinte. A surpresa é que, mesmo com a opção de não pagar pela música, o público o fez espontaneamente. Em média, o Radiohead faturou 4 reais por álbum baixado. Bem mais do que ganharia em um contrato tradicional com gravadoras. No mês passado, um site canadense (www.dearrockers.org) lançou campanha para que o público faça o mesmo com seus artistas favoritos. Será a ética da nova economia um contrato direto entre autor e consumidor? Outros indícios dizem que não. Os espanhóis adoram baixar música pela internet sem pagar nada. Somente em 2007, foram mais de um bilhão e 200 milhões de downloads ilegais no país, um recorde mundial. Como resposta a essa prática o governo da Espanha instituiu o canon digital, uma taxa sobre computadores, TVs e demais dispositivos de mídia, como forma de proteger os autores e a indústria do entretenimento. Enfrentando resistência entre a população, a medida vem sendo adotada por outros países. “Essa é uma possibilidade que pode ajudar a trazer maior equilíbrio entre o direito de acesso à cultura, ao conhecimento, à informação e a justa remuneração dos autores. No entanto, na maioria dos países, essas taxas são acompanhadas de mudanças da lei que aumentam os direitos da sociedade. O que não pode acontecer é a implementação dessas taxas, sem que ao mesmo tempo haja mudanças na lei assegurando que a sociedade tenha seus direitos de acesso ampliados. Este seria o pior dos mundos”, avalia Ronaldo Lemos. Em fevereiro, a Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) divulgou em seu site, pela primeira vez, estatísticas oficiais do mercado brasileiro de música digital. Os números foram apresentados num documento intitulado Digital Music Report, da Federação Internacional dos Produtores da Indústria Fonográfica (IFPI), que compila informações dos maiores produtores musicais em cada país. De acordo com o relatório, o comércio de arquivos transferidos por download cresceu 185% em um ano. De 2%, passou a responder por 8% do faturamento total do mercado brasileiro de música. O carro-chefe da subida é a venda através de telefonia celular, que cresceu 157%, representando 76% do total do mercado digital. Atrás, estão as receitas provenientes de vendas e licenciamentos pela rede, com 24%. No mundo, o crescimento de vendas pela internet foi de 40%, movimentando 2,9 bilhões de dólares, 800 milhões de dólares a mais do que em 2006, quando a música digital representava 11% da receita total da indústria fonográfica, número que subiu para 15%. O quadro de downloads legais é encabeçado pelos EUA, que precedem o Japão e o Reino Unido. MAR 2008 • Continente x

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O relatório da IFPI ainda cita a importância dos provedores de internet na proteção da música e de outros conteúdos pela rede, destacando o plano do Governo da França, de cooperação entre titulares de direitos autorais e provedores de acesso à rede. Inglaterra, Suécia e Bélgica também estão avançando em iniciativas similares. No Brasil, o governo criou o Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), em 2004. Ano passado, o Senado realizou audiência pública com a Subcomissão Permanente de Cinema, Teatro e Música. Entre as medidas propostas, conscientização da sociedade, atualização de leis e, principalmente, redução da carga tributária. “Os bens imateriais da cultura são o principal produto de exportação dos Estados Unidos. Sua participação no PIB mundial gira em torno dos 5%. As campanhas contra a pirataria existem para proteger essa indústria”, diz José Vaz, especialista em políticas públicas da coordenação de direito autoral do MinC. Para Ygor Valério, que responde pelo combate à pirataria virtual na Associação Anti-Pirataria Cinema e Fotos: Divulgação

As estatísticas impressionam, ainda mais se lembrarmos que este novo canal nasceu agora há pouco. O ano de 2003 é considerado o marco zero da música digital no mundo – no Brasil, é 2005. Com a convergência dos mercados da internet e dos celulares, as vias do mercado digital podem não ser a solução para a crise da indústria fonográfica, mas já constituem um alívio. Conteúdo de CDs, ringtones, truetones: as mídias digitais já estão gerando frutos sólidos. Tome como exemplo o celular W300, da Sony Ericsson, com mais de 60 mil unidades vendidas. O aparelho traz, na íntegra, o conteúdo do CD Carrossel, do Skank. A vendagem rendeu um título inédito no país: a banda mineira ganhou o “celular de ouro”. Mas isso pode ser só o começo, visto que a tecnologia OTA, que permite o download direto do celular, ainda não se popularizou no país. O presidente da ABPD, Paulo Rosa, comenta: “É arriscado fazer previsões sobre o mercado digital. Mas, considerando o crescimento do ramo, principalmente nos últimos três anos, é possível vislumbrar uma compensação na queda de vendas físicas”.

A banda Radiohead liberou seu novo álbum para download, mediante contribuição voluntária

Celular da Ericsson traz, na íntegra, o conteúdo do CD Carrossel, do Skank

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Música (APCM), o Brasil está longe de uma estrutura privilegiada, mas já tem um começo: o polêmico “Projeto Azeredo”, que obriga a identificação de usuários na internet. A proposta do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) também estende de seis meses para três anos o tempo em que os IPs devem permanecer registrados. Já Paulo Rosa cita a iniciativa do deputado Otávio Leite (PMDBRJ) que propõe emenda à Constituição que isentaria a música de qualquer tributo, como já acontece com os livros, jornais e revistas. “Isso dará condições ao produtor de baixar mais os preços, no varejo físico e digital”, salienta Rosa. A APCM também divulgou um balanço, que mostra uma escalada nas apreensões. Mais de 36 milhões de CDs e DVDs, entre virgens e gravados, foram apreendidos, em cerca de 3 mil operações. Em comparação a 2006, o aumento foi de 21%, com destaque para a apreensão de DVDs de shows, que subiram 14% (de 2 milhões e 700 mil para 3 milhões e 160 mil.) Na internet, mais de 55 mil links de filmes e músicas e 15 mil arquivos do programa de compartilhamento Peer to Peer (P2P) foram retirados. Apesar dos downloads ilegais, foram apreendidos 6 milhões de CDs falsificados, 2% a mais do que em 2006. De olho no mercado virtual, o Ecad estabeleceu uma política de arrecadação específica para publicação e execução na internet, baseada em parcerias com portais e provedores de música. “Temos uma unidade para novas tecnologias, e o trabalho dessas pessoas é mapear os sites que oferecem música, entrar em contato e esclarecer que há a necessidade de pagamento do direito autoral”, informa Márcio Fernandes, gerente-executivo de arrecadação da instituição. Informações como essas levantam suspeitas de que, pirataria à parte, a “crise da indústria fonográfica” pode não passar de uma crise de formato. Enquanto transitam do disco de ouro ao celular de ouro, gigantes como a Sony faturam alto também com a pirataria, suprindo o mercado negro com mídia virgem e gravadores de DVD. Prova de que sabem muito bem como sobreviver aos novos tempos.

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Cultura livre O que eles pensam sobre direitos autorais Gilberto Gil, ministro da Cultura “Estamos convictos de que não se deve mais usar a tecnologia para cercear liberdades. Sabemos que cada realidade e cada país são diferentes, e que a realidade brasileira é de imensa criatividade em face do desproporcional acesso cultural por parte da população e pouca retribuição econômica aos criadores” Gianne Carvalho/Divulgação

Ivana Bentes, pesquisadora da UFRJ “Quanto mais a cultura circular, mais se produz conhecimento. A mídia que propaga a repressão à pirataria tem feito um desserviço ao avanço da questão. A repressão criminaliza o consumidor, demoniza a prática de compartilhamento e embairreira as novas possibilidades mercadológicas. Amesquinha-se a questão para manter uma estrutura antiga e fadada à extinção. A fonte de renda mudou, não é preciso mais arrecadar do consumidor”

Kleber Mendonça Filho, cineasta e crítico de cinema "O fetiche pela sala de cinema já diminuiu. Antigamente você tinha ou não tinha visto o filme, agora tem a coisa do 'eu baixei'. Tem filme que é exibido em Cannes, depois no festival do Rio de Janeiro. Quando a gente vai exibir aqui, chega alguém e diz 'já vi'. Isso me causa uma profunda irritação. As salas estão passando por uma erosão" Livio Campos/ Divulgação

Alceu Valença, cantor e compositor "Não vejo como ganhar um tostão sequer com direito autoral. No Recife, meu DVD Marco zero – ao vivo foi totalmente pirateado. Chegou a todas as camadas da população e ainda vendeu, oficialmente, 30 mil cópias. Para mim, que vivo de shows, a pirataria é boa, desde que exista o reconhecimento do autor"

Pupillo, baterista da Nação Zumbi e produtor musical “À medida que tecnologias vão aparecendo, meios de proteger os autores devem ser criados também. A arte não é apenas um meio de expressão, é um meio de sobrevivência” Siba, poeta e pesquisador “Dentro da tradição da cultura popular, existe uma legislação oral que é clara pra todo mundo, de que a autoria está ligada ao verso. Se eu fizer uma melodia, uma marcha, um maracatu, e cantar num carnaval em Nazaré da Mata, e no ano seguinte um mestre tocar essa mesma melodia, ninguém acha estranho, porque nesse caso se perde a relação de autoria. Mas se eu subir num palco e cantar um verso conhecido como se fosse meu, as pessoas vão rejeitar. Nesse caso, o verso é o ponto principal da criação, e tem que ser salvaguardado” MAR 2008 • Continente x 21

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O brega e outras lições da periferia O que o mercado tradicional pode aprender com os novos modelos de manifestação cultural Arilson Favareto O mercado da música brega paraense – assim como o funk no Rio de Janeiro ou o manguebeat no Recife – é uma importante manifestação cultural e fonte de trabalho para populações jovens nas periferias dessas metrópoles. Participamos de uma pesquisa que era parte de um programa internacional interessado em entender melhor como funcionam esses mercados baseados em bens culturais locais. Experiências similares na Argentina, México e Colômbia também foram estudadas.

Nossa principal questão era saber se o maior acesso à tecnologia (que propicia a produção “caseira” de CDs, por exemplo) associada a uma estrutura de direitos de propriedade abertos (já que não se paga direitos autorais da maneira tradicional), é algo que poderia ser a base para um novo modelo, capaz de gerar maior democratização da cultura, e também inclusão social, por ser mais acessível a consumidores e artistas. O mercado tradicional é altamente seletivo e concentrado. As grandes gravadoras diminuem o número de lançamentos a cada ano. Os CDs são caros. E os artistas chamados "alternativos" têm pouco espaço. Para muitos, os direitos de proprie-

dade servem mais às gravadoras do que aos músicos e compositores. No mercado da música brega, cada artista grava seus CDs, distribui matrizes aos vendedores ambulantes e, com base no reconhecimento que recebem do público e das rádios locais, são chamados para fazer shows. Tudo isso gera todo um circuito comercial - que envolve a confecção e venda dos CDs, as chamadas “festas de aparelhagens” ou shows – que movimenta uma soma importante de dinheiro e emprega muitas pessoas. Mas também há coisas obscuras. Por exemplo, tudo isso acontece na informalidade, e não sabemos muito sobre o financiamento de algumas dessas atividades. Além disso, os compositores independentes, que não são também cantores, não encontram espaço para ganhar dinheiro com um mercado organizado nessas novas bases, pois a expectativa de remuneração não acontece com a venda de CDs, e sim com os convites para os shows. Por isso, o grupo que patrocinou esta pesquisa – o Projeto Open Business Model Latinamerica

Para entender melhor

Termos básicos para você entrar na discussão com mais "propriedade" Propriedade Intelectual: Ramo do direito que protege as criações intelectuais, facultando aos seus titulares direitos econômicos os quais ditam a forma de comercialização, circulação, utilização e produção dos bens intelectuais ou dos produtos e serviços que incorporam tais criações intelectuais, ou seja, é um sistema criado para garantir a propriedade ou exclusividade resultante da atividade intelectual nos campos industrial, científico, literário e artístico e possui diversas formas de proteção.

Cognitariado: Classe de trabalhadores que cria e dissemina a produção imaterial: camelôs, artistas, estudantes, programadores, profissionais da informação, designers. Copyright: Sistema angloamericano baseado no Common Law, que protege o direito à cópia ou reprodução de uma obra. Copyleft: Surgido nos anos 1970 no contexto do software livre, o copyleft usa a legislação de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar

barreiras à utilização, difusão e modificação de uma obra criativa. Creative Commons (tradução literal: criação comum) ou CC: Conjunto de licenças padronizadas e construídas com a lei atual de direitos autorais, que possibilita compartilhar criações com outros e utilizar música, filmes, imagens, e textos online que estejam marcados com essa licença. O CC também permite ao autor decidir o grau de controle que deseja exercer

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Imagens: Reprodução

No documentário Good copy, bad copy (2007), o tecnobrega do Pará é exemplo de mercado de direitos autorais flexíveis

– está agora estudando maneiras de formalizar essa atividade, sem modificar a essência deste mercado de música brega. Há muita dúvida quanto à viabilidade de um modelo como esse num âmbito mais geral. Trata-se de um fenômeno relativamente novo, ao menos nessas proporções, e que estamos começando a entender agora. Além dos exemplos do funk e do manguebeat, poderiam ser citados outros, como o forró ou o reggae maranhense. Mas são todos baseados em estilos locais. Para a chamada Escola de Frankfurt, o futuro da cultura seria sombrio, pois haveria um esvaziamento do conteúdo estético e cultural das obras, em direção a uma padronização ditada pelo mercado. O mercado da música brega e os outros exemplos que citei acima mostram que essa expectativa não se cumpriu. Estamos

sobre sua obra, que varia entre “todos os direitos reservados” (©) e “domínio público” (PD).

dos produtos resultantes da reprodução, da execução ou da representação de suas criações.

Direito Autoral: Conjunto de direitos morais e patrimoniais (direito de autor e direito conexos) sobre as criações do espírito, expressas por quaisquer meios ou fixadas em quaisquer suportes, tangíveis ou intangíveis, que se concede aos criadores de obras intelectuais. A proteção aos direitos autorais não requer nenhum tipo de registro formal. Tratam-se de direitos exclusivos e monopolísticos.

Direitos Conexos: Têm como finalidade a proteção dos interesses jurídicos de certas pessoas ou organizações que contribuem para tornar as obras acessíveis ao público ou que acrescentem à obra seu talento criativo, conhecimento técnico ou competência em organização.

Direito de Autor: Direito que o criador de obra intelectual tem de gozar

Domínio Público: Prazo máximo de proteção das criações, findo o qual a obra cai em domínio público. No caso brasileiro, via de regra as obras são protegidas até 70 anos após a morte do autor. No en-

num tempo em que a diversidade começa a ser reconhecida como um valor. Para a economia neoclássica, que é a corrente principal da economia, um mercado só pode funcionar se os produtores forem protegidos através do reconhecimento dos direitos de propriedade. Mais uma vez o mercado de música brega e os outros exemplos mostram que isso é uma ficção. Há situações em que estruturas flexíveis de direitos de propriedade podem trazer ganhos tanto para os artistas quanto para os consumidores. Em resumo, estas formas de manifestação cultural, e as atividades econômicas a elas associadas, mostram que o mundo real está constantemente pondo as teorias à prova. E, às vezes, nos obrigando a formular novas teorias para dar conta das inovações produzidas no movimento do real.

tanto há algumas particularidades específicas, como no caso de obra audiovisual, caso em que a proteção é de 70 anos após a sua divulgação. IP – Internet Protocol: Endereço digital do computador, que possibilita a identificação do usuário. P2P ou peer-to-peer (ponto-a-ponto): Sistema de troca de arquivos criado pelo jovem americano Shawn Fanning , do site Napster, pelo qual é possível transmitir informação digital de forma rápida e descentralizada. OTA (Over The Air): tecnologia que permite o download a partir de um toque no celular. Já existe no Brasil, mas ainda não se popularizou. MAR 2008 • Continente x

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 RANKING

Os 'indispensáveis' na lista do IDG Now

Paulo Coelho foi um dos primeiros a aderir ao Meettheauthor e lidera número de acessos  OPORTUNIDADE

 SEBO ONLINE

A originalidade e criatividade do marketing literário parece não ter limites na internet. Conhecidos como Youtubes literários, sites como o meettheauthor têm despertado a curiosidade de quem está a procura de um novo livro. Nos sites, cada escritor tem sua própria página, onde disponibilizam vídeos e outras diversas informações sobre suas obras e até mesmo sobre suas histórias de vida. O mago Paulo Coelho foi um dos que já aderiu à onda e encabeça a lista dos dez vídeos mais acessados. Até agora, este modelo de site está disponível na versão inglesa, alemã e espanhola. (Ricardo Melo)

Uma boa dica para quem gosta de livros é a Estante Virtual, site que congrega 738 sebos de 147 cidades, com um total de 1.558.095 livros de até no máximo 30 reais. Foi através dele que encontrei num sebo de São Paulo, em bom estado e com preço ótimo, incluído o frete, o Diário do ano da peste, de Daniel Defoe (autor do célebre Robison Crusoé). É um precursor – escrito há mais de 300 anos – do “jornalismo literário”, retratando, com exatidão de dados e imaginação narrativa, a epidemia de peste bubônica que matou 70.000 pessoas em Londres, em 1665. (Marco Polo)

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http://www.meettheauthor.com

www.estantevirtual.com.br

Marketing literário invade a internet

Uma dica e uma obra precursora

Quais são os endereços brasileiros na internet que você não passa um dia sem visitar? Foi essa pergunta que, inspirado por uma lista de serviços internacionais elaborada pela revista Time, o IDG Now! resolveu responder, indo atrás dos sites e serviços brasileiros ou com versões nacionais que estão na maioria das preferências. O site esclarece que "evidentemente, a lista não é um ranking onde um é mais importante que outro e muito menos coloca seus integrantes como destino único para uma mídia conhecida por não ter fronteiras". Veja se você concorda: Apontador - Serviço de localização por meio de mapas digitais com ferramenta para traçar rotas. BuscaPé - Serviços de comparação de preço com inúmeras referências de um produto em uma mesma tela. Flickr BR - Comunidade digital para compartilhamento de fotos, substituto do popular Fotolog Globo.com - Portal das Organizações Globo que combina as rádios, estações de TV e o G1, site de notícias do grupo. Google Brasil - Virou referência de buscador na rede. Indispensável e impossível de ser ignorado. Mercado Livre - Site de compra e vendas. Tem de tudo. Uma boa ferramenta para fazer negócios. Orkut - Rede de relacionamento. Segundo o Ibope, o brasileiro passa uma média de 300 minutos mensais navegando nele. Receita Federal - Mais lembrado pelos contribuintes na hora da declaração. Para fugir da burocracia. Submarino e Americanas.com - Fusão que deu origem à B2W - Companhia Global de Varejo. Um gigante.

BAIXE E OUÇA Senóide (Cooperativa de Música) é o segundo álbum do projeto Axial, da banda (foto), formada por Felipe Julián, Sandra Ximenez e Leonardo Correa. Eles dividem arranjos e algumas composições onde combinam ''o mais primitivo com o mais contemporâneo''. No CD, à disposição, grátis, para download sob licença Creative Commons, eles também interpretam canções do baiano Elomar e do paulistano Luiz Tatit. www.axialvirtual.com

UOL - O portal Universo Online é um dos maiores em conteúdo com ênfase no jornalismo e no entretenimento. Wikipedia Brasil - Enciclopédia virtual em língua portuguesa. Ainda está longe da sua versão em inglês. YouTube - Comunidade de vídeos que teve crescimento espantoso no Brasil em 2007 D.C (depois da Cicarelli)

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POST DO MÊS - [ Máquina de escrever ]

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PERFIL Escritor, jornalista e editor de livros, Luciano Trigo é autor de O viajante imóvel, sobre Machado de Assis, Engenho e memória, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles os infantis As cores do amor e Vira bicho! Foi editor dos suplementos Idéias, no Jornal do Brasil, e Prosa & Verso, Walker Evans, Sem Título, 1936

Sherrie Levine, After Walker Evans, 1979

Michel Mandiberg, After Sherrie Levine, 2001

 IMAGEM

sempre, esta na Biblioteca Nacional. Traduziu alguns livros, entre eles o recém-lançado Etimologia das paixões, de Ivonne Bordelois. Foi editor da Nova Fronteira e atualmente é editor da Odisséia Editorial. É também crítico de cinema e dirigiu o curta Valentina vai à praia. Mora no Rio, em Ipanema. O blog de Luciano Trigo está na rede desde outubro de Luciano Trigo, After Michel Mandiberg, 2008

Reprodução

Histórias de uma foto emblemática Quatro décadas depois, os horrores provocados pela Guerra do Vietnã (1959-1975) ainda são lembrados. A foto ao lado foi tirada em 1º de fevereiro de 1968 por Eddie Adams, fotógrafo de uma grande agência de notícias, após o massacre de 34 pessoas por vietcongues, durante a ‘Ofensiva Tet’. As vítimas eram agentes da polícia nacional e familiares. O general Nguyen Ngoc Loan conseguiu deter um dos culpados pela matança. O prisioneiro foi levado pelo general diante de jornalistas que assistiram à execução sumária do vietcongue. Segundo o blog Fotojornalismo, o que pouca gente sabe é que o autor da foto amargou um sentimento de culpa pelo mal causa-

e revistas como a Continente. Editou também as revistas Leia livros e Poesia

Citações pós-modernas Acredite, o que você vê acima são três obras assinadas por três artistas diferentes – e reconhecidas como tal pelo sistema da arte. E, se bobear, a cotação da obra de Sherrie Levine (a do meio) é maior que a da foto original de Walker Evans. Já que é assim, vou dar minha própria contribuição ao pós-modernismo (mesmo sabendo que ninguém vai atribuir valor à minha obra):

no Globo, e colaborador de diversos jornais

do pela imagem do general, cujo obituário foi publicado pelo New York Times, em 16 de julho de 1998, assinado por um dos seus mais brilhantes repórteres, Robert McG. Thomas Jr. O general morreu em sua casa em Burque, Virginia, EUA. O texto de McG. faz parte da seleção de obituários do NYT, em O livro das vidas, lançado recentemente pela Companhia das Letras. (RM) 

www.fotojornalismos.blogspot.com/2008/01/reveladahistria-por-trs-da-fotografia.html

2007. Confira no endereço abaixo: http://lucianotrigo.blogspot.com

FAVORITOS Textos e curtas

O Releituras cataloga e publica textos de escritores já consagrados, além de abrir espaço para novos talentos. Na seção Cinemateca , uma galeria de curtas-metragens, alguns inspirados em obras e autores nacionais. www.releituras.com.br

Quadrinhos

Para quem quer criar tiras de HQ, mas não tem jeito para desenho, o Toonlet é uma ótima ferramenta. Combinando opções de partes do corpo humano com roupas e expressões faciais, pode-se criar uma galeria divertida de personagens e boas histórias. www.toonlet.com

Café Colombo

Referência de jornalismo cultural na rádio pernambucana, o site do programa disponibiliza o áudio de entrevistas, além de contar com um blog de notícias sobre acontecimentos culturais. www.cafecolombo.com.br MAR 2008 • Continente

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LITERATURA

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Prosa experimental

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Em dois livros lançados quase simultaneamente – Babel babilônia e Ódio sustenido –, Nélson de Oliveira experimenta na linguagem e na estruturação da narrativa Luís Carlos Monteiro

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xiste uma tendência atual na literatura brasileira de desconstrução dos gêneros, que atinge em cheio a prosa de ficção. Autores trabalham um conjunto de textos como se formassem um romance ou uma novela, mas que podem figurar isoladamente e passar a valer e funcionar sem dependência do conjunto. O respaldo maior para este tipo de desempenho estético encontra-se mais ao sul do país, notadamente em São Paulo. É um fato que os paulistas e uma série de outros escritores que se radicou naquele estado se inclinam a ousar muito mais nas formas textuais que seus colegas distribuídos em outros pólos do país como Minas Gerais, Rio de Janeiro e o Paraná. Entretanto, lançado recentemente no Recife, um livro do pernambucano Gilvan Lemos, Na Rua Padre Silva, engloba tais características. Sem populismos intencionais ou velados, e mantendo um feitio léxicosintático tradicional e linear na sua escrita, o romancista publicou várias histórias sobre lugares e pessoas da periferia. Diferindo esteticamente de Lemos, mas coincidente na proposta da reunião de textos em sua maioria sem aparente conexão entre si e classificados como novela, o paulista Nélson de Oliveira publica agora Babel babilônia com a auto-exigência de se mostrar “novo” a qualquer custo. Escritor que já obteve prêmios significativos, onde se destacam o Casa de las Américas e duplamente o APCA, comporta um currículo de cerca de duas dezenas de livros, entre eles antologias sobre a geração 90 da qual faz parte, ensaios, romances, novelas e, em preferência absoluta, contos.

A ânsia excessiva pelo que pode se supor como o novo em literatura nem sempre produz os efeitos esperados, ou seja, a inovação da linguagem. Não se trata apenas de ter algo a comunicar como oferta ou dádiva ao mundo, mas ainda e principalmente da compulsão de estar à frente dos próprios pares geracionais, de sentir o movimento da vida mais do que eles, ou de acreditar ser portador de alguma verdade, mistério ou segredo mágico inacessíveis aos demais circundantes e circunstantes. A performance literária se torna, então, uma questão de concorrência entre companheiros nem sempre cordiais de uma mesma geração ou de gerações diferentes, que convivem pacífica ou problematicamente. A literatura a ser veiculada, neste caso que privilegia a prosa de ficção, deveria aflorar-se de forma inaudita e original. Desta perspectiva, a dispersão é o elemento destacado numa prosa do calibre de Babel babilônia, pela desigualdade e irregularidade que permeiam as narrativas, tendo como principal resultante a confusão ficcional. O seu caráter inovador verifica-se mais no âmbito independente de cada texto do que no conjunto que perfaz o livro. Babel babilônia estrutura-se em três partes, “Anunciação”, “Inferno” e “Redenção” que somam 22 textos com tamanhos e assuntos variados. A personagem Beatriz é contemplada com narrativas mais longas, revelando a sua importância frente ao bloco, com o seu “desejo verde”, “a vontade e a sede da mata”, e a sua luta pelo equilíbrio ecológico. Locais que servem de apoio à história, como um terreno balMAR 2008 • Continente x

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O escritor paulistano introduz desafios e entraves lingüísticos ao leitor comum

dio que vai dar num boqueirão, fascinam Beatriz por terem protagonizado o desaparecimento do seu pai, levando-a a uma procura incessante e desesperada em meio à sua índole disciplinada. Além do pai, um companheiro de infância desaparece no abismo, um menino aleijado que é severamente hostilizado por ela. Este sentimento provoca nela o ato de jogar o pião do menino no boqueirão, o que a leva a um remorso indescritível. Quando, engolido pelo grande buraco, enquanto ela agarrada a um arbusto e na ponta dos pés enfrenta a escuridão para salvá-lo, ele, depois do ódio e da maldade de Bia, “agachado no fundo, [...] faz força para segurar o riso”. Ela é aquela que, afastando-se da “manada”, “observa o fluxo da vida, mas de fora”. Beatriz referenda o narrador externo ao texto, consciente do impacto da informação e da experiência vivida por outrem, que acaba sendo a postura ficcional do próprio Nélson de Oliveira. A cidade de São Paulo é louvada e apresentada logo na narrativa inicial, não sem ufanismo ou exagero,

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LITERATURA como quando ele afirma que “os paulistanos construíram a torre de Babel do nosso tempo, ergueram-na camada após camada na direção do sol”, trecho que se prolonga em outros parágrafos de elogio ao progresso paulista e a sua compleição urbana robusta. A metrópole tem também suas desvantagens, apesar da carga enganosa de novidades tecnológicas, e no caso de escritores e artistas, do peso descontínuo de malabarismos formais e estéticos. O contista não esquece o lado sinistro da urbe, o seu perfil obscuro com mendigos atravessando os dias precariamente nas ruas e operários acidentados nos hospitais, com a sua face deflagrada e engolida em ondas de fogo e vento, água e concreto, árvores e vidro, cuja apoteose acontece no texto final, “Babel babilônia”, onde todo um trecho do início é repetido e retrabalhado à maneira de um poema. Assim, não faltam as narrativas que envolvem a violência como o seqüestro de crianças, o assalto ao escritório da construtora cuja execução e continuidade se processa através de e-mails, o encontro de gangues onde um dos chefes corta a mão para cumprir sua palavra, um atentado terrorista ao edifício construído no interior paulista e que deflagra toda a história, cuja explosão e demolição acontecem paradoxalmente em nome da preservação ecológica. O bordão presente em “Para onde vai a luz quando o medo acende o escuro?” sugere a circunstância inesquivável da vingança constante da natureza em suas manifestações de independência do homem, ora catastróficas e paralisantes, ora serenas e benéficas, atingindo diversos personagens de uma só vez, no momento em que “o clarão verde e rugoso da mata absoluta e do rio áspero cegou a todos, revelando-lhes a verdade vegetal, mineral, subterrânea, a verdade da supremacia orgânica, a verdade da fotossíntese e do vento líquido”. Manifesto ecológico, defesa intransigente do verde, nada poderia ser mais politicamente correto em nossos dias. E isto acobertado por uma escritura cifrada, impiedosa, inteligente e antipopular, que em certos instantes se torna inacessível ao leitor mediano aficionado de, por exemplo, Machado de Assis, José de Alencar, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Manuel Bandeira ou Carlos Drummond de Andrade. Em vista da engenhosidade expressiva de seu livro, Nélson de Oliveira interpõe desafios e obstáculos de realização lingüística ao leitor comum, levando-o a pensar e se deter com mais cuidado na leitura como um todo. Em certas narrativas, Oliveira promove a fragmentação do discurso, sem contudo tomar isto como regra. Perfaz sua sintaxe com arrojo e segurança, tanto quando ininterrupta e descontínua, como quando concisa e trabalhada, sem intentar vôos de linguagem maiores que o texto poderia suportar. Por outro lado, aquele lei-

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Reprodução

São Paulo, segundo o autor a torre de Babel do nosso tempo, é louvada e apresentada em vários trechos de Babel babilônia

tor pode ficar a ver navios em muitas passagens, pela utilização de uma codificação de difícil decifração, de malabarismos mentais insólitos para inter-relacionar personagens e situações comuns e de certo modo aproximadas nas várias narrativas, e ainda pelo emaranhado de acontecimentos que se verificam na subversão da tridimensionalidade do tempo. Na mesma compulsão editorial, Nélson de Oliveira traz a público Ódio sustenido, este um livro assumidamente de contos, que tem como ligação visível a Babel babilônia apenas um conto de mesmo título. Em “Babel” de Ódio sustenido, a grande cidade é incorporada pelas vias terrestre, subterrânea ou aérea e torna-se mapeada na sua versão abissal por esgotos e túneis dos metrôs, no seu feitio mendicante por um antinutricionismo público com sua fome avassaladora nas calçadas e sarjetas e no seu esboço de verticalização pelo desejo de tocar as nuvens e esferas celestes. A veia inventiva de Nélson de Oliveira é exercitada com bastante esmero neste Ódio sustenido, que implementa uma série de flashes urbanos do cotidiano, desde o ingênuo “Páscoa Vermelha”, uma paródia dos numerosos feriados nacionais, até o previsível “O Babel babilônia Nélson de Oliveira Fantasma da Máquina”, Callis Editora onde o que vale não é a 168 páginas 35,00 reais distribuição corriqueira dos vocábulos nas palavras, e sim o ajuntamento das mesmas

letras de modos diferentes e inusitados. Ódio sustenido transforma-se, assim, em desempenho poético musical e enviesado, perquiridor e indignado, em 13 narrativas absolutamente díspares entre si. O autor se permite o jogo lúdico com a linguagem em quase todos os textos, encetando a recriação lexical através de junções, acréscimos ou exclusões de palavras, fonemas e expressões, como na revisitação a Guimarães Rosa e Mário de Andrade em “Meu tio o mameluco-malaco”. Em “Na fila do correio”, uma fila de pessoas de perfis caracterizadamente opostos e que não logram se entender pela concordância ou a civilidade, serve de pretexto para digressões inimagináveis sobre ciência e filosofia, com um mergulho significante na química e na física, na poesia e na religião. No conto final Ódio sustenido, o personagem inominado indigita a mentira como razão de ser do seu ódio, do seu precário estar no mundo com seu eu extremamente frágil e dissociado: “Minto porque me odeio, minto a esmo, minto a mim mesmo. Porque me odeio”. Aí está, de algum modo, a grande contradição de quem escreve, por não poder retratar a realidade como de fato aparece. Isto, para não despencar na alta dosagem de naturalismo que o cotidiano explicita. Resta o simulacro do Ódio sustenido Nélson de Oliveira fingimento e da mentira Editora Língua Geral pessoana, a outra pers88 páginas 26,00 reais. pectiva da visada poética, como compensação para o esforço ficcional do indivíduo. MAR 2008 • Continente x

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LITERATURA

Tchekhov e o nosso tempo Os problemas levantados pelo dramaturgo russo, sobretudo no que concerne à questão climática, estão na ordem do dia. É por isso que se diz que os grandes escritores e artistas são também grandes visionários Carlos Newton Júnior

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m uma de suas peças mais conhecidas, O Tio Vânia, Tchekhov põe em cena um personagem que é médico, mas cuja verdadeira vocação, revelada por volta dos seus 35 anos de idade – no meio do caminho da vida, portanto –, reside não em cuidar de pessoas doentes, mas na atividade incansável de plantar árvores, no intuito de salvar as florestas do desmatamento, embelezar o mundo e assim, por extensão, melhorar a vida da humanidade inteira. Astrov – este é o nome do personagem – pode ser considerado uma espécie de alter ego do autor, que, aliás, também era médico, mas cuja verdadeira vocação parece ter sido a de embelezar o mundo através da literatura e da arte. A certa altura da peça, dirigindose a dois outros personagens, a Voinitzki (o Vânia) e à bela Helena, afirma Astrov: “admito que se derrubem árvores quando é necessário, mas porque se hão de destruir florestas inteiras? As florestas russas gemem debaixo dos golpes dos machados, há milhões de árvores perdidas, os animais e os pássaros fogem dos seus refúgios, os rios baixam e secam [...]. É preciso ser-se um bárbaro insensato

para queimar toda essa beleza numa lareira, para arrasar aquilo que nós não somos capazes de criar. [...] Há cada vez menos florestas, os cursos de água secam, a caça desaparece, o clima piora, e todos os dias a terra empobrece e cada vez fica mais feia. [...] quando passo pelas florestas camponesas que eu salvei do machado ou quando ouço crescer a madeira jovem que eu próprio plantei, sinto que o clima está um pouco nas minhas mãos, e que se daqui a mil anos o homem for mais feliz, pois, bem, eu servi para qualquer coisa.” (Tradução de Jorge Silva Melo, Lisboa, Editorial Estampa,1978, pp. 48-49) O tema da degradação do ambiente rural pelo avanço da civilização e do progresso é recorrente no teatro de Tchekhov. Todo o sopro de melancolia que nos invade quando lemos uma peça como O jardim das cerejeiras, por exemplo, advém da percepção de que a derrubada iminente do cerejal para a construção

de casas para veranistas ricos é a metáfora da destruição de um mundo previamente condenado à ruína. Um mundo que, se por um lado se fundamentava na exploração da classe campesina, por outro lado encontrava-se em maior comunhão com a natureza e indiscutivelmente mais ligado à produção de riquezas do que o mundo apregoado pelo progresso, baseado no consumo, na obtenção do lucro fácil proporcionado pelo comércio e na mera especulação do capital. De certo modo, em A gaivota, peça que o projetou como dramaturgo – e o próprio drama como um gênero autônomo, diferente da tragédia e da comédia –, o pássaro morto e empalhado sem qualquer motivo aparente poderia simbolizar, também, a derrocada daquele mundo rural. Quando alerta para as conse-

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MULTIMÍDIA

Os arquivos armoriais

Fotos: Reprodução

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qüências nefastas da degradação ambiental, o que faz através de desenhos e mapas que ele mesmo produziu e ilustram o desmatamento do seu distrito ao longo de décadas, Astrov projeta as suas preocupações para o futuro, para a qualidade de vida das gerações que virão depois da sua, de homens e mulheres que nem sequer se lembrarão dele, mas cuja felicidade dependerá da consciência dos homens do seu tempo. A peça Tio Vânia foi publicada pela primeira vez em 1897, há mais de um século. A rigor, ela é mais antiga, uma vez que é a reescritura de outra peça de Tchekhov, O selvagem, escrita em 1889. E, no entanto, os problemas levantados por Tchekhov através de Astrov, sobretudo no que concerne à questão climática, estão na ordem do dia. São

cada vez mais nossos, cada vez mais graves, cada vez mais insolúveis. É por isso que se diz que os grandes escritores e artistas são também grandes visionários, homens que se encontram muito à frente do seu tempo. Os seus gritos de advertência e de protesto, uma vez perenizados através da arte, são colocados à nossa disposição, para que deles possamos nos lembrar sempre que for necessário. Outro dia, viajando do Recife até a capital da Paraíba, presenciei uma cena que me fez pensar em Astrov. Na altura do município de Goiana, em Pernambuco, soldados do nosso glorioso Exército desmatavam um bom trecho da floresta que ainda resta por lá, para duplicar a rodovia. Enquanto isso, na outra margem da estrada, o canavial, intacto, chegava a invadir o acostamento...

inegável a importância do Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna na década de 1970, para a teoria da cultura brasileira. Consagrada pelo tempo, a estética armorial continua a influenciar vários artistas que vão buscar na fonte a idéia de, através das raízes populares, produzir cultura erudita. Com o objetivo de fazer um painel de todas as manifestações artísticas armoriais, das artes plásticas à literatura, passando pela dança e pela música, está sendo lançado o CDROM Movimento Armorial – regional e universal, que compila informações sobre o movimento, incluindo documentos, depoimentos (entre eles o de Suassuna) e reproduções de obras. Num produto bem cuidado, com consultoria do professor Carlos Newton Júnior, é possível ter uma visão geral daquilo que seria o Movimento Armorial e das principais obras geradas neste universo (discos, livros e espetáculos...). O projeto é uma iniciativa bastante válida, já que reúne com competência, em uma única mídia, vasta informação sobre essa estética, ainda que evite uma análise mais crítica.

(Mariana Oliveira) Informações: 3226.2422 maga@magamultimidia. com.br

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MÚSICA

livros

Narrações da periferia

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acolinha é o pseudônimo do paulista Ademiro Alves de Sousa, autor de 85 letras e um Disparo, na categoria conto. Em 85 letras, o que salta logo à vista é a predominância de situações e vivências onde o eu é o narrador privilegiado, onde tudo é vivenciado e conferido pelo sujeito que é o centro de cada história. De modo Divulgação paradoxal, esta é a escolha do ponto de vista de um autor da periferia, que conta exatamente o que os de baixa extração experimentam na pele, como seja a violência, a fome, a miséria, a vida em moradias insalubres, a falta

total de perspectivas frente ao dia-a-dia. Embora às vezes os diálogos se tornem excessivos, o que não falta nos contos de Sacolinha é o bom humor, a capacidade de rir de si mesmo e dos outros. De outra parte, não há uma neutralidade frente aos acontecimentos, e sim uma dosagem necessária de indignação para o enfrentamento da dura realidade. Não se sabe se foi uma revisão descuidada da editora, ou exigência do autor para preservar a originalidade de seu trabalho com suas gírias e neologismos, mas em muitos instantes constata-se certo exagero, como no caso da utilização de aja (ação) por haja (tempo). Seja como for, ele não deve ser con85 letras e um disparo Sacolinha denado por isto, pois Global Editora sua inclinação literária e 120 páginas 23,00 reais sua riqueza imaginativa podem ainda vir a produzir bons textos. (Luiz

> Orangotangos e mal estar humano

> Retrato desolador do descolonizado

>Comes e bebes com Eça de Queiroz

> Uma história de herança familiar

Composto de histórias curtas, Ainda Orangotangos do gaúcho Paulo Scott, tem como marcas demasiado visíveis a tensão, a angústia e a solidão. Os personagens criados por Scott pouco se afastam de uma subjetividade claustrofóbica, com laivos incontidos da frustração e do calafrio dos ambientes irrespiráveis. Caracterizam-se pelas situações-limite que enfrentam, com a persistência de certo mal estar que faz com que nunca se esqueçam da sua reles condição humana. Outra obsessão dos relatos de Scott é o sexo, a busca desenfreada do prazer a qualquer preço. Suas narrativas fogem ao lugar comum dos enredos lineares. Cada conto funciona como um soco que não se espera, impiedosamente aplicado para acordar um desatento leitor. (LCM)

Simultaneamente ao Retrato do Colonizado, foi lançado entre nós o Retrato do Descolonizado, escrito 50 anos depois pelo tunisiano Albert Memmi, refletindo sobre o que aconteceu nos países do terceiro mundo que se libertaram do jugo do colonialismo no século 20. Agora ele denuncia a realidade dessas nações, especialmente do mundo árabemuçulmano, onde imperam a tirania, a pobreza, a corrupção, a estagnação cultural e os conflitos étnicos. Aborda a migração em massa para as ex-colônias e o impasse da assimilação. Com coragem, acusa a responsabilidade das elites locais nesse processo terrível. A colonização findou há muito tempo, não pode justificar indefinidamente essas mazelas, argumenta. (HF)

Eciano de quatro costados, o escritor Dagoberto de Carvalho Jr. acaba de publicar mais um novo livro em que o principal eixo gira em torno da obra do consagrado escritor português. Depois do erudito e original ensaio sobre a arte sacra nos romances de Eça, brinda-nos agora com delicioso ensaio curto sobre a gastronomia no universo dos seus romances e vários artigos que abordam as relações de outros autores com o universo eciano e eventos ligados ao tema central de seus acurados estudos, como os jantares realizados aqui e algures com cardápio tirado dos romances. O livro compõe-se ainda de outros textos, sobre temas e escritores diversos, como Ariano Suassuna e Ascenso Ferreira., e o Festival de Cultura de Oeiras, terra natal do autor. (HF)

Neste romance composto por narrativas que se entrecruzam, a personagem, paralítica em uma cadeira de rodas, busca um sentido para a sua vida. Ao receber do avô a chave da casa onde este morava, na Turquia, faz uma viagem de volta às origens familiares. Ao mesmo tempo, outras histórias desenham tentativas de resposta à sua deficiência: a morte da mãe e o amor dolorido com um homem que passa do doce erotismo à brutalidade desmedida. E ainda, a história dos seus pais, comunistas que vieram para o Brasil e, perseguidos e presos pelo regime militar de 64, exilaram-se em Portugal, onde a autora nasceu. O livro, estréia de Tatiana Salem Levy, foi lançado primeiro em Portugal, com grande sucesso de crítica.(Luiz Arrais)

Ainda orangotangos Paulo Scott Bertrand Brasil 84 páginas 23,00 reais

Retrato do descolonizado Albert Memmi Civilização Brasileira 200 páginas 30,00 reais

Carlos Monteiro)

A boa mesa de Eça de Queiroz Dagoberto de Carvalho Jr. Editorial Tormes 238 páginas Preço a definir

A chave da casa Tatiana Salem Levy Editora Record, 208 págs., 32,00 reais

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MÚSICA

Histórias de Don Juan no mundo de hoje

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o-autor do roteiro do filme Asas do desejo, de Wim Wenders, o romancista, dramaturgo, poeta e cineasta austríaco Peter Handke (foto) é considerado um dos renovadores da literatura alemã do pós-guerra, com uma obra que evoluiu do experimentalismo para reflexão poética da qual um exemplo excelente é seu mais novo livro publicado no Brasil, Don Juan (narrado por ele mesmo). Nele, o mito do grande conquistador vive na nossa época e se apresenta, meio casualmente, a um cozinheiro que habita um albergue

próximo às ruínas de um monastério francês do século 17. Marcado pela perda de um ente amado (provavelmente filho), Don Juan não se preocupa mais em conquistar ninguém nem parece interessado em sexo. Sua presença tem a capacidade mágica de fazer com que as mulheres se apercebam com uma nitidez avassaladora da realidade de suas vidas, em seus aspectos positivos e negativos. Durante sete dias, Don Juan conta suas aventuras em sete dias passados em sete países diferentes, com sete mulheres. A cada narrativa menos são os detalhes revelados. A cada momento tudo converge para uma paisagem abstrata e deserta, numa história sem final. Handke, que tem 65 anos, detesta badalações. Vive há 18 recluso em Chaville, perto de Paris. Escreve à lápis e não usa e-mail. (Marco Polo)

> Mergulho em Clarice Lispector

>Verdades e mentiras da arte

> Universo jovem em Salvador, Bahia

> A vida do vídeo nos últimos 30 anos

Marcia Basto publica em livro sua dissertação de mestrado em filosofia, aplicando-a à literatura, mais especificamente à escrita de Clarice Lispector. Escritora apaixonada e apaixonante (tanto que há quem diga que ela não tem leitores, tem adeptos), Clarice contamina a linguagem de Marcia, até porque esta se identifica profundamente com ela, inclusive em enxergar o ato de escrever como um ato vital, necessário e indispensável, podendo também ser uma forma de trazer o “outro” para dentro de si mesmo. Marcia faz um mergulho vertiginoso no vertiginoso universo de Clarice Lispector. O livro será lançado no dia 25 deste mês, às 19h, no Museu da Cidade do Recife.

Deste instigante livro da crítica de arte norte-americana Rosalind E. Krauss surge uma questão: teria sido Picasso uma espécie de Midas moderno que reinventava o lixo de sua vida e a das pessoas que o cercavam no ouro artístico de suas colagens cubistas, ao mesmo tempo em que transfigurava a obra de antigos mestres através de pastiches? Para ela, a própria arte moderna pôe em xeque os conceitos de “verdadeiro” e “falso”, que são como aspectos espelhados de uma mesma condição. E isso se evidencia de forma exemplar na “vida-obra” do gênio espanhol. Este material, que por si só já é de alto interesse, através da mente ao mesmo tempo penetrante e iluminada de Krauss, torna-se fascinante.

Livro que inaugura a série Cidades visíveis, com narrativas infantojuvenis ambientadas nas cidades brasileiras, A banda do companheiro mágico, de Antônio Risério, conta as aventuras de um grupo de adolescentes em Salvador. Com estilo ágil, de frases curtas, e com personagens traçados em pinceladas ligeiras, é narrativa de leitura fácil e atraente. Os personagens e a cidade, com suas características peculiares, se inter-relacionam o tempo todo. Como pano de fundo, resquícios da contracultura dos anos 1960-70. Em contraponto, conversas em internetês. Candomblé, cinema, música, sexo, competitividade e amizade compõem o quadro emotivo-intelectual em que os jovens soteropolitanos se movem.

O “cinema digital”, as diversas formas de animação digital na Net, a computação gráfica, o videogame, as animações interativas, todas essas manifestações podem ser consideradas como “vídeo”. É o que afirma o professor de comunicação e semiótica Arlindo Machado neste livro que mapeia a produção de vídeo brasileira em três décadas, além de conter depoimentos e análises sobre os diversos tipos dessa manifestação artística de última tecnologia. As semelhanças e diferenças entre vídeo e cinema, a literatura em vídeo, a videoarte, o vídeo na televisão, são alguns dos aspectos enfocados por gente tão diversa como o artista plástico Paulo Bruscky e o apresentador televisivo Marcelo Tas.

Clarice, Clarear Marcia Meira Basto Edições Bagaço 273 páginas 25,00 reais

Os papéis de Picasso Rosalind E. Krauss Iluminuras 244 páginas 44,00 reais

Don Juan (narrado por ele mesmo) Peter Handke Estação Liberdade 144 páginas 29,00 reais

A banda do companheiro mágico Antônio Risério Publifolha 96 páginas 19,90 reais

Made in Brasil Arlindo Machado (Org.) Iluminuras 448 páginas 44,00 reais

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LITERATURA

Sobre o fazer poético Livro traz coletânea de artigos proferidos em oito anos de existência do Colóquio Cecília Meireles

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m 2001, para comemorar o centenário de nascimento de Cecília Meireles, o poeta e professor universitário Esman Dias idealizou um circuito de palestras em torno da obra da poetisa carioca. O evento foi realizado no auditório do Museu da Cidade do Recife. Sob o título Colóquio Cecília Meireles o evento voltou a acontecer no ano seguinte na Livraria Cultura, na Fundação Joaquim Nabuco, fixando-se, por fim, no Auditório Evaldo Coutinho, no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. No próximo dia 19, às 19h, será lançado o livro Simetria e convívio, coletânea de alguns dos melhores textos proferidos no evento, durante estes anos. Esman explica a escolha do título do livro: “Convívio sugere diferença, alteridade, simbiose – entre seres ou entes distintos. Eis em suma o que caracteriza a diversidade e singularidade dos ensaios reunidos nesta coletânea. Simetria, por outro lado, assinala o que lhes é comum a esses ensaios, aquilo em que convergem todos em busca do objeto a ser alcançado”. Segundo o poeta, “a coletânea oferecerá ao leitor, por exemplo, certa instigante leitura de Grande sertão: veredas, de um ângulo, ao que tudo indica, ainda de todo inexplorado: o da psicanálise, aqui representada pelo escritor e psicanalista Paulo Medeiros. Já o poeta Ângelo Monteiro nos oferece luminoso ensaio sobre a poesia de Cecília Meireles, urdindo uma teia, um liame em torno de Vida e Arte, que o leva a transitar do plano estético, da consideração do estrito fazer artístico, ao plano, mais elevado, da própria condição humana. Outros ensaios, de um total de oito reunidos neste livro, exploram, de um ângulo comparatista, reSimetria e convívio Vários autores lações entre, por exemEditora Universitária UFPE plo, o Eliot da Waste 134 páginas 22,00 reais land e o Vergílio Ferreira de um romance como Alegria breve, do qual o poeta José Rodrigues de Paiva extrai elementos que lhe possibilitem analisar certas marcas intertextuais, além de ressonâncias de, entre

Divulgação

O poeta e professor universitário Esman Dias

outros, um Fernando Pessoa ou um Paul Valéry. Outro exemplo de leitura minuciosa e penetrante é constituído por um ensaio como Poesia entre cegos e sonâmbulos no qual a autora, Ermelinda Ferreira, compara, a partir de referência bíblica que se reflete em quadro de Brueghel, o velho, poemas de Baudelaire, Fernando Pessoa e César Leal, pondo em relevo o que lhes é comum, em que se tangenciam uns aos outros – naquilo que tematizam. Somos afinal herdeiros e partícipes desse vasto tapete persa constituído pela tradição poética ocidental. A coletânea oferece ainda ao leitor o prazer do reencontro, por via desses ensaios, com as vozes de Clarice Lispector, do nosso Machado de Assis, e de um poeta do calibre de Antônio Machado, contemporâneo de Unamumo e de outros nomes de destaque da Geração 98 da Espanha. Por fim, para muitos que não a conheceram, o inesperado prazer, a alegria da descoberta de uma das mais belas, mais desconhecidas e mais expressivas vozes do tempo em que vivemos: a do poeta Orley Mesquita, apresentado com verdade e emoção por Anco Marcio Tenório Vieira”.

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Luzilá Gonçalves Ferreira

Relatos de uma longa viagem

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le era noivo de Catarina, e pensava em se casar. Em fins de 1628 – tinha 17 anos – andava pelas ruas de Strasburgo, sua cidade natal, certamente pensando na vida e na mulher que amava. Onde arranjar a quantia necessária para o casamento? Então alguém o abordou e propôs o que poderia ser a solução de seus problemas: a Companhia das Índias recrutava jovens para uma expedição. Devia apenas alistar-se em Amsterdam, aguardar a ordem de embarque. E na volta, teria armazenado bastante dinheiro para desposar a bela Catarina. Ambrosio Richshoffer foi a pé até Paris, onde passou 15 dias “por haver pouco o que ver”, conforme escreveria. Em Amsterdam prestou juramento, recebeu adiantamento de soldo, desfilou em um batalhão, “vistosamente trajado”, com espada prateada e belas plumas coloridas no chapéu. Ao embarque, num grande navio com 38 peças de artilharia, inclusive seis meio-canhões de bronze, muitos víveres e munições, houve festa: salvas, fogos, e uma refeição como poucas vezes aconteceria no decurso da viagem: pão, queijo, manteiga, arenques frescos, cerveja. E até vinho francês. O recruta adolescente resolveu anotar o que aconteceria na longa viagem. Assim, de abril de 1629 a dezembro de 1632, ele descreveu e comentou fatos, com um olhar divertido, ingênuo, irônico, crítico outras vezes, e sempre com simplicidade de estilo. Como aquele comentário sobre a morte do companheiro jogado ao mar: “Será devorado pelos peixes e não pelas cobras e vermes”. Ambrosio relata o dia-a-dia da ocupação holandesa, fornece listas de munições, táticas e estratégias de combates, deserções, traições, punições, atos de rapina, assaltos a engenhos com roubo de gado pelos soldados esfomeados, que não poupavam igualmente gatos, cães e ratos. Leva o leitor a participar dos acontecimentos, não poupando o detalhe realista: “o navio estava por dentro e por fora tão salpicado de carne humana, miolos e sangue, que foi preciso raspá-lo com vassouras”. Às vezes o discurso se faz rápido, cruel. Como no episódio da disputa de uma sopa de biscoitos entre dois soldados: decepada por uma bala, a cabeça de um deles caiu dentro da gamela. O outro falou: “Agora podes tomar a

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Frans Post, gravura em cobre

sopa toda”. Ao que comenta Ambrosio: “Uma sopa com açúcar é melhor que misturada com sangue”. Confirmando ou exagerando o que diriam historiadores oficiais ou não, como Frei Manuel Callado, Barlaeus, Baers, ou como reportam as Notas diárias da Companhia em Pernambuco, Richshoffer nos descreve combates como o de Pau Amarelo, o saque de Olinda, com a força de uma testemunha ocular, e até nos conta como roubou a um soldado morto um “bonito par de calças de linho” enfeitadas com rendas de seda, pois os mortos não precisam dessas coisas. E, como bom cristão, emite o desejo de que Deus conceda àquele soldado, como o faz a todos os que morrem valentemente, “uma feliz ressurreição”. O diário de Ambrosio Richshoffer, publicado pela primeira vez em alemão em Strasburgo, em 1677, com o título de Descrição de viagem ao Brasil e às Índias Ocidentais, foi traduzido e publicado em 1896, por nosso grande Alfredo de Carvalho. Reeditado pelo INL com introdução de Mauro Mota, em 1978, sob o título de Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais, o livro teve recente edição, pela Companhia Editora de Pernambuco. Sua leitura, que diverte, deleita, lembra-nos que nem sempre a história é feita pelos chamados historiadores. Melhor: que um leigo despretensioso também pode nos fazer mergulhar no coração dos acontecimentos. MAR 2008 • Continente x

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O menino, o engenho e o esquecimento 36 x Continente • MAR2008

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CINEMA

O documentário do cineasta paraibano Vladimir Carvalho resgata a vida e a personalidade do escritor José Lins do Rego Marcelo Costa

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cinema surgiu como forma de registro imagético de uma realidade que acontecia diante das lentes da câmera. Assim foi com A chegada do trem na estação (1895), dos Irmãos Lumiére, tomado como o primeiro filme já realizado, no qual a câmera e os realizadores desempenhavam o papel de observador e historiador, à medida que capturavam instantâneos, aprisionavam determinado momento em uma película em movimento que poderia funcionar como documento histórico. Com o decorrer dos anos, além do caráter ficcional desenvolvido, o valor documental do cinema também se aperfeiçoou: valendo-se do imenso manancial de imagens e do advento da captação do som direto – facilitador de depoimentos e entrevistas –, os registros visuais e sonoros que se acumularam em um século dominado pelas imagens tornaram-se grande repositório de memórias e arquivos que (re)visitados podem resgatar ou construir novo sentido para momentos e personagens históricos. Ciente disso, o cineasta paraibano Vladimir Carvalho construiu um grande mosaico de imagens e depoimentos no tocante O engenho de Zé Lins (2007); uma tentativa de resgatar a importância do escritor José Lins do Rego e impedir que seu nome e obra caiam na grande vala do esquecimento. Lançado no ano do cinqüentenário de sua morte, o documentário reconstitui a trajetória do escritor à medida que revela os traços mais fascinantes de sua personalidade impulsiva e eloqüente. Um rico repertório de imagens de arquivo, aliado ao único trecho original da voz do autor e a depoimentos fundamentados na notoriedade e no conhecimento de seus interlocutores, expõe o fascínio despertado pela vida e pela obra do escritor, cuja importância parece desaparecer numa extensa névoa inebriante de ícones instantâneos. Logo na seqüência de abertura um menino (Ravi Lacerda, de Abril despedaçado) assiste estupefato à paixão de Cristo em meio ao ambiente rural, sugestivo de um engenho. A cena de contornos fictícios confere ao filme o tom de evangelho e introduz o calvário vivido por aquela criança que precocemente tornou-se adulto, mas sem liquidar a meninice não vivida. A partir da infância do menino Zé Lins no engenho da zona açucareira da Paraíba, relatada por depoimentos saudosos de parentes e amigos, o filme investiga os fatos determinantes para a construção de sua personalidade e o inter-relacionamento com sua obra. Um episódio traumático e pouco conhecido de sua infância é revelado com delicadeza como possível catalisador de sua angústia e insMAR 2008 • Continente x

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CINEMA

No filme, Ariano Suassuna afirma que a crítica literária brasileira tem sido injusta com a obra de José Lins do Rego

tabilidade emocional; talvez o maior peso da cruz de seu calvário. Os cenários, as relações sociais e humanas presentes nos livros também têm origem nas paisagens e no desolamento do engenho – imortalizado no livro de estréia, Menino de engenho, e nas outras obras do Ciclo da Cana-de-Açúcar. A própria imagem do local é utilizada pelo diretor e pela fotografia, do irmão Walter Carvalho, como uma tela ilustrativa e nostálgica do esquecimento. As ruínas, o abandono a que está submetido sugerem o passar dos anos e a ameaça de aniquilamento do escritor na memória e no imaginário das novas gerações. Numa escola cujo nome é José Lins do Rego, Vladimir Carvalho pergunta aos alunos se eles já leram alguma linha do autor de Bangüê e Riacho doce e constata a esclerose literária a que estão submetidos. Nesse momento, Carvalho deixa claro o propósito, propagandístico inclusive, do seu filme: reavivar e resgatar a memória do escritor via retórica verbal e visual. Num dos momentos mais interessantes, o escritor Ariano Suassuna revela a injustiça cometida pela crítica e pela memória coletiva com a obra de Zé Lins. Segundo o dramaturgo, e o próprio Vladimir Carvalho que

opina na discussão, o grau de denúncia e investigação social promovido pelo escritor está bem adiante daquele realizado por Gilberto Freire, que se gabava pelo surgimento e pela formatação de Zé Lins como escritor; fato tratado com ironia por Ariano. Afinal, apesar da grande amizade surgida nos anos da Faculdade de Direito do Recife e da idolatria que Zé Lins nutria pelo sociólogo, cuja influência é inegável, seria um exagero considerá-lo como uma marionete literária. Carlos Heitor Cony reforça a importância do escritor paraibano ao afirmar que o Modernismo não teve início na Semana de Arte Moderna em São Paulo e sim com os escritores nordestinos como o próprio Zé Lins, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, que depõe, pouco antes de seu falecimento, sobre a afetividade do amigo escritor. Já Walter Lima Jr., responsável pela versão filmada de Menino de engenho (1965), também presente no documentário, exalta a relevância do escritor para a cultura e o cinema nacional ao revelar que o clássico Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, fora inspirado em Pedra bonita (1938) e Cangaceiros (1953), ambos do Ciclo do Cangaço de Zé Lins; enquanto o então ator mirim, Sávio Romão, sucesso na época do lançamento do filme, hoje esque-

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cido, fala sobre as filmagens em meio à relva do abandono que encobriu o engenho. A paixão pelo Flamengo e situações anedóticas de uma personalidade impulsiva e por vezes performática também são relatadas, como na ocasião em que Zé Lins, após visita ao vestiário do Flamengo, promove passeata contra os atletas mercenários, onde queima a camisa de Jair da Rosa Pinto: a questão é que ao abraçar o jogador, depois da derrota de seu time, o escritor constatou que a camisa vestida pelo craque estava enxuta. Cabe ao poeta Thiago de Mello os relatos mais íntimos da vida de Zé Lins, inclusive um depoimento doloroso dos últimos dias do escritor no leito do hospital, onde faleceu aos 56 anos de cirrose hepática. Um grande fluxo emotivo jorra da tela nas trêmulas palavras oprimidas pelos soluços e lágrimas saudosos do escritor.

Mais literatura no cinema Curta-metragem traz ficção baseada em conto de Clarice Lispector

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ambém em tom rememorativo, neste caso para lembrar os 30 anos da morte de Clarice Lispector, o curta-metragem O triunfo, de Geórgia Alves, é outro exemplo do antigo e duradouro casamento entre a literatura e o cinema. Baseado num conto de mesmo nome lançado em 1940 na revista Pan, do Rio do Janeiro, o filme relata as impressões de uma mulher recém-abandonada pelo amado, um escritor atormentado pela ausência e pela fragilidade da inspiração; experiência sentida na pele pela própria Clarice. Certa vez ela caminhava silenciosamente pelo corredor de um hospital, quando foi interrompida por uma enfermeira: “Saiba que a senhora acabou de matar uma personagem”, disse-lhe desapontada a escritora.

Talvez excessiva, essa cena desnuda o filme de qualquer pudor para mostrá-lo como de fato é: retrato apaixonado de um admirador de Zé Lins, incapaz de se esquivar do arrebatamento e de uma construção narrativa sustentada pela retórica verbal e visual para reacender a memória de um expoente da literatura regionalista brasileira. Apesar disso, Vladimir Carvalho demonstra a sua habilidade em lidar com o elemento humano para atingir seu objetivo. Como uma escultura que se deforma e remodela, promove um novo olhar de Zé Lins, não como peça estática e empoeirada de museu e sim com o dinamismo de algo pulsante, a memória de um menino que aprendeu precocemente a ser adulto e que quando adulto teve de carregar o menino dentro de si. A história, como define uma de suas tias em seu depoimento, do “menino que ia dar pra coisa”… e deu. Em O triunfo, entretanto, isso é apenas o motivo que leva a autora a refletir sobre o abandono e a solidão – temas caros à sua literatura – a partir da experiência subjetiva e sensorial da personagem. Apesar da subjetividade da câmera e dos contrastes no uso da luz e na montagem, o vídeo não consegue traduzir em imagens as sensações visuais e sonoras sugeridas pela escritora tão pródiga de simbolismo; há um certo reducionismo em suas imagens, próprio da dificuldade da adaptação. Mas nada que impeça celebrar e trazer à memória a sensibilidade de Clarice. Afinal, adaptações de clássicos da literatura ou mesmo de obras menos expressivas já renderam sucessos absolutos e desastres monumentais nas telas do cinema e continuam a inspirar os realizadores em busca de uma boa história para contar. Na idade de ouro de Hollywood, escritores americanos consagrados, como John Steinbeck e F. Scott Fitzgerald, passaram a roteirizar para grandes estúdios: o primeiro obteve sucesso, o segundo amargou fracassos. Como todo casamento entre duas linguagens diferentes, com suas especificidades e peculiaridades, há sempre entendimentos e discórdia. (MC)

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CINEMA

Cem anos de um mestre do cinema David Lean, em seus filmes, tinha uma maneira elevada de ver as coisas, sem deixar de se comunicar com o público que vai ao cinema também para se entreter por duas horas ou mais Fernando Monteiro

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le foi um cineasta quase bissexto: filmou pouco – considerando sua longa e bem-sucedida carreira – talvez para melhor filmar apenas o que lhe interessava levar para a tela grande, sob a aprovação do seu espírito muito exigente. Conhecido como “o mais perfeccionista dos diretores da história do cinema”, David Lean completaria 100 anos neste mês de março, certamente discreto e meio caladão como passou pela vida de 83 anos plenamente vividos. Sir David Lean nasceu em Croydon, no Surrey (Inglaterra), em 25 de março de 1908, e se iniciou no cinema com menos de 20 anos, nos estúdios da Gaumont inglesa, fazendo toda sorte de pequenos serviços até se tornar assistente de montagem de noticiários cinematográficos. Em 1934, passou a editar filmes como Escape me never (1936), Pigmalion (1938) e outros. Só em 1942, faria a sua estréia na direção, em In which we serve, co-dirigido por Noel Coward (que forneceria os roteiros para os quatro filmes seguintes do então jovem realizador). Três anos mais tarde, Lean iria assinar, sozinho, a sua primeira obra-prima como diretor: Brief encounter (“Desencanto”, no Brasil), filme que lhe trouxe a cobiçada Palma de Ouro, em Cannes. Credenciado pelo prêmio, em seguida adaptou três obras de Charles Dickens com grande sucesso de público, e, depois, se lançou como um cineasta-mestre num gênero que tem tudo para diluir mesmo os maiores talentos: o superespetáculo. Seu primeiro filme no gênero foi com A ponte do rio Kwai (1960), que lhe traria fama mundial (e o New York Film Critic Award), além de um projeto acalentado tanto pelo russo Sergei Eisenstein como pelo americano Orson Welles: Lawrence da Arábia, uma adaptação mais ou menos livre de Os sete pilares da sabedoria , de T. E, Lawrence, sem dúvida fascinante para qualquer diretor de fôlego. 40 x Continente • MAR2008

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Descrito como um "humanista cético", David Lean dedicou sua vida ao cinema

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CINEMA Informações assim – tipo verbetes – dizem muito pouco sobre um talento superior como David Lean. A verdade é que já não se fazem mais cineastas do seu calibre, ou com aquela aristocracia natural de visão que significa uma maneira elevada de ver as coisas, sem deixar de se comunicar com o público que vai ao cinema também para se entreter por duas horas ou mais. Lean iria se especializar nesse “mais” – tão problemático para os exibidores contando horários de sessões nas salas de cinema –, e seus superlongas metragens passaram a ser preparados sem pressa, por meio de histórias narradas (em roteiros assinados por nomes como Robert Bolt, entre outros) com um sentido de classicismo que, nele, nunca correu o risco de parecer “acadêmico”. Como Lean conseguia isso? De que modo alcançou dominar os grandes espaços filmados com suntuosidade sempre elegante, sem perder de vista a tormenta interior de personagens tão enigmáticos como o coronel Lawrence? Um clássico indiscutível – Nesse sentido, esse inglês foi o mais articulado e límpido dos diretores modernos, apostando na vantagem da clareza e da sombra (ao mesmo tempo), sem truques, como se filmasse na linha de sombra do horizonte que recuava e, diante disso, não soubesse senão avançar, com suas tomadas de

cena sinfônicas que Steven Spielberg e Martin Scorcese confessam admirar como “a essência do cinema”. David Lean foi descrito de muitas maneiras: “humanista cético”, “o homem do olhar largo e sereno”, etc., e um livro de quase mil páginas foi recentemente lançado, em Londres, tentando decifrar sua obra como a de um diretor europeu interessado no confronto da civilização com a incerteza, entre outros temas. Numa obra de Kevin Brownlow (David Lean, Faber & Faber, 1996), é particularmente comovedor acompanhar, através de alguns depoimentos, a brava luta do cineasta que, aos 82 anos, ainda tentava levar para o cinema o romance Nostromo, do polonês de nascimento Joseph Conrad (outra adaptação sonhada por Orson Welles). Lean não conseguiu. Jovens produtores também se fascinaram pelo projeto do premiado veterano, porém todos temiam a idade avançada do respeitado diretor, e assim perdemos a chance de ver a unanimemente considerada “obra-prima” do autor de Lord Jim levada para a tela pelo mestre cinematográfico do estranhamento. Não há nada que defina melhor o que acontece no interior da, por sua vez, obra-prima de Lean: Lawrence da Arábia é um épico sobre o enigma de um único homem, no olho do furacão de uma revolta que, no final de contas, não lhe diz respeito (ou diz pouco),

Lawrence da Arábia, um épico dirigido com maestria por David Lean

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Clássicos como A ponte do Rio Kwai, Dr. Jivago e A filha de Ryan, permanecem modernos e reverenciados

política e pessoalmente. Trata-se da aventura de Thomas Edward Lawrence, no deserto do Hedjaz, entre 1916 e 1918, onde atuou como agente de ligação enviado pelo alto comando britânico no Cairo para insuflar, nas tribos árabes mais remotas, a revolta armada contra o império turco-otomano (pois isso iria criar uma Frente Oriental capaz de enfraquecer os alemães, aliados da Turquia ainda de sultões). Lawrence começa sua missão como tenente, é promovido a coronel no meio dela e termina como conquistador de Damasco, capital da Síria, e último baluarte caído sob a onda de tropas irregulares treinadas pelo aventureiro e arqueólogo nas horas vagas. Mais uma vez o modo “verbete” diz pouco: uma sinopse assim não passa nada da grandiosidade melancólica do filme de 222 minutos, na versão original do diretor. Esse era o tempo necessário, segundo Lean, para transmitir algo da personalidade estranha do seu “herói” relutante, simultaneamente empenhado na ação militar e discutindo a moralidade dela, o grau de responsabilidade das suas intervenções pessoais e o futuro da nação árabe que ele estaria ajudando a fundar sobre uma espécie de mentira oficial anglo-francesa, etc. Os produtores foram implacáveis com essa longuíssima metragem, e a complexidade da ação política de Lawrence da Arábia, assim como seu dilema íntimo, sofreram cortes que reduziram o filme para 187 minutos. Foi essa a versão que foi vista pelo grande

público (só na estréia mundial, para a rainha Elizabeth II e seus convidados, o filme esteve completo, como Lean o concebeu e rodou durante dois anos, debaixo do calor da Arábia). Mesmo assim, ali está um filme considerado por muitos uma lição de cinema oferecida por um mestre da mise-en-film que, em nenhum momento, perde o foco da sua narrativa voltada, essencialmente, para a arena da alma de T. E. Lawrence, assim como, em Passagem para a Índia, tudo se passa no oco do contraste das culturas, com o jogo perdido, pela civilização mais antiga, com um gol “contra”, na rede de preconceitos que o filme denuncia no âmago da alma britânica. Doutor Jivago (1965) e A Filha de Ryan (1970) seriam dois filmes de longa duração menos logrados, artisticamente, pelo cineasta de Desencanto. Esse, e mais A ponte do Rio Kwai, Passagem para a Índia e, principalmente, o portentoso Lawrence da Arábia não envelhecerão nas filmotecas, conforme já acontece com o vanguardismo, hoje “datado”, do francosuíço Jean-Luc Godard, por exemplo. Com certeza, pelo menos quatro das realizações do inglês que chegou a ser chamado de Mister Cinema (pelo seu amplo domínio da sétima arte), são clássicos, desde já, com aquela qualidade fundamental de todas as obras dignas de tal classificação: a capacidade de permanecerem modernos e sem data, ou sem “prazo de vencimento”, no campo da arte narrativa mais popular do século 20. MAR 2008 • Continente x

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Pernambuco no pincel de Mรกrio Nunes

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Livro reúne coleção de quadros pintados pelo artista pernambucano, retratando igrejas de Olinda, Recife e cidades vizinhas Marco Polo Imagens: Reprodução

Igreja de São Gonçalo, Itapissuma

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adha Abramo afirmou, a respeito de Mário Nunes, que “o seu registro plástico sobre as igrejas de Recife e Olinda, pouco conhecido do público, forma, indubitavelmente, uma rica e talvez única iconografia religiosa no gênero”. A conceituada crítica de arte disse isso quando Nunes ainda não tinha terminado a série de 41 quadros em que retratou também igrejas de Paulista, Igarassu, Itamaracá, Itapissuma, Goiana, Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho, Tamandaré e Sirinhaém. A série teve origem numa exposição coletiva de miniquadros (22 x 16cm) organizada pelo marchand pernambucano Carlos Ranulpho, que conta: “Convidei Mário Nunes para participar e ele ficou meio espantado, afirmando nunca ter pintado miniaturas.” Mesmo assim aceitou o desafio. Seus quadros, principalmente de igrejas do Recife, venderam todos e logo surgiram inúmeros pedidos de mais. Surgia assim uma parceria que se estendeu por longo tempo. Esgotadas as igrejas de Olinda e Recife, Ranulpho passou a levá-lo de carro, aos domingos, para as cidades vizinhas. Relembra o galerista: “Lá, ele armava seu cavalete de campo, desenhava e fazia as anotações necessárias, enquanto eu ficava ao longe, passando uma vista nos jornais do domingo. Concluídas as anotações, levava-o de volta e dias depois ele me entregava a miniatura concluída”. Ranulpho agradece a duas mulheres por ter iniciado e completado a coleção: sua esposa, Maria Dulce, que lhe estimulou o gosto pela arte sacra; e Radha, a crítica paulista que o aconselhou a não deixar que os quadros se espalhassem por vários proprietários, a fim de preservar a integridade da coleção, não apenas pelo seu evidente valor artístico como também pela sua inestimável importância iconográfica. Ao completar 40 anos de trabalho na comercialização de arte – sendo o mais antigo galerista em atividade no país –, Carlos Ranulpho resolveu comemorar expondo os quadros MAR 2008 • Continente x

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ARTES pintados por Mário Nunes, ao mesmo tempo em que registrava a coleção num livro. O resultado é Igrejas pernambucanas de Mário Nunes que, além da reprodução dos quadros, traz textos do pesquisador e historiador Leonardo Dantas, levantando aspectos históricos e arquitetônicos de cada igreja, além de saborosas estórias e lendas que envolvem alguns destes templos. A Igreja dos Santos Cosme e Damião, em Igarassu, por exemplo, é considerada a mais antiga do Brasil, tendo sido construída em 1535. Também naquela cidade, o Convento de Santo Antônio abriga a mais importante coleção de pinturas com motivos sacros existente em Pernambuco. Já o Mosteiro de São Bento tem um altar-mor em estilo rococó todo coberto de ouro de 22 quilates, que recentemente foi exposto em Nova York. A Concatedral de São Pedro dos Clérigos, imponente presença no Pátio de São Pedro, com suas linhas de um verticalismo excepcional, é considerada um dos mais belos monumentos barrocos do país, tendo sua nave em traçado octogonal, único no Nordeste. A igreja de Nossa Senhora do Carmo do Recife, no convento das carmelitas, foi construída no mesmo local onde o conde João Maurício de Nassau construiu sua Casa da Boa Vista. Guarda as jóias da Virgem, com sua coroa pesando seis quilos de ouro fino, incrustada com brilhantes, pérolas, rubis e outras pedrarias. No convento do Carmo está sepultado frei Joaquim do Amor Divino Caneca, líder revolucionário republicano, participante das Revoluções de 1817 e da Confederação do Equador, em 1824. Já dom Antônio Felipe Camarão, que, como governador dos índios, combateu os invasores holandeses, foi sepultado, em 1648 na igreja de Nossa Senhora do Livramento da Várzea. As capelas dos engenhos Monjope, em Igarassu, e Massangana, no Cabo, estão marcadas, a primeira, pela visita do imperador Dom Pedro II, em 1859, e a segunda por ter freqüentado a infância do abolicionista Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo. O historiador inglês Henry Koster relata uma festa em homenagem a Nossa Senhora da Conceição, em 1811, na igreja dedicada à santa em Vila Velha, Itamaracá: “a igreja estava repleta e o rumor do povo era intenso. As roqueiras troavam nos intervalos e os músicos do festival, com violinos e violoncelos, tocavam dentro da igreja, e os músicos de Olinda do lado de fora. Os foguetes subiam sempre. A balbúrdia era extrema. Muitos cavalos amarrados em todos os quartei-

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Igreja do Bom Jesus, Itamaracรก

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ARTES

No alto, ruínas de uma igreja, em Tamandaré. Acima, Igreja de Jaguaribe, Itamaracá. Ao lado, Igreja do Amparo, Itamaracá

rões aos postes das portas e guardados pelos meninos, enquanto seus donos se divertiam, partiam as rédeas e fugiam, aumentando, não em pouco, o barulho e o alarido”. E continua: “No momento em que a música acabou, um improvisatori, ou glosador, como são chamados, elevou a voz e dedicou alguns versos em louvor do Vigário. Louvou também Nossa Senhora, num estilo curioso, dando-lhe muitos títulos, apropriados ou não, retirados da sua memória. Depois mudou o rumo e cada um de nós foi louvado, e ouvi o nome de Henrique da Costa, como fiquei metamorfoseado, e repetido por vários outros ”. Mário Nunes (1889-1982) surpreendeu o avô quando, com apenas nove anos, após ter sido levado a assistir um espetáculo de bumba-meu-boi, de volta à casa começou a desenhar o que vira. Começava ali uma longeva e prolífica carreira. Como, naquele tempo, ainda não dava para viver de arte, sempre inventou algo em que pudesse exercitar seu talento e vocação.

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Ainda no Ginásio Ayres Gama fundou um jornal manuscrito, A Palheta, a fim de publicar seus desenhos; aos 18 anos criou o Grêmio Dramático Espinheirense, pintando os cenários das peças encenadas pelo mesmo; e em 1932, com outros pintores, fundou a Escola de Belas Artes de Pernambuco, da qual se tornou professor. Tido como o introdutor do impressionismo em Pernambuco, Mário Nunes contrapunha ao gestual viril de Teles Júnior, um lirismo sincero e plácido. Em seus quadros de igrejas alterna visualizações frontais com oblíquas, prédios isolados com outros

contrastando suas linhas retas dentro do alvoroço do arvoredo em torno, fazendo com que sua coleção de quadros de igrejas pernambucanas tenha uma dinâmica seqüencial. É também capaz de construções mais complexas, como mostra o jogo de curvas e retas em perspectiva no quadro Claustro, de 1942, do acervo do Museu do Estado de Pernambuco. O livro Igrejas pernambucanas de Mário Nunes será lançado neste mês, na Ranulpho Galeria de Arte, à Rua do Bom Jesus, 125, Bairro do Recife, fone 3225.0068.

Igrejas pernambucanas de Mário Nunes Companhia Editora de Pernambuco - Cepe e Ranulpho Galeria de Arte 176 páginas 60,00 reais

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Ferreira Gullar

Uma poética do silêncio A evolução da linguagem da gravura de Anna Letycia é acompanhada de progressivo apuro das técnicas de gravar e de inovações audaciosas, de que não há exemplo na gravura brasileira

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obra de Anna Letycia está por ser devidamente situada na história da gravura brasileira. Se é verdade que ela tem merecido a atenção e o reconhecimento da crítica, creio não se ter, ainda, suficientemente ressaltado o que significa de inovação técnica e estética. Tendo iniciado a carreira na década de 1960, após a ruptura que o concretismo provocou com a tradição modernista de 22, ela se situa entre aqueles artistas que se mantêm fiéis à linguagem figurativa em contraposição à linguagem geométrica dos concretistas. Aluna de Oswald Goeldi e de Iberê Camargo, Anna Letycia estava, por isso mesmo, mais ligada ao universo expressionista do que a racionalismo e ao objetivismo da arte geométrica. Mas não apenas por isso, persistiu no caminho figurativo; isso se deveu sobretudo à natureza mesma de sua personalidade, que a levou a inventar um mundo imaginário a partir das formigas, dos caracóis e tatus que descobrira no quintal de sua casa. Tem-se como verdade que, ao gravar ou pintar, os artistas revelam o que há de oculto na realidade das coisas. Eu, porém, tendo a duvidar disso e a acreditar, ao contrário, que os artistas, partindo das coisas ou não, inventam uma realidade que só existe em suas obras. Tomando como exemplo o caso das formigas de Anna Letycia, terá cabimento dizer que aquelas são as verdadeiras formigas, mais reais que as que ela descobriu brincando em seu quintal? Creio que não: as for-

migas de suas gravuras não são reais e, sim, imagens inventadas que, no espaço fictício da obra, ganham uma significação que as formigas reais não têm. Não são imitações dos insetos reais mas, sim, a sua transformação em seres imaginários. Sem dúvida alguma, se as formas que a gravura nos mostra são formigas e não caixas, mantém-se nela uma alusão a tudo o que aqueles insetos nos fazem evocar, especialmente o mistério insondável da vida. Por isso mesmo, quando Anna Letycia deixa de versar figuras de bichos, o mundo imaginário que então inventa é outro, tem outro conteúdo e reflete relação distinta tanto com o mundo real quanto com a linguagem da arte. O filósofo Ernst Cassirer afirmou que as linguagens são intraduzíveis entre si. Se entendermos que o mundo real é também uma linguagem, deduziremos que, como toda linguagem, será também intraduzível em outra linguagem. Assim como é impossível traduzir em música o que a pintura diz, é também impossível traduzir em gravura o que a realidade diz. Por isso, o tatu gravado e o caracol gravado dizem outra coisa que os tatus e os caracóis reais. Mas isso não impede que a gravura contenha alguma coisa que a gravadora viu ou ouviu ou leu neles, que nem eu nem você veríamos ou leríamos. No caso dela, a expressão de um mundo silencioso e obscuro, que irá aos poucos transformando, através de uma depuração e abstratização daquelas figuras animais. Aos poucos, o tatu se muda em formas abstratas, que já nada tem de sua realidade animal.

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Divulgação

Caracol, gravura em metal (ponta-seca), 40 x 40 cm, 2007

Anna assim caminhou na direção de uma linguagem autônoma, distante das formas naturais de que partiu. Se seguirmos a evolução da gravura de Anna Letycia, vamos nos deparar com um inesperado salto qualitativo, nessa passagem da linguagem figurativa inicial para chegar às estilizações decorativas e às caixas – ou seja, a uma depuração do processo formal até atingir um nível de precisão e economia insuspeitado nas etapas anteriores. Essa evolução da linguagem da gravura é acompanhada de um progressivo apuro das técnicas de gravar e de inovações audaciosas, de que não há exemplo na gravura brasileira. O domínio técnico e estético, por ela conquistado, possibilitou-lhe o uso de determinadas formas recortadas na chapa. Esse recurso introduziu na linguagem da gravura possibilidades expressivas até então desconhecidas. Graças a tais inovações, Anna Letycia redimensionou o seu universo gráfico, não só por ampliá-lo tecnica-

mente, mas também por adotar, em face da arte de gravar, uma postura original e moderna. Estamos já então muito distantes da jovem gravadora que buscava afirmar-se no âmbito da arte, valendo-se, de uma maneira ou de outra, das alusões à representação da realidade. Anna superou essa etapa, sem pressa, trabalhando seriamente, até conquistar uma linguagem própria – que ela inventou – e, conseqüentemente, um modo novo de expressar-se como gravadora. Assim, ela chega à linguagem geométrica, mas de uma geometria sensível, que combina quadrados e cubos (caixas) com ornatos e assimetrias. Cabe sublinhar, porém, que se ela conseguiu explorar novas possibilidades técnicas e estéticas, o fez sem abandonar as características essenciais da gravura em metal. De fato, ela realiza uma verdadeira revolução na gravura brasileira, que se efetivou sem alarde, silenciosamente, como é próprio de sua maneira de ser. MAR 2008 • Continente x

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CÊNICAS

Coleção Arquivinhos, da Editora Bem-Te-Vi, rende homenagem ao grande dramaturgo brasileiro

Imagens: Reprodução

Nélson Rodrigues como objet d'art Luís Augusto Reis

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om Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre”, afirmou Nélson Rodrigues em 1949. Frasista inveterado, ele esquecia que, no ano anterior, após enfrentar problemas com a censura, Anjo negro, estrelada pela estonteante Maria Della Costa, havia cumprido temporada de dois meses, sempre com casas cheias – o que, para a época, estava longe de poder ser considerado um fracasso. Uma das formas mais instigantes de se observar a trajetória artística de Nélson Rodrigues talvez seja pelo viés de sua contraditória relação com o sucesso. Nas entrelinhas de suas famosas manifestações de desdém pela burrice das unanimidades, ou subjacente às suas desconcertantes apologias à vaia, ouve-se a voz rouca e ansiosa de um dramaturgo obcecado pelo sucesso. Mas não por um sucesso qualquer, passageiro, fácil. Este jamais o satisfez. Nélson Rodrigues sempre quis muito. Buscava reconhecimento como uma criança busca o olhar de sua mãe: desafiando a todo o momento a grandeza do amor que acredita lhe ser devido. Para ele, a indiferença era algo desumano, intolerável. Não por acaso, em um dos melhores momentos do longo depoimento que concedeu ao Museu da Imagem e do Som, em julho de 1967, ao discorrer sobre o seu horror ao ato de viajar, ele afirma que “o sujeito deixa de existir, deixa de ser durante a viagem”. Jocosamente, provoca o seu amigo Otto Lara Rezende, um dos entrevistadores na ocasião, com a seguinte tirada: “Acho a viagem a mais empobrecedora, a mais burra das experiências humanas. O nosso querido Otto, na Escandinávia, não foi reconhecido por um mísero bacalhau”. 52 x Continente • MAR2008

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Cena do espetรกculo Vestido de noiva, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1943

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CÊNICAS Em vida, Nélson Rodrigues parece ter conseguido ser mais reconhecido do que propriamente amado. Após a sua morte, porém, sobretudo depois dos espetáculos que, na década de 1980, o diretor Antunes Filho criou a partir de suas peças, ele passa a ser cada vez mais apreciado, cada vez mais cultuado. Se antes os críticos se dividiam entre os que o consideravam um criador verdadeiramente genial e os que o viam apenas como “um caçador de escândalos”, tachando-o muitas vezes de “mórbido”, “vulgar”, “pornográfico” ou “reacionário”, com o passar dos anos, o nome de Nélson Rodrigues foi sendo alçado, merecidamente, ao cânone da cultura nacional. Nesse processo, o professor Sábato Magaldi, membro da Academia Brasileira de Letras, teve decerto um papel decisivo, por ter sido um dos primeiros intelectuais que se dedicaram a estudar de modo rigoroso a originalidade de seu legado teatral. Hoje, mais que uma unanimidade, Nélson Rodrigues parece ter se tornado um símbolo de sofisticação e de inteligência. Suas peças ganham sucessivas montagens, instigando a criatividade dos encenadores mais badalados. Sua obra em prosa, escrita em grande parte

para a efemeridade dos jornais, passa a freqüentar as prateleiras mais elegantes do mercado editorial. É nesse contexto que a editora carioca Bem-Te-Vi lança este mês o quarto volume de sua Coleção Arquivinhos, criada há seis anos, vencedora, em 2007, do Prêmio Jabuti de Artes Gráficas. Coordenado por Cláudio Mello e Souza, e com design de Victor Burton, o Arquivinho Nélson Rodrigues optou por se deter, quase que exclusivamente, na vertente teatral da vasta obra do autor. Um único invólucro reúne diversas peças gráficas: textos, nem todos inéditos, assinados por Sábato Magaldi, Bárbara Heliodora, Armando Nogueira, Cláudio Mello e Souza, Arnaldo Jabor e Fernanda Montenegro; uma filmografia das obras de Nélson vertidas para o cinema; uma bibliografia básica de e sobre o autor; uma cronologia comentada de sua vida; além de um DVD com duas entrevistas – uma delas, apenas em áudio, é o já referido depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som; a outra, em vídeo, foi gravada pela Rede Globo, em 1977, em programa apresentado por Otto Lara Rezende –; isso tudo permeado por vasta iconografia, incluindo alguns fac-símiles de cartas, cartazes e programas de

Capas e cartazes de obras de Nelson Rodrigues

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No alto, Bárbara Heliodora e Nélson Rodrigues (C), em 1968; acima, Gilberto Freyre e o dramaturgo, em 1970; ao lado, Fernanda Montenegro em cena no espetáculo Beijo no asfalto,1961

peças. O preço de capa (205,00 reais) condiz com o requinte do projeto gráfico. É aos fãs de Nélson Rodrigues, especialmente aos novos admiradores, que se destina essa publicação. Não é algo dirigido a especialistas. Isso se torna evidente, por exemplo, na incompletude da bibliografia apresentada. Se a intenção era priorizar o Nélson dramaturgo, não se podia deixar de mencionar, pelo menos, as pesquisas de Ângela Leite Lopes, Edélcio Mostaço, Luiz Arthur Nunes e Vitor Hugo Adler Pereira. O tom que predomina é o da memória de quem conviveu com Nélson Rodrigues. As informações são corretas e a leitura flui agradavelmente; mas, a rigor, não se lançam novas luzes sobre a arte e sobre o pensamento do autor homenageado – nem este parece ser o objetivo da coleção. Por meio do relato de episódios, muitos deles pitorescos, outros comoventes, se reforça a imagem de Nélson como artista brilhante e impulsivo, e como um ser humano complicado, mas fascinante. Nesse conjunto, enquanto Arnaldo Jabor reprisa a idéia de que o criador de Senhora dos afogados ainda não foi devidamente compreendido, e Armando Nogueira carinhosamente rememora sua convivência com o Nélson Rodrigues cronista de futebol, a fala que traz revelações mais significativas é a de Fernanda Montene-

gro. Por exemplo, ao narrar uma embaraçosa passagem envolvendo Dias Gomes, a atriz consegue sintetizar a força das motivações ideológicas que estavam por trás do desprezo que grande parte da classe teatral nutriu em relação a Nélson, sobretudo após o golpe militar de 1964. Em outro momento, livre de pretensões teóricas, Fernanda reflete com propriedade sobre as qualidades intrínsecas da escrita teatral rodrigueana, discutindo as oportunidades e os desafios que os textos desse “autor absoluto” apresentam aos atores. Por tudo isso, o Arquivinho Nélson Rodrigues talvez não possa ser considerado como volume indispensável às melhores bibliotecas; mas é certamente uma publicação que cumpre o propósito de homenagear um dos mais importantes escritores do país. Trata-se, na verdade, de um pequeno luxo, de um irresistível mimo. E, como presente, não precisa ser necessário para agradar. Arquivinho Nélson Rodrigues (CDs, DVD e material impresso) Bem-Te-Vi 205,00 reais

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Reprodução

CÊNICAS

A paixão do Balé Popular Depois de mais de 10 anos sem estrear um espetáculo, o Balé Popular do Recife leva aos palcos do Teatro de Santa Isabel As andanças do divino Christianne Galdino

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imão Marandueira é um mestre mamulengueiro que sai do sertão rumo ao litoral, encenando a Paixão de Cristo com seus bonecos, nas cidades por onde passa, e assim, ajudando a manter uma tradição cultural pernambucana que nem ele nem ninguém soube precisar o porquê do surgimento. Jesuíno, personagem central da trama, é um típico nordestino, misto de ícones do messianismo brasileiro como Antônio Conselheiro e Padre Cícero; com a figura de Lampião e do próprio Jesus Cristo. Esta é a idéia central do roteiro criado por Antônio (Zoca) Madureira para o novo espetáculo do Balé Popular do Recife: As andanças do divino, em come-

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Marcelo Lyra/ Divulgação

moração aos 30 anos desta que é uma das mais antigas companhias profissionais de dança da cidade. Para traduzir em coreografia as conhecidas passagens bíblicas da Paixão de Cristo, o Balé Popular valeuse da sua própria paixão, a cultura popular pernambucana, porém afastando-se do perfil folclórico que caracterizou os seus primeiros trabalhos e aproximando-se mais da linguagem “Brasílica” de dança, por ele instituída. Esta montagem trouxe André Madureira de volta à função de diretor artístico do grupo, depois de alguns anos afastado, e também ao posto de coreógrafo, com a filha Angélica Madureira e a bailarina Mabel Carvalho. “As características do Balé permanecem, mas há avanço visível na nossa pesquisa. Utilizamos bem mais movimentos de braços, além de seqüências de chão que nunca existiram no nosso repertório. Estamos mais descolados do contexto folclórico e até popular. Coloco, por exemplo, maracatu e frevo em uma coreografia sem precisar incluir nenhum elemento que remeta ao universo destes ritmos. Está tudo muito misturado, muito híbrido”, comenta o diretor. Além de conectar trechos da saga maior do cristianismo com autos e folguedos populares do Nordeste brasileiro, que sempre foram matéria-prima do trabalho do Balé Popular, As andanças do divino associa este enredo a capítulos da história de Pernambuco. “A cena do julgamento e condenação de Jesus Cristo, por exemplo, se sobrepõe ao julgamento e condenação de Frei Caneca. A música da capoeira faz homenagem a Dom Hélder Câmara e para a voz de Cristo, escolhemos o ator José Pimentel, que há tantos anos interpreta este personagem. O andanças é um espetáculo com vários espetáculos dentro dele”, adianta Zoca Madureira. O texto está presente em quase todas as 33 ‘cenas’ do espetáculo, que dura cerca

O espetáculo Nordeste: a dança do Brasil (1987) foi uma das últimas montagens do grupo

de uma hora e vinte minutos. Mas os diálogos também estão colocados sobre uma base melódica e até os raros ‘silêncios’ da obra estão coreografados. Quem não acompanhou os trabalhos do Balé Popular do Recife pode não perceber, mas para quem de alguma maneira vivenciou ou pelo menos assistiu aos espetáculos, referências musicais e mesmo algumas células coreográficas do repertório do grupo poderão ser identificadas. As ‘andanças ’ do Balé foram intencionalmente inseridas em alguns momentos, com o objetivo de revisitar esta trajetória de sucesso e valorizar a memória cultural pernambucana. Então, qualquer semelhança entre Simão Marandueira e o mestre mamulengueiro de Prosopopéia: um auto de guerreiro (1978) não é mera coincidência. Personagens como o anjo, a burrinha e o cego violeiro, presentes na nova montagem, também não são estreantes nos enredos do Balé Popular. Uma produção grandiosa em todos os aspectos, e dando vida a ela estão 40 intérpretes, sendo oito bailarinos-atores, que em alguns momentos também manipulam os bonecos do mamulengo e 32 bailarinos. A maioria ainda nem sonhava em nascer quando o Balé Popular do Recife subiu pela primeira vez ao palco do Teatro do Parque em 20 de maio de 1977, inaugurando uma nova forma de dançar o popular e mudando a cara da cultura pernambucana. A inexperiência de parte do elenco é compensada pela inteligente construção do roteiro, a maestria dos desenhos coreográficos envolvendo sempre grande número de pessoas, a força e a alegria, que sempre foram marcas da interpretação do Balé Popular. O Coral Canto da Boca, da Universidade Federal de Pernambuco, regido por Nélson Almeida; um coral infantil ligado à mesma instituição; MAR 2008 • Continente x

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Rubens Donato/ Divulgação

CÊNICAS

Os bailarinos do Balé Popular do Recife durante ensaio do espetáculo As andanças do divino que estréia em abril

dezenas de instrumentistas, e os cantores Walmir Chagas, Isaar França, Antúlio Madureira, Ednaldo Cosmo, Beatriz Carvalho e Dalva Torres foram convocados por Zoca Madureira para compor este musical. Nos bastidores da empreitada iniciada há mais de um ano, membros da família Madureira e ex-bailarinos do Balé Popular se revezam nas mais variadas funções. Figurinos e adereços estão por conta da matriarca do clã, Lourdes Madureira, do seu filho Anselmo, e da sua nora Ângela Fischer, que também é mulher do diretor André, além de ser uma das fundadoras do grupo. Antúlio Madureira, também fundador e ex-bailarino, é um dos solistas musicais do espetáculo. Otacílio Júnior, que integrou o elenco do Balé na década de 1980 e há 20 anos dirige a Trapiá Cia. de Dança, também encarna um dos personagens. O patriarca da família Paulo Ferreira está no time de atores que dá voz às andanças de Simão Marandueira, contado e cantado pela voz de Walmir Chagas, outro fundador e ex-bailarino do Balé Popular do Recife. Andréa Madureira, uma das filhas de André e Ângela, além de atuar como bailarina, cuida da administração com o produtor do projeto de 30 anos do Balé Popular, Paulo de Castro, que também emprestou sua voz a um dos personagens. Outro filho, Deca Madureira, radicado em São Paulo, vem fazer uma participação especial. Muitos são os nomes que estarão em cena ou, de alguma maneira, envolvidos na montagem desta ‘ópera popular dançada’, mas todos são partes da mesma história: a história do Balé Popular do Recife. Com As andanças do divino o Balé Popular dá um passo à frente na consolidação e desenvolvimento da

sua linguagem ‘Brasílica’. Mesmo mantendo a fórmula de trabalhar movimentos sincronizados com seu sempre numeroso elenco, o Balé se renova e dá um salto de qualidade, apresentando proposta diferente. O diálogo com o teatro, o circo, outras vertentes da dança, o teatro de bonecos e até mesmo a ópera, fez surgir uma obra integrada que fala da Paixão de Cristo, da luta apaixonada de mártires da história de Pernambuco, e ao mesmo tempo oferece a paixão do Balé pela cultura popular envolta no idioma Brasílica, hoje difundido no mundo inteiro graças à dedicação dos seus integrantes, dissidentes e descendentes. Nos dicionários a palavra paixão não significa somente o martírio de Cristo, mas é também definida como ‘sentimento excessivo, amor ardente, entusiasmo’. E a Paixão de Cristo contada pela dança do Balé Popular do Recife é tudo isso. As andanças do divino é a reinvenção da tradição popular no corpo da contemporaneidade, ou como denomina André Madureira é a construção de um “expressionismo pernambucano”. As andanças do divino é o Balé Popular se reinventando. E para isso, muita coragem, boas doses de ousadia e um ‘extra de paixão’ foram provavelmente adicionados à receita.

SERVIÇO As andanças do divino Teatro de Santa Isabel. 2 de abril, estréia às 19h 3 a 6/4 e de 9 a 13/4 às 20h Ingressos: 20,00 reais e 10,00 reais (meia)

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Alexandre Belem/JC Imagem

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dança contemporânea há muito se deslocou do lugar convencional de apresentação, ou seja, é freqüente vermos outros espaços servindo de palco à criatividade dos coreógrafos desta vertente. No mais recente trabalho da Cia. dos Homens o inusitado vai além da exploração de diferentes superfícies sólidas, da mudança de chão. O espetáculo Palavra úmida é encenado dentro de uma piscina, no Parque Aquático do Clube Líbano Brasileiro. Para falar de água, a diretora Cláudia São Bento mergulhou primeiro em uma pesquisa bibliográfica sobre o tema. “Trabalho há mais de cinco anos com watsu, que é uma técnica de relaxamento terapêutica realizada dentro da piscina. Foi desta relação que veio a minha inspiração, a minha vontade de pesquisar sobre a água. Encontramos, é claro, vasto material bibliográfico, e

Palavra úmida, novo espetáculo do grupo de dança contemporânea Cia. dos Homens, utiliza a água como palco

Dança

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CÊNICAS tivemos que descartar vários assuntos que surgiram, ficando apenas com os trechos do estudo que funcionavam melhor nos nossos experimentos corporais”, conta a coreógrafa, que é também uma das bailarinas do elenco. Além dela, estão em cena Ana Paula Ferrari, Paula Stuhrk, Jorge Sabino, Isabel Ferreira, Fernanda Lobo e Maria São Bento (filha de Cláudia), 12 anos, fazendo participação especial. A montagem conta com projeção de imagens captadas pelo videasta, Gaúcho; efeitos especiais e cenografia idealizados por Murilo Malta que promete até fazer chover. Ainda na equipe técnica, Cláudia Lubambo assinando figurinos e Martiniano Almeida, na iluminação. Mesmo sendo a água um elemento tão familiar ao ser humano, este (re)encontro não foi tarefa nada fácil para os bailarinos. Hoje mais de oito meses depois dos primeiros contatos com o novo cenário, eles já parecem bastante adaptados aos protetores nasais, toucas plásticas, óculos, roupas de borracha e aos equipamentos especiais para flutuação e afundamento, concebidos durante o processo criativo para ajudar a atingir os objetivos propostos nas coreografias. “Dentro da água o nosso tempo é mais lento, a densidade muda, é preciso ter domínio absoluto da respiração e toda essa adaptação não é fácil”, confessa a bailarina Ana Paula Ferrari. “A maneira de se relacionar com o espaço é outra, é totalmente diferente”, completa Cláudia São Bento. Em algumas coreografias os bailarinos relacionam-se com a água de fora dela, dançando nas bordas da piscina, e em outras, eles estão totalmente imersos na água. Dan-

çar em um ‘terreno’ líquido, contudo, trouxe outros ganhos à performance da companhia, além de possibilitar a utilização de um repertório de movimentos, somente possível de existir em ‘relevos’ como esse. O Clube Líbano também teve que se adaptar para receber o espetáculo. Uma espécie de tenda coberta foi criada para isolar a piscina escolhida, envolvendo público e elenco num ambiente fechado, livre de interferências do exterior e até mesmo da poluição visual e sonora daquela região da cidade. Os espectadores estarão em uma arquibancada com capacidade para 200 pessoas. “Porque a proposta é que a platéia mantenha certa distância das cenas, numa visão de cima para baixo, até porque esta estrutura e o próprio assunto da obra já criam uma aproximação, uma relação natural de intimidade”, justifica Cláudia São Bento. De férias no Recife, Aírton Tenório, que desde 1997 trabalha na Cia. Deborah Colker, no Rio de Janeiro, pôde, de certa forma, participar das comemorações dos 20 anos do grupo que ele fundou em 1988 com a bailarina Suyenne Simões. “Quis criar uma companhia para a minha cidade e fico muito feliz em ver meu sonho realizado”, diz Tenório. Neste trabalho, a Cia. dos Homens, pioneira da dança contemporânea recifense, aproveita a mobilidade da água, enquanto tema e textura flexível para apresentar a releitura de algumas das suas próprias obras, homenageando o seu fundador Aírton Tenório. Um solo, dançado por Cláudia São Bento, “sinal de trânsito”, e coreografado por ele, inaugura o capítulo purificação

Os bailarinos estão em contato há mais de oito meses com o novo cenário

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LIVRO Murilo Malta/ Divulgação

Escrevendo sobre o dançar

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Cena do espetáculo O eu olhar, da Cia dos Homens

interno e externo dos corpos com do espetáculo, abordando o oposto: a a superfície líquida, que nunca é miséria, as drogas, ‘as sujeiras sociais’ alheia, e acaba dançando também. aparecem num apelo à limpeza da Fugindo de clichês e sem apresenalma e do meio ambiente. Dançando tar nenhuma semelhança evidente sob e com os seus próprios reflexos na com nado sincronizado ou qualágua, os seis intérpretes recordam a quer outro esporte aquático, a comcoreografia Narciso (1989), outra criapanhia comemora a maturidade da ção de Tenório para a companhia. sua linguagem, apostando no poder Momentos de euforia, de soli‘encantador’ do novo. Bailarinos e dão, sensações de extrema liberágua conseguem formar um só cordade e completo abandono apapo dançante na Palavra úmida da recem em cenas que nos remetem Cia. dos Homens. “A água tem sigao nascimento, às brincadeiras das nificação especial e cada espectador crianças, à limpeza da humanidade vai ser convidado a descobrir isso: e do mundo, à liberdade e à função um outro mundo, outro tempo, purificadora da água; atravessando outra gravidade, uma sensação de o enredo e oferecendo mais poesia prazer intenso. É isso que eu quero aos movimentos, neste caso, declamostrar”, diz São Bento. (CG) mados muito devagar. Afinal, para habitar a água, a dança teve que assumir um tempo bem SERVIÇO diferente do seu habitual, tudo Palavra úmida – Com a Cia. dos Homens ficou mais lento e cada detalhe De 1 a 6 de abril, às 20h30 do gestual parece amplificado. Clube Líbano Brasileiro – Av. Antônio de Goes, 62, Pina. Tel. 3326 6673 Palavra úmida navega pelas www.ciadoshomens.com.br emoções resultantes do contato

lém da apresentação de um novo espetáculo, os 30 anos de trajetória do Balé Popular do Recife são registrados em livro. Em Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança, a jornalista, bailarina e pesquisadora Christianne Galdino recupera a história desse grupo fundamental para a revalorização das danças populares, destacando a criação de um método peculiar de dançar adotado pelo Balé, batizado de Brasílica. Num primeiro momento, é feito um resgate da dança cênica pernambucana, retratando o contexto em que foi possível o surgimento do grupo. Mas, talvez, o ponto mais interessante do livro seja a reflexão que aponta que o trabalho do Balé Popular do Recife não é, simplesmente, mera recriação e ‘cenificação’ do folclórico, para turista ver. A autora, que adaptou sua monografia de pósgraduação em livro, analisa os espetáculos e o método do Balé como elementos híbridos, que misturam o manancial folclórico do povo nordestino a outros elementos, num processo característico da contemporaneidade.

(Mariana Oliveira) Balé Popular do Recife: a escrita de uma dança Christianne Galdino, Lançamento no dia 2 de abril, no Teatro de Santa Isabel, às 20h30.

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sabores

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Doce no tacho (2)

Escravidão, Luiz Jardim, óleo sobre tela

“A origem dos doces brasileiros é patriarcal e seu preparo foi sempre um dos rituais mais sérios da antiga vida de famílias das casas-grandes e dos sobrados.” Gilberto Freyre (“Açúcar”)

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om os engenhos vieram casas-grandes que na arquitetura, por conta do nosso clima quente, não foram cópias perfeitas das casas portuguesas do além-mar. Para diminuir o calor, faziam cozinhas afastadas das salas e dos quartos – fora de casa, debaixo de um puxado. Em seu interior havia utensílios das três culturas que nos formaram. Dos portugueses herdamos alguidares, almofariz, caldeirões, chaminés “francesas”, fogões, fumeiros, potes, tachos de cobre; além de objetos de cozinha como fôrmas de bolo em formatos diversos – coração, estrela, meia-lua, pássaro; mais enfeites e recortes de papel para adornar bandejas (de estanho e prata). Dos índios “jirau” (mesa feita com varas de madeira usada para preparação e armazenamento de alimentos), panelas de barro, pilão, “trempe” (tripé de pedra onde se apoiavam, no fogo, as panelas), urupema; mais cabaça e cuia, por Gabriel Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil, 1587), chamadas “porcelana dos índios”. Dos africanos colher de pau, gamelas de madeira (para preparação dos alimentos), quengo (metade da casca dura do coco, com cabo de madeira, usado como concha), ralador de coco, tanque, tigelas e um pilão mais sofisticado que o dos índios. Mas não apenas utensílios se misturavam, naquele ambiente. Havia lá sobretudo ingredientes, hábitos, receitas e técnicas dessas três culturas. Devemos isso ao colonizador português, aberto a novas experiências, a novos sabores; e prontos sempre a substituir, sem preconceito, produtos de suas receitas originais pelos do Novo Mundo. Também foi assim por razões utilitárias, que as senhoras de engenho não participavam diretamente do trabalho doméstico. Limitavam-se a determinar o que queriam comer. Ficando o preparo dos pratos por conta das escravas. Pernambuco chegou a ser, nos séculos 16 e 17, o maior produtor mundial de açúcar. Por conta de tanta riqueza foi se formando aqui uma aristocracia que Tobias Barreto (1839–1889) chamava de “açucarocracia”. Padre Fernão

Cardim (Tratado da terra e da gente do Brasil, 1625) descreveu o fausto desses engenhos decorados com “móveis de jacarandá ou vinhático, louça da Índia, baixelas e talheres de prata, lençóis de linho franceses com monograma, brasões em cima de portais ... a casa cheia”. Dos seus donos, disse apenas que “parecem uns condes e gastam muito”. Por conta dessa opulência foi surgindo, no Nordeste, uma das mais importantes doçarias do mundo. Com receitas passadas oralmente, de mãe para filha – por não saberem escrever as mulheres da época, ou para esconder seus segredos culinários. Açúcar branco era privilégio das casas-grandes. Com ele se fazia bolos e sobretudo compotas, geléias, doces secos e cristalizados – conservados, por meses, em potes de barro vermelho ou em caixas rústicas de madeira. Raramente frutas frescas eram servidas ao natural – por temor dos seus efeitos, na saúde. Às senzalas eram destinadas essas frutas e também caldo, melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de pedras. Esses ingredientes eram pelos escravos misturados a farinha, de mandioca ou de milho, formando uma pasta muito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte cheiro de álcool. Acrescentando água fria a

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Uma parte importante dessa doçaria está intacta, ainda hoje, fiel a suas raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do Convento dos Amarantes

essa pasta, faziam “jacuba” – por gerações, base da primeira refeição do dia. Também rapadura – “tijolos que podem ser de 5 a 6 polegadas, bastante grossos, com cor, gosto e cheiro mais ou menos do açúcar queimado”, descreveu Auguste de Saint-Hilaire (Viagem às nascentes do Rio São Francisco e pela província de Goyas, 1847). Uma rapadura que, ainda hoje, é feita do mesmo jeito – com caldo da cana bem fervido e bem batido, depois colocado em moldes de madeira até que esfriem; após o que, tiradas das fôrmas, são embrulhadas em papel simples ou palha de bananeira. Nessas senzalas nasceu também nossa cachaça. A espuma da primeira fervura do caldo da cana, por não ter à época outra serventia, era colocada em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto, por conta do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em bebida, para eles estranha, a que chamavam “água ardente”. O Reino tentou proibir, primeiro, o consumo; depois, sua própria fabricação. Que a concorrência diminuía o uso da “bagaceira”

(e o volume dos tributos daí decorrentes). Em vão. Nessa briga tendo os nativistas apoio, inclusive, de comerciantes que usavam cachaça (e também fumo) como moeda na compra e venda de escravos. Acabou elevada à condição de símbolo de resistência à dominação portuguesa. Bebida de patriotas. Na Revolução Pernambucana, como em Canudos, brindar com vinhos (especialmente portugueses) ou outra bebida importada significava alinhar-se aos colonizadores. Uma parte importante dessa doçaria está intacta, ainda hoje, fiel a suas raízes portuguesas. Continuamos fazendo o mesmo pão-de-ló à moda do Convento dos Amarantes. Bolo-de-bacia, com receita anotada no mais antigo livro de culinária de Portugal (A arte de cozinha, 1680), de Domingos Rodrigues – cozinheiro de D. Pedro II (o de Portugal, já vimos). Pena que por aqui não tenham chegado toucinho-do-céu, pastel de Santa Clara, creme-da-abadessa, barriga-de-freira, mimos-de-freira, sonhos-de-freira, nuvens, morcelas de Arouca e bolinhos de Amor, Ciúmes, Esquecidos, Paciência, Raiva e Ternura. Bolo de noiva é adaptação do “panis farreus” romano – compartilhado, pelos casais, como símbolo da vida em comum que se iniciava com a “confarreatio”. No Brasil, esses bolos de casamento têm preparos diferenciados. Os do Sul usam massa branca e recheios variados. Em nada lembrando aqueles de Pernambuco, feitos com massa escura à base de ameixas, passas, vinho e frutas cristalizadas – tradição britânica que chegou a bem poucos lugares do Brasil. Tudo coberto com pasta de amêndoa e, depois, também com glacê branco. Sendo, por fim, decorado com flores em relevo, feitas de goma e açúcar – um hábito que nos veio da Ilha da Madeira. Esse bolo também está presente em outras festas importantes – aniversário, batizado, primeira comunhão, noivado e Natal. Em nosso ambiente foram também nascendo variações desses doces e bolos a partir de ingredientes novos – amendoim, castanha de caju, coco, frutas tropicais, mandioca, milho –, adicionados às velhas receitas de Portugal, até então feitas com amêndoas, canela, cravo, gengibre, noz-moscada, pinhões. Usamos também claras e gemas dos ovos de galinha. Nossos índios não conheciam esse animal, trazido por Cabral quando aqui passou a caminho de Calicute. Seus ovos preferidos continuaram sendo os de jacaré e de tartaruga. Algumas receitas sofreram adaptações. Ao manjar branco (criado no Convento de Santa Maria das Celas, em Guimarães), e também ao beijo (originalmente denominado beijo-de-freira, criado MAR 2008 • Continente x

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receita

Bolo Cabano 3 Bata as claras de 6 ovos em neve. 3 Junte as gemas e, ainda batendo, acrescente 400g de açúcar, 400g de farinha de trigo peneirada com 1 colher de chá de fermento e 1 pitada de sal. Por último, 200g de leite de coco puro. 3 Coloque tudo em forma untada. Leve ao forno quente.

no Convento de Vila do Conde), acrescentamos leite de coco. No pastel de nata trocamos a massa folhada por outra um pouco mais simples, preservando quase integralmente o recheio (aqui usando leite, em lugar de nata). O arroz-doce com desenhos de canela, criado no Convento de Guimarães, foi abrasileirado com o acréscimo do leite de coco. Aos filhoses juntamos uma calda – algumas vezes feita com açúcar, outras com mel de engenho. O quindim do reino ganhou coco, cravo e canela; o nome se manteve, acrescido de complemento em homenagem às meninas e moças que os saboreavam – quindim “de Iaiá”. No colchão-de-noiva, substituímos o recheio de amêndoa por creme de goiaba, enrolando a massa em finas camadas, daí surgindo nosso bolo-de-rolo – em Pernambuco, com uma delicadeza no fazer que o distingue do rocambole carioca e de variações dos outros estados nordestinos. Mas um pedaço importante dessa doçaria, cumpre registrar, é autenticamente daqui. Veio do desejo de fazer coisas com nossos gostos. Assim nasceram doces e compotas de todas as frutas da terra – abacaxi, araçá, banana, caju, carambola, coco, goiaba, jaca, laranja da terra, manga, mangaba. Além da cocada, claro – branca, queimada, de colher, de cortar, por Gilberto Freyre considerado “o mais brasileiro dos doces”. Para acompanhar, queijos muitos – coalho, do reino (assim se chamando por vir de Portugal) ou do sertão. Nasceram também biscoitos e bolos variados – de batata-doce, macaxeira, milho, pé-demoleque. Em alguns casos, concebidos para homenagear movimentos sociais – 13 de Maio, Cabano, Dom Pedro II, Guararapes, Legalista, Republicano, Santos Dumont. Ou pessoas – Dr. Constâncio, Dona Dondon, Dr. Gerôncio, Luiz Felipe, Tia Sinhá. Ou, ainda, famílias que os criaram – Assis Brasil, Cavalcanti. Sem esquecer o Souza Leão, ato exemplar de rebeldia gastronômica – onde ingredientes europeus foram substituídos por sabores nordestinos: trigo, pela massa de mandioca; manteiga francesa “Le Pelletier”, por aquela feita de leite do próprio engenho. É receita de Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, casada com o coronel Agostinho Bezerra da Silva Cavalcanti, senhor do engenho São Bartolomeu (em Muribeca).

Nasceu também a misteriosa “Cartola”, que tem como ingredientes banana, queijo do sertão, açúcar e canela. Sem que se saiba o engenho onde foi pela primeira vez produzida, nem quem a inventou. O nome se deve provavelmente à cor escura dada pela canela, e o formato alto do queijo sobre a banana, que lembra (remotamente) aquele tipo de chapéu que se usava na época. Nasceram também beijus ensinados por índios, feitos com massa de mandioca espremida que denominavam “tipioka”. Da massa feita desse jeito surgiram tapiocas de todo tipo – enroladas na manteiga, recheadas com coco ralado, com queijo de coalho. E, melhor exemplo dessa miscigenação, a tapioca de coco – mais conhecida como “ensopada”, que usa mandioca (da culinária indígena), sal e açúcar (da portuguesa) e leite de coco (da africana). Cumprindo lembrar, também, sabores que marcam nossas festas: filhós, no carnaval; bolos, tortas e ovos de chocolate, na Páscoa; bolo de frutas, pastel doce, passas recheadas, fatia parida (ou “de parida”), no Natal. Além de receitas do São João, sempre com muito milho. Esse milho, no começo da colonização, era alimento apenas de animal e escravo. O próprio Gabriel Soares de Souza (Tratado descritivo do Brasil, 1599) confirma que “portugueses plantam o milho para mantença de cavalos, galinha, cabra, ovelha, porco e também dos negros da Guiné”. A partir desse milho farto nas senzalas, juntando leite de coco e açúcar, foram nascendo angu, canjica, mungunzá, pamonha. E, também, um cuscuz muito melhor que aquele conhecido por portugueses e africanos – por lá feito com farinha de sorgo, farinha de arroz e até farinha de trigo. A doçaria nordestina é resultado dessa mistura. “Com as comidas indígenas e negras iam circulando as amostras da doçaria portuguesa”, disse Câmara Cascudo (A cozinha africana no Brasil, 1964). Inclusive doces de rua, de tabuleiro, bombons e confeitos, decorados com papel recortado – muito mais bonitos que aqueles aprendidos com as senhoras portuguesas. Uma culinária, no fundo, feita a partir de experiências de outros povos; mas, também, moldando essas experiências a nossos jeitos de ser. Uma culinária que resultou única. Criativa, como nossa gente. Altiva, como nosso espírito. Forte, como nossa história. Generosa, como nossa alma.

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Uma tendência poética marcante

A influência do hermetismo na poesia brasileira atual se faz presente na obra de poetas reconhecidos por público e crítica Fábio Andrade

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poesia brasileira atual vive sob o signo de uma interrogação. Ou melhor: de tantas interrogações quantos são os seus poetas. Poderíamos estender tal caracterização aos universos literários de boa parte dos países ocidentais. Interrogações que refletem a complexidade e a diversidade que compõem o espectro mais vivo da cultura em movimento. Não só os leitores, mas também os professores, críticos e estudantes se vêem acuados diante do trabalho árduo de buscar compreender, situar e mesmo valorar os nossos poetas. Uma radiografia do presente, porém, sempre é algo parcial, situado, aberto ao questionamento e à recusa. Parece-nos, entretanto, ser possível desenvolver, com o tempo, através de várias iniciativas de mapear a produção poética contemporânea, um olhar capaz de oferecer um quadro coerente e menos injusto. Vários fatores devem ser levados em conta para nos aproximarmos dessa tarefa: as novas tecnologias, o papel da internet, das revistas literárias e do emergente mercado editorial brasileiro, e mesmo as politiquinhas literárias ou acadêmicas. Esses fatores influenciam, inclusive, em graus diferentes, obras em andamento. x 65x • Continente • Continente MAR 2008 MAR 2008

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Verificamos – e o nosso ponto de vista está como qualquer outro aberto à crítica e ao questionamento – quatro grandes tendências na poesia brasileira neste início de milênio. Uma primeira que seria extensão das experiências de vanguarda, oriunda de grupos como o concretismo e instauração práxis, valorizando o aspecto vanguardista da idéia de invenção. Uma segunda (especialmente forte em Pernambuco), comumente designada de poesia marginal, com forte apelo cênico e performático. Uma terceira que elege como um de seus principais temas o cotidiano, resgatando inclusive formas tradicionais e clássicas de versificar. E uma quarta, a mais recente, que teria tido início nos anos 1980, que denominamos de hermetismo. Na introdução à antologia Na virada do século: poesia de invenção no Brasil (Landy, 2002), o poeta Cláudio Daniel, organizador do livro com Frederico Barbosa, sugere claramente a existência dessa quarta tendência: “Ao longo dos anos 1980 e 1990, a descida de Orfeu aos infernos, que é a reflexão sobre os processos da linguagem, estimulou a releitura de autores “obscuros” ou “herméticos” de uma antitradição, como Lezama Lima, Paul Celan, Francis Ponge e Robert Creeley, numa saga de ampliação do repertório. Do mergulho vertical até o ignorado surgiu uma poemática concisa, elíptica, fragmentária e metafórica que por vezes sobrepõe o som ao sentido, ou antes cria novos sentidos para as palavras da tribo”. A palavra hermetismo designou, desde há muito, o sincretismo esotérico do ocidente, o conjunto de doutrinas de variadas extrações religiosas e místicas, inspiradas numa espécie de conhecimento oculto e representado pelo deus grego hermes, mensageiro dos deuses. Em literatura, passou a designar textos que ocultavam parte de seu significado ou, segundo alguns, aqueles textos difíceis, quase impenetráveis. O significado de hermético como algo radicalmente fechado ou inacessível foi popularizado no século 19, período em que o pensamento racionalista tentava varrer do homem suas superstições e temores cósmicos. Em verdade, uma literatura hermética que fosse inacessível, afastando o leitor de si seria uma contradição sombria, embaçando algo de essencial à literatura: seu pedido de participação, de leitura e recriação. A existência de poetas herméticos na literatura brasileira dos anos 1980 até agora pode ser explicada de várias maneiras. Duas delas nos parecem mais elucidativas: primeiro, confirma a idéia moderna de que a poesia é o domínio da imaginação, a despeito de seus possíveis e circunstanciais engajamentos. E segundo, o hermetismo poético de agora supre o espaço de exaustão de duas tendências até então dominantes – as vanguardas visuais e a poesia marginal – representando mesmo uma reflexão radical sobre os limites expressivos de nossa poesia nacional. Quer dizer que um poeta hermético não é difícil de ser lido? Sim. É um pouco mais difícil do que a poesia a que estamos habituados a ler. Mas essa “dificuldade” é o princípio de um prazer solidário entre o trabalho da escritura (não se en-

Micheliny Verunschk e Cláudio Daniel são importantes representantes do hermetismo contemporâneo. Ao lado, caricatura do poeta Ezra Pound

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ganem: poesia é trabalho) e o trabalho da leitura. Trabalho que poderíamos definir como prazer inquietante, um frenesi de impressões e idéias que nunca se fecham completamente. Na medida em que o poema “dificulta” seu sentido, exige do leitor a construção desse significado apenas sugerido. Cada leitor passa a ser, nesse trabalho de recriação, um duplo do autor, numa espécie de didática labiríntica e sem fim. Um traço reconhecível na maior parte dos poetas que poderiam ser agrupados sob essa rubrica é a presença do sagrado como expressão direta da imaginação criadora. Nesse sentido, a poesia passa a realizar-se como espaço privilegiado de articulação de nosso patrimônio imaginativo, mitológico e simbólico. E como cada poeta cria seu próprio universo literário, promove conseqüentemente diálogo constante com esse legado que ele cataliza e transforma. Apresentando-se como “antena da raça”, nas palavras de Ezra Pound. Assim, poetas como Weydson Barros Leal, Marco Lucchesi, Micheliny Verunschk e o próprio Cláudio Daniel (entre muitos outros que poderiam ser citados) atualizam idéias-chaves de certa modernidade literária, que se estabeleceu como um discurso direcionado mais a fascinar do que a doutrinar; a desnortear pelo poder encantatório da palavra, do que a inculcar ideologias. O hermetismo seria também, por sua vez, uma forma de resistência da imaginação criadora e ancestral que parece reger a poesia, contra as imagens descartáveis e efêmeras do mundo contemporâneo, de certo pós-modernismo conformista. Pode-se, então, falar em imagens memoráveis ou metáforas vívidas e radicais, como se verifica no texto “Dor” de Micheliny Verunschk (“Subindo pelas narinas / a dor, este verme de arame, / rasteja e pinga ovos / foscos / latejantes. // Seqüestra-me, a dor. / Sabe-me, a vadia”); ou no poema “Lição da água” de Cláudio Daniel (“o / mar, (...) // o secreto / pugilato // que sulca / as rochas”), que pode representar, nesse último caso, um diálogo com a educação pela pedra de João Cabral, afirmando um rigor sinuoso, barroquizante e aquático contra a lucidez desértica. A presença do hermetismo na poesia brasileira atual se faz presente através de poetas atuantes e reconhecidos por público e crítica. Saberemos, com o tempo, interpretá-los de forma mais exata. Sem, no entanto, diminuir o grau de dificuldade e prazer que oferecem, pois a grande poesia, como dizia mais uma vez Ezra Pound, é novidade que permanece novidade. Acrescentaríamos: interrogação que permanece interrogando. O leitor, nós mesmos, nosso tempo e a própria poesia. • Fábio Andrade defendeu a tese de doutoramento A transparência possível: lírica e hermetismo na poesia brasileira atual, pela pósgraduação em Letras da UFPE. MAR 2008 • Continente x

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Paixão por Pernambuco e pela raça No centenário de nascimento, o poeta Solano Trindade é relembrado por sua obra e pela luta em prol da cultura pernambucana, particularmente a negra Inaldete Pinheiro de Andrade – Fotos: Luiz Santos MAR 2008 • Continente x

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izem que paixão é um sentimento ardente, que acende todo o sistema corporal de quem a vive: o coração dispara cargas sucessivas de prazer; a pele acalma; os olhos brilham; ri à toa; as pessoas são seguras, elegantes. A paixão pode durar um, dois dias, uma semana, algumas semanas, ano, anos; um dia, porém, o fogo apaga. Se, se apaixona por gente, bicho, lugares, comida, livros, coisas... Com intensidades diferentes. Paixão assim emerge as projeções que alguém faz de objeto apaixonado. Foi projetando Pernambuco aos quatro cantos redondos do mundo que Solano Trindade declarava sua paixão pela terra natal, tintim por tintim, com poesia. Com a poesia, Solano puxou o fio da sua história de vida: Nascimento – “eu nasci/ no início do século (revolução operária)/ nasci no bairro de São José,/ Recife, Pernambuco, Brasil” (do poema Reencarnação) “Rua Direita/ Fundo Águas Verdes” (do poema Canção da minha cidade natal). Filiação – Pai – “meu pai foi sapateiro/ especialista em Luiz XV/ nasceu de branco e africano/ sabia falar em nagô” (do poema Reencarnação) “e foi o menino de ouro do pastoril/ De Ponta de Pedra” (do poema São Bão Jesus dos martírios). Mãe – “a minha mãe/ foi cigarreira e filha de Maria/ da igreja da Penha” (do poema São Bão Jesus dos martírios). Parteira – “foi D. Micaela/ quem me pegou/ e disse que eu era homem” (do poema D. Micaela). Cor – “meu pai era preto/ minha mãe era preta/ todos em casa são pretos” (do poema Reencarnação). Registro geral – “sou negro/ meus avós foram queimados/ pelo sol da África/ minha alma recebeu o batismo dos tambores/ atabaques, gonguês e agogôs.// Contaram-me que meus avós/ vieram de Luanda/ como mercadoria de baixo preço/ plantaram cana pro senhor do engenho novo/ e fundaram o primeiro Maracatu” (do poema Sou Negro). Fortalecido na sua identidade étnica, socioeconômica e territorial, Solano deixa lentamente Pernambuco e instala-se no Rio de Janeiro. A saudade da sua terra não lhe larga e os versos brotam para cada lembrança que vem à tona. Falam dos bairros, das cidades, pessoas e os apelidos; as movimentações culturais, as manifestações dos pescadores, dos operários, das igrejas, dos terreiros, os amores. O Natal com presépio bumba-meu-boi e cheganças; o carnaval, com frevo e maracatu; os pregões dos ambulantes; pau-de-sebo e brincadeiras de roda. Recriação africana única no Recife, o maracatu tornouse inseparável da vida do poeta. Emblema da liberdade do seu povo, o Leão, símbolo daquelas florestas e do carnaval do Recife, fazia baque-virado na sua memória. Não é surpresa que o Maracatu Leão Coroado esteja explícito nos versos de Solano Trindade. Sendo um dos mais antigos – o estandarte registra a data de 1863; sem contar os anos de artimanha no terreiro da senzala – entrou para o carnaval com gosto de fazer história.

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Solano escapou do hospício, porém não escapuliu da prisão quando denunciou que "Tem gente com fome", em Cantares a meu povo E fez. Ficou no imaginário de quem sabe o que é superar a adversidade. Seu Luiz de França, o último descendente da geração que criou o Leão Coroado, sempre dizia: (ouvi muitas vezes!) “o Maracatu Leão Coroado é um patrimônio do carnaval de Pernambuco”. Também foi o patrimônio mnemônico-cultural que sustentou a separação geográfica, protegido na herança histórico-biológica e histórico-cultural da referência pernambucana do poeta. O maracatu não estava só na memória ou nos poemas. Ele era o aporte para o desenrolar de qualquer conversa, enredo, encenação que Solano produzia. De casa para a rua. Em casa, com Margarida, a esposa, ensinavam aos filhos e às filhas. Na rua, fosse no Teatro Popular Brasileiro – criação sua ou nos bares, pontos de encontros, toda gente sabia do que ele falava. Era seu objeto de identificação. Lembro um dia, em Guiné Bissau, em 1931, numa conversa entre brasileiros, estava presente um funcionário da representação do governo brasileiro – perdi seu nome – na nossa mesa. Falei no maracatu do Recife, a autoridade deu uma risada de alegria: “lembrei de Solano Trindade lá no Vermelhinho” e haja a falar sobre Solano, admirador confesso do seu pertencimento à terra distante. A paixão continuou quando ele foi morar em São Paulo, no Embu, transformando-o no Embu das Artes, com fomento de artesanato, pintura, teatro e a criação do maracatu. Os mais antigos na feira, a filha Raquel e o neto Victor, principalmente o mantêm vivo, no Embu das Artes, com maracatu e tudo, tornando-se uma referência para quem quer falar de comida, livros e justiça para todos/as. Quando Francisco Solano Trindade nascia em 1908, morria Joaquim Maria Machado de Assis. Afonso Henrique de Lima Barreto, fazia 17 anos. A interpretação das respectivas épocas os transformou em grandes expressões da literatura brasileira, no seu tempo, Solano Trindade, comprometido até a última gota de sangue com o seu povo e com todos os oprimidos; Machado de Assis conhecido por negar sua origem étnica, “passou bem” naquela sociedade conservadora. Recentemente o livro MaMAR 2008 • Continente x

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chado de Assis afrodescendente, escritos de caramujo, de Eduardo Duarte, revela seu ativismo de gabinete, não expondo a face. Lima Barreto, ao contrário, tanto criticava a sociedade que o gene do alcoolismo abafou sua indignação satírica, parou no hospício. Dado como louco, escreveu duas obras-primas – Diário do hospício e Cemitério dos vivos. Solano escapou do hospício, porém não escapuliu da prisão quando denunciou que “Tem gente com fome”, em Cantares a meu povo. Toda uma vida subvertendo o lugar que lhe foi destinado, o poema foi a gota d’água para fazê-lo calar, como o “freio de ar autoritário: Psiuuuuuuuuu”. A partir daí, o caminho para a prisão foi mais curto. E com este estigma, acrescido aos estigmas de classe e étnico, jamais teria seu nome aprovado para a Casa de Machado de Assis, se alguém ousasse indicá-lo, já que está no nível dos grandes escritores. A guerra cotidiana, porém, produziu uma hipertensão grave deixando o poeta algo nostálgico. Mesmo abatido fisicamente ou por isto, escreveu Reencarnação. “Eu nasci no início do século, no bairro de São José”, no mesmo mês, fevereiro de 1967, anunciava:

“eu não quero envelhecer, eu não quero escravidão, eu quero juventude e liberdade, eu quero maracatucar”; reafirma o seu papel na sociedade”: “nunca vendi o meu pensamento, nem em verso, nem em prosa (...), puxei loas em grande parte do mundo”. É a paixão que não findava: “Baticuns maracatucando na minh’alma de moleque, boneca negra da minha meninice, de ‘negro preto’ de São José, nas águas da Calunga, a Kabinda me inspirando amor, o primeiro cafuné no mato verde, da Campina do Bode (...) Tristes maracatus, em maracatus alegres que se vão distante. Maracatus meus”. Em 1974, 20 de fevereiro, Solano foi resgatado para o panteão dos ancestrais e deixou para nós o estímulo de lutar sempre, contra todas as injustiças. Nos 100 anos do seu nascimento, rever a universidade da arte de Solano Trindade na singularidade da cultura pernambucana é uma ode aos direitos humanos. (Para João Batista Ferreira e José Vicente Lima, que me apresentaram Solano Trindade. Para seu Luiz de França, último Leão Coroado. A benção, Solano Trindade.)

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Um vanguardista da consciência negra

Do bairro de São José no Recife para Embu, em São Paulo, a trajetória de Solano Trindade foi marcada por um ativismo corajoso e precursor Gustavo Lima e Edvaldo Ramos MAR 2008 • Continente x

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ilho de Manoel Abílio e de Emerenciana Quituteira, Francisco Solano Trindade nasceu em 24 de julho de 1908, no bairro de São José do Ribamar, Recife, tendo passado grande parte da infância e juventude entre essa freguesia e a do Pina. Residiu no Pátio do Terço, mesmo reduto de Badia, a qual, quando era indagada sobre Solano, respondia com a autoridade de “Mãe” e com intimidade: – “Chico? Chico morou ali em frente menino.” Como todo jovem pobre de sua época, em Recife, conheceu os tipos populares, os folguedos, e vivenciou no bairro de São José os gloriosos carnavais de rua, onde se concentravam, entre outros, os blocos Batutas, Rebelde Imperial, Bloco das Flores, Inocentes e Madeira do Rosarinho, bem como clubes, troças e maracatus, tais como Pás Douradas, Lenhadores, Vassourinhas, Toureiros, Destemidos de Campo Grande, Pão Duro, A Hora É Essa, Elefante, Leão Coroado, Estrela Brilhante e outros. Seu pai, cujo ofício era sapateiro, tinha por lazer encenar como “Velho de Pastoril”, conhecido como “Menino de Ouro” e dançar bumba-meu-boi, levou-o a conhecer as danças populares. O poeta cantou tudo isso: “Recife/ Rua Direita/ Fundo Águas Verdes/ das mulheres perdidas/ aí eu

nasci// Recife/ charanga fazendo retreta/ festejando minha roupa nova/ no Pátio do Terço embandeirado// Recife/ mamãe fazendo “manguzá”/ papai batendo sola// Recife/ maracatu/ com Rei e Rainha/ mexendo com o corpo/ e alma da gente// Recife/ frevo/ serenata/ melhor carnaval do mundo/ melhor cidade da terra/ melhor cantinho do céu/ pra não perder a saudade”. “O grande condestável do movimento negro no Brasil” foi como o classificou Vicente Lima, amigoirmão, companheiro de lutas contra o racismo, com quem organizou, em março de 1936, o movimento denominado a Frente Negra Pernambucana, visando à “valorização social do negro brasileiro”, ao que o poeta chamava de “Abolição número dois”. Esta a razão pela qual falar sobre as atividades de Solano Trindade, em Recife, passa necessariamente pelo testemunho de quem com ele se irmanou num movimento, pioneiro no Nordeste, estimulados, de certa forma, por idênticos movimentos “dos homens de cor” (expressão usada por eles à época) que surgiram em São Paulo e em Pelotas. Encontraram-se Solano e Vicente Lima, em meados da década de 1930, quando ambos investigavam as atividades do negro brasileiro. O poeta, que também era pintor, estudara no Liceu de Artes e Ofícios.

Em março de 1963, Solano Trindade criou o movimento denominado Frente Negra Pernambucana, visando a valorização social do negro brasileiro 74 x Continente • MAR2008

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Pesquisavam a inclusão social dos negros, seu ingresso nas universidades, no mercado de trabalho e demais setores, e se depararam com a cruel realidade da marginalização de uma grande maioria, decorrente do abominável racismo e preconceito. Na mesma época, chega ao Recife o pintor gaúcho, Miguel Barros, conhecido como “O Mulato”. Este se une ao poeta, ao “cientista social” Vicente Lima, e aos intelectuais Gerson Monteiro de Lima e José Melo de Albuquerque. Os cinco estavam conscientes da existência dos preconceitos. E, quando tomam conhecimento da estatística feita por Solano Trindade, na qual se verificava a ausência quase completa do negro nos cursos superiores das carreiras de prestígio social, fundaram a Frente Negra Pernambucana, coirmã da Frente Negra Pelotense, que consideravam um “movimento de verdade baseado nas nossas raízes”. Solano passou a ser o grande líder do movimento, pondo toda a sua obra poética a serviço deste, como se pode sentir neste poema: “Lá vem o navio negreiro/ Lá vem ele sobre o mar/ Lá vem o navio negreiro/ Vamos minha gente olhar// Lá vem o navio negreiro/ Por água brasiliana/ Lá vem o navio negreiro/ Trazendo carga humana// Lá vem o navio negreiro/ Cheio de melancolia/ Lá vem o navio negreiro/ Cheinho de poesia// Lá vem o navio negreiro/ Com carga de resistência/ Lá vem o navio negreiro/ Cheinho de inteligência”. A Frente Negra Pernambucana, que teve sua primeira reunião na sede do Clube Lenhadores, à época situado na Rua da Glória, logo foi transformada, por seus idealizadores, no Centro de Cultura Afro-Brasileiro, ainda em 1936, com um “manifesto”, transcrito no livro Xangô, de Vicente Lima, nos seguintes termos: “ Sentindo a necessidade de união e de intelectualidade que se possa representar em todas as esferas sociais, o afro-brasileiro, compreendendo o dever de reerguer moralmente a família negra do Brasil, desejando colaborar pelo engrandecimento da Pátria brasileira, apontando a milhares de negros a escola e o civismo, um núcleo de idealistas resolve fundar o Centro de Cultura Afro-Brasileiro. Afastados de qualquer partido político ou credo religioso e aceitando o concurso dos que reconhecerem o altruístico fim a que nos propomos, faremos a unificação dos negros do Brasil. Não faremos lutas de raças contra raças, porém ensinaremos aos nossos irmãos negros que não há raça superior nem inferior e o que nos faz distinguir um dos outros é o desenvolvimento cultural. Certos de que Pernambuco apoiará o nosso empreendimento, porque o Brasil já o apoiou com argumentos irrefutáveis pela voz dos escritores Humberto de Campos, Gilberto Freyre, Costa Rego e Miguel

Barros, convidamos aos pertencentes da raça de Patrocínio, Luiz Gama, Cruz e Souza, Ferreira de Menezes, Paula Nei, André Rebouças, Antônio Boabab, Henrique Dias, Clodoaldo Lopes, Feliciano Gomes e João Marques para formarem ao nosso lado.” Solano Trindade. Secretário-geral Essa convocação evidencia o vanguardismo do poeta na tomada de consciência da negritude, pondo em prática o que o antropólogo Arthur Ramos viria dizer: “ deverá haver uma elite de cor conscientizada das suas origens para dirigir e orientar os seus irmãos de raça”. Em Recife, o poeta se inicia com Deformação, poema no qual extravasa uma repulsa contra as mistificações e desvirtuamento dos chefes de seitas africanas: “Procurei no terreiro/ Os santos d’África/ E não encontrei,/ Só vi santos brancos/ Me admirei...// Que fizeste dos teus santos/ Dos teus santos pretinhos?/ Ao negro perguntei.// Ele me respondeu:/ Meus pretinhos se acabaram./ Agora,/ Ôxum, Yêmanjá, Ogum/ É São Jorge, São João/ E Nossa Senhora da Conceição./ Basta negro !.../ Basta de deformação!” Tal poema levou Nestor de Holanda a confessar seu equívoco em relação a Solano, negando-lhe a veia artística, redimindo-se depois de o identificar como poeta, ao ler a obra Poemas d’uma vida simples, quando então o considera, verdadeiramente, o primeiro poeta negro brasileiro, colocando-o entre os grandes poetas negros das Américas. O quinteto frente-negrino de Pernambuco reunia-se, continuamente, na Leiteria Vitória, na Rua do Imperador Pedro II, no centro de Recife, onde o problema do preconceito era discutido, regado à “papa e café pequeno”, com a participação, inclusive, de outras figuras intelectuais da terra, entre os quais Patrício Saraiva, Luiz Luna, Cleophas de Oliveira, Ruy Duarte, jornalista, Ferreira Lima, Calíope de Carvalho, Tomaz de Santana, Ulisses Mota, Adauto Pontes e o poeta consagrado Nestor de Holanda. O professor Aderbal Jurema, diretor do Ateneu Pernambucano, publicara o livro Insurreições negras no Brasil, verdadeiro libelo contra o racismo, que muito impressionou Solano Trindade. No início dos anos 40, o poeta, de espírito rebelde, livre e solto, com uma imaginação criadora impossível de ser contida e presa nas rimas e métricas de suas poesias, decide deixar Recife, “repelindo todas as injustiças e todas as ingratidões, enojado do preconceito e olhando com desprezo os que nunca acreditaram na vitória de sua inteligência”, conforme observou Vicente Lima, quando em 1944 analisou Poemas d’uma vida simples. MAR 2008 • Continente x

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ESPECIAL Solano despede-se do Recife em 1941, depois do lançamento de suas poesias, numa festa que se chamou A Festa da Inteligência, realizada na Associação dos Empregados do Comércio, que recebeu elogios e críticas e da qual resultou um trabalho, lançado pelo Centro de Cultura Afro-Brasileira, Os poemas negros de Solano Trindade. Este trabalho recebeu elogios do professor Arthur Ramos, que incluiu seu autor como membro da Sociedade Brasileira de Etnologia. O poeta partiu rumo ao sul, numa terceira classe do vapor Itapagé, da companhia que se chamava ITA. Quando o ITA aportou na Bahia, ainda impactado pela saudade de tudo quanto deixara para trás, principalmente mulher e filhos, Margarida, Raquel, Liberto e Godiva, enviou ao amigo o poema em louvação à Bahia: “Bahia que vive em minh’alma/ Que vive em meu sangue/ Criação maravilhosa/ De minha raça/ Bahia cheia de graça/ Onde Castro Alves nasceu/ O teu batuque/ Vive nos meus versos/ O teu sabor no meu paladar/ O teu cheiro me faz sonhar”. Deixa a Bahia, com destino ao Rio de Janeiro. Antes de fixar residência em Duque de Caxias, nesse estado, o poeta teve passagem por Minas Gerais e Rio Grande do Sul, período em que participou de exposições de pinturas, com o gaúcho Miguel Barros, o mulato. Em Pelotas, conviveu com grandes poetas, entre os quais Carlos Santos e Balduíno de Oliveira, que também era agrônomo. Sua permanência ficou registrada num jornal local denominado A Alvorada. Irriquieto e revolucionário, não suportou o conservadorismo da sociedade pelotense, e retornou ao Rio, deixando aos gaúchos o poema em que dizia: “Ó minha Pelotas/ Princesa do sul/ Onde negro com branco/ Não faz misturada.// Adeus menina/ Eu vou embora/ Não sou daqui/ Sou de lá de fora”. De volta ao Rio, o poeta encontra o ambiente propício para desenvolver seu trabalho, unindo-se a uma plêiade de artistas e intelectuais. Fixou residência em Duque de Caxias e passou a trabalhar no Serviço Nacional do Recenseamento, conforme noticia por carta: “Estou trabalhando para o Serviço Nacional do Recenseamento, num trabalho de pesquisa sobre a evolução do negro no Brasil. Só agora começa a dar frutos econômicos o meu desejo de estudar a raça”. E informa ainda: “Deveríamos reiniciar, agora, as atividades do CCAB. Aqui no Rio o problema e os estudos afros estão tomando vulto e nós não podemos ficar na retaguarda. Sei por notícias daí que o professor Roger Bastide está estudando o negro de Recife. Você deve procurá-lo. Foi fundado no México o Instituto Internacional de Estudos Afro-Americanos. São representantes do Brasil Arthur Ramos e Renato de Mendonça”.

Tudo isso mostra como o poeta, apesar de toda uma vida atribulada e desordenada, mantinha-se bem informado e “antenado” com tudo que acontecia. Pelo CCAB, em março de 1944, prestou homenagem ao professor Arthur Ramos, em sessão solene, na qual falaram representantes negros de todos os estados, ocasião em que entregaram ao homenageado uma mensagem dos negros brasileiros para o Instituto Internacional de Estudos Afro-Americanos e trabalhos de autores negros para a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. Nas correspondências em que se refere ao aludido evento, informa que foram colaboradores vários artistas e intelectuais negros, entre eles Aguinaldo Camargo, advogado; Maria de Lourdes Araújo, da Faculdade de Filosofia; Romão da Silva, jornalista; Tibério Wilson, Luiz Santos, Randolfo Miguel Santos, Cassemiro Ramos, Hildebrando da Silva, pintores; Cândido da Silva, Souza Marques, professores; Francisco Boaventura e Oliveira Filho, atores. Contava Vicente Lima que, nos idos de 1944–45, chegou ao Rio de Janeiro, por ocasião de uma convenção negra que se realizou na Associação Brasileira de Imprensa, fazendo-nos o seguinte relato: “Os ânimos estão inflamados, Solano Trindade ainda lidera, mas é grande a oposição, cada um com suas tendências: Aguinaldo Camargo, Abdias do Nascimento (integralista) representam uma tendência política de direita. Solano está na esquerda. Raimundo Souza Dantas, Abigail Moura e Sebastião Rodrigues, neutros e moderados. Rute de Souza, estreante, como outros negros ficou nos meios termos. Advogamos o afastamento de todas as tendências para garantir a unidade de um movimento de maior profundidade, dentro dos objetivos já à nossa vista. O Teatro Experimental do Negro vem nascendo. A revista Temário e Quilombo também, embora sem a minha contribuição. Se bem que respeitados, sentimonos marginalizados no movimento. Sentimos que Solano estava comprometido com as esquerdas e partindo para a fundação de um partido político, o que determinou de nossa parte um artigo com a nossa discordância naquele momento”. Solano Trindade, embora tenha permanecido na militância política, posicionou-se contrário à organização de um partido de negros, consoante entrevista que deu ao Diário Trabalhista, como presidente do CCAB em 1944: “– Não é, de modo algum, um movimento racista e sim uma luta muito humana pela igualdade racial, pelo direito de viver feliz com os homens de outras raças e cores. Temos nós, os negros, vivido, mesmo depois da ‘abolição’ da escravatura, no reboque da política e da cultura dos “brancos”, deturpadores dessa política e dessa cultura. Não há nesta afirmativa nenhuma MAR 2008 • Continente x

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ESPECIAL alusão ao branco no sentido racial, porque inegável é que entre os brancos também encontramos elementos que não deturpam a política e a cultura, fazendo-as para o interesse de todos, das coletividades negras e brancas, para o bem geral do povo brasileiro. Sou contra qualquer espécie de separatismo. Sempre me manifestei contrário à organização de um partido de negros, porque isto seria dividir as forças democráticas e criar uma luta racial. Acho que o negro deve se organizar em grupos culturais, aceitando a colaboração de brancos e mestiços, na construção de uma sociedade mais humana, onde não haja diferenças raciais e outras diferenças”. Esta, portanto, era a visão do poeta, onde se constata sua divergência com Abdias do Nascimento, embora estes dois notáveis e consagrados líderes tenham tido em comum o propósito de combater o racismo, o preconceito e qualquer forma de discriminação, usando como armas a cultura e as artes. Abdias criou o Teatro Experimental do Negro, que teve grande sucesso e repercussão nacional e internacional, enquanto Solano Trindade, que além de poeta foi folclorista, animador cultural, pintor, teatrólogo e ator, enveredou por criar o Teatro Folclórico Brasileiro, com Haroldo Costa, que teve igual repercussão. Depois criou o Teatro Popular Brasileiro, do qual fez parte sua família, a mulher Maria Margarida e sua filha Raquel, tendo realizado viagem pela Europa, com participação em 1955 num Festival da Juventude, que reuniu artistas do mundo todo. Ao final dos anos 1950, Solano Trindade conheceu a cidade de Embu, interior de São Paulo, onde chegou a convite de um escultor, Pedro Assis, e onde passou a promover animação cultural, com seu grupo de artistas, atraindo grande público. Instalou-se, com sua família, em definitivo na cidade, no ano de 1961, vindo a fundar uma feira de artesanato, que atraía multidões. Daí então a cidade se projetou como cidade das artes. Entre 1964 e 1974, ocorreu o último encontro do poeta com o amigo, descrito da seguinte forma: “Solano orienta o Teatro Estudantil do Rio e de São Paulo. Estivemos juntos e nesta ocasião a maré está muito turvada. As prisões se tornam freqüentes, denunciando-se cada vez mais o seu comprometimento, embora sem militância. Neste último encontro, o Condestável está seriamente doente pelas prisões sofridas, maus-tratos e vida desregrada, enquanto a inspiração poética toma dimensões imensuráveis”. Francisco Solano Trindade faleceu em 1974, numa clínica no Rio de Janeiro. Sucumbiu o homem, imortalizouse o poeta, deixando uma magnífica obra poética e uma belíssima família de artistas, comandada pela herdeira de seu talento, sua filha Raquel Trindade, artista plástica, coreógrafa e ialorixá, cujos filho – Vitor, e netos – Manuel 78 x Continente • MAR2008

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e Zinho, todos músicos, (percussionistas e rapper) também dão seqüência à produção artística. Particularmente em Pernambuco, Solano está vivo: no trabalho do advogado Edvaldo Ramos do CCAB que sucedeu à Frente Negra Pernambucana, no trabalho de Lepê do Movimento Negro Unificado que surgiu no fim da década de 1970, no trabalho do psicólogo e mestre em sociologia, Sylvio José B. Rocha Ferreira, do Centro de Cultura e Emancipação da Raça Negra – Cecerne – de 1979, no trabalho da educadora Inaldete Andrade Pinheiro do Instituto Solano Trindade, no trabalho do professor Valteir Silva do Núcleo de Estudos Brasil–África – Neba – da UFPE, no trabalho da procuradora de Justiça Maria Bernadete Martins Figueiroa, do GTRacismo do Ministério Público Estadual, no trabalho de uma plêiade de artistas, músicos, educadores e animadores culturais que vêm resgatando a cultura pernambucana, em suas inúmeras manifestações. Solano Trindade nunca voltou ao Recife. Alcançou os mais altos píncaros da poesia e permaneceu no topo dos ideais que embalaram sua vida. Antes de se fechar a cortina para ele, iniciou uma despedida, ao fim dos anos 1960, quando sua existência sinalizava lhe fugir o controle, brindando-nos com belos e comoventes poemas, tais como: Meu poema dos 61 anos: “Meus 61 anos reumáticos/ De Natal triste/ Nostálgico/ Com pouca vontade de viver/ Embora sem vontade de morrer/ Mas com um desejo de paz/ De amor/ De tolerância/ Com vontade de beber bastante/ Suficiente para que a tristeza/ Não me sufoque”. Ou, ainda, Tudo para uma canção: “Um anseio de amor me enternecendo a alma/ Um canto de ternura me embelezando a vida/ Um coração quase parando como relógio/ de dono descuidado/ Um cheiro de negra me despertando o sexo/ Uma velhice pintando os meus cabelos/ Problemas cavando rugas no meu rosto// Tudo para uma canção que tento escrever/ inutilmente...” E, por fim, Interrogação, último poema escrito por Solano Trindade, em 1969: “Quando pararei de amar com intensidade?/ Quando deixarei de me prender aos seres e coisas?// Quando me livrarei de mim?/ Do que sou, do que quero, do que penso?// Quando deixarei de prantear?// No dia em que eu deixar de ser eu/ No dia em que eu perder a consciência/ Do mundo que idealizei...// Neste dia...// Eu sorrirei sem saber do que sorrio”. (Excertos do artigo Um vanguardista da consciência negra, que poderá ser lido na íntegra no livro em comemoração ao centenário de nascimento de Solano Trindade, a ser publicado em breve). As fotos que ilustram estas matérias são do livro Tradições negras, políticas brancas – previdência social e populações afrobrasileiras, do fotógrafo Luiz Santos, com textos do antropólogo Gabriel O. Alvarez, publicado pelo Ministério da Previdência Social, em 2006. MAR 2008 • Continente x

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O animador de concertos Bom humor e carisma de Marcelo Jaffé chamam a atenção para um personagem ainda pouco conhecido nos palcos da música clássica: o mestre-de-cerimônias Carlos Eduardo Amaral

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á virou marca registrada do Virtuosi um músico cabeludo, sorridente, cujo “boa noite” contagiante e irrecusavelmente respondido em massa vem anunciando as preleções dos concertos principais do festival há dois anos, até à hora em que maestro Rafael Garcia, enfezado com o bate-papo prolongado, começa a gesticular para que ele acabe o “falatório” e os músicos possam entrar em cena. Assim, um violista que por acaso tornou-se comentarista tem derrubado um pouco da frieza, às vezes ártica, imperante entre orquestra e ouvintes, ajudando estes a entender melhor a arte dos sons.

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Integrante do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo, Marcelo Jaffé tem se tornado mais conhecido por ministrar miniaulas informais de História da Música com a empatia de um apresentador de auditório, a ponto de o público não se importar que o início do concerto demore alguns minutos extras ou mesmo puxar conversa: anedotas, curiosidades de bastidores e fatos pitorescos então se juntam às explicações sobre que gênero de composição vai ser tocado, quando a obra foi concebida, de que ela trata e quem a escreveu. Há cerca de quinze anos – quando o vídeo laser, pai do DVD, fazia sucesso – uma das exibições da série Clássicos em Vídeo Laser, em São Paulo, quase ficou comprometida por não haver alguém disponível para falar sobre o vídeo do dia. Os organizadores tentaram trazer três pessoas; Marcelo Jaffé, a quarta, topou e agradou de modo a ser convidado para outros encontros da série. Aí veio outro convite, agora para encarar um Parque do Ibirapuera num concerto de verdade: e apareceu o mestre-de-cerimônias sem-cerimônias. Revogando a premissa, um tanto presunçosa, de que “quem quer saber, corre atrás”, Jaffé tem a rara preocupação de transformar sua cultura musical em canal de diálogo, considerando que diversos instrumentistas e maestros pecam por introspecção excessiva, contato afetado, deficiência de oratória ou, pior, limitam-se a tocar o que está na partitura. Por fora, os programas impressos vão diminuindo, pelo menos aqui no Recife, seja por falta de gente capacitada para escrevê-los, seja por mera contenção de gastos.

Os próprios pares gostam da descontração de Jaffé. Ele conta que um músico finlandês da Sinfônica da Galícia agradeceu-lhe a “aula” depois de apresentação da orquestra galega na capital paulista. Melhor recompensa partiu da Orquestra da Bayer – acompanhou a filarmônica alemã na turnê brasileira em virtude dos comentários do concerto inicial, no Ibirapuera. Com a Filarmônica de Israel, no mesmo parque, as explanações aconteciam antes de cada peça. Na terceira, Zubin Mehta generosamente o surpreendeu ao pedir que tomasse lugar entre as violas na execução. O perfil televisivo de Jaffé – que, de microfone em punho e linguajar espontâneo, desfaz a formalidade de recitais a mega concertos – rendeu-lhe uma atividade extra: dar aulas de História da Música e apreciação a um grupo privado de amigos, na sala de estar da casa de um deles, com a vantagem de mostrar os exemplos em seu instrumento. Na linha dos raros cursos destinados a iniciantes e habitués leigos, as conversas tratam dos períodos históricos e respectivos compositores de relevância, apoiadas em demonstrações de estilo. Se alguém concordar que Marcelo Jaffé poderia ter seu talento comunicativo melhor aproveitado na mídia, escute o programa O prazer da música, na Rádio Cultura FM, transmitido também via internet (vide link adiante). São 60 minutos semanais, com reprise, dedicados a diferentes temas: um intérprete, um período, uma formação instrumental, etc. Só que, no intuito de privilegiar a duração das obras, o apresen-

A empatia com o público levou Marcelo Jaffé a tornar-se mestre-decerimônias de concertos

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MÚSICA tador adota o lema “informar muito falando pouco”, mas sem abandonar o didatismo. Um dos grandes motivos de aborrecimento do público veterano de música clássica, os aplausos inadvertidos entre movimentos, não incomoda o músico. Conforme revela, no Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo todos sempre foram acostumados com as palmas e gostam delas, e não há problema algum quando elas só vêm no fim. Ele acredita não possuir fundamento a desculpa da perda de concentração nos intervalos dos movimentos, porque normalmente as peças são estudadas e ensaiadas. O estímulo aos aplausos seria hábito antigo, pois – segundo Jaffé, que sugere listar os itens de etiqueta nos programas impressos – somente em décadas recentes sobressaiu o costume de se executar as obras completas. Certas orquestras seguem a sugestão. Problema real para elas é o apreço mínimo a obras modernas, contemporâneas e de compositores nacionais, advinda de comodismo coletivo dos músicos ou de incapacidade do regente, o que atrofia o horizonte sonoro do público sem este ter consciência. Outro motivo dessa limitação, entre parênteses, é de ordem econômica – evitar dispêndio com direitos autorais e aluguel ou compra de partituras. Maestros dizem que compositores desconhecidos não atraem pagantes – argumento insustentável, sabendo-se que talvez nenhuma orquestra brasileira tenha público de predileção específica e que um interlocutor, mestre-de-cerimônias ou não, resolveria o caso. Marcelo Jaffé resume: “O público brasileiro é maravilhoso, adora todos os gêneros de música, mas tem pouca oportunidade para ouvir música clássica. Esta falta de familiaridade cria a necessidade de se oferecer explicação em concertos de todos os estilos. Quando se trata de repertório que foge do ‘ouvir tra-

dicional’ (harmonias agradáveis, contraponto simétrico, sonoridades aprazíveis, das obras pré-século 20), esta necessidade se torna mais evidente”. Ele lembra que a reação à música contemporânea sempre se deu, citando a estréia da Eroica (tachada de ‘longa e barulhenta’) e do Quarteto de cordas op. 74 “Harpa” de Beethoven (“disseram que ele estava louco ou achava que ‘o público era de palhaços’”). A utopia de Jaffé, na qual ele colabora entretendo a sala de concerto, e de muitos melômanos é ver a música clássica conquistar mais admiradores e ter verdadeiro peso no mercado fonográfico. “Porém, não existe milagre. A música de concerto tem que estar inserida no cotidiano da sociedade, desde as aulas na rede de ensino, e desenvolver um processo complexo de implantação de uma espinha dorsal, como em qualquer profissão: escolas de formação, de aperfeiçoamento e de profissionalização em todas as cidades. Existem processos semelhantes acontecendo em diversos países, como a Venezuela e a Espanha”. O próximo passo, mais utópico para o violista, seria o de se construir teatros próprios para o repertório clássico em cada cidade e muni-los com orquestras. Enquanto isso, a figura do mestre-de-cerimônias de concertos deixará de ter dois ou três nomes isolados e se transformará em presença obrigatória nos teatros, provando que o universo da música clássica é convidativo e enriquecedor. Que você se acostume, ao se encontrar sentado, ensimesmado sob os sons difusos da afinação dos instrumentos, a ouvir mais vezes um efusivo “Boa noite!”... E flagrar o maestro nos bastidores, tenso, olhando o relógio. Ouça o programa O prazer da música no site: http://www.tvcultura.com.br/radiofm Sábado, das 9h às 10h, com reprise quarta às 21h.

Marcelo Jaffé (D) é Integrante do Quarteto de Cordas da Cidade de São Paulo

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erá que é fácil ser a banda pernambucana da vez? O lançamento recifense do CD Curva de vento foi oficializado com um show badaladíssimo no Teatro de Santa Isabel em janeiro. Entrada franca, o lugar completou a lotação de 700 pessoas e chegou a faltar ingresso para muita gente. Uma façanha se conseguir tamanha atenção para uma banda iniciante de música instrumental. Mais do que isso: o teatro foi tomado por palmas e gritos calorosos do início ao fim da apresentação. Uma das coisas que tornaram impressionante a performance é porque mesmo sendo apenas três no palco, eles conseguem desenvolver sons e timbres

muito variados. A percussão, em especial, é um verdadeiro arsenal que Lucas dos Prazeres vai manipulando habilmente, trocando de instrumentos dentro de uma mesma música várias vezes. O Rivotrill é formado ainda pelos muito competentes Júnior Crato (flauta, sax, etc.) e Rafa Duarte (baixo), além do já citado Lucas. Confesso que ao ouvir as gravações, cerca de uma semana depois de testemunhar essa apresentação, senti inicialmente um desnível, como se a vitalidade da banda fosse maior ao vivo. Aos poucos, no entanto, o disco foi sendo assimilado e minha audição começou a encontrar seus significados mais íntimos.

Rivotrill: sem contra-indicação

Banda pernambucana de música instrumental lança primeiro CD: Curva de vento Germano Rabello

A banda Rivotrill lançou seu disco no Teatro de Santa Isabel

Fotos: Divulgação

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MÚSICA A começar pelo sax envolvente de A casa, com participação especial do percussionista Naná Vasconcelos. O ritmo não é o forte dessa música – a percussão aqui tem o papel de sugerir climas com diferentes timbres. É talvez a mais linear deste trabalho em que a não-linearidade impera. Uma vez que você entrou no clima, surge a Chuva verde com seu impacto sinestésico e suas variações de intensidade. Uma flauta melodiosa que pode remeter tanto a ternos de pífano e caboclinhos como a sonoridades orientais. Tudo muito bem encaixado, uma tour-de-force que termina deixando os meninos quase sem fôlego. A programação eletrônica do convidado Yuri Queiroga na vinheta “Pirangueiro” vai emendando com a carnavalesca A la ursa, que começa agitadíssima para então entrar um andamento mais suave, que soa como outra composição – o que, aliás, é recorrente neste disco. As melodias e ritmos estão lá por um momento e em seguida são desconstruídos, podendo ser depois retomados, de modo nada previsível.

Lucas dos Prazeres, Júnior Crato e Rafa Duarte

Essa extraordinária liberdade lembra trabalhos seminais de música instrumental, tanto referências brasileiras como o Quarteto Novo, como as influências jazzísticas e clássicas, e até de alas mais sofisticadas do rock. O som progressivo do Jethro Tull é influência declarada de Júnior Crato, especialmente no modo Ian Anderson de tocar a flauta (inclusive o Rivotrill tem no repertório de show uma música deles). Frevo, coco, sons africanos, está tudo lá também. Mas nem sempre as referências estão bem encaixadas. Cangote começa bem ritmada, enquanto a flauta executa floreios sinuosos, sensuais, atmosfera que é quebrada com a entrada súbita do sax, trazendo a presença mais jazzística do maestro Spok. Depois muda-se novamente a face da composição, quando lhe adicionam teclados. É uma música que se ressente da falta de unidade: os temas são bons, mas a ligação entre eles é um tanto forçada. A sexta faixa, Groove tube, surge em ritmo de embolada e fica mais interessante na segunda parte, em que surgem tantos ruídos e vozes que o ouvido não consegue registrar bem o que está acontecendo, confusão que é de fato estimulante e agradável, ordem de linhas tortas dentro do caos sonoro. A música eventualmente passa a um ritmo de xaxado, depois volta à embolada... aqui também a participação de Naná Vasconcelos. Em seguida, a faixa-título: flauta vai conduzindo um tema e a percussão vai experimentando ritmos diferentes. Um dos temas principais lembrando inclusive o clássico riff de Smoke on the water, do Deep Purple. A banda declaradamente elabora idéias narrativas para sua música. Esta, por exemplo, pretende recriar sonoramente o impacto de um tufão e suas conseqüências, assim como a segunda faixa remetia a uma chuva no sertão. O álbum prossegue com Charo cubano. Aqui a música ganha colorações caribenhas, um pouco de overdub, um pouco de uníssono e o auxílio do trompete com Fabinho Costa, dialogando com o baixo de Rafa. Já em Espinho de mandacaru,

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Apesar de ser formada por apenas três integrantes, a banda consegue desenvolver sons e timbres muito variados

o regional dá o tom, prenunciado pela voz da cantora paulistana Renata Rosa. O fraseado inicial é um tanto previsível, um baião marcadamente nordestino, que tem um núcleo mais calmo e fluido, delicioso em sua suavidade. A décima e última faixa, A floresta e o duende, é mais um exemplo das mutações sonoras que transformam este trabalho em experiência única e corajosa. Começa com sons da natureza, dos quais vai emergindo aos poucos o acompanhamento instrumental. Traz possivelmente as melhores melodias do disco. Em seguida, a música é invadida por vozes que abrem caminho para um excelente groove de baixo. Os ruídos de ambiência lembram um detalhe interessante associado ao álbum: a busca por timbres ideais captando o som nos diferentes ambientes de uma casa, com microfones espalhados por todo canto. É engraçado o encarte detalhar as partes da casa onde foram gravados os instrumentos, algo do tipo “Baixo (área de serviço)”, “Muringa (embaixo da escada)”, “Djembê (caixa d’água)”.

As gravações foram iniciadas em março de 2007, durante os dez dias na casa de um amigo da banda, no Recife. Alguns detalhes gravados numa casa na Ilha de Itamaracá. Outras partes, no entanto, gravaram-se em estúdios convencionais. Feita a mixagem e ajustados os detalhes, o disco ficou pronto somente em dezembro do ano passado, bem a tempo de ser prensado em janeiro para o show de lançamento. Para seus dois anos e meio de existência, o Rivotrill já teve grandes momentos e já conseguiu materializar seu som em disco. Eles são bem novos e a tendência é evoluir como músicos, o que deixa a gente cada vez mais confiante no sucesso da banda. Estão trilhando caminho árduo, da música instrumental. Mas, além de agradar um público específico desse tipo de música, o som do Rivotrill tem a competência e a abertura necessária para atrair as mais variadas tribos. Agora, fica a pergunta: o que o futuro reserva a esses meninos? Aonde mais eles vão conseguir chegar? Cada vez mais longe, é o que sinceramente espero. Por ora, deixa a coisa acontecer, que já está acontecendo e tá bonito... Curva de vento Rivotrill Independente 15,00 reais (CD + camisa)

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MÚSICA

Como nasceu a ópera

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a movimentada Florença quinhentista, sob o comando dos Médicis, surgiram muitos grupos não acadêmicos de discussão filosófica, artística e científica. Em um deles – a Camerata Florentina, mantida pelo mecenas Giovanni de’Bardi – a música era o tema central. A Camerata foi um dos principais focos de contestação à prática da música coral polifônica da época (cantada por várias vozes distintas, tratadas igualmente, e sem, ou quase sem, acompanhamento instrumental). Instigados pela correspondência com o helenista residente em Roma Girolamo Mei, Bardi e Vin-

cenzo Galilei (pai de Galileu) lançaram as bases de uma nova prática de canto. Priorizando a poesia e os solos vocais apoiados por acompanhamento orquestral, a monodia se aliou a uma reconstituição dos dramas gregos que foi chamada de ópera e se alastrou pelos teatros europeus, A invenção da ópera ou a história de um mais tarde mundiais, engano florentino desde fevereiro de 1597. Sergio Casoy O porquê de essa reAlgol 140 páginas construção ter sido um 37,50 reais engano descoberto a posteriori é contado por Sergio Casoy no recheio de A invenção da ópera, seguido da transição dela dos ambientes aristocráticos aos palcos populares. Até chegar aí, o leitor testemunha uma aula de Casoy sobre o papel de cada elemento do gênero musical-dramático – cenografia, coro, orquestra, maestro, balé e cantores. (Carlos Eduardo Amaral)

> CD homenageia os nacionalistas

> Um lugar central para o violino

> Oboé nacional, de norte a sul do país

> Composições para harmônica

O nono CD do premiado Quarteto de Brasília homenageia dois dos principais compositores nacionalistas do século passado: o português naturalizado brasileiro José Guerra Vicente , cujo filho Antonio é o cello do grupo, e o octogenário paulista Osvaldo Lacerda, discípulo de Camargo Guarnieri. Tanto o Quarteto n° 1 de Lacerda quanto o Quarteto Popular de Guerra Vicente valem-se de formas da música folclórica e popular, mas sem apelar a citações; ambos são construídos sobre temas originais dos compositores. Por isso, mencionando as influências mais diretas, o quarteto lacerdiano remete à toada paulista e ao choro em seu primeiro movimento, enquanto a seresta e a embolada são sentidas nos dois últimos em Guerra Vicente. (CEA)

Guerra-Peixe (1914-1993), que tinha o violino como instrumento “de berço”, deixou duas das melhores sonatas brasileiras para o instrumento. Em que pese espaço de 27 anos entre elas, ambas apresentam semelhante equilíbrio de papéis entre o solista e o piano acompanhador e se apóiam em gêneros populares, nordestinos em particular. Os comentários do mineiro Ernani Aguiar, aluno de Guerra-Peixe, traçam o perfil das peças e evocam o lugar central do violino na produção musical do professor, que inclui um concertino em estilo armorial. O CD também traz, a título de interessante exercício de herança estética, as Melorritmias n° 4 para violino solo e o Duo para violino e violoncelo de Aguiar. (CEA)

Destaque de matéria da Continente em outubro, o oboísta Isaac Duarte e sua esposa, a pianista Mônica Kato Duarte, gravaram em 2001, na Suíça, algumas das poucas peças nacionais existentes para oboé e piano, que abrangem da Sonatina do paraibano José Siqueira, compositor inconfundível pelo uso de escalas modais nordestinas reelaboradas, à engenhosamente atonal Sonata T. 14, do gaúcho Breno Blauth, médico de ofício. De Osvaldo Lacerda, o duo toca Aboio, Canto lírico, Toada e variações sobre “carneirinho, carneirão”. Isaac homenageia ainda seu professor Wascily Simões ao executar arranjos de quatro canções do potiguar: Amoroso, Tal pai, tal filho, Shirley e o divertido Joneco no choro, com arranjo de Clóvis Pereira. (CEA)

Tradicional no blues e comum na música popular em geral, a gaita foi muito pouco experimentada na música clássica, mesmo no século 20, que testemunhou a presença de vários instrumentos não sinfônicos como solistas de concerto. No entanto, três grandes compositores brasileiros escreveram obras para harmônica e orquestra, que foram reunidas por José Staneck e executadas em redução orquestral para piano: o Concerto, de Villa-Lobos; Quatro coisas, de GuerraPeixe; e o Concertino, de Gnatalli. Completa o CD o breve e inédito Prelúdio para gaita e piano, de Nivaldo Ornelas, composta para Staneck. Revezam-se no acompanhamento as pianistas Sheila Zagury, Laís Figueiró (in memoriam) e Aleida Schweitzer. (CEA)

Nacionalistas Quarteto de Brasília Estúdio GLB 25,00 reais guerrent@terra.com.br

Guerra-Peixe | Aguiar Estúdio GLB guerrent@terra.com.br 25,00 reais

Palheta brasileira – Duoarte MDS Records du_o_arte@hotmail.com 25,00 reais

A poética de uma harmônica brasileira José Staneck ABM Digital 22,00 reais

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A cara já diz tudo

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uando se fala em samba de breque, ou sincopado, aquele com “paradinhas” e comentários matreiros ad libitum no meio da letra, lembramos logo do falecido carioca Moreira da Silva. Já em São Paulo – ainda atuante, aos 52 anos de carreira –, Germano Mathias perpetua a tradição da malandragem no sincopado em seu primeiro DVD, “Ginga no asfalto”, onde reúne 14 músicas gravadas ao vivo (porém sem público) em duas quadras de samba da capital paulista. No meio dos músicos, está o companheiro de longa data Osvaldinho da Cuíca, ex-Demônios

da Garoa. O Catedrático Ginga no asfalto do samba, como foi chaGermano Mathias mado no primeiro docuLua Music 40,00 reais mentário sobre ele, em 2000, tira do bolso sua tampa de lata de graxa de sapato para fazer graça nos 50 minutos do show. Os diretores André Rosa e Guilherme Vergueiro elaboraram “Ginga no asfalto” dentro da mesma proposta do documentário que produziram sobre Jamelão: o entrevistado escolhe o que vai falar, as locações e o repertório; nada de opinião de amigos e outros músicos, porém o resultado fica longe do narcisismo. A idéia foi criar um memorial informal intercalando as músicas, o qual acaba descontraindo pela leveza da conversa, embora Germano não tenha perfil de humorista. Você na verdade termina rindo dos esgares dele; quem vê a capa do DVD, é quase induzido a isso. (CEA)

> Com o referendo > O compositor do mestre B. B. King Altamiro Carrilho

> Duo de cordas soteropolitanas

> Cultura popular em trabalho solo

A discografia do gaitista Flávio Guimarães, cinco álbuns solo e dez com o grupo Blues Etílico, rendeu-lhe dois convites pessoais de B. B. King para abrir os shows do guitarrista americano no Brasil em 1999 e 2004. Em seu primeiro CD ao vivo, o bluesman carioca conta com a participação especial do também gaitista Peter Madcat (em Madcat’s grove) e de Charlie Musselwhite (Darkest hour), a quem já acompanhou em turnê brasileira. Mesmo que essas duas faixas tenham sido gravadas em estúdio, mantêm o clima das demais, captadas em teatro lotado. Flávio promete em breve um CD voltado para a música brasileira, cujo hall de parceiros passa por Ed Motta, Zélia Duncan e Rita Lee. (CEA)

O violonista Amadeu Alves e o bandolinista Fabrício Rios são músicos de carreira solo e longa trajetória em Salvador. A dupla desenvolveu um estilo próprio – interpretando samba, choro ou gêneros nordestinos – com um toque caribenho-baiano. Amadeu e Fabrício fazem apresentações que envolvem teatro e dança e têm participado de festivais no Brasil e no exterior. Entre estes, o renomado Ferrara Festival Buskers, na Itália, aonde levaram o show “De Itapuã para o mundo”, registrado neste álbum. Com sintonia e molejo constantes, o duo de cordas, ao lado da percussão, dá uma roupagem nova e energizada a suas músicas, onde a confluência de ritmos acontece de forma natural, como em Primavere-se e Portal da luz. (CEA)

Ninguém melhor do que Paulo Caldas (O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas), cineasta de raiz, para filmar o espetáculo Samba no canavial. Não faltou sensibilidade ao diretor para captar a expressão corporal do multiartista Pedro Salustiano, filho de Mestre Salustiano. Por ângulos mais intimistas, Caldas alcança os músculos e as veias dilatadas de Pedrinho, em sincronia perfeita com as músicas. O resultado é música corporal, mérito do diretor de coreografia Arnaldo Siqueira. A beleza do cenário recheia a apresentação solo do intérprete, que canta, toca, e, principalmente, dança. O DVD foi gravado no Teatro de Santa Isabel. Nos extras, depoimentos de Ariano Suassuna, Leda Alves e Mestre Salustiano. (Thiago Lins)

Reprodução

Vivo Flávio Guimarães Delira Música 24,00 reais

Ofuscado pela trajetória consagrada de intérprete, o Altamiro Carrilho compositor permanecia quase desconhecido de seus fãs, acumulando partituras na gaveta desde a década de 1940. A fim de corrigir esse lapso, o grupo Ó do Borogodó selecionou 14 composições para o primeiro CD dedicado à faceta criadora do flautista – não só choros (vide Esquerdinha na gafieira e Atraente), mas também valsas, sambas e baiões. A roda de músicos é formada pelos quatro integrantes do conjunto, que recebeu de presente uma caricatura de Paulo Caruso no encarte, mais seis convidados, como o clarinetista Stanley Carvalho e o violonista João Macaco. O próprio Altamiro dá uma canja em Não resta a menor dúvida. (CEA) Grupo Ó do Borogodó interpreta Altamiro Carrilho Lua Music 23,00 reais

De Itapuã para o mundo Amadeu Alves + Fabrício Rios Prod. independente

Samba no canavial Pedro Salustiano Independente 15,00 reais

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DEBATE

Culturas que não dialogam tendem a se petrificar, envelhecer ou morrer, encerradas em seu próprio orgulho e verdades inabaláveis

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palavra Multicultural ajuntada a uma outra – Continente – forma o nome composto desta revista que o leitor tem em mãos. Nome que traduz não somente a multiplicidade dos signos culturais que formam a nossa contemporaneidade, mas também o mosaico cultural da cidade que lhe viu nascer: Recife. Multicultural também é a palavra evocada pela prefeitura da nossa cidade para definir o que os amantes de Dionísio encontrarão no seu Carnaval Multicultural. Palavra recém-descoberta, a Multiculturalidade vem sendo utilizada nos diversos eventos que buscam revelar a diversidade cultural de Pernambuco. Apesar de traduzir uma verdade substantiva – Pernambuco, assim como de resto quase todo o Brasil, é uma sociedade multicultural, um verdadeiro mosaico de ma-

Anco Márcio Tenório Vieira nifestações culturais, indo do erudito ao popular, passando pelo pop e pela produção da cultura de massa –, noto que seu uso não verticaliza o complexo sociocultural que foi e continua sendo o nosso processo civilizatório. Apesar do termo Multicultural traduzir uma verdade, essa tradução se dá por subtração. Uma realidade complexa, como a nossa, requer conceito semanticamente mais preciso, como o de interculturalismo; pois uma sociedade pode ser multicultural, a exemplo de Israel, onde convivem judeus, árabes, palestinos, muçulmanos, católicos e ortodoxos, sem que isso pressuponha que seus sujeitos culturais se disponham a instituírem um diálogo, a trocarem experiências de vida e de cultura. Realidade que também acusamos hoje em quase todos os países da Europa Ocidental, como a Fran-

ça, que convive com imigrantes dos mais diversos credos e etnias, que lá se estabeleceram desde os anos 1970, mas que, tanto do lado francês quanto dos imigrantes, há uma barreira que impede as interpenetrações culturais. Ora, quem enuncia Interculturalismo diz entrecruzamentos de culturas, de idéias, de gerações e de tempos. Mais: trabalha com a permanente diluição de pureza cultural, de um centro ou de matrizes culturais imaculadas. Coexistência de tempos, gerações e também de culturas que se interpenetram em processo dialético e contínuo. Se as sociedades interculturais são antenas abertas aos signos do seu tempo presente, elas também mantêm diálogos constantes com o passado e com as matrizes que fundamentam o mosaico da sua multiculturalidade. É esse entrecruzamento

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que oxigena as manifestações culturais da contemporaneidade e, de certa maneira, delineia o futuro. Já quem enuncia Multiculturalismo constata apenas o mosaico de etnias e culturas diversas convivendo (em conflito ou não). Cristãos e budistas podem conviver séculos em um mesmo espaço geográfico, sem que abram mãos das suas posições de alteridades religiosa ou cultural. A crença e a defesa das suas purezas religiosas e culturais impedem a maculação das suas verdades. Sociedades interculturais, a exemplo da brasileira, lidam de maneira diversa com conceitos como tempo e memória. O tempo é o instrumento que mede não apenas a passagem dos anos, mas também a permanência, a transformação ou a morte de certos valores socioeconômico – culturais. A memória, no caso, surge como o instrumento vivo que opera sobre o que deve ser resgatado, transformado ou descartado para todo sempre. É nesse entrecruzamento entre o tempo

e a memória que vai se dar as “interpenetrações” (palavra tão cara a Gilberto Freyre, que o diga Jomard Muniz de Britto). Interpenetrações de raças, culturas, modos de ser e de pensar dos povos que formaram e continuam a formar uma dada sociedade ou nação, de povos que negociam permanentemente suas alteridades. No entanto, interpenetrações de culturas não pressupõem a passividade dos seus sujeitos culturais. Pelo contrário. Sabemos, por exemplo, que o nosso processo civilizatório teve na dialética da violência a base da sua urdidura. Mas também sabemos que nenhuma sociedade se constitui em cima de uma base escravagista e de monocultura econômica sem “negociações” implícitas ou explícitas. E foram essas “negociações” que permitiram a existência da multiculturalidade no Brasil e, por sua vez, o permanente processo intercultural dessas matrizes étnicas, religiosas e culturais. Processo que redimensionou e dilatou os valores e as verdades das matrizes religiosas, gastronômicas,

musicais, lingüísticas... que desenham o Brasil. Culturas que não dialogam tendem a se petrificar, envelhecer ou morrer. Numa época de tantas idéias puristas, idéias que seduzem as mentes mais autoritárias, conviver numa sociedade que vive, apesar das diferenças sociais e culturais dos seus agentes, um contínuo processo intercultural, é um porto seguro para os que acreditam ainda nos homens, na vida e no futuro. Acreditar que não existe um centro cultural, uma região que encerre uma verdade cultural incorruptível, é cultivar e defender o multiculturalismo como um patrimônio. Porém, mais do que o multiculturalismo, o mais importante é a defesa e o cultivo do interculturalismo. Só o interculturalismo nos salva das idéias autoritárias, do ideal de pureza racial ou cultural, das verdades ideológicas e artísticas absolutas. Só o interculturalismo poderá esmaecer as intolerâncias e a busca idealizada de uma arte pura, oxigenando as sociedades que se engessam no monoculturalismo.

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Gabriela Lobo

PERFIL

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O apóstolo do frevo Mesmo aposentado, o radialista Hugo Martins produz e apresenta o programa radiofônico O tema é frevo, criado há 40 anos na Rádio Universitária Bruno Brito

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nhou a época de ouro do rádio. Viu o nascimento da televisão em um Brasil sem transmissão em rede e também participou do fortalecimento do teatro pernambucano. Se o frevo fosse a matéria principal da doutrina carnavalesca, ele certamente mereceria receber o papel de principal e mais abnegado apóstolo. Desde 1967, Hugo faz da difusão do gênero musical uma missão religiosa com a realização do programa O tema é frevo nas tardes de sábado e domingo (das 16h às 17h) na Rádio Universitária FM 99,9. Em pleno 2008, a produção, patrocinada pela Prefeitura do Recife, continua sendo a única a tocar as composições do gênero durante todo o ano e não apenas no período carnavalesco como ocorre nas emissoras de rádio comerciais. “O frevo é música popular brasileira e deve tocar nas rádios o ano inteiro, como os outros gêneros”, justifica Hugo. Inicialmente, o programa foi veiculado na Rádio Universitária AM, onde recebeu o nome de batismo do pesquisador de música popular brasileira, Renato Phaelante. A estréia ocorreu em 10 de outubro de 1967. “No primeiro programa, comentei o lançamento do álbum Carnavais do velho Recife produzido pela Fábrica de Discos Rozenblit”, lembra.

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m homem tímido com voz serena é a primeira impressão passada pelo compositor, radialista e sonoplasta Hugo Martins, 70 anos. O quepe, usado com freqüência, poderia passar a imagem de boêmio seresteiro, um sambista inveterado. Aparências, como todos sabem, podem enganar e, nesse caso, o ditado popular faz todo sentido. O som que embala há 40 anos a vida deste paraibano radicado no Recife é o frevo, música contagiante nada tímida ou tranqüila. O ritmo atua como trilha constante no trabalho do radialista e compositor e se faz presente até nos mínimos detalhes. É a introdução de Vassourinhas que anuncia as chamadas recebidas no celular dele. A sonoplastia é a única atividade capaz de tirá-lo do mundo do frevo. Por ela, Hugo deixa o Recife em direção à cidade de Brejo da Madre de Deus e só volta após oito dias. O tempo longe do lar, porém, não é prova de infidelidade. Responsável pela direção de som da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, Hugo tem que acompanhar as oito encenações do espetáculo teatral. E já são mais de 30 anos nessa função. Os números não deixam dúvida. Hugo é um documento vivo da história da música, do radialismo e da sonoplastia em Pernambuco. Testemu-

Fachada da fábric

a de discos Rozenb

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PERFIL Nem mesmo a aposentadoria em 2007 foi capaz de tirar o radialista da ativa e a produção do ar. De segunda a sexta-feira, ele chega bem-disposto por volta do meiodia ao segundo andar do prédio da Rádio Universitária FM, onde ainda apresenta os programas Música do cinema, Evocações, Valores nordestinos e Carnaval brasileiro (este último na rádio AM). “Só me aposentei por causa da idade. Eu gosto muito do que faço e da profissão de radialista”. O programa O tema é frevo é gravado nas tardes de quarta e quinta-feira em sessões de 20 minutos. Com uma lista de frevos nas mãos, Hugo informa a autoria, ano de lançamento e detalhes de cada música com a maior desenvoltura. A locução é gravada digitalmente. Na edição

de sábado, Hugo atende as cartas de seletos ouvintes. No domingo, seleções temáticas e históricas são as atrações, como frevos só com nomes de animais ou retirados do repertório das bandas de música militares e civis do estado. Hugo também entrevista novos músicos e compositores e aproveita para exibir os depoimentos históricos que já colheu, como o de Capiba (1904–1997) sobre seu primeiro frevo Agüenta o rojão, de 1933. O entusiasmo em documentar a história do frevo gerou mais dois projetos nas décadas subseqüentes à criação do programa. Um deles foi a gravação de uma série de dez discos homônimos da produção radiofônica, cujo repertório foi gravado pela Banda da Polícia Militar de Pernambuco. “Nessa série, algumas composições foram registradas pela primeira vez, como Frevo nº 6 de Alberto

Carvalho”. A outra façanha do radialista foi a criação em 1986 do Centro da Música Carnavalesca de Pernambuco (Cemcap) e do Museu do Frevo Levino Ferreira, ambos situados na cela 302 do Raio Oeste, no 2º andar da Casa da Cultura. Mantidos com patrocínio da Prefeitura do Recife, o centro e o museu guardam vinis, discos de 78 rotações, fitas de rolo, fitas cassete, CDs, livros e partituras. Filho único do casal Bionor Henrique da Silva e Alzira Martins, Hugo nasceu em 2 de julho de 1937 em Rio Tinto, cidade do litoral norte da Paraíba, a 53 quilômetros de João Pessoa. Da infância em Rio Tinto, o radialista não se lembra de muita coisa. “Meu pai era agricultor e morreu quando eu era muito menino. Não havia rádio lá. Só existia a Companhia de Tecidos de Rio Tinto, onde minha mãe trabalhava”. O Recife só entrou definitivamente na vida de Hugo em 1948, quando a mãe foi trabalhar na Tecelagem de Seda e Algodão de Pernambuco (TSAP). A atenção do garoto passou a se dividir entre as atividades escolares e os programas das rádios Jornal do Commercio e PRA-8 (Rádio Clube de Pernambuco). “Era fã de Aldemar Paiva. Ele apresentava Pernambuco, você é meu, que tocava frevos e era meu programa preferido na PRA-8”. Na mesma emissora, Hugo deu os primeiros passos como operador de som no horário noturno em 1955. “Visitei o estúdio da rádio e, na ocasião, falei com o operador, Hermes de Melo, que me ensinou o ofício. Nem existia fita de rolo. Tudo era gravado em disco de acetato”, relembra. Com a inauguração da Rádio Continental em 1958, Hugo resolveu ampliar os horizontes e foi trabalhar como sonoplasta e radioator na nova emissora. “Nessa época, não existia o nome sonoplasta. Quem produzia efeitos sonoros era chamado de contra-regra. Simulávamos os beijos nas radionovelas com um efeito simples. Bastava um beijo na mão”. Por ter sido um dos fundadores do Sindicato dos Radialistas, foi demitido da rádio. Por sorte, era o ano da inauguração da TV Rádio Jornal do Commercio. O amigo Jader Bastos descolou uma vaga na equipe de sonoplastia da TV. Não existia a transmissão de programas em cadeia nacional em 1960. Tudo era produzido localmente e Hugo foi testemunha ocular dessa fase da TV pernambucana. “Participei da produção dos programas de auditório Você faz o show e Noite de black-tie e atuei como ator na série de sátiras Tem história nessa história. Interpretei o papel do compositor clássico Wolfgang Amadeus Mozart”. A adesão a uma greve em 1963 pôs fim na carreira de

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Fotos: Reprodução

ator. No mesmo ano, recebe do professor e músico Jarbas Maciel o convite para trabalhar como assistente de direção na Rádio Universitária AM. Na nova emissora, Hugo integrou a equipe de produção do programa Campanha de alfabetização com o método do professor Paulo Freire. “Paulo Freire comparecia a cerimônias de formatura e se emocionava quando os alunos idosos choravam de alegria por saber escrever o nome. Isso eu vi, ninguém me disse”, atesta. A profissão de sonoplasta continuou lhe proporcionando boas visões. Em 1970, Hugo foi convocado pelo diretor de teatro José Pimentel para o posto de sonoplasta do espetáculo teatral Paixão de Cristo de Nova Jerusalém. “Em três meses, pesquisei músicas que poderiam descrever os tempos de Cristo. Dois anos depois, revisei essa trilha e decidimos que o espetáculo seria dublado”. A parceria com Pimentel seria repetida em diversas peças encenadas ao ar livre em Pernambuco como Calígula, O calvário de Frei Caneca e Batalha dos Guararapes. Nessa área, a referência dele é o compositor Miklos Rozsa, responsável pela trilha sonora dos filmes épicos Ben-Hur (1959) e Rei dos Reis (1961). “Acredito que o

Em sentido horário: Hugo Martins apresentando programa de TV sobre discos na década de 1970; Na TV Universitária fazendo papel de rei e no programa Tem história nessa história, 1962

sonoplasta deve ter muita bagagem musical. Não precisa saber tocar um instrumento, mas é preciso ter repertório para poder escolher a música adequada para determinada interpretação ou cena”, sentencia. De tanto ouvir e pesquisar, Hugo também passou a compor frevos, inspirado em compositores clássicos como Antônio Vivaldi e Nicolay Rimsky-Korsakov e no repertório das tradicionais bandas de música militares e civis do estado. Como não sabe tocar um instrumento, Hugo solfejava a melodia para o amigo e maestro Correia de Castro que fazia os arranjos. Cabelos prateados, Frevo das mil e uma noites, Frevo bolero, Vivaldiando, Saudade de Rio Tinto são alguns de seus frevos-de-rua, todos marcados por solos de flautim. Sua produção também abrange frevos de bloco e canção, como Para não chorar, A praça é do povo e Frevo histórico. Como parte de seu trabalho como sonoplasta na Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, Hugo compôs uma fantasia sacra, intitulada Os caminhos da paixão. A música foi gravada pelas Edições Paulinas em 1982 com membros da Orquestra Sinfônica de São Paulo com regência do maestro Waldomiro Lemke. MAR 2008 • Continente x

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HISTÓRIA

Num episódio histórico pouco conhecido, centenas de portugueses brancos, homens e mulheres, foram vendidos como escravos no Brasil, entre 1841 e 1842, em substituição ao tráfico africano, combatido pela Inglaterra Duda Guennes, de Lisboa

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Escravidão de portugueses brancos

m 1807, uma lei do Parlamento inglês (Bill Aberdeen) declarava ilegal o tráfico de escravos africanos e determinava que seus infratores fossem julgados pelos tribunais da marinha inglesa. Portugal, que explorava a escravatura negra africana desde o século 15, procurou contornar as exigências britânicas e continuou na sua prática. Em 1815, Portugal, pressionado mais ainda pela Inglaterra, determinou a abolição do tráfego negreiro no império. Mas não foi para valer, foi tudo a fingir, nascendo daí a expressão “para inglês ver”. O tráfico só acabou mesmo em 1852, depois de os ingleses terem capturado e afundado, de 1845 até 1852, 105 navios nas costas brasileiras. A lei não era só “para inglês ver”, viu-se. Em 19 de setembro de 1761 D. José publicava um alvará, renovado por outro de 16 de janeiro de 1775,

proibindo a importação de pretos para Portugal, “pois faziam falta para o trabalho nas províncias ultramarinas, e vindo ocupar os lugares dos moços de servir, os deixava, sem emprego, entregues à ociosidade e nos princípios do vício”. Com a morte de D. José e a subida ao trono de D. Maria, a Louca, a medida foi esquecida. Com a transferência da corte para o Brasil, Portugal continental ficou à deriva e foi um salve-se quem puder. A instabilidade política no país, onde a força mais estável continuava a ser a dos proprietários de terras, fez com que o tráfico negreiro recrudescesse. Com o retorno de D. João VI tentou-se dar uma certa ordem nesse comércio. Em 1836 foi apresentado nas cortes um projeto que pretendia instituir a liberdade do ventre, estipulando que os

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Imagens: Reprodução

lada Continua Portugal a ser a África do Brasil, que pela sua importância histórica bem merece ser transcrita. É o que eu vou fazer: “Publica o Diário do Governo uma carta de Pernambuco, dirigida por Manuel José Coelho de Freitas ao exmo governador civil de Angra, em que relata a miserável escravidão, que naquelas terras vão encontrar os que, fiando em promessas de bandoleiros, Com o fim do tráfico africano, a economia portuguesa entrou em colapso deixam as pobrezas do seu ninho, pelas pobrezas ainda maiores de terras inóspitas do outro filhos de escravas que viessem a nascer depois da sua hemisfério. publicação não ficariam livres, mas sim libertos e obriEm dezembro de 1841 aportara naquela província gados a servir gratuitamente os seus senhores até aos 20 um navio com uma quantidade destes vendidos; peanos de idade. los princípios de dezembro de 1842 outro, com cento Sempre usando de artifícios protelatórios, foi decree quarenta e tantos, filhos e filhas do nosso Arquipélago tada, a 14 de dezembro de 1854, a obrigação de regisAçoriano, ‘que foram vendidos – diz o correspondente trar todos os escravos existentes e impunha a libertação – como aí se vende o gado, e aqui os escravos. Alguns dos que fossem possuídos pelo Estado e a daqueles que, homens foram vendidos a 160$000 réis (frase ordinádaí em diante, fossem importados por terra, ficando toria); cinco destes infelizes foram para o poder de um dos libertos e obrigados a trabalhar por períodos de sete senhor de engenho, meu vizinho, que os pôs a cortar e dez anos, respectivamente. O decreto de 29 de abril de cana, com um feitor negro seu escravo a tomar conta 1858, estabelecia prazo máximo de 20 anos para o fim deles. Moças houve, que foram vendidas a 200$000 réis, da escravidão em todo o território sob administração unicamente para satisfazer os apetites brutais e lascivos portuguesa. A maior novidade é que pela primeira vez de seus infames compradores. Entre estas, uma, que se se impunha um prazo – o ano de 1878 – como limite dizia virgem, foi oferecida por 300$000 réis; mas o caúltimo para a existência do estado de escravidão no terpitão não a quis dar, porque lhe não deram os 300$000 ritório português. réis. Enfim, exmo sr., se fosse a enumerar os casos desta e igual natureza, seria um nunca acabar. Com estas coiQuando a corte esteve no Brasil, o governo regensas, fica o nome português infamado; e se o Governo cial ficou inquieto, pois a sua força de apoio – os monão der providências enérgicas para embaraçar uma tão derados: latifundiários, funcionários e parte do clero vergonhosa emigração, embora se digam providências – pressionava contra as determinações britânicas, uma despóticas, não sei aonde isso irá parar.’ vez que a economia brasileira dependia profundamente (...) Tais providências, entretanto, ainda até hoje não da mão-de-obra escrava. foram bastantes a sustar o mal. Será ele irremediável? O certo é que, com o fim do tráfico africano, a ecoNão o cuidamos; se uma vez se quiser de veras, dar-senomia portuguesa, que já estava periclitante, entrou em lhe-á cura. colapso. A indústria da construção naval foi a pique. O tráfico da escravaria preta está declarado piraOs armadores, para diversificar suas atividades, já que taria. Saia uma lei enérgica, declarando pirataria este, não podiam simplesmente reciclar os “tumbeiros”, pasque, pela sedução o é ainda mais atroz; esta compra, exsaram a usar os mesmos barcos com outros objetivos: patriação e venda de homens brancos, e portugueses. começaram, então, a traficar para as rotas do Brasil e Fiquem sujeitos estes traficantes alquiladores de gente, Antilhas os seus próprios nacionais. Naturais das ilhas e recrutadores e serralhos, às penas gerais dos salteada Madeira e Açores, minhotos e transmontanos eram dores. Uma forca bem alta, levantada em cada porto a bola da vez. marítimo, diga de longe aos infames raptores o que os O comércio de ‘escravos brancos’ continuou de tal aguarda; e veremos se eles continuam a transformar a maneira que mereceu o repúdio de boa parte dos inliberdade, a saúde, os afetos, a alegria, e as esperanças de telectuais lusitanos que não poupavam críticas a essas centenares de pessoas, em barras de oiro para si. Haja aí infames práticas. quem proponha contra esses homens férreos uma Lei É o caso do escritor Antônio Feliciano de Castilho férrea, que de certo não haverá, que lha impugne, ou que no livro Casos do meu tempo (Lisboa, editora da não abençoe.” História de Portugal – 1906) escreveu uma crônica tituMAR 2008 • Continente x

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2/22/2008 10:43:26 AM


metrópole

Marcella Sampaio

Pernambuco e a Andaluzia

À

Divulgação

s voltas com uma viagem que devo fazer em breve, deparei-me mais uma vez com o trecho do poema de João Cabral de Melo: "Em verso dar a ver sertão e Sevilha". A ligação entre o sertão de Pernambuco e a Andaluzia me parece tão clara hoje quanto há doze anos, quando comecei a fazer aulas de dança flamenca, uma paixão que não cede nem arrefece desde então. Em ambas as regiões, os estereótipos que as caracterizam existem não como tal, mas como características da vida cotidiana, para o bem e para o mal. A terra é seca, o clima, quente, e o tempo, menos urbano. Quem conhece um pouco do flamenco, música e dança, sabe que nele as emoções estão sempre dispostas à flor da pele, passeando do drama à alegria intensa. Há muito improviso e gente que se reúne em volta de um violão para cantar e dançar junto versos que muitas vezes são auto-referentes. “En los pueblos de mi Andaluzía, los campanilleros por la madrugada/ me despiertan con sus campanillas y con las guitarras me hacen llorar...”, diz uma canção clássica, presente em diversas coletâneas do gênero e já gravada por vários intérpretes diferentes. As semelhanças com os repentes e os festivais de cantadores nordestinos não são mera coincidência. No sertão, talvez no Nordeste como um todo, a influência ibérica que formatou a personalidade das nossas cidades permanece mais viva, mais evidente, inclusive nos tempos atuais. O espaço urbano, por sua vez, também revela aqui e ali sua ascendência. O nosso frevo, por exemplo, é um dos poucos ritmos que não apenas permite, mas incorpora em seu ethos o bailar ao lado dos músicos, que seguem os passistas e vice-versa num movimento próximo e constante. Não se concebe flamenco sem músicos e bailarinos atuando juntos, seja num palco ou em tablados. Ambos os gêneros, frevo e flamenco, são também intrinsecamente jazzísticos, abrindo amplo leque para a improvisação em

suas diversas possibilidades. Para quem dança, nada se compara a executar os movimentos concomitantemente à apresentação dos músicos. Quem ama o carnaval pernambucano tem um pouco desse espírito, curte acompanhar os músicos no chão, cantando e junto. No flamenco, as falhas que costumam acontecer, os tempos que se aceleram ou atrasam, deixam a apresentação mais viva, menos perfeitinha, o que só lhe acrescenta sabor e força o bailarino a ter presença de espírito na hora do show. De volta ao sertão, nossos cantadores são só criatividade. As frases das canções, compostas ao sabor do momento, são “esticadas” por suas vozes e eles, inclusive, são chamados assim (de cantadores) em espanhol e em português também, nesse caso específico. No flamenco, este “esticar” é parte de praticamente todas as canções, com exceção das que têm roupagem mais moderna ou são mais aceleradas. Uma palavra apenas pode durar 4, 6, 8, 10 tempos na voz de um cantador, principalmente naquelas músicas cujas letras falam de sofrimento, corações partidos e que tais. Além das coincidências lingüísticas, fica clara (ao menos para mim) a existência de outras semelhanças de ordem artística e espiritual, por assim dizer, entre as duas formas de arte. Talvez por isso as apresentações de grupos de dança e música flamenca sejam tão bem recebidas por aqui. Ano passado, as companhias espanholas de Antonio Marques e Antonio Gades, artistas consagrados, passaram pelo Recife com casa cheia e foram calorosamente recebidas pelo público. Embora os grupos locais de flamenco não sejam numerosos, mais por causa da dificuldade e do nível de dedicação que o ritmo exige e menos por falta de interesse das pessoas, os que se mantêm são perseverantes e fiéis. É uma paixão que difere das outras porque permanece e fica cada vez mais viva à medida que o tempo passa. Vale experimentar.

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