Bolos, literatura e cena musical
Leo Caldas
aos leitores
F
az algum tempo, a Unesco sugeriu a todos os países que passassem a mapear, além dos seus patrimônios materiais, os patrimônios vivos e os imateriais. Seguindo essa recomendação, dois símbolos representativos da nossa cultura receberam, em abril, o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado de Pernambuco. O primeiro é feito de manteiga, farinha de trigo, açúcar, ovos e goiabada. O segundo, de coco ralado, manteiga, leite de coco, gemas e massa de mandioca. Ao consagrar o bolo-de-rolo e o bolo Souza Leão com tal status, reconhecemos que a cultura de um lugar não é formada apenas pela solidez das construções, mas também pela culinária, pelos cantos, danças, tradições lingüísticas... Na cozinha dos engenhos, as receitas portuguesas se uniram às tradições indígenas e negras, num processo de miscigenação que terminou gerando pratos como o próprio bolo-de-rolo – adaptação da receita do “colchão de noiva” português, substituindo as amêndoas por doce de goiaba, com camadas enroladas cada vez mais finas – e o Souza Leão, “um ato de rebeldia gastronômica”, no qual os ingredientes europeus também foram substituídos pelos nordestinos. Nesta edição da Continente, dedicamos a matéria de capa aos bolos “premiados”, buscando suas origens e relacionando-os ao processo de formação da culinária local até os dias de hoje. Ao que tudo indica, essa mesma cozinha pernambucana continua a ser reinventada atualmente. Compondo o rico perfil culinário local, estão chefes distintos que, cada um a sua maneira, contribuem para que a “evolução” da gastronomia do Estado siga em frente. A tradição, por exemplo, está presente na cozinha do Bar do Geraldo, cujo prato principal é a galinha de cabidela, a fusão com o exótico é a principal característica dos pratos de chefs como César Santos e Douglas Van Der Ley. Na matéria especial desta edição, de alto sabor literário, o jornalista Daniel Piza analisa as semelhanças e diferenças entre os gênios de Machado de Assis e Guimarães Rosa, talvez os dois maiores ícones da Literatura Brasileira. Complementando o tema, o escritor e cineasta Fernando Monteiro avalia as adaptações das obras literárias desses escritores para a TV e o cinema. Outros temas para degustação dos leitores são as revelações de bastidores sobre a cena musical recifense pelo produtor Paulo André, responsável pelo Abril pro Rock e pela presença no mercado internacional da banda Chico Science & Nação Zumbi e a estréia de Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado, com o espetáculo Mercadorias & Futuro.
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O bolo Souza Leão (ao fundo) e o bolo-de-rolo ganharam o status de patrimônio
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O Cariri nas lentes de Dada Petrole
ção
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Rep
Dada Petrole
Os 70 anos do Superman
André Frossat/Divulgação
Leo Caldas
A arte da culinária pernambucana
CONVERSA 4 >> Paulo André e os bastidores da cena musical do Recife BALAIO 12 >> Cussy e Câncio na feijoada de Villa-Lobos
MÚSICA 56 >> José Negrin e o metal neoclássico brasileiro 59 >> O novo disco do Vates & Viola 62 >> Eliakin Rufino, poeta e músico de Roraima 64 >> Agenda Música
CApA 14 >> Bolo-de-rolo e Souza Leão viram patrimônios 18 >> Livro faz resgate sentimental da culinária do Estado 20 >> Tradição, fusão com o exótico e cozinha experimental 24 >> Para comer Pernambuco na televisão
tRADIÇÕES 66 >> Maracatu Estrela de Ouro registrado em livro
LItERAtuRA 34 >> Agenda Livros
HIStÓRIA 72 >> O peso do ouro brasileiro na Revolução Industrial
ESpECIAL 36 >> Rosa e Machado: dois gigantes frente a frente 40 >> Felizes e infelizes adaptações para o cinema e a TV
FOtO 74 >> Ensaio foca os vários aspectos do Cariri
ARtES 44 >> Montez Magno, um artista múltiplo QuADRINHOS 54 >> Superman carrega o peso dos 70 anos
AgENDA.COM 70 >> Gilberto Gil embarca no mundo digital
CINEMA 82 >> Filme expõe tensões entre críticos e cineastas 86 >> Zé Sozinho, o homem que é um cinema ambulante CÊNICAS 88 >> Lirinha retorna à sua origem de poeta, no teatro 92 >> A nova montagem de Trupizupe, de Bráulio Tavares CRÔNICAS 94 >> Manuel Bandeira relativiza o provincianismo
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Maracatu registrado em livro
COLuNAS SABORES 26 >> Os saberes do São João ENtRELINHAS 33 >> As nádegas de Simone de Beauvoir
Reprodução
A poética de Montez Magno
Flávio Lamenha
Divulgação
Divulgação
Lirinha chega ao teatro
Rosa e Machado no cinema e na TV
tRADuZIR-SE 52 >> Rompendo os limites entre o viver e o criar MEtRÓpOLE 96 >> Homens, mulheres e auto-ajuda
ACESSE NOSSO ENDEREÇO ELEtRÔNICO www.continentemulticultural.com.br
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conversa
Paulo André Pires O Recife é a maior casa de shows abertos do país. Ninguém mais quer pagar pra ver show no Recife. O APR teve uma queda de público, mas isso é um problema da cidade, e não do Abril Pro Rock
Rafael Gomes
No olho do furacão musical do Recife
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Criador do Abril Pro Rock e exempresário da banda Chico Science & Nação Zumbi conta sua trajetória, que se confunde com a própria história da chamada “cena musical recifense” ENTREVISTA A Homero Fonseca, José Teles e Thiago Lins
A
os 41 anos, o empresário e produtor musical Paulo André Pires, nascido no Recife, neto de político do Sertão do Pajeú, é uma figura obrigatória quando se trata da chamada “cena musical re cifense”, ou seja, das bandas contemporâneas da cidade. Produtor do Abril Pro Rock, já em sua 15ª edição, e responsável pela penetração no mercado internacional de música pop da banda Chico Science & Nação Zumbi, Paulo André conversou durante duas horas e meia com a equipe da Continente em meados de maio. Na conversa, na desarrumada sede de sua empresa, a Astronave, na Boa Vista, em meio a cartazes de shows, gravuras, miniaturas de carros, livros, computador e muitos, milhares de CDs, ele contou sua trajetória desde o início, em 1988, quando vendeu um Fusca e foi passar uma tempora da na Califórnia, mergulhando por inteiro no universo do rock em suas mais diversas manifestações, e, ao voltar para o Recife, disposto a en frentar a “pasmaceira reinante”, abriu uma loja de discos, a Rock Xpress, passando a se envolver com as bandas locais de rock. Daí a criar o festival anual e participar ativamente de tudo o que terminou por colocar o Re cife no mapa musical brasileiro e internacional foi um passo. A seguir, um resumo dos principais tópicos da conversa que, além de revelações interessantes sobre os bastidores desse mundo que encanta os jovens (e até não tãojovens assim), traz opiniões fortes e articuladas sobre o panorama da música atual na cidade.
A idéia do Abril Pro Rock Desde 1989 eu tinha uma loja de discos, a Rock Xpress, e acompanhava cada show no Recife. Em 1992, vi a hora de reunir todo mundo num festival. Fui desencorajado por amigos e família. Meus amigos diziam que não ia dar ninguém, porque não tinha banda gringa. Eu respondia duas coisas: Não tinha dinheiro para trazer banda de fora, e acreditava na cena daqui. E minha mãe? Falava: “Você não tem um pau pra bater num cachorro! Se der prejuízo, vai sobrar pra quem?” As mães sempre querem o nosso bem, mas nem sempre visualizam as mesmas coisas...
Chico Science e Nação Zumbi Estávamos dentro da van, a caminho de um show no grande Recife. Chi co disse que não dava mais conta, que estava precisando de um empre sário. Eu disse: “Já topei. Quero continuar produzindo o Abril Pro Rock, tenho a idéia de fazer um selo, mas me dedico 100% a vocês, a partir de hoje”. Aí foram sucessivas reuniões. A Sony (gravadora) mandou um monte de empresários para conversar comigo, achavamme muito novo, sem experiência mesmo. O CSNZ tinha acabado de voltar de uma turnê, que começou logo depois do primeiro APR. JUN 2008 • Continente x
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Da lama ao caos, a princípio, foi uma decepção absurda para a Sony. Uma parte da gravadora achava que o mangue era o novo axé. Eles não entenderam nada
Decepção absurda Depois de lançado o primeiro CD, houve cobrança. Da lama ao caos, a princípio, foi uma decepção absurda para a Sony. Uma parte da gravado ra achava que o mangue era o novo axé. Eles não entenderam nada. E ser colega de gravadora de Skank, de Gabriel O Pensador, gerou uma expectativa de vendas que não se cumpriu.
Vôo internacional Depois do APR, embarcamos para divulgar o disco: Faustão, Jô Soares, Programa Livre... Tinha a Sony por trás, então conseguimos fazer tudo o que tínhamos direito na TV. A volta dessa viagem foi para fazer um fes tival de world music em Salvador, onde tocamos com The Wailers e um axé que não lembro. Nesse show havia três críticos americanos, que chegaram encantados ao camarim. Aí, vi o puta potencial que a banda tinha no exterior. No outro dia, de manhã, demos entrevista, que tra duzi para Chico. Sean Barlow, do selo Afropop, me deu um guia, Afropop Worldwide Listeners Guide, com o endereço dos principais clubes e rádios voltados para a world music. Xeroquei algumas matérias que já ti nham saído no exterior sobre a ban da e mandei para todos os endereços do guia. Tinha matéria até do Japão. As respostas foram mais rápidas do que eu imaginava. Comecei, no se gundo semestre de 1994, a armar a turnê a que chamamos de From mud to chaos world tour 95. Então, Alice, gerente do selo Chaos (da Sony), virou para mim e disse: “Isso é in teressante. Mas precisamos vender disco no Brasil”. O país não tinha en
tendido a música de Chico. A Sony me desestimulou. Depois, expliquei para Alice que também queria ter vendido muito mais. Sabia o que era levar uma banda, com 11 pessoas, viajando, mas não ia perder a opor tunidade de tocar nos festivais de Montreux, do Central Park...
No Central Park Bill Bragin, que me convidou para o festival no Central Park (1995), que ria, a princípio, juntar CSNZ ou com uma banda americana de rock alter nativo, o que estava começando a es tourar naquela época, ou com uma banda de hip-hop, outro gênero em ascensão. Ele me contou depois que estava batalhando para trazer Gil, que estava pedindo muito dinheiro. Mas, quando Gil sacou a programa ção com Chico e Nação, acabou to pando, com a condição de tocar no mesmo dia que CSNZ. Foi um negó cio fora do comum – Gil, encantado durante o show, pegou Chico três vezes para levar para a platéia, estava lotado... De lá, fomos para a Europa.
A invasão da Timbalada Chico e Nação tocaram em Mon treux, numa noite chamada Ska, Jump and Crazy Night. O show já ca minhava para o final, saí da platéia para os bastidores, para ver se eles permitiam bis ou não. Então, lá es tavam 30 caras da Timbalada, sem camisa, todos pintados de branco, feito filme de Tarzan, de instrumen tos em punho. Aí, Daniel Rodrigues, empresário, disse que tinha trazido o grupo para participar do show. Eu disse que não tinha nada combinado, mas ele insistiu. Pensei: “Pô, estou na frente de 30 caras...”. Entrei no palco,
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CSNZ na Torre Eiffel, turnê européia de 1995
por trás do amplificador de guitarra, e gritei: “Lúcio!” (Maia, guitarrista), tem 30 caras da Timbalada aí para entrar no palco”. Lúcio falou: “Não, não!” Respondi que eu não podia fa zer nada e pedi para avisar a Chico. Quando vi, os caras entraram, não tinha como segurar. Ficou aquela si tuação constrangedora, a Nação deu uma broxada e os caras já entraram (tenta reproduzir o som dos tambo res) tatupatupatatupatupa... Chico ficou fazendo muganga, ele era bom nisso...Mas ninguém sabia o que to car, foi extremamente constrangedor.
Em casa de ferreiro... A gente tinha conseguido as passa gens no governo Arraes. Não através de Ariano, mas do secretário adjunto, Pedro Mendes. A turnê só foi viável por causa disso. Já era 1995, o Recife tinha virado referência. O governo mandou uma jornalista daqui, Regi na Lima, que morava em Washing ton, gravar com a banda em Nova York, para exibir um especial na TV Pernambuco. O show era aberto ao público, mas os portões demo raram a ser abertos... E quando fo ram, parecia a corrida do ouro. Uma multidão correndo, e foi nessa hora que começaram a filmar. Quando o especial foi transmitido, caiu a ficha dos pernambucanos. Tinha muita gente que dizia: “Aquele movimen
tozinho, o que é isso?” Ouvi muitos comentários ruins. Quando voltei, em agosto, fiquei sabendo que o programa havia sido reprisado, que muita gente tinha ligado querendo ver de novo.
Recifolia, não No terceiro ano do Recifolia (extinto carnaval fora de época), havia cinco blocos querendo Chico e Nação a qualquer preço. Eu não queria nem receber esses caras, e eles não acre ditavam. Teve um que mandou a secretária ligar, dizendo assim: “Sou fulana, secretária de beltrano, diretor do Bloco do Turista, um bloco dife rente. As atrações são para o turista, queremos valorizar o pessoal da ter ra... Um discurso descarado. Nin guém queria antes. Aí voltamos de Nova York, todo mundo veio com esse discurso. Sabíamos que o públi co do Recifolia não estava preparado para ver CSNZ.
Mercado internacional No final do Heitmatklange (festival em Berlim), o Borkowsky, produtor, faloume sobre a segunda edição da Womex (conferência internacional de música), em Bruxelas. Fui com 175 CDs de CSNZ. Era o único bra sileiro lá. Passei a conhecer os pro dutores e a circular no mercado da
world music. Tínhamos rompido a barreira da música brasileira e dos festivais de verão, começando a to car em festivais de rock. Estávamos nos inserindo no pop americano. E, na Europa, estávamos tocando com as bandas do momento. Depois dos shows, tinha gente que chegava e vibrava: Yeah, man! Yeah, man! A língua não era mais uma barreira. Em 1997, já tínhamos a terceira turnê agendada, com mais países. Aí Chico faleceu, no carnaval. A idéia era levar as duas carreiras pa ralelamente: a carreira no Brasil e no exterior. Eu sabia que ia ser difí cil, que as coisas não iam mudar tão cedo. Passados 15 anos, não muda ram mesmo. As rádios continuam a ignorar a música daqui.
Chico Science e Ariano Foi em 1995. No fundo, acho que Ariano foi infeliz na declaração dele. Chegou jornalista dizendo para ele que tinha uma coisa legal acontecen do no Recife, e ele respondeu que no governo dele a prioridade era a cul tura popular. Aí começaram a botar lenha na fogueira. Lembro até d'O Globo ter dado meia página, foto de Chico dum lado e Ariano do outro. Mas Chico era muito sensato. Não queria falar sobre o assunto. Aliás, isso era enquanto Fred 04, na pri meira grande entrevista que ele deu JUN 2008 • Continente x
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para a revista Bizz, afirmou: “Nós somos de uma geração que veio pra bater em Caetano, Gil, Alceu..." Era a veia punk dele. Chico era mais político. Só quis falar quando veio Ivana Moura, do Diario de Pernambuco, querendo fazer uma matéria com outra ênfase: pôr um ponto final na história toda.(A idéia da matéria foi do então editorchefe do Diario, Ivan Maurício). Ela sugeriu um encontro com Chico e Ariano. Chico topou, contanto que eu fosse. Chegamos à Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artís tico de Pernambuco,) esperamos uns 10 minutos. Por algum motivo, aquele cara que era vizinho de Chi co, Raimundo Campos, que queria continuar a polêmica, apareceu na hora. Ariano abriu a porta do gabi nete, cumprimentou todo mundo e fomos entrando. Raimundo veio no vácuo e o próprio Ariano disse: “Não, não, não!” Barrou Raimundo, que não tinha o que fazer ali. Quem começou a conversa foi Ariano, e ele me deixou muito surpreso. Tinha uns recortes de jornais, que guarda va em pastas, feito eu ... Aí começou a contar uma história de quando era menino e viu um filme com os ingle ses botando pra lascar nos indianos. Em 1995, com Ozzy: 10 anos antes, o astro tinha dito que o Brasil fedia
E ele torcia pelos ingleses. Depois de anos foi que Ariano entendeu o mal que os ingleses estavam fazendo aos indianos. Foi quando percebeu que tinha que defender a própria cultura, protegêla de invasões. Para comple tar, tem as pastas. Ele pegou uma de 1985, época do show de Ozzy Os bourne, no Rock in Rio. Ozzy disse que o Brasil era o pior lugar que ele já tinha visitado, que fedia e tudo. Ariano disse: “Chico, como pode um homem desses vir falar do meu Brasil?” Ele deu outros exemplos, mas só lembro desse. A matéria saiu, e foi como um ponto final naquilo tudo.
Rádio, jabá etc. Contextualizo dois Pernambucos: o do atraso e o da vanguarda. O do atraso se chama Rádio Universitária FM. Por que a Universitária? Porque não adianta falar das comerciais. O jabá está institucionalizado no Brasil. Tem até nota fiscal de promoção nas rádios. Não adianta chamar as rá dios comerciais para um debate. Eles vão dizer que a música daqui não vende. A última vez que alguém me disse isso, respondi: “Você já vendeu alguma coisa para a Turquia? Para a Arquivo Paulo André
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No terceiro ano do Recifolia, tinha cinco blocos querendo Chico e Nação a qualquer preço. Eu não queria nem receber esses caras. Antes de NY ninguém queria
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Falando para o mundo: coletânea com a música pernambucana e cartaz de show da NZ em Londres
Eslovênia? Para a Macedônia, para não falar de países mais óbvios? Ele respondeu: “Não. Aí eu disse: “Pois eu já”. Aí esse cara falou que eu ti nha entendido o que ele quis dizer. Respondi: “Entendi. Você quer dizer que essa música não é tão popular nem respeitada como deveria ser aqui. Mas não venha me dizer que não vende. Porque eu tenho a habi lidade de vender isso em euro, que vale quase três vezes nosso dinhei ro”. Pegue 70% das listas de melhores discos do ano no Brasil. Tem dois pernambucanos de reputação inter nacional: a Nação Zumbi e Siba e a Fuloresta. Eles têm até gravadora lá fora. Em julho, Siba vai para a quarta turnê européia. Nenhum desses ar tistas toca em nenhuma rádio per nambucana. Então, que lugar é esse em que a gente vive? A música que leva o nome do nosso Estado para o mundo é ignorada!
Dois sonhos Tenho dois sonhos profissionais que são realistas. Meu maior sonho pro fissional é dirigir uma rádio. Chamar uma equipe de jornalismo, artistas, universitários... O outro sonho é ter uma casa noturna. Quero fazer isso, e continuar com meu trabalho de sempre, as viagens... Em cada lugar que chego, vejo como funcionam
os bastidores, o bar, o camarim, por onde entram os fornecedores, quem toca...Tenho uma relação de 20 casas noturnas fechadas no Reci fe em três anos e meio. No topo dos motivos deles terem fechado, está o fato de terem ignorado a produção pernambucana, que vai do choro à música contemporânea. Eles só abriam para os amigos deles, igno ravam o público que quer uma coisa autoral. Ninguém ia para essas casas pelo conteúdo, e, sim, pela festa. Se você não tiver conteúdo, não fideliza o público.
Mercado e shows gratuitos A cada dia caem as vendas de CDs. A nova geração só escuta música no mp3 player, no celular... A gente não tem mercado interno, nem de shows. No grande Recife, entre o natal e o carnaval, foram mil apresentações gratuitas. O Recife é a maior casa de shows abertos do país. Isso vai de Fa tboy Slim a Manu Chao, de Marisa Monte a Milton Nascimento. Nin guém mais quer pagar para ver show no Recife. O APR teve uma queda de público, mas isso é um problema da cidade, e não do Abril Pro Rock..
Brasil, Brasil
A rede BBC fez um documentário sobre a música brasileira, chamado
Brasil, Brasil. A radialista Jody Gillet, que já tinha divulgado Otto e Nação, no Reino Unido, me ligou para di zer que a BBC estava vindo gravar, e ia ignorar Pernambuco. Então ela sugeriu que eu mandasse um pacote para lá. Fiz isso na hora. Cinco dias depois, a organizadora da BBC, Lau ra, me liga dizendo que recebeu o pacote e que já estava mudando os planos. Chegaram aqui no sábado de carnaval (de 2007) e foram embo ra na sexta, depois do carnaval. Em setembro, é a Rádio BBC que vem fazer um mapeamento da música pernambucana tradicional.
Viver para ver Quando eu estava produzindo o primeiro Abril Pro Rock, no Circo Maluco Beleza (uma casa de shows do Recife, que já fechou as portas), 80% dos telefonemas lá para o Cir co era para saber do Recifolia, que surgiu no mesmo ano do APR. Só os outros 20% queriam saber do Abril Pro Rock, às vésperas de acontecer. E o Recifolia era em outubro! Quem ia para o Recifolia em 1993, tem entre 30 e 40 anos. Desses aí, quem tiver um filho mais ligado à cultura e à história do Estado, vai ter que dizer onde estava na juventude. E vai pas sar vergonha, por ter perdido o bon de da história. JUN 2008 • Continente x
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Junho 2008 – Ano 8 Capa: Foto de Leo Caldas/Titular
Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Presidente
Leda Alves Diretor de Gestão
Bráulio Mendonça Meneses
Diretor Industrial
Ricardo Melo
Colaboradores desta edição:
Conselho Editorial Presidente: Leda Alves
ALEXANDRE FIGUEIROA é jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos
Conselheiros: César Leal, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Marcos Vinicios Vilaça, Marcus Accioly
Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle.
ANDRÉ DIB é jornalista.
BÁRBARA CRISTINA é jornalista.
Diretores Editoriais Homero Fonseca Marco Polo
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Editores Eduardo Cesar Maia Mariana Oliveira
Editor de Arte Luiz Arrais
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Edição on-line Mariana Oliveira
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Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita Assinaturas 0800 81 1201/3217.2581; assinaturas@continentemulticultural.com.br Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@continentemulticultural.com.br Webmaster: webmaster@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão: CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
MARCELO COSTA é jornalista e crítico de cinema da Continente Multicultural.
RAFAEL DIAS é jornalista.
OLÍVIA MINDÊLO é jornalista.
Colunistas: FERREIRA GULLAR é poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes e Cultura posta em questão.
LUZILÁ GONÇALVES é escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros.
MARCELLA SAMPAIO é jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária.
Apoio: Governo do Estado de Pernambuco Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI é professora.
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Continente Multicultural: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Redação: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 fone/fax - redacao@continentemulticultural.com.br
Guimarães Rosa
ARTE CONTEMPORÂNEA Depois da exposição no Mamam de Paulo Bruscky/Arte conceitual, houve uma verdadeira incitação sobre o assunto, assim como vem ocorrendo com a arte contemporânea nos últimos 10 anos em Pernambuco. Estávamos mesmo precisando desmistificar esse monstro que se cria em torno dessa nova “linguagem híbrida”. Porém, apenas uma página com Paulo Bruscky e Marcontônio, deixou-nos mais curiosos e esperançosos de ver um dia um dos dois como capa da Continente Multicultural.
de João Pessoa. O segundo disco veio em 2004, quando Zabé integrou a coleção de CDs Cânticos do Semi-Árido, fruto da parceria entre o Instituto Dom Helder Câmara, o Ministério da Reforma Agrária e a Fundação Quinteto Violado. 2ª – Zabé nasceu em 1924, em Buíque, Pernambuco. Não em Santa Catarina, que é o nome do assentamento do Incra onde ela vive hoje. Daí o nome da música no CD. 3ª – Maciel Salú participa da música Pifada na Loca, e não "Pifada na Louca" (!).
Raíssa Barreto, Recife – PE
André Dib, Recife – PE
ZABÉ DA LOCA A edição de maio da Continente está muito bonita. Parabéns a todos! A matéria de Zabé da Loca está muito bem escrita, mas contém algumas “imprecisões”: 1ª – Bom Todo é, na verdade, o terceiro CD de Zabé da Loca. Seu primeiro álbum, Da Idade da Pedra, foi produzido com tiragem limitada no fim dos anos 90, por uma agência de fotografia
1968 Excelente, a matéria sobre o Maio de 68. Vocês conseguiram dar um enfoque diferente a um tema já tão mastigado! Jonatas Sampaio, Recife – PE
NOTA DA REDAÇÃO No Balaio da edição anterior, atribuise ao cantador Pinto do Monteiro o epíteto “Poeta do absurdo”, que, na verdade, pertence a Zé Limeira.
No Grande Sertão, a dúvida não se apresenta apenas como um exercício intelectual e filosófico, mas, sobretudo, uma espécie de fatalidade existencial da condição transitória do humano. A perspectiva da dúvida é aguçada pela certeza da subjetividade do conhecimento. Assim, chegamos à fronteira da especulação filosófica sobre o problema do conhecimento do real. Mas Riobaldo, como Guimarães Rosa, não é um cético radical, parecendo, antes, estar imbuído de uma perspectiva criticista ao modo de Kant. A dúvida não o leva – como é freqüente em nosso tempo – ao niilismo (pois: “Meu duvidar é petição de mais certeza”), mas, enquanto leitmotiv, abre um caminho heurístico na redescoberta do mundo e dos valores por meio de uma mística da linguagem.
Revista nº 61 janeiro/06 Matéria: Guimarães Rosa- A flor da dúvida Por Paulo Gustavo JUN 2008 • Continente
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Imagens: Reprodução
C’est une merde!
Harrison x Scott O documentário Dias Perigosos: realizando Blade Runner (2007), dirigido por Charles de Lauzirika, revela fatos singulares sobre a realização do clássico que mesclou o clima dos filmes noir com os de ficção científica. Por exemplo: o mau humor de Harrison Ford no filme foi, em parte, manipulação de Scott que, de propósito, não dava a menor bola para o recém-consagrado astro de Indiana Jones e de Guerra nas Estrelas. Ao contrário, tratava-o até com certa frieza, deixando as atenções para a novata Sean Young (a replicante Rachel) e para os problemas nos sets de filmagem (cenas noturnas, chuva, greve de atores, estouros de egos e de orçamentos, entre outros). Para os admiradores do filme, o documentário é obrigatório. (Fred Navarro)
O pior texto O crítico literário Agripino Grieco era conhecido por suas críticas mordazes. Certa vez, um aspirante a contista entregou-lhe dois contos, esperando dele uma avaliação honesta. Alguns dias depois, pergunta pelos textos. Impassível, Agripino dispara: “Dos dois só li um. E gostei mais do que não li”. Surpreso, o contista pergunta: “Como assim? Como o senhor pode ter gostado mais do que não leu?!”, e o crítico arremata: “Sim. Pois não é possível que exista texto pior do que aquele que eu li!”. (Fábio Andrade)
No caricato filme Villa-Lobos – uma vida de paixão, de Zelito Viana (2000), há uma cena em que o compositor carioca apresenta a tão falada feijoada aos conhecidos de Paris. Ao ouvir a reação enojada de um dos convidados, o sentimento nativista de Villa-Lobos, somado ao seu temperamento, o faz avançar na garganta do francês ingenuamente insolente. Pois bem, na vida real dois músicos pernambucanos tiveram a honra de comer a iguaria feita pelo próprio Villa, na França, no final dos anos 50: o prof. Mário Câncio, falecido em fevereiro, e o maestro Cussy de Almeida. (Carlos Eduardo Amaral)
Juro que vi “UTI: o melhor lugar para cuidar da saúde de quem você ama”. Esta é a frase de um cartaz no corredor da UTI do Hospital De Ávila. (Samarone Lima).
DESAFORISMOS "Que outros se
vangloriem das páginas que escreveram; eu me orgulho das que li." Jorge Luís Borges
Baleia recauchutada
Editorialmente, o Brasil está quite com o majestoso Moby Dick, de Herman Melville: em 1956, o grande romance da literatura norte-americana foi primorosamente editado pela Livraria José Olympio Editora, em dois volumes de capa dura, com tradução impecável de Berenice Xavier e 266 ilustrações do Rockwell Kent e 16 do brasileiro Poty. Agora, a Cosac Naify acaba de lançar uma nova tradução a cargo de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza (trabalho que durou cinco anos), 15 ilustrações, glossário náutico, bibliografia selecionada, itinerário da viagem e fortuna crítica. Já está nas livrarias, para quem quiser ler ou reler a obra-prima. (Fernando Monteiro)
Quadros de DNA A egolatria dos medíocres é um dos sinais mais apavorantes da nova cultura implantada pelo Mercado todo-poderoso e pela Ditatura da Vulgaridade. A última novidade nas galerias de arte americanas é isto: um “quadro de DNA”, feito a partir das informações do perfil genético do proprietário, brilhando em quartos e salas e combinando com a decoração das casas. Sucesso imediato da empresa que teve a idéia de transformar em suposta arte as informações do código génetico de cada um: a canadense DNA11. Beleza para ser importada por Fernandinho Beira-Mar ou por Juan Carlos Abadía, que têm carteiras & egos inflados e entendem de artes várias. (FM)
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1968, Rio abaixo
Do alto da minha ignorância, sempre desconfiei que a presença dos maestros nos palcos era apenas ritualística. Afinal, durante os concertos, os músicos se concentram nas partituras e mal levantam os olhos para a figura gesticulante. Claro que o papel préconcerto do maestro é essencial, na escolha do repertório, nos ensaios, na qualidade interpretativa etc., muitos imprimindo sua própria personalidade à orquestra. Na hora do concerto, entretanto, ele está apenas para recolher in loco e em tempo real as homenagens do público, o que não aconteceria se ele ficasse apenas nos bastidores. Essa impressão minha ficou bem fortalecida com a recente apresentação da Orquestra Sinfônica de Chicago, sob a regência do... robô Asimo, da Honda. Vejam e ouçam no You Tube. (Homero Fonseca)
Em qualquer anúncio dos livros sobre 1968, de Zuenir Ventura, o leitor será informado de que se trata de uma fascinante reconstituição dos acontecimentos no país. É natural, o que houve no Rio ou em São Paulo, aconteceu e se ouviu no Brasil, sem dúvida. Mas 1968 foi um fenômeno além ou aquém do Rio de Janeiro. Sobre a esquecida presença de nordestinos em 68, assim comentou Jomard Muniz de Brito: “A cultura brasileira sempre se dividiu entre o Norte e o Sul. Um exemplo é o livro de Zuenir Ventura, que vê 68 como uma coisa só carioca. Uma ação entre amigos”. (Urariano Mota)
...o Técnico É o que acontece com o técnico de futebol. Ele é fundamental para formar a equipe, escalar os jogadores, fazer substituições e até, em alguns casos, como o de Felipão, para dar um caráter à equipe. Mas é pura encenação, para as câmeras de TV, aquela munganga à beira do campo, gritando para os jogadores que dificilmente escutam as “instruções”. (HF)
1968, Rio acima Atenção, pesquisadores: as coleções do Jornal do Commercio e do Diario de Pernambuco se encontram livres e microfilmadas para a pesquisa, na Fundaj. Nos cadernos culturais do JC de 1968, mais precisamente, poderá ser redescoberto o trabalho inovador de Celso Marconi e de Jomard Muniz de Brito. Nas áreas do cinema e da música que se ousava no Recife, o papel dessa dupla ainda não foi recuperado. A juventude pernambucana daquele tempo, a mais culta e rebelde, talvez, não ia ao Coliseu sem antes ler Celso Marconi. Para quem não sabe, o Coliseu era o nosso cine de arte. Que não cabe em uma nota. (UM)
"Está na grande tradição acadêmica saber cada vez mais sobre cada vez menos, até você saber tudo sobre nada." Steven Pinker
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O Maestro e...
IMPACTO A primeira sanfona e a salvação
"Aos nove anos, eu já tinha ganhado uma sanfona de 48 baixos de Arnaldo Moreira Pinto, dono de uma rádio. Isso em 1949. Perdi pouco depois, quando fui expulso da escola, que ficou com meu instrumentinho... Era época da palmatória, meu irmão mais velho fez uma queixa de que apanhava muito e deu nisso. Mas tudo bem, se não fosse a escola, eu seria analfabeto. Já em julho de 1954, passei 11 dias viajando num pau-de-arara, de Pernambuco ao Rio de Janeiro. Tinha só 14 anos. Foi lá que Gonzagão entregou o instrumento, primeiramente a meu pai, porque menino não manda em nada. Aquela sanfona de 80 baixos foi a salvação, porque, na época, ninguém tinha instrumento. Comecei a deslanchar. Dois anos depois, Gonzagão diria numa entrevista que eu seria o seu sucessor. Só fiquei feliz, não tinha noção do que estava acontecendo..." Dominguinhos, sanfoneiro. JUN 2008 • Continente
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Patrimônio da
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O bolo-de-rolo e o Souza Leão, quitutes tradicionais da culinária pernambucana, ganham o status de Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado Flávia de Gusmão Fotos: Leo Caldas
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O bolo-de-rolo é feito de manteiga, farinha de trigo, açúcar, ovos e goiabada JUN 2008 • Continente x
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m deles carrega sobrenome tradicional – Souza Leão –, o outro contenta-se com a denominação genérica “bolo-de-rolo”, mas que ninguém se iluda: essas duas receitas pernambucanas se equivalem em importância. Ambas ganharam o status de Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado de Pernambuco, em lei sancionada pelo governador Eduardo Campos, no dia 24 de abril de 2008, e com isso devem abrir a porta para que outros itens que não são erguidos com solidez e perenidade de pedra e cal alcancem a mesma glória. “A Unesco recomendou, em 1985, que todos os países começassem a mapear os seus patrimônios imateriais. Por perceber que a cultura de um povo não se faz só de tijolos e pedras. É também cantos, danças, jeitos de ser e de falar, crenças populares e sabores. A escolha de um bolo, como símbolo desse patrimônio, é o melhor reconhecimento de que a culinária faz parte da própria alma do nosso povo”, opina a pesquisadora gastronômica Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti. O deputado Pedro Eurico (PSDB), autor do projeto que deu origem à lei já aprovada, assume-se como um irremediável apaixonado pelas coisas doces, ou me-
lhor, dulcíssimas, como gostava de enfatizar Gilberto Freyre, que os engenhos pernambucanos engendraram em suas cozinhas. “Infelizmente, tenho que controlar a taxa de açúcar no sangue, mas sempre que posso me delicio com uma fatia de um desses doces tão nobres”, assegura. Ao defender a elevação de “prosaicas” receitas de bolos à estatura de embaixadoras da mesa pernambucana, o deputado acredita estar dando a sua contribuição para que a fragmentação natural provocada pela globalização não termine jogando na vala da propriedade comum duas pedras genuínas de uma cozinha tradicional – mais do que qualquer outra no Brasil – forjada em partes iguais pela cultura branca, índia e africana. Antes mesmo de virar lei, o bolo-de-rolo e o Souza Leão já eram informalmente transportados para lá e para cá, dentro e fora do país, como legítimos emissários da boa vontade. Não se sabe ao certo, mas é provável que a intenção do remetente fosse adoçar a boca e amolecer a vontade do destinatário, assim como era feito nas nossas casas-grandes e mansões aristocráticas, gerações após gerações. É difícil manter-se teso e O Souza Leão é feito de coco ralado, manteiga, leite de coco, gemas e massa de mandioca
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Rafael Gomes
Receita de
Bolo-de-rolo "O bolo-de-rolo tem origem no colchão-de-noiva português. Em Pernambuco, substituímos o recheio de amêndoa por goiabada. O que distingue o bolo-de-rolo pernambucano de variações brasileiras é basicamente a delicadeza no fazer", Maria Lectícia Cavalcante (foto ao lado). Ingredientes: • 250 g de açúcar • 250 g de manteiga • 5 ovos • 250 g de farinha de trigo • ½ lata de goiabada, derretida em um pouco d’água.
resoluto quando a língua entra em contato com tanta auto-indulgência. O bolo-de-rolo feito de manteiga, farinha de trigo, açúcar, ovos e goiabada. O Souza Leão, de coco ralado, manteiga, leite de coco, gemas e massa de mandioca. “O bolo-de-rolo nasceu a partir de adaptação do ‘colchão de noiva’ português – trocando, na receita, seu recheio de amêndoa por um de goiaba. E passou-se a enrolar esse bolo em camadas cada vez mais finas. Como um rolo. O nome vem daí. A receita é a mesma, em todos os Estados da região. Mas o de Pernambuco é diferente de todos os outros, pela delicadeza na maneira de enrolar as camadas”, explica Maria Lectícia. Já no Souza Leão, que a pesquisadora classifica como “um ato de rebeldia gastronômica”, os ingredientes europeus foram substituídos pelos nordestinos; a manteiga francesa Le Pelletier pela fabricada nos próprios limites dos engenhos. Se um trazia indelevelmente incrustado o nome de Dona Rita de Cássia Souza Leão Cavalcanti, senhora do engenho São Bartolomeu, em Muribeca, Jaboatão, o outro, apesar de privado de ascendência comprovadamente nobre, exigia técnica tão apurada no seu preparo que não era encontrado em qualquer esquina.
Nesses dois lados da mesma moeda – exclusividade e aristocracia – talvez resida a condição de fetiche culinário que os dois quitutes alcançaram e que agora vêem confirmada em forma de lei. Muitos já foram vítimas e viraram escravos deste encanto. O ministro do Tribunal de Contas da União, e imortal da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinicios Vilaça, é um dos maiores propagadores do bolo-de-rolo. Não deixa faltar semanalmente na mesa dos colegas uma generosa provisão que é devidamente acompanhada pela bebida daquele Olimpo – o chá. O Papa João Paulo II degustou-o em louça fina e guardanapos bordados pacientemente pelas freiras; o ministro das relações institucionais, o pernambucano José Múcio Monteiro, não deixa faltar em seu gabinete e, ao servi-lo, provoca comentários ambivalentes: rolo na mesa e rolo à solta por todos os lados. Artistas como Jô Soares, Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda confessam seu fraco por ele. Recentemente, o Cine-PE Festival do Audiovisual se apropriou do seu formato semelhante a um rolo de filme para demarcar uma pernambucanidade imediatamente reconhecida e decodificada. “Há bolos-de-rolo e bolos-derolo, como se diz na expressão
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bata bem o açúcar e a manteiga, junte as gemas, uma a uma. Depois as claras em neve. Acrescente o trigo peneirado e misture delicadamente.
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Divida a massa em sete assadeiras rasas, untadas com manteiga e trigo. Asse uma de cada vez, em forno pré-aquecido, por pouco tempo.
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Retire a massa das assadeiras, colocando-a em toalha polvilhada com açúcar.
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Recheie com a goiabada derretida e enrole rapidamente. Repita o mesmo processo até a última camada.
As imagens acima foram realizadas na cozinha da Casa dos Frios. JUN 2008 • Continente x
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CAPA popular. Como ponto da distinção, que é a marca de expressão das desigualdades sociais das sociedades hierárquicas, é preciso somente atentar para a fama de que gozam os bolos-de-rolo de certas delicatassens do Recife. Estes são consumidos pela gente abastada da nossa cidade e ‘exportados’ para letrados do resto do Brasil como expressão da nossa cultura. Por outro lado, bolos-de-rolo são também vendidos em uma gama variada de locais (mercados populares e grandes cadeias de supermercados)”, situa o
professor adjunto do programa de pós-graduação em sociologia da UFPE, Jorge Ventura de Moraes.
Fernanda Dias, da Casa dos Frios: pioneira na produção em larga escala
“Há de atentar para dois pontos. No primeiro caso, este produto tão popular – no sentido de ser bastante comum na mesa pernambucana – é montado, nas lojas finas, de forma que denota perícia e cuidado, com boa apresentação e é vendido em embalagens especiais. No segundo, bem diferente é o destino dos bolos-de-rolo vendidos nas grandes cadeias de supermercado: são ex-
Recife
gastronômico No livro Recife – Guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição, Bruno Albertim visita estabelecimentos não apenas com a disciplina do pesquisador, mas com a curiosidade e boca cheia d'água do consumidor
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o aroma que saía das panelas caseiras, o jornalista Bruno Albertim construiu os alicerces do que viria a ser sua atividade profissional e sua paixão. Muito antes de assinar uma coluna semanal de culinária no Jornal do Commercio e ser editor da revista Engenho de Gastronomia, ele espreitava o conteúdo que fervia e o instigava a incursionar pelos bares, botecos e restaurantes simples do Recife, numa pesquisa constante e incansável. O livro Recife – Guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição (edição do autor) surgiu de uma inquietação básica. Ele não se conformava com o fato de a cozinha pernambucana ser historicamente tão importante para a formação da panela brasileira e paradoxalmente tão desconhecida além de suas fronteiras. “Ela é a grande metáfora da decantada miscigenação do brasileiro. Nos antigos engenhos de Pernambuco, os portugueses se abriram aos ingredientes dos índios e africanos escravizados, tropicalizando sua culinária tradicional e dando início ao que viria a ser a cozinha brasileira. Ali estava o grande berço da cozinha brasileira”, explica Albertim.
A “desimportância” que tradicionalmente demos ao que nossas cozinhas produziam – em contraposição, por exemplo, ao alarde baiano em torno do acarajé – pode ser atribuída, segundo Albertim, a uma provável herança escravocrata e que, na sua opinião, ainda habita o espírito das elites locais. “Ainda que fonte de prazer e ostentação, a cozinha e suas tarefas sempre foram domínio da mão-de-obra negra e das mulheres, ou seja, categorias socialmente inferiores. Quer dizer, cozinha, há pouco tempo, não era categoria cultural elogiável. O próprio Gilberto Freyre provocou horror quando, na década de 30, já consagrado como grande intelectual, dedicou um livro inteiro ao assunto (Assucar). E, salvo mais recentemente,
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Um dos segredos do bolo-de-rolo é a delicadeza na maneira de enrolar as camadas
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os dirigentes pernambucanos nunca souberam capitalizar turisticamente o patrimônio culinário pernambucano. Só agora se começou a investir na culinária como talimã turístico”, complementa. Albertim alerta, no entanto, para a cautela que deve existir no afã de que, aberta uma porta, deva se sacralizar todo tipo de produto disfarçado sob o rótulo de “tradicional”. “Não podemos banalizar e transformar qualquer coisa, o croquete da Dona Maria, em patrimô-
postos amontoados e vendidos em embalagens baratas; sua apresentação denota talvez a falta de delicadeza, a fabricação caseira e a montagem pouco cuidadosa. Aqui temos em um mesmo produto a expressão mais clara de como um mesmo bem – no caso, alimentício –, com presença nas mesas de famílias de um espectro social bastante amplo, pode ainda assim expressar formas de distinção social, manutenção das barreiras impostas pela hierarquia social, dependendo simplesmente da forma como é apropriado pelas elites culturais e econômicas de um dado espaço social”, analisa Jorge Ventura.
nio. Mas concordo e defendo a conversão desses itens em patrimônio imaterial. Para garantir a preservação. É o que aconteceu em Salvador. Antes do tombamento do acarajé, tinha até baiana de shortinho do Tchan vendendo enroladinho de salsicha! Não dá! É heresia pura.” Albertim deixa claro logo no título do seu guia que seu objetivo não é realizar o “mais abrangente” compêndio de restaurantes tradicionais. Embora ele seja fiel ao que se espera de um serviço do gênero, Bruno Albertim lançou o livro Recife – Guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição (capa ao lado), este ano
com indicativos de endereço, telefone e cartões de créditos aceitos, a palavra sentimental, no enunciado da capa, aqui significa 90% do que ele representa. Cada estabelecimento foi visitado não apenas com a disciplina do pesquisador, mas com a curiosidade e boca cheia d’água do consumidor. Por trás de cada panela, uma história de vida ligada a sabor, temperos e tradição oral que mantém vivo este patrimônio. Como descobrir o Recife gastronômico sem um guia que desvende sua alma tímida? “Recife gosta de se esconder. Dificilmente, um morador saberia conduzir um visitante ou ir, por deleite próprio, a um lugar para comer uma peixada, um sarapatel ou uma buchada que provocasse grandes alegrias – e nenhuma dor de barriga. A chamada cozinha tradicional não é tão evidente. Só mesmo em Salvador o sujeito se depara com um acarajé já à saída do aeroporto e passará seus dias sentindo cheiro de dendê aonde vá. No Recife, não há uma buchada em cada esquina. Espero que o livro seja realmente útil para os moradores descobrirem os sabores do Recife e arredores”, sintetiza o autor. (FG) JUN 2008 • Continente x
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Cozinha de todos os sabores Divulgação
No rico universo da culinária pernambucana, há espaço para a tradição, a fusão com o exótico e o descolamento quase total rumo à alta gastronomia contemporânea
César Santos e um dos pratos mais famosos do seu Oficina do Sabor: o camarão na moranga
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eraldo Lima, César Santos, Douglas Van Der Ley, pernambucanos, comandantes de suas próprias cozinhas. Cada um desses nomes simboliza uma etapa na evolução da gastronomia em Pernambuco e conta uma história também de evolução na maneira como hoje nos relacionamos com um assunto quase erotizado: a refeição. Através de seus desempenhos, podemos identificar três correntes que, juntas, formam o caldo grosso e rico do nosso perfil culinário: a tradição, a fusão com o exótico, o descolamento quase total rumo à alta gastronomia contemporânea. Geraldo, que há 30 anos comanda em Santo Amaro o restaurante que leva seu nome, fez um percurso que poderia ser considerado clássico, há algumas décadas. Natural de Bezerros, agreste pernambucano, ele resistiu o quanto pôde ao que estava planejado para ele: o trabalho na lavoura, cumprindo uma tradição/destino passada entre as gerações dos homens de sua família. Em vez disso, preferia ficar em casa, rodeando as mulheres na cozinha, com quem, desde cedo, aprendeu os segredos da culinária tradicional pernambucana. Na capital, Geraldo passou por várias cozinhas de bares e restaurantes, sempre aprimorando receitas como buchada, sarapatel, fava e aquela que iria lhe dar a fama que percorre toda a cidade: a galinha de cabidela. Dono do seu próprio negócio, que ele foi ampliando aos poucos com capricho de grande restaurateur, coloca na parede um pequeno cartaz no qual assegura com a firmeza daqueles que sabem o que estão fazendo: “Galinha de cabidela – o prato da casa”. JUN 2008 • Continente x
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No bar do Geraldo, em Santo Amaro, o carro-chefe é a galinha de cabidela
Quem vai ao restaurante de Geraldo, “a jóia de Santo Amaro” , como a ele se refere o jornalista Bruno Albertim no seu guia histórico e sentimental da cozinha de tradição no Recife (ver matéria vinculada), sabe que não encontrará nenhuma dessas modernidades ou fusões. E anseia por isso mesmo. Em vez dos temperos rebuscados, a simplicidade de pratos como o chambaril cativa a clientela. As guarnições vêm em pequenas cumbucas de louça e são sempre fartas, sejam em porções individuais ou para duas ou três pessoas. Geraldo não faz concessão à praticidade que a modernidade exige. Ele vai pessoalmente, bem cedinho, ao Mercado de São José
comprar o sangue da galinha que resultará num molho encorpado e levemente ácido; ele apalpa, cheira e escolhe o fígado bovino que lhe renderá um bife fininho e macio, para ser degustado bem acebolado, com um feijãozinho caseiro, farofa, salada e arroz na água e sal. César Santos tem também uma origem humilde. De família oriunda de Camocim de São Félix, também no Agreste, ele morou por vários anos no populoso bairro de Casa Amarela, vivenciando a cozinha de festa em dias de celebração religiosa nos morros ao redor. Entrou para o Senac, onde foi aluno do curso de cozinha, em busca de um viés profissionalizante, mas a porta que se abriu permitiu-lhe galgar os degraus para o universo dos chefs glamorizados e requisitados para grandes festivais culinários, no Brasil e fora dele, programas de televisão, entrevistas para jornais e revistas. César é o mais expressivo pernambucano representante de um nicho que pode ser chamado de chef celebridade. Uma conjunção de dinheiro e prestígio que hoje, ao contrário de tempos passados, faz com que
os pais estimulem os filhos a trilhar uma profissão antes impensável, especialmente para a prole masculina. Um passo e tanto para quem, apesar das roupas de grife, das jóias de bom gosto que hoje ostenta e de muitas horas de vôo para os quatro cantos do planeta, ainda carrega o linguajar simples do passado. Um passado onde ele metia a mão na massa e recebia todos os tipos de encomendas, da simples marmita ao jantar mais sofisticado. A cozinha de fusão e a localização do seu primeiro (e único) restaurante, o Oficina do Sabor, no sítio histórico de Olinda, parecem ter alavancado uma espécie de alquimia mágica e misteriosa. Ele, assim como Geraldo, criado na cartilha da pesada culinária tradicional pernambucana, intuiu que uma releitura seria a chave para atrair uma freguesia endinheirada. Sua primeira fórmula, e que até hoje é sua galinha dos ovos de ouro, foi uma receita de domínio público, até mais com jeito de culinária mineira do que pernambucana: o jerimum levado ao forno com recheios diversos.
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A esta possibilidade, César Santos lançou mão daquilo que nos anos 80 andava muito em voga por aqui: a utilização da grande cartela de frutas regionais como fator de contraposição de sabores – agridoce, doce-azedo, suave e picante. Intuitivamente, foi expandindo esta releitura e caindo nas graças da aristocracia pernambucana – um público formador de opinião para um turismo de mais alto nível. Virou praticamente um cartão-postal, para onde o habitante local guiava o turista, em busca de um lugar icônico da culinária “típica”, embora mais globalizada. Com a chegada de César, o morador não precisava mais escoltar o visitante para restaurantes que eram um simulacro daqueles que existiam no Rio de Janeiro ou em São Paulo. O Oficina do Sabor era, por assim dizer, a nossa forma de expressão culinária traduzida para um idioma mais cosmopolita. Filho da classe média, ex-comissário de bordo, Douglas Van Der Ley, que comanda o vanguardista É, restaurante que nasceu para a eli-
te de Boa Viagem, mas já ganhou o mundo, nunca se aventurou profissionalmente pela culinária pernambucana tradicional. O que não significa que ele não possa flertar com ela em bases cotidianas no seu cardápio. Douglas leva a evolução do que pensamos como culinária tradicional pernambucana a um ponto mais distante da sua origem. Nas suas mãos, por exemplo, o bolo Souza Leão vira suporte para um naco de foie gras fresco. O algodão doce ou a bala de puxa-puxa se tornam complementos de luxo para composições que desafiam a imaginação mais rotineira. Douglas tira completamente o pé desse terreno de litoral e sertão nordestinos para se lançar, sem altura para parar, naquilo que nós aprendemos a decodificar como contemporaneidade culinária. Três chefs, três trajetórias, três forças que movimentam hoje o cenário gastronômico pernambucano.
como chefs, é realmente um fenômeno social recente, mas de forma alguma algo isolado. Isto também vem acontecendo, por exemplo, no futebol, onde várias famílias de classe média vêm investindo em seus filhos, sendo exemplo disso o caso de Kaká, craque do Milan da Itália e da Seleção Brasileira”, explica o sociólogo e professor da UFPE Jorge Ventura. Segundo o pesquisador, o fenômeno não deve ser visto simplesmente em termos de mais uma carreira que dá dinheiro. “A meu ver, seguindo as análises do sociólogo francês Pierre Bourdieu,
“O fato de as ditas classes afluentes, no Brasil, estarem incentivando seus filhos a seguirem carreira no setor de restaurantes, particularmente
O foie gras servido com bolo Souza Leão, no É, de Douglas Van Der Ley
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CAPA é preciso atentar para o aspecto de prestígio envolvido nesse novo fenômeno. A carreira de chef já traz embutida, além das recompensas monetárias, as devidas glórias advindas do prestígio e honrarias a ela ligados. Se a carreira, anteriormente pouco valorizada, pode trazer bons dividendos monetários – em um mercado em que muitas profissões tradicionais não remuneram tão bem – é de se atentar para o fato de que ela precisa ser revestida de certo charme, de certo intelectualismo, de prestígio e de distinção”, teoriza Ventura.
“Prestígio e distinção, como marcas de manutenção da hierarquia social – especificamente como marcas simbólicas de desigualdade social – se alimentam daquilo que Bourdieu chama de capital cultural, isto é, o conhecimento dos códigos sociais necessários para a ‘sobrevivência’ no mundo de sofisticação a que aspira a gastronomia mais refinada, o conhecimento que permite a ‘leitura’ e o entendimento e a apreciação dos ingredientes mesmo os mais exóticos, das etiquetas, dos gestos refinados, o consumo de publicações especializadas etc. É neste sentido que se pode
compreender por que dificilmente jovens oriundos das classes populares alcançarão o topo da profissão. Não estou dizendo impossível; somente que é muito difícil. Eles podem ter o talento dito natural para a culinária, mas tenderão a permanecer nos escalões intermediários da profissão – um subchefe, quem sabe? –, pois lhes falta o controle dos códigos sociais requeridos, por exemplo, a fala, as palavras corretas, talvez também não consigam expressar com naturalidade o trato dos ingredientes sofisticados e da decoração refinada”, acredita.
Culinária pernambucana na TV
O programa Vamos Comer Pernambuco, veiculado pela TVU/TV BRASIL, vai além da receita, abordando o tema a partir de uma perspectiva histórica
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jornalista Alice Gouveia se junta ao time dos que vêem a gastronomia como algo mais do que o prazer imediato obtido com uma refeição. Ela faz coro com aqueles que vislumbram a importância antropológica e sociológica que uma receita, tradicional ou contemporânea, carrega em seus ingredientes e modo de preparo. Ao fim de tudo, afirma Maria Alice, citando o antropólogo francês Claude Levi-Strauss, “O cru existe em todas as comunidades, enquanto Alice Gouveia é a idealizadora do o cozido é a ação que projeto, pronto transforma a natureza desde 2005 em cultura, fazendo da culinária de cada povo uma expressão singular”. Mais do que voz, Alice determinou-se à ação quando, em 2002, viajou pelo sertão de Pernambuco em busca de imagens. Não coincidentemen-
te, pois a gastronomia sempre foi uma paixão nutrida à base de autores como Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo, a maioria das cenas coletadas dizia respeito ao tema: feiras, casas-de-farinha, engenho de rapadura e rituais indígenas que envolviam, também, a culinária. Era o embrião do que viria a se tornar o programa Vamos Comer Pernambuco, com 30 minutos de duração, que vem sendo veiculado pela TVU/TV BRASIL, através da faixa Documento Nordeste, de abrangência nacional. O argumento do Vamos Comer Pernambuco estava pronto desde 2005. “Sentia que os programas de culinária privilegiavam a receita, mas que a gente podia ir muito além do aparente e elaborar o tema a partir de uma perspectiva histórica. Além do conteúdo, vi que, do ponto de vista plástico, as imagens relativas à gastronomia têm um potencial estético muito precioso para quem trabalha com audiovisual”, explica.
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Para Jorge Ventura, embora o vetor de difusão cultural, em sociedades desiguais como a nossa, ou qualquer outra, tenda a ser de cima para baixo, isto é, as elites intelectuais e econômicas tendam a criar e a impor para baixo, na hierarquia social, suas modas e modos, seu consumo e suas preferências, não é raro que se apropriem de formas de expressão cultural das classes menos favorecidas. Mas isto é feito com controle absoluto. Isto é feito através da dita releitura de um prato ou de uma peça de artesanato. A releitura envolve, no caso da culinária, não
somente a correção de ingredientes (diminuição de temperos fortes, mais equilíbrio de sabores etc.), mas também a apresentação do produto final (montagem de um prato ou embalagem mais delicada) e a venda em locais pouco acessíveis às camadas menos abastadas da população. Ele cita como exemplo a nouvelle cuisine, que promoveu a simplificação no trato de produtos naturais e a “sofisticação” de sua apresentação. “Percebo que a culinária tradicional pode ter espaço no mundo globalizado. O primeiro ponto a considerarmos é que é difícil definir
exatamente o que culinária tradicional significa, pois ela deve ser vista de forma dinâmica, que sofre mudanças, mesmo que certamente em um ritmo mais lento do que a dita culinária refinada da alta gastronomia. O segundo é que em sociedades desiguais as pessoas ainda vão precisar continuar a ser inventivas como foram no passado e têm sido no presente, isto é, a transformação de partes menos nobres dos alimentos em comidas admiradas. Por fim, a dita alta gastronomia não pode prescindir dessa ‘fonte de inspiração’”, conclui o sociólogo. (FG)
Os programas são resultado de mais de 100 horas de gravação de imagens em diversos pontos do Estado de Pernambuco
Para viabilizar o trabalho foi preciso fôlego e persistência. A via-crúcis que grande parte da produção audiovisual ainda enfrenta no Estado, especialmente no que diz respeito à televisão, foi observada passo a passo. “Esperamos muito por verbas a partir de incentivos fiscais e visitamos muitas empresas de alimentos em Pernambuco. Apenas em 2006 conseguimos financiamento a partir de isenção fiscal pela Lei Rouanet, incentivado pela Eletrobrás. Mas a verdade é que esperaríamos muito mais, pois acho que sou teimosa e construí uma relação de muito afeto com este trabalho”, garante. O projeto foi estruturado a partir de
38 entrevistas com nomes como o do historiador Leonardo Dantas, a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti e o antropólogo Raul Lody. Os programas são resultado de mais de 100 horas de gravação de imagens em HD (High definition) em diversos pontos do Estado de Pernambuco e do trabalho de uma equipe composta por mais de 20 pessoas. A produção do projeto é da Oficina de Imagens, com direção e roteiro da própria idealizadora. “O Vamos Comer Pernambuco é uma tentativa de fazer com que a gente incorpore o componente histórico ao que nos é habitual. Entender, por exemplo, o afeto que o
pernambucano tem pelo doce, o surgimento da feijoada, do pirão, do cozido, a herança africana que permeia o cotidiano. Enfim, requalificar o olhar para o que é cotidiano e aparentemente banal, mas que carrega em si uma síntese complexa de diversas matrizes étnicas e práticas silenciosas que tendem a serem esquecidas. Além do resgate, acredito que a culinária revela a miscigenação gastronômica do nosso Estado como base para a culinária nacional”, esclarece Alice Gouveia. Os programas trazem os temas: Açúcar, Comida de sertanejo, Comida de orixá, Cachaça e um prólogo que tem o nome da série, Vamos Comer Pernambuco. (FG) JUN 2008 • Continente x
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sabores
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
Sabores e saberes do São João (I) “As pessoas feitas de milho cavam um berço para o milho e o cobrem de boa terra, e o regam, e dizem a ele palavras de amor.” Eduardo Galeano (Las Palabras Andantes)
E
o Recife se cobriu de fogueiras. Mas, naquela noite escura de fevereiro de 1631, não havia nas ruas bandeirolas, balões ou fogos de artifício. Nem aquela alegria das gentes que brincam o São João. Havia apenas fogueiras. E muito medo. É que o invasor holandês celebrava um ano da conquista da mais rica das capitanias – Pernambuco – e pedia proteção contra os da terra, que prometiam vingança. Faziam isso em louvor a Freia – deusa protetora dos que amam a música e a natureza, irmã do deus Frei –, responsável pela chuva, pelo brilho do sol e por todos os frutos da terra. Em verdade esse costume de agradecer aos deuses, em volta de fogueiras, vem de longe. Desde quando os homens começaram a se cansar de estar sempre em busca de carne e outros alimentos. Decidiram, então, plantar e domesticar animais. Esses primeiros camponeses festejavam a proximidade da colheita todos os anos, no solstício de verão do hemisfério norte (quando é mais longo o dia, por estar o sol no ponto mais distante da linha do Equador), cantando e dançando em volta de fogueiras. Para afastar os demônios da esterilidade, da estiagem e da miséria. Também para homenagear o deus sol e a deusa da fertilidade. A tradição nasceu na região conhecida como “Crescente Fértil” – hoje Irã, Iraque, Israel, Jordânia, Líbano, Síria e Turquia. Depois, espalhou-se por outros lugares. Como a Grécia, onde louvavam Héstia, a deusa grega do fogo; ou Roma, onde as homenagens eram para Vesta, deusa romana do fogo –, em festas conhecidas como “Vestália”. Passa o tempo. E também essa festa profana acabou incorporada à tradição cristã. Com a fogueira, agora, sendo acesa por Isabel, para anunciar o nascimento de seu filho João, primo carnal do Cristo. E com os deuses pagãos substituídos por essa criança
A quadrilha tem origem no quadrille – uma dança palaciana francesa que abria os bailes das cortes e chegou ao Brasil no início do século 19
que depois virou apóstolo, batizou Jesus (sendo por isso conhecido por Batista), e afinal deu a vida pelo Salvador – São João. A festa, entre nós, nasceu aos poucos. Juntando costumes, sabores e temperos das três culturas que nos formaram – a do índio, a do escravo africano e a do português. Do colonizador branco herdamos a devo-
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Do colonizador branco herdamos a devoção por três santos – São João, São Pedro e, o mais popular deles, Santo Antônio. E tanta era sua devoção, que essa vila se chamou, primeiro, “Santo Antônio do Recife”
Divulgação
ção por três santos – São João, São Pedro e, o mais popular deles, Santo Antônio. E tanta era sua devoção, que essa vila se chamou, primeiro, “Santo Antônio do Recife”. Acabou sendo nosso padroeiro oficial. Junto com Nossa Senhora do Carmo, co-padroeira por decreto do Papa Bento XV, em 12 de novembro de 1918, comemorado em 16 de julho. Desse português herdamos também os jeitos de fazer a festa. Com mú-
sica, danças, fogos de artifício e adivinhações. Superstições, também – para saber se é correspondido no amor, se vai casar, se é traído. Uma das mais conhecidas recomenda introduzir faca virgem no tronco de uma bananeira; se aparecer nessa faca uma letra, será a inicial de um novo amor. As ruas enfeitamos, assim aprendemos, com bandeirolas e balões coloridos que levam pedidos dos fiéis a São João – atendidos só quando não queimassem, antes de subir aos céus. Além de capelas – arcos feitos com folha de bananeira ou de coqueiro, substituindo as feitas de folhas de louro e flores usadas no além mar. Tudo em volta de fogueiras. Abandonamos, por aqui, apenas o costume europeu de queimar, junto com a madeira, ervas aromáticas (alecrim, murta) e sal. São João era, para nossos índios, a mais apreciada das festas populares trazidas pelo colonizador. Provavelmente pelo jeito semelhante de celebrar, em volta dessas fogueiras. Nas roupas de São João usamos chita – o mesmo tecido barato que os portugueses traziam da Índia, para vestir nossos escravos. A palavra vem do sânscrito c’hit. Copiando, nos modelos, os vestidos usados pelas escravas – saias rodadas, armadas com anáguas endurecidas por goma de mandioca, enfeitadas com babados, sianinha, fita e renda. Para ornamentar as mesas juninas recorremos, basicamente, a artesanatos feitos por nossos índios – panela de barro, urupema, pilão, cuia, cabaça. Já nas músicas, são muitas as origens. Dos escravos herdamos o gosto pelo batuque e por umas flautas feitas de “taquara” – madeira muito encontrada nas matas de Pernambuco. Essas flautas foram, pelo colonizador, chamadas de “pífanos” – por serem semelhantes às tocadas pelos pifferaro do folclore italiano, bretão e catalão. Ainda criamos aqui bacamarteiros, invenção inteiramente nossa. Bacamarte, só para lembrar, foi a principal arma usada na guerra do Paraguai. E a usavam os ex-combatentes daqui do Nordeste, para homenagear São João, atirando nas fogueiras. Virou tradição. Trocando os uniformes de batalha por roupas de mescla, com cartucheira (sem munição) e matulão (com pólvora) na cintura; tendo JUN 2008 • Continente x
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RECEITA
Bolo de milho
Rafael Gomes
Passe 8 espigas de milho na máquina de moer. Reserve. Rale o coco e retire o leite de coco grosso. Misture o milho e metade do leite de coco. Misture bem e peneire duas vezes. Reserve. Bata as claras de 3 ovos em neve, junte açúcar (tantas xícaras pequenas de açúcar quantas forem as xícaras grandes de milho), sal, as gemas e 150 g de manteiga derretida. Acrescente milho peneirado e o restante do leite de coco. A mistura fica rala. Coloque em forma untada com manteiga e asse em forno pré-aquecido.
ainda lenço vermelho no pescoço, alpargatas nos pés, e chapéu de couro ou palha na cabeça. Nas danças de São João, começamos pelas de roda – herança dos africanos que, em sua terra, dançavam assim. E sempre o mesmo passo, apenas mais rápido ou mais devagar, dependendo do andamento da música. Foram assim nascendo ciranda e coco-de-roda, especialmente nos engenhos de açúcar de Pernambuco e de Alagoas. O nome vem de quebrarem juntos os escravos, com pedras, as cascas dos cocos. “Há cocos de meia volta, volta inteira, simples, dobrados e, sob a influência dos desafios, de martelo e gabinete”, segundo Edilberto Trigueiros (A Língua e o Folclore da Bacia do São Francisco). Mas a maioria das danças de São João foi trazida mesmo da Europa, pela aristocracia portuguesa. Aqui levamos essas danças para a rua. Quadrilha tem origem no quadrille – uma dança palaciana francesa que abria os bailes das cortes, chegadas no Brasil no início do século 19. Mesmo convertida em dança popular, ainda conserva na marcação o francês estilizado de anavantus (en avant tous, para frente) e anarriês (en arrier, para trás). Marchas portuguesas logo foram transformadas em sertanejas, só que muito mais animadas. Por volta de 1850, também chegaram ao Brasil o xote, que veio do schottisch, uma dança alemã, a polca, dança da Boêmia (parte ocidental da Tchecoslováquia), um pouco mais rápida que aquele xote, e a mazurca, dança que se originou na província polonesa da Mazávia. Aos poucos foi então nascendo o baião, derivado do “baiano” – acompanhado de viola, zabumba e outros instrumentos da terra. E o xaxado, “dança em círculo, fila indiana, um atrás do outro, sem volteio, avançando o pé direito em três e quatro movimentos laterais e puxando o esquerdo, num rápido e deslizado sapateado”, palavras de Câmara Cascudo. O nome
é onomatopéia das alpercatas, arrastando no chão. A tudo isso, em conjunto, demos o nome de “forró”. A palavra tem origem controversa. Uns pensavam que teria vindo do inglês for all – festa “para todos”, sem necessidade de convites, que os ingleses organizavam aqui no tempo das estradas de ferro da Pernambuco Trainways. Outros, que a palavra se originou em festas de escravos livres (forros ou alforriados). A terceira hipótese, mais provável, é que a palavra seja mesmo corruptela de “forrobodó”. Que veio não de uma engenhosa invenção lingüística, que seria for all body (para toda gente), mas do francês faux-bourdon, uma dança da Galícia que entrou no vocabulário galegoportuguês como fabordão ou fobordó. Com o tempo passou a ser nome de um tipo de baile popular, barulhento e ligeiro, em contraste com a dança comportada de antes. São João é a única festa em que o matuto, na comemoração, olha para o chão, no arrastar de pés de suas danças; e “olha pro céu, meu amor, vê como a noite está linda”. Mas o que faz essa nossa festa especial, diferente de todas as outras, é sobretudo nossa culinária. Uma culinária de época. Diferente de Portugal – em que não existe uma comida típica do São João. Usam-se lá as de sempre, de cada região, próprias dos grandes festejos – carneiro, leitão assado no espeto, caldeirada, bacalhoada, patanisca, bife de vitela, caldo-verde, sopa de grão, febras de porco, peixe frito. E muita sardinhada. Tem até ditado português que diz “no São João pinga sardinha no pão” – dado estarem, por essa época, bem gordas, no ponto ideal de ser consumidas. Como sobremesa servem arroz-doce, queijadas, nógados, tabuleiros de bolachas, bolo capela de São João, popias caiadas e de alcâncaras. Tudo regado a muito vinho. Na próxima coluna falaremos dos nossos pratos típicos dessa época. Até lá, pois.
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Luzilá Gonçalves Ferreira
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Muito barulho por ... nada tas de amor são ridículas. este 2008, festeja-se o centenário Algumas descrições da de nascimento de uma mulher que decadência física de Sarmuito fez pela causa das mulheres. tre em seus últimos dias Seu livro, O segundo sexo, publicade vida também são chodo em 1949, um sério estudo sobre a problecantes. Por que falar assim mática feminina através dos tempos, foi saude alguém que tanto se dado no mundo inteiro e serviu de inspiração amou? Enquanto Simone para movimentos feministas, que tomaram e Sartre estiveram no BraSimone de Beauvoir por uma companheira de sil, os companheiros que lutas, um modelo. também haviam assinado Desde o começo do ano, os principais joro chamado Manifesto dos nais e revistas franceses dedicaram páginas a 121, contra a política franessa romancista, ensaísta, ativista, que soube Simone de Beauvoir, por Cartier-Bresson cesa na Argélia, sofriam unir a teoria à prática, todos o sabemos. Artigos repressões e respondiam a interrogatórios, e o casal como “Fabrica-se a feminilidade, “O coração e o espíriprolongava sua estada no Brasil – o que foi duramente to”, “Feminista no cotidiano”, “Um horror quase patolócriticado, quando da publicação de A força das coisas, gico à maternidade”, anunciam aspectos de uma trajetóe se deduziu que eles não faziam propaganda contra a ria. Fotos foram publicadas, Simone criança de família guerra da Argélia, mas se divertiam, passeando e tomanburguesa, Simone adolescente se revoltando contra a do caipirinha. Aliás, o trecho que trata da estada deles no proibição de ler certos livros, Simone escrevendo no Recife é, no mínimo, indelicado para com as pessoas que Café de Flore em Saint Germain des Prés, Simone paros abrigaram. Simone generaliza, criticando as meninas ticipando de passeatas. Uma foto, entretanto, feita pelo brasileiras que imitam mulheres, logo que a infância fotógrafo Art Shay, datando da época em que Simone passa. Não há adolescentes no Brasil, (cito de memória), de Beauvoir vivia a grande paixão por Nelson Algren, escreve. E pinta como um exemplar de moça da burgueescritor americano, que a hospedava, e publicada no sia de direita recifense, nossa querida Cristina Tavares, número 204 da revista que edita o jornal Le monde, majornalista reconhecidamente de esquerda, que ela apretéria de capa igualmente do Nouvel Observateur, irritou senta, fingidamente, eu diria, sob o nome de Cristina T. feministas francesas: mostrava Simone nua, de costas, A foto de Simone de Beauvoir fazendo sua toiletna frente de um espelho. As feministas consideraram te matinal diante do espelho nada tem de escandaloque a publicação era uma afronta, criticaram os jornais. sa e ela nada fez para a destruir. Inclusive se poderia Queremos ver as nádegas de Sartre, exigiram. Mas sedizer, como se dizia antigamente, “Simone é até bem gundo o fotógrafo, ela nunca fechava a porta do banheifeitinha”, e, mesmo, “não é de se jogar fora”, segundo ro, não pedira negativas das fotos, e teria apenas dito ao comentou um colega da Continente Multicultural a fotógrafo:"Você é um garoto mau". Conivência? esta colunista. Quanto às nádegas de Sartre, lembrando Mas, como todo ser humano, Simone teve seus moseu jeito pesadão de intelectual que passa o dia sentamentos menos recomendáveis. Um deles: a publicação do, lendo ou escrevendo, sem fazer exercícios físicos, a das cartas a Nelson Algren, cartas de amor, com detalhes gente pode dizer que, com o desconhecimento daqueíntimos, que o escritor não suportou. Não se publicam la parte anatômica do filósofo, as feministas francesas cartas de amor que foram enviadas ou recebidas, mesmo não perderam nada, certamente. porque, como afirmou Fernando Pessoa, todas as carJUN 2008 • Continente x
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MÚSICA
livros
A (inaprendível?) arte de escrever
A
s oficinas literárias têm proliferado pelo País, gerando a estranha sensação de que num tempo breve teremos mais escritores do que leitores. Há quem reaja indignado, defendendo ferozmente o “espaço do escritor”, um ser mítico, infenso às solicitudes da vida cotidiana, especialmente às do mercado. Outros argumentam que não é possível se ensinar a escrever, como se as técnicas do texto fossem um segredo inalcançável (mas ninguém se escandaliza que pintores, atores, arquitetos, músicos e dançarinos freqüentem escolas de sua arte). Penso que, no mínimo, essas turmas formam bons leitores. Essas
considerações vêm a A oficina do escritor propósito do novo li– Sobre ler, escrever e publicar vro do escritor e crítico Nelson de Oliveira Nelson de Oliveira, em Ateliê Editorial 152 páginas que ele sistematiza suas 30,00 reais oficinas literárias. Aliás, ele escreve: “Tão intenso quanto o prazer de escrever (a montagem cuidadosa de um texto) é o de ler (a desmontagem cuidadosa de um texto)”. Leitura instigante e interessante (não apenas para os candidatos a escritor), com sólido respaldo teórico, o livro vai além da apresentação didática do fazer literário (definições, gêneros, estrutura do texto, etc.), levantando questionamentos argutos, como o sobre o caráter elitista da literatura. Traz também divertidos e pragmáticos decálogos para o resenhista e o autor iniciante, este último orientado com desconcertante franqueza sobre as exigências do mercado e do próprio meio intelectual. (Homero Fonseca)
> Província e política com sabor
> Promessa em estréia de poeta
> Uma aula para Nicolas Sarkozy
> Entre a literatura e o jornalismo
Em De paixões e de vampiros: uma história do tempo da era, Ruy Espinheira Filho conta a história de um adolescente numa cidade do interior, a viver muitas peripécias e aventuras, no início dos anos de 1960. A trama gira em torno de um estágio em jornal que o personagem faz, a cobrir as heróicas campanhas políticas para presidente envolvendo o Homem da Vassoura, o Rouba Mas Faz e o General que falava da espada como símbolo da vida e não da morte. As situações pitorescas e que provocam gargalhadas perpassam quase todo o livro. Espinheira reconstrói a linguagem peculiar da província, com uma riqueza vocabular que não deixa nenhum diálogo ou passagem em regime de incompletude. (LCM)
O estreante Bernardo Arraes de Alencar Valença surge com Onomatopéia do silêncio, trazendo todos os defeitos (a necessidade de afirmação a todo custo, mesmo em assuntos que ainda não domina) e qualidades (a sugestão de coisa sincera, incontaminada) dos iniciantes. O recurso que mais usa na sua poesia é a repetição de um ou mais versos no início de estrofes, conhecido como anáfora. Seus poemas se concretizam como resultantes de vivências de paixões e amores frustrados, de solidão e solidariedade, com o tempo também se fazendo presente. Apesar da sua juventude, ele se mostra por inteiro, sem escamotear nada, sem refrear seus impulsos. E isto é um bom sinal nos novos poetas. (LCM)
Em princípios de 2007, a França se encontrava dividida: de um lado, os partidários da socialista Ségolène Royal, do outro, a direita seguidora de Nicolas Sarkozy. Este, em um dos últimos discursos de campanha, resolveu atacar um inimigo inadvertido, o Maio de 68 – o celebrado e controvertido Maio francês. Mesmo apoiando Sarkozy nas eleições, o filósofo André Glucksmann, ex-maoísta que teve uma participação ativa nos movimentos de 1968, sente-se incomodado com aquelas palavras de negação de toda uma época e resolve, junto com seu filho Raphaël Glucksmann, escrever um livro “esclarecendo” Sarkozy sobre a importância e as reverberações daquele período na configuração da cultura contemporânea.(Eduardo Cesar Maia)
As obras ficcionais de George Orwell (1903-1950), como A revolução dos bichos e 1984, ambas de cunho político acentuado, já lhe garantem um lugar entre os grandes escritores do século 20. Ao ler suas reportagens e resenhas jornalísticas presentes no volume Literatura e política, pode-se atestar também que sua acuidade intelectual e capacidade de compreensão atingiam muito além do que estava na superfície dos fatos. Os textos selecionados, escritos entre 1942 e 1948 para o jornal britânico Observer, tratam dos temas mais prementes da época: a Segunda Guerra, a resistência francesa, o colonialismo europeu na África, além de algumas resenhas sobre livros e intelectuais do período. (ECM)
De paixões e de vampiros Ruy Espinheira Filho Bertrand Brasil 240 páginas 35,00 reais
Onomatopéia do silêncio Bernardo Arraes de Alencar Valença Edições Bagaço 82 páginas 17,00 reais
Maio de 68 explicado a Nicolas Sarkozy André e Raphaël Glucksmann Editora Record 240 páginas 37,00 reais
Literatura e política George Orwell Jorge Zahar Editor 238 páginas 37,00 reais
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MÚSICA
Sexo, drogas, rock’n’roll e depressão
“E
demais, os seus pesadelos com as drogas pesadas e o alcoolismo, e os casos conturbados com as mulheres que passaram por sua vida, entre elas, Pattie Boyd, exmulher do beatle George Harrison, a quem dedicou Layla, uma de sua suas mais belas canções. E, ainda, as mortes de amigos chegados, familiares e, no capítulo mais triste, a morte de seu primogênito, Conor, que despencou do 49º andar de um prédio em Nova York, aos 4 anos de idade. Para quem chegou a torrar o equivalente hoje a 8 mil libras por semana em heroína e cocaína nos anos 70, até que Eric Clapton se recorda de muita coisa. Hoje, ainda na vida artística, recuperado, é um sossegado pai/avô de três filhas, “surdo, preguiçoso e rabugento”, vivendo de pescarias, caçadas e ajudando outras pessoas em programas de reabilitação de dependências. (Luiz Arrais)
>Telenovelas na ótica do cinema
>O patrimônio e a cultura em guia
>A performance nas artes visuais
>Alteridade: a fome e a comida do outro
Enquanto em outros países do mundo a referência dramatúrgica mais popular é o cinema ou as séries televisivas, no Brasil essa área é dominada pelas novelas. Em Telenovela – Um olhar de cinema, José Roberto Sadek volta um olhar cinematográfico para esse fenômeno da televisão brasileira, tomando como base os estudos da narrativa clássica do cinema. Sua proposta não é fazer uma comparação direta, tentando encaixar as telenovelas nos paradigmas da cinematografia. O autor utiliza os modelos audiovisuais sistematizados pelo cinema clássico como um ponto de partida, um guia para refletir sobre as novelas, já que ainda são poucas as referências teóricas na área. (Mariana Oliveira)
Neste livro, a socióloga Lúcia Lippi Oliveira apresenta a sua leitura da história da cultura e do patrimônio no Brasil. Como fica claro no título da obra, Cultura é patrimônio – Um guia, o leitor é levado a uma primeira aproximação com o tema, sempre discutindo a herança que foi deixada por nossos antepassados e aquela que será deixada para as futuras gerações. Neste caminho, passamos por momentos em que a nossa cultura estava mais preocupada com o que acontecia fora do país e outros em que nos voltávamos às nossas raízes, à brasilidade. Ao final de cada capítulo, a pesquisadora registra uma vasta bibliografia que ajuda os interessados em aprofundar seus conhecimentos nesse campo. (MO)
Faz tempo que os suportes artísticos deixaram de ser apenas a pintura e a escultura. Na arte contemporânea, tudo pode servir de base para o trabalho de um artista. Entre essas possibilidades está a performance, termo que se remete, usualmente, ao uso do corpo como parte da obra, em uma ação ao vivo, assistida pelo público. É a ampliação desse conceito restrito do termo que a pesquisadora Regina Melim propõe em Performance nas artes visuais, que faz parte da coleção Arte+ , Jorge Zahar Editor. Esse suporte pode e deve ser pensado como um desdobramento da pintura e da escultura, com forte cunho interdisciplinar (dança, teatro) e pontos de contato com a arte conceitural dos anos 70. (MO)
O doutorando em Literatura Comparada, Rodrigo Labriola, parte da fome de conhecimento, riqueza e poder, inerente à história de um sangrento século 16, para chegar ao tema principal do livro: a comida. Enfatizando a alteridade, o confronto cultural entre “conquistadores e conquistados”, o autor argentino traça um paralelo entre as fomes “do ouro” e “do outro”. A pesquisa se baseou numa análise das Crônicas das Índias – reunião dos registros escritos por desbravadores europeus – e na obra História general de las cosas de la nueva España, de Bernardino de Sahagún. A fome dos outros ressalta o valor epistemológico da comida – mais conhecida como fim do que como princípio. (Thiago Lins)
Reprodução
ric é Deus”, diziam os grafites espalhados pelas ruas de Londres. Para quem era louvado desta maneira, a vida aqui na terra nem sempre foi fácil. Desde criança, na pobreza, criado pelos avôs, no papel de pais, o guitarrista Eric Clapton, apesar do sucesso musical em sua carreira, sempre conviveu com terríveis problemas pessoais. É o que se constata em sua autobiografia, lançada no Brasil pela Editora Planeta. São mais de 400 páginas, onde o músico refaz sua trajetória, desde os problemas na escola até o seu relacionamento difícil com mulheres. O livro é dividido em capítulos com as trajetórias das bandas lendárias de que participou, desde os Yardbirds, Cream, Bluesbreakers e Derek and the Dominos. Nos
Telenovela – Um olhar de cinema José Roberto Sadek Summus Editorial 151 páginas 31,00 reais
Cultura é patrimônio – Um guia Lúcia Lippi Oliveira FGV Editora 192 páginas 30,00 reais
Eric Clapton – a autobiografia Editora Planeta 400 páginas 44,90 reais
Performances nas artes visuais Regina Melim Jorge ZaharEditor 74 páginas 22,00 reais
A fome dos outros Rodrigo Labriola EdUFF 200 páginas 25,00 reais
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Ilustração: Jarbas
Difusa identidade entre dois gênios Machado de Assis e Guimarães Rosa: diferenças e semelhanças entre os dois maiores nomes de nossa literatura Daniel Piza
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uspeito que Joaquim Machado de Assis não gostaria de João Guimarães Rosa. Machado era a favor de uma linguagem clara, sem neologismos, com pontuação corrente. Era avesso ao misticismo e tinha o olhar concentrado nos costumes urbanos, em geral da classe privilegiada e da classe média então emergente. Quanto a Rosa sobre Machado, seus diários alemães deixam claro que a recíproca era verdadeira. Rosa se queixou das atitudes e artifícios do estilo, que considerava pernóstico e tedioso, embora no discurso de posse da Academia Brasileira de Letras tenha elogiado o “ver claro e quieto” do primeiro presidente da ABL. Recriminou, acima de tudo, o “egoísmo” de Machado, sua visão pessimista, desolada, da natureza humana.
Daí a diferença entre suas literaturas. Enquanto Machado é intimista, urbano e cético, Rosa é épico, rural e otimista. Em geral, também seus leitores se dividem. Os que acham Machado “o maior escritor brasileiro de todos os tempos” gostam menos ou pouco de Rosa, de seu mundo de jagunços que falam de um jeito tão característico. Os que acham Rosa o maior tendem a partilhar seu tédio diante das histórias de adultério ensimesmadas, quase sem o Brasil ao fundo. Rosa, para os primeiros, é chato por tratar de um mundo de escassa conexão com a vida real e presente da maioria dos leitores. Machado, para os segundos, é chato por sua escrita heterodoxa e seu cenário arcaico.
tre ambos, que são tão aparentes e confessas, do que parar e examinar o quanto eles têm em comum. Já citei em outra ocasião que os dois, por exemplo, têm um conto com o mesmo título, O Espelho. O de Machado trata de um homem que se veste de alferes diante do espelho do quarto e começa a ser tomado pelo personagem, como se a “alma exterior” assumisse o controle da “alma interior”. Aquilo esgota suas forças, quase o põe louco, até que um dia ele olha de novo e vê uma figura “vaga, esfumada, difusa,
No entanto, é muito mais fácil falar das diferenças en-
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ESPECIAL
Imagens: Reprodução
Pince-nez e caneta de Machado de Assis sobre livro autografado pelo escritor
sombra de sombra”. No de Rosa o personagem não vê duas almas em uma figura só, mas vê sua figura duplicada em outro espelho, de perfil, e sente repulsa. Também fica sem se olhar por um tempo até que não vê mais nada, informe, desalmado, despojado de si mesmo, “até a total desfigura”. Não sei se Rosa tinha lido o conto de Machado antes de escrever o seu, mas o fato é que o diálogo, involuntário ou não, parece explícito. Se o de Machado tem o subtítulo esboço de uma nova teoria da alma humana, o de Rosa poderia ter o mesmo, mas com conclusões diferentes. Em Machado o ser humano é dividido, uma constante luta entre o que é e o que aparenta ser, sem resolução final. Em Rosa o ser humano tem dificuldade em ver a si mesmo na totalidade, por isso perde sua identidade. Estamos diante, portanto, de dois escritores com filosofias diferentes. Ao mesmo tempo, eles partilham uma grande preocupação: a superação do dualismo, da idéia pós-cartesiana de que corpo e alma não se misturam. Em Machado, essa superação nunca será satisfatória. Em Rosa, ela pode
ser em alguns momentos, de grande felicidade (“o sol entrado”, como descreve o amor por Diadorim), em veredas de alimento e repouso que levaremos para sempre na memória mesmo quando no deserto. Partilhar uma preocupação filosófica é fundamental quando se trata de dois ficcionistas, de dois artistas, por mais pensadores que esses artistas são. Primeiro, por isso mesmo: tanto Machado como Rosa não queriam ser meros contadores de história, de narradores superficiais; estavam interessados em revelar os subterrâneos da existência, as correntes profundas sob a agitação da superfície, e para isso lançaram mão de recursos como a mistura de gêneros. Segundo, porque eles projetam essa questão do conflito entre corpo e alma para um ambiente que é o brasileiro. O que eles escreveram e disseram nos permite afirmar que tal salto não é “forçar a barra”. Machado mais de uma vez se referiu à questão das visões opostas sobre o Brasil, como no ensaio Instinto de Nacionalidade, onde combateu tanto a literatura regionalista que exagera na cor local como a co-
lonizada que imita modas estrangeiras. Rosa deixou claro em entrevistas que Grande Sertão: Veredas fala sobre o dilema brasileiro entre seguir o rumo da civilização letrada e preservar o encanto das relações afetivas. Em outros termos, ambos diagnosticaram no Brasil a mesma identidade difusa que viram em seus personagens diante dos espelhos. Isso vale para Bentinho, em sua tentativa de reconstruir o passado e entender a “dissimulada” Capitu, e vale para Riobaldo, nas lembranças que conta para seu compadre sobre a paixão que sentiu por um jagunço que era mulher. Não estou dizendo que esses personagens são metáforas do país, o que seria uma limitação em que a dupla de gênios jamais caiu. Por sinal, Machado, no ensaio citado, se recusou a definir nacionalidade, falando apenas em um “certo sentimento íntimo”; Rosa também declarou que a tal “brasilidade” é algo indizível, incapaz de ser classificada em regionalismos e estrangeirismos. Mas que ambos escreveram sobre o Brasil, esse
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Machado de Assis entre escritores e intelectuais da Academia Brasileira de Letras
tema ainda tão rico e tão mal explorado, não resta dúvida de que escreveram. Daí a semelhança entre suas literaturas. Algumas dicotomias são onipresentes em todos os seus livros: Deus x diabo, razão x paixão, civilização x instinto, local x internacional, corpo x alma. Machado como que se abstém de optar, apesar de incrédulo; Rosa opta pela crença, mas porque “o diabo não existe, por isso é tão forte”. O que nenhum dos dois jamais apreciou foi ser classificado dessa forma. Inclassificáveis, eles se encontram no lugar onde a literatura transcende os posicionamentos ideológicos ou religiosos. O que fascina é o seguinte: se Machado é um racionalista, o é de modo peculiar, pois entende as inclinações românticas; e se Rosa é um metafísico, também o é de modo peculiar, pois não adere a sistemas. O adjetivo “peculiar” é o que há neles de mais substantivo... Eu, do mesmo modo, não quero ter de optar entre os dois. Rosa nasceu no ano em que Machado morreu e por isso costumo dizer que um é o maior escritor brasileiro do século XIX e o outro do XX. Releio Machado mais vezes e acho irônico que Rosa tenha se queixado dos artifícios do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, pois sua linguagem é ainda mais afetada. Mas cada vez que releio algumas páginas de Rosa, digamos de Corpo de Baile, me sinto num mundo inigualável, de prosa poética inesquecível, ainda que Machado talvez não fosse capaz de assimilar seu conceito de “mistério”. Quem continuou a viver foi a literatura brasileira, essa continuidade feita de tantas formas difusas.
A obra de Guimarães Rosa é épica, rural e otimista JUN 2008 • Continente x
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ESPECIAL
Gigantes maiores do que a TV e o cinema? Imagens: Divulgação
As adaptações das obras de Machado e Rosa para o cinema e a televisão Fernando Monteiro
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ão é nenhum fato extraordinário que, em cada cultura, as iniciativas de adaptação de livros para o cinema priorizem os seus clássicos antigos e novos. A obra que atravessou o tempo e que, de algum modo, permanece nova (e que justamente por isso é “clássica”) e aquele clássico – moderno – que já nasceu clássico e, assim, pôde se impor à sua época mesma, tudo isso atrai produtores e cineastas respectivamente interessados na fama ou no desafio da obra renomada ou no autor consagrado. No Brasil, são dois os casos que se encaixam nessa rubrica: o do carioca Machado de Assis e o do mineiro João Guimarães Rosa. Carioca? Mineiro? Que importa
onde tenha nascido, acaso, um clássico que transcende fronteiras internas e até aquelas das nações? Machado é considerado, unanimemente, o maior romancista brasileiro, e Rosa é o monumento moderno da nossa prosa – com ou sem rima. E ambos foram necessariamente levados para a tela, se bem que com menos acertos de transposição do que com resultados medianos, em geral, e, alguns, até pífios para a estatura das obras de origem: os contos e romances desses dois gigantes. Comecemos por fazer um rápido inventário das versões cinematográficas das narrativas do “bruxo” do Cosme Velho, sutil como um mandarim na sua arte de rendilhados e penetrações psicológicas – de modelo
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O primeiro filme feito a partir de um texto seu foi o curta-metragem Um apólogo, baseado no texto homônimo. Quem o dirigiu foi o pioneiro Humberto Mauro, com a colaboração de Lúcia Miguel Pereira, em 1936. Três anos depois, o mesmo Mauro – agora junto com Roquette Pinto – curiosamente repetiria a dose, fazendo um novo curta com base na mesmíssima obra do fundador da Academia Brasileira de Letras. O nosso escritor maior só voltaria a fornecer o argumento para uma produção cinematográfica 22 anos depois, em 1961, quando o argentino Carlos Hugo Christensen resolveu rodar o medíocre Esse Rio que eu amo, um filme de episódios entre os quais se encontra aquele inspirado em Assis: Noite de almirante. Sete anos depois, apareceria outra longa: Viagem ao fim do mundo, livremente baseado nos capítulos “O Delírio” e “O Senão do Livro”, da obra-prima Memórias póstumas de Brás Cubas, sob a direção do desigual Fernando Cony Campos. Quando o carioca Cony acertava – como em Ladrões de cinema –, ele costumava oferecer narrativas ágeis e inspiradas, porém, quando errava a mão (e a mão de FCC esteve bem pesada nessa obra feita a machadadas), Campos errava feio, reconheçamos.
Em 1968, surgiria o primeiro filme debruçado sobre Dom Casmurro, dirigido por um cineasta de talento – Paulo César Saraceni –, com o título mais feminino de Capitu, e que só ficaria a nos dever somente aquele “olhar de ressaca” da personagem (algo entre a mirada enevoada de Anecy Rocha e os olhos-de-mormaço da jovem Norma Benguell) vivida por uma atriz mal-escolhida: Isabella Campos. No mais, um filme cercado de talentos, desde o roteiro do próprio diretor e do casal Paulo Emílio Salles Gomes e Lígia Fagundes Telles, até a excelente fotografia de Mário Carneiro e a música do pernambucano Marlos Nobre. Três anos depois, o ótimo O alienista seria transposto para a tela por Nelson Pereira dos Santos, com o título de Azyllo muito louco. Esse longa, bem-humorado e delirante (como não poderia deixar de ser), iria abrir, afinal, uma espécie de “filão” de Machado de Assis no cinema brasileiro dos anos “embrafílmicos”, digamos, com A causa secreta (1972), adaptado e dirigido por José Américo Ribeiro, baseado no conto do mesmo título; A cartomante (1974), de Marcos Farias, baseado no relato homônimo; O homem célebre (1974), de Miguel Faria
Divulgação
stern-sthendaliano – achatados em filmes que raramente conseguiram transmitir ao menos uma centelha do melhor da obra de um mulato genial, o Joaquim Maria Machado de Assis criador em vários gêneros, ao ponto de se deixar dispersar na crônica e em muita coisa mais que não estava abaixo da aplicação do seu espírito pleno (entretanto, Machado escreveu pelo menos duas obras-primas indiscutíveis: Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, além de jóias bem trabalhadas como O alienista).
Memórias póstumas de Brás Cubas na versão cinematográfica dirigida por André Klotzel
Jr, também baseado no conto com esse título; Confissões de uma viúva moça (1976), de Adnor Pitanga, e Que estranha forma de amar (1977), de Geraldo Vietri, a partir de um romance que há muito já merecia ter ido para o cinema: o leve e delicioso Iaiá Garcia. A década seguinte veria duas produções roteirizadas a partir de obra de Machado: em 1985, o Brás Cubas de Júlio Bressane (e aqui é literal: esse “Brás” é muito mais o de Bressane do que do clássico Assis), e o Quincas Borba (1986) de Roberto Santos, baseado no romance homônimo, com a qualidade que sempre foi característica do diretor paulista. Em 1994, o bom Sergio Bianchi faria a sua versão de A causa secreta, mantendo o título original. No novo século – e milênio – Machado teve mais uma vez adaptado o Memórias póstumas, em 2001, pelas mãos do cineasta paulista André Klotzel que, como quase todo mundo, havia lido o livro no ginásio e ficara com as ironias, as rupturas e os parênteses da narrativa na cabeça. Porém Klotzel não foi inteiramente feliz na tarefa de transpô-los para a tela, uma vez que todo diretor às voltas com o Brás Cubas terá que encontrar uma JUN 2008 • Continente x
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Imagens: Divulgação
ESPECIAL
Mutum (2007), de Sandra Kogut: uma competente adaptação de Rosa para o cinema
boa solução para a verborragia do personagem, e, pior, para o fato da narrativa de Machado evitar “contar a história”, enquanto um filme – exceto nas mãos dos Júlios Bressanes – tem que, pelo contrário, narrá-la coerentemente para o espectador (sem se tornar redundante e prolixo, como filme). O último Machado transposto para o cinema foi Dom, de Moacyr Góes, em 2003. Um elenco estelar – Marcos Palmeira, Maria Fernanda Cândido, Bruno Garcia e Luciana Braga – numa produção mais pretensiosa (como roteiro e direção, principalmente) do que realmente à altura do fino tecido ficcional do Dom Casmurro. Se Machado de Assis é um marco desafiador do romance brasileiro, o outro monstro sagrado que oferece ainda maiores dificuldades no cinema é o escritor do mundo das Gerais, João Guimarães Rosa, também autor de pelo menos duas obras-pri-
mas modernas: as nove novelas que compõem o original Sagarana e o grande romance que é Grande Sertão: Veredas. Este foi adaptado, em 1965, pelos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira, com resultado apenas regular (se não medíocre). O ano seguinte é que traria a sensível transposição de A hora e a vez de Augusto Matraga, feita por Roberto Santos, com uma fidelidade diegética ao livro de Rosa – o que talvez frustre apenas quem espere ver no aclamado filme a marca de alguma inovadora linguagem rosiana buscada em equivalente visual, enquanto Santos resolveu privilegiar o lado de relato quase western de Matraga. Uma das narrativas de Sagarana – “O Duelo” – seria levada ao cinema pelas mornas mãos do mineiro Paulo Thiago, em 1973. O filme foi indicado ao Urso de Ouro no Festival de Berlim de 1974, mas é uma obra aquém da força do substrato literário original. O gênio de Rosa ia
além do ato de escrever: ele inventava palavras a partir de vocábulos arcaicos, reformava designações populares e tinha domínio de várias línguas (falava pelo menos sete), tudo isso a serviço de uma prosa de carga poética que merece ser lida até em voz alta. Ao contrário de Thiago, outro mineiro – Carlos Alberto Prates – soube “transferir” essa carga para o praticamente filmusical Noites do Sertão (1984), admirável realização livre para criar em cima do “mote” de origem: o mundo ficcional de Guimarães Rosa. Em 1994, essa tentativa seria renovada – sem os mesmos alcances de Prates – por Nelson Pereira dos Santos, em A terceira margem do rio, e a produção seguinte a se destacar, em termos de adaptação do escritor mineiro para o meio audiovisual, seria assinada pelo hoje lamentável apresentador do Big Brother, o jornalista Pedro Bial. Quando esse antigo Bial se preocupava com o Grande Irmão Rosa – e não com os descerebrados participantes do reality show que hoje “anima” de todas as formas –, o rapaz tinha na cabeça o belo Noites do Sertão e também A hora e a vez de Augusto Matraga. Pedro acalentava, desde adolescente precoce, o projeto de dirigir um longa-metragem de ficção baseado no escritor sobre o qual viria a se treinar no documentário Os nomes do Rosa, veiculado pelo canal GNT. Quando partiu para o longa, escolheu cinco contos de Primeiras estórias (livro publicado em 1962): Famigerado, Os irmãos Dagobé, Nada e a nossa condição, Substância e Sorôco, sua mãe, sua filha, os quais confiou ao dramaturgo Alcione Araújo, para a roteirização “amarrada”. São relatos de vingança e ofensas tornadas fatais, entre sertanejos e jagunços, na imensidão mítica do sertão mineiro, tudo recriado pela linguagem inovadora de Rosa – e o resultado foi tão apreciável quando a adapta-
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Fidelidade e apuro na adaptação de Grande sertão: veredas para a TV
ção, igualmente difícil, que Aluizio Abranches fez do Raduam Nassar de Um copo de cólera. Nas palavras do jornalista (por ocasião do lançamento do filme que se chamou Outras estórias): “Quando li Primeiras estórias, fiquei chapado, nunca tinha visto ninguém escrever daquele jeito, praticamente criando um novo idioma com estórias de uma profundidade abissal, eu não sabia nem que a literatura poderia ser daquela maneira. O filme é uma transposição desse universo rosiano abordando justamente seus temas mais marcantes e universais, presentes em toda obra do autor: a morte, o medo da morte, a sede de justiça, o amor e a loucura. Escolhi especificamente estes cinco contos porque eles tratam destes temas fundamentais da obra de Guimarães e me pareceram os mais passíveis para uma transposição cinematográfica”. A mesma paixão – se não necessária, ao menos aconselhável para quem se proponha a levar uma grande obra literária para o cinema – foi recentemente revelada pela cineasta Sandra Kogut, diretora de Mutum (2007), longa-metragem franco-brasileiro baseado na novela Campo Geral, do livro Manuelzão e Miguilim.
Mutum é “um lugar longe, longe daqui, muito depois da Vereda-doFrango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto no meio dos campos gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra”. Sandra procurou transformar a prosa poética de Guimarães Rosa em poesia visual, e o resultado é um filme mais rosiano, ainda, do que Outras estórias e A hora e a vez de Augusto Matraga. Imerso no universo da oralidade sertaneja (e de Rosa em particular), Mutum mantém o barroquismo do texto original, sem tornar isso uma encenação artificial como os exageros da recente adaptação televisa do romance A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna. Chegamos ao território da TV, e, de propósito, deixamos para o final o elogio de uma minissérie da Rede Globo que, em 1985, alcançou surpreendente resultados – nas mãos de Walter George Durst e Walter Avancini – em se tratando de levar para o grande público as belezas e estranhezas do universo do escritor da mineira Cordisburgo. Em 25 capítulos, uma misceen-cene ao mesmo tempo áspera e poética pôs Grande Sertão: Veredas na telinha, com uma fidelidade e um apuro como jamais mereceu o
grande Machado de Assis na TV, inexplicavelmente. Foram poucas, até agora, as adaptações das suas obras, todas produzidas pela Globo: Helena (1975), romance adaptado por Gilberto Braga, com direção de Herval Rossano; a minissérie O alienista (1993), dirigida – sem muito brilho – pelo pernambucano Guel Arraes, e outra minissérie, ainda menos inspirada, baseada no conto Trio em lá menor. Essa última adaptação de Machado para a TV, já conta quase 10 anos, tendo sido assinada por Geraldinho Carneiro e dirigida, quase burocraticamente, por Luciano Sabino. Quanto a Machado de Assis, portanto, a televisão brasileira ainda está por lhe fazer justiça do mesmo modo como – por uma vez, ao menos – produziu uma minis-série realmente fiel ao espírito do romance épico/joyceano de João Guimarães Rosa. No ano das duplas comemorações em torno dos dois gigantes literários, ainda está em tempo de pelo menos a todo-poderosa emissora do Jardim Botânico liberar pelo menos o Pedro Bial da planície infernal do BBB, para deixá-lo ir, quem sabe, de novo, em busca dos altiplanos da inteligência criativa, essa ave rara nas telinhas de Pindorama. JUN 2008 • Continente x
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ARTE
Os múltiplos D
eslizando o olhar sobre a história da arte de Pernambuco, é possível perceber como, em contraposição à energia agregadora atribuída aos artistas atuantes neste Estado, a produção artística voltada à abstração tem sido aqui uma vivência de tendência solitária. Também à revelia do que ocorreu em outras partes do mundo e do Brasil, onde artistas abstratos uniram-se de maneira bastante organizada a fim de desenvolver e legitimar sua produção, em Pernambuco não houve grupos ou movimentos estruturados em torno da vontade de produzir uma arte desvinculada da referência restrita à realidade. Apesar da existência efêmera de alguns pouquíssimos ateliês coletivos, onde membros partilhavam um mesmo interesse pela abstração, os artistas pernambucanos cuja obra voltou-se enfaticamente aos problemas formais surgidos com a arte abstrata trabalharam sozinhos, numa intensidade de troca diminuta, se comparada àquela ocorrida entre artistas abstratos de outras localidades. Talvez tal constatação contribua para a compreensão e análise das peculiaridades da produção artística abstrata de Pernambuco que, além de ser quantitativamente menos presente
do que aquela voltada à figuração e, talvez conseqüentemente, receber menor reflexão por parte da crítica e do público, apresenta uma série de especificidades que a fazem centrar-se não só em preocupações construtivas e formais, como também simbólicas, espirituais e, inclusive, regionais que, por fim, terminam por torná-la merecedora de olhar atento. Cúmplice central não só do diálogo de Pernambuco com a produção abstrata de outras partes do país e do mundo, bem como hábil interlocutor entre abstração e figuração e, sobretudo, um dos principais artistas do Estado a desdobrar as pesquisas artísticas não-figurativas em inúmeros trabalhos para-alémpintura (filiando-se à arte conceitual e desaguando suas preocupações formais e semânticas em objetos, esculturas, livros de artista, colagens, maquetes, poesia visual etc.), Montez Magno é, certamente, um desses artistas sobre os quais urge plasmar um pensamento crítico. No contexto da década de 50 no Recife, quando o embate entre “acadêmicos” e “modernos” fazia-se foco artístico da cidade em disputas simbólicas entre os artistas vinculados à Escola de BelasArtes e aqueles participantes do Ateliê Coletivo da Sociedade de Arte Moderna, Montez
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Montez Magno
O artista pernambucano assume possíveis contradições como virtudes, aproximando-se dos modelos indicados como produção de arte contemporânea Clarissa Diniz Fotos: Flávio Lamenha
O artista em seu ateliê; na página ao lado, Um lance de dados não abolirá jamais o acaso II, 1973
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Magno desencontrava-se em meio àquela polarização. Sem espaço de atuação no Ateliê Coletivo e, por outro lado, desencantado com a rápida (e desestimulante) experiência que tivera na Escola de Belas-Artes, em 1954 opta por trabalhar a sós em seu ateliê, elegendo como seus pares os livros de arte aos quais tinha acesso na biblioteca da Escola. Desse modo, progressivamente, distancia-se dos discursos e práticas figurativas perpetrados tanto pela Escola de Belas-Artes quanto pelo Ateliê Coletivo e, orientado pelas referências que encontrava nos livros e revistas trazidos por alguns dos professores que viveram na Europa, aos poucos identifica-se e aproxima-se das poéticas de artistas como o holandês Piet Mondrian e o russo Kasimir Malevitch. Em 1956 brotavam, assim, suas primeiras experiências abstratas que, ao lado daquelas dos contemporâneos Aloísio Magalhães e Anchises Azevedo, constituem – na seqüência das investigações pontuais dos irmãos Vicente e Joaquim do Rêgo Monteiro (ainda na década de 20), Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres (esparsas ao longo de suas trajetórias) –, talvez, a primeira obra pernambucana centrada nas questões da abstração e seus desdobramentos. Ainda que drasticamente distinto da maior parte da arte pernambucana de então, o trabalho de Montez Magno dialogava horizontalmente com as mais atuais investigações artísticas que vinham ocorrendo no sudeste brasileiro, aproximadamente a partir de 1949, quando em São Paulo começam a ocorrer as primeiras exposições dedicadas à abstração, e acontece, em 1951, a 1ª Bienal de São Paulo que, além de apresentar inúmeros artistas europeus – cujas obras carregavam preocupações construtivistas –, premia Max Bill e Ivan Serpa com trabalhos de igual caráter.
Reprodução
ARTE
Montez Magno, no Rio de Janeiro, manipulando uma de suas esculturas
Pinturas da Série Barracas do Nordeste, 1998
O contexto pernambucano de arte era tão díspar daquele do sudeste do país, que se faz sintomático observar que, em 1952, quando era oficializado o movimento concreto brasileiro, no Recife era criado o Ateliê Coletivo, cujos princípios – grandemente influenciados pelo muralismo dos mexicanos Rivera e Orozco – de uma arte figurativa voltada ao engajamento político-social eram completamente opostos àqueles acreditados pelos concretistas, cuja intenção maior era desvincular a produção artística da realidade, concedendo-lhe autonomia formal e simbólica. O desenvolvimento do trabalho de Montez Magno coincide e se
relaciona, portanto, menos com a produção artística da década de 50 no Recife do que com as pesquisas construtivas brasileiras e, mormente, com a ruptura provocada pelo Neoconcretismo, cuja flexibilização dos princípios geométricos do movimento concreto, incorporação de aspectos intuitivos e, posteriormente, desdobramentos que expandiram as tradicionais concepções de pintura e escultura, possuíam relação estreita com a produção que o artista viria a desenvolver durante a década de 60. O diálogo estabelecido entre sua produção e aquela em amadurecimento no sudeste brasileiro esclarece a peculiaridade e importância que já nos fins da
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Vista da exposição individual do artista, no IBEU, Rio de Janeiro, 1968
década de 50 tinha Magno não só para Pernambuco, bem como para o restante do país – em 1959, sua obra é apresentada na Bienal de São Paulo e, no mesmo ano, ele realiza uma mostra individual na galeria do Instituto Brasil Estados-Unidos (IBEU), no Rio de Janeiro. É preciso entender que a obra de Montez, apesar de dialogar sobretudo com aquela dos artistas neoconcretos brasileiros – por conta de seu distanciamento dos rígidos formalismos geométricos e, por outro lado, em virtude de sua aproximação a uma geometrização sensível e provocativa –, a tal movimento, todavia, não se filia diretamente por possuir também preocupações diversas e bastante específicas. Já tendo herdado uma concepção de arte que se entende como dotada de autonomia, o artista não dedicou sua obra à reafirmação de tal assertiva nem buscou contradizê-la, mas ousou expandi-la ao desenvolver um trabalho que, já partindo do pressuposto de sua autonomia, buscou problematizar a relação da arte nãofigurativa com a realidade. Assim surgiram inúmeros desdobramen-
tos a partir da tradição da pintura e da escultura abstratas que, além de incorporar aspectos estéticos e semânticos diretamente advindos do universo da cultura, também exploraram criticamente a tradição de tais linguagens, gerando assim um conjunto de trabalhos que, questionadores, passaram a se relacionar diretamente com o espectador e/ ou ambiente, bem como migraram para experimentos baseados em outras mídias ou, ainda, acabaram por se reconhecer em práticas artísticas mais conceituais e, inclusive, metalingüísticas. Assim, nos últimos anos da década de 60, a produção do artista configurava-se já num conjunto de trabalhos bi e tridimensionais que, indo muito além da investigação construtiva realizada unicamente por meio de pesquisas pictóricas, expandia-se em experiências espaciais que incluíam, em sua construção, o ambiente, o tempo e o espectador. É de 1968 uma escultura composta por lâminas avulsas de alumínio, cuja formação espacial dependia unicamente da manipula-
ção do artista ou do espectador. Sem forma previamente definida e infinitamente passível de ser reinventada, a escultura de Magno problematiza a história da sua própria linguagem e se relaciona às pesquisas que vinham à época sendo desenvolvidas por Lygia Clark. Imbuído de preocupações formais em consonância com aquelas que levaram a artista a criar seus famosos Bichos (1960), Montez apresenta, em 1968, no carioca IBEU, um complexo corpo de trabalhos que, em interação direta com o espaço e o público, ocupavam paredes, teto e chão da galeria. Os objetos daquele ano viriam a ter sua concepção ambiental de arte ampliada em trabalhos futuros que tanto formal quanto simbolicamente passaram a fundir-se cada vez mais com o espaço e/ou com a cultura. O raciocínio abstrato que levara Mondrian a afirmar que no futuro já não precisaríamos de “quadros” pois viveríamos em meio à “arte realizada”, e que gerara, por exemplo, o pensamento da Bauhaus, vem resvalar na produção de arte brasileira de maneiras diversas, como ocorreu JUN 2008 • Continente x
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ARTE em obras como as de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Montez Magno que, além de criar inúmeras esculturas e objetos com preocupações ambientais (a exemplo dos Penetrantes), a partir de 1972 inicia o desenvolvimento de uma série de maquetes de cidades, museus e esculturas/ monumentos site specific. Interessado em expandir seus princípios construtivos, Montez percorria um caminho que o levara da pintura ao espaço expositivo, e deste ao urbanístico. Ambiciosas e normalmente realizadas com materiais do cotidiano, suas investigações arquitetônicas jamais foram levadas a cabo, mas o princípio de unidade entre arte e mundo que as permeia faz-se presente em outras obras do artista. A relação de sua produção com a espiritualidade é testemunha de tal concepção una de arte. Ligada à filosofia tantra, a obra de Montez encarna o unipluralismo e, por vezes, os simbolismos desta filosofia em trabalhos de clara conotação espiritual, como as séries de pinturas/objetos Negra (1961), Branca (19921998) e Tantra (1973-2006). Desenvolvida inteiramente a partir de pinturas monocromáticas, a Série Branca transcende as preocupações construtivas e se entrega ao desejo de dar à arte certo caráter transcendental ao lidar com as sensações do sublime, da evanescência e da sutileza, características instauradas com a precisa exploração das dimensões, texturas e luz da pintura. Já em Tantra, além do interesse em fazer uso dos símbolos desta doutrina, mantém-se mais fortemente a pesquisa construtiva que, ao articular tais elementos de maneira própria, faz com que aludam a significações outras que não apenas àquelas vinculadas exclusivamente aos referenciais tântricos. Assim, a partir da incorporação e
releitura de elementos da cultura espiritual assimilados aos princípios construtivos, o artista gera um conjunto de obras que contribuem no aprofundamento das questões formais trazidas com as primeiras experiências abstratas brasileiras. Mais adiante, tal contribuição acontece enfaticamente também em séries como Fachadas do Nordeste (1994), Teares de Timbaúba (1994) ou a extensa Barracas do Nordeste (1972-1998), nas quais, a partir de larga pesquisa e registro do universo imagético da cultura popular presente em fachadas de casas, barracas, caminhões etc., Montez cria trabalhos de forte caráter construtivo mediante a desarticulação dos desenhos originais obtidos dessas fontes, mantendo, por outro lado, aspectos estéticos fundamentais como cores e formas. O artista assim percorre, a seu modo, o caminho feito por Alfredo Volpi, cuja obra alcança a abstração a partir da desconstrução dos elementos formais de suas pinturas de vilarejos, marinas ou folguedos populares. As séries do pernambucano, no entanto, instauram menos uma atmosfera nostálgica do que um olhar atual e analítico acerca da cultura popular, como mais tarde o fariam artistas como Delson Uchôa, Martinho Patrício, Emanuel Nassar e Marcone Moreira, entre outros. Também no contexto da arte em Pernambuco, a atenção posta por Montez sobre as referências populares diferencia-se da desenvolvida por artistas como Abelardo da Hora, cujo comprometimento sócio-político condicionava sua obra a leituras que fossem socialmente reconhecíveis e que, apesar de possuir uma concepção de responsabilidade social, dificultava, por outro lado, possibilidades de desvio em relação às visões lugar-comum do povo. A apropriação formal da estética popular realizada Em alguns dos seus trabalhos, Montez relaciona sua imagem com a de Marcel Duchamp (E)
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Acima, Caixas, 1967. Um lance de dados não abolirá jamais o acaso I, 1972
por Magno em inúmeras séries é somente parte de sua recorrente prática de fazer uso de formas, simbolismos, objetos e acasos do cotidiano em sua obra. Suas apropriações o levaram a realizar inúmeros livros de artista, objetos, poemas visuais e maquetes, cujo fio condutor é a ação de fazer ver construção, poesia ou ironia no ordinário. É o caso dos objetos-livros Caixas (1967) – realizados mediante apropriação de estojo escolar, no qual, a partir das cores a ele aplicadas, é revelado seu raciocínio construtivo –, Guarde as lágrimas em um estojo (1973) – grupo de cristais de vidro que aparentam lágrimas guardadas como relíquias numa caixa onde se lê o verso-título de Lautréamont, ou o livro de desenhos Traça/Traço (1992), criado a partir do delineamento do caminho de uma traça através das páginas de um livro de papel pautado. Por sua vez, Rosebud (década de 90) carrega a ironia de quem indica vida (botão de rosa) na morte (flores estetizadas em papéis de presente cuja função, ademais, é desvirtuada). Rosebud faz parte de um conjunto de trabalhos realizados desde a década de 70,
a partir das experiências com arte- postal, nos quais faz uso da xerox como ferramenta no processo de construção da imagem. Também a apropriação realizada mediante utilização de materiais precários e muitas vezes frágeis – como isopor ou espelhos antigos – é sintomática do interesse que tem o artista em questionar a perenidade e o distanciamento outrora atribuídos à arte. A incorporação direta do cotidiano, portanto, leva a produção artística eticamente de volta ao campo do social e a criação de obras deliberadamente pouco compromissadas (materialmente) com a posteridade ressalta o esforço do artista em buscar superar a estrita valorização social, econômica ou cultural que comumente se concede à arte para valorizá-la em função das vivências subjetivas e únicas que propicia à humanidade. Vale sublinhar o quanto as soluções formais empreendidas na obra de Montez Magno são conseqüentes com sua concepção de arte em unidade com a vida que, por sua vez, encontra seu ápice no momento em que o artista realiza obras efêmeras. JUN 2008 • Continente x
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Mucamas cozinhe
ARTE Data de 1969 a primeira dessas experiências: uma estrutura de arame deixada exposta aos efeitos do tempo e do ambiente até seu total esfacelamento em ferrugem. Outras relevantes investigações do artista são os trabalhos Notassons (1992) e Cromossons (1994) que, partindo dos princípios construtivos, propõem uma experiência que faz repensar os modelos culturais e de linguagem daqueles que se permitirem tomar por ela. Conjunto de desconstruções da linguagem das notações musicais, as obras sugerem uma forma outra de encarar elementos como composição, harmonia e ritmo. Com a introdução da lógica construtiva/narrativa das artes visuais na música, Montez Magno funde interdisciplinarmente tais campos e gera um poema visual que, no campo da música, é entendido como música aleatória. A referência e o diálogo com artistas seminais da história da arte é outra característica essencial da obra de Magno, cuja formação intimamente ligada aos livros continuamente o conduz a formular questões e suposições acerca da obra de artistas como Mondrian, Malevitch, Torres-García, Rodchenko, Agnes Martín, Joseph Beuys, o poeta Mallarmé e, em especial, Marcel Duchamp. As relações tecidas entre Montez e Marcel são inúmeras. Para além da rica coleção de livros e imagens de que dispõe do artista francês, Magno tem desenvolvido uma série de pequenos trabalhos que metalinguistica-
Guarde as lágrimas em um estojo, 1973
Maquete da Série Cidades Imaginárias,1992
mente comentam a obra de Duchamp, a história da arte e a sua própria produção. Grande parte desses trabalhos é realizada a partir de fotografias cujo protagonista é Marcel, e sobre as quais o pernambucano interfere de variadas maneiras – é o caso das imagens Auto xeque-mate e A última partida (ambas de 1972), onde Duchamp surge jogando xadrez contra si mesmo ou com Magno, respectivamente. A imagem de Magno aparece sempre em relação com a de Duchamp, como numa paródica montagem de 1987, na qual Montez põe lado a lado duas fotografias aparentemente iguais, mas nas quais, com olhar mais atento, percebemos diferença: à esquerda, o protagonista é Marcel, à direita, Montez. Assim, ao colocar-se visual e referencialmente ao lado de artistas cuja obra tiveram grande relevância em sua formação, o artista simbolicamente constrói, através do outro, sua própria identidade. O “eu sou muitos”– por ele outrora cunhado – sequer precisaria ser alardeado por esse artista que, além de sua obra, se dedica também a escrever ensaios sobre arte, bem como a desenvolver, desde 1951, uma relevante produção poética já publicada em dez livros. Sua identidade plural, baseada em preocupações múlti-
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as cozinhei
EXPOSIÇÃO
Mostra de Jairo Arcoverde
A
s obras mais representativas dos 45 anos de carreira do artista Jairo Arcoverde estão expostas desde o dia 20 de maio, no Museu do Estado. O evento conta com cerca de 50 quadros, além de obras em cerâmica – outra técnica dominada por Jairo. A exposição teve início no Museu do Barro, em Caruaru – onde Jairo morou entre 1980 e 1996, período em que seu gosto pela cerâmica tomou outra dimensão. Depois, quando voltou para o litoral, Jairo montou com a família sua loja na Rua do Amparo, em Olinda. A loja durou 10 anos: a família se mudou para a praia do Janga, onde construiu uma casa-ateliê, que ainda abriga as obras de sua mulher, Betty Gatis – uma das principais ceramistas de Pernambuco. A larga experiência de Jairo, que ingressou na extinta Escola de Belas Artes e foi descoberto por Lula Cardoso Ayres, pode ser conferida na exposição. (Thiago Lins)
plas, é metaforizada numa coleção de auto-retratos nos quais Montez faz ver sua porção “camaleônica”. Ainda que neles variem posições, roupas, máscaras, expressões, paisagens e outros elementos, existe um fio condutor questionador e irônico que atravessa, com coerência, toda sua diversidade. Mesmo que em sua poética encontremos aspectos à primeira vista opostos, um olhar mais cuidadoso fará perceber o quanto tais contrastes configuram-se em complementaridades. Sua obra, apesar de lidar majoritariamente com problemas postos pela modernidade, dá a tais questões uma atmosfera mais interrogativa que afirmativa e, assim, assumindo possíveis contradições como virtudes, aproxima-se dos modelos que costumamos indicar como uma produção de arte contemporânea.
Com uma trajetória que se firma, portanto, no momento histórico em que no Brasil se efetiva a passagem dos paradigmas da arte moderna àqueles da arte contemporânea, Montez Magno faz parte de uma geração que, mesmo enfrentando dificuldades políticas, consegue dedicar-se a reler a modernidade e, ao mesmo tempo, traçar as bases sobre as quais gerações futuras de artistas apoiarse-iam. O papel que sua obra – em vários sentidos guerrilheira – assumiu diante da produção brasileira e, em especial, pernambucana, é de inegável relevância, e por isso exige um debruçamento crítico capaz dela dar conta. A vitalidade de sua atual produção faz ver o quanto Montez Magno tem dado continuidade às suas pesquisas, mantendo-se inquieto como, há mais de cinco décadas, já o era.
Reprodução
Da Série Notassons, 1994
SERVIÇO Exposição de Jairo Arcoverde Museu do Estado de Pernambuco Até 30/06, de terça a sexta-feira, das 9h às 17h. Sábados e domingos: 14h às 17h Aberta ao público
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Ferreira Gullar
Nos limites do fazer Influência e experiência própria: os fatores necessários e os circunstanciais na composição da arte
P
artamos do princípio de que nada, na arte como na vida, está determinado e o que acontece poderia não acontecer. Estou convencido de que é assim que as coisas se passam. Por exemplo, o Cubismo podia não ter acontecido e, se aconteceu, foi devido à confluência de fatores circunstanciais – e outros necessários – que o tornaram possível. Isso não significa que tudo acontece aleatoriamente, por mero acaso, mas que o homem – ou o artista –, entre o que é necessário e o circunstancial, opta por este ou aquele caminho. Se não tivesse havido a retrospectiva de Paul Cézanne, no Salon d´Automne, em 1907, talvez Picasso e Braque tivessem dado outro rumo às suas buscas pictóricas. Não quer dizer que a arte moderna e que as vanguardas do século 20, obrigatoriamente, não teriam surgido, mas, sem dúvida, não teriam as mesmas características que tiveram. Se Duchamp não houvesse visitado a exposição de indústria naval, em Paris, em 1915, quando se extasiou diante de uma hélice de navio, talvez não houvesse inventado o readymade. Talvez não, talvez sim. Se ele o inventou, depois daquela visita à exposição naval, foi também porque a produção industrial ganhara presença na vida das pessoas e, por outro lado, as artes artesanais, como a pintura, pareciam fruto de uma técnica superada. A pintura a óleo sobre tela surgiu na Renascença, abrindo novos perspectivas para o pintor, que podia agora trabalhar pacientemente suas quadros, em vez de executá-los às pressas antes que o barro fresco da
parede secasse. A nova técnica possibilitou uma nova linguagem, a criação de um espaço imaginário que se desintegrará com o Cubismo, no começo do século 20. Já escrevi sobre isso, mas, agora, o que pretendo sublinhar é como a desintegração daquele espaço imaginário da perspectiva pôs o pintor na condição de ter que reinventar a pintura ou, quem sabe, acabar com ela. O descompromisso com qualquer princípio ou norma do passado, que caracterizou boa parte dos movimentos de vanguarda, levou os artistas às opções mais inesperadas, desde a invenção de uma linguagem objetivamente construída – como no Neoplasticismo – até a antiarte duchampiana. Dentro dessa perspectiva, gostaria de deter-me nas experiências realizadas por um artista, a quem nem sempre se dá a necessária atenção e que, não obstante, foi dos primeiros a dar conseqüência a algumas das possibilidades implícitas na experiência cubista. Refiro-me a Kurt Schwitters, que criou, dentro do Dadaísmo, o movimento Merz, nome que é parte da palavra alemã Kommerz (comércio). Até 1914, Kurt Schwitters era um pintor tradicional, distante das experiências de vanguarda. Depois de então, deixou-se influenciar pelo Expressionismo, pelo Fauvismo, pelo Cubismo e pelo Blaue Reiter. Mas foram os papiers-collés cubistas que abriram caminho para a nova linguagem que ele passou a inventar, substituindo os materiais “nobres” (óleo, cores, pigmentos) por restos de objetos da vida urbana, como prospectos,
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bilhetes de trem, pedaços de trapos, retalhos de cartazes, caixas de conserva, cordões, papelão enrugado etc. Essa ruptura com os materiais e as técnicas pictóricas e o uso de resíduos achados na rua levaram Schwitters a desenvolver uma experiência muito particular e original com respeito não apenas aos procedimentos artesanais, como também quanto à sua relação com a obra de arte, melhor dizendo, com o que se chamava tradicionalmente de “fazer artístico”. O processo criador desse artista dá uma salto qualitativo no momento em que ele passa da realização de colagens (telas sobre as quais colava diversos materiais), que intitulara de Merzbilder, para realizar o que chamou de Merzbau. Esta construção tridimensional consistia numa espécie de “obra em processo”, erguida dentro de sua casa e à qual, todos os dias, acrescentava novos elementos colhidos no curso de sua atividade profissional. Agente comercial – que no Brasil se chamava de “pracista” –, ia de uma casa comercial a
Reprodução
Construção Merz, de Kurt Schwitters Clark
outra, oferecendo mercadorias. Nessas andanças apanhava na rua o que lhe parecia interessante, trazia-o para casa e o acrescentava ao Merzbau. Essa obra terá sido, possivelmente, a primeira instalação, já que foi iniciada no começo da década de 30. Mas o que me parece mais importante de ressaltar é que, além de criar uma obra que crescia a cada dia – obra aberta, portanto –, alterou a relação do tempo de criação artística: em vez de trancar-se no ateliê para, naquele espaço e tempo, realizar a obra, Schwitter a realizava durante todo o dia e por onde andasse, rompendo assim os limites entre viver e criar. JUN 2008 • Continente x
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QUADRINHOS
anos de um mito americano Os altos e baixos de um super-herói símbolo da nação mais poderosa do planeta André Dib
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á 70 anos, circulava nos Estados Unidos o primeiro número da revista em quadrinhos Action Comics. O desenho da capa chama a atenção pela violência incomum para a época: um desconhecido trajando azul e vermelho destrói um carro, em torno de pessoas assustadas. Em seu peito há um grande S maiúsculo, símbolo que marcaria definitivamente o imaginário coletivo do século 20. Na última página, a própria revista anuncia o novo herói como aquele que está “destinado a refazer o destino de um mundo”. Esta foi a primeira aparição pública do Superman, personagem que não somente inaugurou, mas serviu de protótipo para um novo gênero de quadrinhos: os super-heróis. No Brasil, a data será lembrada com extensa programação e lançamentos. A editora Panini, detentora dos direitos de publicação do herói no Brasil, começou o ano lançando a série Superman Crônicas, em que as primeiras histórias são apresentadas em ordem cronológica. Já a Devir Livraria deve lançar ainda este mês o quarto e último volume da série Supremo, em que Alan Moore faz uma inteligente e sarcástica paródia do herói, no que talvez seja a melhor síntese de sua trajetória estética e conceitual. Comemorações à parte, é curioso observar como essa mitologia de semideuses defensores do american way, cujo maior representante é o Superman, está inti-
mamente vinculada ao estabelecimento e manutenção da hegemonia dos EUA. “70 anos fazendo o mundo acreditar”, diz um bordão sobre o personagem. É de fazer inveja à propaganda de qualquer ditadura, fascista ou comunista. Afinal, ambas sabem qual o poder dos bens simbólicos sobre uma nação. Tanto que Stalin patrocinou gênios do cinema russo enquanto mandava dissidentes para a Sibéria. E Hitler investiu em publicidade anos antes de adotar campos de extermínio como política pública. De todas, predominou a indústria cultural norte-americana. Foram sete décadas de prosperidade, estiradas entre dois períodos de refluxo: a Grande Depressão dos anos 30 e a paranóia pós-11 de setembro. Assim como o país em que foi criado, ao longo dos anos o Superman mudou bastante. Criado em 1933 por dois adolescentes judeus adoradores de ficção científica, Jerry Siegel e Joe Shuster, o personagem foi concebido como uma ameaça do futuro, com o objetivo de fazer da Terra o “reino do Superman”. Sua roupa teve inspiração nas histórias do espaço sideral, como a de Flash Gordon. A “cueca” por cima da calça, no entanto, era algo inédito, e logo se tornaria padrão. No ano seguinte, ele ressurge como herói justiceiro, capaz de desrespeitar poderes instituídos para resolver os problemas de gente comum.
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mirabolantes, dimensões paralelas, Essa foi a versão publicada em 1938 engenhocas e cientistas malucos, orgapela National, futura DC Comics, que nizados em torno de maniqueísmos e comprou os direitos do personagem fugas fantasiosas. A ressaca foi grande. de Siegel e Shuster por míticos 130 Nos anos 80, os super-heróis estadólares. Os desenhistas aceitaram vam tão distantes da realidade que o prontamente. Estavam há cinco anos próprio mercado dos comics entrou em procurando uma editora disposta a crise. Por isso, a própria DC Comics assumir o risco de publicar um matechamou o roteirista inglês Alan Moore rial tão diferente – é bom lembrar que (autor de V de Vingança) para tentar os personagens da época eram Tarzan, algo novo. O resultado foi a série WaPríncipe Valente e Mandrake. tchmen, em que novos encapuzados e A chegada do “protetor dos oprisuperseres enfrentam problemas com o midos” foi mais do que conveniente álcool, depressão e traumas sexuais. Ao para aquele tempo de vacas magras, Primeira aparição do homem de aço mesmo tempo, alistam-se na Guerra do iniciado em 1929, com a quebra da Vietnã e lutam no Afeganistão contra tropas soviéticas. bolsa de valores. Só que nas primeiras histórias, SuperNessa mesma época, Frank Miller (criador de Sin man lembrava em quase nada o mocinho politicamente City e 300) lançou Batman – O Cavaleiro das Trevas, correto que se transformou nos anos seguintes. Ele tinha em que Superman faz uma ponta no papel de mariopoderes modestos, se comparados com os atuais, mas nete da Casa Branca. A surpresa é que ele apanha até suficientes para esmurrar – e algumas vezes até torturar aprender que não adianta nada “fazer o bem” e estar – pessoas comuns que se comportavam mal. Os “vilões” politicamente alienado. Meses mais tarde, foi reformueram mafiosos e ladrões de galinha, mais interessados lado por John Byrne, menos poderoso e mais próximo em extorquir trocados do que em destruir o planeta. dos dilemas humanos. Entre os trabalhos recentes está a elogiada série All Com o advento da Guerra Fria, os comics eram obriStar Superman, onde o escocês Grant Morrison coloca gados a trazer exemplos cívicos e de bom comportao herói em contagem regressiva para a morte. Provavelmento. Foi quando Superman passou a ser chamado de mente porque, assim como o país que representa, o mito “homem de aço”. Passou a voar entre mísseis, em vez de do Superman busca seu lugar no século 21. Desta vez, pular edifícios. Não raro, figurava com águia no ombro entre infinitas crises, mortes e ressurreições, seu maior e bandeira listrada ao fundo. Seus poderes garantiram desafio é conciliar o discurso de democracia, liberdade paz no planeta, ameaçado por inimigos empenhados e justiça com atentados terroristas e invasões a países em escravizar a humanidade como Lex Luthor, Brainiac árabes, de forma que tudo isso faça algum sentido. e Darkseid. E assim se passaram três décadas de planos Em Supremo, Alan Moore faz uma inteligente e sarcástica paródia do Superman
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Guitarra à la Vivaldi
Zenival
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Longe dos ditames do mercado fonográfico, José Negrin abre os caminhos do incipiente metal neoclássico brasileiro Carlos Eduardo Amaral
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Divulgação
uponha que estejamos na Mostra Internacional de Música de Olinda (Mimo), para assistir a um concerto no Mosteiro de São Bento, quando finalmente chegam os músicos: um cravista, um violoncelista e... um guitarrista, cabeludo, de jeans e tênis. Suponha também que esse mesmo guitarrista seja convidado para o Abril Pro Rock e entre no palco com uma orquestra de cordas a reboque. Que tipo de música vai-se ouvir nas duas situações? Resposta: a justaposição do extremo virtuosismo guitarrístico de Ritchie Blackmore e Yngwie Malmsteen ao estilo orquestral de Vivaldi, Händel e Telemann. Acesse o link no final da matéria e conheça na prática como se conciliam essas duas linguagens, a princípio tão distantes, nas composições de José Negrin. O paulista de São José dos Campos, de 30 anos, começou simultaneamente no violão clássico e na guitarra, na qual praticava rock e blues. Aos 18, passou à composição erudita e aproximou-se dos mestres barrocos, incluindo J. S. Bach e o tcheco Jan Dismas Zelenka (1679-1745), ao mesmo tempo em que pensava numa forma de uni-los musicalmente às canônicas bandas dos anos 60 e 70 que admirava, como Deep Purple, Pink Floyd, Rainbow, Led Zeppelin, Scorpions, Black Sabbath e Van Halen. Os guitarristas que influenciaram Negrin não poderiam ser outros: David Gilmour, do Pink Floyd, Tony Iommi, do Black Sabbath, Eddie Van Halen e Ritchie Blackmore, do Deep Purple e do Rainbow – todos, músicos e bandas, com um pé na música erudita. Ritchie, em especial, transitou do rock para o folk e da guitarra para o alaúde renascentista no Blackmore’s Night, em
José Negrin sublima a curiosidade sobre como seria um concerto vivaldiano para guitarra
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1997, enquanto seu ex-companheiro de Deep Purple e igualmente amante de música antiga, Jon Lord, desde o início do grupo mantém uma discreta carreira paralela de compositor erudito. Em 1969, Lord compôs o Concerto para grupo e orquestra, um misto de concerto grosso e épico progressivo em três movimentos para hard rock band e grande sinfônica estreado sob regência de Sir Malcolm Arnold (1921-2006), obra longe de ser exceção na relação entre o rock, e posteriormente o metal, e a música clássica. Pelo contrário, subgêneros inteiros incorporaram estruturas e instrumentações eruditas – que o digam a ópera-rock, o rock progressivo e suas releituras de obras clássicas consagradas, o metal sinfônico e o metal neoclássico. Isso sem falar nas incursões particulares de Paul McCartney nos oratórios e quartetos de cordas (ver “Paul McCartney em concerto”, Continente de julho de 2007); de Ça Ira, de Roger Waters, recentemente apresentada em Manaus, ao lado de óperas de Richard Strauss, Puccini e Humperdinck; e do revival de John Dowland (1563-1626) por Sting. A reverência dos roqueiros aos clássicos pode não ter sido retribuída por parte dos compositores, mas continua sendo por parte dos intérpretes nos discos crossover, os de um gênero musical reinterpretados pela linguagem de outro. Estes álbuns incluem Cathy Berberian cantando Beatles, no limite entre o kitsch e o cult, a Royal Philharmonic Orchestra e as atuais séries da gravadora Vitamin “The String Quartet Tribute to” e “The Baroque Tribute to”. No entanto, há compositores que não torceram o nariz para o rock, a exemplo de Alfred Shnittke (1944-1998), nome quase ignoto no Brasil. Em plena censura pré-Perestroika, o russo requisitava bateria ou guitarra em certas obras, chegando a inserir bateria no Réquiem da Suíte Gogol. Nada se compara à verdadeira classical-rock fusion, não igualada ou imitada, de Frank Zappa, que teve um CD regido por ninguém menos que Pierre Boulez e era “antenado” com a música atonal e eletroacústica. O metal neoclássico, gênero restrito a poucos conhecedores e admiradores no Brasil e no qual Negrin abre caminho, não é uma fusão do metal com a música erudita – a guitarra solista e a orquestra preservam, cada uma, suas técnicas peculiares. A primeira, mesmo se valendo de trinados, arpejos e escalas em cadências de extrema dificuldade (não é de graça a admiração dos metaleiros neoclássicos por Paganini, a começar do sueco Yngwie Malmsteen, maior ícone do gênero), o faz em meio à técnica própria dos shredders (guitarristas virtuosos), como os power chords (acordes perfeitos sem terça), o tapping (tapinhas dos dedos, no lugar do dedilhado) e os distintos estilos de picking (uso da palheta): alternate, economic, sweep, hybrid e tremolo. Já a orquestra não usa extended techniques (técnicas não convencionais de emissão de sons) porque cabe a ela caracterizar o estilo histórico da peça: barroco, rococó, clássico, pré-roJUN 2008 • Continente x
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José Negrin une gêneros díspares: o rock de Ritchie Blackmore e a música barroca
mântico ou romântico. O emprego meramente utilitário e anacrônico do conjunto instrumental, em vez de contribuir igualmente na linguagem e na estética metal, é passível de críticas junto com a perceptível imprecisão do adjetivo “neoclássico”. O termo na música se refere, a rigor, a uma tendência do entreguerras inaugurada por Stravinsky, não ao período mozartiano e haydniano, e acaba remetendo indiscriminadamente à música produzida em períodos históricos bem distintos. Mas, o que dizer de música clássica? Há denominação melhor? Guiado por Vivaldi e Telemann, José Negrin envereda pelo barroco pleno e proporciona uma reconstrução musical inusitada. Assim como as sonatas de Hindemith, no Modernismo, os concertos de Vivaldi contemplaram instrumentos escanteados como solistas na época (fagote, flautim, bandolim, violão), então Negrin sublima a conseqüente curiosidade sobre como seria um concerto vivaldiano para guitarra, no álbum Guitar’s Kingdom. Mais recentemente, Telemann inspirou três duo-sonatas e uma abertura francesa no CD Whispering, que vendeu 300 cópias no primeiro mês. Considere que Negrin nunca mandou um CD demo para uma gravadora – sua discografia, de 14 títulos, é integralmente “artesanal”: no próprio computador, ele faz a tiragem dos discos e a impressão das capas e etiquetas. Negrin também não publicou partituras por considerar
seu trabalho experimental, embora as tenha fornecido a intérpretes interessados. O guitarrista, que reveza uma Fender Stratocaster, uma Epiphone Les Paul e uma Acoustic Steel Eagle, muito menos segue carreira no metal neoclássico. De 2001 a 2007 liderou a banda Virtuz, na linha do hard rock, e conduz um novo projeto nesse gênero, sem nome definido. Ao contrário do que parece, Negrin não atua com orquestra ou grupo de câmara. Ele edita as partituras em um software específico (no caso, o Encore) e sintetiza o timbre dos instrumentos, exceto o da guitarra, em outro (o Alesis QSR). Com isso ele pode se apresentar como solista levando na bagagem um CD com a “dublagem” só da orquestra e do conjunto de câmara. O ponto fraco, naturalmente, é o som chapado, sem qualquer filigrana acústica. Se para os ouvintes de metal “não tem bronca”, a execução apoiada em amplificadores vai contra a apreciação inerente à música de concerto, pelo menos contra uma apurada. Tanto shredders de longa trajetória quanto eruditos elogiam Negrin, a contar pelos guitarristas Wander Taffo e Joe Stump, o cravista Pedro Persone, o maestro Júlio Medaglia e o compositor Amaral Vieira, um dos maiores especialistas em música sacra e barroca do país. O músico, porém, mantém a modéstia e diz que pretende continuar as experiências de escrita guitarrística mesclada com a estilística barroca; o rococó e
o clássico não têm lhe atraído por enquanto. Em salas de concerto, as obras são acompanhadas por instrumentos in natura. De toda forma, elas não perdem em energia, concentrada mais na parte solista, nem na transparência do contraponto e da harmonia. Ponto positivo é que prescindir de orquestras de verdade faz Negrin não depender delas para divulgar seu trabalho; atitude de desprendimento que no meio sinfônico não funciona – grande parcela dos compositores eruditos atuais compensa na composição de câmara o impulso criativo da música orquestral, por conta de restrições inexplicáveis de muitas delas (e de maestros) ao repertório contemporâneo, não necessariamente vanguardista. O próximo CD de Negrin promete novas sonatas, concertos e uma audaciosa abertura para três guitarras e orquestra. O virtuosismo lapidado e o diálogo de linguagens musicais internamente desenvolvidas e autônomas apontam para uma exploração de muitas possibilidades, ainda incipiente. Afinal, Gnatalli, Gershwin e o Stravinsky rag criaram fusions sem se preocuparem em dar um nome a elas. Só não espere um show do Abril Pro Rock numa igreja ou concerto da Mimo repleto de metaleiros.
SERVIÇO Escute uma seleção de obras de José Negrin no site: http://palcomp3.cifraclub.terra.com.br/negrin/
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O Vates e Violas lança o seu segundo CD Quem não viaja, fica e reafirma sua ligação com as raízes Germano Rabello
É
gratificante ver a produção no Brasil de tantas musicalidades diferentes, nichos de cultura que proliferam sem seguir as tendências ditadas pela moda. O conjunto Vates e Violas representa bem essa idéia com uma música marcadamente nordestina, que tem influências dos repentes e cantorias, de Luiz Gonzaga, lembrando a cantoria de Vital Farias, Elomar e Xangai, o estilo interiorano de um Renato Teixeira, a geração nordestina dos anos 70 (Zé Ramalho, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, entre outros). Essa tradição rica é continuada por eles, herdeiros literais que são do poeta Zé de Cazuza, pai dos irmãos Miguel Marcondes e Luis Homero, que deram
início à banda, em 97, como veículo para suas inquietações poéticas. Essa ligação com as raízes está presente a todo momento no Vates e Violas. No dia 10 de abril de 2008, a banda fez, no Recife, o lançamento do segundo CD Quem não viaja, fica. No palco do Teatro Parque, a participação de Zé de Cazuza recitando versos. Também as primeiras palavras da primeira faixa do novo CD são versos de Zé, recitados pelo filho Luís Homero. O produtor da banda, Jorge Filó, é, por sua vez, filho do poeta Manoel Filó, parceiro do pai dos meninos nos desafios poéticos. Não há como negar a familiaridade com essa cultura. JUN 2008 • Continente x
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Desafios para uma banda nordestina
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sua própria casa, foram desenvolvendo a música de maneira autodidática. Miguel atesta: “Não sou músico de estar obedecendo à regra, não. Treinar para ser igual aos outros não é comigo”. Os dois nunca quiseram freqüentar cursos de música. Dentro desse espírito faça-vocêmesmo, os Vates lutam aguerridamente para conseguir tocar sua carreira. O novo disco foi feito em 49 horas de gravação, bastante esporádicas, pois foram encaixadas nos tempos ociosos do estúdio Via Som. Apesar de terem aprovado projeto na Lei Rouanet, eles não conseguiram captar recursos, depois de tentarem por dois anos. Características da poesia sertaneja estão na lírica do novo disco, também referências a elementos da natureza, a personificação de coi-
sas abstratas, figuras de linguagem como a hipérbole, o paradoxo. A primeira faixa, Clorofila, é exemplo disso, além das óbvias referências ao verde das folhas, quando os Vates sentenciam: “Bonito de se ver / nem tudo que se lê / está escrito”. A faixa é também é um dos melhores exemplos do que o disco oferece no casamento da cultura sertaneja com a urbanidade pop. Outra peculiaridade do disco é sua fácil absorção. São músicas que se apresentam de maneira clara, e, gostem ou não gostem do estilo, aconchegam-se ao ouvido, ficando logo marcadas na memória. A comunicação com o público é bastante efetiva, como demonstram as mil cópias vendidas em sete dias após o lançamento do disco, só aqui no Recife. A música do Vates, se não é divulgada em massa, cresce na divulgação informal. Fotos: Reprodução
Os irmãos nasceram no Sítio São Francisco, a quatro quilômetros (ou meia légua, num linguajar mais interiorano) de Prata, na Paraíba. Lá ouviam muito rádio, mas também tinham a oportunidade de conhecer visitantes como Cancão, Pinto do Monteiro, Lourival Batista, Zé Marcolino, Orlando Tejo, entre outros repentistas, músicos e intelectuais. Com tanta visita ilustre, a casa foi apelidada de “sede dos cantadores”. O pai, poeta e repentista de memória impressionante; a mãe, Duca Moura, professora que também tocava violão; o avô, Cazuza Nunes, poeta cordelista que vendia folhetos declamando na feira. Nesse meio, foi natural que Miguel e Luís se iniciassem cedo como artistas, recitando poesia nos saraus. Luís Homero e Miguel, além da estarem já cercados por cultura em
Luiz Gonzaga é referência para o grupo. Ao lado, David Byrne, “padrinho” do selo Luaka Bop, que selecionou uma música do Vates Viola para figurar numa coletânea internacional
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A música do grupo é marcadamente nordestina e tem influências dos repentes e cantorias
Nessa brincadeira, o Vates e Violas até que chegou bastante longe. O primeiro disco da banda, Tudo que é bom, presta, gravado em 2001 e lançado oficialmente em 2003, vendeu oficialmente 10 mil cópias. Miguel sabe que foram vendidos muitos discos piratas também. Não parece muito preocupado com isso, e diz: “A pirataria atendeu a uma necessidade do mercado que a gente não tinha como suprir. O ruim da pirataria é quando se pirateia o que não presta”. Outro passo importante foi a inclusão de uma das faixas do primeiro CD na coletânea What´s Happening in Pernambuco – Sounds from the Brazilian Northeast, organizada recentemente pela Luaka Bop. O selo apadrinhado por David Byrne selecionou Instante Feliz para figurar nessa coletânea de música pernambucana e nordestina, que inclui também nomes como Otto, Mombojó, Cidadão Instigado e Nação Zumbi. Diga-se a favor da música do Vates e Violas que o grupo está usando de maneira inusitada a mo-
ringa, um instrumento de percussão de sons graves geralmente usado apenas para tecer efeitos, mas que Luís Homero usa para marcar o ritmo, inclusive apelidando-a de “zabumba de barro” na ficha técnica do disco. Outra curiosidade é que apesar de estar cheio de xotes, forrós e arrasta-pés, o som da sanfona é pouco presente no disco. O sanfoneiro Nido tem participação um pouco tímida, não por falta de talento: na mixagem, o acordeon não é privilegiado. Isto eu acredito que seja um equívoco, na medida em que o destaque vai para os violões, violas e guitarras, um excesso de instrumentos de corda. A abordagem que se deu à guitarra remete ao trabalho de Alceu Valença, e isso é uma lembrança incômoda, pois estes fraseados agudos que pontuam a música passam a impressão de uma coisa datada com sotaque nordestino. O tempo e a seca lembra bastante essa abordagem típica de Alceu e do guitarrista Paulo Rafael, parecendo um pouco com a música Anunciação. Mesmo que os irmãos canta-
dores refutem esse tipo de comparação, é facilmente perceptível um elo. Luís Homero argumenta que alguns desses cantores dos anos 70 se utilizavam de poesia popular sem citar suas fontes. Polêmicas à parte, mesmo que não haja uma influência direta, os resultados às vezes são muito aparentados. Uma das preocupações dos músicos foi mesclar diversos estilos dentro do mesmo disco. De fato, os Vates aqui interagem com maracatu, reggae, rock, e angariam participações oportunas de gente como Silvério Pessoa e Lula Côrtes. Mas a música do Vates ainda se apresenta como uma continuidade de várias outras coisas que, apesar da energia e competência, carecem um pouco mais de informações novas. Quem não viaja, fica Vates eViola Independente 15,00 reais
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Com o CD Mestiço, o multiartista de Roraima desfia uma poesia musicada que é amostra do seu trabalho engajado e prolífico, mas aberto a experimentações
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Eliakin Rufino, a voz que vem do norte Bárbara Cristina
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liakin Rufino é um roraimense engajado numa enérgica produção cultural, que vai de mais de 300 artigos publicados em jornais a composições e poesias registradas em quatro CD’s solos, a que se somam os dois CD’s gravados, respectivamente, em 1992 e 2000, com os nortistas Zeca Preto, de Belém do Pará, e o também roraimense Neuber Uchoa, remanescentes e criadores do Movimento Roraimeira (1984), o mais importante movimento cultural de Roraima e o último do século 20 a incluir a antropofagia como prato principal no menu da casa. A esse extenso currículo, são acrescentadas as inúmeras parcerias com figuras tarimbadas do cenário poético e musical brasileiro, como Nilson Chaves, Eliana Prints, Paulo Leminski, Flávio Venturini, entre outras. Sem esquecer os 20 anos dedicados aos alunos de filosofia, artes e história do Ensino Médio. Não há mistério para quem acredita que todos nascem com Arte na veia, assim mesmo, com “a” maiúsculo. Eliakin, de 51 anos, acha uma pena que as convenções sociais acabem por diluir a capacidade humana de se admirar com as coisas do mundo, e “o artista que há em nós vai do quarto pro porão”, explica indignado. Só que Eliakin saiu de casa para o Brasil e para mundo. Enquanto sua musicalidade passeia por elementos das variantes sampleadas da música brasileira – a batida no pandeiro, o tilintar num triângulo, o baque da percussão – ou o ensaio de um tímido reggae, e até mesmo se rendendo aos preceitos musicais do pop mundial, com um toque de tecno e eletrônico, a poesia é interpretada em alto e bom tom em cima da marcação do ritmo. 62 x Continente • JUN 2008
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A experiência tem como objeto final um mix que em muito lembra o rap – apenas lembra – só que, nesse caso, genuinamente brasileiro. Com letras veementemente críticas, Eliakin Rufino apresenta um repertório por vezes lírico, em que a desconstrução daquilo que se tem como realidade resulta num alerta musical ao público. Em certos momentos, um desabafo. Em outros, o reconhecimento de que a força do brasileiro está na beleza que provém da mistura entre raças. O índio, o negro e o branco são recorrentes nas letras do compositor, tendo elementos afro e indígena como elo crucial. Ele mesmo descende de bisavô negro casado com índia da etnia Mhura, de uma tribo da Floresta Amazônica. Um de seus trabalhos poéticos mais extensos e inusitados, o Estatuto da Criança e do Adolescente transformado em versos, com mais de 5 mil cópias distribuídas pelo Brasil, foi adaptado em 2004 pela companhia de Balé Stagium, de São Paulo, e contou com a presença de 50 crianças no palco. O que seria inicialmente um desafio virou um trabalho social que é o maior orgulho do artista. Eliakin Rufino é quase um “defensor público” de temáticas para lá de marginalizadas. Através de um eu poético inconformado, seu álbum mais recente, Mestiço (2008), é sutil e delicado nas críticas. Contundente e voraz na mensagem reflexiva. Em Eu entendo, mas não sou entendido, uma das faixas mais polêmicas do disco, os versos “eu gosto de ver homem com homem (...)/ lutando pelo direito ao casamento/adotando filhos (...)”, aí,
sim, deve ter causado desconforto na pequena parcela conservadora que ouviu as 10 músicas que compõem o CD. Esse parece ser o principal objetivo: remexer por dentro, tirar as pessoas do sério, fazer uma poesia musical que incomode uma diminuta e poderosa fração social. O amapaense Joãozinho Gomes é o autor da música que dá nome ao disco homônimo, única do álbum em que a letra não é de Eliakin. O CD conta com a produção de Bebeco Pujucan e direção musical de Maria Lídia. Os nomes das faixas falam por si sós, como: Nós somos da mesma aldeia, Negro tambor, Coisa preta, Ditados impopulares, Tudo índio. Esta última famosa com a versão de Nilson Chaves, com a participação nos vocais do paraibano de Catolé do Rocha, Chico César. Enfim, Eliakin pode ser considerado aquilo que o poeta, crítico e pensador americano Ezra Pound definiria como “a antena da raça” e, complementando, é simplesmente poeta. Em termos de dimensão, o Movimento Roraimeira (1984) pode ser comparado com o Manguebeat (1990), principalmente no que se refere à busca e criação de uma estética e identidade cultural local e, sem sombra de dúvidas, às referências fundamentais para as novas gerações de bandas que viriam anos mais tarde. Se hoje a cena musical da manguetown de Chico Science vive uma espécie de pós-Manguebeat, Roraima saboreia ainda os frutos de uma salada temperada pelas influências do Modernismo e da Tropicália. Lançados a partir de manifestos, esses dois movimentos do sé-
culo 20 guardam especificidades. O primeiro é de Roraima, Norte do Brasil, lançado na década de 80 a partir do manifesto Sou mais Roraima, que contém 13 tópicos, chegando a apelidar de Trio Roraimeira os amigos Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchoa, que trabalharam juntos por 16 anos. O segundo, lançado aqui no Recife a partir do manifesto Caranguejos com Cérebro, escrito por Fred Zero 4 e Renato L., publicado em 1992, provocou uma revolução que unia psicodelismo musical a artistas talentosos sedentos por mostrar a arte feita na “lama de seus quintais”. Um ponto em comum entre os dois movimentos é a valorização da diversidade e pluralidade da cultura local e a necessidade de dar visibilidade a um número elevado de produções artísticas que precisavam ser reconhecidas e difundidas também no resto do país. Outro ponto, não menos curioso, é que os agentes desses movimentos se mostraram exímios neologistas. No Manguebeat, quem participava era apelidado de mangueboy e manguegirl; os roraimeiros, se assim posso chamar, criaram verbos famintos que ficaram famosos, como: bananar e paçocar. O que ninguém sabia é que se tratava de uma homenagem a um prato típico de Roraima, feito com carne de sol, farinha de mandioca pilada e banana. Mestiço Eliakin Rufino eliakinrufino@gmail.com
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MÚSICA
O vanguardismo através de Gilberto Mendes
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A curiosidade de uma neta em saber quem é o avô paterno, compositor de vanguarda cujas obras foram lançadas em 39 CDs e LPs no exterior e que parece fadado a perdurar indefinidamente na penumbra da lembrança geral dos compatriotas (como padecem Villa-Lobos, em menor escala atualmente, e tutti quanti), e as indagações Fotos: Divulgação dela sobre o que é vanguarda. Este é o ponto de partida do único documentário dedicado até o momento a um compositor erudito contemporâneo brasileiro, o santista Gilberto Mendes, e se o mentor
e diretor do filme é filho do protagonista, devemos dar todo o desconto, em nome da memória da arte: antes a família em vida a sabe-se-lá-quem após a morte. Se o filme peca na direção de fotografia e na edição de vídeo, deve seu êxito à decisão de não ser executada nenhuma obra por comA odisséia musical de pleto – foram deixadas Gilberto Mendes Dir. Carlos de Moura Ribeiro oito íntegras para os exMendes tras – mantendo assim o 120 min. + extras fio contínuo de interesse Lua Music 35,00 reais do espectador. E se Gilberto Mendes digere de forma muito desapegada os padrões novos e antigos de composição, ele deixa claro a qual século pertence, por isso não se precipite ao admirar a homofonia inicial de O anjo esquerdo da história, sobre poema de Haroldo de Campos. Mais do que tudo, do amplo recorte do catálogo de Mendes no DVD, não poderia faltar a Santos Football Music. (Carlos Eduardo Amaral)
> CD traz obras para > Villa-Lobos e o piano de Tacuchian batuque brasileiro
> ABM cataloga Francisco Mignone
>A música clássica que vem do Caribe
É pouco freqüente os compositores comentarem suas obras nos encartes, em vez de um maestro, intérprete ou crítico; mais estritamente, em um álbum para instrumento solo. Mesmo que, na música clássica, o nome daqueles tenha um recall mais forte que os demais, quando vivos eles quase não são vítimas da “mística da ausência”, que impele a se admirar o músico antes de ouvi-lo. Isso enquanto não constam nos guias de música. Neste álbum de Ricardo Tacuchian, atual presidente da Academia Brasileira de Música (ABM), ele sobrepuja os seis pianistas que lhe dão voz, tamanhas as feições de CD autoral desejadamente atingidas. O bom é que os comentários não antecipam a audição e o julgamento esperados do ouvinte. (CEA)
Junto com o catálogo do alemão Ernst Widmer, organizado por Ilza Nogueira, a Academia Brasileira de Música lançou o de Francisco Mignone, a cargo do musicólogo gaúcho Flávio Silva, mais conhecido pelo estudo da obra de Guarnieri. Silva classificou as partituras de Mignone em quatro grandes categorias e associou a numeração das 22 subcategorias com os índices alfabético, cronológico e onomástico, de modo que o leitor é remetido às informações centrais da peça ou intérprete procurado – incluindo dedicatória, local de estréia, instrumentação completa – em qualquer uma das três relações no final do livro. Está registrada também a produção do compositor sob o pseudônimo Chico Bororó. (CEA)
O Caribe tem revelado bons compositores eruditos, cujas gravações ainda não circulam no Brasil. O cubano Guido López-Gavilán e o portoriquenho Carlos Alberto Vázquez, que dialogam ad libitum com os gêneros populares de seus países, são dois deles. No CD 1, dedicado a López-Gavilán, esse diálogo é nítido em Que Saxy!, para quatro saxes, e Mambo, para quinteto de sopros, mas Variantes, Coral, Leyenda III, quase sem marcas populares, chamam a atenção pelo impressionante porte sinfônico, usando apenas violino, piano e percussão. Vázquez, no CD 2, se evidencia na Saxofonia, que mixa quatro partes tocadas por um executante, no Scherzo Tropical, para quarteto de cordas, e no Canto de los pueblos. (CEA)
Tacuchian ABM Digital vendas@abmusica. org.br 25,00 reais
Ao longo de anos de atuação em percussão sinfônica, Luiz D’Anunciação foi compreendendo as intenções de Villa-Lobos quanto à utilização de instrumentos típicos brasileiros. Daí, o sergipano organizou suas conclusões, inéditas, neste estudo crítico sem paralelo, onde ataca os pontos mais perniciosos às partituras originais: o desrespeito aos autênticos contextos rítmicos e a recomendação inadequada de instrumentos sucedâneos, na falta dos que o compositor pede . O livro, em edição bilíngüe (português e francês), acompanha CD didático com demonstrações de timbre e execução em célebres peças orquestrais como Uirapuru e Momoprecoce. Útil para maestros do mundo inteiro; elucidativo para fãs e estudantes. (CEA) Os instrumentos típicos brasileiros na obra de Villa-Lobos Luiz D’Anunciação ABM 28,00 reais
Francisco Mignone – Catálogo de obras Academia Brasileira de Música (ABM) 28,00 reais
Cuba y Puerto Rico CD duplo Produção Independente teregav@cubarte.cult.cu 50,00 reais
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Big band em compact disc
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Orquestra Contemporânea de Olinda faz bonito em seu CD de estréia, que leva o nome da banda. Profícuo em seus dois anos de formação, tendo participado de grandes festivais, o grupo conta com alguns integrantes que eram largamente experientes, antes mesmo de formar a orquestra. Seu idealizador, o percussionista Gilu, já tinha tocado com Naná Vasconcelos, Silvério Pessoa e Mundo Livre. Fundador d´A Roda e Academia da Berlinda (esta junto com Tiné e Hugo
Gila, que também ingressaram na orquestra), abriu mão dos dois projetos para se dedicar exclusivamente à OCO. Tiné, vocalista, teve a música Cobrinha, de sua fase solo, lançada no Orquestra exterior numa coletânea Contemporânea de pelo selo Luaka Bop, do Olinda ex-Talking Head e gaSom Livre 20,00 reais rimpeiro musical David Byrne. O rabequeiro Maciel Salú, que também canta, teve uma iniciação privilegiada: filho do Mestre Salustiano, logo incorporou a influência de maracatu rural, cavalo-marinho e ciranda. Fez turnê no exterior com a Orquestra Santa Massa. Juliano Holanda, guitarrista, passou por uma série de bandas, como Negroove e Treminhão. Hugo Gila (baixo e teclado) e Raphael Beltrão (bateria) passaram pelo grupo que acompanha China. Os dois fecham o núcleo de criação da big band, prestes a entrar em turnê. (Thiago Lins)
>Trio Sotaque lança > Os modinhas do seu primeiro DVD tempo de D. João
> Muita suavidade, sofisticação e pop
> Uma confraria de mulheres sedutoras
Para a alegria dos fãs de música instrumental, já está em DVD o talento do Trio Sotaque na interpretação dos gêneros nordestinos como baião, forró e frevo, sempre com a improvisação do jazz. Formado pelos renomados músicos Luciano Magno (guitarra e violão), Fábio Valois (piano) e Raimundo Batista (pandeiro), o Trio selecionou as músicas do DVD no repertório dos seus dois álbuns Sotaque (2004) e Engasga Gato (2006). O show gravado no Teatro de Santa Isabel ainda teve as participações especiais do cantor André Rio, do flautista César Michiles e do guitarrista Heraldo do Monte e a releitura dos clássicos Valores do Passado (Edgar Moraes) e Noites Cariocas (Jacob do Bandolim). (Bruno Brito)
Entre os produtos que chegam ao mercado com o intuito de marcar as comemorações dos 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil está o CD Modinhas Cariocas – A música na corte de D. João VI, que faz um registro de pouco mais de 20 modinhas compostas no princípio do século 19. As músicas de Candido Inácio da Silva, Gabriel Fernandes da Trindade e Joaquim Manoel da Carmera, compositores de destaque na época, tinham um forte apelo sentimental e eram cantadas nos salões e nas ruas, tanto no Brasil quanto em Portugal. Essas modinhas, definidas por Mário de Andrade como "um quase ininterrupto suspiro de amor", são relembradas no disco que tem direção de Marcelo Fagerlande. (MO)
Depois de produzir discos, fazer trilhas sonoras de filmes e peças de teatro, compor para outros intérpretes e cantar num grupo de tango, só faltava à múltipla Natalia Mallo gravar um CD autoral. O resultado foi Qualquer Lugar, um álbum meio erudito, meio acessível, onde a suavidade e a sofisticação não barram o pop. Natalia não se estende como intérprete: não imprime mais do que um tom melífluo, característica que pode até ser limitadora – mas não deixa de ser irresistível. A raiva que Natalia não canta está em faixas como Você já era e Cabeça de vento – títulos que falam por si sós, o que pode explicar a elegância que prevalece até nas músicas de despedida. (TL)
O primeiro CD do 3namassa, Na confraria das sedutoras, veio com o intuito de seduzir o público.Com participações especiais de 13 mulheres talentosas, o 3namassa mergulhou no universo feminino. Os homens, aqui representados por Rodrigo Amarante, Lirinha, Jorge Du Peixe, Junio Barreto e Rodrigo Brandão, entre outros, escreveram as músicas nas quais as sedutoras falam das experiências amorosas que marcaram as suas vidas de algum modo. E as mulheres cantam, sussurram, transbordando sensualidade com suas vozes entremeadas por músicas que soam ora picantes, saudosas, alegres, divertidas (quase que circenses) ou como devaneios eróticos em um parque de diversões. (Gabriela Lobo)
Modinhas cariocas – A música na corte de D. João VI Biscoito Fino 28,90 reais
Qualquer Lugar Natalia Mallo Tratore 23,00 reais
Trio Sotaque Trio Sotaque Polydisc 25,90 reais
Na confraria das sedutoras 3namassa Deckdisc 25,90 reais
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À prova do tempo
Imagens: Divulgação
TRADIÇÕES
Livro de historiador registra as vicissitudes da trajetória do Maracatu Estrela de Ouro, do surgimento, decadência – até a retomada atual Rafael Dias
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caboclo ergue sua lança, faz cortar o ar sobre o chão de terra batida. Ameaça quem se puser pelo seu caminho. Voa, com sua cabeleira faiscante e suas vestes de lantejoulas coloridas e reluzentes, abrindo caminho para a nação do maracatu. Com ele, uma corte de reis, rainhas, arreia-más, baianas, pajens e bandeirista segue o cortejo pelo canavial em rebuliço. Chã de Camará, sítio localizado no município de Aliança (a 75 km do Recife), está em festa. Homens, mulheres, crianças e mestres, herdeiros de uma tradição perpassada a quatro gerações, reúnem-se no terreiro para comemorar a força e o momento singular de uma manifestação à prova do tempo. Após um longo período de estagnação e dificuldades
financeiras, o Maracatu Estrela de Ouro vive uma nova fase de efervescência e renovação, coroada pelo lançamento do livro Maracatu Estrela de Ouro de Aliança: a saga de uma tradição. Produzida e escrita pelo professor de História da UFPE Severino Vicente, a obra reconstitui a história de um dos mais longevos e importantes maracatus de baque solto de Pernambuco, com base em uma pesquisa na historiografia oficial, mas, sobretudo, na riqueza da tradição oral. Prensado pela Associação Reviva, o livro integra o primeiro volume da série Trilogia da Zona da Mata (os próximos títulos serão focados nos Caboclinhos de Goiana e na diversidade cultural da Zona da Mata pernambucana, região onde floresceu o ciclo da
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cana-de-açúcar) e conta com recursos do Programa Petrobras Cultural, via projeto Toques e Trocas, de 2004. Não se trata de uma publicação pioneira, mas sua contribuição é preciosa no sentido de elevar o número de registros na escassa estante existente sobre cultura popular nas universidades e livrarias. “Por conta disso, a necessidade de escrever. É uma história riquíssima, que poderia desaparecer se não pusesse no papel”, defende o historiador Severino Vicente, coordenador pedagógico do Estrela de Ouro, que conheceu o maracatu por meio do produtor cultural Afonso Oliveira e se tornou mais um de seus membros, hoje formado por cerca de 90 pessoas que vivem em Chã de Camará.
A pesquisa baseou-se na historiografia oficial e em depoimentos orais
Fruto de um trabalho de seis meses, entre idas e vindas do Recife à Zona da Mata Norte, a edição reúne entrevistas, depoimentos e relatos orais anexados a documentos oficiais e informações extraídas de jornais e periódicos da época. Além disso, o livro dedica uma introdução acerca dos aspectos geográficos e históricos da região, traçando um paralelo entre o nascimento de Aliança e o surgimento do maracatu. Em suas andanças em busca da gênese do Estrela de Ouro, Vicente encontrou familiares, amigos, membros e ex-integrantes que tiveram contato, direta ou indiretamente, com o folguedo. Entrevistou, por exemplo, o mestre Biu Roque, que gravou recentemente o CD da Fuloresta, com Siba; Mestre Ivo, que conduz hoje maracatu em Tracunhaém, assim como Mané do Boi; Zé Duda, atual mestre do maracatu Estrela de Ouro, entre outros. Em comum, eles conviveram com o mestre Batista, dono do sítio e brincante que comandou a agremiação por mais de duas décadas, da fase áurea nos anos 80 à decadência nos anos seguintes, até a sua morte em 1991, em decorrência de câncer generalizado.A biografia do Mestre Batista e de seus familiares é o fio condutor da reconstituição histórica feita pelo historiador, cuja semente remete à segunda metade do Século 19. De acordo com Severino Vicente, por volta de 1890, o avô do Mestre Batista, Seu Antônio, teria desenvolvido o seu maracatu, que seria o embrião, não-organizado e rudimentar, do Estrela de Ouro. “Isso eu li num depoimento que o Mestre Batista deu ao Jornal do Commercio. Infelizmente, foto do maracatu não tem”, informa Vicente. “E outras JUN 2008 • Continente x
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TRADIÇÕES
O Estrela de Ouro é um dos mais longevos maracatus de baque solto de Pernambuco
coisas, eles vão me contando. Fica na lembrança dos mais velhos, nem sempre todos os filhos lembram”, diz. Ao longo da prospecção, o professor revela que se deparou com interessantes achados. Um deles é que Seu Batista, além de ter sido vendedor de banana e abacaxi, patrulhava a área como policial, em ofício lavrado no Diário Oficial – antes de fundar o Maracatu Estrela de Ouro, em 1966. Outra descoberta diz respeito à origem do sítio, herdado pelo mestre por meio de um casamento. Após a morte do sogro, ele e sua família se mudaram para Chã de Camará, onde chegaram a se fixar cerca de 40 famílias no auge da atividade da cana-de-açúcar e do funcionamento da Usina Aliança. No terreno, plantavam-se banana, macaxeira e inhame para subsistência.Há quase 40 anos no grupo, Mestre Zé Duda, um dos braços direitos do Mestre Batista, lembra a dificuldade de outrora e vislumbra um novo futuro para o maracatu de Aliança, que, em 2002, foi escolhido como Ponto de Cultura, do Maracatu Estrela de Ouro MinC. “Hoje, o Estre– A saga de uma tradição Severino Vicente da Silva la de Ouro pode ser o Editora Associação Reviva que é. Recurso nunca 120 páginas 25,00 reais existiu para o maracatu. Existia sacrifício. Tinha que tirar do meu
bolso para ajudar”, conta Zé Duda, que completa “60 carnavais sem errar um” e 70 anos de vida, em março de 2009. Segundo ele, sua aposentadoria está próxima. “Foi esse maracatu que me deu nome. Lutei muito ao lado do Mestre Batista”, relembra o puxador, conhecido pela alcunha de “peito de aço”. Atualmente sob a batuta do Mestre Zé Duda e presidido por José Lourenço, um dos filhos do Mestre Batista, o Estrela de Ouro passa por uma nova etapa de renovação. Além de abrigar o coco e o cavalomarinho, o espaço conta com uma estrutura de biblioteca, sala para as vestes e um estúdio próprio, o Estúdio Mestre Zé Duda, criado há dois anos. Assim como em outras épocas, o local tem servido de ponto de convergência e apoio de grupos da Zona da Mata para registrarem sua musicalidade e para qualificação profissional, criando um perfil de produção independente e totalmente pioneiro na região. Pelo estúdio, já passaram o Caboclinho Sete Flechas, de Goiana, e o maracatu das mulheres de Nazaré da Mata. “É um momento muito interessante, em que o maracatu vai crescer. Mas tem que ter muito cuidado para não se perderem as características originais”, pondera Severino Vicente.
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REGISTRO
Três livros, três artistas
Imagens: Divulgação
A Cosac Naify reafirma suas propostas editoriais ao lançar, em conjunto, três obras sobre três artistas brasileiros contemporâneos Mariana Oliveira Sem Título, Rodrigo Andrade, óleo s/ tela, 70 x 80 cm, 1999
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o ano em que a arte brasileira foi homenageada na ARCO, em Madri, a editora Cosac Naify coloca no mercado livros de arte que destacam alguns artistas dessa cena já consagrada. Em março, chegaram às livrarias três edições com projetos gráficos bem interessantes, com alta qualidade: Célia Euvaldo e Rodrigo Andrade, batizados com o nome dos próprios artistas, com textos de Alberto Tassinari, Marco Silveira Mello e Taísa Palhares; o terceiro é a edição ampliada de Manual da ciência popular, do artista Waltercio Caldas. O volume que trata da artista paulista Célia Euvaldo é composto por 97 ilustrações que representam bem o desenvolvimento do seu trabalho. Ao longo das páginas, além dos textos analíticos, encontramse apenas desenhos bicolores (pretos e brancos). Em alguns deles, a Célia Euvaldo Alberto Tassinari e Marco Silveira Mello Cosac Naify 192 páginas 79,00 reais
textura se sobressai, em outros parece que a artista explorou toda a tinta do pincel, até a sua completa extinção. Como a própria artista explica, na cronologia que assina: “Era como se o tamanho do traço fosse determinado pela duração da tinta no pincel”. Mantendo-se na pintura, encontramos a revisão das fases do trabalho de Rodrigo Andrade. As influências neo-expressionistas perceptíveis no início de sua carreira, sua participação no grupo Casa 7, seu papel na chamada Geração 80 e seus trabalhos que extrapolam os limites do quadro, interferindo no ambiente, são destaques na sua trajetória. No percurso, percebemse as experimentações estéticas do artista na pintura e seu papel junto aos pintores de sua geração, que marcaram época participando, por exemplo, da Bienal da Grande Tela, em 1985. O projeto gráfico Manual da ciência popular Waltercio Caldas Cosac Naify 88 páginas 49,00 reais
do livro é do próprio artista. Por fim, fechando a seqüência de lançamentos, está o Manual da ciência popular, de Waltercio Caldas, único assinado pelo próprio artista. Depois de 25 anos da sua primeira edição pela Funarte, novos trabalhos foram inseridos, seguindo a mesma proposta: utilizar objetos do conhecimento de todos para apresentar significados estéticos. O artista intervém em objetos “populares”, dando a eles múltiplos sentidos que se relacionam, de alguma forma, com a sua poética. Os textos ou títulos que acompanham as obras sugerem relações e reflexões particulares sobre cada peça. Com a publicação de volumes como esses, a Cosac Naify reafirma suas propostas editoriais, buscando de fato ocupar espaços vazios no mercado editorial brasileiro. Rodrigo Andrade Alberto Tassinari e Taísa Palhares Cosac Naify 222 páginas 80,00 reais
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Divulgação
n PioNeirismo
Novíssimos baianos
Gilberto Gil embarcou de vez no mundo digital e reafirma seu engajamento definitivo nas novas tecnologias. O autor de Cérebro Eletrônico e Parabolicamará prepara o novo CD Banda Larga Cordel, a ser lançado até o fim do ano, e pretende oferecer seus fonogramas para uso público, disponibilizando na internet áudios das canções, trechos instrumentais, gravações alternativas que não entrarem no disco, para que as pessoas possam reprocessá-lo do modo que queiram. Gil vai aproveitar os shows da nova turnê, chamada Obra em progresso, para mostrar músicas novas ao público e assim decidir “junto com ele” o que entrar no repertório do disco. Caetano Veloso aderiu à onda e vai montar o novo disco junto com o público. nnn
sonora.terra.com.br/templates/album.aspx?idAlbum=43162
n memória
n blogosfera
Anais Pernambucanos em formato digital
Uma revista feita por blogueiros
Em resposta àqueles que dizem que a turma dos blogs não sabe fazer jornalismo, a revista Feed-se é totalmente concebida, escrita, diagramada, editada e distribuída (divulgada) por blogueiros brasileiros. Os temas, claro, são sobre o universo da blogosfera, os textos são curtos e com uma linguagem direta em um tom bem-humorado. Além disso, por força do hábito do hiperlinking, há inúmeras referências a blogs e outros blogueiros, ampliando assim a rede de troca de informações. A Feed-se é mensal, e sua equipe é composta por um grupo fechado e limitado de blogueiros, com a participação de convidados blogueiros, pessoas antenadas e competentes. nnn
feed-se.com.br
Tudo o que existe agora será obsoleto dentro de pouco tempo. Até o e-mail será obsoleto, porque tudo será feito com o celular. Talvez as novas gerações se acostumem a isso, mas existe uma velocidade do processo que é de tal calibre, que a psicologia humana talvez não consiga adaptar-se. Estamos em velocidade tão grande, que não existe nenhuma bibliografia científica americana que cite livros de mais de cinco anos atrás".
O projeto Pergunte a Pereira da Costa publica, em formato digital, os 10 volumes dos Anais Pernambucanos, obra principal de Pereira, composta por cerca de 5 mil páginas, que narram a história pernambucana de 1493 a 1850. Com instrumentos que permitem buscas complexas, esse sistema de comunicação de alto desempenho e baixo custo permite a preservação e divulgação de uma das obras mais importantes da historiografia de Pernambuco. Além disso, o usuário pode enviar suas anotações, trabalhos e pesquisas para que elas possam fazer parte da base de dados. Em breve, será implantando o PereiraBot, um assistente virtual capaz de conversar com qualquer usuário, auxiliando-o em sua pesquisa. nnn
liber.ufpe.br/pc2/
Umberto Eco, escritor 70 Continente • JUN 2008
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n mÚsiCa
n liTeraTUra
Videoclipe polêmico na internet Disponível no Youtube, um clipe da música Stress, da dupla francesa Justice, dirigido por Romain Gavras (filho de Costa-Gavras), já foi assistido por mais de um milhão de pessoas e tem causado celeuma por associar a imigração à criminalida-
de. Em cenas que impactam pelo realismo e pela crueza, filmadas com extrema competência técnica, o videoclipe atingiu um ponto nevrálgico para os franceses de hoje em dia: a violência promovida por jovens marginalizados socialmente.
PosT Do mÊs - [ blog do gJol ]
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Uol derruba avião da Pantanal em cima de loja de colchões No dia de estréia da UOL Notícias, fusão do UOL News e UOL Últimas Notícias, o portal UOL dá uma tremenda barrigada: derrubou um avião da Pantanal sobre uma fábrica de colchões em São Paulo. De fato, havia um incêndio, mas nada de avião. Ao que tudo indica, o UOL seguiu uma notícia mal-apurada de TV e abriu manchete, sem checar os fatos antes. Fica o lembrete: a pressa é inimiga da Atualização Contínua.
Perfil Um blog coletivo sobre jornalismo, internet e novas tecnologias de comunicação, mantido pelos integrantes do Grupo de Pesquisa em Jornalismo On-line da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. O GJOL, integrante do Centro de Estudos de Cibercultura, tem como objetivo realizar pesquisas e desenvolver inovação tecnológica de ponta no campo do jornalismo nas redes digitais. gjol.blogspot.com
obras conjuntas invadem a rede Em parceria com a empresa digital Six to Start, a editora britânica Penguim se adiantou no incipiente nicho da literatura digital, alinhando os clássicos às diversas possibilidades da internet. O projeto We Tell Stories convida autores a produzir histórias digitais a partir de obras clássicas. Por exemplo, Os 39 Degraus, de John Buchan, foi adaptado pelo também escocês Charles Cumming, autor de thrillers de espionagem. Usando as imagens de satélite do Google Maps, marcadores indicam lugares com os respectivos trechos do enredo que tinha sido filmado por Hitchcock em 1935. Anteriormente, a Penguim já tinha lançado o projeto A milion penguins, formato que permite que os livros sejam escritos e alterados pela rede.
e no brasil... O projeto coletivo Livro de Todos convida internautas a escrever a continuação do enredo proposto pelo escritor Moacyr Scliar. Depois de concluído, o livro será impresso e lançado na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em agosto. Quem deseja entrar no projeto tem que correr: a participação estará aberta até 16 de junho. nnn
wetellstories.co.uk amillionpenguins.com livrodetodos.com.br
baiXe e oUÇa Após ter lançado três CDs, sendo um deles projeto com o poeta tropicalista Jommard Muniz de Brito , a Comuna Experimental se prepara para lançar seu próximo CD, Maldito. Há também o projeto de fazer um show-vídeo e disponibilizá-lo na rede. Já é possível baixar o conteúdo completo dos CDs e ouvir algumas faixas do novo. O vídeo está previsto para o fim de junho. É aguardar para conferir. acomuna.blogspot.com
faVoriTos Memória virtual
O projeto Rede da Memória Virtual Brasileira, desenvolvido pela Fundação Biblioteca Nacional em parceria com a FINEP-MCT, disponibiliza, em meio eletrônico, acervos de bibliotecas participantes.
catalogos.bn.br/redememoria JUN 2008 • Continente
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Convento de Mafra: construído com o ouro do Brasil
O ouro brasileiro e a Revolução Industrial De como o ouro de Minas foi parar quase todo em Londres e Roma e inspirou célebre romance de Saramago Duda Guennes, de Lisboa
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a famosa carta de Pero Vaz de Caminha endereçada ao el-rei Dom Manuel, datada de 1º de maio de 1500, dando conta do “achamento” da nova terra, está escrito: “Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhuma cousa de metal de ferro, nem lhe vimos. A terra, porém, em si, é de muitos bons ares...” Apesar de alertado pela carta de Caminha, Portugal nunca abandonou e sempre alimentou a esperança de encontrar o precioso metal. A vizinha Espanha havia se fartado com a abundância de ouro e prata do México e do Peru. Em 1515 realizaram-se as primeiras expedições de Cristóvão Jacques, Martim Afonso de Sousa, João de Barros, entre outros, para descobrir minas de ouro e pe-
dras preciosas. Os resultados foram pouco animadores, mas a Coroa não desistiu do sonho. Em 1682, finalmente, Borba Gato descobriu ouro de aluvião em quantidades compensadoras, na região do rio das Velhas, em Minas Gerais. Por isso, foi designado capitão-mor nesse distrito, recebeu enormes sesmarias e fundou Sabará. O governador nomeou-o guarda-mor da região das Minas, com a função de recolher para a metrópole os quintos de ouro, conforme mandava a lei. Com a descoberta de Borba Gato, houve uma verdadeira corrida ao ouro. Quando as notícias da sua descoberta em Minas Gerais se espalharam pelo Brasil e chegaram a Portugal, milhares de pessoas acorreram à região. O fluxo de homens que chegavam de todas as partes à caça
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HISTÓRIA
ao metal amarelo foi tão intenso, que não havia abrigo nem alimento suficientes para todos, o que causou graves problemas. Calcula-se que de Portugal tenham ido para o Brasil no século do ouro entre 600 e 800 mil imigrantes, principalmente da região do Minho. Além da imigração, outras conseqüências foram o crescimento da criação de gado no interior, para prover carne e couro para os centros de mineração, e o surgimento de novas cidades no que é hoje o Estado de Minas Gerais. A crescente extração de ouro no Brasil trouxe um ciclo de desenvolvimento importante, que influenciou o curso dos acontecimentos não só na Colônia como na Europa. Embora o ouro fosse controlado por Portugal e embarcado para Lisboa, ele não permanecia lá. A Inglaterra, de acordo com o Tratado de Methuen, de 1703, supria Portugal com produtos têxteis, que eram pagos com o ouro das minas brasileiras. O ouro brasileiro que ia para Londres ajudou a financiar a Revolução Industrial. Adam Smith destacava o incremento do intercâmbio comercial entre a Inglaterra e Portugal em razão do ouro vindo do Brasil. Chegou mesmo a admitir que em seu tempo quase todo o ouro fundido na Inglaterra era de origem brasileira. Os produtos ingleses dominaram o mercado brasileiro e o português, acabando com qualquer oportunidade de competição e desencorajando a atividade industrial no Brasil e em Portugal. Os efeitos distintos que esta transferência do ouro causou em cada um dos países devem-se às suas diferenças no que diz respeito às condições sócio-econômicas. Primeiramente, o processo de transição de uma economia natural para uma economia de mercado, que tinha principiado na Europa no fim da Idade Média e que avançou ra-
pidamente nos séculos 16 e 17 em muitos países europeus, evoluiu em Portugal num ritmo bastante lento, sendo por isso a economia de mercado ainda desconhecida em grandes zonas de Portugal no começo do século 18. Na revista Ronda da História, de julho de 1959, está registrado: “Atinge cifras astronômicas a quantidade de ouro que Portugal, pelo quinto, pelo confisco e pela chamada contribuição voluntária (donativo que a Colônia costumava fazer à Coroa por ocasião dos nascimentos e casamentos dos príncipes) arrecadou no Brasil. Segundo cálculo de Eschwege, só de 1700 a 1788 se canalizaram para o tesouro da metrópole 10.500 arrobas do ambicionado metal –120 arrobas, em média, por ano. Pandiá Calógeras, no seu trabalho As Minas do Brasil e sua legislação, informa que a exploração total do ouro em Minas, de 1700 a 1820, produziu 51.500 arrobas”. Já no livro Portugal na Epocha de D. João V, de Manuel Bernardes Branco (1886), afirma-se que “D. João V não regateava o preço da coisa, imaginando espantar o mundo com o modo perdulário com que dissipava. Mais de 200 milhões de cruzados foram para Roma: não tem conta o que deu pelo reino às igrejas, aos conventos de frades e freiras; e na sua fúria de ser o esmoler-mor do catolicismo, lembrava-se de todos, ia derramando por toda a parte o ouro do Brasil”. Ainda no mesmo livro, Bernardes Branco
Pouso de Monção no Sertão Bruto, Aurélio Zimmer, Acervo Museu Paulista, SP
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As expedições dos bandeirantes encontraram o ouro pelo qual a Coroa portuguesa ansiava
revela que “as dispendiosíssimas beatificações e canonizações, as quais tanto dinheiro faziam passar de Portugal para Roma, era tão vulgares no reinado de D. João V, que, tendo já sido beatificada Santa Joana, princesa de Portugal, e tendo sido feitas as diligências necessárias para a beatificação de D. Afonso Henriques, e do arcebispo de Braga D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, foram beatificadas também as infantas D. Sancha, D. Teresa e D. Mafalda”. Teixeira de Aragão denuncia no livro Profecias, Diabruras & Santidades que “as toneladas de oiro vindas do Brasil mal chegavam para pagar as imensas santidades importadas de Roma”. Armando de Castro refere que no período teria chegado à Metrópole 10 mil quilos de ouro por ano. Oliveira Martins calculou as receitas totais da Coroa no reinado de D. João V (1706-50), provenientes do ouro e diamantes brasileiros, em cerca de 170 milhões de cruzados (14 milhões de libras). D. João V fez jus ao cognome, o Magnânimo. Pródigo, dissipador, estróina, distribuiu sem olhar a quem o ouro que abundantemente lhe vinha às mãos. Gastou-o com amantes, com a intelectualidade da época, com o clero e a nobreza. Gastou-o em obras grandiosas, como o aqueduto das Águas Livres, que sobreviveu ao terremoto de 1755, e, sobretudo no convento de Mafra, que inspirou José Saramago, prêmio Nobel de Literatura de 1998, a escrever o Memorial do Convento. JUN 2008 • Continente x
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FOTOGRAFIA
Paisagem e cultura do Cariri No ensaio O Cariri, o fotógrafo Dada Petrole busca aproximações e diálogos com os aspectos culturais, antropológicos e socioambientais da região Texto e Fotos: Dada Petrole
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região do Cariri, no sul do Ceará, habitat de significativo aglomerado de manifestações culturais de relevância histórica, assume hoje um papel importantíssimo na cultura cearense e do nordeste brasileiro. A resistência da cultura de raiz do seu povo, o turismo religioso (associado à figura do Padre Cícero, que é filho do Crato e pai do Juazeiro do Norte), as suas belezas naturais e o valor paleontológico da região para a história do planeta, dão a essa terra um aspecto especial de importância nacional. A miscigenação racial e cultural presente na sociedade caririense é bem homogênea e contribui com a harmonia de uma vida em conjunto, tanto entre os nativos ou adotados pela região como entre aqueles que chegam e brevemente seguem adiante. Esses benefícios fazem com que essa região seja uma das mais bem visitadas do Estado do Ceará e do nordeste brasileiro, o que por sua vez proporciona um certo
sentimento de orgulho aos caririenses, que costumam afirmar: “Quem passa por lá uma vez, sempre volta”. O documentário fotográfico O Cariri é uma fomentação de buscas, de aproximações, diálogos e entendimentos dos aspectos culturais, antropológicos e socioambientais da região do Cariri, perpetuando-os em seu foco. As dezenas de grupos e manifestações culturais espalhadas pelas cidades do Cariri, aqui representadas pela Banda Cabaçal dos Irmãos Anicete, pelo grupo de reisado Mazé de Luna, pelo maneiropau e coco-de-roda das Mulheres da Batateira, pelo grupo dos Penitentes de Barbalha ou pela religiosidade popular no Juazeiro do Norte, como também pelos máscaras do mestre Cirilo (que se manifestam no dia da malhação do Judas), constituem os elementos que caracterizam a força daquela região e contemplam-se como componente básico de uma comunidade que acredita num sonho real, fazendo-o acontecer de uma forma tão majestosa, que até quando deixa de ser informação ou cultura, transforma-se em poesia.
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As manifestações culturais espalhadas pelas cidades do Cariri constituem os elementos que caracterizam a força da região
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EXPOSIÇÃO
Reflexos do mundo contemporâneo
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figura feminina através da fotografia conduz o olhar da exposição coletiva Espelhos meus, que reúne quatro fotógrafos-artistas a partir da curadoria da jornalista Olívia Mindêlo. A mostra foi uma das três escolhidas para ocupar a pauta do Museu Murillo La Greca durante este ano, a partir da seleção nacional do projeto Amplificadores 2008. Ao todo, 28 imagens compõem a mostra, e, de formas diferentes, os trabalhos do quarteto se aproximam do universo feminino no contexto contemporâneo. Participam da exposição duas mulheres – Adelaide Ivánova (PE/SP), que atende pelo codinome de “Vodca Barata”, e Lali Masriera (Espanha), conhecida na internet como “Visual Panic” – e dois homens, Bruno Vilela (PE) e Alexandre Belém (PE). Assinando os trabalhos Sexy back: Justin, brigada por tudo, My ego and me, Bibbdi bobbdi boo e Imagem de dentro, respectivamente, eles equilibram perspectivas fotográficas diferentes, acenando para as fronteiras que separam realidade e ficção. (Gabriela Lobo)
SERVIÇO Espelhos meus Museu Murillo La Greca De 3 de junho a 12 de julho Informações: (81) 3232.4276/ 4255
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CINEMA
A mão que aplaude e apedreja
Crítico, de Kleber Mendonça Filho, investiga a relação de amor e ódio entre a crítica e os realizadores de cinema Marcelo Costa
Cartaz de promoção do longa-metragem de Kleber Mendonça Filho
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oda relação construída pela paixão é plena de conflitos e sentimentos paradoxais que se confundem num emaranhado de sensações e racionalizações; um mosaico fluido no qual é impossível se dissociar um do outro. A situação torna-se ainda mais crítica – com o perdão do trocadilho –, quando os dois envolvidos encontramse, aparentemente, em dois barcos distintos, ou em cantos opostos de um ringue, onde ambos os lutadores são movidos por um motivo comum: neste caso, o amor pelo cinema. Este é o principal argumento de Crítico, a estréia em longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, realizador de curtas-metragens premiados, como Vinil verde e Eletrodoméstica, e crítico de cinema com larga experiência em cobertura de festivais. A partir dessa posição estratégica, e ao mesmo tempo perigosa, Kleber investiga a relação de amor e ódio que se estabelece entre a crítica e os realizadores, através de um rico e elucidativo panorama de depoimentos de importantes cineastas e críticos especializados dos principais veículos do mundo. A convivência da crítica de arte com seu objeto de análise se estabelece num equilíbrio muito tênue, no qual conflitos e amenidades podem gerar uma ligação de intimidade ou de contrariedade, ou apenas o desprezo. Logo de início, o filme nos coloca diante dessa relação, através de um relato escrito sobre a situação em que o jornalista Michel Polac perguntou para o cineasta Jean-Luc Godard: “Eu gosto cada vez mais dos seus filmes; será que sou eu que estou progredindo, ou é você?” Godard respondeu: “É claro que é você”. O movimento dos rolos de películas dos filmes se confunde com o da impressão de jornais e revistas numa prensa gráfica, apresentando-nos o ambiente de interseção no qual a obra irá imergir. As elucubrações em torno da crítica cinematográfica e as suas conseqüências são investigadas uma a uma num levantar de tapete que expõe a sujeirinha escondida, embora alguma permaneça na fresta ou no canto da parede. O caráter analítico da crítica é o primeiro a ser enfatizado, ressaltando a dificuldade em expressar em palavras uma linguagem visual. Nesse momento, o filme deixa clara a sua preocupação imagética ao apresentar belas imagens de arquivo sobre a percepção visual e outros temas que servirão de metáfora para compor uma obra apaixonada, capaz de repetir inúmeras vezes, via imagem e som, a palavra cinema. A frase “toda crítica é uma autobiografia”, de Oscar Wilde e parafraseada por Fernanda Torres, introduz o tema da subjetividade na crítica cinematográfica: afinal, até que ponto o filme realizado por algum diretor frustra ou é consonante com a obra idealizada pela bagagem cultural e indi-
De cima para baixo, o crítico Michel Ciment e os cineastas Eduardo Coutinho e Elia Suleiman, personagens do filme Crítico
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Ao lado, Emilie Lesclaux, co-produtora de Crítico e, na foto maior, Kleber Mendonça; abaixo, o cineasta Gus Van Sant
vidual de um crítico? Já a jornalista Deborah Young, da Variety, cita um depoimento de Abbas Kiarostami sobre a participação em júris de festivais para ilustrar a efemeridade da opinião. “A minha opinião de agora pode ser diferente daqui a oito horas; e depois do festival talvez nem goste mais do filme que premiamos”, teria dito o cineasta iraniano. Aliado a isso, o crítico da Folha de S.Paulo, Ricardo Calil, acrescenta à subjetividade a influência da opinião de um crítico respeitável, ao assumir a idéia de agendamento na apreciação dos filmes. Dessa maneira, Crítico envereda pelos meandros da crítica cinematográfica, em cujos bastidores a palavra inocência parece ser muito inocente para ser empregada. O seu
impacto nas bilheterias e o seu uso como instrumento publicitário são analisados, embora sem uma investigação mais contundente sobre a possibilidade de corrupção da classe. A isenção do crítico é questionada apenas a partir da sua relação de amenidades e antipatia com os cineastas, ou como forma de preservação das relações pessoais. “Todo crítico que já teve contato com cineastas deveria ser abatido como uma vaca louca no rebanho”, dispara o Alain Riou, do Le Nouvel Observateur. As atrocidades – numa entrevista, um jornalista confunde o ator Samuel L. Jackson com Lawrence Fishburne, de Matrix – cometidas por uma crítica cada vez menos especializada e adepta de manuais de segurança para padrões
de consumo também estão presentes, mas contextualizadas dentro da lógica comercial do cinema atual e das opressoras rotinas de produção dos veículos. Por outro lado, é bem interessante ver cineastas expressarem a sua opinião sobre a crítica numa inversão de papéis; como se a imagem do espelho falasse sobre o objeto refletido. Para Hector Babenco (Carandiru), é raro encontrar um jornalista inteligente, daí a razão de ignorar, ou tentar abstrair o que se escreve sobre o filme. Já Sérgio Bianchi (Cronicamente inviável) reforça a idéia de ressentimento do crítico como um cineasta frustrado. Como contraponto, a importância da crítica é enaltecida dentro de
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CINEMA
Onde o sol se põe
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Há, portanto, diversas maneiras de se escrever uma crítica, como atesta Elia Suleiman (Intervenção divina) num dos melhores momentos do filme. O cineasta palestino distingue a apreciação auto-suficiente e masturbatória, do texto de um escritor que vê o filme como uma busca a si mesmo, estabelecendo um diálogo construtivo entre duas pessoas com uma paixão em comum. É justamente esse tipo de diálogo, por vezes socrático, que rege Crítico. Trata-se de um filme apaixonado, uma exaltação de amor ao cinema e um retrato carinhoso daqueles que o fazem com o propósito de se manifestar artisticamente; sobretudo, uma prova de que é possível enxergar os fatos com clareza e sobriedade em meio à paixão.
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uma perspectiva holística do fazer artístico. João Moreira Salles (Santiago) acredita na relação da boa crítica com o bom cinema como algo indissociável, enquanto seu irmão, Walter (Central do Brasil), lembra a importância da atuação de Godard, Truffaut e Rohmer como críticos da Cahiers du Cinéma para a construção teórica da Nouvelle Vague, fazendo-nos acreditar num único barco. O próprio Beto Brant, que pintou um retrato implacável da crítica no excelente Um crime delicado, ressalta a importância dela como atestadora do seu trabalho sem concessões comerciais, fortalecendo a idéia da sua função biológica, defendida por Jerôme Garcin, segundo o qual “a crítica faz circular o sangue da cultura”.
bardo Glauber Rocha bradava a quatro cantos em alto e bom som: “Cinema é imagem e som”. Foi munido desse pensamento e de uma boa dose de cinefilia que Leonardo Sette concebeu Ocidente (Brasil, PE, 2008), curta-metragem exibido na ultima edição do Festival de Tiradentes, no CineCeará e mais recentemente, no Cine PE, onde levou o candango de melhor edição de som. Com sete minutos de duração, Ocidente constrói uma bela alegoria estética e sensorial sobre a existência. A partir de uma imagem desfocada, duas silhuetas tomam forma como se ajustando à retina. Através do reflexo de uma janela de trem, identificamos um casal de idosos absortos na leitura de um jornal e incomunicáveis entre si. O plano longo e estático obedece à composição de luz e cor e ao enquadramento minimalista, capaz de transfigurar a realidade em outra dimensão. Esse é o ponto de partida para uma viagem – expressa pelas paisagens deixadas para trás e pelo som do trem em movimento – às (im)possibilidades das relações humanas durante as fases da existência. O filme é uma reflexão interessante sobre as amenidades e as coisas vãs que se interpõem entre a aurora e o crepúsculo. (MC)
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A sétima arte como companheira Mariana Albanese
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Zé Sozinho, que leva a magia do cinema pelo sertão afora, vira tema de curta-metragem
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m uma pequena cidade do interior do Nordeste, um cartaz pendurado com a programação do cinema itinerante que aportou na cidade atrai curiosos. As pessoas olham desconfiadas: era o terceiro dia de exibição consecutiva, e Seu Zé Sozinho, dono do projetor, não atendia aos protestos do público, insistindo nos mesmos personagens, em uma série de filmes sobre Sansão e Dalila. E o anúncio confirmava: “Hoje: Nem Sansão, nem Dalila”. Chega a noite e, com ela, a falta do que fazer. Já que não tem outra opção, a platéia se prepara para o clássico de Oscarito. A sessão se inicia e... surpresa: na tela, pateteia a dupla O Gordo e o Magro. Essa é uma das histórias que José Raimundo Cavalcante conta, gaiato, sobre a vida mambembe que levou nos últimos 38 anos, desde que, nos anos 70, conseguiu seu primeiro projetor, à manivela. Com a conquista, viajou sertão afora. Ora de jumento, ora de bicicleta, levou filmes e diversão aonde o povo estivesse. Sua trajetória de amor ao cinema, no entanto, começou bem antes, em 1954. Foi quando aos 12 anos, para desespero da mãe, subiu em um caminhão de rapadura rumo a Fortaleza, onde no Cine Marambá, em Parangaba, viu seu primeiro filme. “Um daqueles americanos, que estava fazendo sucesso”, relembra. Naquela época já carregava a alcunha de Sozinho. A personalidade arredia, que o isolava dos outros meninos na escola, só fez com que o povo confirmasse a hereditariedade da solidão. Afinal, a mãe, Dona Maria, também era Sozinha: era assim que o povo chamava a mulher que, vinda de Pajeú das Flores, Pernambuco, para Caririaçu, no Cariri cearense, criou os quatro filhos sem a ajuda do marido. 86 Continente • JUN 2008
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Pois dona Maria recebeu o filho de volta alguns meses depois. O menino, já sabendo sobre os meandros da exibição cinematográfica, começou a auxiliar os ciganos que passavam com filmes pela cidade serrana. “A eletricidade era a gerador. Quando ligava o projetor, as casas ficavam no escuro, e eu sempre ajudava a regular a luz, porque era o único que sabia mexer”, orgulha-se. Mas foi no Círculo Operário de Caririaçu, já rapazote, que passou a exibir ele mesmo os filmes. Ali começou a entender do que o povo gosta, e a criar suas artimanhas para entreter. Aprendeu que poderia editar os filmes e fazer sua própria obra. Passou a recortar e colar os pedaços do rolo, conforme sua preferência. Assim, pegava trechos do início e colocava no final. Fazia isso ao exibir um título duas vezes na mesma cidade, alterando o desfecho para que a platéia se surpreendesse. Ou ainda, o que pode ser considerada sua grande obra-prima, e da qual fala com orgulho, mais uma vez gaiato: a versão Zé Sozinho para a Paixão de Cristo. “O único filme em que o artista morre no final e os caba não acham ruim é o de Jesus. Pois uma vez eu peguei pedaços do Zorro e misturei com os da Paixão de Cristo. Quando as pessoas viram, acharam estranhos aque-
les homens de capuz, armados, e perguntaram:‘Que é isso Seu Zé?’ E foi que respondi: ‘São os amigos de Jesus que vieram salvar ele.’” Quando conseguiu o primeiro projetor, ganhou o mundo – e perdeu a mulher. Por causa das viagens, que duravam até três meses, a esposa, que hoje mora em Cajazeiras, Paraíba, desenvolveu uma aversão por cinema: “Ela diz que cinema só serviu pra encher ela de filhos. Porque eu viajava, voltava, fazia um filho e viajava de novo”. Foram cinco, no total. Hoje, uma filha e alguns netos ocupam, ao menos em fotografia, a parede da minúscula casa em que vive. Chão de terra, cadeiras empilhadas, projetor antigo, data show, telão e cartazes dão um contraste sem fim ao espaço escuro e úmido, o que preocupa Seu Zé. Afinal, é ali que ele guarda sua maior preciosidade: os filmes em VHS e DVD, essencialmente de dois gêneros: luta e terror, ou “karatê e vampiro”, como ele descreve. Dos filmes de luta, gosta dos autênticos: “Jackie Chan é uma mentira grande, prefiro os de Bruce Lee”. Entre os diretores, Zé do Caixão está no topo dos prediletos. “Exibi o ‘À meia-noite levarei sua alma’ 832 vezes. Quando conheci o Zé, em Fortaleza, durante o Cine Ceará, não queria contar isso. Mas acabaram falando para ele...”
Equipe de produção do curta Cine Zé Sozinho
Há cerca de dois anos, o exibidor solitário recebeu do Centro Cultural Banco do Nordeste uma ajuda preciosa: equipamento de projeção completo, no valor de 18 mil reais. O vídeo da cerimônia de entrega ele exibe com orgulho no pequeno televisor do espaço que mora. Não chama de casa, diz que está ali provisoriamente, até conseguir sair em viagem. O contrato com o BNB lhe pede presença semanal, para exibição de um filme escolhido pela instituição. Por essas ironias da vida, nunca passou em sua cidade o documentário feito por Adriano Lima, sobre sua trajetória. Cine Zé Sozinho é um curta-metragem produzido ao longo de dois anos, entre Fortaleza e o Cariri. O pernambucano radicado no Ceará espera por esse dia, quando imagina que mais trechos serão apresentados: “Eles filmaram um monte de horas pra só deixar 16 minutos!” Antes de terminarmos a conversa, Seu Zé faz um panorama da produção cinematográfica atual: “A sétima arte está acabando por causa da mentalidade dos produtores. Eles fazem uns filmes sem história e sem final”. Entrevista encerrada, desabafo: “Confesso que tive medo da recepção, Seu Zé. Pensei que o senhor não gostava muito de conversar”. A resposta resume uma personalidade: “Vem os caba aqui falar de futebol, de oficina de carro, disso eu não quero saber. Gosto é de conversar sobre essas coisas de cultura”. Enquanto caminha para me deixar no ponto de ônibus, sob olhos curiosos que estranham a visita, e bocas indiscretas que perguntam se sou sua filha, Seu Zé sorri ao saber que seria homenageado na II Mostra Curtas Cariri: “Sendo sobre cinema, pode faturar em cima de mim”. JUN 2008 • Continente
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CÊNICAS
Lirinha em nova fase Nome por trás do sucesso do Cordel do Fogo Encantado, artista faz um retorno sem nostalgia às suas origens poéticas com Mercadorias e futuro Olívia Mindêlo
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atizou-se José Paes de Lira, acunhou-se Lirinha e agora é Lirovsky. Esse é o nome que sintetiza a atual fase do cantor e compositor do Cordel do Fogo Encantado. Lirovsky não veio da Rússia. Ele é de Interlândia. Ganha dinheiro vendendo poesias sobre o futuro. É caçador de profetas. Gesticula palavras como quem procura falar um pouco de si. Personagem principal do monólogo e do livro Mercadorias e futuro, idealizado pelo artista em questão, Lirovsky não é só obra ficcional. Veio se somar à realidade de Lirinha hoje, fazendo emergir uma espécie de alter ego de alguém que quer mais dos palcos do que show business. A palavra aqui não parece ser anulação, mas acúmulo. O solo teatral que nasceu de livro homônimo, com data para ser lançado no próximo mês, não vem substituir o trabalho no Cordel do Fogo Encantado – ainda a sua maior fonte de renda. Ao contrário, a montagem procura articular as três expressões que tangenciam as criações de Lirinha: poesia, teatro e música. “Trabalho na zona de fronteira. Essa é a contribuição que eu tenho a dar ao mundo”, resume o artista. “Mercadorias e futuro é um complemento do que faço no Cordel, não existe concorrência estética.” Na montagem, o resultado dessa alquimia não se volta a multidões, mas a platéias bem menos numero-
sas e extasiadas. E soa como uma necessidade do artista de voltar a se encontrar mais intimamente com a linguagem teatral e, sobretudo, poética, verve que marcou, desde sempre, a sua trajetória artística, ainda quando morava em Arcoverde e partia por outras cidades do interior pernambucano declamando poesia entre cantadores e repentistas nordestinos ainda criança. Os versos de improviso e, depois, os exercícios teatrais foram sua grande escola, ainda que ao Brasil tenham apresentado um produto pronto para ser consumido sob o rótulo musical com influência da literatura de cordel. O novo trabalho solo é, sim, um retorno a todo esse começo. Mas um retorno sem nostalgia. Lirovsky negocia o tempo inteiro as suas “raízes”, mas não perde de vista o que lhe é mais caro: as pernas. Ou seja, a busca por novos caminhos. Certa vez, mais precisamente há três anos, Lirinha afirmou numa entrevista que “ficar se repetindo a vida inteira é a pior coisa que um artista pode fazer. É burrice”. Pois sendo assim, ele segue fiel às suas convicções. Inquieto por natureza; criativo por necessidade. Mercadorias e futuro não é a sua primeira experiência teatral desde que deixou Arcoverde rumo a São Paulo, onde mora há seis anos. Entre os intervalos das turnês do Cordel, realizou e dirigiu, na Paulicéia, a lei-
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Lirinha no papel de Lirovsky, protagonista do monólogo e do livro Mercadorias e futuro
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CÊNICAS tura dramática solo de Morte e vida severina, do poeta João Cabral de Melo Neto, e ainda fez inserções no Teatro Oficina, do encenador José Celso Martinez Corrêa. Com ele cuidou da direção musical do espetáculo A luta I, parte do arsenal cênico de Os Sertões. Mas é o atual espetáculo, apresentado em São Paulo, Santos e João Pessoa, com previsão de ser encenado em Pernambuco no segundo semestre, com o qual mais se identifica e ao qual mais se entregou desde então. Do texto à direção, que divide com a mulher e atriz Leandra Leal, o trabalho é completamente autoral. A idéia nasceu de um livro cujas primeiras linhas ele começou a traçar há cinco anos. A publicação, que ainda está no forno do Ateliê Editorial (SP), é utilizada na peça, à qual Lirovsky se refere como mercadoria. Mas não se trata do texto da montagem e, sim, de uma parte dela. Nas suas páginas, habitam os três personagens criados por
Lirinha e “descobertos” por Lirovsky: os profetas João Pedra Maior, Tereza Purpurina e Benedito Heráclito. O primeiro é morador de árvores, deixou o futuro pintado em pedras. A segunda, uma cartomante apaixonada por um Valete de seu baralho mais antigo. O terceiro, um guerrilheiro revolucionário que reflete sobre a relação entre trabalho e venda. Eles não são reais, mas carregam um pouco do próprio Lirinha, na medida em que pontuam as histórias ao longo do monólogo. “O trabalho é autobiográfico, mas ficcional. Passo mentira, passo verdade. Brinco com essa coisa de alter ego. Não sou profeta, como costumam atribuir a mim. A profecia é poesia, e eu devolvo a ela sua característica primordial. Cuidado comigo, eu sou um falso profeta”, avisa José Paes de Lira. Lirovsky é uma mistura do homem da cobra com Sílvio Santos, traduzido na figura de um ambulante de nossa era. Ao contrário dos feirantes e marqueteiros habituais, sua mercadoria é a
A caixa-carrinho é a principal estratégia de venda do ambulante Lirovsky
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TEATRO O teatro, segundo Lirinha, não vem substituir o seu trabalho no Cordel do Fogo Encantado
Teatro baiano em Pernambuco
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arte. Ele procura “vender poesia, vender o sublime, pregoar o invisível, botar preço no que não tem preço”, como anuncia na peça. Os consumidores somos nós: leitores do seu livro ou espectadores de seu solo teatral, com os quais o ator dialoga o tempo inteiro. E, nesse jogo aparentemente panfletário e metalingüístico, Lirinha usa o cenário, os gestos, os sons e as palavras para persuadir sua “clientela”. A caixa-carrinho, como chama, é a sua principal estratégia de venda. Funcionando como a extensão do seu próprio corpo em cena, dele dispara, através de pedais, 48 sons diferentes, entre barulhos, falas e anúncios, como se fosse um camelô à procura de convencer a freguesia. Carrega o carrinho de um lado para outro do palco, ação, aliás, que tem tudo a ver com a hiperatividade de Lirinha. Isso ajuda a dar dinamicidade ao monólogo. A “parafernália” foi criada pelo artista plástico pernambucano Maurício Castro, conhecido pela criatividade e versatilidade de suas peças. O declamador Lirinha está ainda mais eloqüente nesse tablado. Quem ainda não teve a oportunidade de vê-lo recitar, de improviso, poetas como Manoel Filó, Chico Pedrosa e Manoel Xudu, seus mestres, essa é uma boa oportunidade. Mas o contexto é outro. Mercadorias e futuro não é um congresso de cantadores. É a construção de uma outra linguagem, com resultado cênico contemporâneo. O novo trabalho, tanto o livro quanto a peça, é a síntese das tensões que existem no artista. Se Lirovsky brinca com o poder ilusionista de sua oralidade poética, por meio de metáforas, Lirinha nos atira numa reflexão filosófica real. Não somos convencidos, mas convidados a pensar. E, no meio mercadológico, esse pode ser, afinal, o maior papel da arte.
intercâmbio interestadual proposto pelo Festival de Teatro Brasileiro (FTB) traz a Pernambuco uma seleção da produção cênica da Bahia. Em sua sétima edição, a programação do festival vai contar com 20 apresentações, nove oficinas, 11 exibições de filmes, palestras e oficinas. A maratona acontece entre os dias 23 de maio e 15 de junho, nos teatros Apolo, Hermilo Borba Filho, Santa Isabel, Parque, Armazém e Nascedouro de Peixinhos. O festival abre com o espetáculo Aroeira, da Cia. Viladança, que é referência no teatro baiano. Aroeira tem trilha sonora inédita de Milton Nascimento. Entre outras peças, destaque para Shopping and Fucking. O texto do inglês Mark Ravenhill já foi adaptado com sucesso de crítica e público nos Estados Unidos e na Europa, e vem assumindo uma aura de espetáculo cult, com cenas ousadas de homossexualismo. Ó, paí, ó!, cujo elenco gravou a minissérie homônima da globo, também deve chamar a atenção. Já entre as oficinas, sobressai-se a de Instrumentos Re-percussivos, que utiliza instrumentos confeccionados com materiais reutilizáveis como madeira e papelão na estrutura e até radiografias nas peles.
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CÊNICAS
Trupizupe, o Raio da Silibrina Reencenação do texto de Bráulio Tavares levanta problemas sobre a transição entre gêneros e a relação tradição-modernidade Alexandre Figueirôa
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o domingo de encerramento do Cine PE – Festival do Audiovisual, resolvi me esquivar da xaroposa cerimônia de entrega de prêmios para os filmes “menos ruins” exibidos este ano, e fui ao Teatro do Parque conferir Trupizupe, o Raio da Silibrina, com direção de José Manoel e trilha sonora de Walmir Chagas. Lembrei que, no longínquo ano de 1982, assistira à montagem dirigida por Carlos Varela, do texto de Bráulio Tavares, e dera boas risadas. Achei, portanto, que seria, no mínimo, curioso, confrontar-me, 26 anos depois, com as aventuras de Trupizupe, um desses andarilhos trapaceiros, louvados nos folhetos de cordel, que povoam o imaginário popular nordestino e são parentes, não muito distantes, do João Grilo, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Mas, os tempos são outros. Ou eu fiquei mais carrancudo e “invocado” (assumo tranqüilamente tal possibilidade!), ou o teatro fei-
to em Pernambuco (ou parte dele), nos dias de hoje, está precisando, urgentemente, de um tratamento de choque. Talvez tivesse sido mais engraçado mangar do pastiche de “noite de Oscar” travestida em “noite das calungas”, do Centro de Convenções. Voltei para casa e fiquei procurando um bom motivo para não me acusarem pela enésima vez de perseguidor implacável da ribalta pernambucana, mas, confesso, não foi fácil. Para não parecer hermético e pedante, compartilho, humildemente, com o leitor, algumas das inquietações básicas que, desde então, passaram a me atormentar o espírito. Por que um texto engenhoso e bem articulado contando a história de um esperto tocador de ganzá, com carpintaria teatral eficaz, pleno, portanto, de possibilidades cênicas, soa tão desarrumado e anacrônico? Como um grupo de atores experientes (sobretudo, Carlos Lira, Cleusson Vieira, Hilton Azevedo, Leidson Fer-
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raz), ricos em habilidades de interpretação, está tão caricato e previsível? Qual a razão de um encenador, com anos de prática de realização, trocar os pés pelas mãos de maneira tão absurda? As questões podem se multiplicar, mas acredito serem essas já suficientes para tentar decifrar essa esfinge que corrói boa parcela da produção teatral local e se materializa sem piedade nessa montagem. O primeiro esboço de resposta talvez venha de uma necessidade (legítima, mas capciosa) de conquistar a platéia a qualquer custo. Sei o quanto é complicado viver de teatro na ex-terceira capital do país. Mas, será que, no afã de conseguir pagar as contas da produção e cobrir as despesas, não se está apelando demais ao uso de fórmulas fáceis e gastas? O humor sempre foi uma alternativa legítima de entretenimento. Todavia, a “mistureba” liquidificada de algumas colheradas de arremedos de commedia dell’arte com uma xícara cheia de pornochanchada, somadas a pitadas de “trupe do barulho”, com gotas de “Zorra Total”, não seria uma receita um pouco indigesta? Se estou exagerando, gostaria que me explicassem, entre outras coisas ridículas vistas no palco, por qual razão o rei, pai da princesa Genoveva, aparece, em uma das cenas, vestido como se fosse um adepto de práticas samasoquistas? Ou ainda: o que significa o padre responsável pela celebração do matrimônio estar com as nádegas de fora? Não existe nenhum pecado em atualizar um texto ou liberá-lo de formatos engessados de encenação, calcados numa lógica estritamente regional, para inseri-lo num universo mais contemporâneo, no entanto, quando o mau gosto é quem dá o tom (e, por favor, não me venham falar de estética kitsch!), alguma coisa parece estar rimando fora do compasso. Os risos ecoam, aqui e acolá, mas duvido muito que sejam para brindar uma possível engenhosidade criativa do espetáculo, pois ela não se configura. A absoluta incapacidade do mesmo em resolver a transição entre gêneros e encontrar uma saída harmoniosa e inteligente entre tradição e modernidade é dolorosa para quem tem o mínimo conhecimento do que seja uma encenação digna. Tudo é tão malresolvido quanto o uso de microfones, cuja interferência direta na fruição da peça torna-se evidente. Eles fazem a voz dos atores soar artificial, quando estão no fundo do palco, em claro descompasso com a voz natural, quando eles vêm até o proscênio. Isso se revela tão constrangedor quanto os feios adereços de cena, a luz sem imaginação, o figurino desengonçado, e os melancólicos eternos apelos, ao final de cada sessão, de convidar os amigos a virem ao teatro para conferir o espetáculo. Confesso que gostaria muito de poder fazer isso com serenidade e alegria, mas... com esse Trupizupe... nem os inimigos. JUN 2008 • Continente x
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ESPECIAL
Imprensa no Brasil
200
anos
CRÔNICA
Um belo exemplo que A Provincia esta ´ dando ´ Manuel Bandeira
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A Revista Continente deu início na edição anterior (nº 89), em comemoração aos 200 anos da Imprensa Nacional, à publicação de uma série de crônicas escritas por autores pernambucanos desde os tempos do Padre Carapuceiro – meados de 1800 – até os dias de hoje. Dando voz a autores de épocas diferentes e de estilos e mentalidades também diversas, esperamos mostrar aspectos da história e da vida cultural de Pernambuco e do Brasil através desse gênero híbrido de jornalismo e literatura que tem como característica a liberdade, a leveza e a subjetividade. Aproveitando o ensejo do lançamento do livro Crônicas inéditas I, que compila textos do poeta (e excelente cronista!) Manuel Bandeira, publicados em jornais entre 1920 e 1931 e que jamais haviam sido reunidas em livro, reproduzimos aqui uma “cronicazinha” saborosa em que Bandeira discorre sobre a relatividade do termo “provincianismo”. O livro recém-lançado reúne 113 textos selecionados por Júlio Castañon Guimarães (também autor do posfácio), alguns deles veiculados na imprensa da época, sobretudo nos jornais A Província (Pernambuco), Diário Nacional (São Paulo) e O Dia (Rio de Janeiro). Pintura, música erudita, arquitetura, teatro, cinema, poesia e o mundo das artes são os temas desse autor que se mostra um mestre também nessa prosa do cotidiano. Uma segunda reunião de crônicas do autor, abrangendo as décadas de 30 e 40, também será lançada pela mesma editora. Crônicas inéditas I Manual Bandeira Cosac Naify 440 páginas 65,00 reais
outro dia um literato que escreve nos jornais do Rio fez carga na imprensa dos estados caçoando-lhe o provincianismo. Há tempos um cronista debochava um poeta de São Paulo a quem chamava, entre outras coisas, de provinciano. Provinciano, provincianismo... Eis um debique fácil de atirar. Mas como se há de definir afinal esse tão falado provincianismo? Pondo de lado toda sutileza, pode-se considerar provincianismo maneiras de proceder, modos de pensar, de sentir próprios da província. É evidente que há bom e mau provincianismo. A palavra é contudo empregada sempre em sentido pejorativo. O literato a que aludimos atrás não pensou decerto em menoscabar os confrades provincianos: ele próprio é exemplo do nortista que venceu no Rio. De resto os nortistas empolgaram os maiores jornais da capital. O Jornal do Comércio é do senhor Félix Pacheco, do Piauí; um dos donos do O País é o senhor Alves de Sousa, paraense; o senhor Assis Chateaubriand, senhor de fato do O Jornal, nasceu na fronteira de Pernambuco e Paraíba, para o lado da Paraíba (felizmente para a Paraíba); quem dirige a A Noite é Viriato Correia, maranhense; o redator-chefe do O Globo é o baianinho Euricles de Matos. As redações estão cheias de gente de Minas e do Norte. Talvez por isso é que os jornais do Rio têm um ar tão... provinciano. Aqui entram as sutilezas
de interpretação do “provincianismo”. O que é perfeitamente metropolitano para a capital do Brasil pode passar a provincianismo em relação a Paris ou a Londres. É um abuso de lugar-comum citar a famosa frase de Disraeli, mas ela vem aqui muito ao caso. Dizia o judeuzinho terrível que no mundo só havia de realmente interessante Paris e Londres, e tudo o mais era paisagem. Talvez se possa dizer: tudo o mais é província. Pois ainda reduzindo a dois termos todo o mundo interessante, não houve quem achasse Paris província em comparação com Londres? O juízo é de Bernard Shaw e muita gente lhe dá razão. Vejam quanto é elástico o sentido da palavrinha. Há na essência do provincianismo uma falta de senso de humour e o desconhecimento de certas gradações de valores. Lembra-me que há bons trinta anos a senhora Lucília Simões, então moça e bonita, fez uma tournée ao norte do Brasil. No Recife um jornal apareceu um dia transmudado em poliantéia em honra da artista, a propósito de quem os literatos deliraram de entusiasmo evocando a “Hélade antiga”... Provincianismo. Mas o mesmo provincianismo testemunhava o Rio daquele tempo promovendo a gênio a sofrível Tina della Guardia. No tempo em que a imprensa do Rio desconhecia os processos americanos de jornalismo, hoje dominantes em toda a parte, Bilac,
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Fundação Joaquim Nabuco/ Reprodução
Rua do Bom Jesus, em 1940
Guimarães Passos e outros requintados da sua geração debochavam a valer o Jornal do Brasil que foi o primeiro a introduzir os numerosos subtítulos no cabeçalho das notícias. Um amigo de meu pai, sujeito inteligentíssimo, pernambucano déraciné, ria-se muito com os títulos do noticiário policial de certo jornal recifense. Esse jornal punha no título o sumário da notícia. “Quase caiu no buraco” ou então “Foi cobrar a conta e levou pancada” etc. Aquilo parecia o cúmulo do provincianismo... naquele tempo. Hoje é up-to-date na capital. Já vi até numa redação carioca um repórter chamar provinciana a imprensa de São Paulo por não saber explorar sensacionalmente a reportagem de polícia. Parece-me que um jornal não deve encher nunca a sua primeira página com a reportagem de um crime de morte, a menos que se trate do assassinato do presidente da República, do papa ou outras personagens assim.
Pois quase todos os jornais do Rio deram essa honra ao italiano Pistone, assassino burríssimo, autor de um crime afinal muito medíocre. Eis um provincianismo autêntico. Menos que provincianismo é o que faz todos os dias o Jornal do Comércio carioca e de vez em quando o Jornal do Brasil, transcrevendo em listas que enchem colunas os nomes de pessoas presentes às missas de sétimo dia ou a enterros e reproduzindo até os dizeres das coroas e ramalhetes: “À idolatrada comadre último adeus do compadre Belarmino”, “Lembrança de seu neto Candoca” etc. O que o jornalista do matutino carioca mais censurou na imprensa provinciana foi o hábito das transcrições. De fato a transcrição é costume característico dos jornais dos estados. Será bom provincianismo para as pequenas folhas do interior. O ambiente pobre em acontecimentos, em recur-
sos e em inteligências não permite outra conduta. A escolha e vulgarização de bons artigos da imprensa das grandes capitais contribuirá ótimo serviço jornalístico. Agora quando o jornal que assim procede é um grande diário de capital de província, o fato se torna escandaloso. É pura pirataria. Mau provincianismo: querer dar a impressão de grande jornal em desproporção com o meio. Pelo que leio na seção da A Província intitulada “Nos outros jornais”, a indústria das transcrições pratica-se em larga escala na imprensa do Recife. O velho órgão de José Maria está dando um belo exemplo de elegância com proporcionar sempre aos seus leitores matéria original. Em sua discrição e bom senso ele é um modelo agradável e interessante do que pode ser um bom jornal de província. A Província, 11 de novembro de 1928. JUN 2008 • Continente x
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metrópole
Marcella Sampaio
A "filosofia" da auto-ajuda
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assear numa livraria pode ser um dos programas mais interessantes de se fazer numa cidade grande como o Recife, e não apenas pelo ambiente agradável, intelectualmente desafiador, ou pelo café ótimo que servem lá dentro. Numa livraria blockbuster, é possível encontrar diversão genuína na seção dos títulos de auto-ajuda. A diversão, naturalmente, está destinada àqueles que não levam esses livrinhos a sério e curtem cascavilhar as prateleiras em busca do ridículo e do escatológico. É impossível, por exemplo, não sorrir com o cantinho da boca ao se deparar com um título como Por que homens inteligentes casam com mulheres inteligentes. Talvez porque sejam inteligentes? Em uma interpretação bem simplória, diria que se um homem inteligente casa com uma mulher burra talvez ele não seja tão inteligente assim – e vice-versa. Há também uma linhagem de livros que segue pelo caminho do “querer é poder”. Quem tem mais de cinco anos de idade já aprendeu que no mundo real as coisas não são bem assim, e que as frustrações são bem mais numerosas em nossas curtas vidinhas do que gostaríamos. O que dizer, então, do título Peça e será atendido? Será que quem escreveu essas maltraçadas linhas realmente acredita nisso? Proponho um exercício: vamos todos juntos pedir a paz no mundo, uma coisa tipo miss universo. Se der certo, mordo a língua. Outros livros descambam para a pieguice, e batem o recorde na reunião de clichês por centímetro quadrado. O que esperar quando você está esperando é um desses. Para quem ainda não entendeu o trocadilho, sim, o autor está falando para as futuras mães, essas coitadas que têm que ouvir todo o tipo de absurdos vindos das mais diversas direções só porque carregam uma criança na barriga. Ser mãe é tudo de bom é outro desses títulos que só colaboram para a culpa das mulheres que percebem, na prática, que não, nem
sempre ser mãe é tudo de bom. Às vezes é bem chatinho, e não deixamos nem por um segundo de amar nossos filhos mais que tudo na vida por isso. Pais brilhantes, professores fascinantes. Como assim? A relação causa-efeito que aí se estabelece me parece bem problemática. Seria o mesmo que dizer “filme legal, pipoca gostosa”. Ambas as coisas podem até estar relacionadas, mas não necessariamente implicam uma na outra. Não podemos esquecer ainda dos livros que nos revelam “segredos”. O segredo da prosperidade, O segredo para realizar seus sonhos, e por aí vai, vendem a idéia de que há fórmula mágica para resolver as questões básicas que atormentam as pessoas desde sempre, o que, obviamente, esbarra na falta de lógica, mais uma vez. Se assim fosse, viveríamos eternamente como Jorginho Guinle, provavelmente o homem mais feliz que já passou pela Terra, segundo sua própria avaliação. Basta lembrar que ele morreu no Copacabana Palace, na hora e no quarto que escolheu, depois de uma longa vida gastando a rodo, namorando atrizes de cinema lindíssimas e curtindo as festinhas mais exclusivas e badaladas do mundo. Detalhe: sem fazer o mínimo esforço nem ler livro nenhum. Mas o melhor, a ameixa do pudim, ficou para o final. Nada se compara, caros, ao fantástico O método mystery: Como levar mulheres bonitas para a cama. Realmente, supera a expectativa mais otimista de qualquer contumaz freqüentador de livrarias. A título de ilustraZenival ção, vale dizer que neste livreto há uma passagem que diz que o homem deve se classificar para investir nas fêmeas segundo “Demonstrações de Valor Elevado”, que incluem usar aliança mesmo sendo solteiro e andar sempre ao lado de duas ou mais amigas. Desta forma, as mulheres (bonitas) perceberão que ele já passou pelo “crivo” das colegas de mesmo gênero e ficarão loucas para pular em sua cama. Amazing, como diriam os americanos.
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