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Um ano muito particular
Reprodução
aos leitores
U
ma frase profética grafada num cartaz estudantil no já distante maio de 1968 assume – 40 anos depois – um significado muito mais amplo: Debut d’une lutte prolongée (Início de uma luta prolongada). De fato, as reverberações de 68 chegam até os nossos dias, para o bem e para o mal, com muitas conquistas e alguns retrocessos, dependendo obviamente do lugar e do ponto de vista de quem faz essa viagem no tempo. A complexidade daquele período não pode ser resumida na escolha de um ou dois fatos fundamentais, mas pode começar a ser compreendida através de um substantivo abstrato: intensidade – o impensável e o desprezível, naquele momento, era a indiferença. O ano foi marcado em quase todo o mundo por posicionamentos radicais de todos os atores da arena social: rebeliões políticas, revoltas estudantis, engajamento do meio artístico, revoluções sociais... Enfim, um ano em que tudo parecia possível. Em meio a tantas comemorações e debates quatro décadas depois, esta Continente Multicultural se propõe a apresentar, além dos fatos imprescindíveis para a compreensão da época, perspectivas diferentes ou, pelo menos, pouco exploradas pelo jornalismo e pela historiografia oficial. Autor dos textos, o jornalista Marcelo Abreu começa apresentando o “clima” do Maio de 1968 através da estética e dos dizeres dos pôsteres estudantis da época, que combinavam tiradas inteligentes e irônicas com traços bem-definidos para denunciar a repressão e exigir um novo modelo de sociedade. O jornalista mostra, ainda, que, apesar da sensação de onipresença do “movimento” devido à grande extensão territorial atingida, nem todos os países compartilharam daqueles ares de liberação – enquanto as revoluções políticas e comportamentais inflamavam a maior parte do mundo (cada lugar a sua maneira), muitas nações foram refratárias ao tumulto político-cultural da época. • Há 200 anos chegava, no porão de um dos navios que trazia a família real portuguesa para o Brasil, fugida de Napoleão, a primeira gráfica a funcionar em terras brasileiras. De lá para cá, a imprensa entrou em crise, diante da velocidade da mídia eletrônica, da televisão à internet, e procura saídas para manter seu poder de influência. Por outro lado, as novas mídias ocupam cada vez mais espaço e mudam o perfil não só de quem produz, mas também de quem consome notícias e informação. Além destas análises, a Continente comemora as duas décadas da imprensa no Brasil, iniciando a publicação de uma série de crônicas de autores pernambucanos que, desde o Padre Carapuceiro, nos idos de 1800, até a atualidade, vem saborosamente registrando as mudanças dos costumes em Pernambuco.
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As ruas de Paris, em 1968, tornaram-se verdadeiros campos de batalha entre manifestantes e a polícia
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Jorge Clésio/Divulgação
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A montagem recifense de Coreológicas
André Frossat/Divulgação
1968 no Brasil e no mundo
Cinema nas cidades ribeirinhas
CONVERSA 4 >> Ana Mae Barbosa e a atualização na recepção das artes BALAIO 10 >> Bernardo Carvalho: a literatura e nossos defeitos CAPA 12 >> O Maio de 1968 visto em pôsteres 18 >> A arte engajada no Brasil e no mundo 21 >> As palavras de quem viveu aquele ano 22 >> O mapa de 68: um mundo dividido 24 >> Um disco que revolucionou o pop AGENDA PONTOCOM 26 >> Clarice Lispector brilha na internet LITERATURA 28 >> A importância do subestimado Juan Ramon Jiménez 31 >> A oficina radiofônica de Raimundo Carrero 34 >> As mulheres de Miguel Sanches Neto 36 >> Agenda livros CINEMA 39 >> Amigos de risco: uma noite alucinante no Recife 42 >> Caravana leva cinema às margens do rio São Francisco 48 >> Quem faz os figurinos dos filmes pernambucanos?
ARTES 54 >> Tarsila do Amaral é destaque na Argentina 58 >> O escamoteado modernismo recifense 60 >> Arte nas capas dos CDs de Pernambuco MÚSICA 63 >> Como se comportar num concerto 67 >> Maciel Melo lança seu primeiro DVD 70 >> Ensaios dissecam a canção popular brasileira 72 >> Agenda música CÊNICAS 74 >> Coreológicas convida espectadores a dançar ESPECIAL 81 >> Como começou a imprensa no Brasil 85 >> A crise do jornalismo impresso 88 >> Os desafios da nova mídia 90 >> Padre Carapuceiro critica as vítimas da moda TRADIÇÕES 92 >> A viagem rústica e polifônica de Zabé da Loca
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Luciano Raveal/Divulgação
Em destaque: os figurinistas
Imagens:Divulgação
A etiqueta nos concertos
COLUNAS ENTRELINHAS 38 >> A evolução da crônica ao longo dos tempos TRADUZIR-SE 52 >> O entendimento do processo pictórico
Reprodução
Zabé sai da loca
Imprensa no Brasil
200
anos
SABORES 78 >> A culinária dos escravos no Brasil METRÓPOLE 96 >> A persistência do misticismo
ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELETRÔNICO www.continentemulticultural.com.br
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conversa
Ana Mae Barbosa Não é possível se pensar até hoje que as disciplinas numa universidade de arte sejam a pintura e o desenho. A idéia do cotidiano transformado em arte está lá desde Duchamp, mas a universidade continua com a classificação do século 19
Rafael Gomes
Formando um olhar para arte 4 x Continente • MAI 2008
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A arte-educadora Ana Mae Barbosa relembra sua formação artística em Pernambuco e destaca a importância de formar o receptor, através da arte-educação, para a democratização da cultura ENTREVISTA A Mariana Oliveira
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a escola, as duas grandes dificuldades de Ana Mae Barbosa eram a matemática e o desenho. Quem diria que a menina que não se dava bem nas aulas de arte, fazendo cópias ou realizando desenhos "perfeitos", tornar-se-ia a grande referência da arte-educação no Brasil? Talvez essa experiência pouco proveitosa com a arte tenha deixado a semente para que, anos depois, ela criasse uma nova teoria, que se opunha por completo a essa forma de levar a arte à escola, conhecida como Abordagem Triangular. Nela, Ana Mae Barbosa propõe um ensino da arte apoiado em três pilares básicos: o ver, o fazer e o contextualizar. A pesquisadora e professora aposentada da Universidade de São Paulo nasceu no Rio de Janeiro, mas veio, aos três anos, para o Recife, onde estudou, formou-se e fez faculdade. Nesta entrevista exclusiva à Continente, concedida num dos ambientes mais propícios, a Oficina de Francisco Brennand, Ana Mae Barbosa declara sua pernambucanidade, fala da sua formação no universo das artes no Gráfico Amador, da sua relação com o mestre Paulo Freire. Sempre otimista, comenta a situação da arte-educação no Brasil, destacando os ganhos conquistados nas últimas épocas, e lembra que a arte-educação tem um papel decisivo no processo de democratização da cultura.
Você é carioca, mas morou boa parte da sua vida em Pernambuco. Em qual Estado está sua raiz?
Eu me considero pernambucana, por acaso nasci no Rio de Janeiro, e com três anos de idade vim para cá. Acho que a sua identidade está na cultura em que você foi formada. Pouca gente sabe, em São Paulo, que eu vivi aqui, mas que não sou pernambucana. É muito gozado porque eu sempre fiz questão de ser nordestina, num ambiente extremamente preconceituoso em relação ao Nordeste. Quando fui diretora do MAC-USP, foi terrível o preconceito que sofri. Não sofri da universidade, mas da elite paulista de fora da universidade, pelo simples fato de ser nordestina. Era a primeira vez que um museu em São Paulo era dirigido por uma nordestina. A pior coisa que eu vivi e não consegui reagir, porque geralmente eu reajo, foi quando dei uma palestra para um ambiente requintado da cidade e ao terminar alguém veio a mim e disse: “É incrível que você, com esse seu sotaque, fale coisas tão importantes”. Alguma coisa me bloqueou e eu não consegui responder... Pernambuco é um Estado de tradição artística muito forte. De que forma esse cenário influenciou na sua formação? Minha formação artística se deu em dois ambientes extraordinários.Um foi o Gráfico Amador, com Gastão de Holanda, Sebastião Uchoa Leite, Orlando da Costa Ferreira, o próprio Ariano Suassuna. Era um grupo que, além de incentivar uma leitura crítica, tinha muito humor. A gente tinha discussões fantásticas, parecíamos um grupo dadaísta, às vezes. Lembro-me de uma discussão proposta por Gastão de Holanda: o que é mais sensual – uma mulher de camisola ou uma mulher
nua? Passamos uma noite inteira discutindo. A outra foi na casa de Abelardo Rodrigues. Meu marido era sobrinho dele e nós morávamos muito próximos, e toda noite íamos até lá. Era uma lição de história da arte, da boa história da arte que não é aquela que a gente aprende na escola, das cavernas aos dias de hoje através de slides, não era isso, era discutindo a peça, contextualizando-a. E Paulo Freire, como vocês se conheceram? Eu fazia Direito. Para estudar, precisava trabalhar – e a única coisa permitida pela minha avó era atuar como professora. Paulo e Elza Freire abriram um curso de preparação para o exame de professor, no Instituto Capibaribe. E Paulo Freire, que já naquela época tinha o maior respeito pelo que você traz do mundo, nos pediu que fizéssemos uma redação sobre o porquê de querermos ser professoras. Eu fiz o contrário: Por que eu não quero ser professora. Ele marcou uma conversa comigo e me convenceu de que a educação podia ser um processo libertador, que não era aquilo que eu tinha tido, e me seduziu completamente. Neste mesmo curso, encontrei Noemia Varela já ensinando arte-educação. Veja como o Recife estava à frente, conectado com o mundo. Ela me introduziu na área. Eu fiquei fascinada, percebi que poderia existir uma arte na escola que não era aquela coisa de cópia, desenho geométrico que eu era obrigada a fazer. Eu quis deixar o curso de Direito, mas Paulo não deixou. Ele disse que o Direito dava uma capacidade hermenêutica à pessoa e que poderia ser usada em outra área. MAI 2008 • Continente x
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Rafael Gomes
Um país só pode ser considerado de alta cultura quando você tem a produção e a recepção dessa produção também ativa, viva, crítica. Está faltando educar a recepção
Ele tinha razão? O Direito lhe serviu? Curiosamente, quando anos depois, nos anos 80, eu começo a construir aquilo que ficou chamado Abordagem Triangular, que não valorizaria apenas o fazer arte, a expressão, mas também o ver a arte, o analisar, o interpretar, eu estava usando a hermenêutica na arte. Paulo Freire teve toda razão quando me aconselhou. Como você define arte-educação? Arte-educação é todo o esforço no sentido de ampliar os conhecimentos artísticos e estéticos dos outros. Você tem arte-educação no museu, na rua, quando há uma grande obra de arte pública... Como você vê hoje a questão da arte-educação no Brasil? Eu sou muito otimista, porque no meu tempo éramos pouquíssimos. Eu conhecia todo mundo da arteeducação no Brasil. Há pouco tempo, coordenei o programa Petrobras Cultural de Formação para as Artes. Foram 2 mil e quinhentos projetos apresentados, eu não conhecia 1% das pessoas que apresentaram projetos. Isso é um bom sinal. Quando falo que ensino arte-educação, ninguém me pergunta mais o que é. Naquela época, era freqüente ter que explicar o que era. Que instituições estão realizando bons projetos de arte-educação no Brasil? As ONG comunitárias estão mostrando a importância da arte, mostram que é possível a construção social através da arte. Arte não tem certo e errado, então não tem esse cerceamento de experiência que tem todo o resto na escola.
Você tem o mais adequado, o menos adequado, o mais inventivo, o menos inventivo, mas você não tem o certo e o errado. Hoje se fala muito em democratização da cultura. A arteeducação seria uma ferramenta fundamental nesse processo? Absolutamente. Porque o que a gente tem no Brasil hoje é um fenômeno curioso: uma alta produção de arte. O Ministério da Cultura deu enorme importância à produção, fomentou-a. O programa Pontos de Cultura foi uma das melhores idéias que já ocorreu a um governante no Brasil, mas é principalmente voltado para a produção. Acontece que um país só pode ser considerado de alta cultura quando você tem a produção e a recepção dessa produção também ativa, viva, crítica. Está faltando educar a recepção. Você só educa a recepção através do ver arte, do fazer, da contextualização. Eu acho fundamental essa tríade para se conhecer arte – fazer, ver e contextualizar. Contextualizar o que você faz e o que você vê. E, no Recife, há alguma instituição que tenha boas experiências nesse campo? Eu acho que o Recife tem experiências notáveis. O Instituto Capibaribe é uma dessas experiências. Fiquei fascinada também com a Escola João Pernambuco. Ver 2 mil alunos pobres querendo fazer arte, querendo aprender arte, é realmente emocionante. Mas a pobreza da escola é triste. É imprescindível levar as novas tecnologias às escolas de arte, especialmente, numa região pobre. Se eu pudesse fazer um apelo em entrevista, pediria para a prefeitura: do-
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Para Ana Mae, o Instituto Capibaribe se destaca no Recife com trabalhos de arte-educação
tem bem a escola João Pernambuco, pois os professores são excelentes. Nas grandes exposições, a exemplo da Bienal, existem programas de arte-educação pontuais. Eles são produtivos? Eu nem considero isso arte-educação. É uma arte-educação superficial. Lembro-me de duas boas idéias. Mais ou menos na edição de 87, foi criado na Bienal um ateliê. A criançada visitava, escolhia uma obra, analisava e depois ia expressar plasticamente aquilo que tinha visto na obra. Houve outra que trabalhou também com adultos, em parceria com o Paço das Artes. Ela trabalhava com as visitas orientadas e depois levava os participantes para um ateliê, no Paço. No final, ela fez grandes outdoors nas ruas com o resultado desses trabalhos. A idéia era levar para a rua a recepção da Bienal. Há ainda no Brasil uma tendência para apontar o sucesso de uma exposição a partir da quantidade de público? Esse é um critério extremamente limitante, mercadológico. E a gente não deve tratar a arte como mercadoria. Eu acabei de fazer uma exposição no Banco Nacional do Nordes-
te, no Cariri, da artista plástica Joseli Carvalho. Acho que foi a exposição mais bem-sucedida dela, que expõe em Nova York e em outros lugares. A exposição questionou a cultura local, ampliou o campo de referências. Esses são critérios válidos. Não nos interessa o quantitativo de pessoas que foram ver, mas, sim, a reação. Eu acho que a arte tem que levar a pensar. Diversão combina com arte? Uma exposição pode ser um parque de diversão? Eu não me ofendo com essa idéia de parque de diversão desde que leve você a pensar. Eu acho que a arte diverte, sim, mas diverte e problematiza. O problema também está com as universidades. Elas são convencionais. Não é possível pensar até hoje, no século 21, que as disciplinas numa universidade de arte sejam pintura, desenho, gravura... A idéia do cotidiano transformado em arte está lá desde Duchamp, mas a universidade continua com a classificação do século 19. A História da Arte também continuava com essa classificação até que chegou a cultura visual e começou a brigar. A História da Arte foi sacudida. A universidade ainda não. O que é preciso para a academia se organizar de uma
maneira diferente? Eu não estou pedindo o tudo vale, eu acho que a capacidade crítica é fundamental num curso de arte, eu estou pedindo uma categorização correspondente à arte de hoje. Que artistas pernambucanos atuais você destacaria? Eu acho o Marcelo Silveira extraordinário, um dos mais importantes artistas brasileiros atuais. Ele é muito bom, muito inventivo e questionador no seu trabalho. É isso que eu admiro. Ele tem um lado da sutileza do fazer que me encanta. Tem muita gente boa, eu gosto muito do Rinaldo Silva, que trabalha muito bem o universo do popular e do erudito, gosto muito do Joelson, adoro aquelas cerâmicas, tem a Cristina Machado... E tem outras mulheres do meu tempo que eu amo e não sei por que não têm visibilidade. Tereza Costa Rego. Eu me pergunto: por que Tereza Costa Rego não tem visibilidade nacional? Sinceramente, eu acho que João Câmara e Tereza têm a mesma qualidade estética. Câmara é mais agressivo, a Tereza mais sutil. Provavelmente diferenças de linguagens entre homem e mulher. Um dos meus grandes sonhos é fazer uma exposição de Tereza fora do Recife, para ver se reverbera. MAI 2008 • Continente x
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Maio 2008 – Ano 8 Capa: Jacques Haillot/Apis/ Sygma/Corbis/ LatinStock
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente
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Colaboradores desta edição:
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CARLOS EDUARDO AMARAL é jornalista e crítico musical da Continente Multicultural.
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Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira
Editor de Arte Luiz Arrais
Revisão Maria Helena Pôrto
Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)
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Edição on-line Mariana Oliveira
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Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
RICARDO JAPIASSU é doutor em Teoria da Literatura.
SAMARONE LIMA é jornalista e escritor.
Colunistas: FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes e Cultura posta em questão.
LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros.
MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária.
Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
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Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
ARTE CONTEMPORÂNEA Fiquei surpreso ao receber a Continente Multicultural do mês de abril por dois motivos. O primeiro, foi o fato de a Revista ter chegado às minhas mãos no começo do mês, dentro dos prazos esperados. Fazia tempo que isso não acontecia. O segundo foi a matéria de capa – que, por fim, abre espaço para os artistas contemporâneos da cidade que há muito tempo têm produzido belos trabalhos. Como fiel leitora da Revista, sei que praticamente todos os grandes nomes das artes locais tiveram espaço garantido na publicação. Estava mais do que na hora de apostar na novidade. Parabéns! Espero ver essa nova geração de artistas brilhando nas páginas da Continente. Antonia de Castro, Recife – PE
ARTE CONTEMPORÂNEA II A última edição da Continente me deixou um tanto preocupada. Como apreciadora da arte, não vejo grande parte da produção contemporânea com bons olhos, assim como Ferreira Gullar e
Luciano Trigo, por exemplo. Espero que a Continente não ceda aos encantos desse tipo de "arte" e perceba as grandes picaretagens da pósmodernidade. Cinara Carvalho, João Pessoa – PB
MUSICAL QUARENTÃO Muito linda a matéria de Leidson Ferraz sobre o musical Hair. Fiquei chocada com a quantidade de montagens que o espetáculo teve e com sua atualidade, já que continua sendo realizado por grupos variados ao redor do mundo. Quem diria que até os japoneses montaram Hair? Tãnia de Lima, Recife – PE
NOTA DA REDAÇÃO Na edição de março, na matéria sobre o lançamento do CD da Banda Rivotrill, a capa do disco publicada era a provisória. A correta é a seguinte:
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Revista nº 29 maio/03 Matéria: Elomar, o trovador que esbraveja Por Mariana Oliveira
Radical, quando se fala em influência estrangeira, Elomar permanece alinhado entre os que praticam a resistência cultural: “Sou contra tudo que envolve a cultura alienígena, intromissora, que vem destruir nosso processo cultural tão sofrido. Nós temos tanta diversidade cultural, que devíamos emprestar para essas nações que pretendem exportar cultura para nós”, conclui. Perguntado sobre o movimento manguebeat, que não conhece muito bem, não hesita em classificá-lo de “alienante” por mesclar valores americanos ao universo da periferia do Recife. Quanto à axé music, apesar de achar uma “boa porcaria”, Elomar vê nela uma característica positiva: “Essa música sufocou o processo cultural da Bahia, que é muito criativa. Mas é uma resistência. O rock não entra na Bahia porque os tambores dos negros não deixam de tocar”, sentencia com seu jeito inconfundível de menestrel EPE ranzinza. oC uiv Arq
O cantador Elomar
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Grande Pombal
Poesia picante Instado a fazer um improviso sobre o mote “Que os anos não trazem mais”, o cantador paraibano Pinto do Monteiro (1896-1990), conhecido como o Poeta do Absurdo, saiuse com essa: “O velho Tomé de Sousa/ Governador da Bahia/ Casou-se e no mesmo dia/ Passou-lhe a pica na esposa/ Ele fez que nem raposa/ Comeu na frente e atrás/ Chegou na beira do cais/ Lá onde o navio trafega/ Comeu o padre Nobrega/ Que os anos não trazem mais”. (Marco Polo)
O rei D. José decidiu retomar as medidas de identificação pública dos descendentes de judeus. Pediu ao marquês de Pombal, seu poderoso ministro, que tratasse do assunto. Por sugestão do rei, os judeus deveriam usar uma boina colorida e que fosse obrigatório seu uso por parte dos hebreus. Pombal, que era tetraneto de uma negra pernambucana e era contra essa história de cristão novo e velho, não querendo desagradar o monarca, no outro dia se apresentou em audiência dizendo que já providenciara a boina e que trouxera os três primeiros exemplares. – Para que as trazia? Perguntou D. José. Pombal, então, respondeu: “Uma é para mim, outra é para o inquisidor-mor, e a outra para Sua Majestade”. (Duda Guennes, de Lisboa)
Teste geracional O pesquisador argentino Néstor García Canclini propõe um teste projetivo para classificar identidades – não étnicas, nem de nações, nem de gêneros, mas, sim de gerações diferentes: A que você associa a sigla PC – partido comunista, personal computer ou politicamente correto? (MP)
Beatles again? Para quem achava que a fonte dos quatro rapazes de Liverpool andava meio seca, é bom checar nas livrarias a mais nova biografia sobre o grupo. The Beatles – A biografia, (Editora Larousse), do jornalista e escritor americano Bob Spitz, especialista em livros sobre a área pop, ainda consegue nos mostrar novas revelações sobre a trajetória de John, George, Paul e Ringo. Tudo em um alentado calhamaço de quase mil páginas. (Luiz Arrais)
DESAFORISMOS "No Brasil, só banco de praça quebra por excesso de fundos" Adaptação de frase de domínio público
Tolos e poetas Samuel Taylor Coleridge nasceu em 1772, na Inglaterra, e faleceu em 1834. Entre outras muitas coisas, legou-nos esta: “Sir, I admit your general rule/ That every poet is a fool,/ But you yourself may serve to show it/ That every fool is not a poet”. Traduzo: Claro, senhor, de pleno acordo:/ todo poeta é mesmo um tolo./ Mas vosso exemplo bem atesta:/ nem todo tolo é um poeta. (Artur A. de Ataíde)
Forró barroco A Orquestra Armorial fazia uma brincadeira didática para mostrar ligações entre a música barroca e os ritmos nordestinos: tocava um trecho de um concerto de Vivaldi ipsis litteris e depois o transformava num xote, sem alterar nenhuma nota, com o acréscimo de triângulo e zabumba. Você pode repetir a experiência em casa com qualquer peça do período, de compasso binário e andamento moderado. Uma sugestão em particular, em que fica patente a batida de xote, é a conhecida Marcha da cerimônia dos turcos, da comédia-balé O burguês fidalgo, de Lully e Molière. (Carlos Eduardo Amaral)
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O que têm em comum o tenista argentino David Nalbandian, os atores Stepan Nercessian e Aracy Balabanian, o engenheiro e magnata do petróleo Calouste Gulbenkian (turco naturalizado britânico, falecido em Lisboa), o fundador da quadricentenária fábrica de pratos de bateria Avedis Zildjian e a hollywoodiana Cher (nata Cherylin Sarkisian LaPiere)? Todos são filhos ou netos de armênios que fugiram do genocídio otomano, exceto Gulbenkian e Zildjian, reconhecidos de cara pelo sufixo ian (equivalente ao ben hebraico ou ao son inglês), ou seja, “filho de”. Recentemente, outro famoso filho de armênios passou pelo Brasil: Charles Aznavour, batizado Shahnour Vaghinagh Aznavourian. (CEA)
"Imprença" Deu n’O Globo. Mais precisamente na coluna Gente Boa, de Joaquim Ferreira dos Santos, cronista e autor, entre outros, do livro Um homem chamado Maria sobre o pernambucano Antonio Maria. Uma figura esperta, passando-se por jornalista, desandou a pedir convites e credenciais para festas e eventos chiques do eixo Rio e São Paulo. Foi desmascarada depois que descobriram que ela, por e-mail, escrevia que trabalhava na “Editora Abriu”. (LA)
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Fulanian de Talian
Polícia, para quê? O crítico literário Luis Dolhnikoff – que atualmente anda fazendo muito barulho por atacar alguns “peixes grandes” da literatura nacional – relatou, num ensaio em que arrasa a poesia primitivista de Arnaldo Antunes, um episódio, no mínimo, irônico. Ao ter que apelar para a Justiça após ser vítima de um crime, um dos membros da banda Titãs escutou um coro dos policiais entoando “polícia para quem precisa de polícia”. (Eduardo Cesar Maia)
Além dos gêneros Chamou a atenção de todos o cartaz de divulgação do 15° Festival MixBrasil – de cinema e vídeo da diversidade sexual, que aconteceu durante a XII Fenart, em João Pessoa. Na peça publicitária, a imagem de dois samurais frente a frente com suas “espadas” empunhadas e os seguintes dizeres: “Brigas de espada como você nunca viu”.
"Uma verdade dita com má-intenção bate todas as mentiras que se possam inventar."
(ECM)
IMPACTO Qual foi o livro ou a leitura que levou você a ser escritor? "Vários, muitos. Sempre quis fazer alguma coisa que tivesse a ver com narrativa. Primeiro pensei que seria o cinema, depois percebi que seria a escrita. Mas foi quando li um escritor chamado Thomas Bernhard, que compreendi que fazer literatura é afirmar o seu defeito. Isso me abriu uma porta porque ficou claro que, ao invés de tentar consertar o que eu tinha de errado, o mportante era afirmar o que eu tinha de errado. Na verdade, o errado era o certo. O errado era o que só eu tinha. Assim, o Thomas Bernhard não é o cara que mais me influenciou, mas foi o que me fez entender que eu podia ser um escritor." Bernardo Carvalho, romancista.
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Insurreição pelos signos
196 Cartazes do Maio de 1968 combinavam tiradas inteligentes com traços fortes para denunciar a repressão e exigir uma nova sociedade Marcelo Abreu
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o distante ano de 1968, a colorida e onírica arte psicodélica estava em muitos lugares: nas capas dos LPs, nos pôsteres anunciando shows de rock, nas capas de revistas e no estampado das roupas. Mas nas ruas de Paris um outro tipo de estética marcou a rebelião estudantil de maio de 1968. Foi a arte espontânea dos pôsteres e das pichações de rua que definiu a estética visual e gráfica do movimento que abalou os alicerces da Quinta República. Uma arte produzida de forma anônima por estudantes recém-saídos da adolescência que cursavam a École des Beaux-Arts e por estudantes de outras áreas que, após dias de passeatas e tardes de debates, se reuniam tarde da noite nos dormitórios liberados para preparar a agitação política do dia seguinte. Todos os movimentos políticos e sociais têm uma estética definida na sua divulgação. Por mais espontâneo e descentralizado que seja o movimento sempre há um padrão visual que domina os seus instrumentos de comunicação. O maio de 1968, um dos mais descentralizados movimentos sociais do século 20, não foi diferente.
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"Informação livre"
Enfurecidos com a repressão policial, os estudantes reagem no Quartier-Latin
"Seja jovem e cale-se"
"A luta continua"
Os cartazes eram confeccionados com a técnica da serigrafia. Os dois tons de cores básicas usadas ressaltam o maniqueísmo da época: nós contra eles, o bem (a esquerda, a revolução jovem e as mudanças nos costumes) contra o mal (a direita, o conservadorismo político e comportamental, Charles De Gaulle). As letras desenhadas em caixa-alta são claras e gritam a mensagem em muitos decibéis. Não há espaço para subjetividade. Os cartazes, nesse sentido, herdam a tradição do pôster revolucionário russo, das primeiras décadas do regime soviético: são diretos e claros. Uma arte que tem uma função política bem-definida: comunicar, conscientizar, convencer, quase sempre exigir. Mas as mensagens de 68, contidas nos cartazes, têm também uma influência clara dos pensamentos do líder chinês Mao Tse-tung, contidos no famoso Livrinho Verme-
lho, que na época era muito popular entre os estudantes parisienses. São pílulas filosóficas cheias de sabor e inteligência. Nos cartazes, é claro, aparecem de forma mais sucinta e direta. No entanto, ao contrário do cartaz oficial russo ou chinês, que representava regimes marxistas instituídos que precisavam ser defendidos, os de maio de 68 só tinham compromisso com a destruição da velha sociedade. A nova ainda estava para ser estabelecida ou mesmo inventada. Portanto, são menos otimistas e tendem mais à ironia e à denúncia. Os artistas anônimos do maio parisiense, reunidos nos chamados “ateliês populares”, introduzem nos cartazes sua ironia e sua reivindicação de uma mudança mais geral, para além da mudança no aparelho de Estado. E também nisso se mostram influenciados
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pelo anarquismo e pelas inúmeras tendências da nova esquerda, longe da doutrinação do PC francês de Georges Marchais, que somente no final apoiou as reivindicações estudantis. É aí que entra o papel fundamental dos situacionistas, grupo
que fundia idéias anarquistas, teoria crítica marxista e uma atitude artística diante de tudo, fortemente inspirado no Surrealismo do começo do século 20. Seu representante mais famoso, Guy Débord, que escreveu A Sociedade do espetáculo, dá o tom de alguns slogans
de 68. Outro situacionista, Raoul Vaneigem, autor do livro Sobre a miséria no movimento estudantil, é responsável por citações usadas nos cartazes e pichadas nos muros. O cartaz revolucionário era pregado nas paredes das univer-
"Apoio às fabricas ocupadas "
"Imprensa: não engolir"
"A beleza está nas ruas" MAI 2008 • Continente x
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CAPA sidades, sobretudo a Sorbonne do Quartier Latin, nas ruas por onde passavam os estudantes e depois também nas fábricas da periferia de Paris, ocupadas pelos trabalhadores em solidariedade aos estudantes. Mas também ficaram registrados nas páginas do tablóide Action, publicados pelos comitês de ação que congregavam os estudantes e trabalhadores. Um comunicado do Ateliê Popular, de Paris, onde muitos cartazes eram produzidos, qualificava os pôsteres como “armas a serviço de luta e uma parte inseparável dela”. O comunicado prossegue: “O lugar correto dos cartazes é nos centros do conflito, isto é, nas ruas, nas paredes das fábricas. Usá-los para propósitos decorativos, mostrá-los em lugares de cultura burguesa ou considerá-los de interesse estético significa impedir sua função e seu efeito. É por isso que o Ateliê Popular sempre recusou colocá-los à venda”. As idéias do ateliê, em 68, condenariam até a reprodução dos pôsteres nesta Continente, 40 anos depois:
A valorização do indivíduo em meio a sonhos revolucionários: jovem levanta bandeira na Place DenfertRochereau
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Uma arte visual que tem funções políticas determinadas: comunicar, conscientizar, convencer e quase sempre exigir
"Maio 68 – Início de uma luta prolongada"
"Nós somos o poder"
“Manter esses cartazes como evidência histórica de um determinado estágio na luta significa uma traição, pois a luta é de uma tal importância que a posição de um observador de fora é uma ficção que inevitavelmente faz parte do jogo da classe dominante”. O filósofo francês Alain Touraine, que acompanhou de perto os eventos de maio, escreveu que “durante semanas, estudantes e não estudantes foram os senhores, não da sociedade, nem mesmo da instituição universitária, mas de seus muros”. Já Olgária Matos, filósofa da Unifesp, que escreveu Paris 1968 – As barricadas do desejo, defende que “apoiando as ações de ruas, as greves, as manifestações, os cartazes constituíram um espelho do cotidiano”. Há nos cartazes uma crítica ferrenha à mídia. Em um deles, por exemplo, um policial de choque aparece diante de um microfone da ORTF (a TV estatal da época)
sob os dizeres: “A polícia fala todas as noites às 20h”. Ou quando um frasco de veneno, contendo um líquido estranho, diz no rótulo: “Imprensa: não engolir”. E mais: quando uma paisagem urbana noturna coberta de antenas de TV aparece sob o slogan “A intoxicação vem ao domicílio”. O policial com capacete, viseira fechada, impessoal, escudo e cacetete na mão, está muito presente. É o símbolo da repressão que precisa ser combatido. O presidente De Gaulle, com seu quepe de militar e o nariz protuberante, é também alvo de muitas críticas. Num dos cartazes, sua sombra aparece tapando a boca de um adolescente ao lado dos dizeres “seja jovem e cale a boca”. As fronteiras territoriais são igualadas à repressão. O rosto alegre e irônico de Daniel CohnBendit, estudante de origem judaica, um dos líderes do movimento na França, aparece desafiando um
policial no cartaz que diz, após sua expulsão da França, por ordem do governo: “Somos todos indesejáveis”. A mensagem concisa, usando toda a carga poética e criativa, atinge o seu ápice. Dois grafites expressam isso: “Chega de atos, queremos palavras” e “A palavra é um coquetel molotov”. Mas talvez nenhum outro pôster tenha marcado mais o maio de 68 do que aquele em que uma menina joga um paralelepípedo numa barricada: “A beleza está na rua”. Num simples desenho e em seis palavras, exprime toda uma nova forma de comportamento engajado, uma nova consciência militante, que iria influenciar o mundo até agora. Os cartazes são o melhor retrato das barricadas, do gás lacrimogênio e da sensação de que tudo era possível em 68. A sensação de que o mundo poderia ser mudado com uma boa tirada e algumas vitrines quebradas. MAI 2008 • Continente x
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O cineasta francês Jean-Luc Godard solidarizou-se com os estudantes e trabalhadores franceses
Uma arte em sintonia com o seu tempo 1968 foi um ano de performances, de polêmicas e de arte engajada, e não um ano de prêmios e badalações
J
ean-Luc Godard era o grande nome do cinema de arte no fim dos anos 60. O enfant terrible do cinema francês investia contra os padrões de Hollywood desde 1959 com o inovador Acossado, com Jean Paul Belmondo. Em 1967, outra pedrada: A chinesa, filme que discutia os rumos da política jovem na França. Em um apartamento transformado em aparelho, quatro jovens liam filosofia, discutiam Marx e Mao Tse-tung e planejavam a revolução. Nenhuma obra previu melhor o maio de 68 do que A chinesa. Quando as ruas de Paris se incendiaram, em maio, Godard estava na burguesíssima Riviera francesa, participando do então já tradicional Festival de Cinema de Cannes. Em solidariedade aos estudantes e trabalhadores em greve, Godard propôs o encerramento antecipado do festival e foi apoiado por cineastas como Louis Malle e Roman Polanski, que pediram para sair da comissão julgadora – e por Alain Resnais e Milos Forman, entre outros, que retiraram seus filmes de competição. Cannes acabou uma semana antes do previsto e, naquele ano, não houve vencedor. O mais engajado dos cineastas, que propunha uma revolução no cinema, no conteúdo e na forma, fazia um ato típico de 68. Aquele foi um ano de performances, de polêmicas e de arte engajada, não um ano de prêmios e badalações. Coisas como as leis de incentivo à cultura estavam mais distantes das cabeças do que a Lua, que a cada dia parecia mais acessível aos terráqueos. A onda era fazer arte engajada. Godard voltou a Paris no final de maio e percorreu a cidade filmando as manifestações. As imagens registradas por ele seriam a base do seu filme seguinte, intitulado Un film comme les autres (Um filme como os outros). MAI 2008 • Continente x
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CAPA 1968 foi um ano de outros filmes de impacto, clássicos instantâneos como 2001 – Uma odisséia no espaço, do inglês Stanley Kubrick, Memórias do subdesenvolvimento, do cubano Tomás Gutiérrez Alea, e O bandido da luz vermelha, do brasileiro Rogério Sganzerla, um marco do cinema marginal. No Brasil, Glauber Rocha, que no ano anterior fizera um de seus trabalhos mais importantes, usando a fictícia Eldorado para traçar um panorama político do Brasil, em Terra em transe, não lançou nada em 68, mas preparava o seu O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, que sairia no ano seguinte. Caetano Veloso lançou em 68 um disco que levava o seu nome e que continha Tropicália, título baseado em instalação de Hélio Oiticica, que viria a dar o nome ao movimento mais marcante da música brasileira na época. Mas o momento mais importante do ano para Caetano foi sua participação no Festival Internacional da Canção, quando foi vaiado no Teatro
Artistas e intelectuais (foto) se unem aos estudantes em movimentos pela liberdade no Brasil, como na passeata dos Cem Mil, na Cinelândia, Rio da PUC, em São Paulo, ao apresentar a música É proibido proibir, título retirado diretamente das pichações nos muros de Paris. Foi lá que Caetano fez o seu famoso discurso. “É essa a juventude que quer tomar o poder? (...) Vocês não estão entendendo nada, absolutamente nada. (...) Vocês estão querendo policiar a música brasileira. (...) Se vocês, em política,
Cae, 1968, Claudio Tozzi, liquitex s/ tela e madeira, 66 x 105cm
forem como são em estética, estamos feitos.” No Recife, o então professor de filosofia Jomard Muniz de Brito, o jornalista Celso Marconi e o compositor Aristides Guimarães lançavam, em abril, o manifesto Porque somos e não somos tropicalistas que lamentava que a “novíssima geração” continuasse a se valer da “tutela sincretista, luso-tropical, sociodélica, joãocabralina, t-p-n-ísica”. E terminava pregando “a radicalidade contra o conformismo”. “Tropicalistas de todo o mundo, uni-vos.” Escreveram outro manifesto, o Inventário do nosso feudalismo cultural, assinado também por Caetano e Gilberto Gil, onde investiam contra as restrições da ditadura, contra os nomes consagrados da cultura nordestina, contra os conselhos de cultura e as academias de letras. “Naquela época”, relembra Jomard, “queríamos o debate, a polêmica. Isso não existe mais. Não se pode criticar mais um livro hoje em dia sem arranjar um inimigo”. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Andy Warhol, que na sua excentricidade tímida tornou-se o mais perfomático artista plástico norte-americano da década, passou parte do ano fora do circuito, recuperando-se de um tiro que levou de uma ex-colaboradora em seu estúdio, em Nova York. O incidente, no entanto, acabou se encaixando no ano em que a arte se misturou com a vida e com a violência como em poucos momentos da história. (MA)
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Eles que viveram a revolução JOMARD MUNIZ DE BRITO – em 1968, era professor de filosofia da UFPB. Hoje é escritor e poeta: "O que marcou o ano foi o envolvimento com o Tropicalismo. Nossa atuação foi principalmente no Suplemento Cultural do JC, editado por Celso Marconi. Houve a simultaneidade do Tropicalismo e do poema/processo. Escrevia, sobre o movimento, artigos que causavam mal-estar. Os manifestos são os maiores documentos de nossa intervenção na cultura. Além do espírito libertário do anarquismo, 68 era o grande embate da economia política diante da economia libidinal". MARCELO MÁRIO DE MELO – Militante do PCBR à época. Hoje é jornalista, escreve poemas, textos de humor e histórias infantis: "Foi um ano de dedicação militante. O importante era fazer a revolução. Acontecimentos importantes, no Brasil e no mundo, teciam a sensação de que se vivia num momento especial. Internamente, o AI-5 veio a ser a patada de realismo azedo mostrando a outra face da moeda. As bandeiras afloradas em 1968 permanecem, desdobradas ou figurando ao lado de outras que vierem depois. São bandeiras universais, que tremularam na Revolução Francesa e ainda não são triunfantes no mundo em termos globais". OLGÁRIA MATOS – Estudante de Filosofia da USP em 68, hoje é professora da Unifesp. Autora de Paris 1968 – As barricadas do desejo: "1968 continua presente com as questões que foram levantadas. A idéia de se elevar acima do status quo e poder pensar sobre ele foi
A repressão contra os movimentos estudantis se acentua em 1968, também, no Brasil
uma coisa que ficou em todos os países onde houve o movimento. A crítica à sociedade do consumo, à cultura do automóvel, ao trabalho alienado, à violência do poder são questões que estão aí e até se agudizaram como antecipação de tudo o que é o mal-estar do mundo contemporâneo. As questões mais importantes da época são as mesmas questões de hoje: a necessidade de pensar a relação do homem com a natureza, a sobrevivência material e psíquica das pessoas, a forma de exploração produtivista da natureza e do homem pelo homem". DANIEL COHN-BENDIT – Era estudante em Nanterre e um dos líderes de Maio em Paris. Hoje é deputado pelo Partido Verde alemão: "É muito mais difícil, hoje em dia, ser jovem, do que era há 40 anos. Na época, não se falava em desemprego. Era a época da revolução sexual, da emancipação. Não se sabia nada de mudança climática" (retirado do site Revolution Today). "Há uma responsabilidade política e moral de minha geração sobre o terrorismo. Ao se juntar todas as coisas tolas ditas pelo movimento – como a luta pela liberdade em nome da revolução cultural –, sua fraseologia revolucionária, a loucura terceiro-mundista terrorista pode se justificar nesse marco" (entrevista concedida à agência AFP, em março de 2008).
DANIEL AARÃO REIS FILHO – Estava, em 1968, suspenso da Faculdade de Direito da UFRJ e fazia parte da Dissidência Guanabara, do PCB. Hoje é professor de História e faz pós-doutorado em Paris: "Já na época, os contemporâneos pensaram que estavam vivendo um ano muito especial, mais especial até do que ele realmente foi. Quanto a mim e a meus companheiros mais próximos, acreditávamos que estava começando um ciclo revolucionário, uma grande onda, e nós estávamos nela... As coisas, no entanto, eram mais complexas. As tendências conservadoras ainda eram muito fortes, sem falar na força remanescente das esquerdas tradicionais que não queriam mudar o mundo, mas apenas gerenciá-lo. E o que dizer das maiorias indiferentes que viam todo aquele movimento com enfado e receio? E dos tantos que nem tomaram conhecimento do que estava acontecendo?". ALFREDO SIRKIS – Na época, estudava no Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro. Em 69, entraria na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Hoje é do Partido Verde. "No Maio de 68 em Paris, eles imaginavam estar fazendo a revolução socialista e se aproximando da tomada do poder. Na verdade, o que ficou foi uma revolução de costumes e de cultura que modernizou a sociedade e, até certo ponto, a economia de mercado e que criou novos germes de crítica ao chamado socialismo real. Não podemos esquecer que a Primavera de Praga foi parte integrante de 68". MAI 2008 • Continente x
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Ilustração: Amaro Júnior
MAIO DE 68 N AMÉRICAS Estados Unidos 8/2 – Polícia reprime com violência manifestação de negros na Carolina do Sul 4/4 – Assassinato de Martin Luther King desencadeia manifestações violentas em 125 cidades de todo o país 27/4 – Manifestações contra a guerra do Vietnã em 16 cidades 13/11 – Conflitos entre a polícia e militantes do grupo Panteras Negras, na Califórnia Venezuela 18/6 – Manifestações estudantis México 18/6 – Manifestações estudantis 2/10 – Massacre na Praça das Três Culturas, na cidade do México, deixa mais de 100 mortos, entre eles, muitos estudantes
Equador 18/6 – Manifestações estudantis Chile 18/6 – Manifestações estudantis Argentina 27/5 – Choques violentos entre polícia e estudantes em Buenos Aires Uruguai 18/6 – Greve geral e manifestações estudantis Brasil 26/6 – Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro 12/10 – Polícia invade fazenda em Ibiúna e prende mais de 700 estudantes que participavam de congresso da UNE 13/12 – Decretação do AI-5
ÁSIA China 21/2 – Conflitos entre facções rivais de guardas vermelhos na cidade de Cantão
Vietnã 30/1 – Início da ofensiva do Tet, dos guerrilheiros vietcongs contra as tropas norte-americanas
Japão 28/3 – Batalha de 10 horas entre a Federação Nacional de Associações Estudantis (Zengakuren) e a polícia
Enquanto isso...
Autoritarismo e diferenças culturais barraram as influências de 1968
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grande extensão territorial atingida pelo movimento de 1968 dá a impressão de que o mundo todo viveu dias tumultuados naquele ano. Mas não é bem isso o que aconteceu. Muitas nações passaram imunes ao tumulto político-cultural da época.
Isso não que dizer que o noticiário internacional não tivesse sua dose habitual de tragédias naturais, golpes de Estado, atentados contra autoridades e outros problemas. Mas mundo afora os temas que caracterizaram 68 no Ocidente só
vieram, muitas vezes, a serem discutidos muito depois ou, em alguns casos, ainda nem foram tocados, 40 anos depois. As causas para isso são várias: processos históricos bem distintos do que ocorria nos centros do po-
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8 NO MUNDO EUROPA Bélgica 20/1 – Depois de uma semana de conflitos, governo fecha a Universidade de Louvain
Irlanda do Norte 5 e 6/10 – Conflitos entre católicos e protestantes em Londonderry
Espanha 29/1 – Polícia invade e ocupa a Universidade de Madri, onde estudantes protestavam contra a ditadura de Franco 18/6 – Manifestações estudantis
Iugoslávia 3/6 – Manifestações em Belgrado e outras cidades vão até o dia 11/6
Itália 1/3 – Universidade de Roma é fechada Inglaterra 17/3 – 10 mil pessoas protestam contra a guerra do Vietnã França 22/3 – Início das manifestações na Universidade de Nanterre, na periferia de Paris 10/5 – Noite das Barricadas, em Paris, e ocupação da Sorbonne pelos estudantes 14/5 – Início da greve geral que vai até 2 de junho e pára boa parte do país
Polônia 8 a 11/3 – Enfrentamentos de rua entre estudantes e forças policiais em Varsóvia Tchecoslováquia 5/1 – Alexander Dubcek é indicado para secretário-geral do PC, iniciando o movimento de liberalização conhecido como Primavera de Praga 20/8 – Invasão das tropas soviéticas e de aliados do Pacto de Varsóvia acabam com o movimento Turquia 18/6 – Manifestações estudantis
Alemanha Ocidental 12/4 – Manifestações estudantis duram três dias em várias cidades e terminam com duas mortes, 200 feridos e mais de mil presos
ÁFRICA Egito 21/11 – Governo reprime manifestação estudantil
der do mundo, regimes autoritários que não deram brecha para movimentos de contestação acontecerem e diferenças culturais marcantes serviram de entrave para que a revolta jovem se espalhasse mais ainda, com suas inevitáveis conseqüências positivas e negativas. A Arábia Saudita passou ao largo dos acontecimentos. Como de resto em boa parte do mundo árabe, de certa forma, 68 não aconteceu até
hoje. Na Ásia, as ruas ferviam no Japão, com os estudantes que combatiam a presença das tropas norteamericanas; e, na China, viu-se um 68 chapa-branca, estimulado pela revolução maoísta. E na Coréia do Norte o regime controlava a situação, como vem fazendo até hoje. Na Etiópia, o imperador Hailê Selassiê reinava absoluto desde 1941. Recém-saída de uma guerra contra o Paquistão pelo domínio
da região da Caxemira, a Índia era um mundo à parte. Governada por Indira Gandhi com uma economia fortemente estatizada, tinha boas relações com a URSS. No país, visitado pelos Beatles na época (para praticar meditação transcendental), não se registraram protestos estudantis nem mudanças de costumes, coisa que somente hoje se discute, mesmo que ainda timidamente. (MA) MAI 2008 • Continente
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As duas revoluções dos Beatles no disco do ano O Álbum Branco, com sua mistura de experimentalismo, criatividade e enorme sucesso comercial, marcou o ano e a história da música pop Imagens: Reprodução
O
maior testemunho do movimento de maio de 68 na música popular foi a canção Revolution, dos Beatles, que começou a ser gravada, em Londres, no dia 30 de maio daquele ano, enquanto Paris ainda fervia com protestos e passeatas. A música seria lançada em agosto, em um compacto, e no dia 22 de novembro no Álbum Branco, numa versão intitulada Revolution 1. Nas duas versões, John Lennon faz referências diretas ao movimento parisiense. “Se você carrega fotos do presidente Mao, isso não vai, de todo jeito, convencer ninguém.” Durante as gravações, brincando com a letra, Lennon hesitou em apoiar o movimento. Chegou até a gravar uma versão na qual cantava “pode contar comigo”. Mas o que foi para o vinil e passou para a história foi uma letra em que Lennon afirma: “quando você fala de destruição, não conte comigo”. E “se você quer dinheiro para pessoas com cabeças que odeiam, vai ter que esperar”. A frase que melhor define o pensamento contracultural da época, em relação à política, vem depois. Em vez de “mudar a constituição”, ele aconselha os militantes a “mudar sua cabeça” e “liberar sua mente”. Revolution 1 é um dos pontos altos de um dos discos mais marcantes do ano. Com suas 30 canções novas, o Álbum Branco, como ficou conhecido o disco duplo de capa minimalista intitulado apenas The Beatles, é um dos trabalhos mais generosos, criativos e fiéis à época em que foi produzido. Mas isso não quer dizer que seja um disco datado. A não ser que se 24 x Continente • MAI 2008
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defina como datado um trabalho que prima pela criatividade explodindo para todos os lados, canções marcantes, variedade de estilos, letras que festejam a vida, o amor e exploram as sombras do universo contracultural da época. No disco está o lado mais criativo e sombrio de John Lennon em músicas como I’m so tired, Yer blues e Happiness is a warm gun. Essa última, junto com outras cinco letras do mesmo disco, mereceu até uma tradução para o português feita por Carlos Drummond de Andrade para a revista Realidade, em março de 1969. Outra música marcante é Helter Skelter, que poderia ser definida como uma trilha sonora para apedrejar vitrines. Como era freqüente nas letras dos Beatles, os significados são múltiplos e abertos à interpretação de quem ouve. Helter Skelter é um nome de uma espécie de montanha russa num parque de diversões inglês e significa também o advérbio “desordeiramente”. Paul McCartney trata na letra, aparentemente, de uma montanha russa, mas insinua em alguns trechos que está se referindo a uma mulher superfogosa na cama, ou ainda de um tumulto de rua. Nesse caso, o peso das guitarras, que reproduzem o estilhaçar de vidros, suas idas e vindas, seus altos e baixos, e seus vocais deses-
perados dão aquela sensação de que tudo pode acontecer a qualquer momento em uma perseguição de gato e rato, entre manifestantes e polícia. A música ilustraria com perfeição as imagens dos estudantes atacando a polícia e defendendo-se do gás lacrimogêneo nas ruelas do Quartier Latin, em Paris. “Se Revolution 9 é uma viagem de John ao caos, Helter Skelter é a viagem de Paul”, escreveu Mark Lewinson no livro The complete Beatles recording sessions. Revolution 9, outra de John Lennon, é o momento do disco – e de toda a obra dos Beatles – onde o experimentalismo de vanguarda está mais presente. Influenciado por Yoko Ono, então sua nova namorada, Lennon, novamente o mais ousado dos quatro, faz uma colagem musical reunindo, sob o mote de uma voz repetindo infinitamente number nine, number nine, sons de filmes antigos, música orquestral, tiroteios em faroeste, protesto de rua, um melotron tocado ao contrário, gritos obtidos em sessões de terapia psiquiátrica, frases estranhas, música atonal, canto árabe, canto gregoriano, zumbidos, ruídos, grunhidos, centenas de pedaços de fitas colados e tocando em loop e o que mais encontrou pela frente. Tudo isso durante 8 minutos e 45 segundos. Foi quando a música pop chegou mais próxima de John Cage e dos compositores experimentais A música Helter Skelter ilustraria muito bem a luta entre estudantes e a polícia nas ruas de Paris
de música erudita contemporânea. Influência de Yoko, ela mesma uma veterana do grupo Fluxus e de outros movimentos de vanguarda. Com sua cacofonia, Revolution 9 é uma trilha antecipada do mundo do turbilhão informacional, da vida marcada por imagens rápidas. O ano de 1968 deu a muitos, pela primeira vez, o sentimento da aldeia global, da intensa mistura de cultura e da saturação de informação em meio à descartabilidade pop. Os Beatles, com sua mistura de experimentalismo e enorme sucesso comercial marcaram o ano com seu Álbum Branco. 1968 foi também um ano superprodutivo para Jimi Hendrix, que lançou o disco Electric Ladyland, para o Cream de Eric Clapton, com Wheels of fire, para o Iron Butterfly, com In-a-gadda-da-vida, para Janis Joplin, com Cheap thrills (com capa de Robert Crumb), para The Doors, com Waiting for the sun, para os Rolling Stones, com Beggar’s banquet, e para o Led Zeppelin, que gravou seu primeiro LP no fim do ano. Todos discos seminais na história do rock. Isso para ficar somente nos mais consagrados. Bob Dylan, o porta-voz de sua geração desde 1963, quando cantou The times they are a-changing (Os tempos estão mudando), ironicamente passou o ano de 68 calado, recuperando-se de um acidente. O Pink Floyd apresentaria ao mundo o A saucerful of secrets, disco gravado de janeiro a abril em Abbey Road, que inaugurava o chamado rock espacial, depois chamado de progressivo. Em dezembro, no dia de Natal, a nave Apollo 8 sobrevoava a Lua como a primeira missão tripulada a chegar perto do satélite. Mandou, pela primeira vez, imagens do lado escuro da Lua e imagens da Terra, vista do alto. A realidade parecia, mais uma vez, imitar a arte. (MA) MAI 2008 • Continente x
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AGENDApontocom Divulgação
n FÃ CLUBE
Clarice no topo
No Orkut, a escritora Clarice Lispector (1920-1977), com 103 comunidades dedicadas a ela, bate os poetas Carlos Drummond de Andrade (83) e Manuel Bandeira (58). Entre os blogs, o destaque fica para o claricelispector. blogspot.com, que chega a ter mais de 4.700 visitas diárias. (Fonte: Folha de S. Paulo)
n MÚSICA ERUDITA
Para ouvintes, cantores e maestros Quer achar sites de cantores consagrados, editoras, biografias de compositores, libretos, competições, gravadoras, casas de ópera e afins? No OperaStuff, os futuros talentos do canto lírico podem encontrar agenciadores e ficar por dentro de concursos para jovens solistas, enquanto os admiradores chegam facilmente às home pages dos principais teatros do mundo e adquirem os ingressos online. Isso sem falar dos maestros que não sabem onde achar as partituras e dos aficcionados que procuram as mídias especializadas. (CEA) nnn
www.operastuff.com
n MEMóRIA
n RARIDADES
n ARTE COnTEMPORânEA
Em 1952, o lingüista Ignace J. Gelb propôs a criação de uma “ciência da escrita” a que deu o nome de gramatologia. Este também é o nome do blog de Amir Brito Cadôr, que traz tipografias, quadros que contêm letras ou palavras, livros de artistas, poesia visual, caligrafias etc. Entre muitas curiosidades, a reprodução do quadro de 1966, A bela Lindonéia ou A Gioconda do subúrbio, de Rubens Gerchman. Nara Leão pediu para Caetano e Gil comporem uma música inspirada na obra, para ela gravar no disco-manifesto Tropicália ou Panis et circensis, de 1968. A música tem na letra claras referências à ditadura militar: “Lindonéia desaparecida. Cachorros mortos nas ruas/ policiais vigiando...” (Marco Polo)
Sob divertida identidade fictícia, um blogueiro anônimo vem sendo cultuado há vários meses pelos caçadores de raridades fonográficas da música clássica. O suposto 21° filho de J. S. Bach, batizado de Peter Qualvoll Publizieren Bach – vulgo P. Q. P. Bach –, veio ao mundo renegado pelo pai e pelos irmãos, e por isso foi privado dos ensinamentos rudimentares da família mais musical da história. “Então, como não criava nada, ele entregou-se à atividade de polinizar beleza pela blogosfera e suas margens”, diz em seu futuro epitáfio. Todo dia algum CD de seu sacro acervo é disponibilizado através de links para download no Rapidshare acompanhado de interessantes críticas. (Carlos Eduardo Amaral)
Na edição de abril da Continente Multicultural, a matéria de capa foi dedicada à arte contemporânea pernambucana, mostrando que o Estado continua cultivando uma cena artística expressiva. Trabalhos de uma parcela dessa nova geração podem ser encontrados na Mostra Catálogo do portal 2ptos. O projeto, iniciado no ano passado, selecionou alguns artistas representativos e colocou na rede algumas de suas obras, parte delas acompanhadas por críticas. Em exibição, há tanto trabalhos feitos especialmente para o portal quanto outros anteriores. Na galeria virtual estão: Paulo Bruscky, Lourival Cuquinha, Bruna Rafaela, José Patrício, Bruno Vieira e Aslan Cabral, entre outros. (Mariana Oliveira)
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www.gramatologia.blogspot.com
www.opensadorselvagem.org/blog/pqpbach
www.doispontos.art.br
A Gioconda do subúrbio na rede
O blog do bastardo da família Bach
Pernambucanos em galeria virtual
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POST DO MÊS - [ Tiago Dória Weblog]
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O rádio não morreu A Associação Nacional de Difusores (National Association of Broadcasters, NAB), nos EUA, lançou uma campanha na rede para mostrar que o rádio ainda é relevante. Além de sites, banners, e impressos, a campanha Radio Heard Here contará com vídeos no YouTube. David Rehr, diretor da organização, disse recentemente em conferência que as rádios sempre ofereceram conexão com os ouvintes e isso a tecnologia não modificou, ela “apenas mudou os dispositivos de recepção”. A animação de Rehr vem de um aumento de 2% na publicidade nas rádios dos EUA, em relação ao ano passado.
PERFIL Tiago Dória é jornalista, blogueiro e consultor de projetos web. Desde 2003, edita um blog pessoal sobre cultura web, tecnologia e mídia. É um dos primeiros blogs independentes a fazer parte do portfólio de um portal de internet no Brasil. Em 2007, foi convidado a ser blogueiro oficial da Pop!Tech, uma das mais importantes conferências sobre ciência e tecnologia do mundo. www.tiagodoria.ig.com.br
É meio redundante falar isso. Mas as rádios, claro, não morreram. As mais relevantes vêm se reinventando – vide o Radar Cultura e a NPR – e utilizando a rede como uma forma de alcançar uma audiência global, mesmo caminho de alguns jornais.
n REVISTA
O Grito! prepara festa de aniversário Às vésperas de completar um ano, a revista digital O Grito!, idealizada por jornalistas pernambucanos, amplia seu conteúdo inserindo blogs, colunas e dobrando o número de colaboradores, espalhados no país e até fora dele. A revista, cujo foco é a “cultura pop sem contra-indicação”, é atualizada todos os sábados trazendo novas matérias, além da seção Últimas notícias. A partir de agora há blogs sobre moda, cultura indie, videoclipe e cinco colunas de temas variados. (MO)
nnn
www.revistaogrito.com
n nOVIDADE
Assista trailer de livro Depois dos livros em áudio, chegou a vez dos trailers. O romance de formação De cabeça baixa, de Flavio Izhaki, tem trailer na rede. O vídeo foi dirigido por Débora Pessanha, para quem o maior desafio foi “fazer propaganda do livro sem revelar muito sobre ele”. Nesse aspecto, tudo o que era preciso está lá. O mais curioso é que o vídeo, com seus curtos três minutos, consegue transparecer a indiferença e falta de sentido inerente ao romance. (Thiago Lins) nnn
www. decabecabaixa.wordpress.com
BAIXE E OUÇA Garotos do Recife que se juntaram e resolveram tocar uma paixão em comum: o samba. Após muito tempo “sacudindo” os fãs na noite recifense , o Trio Pouca Chinfra e a Cozinha lançou seu primeiro CD. Quem ouviu, percebeu todo o suingue do samba, a poesia simples e a cozinha quente e ritmada. Quem ainda não ouviu, pode ouvir algumas músicas pela internet. (Gabriela Lobo) www.myspace.com/triopoucachinfra
FAVORITOS Arte e literatura discutidas na web
O portal Cronópios é, hoje, um dos melhores sites culturais do país. Lá você encontra contos e poesias inéditos, resenhas, críticas, além de discussões e polêmicas sempre francas e democráticas. (ECM) www.cronopios.com.br MAI 2008 • Continente
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Zenival
O poeta Juan Ramon Jiménez
Para além de Platero
O poeta espanhol Juan Ramon Jiménez, morto há 50 anos, é muito maior do que o livro pelo qual ficou mais conhecido Fernando Monteiro
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em 1881), durante quase toda a vida – da imaginação. Fisicamente, ele logo tomou o rumo de Sevilha, e, depois, já estava na Madri de 1900, tentando sobreviver numa capital muito agitada para o seu temperamento melancólico, se não mesmo algo sombrio e sempre sentindo a falta de “alguma coisa que não estava ao pé de si”, como recordava o poeta Rafael Alberti, um dos seus mais jovens amigos (como Garcia Lorca e outros). Na Madrid do começo do século, Juan foi encontrar o gênio nicaragüense de Rubén Dario, chefe de escola do Modernismo que vinha tentando renovar a poesia hispanoibérica ainda emperrada naquelas tradições emanadas do “Século de Ouro”. Para o poeta Pedro Salinas – em El problema del Modernismo em España – embora esse modernismo tenha desembarcado “imperialmente em Madri, buscando uma poesia dos sentidos, trêmula de atrativos sensuais e deslumbrante de cromatismo um tanto estetizante demais” etc, o fato é que os jovens
poetas como Jiménez, no contato com Dario e outros sul-americanos – além de alguns espanhóis inquietos com a fossilização da forma poética novecentista – puderam lustrar de brilhos novos as velhas palavras castellanas (Juan Ramón fazendo uso de “las más exquisitas notaciones de sensibilidas, de matiz y de sonido que han salido de la poesia modernista española”). Para Pedro Salinas, na maturidade o poeta de Moguer iria, entretanto, extrapolar – por méritos próprios – o perfil do modernista espanhol da primeira hora. Com grande argúcia crítica, Salinas analisa, por exemplo, o poema Veio, primeiro, pura, incluído no livro Eternidades (que Jiménez publicou em 1916), para encontrar nele o fio de meada do caminho de um poeta já libertado mesmo das boas influências. Ou seja, nos versos célebres, primeiro se tem a etapa da inocência e da simplicidade formal. Logo, a “rainha faustosa de tesouros”, de roupagens estranhas etc, alude alegoricamente à rica sensualidade da poesia modernista, que Jiménez Imagens: Reprodução
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seu lugar, na poesia espanhola do século 20, é simplesmente entre os gigantes Antonio Machado e Federico Garcia Lorca, além de ter sido distinguido com o prêmio Nobel de literatura, em 1956. Não é pouco, mas não é exatamente pela láurea sueca – às vezes, duvidosa – que se deve medir a importância de Juan Ramón Jiménez, grande de Espanha na poesia e “poeta de Moguer”, conforme ele preferia se apresentar, quando necessário (nunca era, na verdade, e todo mundo perguntava: “Moguer? Onde fica Moguer?”)... Vivia exilado desde o final da Guerra Civil que devastara o seu país, e, no final, já não estava bem de saúde, ao tentar finalizar um longo poema intitulado Tempo e espaço. Acima de tudo, lembrava da infância – em Palos de Moguer – mais do que jamais a recordara, antes, em países e hotéis estranhos, ao longo do tempo que não se passa da mesma maneira para os poetas verdadeiramente grandes. Moguer le dolía – como só doem os primeiros amores. “Ó mãe, de algo me esqueço que não sei que seja... / Ó mãe, que é que eu olvido? – A roupa já está toda, filho./ – Sim, mas algo falta que não sei que seja/ Ó mãe, que é que eu olvido?/ – Já não vão os livros todos, filho?/ – Todos, mas algo falta que não sei que seja...” etc. O poema de Jiménez intitulado O adolescente prossegue assim, nesse comovente cantochão no qual uma mãe supervisiona as coisas no dia da partida do filho, e este sente falta antecipada dela, das “auroras diferentes, dos matinais caminhos, dos distantes eucaliptos noturnos” – até que todas as perguntas são caladas pelas respostas dispersivas, a mala rústica é fechada, e “o menino do carabineiro grita, atrás do carro: Adeus!”. Jiménez ficou em Moguer, na província de Huelva (onde nasceu,
Franco (à esquerda, em primeiro plano), fazendo a saudação fascista
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também havia cultivado. O poema passa a expressar, então, o cansaço disso, e o desgosto do bardo diante desse conceito da poesia, o que o faz chegar até ao “ódio” (dele/dela), até só voltar a sorrir para a “amada”, quando esta se despoja das vestes suntuosas e volta a se entregar à pureza “desnuda” – que equivaleria ao período pós-modernista da obra do prêmio Nobel de 40 anos depois. Ou seja, da brava geração de 1898, Juan Ramón partira para depurar ao máximo a sua expressão poética, encontrando a dicção própria pela qual seguiria ainda mais longe, ao revisar, incansavelmente, mesmo os poemas anteriores, publicados ou não. No mesmo ano da publicação de Eternidades, o poeta se casou e, então, produziu alguns dos mais belos poemas de amor da poesia já rica no gênero. Ele havia expandido e contraído o verso, respectivamente de acordo com o modernismo e com aquilo que o poeta e crítico português Jorge de Sena chamou de “interiorizadas pesquisas das vivências ao longo de décadas ricas de mudança”. Ao final disso, Jiménez estava livre para escutar – como todo poeta maior – a voz autônoma que sempre carregara consigo, desde a partida de Moguer... Porém um fato exterior viria de encontro à paz necessária para se completar o seu projeto poético. Nuvens sombrias do mundo da política se acercam da Espanha para fazer de Guernica o campo de experimentação da também “nova” destruição em massa. A beleza está em perigo, e a República espanhola sofre debaixo das botas dos nacionalistas de Francisco Franco, avançando para calar, matar e instaurar a ordem da Direita triunfante também em Portugal, na Itália e na Alemanha. E isso atingiria até a vida interior dos poetas. A vida interior? Não, não só isso: a vida mesma deles está sob ameaça, e o jovem Lorca, amigo
Capa da edição espanhola do livro
de Jiménez, é o primeiro a tombar sob as balas de ódio do regime que escreve horríveis “poemas”, com o sangue dos inocentes. (“Viva la Muerte!”, conforme o grito de uma platéia alucinada, que o general franquista Millán Astray adotaria como sinistra divisa). Juan Ramón Jiménez decide, então, abandonar a pátria – e essa será a segunda dor da sua vida. Até aqui, se falou de Jiménez sem mencionar o livro pelo qual ele é mais conhecido: Platero e eu, de 1914, uma obra que remonta ao ambiente campesino de Moguer, com a sua gente simples – e um humilde burrico sob o foco central. Gerações se encantaram com as historietas contadas nessa obra, a respeito de um animal descrito com inesquecível ternura: “Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Deixo-o solto, e vai para o prado, e acaricia levemente com o focinho, mal as roçando, as florinhas róseas, azuis-celestes e amarelas... Chamo-o docemente: ‘Platero’, e ele vem até mim com um trote curto e alegre (...) pelas últimas ruelas da aldeia. Os camponeses, vesti-
dos de escuro e vagarosos, param a olhá-lo: — Tem aço... Tem aço. Aço e prata de luar, ao mesmo tempo.” Sem dúvida que a popularidade do livro foi fundamental, na atribuição do prêmio Nobel ao poeta exilado primeiramente em Coral Gables. O galardão da academia sueca reconhecia o poder de comunicação da obra (uma espécie de O Pequeno Príncipe de antes da Segunda Grande Guerra), mas também tentava chamar a atenção para o veio principal da poesia do espanhol exilado como Pedro Salinas, Rafael Alberti e tantos outros espanhóis de talento espalhados pelo mundo. Platero não deixou de se tornar, infelizmente, um redutor da importância de Juan Ramón como poeta profundo, complexo e, ao mesmo tempo, pleno de lirismo arrebatador. Essas qualidades se evidenciam, em grau avançado, nas partes que restaram concluídas daquela que ele planejou para ser a sua obra-prima, como visão do mundo e testamento literário: Tempo e espaço, um longuíssimo poema, com trechos em prosa intercalados com a poesia jimeneziana típica, na sua maturidade de artista e homem que havia “sofrido” o seu século integralmente. Para infelicidade dos admiradores do poeta, Tempo e espaço restou inacabada, com muitas variantes escritas no período final, quando o equilíbrio psicológico de JRM também se via atingido pela distância da Espanha, de Madri e de Moguer. Dois anos depois da viagem a Estocolmo, para receber o Nobel das mãos de um representante das monarquias européias (que ele detestava), Dom Juan Ramón Jiménez faleceu em Porto Rico, no dia 29 de maio de 1958, aos 77 anos. E deixou muito mais do que Platero e eu, para todos que amem a alta poesia que nos torna mais humanos, ao dilatar a consciência em contato com a beleza imortal.
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Zenival
LITERATURA
Oficina literária no Ar As aulas do romancista Raimundo Carrero, agora transmitidas também pelas ondas do rádio, são um incentivo à paixão pela literatura Rafael Dias
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Rafael Gomes
LITERATURA
O apresentador Aldo Vilela e a produtora Éden Pereira, da rádio JC/CBN
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ez para as três da tarde. Toca o celular, interrompendo a entrevista. Com voz grave e tom rouco onipresente, Raimundo Carrero atende à chamada: do outro lado da linha, alguém deseja confirmar um compromisso importante para logo mais, dali a pouco mais de uma hora. Alarme falso. Impaciente, o autor de Somos pedras que se consomem não esconde o frio na barriga como um novato prestes a sucumbir à ameaça do futuro desconhecido. Cruza as pernas, sacode o pé esquerdo, pede um cafezinho, “faz tempo que não tomo café”, solta ele. Outras vezes, tem aparência serena, um olhar firme que dá a impressão de perscrutar o interlocutor. Mal termina a ligação, o aparelho toca de novo. Agora, sim, a produção da rádio JC/CNB Recife informa que, dentro de instantes, ele entrará ao vivo para apresentar o quadro Momento literário, do programa CBN Total. O esquete de apenas 10 minutos, veiculado de segunda a sexta-feira, sempre ao vivo, no “nobre” horário vespertino de uma FM (90,3 MHz), é o ponto de encontro religioso de um contingente de público que deseja ouvir as dicas preciosas de um romancista consagrado, como um grupo de discípulos reunidos numa ágora, diante do sábio grego. Estudantes, donas-de-casa, advogados, médicos, políticos, intelectuais, funcionários em sua sagrada hora de sesta, literatos ou não, todos estão ao alcance dos ensinamentos de Carrero. Basta um radinho de pilha em mãos ou sintonizar a freqüência no som do carro e a vontade, ainda que furtiva, de aprender a escrever bem. Literatura, quem diria, tornou-se
artigo pop. Não só isso, discutir o fazer literário deixou de ser um tabu. Do terreno sacrossanto, desce das nuvens até nós, mortais. A iniciativa foi do jornalista e apresentador Aldo Vilela, que convidou o romancista, em fevereiro do ano passado, para que reproduzisse a sua famosa oficina literária na rádio. Hoje a atração é fenômeno de audiência, dando oportunidade de desvendar os meandros da escrita na companhia do escritor – agora também pela internet, pelo link do JC/CBN, no site do JC Online. Apesar de calejado pelas mais de três décadas dedicadas à arte de escrever romances, dentre as quais quase 20 anos como professor de oficina literária (ensina desde 1989), e da longa vivência como jornalista, Raimundo Carrero admite se sentir ainda inseguro. “É uma experiência totalmente nova para mim. Eu tenho que falar com um público que existe, mas não vejo, o que é muito cruel”, comenta. “O escritor trabalha com palavras. E estou acostumado a platéias curtas, 100 pessoas é muito, uma média de 30 a 40. Então, a princípio, confesso que fiquei meio perdido”, explica o escritor. Sentado no sofá, ajeita o seu livro Os segredos da ficção (lançado em 2005), disposto em cima da mesa de centro, repousando seus óculos ao lado. Verifica as páginas marcadas com antecedência de manhã cedo, entre cinco e seis da manhã, horário em que costuma se acordar para escrever e planejar a aula do dia. A “cola” fica posicionada estrategicamente, só a título de consulta de emergência, porque, segundo ele, tudo está gravado em sua memória. E só.
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O Momento literário é provavelmente a única experiência no país, senão uma das poucas, a difundir o conteúdo de uma oficina literária em um veículo de comunicação de massa No rádio, Raimundo Carrero nem de longe parece ser um locutor inexperiente. Pelo contrário, fala com desenvoltura e extrema propriedade do que diz e como diz. Nos primeiros quatro minutos do quadro, abre-se uma conversa descontraída entre escritor e apresentador sobre amenidades. Comentam sobre os mais diversos temas, atrações culturais na cidade, futebol (“sou rubro-negro doente, graças a Deus”, não se furta em declarar sua paixão), trânsito, o dia-a-dia de um romancista, televisão, fatos curiosos. Houve até um tempo em que Carrero contava piadas. O bate-papo em tom de brincadeira não poderia ser melhor artifício para quebrar a expectativa do público, acostumado à sisudez professoral ou à postura distante de um literato. Após a leve conversa inicial, a aula começa sem que o ouvinte perceba, de tão natural como os comentários são feitos. Ágil, Carrero repassa lições curtas, em expressões que se adaptam ao tempo exíguo do veículo, porém sem perder a profundidade do tema. Detalha as etapas do processo criativo e reforça a importância de sempre indagar a si mesmo sobre as engrenagens da narrativa. Defende também a sobriedade do narrador frente ao personagem, que tende a se apaixonar pela cria. E usa frases de efeito didático para explicar como um escritor deve escrever simples. “As palavras vaidosas são perigosas. São boas para a vaidade, ruins para o texto”, diz, em certo momento da aula. O quadro Momento literário com Raimundo Carrero é provavelmente a única experiência no país, senão uma das poucas, a difundir o conteúdo de uma oficina literária em um veículo de comunicação de massa. Iniciativas parecidas, é claro, existem em outras praças. São programas radiofônicos que versam sobre literatura em geral; não sob o formato de fazer literário, no entanto. Muitos deles são veiculados já há algum tempo e vêm se tornando cada vez mais comuns. É o caso do Café Colombo (Universitária FM 99,9 MHz), programa semanal pernambucano sobre livros e debate de idéias, que em agosto deste ano completa seis anos no ar. Outro exemplo é o Letras & leituras, da rádio Eldorado AM (do grupo Estado), de São Paulo. A rede nacional CBN, do Rio, também tem sua janela literária, o Tempo de letras, conduzida pela jornalista e poetisa Simone Magno, com menos de um ano de criação. Há ainda os podcasts (rádios
na web), que vem se popularizando a cada ano com o avanço da internet. Um dos mais conhecidos é o portal paulista de literatura e arte Cronópios, que, entre outras atividades, mantém gravações em áudio na sua página (www.cronopios.com.br/podcasts). Decano na história da rádio brasileira e referência para todos os que se sucederam, o Certas Palavras é o mais ilustre do gênero. Criado pelo jornalista Claudinei Ferreira, atual coordenador de literatura do Itaú Cultural, junto com Jorge Vasconcellos, o extinto programa esteve no ar por quase duas décadas, mas permanece vivo na memória do público. Em meio a essa seara, o quadro com Carrero tem ainda outro diferencial: um escritor de renome nacional como âncora. Com uma rotina atribulada entre compromissos e viagens, não raro Carrero é “pego” em situações inusitadas durante participações ao vivo na rádio. É muito comum ser surpreendido durante o almoço, e logo tem de improvisar um tema na hora. Em uma das ocasiões engraçadas, recebeu a chamada da rádio quando andava em um mototáxi em Catolé da Rocha, na Paraíba. O feedback também pode ser sentido na classe cultural e literária do Estado. O advogado José Paulo Cavalcanti Filho é um dos ouvintes mais assíduos. Ele compara o programa a um sonho quixotesco que se tornou real. A jornalista Éden Pereira, da JC/CBN e produtora do programa, escreveu um conto no ar por estímulo de Carrero, que sugeriu um mote a partir de uma manchete de jornal. “Enquanto Carrero falava, eu comecei a escrever sem muita pretensão. Depois, pediu que eu lesse o que eu tinha escrito. Ele me incentivou, fez as correções ao vivo. Terminamos o conto no ar, foi emocionante”, conta a jornalista, que nunca havia escrito ficção. Diante do retorno, Carrero já tem planos em investir tanto na docência como na sua nova paixão, o rádio. O escritor-locutor já recebeu convite para ministrar suas oficinas em uma faculdade, idéia ainda em discussão. Outra idéia sua é criar um romance no rádio, fazer algo totalmente diferente, “como Orson Welles fez”, diz. Quanto à fama além das fronteiras do rádio, Raimundo diz não se deixa deslumbrar. “O escritor não é celebridade. Ele não deve se preocupar com isso. O sucesso só é bom para a vaidade. E quando a vaidade começa a funcionar, a obra começa a cair. Agora, o êxito existe. Se você for bom escritor, será perene”, diz. MAI 2008 • Continente
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LITERATURA
Desvendando a mulher-esfinge Em seu novo romance, Miguel Sanches Neto fala de uma fêmea que se desdobra em três: musa, mãe e fantasma
O
escritor Miguel Sanches Neto é mais conhecido pelo trabalho de crítica literária que vem realizando do que pela ficção ou poesia que tenha publicado. Sua atuação crítica, apesar de seus poucos mais de 40 anos, envolve algumas centenas de artigos em órgãos de imprensa de grande circulação, notadamente de Curitiba. Um dos textos iniciais de sua lavra, O artefato obsceno: visitando a polaquinha (1994), editado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde o autor leciona, empreende uma análise do romance A polaquinha, de seu conterrâneo Dalton Trevisan. Sob a forma de um breve ensaio acadêmico, as circunvoluções paródicas do erotismo são apresentadas como a maneira que as prostitutas encontram para resistir e enfrentar gigolôs, homens casados e jovens em busca da primeira experiência sexual, através da dissimulação e da aparente fragilidade. O primeiro romance de Miguel Sanches Neto, intitulado Chove sobre minha infância, saiu em 2000 e já foi traduzido para o espanhol. Versava sobre a infância e a adolescência atribuladas que levou junto à mãe a quem amava e a um padrasto de quem não gostava, em meio ao
O escritor curitibano Miguel Sanches Neto
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trabalho árduo no campo e aos sonhos de enveredar pelos caminhos da literatura. Conseguiu ultrapassar o bloqueio familiar, tornandose professor universitário e um escritor com mais de uma dezena de livros publicados até agora. Neste seu terceiro romance, A primeira mulher, Miguel Sanches dá uma guinada em termos de expressão. Ele vai privilegiar, ao invés da categoria “formação” que configurava sua estréia ficcional, os meandros do romance de enigma policial, as veredas da articulação política, a desilusão do personagem frente ao ensino universitário, a solidão do homem no espaço urbano, a relação conturbada com as mulheres, e, ainda, a relação edipiana, ao mesmo tempo em que propositadamente distanciada, com a mãe. O professor Carlos Eduardo é o personagem central de A primeira mulher, tendo como característica latente o fato de jamais se afastar do ritmo narrativo em primeira pessoa. Solange, deputada e primeira namorada, passa a dividir com ele boa parte dos acontecimentos da trama, que gira em torno de um seqüestro e de uma campanha política, assuntos bem ao sabor da hora nas grandes cidades. Não falta nem mesmo um radialista, “Porrada”, que explora diariamente no ar o sensacionalismo de matérias sobre violência, lendo na abertura dos blocos do seu programa versos do “Poema em linha reta”, de Fernando Pessoa. Carlos Eduardo assume a defesa de Solange e, na pele de detetive amador, trabalha para desvendar o seqüestro do filho da candidata à prefeita, que já dura 20 anos, e a chantagem a que ela está sendo submetida.
Tudo isso enfatiza a sua condição de mulher-esfinge, que espera ter desvendado o seu enigma, que é também o enigma do romance e do poema que perpassa o livro. Este poema lírico chega distribuído em fragmentos numerados, e entremeia alguns capítulos de A primeira mulher que, por sua vez, não vêm demarcados numericamente. Poema claramente inspirado no texto bíblico, aproxima-se do circunstancial e é aplicado a um amor de hoje, ora carnal e possessivo, ora carinhoso e desinteressado, reafirmando assim o lirismo e o confessionalismo do autor. A “primeira mulher” são, paradoxalmente, três: a musa tardia Solange, a mãe do protagonista Ilza e o fantasma da loura que assustava os meninos no banheiro da escola para evitar a masturbação. Além destas, Carlos Eduardo se relaciona ainda com Lírian, jovem aluna do curso de Letras que, sem querer, através da divulgação de fotos sensuais suas por um colega de curso, promove um escândalo na internet e a conseqüente demissão do professor. Para não esquecer o paradoxo, certas inferências estilísticas de A primeira mulher, apesar da velocidade que permeia o trajeto e o desenvolvimento de diálogos, buscas e contendas, opõem-se ao descritivo dos panoramas exteriores e naturalistas. Pouco se fala no romance das paisagens monótonas e intermináveis de cidades em processo de urbanização ou das naturezas exuberantes do romantismo exótico, porém falsas. O intertexto comparece nas referências de passagem a escritores diversos, sempre úteis e esclarecedoras, mas
sem aprofundamento. O andamento da prosa de Sanches Neto é pensado, medido e calculado, mas nunca cristalizado na poeira das coisas gélidas e marmóreas. Em tempos de violência desenfreada, de indiferença e desamor total pelo outro, nada mais sugestivo do que escrever um romance que englobe os materiais cotidianos destas vivências. Se acrescido de um erotismo leve e sem vulgaridade, faz-se mais atraente ainda. O problema é que, em nome de certa avidez pela conquista de público, culminando no desejo de ser lido e reconhecido a qualquer custo, pode-se ser induzido ao emprego de um discurso fácil, aliciador e absorvente. O que abre fendas para uma dicção sem mais novidades que um mero percurso narrativo que se ressente de arrojo e inventividade. Assim é que no texto de Miguel Sanches as coisas acontecem e se materializam adquirindo o aspecto da norma lexical mais comportada e em voga para aqueles que perseguem o sucesso imediato. A matéria literária daí resultante encaixa-se nos modelos e perfis expressivos tradicionalmente aceitos pelos cultores do realismo e da prosa que mais tangencia os fatos e experiências gerais da vida cotidiana, e que também não intentam fugir ao particularismo dos sentimentos, emoções e desracionalidades humanas. A primeira mulher Miguel Sanches Neto Editora Record 336 páginas 40,00 reais
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MÚSICA
livros
Uma estréia promissora
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de mais atual em nossos O homem dos sonhos dias como em situações Tatiana Maciel Editora Agir de outras épocas. 142 páginas O personagem F#23107, 29,90 reais que ela chama de “desprotagonista”, assume o sonho de várias pessoas, sem se fixar em nenhuma delas. Ele atravessa, dessa forma, desde uma festa de jovens, com tudo que isso pode sugerir, até um passeio pela vida dos piratas ou pela Antiguidade. Algum tateio que seja detectado (para exemplo, entre outros, a expressão “ansiosa avidez”, no capítulo 2, quando se sabe que toda avidez é ansiosa) deve ser creditado à ordem natural das coisas, isto é, ao processo de amadurecimento da escritora. O fato é que poucos acertam incondicionalmente numa estréia, embora um esforço futuro tenha de ser feito para que não se perca o trabalho árduo, inglório e exaustivo com as palavras. (Luiz Carlos Monteiro)
> Os sofrimentos de um jovem autor
> História judaica em Pernambuco
> A informação e a opinião no jornal
> Uma promessa não cumprida
Dividido entre ansiedade e frustração, com o fim de um relacionamento e o fracasso da estréia, o jovem escritor Felipe Laranjeiras acha um exemplar de seu livro num sebo, com comentários e sublinhas. Com a esperança de que o fracasso não seja total, começa uma busca desenfreada por sua leitora solitária, munido de uma só pista: a dedicatória que ele mesmo tinha feito. A trama de reviravoltas que permeiam a vida sem graça de Laranjeiras (muito provavelmente um alter-ego do autor Flávio Izhaki), mostra o quanto um começo pode demorar. Especialmente para alguém que canaliza os próprios naufrágios. A uma jovem alma desgarrada, que não consegue emprego nem relacionamento sérios, só resta escrever. (Thiago Lins)
A coleção Passos Perdidos – História Desenhada adapta em quatro volumes a obra Passos Perdidos – História Recuperada, da professora Tânia Kaufman. Partindo da trajetória dos judeus em Pernambuco (1º volume), passa à situação na Europa dos séculos 15 ao 17 (segundo), explicando as razões do êxodo judaico. Já o terceiro volume narra a chegada dos primeiros cristãos-novos ao Brasil e a participação judaica na frota de Pedro Álvares Cabral. Por último, o quarto volume conta a história da primeira comunidade judaica das Américas e dos judeus egressos de Amsterdã. Os volumes foram ilustrados por Danielle Jaimes e Roberta Cirne, com adaptação de roteiro e quadrinização de Amaro Braga. (TL)
A base deste livro é a contestação do paradigma que divide o texto jornalístico entre informativo e opinativo. Para abordar o tema, o professor, jornalista e pesquisador português, radicado no Brasil, Manuel Carlos Chaparro desenvolve uma análise da prática do jornalismo em Portugal e no Brasil, suas similitudes no que diz respeito à língua, e suas diferenças em forma e em gêneros. O resultado é um interessante trabalho de jornalismo comparado, mostrando que a imprensa portuguesa é mais argumentativa que a brasileira, que, por sua vez, tem formas discursivas mais variadas. Fica claro, a partir de suas comparações, que qualquer gênero jornalístico carrega informações e opiniões. (Mariana Oliveira)
Para uma obra que propõe já em seu título ensinar a “ler como um escritor”, a sensação que permanece ao fim da leitura é de expectativa frustrada. Já na apresentação da edição brasileira – escrita pelo professor Ítalo Moriconi – nota-se uma renitente, porém frustrada, tentativa de comparação (e mesmo de superação) em relação a mais recente produção crítica de Harold Bloom. Apesar do mérito de analisar detidamente algumas obras importantes e bem selecionadas (clássicas ou não), a autora peca pela superficialidade na apreciação de alguns trechos. Para ler como um escritor passa por média como um bom guia de leituras orientadas, nada mais. (Eduardo Cesar Maia)
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recifense Tatiana Maciel faz sua estréia em literatura com o romance O homem dos sonhos, confirmando a existência e a continuidade de novos autores de ficção em Pernambuco. Isto porque poetas aparecem todos os dias, embora a qualidade da poesia da maioria deles deixe a desejar. O que surpreende neste romance é a absoluta falta de enredo, resultando numa prosa que se fecha em si mesma e não abre frentes para o desenvolvimento do personagem na história. O imaginário da autora revela alguém que está centrado tanto no que existe
De cabeça baixa Flavio Izhaki Editora Guarda-chuva 24,00 reais
Passos Perdidos – História Desenhada T. Kaufman, A. Braga, D. James e R. Cirne AHJPE 25,00 reais (cada volume)
Sotaques d'aquém e d'além mar Manuel Carlos Chaparro Summus Editorial 239 páginas 44,90 reais
Para ler como um escritor Francine Prose Jorge Zahar Editor 319 páginas 44,90 reias
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Calibãn lança coleção de livros de bolso
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1596). Bucólicas, refinado texto pastoril do poeta latino Virgílio, é o terceiro título, trazendo o verso tornado famoso pelos poetas árcades mineiros da Inconfidência Libertas, quae sera, tamen (Liberdade, ainda que tardia), com tradução e introdução de Foed Castro Chamma. Uma clássica comédia de costumes do teatro brasileiro, As casadas solteiras, de Martins Pena está no quarto volume. A coleção fecha com o título Em busca do logos, uma coletânea de textos de grandes poetas, escritores e filósofos, apontando um sentido para a vida através de temas como atitude, liberdade e natureza humana, entre outros, com seleção feita por Valter Luís de Avellar. O projeto gráfico, de Gisela Abad, é simples e bonito, dando unidade à coleção, que vem envolta numa simpática sacolinha de pano. (Marco Polo)
> Altos e baixos da condição humana
>Um outro aspecto de Blaise Pascal
> Bons poetas e poemas dos 50
> Reportagem ou recorte da realidade
Chamado de poeta da ficção científica, o escritor norte-americano Ray Bradbury notabilizou-se por fugir aos estereótipos deste tipo de literatura. Monstros ou Ets bonzinhos, naves espaciais ou armas insólitas, nada disso faz parte do seu mundo. O que ele procura analisar é a condição humana, com suas misérias e grandezas, quase sempre num tom suavemente melancólico. Uma velhinha que quer ver Deus de perto e é enganada por um agente de turismo que lhe vende bilhete para um foguete enguiçado é o tema de um dos contos desse volume, ao qual não falta, entretanto, um toque perturbador. Fahrenheit 451, romance sobre um futuro totalitário, é o livro de Bradbury mais conhecido. (MP)
Blaise Pascal (1623-1662) é mais conhecido pelo livro Pensamentos, em que reflete sobre as angústias da existência, como, por exemplo, a solidão diante da infinitude do Universo. Mas também foi matemático, geômetra e físico de imenso talento. A abordagem privilegiada pelo doutor em Letras, italiano Francesco Paolo Adorno, neste livro que leva o nome do pensador francês, realça o que Pascal disse sobre antropologia, epistemologia e política. O livro faz parte da coleção Figuras do saber, que chega às livrarias com mais dois, dedicados a Albert Einstein e Auguste Comte. A coleção, que tem 22 títulos, já abordou figuras importantes como Gilles Deleuze e Soren Kierkegaard. (MP)
Nos anos 1950 a poesia tinha excelentes espaços na grande imprensa brasileira, haja vista o Poesia-Experiência, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, assinado por Mário Faustino. É nessa época que começam a publicar poemas, também, grandes nomes como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Carlos Pena Filho, Hilda Hilst, César Leal, Sosígenes Costa, Mauro Mota e Ariano Suassuna. Este volume de uma coleção que vem cobrindo os diversos momentos da poesia brasileira, tem o mérito de resgatar nomes injustamente esquecidos como os dos pernambucanos Audálio Alves e Edmir Domingues ou o do carioca Walmir Ayala. Traz, ainda, uma acurada seleção de poemas. (MP)
Carlos Azevedo define reportagem, na apresentação desta obra, como um recorte da realidade, filtrado pelo olhar do jornalista a partir de sua subjetividade e momento histórico. Para ele, esse gênero jornalístico vira documento e uma vez arquivado fica esperando o momento de ser redescoberto. Em Cicatriz de reportagem, o autor reúne 13 reportagens desenvolvidas durante sua carreira, priorizando o período fértil da Realidade. Antes dos textos, ele contextualiza e narra todo o processo de produção do material, mostrando as dificuldades reais da realização de algumas pautas. O livro, apesar de conter alguns erros de revisão, é um excelente relato do dia-a-dia da profissão.(MO)
Reprodução
o completar 10 anos, a Calibãn Editora, que, embora sediada no Rio de Janeiro, tem entre seus idealizadores o escritor Cláudio Aguiar e o poeta Majela Colares, ambos cearenses radicados no Recife, está lançando a coleção de livros de bolso Quem lê vive mais. mais. Composta de cinco livros, traz, no primeiro, Quatro por quatro, quatro contos, poemas, crônicas e cartas de Machado de Assis (foto), reunidos por Majela Colares, que também selecionou o segundo, sob o título Histórias de Trancoso (que virou expressão popular), e que enfeixa crônicas de fundo moral do português Gonçalo Fernando Trancoso (1515-
A cidade inteira dorme Ray Bradbury Editora Globo 200 páginas 27,00 reais
Pascal Francesco Paolo Adorno Estação Liberdade 160 páginas 29,00 reais
Quem lê vive mais Vários autores Calibãn Editora 600 páginas 50,00 reais
Roteiro da Poesia Brasileira – Anos 50 André Seffrin Global Editora 240 páginas 36,00 reais
Cicatriz de reportagem Carlos Azevedo Editora Papagaio 408 páginas 44,00 reais
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Luzilá Gonçalves Ferreira
Cronos, crônicas, a magia do cotidiano
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ronos, na antiguidade grega, governou o mundo antes que seu filho, Zeus, o matasse e tomasse seu lugar. Mais tarde, por uma semelhança de palavras, ele foi ele assimilado a Cronos, o tempo. O cronista era, então, aquele que narrava fatos e feitos por ordem de sucessão cronológica, que dava conta da história de um nobre, de um rei, de um povo. Pelos Livros de Crônicas do Velho Testamento, conhecemos parte da história do povo de Israel: genealogias, territórios onde habitou, suas lutas, através dos anos... O autor, ou autores das Crônicas, chegam mesmo a transcrever poemas e preces do rei David, pois palavras também fazem parte da História. Pelos chroniqueurs – a palavra surgiu no vocabulário francês no final do século 14 – conhecemos acontecimentos e personagens em um dado momento da formação do país, narrados por testemunhas oculares: Villheardouin, Joinville, Froissart, interessam-se por fatos que presenciaram sem se preocupar com questões de método histórico, de objetividade, muitas vezes atentos apenas a detalhes, ao pitoresco. Buscam atrair a atenção do leitor através de descrições vivas, insistindo na lição que se pode tirar dos acontecimentos. No caso, e se levando em conta a religiosidade que marcou a Idade Média, que “nada acontece neste mundo que não seja pela vontade de Deus”. Com o tempo, o gênero se modificou... A crônica moderna quer o registro de uma impressão de momento, a transfiguração de um sentimento, um julgamento vindo do coração ou da razão, sobre pessoas e acontecimentos, às vezes até o resultado de uma busca que o autor efetua em si mesmo, mergulhando em seus longes.
Um olhar sobre o cotidiano, que é sempre mágico. Lembrem Rilke, escrevendo a Kappus, queixoso da cinzentice da vida: “Se sua existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse... Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair suas riquezas”. Desse modo, tudo pode ser objeto de uma crônica, como tudo pode ser assunto de um poema. Um gênero revelador, capaz, por sua dimensão e alcance, de atrair o leitor apressado, sensível. E curioso, indiscreto, desejoso de conhecer a opinião dos outros, de penetrar na mente alheia, “suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza”, como ainda assinala o autor das Elegias de Duino. Conhecemos muito do nosso passado através de crônicas de viajantes, de administradores ou de religiosos, relatando fatos e suas ações ao rei, aos superiores eclesiásticos. No século 19, quando a edição de revistas e publicação de jornais se tornou possível no Brasil, as crônicas foram o lugar de discussão, comentários, polêmicas ou simplesmente de encontro de sensibilidades. Sob forma de rodapés, às vezes chamados de folhetins, publicavam-se pequenos contos, discutiam-se os problemas da cidade, questões políticas ou sociais, suscitados pela urbanização. Essas crônicas nos entregam pensamentos e sentimentos dos que viveram no Recife, Reprodução vivenciaram o Recife, amaram o Chegada do Recife, Assim, reler as crônicas Hindenburg ao que nos deixaram, é fazer presenRecife, Alexandre Berzin, 1932 te um tempo da cidade, de seus antigos habitantes. Ao longo deste ano, quando se comemoram 200 anos de Imprensa no Brasil, a Continente Multicultural publicará algumas dessas crônicas, nas quais nossos antepassados nos entregam igualmente um pouco de sua alma. Um mergulho em suas mágoas e desejos, em sua fé em qualquer beleza, como o queria Rilke.
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CINEMA
Bons amigos da onça Amigos de risco, de Daniel Bandeira, é um belo exemplo de como, em situação precária, o cinema vai ao campo de batalha
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Marcelo Costa
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uma conversa informal sobre a produção audiovisual pernambucana, no ano passado, o jovem cineasta Daniel Bandeira ressaltou a marginalização e a precária estrutura técnica com a qual os filmes e vídeos são produzidos no Estado como uma das razões para o surgimento de uma produção tão peculiar e dotada de vigor. Diante de um sistema de produção excludente, o desenvolvimento de inovadoras tecnologias possibilitou, de certo modo, a democratização dos meios de expressão e o surgimento de uma geração de realizadores que, livres dos vícios de linguagem do meio, vislumbraram no cinema uma forma de ecoar sua voz. “A produção pernambucana nasce do rancor, como um grito marginalizado”, afirmou Bandeira, que na época captava recursos para a finalização do seu primeiro projeto em longa-metragem, Amigos de risco, lançado na última edição do Festival de Brasília. MAI 2008 • Continente x
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CINEMA
Após todas as desventuras da noite, os amigos Nelson e Benito esperam ônibus na avenida Agamenon Magalhães
Munida desse ideal de cinema de guerrilha, a Símio Filmes, numa co-produção com o Cinemascópio, viabilizou a realização do longa em vídeo digital com o orçamento obsceno de R$ 49 mil (mais R$ 149 foram conseguidos junto ao Funcultura). Uma espécie de força-tarefa dos jovens realizadores pernambucanos se formou em torno do projeto – fato facilmente compreendido diante da prolífica atuação de Bandeira, sobretudo como editor, em festivais de cinema e vídeo. Sua contribuição para o audiovisual pernambucano, inclusive, lhe rendeu uma espirituosa homenagem no curta-metragem Eisenstein, de Leonardo Lacca, Tião e Raul Luna. Montado o exército de guerrilheiros, foi cair no campo de batalha e se esquivar dos inúmeros imprevistos próprios das filmagens; nesse caso, potencializados em mil. Amigos de risco conta a história de três amigos de infância que se reencontram após o retorno de um deles de um longo período de “ostracismo forçado”. Logo de início somos apresentados a dois dos principais personagens e à camada social sobre a qual o filme vai colocar uma grande lente de aumento suja e granulada. Nélson (Paulo Dias) é garçom em um restaurante fino, condenado a conviver com pessoas da alta estirpe e, portanto, bem diferentes dele. Já Benito (Rodrigo Riszla) é um re-
signado funcionário de uma gráfica expressa que já não almeja muita coisa para sua vida. Ambos são membros de uma classe média achatada, decadente e trôpega, que faz das tripas o coração, para manter-se subsistente – inclusive transitar com certa fluidez pela marginalidade. Os dois amigos recebem o telefonema de Joca (Irandhir Santos) – sugestivamente apresentado por último – recém-chegado à cidade depois de dois anos de fuga e ávido por uma noitada de reencontro. Esse é o dispositivo para uma saga noturna e sem limites pelos subúrbios do Recife. Uma noite regada por bebidas, cartão-de-crédito e segredos que constroem um clima de tensão à medida que se insinuam e revelam um pouco de si, sem despir-se de uma vez, numa prova da importância do não-dito no cinema. A relação entre os dois amigos remanescentes e o exfugitivo vai se atenuando como uma corda gasta, cujos fios cedem a cada tração; sobretudo quando Joca sente-se mal e passa a ser carregado pelos amigos. A inquietude da câmera e a prevalência de cores quentes na fotografia – possivelmente exagerada pelo transfer – também sugerem a tensão estabelecida. As ruas escuras, os becos, a penumbra dos ambientes, a angústia urbana das relações humanas, a precariedade dos serviços revelam uma face da cidade bem
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DOCUMENTÁRIO
Uma estrela das antigas
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Os protagonistas Rodrigo Rizla (Benito), Irandhir Santos (Joca) e Paulo Dias (Nélson)
O jovem Daniel Bandeira dirige pela primeira vez um longa-metragem
diversa dos cartões-postais, mas que vez ou outra integra as estatísticas ou os toscos programas televisivos sobre violência. Nesse sentido, há ecos de filmes notívagos clássicos como Depois das horas, de Martin Scorsese e Colateral – especialmente na cena do metrô –, de Michael Mann. Apesar da coloquialidade dos diálogos e das boas atuações de Riszla e Irandhir contribuírem para o realismo do filme, ele não conseguem esconder as suas evidentes limitações, sejam elas decorrentes das condições de produção ou de equívocos na narrativa cinematográfica. Entretanto, seria injusto ressaltá-las em detrimento da coragem e da iniciativa de resistir a uma indústria que impõe regras, formatos e estilos tão rígidos, para adotar uma postura autoral. Trata-se de um filme de estréia, relevante, de uma carreira promissora, não tanto pelo resultado em si, mas pela maneira engajada de agir, pensar e sentir o cinema.
m documentário de curta-metragem que conta a história de Amazile Sampaio, atriz que protagonizou alguns filmes no Recife, na década de 20, foi o resultado do trabalho de produção e direção de Nelson Sampaio, Virgínia Maria Carvalho e Fernando Victorino, ex-alunos da UNICAP. A maioria dos filmes em que a atriz atuou foi perdida, mas A última diva contém trechos salvos de cenas interpretadas por Amazile. Um dos méritos da equipe de produção foi justamente a de ter conseguido, junto à Cinemateca Nacional, cenas da película No scenario da vida, considerado o último filme do Ciclo do Recife (19231930), e que tinha se tornado quase uma lenda do cinema pernambucano, até a recente restauração de alguns trechos. A última diva resgata a história de Amazile tanto por meio de cenas recriadas ficcionalmente como através de depoimentos dos especialistas Fernando Spencer (que também foi uma espécie de consultor para os jovens diretores), Paulo Cunha, Alexandre Figueirôa e Luis Maranhão Filho; e de Joel Câmara, sobrinho de Amazile, e Inês Spencer, amiga da atriz.
(Eduardo Cesar Maia) A última diva Direção, produção e roteiro: Nelson Sampaio, Fernando Victorino eVirgínia Carvalho. O vídeo está disponível em www.youtube.com
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CINEMA
Cinema às margens do Velho Chico O projeto Cinema no Rio leva a sétima arte às cidades ribeirinhas do Rio São Francisco, em encontros de rica troca cultural Samarone Lima Fotos: André Fossat
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ra sábado de manhã, quando um pessoal diferente, vindo de Minas Gerais, chegou a Belém de São Francisco, em Pernambuco, às margens do Velho Chico. Era o começo da segunda etapa do projeto Cinema no Rio, que leva cinema de boa qualidade às populações que vivem às margens do Rio São Francisco. Ninguém deu muita bola para a chegada daquela trupe animada, porque o assunto da cidade era algo mais cinematográfico – o incêndio na torre da Igreja do Menino Deus, durante a madrugada, provocado por um raio. Coisa que vem do céu. O comentadíssimo raio acertou justo a torre da igreja, inaugurada em 1963, destruiu todo o equipamento de uma empresa de internet, e só não virou pó graças a um bando de estudantes universitários que estavam por ali, tomando umas, esperando a chuva passar, para começar uma festa. A festa acabou sendo acordar a cidade, aos gritos de “fogo na igreja”. Cena de um bom filme.
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Crianças expressam sentimentos diversos durante a sessão em Curralinho (SE)
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CINEMA À noite, ainda haviam rumores de que o incêndio era praga de Frei Damião, que passou pela cidade há tempos, mas o assunto principal tinha mudado de foco para um telão de 10 metros de altura, feito de lona inflável, como aqueles pula-pulas de parque do interior. O telão foi montado num repente, defronte à igreja, para exibir dois curtas: O curupira, de Humberto Avelar, Nascente, de Helvécio Marins, e o longa Mutum, de Sandra Kogut. Dali, o projeto seguiria por mais nove cidades, atravessando os Estados de Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe. Antes, já tinha cruzado 13 cidades mineiras, na parte navegável do rio. A exibição dos filmes, em algum lugar bem central da cidade, é apenas uma das cenas do projeto. Semanas antes, uma equipe de préprodução faz o mesmo percurso da caravana, levantando histórias e personagens de cada cidade, para um pequeno documentário, que é exibido antes da programação oficial. É uma festa na cidade, quando surgem na telona as pessoas que fazem parte da sua história. Uma antropóloga acompanha a equipe e fica à deriva, circulando pela cidade, em busca de pessoas marcantes na comunidade, histórias, causos, lendas. Há também uma oficina – Imagem e Movimento –, para a criançada de cada cidade. Quando os patrocinadores cobrem todas as despesas, um casal de fotógrafos sai de casa em casa, buscando fotos antigas para escanear. Já são 7 mil fotos que escaparam do lixo ou de serem queimadas, como já aconteceu em muitos lugares. O projeto é uma verdadeira pedagogia do encontro. “O que nós temos não é um simples projeto, mas um encontro. Pensávamos que estávamos levando cultura, mas estamos é recebendo”, explica o aventureiro Inácio Neves, idealizador do Cinema no Rio, que sonhava
O projeto já visitou 13 cidades mineiras , aproveitando a parte navegável do rio
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Acima, a chegada à Ilha do Ferro, em Alagoas, e a montagem da tela em Curralinho (SE). Ao lado, a exibição em Belém do São Francisco (PE)
em ser fotógrafo da revista Quatro Rodas, apenas para sair viajando pelo Brasil. Há 15 anos, ele trabalha com exibições ao ar livre, à frente da produtora CineAr, e graças à criatividade para criar o telão inflável, livrou-se das complexas e pesadas estruturas convencionais. Basta o telão subir, uma operação que dura 15 minutos, e as 110 cadeiras serem organizadas, que a magia do cinema ressurge, nas cidades órfãs da telona. Ao lado, um carrinho de pipoca, outro de algodão doce, que fazem parte da bagagem. A poucos metros dali, o Cinema Irapuã, único da cidade, continua fechado e abandonado.
O encontro só é possível porque a equipe de 16 pessoas do Cinema no Rio vai aos lugares com uma proposta, mas quer trocar cultura, escutar as pessoas. A antropóloga Fernanda de Oliveira senta num banco da cidade e conta que acabou de conversar com Dona Zefinha, que no dia da exibição completou 85 anos. Dona Zefinha aparece no filme, e não vai ao evento porque, na mesma hora, estará em uma missa. “O projeto está levando as histórias, mas está interessado em ouvir as histórias das pessoas”, diz. Enquanto a noite não chega, duas educadoras fazem a festa da garotada, com uma disputada Oficina Imagem em Movimento. Usando
técnicas simples e lúdicas, elas mostram o trajeto de um desenho, até virar um filme. Em alguns municípios, professores da rede pública se envolvem e acabam ganhando uma minicapacitação. “Em Buritizeiro, uma criança começou a desenhar, e depois estava ensinando à sua própria mãe”, conta Letícia Mendes, que trabalha ao lado de Joana Assis. Os encontros acontecem a todo instante. Pode ser numa feira, num boteco, ou na hora de andar sem rumo, à procura de gente. Em Abaré, na Bahia, a produção esbarrou em Reginaldo Xavier do Santos, o Régis, de 48 anos. À primeira vista, um agricultor e vaqueiro, mas é um MAI 2008 • Continente x
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Idealizador e coordenador do Cinema no Rio, Inácio Neves
dos personagens do documentário que será exibido à noite, na praça central da cidade. Por trás daquele homem simpático, está o responsável pela dança de São Gonçalo, que envolve 24 pessoas da cidade. “Tem mais de 40 anos que mexo com isso”, diz. A única vez em que foi filmado, para uma equipe de TV, não foi do seu agrado. “As mulheres eram tudo enjoadas”, recorda. Conversa vai, conversa vem, Régis conta que faz parte também de um grupo de penitentes. “É quase um padre celebrando uma missa”, explica. Ele vai dentro de casa, bota a roupa de penitente, cobrindo a cabeça, e começa a entoar cantos
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CINEMA religiosos. “Depende das promessas que o pessoal faz”, diz. Agora personagem de um pequeno vídeo, ele conta que foi ao Cinema Irapuã, em Belém de São Francisco, quando tinha uns 14 anos. “Tinha uma troca de tiros no meio”, lembra. Depois, como na maior parte das cidades do interior do Brasil, o cinema parou.
A sessão em Penedo (AL)
Os reflexos do projeto começam a acontecer nas cidades por onde a trupe mineira já passou. Em Pirapora, dois jovens querem fazer um filme contanto a história da cidade. Em algumas comunidades, o projeto é recebido com fogos de artifício. Em Gameleira da Lapa, na Bahia, a população pediu bis, ao final da sessão. Havia um motivo sentimental – lá foi filmado Narradores de Javé. Em Pão de Açúcar, Alagoas, um poeta saudou o grupo com um longo poema, incorporado ao documentário sobre a cidade e seus personagens. Por onde passa, o Cinema no Rio leva cinema de boa qualidade, mas recolhe histórias, memórias, imagens que poderiam se perder. O projeto tem a virtude de escapar da armadilha de “levar cultura”, que muitos projetos “cabeça” pensam para as cidades do interior, onde há menos acesso aos bens culturais. “Fiquei curiosa quando vi o pessoal, o telão, acabei sentando e vi os filmes. É algo que deixa marcas, pelo menos em mim”, comentou a técnica de enfermagem Maria Fabiana de Carvalho, moradora de Ibó, na Bahia, após a sessão em Belém de São Francisco. “Na TV, não tem essa interação que tem o telão numa praça”, completou a professora Valdenice dos Santos. No mínimo, a iniciativa provoca uma reflexão sobre a importância cultural e social do Rio São Francisco, em tempos de transposição. No primeiro ano do projeto, foram realizadas sessões em oito cidades de Minas Gerais A cada ano, o número de cidades aumenta. Nesta quarta edição, são 13 cidades mineiras, 10 no restante do percurso do rio. No trânsito entre uma cidade e outra, a cultura parece estar pedindo para ser vista. A poucos metros da travessia de balsa para Abaré, na Bahia, dona Estela, dona de um bar, pergunta se aquela é a “turma do Cinema no Rio”. Respondo que sim. Ela diz que o rio é apenas dela. Pergunto o motivo.“Porque vocês chegam e vão embora, e, todo dia, estou olhando para ele.”Depois de um breve silêncio, ela completa: “O rio é meu.” Mais uma cena para o projeto. MAI 2008 • Continente x
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CINEMA HISTÓRIA
Com que roupa eu vou? Apesar de serem poucos, em sua maioria autodidatas, figurinistas pernambucanos começam a ganhar espaço em produções cinematográficas e a diferenciar seus trabalhos daqueles feitos pelos estilistas Carol Botelho
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m pleno século 18, uma jovem rainha veste look de época e, para compor, uma peça contemporânea, ícone da cultura pop: tênis All Star. Quem assistiu a Maria Antonieta, de Sofia Coppola, entendeu que o vestuário descabido foi proposital. A não ser que a proposta seja essa, chamar a atenção para a roupa é visto como uma pisada de bola da direção. “Figurino adequado é aquele que não quer ser bonito, mas pretende dialogar com o universo dramático do personagem e só é notado depois que o filme acaba. Se um personagem principal está destacado pelo que veste, alguma coisa está errada”, acredita o cineasta Marcelo Gomes, diretor de Cinema, aspirinas e urubus. Talvez Marcelo tenha acabado de dar a explicação para o fato de o figurino passar despercebido em grande parte dos filmes, e a maioria do público não creditar a devida importância ao profissional conhecido como figurinista. Maria Antonieta, apesar de ter sido considerado um fracasso de bilheteria, ganhou Oscar 2006 de melhor figurino, assinado pela italiana Milena Canonero. Mesmo assim, a profissional não ficou nem de longe tão famosa quanto Sofia Coppola. Respeitado pelos colegas, mas ainda não devidamente reconhecido pelo público, o figurinista difi48 x Continente • MAI 2008
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Bárbara Cunha fez o figurino de Deserto feliz, de Paulo Caldas. Ao lado, croqui feito para a peça Mamãe não pode saber, de João Falcão, na remontagem de 2002/2003
cilmente recebe premiação. “O cinema tem tendência midiática e histórica a mostrar mais os atores e diretores de fotografia, além do diretor. Já no Brasil, onde a estética é muito valorizada, o profissional que cuida das roupas dos atores também o é, sendo, portanto, respeitadíssimo, ao menos no meio”, declara o cineasta Paulo Caldas. No Recife, dá para contar nos dedos o número de figurinistas. Mas a atividade vem ganhando adeptos, em sua maioria jovens, que buscam no aumento do número de cursos de moda do Estado algum conhecimento para se profissionalizar. Autodidatas, eles iniciam carreira como assistentes de figurino. Formada em design, a figurinista Bárbara Cunha começou como assistente de figurino de Andréa Monteiro, no longa-metragem Amarelo manga, de Cláudio Assis. Desde então, assinou diversos curtas e um longa, Deserto feliz, de Paulo Caldas. Já Andréa passou de estilista à figurinista, e entrou nas duas profissões, aprendendo praticamente sozinha. “Na verdade, no Brasil são poucos os cursos de figurino, mesmo nas escolas de cinema, porque, como figurino e cenário fazem parte da direção de arte, ‘entram no bolo’, como se diz”, explica. Formada em Turismo, a figurinista Ana Cecília Drummond já assinou diversos curtas-metragens e trabalhou como assistente da figurinista Ingrid da Mata, no longa Amigos de risco, de Daniel Bandeira.
Assistente de figurino em curtas e longas como Árido movie, Paulinho Ricardo começou trabalhando com moda. “Já fui assistente de Eduardo Ferreira e trabalho com moda até hoje”, conta Paulinho, que se dedica à profissão paralela, como produtor de moda, nos intervalos das filmagens, que chegam a durar de dois a três meses. Figurinista de Cinema, aspirinas e urubus, Beto Normal é o mais experiente dos colegas citados. “Também aprendi na prática”, declara Beto, que tem no currículo o figurino de curtas como Cachaça, de Adelina Pontual, de 1995. Por estar inevitavelmente atrelada à moda, a profissão de figurinista acaba se confundindo com a de estilista, apesar de serem completamente distintas. “O estilista está mais preocupado com o valor mercadológico que precisa atrelar à roupa. O figurino, no entanto, não precisa ser bonito. Ao contrário, trabalhamos com envelhecimento. Eu, por exemplo, estudei história da indumentária para colocar botão em vez de zíper. Seria preciso estudar modelagem para ser estilista”, compara Bárbara. “Estilismo se faz do jeito que se quer. Figurino, não. Tem que trocar idéia com o diretor. As peças precisam estar dentro da coerência estética do roteiro do cinema. Não é uma criação pessoal, mas, sim, um trabalho coletivo”, complementa Ana Cecília. “O estilista veste a pessoa. O figurinista, o personagem”, sintetiza Paulo. Segundo Bárbara, quem trabalha com moda não entende de técnicas e ferramentas básicas da sétima arte, como lente, câmera, ou que distorção a lente pode fazer MAI 2008 • Continente x
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CINEMA
Em Árido Movie, Paulinho Ricardo trabalhou com o figurino
Cena de Amarelo Manga, com figurino de Andréa Monteiro
em determinado tecido. “É preciso entender de cinema, história da arte e fotografia, para não ficar somente no lugar-comum”, reitera Andréa. Não basta simplesmente ler o roteiro uma ou duas vezes e entender que determinado personagem vive nos anos 70, por exemplo. “É necessário inserir esse personagem em um contexto de vida e de meio para saber exatamente que tipo de roupa da década de 70 ele vai utilizar, para que não fique algo caricato”, explica Bárbara. De acordo com Andréa, a criação do figurinista só pode começar depois das indicações da direção e da direção de arte sobre a cartela de cores e a luz a ser usada no filme. “Procuramos, a partir de indicações do roteiro, dar vida ao personagem, imaginando quem é, o que faz, que lugares freqüenta e que tipo de escolhas faria. O figurino nada mais é, portanto, do que a pele do personagem. Para isso, é preciso entender muito de gente das ruas, ser um observador perspicaz”, ensina Andréa.
tra tanto as características do perfil do personagem, mas o figurinista tem que ter esse subsídio para montar o perfil.” A diretora de arte Renata Pinheiro endossa a opinião de Ana Cecília e considera a leitura minuciosa do roteiro uma das tarefas mais importantes do figurinista. “Não dá para pensar simplesmente na estética. É preciso voltar-se para o comportamento do personagem, senão seria como fazer um figurino sem entender o que se passa na história do filme”, avalia. Andréa, que foi assistente de figurino no longa O céu de Suely, de Karim Aïnouz, conta que foi atrás da realidade fotografando as pessoas na rua. “Fotografávamos tudo e todos, às vezes sem as pessoas perceberem. Queríamos roupas de gente pobre, mas não miserável. Gente que consome camisas de malha colorida, com muita estampa, e bermuda de surf, uma espécie de street wear estilizada no forró, no tecnobrega, numa conotação sexual forte, que chama muito a atenção, sendo tudo muito justo e curto”, analisa Andréa, que prefere mesmo é estar fora de moda. O figurinista Paulinho Ricardo compra roupas novas para trocar por usadas. “Nosso objetivo é conseguir roupas com vida, devidamente gastas, para ficarem mais próximas da realidade.” Em Cinema,
Interpretar um roteiro e analisar características psicológicas dos personagens são alguns dos itens com os quais o figurinista tem que se preocupar quando está fazendo a pesquisa do figurino. Para Ana Cecília, é preciso ler as entrelinhas. “Às vezes, a obra nem mos50 x Continente • MAI 2008
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Esboço do figurino feito por Beto Normal, para o filme Cinema, aspirinas e urubus
aspirinas e urubus, Beto não lavou a camisa do personagem alemão durante toda a filmagem. “Fiz questão de não lavar, para imprimir poeira e suor da forma mais verídica possível.” Bárbara prefere recorrer a um especialista em estonagem, como é conhecida a técnica para tornar o tecido envelhecido. É preciso pensar também no que cada ator vai vestir, cena por cena, e fazer uma prova de roupa. “Se o ator não se sentir bem com o figurino, não vai acreditar na existência de quem está interpretando”, esclarece o diretor Paulo Caldas, que fez ensaios com figurino antes de filmar Deserto feliz. “Vimos o personagem se construindo de forma concreta. Ele ensaia diferente com o figurino e, se não se sente bem com a roupa, não encarna o personagem. É como pessoas comuns vestindo uma peça que não combina”, compara. Mesmo nessa etapa final pode haver imprevistos, e o figurinista deve estar sempre pronto para um plano B. “Há sutilezas que, na hora da prova, não dão certo, tais como tons de pele que não combinam de maneira nenhuma com o figurino diante das câmeras e da luz escolhida pelo diretor, ou mesmo certas incoerências. Uma vez estávamos em busca de um figurino de prostituta pobre para uma atriz e, por mais pobre que fossem as roupas, ela ficava com cara menina de classe média indo para uma rave”, lembra Renata. Quando é dado ao figurinista liberdade para criar, conhecimentos sobre moda são essenciais. “Na maioria dos casos um diretor de arte entende pouco de roupa. E quem não tem esse conhecimento não tem capacidade de gerir um figurino, apesar de um monte de gente se meter a fazer. Inclusive, hoje em dia, é muito comum ver diretores de arte que contratam figurinistas pra fazerem assistência de figurino para, no final, assinarem como figurinistas”, polemiza Andréa. O diretor de arte, Diogo Balbino, pensa diferente. “Há diretores de arte que criam todo o conceito da arte e figurino e contam com produtores de figurino para executarem as suas idéias”, declara. O mais comum, segundo ele, é uma parceria criativa entre o diretor de arte e o figurinista que irá trabalhar desenvolvendo os figurinos ancorados no conceito geral da arte. “Apesar de estarem muito próximos durante o processo de criação, as equipes de arte e figurino são distintas e trabalham em paralelo, cada um com suas atribuições”, define Diogo.
Paulinho Ricardo acha que o figurino está muito subordinado à direção de arte. “Essa hierarquia está fazendo com que vire moda direção de arte assinar figurino, mesmo tendo um assistente para fazer o trabalho de figurinista. Gosto de direção de arte que deixa livre o figurino. É melhor para todos”, acredita. O diretor de arte Juliano Dornelles concorda e acrescenta: “Diretor de arte e figurinista precisam estar se consultando o tempo inteiro para atingirem um resultado coeso”. Já Renata vê essa nova tendência de trabalho independente do figurinista como algo não muito legal para a coerência do roteiro. “Acho que a direção de arte está ali para centralizar as informações do figurino, cenografia e maquiagem”, opina. Para Beto, que já fez papel de figurinista e de diretor de arte no mesmo filme (Pedido, de Adelina Pontual, pelo qual ganhou um Kikito, no Festival de Cinema de Gramado, como melhor diretor de arte), cada departamento acrescenta sua fatia essencial à obra. “Sem a luz, por exemplo, não há figurino. Sem direção de arte, portanto, não há filme.”Afora divergências, o que importa é ver o trabalho na tela. E agora vai ser difícil não reparar na roupa dos atores, mesmo quando forem simples, rasgadas, suadas... MAI 2008 • Continente x
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Ferreira Gullar
Momento-limite da arte Uma tentativa de entendimento do processo pictórico e do movimento Neoconcreto, em particular
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leitura que faço do processo pictórico – que decorreu do Cubismo e deu origem às tendências construtivas surgidas no curso do século 20 –, se não é a única possível, contribui para o entendimento de certos aspectos desse processo e particularmente do movimento Neoconcreto. O esboço dessa tentativa de compreensão ocorreu em 1958, quando Lygia Clark me pediu que escrevesse a apresentação de uma exposição individual sua na galeria da Folha, em São Paulo. Ao ver seus primeiros quadros da fase concretista, percebi um simples detalhe que me levou a uma nova linha de entendimento: num dos quadros, cuja moldura larga estava no mesmo nível da tela, a composição geométrica a invadia, desfazendo assim o limite entre o espaço semântico do quadro e o espaço neutro da moldura. O que significava aquilo? indagueime. A resposta foi: se a moldura é a zona de passagem entre o espaço semântico (imaginário) do quadro e o espaço real, ao invadi-lo Lygia está questionando o espaço semântico e igualando-o ao espaço não semântico da moldura, ou seja, abrindo-a à penetração do espaço real; melhor dizendo: atenta contra a natureza semântica, imaginária, da pintura, e a reduz a mera composição espacial sem significado. Essa explicação encontrava apoio nos últimos que a pintora realizava na época e que integrariam a mostra em São Paulo: eram pequenos quadrados negros sem nenhuma forma pintadas dentro deles, a não ser, em cada um, apenas uma linha branca posta num dos
limites do quadrado, ora à direita, ora à esquerda, ora em cima, ora em baixo. Essas obras surgiam a meus olhos como a conseqüência lógica de uma concepção que assinalava o fim da pintura. Mas aquilo não poderia ter surgido do nada, sem qualquer ligação com o passado. E então me voltei para a releitura do Cubismo, do Neoplasticismo e do Suprematismo, entendendo que estes dois últimos movimentos derivaram do primeiro e radicalizaram sua problemática. Na verdade, o Cubismo continha, potencialmente, todas as propostas de uma nova visão artística, desde as construtivas, como as citadas, até as desconstrutivas, como o Dadaísmo e o Merzbau. Na vertente construtiva, o Suprematismo de Kasemir Malévitch focou na questão de uma linguagem efetivamente não figurativa, que expressasse “a sensiblidade da ausência do objeto”. Mondrian, ao contrário, apoiado numa teoria teosófica, segundo a qual a vertical e a horizontal são os dois ritmos essenciais do universo, explorou as possibilidades de composições ortogonais, fundadas nesses ritmos. Malévitch, porém, defrontou-se com um impasse: como criar uma linguagem efetivamente não figurativa, se qualquer forma – mesmo a geométrica – sobre a tela, é uma figura? Depois de pintar o célebre quadro Quadrado negro sobre fundo branco, tentou superar a contradição figura-fundo, pintando o Branco sobre branco. Era uma falsa solução – e insuperável –, uma vez que tudo o que se percebe está sobre um fundo; sem a contradição figurafundo não há percepção. Um passo mais à frente e che-
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ga-se à tela em branco, sem forma alguma pintada nela. É, como já disse, o fim da pintura, ou o recomeço. Mas, recomeçar é voltar à figura. A outra alternativa seria desistir de pintar. Ou, como fez Bichos, de Lygia Clark Malévitch, abandonar a tela, sair para o espaço tridimensional, construindo suas “arquiteturas suprematistas”. Mais tarde, desistiria delas e voltaria a pintar, e a pintar quadros escandalosamente figurativos, quase naîves. Voltemos a Lygia Clark. Ao tomar consciência dos problemas que sua pintura, naquele início, colocava, passou a usar o fio de espaço entre a tela e a moldura como elemento de composição de seus quadros. Para isso, abandonou a tela e passou a usar placas de compensado, que podiam ser cortadas. Mas a questão de “o que pôr na tela” se mantinha. Para não retornar à figura (nem mesmo geométrica), valeu-se dos cubos virtuais de Josef Albers, que lhe permitiam imprimir à superfície do quadro uma expressão, que já não decorria da forma pintada nele, mas do movimento virtual provocado pela composição dos quadros (de compensado) a partir dos cubos albersianos. Aí estavam, em potencial, os futuros “casulos”, surgidos do estufar da placa (o quadro), que assim se torna tridimensional, de fato, não mais virtual. Logo em seguida, inventará os “bichos” : esculturas manipuláveis
que, ao contrário dos quadros, não têm avesso nem uma superfície a ser “resolvida”... Então, cabe perguntar: o que de fato aconteceu? Tanto no caso de Malévitch como no de Lygia – embora ela desconhecesse a experiência do russo – o impasse da pintura os conduziu a abandoná-la; ele, voltando-se para seus construções imóveis no espaço tridimensional, e ela tomando o caminho das esculturas manipuláveis. Mas entre as duas opções há uma diferença fundamental que, no caso do russo, o fez retornar à pintura e, no da brasileira, levou-a a distanciar-se cada vez mais, não apenas da pintura, mas até mesmo das categorias do que se considera arte. A opção de Lygia Clark está diretamente ligada ao abandono das linguagens simbólicas da arte para fundar uma outra simbologia, nascida diretamente da percepção manual, corporal mesmo. Trata-se de um radicalismo antiestético, na pressuposição de que a verdade está no corpo, na sensorialidade, através da qual, acreditava ela, modificava-se a própria estrutura do “eu” profundo, aonde não chega a consciência. MAI 2008 • Continente x
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Tarsila e o Brasil Exposição em Buenos Aires expõe os estudos e quadros da pintora Tarsila do Amaral, realizados a partir de suas andanças pelo país e de sua investigação sobre as raízes do Brasil Mariana Camarotti, de Buenos Aires
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oi com um caderninho de anotações sempre à mão e o olhar atento que a pintora Tarsila do Amaral “descobriu” o Brasil na paisagem e dentro de si mesma. Criou esboços feitos a lápis e tinta que mostram povo, cidades, flora e fauna tupiniquins vistos durante suas viagens pelo litoral e interior do país, com cores e formas nunca antes pintadas. Um verdadeiro diário de bordo, íntimo e novo, fundamental para a obra da artista e para a construção da identidade brasileira que ela tanto buscava. Os estudos e quadros que surgiram a partir das andanças são a base para a mostra Tarsila Viajante, visitada por 108 mil pessoas na Pinacoteca de São Paulo e que até 2 de junho estará em exposição no Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (Malba). “A exposição tenta aprofundar um ângulo específico da produção da artista – dentro de tantos primas possíveis – que trata da importância das viagens em sua formação e desenvolvimento do seu repertório visual e do seu mergulho em um projeto maior de investigação sobre as raízes do Brasil”, diz a curadora da mostra, a brasileira Regina Teixeira.
Antropofagia, óleo s/tela, 126 x 142 cm, 1929
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ARTE Com cerca de 80 quadros e desenhos feitos na fase mais expoente e criativa de Tarsila, de 1920 a 1933, a exposição reúne pela primeira vez suas três obras emblemáticas: A negra (1923), Abaporu (1928) e Antropofagia (1929), sendo esta última a mistura e amadurecimento das duas primeiras. Impossível não se impressionar diante deste trio, exibido em círculo, em uma sala do museu e que parece avançar sobre quem o observa. Únicas pelas grandes dimensões, cores vivas e composições de figuras estranhas em uma paisagem tropical e exuberante, estas pinturas têm uma linguagem inédita. Há exatamente 80 anos Tarsila dava Abaporu ao marido Oswald de Andrade que, entusiasmado com o presente, comenta: “Isso parece um antropofagista, um homem da terra”. “Procurei no dicionário (...) e encontrei a-ba-po-ru, ‘homem que come homem’, e coloquei esse nome”, revela Tarsila na época. Os escritores modernistas resolvem então lançar o Movimento Antropofágico em torno do quadro, marcando as artes plásticas e literatura modernista brasileira. “A antropofagia era um ritual dos índios do litoral brasileiro, que comiam os seus inimigos para absorver deles as suas qualidades. E é isso o que ela faz: devora a cultura e a técnica européias que já tinha para produzir algo único, com influência surrealista e até da metafísica. Mas que nada tem de européia”, explica Teixeira. Embora Abaporu seja a obra inaugural do movimento, A negra, pintada em 1923, na fase Ensaios Modernistas, já foi concebida como uma imagem essencialmente alegórica, que tenta representar uma “identidade” brasileira, como diria Mario de Andrade. “Protegida por uma folha de bananeira, a figura estilizada e monumental, de grandes seios, evoca atributos da Grande Mãe: abundância, nutrição e fertilidade”, diz a curadora. Já em Antropofagia, Tarsila reelabora figuras e fundo de A negra e Abaporu, misturando as alegorias da mulher e do homem que geraram os frutos de um Brasil mágico, denso e silencioso, acrescenta Regina. Sua obra mais conhecida e um dos quadros brasileiros mais famosos no mundo, Abaporu faz parte do acervo permanente do Malba. A idéia de fazer essa mostra surgiu a partir de um grande levantamento das obras da artista para o catálogo Raisoné, que será lançado até o final do ano, reunindo 2,2 mil obras da artista. A transformação de uma artista de pintura clássica para um dos maiores ícones brasileiros da pintura pode ser vista ao longo da exposição, que mostra as primeiras obras em São Paulo e Paris – quando pintava paisagens urbanas brasileiras e européias em estilo tra-
De cima para baixo, Abaporu, óleo s/tela, 85 X 73 cm, 1928; A negra, óleo s/tela, 100 X 80 cm, 1923
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dicional –, os quadros modernos sobre temas brasileiros de influência cubista e as produções sociais após uma longa viagem pela União Soviética, na qual se impressiona com o comunismo. Filha de um cafeicultor abastado e nascida em Capivari, interior de São Paulo, Tarsila tem uma educação tradicional e européia, comum na época. Seus primeiros estudos de arte são na capital paulista e é o pintor e professor Pedro Alexandrino quem a aconselha a ter um caderno de anotações, o que ela conserva por toda a sua vida. A artista se muda para Paris e, ao retornar ao Brasil no final de 1922, conhece os modernistas. Este grupo de artistas inovadores e polêmicos, entre eles Oswald e Mario de Andrade, tinha realizado a Semana de Arte Moderna alguns meses antes e exerce uma grande influência sobre ela, que por sua vez adapta a proposta deles à sua preocupação e busca pela identidade nacional. Ao voltar para a Paris, no final daquele mesmo ano, ela estuda com cubistas que também exercem influência na sua obra. Depois, faz uma viagem por vários países europeus, já na companhia de Oswald. Em 1923, entra na fase que a curadora chama de Ensaios Modernis-
Carnaval em Madureira, óleo s/tela, 76 X 63 cm, 1924
tas, aventurando-se em estilos tão diversos como os vistos em Pont Neuf e Rio de Janeiro. Tarsila volta para o Brasil em 1924 e, junto com um grupo de modernistas e o poeta franco-suíço Blaise Cedrans, passa o carnaval no Rio de Janeiro. Desta viagem surgem as pinturas Carnaval em Madureira e Morro da favela, que dão início à fase Descobrimento do Brasil. Viagens pelo litoral e interior do país impressionam a artista e ampliam a sua descoberta. Não apenas da paisagem e temas locais, mas também do que ela tinha guardado dentro de si mesma. “Encontrei em Minas Gerais as cores que eu adorava quando era menina. Ensinaram-me depois que eram feias e vulgares. Segui a rotina do gosto refinado”, conta Tarsila. “Mas depois me vinguei da opressão, passando às minhas pinturas azul-claro, rosa-bebê, amarelo-vivo, verde-bandeira, tudo em tons mais ou menos fortes, segundo a mistura com o branco”, acrescenta. Essas viagens são igualmente proveitosas para Oswald , que escreve o Manifesto Pau-Brasil. Industrialização de São Paulo, paisagens urbanas, cidades do interior de Minas, casinhas simples, povo brasileiro, riachos, crianças e árvores – o que ela chamava de “po-
esia popular” – passam, então, a ser os temas da modernista. Após a quebra da Bolsa de Nova York (1929) e sua separação de Oswald, as luxuosas viagens chegam ao fim. Em 1931, ela vende alguns quadros para poder viajar para a União Soviética com o seu novo marido, o psiquiatra e intelectual de esquerda Osório César. Desta longa turnê pelo país comunista surgem Operários e Segunda classe, no início dos anos 30, com forte cunho social. Depois disso, Tarsila volta a trabalhar em temas brasileiros e antropofágicos, mas aquela busca pela descoberta do Brasil cessa e a sua pintura perde força. “Ela passa a repetir a sua fórmula água, pedra, matinho, palmeira, morrinho e céu. É apenas uma revisão da sua pintura e não mais um desenvolvimento”, analisa a curadora. “Acontece que o contexto social e cultural do Brasil tinha mudado e ela acompanha essa mudança.” Tarsila continua pintando por mais 40 anos até a sua morte, em 1973, em São Paulo. Deixou sua marca na cultura e na identidade brasileiras. Porém, de tão inovadora, impactante e genuína, não fez escola nem seguidores. Dá para entender por que cara a cara com as suas obras.
Manacá, óleo s/tela, 76 X 63,5 cm, 1927
O mamoeiro, óleo s/tela, 65 X 70 cm,1925
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Eu vi o Modernismo... Ele começava no Recife
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A visão de que o Modernismo instaurouse nas artes brasileiras a partir de Tarsila do Amaral é contestada pelo crítico Paulo Herkenhoff, que vê Vicente do Rego Monteiro como o real pioneiro Mariana Oliveira
Maternidade, de Vicente do Rego Monteiro. Ao lado, cerâmica da cultura Maracá (AM)
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té hoje a grande referência brasileira quando se trata do Modernismo é a Semana de 22. Os registros dos livros apresentam os trabalhos das pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti como ícones dessa nova produção. No entanto, como bem se sabe, a lente que registra a história é a dos vencedores. Daí que o modernismo brasileiro seja contado com um protagonismo quase total de São Paulo, eclipsando alguns nomes de fundamental importância e sobrevalorizando outros. É justamente tirando o foco das terras paulistas, e direcionando-o para a periferia, que se revela Pernambuco. O Recife já recebia os novos ares há algum tempo, fazendo uma ponte direta com a Europa, sem precisar da escala no sul do país. Pernambuco era moderno, antes mesmo do Modernismo. Na busca de uma revisão dessa leitura paulista da modernidade plástica brasileira, o crítico e curador capixaba Paulo Herkenhoff desenvolveu uma pesquisa que aponta o pioneirismo e a importância de uma produção moderna que floresce em Pernambuco desde o final do século 19. Para ele, a modernidade em Pernambuco não foi um fruto da Semana de 22, teve seus critérios, seus desdobramentos, traçou seu caminho à margem da corrente central. Enquanto 1922 se caracteriza como o primeiro tempo modernista no Brasil, quando se vai em busca da atualização internacional das linguagens, para os pernambucanos esse mesmo ano representa a segun-
da etapa, formalizada pelo uso das novas linguagens para a elaboração de uma arte nacional. Nesse cenário, destaca-se o pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro que, em três pinturas de 22, já revelava seu abstracionismo indianista. “Era o artista brasileiro de mais bem resolvida obra modernista, além de calcada em sólida pesquisa de seus referentes indianistas”, afirma Herkenhoff. Rego Monteiro desenvolveu uma vasta pesquisa sobre os objetos arqueológicos vindos da Amazônia, fez desenhos que ilustravam as lendas indígenas, incorporando aos seus trabalhos valores plásticos característicos da região, explorando as cores terrosas, os volumes e os relevos das cerâmicas dos índios. É essa produção bem fundamentada que Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral encontram ao chegar a Paris, em 1923. Segundo Herkenhoff, é Vicente quem primeiro transforma “primitivismo” em “brasilidade”, mostrando ao casal como transformar o país numa questão plástica moderna. Por outro lado, cabe a Heitor Villa-Lobos ensinar-lhes a cultura negra brasileira. “Tarsila jamais se dedicou à disciplina de pesquisa etnológica como os artistas modernos da Europa ou Rego Monteiro. Gleizes, Lhote e Léger ensinaram alguma pintura a Tarsila, que espelha seus estilos. Parece legítimo cogitar que tenham sido Rego Monteiro e Villa-Lobos os professores que ensinaram o Brasil a Tarsila”, sintetiza. Pouco depois dessa formação do olhar, Oswald de Andrade, em con-
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LIVRO ferência na Sobornne, trata igualmente os quatro estudos de Tarsila para a pintura A negra (feitos em seis meses) e a investigação de seis anos de Vicente do Rego Monteiro sobre a herança indígena brasileira. “Ele diz que havia pesquisa ‘primitivista’ no Brasil e cita a obra indigenista de Vicente e a africanista de Tarsila. Há um exagero ao igualar os dois: isso era amor, interesse financeiro ou desonestidade intelectual?”, indaga o crítico, salientando as distinções de profundidade dos projetos. A audácia e o pioneirismo do pintor pernambucano chegaram a irritar outros nomes fortes da Semana, como o escritor Mario de Andrade, que escreve uma carta, ao também pernambucano Manuel Bandeira, ironizando a opção de Vicente de levar uma exposição internacional de arte moderna vinda de Paris primeiramente a Pernambuco. Escreveu Andrade: “São Paulo é o único centro tentável no Brasil, está claro. Esnobismo, não é possível esnobismo nessa mulataria do Brasil, só mesmo em São Paulo, terra européia, cafezistas ricaços etc. (...) Rego Monteiro tinha primeiro que vir pra São Paulo, mas essa gente ainda vive sonhando com a terra natal, parece incrível! Ora, imagine você o Recife do Sr. Gilberto Freyre, comprando um desenhinho de Picasso por três contos (de catálogo)! Depois, se São Paulo não rendesse nada, então tentasse a capital da República e só depois, se de todo não quisesse pôr de banda o coração, então fosse pra terra natal, fazer abluções no Capibaribe, não acha mesmo?”. No trecho, fica exposta a hegemonia paulista e o tipo de leitura que funda a modernidade brasileira e que
mantém seu ranço até hoje, haja vista o depoimento da arte-educadora Ana Mae Barbosa, na “Conversa”, desta mesma edição da Continente. Enquanto, para Mário de Andrade, a modernidade não poderia ou deveria acontecer fora do domínio da paulicéia desvairada, Herkenhoff crê exatamente no contrário. “Minha tese é que é impossível ser moderno em São Paulo. Veja-se a involução de Anita Malfatti. Voltou em 1917, recebeu uma crítica pesada de Monteiro Lobato e passou a domesticar seus assuntos, cores e traços. Em 22, ela praticamente só exibiu obras pintadas em Nova York, datadas de 1917 ou anteriores. Tarsila era, então, uma quase impressionista”, define. Mário de Andrade, além do poeta Bandeira, tinha certa proximidade com o também modernista pernambucano Cícero Dias, de quem colecionava algumas obras. Contudo, bastou que Dias produzisse, em 1931, sua obra-prima Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, para que Andrade emudecesse e destacasse apenas outros trabalhos expostos no Salão Revolucionário. O quadro deslocava o foco de São Paulo, reconfigurando todo o cenário, algo inaceitável para o autor de Macunaíma, para quem uma das condições básicas de um artista modernista era ser paulista. Paulo Herkenhoff é extremamente corajoso ao desconstruir o pioneirismo do já construído mito Tarsila do Amaral e ao nos mostrar que, ao redirecionar a lente para a “periferia”, se percebe que o modernismo nas artes plásticas foi pioneiro, sim, no Recife.
O vai-e-vem da arte
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epois de lançar, em 2006, o livro Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil de 1980-2004, chega às livrarias a obra Itaú Moderno – Arte no Brasil 1911-1980, compondo o projeto editorial que pretende reunir parte das obras do acervo da instituição em livro. Através das imagens e dos textos do crítico e curador Teixeira Coelho, tem-se um traçado não-linear da arte moderna brasileira, priorizando sua diversidade e ressaltando a impossibilidade de dar às obras um único rótulo. O recorte apresentado não é baseado na ordem cronológica, na técnica, em grupos, movimentos ou artistas. Como não é possível colecionar artistas, mas obras, o curador constrói toda sua seleção tendo como base elementos que vão além do binômio forma-conteúdo. Assim, fugindo da historiografia convencional, Teixeira Coelho nos mostra o movimento pendular desenvolvido pela arte brasileira moderna, classificando-a sem hermetismos, buscando “uma narrativa, se não coerente, pelo menos sugestiva”. (MO) Itaú Moderno Arte no Brasil 1911-1980 Teixeira Coelho 388 páginas 150,00 reais
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Na recente produção pernambucana, a arte das capas e encartes de CD se revelam experiências gráficas tão interessantes quanto a música que trazem consigo
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Tem ARTE nas capas dos novos CDs pernambucanos
André Dib
Desenho de João Lin para o encarte do CD da banda Azabumba
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Acima, encarte do álbum de Tonino Arcoverde. Ao lado, encarte do projeto-solo do guitarrista Lúcio Maia
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e bem pensado, o material gráfico dos CDs musicais deixa de ser simples invólucro para fazer parte do conceito da obra. Para tanto, basta lembrar do encarte da edição em vinil do White Álbum dos Beatles, que se abre em gigantesco pôster, e ainda vinha com quatro fotos 20x10cm, uma para cada integrante da banda. Por mais vantagens que ofereça, um download legal ou ilegal nunca alcançará o mesmo efeito. Música e artes gráficas é uma combinação e tanto. Desde o surgimento do disco de vinil formato LP (long play), um breve recorte subjetivo pode enumerar bons momentos dessa relação. No fim dos anos 40, por exemplo, discos de jazz serviram de suporte para os experimentos visuais de Gene Deitch, reunidos recentemente no livro The cat on a hot thin groove. Já os anos 60, movidos a LSD, deram luz a um bom número de delírios gráficos, sendo o ícone máximo a capa de Robert Crumb – então rei dos quadrinhos underground – para o disco de estréia do grupo Big Brother & Holding Company, de Janis Joplin. Originalmente, o artista fez duas pranchas: na primeira, desenhou Joplin cantando – esta seria a capa; na segunda, traduziu todas as músicas do disco, o que deu em uma história em quadrinhos bastante maluca para a contracapa. No final, a gravadora optou por descartar a cantora sozinha, e trouxe a HQ para a frente do disco. Nascia um clássico. A contribuição dos desenhos de
R. Crumb no universo da música, no entanto, é bem maior em álbuns de blues e jazz tradicionais, sua verdadeira paixão. No Brasil dos anos 80, outra ruptura: o LP Tubarões voadores, de Arrigo Barnabé, é também uma HQ completa de Luis Gê. Nas décadas seguintes, a experiência se repete no auge do formato CD, nos álbuns de Planet Hemp (A invasão do sagaz homem-fumaça), Chico Science e Nação Zumbi (Da lama ao caos) e Ed Motta (Aystelum), todos com fortes elementos da linguagem dos quadrinhos em seus encartes. Na recente produção pernambucana, a arte das capas e encartes de CD se revelam experiências gráficas tão interessantes quanto a música que trazem consigo. O potencial desses trabalhos voltou a ser explorado nos anos 90, quando o Manguebeat estabeleceu um novo marco zero musical. Nesse panorama, as pioneiras capas dos álbuns de Mestre Ambrósio e Chico Science & Nação Zumbi, assinadas pela dupla Dolores & Morales (o DJ Dolores / Hélder Aragão e o cineasta Hilton Lacerda) marcaram época, sendo até hoje lembradas e até estudadas em universidades. Nos dois casos, a manipulação digital foi utilizada com objetivos distintos. A duras penas, o suporte CD segue em frente. Graças a isso, permanece o espaço de experimentação deste recurso visual, que completa as informações sonoras e continua a fazer diferença na construção da identidade de um disco ou banda.
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Música para os olhos Nação Zumbi – Fome de Tudo (arte de Jorge du Peixe). Desde o trabalho de estréia, a banda utiliza o potencial de informação subliminar de suas capas e encartes. No último CD, Du Peixe usa simetria caleidoscópica para compor texturas e formas geométricas que remetem ao tribalismo e à atemporalidade, com símbolos e personagens que mais parecem entidades. Esta arte sintetiza muito bem o espírito atual da banda: evoca, simultaneamente, o ancestral e o moderno. Mundo Livre – Bebadogroove Vol.1 – Garagesambatransmachine, é um caso à parte. Concebido para ser um EP (extended play – para se diferenciar do formato single) a ser vendido somente em shows da banda, o álbum ganhou inesperada sobrevida quando firmou contrato com a Monstro Discos. Resultado: três diferentes capas para o mesmo CD. A primeira, assinada pelo artista plástico Quéops, esgotou rapidamente, sendo hoje item de colecionador. A segunda, também esgotada, tem arte de Paulo do Amparo, e flagra cinco sambistas black power tocando num bar bastante suspeito. A mais recente, produzida pela gravadora, representa uma briga de galo em tons pastel. Pandeiro do Mestre – Coco de Toré (arte de Nilton e Cleto Campos). Nada como uma boa parceria entre arte e design. Neste caso, o artista Cleto Campos utilizou os desenhos do compositor, cantor e percussionista do grupo Pandeiro do Mestre como base de todo o projeto gráfico de seu CD de estréia. Nas páginas centrais, todos os instrumentos (inclusive os vocais) estão representados, formando uma narrativa descritiva, semelhante a uma história em quadrinhos em que o tempo fica congelado. Siba e a Fuloresta – Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar. Numa inusitada parceria, os paulistas Os Gêmeos emprestam sua arte em grafite para os músicos populares da Zona da Mata Norte. A referência ao regionalismo fica por conta da tipografia, que simula os antigos letreiros feitos à mão. Orquestra Popular da Bomba do Hemetério – Jorrando Cultura, arte de Neilton, guitarrista da banda Devotos. Não é seu primeiro trabalho – além do grupo que faz parte, Neilton faz as capas de CDs de vários grupos do Alto José do Pinho. Maquinado – Homem Binário. Mais uma capa que dialoga com o universo dos quadrinhos. Neste caso, os de Moebius e Jodorovsky, mestres franceses da ficção científica, citados no encarte como referência básica para o projeto de Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi. Orquestra Contemporânea de Olinda – o artista plástico olindense Paulo do Amparo assina a arte do CD de estréia de seus conterrâneos, a mais recente novidade na discografia pop de Pernambuco. As capas feitas por Paulo experimentam não somente a linguagem dos quadrinhos, mas o próprio formato e matéria-prima desse produto. Os CDs de seu selo, 3 ETs Records!, são encartados em envelopes de papelão, impressos artesanalmente em técnica de serigrafia artística. Forró Rabecado – João Lin tem criado várias capas de CD, todas admiráveis. A mais recente, feita para o segundo disco do grupo de jazz Treminhão, será lançada no mês de junho. Neste trabalho para a banda Forró Rabecado, ele evocou o espírito das festas do interior, com suas feiras de barracas e bandeirinhas coloridas. Seu estilo lúdico transformou até as letras em objetos manipuláveis. 62 x Continente • MAI 2008
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Uma etiqueta (des) concertante
Hora de aplaudir ainda causa dúvida, mas os inimigos da paz das salas de concerto são outros: atrasos, crianças de colo, balas, celulares e cochichos Carlos Eduardo Amaral MAI 2008 • Continente x
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Teatro da UFPE e o Centro de Convenções recebem raros eventos de música clássica; o Teatro do Parque, os da Banda Sinfônica da Cidade do Recife, cujo repertório misto é livre das convenções de aplausos, que também não valem para apresentações ao ar livre, como no Marco Zero. Então sobra o honroso palco principal do Teatro de Santa Isabel para sediar o concerto fictício desta matéria. Um concerto sinfônico, por ser melhor parâmetro; assim, não será no salão nobre, ou no auditório do Conservatório Pernambucano de Música. Consultando um melômano habitué, um compositor sinfonista e professor de conservatório, uma cantora lírica, um violoncelista, programas de concerto e artigos de maestros e outros críticos foi possível traçar um perfil de divergências e concordâncias quanto aos incômodos mais comuns nas casas de música clássica e sintetizar dicas cruciais. Em nosso concerto imaginário, com orquestra, coro e solistas imaginários, serão executados o Concerto para piano em lá menor de Grieg, as Kindertotenlieder (Canções para crianças mortas) de Mahler e o Choros n° 10 de Villa-Lobos. Antes de Mahler, um intervalo. Chega um jovem fã de música clássica, pega o folheto e se senta na platéia. Lê o folder ouvindo vez por outra as vinhetas institucionais com trechos da Fanfarra para o homem comum de Copland e encontra seqüência de obras, resumo biográfico dos compositores, minicurrículo do maestro, da cantora solista, da orquestra e do coro e nome dos músicos desses dois corpos. Passados 10 minutos do horário de início, começam as pisadas e palmas de protesto. A tolerância usual é de 15, caso o público não tenha se acomodado por motivo involuntário. Por sorte, apagam-se as luzes e surge a gravação de boas-vindas
informando que é proibido ingerir alimentos e fumar no teatro, e pedindo que se desliguem os celulares. Entram os músicos da orquestra; o jovem mais três pessoas puxam os aplausos. Entra o spalla; novos aplausos. Este cuida da afinação final da orquestra: como há um piano a postos, prefere dispensar o oboé de ser o diapasão e martela o lá 3 até ficar tudo justo e perfeito. Entram o maestro e o pianista recebidos pela terceira salva; a orquestra se levanta. O regente acena para que ela se sente, aguarda silêncio e gesticula para o crescente rufo inicial do tímpano, que antecede o primeiro ataque do piano em Grieg. Três minutos mais tarde, surge da platéia o famoso Allegretto alla turca de Mozart. A estranheza se transforma em indignação abafada em menos de um segundo: um celular. Os músicos que estavam em pausa olham, o maestro vira a cabeça rapidamente... Há quem ironize para o amigo do lado: “É algum obstetra ou criminalista de plantão”. Por mais que se avise, o telefone móvel tem sido um mal constante, recorrente igualmente em palestras, teatros e cinemas, e que pode comprometer a gravação de DVDs e CDs ao vivo. O bloqueio de sinal usado nas cadeiras é cogitado para teatros, se não usarem outro sistema antes. Há casos de músicos que pararam a apresentação e abandonaram o auditório porque foram interrompidos duas vezes por celulares. Por isso, é bom passar logo as cinco recomendações cruciais para a tranqüilidade dos espetáculos, em particular dos sem recursos de amplificação sonora: 1. Desligue o celular (não use vibracall, porque é audível e não há condições de conversar no recinto). 2. Não cochiche. 3. Abafe a tosse com um lenço. 4. Não consuma bombons e pastilhas. 5. Se chegou atrasado,
Hans Manteuffel/Divulgação
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espere o intervalo. Nesse derradeiro item, falta haver coragem de barrar autoridades, cujas “chegadas triunfais” são o píncaro da falta de educação. Doze minutos de música e acaba o imponente Allegro molto moderato. Aplausos esparsos e conseqüentes chiados pedindo silêncio. No Adágio, acontece toda a sorte de incômodos recém-citados. Chega atrasado um casal de namorados, cujas cadeiras são vizinhas às do protagonista. Pedem licença, passam apertados e se sentam rangendo os assentos. Em cinco minutos, a garota se esquece de Grieg e começa a proferir palavras dengosas para o amado, que, de súbito, se revela semitísico. O pianista consegue localizar visualmente o doente. Este saca uma bala
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No Virtuosi há um esforço em intensificar o diálogo entre o maestro, o mestrede-cerimônias e os ouvintes para que se cumpra a etiqueta
de gengibre e tira o plástico; nosso amigo do lado inicia uma lacônica auto-avaliação cármica. E o celular vibra no bolso do homem de chupadas estaladas; ele atende mesclando o timbre de baixo com sibilos acentuados. Se fosse um concerto de música aleatória ou concreta, ele e a namorada mereceriam buquês de flores ao final. Deu para ouvir a queixa de ter arrumado uma calça no apartamento de um amigo para poder entrar no teatro, já que estava de bermuda. Todos em volta bufavam impotentes, evitando a contradição de pedir silêncio tendo de falar para tanto, mas passou. Ninguém aplaudiu o final do segundo movimento, carente de acorde final em fortissimo, orgástico, que, era de se esperar, veio no terceiro e último. Intervalo.
Orquestras como a Sinfônica do Estado de São Paulo oferecem balas sem papel no saguão de entrada. Ela também veta o uso de bermudas e sandálias, não em função de atuarem em espaço público, mas por manutenção da convenção seguida no mundo todo, portanto, é bom sempre consultar sites de orquestras e teatros. Na Europa, a questão da vestimenta é mais rígida e se usa com freqüência o traje de gala – no mínimo, vista esporte fino, para não se sentir deslocado. Sob outro ângulo, vale a pergunta: você realmente se importa se os músicos estão vestidos assim ou assado ou quer que eles o cativem através dos sons? Nos concertos da Banda Sinfônica no Teatro do Parque não há problema com ouvintes de bermuda e sandálias.
Recentemente, surgiram berçários em teatros japoneses, a fim de evitar que pais exponham filhos a um ambiente que não foi pensado para estes e ao mesmo tempo impedir perturbações à música. Mesmo os escassos concertos dirigidos a crianças são para as crescidas, de seis ou sete anos em diante, que não sorriem ou birram a toda hora. Uma lição de fineza nesse quesito foi dada ano passado no Salão Nobre, quando um coral entrou no palco e uma mãe persistia com seu bebê chorando bastante. Sem nenhuma palavra ou expressão de censura, o maestro e os cantores esperaram, tranqüilos, o tempo que fosse necessário para se concentrarem, até que a senhora se retirou da sala e só voltou com o filho dormindo, perto MAI 2008 • Continente x
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do término. Falando em pequenos, começam as Canções para crianças mortas, na segunda parte do concerto imaginário didático. A concentração dos músicos é a principal justificativa para os defensores do aplauso somente ao fim das obras. Porém, em que medida isso procede, já que é um hábito estabelecido há poucas décadas? Sem falar que os europeus demoraram a ser exemplo de polidez e se envolviam a sério com a arte. Basta citar a tumultuada estréia da Sagração na Paris de 1913, sob intervenções policiais para apartar ouvintes de brios opostos quanto à coreografia e à música que iam às vias de fato, e o escárnio estrondoso dos fãs de Paisiello a Rossini na desastrosa première de O barbeiro de Sevilha, em 1816. Se as palmas são o elogio ao artista, bem-vindas por todos eles, não devem vir em qualquer ocasião nem denotar incompreensão da obra. A restrição mais comum está em concertos sinfônicos e de câmara – nas peças divididas por movimentos, que guardam muitas vezes uma conotação ou concepção que se completa no último compasso (tal qual suítes e a maior parte das sonatas, concertos e sinfonias). No Brasil, alguns maestros e intérpretes, populistas no meio, têm incentivado os aplausos quando eles sentem que o público se inclina a fazê-lo, porque não desejam que pairem ranços de pedantismo “dos mais letrados”. Já que eles dão abertura, esteja à vontade. Porém, a educação das platéias de concerto pode ser atingida com três ações simples e conjuntas: 1. listar as instruções básicas no programa impresso; 2. instruir os funcionários da casa a dialogar com os freqüentadores e 3. criar-se um diálogo natural entre maestro ou mestre-de-cerimônias e ouvintes, como no Virtuosi e na Mimo. Mensagens gravadas pouco funcionam. Da Mostra Internacional de
Divulgação
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A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (foto) oferece balas sem papel no saguão de entrada para evitar o barulho durante a apresentação Música em Olinda veio uma prova de que esse protocolo não é inútil, como se faz parecer aos brasileiros. No primeiro concerto dos Czech Chamber Soloists no país, último 7 de setembro na Igreja da Sé, houve palmas indiscriminadas porque o programa não saiu com a divisão dos movimentos das obras. Nos cumprimentos aos artistas, o oboísta solista confessou a estranheza, mas disse que estava feliz “por ter participado da primeira experiência de muitas pessoas com a música clássica”. Em recitais de canções, os cantores esperam que não se aplauda entre uma canção e outra de um ciclo (como as cinco Kindertotenlider, que se acabaram agora; por fim começa o coral-orquestral Choros n° 10). Outro gênero de obra onde vale o silêncio entre movimentos é a missa (e o réquiem), que se for executada dentro da liturgia, ato comum em cidades históricas mineiras durante a Quaresma, torna imprópria qualquer manifestação alienada ao sentido do culto – veja,
na TV, que ninguém aplaude os músicos na Missa do Galo, mesmo que seja uma celebração de alegria, a da Natividade. Contudo, não confunda a música litúrgica com um concerto convencional que se realize dentro de uma igreja. Em concursos, cabe ao presidente do júri avisar da permissão ou não à ovação (geralmente é não), porém aí se encaixa nova pergunta: “Para que se admitir espectadores em concursos, se é esperado que eles ‘não influenciem os jurados’ ou prejudiquem uma performance, manifestando-se inadequadamente? Melhor, portas fechadas”. Restrições à parte, saiba que três gêneros buscam resposta emocional do ouvinte: balé, oratório e ópera. Aí, se alguém lhe disser para não aplaudir na hora que lhe convier, esqueça: não se trata de concerto sinfônico. Nas récitas de O cientista, de Sílvio Barbato, no Santa Isabel em 2007, ninguém precisou de instruções; tudo foi instintivo. E peça bis. Só não faça como os namorados principiantes, no Choros n° 10. Numa pausa, antecedida por um acorde intenso e prolongado no meio da duração da peça, eles se entusiasmam e mandam ver nos aplausos, mas o coro, esperando o sinal de entrada do maestro, levanta-se e o fagote entra com o tema do “jaca-taca-marajá”... Terminam os pombinhos como focas de circo.
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Fotos: Divulgação
O espetáculo do caboclo sonhador
DVD Isso vale um abraço passa a limpo os 25 anos de carreira de Maciel Melo Thiago Lins
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a pequena cidade de Iguaraci, a 300 km da capital de Pernambuco, os comerciantes que trazem suas mercadorias têm um costume bonito e curioso: colocam pedaços de madeira, denominada cantadeira, nos eixos dos carros-de-boi. Também põem carvão entre a cantadeira e os eixos. Quanto mais pesado o carro, maior o ranger (ou canto). Quando menino, Maciel parava só para escutar o canto dos carros-de-boi. “Ficava admirando aquilo”, lembra, com brilho no olhar. Apesar da pouca idade de então, seu hábito indicava a sensibilidade de poeta. Afinal, já dizia Patativa do Assaré: “Para ser poeta no Sertão, não é preciso ser profes-
sor. Basta ver um verso em cada galho, um poema em cada flor”. Mas foi seu pai, o sanfoneiro Heleno Louro, que despertou o gosto de Maciel para a música. Heleno também tocava violão e zabumba. “Era ele quem articulava as festas em Iguaraci, e acabou me inserindo no círculo de violeiros e cantadores”, completa. Maciel também foi influenciado pelos cantadores de folhetos daquela cidadezinha na região do rio Pajeú. Cita alguns “grandes vates do repente”: Lourival Batista, João Paraibano, Pinto do Monteiro, Sebastião Dias... “Em minhas canções, sigo à risca a estética da poesia popular, sem deixar brecha para o modismo imposto pela indústria fonográfica, que não MAI 2008 • Continente x
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Com Xangai, incentivador e referência
se preocupa com a identidade do povo.” Sublinhando que não tem medo de ser taxado de regional, Maciel levanta uma questão: “Música regional é um rótulo bobo, criado pela crítica dos grandes centros urbanos. Como se a música criada no Sul, no Sudeste ou no Centro-oeste não tivesse suas regionalidades, e apenas a música nordestina fosse regional.” Atavismos à parte, o fato é que Maciel é considerado um dos melhores compositores da tal música regional, rótulo que existe para o bem ou para o mal. E foi assim que ele começou a ficar conhecido: como compositor. Até hoje, suas maiores canções são mais conhecidas em outras vozes. Até porque o artista que lotou os dois mil e quatrocentos lugares do Teatro Guararapes (no Recife, onde foi gravado o DVD), já foi tímido demais para cantar. “Fazia músicas e só mostrava em rodas de amigos, bebendo. Foi por insistência desses amigos que inscrevi minhas músicas em festivais. Mas, quem me
destravou mesmo foi Xangai (que inclusive fez participação especial no DVD). Quando a gente se conheceu, há uns 20 anos, ele disse que eu já estava pronto, que deveria seguir sem medo. Até hoje sinto aquele frio na barriga antes de subir ao palco, mas há um significado nisso, que todo artista que se preza conhece”, explica. Festivais e amigos, incentivos imprescindíveis na carreira de Maciel. Assim como Xangai (que Maciel tem como um mestre), o cantor e sanfoneiro Flávio José (outra referência com quem Maciel dividiu o palco na gravação) também reconheceu um talento que a timidez ainda ofuscava. Certa vez, Maciel foi até a casa do paraibano, onde tocou no violão a então inédita Caboclo sonhador. “Quando ouvi aquilo, pensei “meu Deus do céu!” Não dava para fazer uma música melhor do que aquela. Na hora, resolvi gravar, e logo tive a sensação de que meu ano estava ga-
rantido, e não me enganei. Ele ainda me mostrou Terra prometida. Então, gravei só Caboclo sonhador, porque aquelas duas grandezas não cabiam no mesmo álbum”, conta Flávio José. Maciel não apostava no sucesso da música hoje clássica. Achava que a letra, de caráter tão pessoal (fala até dos irmãos), não fosse estabelecer identidade com as pessoas. Caboclo sonhador foi mais uma letra com forte influência do determinismo geográfico – mas desta vez foi diferente. “Eu estava passando uma temporada em São Paulo. Tinha o costume de sentar num banco de praça, olhar o trânsito, as pessoas. De repente, dei por mim que São Paulo também estava cheia de nordestinos. Aí lembrei da minha terra e comecei a escrever.” Registrado o fluxo de consciência, o maior sucesso de Maciel ainda seria regravado por Fagner e outros cantores. O próprio Maciel só gravaria muitos anos depois. “Pensei que devia gravar quando as pessoas tivessem esqueci-
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Isso vale um abraço: Maciel saúda o público
do, o que não aconteceu. Mas a letra já tinha impactado na voz de Flávio José e de Fagner, então esperei para que a minha gravação também se fizesse presente.” Maciel daria outro grande salto na carreira no festival Canta Nordeste de 1995, em que venceu com a música Meninos do sertão, parceria com Petrúcio Amorim. O prêmio, um carro zero, era só o começo: surgiram convites para compor para intérpretes do calibre de Elba e Zé Ramalho. Por outro lado, surgiu também um convite inusitado. Manoel Gurgel, detentor dos passes de Mastruz com Leite, Mel com Terra e outras bandas do (sub)gênero, pediu a Maciel que escrevesse para as bandas do Ceará, que vinham tomando o espaço do forró tradicional. “Eu fazia 17, 18 shows no São João. Naquele ano (ainda era 1995), só fiz 8.” Não tinha jeito. Maciel passou um mês morando num hotel no Ceará, fornecendo material para as bandas que Gurgel comandava, sob o selo
da gravadora Somzoom. “Se você escutar uma dessas bandas, alguém tem que lhe explicar qual é, porque são todas muito parecidas. Eu inclusive forneci letras longas de propósito, para quebrar aquela batida acelerada e homogênea.” O próprio Maciel explica a sua temporada na Somzoom: “Qualquer porto na tempestade.” Mas a tempestade passou logo: depois de um mês, Maciel voltaria a Pernambuco, com outro carro e telefone (algo muito caro, à época). Isso vale um abraço traz as muitas fases dos 25 anos de carreira de Maciel. A gravação contou com várias participações especiais, porque, como o compadre Jessier Quirino bem explica no livreto que acompanha o DVD, “carro-de-boi cheio é que canta”. A idéia de gravar um DVD passou por três anos de maturação, o que rendeu um trabalho do jeito que Maciel tinha concebido. No mes-
mo ano em que Maciel havia feito um show no Marco Zero, onde “o forró não tinha chegado”, gravou o DVD no teatro ao qual ele mesmo se refere como “o templo da MPB” – décadas depois de Gonzagão ter feito seu show antológico no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro. Alternado entre forró e cantoria, o artista divide o palco com Silvério Pessoa, Flávio José, Petrúcio Amorim, Irah Caldeira, Xangai e seu irmão, Marcone Melo. Silvério, que a princípio cantaria apenas uma música, acabou emendando com mais três, num improviso surpreendente. “Quando comecei, ele já era consagrado. O palco é uma extensão da casa do artista, e fiquei muito feliz de dividir essa ‘casa’ com uma referência minha. Perto dele, sou aprendiz”, comenta Silvério, efusivo. Flávio José, que não poderia faltar, fala de sua participação com a familiaridade que era de se esperar, por ser velho parceiro de Maciel: “Foi muito descontraído. Ele ligou, topei na hora, porque nossa parceria sempre foi muito saudável”. Às participações especiais, soma-se uma produção que não ficou devendo a DVDs de grandes nomes da música brasileira. Está tudo lá: cenário, figurino, público e um repertório sólido, que se sustentaria até mesmo sem música, num livreto de cordel. Os recursos dramáticos talvez sejam até supérfluos para quem sempre viu um poema em cada flor. Mas o mérito há de ser concedido para o menino que saiu das cantigas de roda de Iguaraci para entrar no cancioneiro popular nordestino. Isso vale um abraço Maciel Melo Independente Preço não definido
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Chegou a vez da canção popular No livro Lendo música: 10 ensaios sobre 10 canções, organizado por Arthur Nestrovski, os versos, as melodias e o contexto histórico de 10 canções da MPB de diferentes estilos são analisados por críticos culturais renomados Bruno Brito
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esmo sendo uma fonte de conhecimento e referência sociocultural para entender o Brasil, a canção popular não é o principal objeto de estudo da crítica musical, que tem preferência por movimentos musicais e biografias de intérpretes, compositores e bandas. Nem tão cedo essa lacuna será totalmente preenchida, mas já é possível notar o esforço de uma parcela de estudiosos, como prova o lançamento do livro Lendo música: 10 ensaios sobre 10 canções. Organizado pelo crítico musical Arthur Nestrovski, a publicação disseca os versos, as melodias e o contexto histórico de 10 canções populares brasileiras de diferentes estilos e períodos. Aquarela do Brasil de Ari Barroso, Matita Perê de Tom Jobim, Diário de um detento dos Racionais MC’s, Gua de Caetano Veloso, O Fruto do nosso amor de Amado Batista, Cidade de Deus de Cidinho e Doca, Sala de recepção de Cartola, Esquadros de Adriana Calcanhoto e Sonhei de Luiz Tatit. Os artigos foram escritos por críticos culturais renomados: Walter Garcia, Hermano Vianna, Antonio Risério, Celso Loureiro Francisco Bosco, Maria Rita Kehl, Noemi Jaffe, Marcos Napolitano, Samuel Araújo e Lorenzo Mammi. Cada um escolheu uma canção e foi à luta. Na introdução da obra, Nestrovski afirma que a função didática não é objetivo dessas leituras, mas, sim, compreender como a canção inventa e propõe o entendimento das coisas. Justamente por lidar com visões de mundo, a interpretação de canções é uma missão de alto risco.
Como se aventurar então por esse mar sem rota, sem destino? Os ensaístas armaram-se de várias estratégias, como ler as músicas e edificar conexões com a carreira do compositor, o contexto histórico, a intertextualidade das letras e a lógica interna entre os versos e a melodia. O samba saiu privilegiado nessa história. Três artigos analisam composições de épocas distintas. A psicanalista Maria Rita Kehl analisa a letra e a música de Sala de recepção, samba composto por Cartola em 1976, em homenagem à Mangueira. Em seguida, o professor de história Marcos Napolitano revela os detalhes do sambaexaltação Aquarela do Brasil de Ari Barroso, composto em 1939, na época do Estado Novo de Vargas. Mais contemporâneo é o artigo Cinema-canção, escrito pelo letrista e ensaísta Francisco Bosco sobre a música À procura da batida perfeita de Marcelo D2. Bosco afirma que Marcelo foi o primeiro a fundir o rap com o samba, em 2003. O poeta e antropólogo Antônio Risério também fez uma ampla leitura da canção Gua de Caetano Veloso, a partir da herança africana na cultura brasileira. A composição gravada no disco Jóia (1975) é uma homenagem ao orixá Ibualama (Água profunda em iorubá – uma das línguas africanas preservadas pelo candomblé brasileiro). Matita Perê é a contrapartida erudita. A canção orquestral de Tom Jobim e Paulo César Pinheiro é analisada musicalmente e poeticamente pelo compositor e pianista Celso Loureiro Chaves. Entre os detalhes revelados, surpreende o fato de a letra ter sido inspirada no livro Sagarana de João Guimarães Rosa e no poema Um Chamado João de Carlos Drummond Andrade. Grande
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Reprod ução
expectativa mesmo surge ao se deparar com a leitura do brega O fruto do nosso amor, de Amado Batista. Mas o professor de etnomusicologia Samuel Araújo, autor do texto, não fez uma análise detalhada da letra e da música. Em resumo, o ensaio aborda o contexto histórico em que o fenômeno brega surgiu na década de 80. O livro ainda tem o mérito de debater a tensão social entre ricos e pobres nas canções populares. Os ensaios mais contundentes nesse sentido são Cidade de Deus de Hermano Vianna sobre o funk homônimo e Diário de um detento de Walter Garcia sobre o rap homônimo. Curiosamente, as duas canções são convites para conhecer o mundo da periferia, de quem vive à margem. Com estilo exaltado, o antropólogo Hermano Vianna afirma que o funk carioca Cidade de Deus (2002) de Cidinho e Doca é uma das mais belas canções de protesto social, só porque a letra é um convite para quem não gosta de
funk nem nunca pôs os pés em uma favela. O próprio Hermano reconhece que escolheu a canção na esperança de sensibilizar o leitor a escutar a canção e atender ao convite. Mais sóbrio e objetivo é o artigo do músico Walter Garcia sobre o rap Diário de um detento (1997) dos paulistas Racionais MC’s. A letra do rap é inspirada no diário de Josemir Prado, ex-detento e sobrevivente da chacina do Carandiru. A narrativa de 7 minutos e 31 segundos de duração tece uma crônica do sistema prisional. Garcia cita Lendo Música: 10 trechos do livro Estação ensaios sobre 10 Carandiru de Drauzio canções Org. Arthur Nestrovski Varela para explicar as Publifolha gírias presentes nos ver235 páginas 34,00 reais sos do rap e ainda analisa a canção do ponto de vista melódico. MAI 2008 • Continente x
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Pergolesi pela lente de Carla Camurati
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ajuda de Vespone, literalmente um criado mudo, que executa as ações ditadas por Serpina, a serviçal não só consegue o quer como ganha a torcida do público. Em 1997, Carla Camurati escolheu La serva padrona para ser a primeira ópera adaptada para o cinema no Brasil e teve a felicidaLa serva padrona de de algumas idéias, e Dir.: Carla Camurati surpresas caídas do céu, Europa Filmes 1h tornarem a produção 17,90 reais incomparável. Um dos insights da diretora foi confiar a sinopse de cada ato à narração, em italiano, do maestro Sergio Magnani (1914-2001), ilustrada por charges animadas. Já a última atuação de Thales Pan Chacon (como Vespone), além de espirituosa e imbatível, rendeu da ex-esposa Carla um encantador tributo in memoriam no final. Vale a pena você descobrir por si só tudo o mais que Pergolesi inspirou nesta edição em DVD. (Carlos Eduardo Amaral)
> Exercícios para os líderes orquestrais
> Explorações de Alfredo Rugeles
> O Cello e o piano transamericanos
> Fábio Zanon visita a obra de Scarlatti
Sendo notória a máxima “o instrumento do maestro é a orquestra”, o líder orquestral precisa conhecer bem as possibilidades, particularidades e contingências do conjunto que dirige e ao mesmo tempo ter perfeita percepção rítmica e clareza na expressão gestual, a fim de garantir segurança interpretativa. Para praticar a leitura rítmica, independentemente da escola de regência à qual pertença, quatro alunos do maestro Roberto Tibiriçá prepararam uma série de exercícios graduais em três níveis de dificuldade, ou seja, um extenso pozzoli, inserindo aos poucos figurações retiradas do repertório canônico orquestral. Há observações cruciais sobre agógica, mudanças de compasso e fermatas. (CEA)
O venezuelano Alfredo Rugeles é um dos principais regentes divulgadores da música latino-americana na atualidade. Rugeles parte da temática de cada peça para definir que atmosfera imprimir e que respectivo leque de timbres utilizar, tal qual se observa nas seis obras das décadas de 70 e 80 reunidas em Mutaciones a través del tiempo. Exemplo claro está nos sons turvos de Polución, onde – entre inúmeros recursos ouvidos – as cordas do piano são esfregadas diretamente com a mão e as do violino com a madeira do arco ou com a unha. Outro, o do narrador da cantata épica O ocaso do herói, que conta a história dos anos finais de Simon Bolívar e cria um forte efeito dramático nas vozes do coral em surdina exclamando soledad. (CEA)
O impulso do nacionalismo europeu para a busca de uma música erudita de feições próprias durante o Romantismo teve efeito tão forte quanto nas Américas da primeira metade do século. 20 (fora o Canadá). Um recorte, e também um resgate, dessa influência no repertório para cello e piano é o CD Rapsodia Latina, de Jesús Castro-Balbi e da pianista Gloria Lin. As peças dos seis países presentes se alternam entre o lirismo romântico (como no tocante Poema III, op. 94 n°3, de Marlos Nobre), o livre atonalismo em passagens inquietas (vide Toccata y Misterio, do argentino Esteban Benzecry) e o uso de ritmos populares, vide a revisita a Ernesto Nazareth pelo americano contemporâneo William Bolcom em Gingando: brazilian tango tempo. (CEA)
Domenico Scarlatti (1685-1757) iniciou sua carreira na ópera e na música sacra, gêneros que lhe fizeram a fama e a de seu pai. Por seu patente domínio do cravo, recebeu convite de D. João V para ensinar aos filhos deste em Lisboa – o rei e o cravista são personagens de Memorial do Convento, de Saramago. Quando o marido da princesa Maria Bragança virou rei da Espanha, Scarlatti rumou para Madrid e iniciou nova fase composicional, de desenvolvimento das possibilidades sonoras e de estilo cravísticas. O virtuose Fábio Zanon transcreveu para violão algumas das 555 sonatas e selecionou 13 delas, em que é perceptível, de relance, a influência das harmonias hispânicas e do instrumento segoviano em Domenico. (CEA)
Mutaciones a través del tiempo Editorial Equinoccio USB alfredorugeles@gmail. com 35,00 reais
Rapsodia Latina, Filarmonika mnedition@uol.com. br 30,00 reais
Domenico Scarlatti: Sonatas arranged for guitar Musical Heritage Society 26,00 reais
Reprodução
inda que o Stabat Mater tenha sido o suficiente para imortalizar Giovanni Battista Pergolesi (1710-1736), a obra mais querida do compositor rococó é uma ópera cômica estreada três anos antes de ele morrer de tuberculose. La serva padrona (A serva patroa, 1733) surgiu como um intermezzo em dois atos dentro da ópera, hoje esquecida, O prisioneiro soberbo. Ela narra as espertezas de Serpina (soprano), que se descobriu apaixonada pelo amo e pai de criação Uberto (baixo buffo). Com a
O regente sem orquestra Orient.: Roberto Tibiriçá 192 páginas Algol 60,00 reais
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Vá para o que também interessa
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ocê gosta de frevo de rua e em alguma ocasião se entusiasmou vendo a SpokFrevo Orquestra? Então, pronto, compre Passo de anjo e não se preocupe com filmagem, fotografia, qualidade de gravação ou que for: O DVD vem com selo Biscoito Fino. Lógico que tem Último dia e Vassourinhas: em interpretações de primeira linha. O imortal sucesso de Levino Ferreira ganhou uma série de ágeis variações na guitarra baiana de Armandinho e o hino-epíteto do carnaval pernambucano não teve outro destino senão o gran finale, com
todos os convidados. O sanfonista Genaro, o primeiro deles, evoca Sivuca em Folião ausente, e Leo Gandelman, o terceiro, saxofoneia outro sucesso de Levino, Lágrima de folião. Passo de anjo – ao E o que mais interessa vivo em Passo de anjo, além SpokFrevo Orquestra Biscoito Fino dos sucessos de carna42,90 reais val e do virtuosismo dos convidados e de cada membro da Orquestra? Os extras. Se você acha que não sabe nada de frevo, passe por lá antes e acompanhe as explicações de Spok sobre as três vertentes do gênero, seguidas das do frevo de rua. Melhor do que a aula teórico-prática, só pelo método quer-que-eu-desenhe? Se você tem pendor musical, aproveite a generosidade de maestro Duda e Spok, que disponibilizaram as partituras de Nino, o Pernambuquinho e Passo de anjo, respectivamente. E os bateristas podem aprender a rufar caixa com Adelson Silva. (CEA)
> Novos arranjos e cores na guitarra
> Tom e Villa nas cordas de Turíbio
> Duo de guitarras lança um novo selo
> Branda voz e várias guitarras
Pouco estimula ouvir a maior parte dos CDs de MPB instrumental lançados constantemente e encarar aquela mesma “sonoridade-padrão” com guitarra, baixo, teclado e bateria. Uma exceção promissora contra essa cópia manjada do estilo alheio parece vir de Marcelo “Preto” Gomes. Quem apontou primeiro o principal diferencial do guitarrista e arranjador – isto é, os arranjos sutilmente diferentes, incluindo flautas e clarinetas – foi Roberto Menescal. Confiram nos momentos mais inspirados do primeiro CD de “Preto”: o baião Pra nós dois, sustentado não pela guitarra, mas pela flauta e pelo clarone, a releitura em ritmo de tango de Falando de amor, de Tom Jobim, e as harmonias flamencas em Miró no forró. (CEA)
Tom Jobim e Villa-Lobos tiveram contato nos anos 50, os últimos de vida do Villa e os primeiros de carreira do Tom; ligação ainda mais forte porque Jobim foi aluno de Tomás Teran, pianista espanhol que veio morar no Brasil e se naturalizou graças à amizade com o bachiano brasileiro. Turíbio Santos agora interliga os dois cariocas, após meio século, em quatro paráfrases violonísticas chamadas de “visitas” (de Tom a Villa) e estende as “misturas brasileiras” a outros ícones que admira na música popular: Gonzagão, Jackson do Pandeiro e Ricardo Santos. Da própria pena de Turíbio saiu a Suíte senhores, tributo merecido a cinco intérpretes do violão que contribuíram para a tradição nacional do instrumento; descubra os homenageados. (CEA)
Formado pelo célebre Berklee College de Boston, Chico Pinheiro despontou nos CDs, Meia-noite meio-dia (2003) e Chico Pinheiro (2005). Em Nova, álbum que inaugura o selo Buriti, o guitarrista dividiu o estúdio com o compositor e guitarrista americano Anthony Wilson, indicado ao Grammy e integrante da banda de Diana Krall. Wilson se destacou em tempos recentes, tocando com Madeleine Peyroux, Al Jarreau e Aaron Neville, enquanto Chico Pinheiro teve parcerias com Rosa Passos, Danilo Caymmi e o recém-falecido Cachaíto López, do Buena Vista Social Club. Nova tem participações de César Camargo Mariano, Dori Caymmi e Ivan Lins e, como cada guitarrista ocupa um canal de som diferente, é recomendado usar fone de ouvido. (CEA)
O nome de Rodrigo Bragança poderia ocupar menos linhas no encarte de Lágrimas de chorar estrelas, já que consta como compositor de quase todas as canções, arranjador, co-produtor, produtor executivo e fotógrafo do encarte. Se você curte o livre fluxo de idéias de um Jorge Vercilo, sem onomatopéias, será fácil viajar no idealismo e no simbolismo idílico de Rodrigo, distante de andamentos agitados e dramas intensos. As letras são curtas, fáceis de memorizar, mas atente ao que está em segundo plano, que é o ponto inventivo do compositor: o acompanhamento feito somente por guitarras e suportes como “e-bows, arcos, baquetas, chaves de fenda, moedas, slaps e pilotagem de pedais e ruídos”. (CEA)
Divulgação
Preto Marcelo Gomes CPC-UMES 24,90 reais
Mistura Brasileira Turíbio Santos Delira Música 24,90 reais
Nova Chico Pinheiro & Anthony Wilson Buriti Records 23,00 reais
Lágrimas de chorar estrelas Rodrigo Bragança Tratore 26,00 reais
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Fotos: Jorge Clésio/Divulgação
Um convite à coreologia
O espetáculo de dança contemporânea Coreológicas aporta em Pernambuco pela primeira vez, convidando os espectadores a participar e dançar Christianne Galdino
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Paulo Henrique Ferreira (camisa branca) trouxe a idéia do espetáculo para o Recife e criou o grupo Acupe
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oreologia? Tentando traduzir literalmente o termo instituído pelo bailarino, coreógrafo e educador Rudolf Laban, no início do século 20, chegamos a uma definição resumida: coreologia é o estudo, a lógica da dança. No entanto, esse sentido educacional explícito nos princípios labanianos não restringe às salas de aula o campo de atuação das idéias do artista inglês. No Brasil, Laban é tido primordialmente como um educador e ainda são poucas as aplicações do seu método em processos de criação artística. Uma das exceções é o projeto Coreológicas, desenvolvido há mais de 10 anos pela paulista Isabel Marques e sua Caleidos Cia. Dança. “É claro que os ensinamentos de Laban são relidos e rediscutidos em uma perspectiva contemporânea, situando-os historicamente, atualizando-os cenicamente e recriando possibilidades para o artista”, explica Marques, que já realizou o projeto em vários Estados brasileiros e até na Finlândia, além de cinco edições em São Paulo. Toda vez que leva o Coreológicas a outro lugar, Marques encontra uma realidade corporal diferente e as adaptações acabam dando um novo contorno à proposta, o que faz de cada versão um espetáculo inédito, um desdobramento da mesma linguagem. Agora o Coreológicas aporta em Pernambuco pela primeira vez, trazido pelas mãos do produtor e bailarino Paulo Henrique Ferreira que, para encenar a versão recifense do projeto, convidou alguns amigos e criou o Acupe Grupo de Dança, obtendo o incentivo do Funcultura para financiar o espetáculo. No elenco da recém-fundada companhia, além MAI 2008 • Continente x
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do próprio Paulo Henrique Ferreira, que é também coreógrafo-assistente do Coreológicas-Recife, estão os intérpretes-criadores Fernanda Lobo, Kizer Carvalho, Mieja Chang, Roberta Cunha e os estagiários Gardênia Coleto e Jadson Mendes. Cenário, figurino e maquiagem foram criados por Wellington Júnior. A luz de Saulo Uchôa e a trilha sonora original de Marcelo Sena completam o espetáculo. A própria Isabel Marques dirige a montagem e assina as coreografias. No processo de construção da obra, ela preparou alguns módulos de formação
para aproximar os bailarinos recifenses da linguagem de Laban, trabalhando em caráter intensivo cinco conceitos labanianos: corpo, peso, tensões espaciais, projeções espaciais e ações corporais. De acordo com a coreógrafa, ““os elementos do método de Laban servem como estruturadores da coreografia, em um formato menos exibidor e mais propositivo, compondo um espetáculo de arte com intereducativa”. face educativa O pensamento pedagógico aliado à estética é apresentado ao público valendo-se da interatividade tão presente na arte contemporânea. E já que se trata de uma obra aberta, os espectadores são convidados a “entrar na dança” e a assumirem o papel de co-autores. Em um primeiro momento, a aprendizagem vem pela observação, reforçando a idéia proMarques:“ver dança é também posta por Marques: dança”. Na segunda parte, todos, aprender dança sejam crianças, jovens, ou adultos, são convidados a participar corporalmente do espetáculo, integrando, assim, a atividade artística à educacional. “A experiência não é obriConcebido no formato diálogo, Coreológicas cria uma ligação nãohierárquica entre palco e platéia
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gatória, mas também não há nenhum pré-requisito para participar da vivência corporal. São movimentos possíveis a todo tipo de corpo”, avisa Paulo Henrique. “Cada espetáculo Coreológicas aborda temas de movimento diferentes, de forma artística, lúdica e prazerosa para públicos com diversas culturas corporais. Coreológicas é um espetáculo verdadeiramente inclusivo, pois convida e agrega, dançando, corpos, idades, etnias, classes e gêneros em um processo de apreciação e criação individual e coletiva”, completa Marques. A coreógrafa já convidou o Acupe para apresentar a versão Recife do projeto em um evento do seu Instituto Caleidos, em São Paulo, no final de junho. Concebido no formato diálogo, Coreológicas cria uma ligação não-hierárquica entre palco e platéia, estabelecendo também uma nova relação entre a dança e a sociedade. Apesar de correr o risco de reduzir-se à prática didática e de ser confundido com aula-espetáculo, o Coreológicas aposta na sensação de pertencimento, já que é fruto da parceria entre criadores e espectadores. Além disso, cada apresentação é única e gera o encontro de vocabulários e sotaques corporais diversos, com infinitas possibilidades de desdobramento. Optando pelo (quase sempre pouco confortável) terreno acidentado das fronteiras, nesse caso entre a arte e a educação, Isabel Marques acredita que só tem a ganhar: “pensar a questão educacional faz a obra crescer e a aproxima mais do público”. Ainda que formação de platéia não seja obrigação nem objetivo principal dos artistas, costuma-se dizer que a obra de arte só se completa no espectador, só
fica pronta (se é que fica) no encontro dos artistas com o público, ou melhor, com os públicos. Por outro lado, os ditos populares e alguns escritores como o poeta Ezra Pound já anunciaram que “o artista é a antena da humanidade”, ou seja, está sempre um passo à frente, assumindo o ofício de captar e adiantar o futuro. Talvez essa questão de múltiplas temporalidades, tão comum nos dias de hoje, possa justificar o hiato persistente entre os espectadores e a dança contemporânea. Talvez seja outro o tempo do artista. Mas como a inquietação também costuma ser característica dos artistas, esse distanciamento torna-se desafio instigante para muitos deles, que, como Isabel Marques, constroem trabalhos que são verdadeiras pontes. Coreológicas foi pensado para diminuir essas distâncias e ir além, incluindo espectadores no elenco e colocando todos em cena para experimentar juntos os movimentos da dança contemporânea. Nos conceitos de Laban se alicerçam as tantas versões do Coreológicas de Isabel Marques, fundamentadas sempre na crença de que a poética da dança surge do encontro interativo desses corpos. Coreológicas, na opinião da própria criadora, é “um convite à dança para todos os corpos”.
SERVIÇO Coreológicas Dias 2, 3, 4, 9, 10 e 11/5, no Teatro Hermilo Borba Filho, às 20h Dia 18/5 no SESC Casa Amarela, às 20h Ingressos: 10,00 reais (inteira) e 5,00 reais (meia)
A paulista Isabel Marques, idealizadora do projeto, esteve no Recife para orientar a versão pernambucana
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
Mucamas nas casas-grandes “Sem escravidão não se explica o desenvolvimento, no Brasil, de uma arte de doce, de uma técnica de confeitaria, de uma estética de mesa, de sobremesa e de tabuleiro tão cheias de complicações e até sutilezas”. Gilberto Freyre, Açúcar.
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Negras cozinheiras vendedoras de angu, aquarela de Debret, 1826
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ram crianças, adultos e velhos. De todas as classes sociais. No engenho Sibiró (Ipojuca), em Pernambuco, chegou a viver uma rainha de Cabinda, Tereza Rainha – que trazia argolas de cobre nos braços e nas pernas, tristes símbolos da realeza perdida. E não apenas aqueles que perdiam lutas, contra outras tribos, eram feitos escravos. Também os capturados por “caçadores de homens” – especializados no comércio de negros. Ainda em África, iam primeiro para entrepostos (feitorias), nas regiões à beira-mar – Angola, Cabo Branco, Costa da Mina (hoje, Benin), Guiné, Ilha de Gete (também chamada Arguim, na costa da atual Mauritânia), Moçambique, Senegal. Ali aguardavam navios europeus que vinham carregados de especiarias e objetos de todo tipo – algodão de Cabo Verde, animais, armas, estanho, latão, mantas do Alentejo, roupas. Era a moeda dessa troca. Vinte e cinco manilhas de latão valia 1 escravo. Um cavalo, 7 deles. Nessas feitorias e nos navios, para evitar rebeliões, familiares nunca ficavam juntos. Nem aqueles que falassem o mesmo dialeto. Nos escuros e malventilados porões de navios “tumbeiros”, permaneciam acorrentados como carga de segunda. Ali faziam suas necessidades e se alimentavam de sobras dos marinheiros – “feijon, farinha de sorgo e um peixe estranho chamado nóxio” (Robert Edgard Conrad, Os Últimos Anos da Escravatura no Brasil,1850). Para beber, pouca água; e, de vez em quando, aguardente. Juntos ficavam “vivos, moribundos e mortos amontoados numa única massa. Alguns desafortunados no mais lamentável estado de varíola, doentes com oftalmia, alguns completamente cegos; outros, esqueletos vivos, arrastando-se com dificuldade, incapazes de suportar o peso de seus copos miseráveis. Mães com crianças pequenas penduradas em seus peitos, incapazes de dar a elas uma gota de alimento... No compartimento inferior, o mau cheiro era insuportável. Parecia inacreditável que seres humanos
sobrevivessem naquela atmosfera” – assim descreveu, em seu diário de bordo, o capitão do navio inglês “Fawn”, que interceptou um desses “tumbeiros” – o “Dois de Fevereiro”. O excesso de “carga” se dava por serem certas as perdas causadas pelas mortes em viagem. Os corpos eram jogados ao mar. A Portugal, os primeiros escravos chegaram por volta de 1441 – capturados por Antão Gonçalves e Nuno Tristão, na região do Rio do Ouro e na Ilha de Arguim. Foram postos a serviço do Infante D. Henrique. Para trabalho doméstico ou na lavoura – Açores, Cabo Verde, Ilha da Madeira. Aos poucos, foram sendo empregados em todo tipo de serviço, segundo a vontade seus donos. E chegaram tantos a Lisboa que Nicolau Clenardo (1606), um humanista flamengo, convidado por D. João III para ensinar em Évora, escreveu – “os escravos pululam por toda parte. Tanto que, quero crer, são em maior número que os portugueses de condição livre”. Mas esse comércio português logo foi ameaçado por ingleses, holandeses e
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A alimentação nas casas-grandes, sempre variada e generosa, era bem diferente daquela das senzalas. Cozinheiras negras preparavam as refeições de patrões e se serviam dos seus restos espanhóis. Com seus asientos (contratos de monopólio comercial), a Coroa de Espanha concedia a determinados súditos o direito exclusivo de fornecer negros às possessões de ultramar. Sendo muitos deles levados para a Ilha de São Domingos (atual República Dominicana), a partir de 1501. Ao Brasil, os primeiros escravos chegaram bem depois daquele dia quente em que por aqui aportou Cabral, a caminho de Calicute. Para os trabalhos de campo, nos primeiros tempos, tentaram usar índios. Mas esses tinham dificuldade em se adaptar àquele duro ofício, tão diferente da vida que levavam. Sem contar surtos de doenças européias, sobretudo sífilis, que lhes dizimavam. “Os portugueses não tem índios amigos que os ajudam porque os destruíram todos”, sentenciou, em fins do século 16, o grande pihay (supremo pajé branco) – assim os nativos chamavam ao padre José de Anchieta. Donatários das capitanias hereditárias, na rude lógica da colonização que então imperava, começaram a trazer mais e mais escravos africanos para seus engenhos de açúcar. Incentivados pela Igreja, que queria converter suas almas impuras; e pela Coroa portuguesa, que precisava equilibrar suas contas. Por eles pagavam altos impostos, de três mil réis por cabeça – equivalentes a 5% do seu valor de mercado. Martin Afonso de Souza (1532), em São Vicente. Pero de Góis (1533), em São Tomé – há mesmo registro de documento, por ele firmado, em que pede ao rei D. João III “dezessete peças de escravos, forros de todos os direitos e frete que soem pagar”. Duarte Coelho (1535), em Pernambuco – que ao mesmo rei pediu “a importação direta da Costa da Guiné de 24 negros a cada ano”, também insistindo na isenção de impostos. Primeiro engenho pernambucano foi o São Salvador, depois conhecido como Engenho Velho de Beberibe, de Jerônimo de Albuquerque – cunhado de Duarte Coelho. Instalado no próprio ano em que por aqui chegaram, 1535. Ficava bem perto da cidade de Olinda, no lugar hoje conhecido como “Forno da Cal”. Aos poucos, passaram, no eito, a tomar lugar dos índios. O número das importações crescia. No ano de 1559, chegaram 120 “peças” – a pedido de D. Catharina de Albuquerque, dona do engenho Santo Antônio da Muribeca (Pernambuco). Em 1570, já havia quase 3 mil deles. No final do século 17, 500 mil. Às senzalas eram destinados também caldo, melaço e açúcar mascavo – de cor escura e cheio de pedras. Esses ingredientes eram pelos escravos misturados à farinha
de mandioca ou de milho, formando uma pasta muito apreciada – por seu gosto primitivo e pelo forte cheiro de álcool. Acrescentando água fria a essa pasta, faziam “jacuba” – por gerações, base da primeira refeição do dia. Também rapadura – caldo da cana bem fervido e bem batido, depois colocado em moldes de madeira até esfriar; tirada da forma, era embrulhada em papel simples ou palha de bananeira. Um alimento de sustança, ainda hoje muito usado pelos sertanejos. Nas senzalas bebiam caldo de cana puro, garapa (mel de engenho com água) e fermentados (sem recorrer ao processo de mastigação usado pelos índios). Sobretudo cachaça. A espuma da primeira fervura do caldo da cana, por não ter à época outra serventia, era colocada em cochos, ao relento, para alimentação dos animais. Esse mosto, por conta do clima quente, fermentava com facilidade. E pouco a pouco, meio por acaso, começaram os escravos a apreciar suas qualidades. Converteu-se em bebida, para eles estranha, a que primeiro chamaram “água ardente”. O Reino tentou proibir seu consumo – e, depois, sua própria fabricação. Que a concorrência diminuía o uso da “bagaceira” (com os tributos daí decorrentes). Em vão. A alimentação nas casas-grandes, sempre variada e generosa, era bem diferente daquela das senzalas. Cozinheiras negras preparavam as refeições de patrões e se serviam dos seus restos. Com as senhoras portuguesas aprenderam a fazer cozidos e feijoadas – misturando, numa mesma panela, carnes e verduras. Aqui também viram, pela primeira vez, a técnica de fritura – misturando carnes com banha de algum animal ou outra gordura (azeite, manteiga, óleo). Diferente da África, onde manteiga era usada apenas para untar o corpo; e azeite, como remédio ou cosmético para o cabelo. Com eles vieram hábitos novos, para os escravos. O uso do sal e do açúcar. Verduras que não conheciam – acelga, alface, berinjela, cenoura, couve, nabo, pepino. O gosto por alho, cebola, cominho, cravo, canela, gengibre. Frutas vindas de Portugal – laranja, lima, limão, maçã, mamão, melão, pêra, uva. Aos poucos, foram se livrando de tabus. Conhecendo outras carnes. Bode e carneiro, que em sua terra eram usados apenas como moeda de troca, deles se aproveitando só leite e pele. Boi, alimento destinado a rituais religiosos, passou a fazer parte de seus pratos. O mesmo com a “galinha do mato”, pelos brancos conhecida como “galinha de Angola” ou “da Guiné”. Seguidores dos cultos orixás sudaneses (candomblés da Bahia, macumbas do Rio de Janeiro, xangôs de Pernambuco) mantiveram MAI 2008 • Continente x
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Caruru 3 Corte 1.200 g de quiabo e passe na máquina de moer carne. 3 Bata no liquidificador 120 g de cebola, 80 g de camarões secos moídos, 40 g de amendoim, 60 g de castanha de caju e ½ colher de chá de gengibre ralado. 3 Refogue tudo em 120 ml de azeite de dendê. 3 Junte 1.200 g de quiabo e 500 ml de caldo de peixe e sal a gosto. 3 Mexa sempre até ficar com consistência pastosa.
o preconceito. Enquanto seguidores de Ogum, mesmo sem entusiasmo, acabaram provando dessa galinha. No começo ainda com desconfiança. Sem gostar delas. No Brasil-colônia permaneceram por muito tempo, galinha e ovo, apenas como alimento revigorante. De gente doente. Só depois passando a freqüentar todas as mesas. Aqui foram também criando pratos novos. Às receitas indígenas e portuguesas, acrescentaram pimenta malagueta, colorau, leite de coco e azeite de dendê. Passaram a “reunir elementos indígenas e portugueses, tornando-os africanos pelo batismo do dendê” (Câmara Cascudo, A cozinha africana no Brasil, 1964). Nasceram, assim, pratos bem nossos. Juntando leite de coco a peixes, crustáceos, arroz e feijão. E como ingrediente de sobremesas – arroz doce, beijo, bolos, quindim, tapioca. Caruru é receita indígena, feita originalmente apenas de ervas socadas com pimenta, no pilão – o caá (folha) ruru (inchada). Com técnica africana usada no obbé. Acrescentaram amendoim, azeite de dendê, camarão seco, peixe, quiabo. Guilherme Piso, médico de Nassau que viveu em Pernambuco de 1638 a 1644, faz referência ao prato – “a hera vulgar cararu, que nasce nos campos e hortos, parece mais um espécie de bredo branco do que vermelho...Come-se esse bredo com legume e cozinha-se em lugar de espinafre”. Dele também fala Gregório de Matos (1693): “Moqueca, petitinga, caruru”. Na Bahia é tradição fazer este prato no dia de São Cosme e São Damião (27 de setembro). Segundo a mesma tradição deve ser, primeiro, servido a sete crianças – que comem com as mãos, sentadas no chão. Só depois, aos adultos. A receita foi levada de volta para África, em cada lugar recebendo nomes diferentes – calulu em Moçambique, Angola, Congo, Cabinda e São Tomé; “funji de peixe”, em Luanda; obbé na Nigéria e Daomé. Vatapá vem de ehba-tápa(“pirão engrossado à maneira dos tapas”). Feito inicialmente pelos negros tapas e nupês e logo adotado pelos iorubanos. É adaptação do “muambo de galinha” e do “quitande de peixe”, por lá feitos com farinha de arroz. Aqui, passaram a usar amendoim (ou castanha de caju), azeite de dendê, camarão fresco e seco, cebola, coentro, gengibre, leite de coco, pão
amolecido, peixe, pimenta malagueta, sal. Acarajé vem de acara-jé (“pão para ser comido”). Nunca freqüentou mesas nobres. Seu lugar foi sempre nos tabuleiros de feira, em mãos de gente simples. É massa de feijão fradinho, temperado com cebola e pimenta, frito no azeite de dendê e depois recheado de camarão frito ou vatapá. O quibebe remonta ao kibeba africano, feito com choco ou peixe cortado, jerimum, inhame. Aqui, só com jerimum e leite de coco. Acabou virando prato típico da semana santa. Moqueca é expressão tupi que significa envolvido, embrulhado. O prato recebeu esse nome porque o peixe, enrolado em folhas, forma um pacotinho. Ainda hoje serve-se, na Bahia, uma “moqueca de folhas”, onde esse peixe vem envolto em folhas de bananeira. Lembra um prato de Angola, o funda-riá-túmbi – pacote de ratos assados embrulhados em folhas. Farofa vem da expressão banto kuvala ofa (“parir morto”ou “preparar frio”), por ser feita com farinha de sorgo e água fria. Depois evoluiu para falofa – substituindo a farinha de sorgo por outra, de mandioca. Lembrando que a farofia portuguesa nada tem a ver com a nossa. É clara de ovo bem batida, em ponto de neve, e cozida no leite – o mesmo que “ovos nevados”. Em troca, deixaram muito para nós. “A escravidão ajudou a formar um Brasil mais forte em todos os campos”, definindo, entre nós, “a economia, a organização social e estrutura de classes, o Estado e o poder político, a própria cultura” (Evaldo Cabral de Mello, O caráter orgânico da escravidão,artigo da Folha de S.Paulo, 12.12.1999). Influenciando artesanato, canto, dança, festas populares, música, religião. Sobretudo a culinária. Com rebeldia e criatividade, fomos misturando ingredientes, temperos, sabores, técnicas e fazeres das três culturas. Transformando receitas tradicionais. Ou criando novas. Mas sempre usando e valorizando produtos da terra. Com esses escravos aprendemos sobretudo a comer com alegria. Que a mesa, para aquela gente, acabava sendo um momento de festa, em meio a tanta dor. Com pratos se misturando a cantos, danças e lembranças das terras distantes, batuques, crenças, zoadas, chocalhos, lamentos e saudades.
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PRIMEIRA EDIÇÃO
Com a chegada da família real portuguesa, em 1808, aporta também o primeiro maquinário gráfico; mas o jornalismo impresso ainda precisava de uma burguesia forte, de uma população mais alfabetizada e de um capitalismo mais desenvolvido para florescer
O
Ricardo Japiassu
nascimento da imprensa no Brasil acontece como por acaso, ditame do destino. Por ordem de Dona Maria I – reinou de 1792 a 1799 – aconteceu em Minas Gerais a Devassa, quando a Inconfidência Mineira foi cruelmente sufocada. Na ocasião, proibiu-se, em todo o território colonial, a impressão de livros e periódicos, bem como a existência de bibliotecas. Em conseqüência, coibia-se o ato de leitura. Particularmente, em Minas Gerais, bibliotecas foram saqueadas e os livros nelas depositados queimados em praça pública. O castigo, do qual participou ativamente a Santa Inquisição, deveria servir de exemplo às demais províncias.
Gravura de H. L’Evêque (1815) retratando a fuga da família real portuguesa, que trouxe para o Brasil a primeira gráfica
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ESPECIAL mente vigiados pelo olhar inquisitorial. O frade Antônio da Arrábida e o padre João Manzoni, auxiliados pelos leigos Carvalho e Melo e José da Silva Lisboa, ocupavam-se das diretrizes a serem seguidas. Mesmo com todo rigor, a oficina elaborou o primeiro periódico da Corte, a Gazeta do Rio de Janeiro, cuja circulação data de 10 de setembro de 1808. Entretanto, esta imprensa que, aos poucos, se alastrava pelos centros urbanos de maior aglomeração, sobretudo os litorâneos, onde havia faculdades de Direito e Medicina, enfrentava reveses piores que os do poder inquisitorial. A ausência do capitalismo, bem como de burguesia florescente, além da perspectiva do alto índice de analfabetismo e da chaga aberta da escravidão, tornavam infensas as atividades jornalísticas. “Não se havia gerado ainda as condições para o aparecimento da imprensa”, opina
o historiador Nélson Werneck Sodré. Vale salientar que o absolutismo da coroa lusitana, ou seja, o reinado dos Bragança, logo seria posto em xeque. Burlava-se o Império e, aos poucos, até atingir a segunda metade do século 19, a imprensa galgou novos horizontes, impondo sua marca diferencial. Há detalhes curiosos, como os concernentes ao Grito do Ipiranga, quando Dom Pedro I proclamou a Independência, a 7 de setembro de 1822. Foi apenas lembrado pelo jornal Revérbero, em sua edição de 17 a 24 de setembro do mesmo ano. De fato, a nobreza transplantada aos trópicos não parece agradar aos súditos indiferentes. Neste período, várias províncias, tais como Pernambuco e Maranhão, possuíam seus veículos de informação. No Recife, saiu da tipografia, a 27 de março de 1821, A Aurora Pernambucana, enquanto em São Luís, O Conciliador do Maranhão, isto
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No entanto, o revés estava por vir, por meio exótico à História. Intentando constituir a Imprensa Régia em Portugal, Dom João VI, na qualidade de Príncipe Regente – reinou de 1792 a 1826 –, adquire na França gráfica destinada à Secretaria de Estrangeiros e da Guerra. Mal chegou ao solo lusitano e o imperador francês, Napoleão Bonaparte, invade o país. Decidida a fugir do jugo inimigo, a Corte parte de Lisboa a 29 de novembro de 1807. Sem qualquer consulta prévia, o Conde da Barca, Antônio de Araújo, instalou no porão do navio Medusa a pequena gráfica, artimanha cujo conhecimento somente chegaria aos ouvidos de Dom João VI ao atracar no Rio de Janeiro. Aqui, principiaram os trabalhos da imprensa, na ex-colônia elevada à categoria de Reino Unido. Prescrevia-se a impressão de documentos e determinações reais. Entretanto, os frutos da tipografia eram aberta-
Prensa utilizada para gravuras em metal
Modos de afiar o buril usado nas gravuras
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a 10 de novembro de 1821. Outra vez Pernambuco se insurge contra o poder centralizador da monarquia. Desta vez, em 1832, o padre Carapuceiro, faz circular na capital O Carapuceiro: “O melhor tipo de jornal literário, e seria difícil não considerar contos algumas de suas sátiras e de seus apólogos”, opina o pesquisador Barbosa Lima Sobrinho. Tudo isto para inserir a História da Imprensa num contexto mais amplo e combativo, que ainda estaria por vir, pelo menos na segunda metade do século 19, quando recrudescem as campanhas republicanas e abolicionistas. Neste sentido, o maior escândalo foi o do roubo das jóias da imperatriz Teresa Cristina, ocorrido a 14 de março de 1882, dentro do Paço de São Cristóvão. “Transformar o trono numa poltrona”, teria comentado o escritor Machado de Assis. Na opinião da historiadora Lília Moritz Schwarcz, este escândalo abalou os alicerces do Segundo Reinado. Pode-se asseverar, entretanto, que a imprensa era livre e cumpria seu papel, apontando idéias, discutindo questões, debatendo ensejos. Houve, porém, uma revanche. Quando da visita da condessa de Barral ao Brasil em 1883, o poeta Apulco de Castro publicou, no pasquim Corsário, o poema picante: Acima, fac-símile da Gazeta do Rio de Janeiro, 1808. Ao lado, exemplar do Correio Braziliense ou Armazém Literário, do mesmo ano
Ao Rei Onde estão tuas virtudes, ó monarca? Onde se acastela o teu saber? Que títulos de bondade são os teus? Respondei ou mostrai! Queremos ver! Não é por certo Boa moral Trair a esposa Com a Barral. O jornal foi empastelado, Apulco de Castro assassinado e o escândalo abafado. O mesmo, porém, não aconteceu com o pasquim O MeMAI 2008 • Continente x
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Ao lado, fac-símile do Diario de Pernambuco,1828. Abaixo, Anayde Beiriz
quetrefe, que publicava excelentes charges, especificamente contra a figura de D. Pedro II. De qualidade impecável, a pena dos irmãos Artur e Aluísio Azevedo, dado o prestígio de que dispunham junto à elite intelectual, não sofreu qualquer revés. Aos poucos, o jornalismo brasileiro começava a tomar novos rumos. Até então, o molde que se utilizava na feitura de textos era o francês, com publicações em forma de crônica, comentadas e opinativas. Somente no ano seguinte, 1883, a Gazeta de Notícias, ao importar moderno parque gráfico dos Estados Unidos, traz, a reboque, o modelo norte-americano de notícias. Mesmo em forma embrionária, procura publicar notícias informativas, seccionadas por temas, subdivididas, por sua vez, em colunas e traços. Enfim, surge, no Brasil, a idéia de lide. Aos poucos, tal modelo difunde-se pelo país. Pelo caráter de modernidade? Ainda não se sabe explicar, pois a cultura bra-
sileira ainda seguiria, muitos anos adiante, os ditames culturais da França. Neste panorama, Pernambuco nunca ficou na retaguarda. Pelo contrário, sempre ativo, tanto que se orgulha do jornal mais antigo em circulação na América Latina, o Diário de Pernambuco. Aqui houve, no século 19, contrariando a história da mulher, imprensa feminina bastante atuante, largamente estudada pelo grupo de trabalho A Mulher na Literatura, coordenado pela romancista Luzilá Gonçalves Ferreira. Durante os muitos anos procedeu à investigação científica.
Mulheres abordavam temas como a
igualdade
entre os sexos e ´ o divorcio
E foram tantas descobertas: mulheres que falavam do amor, da liberdade, da alforria aos escravos, da república. Tome-se como exemplo os periódicos O Tacape e Revista da Cidade. No primeiro, encontra-se, com muito destaque, Alice Azedo Pimenta, que, em cada edição do jornal, dava vazão aos sentimentos de igualdade entre homens e mulheres e, já nos anos de 1928 e 1929, abordava a temática do divórcio, bem como da amizade entre homens e mulheres. De forma mais picante, no limiar do erotismo e de uma liberdade mais intensa e diferenciada, tendo em vista os caprichos do amor, a controversa Anayde Beiriz expunha, na conservadora Revista da Cidade, seu ponto de vista sobre reencontro de amantes, beijos com sabores de pitanga e carícias. Como o inaudito era revelado? A História responde: diante da imprensa escrita, estas mulheres tinham coragem de revelar seus intentos. Em Pernambuco há muito que contar.
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A crise do jornalismo impresso O "vilão" do declínio dos jornais é a internet, especialmente porque as novas gerações estão mais acostumadas a buscar notícias, pesquisas e até o bom lugar para sair na sexta-feira à noite por meio da web Renato Lima MAI 2008 • Continente x
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ESPECIAL para filho. E mesmo os pais estão descobrindo que a internet pode ser mais eficiente para anúncios de classificados ou busca de informações específicas. “Por que checaríamos o valor de fechamento de ontem da nossa ação favorita num jornal quando podemos saber o preço de meia hora atrás na internet? O jornal “guarda-chuva” deve grande parte de seu sucesso à habilidade de oferecer um mosaico de interesses específicos, mas deixou de ser o meio mais eficiente para atrair esses interesses”, escreve o professor Philip Meyer, da Carolina do Norte, no seu livro Os jornais podem desaparecer? (Editora Contexto, 2007, 43,00). Para ele, os jornais não vendem informação, mas influência. Quanto maior este poder, maior o valor de mercado deste jornal. Mas, diante de uma crise de leitores, os De 1998 a 2007, os jornais norte-americanos perderam 4,3 milhões de leitores
jornais optaram por decisões de curto prazo, como rebaixamento de salários, cortes na redação, e comprometeram com isso a qualidade e o fôlego das reportagens. Correm o risco de perder um de seus maiores ativos: servir como pauteiro do restante da mídia, o que dá prestígio. A questão de futuro não seria mais como salvar o jornal, mas como não deixar que a sua morte leve também o bom jornalismo.
Divulgação
A economia mundial vem crescendo aceleradamente desde 2002, com a entrada da Índia e China como grandes consumidores mundiais, e isso animou vários setores industriais e de serviços. Mas há uma indústria em particular que não está nada animada com o seu desempenho e nem vê uma luz no final do túnel com o simples crescimento econômico. Trata-se da veterana mídia impressa, que olha de mãos atadas aos números que mostram que a tiragem está murchando, mesmo em países desenvolvidos e com altos níveis educacionais. O “vilão” do declínio dos jornais é a internet. Especialmente porque as novas gerações estão mais acostumadas a buscar notícias, pesquisas e até o bom lugar para sair na sexta-feira à noite por meio da web. A leitura diária de jornal é um hábito que não está passando de pai
As outras mídias também são impactadas pela internet, mas os jornais de forma mais específica. A TV vai contra-atacar com o sinal digital, que proporcionará melhor definição, interatividade e sinal de qualidade uniforme. As rádios já colocam a sua programação na web e conseguem romper a barreira de alguns quilômetros das ondas FM. Mas não há nada previsto nem imaginável que possa acontecer de revolucionário para a indústria de apurar notícias e imprimi-las no papel. O negócio do jornal é vender notícias para leitores e leitores para anunciantes. E esse modelo está em xeque. Os leitores estão sumindo. Nos Estados Unidos, a circulação de jornal bateu um pico de 62 milhões de exemplares pagos em 1990 e vem caindo desde então. Em 2006, a circulação estava em 53,1 milhões, de acordo com dados da Associação de Jornais da América. De 1998 a 2007, a indústria americana de jornais perdeu 4,3 milhões de leitores adultos. Essa queda também foi acompanhada pelos gastos com publicidade neste meio. Apenas de 2007 para o ano anterior, a queda com a receita publicitária foi de 9,4%. O Jornal do Commercio de Pernambuco, atual líder do Nordeste em tiragem, montou um grupo de trabalho com jornalistas e consultores para pensar o futuro da comunicação num prazo de 10 anos. “Não queremos ser pegos no contrapé. In-
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O problema da indústria de jornais é parecido (mas não tão drástico) com o da indústria de CDs. O produto vendido não deixou de ser
demandado, até pelo contrário, mas o suporte, sim. Tanto notícias quanto músicas são mais consumidas, mas os meios de suporte, as mídias físicas, estão mudando. O jornal de papel e o CD de 12cm viraram coisas estranhas e do passado, uma vez que um aparelho como um notebook, menor do que um jornal de domingo, pode se conectar a quase todas as informações do mundo. E que um ipod, sozinho, guarda mais músicas que toda uma coleção de CDs. Essas mudanças implicam em repensar a forma como esse conteúdo será pago. Até então, o conteúdo era pago junto com o suporte. Um jornal é vendido como um todo, e inclui desde o caderno de cultura, o de economia, aos classificados. Não importa que um leitor queira ler apenas um colunista ou notícias sobre sua cidade. O produto jornal é um pacote. O mesmo se dá com o CD, que para levar o hit da Vanessa da Mata, & Ben Harper, o onipresente Boa sorte, é preciso comprar outro lote de músicas. A The Economist é a mais influente revista de economia e política do mundo e tateia estratégias para esta nova realidade. Primeiro, limitou o
acesso dos artigos para alguns gratuitos (o que sempre chama leitores para o seu site, mas mantém conteúdo exclusivo para assinantes) e outros que só são acessíveis mediante pagamento. E este pagamento pode ser uma assinatura da versão online, uma válida só por uma semana ou um sistema pay-per-view, em que cada artigo tem um preço. Há ainda uma versão para o celular e outra em áudio, lida por apresentadores profissionais ou atores, palavra por palavra. Cada edição em áudio pode ser baixada em MP3 e custa a partir de US$ 8. No celular, no MP3 player ou no computador, há uma The Economist para ser lida (ou ouvida). O que não surpreende, uma vez que esta revista publicou uma matéria ainda em agosto de 2006 com um título provocador e definitivo: “Quem matou os jornais?” É melhor estar preparado antes que chegue o tempo em que comecem a falar em morte das revistas. O desenvolvimento de novas mídias requer adaptação, mas o importante é manter a matéria-prima: jornalismo de credibilidade e importância na sociedade. E isso não depende de um rolo de papel. Zenival
vestimos no Jc Online e no Jc Mobile (notícias no celular) por ser estratégico”, diz Ivanildo Sampaio, diretor de redação do Jornal do Commercio. “Mas quem paga esta conta ainda é o impresso. O jornal um dia pode acabar, mas hoje é um organismo vivo, forte, ainda muito grande em relação às demais mídias”, pondera. Ele prega uma intensificação das campanhas de estímulo à leitura, pois as tiragens no Brasil são muito baixas, com exceção de Porto Alegre. “Os três jornais de Pernambuco, somados, não dão 150 mil exemplares para uma população de 8 milhões de habitantes. Ainda há espaço para crescer”, acredita. Uma das formas de usar a internet a favor do impresso é aumentar a interatividade. O Diario de Pernambuco lançou o Repórter Cidadão, uma forma de jornalismo colaborativo, e o Jornal do Commercio possui o Meu JC. Ambos aproximam leitores, através da internet, com as pautas produzidas pelo impresso.
NÚMEROS
Fonte: Associação Mundial de Jornais (WAN) MAI 2008 • Continente x
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ESPECIAL
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200 A guerrilha das novas mídias anos
Onde a mídia tradicional enxerga baixa nas vendas, as novas reconhecem crescimento de espectadores
Imagens: Divulgação
Bruno Nogueira
O usuário das novas mídias pode tornar-se uma fonte de informações perfeitamente confiável
A
penas o título da obra de José Luiz Braga seria suficiente para entender o contexto do momento que vivemos hoje na comunicação. O livro se chama A sociedade enfrenta sua mídia e traz uma atualização ao debate cada vez mais datado das teorias da comunicação que focam no processo de emissor, mensagem e receptor. Num mundo de grandes conglomerados de mídia, ficamos acostumados à idéia de que tudo termina no público. Mas, na última década, ficou evidente que esse processo é contínuo e cada vez mais conectado. “Superamos já uma percepção de que os usuários dos meios ditos ‘de massa’ seriam homogêneos, passivos e, portanto, facilmente
manipuláveis”, postula Braga; “reconhece-se hoje uma possibilidade de resistência, baseada em mediações culturais extramidiáticas”. O que Braga fala fica mais evidente na internet. Nos últimos cinco anos, os principais endereços que a rede consolidou como fonte de informação têm seu conteúdo inteiro produzido pelo leitor. Seja a enciclopédia colaborativa Wikipedia – que, numa última pesquisa recente, tinha mais verbetes corretos que a Britannica – ou no site de vídeos YouTube, que possui um acervo de memória da televisão brasileira que a Rede Globo nunca disponibilizou. Esta é a principal lógica por trás do decrescente índice econômi-
co das indústrias de publicações. Jornais têm cada vez menos leitores, porque os próprios leitores se tornaram uma fonte de informação muito mais confiável. Algo compreensível a partir do conceito de Economia da Colaboração, proposto pelo norte americano Peter Kollock. Quem colabora mais, com mais conteúdo de qualidade, recebe mais prestígio pelos outros consumidores. Uma prática que era comum numa sociedade baseada na comunicação, mas até então sem a devida evidência, já que essas práticas – os antigos fanzines e rádios piratas – não tinham tanta relevância assim de alcance. A última peça desse quebra-cabeça vem de uma lógica da ciência
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Juntar essas peças é entender as novas mídias com as quais convivemos cada vez mais freqüentemente. Temos agora acesso ao nicho, um conteúdo que é produzido por consumidores como nós, que passa a ser muitas vezes mais relevante que um grande veículo de comunicação. “Já ouvi o melhor elogio que alguém pode ouvir que é ‘pô, como é que eu não pensei nisso antes?’. Isso me envaidece. A maior parte desse retorno vem de pessoas que trabalham com comunicação”, comenta o jornalista carioca Bruno Maia, que comanda o programa de rádio Aleatório, veiculado 100% na internet. “O piloto do programa foi feito em casa e ficou bem bacana”, lembra. Hoje, ele grava nos estúdios da Rede Globo, com o Aleatório sendo transmitido pelo site da rádio Multishow. Bruno não ganha um centavo para fazer o programa, que tem participação passiva do público. “Qualquer coisa que está na internet pode ser link do Aleatório, da Wikipedia a blogs”, conta. “Toco música para passar informação, não como moeda de troca para colecionar CD’s”, provoca. A situação dele é parecida com a de
O leitor passa a ter acesso a um ´ conteudo que é produzido por consumidores como ele um grupo do Recife, o Coquetel Molotov, que circula sua informação em uma revista e programa de rádio. “Sempre seremos leitores”, conta Ana Garcia, parte da equipe. Hoje, na quarta edição, a revista já tem, além de leitores, artistas produzindo o conteúdo impresso por vontade própria, “um deles está
fazendo um top 20 de capas. E isso é bem recompensador para nós”, completa. O lucro agregado aparece como uma das grandes vedetes dessa economia da colaboração. Assim como Bruno conseguiu, com o programa de rádio, entrar no maior sistema de comunicação do país e o Coquetel Molotov consegue articular um festival com atrações que não tocam em rádio. Em Natal (RN), as novas mídias deram sobrevida ao selo DoSol, que transformou o site da gravadora (www.dosol.com.br) num portal de notícias sobre música. “Foi uma maneira de aproximar mais usuários do nosso conteúdo, já que passamos a disponibilizar tudo de Divulgação
da administração. Uma, em específico, que dizia que apenas 20% de uma produção cultural eram responsáveis por 80% de todo consumo de cultura. O índice menor vem daqueles artistas expostos nas vitrines e dos programas de televisão em horário e canal nobres. Ou seja, os 80% restantes da produção não tinham consumo porque simplesmente não tinham espaço para existir. Seja na prateleira de uma loja ou na grade de programação de uma grande rede de televisão. Espaço que, na internet, não é mais um problema. Os nichos passam a ter visibilidade e relevância.
Tatiana Nunes, Ana Garcia e Jamerson de Lima, do Coquetel Molotov MAI 2008 • Continente x
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ESPECIAL graça”, conta o produtor potiguar Anderson Foca. “Antes, tínhamos 50 visitas por dia, hoje temos quase 700, estatisticamente são mais pessoas que baixam nossos discos e assistem aos nossos vídeos”, lista. Voltando a Braga, o pesquisador reconhece uma crítica dentro da própria observação que faz. “Se o ‘receptor’ resiste, isso não significa necessariamente que faça as melhores interpretações ou melhore usos.” Essas novas mídias ainda têm um forte caráter de guerrilha, e se o público descentralizado que conquistam traz relevância para elas, o mercado ainda as observa pelo filtro de um modelo tradicionalista. “O mercado é muito fechado”, conta o escritor Wellington Mello, autor de um livro de poesias que conheceu leitores primeiro através de um blog, “Para poesia de autor novo, então, nem pensar. Preciso publicar meus livros sempre em papel”, completa. Seu próximo livro, Desvirtual provisório, também sairá em versão digital. Apesar das novas mídias terem encontrado legitimidade no público, elas ainda não estão totalmente inseridas dentro das lógicas de mercado. Similar à produção artística, o que se forma é uma cadeia produtiva própria, com características exclusivas do meio independente, muitas vezes ignorando etapas que seriam impossíveis de contornar por um grande publisher. Uma fase que, se ultrapassada, pode influenciar no próprio consumo da cultura que trata, já que esses novos produtores de conteúdo – ou seja, o próprio público – têm uma relação com essa produção que dá nos nervos da indústria. Nunca se consumiu tanto, ao mesmo tempo em que nunca se vendeu tão pouco. E onde a mídia tradicional enxerga baixa nas vendas, as novas reconhecem crescimento de espectadores.
CRÔNICA
´ Os martires das modas
Miguel do Sacramento Lopes Gama (Padre Carapuceiro) Em comemoração aos 200 anos da Imprensa Nacional, a Revista Continente inicia a publicação de uma série de crônicas de autores pernambucanos que, numa linguagem saborosa, mostram a evolução dos costumes no Estado, desde os tempos do Padre Carapuceiro, nos anos de 1800, até a atualidade. Religioso, jornalista e político, Miguel do Sacramento Lopes Gama – também conhecido como Padre Carapuceiro – nasceu em 1791, no Recife. Foi fundador, em 1832, do jornal O Carapuceiro, periódico dedicado às questões sociais e políticas da época. A publicação assumiu importante papel promovendo, através dos textos do seu editor e idealizador, uma crítica aos costumes e hábitos da população da província de Pernambuco. Seus textos ácidos atingiam também a vida política e os poderosos. A crônica a seguir foi publicada em 26 de abril de 1837 e foi mantida a ortografia da época.
É
a moda o senhor mais despótico, o tirano mais voluntário e absoluto que se conhece sobre a face da terra. Nem o bei de Alger, nem o grão-turco, nem o poderosíssimo dalai-lama do Japão (sic) exercem tão desempeçado poderio, como entre os povos civilizados essa soberana que chamamos “moda”. Ela dilata a sua irresistível jurisdição sobre todos os objetos da vida exterior; e não só impera absoluta e categoricamente sobre o vestuário, os adornos, as louçainhas, os trastes, os móveis, como até sobre o físico e moral dos homens. Tanto assim que já ouvi dizer a uma senhorita que hoje já se não usa ser gordo, pelo que era mister que as pessoas que o fossem ou tivessem disposição para isso, se pusessem em rigorosa abstinência, comendo por onças alimentos pouco nutrientes, o que a boa da menina observava à risca, porque dali para tísica bem pouco distava. Mas em troco desta bagatela havia gloriosamente conhecido uma delgadeza espantosa, e uma cintura tão delicada que pedia meças ao mais feiticeiro macaquinho, e podia apostar, medindo-se com qualquer tanajura. E não é isto ser mártir, não da religião, mas das modas, ou do demo, que é quase o mesmo? Se alguém dissesse a essa senhorita que devia jejuar ao menos sexta-feira da Semana Santa em memória da sagrada morte e paixão de Jesus Cristo, nosso redentor, ai, que não posso (diria logo muito expedita) porque padeceu uma gastroenterite, e mais uma hepatite, junto com uma bronquite, além de uma cerebrite, e outras mais queixas todas acabadas em ite, como me tem dito o doutor... e não posso deixar de almoçar. Entretanto, apesar de se queixar de tanta moléstia
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feia (que também é moda andar sempre adoentadazinha, mormente se há em casa professor de partido), atormenta-se de fome para não engordar, e traz constantemente um espartilho, que é pior que um cilício. Uma moça conheço eu que já nem à missa ia por estar grávida. Mas como lhe fossem dizer que havia no Monte uma grande folgança de são Gonçalo, tirou-se da apatia em que estava, arrochou-se bem arrochada com o seu espartilho, e moscou para a função, trepando com grande dificuldade e cansaço a grande ladeira. Mas qual não foi o seu despeito, qual a sua zanguinha, quando viu que ali nem sombra havia de festejo de são Gonçalo! Forte raiva teve a boa da moça, e não menos terá quando vir este seu caso estampado no Carapuceiro, como lho prometi e não faltei. Escrevam porém quanto quiserem os mais abalizados autores de medicina e higiene contra o maldito uso dos espartilhos, façam ver palpavelmente que semelhantes talas podem produzir, como efetivamente têm produzido em muitíssimas senhoras, pneumonias, inflamações de peito, apoplexias e outras moléstias todas terríveis, subam ao púlpito missionários a delamarem contra os espartilhos: é malhar em ferro frio, é tudo perdido, porque as senhoritas antes querem expor-se a morrer tísicas, caquéticas, marasmadas, apópleticas, asfixiadas, etc., do que largarem por mão um atavio da moda, que lhes estreita as cinturas, e sem o qual deixariam de ficar bem pentiparadas e garbosas. E não é isto ser mártir das modas? Mas donde nasce tão desgraçado modo de pensar? Quanto a mim, da triste educação, porque se não infudissem no belo sexo desde os primeiros anos a idéia de que a mulher não vem ao mundo senão para agradar ao homem, e nada mais, elas coitadinhas!, não sacrificariam a própria vida a tão falsa opinião. E que direi dos nossos gamenhos? Como andam espetados e comprimidos! Todo o fato desses tafuis parece não cosido, mas grudado no corpo. A calça é tão justa, retesada e esticada pelos estropes que não ajoelharão, nem que os queimem, e as mangas da casaca tão estreitas e apertadas, que de força todos ficam com os braços em atitude de quem toca rabeca. E alguns com efeito não deixam de o fazer muito sofrivelmente à custa de seu próximo. Entre esses gamenhos, alguns há (eu já vi um, e que feio mono!) que também trazem seus espartilhos. Que miséria! Ou antes que pouca vergonha! Seja porém a moda como for, tudo se pode tolerar, uma vez que ela não ofenda a decência pública e tão apreciável saúde. Em verdade, pouco ou nada importa que hoje seja o apuro da moda andarem os homens com uns
chapeuzinhos tão pequeninos que pouco mais têm de quatro dedos de altura. Já se usaram assim pouco mais ou menos nos tempos de João Fernandes Vieira: já foi moda trazê-los tão alterosos que pareciam barris à cabeça. Hoje tornam os chapeuzinhos de pastor. E o mundo sempre andou nestas voltas, e em viravoltas. Mas sofrer martírio, molestar o corpo, pôr em risco a saúde por amor das modas é com efeito o supra summum da extravagância humana. Além disto, entendendo que certas modas inferentes, ou ainda proveitosas em alguns países, nada convêm a outros em razão da diferença de clima, de costumes, etc. Ultimamente apareceu entre nós uma dança chamada o galope, que não duvido seja muito agradável, conveniente na Inglaterra, por exemplo, e nos dias de inverno, depois de terem as panças bem cheias de roast beef e de barris de cerveja. Pode ser que o tal galope sirva muito bem para excitar neles o calor e a transpiração. Mas galope em Pernambuco, onde vivemos abafados de calma! Galope na zona tórrida! Não importa: é moda, e moda estrangeira, e tanto baste para se estimar e adotar. E lá se atiram rapazes e senhoritas aos pinotes, dando patadas, com que estremecem as salas, porque enfim arremedar um dos andares dos cavalos não pode deixar de ser coisa agradável e muito própria das luzes do século. Acabam eles e elas essas desgraçadas andanças ou correrias batendo a alma pela boca, alagados de suor e mortos de cansaço. E em cima disto concluída a fatal dança, lá vai o bailarino todo derrengado, obsequioso e fátuo oferecer à menina seu par, cálices de licor, de genebra, etc., etiqueta que não se dispensa. E as entranhas da pobrezinha, já bem estimuladas do arrocho do espartilho e da fadiga da dança, são novamente irritadas com a bebida espirituosa. Mas o que se lhe há de fazer, se é moda? Sempre assim, pouco mais ou menos, andou este nosso planeta, no qual nada há estável, nada fixo e permanente, do que já se queixava o grande poeta filósofo Lucrécio, nos seguintes muito bem exprimidos versos: Mutat enim mundi naturam totiastas Ex alioque alius excipereomnia debet Nec mannet ulla sui similis res: omnia migrant; Omnia comutat natura, et vertere cogit Muda o tempo de toda a face do mundo. Nova ordem de coisas sucede forçosamente à primeira. Nada há que sempre permaneça no mesmo estado. Tudo nos atesta as vicissitudes, as revoluções e as metamorfoses contínuas da natureza. MAI 2008 • Continente x
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TRADIÇÕES
Gruta dos sentidos O primeiro disco de Zabé da Loca, Bom todo, é uma viagem rústica e polifônica que faz um mosaico das diversas influências da tocadora e lança um novo selo, o Crioula Records Isabelle Câmara
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ifícil começar um texto sobre Zabé da Loca, pois muitas Zabés cabem nela: a musicista, a guerreira, a mãe, a mulher, a sobrevivente. Sim. De todas, a mais intrigante é aquela que coube numa gruta durante 25 anos. Como pintura rupestre, Isabel Marques da Silva, 84 anos, ficou incrustada numa paisagem de cactos e lajedos porque viu sua casa, literalmente, cair. Isso foi lá pelos idos de 1966, quando ficou viúva e com três filhos. Com taipa na mão, embrenhou-se numa caverna, rejuntou suas paredes e talhou ali uma morada para seu corpo e sua música. Um tanto inóspita é certo, mas capaz de acolher seu mundo paralelo. Quem poderia imaginar algo assim? Pois, Zabé da Loca é mestra na arte de produzir imagens insólitas.
Tanto que hoje, mesmo depois de alcançar notoriedade, ser celebrada como a “Rainha do Pife” e ganhar uma casa do Incra, vira e mexe foge para o seu mundo de rocha e taipa. Sua simplicidade e pureza chegam a ser desconcertantes. Zabé nasceu em Santa Catarina, mas foi parar em Buíque, Pernambuco, ainda menina. Aprendeu a tirar o som da taboca com o irmão, Aristides, aos sete anos. Ele tocava numa bandinha cabaçal e não se sabe como ousou dar um pífano a irmã, pois segundo pesquisadores, a flauta vertical era um símbolo de masculinidade, sendo proibida para mulheres. Só posteriormente é que as flautas verticais, desencantadas dos antigos mistérios, transformaram-se nas atuais flautas ou pifes transversais. Encanto para os nossos sentidos.
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Fotos: Gustavo Moura/Divulgação
Zabé da Loca é celebrada como a “Rainha do Pife”
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TRADIÇÕES Mas foi na Paraíba, ao se casar, que ela construiu sua história de vida e fez seu reduto poético-musical, sobretudo quando mergulhou nas entranhas da terra, onde viveu exato meio quarto de século. Gravou pela primeira vez nos anos 90, quando foi descoberta pela mídia e resolveu sair da caverna – mas a caverna permanece dentro dela. O eixo ParaíbaPernambuco ficou na poeira em 2004, quando participou do projeto de shows Da idade do mundo, em Brasília, idealizado pela produtora Lu Araújo. Zabé é hoje um patrimônio vivo da cultura popular e seu som desafia o tempo, pois é a ausência dele, e de espaço, que faz sua música agradar tanto aos tradicionalistas como aos jovens que costumam lotar as suas apresentações. Reverenciada, a pifanista tem visto seu trabalho invadir os sentidos e os discos de outros músicos, como o percussionista argentino Ramiro Mussoto e o grupo paraibano Cabruêra, que colocou uma foto dos pés de Zabé na capa do seu primeiro disco.
Pequenina, sempre com um cigarrinho de fumo de rolo, parece inacreditável que o corpo franzino de Zabé possa produzir sons tão exuberantes, mas são eles que marcam o seu primeiro disco, Bom todo (frase que ela sempre profere). Aliás, o álbum faz, desde a capa, um anúncio do que o ouvinte vai encontrar: impossível não se tocar pelas imagens cruas, porém belas e sutis, que ele reproduz. Este é o primeiro disco no qual a artista é protagonista de sua própria obra. Os outros foram sempre gravados como participações. O álbum faz uma bela reconhecença de uma carreira construída de maneira ingênua e traz um pife para lá de “muderno”: faz dialogar reminiscências de antigas práticas sagradas e rituais dos povos indígenas com sopros, cordas, percussão e experimentações eletrônicas, como um estranho loop numa risada da artista: nada mais manguebeat – ou tropicalista. A viagem rústica e polifônica faz um mosaico das diversas influências da tocadora. As marcações agalopadas definem marchinhas, xotes, xaxados, baiões e cirandas que mais parecem brincar com as ondulações sonoras dos sopros de Zabé. Saí de casa, por exemplo, é uma ciranda com participação especial da voz e composição de Escurinho. Outra participação notável é a da rabeca de Maciel Salú na faixa Pifada louca, cujas cordas entrelaçam os sopros de Zabé e Beiçola, músico de mãos tortas, verdadeiro “Garrincha das mãos”. Aliás, o mais engraçado é que na banda cabaçal, que também se faz presente aqui, quem desenha o ritmo é a zabumba, mas nesse caso Zabé da Loca parece solar sempre em tom maior e vai delineando as melodias. O disco ainda traz outras surpresas: Santa Catarina aparece na paisagem musical na faixa de mesmo nome em climas fantasmagóricos com a flauta de Carlos Malta, que também assina a direção artística e musical do projeto. O delicioso xote Sala de reboco, do imortal Seu Lua, aparece Por volta de 1966, Zabé embrenhou-se numa caverna, rejuntou suas paredes e talhou ali uma morada para seu corpo, sua música e seus filhos
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O irmão de Zabé da Loca foi ousado ao lhe dar um pífano, que na época era uma flauta vertical, símbolo de masculinidade, proibido para as mulheres
numa recriação para lá de especial; a cadência provoca no corpo o desejo de ora sair improvisando coreografias, ora pinotando. Mas o maior encantamento fica por conta dos arranjos dados ao Hino nacional. Isso mesmo. Zabé conseguiu tirar a austeridade da música e dar-lhe uma cor completamente diferente: não dá ficar de pé, parado nem com a mão no peito. Com todo respeito aos símbolos da pátria, o desejo maior é dançar. Ela sempre foi uma adoradora das sonoridades expandidas pelas vozes femininas. Desde 1992 que a produtora Lu Araújo dedica sua vida à música. Primeiro, com uma loja de LPs independentes, depois tornou-se produtora e curadora musical de diversos e importantes eventos através da Lume Arte e Marketing Cultural, empresa que criou e que carrega sua própria personalidade, na perspectiva de fazer circular a sensacional música brasileira que não encontra espaço no mercado. Lu Araújo é quase uma “máquina” cultural. Firme nos seus propósitos e ideais, seus projetos estão voltados para o fomento, divulgação e afirmação da produção artística e da identidade brasileira. Já são 600 produções, entre elas a alumbrante Mostra Internacional de Música em Olinda – MIMO que, seguindo a tradição de cidades européias, dessacraliza as igrejas de Olinda para execução da músi-
ca erudita gratuitamente; o Encantadeiras, que levou aos palcos lavadeiras, agricultoras, alimentadoras de alma, artesãs, cantoras de feira e cegas pedintes – representantes de hábitos milenares que dia a dia fazem os cânticos de trabalho em nosso país; e o A Bossa B, que cuidou de transformar olhares sobre a música tratada como “brega” ou de apelo popular, colocando duplas aparentemente híbridas num mesmo palco, como Marcio Greyck e Zeca Baleiro; Odair José e MV Bill; Wando e Rita Ribeiro. Agora a produtora lança o selo Crioula Records com a brava intenção de gravar CDs, divulgar e distribuir no mundo as músicas genuinamente brasileiras, que demonstram a grandiosidade e diversidade da nossa cultura. O selo fonográfico Crioula Records estréia em grande estilo. O primeiro CD, Bom todo, de Zabé da Loca, conta com o apoio do Programa Petrobras Cultural e abre a possibilidade do Brasil se reconhecer em sonoridades escondidas em recantos inimagináveis, mostrando que a música de qualidade não reconhece engessaBom todo mento em estilos nem Zabé da Loca barreiras de geração, Crioula Records geografia ou tempo. Ela 27,00 reais simplesmente acontece e é universal. MAI 2008 • Continente x
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metrópole
Marcella Sampaio
No creo en brujas, pero...
A
inteligentzia do planeta, é fato que nenhum astrólogo final de contas, somos ou não místicos? O considerado sério afirmou poder prever o porvir. Todos primeiro impulso da racionalidade construdizem que a astrologia é um instrumento de autoconheída a partir da aquisição de conhecimento é cimento, nunca um exercício de futurologia. E, mesmo negar todos os movimentos que não estejam sabendo disso, nós, pessoas esclarecidas, corremos para enquadrados neste universo. A princípio, só acreditaler aquelas linhazinhas no jornal para saber como vai ser mos naquilo que é palpável, está fisicamente disponível o nosso dia. É mais forte que a razão que orienta o nosso ou passível de verificação empírica. Porém, ah, porém... cotidiano e, afinal, mal não faz. O plano da metafísica nunca deixou de participar da A internet é pródiga em oferecer consultas a cartas composição das personalidades, sejam elas individuais do tarô, runas, leitura de mãos (!) etc. Basta entrar em ou coletivas e não há, necessariamente, uma ligação enum portal de qualquer um dos provedores de acesso tre a condição sócio-econômica e o misticismo de um mais conhecidos para encontrar um link que remete a lugar ou de um grupo social. Na sociedade urbana braestas atividades, geralmente disponibilizado com destasileira, por exemplo, a crença nas rezas das benzedeiras que na página. Interessante é perceber que o avanço tecdo interior foi substituída pelo feng shui, pelos florais, nológico-científico e as soluções contemporâneas para pelo reiki... São práticas contemporâneas, ainda que alquestões como isolamento, desamparo e inadequação gumas tenham origem distante no tempo, que só estão social não inibe as práticas citadas, pelo contrário. As disponíveis para quem pode gastar com elas. Ou seja, a pessoas tendem a se apoiar no místico quando a realiclasse que as consome é, dentro da pirâmide social nadade material/racional não consegue responder a suas cional, privilegiada, o que pressupõe níveis de instrução necessidades e desejos (ou seja, sempre, desde tempos e capacidade crítica elevados. É preconceito achar que imemoriais). só quem não teve acesso à educação formal se cerca de Hoje, já se sabe que a cultura do consumo não dá misticismo para pautar ações e decisões. A maioria desconta de absorver as idiossincrasias da alma humana sas pessoas nem pode se dar a esse luxo. – pular de um extremo a outro é tão natural quanto é Todos esses ritos, digamos assim, não conseguem, no difícil admitir que as frustrações e tristezas fazem fim das contas, comprovar cientificamente os objetiparte da vida, assim como as alegrias e convos a que se propõem, embora os que proquistas. O ideal de felicidade contemmovem estas práticas garantam a sua porâneo é hedonista, por isso falso, eficácia, utilizando para isso depoigerador de insatisfações sem somentos dos seus adeptos. Até que lução. Não viveremos em gozo ponto a sugestão interfere nos eterno, e nem por isso sereresultados apregoados, isso mos infelizes. Quem não provavelmente nunca consetiver essa compreensão, seja guiremos saber. Os meios de por imaturidade ou qualcomunicação nacionais, por quer outro motivo, está a exemplo, destinam, desde um passo de jogar pelo ralo meados dos anos 50, época o equilíbrio que permite um do início da formatação do trânsito pela vida próximo do atual modelo de jornalismo ideal: aquele que ajuda a idenpraticado no Brasil, um espaço tificar a exata hora de solucionar para a publicação de previsões o problema, e quando a solução de futuro baseadas na astrologia. não for possível, simplesmente Mesmo sendo o estudo dos astros ignorá-lo e seguir adiante. respeitado por grande parte da Astrologia, instrumento de autoconhecimento 96 Continente • MAI 2008
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