Uma outra arte pernambucana
Fotos: Divulgação
aos leitores
Carimbos, José Paulo, madeira e borracha, 9 x 38 x 22 cm, 2005. Abaixo, Série Lente, Jeanine Toledo, fotografia, 25 x 30 cm, 2007
A
chamada Escola Pernambucana de Pintura começa com Telles Júnior e Mário Nunes, ainda na virada do século 19 para o 20, evolui com os modernistas Vicente do Rego Monteiro e Cícero Dias, e vem desaguar em mestres de hoje como João Câmara e José Cláudio. Curiosamente, o vigor desta tradição tornou o Estado refratário às vanguardas que começaram a se disseminar nas artes plásticas do Brasil, já a partir dos anos 50, com o Neoconcretismo, a arte pop e a arte conceitual. Enquanto artistas como Hélio Oiticica e Lygia Clark partiam para revolucionar a concepção de arte, substituindo a tela pintada por objetos e instalações, Pernambuco permanecia aferrado à estética modernista. Um caso raro de dissidência era assumido por Paulo Bruscky que, desde os anos 60, exercitava a performance, a arte postal, entre outros experimentos, quebrando a cara num muro de indiferença ou sarcasmo. A partir dos anos 90, entretanto, uma nova geração de artistas plásticos começou a impor sua diferença. A arte contemporânea finalmente chegava a Pernambuco. E vinha disposta a se firmar e não mais arredar o pé de seus espaços duramente conquistados. Hoje, a situação mudou. A arte contemporânea local não só já tem artistas que começam a penetrar os mercados nacional e internacional, como também já conta com galerias exclusivamente dedicadas a ela, além de críticos e curadores capacitados. É certo que o público, de uma forma geral, e mesmo artistas e intelectuais da terra ainda têm dificuldade de assimilar as novas propostas, até porque muitas delas misturam alta cultura com cultura de massas, arte com vida, banalidade com refinamento, quebrando expectativas calcadas numa visão calcificada do que é ou não é arte. Diante dessa polêmica, a Revista Continente faz uma panorâmica deste cenário, convidando o leitor a tomar seu partido. Afinal, como perguntou o crítico Fernando Cochiaralle, quem tem medo da arte contemporânea?
Assucar, Aprigio e Frederico Fonseca, copo de vidro, aguardente, madeira e metal, 2002. Abaixo, Entre o novo e o nada, Márcio Almeida
• Em matéria especial, o jornalista Marcelo Abreu relembra que, há 70 anos, o escritor francês Georges Bernanos chegava ao Brasil para tentar realizar seu sonho de criar uma utopia francesa nos trópicos. Esse período foi resgatado por Sébastien Lapaque – que foi entrevistado por Marcelo Abreu. Jornalista e crítico literário do jornal Figaro Littéraire, de Paris, Lapaque é autor do livro Sous le soleil de l’exil (Sob o sol do exílio, Éditions Grasset, ainda sem tradução em português).
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ECA-USP/Divulgação
PauLo Melo Jr./Divulgação
Reprodução
D. Leopoldina e o pouco requinte da nobreza brasileira
O Banho Público realizado pelo coletivo A Firma da Irmã de Irma, no SPA 2007
A última versão de Hair, montada no Brasil
CONVERSA 6 >> Flávio Moreira e os segredos das antologias BALAIO 10 >> O caso da foto de Simone de Beauvoir nua CAPA 12 >> A força da arte contemporânea em Pernambuco 20 >> Dois pioneiros da arte 22 >> A pluralidade da linguagem contemporânea 24 >> Público ainda sente dificuldade em entender AGENDA PONTOCOM 30 >> Teatro, cinema e livros na rede LITERATURA 32 >> Humor na literatura é coisa séria 34 >> A presença de Priapo, o deus menor, na poesia 37 >> A poética da imagem em Sérgio de Castro Pinto 38 >> Um destaque na poesia marginal de Pernambuco 40 >> A triste morte de um pequeno demônio 42 >> Agenda livros CINEMA 44 >> Um filme sobre Shampoo, jogador e cabeleireiro 47 >> Celso Furtado, um homem e seu país
CÊNICAS 50 >> Os 40 anos de Hair 55 >> Um centro de pesquisa para a dança MÚSICA 61 >> A Bienal de Música Brasileira Contemporânea 64 >> Agenda música HISTÓRIA 66 >> Os dissabores de D. Leopoldina PERFIL 70 >> As muitas faces de Roger de Renor ESPECIAL 74 >> A presença de Bernanos no Brasil 76 >> As viagens de um francês 80 >> A paixão tropical de Sébastien Lapaque TESES 84 >> A criação de um projeto gráfico REGISTRO 88 >> Intelectuais brasileiros encantados com a direita TRADIÇÕES 92 >> A peleja dos Irmãos Aniceto
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Fotos: Rafael Gomes
Reprodução
A trajetória de um curta
Designer une arte e literatura
COLUNAS
Reprodução
O personagem Roger de Renor
TRADUZIR-SE 28 >> Arte realista é uma contradição ENTRE LINHAS 41 >> Um grande amor do passado SABORES 58 >> As refeições dos escravos METRÓPOLE 96 >> A pasteurização do humano
ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELETRÔNICO www.continentemulticultural.com.br
Georges Bernanos ABR 2008 • Continente
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Abril 2008 – Ano 8 Capa: Cidade de areia, Bruno Vieira, fotografia (detalhe), 2006
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MULTICULTURALISMO OU INTERCULTURALISMO? Concordo com o professor Anco Márcio: não adianta se arvorar a ser “multi” (no sentido de quantidade), sem que haja um efetivo intercâmbio de influências entre essas várias manifestações. Viva à Continente Intercultural! Marcos Fernandes Lima, Recife – PE
CONTINENTE CONECTADA A última edição da Continente me deixou bastante satisfeito. Fazia tempo que temas polêmicos como a questão do direito autoral mereciam destaque nessa publicação. É impossível imaginar uma revista de cultura que não se volte para os problemas que a contemporaneidade tem trazido para a esfera cultural. Vocês acertaram! Outra surpresa agradável foi a nova Agenda PontoCom. Além de livros, discos e eventos, é preciso conectar-se aos portais da internet e vê-los como produtos culturais. Entre as dicas, sites interessantes que eu não conhecia. Juarez André de Souza, Recife – PE
UM HOMEM DE CORAGEM Uma grande lembrança a matéria especial sobre o poeta pernambucano Solano Trindade. Verdadeiro precursor da consciência negra, ele já lutava contra o absurdo preconceito de se discriminar alguém por causa da cor da pele. E, se hoje, apesar de estarmos em pleno século 21 e terem havido tantas conquistas em prol da dignidade dos negros, ainda assim encontramos casos de preconceito, imagine-se naquele tempo, por volta de 1930, quando Solano levantava a bandeira pela igualdade entre todos os seres humanos. Valeu. E que o Estado e outras entidades se lembrem de também homenagear os 100 anos deste homem corajoso, um ativista dentro da maior tradição pernambucana de luta por valores transcendentais. Olavo Carvalheira, Recife – PE
NOTA DA REDAÇÃO Na coluna "Traduzir-se", edição nº 87, o nome da obra da artista Anna Letycia é Formigas, água-forte, água-tinta,1956.
“
Revista n° 23, novembro de 2002 Matéria: "Intelectual pensa que o saber é sua propriedade". Fábio Lucas entrevista Roberto Romano
Quantos pedantes existem no mundo intelectual, como os que 'seguem' servilmente este ou aquele teórico! Existem muitos 'ismos', 'istas' e 'anos' no mundo acadêmico. Esta é uma força que paralisa o pensamento nos campi. O pedante, segundo os seus críticos renascentistas, lia todos os livros, em muitas línguas, mas não entendia nenhum deles. Kant assim define o indivíduo que sabe de cor tudo o que se escreveu sobre um assunto, mas não consegue pensar os conceitos implicados, e não sabe ir do geral ao particular. Se lhe perguntam o que é isto, ou aquilo, diz que 'isto é assim segundo...' Aristóteles ou Platão, ou qualquer outro mestre. 'E você, o que pensa do objeto?' A resposta é o silêncio. Pois bem, este é o idiota, no entender de Immanuel Kant!
Roberto Romano, filósofo
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conversa
Flávio Moreira da Costa Há muito tempo que a literatura perdeu sua função social. O que ela não perdeu, nem vai perder nunca, é sua função existencial, histórica e humana
Fotos: Divulgação
Uma vida para a literatura 6 x Continente • ABR 2008
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Escritor premiado e organizador de famosas antologias literárias fala de seus trabalhos e das relações entre literatura e outras áreas do conhecimento, como a História e a Psicanálise ENTREVISTA A Cristhiano Aguiar
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oucos escritores no Brasil podem se dar ao luxo de viver apenas da literatura. Flávio Moreira da Costa é um deles. Caso o leitor da Continente não tenha lido algum dos seus romances e contos, certamente conhece alguma de suas antologias: Os 100 melhores contos de humor, Melhores contos de cães e gatos, Os melhores contos fantásticos são, entre outros, sucessos de crítica e de público. Flávio Moreira da Costa também se tornou um dos escritores brasileiros mais premiados dos últimos anos. Seu romance O equilibrista do arame farpado, por exemplo, conquistou importantes premiações, tais como o Jabuti, o Prêmio Machado de Assis e o Prêmio Octavio de Farias. Outros livros, como Nem todo canário é belga e Malvadeza Durão, também foram premiados. Com uma literatura marcada pelo humor, pela experimentação e pelo diálogo paródico com outros textos literários, a obra deste gaúcho, radicado no Rio de Janeiro, nos ajuda a entender as principais tendências da literatura neste novo século. Flávio Moreira da Costa conversou com a Continente sobre o papel do escritor e da literatura diante dos problemas sociais brasileiros, sobre algumas de suas antologias e ainda nos revelou sua paixão por futebol. Como se faz uma boa antologia? Lendo, lendo durante décadas – lendo e escrevendo. Ter um prazer muito grande com a “descoberta” deste ou daquele conto. Ter senso
crítico, saber selecionar. E muita intuição. O resto é literatura. O que é um bom conto? Vamos fugir a defi nições bem arrumadinhas? Um bom conto é aquele que, depois de ler, me escapa um “Puta que pariu", que conto bom!”. E quais são os grandes contistas da língua portuguesa? Passo. Qualquer lista é sempre incompleta. A resposta mais completa a esta pergunta sairá dentro de um ano, com a antologia Os melhores contos brasileiros, ainda em fase de trabalho. Mas cito Machado e Trevisan. Seu trabalho já foi finalista e vencedor de importantes prêmios literários. Qual a importância destes prêmios na sua carreira? Sinalizar que, enfi m, o que eu escrevo deve valer alguma coisa; dar maior visibilidade ao livro e ao autor; e colocar no currículo (risos). Você organizou e publicou, no ano passado, a antologia Os melhores contos que a história já escreveu. Como você vê a relação entre literatura e história? É um casamento perfeito. Ambas são narrativas, uma em cima do fato histórico (nem sempre necessariamente “objetivo”), outra na base da imaginação autoral (nem sempre só “subjetivo”). A história com H começou como literatura (veja Heródoto: ele anotava as histórias e “causos” que ouvia dos moradores dos países em que se aventurava) e às vezes se desenvol-
ve como testemunho, ou mesmo complemento da História. Neste sentido, e só para dar um exemplo, veja os contos de Merimée e de Machado, que complementam, aprofundam mesmo (no sentido de dar uma contribuição humana ao frio relato histórico) o tema da escravidão. Em algum lugar História (fato) e literatura (fi cção) se encontram. Os melhores contos que a História escreveu mostra isso, acredito. Em outra antologia recente, Os melhores contos de loucura, temos o tema geral da relação entre literatura e loucura. De forma geral, como os escritores lidam com o tema da loucura? A literatura sempre chegou antes. Basta lembrar que Freud foi buscar seu conceito básico – o complexo de Édipo – em Sófocles, lá na Grécia Antiga. Autores são criadores, escritores, e não estão escrevendo ensaios e, sim, contos, obras de arte. Alguns escritores falam da loucura com o risco da própria vida, pois falam de sua própria loucura, que é a nossa também. Gogol enlouqueceu na Itália, Maupassant morreu num hospício, Maura Lopes Cançado e Lima Barreto estiveram por lá várias vezes e morreram infelizes e desconsiderados ou, mais ainda, abandonados. Todos conhecem, ou deveriam conhecer, as tragédias de Van Gogh, Qorpo Santo e Artaud. É um tema marginal e perigoso, mas afeta a nós todos, pois a loucura faz parte da vida e... da sanidade. Seu romance mais premiado, O equilibrista do arame farpado, ABR 2008 • Continente x
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A imprensa só reflete a preocupação quase sempre imediata da sociedade, e quase sempre de uma forma superficial, mal-informada e mal-escrita
presta tributos a Machado de Assis. Um dos capítulos, por exemplo, é escrito por Brás Cubas. Como você avalia a importância de Machado na sua obra? Qual Machado? O do cânone ofi cial ou o (meio soterrado hoje) revolucionário? O segundo, ainda na minha adolescência, me abriu muitas portas. A importância dele é fundamental, como de outros tantos escritores que também (alguns veladamente) são homenageados no meu livro. Como foi o processo de composição de O equilibrista do arame farpado? É verdade que boa parte da primeira edição se perdeu numa enchente? Um processo – caótico e meio compulsivo – que se estendeu durante uns 15 anos, até eu chegar ao ponto certo da narrativa: ao equilíbrio do desequilíbrio, à ordem do caos. Metade da primeira edição foi consumida por uma enchente no depósito da editora. Pelo menos essa foi a versão ofi cial. No mesmo romance, você cria a palavra utropia, ou seja, a utopia nos trópicos. Quais ainda são as nossas maiores utropias? Todas aquelas que se desfi zeram no meio do caminho. A última delas se desenrola hoje sob nossos olhos – e nós não vemos. Elas nos ajudam a sonhar e a ter pesadelos. É vital e mortal. Como sua literatura se coloca diante dessas utropias? Denuncia as falsas utopias/utropias e, ao mesmo tempo, ajuda a criá-las – as verdadeiras ou pelo menos mais sadias. E a criação
tem a vantagem de somar e não diminuir. O próprio ato de escrever literatura num país como o nosso é uma utropia – é positivo. Ao ler O equilibrista do arame farpado e O país dos ponteiros desencontrados, lembro muito do Oswald de Andrade de Memórias sentimentais de João Miramar e do Campos de Carvalho de Púcaro búlgaro. Eles são referências para você? Li-os na juventude e fi quei com eles na cabeça, como todos os livros marcantes que leio. Mas o Campos de Carvalho é o de A lua vem da Ásia. Não são, no entanto, referências sob o ponto de vista da chamada “angústia da infl uência”, mas foram incorporadas ao meu estilo pessoal. O país dos ponteiros desencontrados é uma fábula sobre um país, Aldara, no qual cada relógio de cada pessoa marca uma hora diferente. A melhor forma de falar do Brasil é através da alegoria e da ironia? Não sei se é a melhor, foi a que eu encontrei. Não gosto de cópia, muito menos xerox. E o real às vezes é feito de irrealidades. José Castello escreveu recentemente que “O Realismo está na ordem do dia”. Ele disse ainda que, atualmente, existem, na literatura, duas vertentes: uma ligada ao best-seller, com um forte apelo de mercado; outra, a de novos realistas, que investem “energias numa literatura-espelho”. Como sua obra se posiciona diante dessas vertentes?
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Além da literatura, o futebol é uma das paixões de Flávio Moreira da Costa
Se for assim, lamento. Minha literatura está fora. O Realismo que respeito, e leio, é o do século 19, Stendhal, Flaubert, Eça etc. Acho uma banalidade literária, hoje, querer fazer um xerox do real. Depois dos pesadelos de Joyce e Kafka? Não estou preocupado com os espelhos. Aliás, acho que todos os espelhos (que, para Borges, como as cópulas, têm o dom de reproduzir) só reproduzem o visível – e eu estou preocupado com o invisível. Quando se fala em literatura contemporânea, esquecemos que ela tem de ser, em primeiro lugar, contemporânea. E ela raramente o é. As artes sempre suscitaram debates públicos. Hoje, a maioria deles são causados pelo cinema, e não mais pela literatura, como no caso de Tropa de elite. A literatura está perdendo a sua função social? A imprensa só reflete a preocupação, quase sempre imediata, da sociedade, e quase sempre (e eu digo isso com tristeza, pois militei na imprensa durante anos) de uma forma superficial, mal-informada e... mal-escrita. Por outro lado, há muito tempo que a literatura perdeu sua função social (o que quer que isso venha a ser)! Talvez desde
o século 19. O que ela não perdeu, nem vai perder nunca, é sua função existencial, histórica, de linguagem de nós todos – e humana. É isso que me interessa. Se eu escrevesse um livro sobre o poder dos traficantes – e a dor dos dependentes químicos e seus familiares –, com certeza teria grande repercussão na imprensa. Eu, pelo menos, não escrevo para ser manchete. Escrevo porque não sei fazer outra coisa. Diante da realidade brasileira, o escritor deve, além de escrever sua obra, se posicionar, por exemplo, na mídia, como um comentarista crítico dessa mesma realidade? É verdade que política é um assunto importante demais para ficar entregue nas mãos dos... políticos. Por outro lado, o escritor deve... escrever. Escrever (e publicar tanto como é o meu caso) já é coisa demais para um pobre marquês. Quando procurado pela imprensa, eu digo o que acho disso e daquilo, mas sou eu, o cidadão falando. Como escritor, a grande, e diria mesmo única, militância é com a própria literatura. Acredito cada vez mais numa frase de Stendhal, no início de A cartuxa de Parma: “incluir política na li-
teratura é como, no meio de uma orquestra, alguém dar um tiro de canhão”. Ou, parodiando o bandido da antiga, Lúcio Flávio: “polícia é polícia, bandido é bandido”. Quando mistura, dá no que dá. (No Brasil de hoje?). Você organizou duas antologias sobre o mundo do futebol. A bola também é uma paixão para você? Joguei bola. Foi paixão – e prática – na adolescência. Quando terminei o secundário em Cincinnati, nos EUA, fui considerado o melhor jogador do time da escola. Com muito orgulho, embora fosse verdade que aqueles americanos todos eram uns bons pernasde-pau. Fiquei décadas desligado, ocupando-me de assuntos mais sérios, ou que eu achava mais sérios, e só recentemente voltei a assistir jogos pela televisão, torcendo e vibrando com os gols do meu time – Fluminense no Rio e (sempre) Internacional em Porto Alegre. Uni minha paixão maior – a literatura – com o futebol para realizar minhas antologias de contos sobre o assunto e fiquei bastante feliz por ver 22 contistas em campo publicado na Alemanha, na Itália e em Portugal. ABR 2008 • Continente x
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Imagens: Reprodução
Madame Beauvoir (1)
Gênios e bobagens
Ainda repercute a capa da revista Nouvel Observateur, de 3 a 9 de janeiro/08, assinalando o centenário de nascimento da escritora – e que ostenta foto de Simone de Beauvoir, nua, de costas, num banheiro, tirada em 1952 pelo fotógrafo americano Art Shay, supostamente sem autorização. As feministas caíram de pau, acusando a revista de machismo, sensacionalismo, desrespeito etc. Até passeata teve em que, além de exigir um pedido de desculpas do diretor de redação, Jean Daniel, caracteristicamente as militantes pediram o mesmo tratamento para o sexo oposto: “Queremos ver as nádegas de Sartre!” – bradavam. (Homero Fonseca)
Entre as muitas insanidades ou besteiras da lavra de alguns destacados bambas, vale a pena destacar o filósofo francês Montaigne, que certa feita escreveu: “Que travesseiro fofo é a dúvida para uma cabeça bem feita!” Não querendo ficar atrás, o poeta inglês Lorde Byron tascou em seu diário: “Se algum dia tiver um filho, ele deverá se tornar alguma coisa de totalmente prosaico: jurista ou pirata”. E o que dizer desta pérola vinda de Pablo Picasso: “Computadores não servem para nada. Só sabem dar respostas”. Seja lá o que tenham querido dizer com suas sentenças, elas não passam de arrematadas bobagens, o que só comprova a tese de que alguns gênios costumam babar em suas camisas. (Fred Navarro)
Madame Beauvoir (2) A revista contra-atacou publicando entrevista do fotógrafo, em que ele narra: Simone estava em Chicago com Nelson Algren, vivendo seu tórrido caso de amor com o escritor americano. Algren morava numa pocilga, cujo aluguel mensal era 10 dólares e nem banheiro tinha. Pediu ao seu amigo para arranjar um lugar para ela tomar banho. Art conseguiu um apartamento emprestado de uma amiga. Após o banho, o jovem fotógrafo, estagiário da Life à época, viu Simone ajeitando o cabelo, nua, na frente do espelho. Pegou sua Laica e tirou duas ou três fotos. Simone ouviu os cliques e disse: “Você é um menino mau”. Não fechou a porta, nem pediu os negativos. (HF)
DESAFORISMOS "Existem três tipos de mentira: a mentira simples, a mentira deslavada e as estatísticas." Benjamin Disraeli
O povoador
“Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de 62 anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com 29 afilhadas e tendo delas 97 filhas e 37 filhos; de cinco irmãs teve 18 filhas; de nove comadres 38 filhos e 18 filhas; de sete amas teve 29 filhos e cinco filhas; de duas escravas teve 21 filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos. Total: 299, sendo 214 do sexo feminino e 85 do sexo masculino, tendo concebido em 53 mulheres.” Agora vem o melhor: “El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezessete dias do mês de março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo, e guardar no Real Arquivo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo”. Autos arquivados na Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7. (Duda Guennes, de Lisboa)
O filme dos meninos Previsto para estrear este mês, Orquestra de meninos conta a história do maestro Mozart Vieira, vivido por Murilo Rosa, e da grande obra de sua vida: a Banda Sinfônica do Agreste, que projetou nacionalmente os “Meninos de São Caetano”. (Carlos Eduardo Amaral)
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O poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller tinha 36 anos quando publicou, em 1795, 27 cartas que deram origem ao livro A educação estética do homem. Na carta 2, afirmou: “A utilidade é o grande ídolo do tempo; quer ser servida por todas as forças e cultuada por todos os talentos. Nesta balança grosseira, o mérito espiritual da arte nada pesa, e ela, roubada de todo estímulo, desaparece do ruidoso mercado do século”. A utilidade schilleriana vem englobando, através do tempo, não só as expressões artísticas, mas principalmente as manifestações avançadas da tecnologia e do trabalho. A única forma artística que não se enquadrou como utilitária foi a chamada poesia erudita. De outra parte, muitos artesãos e poetas populares conseguem viabilizar e viver da sua produção artística. (Luiz Carlos Monteiro)
Arte e transgressão O pessoal que promoveu no Recife o seminário Arte e crime: insubordinações, poderia ter escolhido para patrono do evento o escritor inglês Thomas de Quincey (17851859). Depois de lutar durante nove anos contra o ópio, assumiu o vício e transformou-o em arte no livro Memórias de um comedor de ópio, considerado sua obra-prima. Quincey é autor, também, do livro O assassinato como uma das belas artes. (Marco Polo)
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A utilidade das coisas
Acertando os termos O dramaturgo espanhol Ramón del Valle-Inclán senta-se para assistir a uma obra teatral. Num certo momento da peça, um personagem tenta definir poeticamente uma mulher: “Tem por fora a delicadeza da seda. Por dentro é de aço”. ValleInclán se levanta imediatamente de sua poltrona e grita: “Mas isso não é uma mulher, é um guardachuva!”. (Eduardo Cesar Maia)
O melhor do pior O versátil diretor de cinema Howard Hawks contava que, em conversa com Ernest Hemingway, tinha apostado que conseguiria fazer um bom filme com o pior texto que Hemingway já tivesse escrito. O escritor, então, desafiou Hawks a realizar um filme baseado em To have and have not (Ter ou não ter). No ano de 1944, o filme foi lançado, tornando-se um dos grandes clássicos de Hawks. (ECM)
A volta do faroeste Recentemente, westerns foram lançados nos cinemas da cidade: Os indomáveis – refilmagem do clássico Galante e sanguinário (1957), de Delmer Daves – e o “faroeste” moderno (não deixa de ser) Onde os fracos não têm vez, dos bons irmãos Cohen. Sem falar em Sangue negro, em grande parte ambientado na pradaria californiana, e O assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford, de Andrew Dominik. Será o lento e gradual retorno do gênero das montanhas, pistolas e cavalos de volta às telas?
IMPACTO
Como surgiu o rock em sua vida?
“Tive dois impactos: um disco e um show que mudaram minha vida. O disco veio antes do show, era o Led Zeppelin III, meu primeiro disco de rock...Tinha 13 anos e aí eu realmente comecei a curtir aquilo. Disse: “Pô, eu quero fazer parte disso de alguma forma”. O show, não lembro se em 79 ou 80, foi de um tecladista chamado Rick Wakeman. Ele era tecladista da banda Yes e saiu para lançar um disco solo, o Viagem ao centro da Terra. Eu estava assistindo ao Fantástico e eles anunciaram a turnê aqui no Brasil, e dentro das cidades incluídas estava o Recife. A época era outra, não tinha essa cena de bandas locais, informação era muito difícil de conseguir. Quando queria saber algo sobre alguma banda de fora tinha que ir ao aeroporto comprar revista importada. Liguei na mesma hora para um tio meu pedindo “pelo amor de Deus” que ele me levasse. O show foi muito bom, e o disco do Led eu não parava de escutar, virava um lado virava o outro, virava um lado virava o outro... Terminei trabalhando com isso, né?! Impactaram de fato a minha vida.
(Fernando Monteiro)
Paulo André, produtor musical. ABR 2008 • Continente
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Arte contemporânea pernambucana consolida sua produção e projeta o Recife como centro de referência em artes visuais no Brasil
A Galeria Mariana Moura (foto) e a Amparo 60 dedicam-se à arte contemporânea
Olívia Mindêlo
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om um pé na casa-grande e outro no porto, o Recife fez nascer uma sociedade que reflete a articulação entre a tradição e o novo. Com os olhos imersos no canavial, mas sem perder de vista o horizonte do além-mar, a cidade é herdeira de um espírito transgressor e criativo por excelência, que, não obstante o conservadorismo rural intrínseco à sua formação, foi capaz de criar as bases para uma arte preocupada em não deixar suas portas de entrada se fecharem às novas idéias sopradas de fora. E mais do que isso: capaz de reinventá-las no espaço simbólico. Foi assim no início do século 20, com o nascimento da era moderna, e continua sendo, a partir de uma nova geração, atualmente. Se a música saiu “na frente” da corrida contemporânea recifense dos anos 90, as artes visuais não ficaram atrás: acompanharam o percurso cosmopolita e subscreveram seu lugar na cidade e no mundo. Apesar das resistências, sobretudo dos olhares internos, Pernambuco é hoje também conhecido por sua produção de arte contemporânea, que desponta, junto a outros Estados do país, nacional e internacionalmente. Mas o sotaque local, tão caro ao Manguebeat, por exemplo, se diluiu nesse caso. O artista José Patrício, que começou no início dos anos 80, viu recentemente uma de suas instalações com dominós ter lugar de destaque no Museu Reina Sofia, em Madri, tida como uma das mais importantes instituições de arte moderna e contemporânea da Europa. Foi na capital espanhola onde também voltou a expor este ano, através da Galeria Mariana Moura, que representou o Estado pela primeira vez, ao lado da Amparo 60, na Arco 2008, feira de arte contemporânea de Madri.
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CAPA
Linha do tempo
Também tem suas criações reconhecidas fora, Carlos Mélo, outro artista da cidade, de uma geração mais jovem. Uma de suas obras, aliás, foi vendida na Arco 08 e ele foi o único pernambucano selecionado na segunda edição do Prêmio CNI-Sesi Marcantônio Vilaça para as Artes Plásticas 2006/2007. Como Mélo ou Patrício, cada vez mais artistas emergentes e veteranos revelam a vocação recifense para a arte contemporânea, cujo percurso passa também pelo fortalecimento de instituições, eventos e pessoas que têm contribuído para a profissionalização e expansão do cenário local. Na verdade, a inclinação dos artistas pernambucanos para rupturas estéticas de vanguarda remonta a épocas anteriores à virada do milênio. Como nos lembra o crítico e curador Paulo Herkenhoff, no texto do catálogo da mostra Pernambuco moderno (Instituto Cultural Banco Real, 2006), os pernambucanos sinalizaram as bases de uma modernidade antes mesmo de ser anunciado, com a Semana de 1922, o modernismo brasileiro. Vicente e Joaquim do Rego Monteiro, na pintura; Emílio Cardoso Ayres na
1637 Albert Eckhout e Franz Post chegam ao Recife. 1862 Surgimento do Museu/ Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. 1891 Telles Júnior participa da Exposição Internacional de Chicago. 1922 Vicente do Rego Monteiro participa da Semana de Arte Moderna. 1927 Cícero Dias faz sua primeira exposição individual, no Rio de Janeiro. 1929 Criação do Museu do Estado de Pernambuco. 1930 Vicente do Rego Monteiro traz ao Brasil a exposição da Escola de Paris. 1931 Cícero Dias expõe o painel Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, no Rio de Janeiro. 1932 Murilo La Greca, Álvaro Amorim e outros artistas fundam a Escola de Belas Artes de Pernambuco. 1933 Realização do I Salão do Grupo dos Independentes. 1942 Realização do I Salão Anual de Pintura do Museu do Estado.
1947 O mestre Vitalino é descoberto pelo público e pela elite intelectual. 1948 Realização do 3º Salão de Arte Moderna.
Rodrigo Link/Divulgação
1946 A Faculdade de Direito do Recife sedia exposição individual de Lula Cardoso Ayres.
caricatura; Francisco Du Bocage na fotografia; e construções urbanísticas do porto e do Bairro do Recife, na arquitetura, assinalam o pioneirismo do Recife. “Em 1922, Pernambuco já tinha sua lente moderna para ver o mundo e já tinha sua fala própria, com as mudanças urbanísticas, a pintura dos irmãos Rego Monteiro, a poesia de Manuel Bandeira, o cordel e o frevo modernos e a sociologia de Gilberto Freyre (...) O porto marcou o Recife como inapelável horizonte da modernidade”, escreve Herkenhoff. Na seqüência, nomes como os dos artistas plásticos Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres confirmam que o território era fértil e vibrava de novas perspectivas sintonizadas com o restante do mundo, embora, paradoxalmente, a capital pernambucana não fosse tão acolhedora – daí, portanto, o fato de muitos terem optado pelo êxodo à Europa, sobretudo a Paris. A produtividade artística local, no entanto, não minguou. Abelardo da Hora, João Câmara e Gilvan Samico, que surgiram entre as décadas de 50 e 60, estão aí para provar que a arte nunca silenciou no Recife. Mas foram nomes tão talentosos quanto O marco amador – sessão cursos, PauloM eira, fotografia, 100 x 150 cm, 2007
1952 Surge o Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife 1953 Criação da Escolinha de Arte do Recife. 1954 Fundado o Gráfico Amador. 1957 Criação do Museu da Abolição; instalação do Museu/Pinacoteca de Igarassu. 1960 Criação do Movimento de Cultura Popular (MCP). 1961 Instituição da Lei Obras de Arte em Edificações do Recife.
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Fotos: Divulgação
Haikai, Bruno Vilela, acrílica e folha de ouro sem tela, 1,5 x 3 m, 2006
Varal, Lourival Cuquinha, intervenção na paisagem urbana, 2003–2007. Ilha de Porquerolles, sul da França
tímidos em termos de atrevimento no contexto pós-moderno. Foi na década de 70, em plena era militar e armorial, que uma figura anunciou o espírito controverso presente no Recife: Paulo Bruscky. Agitando a cidade com intervenções urbanas, muitas de cunho político, como a do enterro simbólico em que atirava um caixão ao Rio Capibaribe, o artista instaurou a arte conceitual e multimídia na cidade; aliás, marginal e
transgressora por excelência, porque aqui não encontrava ecos nem apoio institucional, como acontece hoje em dia. No Brasil dos anos 70, Bruscky só encontrava paralelos com a arte de Hélio Oiticica (RJ), Antonio Dias (PB/RJ) ou Cildo Meireles (RJ). Oriana Duarte, Paulo Meira, Lourival Batista (Cuquinha), Fernando Peres, Maurício Castro, Rodrigo Braga e outros artistas visuais de Pernambuco, muitos herdeiros do dadaísta francês Marcel Duchamp, como ABR 2008 • Continente x
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CAPA 1962 Abelardo da Hora lança o álbum Meninos do Recife. 1964 Surge a Cooperativa Artes e Ofícios da Ribeira, em Olinda. 1965 Realização da 1ª Exposição de Arte Universitária; é fundada a Oficina 154 e o Atelier Mais Dez é aberto, em Olinda. 1966 Acontece a 1ª Semana de Arte da Faculdade de Direito do Recife; criação do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em Olinda, e da Galeria de Arte do Teatro Popular do Nordeste (TPN). 1967 Ocorre a 1ª Semana de Arte de Olinda. 1968 Lançamento do Manifesto Tropicalista, assinado por Jomard Muniz de Brito; Bajado expõe na Europa. 1969 Criação da Associação dos Artistas Plásticos Profissionais de Pernambuco. 1970 Surgimento do Movimento Armorial; fundação do Museu da Imagem e do Som de PernambucoMispe. 1971 Instalação da Oficina/ Museu Francisco Brennand.
1973 Paulo Bruscky organiza a Exposição Chantecler; criação da Fundação do Patrimônio Artístico e Histórico de Pernambuco – Fundarpe. 1974 Fundação do Museu Franciscano de Arte Sacra, no Recife. 1975 Criação do Museu do Homem do Nordeste (foto); é organizada por Paulo Bruscky e Ypiranga Filho a 1ª Exposição Internacional de ArteCorreio do Brasil.
1977 Criação do Museu de Arte Sacra de Pernambuco, em Olinda. 1979 Fundação da Oficina Guaianaeses de Gravura, no Recife.
o próprio Bruscky, devem muito, portanto, aos esforços deste último em abrir a visão do Recife para a idéia de arte além de telas, gravuras, desenhos e esculturas. “Bruscky foi um fato isolado, porque o que me parece é que, nos anos 60 e 70, Pernambuco tinha pouca interface com o mundo. A arte era mais fechada para questões internas. A própria veia modernista havia se perdido. Foi no fim do século 20, nos anos 90, que esse diálogo entre o dentro e o fora foi restaurado pelos artistas plásticos de forma mais contundente”, analisa Cristiana Tejo, curadora e diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o Mamam. Nessa época, Cristiana começou a se envolver, como jornalista especializada, com a produção visual recifense que emergia das formas
mais diferentes, contribuindo para a efervescência cultural na cidade que o Movimento Mangue sacudia. Em 1996, o Grupo Camelo, formado inicialmente por Ismael Portela, Jobalo, Marcelo Coutinho e Paulo Meira, e depois abraçado por Oriana Duarte e Renata Pinheiro, foi um dos coletivos que ajudaram a “tirar” a arte local da sua “fase hibernal”, assim como outros artistas de assinaturas independentes que já agitavam a vida cultural de Olinda e do Recife – o caso do Molusco Lama, do Carga e Descarga etc. Inconformados com o fato de nenhum trabalho pernambucano ter sido selecionado para a Mostra Antártica Artes com a Folha (SP), “primeiro mapeamento significativo da criação nacional daquela década”, como registra o livro do 45º/46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, os
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Fotos: Divulgação
Claus Lehmann/Divulgação
Abaixo: Espelho meu 16, G il Vicente; Corpoponte, Oriana Duarte, nanquim e grafite sobre papel
Exposição Diário de uma bandeja, de Juliana Notari
artistas colocaram o Camelo, oficializado em 1997, para movimentar a cidade e ganhar espaços, através de exposições, no recém-criado Instituto de Arte Contemporânea (IAC), ligado à UFPE. Uma prova de que o amadurecimento estético, logístico e político da arte contemporânea recifense deve não só a artistas. O aval institucional e governamental, assim como o aparecimento de espaços alternativos, galerias, museus, críticos e curadores contribuíram para a consolidação do que vemos hoje no Estado. Na visão de Cristiana Tejo, e talvez na de todos os envolvidos na cadeia produtiva visual do Estado, a inauguração do Mamam, em 1997, foi um marco fundamental e estratégico nesse contexto. Com o intuito de ampliar a atuação da Galeria de Arte Aloísio Magalhães,
atuante nos 80, a fim de transformá-la num centro de escoamento da produção moderna e, sobretudo, contemporânea do Brasil, o museu se tornou uma porta de entrada e saída para as artes visuais “de ponta” em Pernambuco, fazendo circular na cidade um novo frescor. Nas mãos de Marcus Lontra, de Moacir dos Anjos e agora de Cristiana, o Mamam se consagrou como a principal e mais organizada instituição de arte da capital pernambucana, embora ainda não tenha uma quantidade de visitantes à altura. “O Recife tem uma dos melhores museus do País. O Mamam tem uma atuação extraordinária”, elogia Fernando Cochiaralle, curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (Mam-RJ). Ele, aliás, foi o responsável pelo projeto Quem tem medo da arte contemporânea?, realizado
pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) no Recife, que culminou na publicação de um livro e na filmagem de um DVD sobre o assunto, que respondeu a um anseio que paira não só na Mauricéia como no mundo afora. Assim como o Mamam, a Fundaj também contribuiu bastante para a projeção da cidade como centro de referência no Brasil. Aliás, tanto Moacir dos Anjos quanto Cristiana Tejo, agenciadores cruciais dessa alavancada, são “crias” da instituição federal. Procurando travar um diálogo com produções de outros Estados, tanto a fundação, através do projeto Trajetórias e de cursos, quanto o museu, em suas iniciativas anuais de mostras e palestras, promoveram um intercâmbio profícuo, capaz de formar públicos, estimular ABR 2008 • Continente x
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CAPA Rafael Gomes
1981 Realização da 1ª Exposição Internacional de Arte em Outdoor/ Indoor; criação da Oficina de Arte do Recife; instalação da Galeria Metropolitana de Arte do Recife, atual Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). 1982 Fundação do Museu da Cidade do Recife; Realização do 1º Salão de Arte Cidade do Recife. 1985 Criação do Museu Murillo La Greca. 1987 Fundação do Carasparanambuco, por Félix Farfan, Rinaldo e outros. 1988 Criação do Museu do Barro, em Caruaru. 1989 Surgimento do novo Atelier Coletivo, em Olinda. 1993 Criação do Instituto Cultural Lula Cardoso Ayres. 1995 Surgimento do grupo SubGraf. 1996 Criação do Instituto de Arte Contemporânea da UFPE. Surgem os grupos Carga e Descarga e Camelo. 1997 Surge outro grupo no cenário recifense, o Telephone colorido. 1998 Criação do Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco; a Galeria Amparo 60 passa a trabalhar com arte contemporânea. 1999 Instituição do Prêmio Pernambucano de Artes Plásticas. 2000 Inauguração da Torre Malakoff como espaço expositivo; primeira edição do Olinda Arte em Toda Parte. 2001 Surgimento do grupo ALEPH; Inauguração do Núcleo de Artes Visuais e Experimentos (Nave); 2002 Primeira edição do SPA – Semana de Artes Visuais do Recife. 2004 Reformulação do modelo do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco; surgimento do Coletivo Branco do Olho; inauguração da Galeria Mariana Moura. 2005 Inauguração da Galeria Marcantonio Vilaça; criação do Mamam no Pátio e do Centro de Formação em Artes Visuais. 2006 Surgimento da revista Tatuí de crítica de arte e do Portal Dois Pontos.
Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo se destacam como curadores
o surgimento de novos talentos e ainda abrir as portas para os pernambucanos em projetos de fora. As trocas, portanto, foram o eixo de toda a mudança. Apesar de muitos artistas locais reclamarem da falta de espaço, a atenção com nomes vindos de fora foi crucial para o alargamento das fronteiras internas. O IAC, a Galeria Marcantônio Vilaça, no Instituto Banco Real, a Amparo 60, a Dumaresq, a Galeria Mariana Moura e, mais recentemente, o Museu Murillo La Greca ganharam terreno nos arrabaldes das âncoras Mamam-Fundaj, orientadoras de um novo circuito e mercado de arte local. Eventos como o SPA das Artes (municipal) e até mesmo a repaginação do Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (estadual), em suas últimas edições devem muito a ações feitas a partir da década de 90 no Recife. Resta saber se as iniciativas, até então instaladas no calendário cultural anual, principalmente o SPA, terão continuidade. “Eu vejo uma grande diferença entre a geração de 80/90 e 2000 no Recife. A primeira batalhou muito para abrir espaço. O Grupo Camelo, Carlos Mélo, José Patrício, Marcelo Silveira e Gil Vicente, por exemplo, foram artistas que queriam a renovação da produção artística na cidade. Eles lutaram junto com as instituições para um processo de abertura. Já a geração
2000 é mais mimada, inflexível e menos generosa. Pegou quase tudo pronto, embora não esteja. Mas há bem mais espaços, eventos, bolsas de incentivo e editais do que há dez anos. O Recife era um breu em termos de intercâmbio”, compara a diretora do Mamam. Vale ressaltar a ousadia do pernambucano Marcantônio Vilaça, colecionador e galerista atuante
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Fotos: Divulgação
Sem título, Alexandre Nóbrega, acrílica sobre papel, 24 x 33cm. Abaixo, Elemento integrado, Bruno Vieira, fotografia recortada e aplicada em placa de PVC e molde de MDF, 2007
entre os anos 80 e 90, em antecipar na cidade a vontade de se apostar no “incerto”, naquilo que não estivesse pré-estabelecido nos parâmetros da arte brasileira. Na capital pernambucana, inaugurou a galeria Pasárgada Arte Contemporânea, no mezanino do ateliê da arquiteta Janete Costa, em Boa Viagem. Durante três anos, jovens nomes foram apresentados no local graças à sua sensibilidade em valorizar o novo. A sua coleção, que reúne trabalhos representativos dos últimos 20 anos da produção brasileira, está sob os cuidados do Instituto Cultural Banco Real e da família do próprio Marcantônio, que faleceu subitamente em 2000, aos 37 anos. Apesar de ter sido motivo de diversas mostras importantes, o acervo ainda não encontrou um espaço de destaque permanente para ser exposto no Recife. Por causa de sua morte precoce, o trabalho foi interrompido e os artistas da geração 90 demoraram a ter prestígio no âmbito local e nacional. Não faz muito tempo que Gil Vicente, Marcelo Silveira, José Patrício e Manoel Veiga estão no casting da Galeria Nara Roesler, talvez a única em São Paulo que comercialize permanentemente obras de pernambucanos contemporâneos. Também não foi fácil o fato de outras instituições nacionais legitimá-los no País. Já os jovens artistas do Estado, não. Há tantas oportunidades no Brasil atualmente, assim como a vontade de curadores de trabalhar com eles
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Nu descendo a escada, Bárbara Collier
Nu descendo a escada, Bárbara Collier
no meio de campo, que seus nomes conseguem ser selecionados com mais facilidade em grandes eventos, editais e programas do País, como é o caso do Rumos Artes Visuais, do Itaú Cultural, que mapeia pernambucanos desde 1999. “Eu já conheço a produção de artes plásticas pernambucanas há algum tempo, mas fiquei surpreso, recentemente, ao ver que o Recife não pensa só a cultura a partir de suas
raízes, mas sob um viés mais cosmopolita, com as antenas, como fez o Manguebeat. Acho um absurdo que exista um manual de pernambucanidade que exclua outras manifestações desse sotaque”, pontua Cochiaralle. Para ele, aliás, o sotaque não deve ser a condição sine qua non da criação artística, mas algo intrínseco que se revele a posteriori. A vinda do artista africano contemporâneo Meschac Gaba para
uma residência artística no Recife, através da 27ª Bienal de São Paulo, onde expôs na seqüência, assim como o curso ministrado pelo belga Thierry de Duve, um dos mais importantes teóricos da contemporaneidade, ambos em 2006, através da Fundaj, foram iniciativas que também só reforçaram o quão preparado o solo pernambucano se tornou para receber uma arte que ainda tem muito terreno para conquistar.
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Fotos: Divulgação
Pernambuco deu dois nomes de destaque dentro do panorama nacional da arte contemporânea: o artista plástico Paulo Bruscky e o colecionador e galerista Marcantonio Vilaça Marco Polo
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á na introdução do seu livro Paulo Bruscky: Arte, Arquivo e Utopia, a curadora Cristina Freire aponta muito atiladamente algumas das características do artista: o trabalho ininterrupto desde os anos 60, lutando contra a incompreensão de um meio refratário às vanguardas e cerceado pela ditadura militar; a ação desinteressada pelo mercado e pela permanência, uma vez que nunca vendeu uma de suas obras, em grande parte contaminadas pela transitoriedade e pela perecibilidade – conseqüentemente, destronando a hegemonia econômica para impor o ludismo da irreverência; finalmente, a permanente busca por redes de comunicação com todas as partes do mundo, numa recusa ao isolamento ensimesmado. Performance, arte postal, xerox-arte, fax-arte, artedoor, vídeo, fotografia, filmes, livros de artista, poesia visual, sem falar em algumas autênticas invenções, como o eletroencefalograma-arte, são algumas das atividades deste multiartista, a que também se podem agregar as de colecionador, arquivista, editor e curador. Seu ponto máximo de consagração aconteceu entre 2004, quando todo seu ateliê foi transportado para a Bienal Internacional de São Paulo, e 2006, quando foi publicado o livro de Cristina Freire, a ele dedicado. Hoje, Bruscky é uma referência nacional. Marcantonio Vilaça é outro fenômeno. Ainda adolescente, iniciou com muito bom gosto – adquiriu uma xilogravura de Gilvan Samico – uma coleção que chegou a mais de 500 peças. Em 1990 criou a Galeria Pasárgada Arte Contemporânea, no Recife, divulgando fora do eixo Rio-São Paulo os trabalhos da Geração 80. Dois anos depois inaugurava na capital paulista a Galeria Camargo Vilaça, em sociedade com Karla Ferraz de Camargo, e que se tornaria, na opinião do jornalista Celso Fioravante, a mais importante referência para a arte brasileira nos anos 90. Quando Marcantonio morreu, precocemente, aos 37 anos, em 2000, a crítica Angélica de Moraes fez de sua trajetória uma análise sintética, mas definitiva: “Sozinho ele fez o que o mercado, a política cultural e a ação diplomática brasileira jamais conseguiram em toda a história desta nação: colocou um impressionante número quantitativo e qualitativo de obras nacio-
nais em importantes acervos de museus e prestigiosas coleções particulares na Europa, Estados Unidos e América Central”. Com um senso crítico aguçadíssimo, Marcantonio sabia onde estava o talento verdadeiro e tão logo o identificava, era capaz de lutar agressivamente em sua defesa por mais novo e ainda não reconhecido que fosse. Ativista do profissionalismo, investia financeiramente no artista ao mesmo tempo em que também exigia produção compatível. E embora tenha se dedicado mais intensamente ao mercado da arte contemporânea, não dava as costas aos mestres: a última grande exposição de Iberê Camargo foi feita por ele.
Bruscky e Marcantonio: precursores
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Montagem da exposição de José Patrício no Centro de Arte Reina Sofia, em Madri
´ A nova geração de artistas contemporâneos, que não teve necessariamente a pintura e o desenho como ponto de partida, explora múltiplas possibilidades plásticas e linguagens diversas Diana Moura
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arte contemporânea em Pernambuco é tão diversificada quantos sejam os artistas que se aglomerem em torno desse rótulo. Os primeiros traços de contemporaneidade local surgiram de nomes que, a princípio, estavam ligados à pintura e às suas derivações. Algumas das primeiras instalações apresentadas no Recife guardavam algo do esforço da criação de uma imagem bidimensional. Atualmente, as possibilidades plásticas exploradas no Estado ganham cada vez mais força e amplitude. São resultado da assimilação de novos meios, de linguagens híbridas e da chegada de uma nova geração que não teve, necessariamente, o desenho e a pintura como ponto de partida para suas primeiras exposições. Um dos representantes deste novo grupo é o artista plástico Rodrigo Braga, 31 anos, que já tem no currículo exposições internacionais. Apesar de ter iniciado pelo desenho, foi a partir da aproximação com a fotografia e a manipulação digital que a obra de Rodrigo tornou-se mais conhecida. O ponto de virada é a exposição Fantasia de compensação, uma série de imagens que mostra, passo a passo, o focinho, olhos e orelhas de um cachorro sendo cortados e costurados ao rosto do próprio artista. Esta seqüência consegue estruturar muitas das questões que hoje são associadas ao seu trabalho: o suporte fotográfico, a intervenção digital, a presença do corpo do artista, a relação física e simbólica com a natureza, a apresentação de imagens de alto impacto e um viés autobiográfico na elaboração de algumas obras.
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É preciso pensar o distanciamento e a incompreensão do público sobre a arte produzida hoje Mariana Oliveira
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fotografado) e do registro (fotografias que documentam uma performance). Embora seu corpo esteja no trabalho, não é a ação que determina a obra em si. Estas questões, que à primeira vista parecem muito sutis e subjetivas – e na verdade o são –, estão no cerne da arte contemporânea, não apenas naquela que é vista em Pernambuco, mas em todo o mundo. As reflexões e práticas que motivam esse pensamento artístico são ligadas à assimilação do hibridismo como valor artístico desejável. Portanto, o embaralhamento de campos e a exploração de determinados recursos até o seu limite, confundindo fronteiras entre os gêneros, são atitudes que alimentam a diversidade dessa arte. Desta forma, dois artistas que apresentem um trabalho relativamente parecido, podem discutir ques-
Helder Ferrer/Divulgação
A intersecção com a fotografia ofereceu a Rodrigo Braga a possibilidade de transitar pelo universo dos fotógrafos profissionais, no qual ele é reconhecido e respeitado, chegando a ser capa da revista Fotosite. Apesar da proximidade com o campo, o artista é enfático ao enquadrar suas criações dentro das linhas da arte. “Eu fotografo como quem pinta. Meu pensamento é de pintor, de artista. Quando visualizo determinada composição, luz, cores, enquadramento, eu desenvolvo um raciocínio voltado para os procedimentos artísticos”, define. Rodrigo acrescenta ainda que, durante a concepção do trabalho, o que importa é o resultado final. O processo, apesar de ter relevância, é colocado em segundo plano. Ao enfatizar o resultado final – e reduzir a apresentação de elementos que destaquem o processo de execução das fotografias –, o trabalho de Rodrigo Braga afasta-se da foto-performance (quando um trabalho é realizado exclusivamente para ser
Enredo III – Enquanto tudo passa, Amanda Melo, vídeo, 2007
arece que a tradição pernambucana nas artes plásticas resistiu ao tempo e ultrapassou as turbulências ocorridas a partir do século 20. Hoje, o Recife sedimenta-se como uma referência nacional na produção daquilo que se batizou como arte contemporânea. Ademais, da forte produção de artistas de uma nova geração, que já nasceu nesse ambiente pós-moderno, ou de veteranos que se aventuram nesse terreno movediço, criou-se uma cena formada por curadores, galerias, exposições, seminários, residências artísticas, portais na internet, entre outras ações que já começam a colher seus frutos. A cena é organizada, produtiva e começa a ganhar espaço fora do Estado, nacional e internacionalmente, a exemplo da passagem de muitos na Arco, em Madrid, este ano. No entanto, apesar da qualidade e das reflexões interessantes que se têm tido em Pernambuco, a interação com o grande público ainda é pequena, fazendo com que boa parte dos espectadores seja
formada por agentes da própria cena. Enquanto para a música pernambucana foi fácil propagar ao grande público as idéias do novo cenário musical que nascia no Recife nos idos anos 90, no caso dessa cena artística contemporânea, as coisas não são tão simples, nem os produtos tão palatáveis. A arte contemporânea está associada a uma profunda incompreensão e, no Recife, uma cidade onde alguns começaram a abrir espaço para idéias não tradicionais, a situação não é diferente. Para boa parte da população, e aí estão incluídos alguns críticos de renome, as referências artísticas ainda residem nos suportes tradicionais (pintura e escultura) e a “aferição” da qualidade e relevância de uma obra, em conceitos ligados à técnica. O discurso de filósofos como Hans Belting e Arthur Danto, que propõem o fim da arte, não pretende afirmar que tudo acabou, mas, sim, mostrar que o antigo discurso já não pode ser usado como base, já
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Cosme & Cosme, Carlos Mélo, e-print sobre papel, 139 x 105 cm, 2004
não pode enquadrar a pluralidade da contemporaneidade (que não deve ser vista sob a ótica do tudo vale). De um estado sólido, no qual as regras eram claras e delimitadas, passamos a um momento líquido, como propõe Zygmunt Bauman, ou gasoso, como propõe radicalmente Yves Michaud. As incertezas são muitas, inclusive para os especialistas. O que dizer, então, de um público que teve, em sua maioria, uma incipiente “formação” artística, baseada em critérios anteriores? É requisitado ao espectador, ao entrar em contato com uma obra contemporânea, que esqueça, apague, jogue fora conceitos ainda cultivados por ele, sem que lhe sejam explicados os motivos e os porquês para tal ato. Portanto, não é de se estranhar que essa nova arte cause um certo desconforto no grande público e termine formando uma cena para poucos. Ao mesmo tempo, é impressionante a afluência de público a uma exposição como a Bienal de São Paulo, que, em 2004, recebeu mais de 900 mil pessoas, numa exposição que reunia apenas obras contemporâneas, ultrapassando os números da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza. Esse foi o primeiro ano em que a Bienal abriu as portas gratuitamente para todos, sintonizada com a idéia da democratização cultural. Apoiada numa forte campanha de marketing, que trazia o slogan “A Bienal vai chocar você logo na entrada”, fazendo uma analogia ao desconforto que a arte contemporânea causa ao público em geral, teve-se um número de visitação surpreendente. O caráter espetacular da exposição e o forte apoio midiático terminaram transformando a Bienal num grande parque de diversões.
tões absolutamente diferentes. É o caso, por exemplo, das imagens criadas por Rodrigo Braga e Carlos Mélo. Ambos residem e trabalham em Pernambuco, têm a fotografia como suporte, utilizam o corpo para viabilizar a obra e, não raro, surgem em meio a paisagens. A semelhança entre eles, entretanto, acaba aqui. Atrás de imagens aparentemente semelhantes, estão fazeres artísticos e pensamentos plásticos diferentes. A obra de Rodrigo Braga coloca-se como um elemento de intersecção entre o artista e o mundo, ocupando um espaço de diálogo. Cada imagem revela uma fatia de sua biografia, à medida que avança sobre a sua própria vida e escreve novos elementos, recompondo, de certa maneira, as linhas biográficas. Assim, a presença do corpo nas criações de Rodrigo Braga quer não apenas dizer de si mesmo, mas modificar esse corpo, que pode ser alterado através da manipulação digital ou simplesmente pela justaposição de elementos simbólicos na composição fotográfica, dando vida a um novo Rodrigo Braga. Não que a arte não possa divertir, mas tampouco pode resumir-se a essa função. O que parece muito claro é que democratizar apenas o acesso físico gratuito às exposições, cinemas, teatros e outros bens culturais não é uma solução final. É apenas um passo. Além de democratizar o acesso físico do público às exposições artísticas, é preciso também democratizar o acesso intelectual. A abertura a essa vasta produção não pode ser valorada necessariamente como um ingresso de conhecimento, se o público não está familiarizado com o vocabulário da arte contemporânea. A criação do repertório é fundamental. Com um panorama favorável como o que vivemos agora em Pernambuco e também no Brasil – quando, apesar de todas as dificuldades (incluindo-se aí a sazonalidade de projetos ligados aos governos), há uma forte produção de obras contemporâneas de qualidade e uma rede de conexões e apoios que se consolidam – quiçá fosse o momento ideal para pensar o distanciamento e a incompreensão do público sobre a arte produzida hoje. Democratizar a cultura não é apenas facilitar o acesso às obras, mas, sim, atuar também no processo de formação e educação estética dos espectadores. O fomento à produção está em desenvolvimento, porém falta um maior empenho na formação de receptores críticos e ativos. Como prega a arte-educadora Ana Mae Barbosa, é preciso “educar a recepção”. A arte contemporânea de qualidade pode ser mais que diversão, extravagância e choque – e oferecer ao público em geral um momento de vivência estética relevante. ABR Continente xx ABR 2008 2008 •• Continente
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CAPA Sem Título, Marcelo Silveira, madeira e corda de couro, 45 x 50 cm, 2004
às suas performances e fotografias a volta dos desenhos. De uma maneira impressionante, esses trabalhos mais recentes guardam muito da trajetória de Carlos, depuram excessos e revelam questões fundamentais de sua obra, presentes em maior ou menor intensidade desde os seus primeiros trabalhos apresentados no Recife. Em pauta, temas densos como a morte, a relação do corpo com o meio, a fragmentação deste mesmo corpo e a sexualidade. A fotografia, o vídeo, a instalação, a performance foram estratégias de criação artística que surgiram em Pernambuco com mais ênfase nos últimos 10 anos. Isso não quer dizer que todos que comungam da arte contemporânea no Estado tenham iniciado sua carreira neste período, nem que tenham que recorrer, necessariamente, a essas linguagens. Nomes muito respeitados, que construíram uma longa e sólida trajetória, estão na estrada há mais de 20 anos. É o caso de Marcelo Silveira, cuja obra se renova a cada exposição, embora o artista tenha se mantido longe dos aparatos tecnológicos na maior parte do tempo. Perseguindo outra linha da arte contemporânea, Marcelo trabalha com materiais e processos mais rústicos – couro, madeira, metais, vidros –, investiga os limites da artesania na obra de arte e pesquisa a relação entre as suas peças e o espaço ocupado por elas. Os objetos criados pelo artista, às vezes dispostos em grandes instalações, talvez sejam aqueles que mais carreguem traços de um certo regionalismo. As marcas locais estariam presentes justamente no uso de materiais ligados à produção pernambucana de artesanato. “Eu não acredito em regionalismos na arte contemporânea. A troca de informações hoje é muito Fotos: Divulgação
Já em alguns trabalhos de Carlos Mélo, a presença do corpo quer falar sobre a ausência, sobre o corpo que deixa de ser, chegando, em alguns casos, a explorar a morte como assunto deste corpo. Atualmente, a obra do artista passa por um processo de reestruturaração, que começa em 2005, com a conquista da bolsa de pesquisa plástica do prêmio Marcoantonio Vilaça CNI SESI. Durante o projeto, ele participou de encontros com a psicanalista e crítica de Arte Suely Rolnik, numa parceria que o fez retomar o que ele chama de caminhos artísticos essenciais. “O trabalho com Suely me fez discutir o que é a arte e o que é um artista, acrescentando para a minha obra questões que eu não tinha distanciamento para perceber”, explica. Foi a partir deste momento que Carlos entrou num processo de “reativação da sensibilidade”. Neste percurso, ele voltou a desenhar e retomou uma série de questões antes sublimadas em outros aspectos de sua produção. “Ser artista é tratar das questões sensíveis, provocar, ativar a sensibilidade das pessoas. Hoje, quero trazer o outro para o meu trabalho como um convite, estabelecendo melhor a relação artista-obra-público. A descoberta desse potencial da arte me tornou muito menos cínico, porque me levou a pensar muito mais no outro. Até 2005, eu estava muito preocupado com a eficiência da arte no circuito expositivo e curatorial, agora eu me interesso mais pela comunicação efetiva que a arte pode trazer.” Todo o discurso e pensamento plásticos de Carlos Mélo, atualmente, desenvolvem-se por meio dessa busca. “Estar conectado a esse campo é essencial para a arte. A maior transgressão talvez seja continuar sendo artista, permanecer sensível e ainda assim viver disto”, confessa. É nesse contexto que ele soma 26 x Continente • ABR 2008
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intensa. Às vezes, um artista toma conhecimento de que tem um ‘irmão’ do outro lado do mundo, alguém cujo trabalho discute as mesmas questões que as suas, sem ocuparem o mesmo território”, define. De fato, reduzir sua obra aos materiais utilizados é, no mínimo, parar na superfície. As criações de Marcelo Silveira têm como impacto inicial a relação que estabelecem com o espaço. Sejam por meio de grandes esculturas em madeira ou com pequenas casinhas de couro, o artista explora a interferência do homem no meio, alterando escalas, impondo ritmos, redefinindo os lugares a partir da sua chegada. Marcelo impressiona pelo lirismo das formas, pela sofisticação de desenhos aparentemente tão casuais e pela maneira com a qual brinca com a arquitetura. Num jogo lúdico, ele tensiona o sentido dos objetos que apresenta, idealizando esferas que não rolam, casas que não se prestam à moradia, entre outros objetos que confundem o primeiro olhar. “E gosto de explorar esses limites. Uso objetos do diaa-dia para retirar-lhes a funcionalidade, e crio peças que são aparentemente funcionais, mas não se prestam ao uso”, comenta. Outro artista que também tem se dedicado à criação de jogos lúdicos e à descaracterização de elementos de uso cotidiano é José Patrício. Da mesma maneira que Silveira, ele tem uma trajetória artística bastante consolidada. Ambos já participaram de importantes mostras nacionais e contam com exposições internacionais no currículo. Patrício, entretanto, explora uma lógica mais explicitamente construtiva em seu percurso. Seus últimos projetos investigam as possibilidades matemáticas da arte, em jogos que podem ser aleatórios ou cuidadosamente calculados para surpreender o expectador. De início, o artista trabalha prioritariamente com dominós e dados coloridos, mas Da compaixão cínica, Rodrigo Braga, 2005
as novas obras também apresentam brinquedos populares, contas, botões e outros pequenos objetos. De uma maneira inusitada, José Patrício consegue passear tanto pelos pressupostos da combinação matemática – lançada por artistas de vanguardas do século 19, notadamente surrealistas e dadaístas – como também conciliar essa linha com o esforço construtivo de artistas voltados para uma aparência mais concreta da arte. O resultado é uma obra surpreendente, que conquista primeiramente o olhar, apresentando grande diversidade de cores e formas, e, num segundo momento, pela capacidade de equacionar novos procedimen-tos lógicos e criativos. Com tantas informações, formações, influências, diversidade, é, de fato, muito difícil afirmar a exis-tência de uma arte contemporânea pernambucana, cujo eixo da produção esteja marcado pelo regionalismo. É possível, entretanto, reconhecer traços regionais no trabalho desses artistas. Rodrigo Braga, por exemplo, já realizou fotografias com um bode e com rabos de bois, animais associados a um imaginário do Nordeste. Carlos Mélo trabalhou com adornos funerários muito encontrados em cemitérios locais. Marcelo Silveira recorre a procedimentos artesanais, no manuseio da madeira e do couro. Patrício também brinca com jogos populares. É verdade que o olhar do público pernambucano está muito acostumado a esses elementos, que evocam características populares. Cabe-se perguntar, entretanto, se é permitido reduzir a criação de um artis-ta aos materiais que ele utiliza. Neste sentido, pode-se afirmar que é a poética, não a matéria-prima, que defi-ne uma obra e o seu percurso. Neste caso, a arte pernambucana é tão plural quanto seus artistas, que realizam com os meios disponíveis aqui uma obra conectada, sim, com as discussões estéticas vigentes no mundo. Sem que isso signifique a necessidade de negar de onde eles vêm, nem de ratificar posturas que sirvam apenas para discutir questões regionais. ABR 2008 • Continente x
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Do Realismo à reinvenção da arte Do meu ponto de vista, segundo o qual a arte não expressa a realidade, mas a inventa, a arte realista é uma contradição em seus termos. A rigor, um quadro jamais consegue ser a cópia fiel da realidade, por mais que a imite
A
reflexão sobre as tendências realistas que marcaram as artes plásticas, sobretudo na época moderna, possibilita uma leitura do processo artístico que a crítica de arte não costuma fazer. No entanto, pode estar aí uma compreensão desse processo bastante esclarecedora dele, a respeito do qual já tanto se escreveu. Na sua última etapa, que precede o surgimento do que se veio a chamar de arte moderna, o Realismo conduziu a uma progressiva eliminação da fantasia – seja fundada na religião católica, seja na mitologia clássica – até defrontar-se com o mundo real, sem transcendência. É verdade que o Realismo já se manifesta na arte romana, particularmente na escultura de retratos, nos bustos de personalidades importantes, como imperadores e papas, mas também de pessoas menos destacadas socialmente, uma vez que, em Roma, era parte dos costumes fazer o retrato do morto e preservá-lo como presença afetiva. Por isso, esses bustos imitavam com o maior realismo possível o rosto e a expressão do retratado. É justo dizer, portanto, que era uma busca do realismo, menos como propósito artístico do que como uma forma de culto aos mortos. O Realismo vai surgir como tendência artística, muito mais tarde, quando a sociedade se torna progressivamente capitalista e burguesa, como ocorre na Holanda do século 17. Essa tendência irá se estender pela Europa, particularmente na Espanha de Diego Velázquez. Antes disso, porém, no começo da Renascença, já se manifestara a intenção de imprimir à pintura certo grau de realismo, ainda que não desvinculado do sentimento
religioso, como no caso de Giotto. É verdade que, naquela época, a noção que se tinha da realidade era bem outra, mesmo porque o conhecimento do mundo material mal começava e, assim mesmo, limitado pela intolerância religiosa. O homem intuía a complexidade das coisas inanimadas e dos seres vivos, mas não tinha como penetrar-lhes a intimidade. Essa vontade de conhecimento está evidente nos estudos do corpo humano realizados por Leonardo Da Vinci que, desafiando os dogmas e a condenação ao fogo eterno, dissecou cadáveres e desenhou-lhes os órgãos para entender como funcionavam. Só não foi denunciado ao Tribunal da Inquisição porque contava com a amizade e a admiração do papa. De qualquer modo, tentava-se então conciliar a arte com a ciência e, valendo-se da geometria, construir na pintura uma visão racional do mundo objetivo. Nasceu assim a perspectiva, que possibilitou organizar o mundo visível de maneira harmoniosa e coerente. Se não se tratava da transposição do mundo real para a tela, era pelo menos a criação de um espaço imaginado em que ela se refletia idealizada. Por outro lado, a realidade social – a vida urbana, as relações de produção, o comércio – ainda não havia alcançado a complexidade que adquiriria mais tarde, com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo. E é precisamente a soma de todos esses fatores que irá determinar o nascimento do novo realismo, o qual atinge o seu ápice na obra de Velázquez, no século 17. Se abordo este tema agora, faço-o, como disse no início, com o propósito de situar um problema que me parece determinante do curso que a arte tomaria
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Banhistas grandes, Paul Cézanne, 1906
mais tarde – particularmente no início do século 20 – e que decorreu da contradição implícita no Realismo como expressão artística. É que a busca da cópia fiel da imagem do mundo exterior inibe a expressão do imaginário, ou seja, da arte como reinvenção do mundo. Sou levado, mesmo, a afirmar que o célebre quadro As meninas, de Velázquez – sobre o qual já escrevi nesta coluna –, com seu jogo de espelho, que introduz o insólito na cena real – expressaria aquela contradição, ao tentar transcender a banalidade do real. Noutras palavras, preso à contingência do realismo intranscendente, o pintor tenta transcendê-lo criando uma ambígua relação de espaço e tempo, resultante da visão da cena refletida no espelho. Vê-se, pintada na tela, a parte de trás dessa mesma tela em que o pintor retrata a cena, tema do quadro, e a si mesmo, pintando-a. Do meu ponto de vista, segundo o qual a arte não expressa a realidade, mas a inventa, a arte realista é uma contradição em seus termos. A rigor, um quadro jamais consegue ser a cópia fiel da realidade, por mais que a imite. Isso se deve ao fato de que um é real e o outro (a pintura), a cópia dele, ou seja, imagem pintada, o que os distingue essencialmente. Mas, de todos os modos, a opção pela cópia fiel do real indica a desistência de transfigurá-lo e reinventá-lo. E esse foi o problema que se colocou para os pintores do século 19, quando o Realismo
voltou a tornar-se o objetivo dos artistas. Esse fenômeno estético está diretamente ligado às mudanças ocorridas na sociedade européia, quando os valores burgueses e o desenvolvimento capitalista se impuseram definitivamente. Paralelamente a isso, as idéias iluministas, voltadas para o conhecimento e a análise do mundo material e social, haviam posto em plano secundário a visão religiosa e seus valores. Todos esses fatores impõem às pessoas uma relação irrecusável com a realidade material e econômica, que fatalmente se reflete na expressão artística, seja nas artes plásticas, na literatura ou no teatro. Na pintura, fugindo ao realismo social, nasce o Impressionismo, que substitui a imitação das formas reais pela petit sensation, que as pulveriza em vibrações cromáticas. Por isso, quando Cézanne substitui, em suas telas, a impressão fugaz da sensação pela construção sólida, não tem outra escolha, para superar o Realismo, senão desintegrar a linguagem pictórica, dando origem ao futuro Cubismo. A opção de Cézanne, dentro desta concepção, é o passo final da pintura do real, que então implode e dá origem a seu contrário. O Cubismo é o primeiro movimento pictórico em que os objetos do mundo real são substituídos por formas arbitrariamente inventadas. ABR 2008 • Continente x
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CINEMA
Espaço para abrigar curtas-metragens
Documentários da Tal TV requerem acesso por meio de banda larga DOCUMENTÃRIOS
Integração latino-americana via TV online A TAL – Televisão América Latina é uma rede latino-americana de comunicação, criada a partir de um banco comum de conteúdos e ações cooperativas entre canais de televisão e instituições educativas e culturais de todos os países de origem ibero-americana. Com mais de 160 membros, ela abarca produções que compartilham a mesma identidade cultural. Entre meia centena de títulos, o usuário pode acessar gratuitamente um documentário mexicano sobre a vida e obra do poeta mexicano Octavio Paz, conhecer as Minas Gerais do cartunista Ziraldo, ou aprender a receita de um prato da gastronomia uruguaia.. Na área musical, o site apresenta shows de cantores e músicos brasileiros (confira o grupo pernambucano Mombojó), que falam sobre suas origens
e trajetórias. Para quem prefere documentários com conteúdo político, o cardápio traz de reportagens sobre o conflito armado vivido por oito anos em El Salvador a episódios de Contramano, produção boliviana, dirigida por Cecília Lanza, considerado o melhor programa de televisão do país. Na área do comportamento, um cineasta, um jornalista e um músico revelam como vivem os gays panamenhos num país onde a homossexualidade é tabu. O ponto alto do documentário mostra a comunidade indígena dos Koskuna, onde os gays são maioria e são muito respeitados até pelos homens heterossexuais. (Ricardo Melo)
www.tal.tv
BAIXE E OUÇA O clássico Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, obra-prima de Mario de Andrade, já inspirou filme e peça de teatro, mas até hoje não havia estimulado um projeto musical. A missão coube à cantora e compositora Iara Rennó (foto), integrante do grupo Dona Zica, que convidou Tom Zé, Arrigo Barnabé, Siba e Moreno Veloso para a empreitada. O CD ainda não chegou às lojas, mas algumas músicas podem ser ouvidas pela internet. www. myspace.com/iararenno
Quem não assistiu na telona a festejados curtas-metragens como Mauro Shampoo – Jogador, cabeleireiro e homem (veja matéria nesta edição), A perna cabiluda (da mesma equipe do longa Cinema, Aspirinas e Urubus) e Réquiem (adaptação da obra de Lourenço Mutarelli), não deve deixar de conferi-los na rede. O site Portacurtas disponibiliza um acervo de 580 filmes de variados gêneros. Lá, o internauta pode deixar comentários e acompanhar o ranking dos mais vistos e cotados, além de aprender como exibir curtas em blogs e portais. Sempre atualizada, a página também conta com guia de festivais e recomendações de filmes. (Thiago Lins)
www.portacurtas.com.br
REEDIÇÃO
Um romance em capítulos semanais “Eu já andava comentando pelos botecos do Recife que estava a fim de escrever um romance, algo com a estética do mangue, uma linguagem regional plugada a gêneros ou linguagens universais e tal”, escreve Paulo Costa, na apresentação do livro Balada da serpente, publicado em papel, em 2000, pela editora Bagaço. Uma nova edição, agora online, revista e ampliada, é “postada” em capítulos todas as semanas, acompanhada por ilustrações de artistas pernambucanos como Rinaldo Silva, Alexandre Nóbrega, Márcio Almeida e outros. (Eduardo Maia)
www.baladaserpente.blogspot.com
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POST DO MÊS - [ Reunião de Pauta]
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Lição de Casa As tecnoculturas nos deixam mais espertos ou mais idiotas? Os cartoons atuais oferecem uma narrativa mais complexa em relação aos exibidos na TV aberta nos anos 70/80. Eles são um exemplo de como o acesso a todo tipo de informação e, mais importante, novas ferramentas de interação e produção de conhecimento refinam a espécie. Mais espertos então, certo? Hum... O caso do Ben 10, por exemplo, uma nova mania entre crianças e pré-adolescentes. Benjamin tem 10 anos, não vai à escola e desfruta de férias prolongadas com seu avô (quer coisa melhor que um avô fazendo suas vontades?) e a prima (olha aí a tensão sexual!). (...) Mas tem algo que me incomoda neste desenho animado. Ben 10 tem um discurso que deve irritar pedagogos e educadores. Ele ODEIA escola. No último episódio, viu-se confrontado com seu maior pesadelo. Havia voltado à escola. Ali estava ele, apavorado, no meio da biblioteca! Discordo de quem acha que a internet aos poucos destrói a cultura erudita e livresca. Pode acabar com Gutenberg, mas o impresso é só um dos suportes da escrita, e os hipertextos oferecem possibilidades mais interessantes. Digamos que a internet devora meio que antropofagicamente, vá lá. O problema é quando achamos que Machado de Assis é chato e escola é lugar para azucrinar. Tudo bem
PERFIL José Renato Salatiel , autor do blog Reunião de Pauta é paulista de Santos, jornalista, professor universitário e pai de Lucas, 3 anos. Doutorando em Filosofia (PUC-SP) e mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). salatiel-reuniaodepauta.blogspot.com
que as instituições de ensino deveriam fazer um upgrade, mas nada substitui a leitura, o tempo de reflexão e os métodos na aprendizagem. O que me resta dizer? Quem sabe nos próximos episódios Ben redescubre a biblioteca como um lugar tão legal quando a dimensão X. Talvez goste de Kerouac ou H.P. Lovecraft. Alô, vovô!
PALCO
Um portal dedicado ao teatro de PE Na rede desde outubro de 2007, o portal TeatroPE dedica espaço a cena teatral pernambucana, com críticas, coberturas especiais e entrevistas, além de fornecer a programação dos teatros de todo o Estado e cursos na área em toda o Nordeste Entre os colaboradores estão Anco Márcio Tenório, Rodrigo Dourado, Leidson Ferraz, Marcondes Lima. Este mês, o site, que tem patrocínio do Funcultura, fará a cobertura especial do Todos Verão no Teatro e em maio do Festival Palco Giratório. (Mariana Oliveira)
www.teatrope.com
FAVORITOS Mais teatro
O site do ator, bailarino e educador Kleber Lourenço, além de disponibilizar a agenda do multiartista, detalha a trajetória de seus espetáculos, com direito a ficha técnica, matérias e críticas feitas a respeito, a partir de 2004. Os textos trazem curiosidades sobre ícones que vão de Hermila Guedes a Jean Genet. www.kleberlourenco.com.br
Livros alugados
A Loc Livros aluga livros e faz entrega em domicílio, dentro da Região Metropolitana do Recife (Recife, Olinda, Paulista e Jaboatão dos Guararapes), pela taxa fixa de três reais. O aluguel fica por 80 centavos ao dia, cada exemplar. A empresa possui um acervo de 1.800 livros em diversas áreas. www.loclivros.com.br
Itaú Cultural
Os curiosos e pesquisadores da área cultural podem encontrar um rico banco de dados de obras, artistas e conceitos de grande utilidade no site do Itaú Cultural. São cinco enciclopédias virtuais: Artes Visuais, Arte e Tecnologia, Teatro, Literatura Brasileira e Cinema. A enciclopédia de Artes Visuais é a mais antiga e reúne mais de 3 mil tópicos sobre obras, artistas e conceitos artísticos. www.itaucultural.org.br ABR 2008 • Continente
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Imagens: Reprodução
LITERATURA
O espaço do humor A dimensão do humor é tão importante quanto a dimensão da poesia, do processamento das vivências e a elaboração de respostas aos altos e baixos da vida, nos percursos individuais e nos jogos e conflitos que afloram na sociedade Marcelo Mário de Melo
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texto de humor continua ainda sendo visto com olhos enviesados pelas instâncias estatais, acadêmicas, universitárias e associativas que tratam da literatura. O mesmo valendo para as editorias de cultura e outros meandros da mídia. Nos concursos literários, não há vagas para ele. Os festivais de humor são exclusivos para charge, caricatura e cartum. Na área do jornalismo também não há espaços disponíveis, a não ser em situações ocasionais e sob a vestimenta da crônica. Mas nem sempre o texto de humor é uma crônica. E na maioria das vezes, não o é. O que têm a dizer sobre isso os titulares de academias de letras, os gestores culturais, os dirigentes de entidades de escritores e os diretores de cursos de letras? 32 x Continente • ABR 2008
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Em toda a história de Pernambuco, registra-se a ocorrência de apenas dois concursos de texto de humor. O primeiro em 1986, no bojo do I Festival de Humor do Recife, promovido pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, que rompeu com a exclusividade para os artistas do traço e ampliou o leque para texto, teatro e vídeo. O concurso de textos de humor premiou os três primeiros colocados e publicou uma brochura com uma seleção de 50 textos. 21 anos depois, o 5o Festival de Literatura – a Letra e a Voz, da Prefeitura do Recife, realizou outro concurso de textos de humor, sem premiação e com pouca divulgação. A iniciativa é positiva, mas precisa ser ampliada e consolidada, com a inserção do texto de humor entre as modalidades dos concursos literários promovidos anualmente pelo Conselho Municipal de Cultura e regidos por lei. Sem isso, a ocorrência de concursos do gênero ficará ao sabor da vontade dos eventuais déspotas esclarecidos da cultura. E mesmo que sejam bem-vindos, eles e os seus frutos, convenhamos que impor uma periodicidade de 21 anos é exigir muita paciência – ou muito bom humor – do meio cultural. Na 6ª Bienal Internacional do Livro Pernambucano/2007 , a abertura para o humor também se manifestou, com a realização de mesa-redonda tratando do tema Humor na Literatura, da qual participei como autor – ou portador da doença – ao lado de Diego Rafael, professor de literatura, detentor de dissertação de mestrado em torno do tema. O escriba de humor passa por algumas dificuldades específicas. Em muitos casos, o seu texto ou é pequeno demais para figurar como um artigo, ou ultrapassa em muito os seus limites. E os espaços para divulgação são reduzidos. Afora este aspecto técnico, há o predomínio de uma visão primária acerca do texto de humor, muitas vezes identificado com a piada, o escracho, a simples comicidade ou a expressão pornô. Ignora-se a variada gama de matizes que vai da piada à paródia e à sátira, assumindo feição própria ou despontando nos territórios da crônica, do conto, do teatro, da novela, do romance, da poesia. A dimensão do humor na expressão humana ou na literatura foi estudada por Aristóteles, Hobes, Sthendal, Kant, Shopenhauer, Bergson, Freud, que lhe dedicou um livro inteiro, tratando do chiste, e retomou o tema noutros tra-
balhos. O humor está presente em obras referenciais da literatura universal, como D. Quixote, de Cervantes, Cândido, ou O Otimismo, de Voltaire, O elogio da loucura, de Erasmo, nas agrilhoadas de Bernard Shaw, na ironia corrosiva de Swift e nas setas envenenadas de Oscar Wilde. Sem falar em O alienista, de Machado de Assis – marcado pelo arcabouço do conto/novela – pelas mãos de autores como Aparycio Torelly/Barão de Itararé, Stanislaw Ponte Preta, Carlos Eduardo Novaes, Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo, o texto de humor nacional assumiu a maioridade e a identidade própria, exigindo o seu reconhecimento como gênero literário autônomo. A dimensão do humor é tão importante quanto a dimensão da poesia, para o processamento das vivências e a elaboração de respostas aos altos e baixos da vida, nos percursos individuais e nos jogos e conflitos que afloram na sociedade. Enquanto a poesia é a espiral-arco-íris de portas abertas e andantes, unindo o individual e o cósmico, o humor é o espelho invertido, a visão da inglória, o dedo na ferida, o olhar sem névoas, o retorno a terra, o pára-quedas de Ícaro. Diante dos abismos e das perplexidades da condição humana na intimidade do travesseiro e nas vitrines da vida pública, o humor é um instrumento indispensável na orquestra, para que a sinfonia da vida se alargue, complete-se e, principalmente, seja composta sem retoques. Às vezes o humor desafina, para quebrar o encantamento e o torpor. O humor é o espelho crítico dizendo que o rei está nu, os santos pecam, os mitos mentem, os dogmas matam, as utopias tiranizam, os chefes abusam, o amor é vizinho do ódio, o ser amado é desalmado, as sombras são somente sombras e a vida é uma coisa concreta e não mística, uma mistura real de pus e seiva, flores e espinhos. O humor é o real tal qual viceja ou apodrece. O realismo do O humor está presente em humor é o realismo pus e seiva. clássicos, como Regularizar os concursos de D. Quixote textos de humor no Recife e no Estado seria trazer à luz essa vertente da expressão literária, iluminar anônimos, expor talentos e enriquecer a vida cultural na linha do Equador. Que a prefeitura da capital e o governo do Estado dêem esse passo pioneiro, que viria colocar Pernambuco numa condição de vanguarda na frente literária. Um passo essencialmente de esquerda. Partindo-se do conceito fotográfico de que à esquerda se tem mais abertura e mais luz. ABR 2008 • Continente x
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LITERATURA
Priapo, o deus menor Falo no jardim, mescla de ensaio erudito e antologia poética bilíngüe, traz um conjunto de poemas, escritos durante oito séculos, traduzidos do grego e do latim Luiz Carlos Monteiro Fotos: Reprodução
Dança báquica. Mênade e jovem dançam diante de uma herma de Priapo (século 1)
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figura lendária de Priapo, um deus controvertido e menor, é o assunto de Falo no jardim, mescla de ensaio erudito e antologia poética bilíngüe. Tendo como subtítulo Priapéia grega, priapéia latina, o leitor de agora poderá desfrutar de um conjunto de poemas jocosos, eróticos, risíveis ou de configuração religiosa, escritos durante oito séculos, vertidos do grego e do latim. Seu autor, o professor uspiano João Angelo Oliva Neto, escreveu e traduziu este trabalho inicialmente como tese de doutorado, tendo acrescido depois novos textos em prosa e poesia, a exemplo de Um Priapo brasileiro, uns Priapos portugueses, destacando poemas longos, desabridos e bastante conhecidos de Gregório de Matos e Bocage, além de, em Mínima antologia, homenagear tradutores do grego do porte de um José Paulo Paes. Como resultado final, consegue atingir tanto o leitor versado em letras clássicas quanto o não-especializado em poesia da Antiguidade.
Os capítulos iniciais, trabalhados em forma ensaística, contêm uma carga considerável de informações, e são permeados por uma vastidão de notas que fazem referência à mitologia implicada em paralelo. É um fato que as notas e apêndices também logram ajudar na solução de problemas que envolvem a fixação do gênero epigramático e a gênese autoral dos poemas. Do mesmo modo, no tocante à ilustração, Falo no Jardim expõe uma série de imagens que flagram o deus em várias épocas e lugares, através de afrescos, esculturas, estátuas, mosaicos, relevos, moedas e figas, onde foram utilizados recursos materiais e expressivos diversificados. A vertente mais aceitável e corrente da origem de Priapo, o extraviado, é que ele seria filho dos deuses Dioniso e Afrodite, tendo sido abandonado pela mãe nas montanhas e, depois de encontrado, criado por pastores. O culto à sua figura teve início na Ásia Menor, na cidade de Lâmpsaco, região da Trácia, passando dos egípcios aos gregos no período helenístico, nos
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séculos 3 e 2 a.C. Sua imagem fálica associavase costumeiramente às festas dionisíacas, onde a imensidade do membro era objeto de admiração e culto pela sugestão de fertilidade que dá continuidade à vida em todos seus níveis. Priapo, ao ensejar a exposição icônica do falo em ereção permanente, promovia a idéia de fartura de que necessitavam pescadores, marinheiros e horticultores. Pelos pedidos de proteção, abundância, êxito no comércio e nas viagens pelo mar, recebia oferendas e votos. Com relação aos marinheiros, um epigrama “exortativo”, da autoria de Leônidas de Tarento, no século 3 a.C., chega com Priapo avisando-os de que o mar já está pronto para a navegação, como nestes versos: “Eu, Priapo, senhor do porto ordeno, ó homem,/ que navegues por toda a mercancia”. Vale dizer que este poema teve sete imitações na Priapéia grega, originária da Antologia palatina (também chamada de Antologia grega, e composta de 16 livros escritos entre os séculos 3 a.C. e 6 d.C., da qual foram extraídos os 37 poemas gregos de Falo no jardim. Caracteriza a versão desse poema a estrita obediência à métrica (alternando-se entre 10 e 12 sílabas) e a consecução do epigrama como gênero, meta do tradutor, para assinalar o poema priapeu, passando assim a descartar a opção pela rima e pela rítmica, haja vista os versos brancos em maioria absoluta e as numerosas inversões e quebras na cadência nos poemas. Também faziam votos ao deus, doando-lhe peças do vestuário e outros acessórios, as hetairas, prostitutas da época, que desejavam se tornar atrativas e sensuais. Uma das razões do pedido e da oferenda se vinculava à crença de que a energia fálica priapiana poderia ser transferida a seus clientes. Um dístico elegíaco de Hélido, poeta grego do século 3 a.C., mostra como uma delas, Nicônoe, fazendo oferendas a Priapo após a graça alcançada: “Pois a Priapo, que a julgou ser a mais bela,/ tosão de gamo oferta e áureo cântaro”. Na versão deste poema, encontra-se uma das maneiras operativas de João Ângelo Oliva, a inversão referida de elementos lexicais constantes do verso ou da estrofe, como no trecho final “tosão de gamo oferta e áureo cântaro”, onde tal efeito é propiciado pelo verbo “ofertar”, espremido entre “tosão de gamo” e “áureo cântaro”. Outro caso de inversão gritante aparece na Priapéia latina, epigrama 27, onde a dançarina Quíntia “a Priapo dá címbalos, crótalos” e “Em troca – pede – agrade sempre e mais ao público/ e sejam duros quais do deus seus paus.”
Mosaico romano proveniente do norte da África, em que se figura Netuno num carro puxado por cavalos-marinhos. Paris, Museu do Louvre
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Parede externa de uma casa de Pompéia com falo em relevo, anterior a 79 d.C.
Contrário a esse Priapo público – com sua imagem predominantemente hermafrodita, exibida em portos, encostas e praias gregas –, surge o Priapo privado e particular do jardim. Neste ponto, em que o lugar e as situações instigam ao riso, Priapo faz-se torpe, degrada-se pela condição de guarda de jardins. O assédio de ladrões é a sua tortura, e a quebra de sua pose de deus a prova cabal de sua humildade. Por outro lado, pode alcançar uma espécie de redenção momentânea pela possibilidade de ameaçá-los com o símbolo característico e indispensável à sua figura, o falo. A Priapéia latina, composta de 85 poemas anônimos, escritos entre os séculos 1º a.C. e 1º d.C., revela dúvidas quanto à coleta, pois não se sabe com certeza se existiu um autor único dos epigramas, ou se a sua elaboração foi coletiva. No entanto, é onde o “princípio fálico” de Priapo mais se acentua, e os epigramas exortativos de “ameaça” mais ocorrem. Em muitos versos, a fidelidade do tradutor ao dueto métricatema priapeu suscita problemas como o uso, algo indevido, de palavras correntes e gírias que aparecem fora de lugar. No epigrama 15, um Priapo que “sacava” a presença de ladrões (“que eu saco atento a toda a operação”) fica fora de cogitação, pois o verbo “sacar” é gíria relativamente recente e aplicada a contexto de jovens e malandros. Do mesmo modo, aparecem descontextualizadas, palavras como pinto, buça, veado, como no dístico 13, que, apesar dos dois versos apenas, revela uma tradução anódina e não-convincente, aparentando-se mais à prosa: “Se mulher, se homem, se um menino vem roubarme,/ em troca dão-me buça, boca ou bunda”. Um troca-
dilho (epigrama 7), agora em tradução melhor resolvida, exprime com vivacidade a obsessão priapiana pelo próprio falo: “Ao falar, numa letra sempre caio em erro:/ ‘a ti eu falo’ sai ‘a ti meu falo’”. Em contraposição à tentativa de atualização do texto antigo pela gíria dos nossos dias, pode haver o surgimento do oposto, um léxico extremamente saturado e cambiante em termos de uso de um vocabulário passadista e preciosista, que atende apenas aos poetas que dele se servem, uma lavra arcaica que os remanescentes do terceiro modernismo já esgotaram. Na Priapéia latina , mais que na Priapéia grega, aflora-se um Priapo múltiplo, torpe, humilde e rebaixado, subordinado a capatazes ou a proprietários e comerciantes, estendendo o desempenho fálico a algumas situações enviesadas no mundo greco-latino. São introduzidas nos epigramas a relação com animais, caso da cadela de um vizinho, que, na fala priapiana, “após lamber primícias no meu pau,/ minha dureza ela aplacou a noite toda”; seguem-se a masturbação, o homossexualismo explícito ou latente, a ojeriza a mulheres velhas e feias, pragas de abstinência e ameaça de estupro e de sexo oral e anal aos ladrões, meninos e meninas que se atrevam a entrar no jardim. O epigrama 41 (“Quem quer que venha aqui será poeta/ e versos vai me dedicar jocosos./ Senão, junto a poetas eruditos/ vai circular, mas cheio de assaduras.”) demonstra que nem mesmo os poetas escapavam das suas ameaças fálicas Falo no jardim: Priapéia e da sua fúria de deus grega, Priapéia latina Tradução do grego e do latim, rústico e carente de ensaios introdutórios, notas e homenagens e ofeiconografia de João Angelo Oliva Neto rendas de qualquer Ateliê Editorial/ Editora da Unicamp teor ou procedência, 90,00 reais inclusive versos.
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LITERATURA
Pacífica convivência entre coisas e seres Em O cristal dos verões, o paraibano Sérgio de Castro Pinto reúne poemas selecionados de seis livros anteriores, comemorando 40 anos de poesia Maria da Paz Ribeiro Dantas
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Divulgação
da página, reveste-se da remota (e érgio de Castro Pinto deagora presente) ferocidade expressenha com palavras. Seus sa no seu rugido: versos são rabiscos de um Tigrrrre, ruges traço seco e descarnado, a tua fúria gerador de imagens que associam dentro do nome ? presença / significação – ou meEssa iconicidade ressignificadolhor, ressignificação às palavras ra, fundamentada na concisão da enquanto signos lingüísticos. O frase-imagem, inscreve a poética olho do poeta é uma câmera que de Castro Pinto na linha de um não apenas fotografa os objetos, Cassiano Ricardo. Não o Cassiano antes os transfigura no ato de os de fases anteriores a Jeremias sem mostrar.. Assim é, de modo espechorar, como o de A difícil manhã, cial, nas composições do livro Zôo ou Martim Cererê, dentre outros. imaginário .A girafa, por exemplo, Mas o que escreveu salta no asfalganhou seis composições. O poeto: “Um tigre na cidade/ um cromo ma número seis nos leva a pensar feroz./uma mudança brusca /em no referente do signo girafa (que cada palavra /dentro do dicionário/ num giro sonoro vira gravata); ou peça de vestuário olhada em sua O poeta paraibano Sérgio de Castro Pinto onde resido.” (de Jeremias sem chorar); um livro que, na sua época (1964), detonou proverticalidade colorida: fética e liricamente a antevisão do que seria o mundo Gravata que então se configurava por meio da automação, em De corpo todos os campos, inclusive no sentir humano (JereInteiro mias não chora). Recém-saída A diferença é que em Zôo Imaginário Castro Pinto Do tintureiro. não avista nenhum futuro esdrúxulo a caminho. Tudo Em Ao redor do tigre, o poeta trabalha com a soparece já ter acontecido e agora resta contemplar (ao noridade do nome timenos em poesia) a pacífica convivência entre as coigre, tornando visuais O cristal dos verões sas e seres: os seus componentes Sérgio de Castro Pinto Escrituras Da máquina, lingüísticos. Tigrrrre 160 páginas no laboratório (escuro), passa a ser, no poema, 24,60 reais pulam manhãs não mais um simples e dóceis se misturam signo, alusivo à idéia crianças, tigres e rãs. (De A ilha e a ostra). de um animal. Na selva ABR 2008 • Continente
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LITERATURA
Valmir Jordão, luz e sombra
Os críticos literários não têm dado a devida importância à poesia marginal de Pernambuco, um oceano que não é visto Urariano Mota
Rafael Gomes
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m um perfil haikai do poeta Valmir Jordão, poderia ser escrito: irreverente, medo de altura, um feroz humor. Autor de versos que hoje correm mundo, tão antológicos que viraram quase domínio público, “Coca para os ricos / Cola para os pobres / Coca-Cola é isso aí”, o poeta Valmir não só corre o mundo em versos, também corre perigo em pessoa. Digo que o poeta corre perigo em pessoa e não escrevo isso por ser um fingidor. Valmir Jordão vem de uma geração que se convencionou chamar de poetas marginais do Recife, que perdeu três, de uma só partida, em 2007: Chico Espinhara, Erickson Luna e França, nessa ordem. Chamados de poetas marginais por incompreensão ou preguiça, com mais propriedade poderia ser dito que ele é herdeiro de uma geração de poetas radicais, que escrevem poesia além das páginas, na própria vida, no próprio corpo. Como uma tatuagem. Desse estigma, ele próprio já disse, exaltado: “Marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou. Repito isso: marginal é a poesia, desde que Platão a expulsou da República, certo? Então não tem nada a ver com poeta marginal, porque eu nunca assaltei ninguém, nunca matei ninguém”. Apenas, e isto é um crime para uma tradição de poetas que cantam o belo do rio sem olhar suas margens, Valmir Jordão é o guerrilheiro deste petardo:
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Zenival
Eric Luna, França e Francisco Espinhara, representantes da poesia marginal de Pernambuco
AH, RECIFE Dizem os bardos que uma cidade é feita de homens, com várias mãos e o sentimento do mundo. Assim Recife nasceu no cais de um azul marinho e celestial, onde suas artérias evocam: Aurora, Saudade, Concórdia, Soledade, União, Prazeres, Alegria e Glória. Mas nos deixa no chão, atolados na lama de sua indiferença aluviônica: a ver navios com suas hordas invasoras e o Atlântico como possibilidade de saída... É desproporcional, de uma grande brutalidade, a importância desse fazer poético e sua repercussão nos jornais. Já escrevi antes e repito, cada vez mais sólido de experiência: a chamada poesia marginal de Pernambuco é um oceano que não é visto. Talvez porque os seus poemas estejam em edições pequenas, de tiragens pequenas, de circulação pequena, a preço de duas cervejas. Talvez porque, diferente dos grandes, ou dos quase grandes, dos tidos como grandes, eles não venham apresentados pela mais douta e circunspecta crítica, aquela que descobre em cada obra uma reedição de Baudelaire, de Elliot ou da última referência que estiver em moda. Diferentes dos grandes, eles são todos filhos de má família, um eufemismo, como Valmir Jordão diz em MATER: “Não culpe as putas / pelo comportamento / nefasto dos filhos”.
Confesso que despertei primeiro para a sua poesia quando faleceram dois poetas-símbolo do movimento, Chico Espinhara e Erickson Luna. O intervalo dos seus óbitos foi curto e eloqüente. Chico, em fevereiro de 2007. Erickson em abril de 2007. Dois meses entre um e outro. De males diferentes, mas de gênese única. Ambos poetas cujo estilo de vida, de aparência romântica, foi antes uma autodestruição pelo álcool e por outras drogas que não atingiram o veneno da legalidade. Dois poetas representativos de uma das tendências do movimento. Mal refeito, no começo de outubro do mesmo ano, recebi a vez do poeta França. Diante disso, pude então sentir que, na próxima vez em que encontrasse um poeta, deveria falar bem alto o que eu pensava, para não procurar depois uma inútil, compensatória estrela no céu. Por isso digo agora, de modo claro e sem dúvida. A poesia de Valmir Jordão, cujos versos hoje repercutem entre escritores gaúchos, que se mostraram encantados por sua revolta e humor, deveria estar gravada em portas, cartazes, cartões, campanhas de cidadania e cartas públicas. “Descamisado / Ai de mim / Ai de ti / Aids em nós”. Ou então: “Passei tão mal / ao ver imensa fila / diante do hospital”. Este é o poeta com quem tenho caminhado, ele sempre de bom humor, mesmo nas situações mais vexatórias, quando lhe digo que o poder público dá aos poetas esmolas, para lançar no livro contábil das boas ações do dia. Porque Valmir Jordão é um poeta radical, dos que zombam da própria e difícil sobrevivência. Espirituoso, ele é o artista que nos diz, enquanto procurávamos tirar umas fotos suas, e lamentamos descobrir que algumas ficaram escuras. “Não faz mal, a vingança da luz é fazer sombra”. Por isso neste ponto me retiro, abrigado que fui até então por essa luz. Retiro-me, confesso, com a renovada esperança de que ele não me diga, ao fim:
METAFÍSICO Na saída dum chato, é que percebe-se a presença de espírito. ABR 2008 • Continente x
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conto >>Alexandre Santos
SOBRE O AUTOR Alexandre Santos é presidente da Academia de Letras e Artes do Nordeste do Brasil
A triste morte do pequeno demônio
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assara os últimos 60 anos torcendo para que a Morte, em sua grandeza, o levasse, livrando-o dos milhares de fantasmas – vultos de vísceras à mostra, rostos queimados e vidas destruídas – que, desde a explosão da cidade oriental, o atormentavam com os gritos e choros da dor sem fim. Neste interregno, contrariando súplicas e prantos, sem chance de vislumbrar quaisquer dos reinos celestiais, nem mesmo os das profundezas infernais, seu espírito permaneceu aprisionado naquele corpo pecador, padecendo as marcas do tempo e as dores da história. A cada dia que viveu exilado em seu próprio interior, atormentado pelas trevas que lhe antecipavam as penitências que sabia merecer, odiou o capelão que, a mando do próprio Demônio, lhe garantira absolvição negando a existência de pobres inocentes. “Onde está a misericórdia Divina, que a tudo perdoa?”, perguntavase a cada soluço, a cada pesadelo, a cada espasmo. Na eterna depressão em que viveu mergulhado, concluiu que, além de indigna para a mesa do Senhor, de tão suja, sua alma sequer merecia a sarjeta dos demônios. Um dia, no entanto, para sua alegria, a Morte chegou. Sem maiores explicações, o arrebatou do leito imundo e o jogou na eternidade. Saído da escuridão, viu o céu em chamas em meio a uma nuvem púrpura que explodira em forma de cogumelo. Tinha começado o seu inferno. Miniconto inspirado na morte, aos 92 anos, em 1º de novembro de 2007, do general norte-americano Paul Tibbets, que, em 6 de agosto de 1945, no posto de coronel, lançou a bomba atômica sobre Hiroshima, matando 80 mil pessoas imediatamente.
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Luzilá Gonçalves Ferreira
Francisca e Generino: um amor literário Reprodução
As fotos nos mostram uma mulher de 26 anos e grandes olhos tristes. Publicara poemas em jornais do Recife, declarações amorosas discretas, naqueles tempos as moças deviam disfarçar seus sentimentos. Uns anos antes, um certo senhor Balzac enviara um recado a todas aquelas que ousavam escrever: só a necessidade financeira podia justificar a entrada de uma mulher na arena das letras. Publicar: tornar-se pública, lembrava. Escrever poemas: entregar aos leitores segredos que só ao marido competia saber, imaginem. Francisca Izidora já havia cantado, por vias transversas, os “olhos negros e crespos os cabelos” do amado, o poeta Generino dos Santos, um dos redatores de O Diabo a Quatro, revista satírica que deliciou parte da elite intelectual recifense, entre os anos de 1873 e 1878. Reconstituir o percurso sentimental desses dois poetas é lhes acompanhar a produção literária através dos anos, desde Cena campestre, poema citado por Henrique Capitolino em Pernambucanas illustres (1879) até o discurso que Francisca pronunciou na homenagem à poetisa Úrsula Garcia, em 1908, em que confessa ter vivido uma infeliz história de amor e declama longo poema de Generino, sem que nada justifique essa citação. No jornal O Lyrio, em 1903, Francisca Izidora ficcionaliza sua paixão, no conto A chibatinha, em que descreve o enleio de um jovem casal de poetas, entrecortado por leitura de poemas, e a partida do rapaz para longes terras, deixando inconsolável sua parceira: “Ele sentado junto dela recitava apaixonadamente estrofes de Francisco Copée, ou preludiava cantando o Sonho da sonâmbula... e ela, a seu lado, tendo nos cabelos uma rosa, ouvindo-o, seu íntimo devaneio fitava os seus olhos, que a envolviam nos eflúvios magnéticos de um olhar azul celeste !...Eram assim os dias de festa, quando ele vinha da cidade para o engenho, gozar dos encantos da natureza num cenário deslumbrante de variegadas
paisagens, e entregar-se enlevado à mística convivência do coração.” Essa cumplicidade literária, suspensa com a viagem de Generino para o Rio de Janeiro, florescera quando, por meio de poemas, os dois dialogaram. Em 1883, Francisca publica no Almanach Litterario Pernambucano o poema O banhista em que convoca o amado: “Vem! Dá-me tua mão! Voemos sobre as ondas/ como cisnes talvez, levados pelo amor”. Ao que responde Generino, com A ilha dos amores, em longo poema transcrito por Melo Moraes Filho no Parnaso Brazileiro, em 1885. Mas onde antecipa a dificuldade de corresponder inteiramente ao amor da poetisa, confessando-se louco, ao tomar por realidade o que era sonho, devaneio. A partida do poeta não fez diminuir o amor de Francisca. Ela é a moça solitária que, entre bambus e roseiras, “de amor desfalece amando ainda”. Que encontra no canto do cauã correspondência à sua tristeza: “Mas quem sente no peito a dor pungente/ – Único elo que nos prende à vida –/ Não pode ouvir teu canto indiferente”. Ou que pede aos “cabelos negros, perfumosos”, do amado, que a prendam à vida, eles que são “da cor do (seu) destino.” Na capital, Generino se dedica a uma poesia científica, que louva os heróis da humanidade, a maçonaria, deixando um enorme acervo reunido e publicado após sua morte em 1938 – quase 20 anos depois de Francisca Izidora. Esta, certamente levada pelo amor, viajara ao Rio em setembro de 1902. Voltara desiludida, trazendo um soneto sobre Maciel Monteiro que o amado enviava à Academia Pernambucana de Letras “por obsequiosa galanteria de Francisca Izidora”. Recompensada pelo Endereço seguinte: “Senhora, vós que sois da sua raça/ pelo sangue do vosso pensamento/ Dizei-lhe que só vale o sentimento/ que estes versos ditou – E a vossa graça”. Um consolo. ABR 2008 • Continente x
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MÚSICA
livros
Narrativas fantásticas
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ncontro em Ouro Preto, de Geraldo Holanda Cavalcanti, marca sua estréia na ficção, ele que já é um tradutor respeitadíssimo e um poeta conhecido. À maneira de Julio Cortázar, seu livro de contos fantásticos inicia-se lançando o leitor num universo de infinitas possibilidades – algumas curiosas, outras sombrias. A narrativa que dá título ao livro assinala, assim, a natureza do encontro que espera o leitor: a ambigüidade entre realidade e impossibilidade, fundamento, por sinal, do gênero fantástico. O escritor abre seu livro com uma epígrafe de Tzvetan Todorov, para quem a essência do fantástico é “hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural”. Divulgação
Em alguns contos, Holanda Cavalcanti, literato consciente e dono de estilo límpido, atinge o equilíbrio necessário a uma boa “estória” fantástica, contrastando fatos improváveis com o ceticismo de uma linguagem quase jornalística. Por sinal, os pontos altos e baixos do livro se concentram nessa tensão – com exceção talvez do conto 25 anos depois, em que desenvolve uma linguagem poética responsável por uma alta voltagem de significado humano que essa narrativa especialmente exprime. Destacam-se ainda do conjunto os contos Felipe e A outra face de Eva, que compensam com firmeza inventiva alguns textos mais óbvios, como O visitante Encontro em Ouro Preto: Contos e O marciano. No saldo fantásticos geral da obra, elegância Editora Record 188 páginas e boas idéias de um novo 30,00 reais autor, que Holanda nos apresenta em seu duplo contista. (Fábio Andrade)
> Ensino literário posto em xeque
> Os primeiros traços de Zé Lins
> Uma história das idéias econômicas
> De quem ama e para quem ama
Com um título inusitado, o livro do crítico e professor Joel Rufino dos Santos questiona a metodologia de ensino da literatura no Brasil. Para ele, é quase infrutífero apenas analisar as obras em relação aos movimentos, escolas e estilos de época. O autor propõe uma didática que valorize os vínculos da literatura com a vida social e as outras áreas do conhecimento como a Sociologia, a Psicologia, a Teoria da comunicação e até a Economia. Nos ensaios, Joel tenta pôr em prática essa concepção, com maior ou menor sucesso dependendo do tema e da disciplina. Obra de mérito inegável, peca ao utilizar bordões e lugarescomuns ultrapassados ao tratar temas como marxismo, psicanálise e ciência.(Eduardo Cesar Maia)
Os escritos de juventude do autor do excelente Fogo morto e do famoso Menino de engenho são reunidos nessa antologia de crônicas e artigos publicados em jornais entre 1919 e 1924. Os textos podem ser interpretados como tentativas de um jovem intelectual de compreender a si e ao seu tempo através das relações entre a literatura, a sociedade e o indivíduo. Lêem-se desde comentários sobre política, história, religião e jornalismo até observações sobre alguns intelectuais da época e fatos do cotidiano, numa linguagem simples – muito próxima da dos seus romances. José Lins participou ativamente da vida intelectual de sua época e foi autor de 12 romances e um volume de memórias. (ECM)
Este livro não trata dos fenômenos econômicos em si, mas da maneira pela qual alguns homens tentaram compreendê-los. As idéias econômicas são tratadas como um ramo da história intelectual geral. O autor mostra que, de certa forma, formulações de natureza "economicista" já eram esboçadas desde a Antigüidade (oikonomicos, para os gregos, referiase aos procedimentos para uma boa administração do lar). Ainda que de forma não sistematizada, tais referências aparecem em autores como Homero, Hesíodo, Xenofonte, Platão, Aristóteles, em teólogos medievais e pensadores islâmicos. Os modernos e contemporâneos – economistas strictu sensu – são estudados com mais ênfase e detalhe. (ECM)
Psicoterapeuta de sólida formação humanista, Vera Stringuini discorre “sobre aquilo que definitivamente não sabe”. O levantamento em profundidade de questões delicadas, que poderia se perder em relativismos, acaba proporcionando vislumbres esclarecedores. O que é uma façanha, em se tratando de amor. Apesar da formação acadêmica da autora, o texto é de uma fluidez que poderia ser ficcional. Repleto de referências, da poesia à sociologia, o livro insere o amor num contexto geral: afinal, o tema (amor) está em tudo. Leitores menos entusiasmados podem discordar em alguns aspectos. Mas, na contracapa, está explicado: “É um livro de quem e para quem ama”. (Thiago Lins)
Quem ama literatura não estuda literatura Joel Rufino dos Santos Rocco 199 páginas 26,00 reais
Ligeiros traços José Lins do Rego José Olympio Editora 304 páginas 35,00 reais
História da economia mundial Roger E. Backhouse Estação Liberdade 427 páginas 53,00 reais
Amar amando Vera Stringuini WS Editor 175 páginas 35,00 reias
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MÚSICA
A tragédia de um amor voraz e impossível
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ipólito é um jovem caçador, filho de Teseu – o herói que matou o Minotauro – com uma amazona, uma mulher guerreira. Tem entre 15 e 18 anos. É belo, casto de corpo e puro de alma, um homem de palavras verdadeiras, devoto fiel da deusa virgem Ártemis. Fedra é a atual mulher de Teseu que, ao ver Hipólito pela primeira vez, se apaixona violentamente pelo rapaz. E, embora tente esconder sua voraz paixão ilícita, acaba confessando-a a uma ama. Na canhestra tentativa de ajudar sua senhora, a ama conta tudo a Hipólito, que reage com indignação, embora prometa não reve-
lar nada a ninguém. Ao saber que seu amor foi rejeitado, Fedra se mata. Mas deixa um bilhete traiçoeiro, dizendo que o enteado a possuiu à força. Iludido pela morta, Teseu lança uma maldição de morte sobre o filho que não pode se defender por causa da promessa feita. Hipólito tem morte violenta e Teseu, ao saber a verdade, se desespera. Este é, em linhas rápidas, o enredo da tragédia grega Hipólito, de Eurípides. A peça ganhou versão latina, por Sêneca, e francesa, por Racine, destas vezes com o nome Fedra. Joaquim Brasil Fontes traduziu as três para o português. Vale a pena ler os três textos em seqüência, para ver como três grandes escritores trataram um mesmo tema. Uma introdução de quase 100 páginas e os textos originais complementam esta bela obra. (Marco Polo)
> Uma voz diferente >Os 10 anos da na poesia nacional Editora Calibãn
> Crueldade num país de sombras
> Ingenuidades de um jovem escritor
Reunião de oito livros de poemas, Ata, de Moacir Amâncio, traz textos em inglês, espanhol, hebraico e, naturalmente, português, o que constitui, no entender de Berta Waldeman, que assina o prefácio, a opção de construir territórios de enunciação. É como se o poeta tentasse se afastar dos automatismos de sua língua natal para recuperar a palavra em sua nudez original, usando como recurso o estranhamento de outra língua. Tudo isso, entretanto, é apenas um aspecto da poesia de Amâncio, que transita na busca de significados duros para palavras duras, numa poesia nem sempre fácil, pelo contrário. Trata-se, assim, de uma voz diferenciada dentro de um cenário multifacetado. (MP)
A escritora inglesa de romances policiais Ruth Rendell se destaca por construir tramas que escapam à estrutura esquemática que caracteriza o gênero. Em particular neste Sem perdão, há estórias paralelas com muitos personagens e várias surpresas ao longo da estória. Três tópicos sombrios se entrelaçam: o seqüestro de adolescentes, o espancamento de mulheres e o abuso sexual de crianças. Loucura, arrogância e preconceitos também se manifestam dentro do clima geral de suspense que indica a proximidade de um assassinato a qualquer momento. Personagens ambivalentes e complicados dão o toque final neste romance ambientado no interior da Inglaterra. Entretenimento de boa qualidade. (MP)
Eça de Queirós deixou incompleto este romance em que sua verve cruelmente irônica tem como alvo as ingenuidades de um jovem aspirante a escritor. Estudante provinciano, Artur Corvelo é um poetastro que sonha ascender socialmente após construir notoriedade literária em Lisboa. Jornalistas espertos e oportunistas, figuras artificiais e afetadas são o contraponto à ridícula vítima que, de queda em queda, vai terminar regressando à sua terrinha totalmente desiludido com o fracasso de suas ilusões. Acreditase que Eça suspendeu várias vezes a conclusão do livro porque havia nele alguma coisa de autocrítica e o reconhecimento de que a arte exige muito mais que devaneios. (MP)
Reprodução
Ata Moacir Amâncio Record 588 páginas 65,00 reais
Ao completar 10 anos, a Editora Calibãn lança um número especial da sua revista de cultura homônima, trazendo como destaque 17 páginas comemorativas dos 80 anos de Ariano Suassuna e uma entrevista exclusiva com o poeta francês Yves Bonnefoy. Surgida com o propósito de ser uma publicação não só de informação como também de formação, traz textos sobre várias áreas da cultura, como literatura, poesia, filosofia, cinema, teatro e artes plásticas. Neste número, também, ensaios de Marco Lucchesi sobre a poesia da matemática, e sobre poesia e sagrado, por Nelson de Oliveira. Destaque para a capa, de Moema Cavalcanti, a partir de um mosaico de Ariano e Guilherme da Fonte. (MP) Calibãn Vários autores Calibãn 160 páginas 20,00 reais
Hipólito e Fedra Eurípides, Sêneca, Racine Iluminuras 496 páginas 53,00 reais
Sem perdão Ruth Rendell Rocco 448 páginas 54,00 reais
A capital! Eça de Queirós Editora Globo 430 páginas 30,00 reais
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Rafael Gomes
CINEMA
O show de Shampoo
Revelado no CinePE 2006, curta-metragem de baixo orçamento já conquistou 16 prêmios Thiago Lins
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único título que consegui na vida foi o de eleitor”. A frase é do anti-herói Mauro Shampoo, protagonista do documentário que leva o seu nome, acrescido da definição cômica Jogador, cabeleireiro e homem. A trajetória do ex-atacante é repleta de façanhas negativas. “É, foi só derrota”, completa sem lamentar. Shampoo parecia o personagem ideal para o documentário de Leonardo Cunha Lima e Paulo Fontenelle: ainda em sua própria concepção, o filme trilhava uma estrada sinuosa. “Eu havia acabado de filmar o primeiro curta e estava completamente sem dinheiro. Uma noite, conversando num bar com meu amigo Leonardo Cunha Lima, ficamos procurando um projeto de baixo orçamento e que envolvesse uma equipe bem pequena. Surgiu a idéia de se fazer um documentário. Queríamos um tema que não fosse simples, mas que fosse surreal demais para ser realidade. Tivemos então a idéia de fazer um longa sobre o Íbis 44 x Continente • ABR 2008
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Sport Club, abismados pelo fato de o Brasil, pentacampeão mundial de futebol, abrigar também o pior time do mundo. Passamos dois anos pesquisando a história do clube e como não conseguimos dinheiro suficiente para rodar um longa, resolvemos iniciar o projeto com um curta sobre o atleta, símbolo do time: Mauro Shampoo, o camisa 10 que em 10 anos de carreira só havia marcado um gol”, lembra Fontenelle. E lá se foi a equipe diminuta que, além da dupla de diretores, abrangia apenas a produtora Daniele Abreu e Lima. Trocando milhas de viagem por bilhetes, deixaram o Rio de Janeiro para seguir até o Recife, onde se hospedariam na casa de familiares, para filmar com orçamento aproximado de 500 reais. Com três câmeras emprestadas – duas delas amadoras – e muitas fitas recicladas, em um mês o grupo reuniu mais de 30 horas de gravação, extraídas do dia-adia de Shampoo. Às vezes a filmagem tinha que ser interrompida: às gargalhadas, os diretores tremiam a câmera sem querer. Apesar do cuidado, ainda é possível ouvir as gargalhadas assistindo ao filme. O que não é um problema: à vontade, a equipe focava um personagem ainda mais à vontade e acabou fazendo um curta de comicidade peculiar. “Acho que nunca ri tanto quanto no mês que passei no Recife”, diz Fontenelle. Assim como o repórter nunca riu tanto durante uma entrevista. O primeiro contato foi por telefone, atendido da seguinte maneira: “Mauro Shampoo. Jogador, cabeleireiro, homem e artista de cinema”. Pronto, entrevista marcada numa galeria da zona Sul do Recife. O seu salão é temático: poltrona do Sport, do Náutico e do Íbis. Campo de futebol estampado no chão. Incontáveis fotos de celebridades abraçadas, mas também ofuscadas
por alguém que domina aquele espaço, com sua aura. Shampoo é uma pessoa efusiva. Expansiva. Show. Show. Show – é assim que pontua as frases: Show. Faz isso tanto, que o substantivo parece ser proferido involuntariamente, como um tique nervoso. Característica de uma figuraça, tal como a cabeleira à la Maradona. São 11 horas da manhã e Shampoo recebe o primeiro cliente do dia. “Show, vou me concentrar no corte como se fosse bater um pênalti. Show.” Alguém que entreouve no salão comenta: “Não faz isso. Você nunca fez gol de pênalti”. Feito o serviço, o cliente paga (10,00 reais que Shampoo afirma cobrar há 10 anos, mais 10,00 reais de gorjeta) e vai embora com o corte novo, tipo “caminho do gol”: laterais rebaixadas para dar mais velocidade. Shampoo deixa o salão. Na galeria, ouve-se um grito de causar espanto e uma pancada no chão. Eis que Shampoo ressurge, sorriso estampado e brilho no olhar. “Faço isso todo dia, depois do primeiro cliente. Tira o olho grande. Show.” Essa é a (anti) estrela do documentário que foi aplaudido de pé pelos 3.000 espectadores do Ci-
nePE Festival do Audiovisual (ver box), em 2006. Festival que foi uma espécie de “divisor de águas” para Fontenelle: “Não poderia haver vitrine melhor. A partir daquela noite, tive a sensação de dever cumprido. Tive certeza de que o filme teria uma bela carreira”. Entre os diversos prêmios concedidos posteriormente, o diretor lembra que o do Festival do Rio, ainda em 2006, teve um “sabor especial”: Shampoo participou da premiação e, pela primeira vez na vida, levantou um troféu. Na mesma noite, cortou cabelo na entrada do Festival, vestido de jogador, para promover o filme. Ainda no Rio, conheceu o Maracanã. “Fui para o Rio como artista de cinema. Souberam que eu nunca tinha entrado no Maracanã como jogador, então me levaram. Aí me tornei um jogador de verdade. Show.” Shampoo se diz um homem realizado. “Plantei alguma coisa. Show”. Dito isto, começa a chorar: “Eu sempre choro. Mas, não sei por quê, não chorava durante a gravação. Aí, quando a gente tava acabando, desabei. Seu Paulo (Fontenelle) disse que tava a ponto de me bater pra me fazer chorar. Não tinha um jeito melhor de fechar a gravação!” Álbum de família
Uma história de sucessos, cheia de derrotas: os diretores e seu personagem
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FESTIVAL
CINEMA Reprodução
Mais sobre o CinePE
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CinePE Festival do Audiovisual chega à sua 12ª edição este ano – que acontecerá de 28 de abril até 4 de maio, no Teatro dos Guararapes do Centro de Convenções de Pernambuco. Este ano, foram inscritos 162 curtas e 77 longas. Somados aos 228 vídeos digitais, o total de películas em 2008 é de 467. Além das exibições, o Festival também abriga oficinas técnicas, seminários, lançamento de livros e exposição, entre outros atrativos. O evento ainda sedia a Mostra Competitiva, durante a qual será distribuído o Prêmio Calunga. As 12 categorias do prêmio serão disputadas por quatro documentários e quatro ficções, listados a seguir.
Tirando leite de pedra, Shampoo foi se virando e chegou lá. Assim como o personagem, a equipe deu suas provas de superação, filmando com pouco dinheiro e muita paixão. “A alegria, o positivismo e a solidariedade de Mauro são coisas que levarei para o resto de minha vida. Fui para o Recife procurar um personagem e achei um amigo para a vida toda”, afirma Fontenelle. O diretor está terminando seu primeiro longa, sobre o mutante Arnaldo Baptista, e reconhece as portas abertas pelo documentário: “O contato com outros realizadores, programas de televisão, bocaa-boca, o reconhecimento do público, tudo foi estimulante. Tenho certeza de que Mauro Shampoo
–jogador, cabeleireiro e homem será sempre um belo cartão-de-visitas”. Cartão que deve ter causado uma boa impressão de Leonardo Cunha Lima no exterior. Lima, co-diretor do curta, mudou-se para a Nova Zelândia e continua trabalhando com cinema. Fontenelle ressalta: “Ainda temos o sonho de voltar às origens do projeto e fazer um longa sobre o Íbis”. Com o sucesso do curta, patrocínio não deve faltar. O ex-jogador, que se queixa de ter apenas o título de eleitor, pode, finalmente, alcançar outro título: o de vereador – sugestão de um político local. Nem precisava: sua pequena/grande cinebiografia já rendeu 16 prêmios, em festivais que vão de Sergipe a Bruxelas.
Ficções • Bodas de Papel (SP), de André Sturm • Nossa vida não cabe num Opala (SP), de Reinaldo Pinheiro • Ouro negro (RJ), de Isa Albuquerque • Simples mortais (DF), de Mauro Giuntini Documentários • Tempos de luta (RS), de Tabajara Ruas • Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (PE), de Leo Falcão • O retorno (SP), de Rodolpho Nanni • Olhar de um cineasta (SC), de César Cavalcanti * Informações atualizadas sobre a programação do Festival: www.cine-pe.com.br
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CINEMA
Um homem, um país
Documentário sobre a vida e obra de Celso Furtado traça um panorama da história e da economia do Brasil na segunda metade do século 20 Marcelo Costa
Imagens: Divulgação
É
curioso como a biografia de um homem muitas vezes se confunde com a história de uma região, de um país, ou mesmo com o contexto internacional no qual ele se encontra. Em alguns casos, a intervenção desse indivíduo em determinado campo do conhecimento ou de atuação é tão relevante que a sua vida e a construção do processo histórico parecem caminhar juntos como duas partes inseparáveis e complementares. São sujeitos cujas idéias – decorrentes de uma observação e de uma percepção aguçada da realidade – tornam-se o epicentro de um abalo sísmico ou o olho de um furacão capaz de provocar um alvoroço no estado de coisas vigente; seja através da discussão intelectual ou da ação propriamente dita. Um bom exemplo disso é a vida de Celso Furtado, o seu diagnóstico da história econômica do Brasil e o desenvolvimento de
um pensamento inovador para o país, fruto de anos de estudo aliados a uma admirável capacidade de análise crítica. Sua vida e obra são o motivo de O longo amanhecer, cinebiografia dirigida por José Mariani, que traça um panorama da história e da economia do Brasil na segunda metade do século 20. Despretensioso do ponto de vista artístico, o filme se vale da glamorização, própria da imagem, e do seu poder documental para restituir o valor de seu personagem. Logo na seqüência de abertura, a figura de Celso Furtado, durante entrevista concedida em julho de 2004, toma a tela acompanhada por uma música instrumental. Um olhar afetivo e carinhoso daquele senhor de gestos pouco ambiciosos, contido por uma admirável discrição, revelará, ao longo dos depoimentos, a lucidez e a capacidade de ordenação das ABR 2008 • Continente x
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CINEMA
O jovem Celso Furtado em reunião com San Tiago Dantas
Maria da Conceição Tavares considera Furtado o maior pensador econômico brasileiro do século 20
idéias com as quais construiu seu pensamento em sintonia com a história do país. “O importante é saber-se orientar diante das possibilidades. Pensava em ser um homem de letras, um grande romancista, mas intuí que meu forte era captar o essencial na realidade; meu forte era o ensaio, onde minha inteligência era mais frutífera. Através da análise eu passei a transformar o mundo real em exercício mental”, revela o intelectual que dedicou a vida à compreensão da realidade brasileira. Não sabia o diretor que aquele seria o último depoimento gravado de Furtado, que viria a falecer em novembro do mesmo ano. À medida que reconstrói o relato biográfico de seu personagem, o filme investiga a atualidade de seu pensamento a partir da retórica verbal de cientistas sociais e econômicos. Nesse sentido, O longo amanhecer se assemelha ao Engenho de Zé Lins, que reconstituía a memória do escritor e do homem José Lins do Rego, enaltecendo-lhe a personalidade efusiva e, sobretudo, a relevância de sua obra. Uma seqüência de depoimentos trata de situar Furtado no Olimpo dos intelectuais responsáveis pela compreensão do Brasil Contemporâneo. “Celso está no panteão dos grandes demiurgos do Brasil, dos inventores do que a gente pensa do Brasil hoje. São os autores do modernismo brasileiro na década de 30; pessoas como Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda”, afirma Francisco de Oliveira. Já Maria da Conceição Tavares o destaca como “o único grande pensador brasileiro do século 20 no campo da economia”. Como num mosaico, fatos biográficos se misturam a acontecimentos históricos numa narrativa cronológica e convencional, construída sobre as entrevistas e pertinentes imagens de arquivo. Nascido em 1920, no sertão paraibano, Furtado formou-se em Direito em 1944 e logo em seguida foi convocado para servir na Segunda Guerra Mundial, experiência que lhe serviu como um laboratório e lhe aguçou a curiosidade em relação ao mundo. Em 1946, iniciaria o doutorado em Economia na escola mais avançada de Paris: ponto de partida para o aprofundamento dos seus estudos e o desenvolvimento de sua teoria baseada na herança keynesiana e na análise histórica. A participação na Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) demonstraria sua preocupação com o subdesenvolvimento como efeito da dominação. “Ele colocou a idéia de centro e periferia e contribuiu para a conceitualização do mundo. Para ele, era preciso superar essa dicotomia entre o centro – países produtores de manufaturas e detentores da tecnologia – e a periferia, representada pela América Latina”, relata Oswaldo Sunkel. Seu diagnóstico do “Ciclo vicioso da pobreza”, segundo Tavares, o levou a defender que parte dos excedentes exportados para o centro poderia ser retida no país, caso se criasse uma indústria geradora de emprego assalariado e progresso técnico. Assim, o Brasil não deveria continuar apenas como fornecedor de
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Partícipe dos fatos históricos marcantes do país, Furtado conversa com o então presidente João Goulart
matéria-prima. Getúlio Vargas aderiu a essa idéia para defender o desenvolvimentismo nacionalista e sofreu a pressão externa que culminou no suicídio. “Só se entende o suicídio de Getúlio partindo-se da realidade brasileira”, conta Furtado, desde então partícipe dos fatos históricos marcantes do país, como o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. O plano era uma tentativa de dar continuidade ao processo de industrialização e propunha uma associação entre o capital estrangeiro e o capital nacional. Depois de um ano letivo na Universidade de Cambridge, Furtado lança Formação econômica do Brasil, um estudo original sobre os ciclos econômicos do país – o ouro, a cana-de-açúcar, o café – como manifestação do fenômeno do subdesenvolvimento. “A lógica do processo histórico brasileiro é elevar a concentração de renda e, portanto, o subdesenvolvimento”, afirma o autor que, ao retornar ao Brasil, em 1959, é encarregado de dirigir um grupo especializado para a criação de uma nova política para o Nordeste. Numa entrevista concedida em 1982, Furtado revela o anacronismo das políticas anteriores ou mesmo a falta delas, e sugere as soluções adotadas naquela ocasião: “era preciso lutar contra a seca, mas considerar a seca como parte do sistema ecológico nordestino. Criar na região uma economia que pudesse conviver com a seca, e não
ir de encontro a ela”: era o início da saga da Sudene. Furtado diagnosticou uma região dominada por uma classe latifundiária no Sertão – cujo maior lampejo de modernidade fora o cangaço – e uma burguesia decadente dona de engenhos e usinas de açúcar na Zona da Mata. “Os problemas sócio-econômicos decorrentes da seca devem-se à estrutura fundiária e não ao fenômeno natural”, conclui. Dessa maneira, um repertório de imagens e sons funciona como peças do museu da história recente do Brasil para restituir a memória de um homem que não só acompanhou, mas interveio na trajetória do país. Testemunhou a renúncia de Jânio Quadros e a eleição de João Goulart – que o nomeou ministro do Planejamento; exilou-se no Chile em 1964 após a cassação de seus direitos políticos pelo golpe militar; lecionou por 20 anos na Sorbonne, em Paris; e retornou como ministro da cultura do Governo Sarney. Era, sobretudo, um reformista, que acreditava que as reformas estruturais poderiam transformar o Brasil e lentamente reverter um quadro de dominação, mas sem recair em sublimações e devaneios. Como afirma Maria da Conceição Tavares, Furtado foi acima de tudo um intelectual militante, capaz de vislumbrar um horizonte, ainda que distante e rastejante, e apontar caminhos quantas vezes fosse necessário, sem nunca desistir. ABR 2008 • Continente x
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CÊNICAS
Musical quarentão Em 29 de abril de 1968, Hair estreou na Broadway, questionando os símbolos das tradições norteamericanas e brincando com tudo o que era mais sagrado: a família, a escola, a religião e o exército Leidson Ferraz
Q
uem diria que Hair, o musical hippie, símbolo da contracultura e da juventude da década de 60, completaria 40 anos ainda ganhando versões mundo afora? Pois é isso o que tem acontecido com esta peça que, de Nova York, chamou a atenção do planeta ao levar para a Broadway algo totalmente fora dos padrões artísticos, comerciais e ideológicos daquele palco tão tradicional. Muitos apostaram que tamanha irreverência não poderia dar certo, mas deu. E, até hoje, já quarentão, o musical Hair ganha novas versões, produzidas não só nos Estados Unidos, mas também na Europa e na Rússia. Na Broadway, o espetáculo estreou no dia 29 de abril de 1968 – uma data considerada astrologicamente propícia –, sob o comando do encenador Tom O’Horgan. Como num atestado juvenil daqueles loucos anos, o texto clamava pela paz, a harmonia e o amor da Era de Aquarius, fazia apologia às drogas (especialmente maconha e LSD) e pregava a liberação sexual, com referências ao sexo em várias posições e até mesmo ao travestismo. Num único cenário, 27 atores distribuíam flores à platéia, questionavam os símbolos das tradições norte-americanas e brincavam com tudo o que era mais sagrado: a família, a escola, a religião, o exército. 50 x Continente • ABR 2008
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A mais recente encenação brasileira de Hair foi em 2004, com alunos da USP. Ao lado, a primeira encenação na Broadway, em 1968
Ao final do primeiro ato, moças e rapazes tiravam a roupa – no primeiro nu frontal da história do teatro comercial – como símbolo da inocência e da liberdade, em meio a palavrões e gritos de ordem contra o serviço militar obrigatório, a poluição, a mídia eletrônica e os horrores da guerra no Vietnã. O elenco foi recrutado literalmente nas ruas. Caras desconhecidas, vozes nem tão virtuosas assim. A peça mostrou-se barulhenta, insolente, quase improvisada. Os microfones eram visivelmente espalhados pelo palco, com fios por toda parte. Um não ao ilusionismo cênico dos musicais de hoje. Seus autores, James Rado e Gerome Ragni, dois atores com tendências hippies, tiveram a idéia no Central Park, em 1966, durante uma manifestação contra a tal guerra com os vietcongues. Centenas de jovens queimavam seus cartões de convocação militar, quando a polícia surgiu com violência. Sem qualquer combinação prévia, todos se despiram completamente e o nu tornou-se, então, o ponto de partida para a encenação de Hair. No enredo (dizem que, de início, as cenas foram anotadas em maços de cigarros vazios), um amontoado de histórias curtas sobre os amores e extravagâncias de uma tribo de hippies durante os dias que precedem o embarque de um deles para a guerra. “Meu destino é a grandeza ou a loucura”, diz Claude Bukowski, o atormentado rapaz cabeludo, com dúvidas sobre reintegrar-se ou não ao Sistema. A peça utiliza músicas para apresentar cada uma das outras personagens principais: o erótico Berger, a ativista política Sheila, formando com Claude o ABR 2008 • Continente x
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CÊNICAS trio amoroso do espetáculo; e mais, a piradíssima Jeannie, a jovem grávida, apaixonada pelo protagonista; o hilário negro Hud e o bissexual Wolf. Na trilha sonora, uma verdadeira colcha de retalhos à base do rock’n’roll, uma ousadia do maestro Galt MacDermot, que abusou das guitarras elétricas, sopros e efeitos de percussão.
Cena do filme Hair, de Milos Forman
Os autores Galt McDermot, Gerome Ragni e James Rado
De cima para baixo, a versão japonesa e a argentina de Hair
O espetáculo nasceu num teatro infecto da off-Broadway, o Public Theater, em 1967, com 46 canções compostas e mais de três horas de duração. Depois de oito semanas em cartaz, Hair foi parar na discoteca The Cheetah. Foi lá que Michael Butler, um atrevido empresário de Chicago, resolveu transferir a peça, numa versão modificada, para o Biltmore Theater, da Broadway. As primeiras críticas chamaram o show de “vulgar”, “ofensivo” e “sujo”. Outros, não pouparam elogios: “magistral”, “franco”, “o mais significativo musical da década”, e até elegeram Rado e Ragni como pioneiros de uma nova e audaz tendência artística de liberdade na Broadway, onde atores e personagens pareciam fundirse de vez. A peça permaneceu por quatro anos, ininterruptos, com casa lotada, e gerou sete companhias itinerantes somente nos EUA. Hair tornou-se mesmo um marco, uma atração turística, uma ótima sacada para vender a trilha sonora nas mais diferentes línguas, deixando seus autores milionários. O câncer derrubou Gerome Ragni em 1992. James Rado ainda é vivo. Galt MacDermot continuou bela carreira nos musicais. Michael Butler produz versões dela até hoje. Nesses 40 anos de história, Hair foi montado também no Japão, Austrália, Alemanha, Itália, Áustria, França, Polônia, Israel, Dinamarca, Inglaterra, Canadá, Suécia, Suíça, Hungria, Bélgica, Holanda, Nova Zelândia, Iugoslávia, África do Sul, México, Argentina, Brasil, Rússia e Turquia. Mas nenhuma dessas montagens foi tão “agressiva” quanto a de Nova York, já que a censura sempre mostrou suas garras. No México, o teatro foi interditado após a primeira apresentação. Em Paris, protestos de integrantes do Exército da Salvação eram presença constante. E, em Boston, nos EUA, o espetáculo foi parar nos tribunais. Só foi liberado após o corte da cena de nudismo e do descrédito à bandeira norte-americana. O ex-presidente ianque Richard Nixon classificou a peça de “sacrilégio”. Na primeira montagem brasileira, uma versão bem mais casta, não era raro ver o elenco sendo acompanhado por policiais. Tão cheio de opiniões, o espetáculo Hair comemora 40 primaveras, certo que abalou a Broadway e todo o planeta, com sua inocência de poder às flores, impensável nos dias de hoje. Mas, por incrível que pareça, aquilo que poderia ser datado, continua mais revisitado do que nunca nesses tempos de guerra. A segunda versão russa deve ser lançada ainda este ano e, somente neste mês, há estréias programadas na Bélgica, Holanda, Alemanha e em mais seis cidades dos EUA, quase todas em esquema de superprodução e a
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Ao lado, elenco da versão brasileira de Hair, em 1969. Acima, nova versão americana, em 2006
ninho e Amadeus), contou com um roteiro mais estruturado. Claude é aqui um jovem e patriótico caipira de Oklahoma em visita a Nova York antes de embarcar para o Vietnã. No Central Park, ele topa com um grupo de hippies e, a partir daí, sua vida muda. A abertura ao som de Aquarius é um dos mais belos momentos da tela grande. Casou perfeito com a coreografia estonteante de Twyla Tharp e os movimentos de câmera que deixam o espectador com vontade de sair dançando. Mesmo assim o filme não foi sucesso nos EUA, mas agradou aos brasileiros, que correram às lojas de discos atrás da trilha sonora. maioria oriunda de universidades. Infelizmente, as encenações mais recentes renderam-se aos formatos milionários dos outros musicais. Nada de som de garagem, os efeitos especiais tornaram-se indispensáveis, são exigidas vozes impecáveis, os microfones, minúsculos, escondidos nos cabelos falsos dos belos atores. Tudo tão perfeitinho que o Hair parece deslocado desses palcos sem despojamento. Talvez por isso o fracasso das últimas montagens. Talvez porque a filosofia hippie não desperte mais tanta curiosidade ou porque a inocência do texto original, que não previa flagelos tão terríveis como a Aids e as drogas mais pesadas, esteja ultrapassada. E Hair nunca mais foi o mesmo... Por problemas autorais, Hair só chegou às telas em 1979, bem diferente de sua versão original. O filme, dirigido pelo tcheco Milos Forman (de Um estranho no
A primeira versão abrasileirada do Hair estreou em 8 de outubro de 1969, no Teatro Bela Vista, São Paulo, com tradução de Renata Pallottini, direção de Ademar Guerra e produção de Maria Célia Camargo. Somente nos primeiros 20 dias de apresentação já era um recorde de bilheteria do teatro brasileiro. Em oito meses, tinha sido vista por mais de 170 mil espectadores. O espetáculo ficou quase três anos em cartaz e circulou pelo país, sendo visto no Recife, no Teatro do Parque. O elenco foi escolhido após um teste com 350 candidatos. A cabeluda Sônia Braga era destaque nos coadjuvantes. Altair Lima, Aracy Balabanian e Armando Bógus eram os atores principais. E a peça lançou muita gente de talento: Ney Latorraca, Antônio Fagundes, Ariclê Perez, Esther Góes, Laerte Morrone, Benê Silva, Rosa Maria e Neusa Borges. Ricardo Petraglia, na época com 19 anos, ganhou o prêmio da crítica de ator revelaABR 2008 • Continente x
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Foto: Erik Berg/Divulgação
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Hair em versão norueguesa de 2006
ção por seu Wolf, o jovem hippie bissexual, tarado por Mick Jagger, que tira sarro da Igreja Católica e distribui sementes alucinógenas para toda a tribo. A segunda versão foi apresentada em 1978, no Pavilhão de Convenções do Anhembi e Teatro Ruth Escobar. Produzida por Altair Lima e dirigida por Silnei Siqueira, a peça foi mais um estouro de público. Seus atores não deram tanta sorte e nomes como Ivan Lima e Celso Batista continuam obscuros. Em 1987, surge a mais desastrosa versão brasileira do Hair, dirigida por Antonio Abujamra que, apoiado numa adaptação de Consuelo de Castro, tentou modernizar a trama. A antiga tribo de hippies foi descartada e entraram em cena darks, punks e metaleiros. Claro que tanta incoerência não podia dar certo. Em 1993 foi a vez de Jorge Fernando lançar a sua versão, com cenário grandioso, iluminação primorosa,
microfones sofisticadíssimos, e, por incrível que pareça, atores musculosos no palco. Salvavam-se os coadjuvantes: Andréa Marquee, Edson Montenegro, Ana Borges, Adriana Capparelli e Fernando Patau, artistas que, infelizmente, mesmo com tanto talento como atores/cantores, ainda não despontaram nacionalmente. Exceção para Thalma de Freitas, hoje na TV. A mais recente encenação brasileira do Hair surgiu em 2004, com alunos-concluintes da Escola de Arte Dramática da USP, sob direção de Iacov Hillel. A montagem, com entrada franca, atraiu uma verdadeira multidão ao Teatro Laboratório, especialmente jovens que queriam conferir o clima sessentão deste musical, retrato de uma geração que já quis mudar o mundo. E o elenco não fez feio. Pelo menos a naturalidade e a irreverência hippies estavam lá. Não há previsão de novas montagens no Brasil, por enquanto.
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Corpo, mente, corpo Iniciativas como a criação do Centro de Estudos em Dança (CED), coordenado pela crítica e pesquisadora Helena Katz, unem teoria e prática nas pesquisas em dança Christianne Galdino
A pesquisadora Helena Katz coordena o CED desde sua fundação
É
comum que o termo pesquisa ainda seja muito associado ao universo acadêmico, e que corpo e mente sejam vistos como partes separadas e até mesmo opostas do ser humano. Talvez pelo fato de a dança ser uma ação (supostamente) basicamente corporal, a crença nessa dicotomia fica mais evidente. Seguir essa lógica pode levar ao perigoso caminho dos que consideram pesquisa em dança exclusivamente como sinônimo de combinações coreográficas, que, invariavelmente, objetivam a montagem de espetáculos. Ou, o que é mais grave, pensar a tarefa do pesquisador em dança como contrária à atuação dos bailarinos e coreógrafos. Felizmente, cresce o núme-
ro de iniciativas que se dedicam às pesquisas em dança a partir de um outro entendimento, em que teoria e prática são indissociáveis. O pessoal do Centro de Estudos em Dança (CED) está nesse time, e acaba de inaugurar uma sede em Caieiras (distante 21 Km de São Paulo), para ampliar ainda mais as possibilidades desse entendimento da pesquisa em dança. “O constante interesse pela informação que venho reunindo há 31 anos me levou a pensar que talvez fosse chegado o momento de dar um outro passo. Um passo que representasse aquilo no que acredito: que prática e teoria não constituem dois domínios independentes. Isso está fisicamente representado no fato do CED ofeABR 2008 • Continente x
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A sede do Centro de Estudos em Dança (CED), em Caieiras, distante 21km de São Paulo
recer um espaço para ensaio, um espaço para residência e um espaço para o acervo de mais de 1.200 DVD’s de dança, 15 arquivos com milhares de recortes de revistas e jornais brasileiros e internacionais, e cerca de 5.000 livros”, conta a pesquisadora e professora Helena Katz, que coordena o grupo desde a sua fundação. O desejo de compartilhar a informação coletada como crítica de dança, atividade que exerce desde 1977, fez com que Katz procurasse “gente interessada em estudar junto”. E assim nascia, em 1986, o CED. Sobre esse início, ela diz: “O grupo começou com apenas quatro pessoas, na sala do meu apartamento e, em menos de um semestre, já não cabíamos mais lá. Maurício Gaspar (que hoje é o gerente operacional do CED), Raul Rachou, Vera Sala, Helena Bastos e Rosa Hércules são alguns dos profissionais que, desde aquela época, fazem o Centro de Estudos em Dança acontecer. Nestes 22 anos de atividades ininterruptas, calculo que tenham freqüentado nossas reuniões cerca de 400 participantes”. Na pauta dos encontros semanais do CED, vídeos e textos dão suporte às discussões e alimentam propostas em prol do crescimento da dança e dos seus sujeitos. Talvez por reunir membros do mundo acadêmico (alunos e professores de graduação, mestrado e doutorado) e do mercado (artistas da dança, produtores, programadores, curadores etc.), o CED tenha se mostrado tão eficiente e os resultados se reverberem em várias instâncias por
todo o país. Questões relativas às políticas culturais são recorrentes, até mesmo porque, segundo Katz, “sem novas formas de organização, não se sai desse clima de imobilidade e descrença que contamina a área da dança” e da arte de uma maneira geral. Os artistas tornaramse “reféns” das leis de incentivo fiscal e dos editais, e o que é pior é que parecem acomodados com as regras impostas por este sistema. “Quando os editais abandonam a razão pela qual devem existir, que é a de serem a forma de viabilizar democraticamente a execução de programas em políticas públicas consolidados em acordo com as necessidades do segmento ao qual se referem, eles passam a ser somente repassadores de dinheiro público. Quem é contemplado, sai momentaneamente do campo de extermínio onde permanecem os não contemplados, esperando pela sua vez de serem retirados. O mecanismo que vai retirando uns aqui e outros ali, imobiliza, aos poucos, todos os nele envolvidos. Exclui temporariamente alguns, que depois devolve ao campo de extermínio”, afirma Katz. “Manter-se ativo, resistindo a esse quadro, é admirável. E esse é um dos pontos fortes dos que fazem dança no Brasil”, completa. Reagir ao cenário de inércia instaurado tornouse missão do Centro de Estudos em Dança. Ampliar o acesso às informações foi a estratégia que eles adotaram para transformar essa realidade. A primeira providência era disponibilizar o acervo na internet, e assim foi feito. Já está no ar (em www.helenakatz.pro.br) o site que faz
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parte do mesmo projeto de compartilhamento de informações que originou o CED. Nele, encontra-se boa parte do material bibliográfico digitalizado, e tudo o que Helena Katz publicou sobre dança, seja em livros, revistas ou jornais, em mais de três décadas de atividades. As fitas de vídeo viraram DVDs, e agora irão alimentar um servidor que permitirá acesso on-line a todos os trabalhos. O próximo passo é levar essa experiência para outros lugares do Brasil, expandindo as pesquisas e fortalecendo a dança. Quando recentemente esteve no Recife, ministrando um seminário no projeto Reciclarte 3, do Grupo Experimental, a professora começou, a convite do próprio grupo, o processo de construção de um Centro de Estudos em Dança– Pernambuco. Agora, aproveitando uma temporada de apresentações do seu espetáculo Conceição, em São Paulo (dias 4, 5 e 6 de abril, no Teatro Itália/Teatro da Dança), a equipe do Experimental vai até Caieiras conhecer o acervo e ver como funciona o CED. “Na volta, em parceria com o Movimento Dança Recife, vamos buscar os investimentos necessários para implantação do nosso Centro, enquanto, paralelamente, iniciaremos nossas reuniões semanais de estudo”, conta a diretora do Experimental, Mônica Lira. A aproximação entre os profissionais locais e o CED ajuda a dança a se consolidar como área específica de conhecimento, “reivindicação número um” da lista dessa linguagem artística. Mais que a separação das outras formas de artes cênicas, é a conquista de espaço e a legitimação do trabalho que estão em jogo. A valorização da pesquisa surge como indício da elevação da qualida-
de nas produções pernambucanas de dança, e mostra uma sintonia com a pauta de interesses da categoria no âmbito nacional, que tem priorizado as ações formativas, sejam no ensino formal ou em projetos de extensão e aprimoramento. Uma iniciativa como o CED pode cumprir também a função de suporte do meio acadêmico, e, no caso específico do Recife, será fundamental para alunos e professores da futura graduação em dança, que começa em 2009 na Universidade Federal de Pernambuco, depois de intensa mobilização da classe, através do Movimento Dança Recife. Por mais que muitos ainda insistam em ver o mundo pelo filtro dos conceitos antagônicos, que opõem prática e teoria, já é possível desenvolver um outro pensamento, enxergar de outra forma. “Integrar a ação” parece um caminho mais viável e menos perigoso (do que a via das dicotomias) para vivenciar pesquisas em dança, pelo menos é isso que revela a experiência do CED. “Estou encarando esse primeiro ano como uma espécie de ano-teste, justamente para poder avaliar se esse tipo de instituição é necessário. Será que quem faz dança no Brasil precisa de um lugar para criar e que reúna teoria e prática?”, reflete Helena Katz. A julgar pela crescente lista de candidatos às residências artísticas e projetos de pesquisa do CED, parece que a resposta é sim. Os artistas perceberam que para fazer a dança “acontecer” o quesito pesquisa é imprescindível. Essa busca por um mergulho mais profundo talvez tenha brotado do entendimento de que “a arte do corpo”, sem dúvida, inclui a mente, e depende tanto da performance quanto da atitude política dos seus sujeitos.
A biblioteca e espaço para pesquisa do CED ABR 2008 • Continente x
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
Comida de escravo “A africanização do Brasil pela escravidão é nódoa que a mãe pátria imprimiu na sua própria face.” Joaquim Nabuco (O abolicionismo)
E
scravos trazidos ao Brasil vieram primeiro da Guiné, para as capitanias de São Vicente e São Tomé. Por conta disso passou “Guiné” a ser designação genérica dada a todos os africanos. Mesmo àqueles chegados depois, de outros lugares. Os de Angola, Luanda e Moçambique, iam para Pernambuco, Rio de Janeiro e Salvador. Eram de grupo banto – benguelas, congos (ou cabindas) e ovambos. No século 18, passaram a vir também da Costa da Mina (hoje, Benin); eram bornus, ewes (ou jejes), hauçás, iorubás (ou nagôs), minas, tapas. Do porto iam a locais reservados para quarentena. Os de Pernambuco, levados a Santo Amaro das Salinas (atual Igreja de Santo Amaro, perto do cemitério dos ingleses). Ficavam em galpões onde recebiam tratamento médico e um farnel, chamado “carapetal” – milho fresco ou assado e farinha de mandioca; frutas, para combater o “mal-de-luanda” (escorbuto); e tabaco – para prevenir malária e, assim se acreditava, para estimular a circulação e proteger os pulmões. Cumprida a quarentena, seguiam para ser vendidos, onde estavam os grandes comerciantes de escravos. Sobretudo judeus. A rua em que residiam (“do Bode”), não por acaso logo acabou conhecida como “dos Judeus”. Depois, com a partida destes no fim do domínio holandês, rua “da Cruz”, “dos Mercadores” e, finalmente, do “Bom Jesus”. Os próprios escravos preparavam suas refeições, no meio da rua, em grandes caldeirões – carne salgada, farinha de mandioca, feijão e às vezes banana. Fim de tarde eram recolhidos e trancados em grandes armazéns – para que não fugissem ou fossem roubados. Eram trocados por açúcar, aguardente ou tabaco de terceira categoria. Senhoras de engenho também se davam ao prazer desse comércio. “Vão enfeitadas, sentam-se, manipulam e examinam suas compras, e levam-nas embora com a mais perfeita indiferença, como se estivessem comprado um cão ou uma mula”, escre-
veu o reverendo inglês Robert Walsh (Notícias do Brasil, 1828). O lugar de origem dos escravos influenciava nessa escolha. Os da Costa do Ouro eram apreciados por serem considerados mais bonitos e mais conforma-
Negros de carro, litografia aquarelada, Jean Baptiste Debret, 1835
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Mucamas cozinheiras trouxeram hábitos alimentares de sua terra distante. Muitos deles, pelas limitações e dificuldades, ficaram apenas guardados na memória
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dos; os de Angola, hábeis e mais trabalhadores; os da Guiné, dados aos serviços domésticos; os de Benguela e Cabinda, próprios para a dureza do trabalho agrícola; os de Moçambique, fracos e pouco inteligentes; os do Gabão, ferozes e maus. Por conta disso, chamar negro de “Gabão” era ofensa grande. Esses escravos eram também classificados pelo grau de domínio da língua portuguesa – boçais (os que não conheciam o português), ladinos (que já falavam um pouco o idioma) e crioulos (filhos brasileiros de mães escravas, que dominavam bem a língua). Escravos homens eram destinados aos trabalhos pesados. Nas cidades carregavam barris de dejetos, baús, caixas, comidas, lenhas, madeiras, móveis, pedras, pia-
nos ou terra. Transportavam cadeirinhas, canoas, liteiras e redes, em que senhores passeavam. Ajudavam na construção de casas como ferreiros, marceneiros ou pedreiros. E serviam, também, como “moleques de recado”. No campo derrubavam a mata, preparavam a terra, plantavam e moíam cana. Eram também artífices, caldeireiros, ferreiros, marceneiros, oleiros, pedreiros, pescadores, remeiros e vaqueiros. Alguns, conquistando a confiança de seus patrões, acabaram exercendo ofícios de capatazes, feitores e até carrascos de outros negros. Nas casas-grandes dos engenhos foram capangas, domésticos, guarda-costas, pajens, “as mãos e os pés dos senhores de engenhos”, segundo o jesuíta italiano Antonil (Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, 1711). Tudo dependia deles – “se os casarões remanescentes do tempo antigo parecem inabitáveis devido ao desconforto é porque o negro está ausente. Era ele que fazia a casa funcionar... o negro era esgoto, era água corrente no quarto, quente e fria, era interruptor de luz e botão de campainha; o negro tapava goteira e subia vidraça quebrada, era lavador automático, abanava que nem ventilador”, segundo palavras do arquiteto Lúcio Costa. Escravas, sobretudo as mais limpas, bonitas e fortes, iam para as casas-grandes dos engenhos. Essas “mucamas” faziam todos os serviços da casa – arrumavam, costuravam, lavavam roupa, limpavam, passavam. Ajudavam suas donas a tomar banho e a se vestir. Também cuidavam das crianças. Eram suas amas-de-leite – que senhoras de posse não se davam aos incômodos de amamentar e trocar fraldas sujas. Também serviam aos senhores em suas camas, nas horas vagas, com o vigor daquelas carnes duras e morenas. Certo Dr. João de Azevedo Macedo Jr. chegou a dizer que “para o sifilítico não há melhor depurativo do que uma negrinha virgem”. Mas foi sobretudo na cozinha que se destacaram. Isso aconteceu na América do Sul, apenas, rompendo a segregação absoluta que marcou a colonização produzida pelo resto da Europa. Tanto assim era que notícias dessas intimidades domésticas causavam imensas desconfianças na corte. O cozinheiro de D. Pedro II (de Portugal, claro, que o nosso nem rei foi), Domingos Rodrigues (1680), advertia “a todos os Senhores, que de modo nenhum consintam nas suas cozinhas, a negros, mulatos ou qualquer cozinheiro que de sua criação ou inclinação for vil... porque hão de comer com muito ABR 2008 • Continente x
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pouca limpeza, e com muito risco na sua saúde, que assim me tem mostrado a experiência de muitos anos, e o exercício dessa minha Arte”. Mucamas cozinheiras trouxeram hábitos alimentares de sua terra distante. Muitos deles, pelas limitações e dificuldades, ficaram apenas guardados na memória. Para aquela gente, caçar era ofício, divertimento e razão de orgulho. Conferia dignidade ao congo (caçador). E caçavam de tudo: ave, bode, búfalo, carneiro, crocodilo, girafa, hipopótamo, javali, lagarta, lebre, porco (selvagem), roedores em geral, tatu, zebra. Apreciavam também cães, cuidadosamente engordados para serem depois assados ou cozidos. Desses animais comiam tudo “com exceção dos miolos em que não se tocam” (Jean de Léry, 1578). Pescavam com arpão, flecha e luana (rede). Preferiam peixes salgados e secos, primeiro no fogo e depois no sol. Carnes eram usualmente preparadas na brasa, na grelha – diretamente sobre o fogo ou envolvidas em couro (de animal) ou folhas de bananeira. Também cozidas. Mas nunca se misturavam, na mesma panela, carnes e legumes. Sabiam ainda cozinhar no vapor e fazer defumados. Apreciavam o alimento dissolvido – pirões, papas de fécula e farinha de sorgo, que acreditavam dar mais sustança. Tudo temperado com muita pimenta. Como acompanhamento muito arroz. Sempre. Também jiló e quiabo. Gostavam de inhame – assado, cozido, transformado em farinhas, acompanhando carne ou peixe. Além de frutas. Sobretudo melancia e banana. Alguns escravos eram capazes de comer até um cacho, por refeição. Não usavam sal. Nem açúcar. E se divertiam tomando bebidas fermentadas – feitas de mel de abelha, sorgo ou de dendê – emum, malfu, sura, vinho de palma. Aqui tiveram, esses escravos, que aprender novos hábitos. Passaram a viver em senzalas, construídas perto das casas-grandes. Eram de taipa de pau-a-pique, cobertas com palha ou telhas feitas no próprio engenho. Sem
janelas. Por dentro, cubículos conjugados davam para uma grande galeria comum. Nessas senzalas, aprenderam a substituir ingredientes de suas receitas originais pelo pouco que lhes davam. Pimentas africanas (“zingiberáceas” e “piperáceas”), pelas nativas (capsicum). Mancarra, por amendoim. Inhame, por mandioca. Banana, por pacova – embora preferissem as de sua terra distante, pela acidez do tanino dessas pacovas. Melancia por abacate, abacaxi, abiu, caju e goiaba. Peixes secos, por frescos. Grandes animais por capivaras, cobras, cutias, jacarés, lagartos, preás, porco selvagem, tatus, tartaruga. E insetos – besouro, cupim, formiga, gafanhoto, tanajura, tapuru. Aprenderam também a substituir sorgo por milho – durante séculos, alimento destinado apenas a escravos e a animais. “Os portugueses plantam milho para a mantença de cavalos, galinhas, porcos e escravos da Guiné”, segundo o viajante Gabriel Soares de Souza (1587). Com leite de coco, açúcar e farinha desse milho, a que chamavam “fubá”, iam nascendo novas receitas. Depois, todas elas, adotadas também pela casa-grande. Angu – que originalmente levava caldo de peixe ou miúdos de boi, engrossado com farinha de sorgo. “É fazendo cozer o fubá na água, sem acrescentar sal, que se faz uma espécie de polenta grosseira, que se chama angu e que constitui o principal alimento dos escravos”, escreveu o cientista francês Auguste Saint-Hilaire (1816). Também mungunzá, canjica, pamonha e cuscuz. Muitos desses escravos, com o tempo, foram alforriados. Alguns deles continuaram aqui, sobrevivendo com tabuleiros equilibrados na cabeça, vendendo comidas nas ruas – como abará, acaçá, acarajé, arroz e feijão de coco, canjica, mocotó, pamonha, vatapá. Outros acabaram repatriados. E levaram, ao lado da paz de quem volta às raízes, também jeitos diferentes de fazer antigas receitas – ainda hoje chamadas, por seus descendentes, “comida de brasileiro”. Rafael Gomes/Divulgação Restaurante Parraxaxá
rEcEita
Bolo de Fubá 3 Bata 3 ovos, 4 xícaras de leite, 1 xícara de queijo parmesão ralado, 1 xícara de coco ralado, ½ xícara de fubá de milho, 2 xícaras de açúcar, 1 colher de sopa de manteiga, 3 colheres de sopa de trigo e 1 colher de sopa de fermento em pó, no liquidificador. 3 Asse em forma untada com manteiga, em forno quente.
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Fotos: Divualgação
O que há de novo na nova música brasileira?
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Madura reelaboração de modelos estéticos distingue compositores promissores na Bienal de Música Brasileira Contemporânea Carlos Eduardo Amaral
A
uma breve caminhada de distância dos célebres Arcos da Lapa e da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro fica um dos mais tradicionais espaços da música clássica no país. Inaugurada como hotel, que depois funcionou como cinema, a Sala Cecília Meireles, em pleno Largo da Lapa, forma um cinturão de instituições musicais que inclui o vizinho Museu da Imagem e do Som (MIS-RJ), a Escola de Música da UFRJ, 50 metros à frente, e o prédio em cujo último
andar está a Academia Brasileira de Música, 100 metros à direita. Na prestigiada sala de concerto, no ano passado, aconteceu a 17ª Bienal de Música Brasileira Contemporânea – 10 noites seguidas em que foram tocadas obras de 89 compositores em plena atuação no país. Único órgão de imprensa não carioca a cobrir a Bienal, a Continente Multicultural, convidada pela Funarte, acompanhou as quatro primeiras noites do evento, que, a despeito de sua relevância nacional, teve uma baixa mé-
Interpretação inusitada da obra N’Água, de Siri (2° à esquerda), que surpreendeu na última Bienal da Música
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MÚSICA dia de público (os ingressos custavam somente dois reais) e, igualmente inexplicável, quase não recebeu atenção da imprensa, especializada ou não. O fato de na terceira noite ter dado menos gente ainda, por conta da enxurrada que causou a interdição do Túnel Rebouças e congestionou o Rio, foi exceção de força maior. No geral, a platéia acabou quase que se resumindo ao congraçamento do métier musical com seus alunos e amigos, algo que é objetivo paralelo da Bienal. O encontro bianual – idealizado por Míriam Dauelsberg, então diretora da Sala Cecília Meireles, e Edino Krieger, para dar continuidade ao sucesso do Festival de Música da Guanabara (que durou dois anos, 1969 e 1970, e era um concurso de composição) – existe desde 1975. Sempre receptiva à pluralidade estética, a Bienal evidencia novos nomes da linguagem sinfônica e camerística à eletrônica, reavivando as expectativas sobre a “nova música” no Brasil. Só que nesta 17a edição a proporção de obras que empolgaram o público lembrou a de uma fatia de bolo – e isso nada tem a ver com a quantidade digerida delas, de uma vez só, pois no concerto em homenagem a Ariano Suassuna no último Virtuosi estrearam quatro obras, mundialmente, e duas em Pernambuco, todas dignas de nota. Estão fora desse cálculo as de compositores veteranos, aos quais a Bienal também serve de vitrine, já que a maioria das orquestras brasileiras ainda tem reservas injustificáveis à inclusão da música nacional em seus programas, exceto notoriamente Villa-Lobos – as orquestras do Sul e A Sala Cecília Meireles (seu interior, na página ao lado) foi o palco da 17ª Bienal da Música Brasileira Contemporânea
Sudeste, menos; mas depois de uma audição, quase não repetem as peças, enquanto se ouve a Abertura Egmont ou a Sinfonia “Do novo mundo” à exaustão. Uma bela obra sinfônica apresentada na noite de abertura, a título de exemplo, foi a sensível e cambiante Vereda, de Marisa Rezende. Surgiram comentários sobre o fato de muitas composições apresentadas, nas 10 noites, terem sido tonais (vide palavras de Marcelo Jaffé sobre o “ouvir tradicional”, na edição de março), num lugar onde se deveria ouvir a “nova música”. Como se o politonal, o atonal, o serial e o que mais veio nos 50 anos seguintes à Sagração não tivessem se tornado enfadonhos ou batidos... Os resmungos sobre a música tonal, mesmo inconscientes, soam totalmente impróprios numa época em que a discussão tonal/atonal está maniqueísta, no plano acadêmico, e ofusca a da busca por uma música que tente recombinar as linguagens estéticas existentes, instigando a atenção e a curiosidade dos ouvintes atuais. O melhor exemplo dessa tentativa, em toda a Bienal, virou piada até provar o contrário no palco. O compositor se chamava Siri. Só uma alcunha, de alguém que fizesse parte de uma banda de brega ou de forró – um nome artístico; coisa não usual na História da Música. Ele e mais três intérpretes (?) entraram lentamente no palco, como se estivessem andando no fundo do mar, vestidos de roupa de praia listrada, snorkel e óculos de mergulho, para tocar N’Água. O nome da peça, os quatro aquários no palco e a performance de entrada remetiam a mais um episódio de vanguardoidismo, desencadeado por John Cage, desde quando se espera de tudo, menos música. Depois da execução à la Hermetto Pascoal, o mérito. Com frigideiras, panelas e garrafas de plástico dentro d’água, Siri – percussionista, sim, mas de formação acadêmica – mostrou que contraponto, harmonia, rítmica e timbrística podem se amalgamar de formas novas na construção musical. N’Água melhorou o astral uma hora depois de uma espessa nuvem de gelo seco ter tomado conta da sala de concerto no início da terceira noite. Era exigência de outra partitura, não tão irritante quanto a amplificação eletrônica do som do grupo de cinco instrumentos em níveis absurdos de decibéis, mais potente que o de um show de rock.
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Falando de meios eletrônicos, a música acusmática e eletroacústica ocupou duas noites. Nas peças acusmáticas, as sem-interação com instrumentos ou voz humana, imperou o estranhamento da platéia com o discurso musical – em todas elas não se percebia quando chegavam ao final, ou ficava-se em dúvida – e com o excesso de abstração dos títulos das obras, tais quais Mas tenho consciência? Não, não tenho consciência, não estou consciente, Lupanar e Pelos olhos de quem vê. Faltou alguém explicar o que eles tinham a ver com as peças em si, se tinham. Dentre todas, umas eram puro ruidismo: barulhos naturais, infinitos, e de geringonças sem notas. Outras eram mera sofisticação, ou nem isso, do Stockhausen da década de 50: ponto contraditório para a vertente mais moderna da música de concerto. A comunicabilidade da música acusmática na Bienal se revelou ao juntá-la à voz ou a instrumentos, isto é, como música eletroacústica. No Kyrie & Gloria do carioca Rodrigo Cicchelli Veloso, para coro misto e difusão, a captação e reverberação imediata de melodias – aplicando o princípio musical das Répons de Boulez – transmitia a incrível impressão de um coro responsorial transcendental. Em Anjos são mulheres que escolheram a noite, do goiano Paulo Guicheney, uma das quatro composições premiadas na Bienal, o soprano solista, único intérprete, cantava trechos a dois com a difusão da própria voz pré-gravada, denotando um diálogo entre os planos terreno e angelical. As inspirações de ordem extramusical na Bienal não ficaram devendo ao inusitado e ao criativo. A também premiada À margem oeste deste mar eterno, para soprano e grupo de câmara, do paranaense Márcio Steuernagel, surgiu como um réquiem para uma casa de praia vendida pelo compositor. A acusmática Raimundo e os
sinos de Marcelo Carneiro de Lima se refere ao assassinato acidental de Anton Von Webern pelo soldado americano Raymond Bell, que morreu alcoólatra e mergulhado na culpa. O funk carioca encarnou no quinteto de sopros O contrariador do baiano Paulo Oliveira Filho, interpretado pelo Quinteto Villa-Lobos. GRLASHODIBZNTMEV (cuja pronúncia é um mistério), do mineiro Andersen Viana, para marimba e vibrafone, explicase pelo embaralhamento das letras de Minas Gerais, Belo Horizonte, Bahia e Salvador. A música em si nada tinha de complicada na execução, mas ironicamente teve de ser reiniciada, porque uma percussionista trocou uma página da partitura. Pena que o resto do país não possa testemunhar a riqueza de manifestações que surge quase anonimamente na música clássica nacional atual. Se isso acontecesse, proporcionaria ainda que importantes intérpretes e orquestras nacionais não cariocas tomassem parte do evento. Por enquanto, ela serve de modelo para o resto do país, mas só o Mato Grosso o adotou, promovendo sua segunda edição em 2006. Pernambuco não teve representantes no Rio. Dos 89 compositores selecionados para a 17ª Bienal, quatro representaram a Bahia; três, a Paraíba; e um, o Ceará. Sintoma da falta de um curso de composição, que faz a diferença nos três Estados vizinhos. Toda a história fonográfica da Bienal – feita pela Funarte com a colaboração do MIS-RJ, que resgatou as primeiras gravações – formaria uma coleção musical sem precedentes na América Latina, se fosse lançada em CD. Por questões de direitos autorais, não é possível o uso comercial das gravações; ao menos resta a esperança de o acervo um dia ficar à disposição do público, para ele criticar, rir ou exaltar a “nova música brasileira”. ABR 2008 • Continente x
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Ecos da fé na alma brasileira
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uem dera que todo CD viesse numa caixinha, fosse ricamente ilustrado, tivesse encarte supergeneroso (bilíngüe ou trilíngüe), com minibiografias de músicos, compositores e letras das peças cantadas, e contemplasse obras as menos convencionais possíveis em relação ao mercado fonográfico; por enquanto, esse “CD dos sonhos” ainda depende de leis de incentivo à cultura e de g r av a d or a s corajosas.Que seja comemorado mesmo assim. Ecos da fé na alma brasileira, disco de estréia do Collegium
Cantorum, inicia um longo inventário da música sacra nacional – não de um período histórico em especial, mas dos tempos coloniais aos hodiernos –, trazendo um produto final à altura do projeto. Todos os textos litúrgicos estão disponíveis e traduzidos em inglês e alemão. O coral feminino curitiCollegium Cantorum bano regido por Helma – Ecos da fé na alma Haller, em virtude de seu brasileira Café com Leite timbre, substitui a inter35,00 reais pretação fervorosa pela delicada. Dos Três motetinos, do contemporâneo Ernani Aguiar, e da Suíte coral pro pace, do recém-falecido Henrique de Curitiba, ao Moteto para a procissão da ressurreição, do Padre José Maurício, a contenção é a norma interpretativa mestra. E no recheio do CD, não à toa, encontra-se a obra mais plena, a Messe a duabis vocibus do austríaco Sigismund Neukomm, que veio ao Brasil com D. João VI. (Carlos Eduardo Amaral)
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> Um tributo ao virtuose paraguaio
> O pioneirismo eletrônico de Jorge
> As várias facetas de uma diva mítica
> CD premiado do Quarteto de Brasília
A afeição de Turíbio Santos ao violonista paraguaio Agustín Pío Barrios (1885-1944) vem desde a infância. Muito ligado ao Brasil, onde vivia dando concertos e tinha amizades como João Pernambuco, Dilermando Reis e Quincas Laranjeiras, Barrios ganhou projeção internacional depois de Andrés Segóvia se admirar por A catedral. A breve suíte em três movimentos resume as três principais marcas do músico de raízes guaranis, que se apresentava em trajes típicos: religiosidade, música nativa e formas barrocas. Turíbio encerra o CD interpretando a obraprima do compositor, cujo estilo pode ser assimilado em peças de menor duração, como Las abejas, Estudo em si menor e Oración. (CEA)
Na década de 60, quando os sintetizadores de sons eletrônicos eram trambolhões caros e raros no Brasil, o carioca Jorge Antunes fabricou seus próprios aparelhos (pois cursava as faculdades de física e música) e produziu as primeiras experimentações de música eletrônica tupiniquim, registradas em fitas magnéticas. Devido à deterioração dos rolos, guardados e sujeitos a intempéries por mais de 30 anos, o compositor iniciou a recuperação minuciosa do material em 1999 e limpou o som através de softwares específicos. Resultaram neste CD, patrocinado pela Academia Brasileira de Música, 12 das obras recuperadas, com destaque para Auto-retrato sobre paisaje porteño e Movimento browniano. (CEA)
A compositora paulista Jocy de Oliveira se destacou nos últimos 20 anos por conceber óperas vanguardistas protagonizadas por mulheres que utilizam um pequeno conjunto instrumental e se apóiam na interação entre voz humana e recursos audiovisuais. As Malibrans fecha uma trilogia operística, centrada na contestação da submissão da figura feminina nos dramas musicais, que inclui Illud tempus e Inori – A prostituta sagrada. Foi o caso de Maria Malibran, forçada pelo pai a se dedicar ao casamento, mas que fugiu de volta aos palcos. A atuação de Malibran encarnando outras três heroínas da literatura universal de drama parecido é o cerne da obra, muito árida de se ouvir, mas bastante metafórica. (CEA)
Responsável pelo primeiro prêmio ao Quarteto de Brasília (o Sharp de melhor CD de música erudita em 1993), este álbum reúne três compositores, contemporâneos entre si, durante os anos próximos à virada do século 20 – um romântico, um impressionista e um nacionalista –, mas cujas partituras foram concebidas num intervalo de tempo bastante grande. O Quarteto de cordas n° 17 (1957) de Villa-Lobos, o último do compositor, distante do nacionalismo anterior, aproxima-se da feitura do Quarteto op. 106 (1895) de Dvořak, por coincidência o último do tcheco. Já o belíssimo Introduction et allegro (1905) do inconfundível Ravel une flauta, clarineta e harpa solista ao quarteto. Pedidos dos últimos exemplares pelo e-mail abaixo. (CEA)
Turíbio Santos interpreta Agustín Barrios Delira Música 24,00 reais
Jorge Antunes – Música eletrônica: Período do pioneirismo ABM Digital 25,00 reais
As Malibrans Jocy de Oliveira ABM Digital 25,00 reais
Quarteto de Brasília – Dvořak, VillaLobos, Ravel Paulinas guerrent@terra.com.br, 27,00 reais
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Mauro Senise homenageia Edu Lobo
I
nstrumentista despercebido pelos holofotes, mas celebrado no métier musical nacional (sem falar na desenvoltura no jazz e nas incursões na música clássica), Mauro Senise optou por iniciar sua trajetória-solo na MPB instrumental homenageando um de seus grandes amigos: Edu Lobo. Daí, o sax-flautista formou um quarteto com os camaradas igualmente credenciados: Gilson Peranzzetta ao piano, Ivan Conti na bateria e Paulo Russo no baixo. A boa recepção ao CD-tributo, lançado em 2006, foi uma
corrente de vento a favor da gravação deste DVD com o mesmo repertório, sob os olhos do veterano Paulo Moura na platéia da Sala Cecília Meireles. Para evidenciar a versatiCasa forte – Mauro lidade de Senise, PeranSenise toca Edu Lobo zzetta, autor dos arranjos, Biscoito Fino o fez revezar flauta, flau42,90 reais tim, sax alto e sax soprano ao longo das 13 faixas de Casa forte, porém esse detalhe não desvia a atenção do entrosamento do grupo, apenas é preciso certo esforço para se acostumar aos incessantes esgares de Russo. A única ressalva à sonoridade do quarteto fica para a homogeneidade da instrumentação, mantida quando entram o toque de Itamar Assière ao piano, o vibrafone de Jota Moraes e o cello de Marcio Malard. Só depois uma nova cor se apresenta, com o arrojo atonal da Orquestra dos Sonhos em Choro bandido e a voz de Edu Lobo na Canção do amanhecer. (CEA)
> Grande encontro > Paraíso invisível da música brasileira de Nico Rezende
> Aldir Blanc canta e > Harmônica em encara o microfone conversa de amigos
Possuindo um hall de artistas de fazer frente a qualquer gravadora “não independente”, a Biscoito Fino convocou parte deles para reviver duetos de várias gerações, por idéia do jornalista Júlio Moura. Assim, D. Ivone Lara e Maria Bethânia cantam Sonho meu, resgatando o encontro de Bethânia e Miúcha no álbum Namorando a Rosa, e a própria Miúcha se junta ao irmão Chico Buarque em Chansong, de Tom Jobim. A faixa-título do CD El negro del blanco é refeita nas mãos de Yamandú e Paulo Moura, mas também participam do disco novos nomes, como o grupo Tira Poeira e Mariana Bernardes, Paulo Miranda e o grupo Casuarina. Vale conferir em particular as Olívias Byington e Hime interpretando Bárbara. (CEA)
Dá para se perder as contas de quantos cantores da MPB eternizaram composições de Aldir Blanc: Elis, Simone, Nana Caymmi, Emílio Santiago... Em simbiose conceptiva com Ivan, Lins, Gonzaguinha, João Bosco, mais sucessos. Saindo da clausura do monastério das inspirações, Blanc decidiu encarar os estúdios e cantar 12 das canções que sobressaem em seu catálogo. A revelação da agradável voz de Aldir constrói uma nova imagem sobre ele, a conferir pela naturalidade de Recreio das meninas II, parceria com Moacyr Luz, e Me dá a penúltima, com João Bosco. Cristóvão Bastos assina os arranjos e o acompanha ao piano e ao acordeom, na medida certa da descontração e do teor das letras. (CEA)
Divulgação
Duetos II Biscoito Fino 23,90 reais
Nico Rezende emplacou diversos sucessos em parceria com outros compositores de pop e rock nacional nos anos 80, a exemplo de Perigo e Noite, gravadas por Zizi Possi, Todas e Pseudo-Blues, por Marina Lima e Transas, cantada por Ritchie. Tocou na banda do próprio Ritchie e de Lulu Santos até iniciar um longo interstício na década de 90 – quando se concentrou em trilhas de novelas, jingles, direção de shows e musicais – interrompido pela gravação de um único CD em 1995. Paraíso invisível, nome da faixa-título criada a quatro mãos com Jorge Vercilo, marca uma nova fase na carreira do músico paulista, onde ele se junta ainda a Mu Chebabi Alex Moreira e Paulinho Lima. A capa do álbum, familiar aos pernambucanos, é de Cícero Dias. (CEA) Paraíso invisível Nico Rezende Lua Music 23,90 reais
Vida noturna Aldir Blanc Lua Music 23,90 reais
Maurício Einhorn, parceiro inseparável do violonista Sebastião Tapajós, deve aos pais, gaitistas poloneses, a paixão pelo instrumento que o levou a fazer sucesso no exterior desde os anos 60 – prestigiado por Tom Jobim, Joe Carter, Nina Simone e outros. O gaitista carioca é mais um dos grandes intérpretes brasileiros de harmônica que podem ser encontrados nas prateleiras atualmente, como Flávio Guimarães, o caruaruense Rildo Hora, Edu da Gaita e José Staneck. Ao lado dos amigos Alberto Chimelli (piano e teclados), Luiz Alves (baixo) e João Cortez (bateria), ele conduz 10 standards neste CD inaugural do quarteto, como My foolish heart, Autumn in New York e Bluesette, este de Norman Gimbel e Jean “Toots” Thielemans, um de seus ídolos. (CEA) Conversa de amigos Maurício Einhorn Delira Música 24,90 reais
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HISTÓRIA
No tempo da delicadeza D. Leopoldina, esposa de D. Pedro I, sofreu com a falta de requinte do ambiente brasileiro Ricardo Japiassu
Retrato de D. Leopoldina de Habsburgo, Luís Schlappriz, óleo s/tela, 230x150cm, s.d. Acervo Museu do Estado de Pernambuco
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Leque da época dos imperadores do Brasil
O
jornal Wiener Zeitung, na edição de 25 de janeiro de 1797, anunciou o nascimento da arquiduquesa Carolina Josefa Leopoldina, filha de Maria Teresa e Francisco I. Nasceu às sete e meia da manhã do domingo anterior, dia 22. A imperatriz Maria Teresa costumava manter conversas com os filhos em francês e italiano. Daí o gosto – desde os 11 anos – constatado na epistolografia da futura imperatriz do Brasil, pelo idioma francês. Foi educada com um séqüito somente seu e a ela coube, desde tenra idade, a disciplina das ciências naturais, para a qual demonstrou imensa inclinação, sobretudo pela mineralogia, zoologia e botânica. Em 1810, ingressou na Ordem da Cruz da Estrela, fundada em 1662, para aglomerar damas da primeira nobreza. Receber esta comenda significava o passaporte para a vida adulta. Neste mesmo período, em companhia da madrasta, Ludovica d’Este, freqüentou a estação termal de Karlovy Vary, quando manteve contato com o poeta alemão Goethe. Realizava leituras em voz alta nos saraus da corte, deslocada para a república tcheca. Por esta época – Napoleão já estava deposto da qualidade de senhor da Europa –, acontece o Congresso de Viena, realizado de novembro de 1814 a junho de 1815, com a formação da Santa Aliança, reunindo as potências da Rússia, Inglaterra, França e Alemanha. O objetivo era redesenhar as
fronteiras do continente. A casa de Bragança tratou de assegurar o trono português e, neste sentido, a melhor pedida seria o consórcio do príncipe D. Pedro com uma das arquiduquesas. Um longo intrincado político, elevando, assim, o Brasil à qualidade de Reino Unido, juntamente com Portugal e Algarves. D. João VI desejava garantir a segurança interna ante as idéias constitucionalistas em avanço, sobretudo em solo lusitano, restaurar a soberania sobre Portugal e opor-se à influência da Inglaterra. A Áustria desejava afastar Portugal da órbita da Inglaterra, oferecendo poder real ao Brasil. Em fevereiro de 1817, chegou a Viena o Marquês de Marialva, que presenteou Leopoldina com miniatura cravejada de 101 diamantes, contendo, ao centro, o retrato do noivo português. Maria – acrescentouse – Leopoldina chegou ao Brasil aos 19 anos, em momento difícil para a monarquia: a população lutava pela implantação da república e pela independência da metrópole. Malogradas algumas tentativas, D. João VI foi sagrado rei de Portugal, em pleno Rio de Janeiro. Sabia que os brasileiros, com o regresso da família real à Europa, não retrocederiam em tudo que haviam conquistado: universidades, bancos, serviços públicos, tais como os judiciários, entre outros. Pensando assim, deixou o filho primogênito na qualidade de príncipe Regente, juntamente com a princesa Leopoldina. Na ABR 2008 • Continente x
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HISTÓRIA ausência do marido, responderia pelo Governo. Vale salientar: na casa dos Bragança, os príncipes recebiam parca instrução, quase não sabiam ler e escrever, muito menos preparo para as questões políticas. Segundo a ensaísta Maria Rita Kehl, foi o primeiro obstáculo a ser enfrentado pela princesa Leopoldina, que pleiteou a Lei do Ventre Livre. Outra façanha de Dona Leopoldina: facilitar as imigrações européias em 1818, 1822, 1828, englobando povos alemães e irlandeses. A chegada dela não resultou apenas no enlace matrimonial. Com ela, desembarcou missão científica. A Áustria era a capital mundial da ciência e das pesquisas. Alguns dos expedicionários levaram até 18 anos para cumprir suas atividades. Este foi o caso do pesquisador Natterer. Por outro lado, Spix e Martius, de 1818 até 1821, percorreram São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão e viajaram, em seguida, até a fronteira do Amazonas com o Peru. Pergunto: se dona Leopoldina convivia com gente culta, como seria o seu desenvolvimento em país áspero aos refinamentos? Foi tão duro que, nos seus últimos cinco anos de vida, se isolou, pois não havia com quem manter conversa e amizade no seu nível, revelou, em carta, à irmã Maria Luisa. Tempos depois, em 1822, D. Pedro I se deslocou para São Paulo. Deixa como Regente a esposa. No Rio de Janeiro, após reunião com ministro e corpo ministerial, a 1º de setembro de 1822, ficou estabelecida a separação entre o Brasil e Portugal, isto é, a Independência. Dona Leopoldina escreve para Portugal. Daí o título de Paladina da Independência. Sagrado imperador, D. Pedro reuniu a primeira Assembléia Legislativa brasileira, a 3 de maio de 1823, na qual esteve presente a jovem imperatriz. Posteriormente, em 1826, quando do conflito armado com o Uruguai, o imperador deixou a esposa gravemente enferma – faleceu aos 29 anos, a 11 de dezembro de 1826, acometida de melancolia aguda. Legou a integridade do Império do Brasil, preservou o regime monárquico, a nação foi descoberta pelo mundo científico, ingressou no âmbito de interesses da economia mundial e, por fim, afrouxou-se a ordem social petrificada. Com isso, abriu-se a porta a processo de civilização moderna. Em 1821, Maria Graham, incursiona pela América do Sul, atracando no Rio de Janeiro a 15 de dezembro do mesmo ano. Dois anos depois, retorna à corte tropical. Nesta segunda estada, quando permaneceu até outubro de 1823, oferece serviços à imperatriz Leopoldina, na qualidade de preceptora da princesa Maria da Glória. Neste sentido, envia à imperatriz a seguinte carta: “Ofereço-me a Vossa Majestade Imperial, certa de que uma Princesa tão perfeita deve
Colar da imperatriz, em ouro, com esmeraldas e rubis
ser a verdadeira diretora dos pontos principais da educação de suas filhas: mas posso prometer ser uma zelosa e fiel assistente”, transcreveu Américo Jacobina Lacombe. Ao que foi acolhida pelos imperadores. Na ocasião, pediu apenas para retornar à Inglaterra, onde juntaria o material necessário: mapas, papéis, globos, tintas, livros, entre outros gêneros, necessários à instrução da futura Maria II, Rainha de Portugal. A 4 de setembro de 1824 aporta, pela terceira vez, na capital do império. A imperatriz a acolheu na qualidade de amiga: amizade que se traduziria em afeto por longos anos e, por sua intensidade, acusariam as duas mulheres de presença homossexual, pensamento alimentado, sobretudo, pela delicadeza contida na correspondência que mantiveram por algum tempo. Reportando-me ao ano de
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Quando jovem, Leopoldina chegou a manter contato com o poeta alemão Goethe. Já na casa dos Bragança, os príncipes, como D. Pedro I, recebiam parca instrução e mal sabiam ler ou escrever 1995, li matéria no Caderno Mais! da Folha de S.Paulo na qual o jornalista indagava a curador de arte sobre a possível homossexualidade da imperatriz Leopoldina e de Zumbi dos Palmares. Na História, inexiste qualquer prova neste sentido. As especulações aconteceram por duas vertentes: a necessidade de se levantar bandeiras ideológicas e a incompreensão, por parte de maioria, em se privilegiar amizade exclusiva. Ora, Maria Graham era refinada, de gosto apurado. Estando dona Leopoldina isolada, longe das artes e da etiqueta, esta amizade somente poderia proporcionar-lhe prazer e deleite. Foi justamente o isolamento que fez a imperatriz muito se apegar à amiga, como forma de suprir mágoas, aviltadas pela presença de Domitila de Castro Canto e Melo, amante do marido, nomeada primeira dama da câmara e condecorada com o título de Marquesa de Santos. Esta passa a desfrutar do mesmo espaço que Leopoldina, vigiando-a, até junto aos filhos. Quanto a Maria Graham, acomodou-se no Paço, onde passaria “dias melancólicos e atormentados,” opina Américo Jacobina Lacombe; recebe manifestações de hostilidade, nas quais era acusada de estrangeira nos negócios luso-brasileiros. O que parece esdrúxulo nesta História é que a inglesa permaneceu no posto por pouco mais de um mês. Logo em seguida, em correspondência também redigida em francês, a imperatriz revela: “Minha querida amiga, recebi vossa amável carta, e crede que fiz enorme sacrifício, separando-me de vós; mas meu destino foi sempre ser obrigada a me afastar
Quarto da imperatriz Leopoldina
das pessoas mais caras ao meu coração e estima. (...) Assegurando-vos toda a minha amizade e estima, sou vossa afeiçoada, Maria Leopoldina”. Lembrando tom homossexual, tendo-se em vista a delicadeza intensa apresentada no conteúdo, no corpus da carta dirigida a Maria Graham, a imperatriz revela: “Começo por dizer-vos que a vossa última carta me causou bem doce prazer, e que posso também assegurar-vos, quanto à minha amizade, que penso mil vezes em vós, minha dedicada amiga, e nos deliciosos momentos que passei em vossa amável companhia”. O tom imensamente delicado se deve, sobretudo, no meu ponto de vista, à formação extremamente refinada que a princesa recebeu na Áustria. Tanto na correspondência com a irmã Maria Luísa quanto na correspondência enviada ao pai – da qual nunca obteve resposta – denota-se o mesmo tom de carinho e afetividade, presumindo não apenas intensa sensibilidade, mas a aguda delicadeza, acentuada pela ausência e, portanto, pela idealização das pessoas com as quais comungava amizade intelectual e espiritual. Seus modos suaves não eram um fato isolado com Maria Graham; impassíveis, portanto, de suspeita homossexual. Desde a infância, quando escrevia aos parentes, o tom era o mesmo. Daí ser improcedente e precipitado acusá-la de homossexualismo, pois que se trata de canalização das afetividades, como ressaltou a psicanalista Maria Rita Kehl. Infeliz por si só, a notícia do seu falecimento chegou a Viena três meses após o funeral. ABR 2008 • Continente x
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PERFIL
Apresentador do Sopa Diário, na TV Universitária, para quem “resistência cultural também cansa”, anda pensando em mudar de rumos. Novamente
Fotos: Rafael Gomes
Roger de Renor, um agitador no front cultural Samarone Lima
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ena 1. O baterista do grupo Matalanamão, Ailton Guerra, vulgo Peste, está tocando ao vivo um daqueles punk-rock maliciosos da banda, o palco do Sopa Diário, da TV Universitária, comandado por Roger de Renor, está a ponto de incendiar. Pouco depois, uma das baquetas do baterista quebra, ele fica tocando só com uma mão mesmo, sem saber o que fazer. Na verdade, ninguém sabe o que fazer. Roger não perde o rebolado. Olha para a câmera e chama os comerciais. Tudo resolvido. Cena 2. Vou ao Sopa Diário acompanhar os alunos de uma escola, estou sentado num sofá vermelho, olhando aquela mistura toda, que dá uma boa sopa mesmo, Roger está entrevistando o Marcelo Tas, e o assunto é blog. Com o programa ao vivo, sem me falar nada, Roger me convida para entrar na conversa. Motivo? Sabe que tenho um blog. O rumo da prosa ganha outros contornos, os dois convidados interagem bem, e tudo fica com a cara do Sopa. O improviso bom, que não deixa a peteca cair, de quem está antenado com o Recife, com as coisas contemporâneas. Cena 3. Noite de sexta-feira, conversamos longamente na Rua da Moeda, justamente no Pina de Copacabana, ao lado de uma estátua de Chico Science, velho amigo de Roger, que o imortalizou com uma pergunta-refrão, em uma de suas músicas: “Cadê Roger?” Já se passaram 17 anos, desde aquele famoso 1991, quando Roger de Renor resolveu abrir a Soparia. Estava com 28 anos, vinha com um bocado de bagagem nas costas. Alguns anos como divulgador da WEA (com direito a 100 discos por mês, para fazer as músicas emplacarem, o que lhe rendeu um delicioso acervo), mais uma vida no circuito da capoeira, ali na Universidade Católica (uns oito anos), depois o Balé Popular. Conhecia a cidade inteira, gente de várias áreas, e resolveu dar um pulo do gato, abrindo um bar. Deu no que deu. Um fenômeno em que o criador sucumbiu à criatura. Saiu de lá em 1999, porque já estava reconhecendo
o tipo de arma que a turma estava usando, para matar e roubar. Ao mesmo tempo, não reconhecia mais seu lugar. Teve um momento em que os amigos dele não apareciam mais no bar, e como todo lugar que vira moda no Recife, quem não tem nada a ver é quem mais freqüenta. O público, as músicas, não eram nem a sombra da velha e boa Soparia. A gota d´água foi um assassinato a poucos metros. Uma hora depois, o morto estava só de cuecas. Roubaram tudo. Roger ainda teve fôlego para se aventurar no Pina de Copacabana, em 1999, mas sabia que era vôo curto, de no máximo dois anos. Quem agüenta ser dono de bar no Recife, e escutar a moçada passar, cheia dos vinhos, aos gritos de “Cadê Roger”? Ele confessa que não queria mais pagar esse mico, porque deseja outra coisa para a juventude, bem mais que encher a cara com vinho a um real. Repassou o bar para Mica, seu amigo de quase três décadas, mas o Pina é uma pálida lembrança do que já foi. Já dizem por aí que um bar tem que ter a alma do dono. Peste, do Matalanamão, lembra que no período do Pina, queria entrar para assistir a algum show, mas não tinha grana. Falava com Roger, que estava ali por perto, e Roger lhe emprestava a carteira de identidade. Qual o dono de bar, hoje, capaz de certas gentilezas para um amigo baterista liso? Os ventos são outros, e Roger encontrou um espaço para fazer o que mais gosta, que é mexer com a vida cultural da cidade. Nos últimos três anos e meio, foi o apresentador, improvisador, mediador de conversas, tudo de chofre. O Sopa Diário, que não é analisado pelos números do Ibope, mas faz uma pequena frente. Tem banda todo dia, debates, análise crítica da mídia, cobranças ao poder público. O programa está num recesso estratégico, para definir novos rumos. Deus queira que volte. O jovem de 28 anos da Soparia agora é um quarentão boa pinta, com os cabelos aloirados, rosto sem um fiapo de barba, físico mantido com exercícios na praia. ABR 2008 • Continente x
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PERFIL Roger no set do programa Sopa Diário, da TV Universitária: nicho da cultura alternativa de Pernambuco
Anda para todos os lados em sua motoca 1989, mora ali no Edifício Califórnia, outro ícone da cidade. Tem 45 anos, mas parece menos. Fala com rara clareza sobre os fracassos culturais do Recife, que considera “a maior cidade pequena do mundo”. Cita um dado que impressiona. De dezembro até o Carnaval, foram realizados mais de mil shows na cidade. “Isso é uma síndrome do palco. A política cultural da Prefeitura é show. Acabou o show, não tem mais nada.” Roger, o mais descolado dos recifenses, capaz de cumprimentar um conhecido a cada quarteirão, tem uma rara pureza na alma, que as pessoas transformam numa frase simples –“é um cara do bem”. Emociona-se ao falar da origem do seu nome, um velho malabarista do circo Merino, o primeiro a sair do Sul e cruzar o Nordeste. Há dois anos, apresentando o Festival Internacional do Circo, conheceu o velho palhaço.
Ligou imediatamente para sua mãe, a potiguar Maria Teresa de Renor, ex-cantora de rádio. Queria saber se era verdade, se a inspiração veio mesmo daquele senhor, que aos 80 anos, continuava fazendo graça. A mãeconfirmou.Dissequeassistiuaumaapresentação, e ficou encantada. O primeiro filho homem teria seu nome. Vieram Paula, Patrícia, Laura, até que chegou Roger, o caçula com nome de artista. Ele cumpriu profissionalmente sua função de apresentador, mas tonto de emoção. Para “despressurizar”, foi tomar uma cerveja. Pouco depois, o Roger octagenário chegou ao mesmo bar. Rolaram umas boas lágrimas, histórias sobre circo, promessas, coisas que ele não perde nunca. Gente inteligente e uma boa conversa. Sua caminhada é totalmente fora dos padrões. Aos 17, encheu a paciência de estudar, e foi trabalhar numa empresa de construção civil que pertencia ao seu pai,
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Fotos: Álbum de família
No sentido horário: Roger no carnaval do Recife; com um ano de idade (1964) e posando de hippie, aos 30 anos, em 1993
Paulo Renor da Silva, um militar alagoano aposentado precocemente. Deu duro, ao lado de Mica, mas depois a empresa foi definhando. Um camarada que tem uma rara clareza de pensamento. Articula a cultura local com as coisas do mundo, discute comunicação, novas mídias, quer ver a juventude protagonista de suas próprias idéias e projetos. Passou oito anos nas rodas de capoeira da Católica, poderia ter feito o curso de Jornalismo, até especialização em alguma coisa, mas não acha que perdeu tempo. Teve outras convivências. Hoje, vive sendo convidado pelos cursos de Jornalismo, para dar palestras sobre comunicação, cidadania etc. Mesmo sem a formação acadêmica, não perdoa a burrice que assola nossa TV. Outro dia, ficou pasmo ao ver, num desses programas de auditório da TV Jornal, uma cinderela dar chicotadas em um anão negro. “Porra,
velho, cada vez que o anão aparecia, colocavam um som de macaco ao fundo. É demais, cara, não dá para agüentar um negócio desses”. Não se conforma com”o desprezo da Prefeitura com a Rádio Frei Caneca”. Acompanha os bons trabalhos da TV Brasil (Canal 46). Roger aproveita o recesso na TV Universitária para refletir sobre seu próprio trabalho. Como todo mundo que vai amadurecendo, não aceita mais as repetições, os lugares-comuns. “Não quero ficar feito aqueles cachorros, latindo para o pneu dos carros”, diz. Os carros passam, os latidos ficam. O “dono da Soparia” vai ficando como lembrança mesmo. Roger não lembra mais um celebrado dono de bar, agitador cultural, que topa tudo. Como diz o poeta, está querendo coisas novas, que também são boas. Ninguém precisa mais perguntar “Cadê Roger”. Ele está aqui, novinho em folha. ABR 2008 • Continente x
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Cartaz de companhia alemã de navegação, feito por volta da década de 30, valoriza a exuberância natural do país
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A utopia particular de Georges Bernanos no Brasil
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Livro resgata período em que o autor de Diário de um pároco de aldeia passou no Brasil fugindo da Segunda Guerra Mundial Marcelo Abreu
á exatos 70 anos, o escritor francês Georges Bernanos chegava ao Brasil para tentar realizar seu sonho de criar uma utopia francesa nos trópicos. Essa aventura de um dos principais escritores da primeira metade do século 20, um capítulo pouco lembrado na longa história de fascinação dos intelectuais franceses pelo Brasil, foi resgatada pelo jornalista e crítico literário Sébastien Lapaque, do jornal Figaro Littéraire, de Paris, no livro Sonos le soleil de l’exil (Sob o sol do exílio, Éditions Grasset, ainda sem tradução em português). Desde criança, conta Lapaque, Bernanos costumava folhear em casa livros e atlas e era “seduzido por nomes como Pernambuco, que brilhava na ponta da América, e pelo nome Paraguai, que cantava aos seus ouvidos, essa pequena república perdida no meio do continente”. Georges Bernanos chegou em agosto de 1938. Queria ir ao Paraguai comprar uma fazenda. Mas o navio parou no Rio de Janeiro e ele se apaixonou pela cidade. Famoso na época como autor de romances como Sob o sol de Satã, de 1926, e Diário de um pároco de aldeia, de 1936, que recebeu o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa, (adaptado para o cinema por Robert Bresson em 1950), Bernanos escolheu a América do Sul para se afastar do pesadelo de ver a França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Sébastien Lapaque, que também pode ser classificado na categoria de intelectual francês apaixonado pelo Brasil, reconta a história de Bernanos a partir de uma viagem que fez pelo Sudeste do país para retraçar o caminho percorrido pelo romancista durante os sete anos em que esteve por aqui. O livro foi escrito como um misto de ensaio e reportagem de campo. O autor visita os lugares por onde passou Bernanos no seu exílio tropical. Resgata um assunto praticamente esquecido no Brasil apesar ABR 2008 • Continente x
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ESPECIAL da grande badalação que cercou, na época, a passagem de Bernanos por aqui. O trabalho retrata também a convivência de Bernanos com intelectuais brasileiros da época como Alceu Amoroso Lima, Augusto Frederico Schmidt e Virgílio de Melo Franco, com o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, e com outro exilado europeu, o austríaco Stefan Zweig. Quando decidiu deixar a Europa em 1938, Bernanos tinha 50 anos e era um dos principais nomes da literatura francesa da época. Tinha se tornado conhecido por sua posição monarquista e por sua forte fé católica (paradoxalmente, com tons anticlericais). Quando jovem, lia escondido no colégio o anarquista Pierre Proudhon. Depois, havia militado na Action Française, grupo monarquista e anti-semita de direita liderado por Charles Maurras, defensor de uma volta à monarquia na França. Bernanos lutou na Primeira Guerra Mundial. Em 1932, rompeu com Maurras em meio a uma grande polêmica pelos jornais. Em seguida, foi repórter durante a Guerra Civil Espanhola. Tornou-se quase um nômade, mudando-se de casa cerca de 30 vezes durante a vida. Depois do primeiro romance, Sob o sol de Satã, publicado em 1926, seguiram-se obras como L’Imposture (A impostura, de 1927) sobre a crise espiritual de um membro do clero e a continuação em La joie (A alegria, de 1929). Seus livros quase sempre apresentam
Bernanos com uma filha, já no Brasil
Anotações de viagem de um francês
Lapaque tenta uma explicação para o fascínio de Bernanos pelo Brasil, país que o escritor considerava como uma nova pátria
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ébastien Lapaque enfatiza – em seu livro sobre Georges Bernanos – o Brasil real, longe dos cartões postais. Mas não se furta a comentários sobre curiosidades brasileiras como, por exemplo, ao falar sobre a importância do conceito de “saudade” nas culturas de origem lusitana. “Essa palavra”, escreve o jornalista, “que o francês ‘melancolie’ traduz mal, reaparece em todos as conversas, em Lisboa, em Cabo Verde, em Belém do Pará e Goa, nos versos de Camões, no fado de Maria Severa Onofriana e na bossa nova de Vinícius de Moraes. A saudade é a presença da ausência, um desejo de felicidade fora do mundo, misturando a tristeza do que já não é e a espera do que será”.
Lapaque tenta uma explicação para o fascínio de Bernanos pelo Brasil, país que o escritor considerava como uma nova pátria. “A característica lusitana, enriquecida pela imaginação indígena e o mistério dos deuses africanos se conciliavam com os segredos de sua alma”. O livro Sous le solel de l’exil tem também boas observações de viagem. Lapaque conta que, no Rio, haviam lhe dito que para chegar à Academia Brasileira de Letras, bastava dizer ao motorista de táxi o nome do local, sem precisar o endereço, o que acabou se confirmando. “Eu confesso minha alegria: os países onde os motoristas de táxi sabem onde se reúnem os escritores não estão totalmente pedidos para a civilização”.
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um personagem que é padre católico. A trama privilegia a descrição psicológica dos personagens, a luta do bem contra o mal, o que se passa na alma, atrás das aparências sociais.
Stefan Zweig, companheiro de exílio de Bernanos
O rompimento de Bernanos com a Action Française originou Scandale de la verité (Escândalo da verdade, de 1929). Ele atacou a classe média francesa em 1931 com La grande peur des bien-pensants (O Grande medo dos bem-pensantes) e, após viver três anos na Ilha de Maiorca, na Espanha, onde presenciou os horrores da Guerra Civil Espanhola, denunciou os crimes de Franco no livro Le grands cimetières sous la lune (Os grandes cemitérios sob a lua), de 1938. Decepcionado com o rumo da política na Europa, sobretudo com os acordos de Munique (assinados entre Hitler e os governos da França e da Grã-Bretanha), e prevendo o pesadelo bélico que se iniciaria no continente, Bernanos decidiu pôr em prática um velho sonho: criar na América do Sul uma nova França tropical, uma utopia pacífica e distante da conflagração européia. Acompanhado da mulher, seis filhos, um sobrinho e alguns amigos, o romancista chegou ao Rio de Janeiro a bordo de um vapor no dia 6 de agosto de 1938. Passou um dia na cidade e, cortejado por intelectuais católicos e francófilos que foram lhe recepcionar no porto, gostou do que viu. Seu plano, po-
Mas o jornalista encontra um Brasil bem diferente do que Bernanos viveu. Cita, sem identificar, um entrevistado que afirma: “o interesse por Bernanos passou, como passou o interesse pela França. Depois da Guerra, a França perdeu muito do seu império intelectual no Brasil”. Em Court voyage équinoxial, livro posterior, Lapaque escreve que, ao se lançar numa viagem ao interior da Amazônia, pôde fazer o que chama de “reatar com a distância”, distância essa que tem sido abolida pelas formas modernas de comunicação e de padronização capitalista. “Ao afastamento no espaço, eu queria acrescentar um afastamento no tempo fazendo um retorno à história brasileira”, diz o autor para explicar como utilizou o Padre Antonio Vieira como uma espécie de guia para o Brasil. Em Sous le soleil de l’exil, o afastamento nos leva ao Brasil dos anos 40, o Brasil em que a França ainda dominava a vida intelectual brasileira. (MA) Amazônia: afastamento no espaço e no tempo ABR 2008 • Continente x
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Quando decidiu deixar a Europa em 1938, Bernanos tinha 50 anos e era um dos principais nomes da literatura francesa da época. Monarquista, católico, leu Proudhon na juventude e rompeu com a Action Française, de direita Bernanos com amigos num café, em Vassouras, 1939
rém, era ir mais longe. Sua fascinação desde a juventude era, na verdade, o Paraguai, onde queria comprar uma fazenda e tornar-se agricultor. Seguiu para Assunção, mas achou o ambiente demasiadamente hostil e os preços muito altos. Voltou ao Brasil um mês depois e começou sua aventura aqui. Num país que, como diz Lapaque, viajantes europeus transformaram em “um espaço da utopia, desde o século 16”.
Cabana onde foi escrito Nós, os franceses, Vassouras, 1939
Capas das edições em português e francês do livro mais conhecido de Bernanos
No Rio de Janeiro, foi recebido pela elite francófila da época, deu palestras, passou a assinar dois artigos semanais em O Jornal, de Assis Chateaubriand. Partiu posteriormente em busca de sua fazenda. Esteve em Vassouras, Itaipava, Juiz de Fora e em Pirapora, no interior de Minas, em 1939, cidade que Lapaque descreve como a “última estação da Central do Brasil, no território dos tatus brincalhões, das piranhas esfomeadas e dos papagaios coloridos.” Lá comprou cinco mil hectares, 280 cabeças de gado e oito cavalos. Em Pirapora concluiu Monsieur Ouine, romance que radicaliza suas preocupações: a angústia com o sobrenatural, os pecados da humanidade, o poder do demônio e o socorro da graça. O livro é apontado como alguns como um precursor do nouveau roman francês por sua estrutura livre, uso de pontos de vistas múltiplos e ausência de começo e fim tradicionais. O empreendimento agrícola de Pirapora não deu certo e Bernanos mudou-se de novo. Comprou uma fazenda chamada Cruz das Almas, nos arredores de Barbacena, onde ficou os quatro últimos anos da temporada no Brasil. Emocionado durante sua visita ao local – escolhido por Bernanos devido ao nome sugestivo –, Lapaque afirma que nessa fazenda se “desenrolou uma das maiores aventuras espirituais do século 20”.
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Sede da fazenda em Pirapora, 1940
O general De Gaulle convidou Bernanos a voltar à França em 1954
Bernanos ia com freqüência a Barbacena, montado num cavalo puro-sangue inglês chamado Oswaldo, doado pelo amigo Oswaldo Aranha, à época embaixador brasileiro em Washington. Na cidade, conversava com os amigos e escrevia no Café Colonial. De Barbacena, deslocava-se também para o Rio e para Belo Horizonte. Enviava mensagens à Resistência Francesa que eram transmitidas pela rádio BBC de Londres, a exemplo do que fazia Charles de Gaulle. E colaborava com o jornal da Resistência La Marseillese, editado na Inglaterra. Bernanos foi, no exílio, o grande escritor da Resistência à ocupação nazista da França. Mas, como afirma Lapaque, demonstrava uma “fidelidade áspera, rugosa e vigilante” e era dono de um forte espírito de independência. “Católico, culpava os prelados. Monarquista, foi severo com o conde de Paris. Gaulista, recusou-se a pertencer aos órgãos oficiais da France Libre, preocupado que estava em só falar em nome próprio.” Tinha problemas com a embaixada francesa no Brasil, durante os anos da ocupação alemã. Certa vez, devolveu sem abrir uma correspondência do embaixador francês com um bilhete que dizia: ”Eu não recebo cartas de traidores”. Os melhores momentos de Sous le soleil de l’exil são exatamente quando Lapaque cai em campo em busca dos vestígios da passagem da família Bernanos pelo Brasil. Na viagem, encontra gente que conviveu com ele, como o escritor Geraldo França de Lima. Visita a casa em que morou, onde hoje funciona o Museu Bernanos, em Barbacena. E fala dos filhos que ficaram ainda anos morando no Brasil e dos netos que ainda vivem por aqui.
Em 1945, Bernanos deixou o Brasil com relutância. Voltou à França, a convite do general De Gaulle, que o convidou a participar da reconstrução do país. Não se adaptou aos tempos do pós-guerra. Passou a denunciar o avanço tecnológico. No livro de ensaios La France contre les robots (A França contra os robôs), de 1947, faz uma crítica violenta à sociedade industrial. Nos artigos, defende a idéia de que o progresso técnico limita a liberdade humana. Diz que a civilização francesa é incompatível com o que chama de “idolatria anglo-saxã pelo mundo da técnica”. É profético quando aos efeitos nocivos da economia global. “Um dia, famílias inteiras cairão na ruína, do dia para a noite, porque a milhares de quilômetros de onde moram, se poderá produzir a mesma coisa por dois centavos a menos por tonelada”. Duas décadas antes de 1968, previu também uma revolta da juventude contra o estado das coisas. Bernanos ainda sairia da França mais uma vez, rumo à Tunísia, uma espécie de novo exílio voluntário. “Sempre em direção ao sul, em direção à luz plena, e ao sol, ele que era um homem do norte e da noite. Ele era um vagabundo bíblico, há um valor bíblico na sua falta de rumo”, avalia Sébastien Lapaque. Bernanos morreria na França em 1948. Mas sua influência persiste em alguns círculos. Em dezembro de 2007, em visita ao papa Bento 16, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, defendeu as raízes cristãs da França e levou como presente duas obras de Bernanos, La joie e l’imposture. O papa agradeceu e, como era de se esperar, disse que já as tinha lido. Diário de um pároco de aldeia, seu livro mais conhecido, foi publicado em 28 países. No Brasil, há uma edição em catálogo da Editora Paulus. ABR 2008 • Continente x
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Marcelo Abreu/Divulgação
Como era gostoso o meu Brasil
Sébastien Lapaque, outro intelectual francês apaixonado pelo Brasil
Especialista na obra de Bernanos, o crítico Sébastien Lapa fala sobre a relação intelectual entre a França e o Brasil
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entrevista>> Sébastien Lapaque O
jornalista e crítico literário Sébastien Lapaque nasceu em Tübingen, na Alemanha, em 1971. Mas é a França e o Brasil que ocupam o seu tempo e suas atenções. Crítico de literatura do Figaro Littéraire, Lapaque é autor de uma dezena de livros, entre eles o premiado romance Les idées heureuses que ganhou o prêmio François Mauriac da Academia Francesa. Organizou uma coleção sobre os pecados capitais, escreve sobre vinhos e tem no Brasil parte de suas paixões literárias. Após escrever Sous le soleil de l’exil, sobre Bernanos no Brasil, voltou ao país para escreveu Curt voyage équinoxial (Curta viagem equinocial, ainda sem tradução), na qual descreve uma viagem que fez pelas profundezas da Amazônia e do Nordeste. Em 2004, organizou a coletânea Le goût de Rio de Janeiro (O gosto do Rio, também sem tradução), na qual estão textos sobre a cidade escritos por nomes como Lúcio Cardoso e Mario de Andrade, por franceses como Edouard Manet e Auguste de Saint-Hilaire e por norte-americanos como John dos Passos e John Updike. Nesta entrevista ao repórter Marcelo Abreu, Lapaque fala sobre a paixão literária por Georges Bernanos.
Como e por que o senhor se interessou pelo exílio de Georges Bernanos no Brasil? Eu havia escrito um primeiro livro sobre ele, Georges Bernanos encore une fois (editora L’Age d’Homme/ Les Provinciales). É um ensaio que evoca a sua fé e sua obra. Mas havia uma lacuna no livro, os sete anos que Bernanos passou no Brasil. Em 2001, uma viagem para fazer uma reportagem no Brasil para o Figaro permitiu-me reencontrar os locais onde o romancista viveu, nos Estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Encontrei um número incrível de pessoas que se lembravam e que tinham uma grande saudade dele. Dei-me conta de que havia outros lugares a ver, especialmente a casa onde ele morou em Pirapora, no ano de 1940, às margens do São Francisco. Voltei ao Brasil em 2002 e fui a Pirapora e também encontrei Geraldo França de Lima na Academia Brasileira de Letras. Foi sorte porque ele morreu alguns meses depois. Lima me contou como ele levou Stefan Zweig a uma visita a Bernanos na fazenda de Cruz das Almas, em Barbacena, alguns dias antes do suicídio de Zweig. Assim, as pesquisas que tinha feito para uma reportagem no Brasil acabaram por fornecer material para um livro.
Lendo o seu livro, tem-se a impressão de que o olhar de Bernanos sobre o Brasil era limitado, que ele estava concentrado em sua utopia pessoal e suas preocupações com a situação na França. Bernanos não se interessava pelos problemas brasileiros, como a participação na guerra ao lado dos aliados, apesar da simpatia de Getúlio Vargas pelo Eixo? Do ponto de vista geográfico, o Brasil de Bernanos se resume ao Rio e a Minas Gerais. Ele não conheceu o país na sua amplitude, não foi à Amazônia ou ao Nordeste, mas acho que conheceu o país na sua profundidade, convivendo com vaqueiros no cerrado. “Não são os seus intelectuais que me fizeram compreender os seus camponeses, são os seus camponeses que me fizeram compreender os seus intelectuais. Esta é a verdade”, escreveu ele. Esses intelectuais eram sobretudos os mineiros, como Afonso Arinos e Virgílio Mello Franco, que ele encontrou graças à recomendação do filósofo neotomista Jacques Maritain, muito influente no Brasil, na época, nos meios católicos. Foi também através de Maritain que Bernanos conheceu Alceu Amoroso Lima, um dos líderes da Ação Católica brasileira. Por ter freqüentado e gostado dos mem-
Paisagem do Rio de Janeiro, por Chamberlain, no século 19
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bros de sua elite social, ele pôde celebrar “essa inteligência brasileira que, por um milagre, sem dúvida, da mistura de raças que faz tão belas suas mulheres e suas moças, é talvez a mais vibrante, a mais sensível, a mais nervosa inteligência do mundo”. Mas e os problemas brasileiros? Quando se pega todos os artigos de Bernanos do período brasileiro, coletados no livro Chemin de la Croix-des-Ames, damo-nos conta de que ele não falou muito dos problemas internos do Brasil dos anos 40. Ele evoca o Brasil de uma maneira mais espiritual. Nas suas Lettres aux anglais, usa de imagens muito bonitas para falar dos brasileiros e um tom que me lembra o de Gilberto Freyre. “Seu povo cresce como uma árvore, ou se compõe como um poema, por uma espécie de necessidade interior, da qual o mundo moderno não compreende nada, porque, precisamente, não tem necessidade interior.” Esse tom lembra também o de Stefan Zweig no livro Brasil, país do futuro. Você sabe que a crítica brasileira julgou severamente esse livro, que achou muito ingênuo. Por se lembrarem da situação na Europa, Bernanos e Zweig tinham a tendência de adornar a realidade brasileira. Mas é falso pensar que Bernanos estava indiferente aos assuntos do Brasil. Em seus artigos nos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, em favor de uma intervenção na guerra junto aos aliados, ele desempenhou um papel importante na opinião pública brasileira. Com Costa Rêgo, redator-chefe do Correio da Manhã, e com Austregésilo de Athayde, redator-chefe dos Diários Associados, ele lutou para que as autoridades brasileiras reconhecessem os comitês France Libre formados em Natal, Recife, Rio, Belo Horizonte e São Paulo. Os comitês apoiavam o general de Gaul-
le em Londres mais do que os diplomatas franceses no Brasil, todos fiéis ao marechal Pétain. Não esqueçamos que Bernanos foi ligado ao ministro de Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, e a Raul Fernandes, que sucedeu Aranha no pós-guerra. Bernanos sempre recusou os convites oficiais de Vargas para visitá-lo, mas encontrou-se com Juscelino Kubitschek em Belo Horizonte. Mas por quê, nos seus livros e sua correspondência, o nome de Vargas nunca é escrito, nem de forma positiva nem negativa? Acho que foi uma forma de pudor e de respeito pelo país que o acolheu.
Imagens: Divulgação
ESPECIAL
Como o senhor analisa a produção da geração de intelectuais brasileiros nos anos 40, no contexto da literatura do século 20, aqueles que tiveram contato com Bernanos, como Jorge de Lima, Afonso Arinos e Alceu Amoroso Lima, por exemplo? Durante o século 20 se produziu no Brasil o mesmo movimento de retorno ao catolicismo que ocorreu na França com alguns artistas. Romancistas e poetas ligados às vanguardas que reencontram a fé. Murilo Mendes e Jorge de Lima, para quem o cristianismo alimentava a poesia, se sentiam próximos de Bernanos antes que ele chegasse ao Brasil. Jorge de Lima traduziu para o português o romance Sob o sol de Satã. Eu gosto muito de sua poesia assim como a de Murilo Mendes, livros que infelizmente não são traduzidos em francês. Outra coisa importante
A Avenida Atlântica, Rio de Janeiro, 1936
nessa geração de brasileiros é a questão do engajamento. Acho que Bernanos foi importante para esses homens que eram ao mesmo tempo conservadores, cristãos e humanistas. Depois da Guerra Civil Espanhola, Bernanos tinha alertado os católicos contra toda forma de conluio com o fascismo. Esse alerta era igualmente importante no Brasil. No contexto do integralismo e no círculo de Vargas, alguns intelectuais foram tentados a ver Mussolini, Franco e Salazar, mais do que Hitler, com uma certa simpatia. Bernanos era um dos in-
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"O Brasil de Bernanos se resume ao Rio e a Minas Gerais. Ele não conheceu o país na sua amplitude, não foi à Amazônia ou ao Nordeste" telectuais europeus que entendeu desde meados dos anos 30 que não se podia confundir de lado. Ele escreveu um violento panfleto contra Franco intitulado Les grands cimitières sous la lune. De onde vem seu interesse pelo Brasil que o levou a escrever outros livros sobre o país? Através de Bernanos, interesseime por um aspecto malconhecido da amizade franco-brasileira. Desde o século 18, ela é muito forte. Houve escritores franceses que viveram no Brasil, como Paul Claudel, Blaise Cendrars, Claude LéviStrauss e Bernanos e escritores brasileiros que viveram na França, como Joaquim Nabuco, Olavo Bilac e Jorge Amado. Afonso Arinos, em A alma do tempo – memórias, deixou páginas muitos bonitas sobre a França. E Vinicius de Moraes também amou loucamente Paris. Agrada-me muito essa idéia de culturas cruzadas. Meus livros são um testemunho do amor que um francês do século 21 pode ter pelo Brasil de ontem e de hoje. Quais são as diferenças entre o interesse de sua geração e o interesse da geração de Bernanos pelo Brasil? Na época em que Blaise Cendrars descobriu São Paulo, nos anos 20, ou quando Bernanos desembarcou no Rio, em 1938, o Brasil era um país muito acolhedor para os escritores e intelectuais franceses: nos círculos da elite, todo mundo falava francês e talvez até nos mais simples. Imagine que, na USP, Lévi-Strauss dava suas aulas em francês entre 1935 e 1938. Imagine que três livros de Bernanos saíram pela editora Atlântica, no Rio, durante sua presença no Brasil, todos
Livro reconstitui a temporada brasileira
em francês: Lettres aux anglais, Le chemin de la Croix-des-Ames e Monsieur Ouine. Os laços intelectuais e culturais com a Franca eram muito fortes porque o francês era para os brasileiros uma língua de comunicação universal. Hoje, o francês e o português são “pequenas línguas”, comparadas com o inglês e o espanhol. É mais difícil estabelecer um contato. Mas quando estabelecemos, tudo dá certo. Porque os brasileiros ainda gostam muito da França, mesmo que seja uma França diferente, mais a França de Zinedine Zidane do que a de Victor Hugo. Os franceses retribuem esse amor ao Brasil? Não tenho certeza. Fiquei decepcionado quando o nosso presidente da república não se deslocou em pessoa à posse de Lula em Brasília, em 2003. No jornal em que trabalho, o Figaro Littéraire, tento falar de escritores brasileiros traduzidos em francês. Nos últimos meses, fiz artigos sobre as traduções de Milton Hatoum, Chico Buarque, Luiz Schwarcz e Luís Fernando Veríssimo, entre outros.
O senhor acha que a intelectualidade francesa e o público em geral ainda atribuem a Bernanos o prestígio merecido? Os romances e os “textos de combate” de Bernanos têm lugar nas bibliotecas francesas. É a questão do engajamento. Na França, muitos intelectuais se comprometeram com o fascismo (Céline e Drieu la Rochelle) ou com o comunismo stalinista ou chinês (Aragon e Sartre). Durante a Guerra Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra da Argélia, alguns escritores souberam ficar acima da confusão em nome de uma certa idéia de França, do homem e de sua liberdade. É o caso de Bernanos, de François Mauriac e de Albert Camus. Le grands cimitières e Le chemin de la Croix-des-Ames são livros de referência para todos que são ligados à liberdade de espírito. Junto ao grande público, Bernanos é conhecido graças às adaptações de seus romances para o cinema. Le dialogue des carmélites foi adaptado para ópera por Francis Poulenc e é montado regularmente. Acho que os leitores franceses dão aos seus livros o lugar que eles merecem. No Brasil , infelizmente, não acontece o mesmo. Um especialista na UFRJ, Fernando de Souza e Silva, explicou-me: os brasileiros que gostam de Bernanos são os que liam em francês. Nenhum editor viu a necessidade de publicar ou de reeditar as traduções em português. É uma pena, porque acredito que seus romances agradariam ao público brasileiro. A leitura de alguns ensaios e, mais ainda, de um livro como Les enfants humiliés, seu diário em Pirapora, pode ser tão marcante para um jovem brasileiro como para um jovem francês. ABR 2008 • Continente x
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Recriando universos Trabalho de graduação no curso de design da UFPE teve como objetivo a criação de projeto gráfico para uma coleção de clássicos literários Raul Aguiar
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Árvore símbolo da "editora" Três Estações
A
lém da oportunidade de pesquisar e experimentar nas áreas em que tenho maior interesse dentro do universo do design – ilustração e editorial –, serviu-me de motivação para realizar este projeto a vontade de trabalhar com imaginários literários de autores vindos de culturas e nacionalidades diferentes. Utilizei-me dos livros Romance d’a pedra do reino, de Ariano Suassuna, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez e O som e a fúria, de William Faulkner. O que, para mim, acabou resultando num panorama muito particular de histórias ambientadas no continente americano, indo do norte ao sul, passando por três idiomas distintos. Para registrar tal projeto, pareceu-me mais adequado optar por um memorial descritivo, pois, além de funcionar como um diário de produção, esse formato sistematizaria melhor um trabalho de design de cunho projetual. Nesse sentido, apresentar o memorial em forma de blog (www.raulaguiar.com/blog) acabou surgindo como evolução dessa idéia. Além de possibilitar uma produção textual mais direta e informal, o blog permitiria que o material on-line fosse facilmente acessado por outras pessoas, favorecendo, inclusive, o feedback dos leitores. Depois do primeiro passo – o de criar um blog, formular a estrutura e definir o recorte do trabalho –, fiz minhas pesquisas e li os livros pela primeira vez. Minha intenção era unir as obras pelo comum de seus universos, pois em minhas pesquisas descobri que essas três obras eram ambientadas em realidades fantásti-
cas, locais que nunca existiram ou pelo menos não da maneira como foram descritos nos textos. Entretanto, apenas após ler O som e a fúria, descobri que os livros se relacionavam de outra forma. Reestudei-os com foco nas possibilidades gráficas para a coleção, na identidade do projeto e na direção que as ilustrações deveriam tomar. Mas enquanto estava lendo, sempre encontrava num livro algum detalhe que ecoava algo do outro. Um personagem, um ato semelhante, uma cor, um cheiro. Sendo o principal ponto em comum entre os três a questão da família. A força desse tema estava presente no orgulho de Quaderna por ser um Ferreira Quaderna Garcia Barreto, nos 100 anos de história dos Buendía, e na trajetória de decadência dos Compson. Para me ajudar no desenvolvimento do trabalho, iniciei um jogo de palavras e ao mesmo tempo fui pensando em nomes para a coleção. Considerando que as histórias se passavam em localidades rurais e que – excetuando-se as pessoas – o único fator que as diferenciava, na minha interpretação, era o clima, surgiu o nome Três Estações. Comecei a trabalhar na iconografia. Pensei numa árvore para representar as três estações, com a mesma estrutura de desenho, mas com pequenas variações. Esse foi meu primeiro esboço do projeto, feito diretamente no computador. Depois disso, todo o processo criativo se desenvolveu. É bom enfatizar, entretanto, que cada rascunho ou decisão eram analisados com atenção para que eu não me perdesse nas infinitas possibilidades ao longo de quatro meses de projeto. ABR 2008 • Continente x
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Estudos e ilustrações para os três livros da coleção
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Uma das vantagens, e ao mesmo tempo desafio, foi o fato de a obra de Ariano ter uma estética muito forte e ao mesmo tempo ser aquela com a qual estou mais familiarizado, visto que já trabalhei com outros projetos gráficos envolvendo o movimento armorial. Assim, tomei a decisão de não utilizar referências desse estilo, utilizando apenas o que já havia absorvido em trabalhos anteriores. Já no caso dos outros livros, busquei em filmes, animações, pinturas, trilhas sonoras e quadrinhos todas as referências visuais de que necessitava. Tudo o que via e achava que tinha relação com o trabalho era registrado ou copiado. Essa etapa foi mais lenta, assim como a própria conceituação do projeto. Mas não me preocupei com o tempo dedicado à reflexão, pois não sabia quando teria outra oportunidade para me dedicar ao processo criativo de forma tão intensa. Conceito pronto e ilustrações encaminhadas, voltei-me para o layout e para a tipografia. Essenciais em um livro, esses aspectos muitas vezes não são percebidos pela maioria dos leitores. E, para alguns designers, nem precisa. Já que, segundo certos autores, um bom design de livro tem que ser invisível. Ou seja, se um trabalho for realmente bem feito tipograficamente, não será notado por nenhum leitor comum. Apenas designers e interessados no assunto darão o reconhecimento merecido. Tratei a parte pré-textual dos livros como créditos iniciais de filmes, introduzindo o leitor aos poucos no universo da história. Por isso, nas capas, não utilizei nenhuma ilustração figurativa, apenas uma composi-
ção com texturas criadas para o projeto. A idéia era que elas tivessem uma certa continuidade, seguindo a estrutura que defini para o projeto: embora não constituam uma seqüência, acontecem entre os livros algumas interseções. Cem anos de solidão, onde tudo é possível, partilha do clima fantasioso do livro de Ariano. Já em relação a O som e a fúria, divide com ele uma atmosfera de desencanto e decadência. O padrão de cores para os três foi inspirado na técnica do color script, criada pelo estúdio de animação Pixar, que nada mais é que um roteiro de cores utilizado durante todo o processo de execução dos filmes, com o objetivo de estabelecer a emoção das cenas através do cromatismo. Defini que no Romance d’A Pedra do Reino, a paleta de cores seria simples, mas muito saturada, para demonstrar a aridez do cenário e o maniqueísmo da história. Em Cem anos de solidão, utilizei como cor-base um verde tendendo para o azul, junto a uma gama de cores bem vasta, tudo muito misturado. E em O som e a fúria foram utilizadas cores com pouca ou nenhuma saturação, com variações entre os quatro capítulos, mas puxando sempre para uma paleta entre o cinza e o amarelo. Definidos os critérios de criação das ilustrações, layout das páginas e padrão de cores, imprimi as bonecas dos livros e confeccionei a embalagem da coleção. Independentemente de algumas mudanças, creio que a coleção acabou honrando os autores e suas obras. ABR 2008 • Continente x
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Imagens: Reprodução
REGISTRO
Como muitos intelectuais nos anos 30, o genial pintor Vicente do Rego Monteiro exerceu uma militância na revista direitista Fronteiras, onde desancou a rede de dormir como entrave ao desenvolvimento do Nordeste Fernando Monteiro
Na rede da Direita
O integralista Plínio Salgado, por Vicente do Rego Monteiro
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A RÊDE, A GRANDE INIMIGA DA CIVILISAÇÃO NORDESTINA "Foi a rêde que ensinou ao ameríndio a indolência. Foi a rêde que nos tempos coloniaes induziu os gorduchos senhores e finas donzelas à preguiçosa somnolencia das selvas. Foi a rêde que ensinou ao mestiço a inconstância, e as migrações constantes. Rêde que se enrola e que se transporta às costas, sem saudades nem apêgo ao rancho acolhedor. A rêde e o seu inseparável alcoviteiro de flandres e duzentos réis são os grandes culpados da instabilidade das povoações nordestinas. A qualquer grito de alarme, à menor dificuldade existente entre o proprietário e o seu morador, e lá se vae a rêde enrolada em forma de matulão, a miuçalha à frente puxando a ma-
trona que segue levando nos braços o filho mais novo, o alcoviteiro de flandres na ponta do dêdo... e o chefe da família o seu gancho (cavallo ou jumento), acompanhando a tropa, fazendo estralar a ponta do relho.
Proprietários, senhores de engenho, usineiros, plantadores de café e de algodão, facilitae aos vossos moradores a confecção de móveis pesados em sucupira, pau-d’arco ou pau-ferro, mesas, armários, leitos e bahús bem pesados afim de prendelos, enraizando-os à terra. O amor à casa é o segredo da civilização. O nômade no seu estado primitivo sempre usou da rêde e dos abrigos fáceis e desmontáveis; o amor à casa e aos móveis do interior amigo e confortável é que transformou os bárbaros em civilizados e creou o amor à Pátria.” Publicado na revista Fronteiras, de 1937, por Vicente do Rego Monteiro
E
ste primor de visão redutora – mantida a grafia da época e soando hilária, embora seu autor a tenha escrito a sério – leva a assinatura do modernista avançado, pintor genial e militante da direita Vicente do Rego Monteiro. Parece incrível, mas tal catilinária contra a pobre rede de dormir (e mais uma sobrada para o alcoviteiro de flandres) foi uma das “inspirações” do Vicente articulista da revista Fronteiras, publicação que congregou a nata da direita pernambucana, nos anos 30. “Pecado” de época – mas nem por isso menos pecado –, o gênio original de Vicente trilhou pelos descaminhos da Fronteiras, expressando opiniões ora esdrúxulas ora conservadoras (ou ambas), quando já nem tinha a desculpa da juventude para errar nas artes da política, pelo menos. Na arte dos pincéis, ele sempre acertou em cheio – como ao voltar o olho para as formas geométricas dos índios brasileiros como fonte de inspiração do seu modernismo influente sobre Tarsila e outros colegas. A vida tem dessas coisas. Muita gente boa – além de Rego Monteiro – caiu na rede das idéias fascistas ululantes naqueles tempos de camisas pardas e bisonhas imitações de Benito Mussolini e Adolf Hitler, aqui galvanizadas no “anauê” tupiniquim de Plínio Salgado. O Brasil tem de tudo e, nos anos de fermentação política pós-tenentismo, teve também o seu pequeno burguês de bigodinho aspirante a Führer dos trópicos. Todos sabem que o “intelectual” Salgado (como é referido no filme O soldado de Deus, longa-metragem mais recente do documentarista Sergio Sanz), cacique do integralismo, foi responsável pela mais bizarra aproximação brasileira do ideário da extrema direita européia – transplantado aqui para Pindorama, numa pantomima sinistra de atos mal-imitados do nazifascismo, sob a mortalha (essa, sim, indolente) de conceitos nacionalistas ainda mais confusos do que os do intelectual (verdadeiro, apesar de equivocado) Gustavo Barroso.
Vicente do Rego Monteiro em seu ateliê, no Edifício Holiday
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REGISTRO landa, lançado em 1937. Isso aconteceu no tempo de um Brasil já surreal, Para Mota, as teses da elite oligárquica brasileira no qual pareceram sedutoras, para muito, as idéias de – associada ao pequeno mundo burguês (coadjuvante, “destino nacional” e “raça”, mesmo aqui no Brasil messempre) –, tiveram a contraprova do entusiasmo petiço que Gilberto Freyre acabava de decifrar em Casa los “feitos da raça” – ou os pretensos “defeitos” dela, grande & senzala (um dos livros mais atacados pela como no caso dos dolentes adeptos das redes, para Fronteiras, conforme veremos mais adiante). VRM – ao se verem contestadas, paradoxalmente, O nosso grande Rego Monteiro – como Helder por um escritor de orientação conservadora (Freyre) Câmara, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins, Gilberto e pelos dois outros, esquerdistas de formação européia Amado, Azevedo Amaral, Octavio de Faria, Virgínio (Gilberto completou sua formação nos EUA, como se Santa Rosa, Oliveira Vianna, Afonso Arinos de Mello sabe). Curiosamente, os três se juntam, entre 1933 e Franco, José Maria Belo, Barbosa Lima Sobrinho, Mar1937, num mesmo “retrato” da formação brasileira a tins de Almeida, Alcindo Sodré, Hélio Viana, Cândipartir dos segmentos oprimidos, do Mota Filho, Capistrano de na nossa sociedade luso-tropical. Abreu, Alcides Gentil, Paulo CaMesmo entre as ilusões de Gilvalcanti, Miguel Reale e Gerardo berto sobre o modus da coloniMello Mourão, entre outros – foi zação portuguesa, tais segmentos apenas mais um dos artistas e foram revistos como protagonisintelectuais atraídos, em meados tas de uma história não redutível da terceira década do século 20, aos “efeitos” de hábitos como o de pela mesma “atração fatal” do dormir fosse onde fosse (se é que partido do Sigma (uma suástica a fome – mais adiante estudada estilizada) que, aqui no Recife, pelo fundamental Josué de CasAndrade Lima Filho recordava tro – permite dormir o sono sem com muita verve: sonhos dos “cassacos”)... “Berrei anauês, invoquei a A pequena amostragem que ‘milícia do além’, incinerei fichas é “a rede, a grande inimiga da de traidores no fogareiro do ritual civilização nordestina” não teria ridículo. Ouvi rumores de especoutro ambiente para ser acolhida tros funambulescos nas noites de senão numa revista como FronSalem dos ‘tambores silenciosos’, teiras. Surgida em 1932 – com o integrei, muito ancho, a Câmadístico “Ordem: Autoridade: Nara dos 400, enfim, fiz tudo como ção” logo abaixo do nome alusivo mandava o figurino de Plínio Salgado: arenguei em comícios, des- A revista Fronteiras reunia a direita pernambucana a limites e separações –, ela circulou até 1940, dirigida por Manuel Lubambo (futuro filei em paradas, dei murros, levei socos. E, hoje, e aqui, secretário da Fazenda do Estado Novo) e Vicente do a repassar, na memória penitente, os lances quixotescos Rego Monteiro, ambos confusamente irmanados sob da grande bufonaria da juventude equivocada, a mim a bandeira do “Movimento Patrianovista”, uma espécie me parece ouvir ainda, às minhas costas de desfilante de versão monarquista do integralismo (durma-se, em patusco, como o grande herói burlesco da ópera, o “ride rede ou não, com um “barulho” ideológico desse!)... palhaço” da galhofa e do apupo das multidões iradas, A impagável – porém séria – Fronteiras prestou nas pateadas vingadoras. Eu era um deles. Um palhaço, a devida atenção ao aparecimento de Casa grande & sim. Aí o comício descia do palanque, ou a passeata atrasenzala, e caiu, com as quatro patas, em cima do livessava na rua, terminando tudo em pancadaria. Era a vro de interpretação sócio-antropológica, consideranbílis colorida em ação. O verde contra o vermelho”. do-o “um dos ensaios mais perniciosos de sedução comunista no Brasil. Seu intuito é predispor, de criar No brilhante A ideologia da cultura brasileira (publiambiente propício, fazendo do brasileiro nato o resulcado em 1977), Carlos Guilherme Mota identifica três tado democrático da miscigenação, reduzindo a uma livros que funcionaram quase como antídoto para o proporção mínima a participação ariana. Para ele, o desenvolvimento da “febre” descrita por Andrade brasileiro é um produto afro-índio escravizado por Lima, nas mentes mais abertas que se dedicaram a ler uma minoria branca. Casa-grande & senzala é um lia já citada obra-prima de Freyre – publicada em 1933 vro pernicioso, dissolvente, antinacional, anticatólico, – e também Evolução política do Brasil, de Caio Prado anárquico e comunista”. Júnior, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Ho90 x Continente • ABR 2008
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Aconteceu também com o poeta americano Ezra Pound, com o francês Louis-Ferdinand Céline e até com o argentino Jorge Luis Borges – um trio de altos artistas da palavra –, todos imersos na mesma “cegueira” de percepção a levá-los pela trilha da direita, em caminhadas que não poderiam terminar nada bem.
No caso de Pound, findou com o “espetáculo” do seu aprisionamento numa verdadeira jaula, como louco perigoso vigiado por soldados (seus compatriotas), dia e noite. Extrapola, e muito, do campo de abordagem deste modesto artigo sequer tentar dar uma resposta para o fascínio (estético, apenas?) que as encenações fascistas de Benito Mussolini, as águias romanas decadentes e o símbolo fálico do Fascio exerceram sobre o grande poeta dos Cantos, pregador veemente contra a usura e a crueldade dos ricos. Não percebia, Ezra, que estava a ouvir o canto de sereia da velha oligarquia do novecento italiano, assim como soavam, aqui no longínquo Nordeste brasileiro, as toadas & modinhas da alta burguesia indiferente à senzala (caso estivesse tudo mais ou menos bem na casa-grande)?... Brasil velho de poucas guerras e surrealismo às pampas! Se todos os seus males viessem apenas das redes, a gente até deixava de dormir nelas e em camas ou em qualquer lugar mais confortável para o corpo doído dos explorados desde os tempos da Colonização vesga e mesquinha (como toda “boa” colonizaçãoque-se-preza), no continente ainda de veias abertas e, atualmente, sangrando de outras maneiras. Vicente do Rego Monteiro, ó gigante da Pintura!, como “intérprete” sociológico, vosmicê foi um grande funileiro de flandres nas fronteiras da besteira – digamos agora, antes tarde do que nunca.
Arquivo CEPE
A revista chegou a iniciar campanha pela proibição da obra e, quando Gilberto Freyre lançou Nordeste, em 1936, seus dois editores partiram para a completa desonestidade de visão sobre o que chamaram de “a Sociologia dos detalhes” do ainda jovem autor: “Sociologia dos morcegos, da cobra, do gato, da raposa, do guará e até do carrapato e do lacrau e do bichode-pé. Não tem nada de novo. Depois dos pitus do rio Una, nada mais pode ser descoberto neste País”. Sentese o dedo de Vicente nos editoriais até engraçados – se não fossem cegos. Sobre Sobrados e mucambos o mais ameno que a revista disse foi que o livro era “um incentivo à luta de classes entre as cozinheiras e as donas de casa no Nordeste Brasileiro”. Por que uma mente avançada, artisticamente (como a era a mente de Rego Monteiro), retrocederia até o máximo reductio de visão, na rede complacente da direita? Por que artistas e intelectuais esteticamente avançados permitiram-se dar a marcha a ré política, diante dos rumos da História?
"Anauê": versão tupiniquim da saudação fascista
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Fotos:Jacques Antunes/ Divulgação
TRADIÇÕES
Tradição e reinvenção no Cariri A peleja dos Irmãos Aniceto na lida da roça e do palco para reverenciar o véi Anicete, que pinota de alegria no céu Isabelle Câmara
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les surgem diante das nossas retinas como xilogravuras coloridas em movimento. E suas aventuras poético-musicais bem que dariam versos de cordel, mas como não sou boa em rimas, conto suas histórias. Tudo começou assim: filho de pai e mãe índios cariris – povo que foi aldeado na antiga Missão do Miranda, pelos frades italianos da ordem dos Capuchinhos –, José Lourenço da Silva, nascido no Crato (CE), lá pelos idos de 1834, fez uma zabumba numa cabaça e começou a tocar e pinotar sob o sol da Chapada do Araripe, imitando seus ancestrais. Pinota aqui, pinota ali, ele formou um grupo composto por zabumba, pífano e tarol. Os cariris eram tidos como excelentes músicos e improvisadores e, para alguns estudiosos, essa seria uma explicação para diversidade e a riqueza musical que brotava em José Lourenço e que existia na região. Sabe-se lá por que cargas d’água José Lourenço ganhou o apelido de “Anicete”. O tempo passou, o “e” foi trocado por um “o”, e ele começou a introduzir os seis filhos homens, ainda pequenos, na arte do tocar e dançar. As quatro filhas ficaram de fora da brincadeira. Em entrevista ao cineasta Rosemberg Cariry no ano de 1987 para o documentário Irmãos Aniceto – Pífanos e Zabumbas, o velho Aniceto respondeu sobre a origem da banda: “A banda cabaçal vem desde a criação do mundo. Você já viu o retrato do descobrimento do Brasil? Pois bem, pode reparar direito que lá tem uma banda de música dos índios tocando”. Ao seu modo, ele afirmava a antiguidade e origem da banda cabaçal. ABR 2008 • Continente x
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Os Irmãos Aniceto TRADIÇÕES em sua terra natal, o Cariri
Muitas das músicas dos Aniceto são reminiscências de antigas danças sagradas e rituais dos índios cariris. A banda de pífano ou de zabumba, ou ainda banda cabaçal, mescla as tradições indígenas originais com as influências afro-brasileiras e européias. O nome popular “pife” vem do italiano piffero. Segundo Batista Siqueira, autor do livro Os Cariris do Nordeste, a flauta vertical era um símbolo de masculinidade, sendo proibida para mulheres. Só posteriormente é que as flautas verticais, desencantadas dos antigos mistérios, transformaram-se nas atuais flautas ou pifes transversais. O sagrado tornou-se profano e por isso a banda cabaçal toca em tudo quanto é festa – de carnaval à renovação, de batizado a enterro. O velho Aniceto morreu com 104 anos e hoje pinota além, mas cuidou de deixar tudo que aprendeu ensinado aos seus filhos Francisco, Luiz, João, Antônio e Raimundo, que se encarregaram de repassar o conhecimento oralmente para seus netos, bisnetos e até tataranetos. Francisco, Luiz e João morreram, porém Mestre Raimundo, 74 anos, e Seu Antônio José, 75, se empenharam em ensinar o legado do pai para os sobrinhos e filhos José Vicente, 55, Jeoval, 40, Cícero, 37, e Adriano, 33. Frutos no sangue e na poesia do “véi Anicete”, eles seguem tocando e reinventando o sonho do velho. “Antes de morrer, ele pediu que a gente não abandonasse a banda, que a gente segurasse a banda. A gente dizia: ‘pai, será que isso tem futuro?’. Ele dizia: ‘tem meus fios. Pra frente, ela vai melhorar’”, lembra Mestre Raimundo (mestre porque foi titulado pela Secretaria de Cultura do Ceará, em 2004). Aniceto estava certo. A Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto recebeu a Ordem do Mérito Cultural, no ano passado (criada em 1995, a condecoração é uma ho-
menagem do governo federal a cidadãos e instituições que, de maneira significativa, se destacam na prestação de serviços à cultura do país), e o talento musical deles vem sendo reconhecido por onde eles passam, como França, Portugal e vários Estados brasileiros – só que a consagração se deu através de um encontro com a Orquestra Eleazar de Carvalho, que teve arranjos especiais do compositor Tarcísio Lima. O concerto foi registrado em DVD, dirigido pelo cineasta Sérgio Rezende, e será lançado em junho. O filme trará ainda extras sobre o dia-a-dia dos Aniceto na roça, na feira e tocando nas festas locais; sobre o Theatro José de Alencar, palco do concerto; e sobre a própria orquestra. “Graças a Deus a bandinha tá numa altura que a gente não imaginava”, comemora o Mestre. “Eles vieram se entrosar com a gente direitinho. Eu tou num alegria tão grande que tem hora que eu acho que a cabeça tá ficando maior do que o corpo de tanta alegria”, complementa. “Eles têm uma capacidade de expressão e criação impressionante”, avalia Sérgio Rezende. E esse concerto para Aniceto e Orquestra? “Nós ensaiamos com a orquestra e deu certinho. A gente faz nossas músicas de ouvido. É bonito. Eles acompanham bem direitinho”, decifra Mestre Raimundo. A avaliação do maestro Márcio Landi é, digamos, mais erudita: “Nós não impingimos nada a eles; eles são os solistas. Eles fazem uma música ligada à memória, então sempre pedem para a flauta transversa ‘triscar’ o tema”. Quem “trisca”, ou chama, as músicas dos Aniceto é o flautista Heriberto Porto. “A música deles não é aleatória. Tem uma forma da cultura tradicional, reminiscência dos índios cariris, mas muito erudita. Apesar de parecer espontânea, tem forma, estrutura, métrica. Emprega um tom armorial, um toque
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Os Irmãos Aniceto executam um concerto acompanhados por uma orquestra
da música modal, tem horas que parece da Renascença, da Idade Média... é um mistério. E sempre uma surpresa”. Mas a flauta só dá o mote, pois quem desenha as músicas é a zabumba de cabaça, aquela do velho Aniceto. Durante o espetáculo surgem misturas aparentemente improváveis: cravo com zabumba, violino com tarol, violoncelo com pífano, baixo acústico com prato, que resultam num momento de rara beleza. Os Irmãos Aniceto têm dois CDs, esgotados. Contudo, não formam um grupo para ser ouvido, apesar de encantarem com as sonoridades brincantes. É preciso vê-los: eles fazem performances, no palco, que reúnem elementos do toré, do coco, do forró e (pasme) do frevo. E engana-se quem pensa que os Irmãos Aniceto são apenas um grupo folclórico a repetir tradições. Trata-se de um conjunto de intensa criatividade, com uma imensa capacidade de reinvenção e reelaboração da herança coletiva. O que antes era apenas o caboré, o acauã e o cururu, rituais totêmicos dos cariris, hoje incorpora a linguagem da roça. Mestre Raimundo, seu Antônio e os outros integrantes da banda plantam milho, feijão, arroz e fava em terras arrendadas. “A gente planta pra comer. A roça é uma força. A nossa cultura é a roça. Eu também tenho um ponto na feira. Eu compro em grosso e revendo. Nós faz o show e depois volta pra roça pra trabalhar.” E se inspirar: é na plantação que eles colhem a releitura dos seus sons e movimentos. “A banda compõe a roça. Tudo se transforma em música e dança, em cultura. A gente vê os patos, os sapos, os grilos, o bem-te-vi, outro passarinho, um cachorro, um gato, uma abelha, um maribondo e faz na hora. Tudo nosso depende da cultura, num tem nada registrado. A gente vê e começa a inventar”, teoriza Mestre Raimundo.
Não é só. As frases coreográficas também remetem aos passos da lida diária: semear, arar a terra, aguar, colher. E assimilam brincadeiras de outras paragens, como a dança do facão. “É uma batalha que eu vi no Rio Grande do Sul. Mas era com quatro facões, aí eu fui fazer um show, vi os gaúchos brincando lá com quatro facões. Aí como eu sou inteligente, fiz noutro modelo com dois facões, ficou positivo, ficou lindo”, deleita-se o Mestre. Música e dança se harmonizam em elaborada manifestação estética, rompendo a definição do que é regional e se inserindo num contexto de universalidade e contemporaneidade. A capacidade de reinvenção os fez ir além: introduziram um prato no conjunto de instrumentos. “O prato tem um som metálico e a gente precisava dar mais função pros outros do grupo, né?”, diz Mestre Raimundo. “É bom o chiado, o ritmo; uma maravilha.”O grupo também confecciona instrumentos para sobreviver, pois roça e música ainda não são suficientes. “Num dá pra viver só de música, o cachê é pouquinho. Às vezes a gente vai na mesa de um bar e lá mesmo fica”, lamenta. “O pífano é de uma taboca que colhemos no pé da roça. A zabumba é feita hoje de timbaúba. A gente corta o pedaço, fura um buraco de um lado e de outro e vai furando, vai cavando, até ficar com o peso de 4 kg. Depois coloca o couro de bode, de carneiro”, ensina. E como o tempo não pára e já se insinua como espada para os atuais membros do grupo, a esperança ressurge na bandinha infantil, formada pelos tataranetos do velho Aniceto, reafirmando a capacidade de criação e reinvenção da família. “Futuramente é ela quem vai tomar conta da banda velha, né...?, a que meu pai criou. Pai tá achando graça, rá, rá, rá, rá.” ABR 2008 • Continente x
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Marcella Sampaio
O limbo dos escolhidos
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resto de seus dias sendo definido pelo prefixo “ex”. Além uando esta coluna for publicada, o digno disso, ser fã, por si só, já é uma condição perigosa, onde programa global Big Brother, que já foi alvo se transita pelo terreno do endeusamento do semelhande uma série de especulações e estudos, te (é quando muita gente termina descambando para o além de projetado a oráculo da contempofanatismo, parente próximo da doidice explícita), mesraneidade, provavelmente estará em seus dias finais ou mo quando o ser objeto de admiração é digno dela. O talvez já tenha até terminado – capas da Playboy definique dirá, quando se vira fã de alguém que não consdas e milhão no bolso do grande “jogador”. Há os que truiu, não acrescentou, não modificou. amam, os que odeiam, e os que simplesmente o ignoHá quem diga que o Big Brother é “um laboratório ram. Faço parte da última categoria, não por pretendo comportamento humano”, e que é muito interessões pseudo-intelectuais ou rebeldia tardia, mas porque sante assistir à forma como aquelas pessoas confinadas acho o programa um tédio, sem graça mesmo. Escrevo começam a adquirir hábitos estranhos, a assumir comnum dia de domingo, e sei que amanhã um monte de portamentos destrutivos ou destruidores, a expor suas gente vai estar discutindo as condições de formação do fragilidades e idiossincrasias a milhões de estranhos. tal “paredão”, e eu vou estar completamente por fora da Pode até ser, mas por que essa necessidade de viver conversa. Não consigo achar normal que boa parte dos como sádicos, tais quais os espectadores das lutas dos brasileiros consiga acompanhar com interesse a falta do gladiadores romanos de antigamente? Não evoluímos que fazer de um grupo de pessoas tão absolutamente nem um pouquinho? A desgraça dos outros nos faz senhomogêneas. É a pasteurização do humano elevada à tir menos desgraçados? Lógico que é próprio da nossa categoria de entretenimento, e quem está de fora da condição querer observar, perscrutar a realidade do ou“casa” (já virou uma entidade, essa tal de “casa”) observa tro. A comparação nos conforta, muitas vezes, faz parte quem vive lá dentro com olhos de juiz ou de fã. Embora da vida. O estranho é quando o alcance dessa atividade seja uma temeridade que um vivente assuma, em conembota a capacidade de separar o público do privado dições normais de temperatura e pressão, qualquer uma ou gera fantasias de pertencimento que não incluem ser dessas duas funções sociais, digamos assim, os telespecpara tornar-se reconhecido (conhecido), mas invertem tadores do BBB costumam se dividir desta maneira. o jogo. O que vale, neste caso, é tornar-se “famoso” para, Sem levar em consideração os que exercem a resentão, decidir o que “ser”. Aí, pode ficar tarde demais, e ponsabilidade de aplicar as leis aos que se desviaram a figura quase famosa acaba por estacionar no limbo. dela, atividade bastante necessária para o bom andaJuízes e fãs, nesta reta final ou finalizada do BBB, remento da vida em sociedade, os juízes do alheio, estes únem-se (reuniram-se) para decidir quem deve ou não que estão por toda parte, parecem viver seu momento receber o grande prêmio. Talvez porque a individualidamais glorioso quanto o Big Brother entra no ar. Quem de e o anonimato da vida pós-moderna (?) me encantem perfil de tiete também se esbalda. Arrisco dizer que tem, o programa é a coisificação dos meus pesadelos. ninguém é tão inocente a ponto de estar apto a julgar Não me sinto desamparada por uma proclamada ausêno próximo, e ninguém é tão pulha a ponto de merecer Reprodução cia de conforto característica do nosso alçar à categoria de ídolo uma ou mais tempo, ao contrário. O tal conforto figuras que nada têm a dizer. Os fãs dos pressupõe legitimar a intromissão do brothers estão envolvidos na teia da sooutro na sua vida, e isso, sim, é desesciedade do espetáculo, que privilegia perador. Outras gentes, porém, senos que “chegam lá”, mesmo sem ter o tem-se à vontade para brincar de Deus que fazer ao fim do caminho. Não ime decidir quem merece ser um “sucesporta, o que vale é aproveitar os tais 15 so”, enquanto os que se submetem a minutos de fama e viver a vida como isso gritam e choram de felicidade ao um ex-qualquer coisa. Acho triste que serem “escolhidos”. Vai entender.. alguém considere interessante passar o BBB8: total ausência do que fazer
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