Continente #091 - Manoel Eudócio

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Artesanato, cangaço e cinema

Hans Manteuffel

aos leitores

Peça de Manuel Eudócio, mestre da arte figurativa pernambucana

N

este mês em que Pernambuco realiza a 9ª Fenneart (Feira Nacional de Negócios de Artesanato), cujo objetivo é impulsionar a economia dessa atividade criativa mobilizadora de tantos talentos populares, a Continente foca um dos seus redutos mais importantes, se bem que não único. No Alto do Moura, em Caruaru, onde o Mestre Vitalino (1909–1963), há décadas moldou no barro uma glória precária, seus sucessores (não necessariamente consangüíneos) continuam produzindo uma cerâmica artística que proporcionou ao município o título, pela Unesco, de o maior Centro de Artes Figurativas das Américas. Dentre eles, avulta o nome de Manuel Eudócio, talvez o mais original de todos os artistas do barro, embora nomes como o de Marliete, filha de outro contemporâneo de Vitalino, Zé Caboclo, também sejam sinônimos de qualidade e inspiração. Na matéria principal desta edição, de autoria da especialista Maria Alice Amorim, analisa-se o estado da arte dessa produção, procurando-se identificar o que de pessoal e único está na obras dos grandes mestres ceramistas. Também ouvimos a jornalista Adélia Borges, há muitos anos dedicada à cobertura dos temas relacionados ao design, cujas opiniões podem ser resumidas nesta frase: “Alguns puristas e folcloristas acreditam que o artesanato e algumas manifestações culturais devem ser preservadas como eram no passado, mas o que está vivo precisa de mudança.” Ela defende o conceito da arquiteta Janete Costa – “interferir, sem ferir” – para definir como essa aproximação deveria acontecer. Na retranca “Especial” assinalamos os 70 anos, neste mês de julho, da morte de um dos maiores mitos do imaginário popular nordestino (e até brasileiro, em menor escala) – Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Ainda hoje coberto pela auréola mítica de bandido ora selvagem ora justiceiro, a construção dessa imagem é analisada pelo pesquisador Frederico Pernambucano de Melo, uma das maiores autoridades mundiais no assunto. De quebra, damos exemplos de como o bandoleiro sabia utilizar a mídia para construir sua imagem, num jogo de relações ambíguas e tortuosas. Outros temas trazidos são os 80 anos de Gilvan Lemos, o romancista tímido; um museu de arte contemporânea no interior de Minas, e o cinema visto pelo diretor de fotografia Affonso Beato e o montador Eduardo Escorel. Boa leitura.

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ENTREVISTA 4 >> Eduardo Escorel e a identidade do cinema nacional BALAIO 10 >> Inventores do rock ficaram na sombra CAPA 12 >> Manuel Eudócio escreve seu nome com o barro 18 >> A riqueza do Alto do Moura 22 >> Um diálogo entre a tradição e a modernidade LITERATURA 24 >> Os 80 anos de um escritor tímido 28 >> O aprendizado de Nélida Piñon 30 >> Como era ler Eça de Queiroz 32 >> Agenda livros 34 >> A poesia de Juareiz Correya ARTES 36 >> Um museu de arte no meio do mato ESPECIAL 46 >> Como Lampião passou de bandido a mito 52 >> Relações perigosas com a imprensa CINEMA 56 >> Um fotógrafo brasileiro nos filmes do mundo

TEA: o teatro de Caruaru

Divulgação Divulgação

Fábio Pascoal/Divulgação

Venezuela revela músicos

Hans Manteuffel

Manuel Eudócio e a herança de Vitalino

MÚSICA 60 >> Isaar França parte para a carreira solo 62 >> Josildo Sá e Paulo Moura juntos num DVD 64 >> Orquestras sinfônicas jovens em ascensão 68 >> Um luthier em terras pernambucanas 72 >> Agenda música PERFIL 77 >> Um urbanizador do forró CÊNICAS 80 >> 40 anos de história de um teatro caruaruense REGISTRO 84 >> A indústria dos OVNIS ECONOMIA 88 >> As relações entre economia e cultura TESES 90 >> A África nos romances de Mia Couto AGENDA.COM 92 >> Tom Zé lança disco na internet CRÔNICA 94>> Anayde Beiriz fala de amor e perdão

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Eduardo Eckenfels/Divulgação

Fotos: Rafael Gomes

Luteria em Pernambuco

Inhotim: espaço para a arte

Os 80 anos de Gilvan Lemos

Beto Figueirôa/Divulgação

Reprodução

Isaar em carreira solo

COLUNAS ENTRELINHAS 35 >> Uma abolicionista na França

O mito Lampião 70 anos depois

TRADUZIR-SE 42 >> A opção radical de Amílcar de Castro SABORES 74 >> O milho e as festas de São João METRÓPOLE 96 >> A menina que é e a mulher que virá

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entrevista

Eduardo Escorel O que está sendo feito de mais interessante no Brasil, hoje, é no campo do cinema documentário. O cinema de ficção está muito enrijecido por essa tentativa de disputar o mercado dominado pelo cinema americano

Imagens: Divulgação

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Eduardo Escorel, principal montador do Cinema Novo, fala sobre sua trajetória como editor e diretor, discute o atual momento do cinema brasileiro e a polêmica em torno de seu novo documentário ENTREVISTA A Marcelo Costa

É

interessante como a trajetória profissional de Eduardo Escorel se confunde, em parte, com a história do cinema brasileiro. Montador dos principais projetos do Cinema Novo, Escorel não só continuou a editar obras fundamentais da cinematografia brasileira, como também passou a dirigir os próprios filmes. No livro, Adivinhadores de água, publicado em 2005, o cineasta submete suas reflexões sobre o cinema nacional a um olhar impiedoso e crítico. Após uma série de documentários sobre eventos políticos da história nacional, o autor resgata a história do agricultor familiar Genivaldo, no documentário O tempo e o lugar.

Você começou a trabalhar muito cedo com os cineastas do Cinema Novo – aos 20 anos montou O padre e a moça, de Joaquim Pedro de Andrade, e aos 21, Terra em transe, de Glauber Rocha. Como esse contato influenciou a sua personalidade artística? Eu tive o privilégio de iniciar o meu aprendizado no cinema trabalhando com um grupo de pessoas também jovens, um pouco mais velhas do que eu, e em fase de grande ebulição criativa, participando dos debates e das questões culturais e políticas. Esses 10 anos iniciais da minha trajetória profissional, entre 1965 e 1975, foram muito ricos nesse sentido; cada diretor com suas características, cada filme representando determinado tipo de experiência. Tive a possibilidade de descobrir

com eles os caminhos que estavam percorrendo, as soluções que encontravam para as idéias que tinham.

edição pode ser um exercício intelectual, principalmente para mim, que trabalho com alguém operando a ilha.

Esse intervalo a que você se referiu, que é exatamente o intervalo para você dirigir o seu primeiro longa-metragem, Lição de amor (1975), foi o período necessário para o amadurecimento como realizador? Foi o período inicial de um aprendizado que continua até hoje. Fazer cinema é muito difícil, a cada filme que você faz, você repensa, aprende coisas novas. Mesmo depois desse período, tive a fortuna de montar com o Eduardo Coutinho o Cabra marcado para morrer, que foi também muito importante. E, mais recentemente, montar, com o João Salles, Santiago. O cinema é uma coisa que você está sempre aprendendo, descobrindo. É um processo que não termina nunca.

Recentemente, voltou-se à discussão, motivada por uma provocação de Marcelo Madureira, de que a obra de Glauber Rocha não teria o valor artístico e a importância que lhe eram atribuídos. Qual sua opinião sobre o episódio? Acho perfeitamente legítimo que os filmes, ou qualquer produção cultural, sejam reavaliados e reconsiderados; não vejo nenhum problema nisso. Acho também que certos filmes devem, em primeiro lugar, ser considerados num contexto histórico determinado. Não é sempre que se pode reavaliar alguma coisa feita no passado com critérios atuais. Acho natural que muitas obras, se esse for o caso de alguns filmes do Glauber, vistas num contexto completamente diferentes, num mundo transformado, causem estranheza. Isso não quer dizer que não sejam ou não tenham sido importantes. A idéia da obra eterna, da obra-prima perene é um ideal romântico. Pareceme um anacronismo querer avaliar filmes de um determinado contexto com o olhar de hoje em dia.

Como você encarou a transição para a edição digital? Eu deixei de editar durante muitos anos, depois de Cabra marcado, uns 15 anos mais ou menos. E acho que não teria voltado a editar se não fosse o processo digital. A montagem se tornou muito mais agradável, mais lúdica, muito menos pesada. A edição numa mesa de montagem era uma coisa física, você lidava com rolos de filmes, latas, tinha um lado artesanal, o corte da película, a emenda do durex, era muito lento, cada corte levava um tempo enorme para ser feito, desfeito, refeito. Com o surgimento dos meios de edição digitais, a

Em sua filmografia, percebe-se que a questão política sempre está muito presente. Até que ponto a formação como cientista político influencia sua obra? Fazer cinema era também uma forma de atuar politicamente. Os filmes eram também concebidos como produtos de intervenção cultural e política. Depois de quatro anos trabalhando com cinema, JUL 2008 • Continente x

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O Brasil é um país de adivinhadores de água, de pessoas capazes de, mesmo em condições adversas, aqui e ali, fazer brotar água no sertão, fazer filmes interessantes e originais

resolvi fazer sociologia. Os filmes que fiz partem da política, mas não são, talvez, filmes políticos, no sentido de não serem militantes, de não serem filmes a serviço de uma causa ou que estejam pretendendo persuadir alguém de alguma coisa. No livro Adivinhadores de água, você ressalta a necessidade de o cinema conquistar sua autonomia e se utiliza do termo "falta de caráter" para ilustrar a falta de identidade do cinema nacional. A que você atribui isso? Ao fato de o cinema brasileiro nunca ter conseguido estabelecer um elo mais forte com o seu público; ao fato de o cinema que se faz no Brasil não ser, e nunca foi, uma operação viável economicamente pela falta de um mercado. O cinema no Brasil vive meio esquizoidemente dividido entre uma tentativa de imitar o que o grande cinema do entretenimento faz, sem conseguir – em geral, tentativas meio patéticas –, e uma tentativa de reproduzir modelos de sucesso usados na televisão, ou ainda, buscando um caminho original e encontrando uma barreira muito grande para estabelecer um diálogo com o público. Uma cinematografia não pode se considerar existente se ela não tem público. Então, o cinema nacional não conseguiu criar uma linguagem própria e autônoma que se legitimasse? Não, nunca conseguiu. Tem certos arroubos, certos surtos, certos filmes, mas acho que nunca conseguiu e acho que também não vai conseguir.

O documentário, no Brasil, em termos de qualidade, prevalece hoje sobre a ficção. Como você vê esse cenário? O que está sendo feito de mais interessante no Brasil, hoje, é no campo do cinema documentário. Grande parte disso resulta do fato de o documentário ter um custo de produção muito inferior ao filme de ficção, o que permite uma liberdade, uma autonomia, um campo de experimentação que no cinema de ficção é difícil ter. O cinema de ficção está muito enrijecido por esse modelo, por essa tentativa de disputar o mercado dominado pelo cinema americano. No seu mais recente filme, O tempo e o lugar, você retoma a questão política na personagem de Genivaldo, agricultor familiar de Alagoas, ativista político e ex-membro do MST, da Pastoral da Terra e do Partido dos Trabalhadores. De que modo a trajetória de Genivaldo se relaciona com a história do Brasil? Eu não acredito que documentário deva ser tomado para falar de outras coisas. Acho um erro de percepção usar documentários como pretexto para falar de assuntos muito mais amplos e maiores do que aquilo que eles tratam. O documentário, por definição, lida com o concreto, com o objetivo, com alguma coisa delimitada. Eu não gostaria que O tempo e o lugar fosse entendido como um documentário sobre o MST, sobre a Pastoral da Terra, ou sobre o PT, ou que pretendesse fazer algum juízo a respeito do Governo Lula. Não é essa a minha expectativa,

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Divulgação

Em seu mais recente documentário, Escorel mostra a trajetória de Genivaldo, um agricultor e ativista político

não foi esse o meu projeto. O tempo e o Lugar é a história de uma pessoa determinada, um agricultor familiar, com uma trajetória específica, numa época e num lugar determinados, daí O tempo e o lugar. É claro que ninguém tem o poder de controlar como um filme vai ser visto ou como vai ser usado, mas nas ocasiões em que eu estiver participando do debate, eu resistiria à idéia do filme como representação de uma outra coisa, do filme como metáfora. O que não quer dizer que não haja evidentes paralelos que possam ser feitos, entre a trajetória do Genivaldo e a do presidente Lula, por exemplo. Elas são contemporâneas. A crise das instituições e do movimento social também não estaria presente? Um dos dados significativos da história do Genivaldo me parece ser o fato de que ele sendo uma pessoa com a capacidade de liderança já comprovada, uma pessoa extremamente carismática, com um poder de comunicabilidade enorme com as pessoas com as quais ele lida, o movimento social, a Igreja, o partido político não conseguiram encontrar uma forma que lhe permitisse atuar dentro

dessas estruturas, o que diz muito dessas instituições, das suas limitações, do enrijecimento da forma de atuação. Eu vejo o Genivaldo como fiel a uma vocação política que ele tem, mas decepcionado e insatisfeito com Igreja, Movimento e Partido. A estrutura do filme se assemelha à de Cabra marcado para morrer, na idéia de retomar um registro em diferentes momentos. Você teve o primeiro contato com o Genivaldo em 1996, e depois de nove anos você retornou a Inhapi, para enfim terminar a gravação numa terceira visita em 2007. Essa construção foi concebida previamente ou no decorrer do processo? O tempo e o lugar foi descoberto à medida que era feito, em grande parte durante as gravações em 2007 e na própria montagem. Eu primeiro pensei em uma história ligada ao adivinhador de água. Inicialmente pensei em fazer um documentário à procura desse personagem, desse andarilho, que apareceu e depois desapareceu, capaz de indicar onde deveriam cavar para encontrar água. Depois eu pensei em fazer um filme

de ficção e voltei a pensar no documentário. Mas a formulação inicial era a de um projeto sobre as lideranças políticas naquela região, e o Genivaldo seria um entre outros. Mas, fui percebendo que a trajetória dele era um caso à parte. Não dava para fazer um documentário querendo atribuir a mesma importância a esses outros personagens. Nos seus artigos e reflexões sobre cinema transparece um certo ceticismo. O que se pode esperar do cinema nacional daqui para frente? O Brasil é um país de adivinhadores de água, de pessoas capazes de, mesmo em condições adversas, aqui e ali, fazer brotar água no sertão, fazer filmes interessantes e originais, embora sejam casos isolados e esporádicos. Eu acho que não se deve esperar do cinema propriamente uma função ou um valor utilitário. O cinema que se faz no Brasil será tão mais significativo ou expressivo quanto mais ele conseguir se diferenciar de um padrão que, de certa maneira, está cristalizado no mundo todo. Eu acredito que o projeto do cinema brasileiro deva ser um projeto de diferenciação. JUL 2008 • Continente x

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Julho 2008 – Ano 8 Capa: Hans Manteuffel

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo

Colaboradores desta edição:

Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses

BRUNO NOGUEIRA Jornalista e mestre em Comunicação. CARLOS EDUARDO AMARAL

Superintendente de Edição Homero Fonseca

Superintendente de Produção Marco Polo

Superintendente de Criação Luiz Arrais

Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira (redação) Thiago Lins (assistente de redação) Maria Helena Pôrto (revisão) Gabriela Lobo (estagiária) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio) Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações) Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves

CRISTHIANO AGUIAR Escritor e mestrando em Literatura. CRISTIANO RAMOS Jornalista e apresentador do Opinião Pernambuco. EDSON NERY DA FONSECA Escritor e biblioteconomista. FERNANDO MONTEIRO Escritor e cineasta. FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO Escritor e historiador. JOSÉ TELES Jornalista e crítico de música popular.

Supervisão de Impressão Eliseu Souza Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira

Jornalista e crítico musical da Continente.

KLEBER MENDONÇA FILHO

Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes

Crítico de cinema e cineasta. LEIDSON FERRAZ Ator, jornalista e pesquisador teatral.

Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão Contatos com a Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@revistacontinente.com.br Na internet www.continenteonline.com.br Atendimento ao Assinante 0800 81 1201/3217.2581 assinaturas@revistacontinente.com.br Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

LUIZ CARLOS MONTEIRO Poeta e crítico cultural. MARIA ALICE AMORIM Jornalista e pesquisadora na área de cultura popular. MARCELO COSTA Jornalista e crítico de cinema da Continente. RENATO LIMA Jornalista e apresentador do Café Colombo. SARA CORREIA Jornalista.

Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes e Cultura posta em questão. LUZILÁ GONÇALVES Escritora, professora universitária e autora do livro Voltar a Palermo, entre outros. MARCELLA SAMPAIO

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

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Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.

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cartas

Arquivo CEPE

Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 Redação: redacao@revistacontinente.com.br

BOLOS PERNAMBUCANOS Sou uma grande fã da Continente. Para mim, ler a revista todo mês é um grande prazer. Um outro prazer que tenho é cozinhar e comer quitutes. Vocês prepararam uma edição deliciosa em junho. Não bastasse a coluna mensal Sabores, de Maria Lecticia Cavalcanti, fizeram uma matéria de capa dedicada aos grandes bolos da cozinha pernambucana. E foram além, mostraram que a gastronomia do Estado não está parada no tempo, está conectada com o que se faz de mais atual nas cozinhas do mundo. Parabéns! Joana Costa Barreto, Recife – PE

ÁGUA NA BOCA A edição de junho da Continente estava uma delícia. Parabéns pelo material e pelas belas fotos. Fico feliz de ver a gastronomia do Estado ganhando as páginas de uma revista de cultura, mostrando que aquilo que levamos à boca faz parte desse universo. O Funcultura deste ano também demonstra essa preocupação. Para nós, estudantes da área, toda

essa movimentação é um grande incentivo. Luiz Fernando Pinto, Recife – PE

MACHADO E ROSA Não poderia faltar na edição de junho o registro sobre os 50 anos da morte de Guimarães Rosa e os 100 da morte de Machado de Assis. O texto de Daniel Piza introduz muito bem o tema e o de Fernando Monteiro comenta as felizes e infelizes adaptações de suas obras para as telas. Parabéns! André Figueira, Olinda – PE

MONTEZ MAGNO Finalmente a Continente abriu suas páginas para Montez Magno. O texto tem um tom acadêmico, mas conseguiu mostrar a importância do artista e a sua vasta obra. André Figueira, Rio de Janeiro – RJ

NOTA DA REDAÇÃO Os créditos das fotos do espetáculo Trupizupe, o Raio da Silibrina, publicadas na edição anterior, são do fotógrafo Roberto Ramos.

Hélio Jaguaribe

Essa questão tem dois aspectos diferentes. O aspecto relacionado a toda uma população, que me deixa profundamente preocupado, de jovens entre13 e 20 e poucos anos, que não tem escolaridade, não tem treino profissional e não quer trabalhar –não quer nada – é realmente uma geração perdida, que é candidata à droga, ao crime e à mendicância. É uma coisa extremamente grave, são milhões de pessoas. Por outro lado, existe a possibilidade de, com certa velocidade, se criarem centros de excelência. Então, o gap tecnológico pode ser reduzido de uma maneira significativa num prazo relativamente curto, se houver decisão de fazê-lo. Agora, o que me preocupa é o que fazer com a geração perdida. Hélio Jaguaribe, sociólogo, sobre a defasagem brasileira na era do conhecimento

Revista nº 12 Dezembro/01 Matéria: Retratos do Brasil Por: Homero Fonseca

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Imagens: Reprodução Divulgação

O pseudônimo do generalíssimo Pesquisadores de Ceuta (enclave espanhol autônomo no norte da África) acharam, na Biblioteca Pública da cidade, um livro escrito pelo general Francisco Franco entre 1946 e 1951, sob o pseudônimo de “Jakin Boor”. A obra, intitulada Masonería, em cuja capa só aparecem o título e a data – Madrid, 1952 –, está composta por alguns dos 49 artigos que o então chefe do Estado espanhol publicou no diário falangista Arriba. (Eduardo Cesar Maia)

Nas sombras do rock

Obra e alma

Entre os grandes criadores do rock nos anos 50 estão Chuck Berry, Little Richard e Bo Diddley, que abriram caminho para Elvis Presley e toda uma leva de cantores e músicos brancos que terminou por eclipsá-los. Claro: eram negros e nem um pouco bem-comportados ou “bonitinhos”. A história reconhece a sua importância e todos os grandes roqueiros sempre lhes renderam homenagens. Mas o fato é que sempre ficaram na sombra. Diddley, que morreu no início do mês passado, resumiu tudo numa frase: “Eu abri portas para muita gente. Mas daí todos entraram e me deixaram segurando a maçaneta”. (MP)

Em São Paulo, 59 trabalhos de Francisco Brennand estão expostos na Caixa Cultural – Avenida Paulista – intitulados da forma mais inadequada possível: A alma gráfica. Quem os vê, não pensa em “alma gráfica” coisa nenhuma, mesmo que, tecnicamente, sejam desenhos em técnicas mistas, coloridos e ousados. O conjunto remete para a pintura, também pela ânsia de experimentar, típica de um pintor – que Brennand é, basica e fundamentalmente, embora a crítica brasileira se mostre atenta apenas ao seu trabalho como escultor-ceramista. (Fernando Monteiro)

Adelyta Já o general Aurélio de Lyra Tavares (1905-1998), engenheiro civil, ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras, ministro do Exército, integrante da junta militar que governou o Brasil durante 60 dias, de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969, quando o general Costa e Silva ficou impedido por motivo de doença, na juventude publicou alguns poemas. Seu pseudônimo era Adelyta (formado pelas primeiras sílabas do seu nome), conforme a Veja de 25/11/1998. (Homero Fonseca)

Afinal, por quê, hein? O escritor Fernando Monteiro lembra a pergunta feita já há algum tempo por Millôr Fernandes e que continua sem resposta: por que o Abominável Homem das Neves é abominável? (Marco Polo)

DESAFORISMOS

Vaticínios rítmicos Alguns mestres da música parecem haver antecipado ritmos populares consagrados bem depois. Stravinsky prenunciou a batida do funk carioca na sua revolucionária Sagração (1911) – ouvindo os tímpanos na cena O jogo do rapto. Strauss II poderia ser considerado o pai do frevo, se seu Perpetuum mobile (1860) fosse instrumentado para orquestra de metais e apimentado com uma caixa frenética. (Carlos Eduardo Amaral)

"Por que entre os homens não existe nada mais distante do que o próximo?" Carlos Trigueiro

O gari leitor Fábio Pereira da Silva é um homem raro. Em uma terra onde se lê pouco, ele, que vive a recolher o que os mal-educados derrubamos nas calçadas, dedica as poucas horas de lazer à leitura. Todas as noites ele pode ser visto na Av. Rio Branco, no Recife Antigo, a ler sob a luz de uma banca de revistas. O dono da banca, para espantar os ladrões, quando acaba o seu dia, deixa uma lâmpada fluorescente acesa. Isso é tudo o que pede Fábio Pereira da Silva: das 7 às 8 da noite, acomodado no chão, abre um livro e lê (Urariano Mota).

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Finalmente, depois de muito blablablá, o Parlamento português aprovou o Acordo Ortográfico, que vinha rolando desde 1990. Em 1911 foi estabelecido o primeiro acordo entre as academias brasileiras e portuguesas. O poeta Fernando Pessoa, contemporâneo deste, lavrou protesto num ensaio em que defende que, tecnicamente, pode haver tantas ortografias quantos escritores há: “O único efeito presumidamente prejudicial que estas divergências ortográficas podem ter é o de estabelecer confusão no público”. E arremata: “Isso, porém, é da essência da cultura, que consiste precisamente em estabelecer a confusão intelectual, em obrigar a pensar por meio do conflito de doutrinas”. Grande Pessoa! (Duda Guennes, de Lisboa)

Tupi or not tupi? Idioma sofre discutíveis reformas (que só polemizam e pouco contribuem), mas preserva gostinho brasílico em vocábulos como jururu (tristonho), pindaíba (grave dificuldade financeira), coroca (resmungona), pereba (ferida) – com raízes no tupi antigo. Deste, também vem “Eu fui no itororó (bica d’água) beber água e não achei. Achei bela morena, que no itororó deixei”. Mas vamos deixar de nhenhenhém (falar sem parar). (Maria Helena Pôrto)

"As mulheres e os elefantes nunca esquecem."

Contra a corrente

Em sua casa no Espinheiro, aqui no Recife, continua em permanente criação Rodolfo Mesquita. Ele é um fenômeno vivo de resistência que vai contra a corrente das vanguardas e experiências que só preservam do artista a pose e a atitude. A sua obra expressa sempre um inconformismo com o mundo que os anestesiados não vêem. Agora, com mais de 50 anos, começa a despertar interesse de galerias em Lisboa. Lá na Art Lounge Galeria, os seus quadros podem ser comprados pela pechincha de 2.500 euros, conforme pode ser visto em http:// www.artlounge.com.pt/art/categorias/pintura/pintura13_1.html. (Urariano Mota)

Capoeira Em grande estilo, com show, exposição e festa a valer, comme il faut, a capoeira será eleita, em 15 de julho, Patrimônio Cultural do Brasil, durante reunião do Conselho Consultivo do Iphan, dia 15 deste mês, em Salvador. Também será reconhecida a atividade de ensino dos mestres capoeiristas. (HF)

Divulgação

Acordo ortográfico

IMPACTO Como a música entrou na sua vida?

"Começou dentro de casa mesmo, por influência dos meus pais. Por ser do agreste, minha família ouvia violeiros, e também gente mais conhecida, como Alceu Valença, Zé Ramalho... Minha formação foi assim. Mas o que virou mesmo minha cabeça foi o rock. Eu era adolescente, no fim dos anos 80. Comecei a estudar guitarra por iniciativa própria, diferentemente da flauta, que estudei por causa de minha mãe. Escutava muito heavy metal: Led Zeppelin, Black Sabbath e, mais recentemente, Metallica. Pouco depois conheci Jimi Hendrix. Você acha os discos dele numa prateleira de rock, mas ele abre para todos os ritmos. Essa constatação me fez querer alinhar as referências regionais à música mundial." Siba Veloso, músico

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CAPA

O mestre Manuel Eudócio, de Caruaru, considerado o principal discípulo de Vitalino, extrai poesia do barro bruto Maria Alice Amorim Fotos: Hans Manteuffel

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com a delicadeza das mãos que Manuel Eudócio passeia sobre a plantação de milho, cultivada desde março: o milharal bonecou, a safra foi garantida. É com as mesmas mãos delicadas que o artista joga água sobre Lampião e Maria Bonita: lavar a poeira da semana é parte do ritual do sábado, após dias inteiros enredando-se nas histórias que saltam dos personagens tramados à base do massapê. A terra é generosa com as mãos férteis que a cultivam, devolvendo-lhe fertilidade, sob a forma de alimentos, sob a forma de criação artística. “São do meu jeito”: é assim que define as peças cerâmicas inventadas e elaboradas a partir das habilidades manuais e mentais. Com voz pausada e dedos firmes na modelagem, é assim que o primeiro galante do reisado vai debulhando os grãos de uma vida dedicada à arte e à agricultura. É pelas mãos e pela oralidade que saem as imagens trazidas da memória de um tempo em que convivia com os amigos Vitalino e Zé Caboclo, um tempo em que apreciava o canto de violeiros e a poesia de cordel. Memória de um tempo em que brincava reisado, tempo

em que ainda nem assinava a própria obra artística. Trabalhando diariamente num banco de madeira construído pelas próprias mãos, cujo assento em largas treliças de couro foi projetado por ele mesmo para combater o calor de quem passa muitas horas diárias sentado, Manuel Eudócio tem diante de si a mesa retangular, o barro molhado, as ferramentas e sempre algum boneco que vai começando a aparecer no início do dia e deve ser concluído, de preferência, ao final da mesma jornada. As mãos não param, as lembranças emergem. O narrador exibe o vigor mental e as habilidades manuais de quem leva uma vida regrada, dedicada à família, ao plantio e, sobretudo, à atividade artística iniciada na infância, com a avó louceira Tereza Maria da Conceição, com quem foi criado. Fazia cavalinho e outros bichos para consumo próprio, além de seguir as recomendações da avó Tereza para que não quebrasse tudo, deixasse uns para vender na feira. Era, sobretudo, com o próprio envolvimento na tradicional produção de brinquedos, herdada de antepassados, que ela incentivava o neto talentoso.

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CAPA De 28 de janeiro de 1931, nascido e criado no Alto do Moura, em Caruaru, Manuel Eudócio Rodrigues freqüentou apenas seis meses de escola, pois desde criança necessitava trabalhar, ajudando o pai na agricultura. Quando Vitalino se transferiu do Sítio Campos para o Alto do Moura, em 1948, Eudócio tinha apenas 17 anos, mas desde os nove fazia brinquedos, imitados da avó materna, que era quem botava para queimar as suas esculturinhas. Foi na rua que conheceu os trabalhos do mestre Vitalino: naquela época ninguém vendia cerâmica em casa, o local de exposição e venda das peças era a famosa feira de Caruaru. Quando viu os bonecos do mestre, inspirou-se: “Cheguei da feira cheio de idéias”. A partir do contato com as invenções de Vitalino, Eudócio trocava opiniões com o companheiro de arte, o ceramista Zé Caboclo, ou José Antônio da Silva, outro contemporâneo do mestre: “Menos de 10 anos depois, em 1957, já havia umas oito a 10 pessoas que faziam ‘bonecos de Vitalino’, como Ernestina, José Rodrigues, Elias Francisco, Luiz Antônio”. Entretanto, Eudócio relembra que, nessa época, fazia questão de dizer aos compradores que aquelas esculturas eram obra de variados artistas. E, ainda hoje, faz questão de frisar que a tradição cerâmica no Alto do Moura já existia muito antes dos anos 40: “Tinha umas 10 mulheres, ou mais, que faziam brinquedinhos e levavam o balaio para a feira no sábado. Naquela época, as crianças brincavam com bruxinha de pano e essas coisinhas de barro, até gente rica mesmo”.

xando um cachorro magro. Minha vó queimou, eu pintei. Pintei com o dedo. Nesse tempo eu mesmo preparava a tinta. Breu, alvaiade, querosene. Comprava o pó amarelo, vermelho, azul e preparava a tinta”. No meio da feira, ficou perto do banco de Vitalino. Chegou um “doutor” do Rio de Janeiro, comprou cinco pecinhas por 75 mil réis, 15 mil cada uma, e ainda pediu ao mestre para orientar bem o aluno promissor. Eudócio lembra o que o forasteiro disse: “Vitalino, ensine a ele. Esse aqui vai ser um mestre”. A partir daí, os cavalinhos foram deixados de lado, passando a dedicar-se quase com exclusividade às esculturas conhecidas em todo o país como “boneco de Vitalino”. A agricultura era dedicação de inverno, o barro era para todos os dias, horas vagas e minutos, generosamente partilhados com a necessidade da arte e da sobrevivência. Vendia bem, mas fazia de tudo para não passar dificuldade, para manter a sobrevivência de 13 pessoas em casa, para dar estudo aos filhos.

“Desse pessoal que trabalha com forma, eu nunca gostei. Na mão, a gente faz o que quer, outro tipo de detalhe, chapéu, fisionomia, o jeito dos gestos. Tudo é diferente”

Retirantes estão entre os primeiros temas de Eudócio

A estréia do discípulo correu muito bem, com 15 bonecos: “Eu sei que eu fiz as peças do meu jeito, olhando assim: via um velho passar com um jerimum na cabeça ou um feixe de lenha, um retirante pu14 x Continente • JUL 2008

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Uma das principais inspirações da obra escultórica de Eudócio é o reisado, com os respectivos personagens do folguedo natalino do qual participou em plena juventude, na década de 40: dona Joana, capeta, doutor, padre, mascarado, alma, anjo, chorão, primeiro galante, segundo galante, primeira dama, segunda dama, jaraguá, Manuel de Loló na perna de pau. Outra inspiração recorrente é o universo poético da literatura de cordel e dos violeiros repentistas, em busca de cenas poéticas extraídas de um imaginário coletivo e de um cotidiano mesclado de lirismo, pobreza e sonhos. “Vi Mocinha da Passira e Pinto do Monteiro cantando na casa de um primo, eu era rapazinho ainda. Pinto canta-

va bonito, cantador só existia ele e não sabia dum ‘a’. O homem era de uma carretilha muito grande.” Esta memória do artista é acionada sempre que vai criar e o resultado é continuamente renovado pelo engendramento de uma narrativa visual bem particular e sempre em processo. Embora o romance do pavão misterioso, as disputas entre cantadores, a vida dos retirantes, as peripécias de valentões, a saga de cangaceiros, a volta da roça sejam elementos comuns ao imaginário construído a partir das tradições culturais nordestinas, e possa parecer repetitivo na obra dos ceramistas do Alto do Moura, é importante dirigir um olhar atento para a elaboração mental, para a representação de realidade vislumbrada na obra artística, individual, de cada escultor. Quando criança, Eudócio imitava as peças da avó. Conquistou autonomia criadora quando

decidiu inventar os próprios traços, a partir da composição dos personagens do cavalo-marinho, brincadeira da qual fez parte, representando o papel de primeiro galante. Ainda hoje o brinquedo completo é feito no barro pelo artista, são 28 personagens a cada vez acrescidos de novidades. A mais recente é a criação de uma bicicleta e de um carro conversível, em que aparecem montados personagens como dona Joana e o doutor. A idéia do carro veio num sonho e, de repente, este sonho fez ressurgir a lembrança dos carrinhos que a avó esculpia. É o mesmo carro, inspirado dos objetos da infância, mas nunca será, nem terá sido aquele mesmo da avó. Muitas das idéias que incrementam a produção de Eudócio afloram em sonhos, conforme ele próprio sempre faz questão de lembrar. Já perdeu a conta das vezes em que acorda inspirado pelas imagens oníricas. Imagens que se materializam ao longo das jornadas semanais, de segunda a sexta, jornadas diurnas inauguradas às seis da manhã e que se estendem até as cinco ou seis da tarde. No sábado, a maior parte do dia é reservada para ir à feira fazer compras e para a limpeza do ateliê. O descanso vem no domingo, entre cuidados com a roça e afagos a filhos e netos. “Meu trabalho é contínuo, mas sempre por conta do dia.” Hoje, com a família criada e o nome consolidado no meio artístico, a jornada ficou bem mais suave do que nos primórdios, quando “ia a pé para a cidade e levava as peças num caixote, na cabeça”, quando “tinha feira de não vender nenhuma peça”. A criatividade, entretanto, sempre foi trunfo necessário para superar os momentos de dificuldade financeira. Aliado à criatividade, o apuro da técnica na modelagem, na secagem, na pintura, na queima, foi construído em dezenas de anos de experiência. JUL 2008 • Continente x

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Há mais de duas décadas, uma das filhas pinta as peças para Eudócio. Porém, quando exposta sem tinta nenhuma, a escultura tem que sair perfeita, sem rachaduras, nem emendas. Aí, a peça realça o apuro formal do ceramista. Se as palavras vão rememorando, pausadamente, quase sete décadas de ofício, as mãos firmes vão

ligeiras construindo volumes roliços que desvendam pouco a pouco a narrativa inspirada do escultor. Vai aparecendo o corpo, depois surgem as pernas, os pés, a cabeça, os braços. Os detalhes de vestuário também começam sob a forma de rolinhos. Os bolsos, a gola, a sandália. As ferramentas podem ser pedaços de pente fino, caquinho de telha, ara-

me, rolinho, palmatória. É importante manter a umidade do barro, por isso uma bacia com água recebe as mãos delicadas do artista, no passo a passo da modelagem. O que o artista não admite, sob hipótese alguma, é a utilização de forma para moldar as esculturas. “Desse pessoal que trabalha com forma, eu nunca gostei. Tem peça que só sai de um

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FENNEART

Onde o artesão é o astro

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Feira Nacional de Negócios de Artesanato (Fenneart), que só no ano passado recebeu mais de 200 mil visitantes, movimentando 18 milhões de reais, chega à sua nona edição este mês, no Centro de Convenções do Recife. A Agência do Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (AD Diper), coordenadora geral do evento, espera um público de 220 mil pessoas este ano, contando com a expansão da feira. A área da exposição subiu de 20 mil para 25 mil metros quadrados, abrigando 3.000 artistas em 600 estandes, 100 a mais do que em 2007. Atendendo a reclamações, ainda foi construída uma praça de alimentação no lado externa da área. Apesar do privilégio concedido a artistas pernambucanos, que somam 80% dos expositores, vêem artesãos de 22 países diferentes, cinco a mais do que na edição anterior.

jeito só. Na mão, a gente faz o que quer, outro tipo de detalhe, chapéu, fisionomia, o jeito dos gestos. Tudo é diferente.” É, portanto, com o auxílio das mãos que Manuel Eudócio vem descrevendo, desde a década 40, o que tem vivido esses anos todos no Alto do Moura: festejos e experiências do dia-a-dia como batizado, enterro, casamento. Dois dos nove

filhos – Carlos e José Ademildo, e as respectivas esposas – também compartilham do ofício, mas, para o pai, o mestre Eudócio, o laço de família e o repertório recorrente são os detalhes que menos importam, pois cada mão inscreve, com um traço próprio, a obra pessoal, particular, no mundo da arte: “É como quem escreve o nome”.

SERVIÇO 9ª Fenneart De 4 a 10 de julho, das 14 às 22h e de 11 a 13 de julho, das 10 às 22h Entrada: 4 reais e 2 reais (estudante) Serviço de van gratuito, de 15 em 15 minutos, saindo do Shopping Tacaruna Mais informações: 32666906 JUL 2008 • Continente x

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CAPA

Casa-Museu de Vitalino, no Alto do Moura, Caruaru

Obras de um conjunto de mestres estabelecem saudável diálogo entre o velho e o novo, entre os tradicionais "bonecos de Vitalino" e a narrativa contemporânea, que inclui as mídias todas, inclusive a digital

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Reprodução

Vitalino aperta a mão de Zé Caboclo, antes de sua viagem ao Rio de Janeiro, em 1960

como quem escreve o nome”: depende da mão a caligrafia. “Eu vou pensando e vou criando: minha inspiração vem da minha cabeça”, definiu, um dia, Antônio Galdino, filho do mestre Galdino. “Vem da minha mente”, expôs Manuel Bernardo. “Vem no pensamento e naquela hora a pessoa desenvolve e faz: a gente cria aquilo que vem no nosso pensamento”, afirma Manuel Eudócio. “O material da gente trabalhar é o pensamento: só é pensar e fazer”, enfatiza Luiz Antônio. “Vem a idéia de fazer uma coisa nova: eu imagino e vão surgindo coisas”, defende Marliete Rodrigues. É assim que a criação

artística ganha assinatura: a partir das próprias invenções dos ceramistas de Caruaru, que jamais poderiam estar dissociadas de um contexto sócio-cultural, em que o mestre Vitalino é, ainda hoje, o expoente máximo. A “caligrafia” que faz cada artista irradiar luz própria se materializa nos montinhos ou montões de barro transformados em narrativa poética: cada um fala a partir de um lugar e fala do próprio lugar, individual e social. A terra engendra cenas da terra: os ritos do dia-a-dia, as brincadeiras de criança, os ofícios do cotidiano, as memórias e sonhos, o onírico e o real. É um processo artístico que se vale tanto do utilitário quanto do decorativo e do figurativo para expor representações do real, para provocar estesia. Passa pela elaboração mental e passa pelas sensações, não apenas do lugar de quem narra, ou seja, do artista, também do lugar de quem contempla, de quem frui da criação artística. Importa, sim, o repertório constituído à base de repetição de temas. Mas o que menos importa é isto: se o autor daquela peça vai, ou não, repeti-la. Se vai, ou não, concederlhe o status de peça única. Afinal, as

irregularidades conseguidas voluntária ou involuntariamente pelas mãos, na feitura de cada peça, é que garantem uma porção de charme ao objeto engendrado por mãos inteligentes. Portanto, mesmo na repetição de temas, cada escultura será, sempre, única. É o caso do Alto do Moura, referência nacional nas artes do barro. A sete quilômetros do centro de Caruaru, ali é o bairro onde a comunidade vive enredada nas teias de mestres ceramistas que arrebatam os olhares do mundo, pelos processos identitários de um repertório pleno de plasticidade e singularidade artística. Não é à toa que a Unesco concedeu à localidade o título de “maior centro de artes figurativas das Américas”. Na conquista de tal título, é inegável a importância do legado construído a partir das influências do mestre Vitalino Pereira dos Santos (19091963) e dos primeiros seguidores – Zé Caboclo, Eudócio, Ernestina, José Rodrigues. Do casal de ceramistas Celestina Rodrigues e Zé Caboclo, as filhas Marliete, Socorro, Carmélia e Helena “puxaram ao pai, que era um artista de mão cheia”, segundo Manuel Eudócio, irmão de CelesJUL 2008 • Continente x

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CAPA tina. O tio lembra, inclusive, das miniaturas que ele mesmo fazia, quando jovem, e guardava numa caixa de fósforos. Eram esculturas em tamanho minúsculo, hoje uma das especialidades das sobrinhas, as irmãs Rodrigues. As moringas antropomórficas com a cabeça de Lampião ou Maria Bonita, uma das especialidades de Zé Caboclo, serviram de inspiração para a filha Marliete fazer umas bonequinhas sob a forma de moringa, em barro natural, decoradas com arabescos e florais pintados em branco ou cor de telha. A mãe, Celestina Rodrigues de Oliveira da Silva, irmã de Eudócio e viúva de Caboclo, especializou-se em caxixi, ou miniatura de louça em barro, e é o que ainda hoje faz, aos 80 anos. Socorro, que também se dedica às miniaturas, é considerada, pela irmã Marliete, “a perfeccionista da família”. Outro que seguiu a linha do pai foi Zé Caboclo Filho, ao adotar a temática regionalista, construindo as peças com detalhes estruturais em arame e pintura, o caso de Funcionário da Telpe, acervo do Museu do Homem do Nordeste (Muhne). Antônio Rodrigues é autor de conjuntos inventivos, como a escola dos animais. Dos 18 netos de Caboclo, 14 trabalham com cerâmica, e uma bisneta, Taís Rodrigues, de sete anos, neta de Socorro, desde os três faz esculturas em barro. Os irmãos Eudócio, Celestina e Josué herdaram o ofício da avó e da mãe, e se vêem sucedidos por filhos, netos, bisnetos. No Alto do Moura, ainda hoje repercutem os desdobramentos da fama conquistada pelo mestre, inclusive nas características do que é produzido artisticamente. Na condição de fiel observador do cotidiano do povo nordestino, de retratista dos ciclos vitais do homem, a gente, os costumes, as crenças funcionavam como esteio para as mãos hábeis transformarem em

arte o barro tauá das margens do Ipojuca, rio que passa por Caruaru. E foram essas interpretações particulares da temática regionalista que lançaram sobre Vitalino todos os olhares. Os irmãos José, Elísio e João Condé, caruaruenses, com a ajuda de Augusto e Abelardo Rodrigues, levaram-no ao circuito artístico nacional. A primeira exposição de que participou, cujo tema era a cerâmica produzida em Pernambuco, aconteceu em 1947, no Rio de Janeiro, organizada pelo artista plástico, também pernambucano, Augusto Rodrigues. No catálogo, o poeta Joaquim Cardozo chama a atenção para a “vitalidade franca e comovente” da criação do mestre. Em janeiro de 1949, Vitalino participa, com Severino de Tracunhaém, de exposição no Museu de Arte de São Paulo, mais uma vez organizada por Augusto Rodrigues: o mestre de Caruaru, com cerâmica policromada, e o mestre de Tracunhaém, com barro vidrado em tom natural. Severino Pereira dos Santos, ou Severino Vitalino, diz que o pai artista chegou a criar, no barro, 118 temas, que ele, sobretudo ele, e os irmãos Amaro, Manuel, Maria, Antônio e Maria José trataram de reproduzir, perpetuando, assim, a imaginação do pai. Severino é o coordenador da Casa-Museu Mestre Vitalino, localizado na rua principal do Alto do Moura, cujo acervo inclui fotografias, algumas esculturas, objetos pessoais, carimbo e ferramentas, a esteira onde sentava, a ambientação do canto em que trabalhava. Os temas, referidos acima pelo filho Severino, são reproduzidos nas réplicas feitas e comercializadas por ele próprio no museu: “Vou dando continuidade ao estilo dele”. Conhecer esta casa e percorrer a principal via da localidade – a rua mestre Vitalino – significa reconstituir partes de uma saga que não pára de se reinventar. É um

De cima para baixo: Marliete, João José e Luiz Antônio

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Nos ateliês do Alto do Moura coexistem o tradicional, o contemporâneo e até o kitsch

contato com o testemunho vivo de contemporâneos do mais famoso ceramista do local e, assim, poder compreender aquele fenômeno. Muito mais importante do que apreciar a música executada pelos tradicionais trios de forró pé-deserra e a gastronomia típica, em que o bode posa de carro-chefe, muito mais saboroso é percorrer, com olhos e ouvidos atentos, o que dizem as esculturas de Eudócio, Celestina, João José, Elias Francisco, Lauro Ezequiel, João Ezequiel, Manuel Antônio, Luiz Antônio, que viveram na mesma época, todos, do mestre Vitalino, e que, com a própria obra, trilham os caminhos da contemporaneidade. João José de Paiva, 80 anos, não foge à produção de temas regionais, mas as irregularidades de cada escultura mostram o quanto as mãos trabalham ali, em cada peça. Os tons de rosa e verde

dão suavidade e lirismo à dor de uma labuta sofrida de retirantes e burros de carga. Desde que Vitalino revolucionou o ambiente de louceiras e artesãos de brinquedinhos de argila, a localidade passou a adotar o repertório do mestre, deixando em evidência toda uma narrativa de hábitos rurais, de vida na roça, conforme relembra Luiz Antônio da Silva, 73 anos: “Aqui na comunidade já tinha a arte do barro, não só os meus pais, várias pessoas faziam. Vitalino veio para o Alto do Moura e foi mudando. Aqueles que faziam brinquedo de criança, passaram a fazer os bonequinhos. E eu venho trabalhando durante esse tempo todo”. Luiz Antônio começou a esculpir, aos 10 anos, com os pais. Acompanhou o mestre e hoje é autor de uma obra que

estabelece saudável diálogo entre o velho e o novo, entre os tradicionais “bonecos de Vitalino” e a narrativa contemporânea, que inclui as mídias todas, inclusive a digital. Luiz é autor de peças que vão incorporando as tecnologias de ponta e conferindo consagração a uma narrativa particular, que faz conviverem o poste de luz com um eletricista pendurado, o trem, um pau-de-arara lotado de gente e mercadorias, um fusquinha anos 70, caminhão mercedes, motocicleta envenenada, fotógrafo e cinegrafista, a máquina de fazer telha e a fábrica de tijolos, um computador e respectivo usuário acessando a internet. Sintoma saudável de que a criação artística se mantém em contínuo processo de elaboração, do qual é exemplo a inventividade de Luiz Antônio: “Aqui a gente vai caminhando com a arte”. JUL 2008 • Continente x

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Divulgação

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A jornalista, pesquisadora e curadora Adélia Borges defende uma aproximação entre artesãos e designers, numa troca em via de mão dupla Mariana Oliveira

estor Garcia Canclini, Stuart Hall e tantos outros teóricos dos estudos culturais atestaram o caráter híbrido da chamada pósmodernidade, mostrando que uniões, outrora absurdas, hoje se concretizam consistentemente em vários âmbitos culturais. Se antes era impossível imaginar uma mistura do popular maracatu com o cosmopolita rock and roll, o híbrido manguebeat está aí para provar que tal união pode dar certo. Então, por que não pensar num diálogo possível entre o artesanato e suas origens tradicionais com o design e suas origens modernas? È esse o caminho e a linha de raciocínio da jornalista, professo-

Adélia Borges acredita numa relação proveitosa entre artesãos e designers

ra e especialista em design Adélia Borges. Indo contra a maré dos tradicionalistas, que vêem qualquer aproximação e intervenção externa na cultura popular mais como uma imposição de idéias do que como uma contribuição, a pesquisadora mostra que a relação entre esses dois campos, à primeira vista tão distintos, quase opostos, não é apenas possível, como bastante salutar. “Alguns puristas e folcloristas acreditam que o artesanato e algumas manifestações culturais devem ser preservadas como eram no passado, mas o que está vivo precisa de mudança”, diz Adélia Borges, que faz uso da frase “interferir, sem ferir”, da arquiteta pernambucana Ja-

nete Costa, para definir como essa aproximação deveria acontecer. Essa grande divisão feita entre o campo do artesanato e do design, no Brasil e em parte da América Latina, pode ser explicada pela hegemonia do funcionalismo, que só começou a ser posta em xeque nos últimos 20 anos. Como aconteceu em muitos campos da cultura, o design brasileiro nasceu completamente vinculado às idéias do design europeu e à sua concepção de que a forma de uma peça é determinada por sua função. Se a função é o determinante, não importa em que local do mundo a peça é produzida, apenas a sua finalidade. Essa herança européia foi tão forte, que a

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Fotos: Fabio del RE/Divulgação

O Laboratório Piracema de Design atua junto aos artesãos que trabalham com o babaçu, no Tocantins

primeira escola de design brasileira, a Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), no Rio de Janeiro, importou todo o seu programa da Escola de Ulm, na Alemanha. Enquanto em outros países o design nasceu com uma estreita relação com as raízes culturais, a exemplo do Japão, no Brasil seu surgimento é marcado justamente por um afastamento completo das vocações locais e regionais. Para Adélia Borges, o pernambucano Aloísio Magalhães foi um dos pioneiros em constatar a existência de uma “grande divisão” e a pensar novas políticas e formas de compreender a relação entre esses dois campos. Todavia, foi apenas na década de 80 que o olhar de muitos designers se voltaram para o interior e para a produção artesanal brasileira, na esteira da globalização e da conseqüente revalorização das identidades culturais locais. “O pensamento maior que nos norteia é a convicção de que o design em países periféricos como o Brasil não pode nem deve procurar imitar o dos países desenvolvidos, e, sim, buscar seus próprios caminhos, baseando-se especialmente na extrema inventividade de seu povo”, sintetiza a pesquisadora. Nesse processo, obviamente, nem tudo é perfeito. Quando malconduzida, a relação entre designers e artesãos pode tornar-se um

vínculo de poder e dominação. Os designers seriam hegemônicos, impondo técnicas aos “subalternos” artesões, sem muito respeito pelo trabalho desenvolvido pelas comunidades, numa idéia de modernizar por modernizar. “É preciso ter muito cuidado para não se perder aquela coisa genuína do artesanato”, explica Adélia. Entre as experiências exemplares está o trabalho do Laboratório Piracema de Design, liderado por Alberto Nemer e Heloísa Crocco. O nome indígena piracema, em tupi, designa a migração dos peixes para as nascentes dos rios para se reproduzir e condensa bem o tipo de ação proposta pela equipe. Nas palavras de Alberto Nemer: “Por motivos que só a natureza sabe, os peixes são movidos a voltarem ao local onde nasceram para, nele, projetar o futuro através da desova. Esta imagem, a de um mergulho nas origens para, a partir daí, instalar a vanguarda, é a fonte de inspiração e linha estrutural do Laboratório”, resume Nemer. O grupo realizou um trabalho junto aos artesãos da Ilha do Marajó. Os designers se basearam na cultura material do local e na floresta para conceber sua atuação. O laboratório trabalhou produtos em cima das cores mais freqüentes da cultura marajoara (preta e verme-

lha), unindo ao uso inteligente dos resíduos da floresta até então pouco aproveitados nos trabalhos artesanais. “O artesão é soberano e todo o procedimento aplicado visa uma via de mão dupla, onde a troca de saberes rege a rotina de trabalho, sempre contextualizado no processo de resgate do artefato, tratado como fenômeno cultural”, explica Heloísa Crocco. A atuação dos designers nas comunidades pode acontecer de maneiras simples, através da elaboração de dispositivos que facilitem o trabalho dos artesãos, da introdução da idéia de coleção, da criação de uma identidade visual (logomarca, sacolas), de mudanças estruturais que possam facilitar o transporte sem dano à obra, num processo que leve à valorização do produto e ao aumento de suas possibilidades comerciais. Segundo Adélia Borges, projetos bem realizados conseguem gerar um aumento significativo na auto-estima dos artesãos, que cresce a partir do momento que eles percebem o valor do patrimônio que possuem. Daí porque a idéia de “beber na tradição para transpirar contemporaneidade”, proposta pelo grupo Piracema, realizada pelo manguebeat e por tantos outros movimentos culturais fundados na hibridização, pode ser a saída para entrar na modernidade. JUL 2008 • Continente x

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LITERATURA

Aos 80 anos, Gilvan Lemos é um exemplo de escritor que construiu pacientemente uma sólida carreira literária a despeito da pouca divulgação de sua obra e de sua incontornável timidez

E

le não foi um menino debruçado sobre livros, preferia os gibis. O seu primeiro romance, de 700 páginas, achou melhor queimar. O autor em questão não possui títulos acadêmicos, sua educação formal não passou do primário, máximo que os garotos pobres de São Bento do Una podiam. Nascido em 1º de julho de 1928, não exerceu empregos curiosos nem teve algo seu adaptado para o cinema; candidato à Academia Pernambucana de Letras, teve apenas um voto entre 38 possíveis. É conhecida sua aversão a entrevistas, mesmo quando na segurança do apartamento simples no centro do Recife, onde mora sozinho até hoje, sem filhos ou esposa. Mas toda tarde é possível vê-lo na Nossa Livraria, na Rua do Riachuelo, passando despercebido pela maioria dos leitores que não o reconhecem como o escritor de mais de duas dezenas de livros.

E o que pode haver para comemorar em seu octogésimo aniversário? Muito, decerto. Pois Gilvan Lemos está onde muitos desejariam: longe de ser um fenômeno editorial ou midiático – o que poderia estar circunscrito a explicações transitórias e alheias à qualidade de suas narrativas – e ainda mais distante de ser ignorado pela crítica, que por diversas vezes o sublinhou entre os mais competentes da literatura brasileira. Estes parágrafos podem causar estranheza, pois, hoje, o reconhecimento parece se exigir produto de uma crítica eminentemente laudatória. Mas, da análise fria à mais entusiasmada, tudo leva à valorização da carreira literária de Gilvan, construída sem facilidades ou sobressaltos – a vitória de um homem comum, assim como nos parecem seus protagonistas, heróis modernos que seguem resistindo à aparente impossibilidade de transcendência.

Fotos: Rafael Gomes

Um Dom Quixote encabulado

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LITERATURA O primeiro romance publicado, por exemplo, o Noturno sem música (1956), foi terminado em pouco mais de um mês, bem menos do que levaria para quitar a máquina de escrever. Para publicá-lo, tirou empréstimo de 18 contos de réis. E boa parte dos 500 exemplares foi distribuída entre críticos que não lhe dedicaram atenção alguma, apesar de ter ficado entre os vencedores de um concurso de inéditos, empatado com O visitante, de um certo Osman Lins. Este, sim, fez para o Estado de S. Paulo uma das poucas críticas sobre aquela estréia, em um texto que impressiona tanto pelo rigor como pela admiração insuspeita:

“(...) sem o devido conhecimento da língua e insistindo, por vezes, em motivos aos quais o seu depoimento nada vem acrescentar, como o relato das primeiras inquietações sexuais, Gilvan Lemos, com uma prosa maltratada e expressiva, com a sua visão elementar das coisas, sua memória aflita, sua imaginação viril e uma sensibilidade estranha, escreveu um dos melhores romances já produzidos pela ainda incipiente novelística pernambucana.” Com o livro seguinte, Jutaí menino (1968), Gilvan conquistou o prêmio Olívio Montenegro, da UBE, e o Orlando Dantas, do carioca Diário de Notícias, em que recebeu elogioso parecer de uma comissão julgadora composta por

nomes como Otto Maria Carpeaux e Aurélio Buarque de Holanda. Mas essa fase inicial será sempre de discreto amadurecimento. O próprio Gilvan costuma dizer que “imitava” os autores de sua predileção, neles buscava uma voz para seus protagonistas, desde sempre muito autobiográficos, moços interioranos, apaixonados e tímidos, humildes e mergulhados em vicissitudes. Os demais personagens, figuras inspiradas nas memórias de sua São Bento, ou parte do universo de oprimidos, de angustiados, de gente simples com quem tanto se identificaria durante toda a obra. Esse caldo bruto e em lento processo de purga remete ao Cortázar crítico, em que um autor vocacionado “principia com a aptidão para

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dizer”, para depois se dar conta de que sua criação exigirá maior “adequação entre os móveis e o aposento”. O primevo Gilvan não é um romancista ousado, embora assim o tenha desejado alguns; os enredos são cerzidos de forma simples, espontânea, até previsível; a linguagem é comedida, quase temero-

sa, nunca se propõe mais, embora também não recorra a clichês nem recaia no mau gosto. Com os anos, o autodidata Gilvan foi se tornando mais senhor de seu instrumento de trabalho. Apesar de até hoje se dizer avesso ao experimentalismo, ele começou uma outra etapa com O anjo do quarto dia, de 1976. Ali já está o maior interesse por novas ferramentas, postura que prosseguirá em títulos como Os pardais estão voltando (1983) e A lenda dos cem (1995), até chegar ao Morcego cego, de 1998 – provas suficientes de que também conseguiria navegar em águas menos serenas. Esse maior artesanato, porém, para o menino que aprendeu a ler com os gibis e tomou gosto pela literatura com O conde de MonteCristo, jamais se vestirá do dilema barthesiano, em que o autor moderno não se pode render à tradição, nem encontra uma linguagem que lhe reconcilie com a Literatura. A ingenuidade e o rústico, apontados por Osman desde o Noturno sem música, são ao mesmo tempo os limitadores e a força vital de Gilvan, que não se acanha ao repetir que se dedicou a contar histórias sem aquilo que chama de pirotecnia, pois “isso é coisa de quem não tem o que dizer”. Gilvan viveu através de seus romances, ora concedendo aos personagens aquilo que desejava para si, ora lhes impondo ainda

mais desditas. Seus enredos amadureceram junto com o autor, da ingenuidade quase folhetinesca do Noturno sem música à digestão pedregosa da realidade de seu Morcego cego. E essa mesma argamassa, que se vestiu progressivamente de peso e relevância, revela muito do que está além das páginas. Apesar de tudo, do desânimo que os mais próximos sentem no escritor, teses acadêmicas têm sido produzidas sobre Gilvan Lemos. Ele é adotado em vestibulares, reeditado com freqüência e segue ainda como um dos mais respeitados escritores pernambucanos. Então, como não comemorar? Gilvan diz que não há motivos para tal, enquanto reclama dos males do envelhecimento, inclusive dos problemas de memória que se tornaram um empecilho ao seu processo criativo. Todavia, está sempre rodeado dos poucos, mas valiosos amigos que não lhe deixam esquecer sua presença literária destacada entre os romancistas nordestinos. E esses amigos não errariam se dissessem que algum jovem escritor deve alimentar seu sonho literário espiando o autor de O anjo do quarto dia enquanto este percorre a rua Sete de Setembro – como um outro rapaz, aquele de São Bento do Una, aguardava a passagem de José Lins do Rego, na Rua do Imperador – pacientemente, carregando já dentro de si tantos Codós, Julianos, Pichás... JUL 2008 • Continente x

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LITERATURA

O aprendizado de Nélida Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon dá ao público o seu testemunho intelectual sobre carreira, preferências literárias, religião, família e a condição da mulher Luiz Carlos Monteiro

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construção de um testemunho intelectual com entradas no foro existencial sempre seduziu poetas e ficcionistas. As referências e exemplos são numerosos no tempo histórico-literário, começando com as civilizações greco-romanas, passando pelo medievo, até chegar à contemporaneidade. Esse testemunho pode manifestar-se em diários, cartas, poemas, memórias, discursos, diálogos, textos de autocrítica e ensaios autobiográficos. No caso brasileiro, de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade, aparece de modo direto ou implícito na prosa de ficção memorialística ou autobiográfica ou na poesia que não esconde o eu subjetivo, porém descarnado e centrado no referencial histórico do autor. Com a publicação de Aprendiz de Homero, Nélida Piñon disponibiliza ao público o seu próprio testemunho intelectual que envolve ensaios sobre carreira, preferências

literárias, concepções de assuntos polêmicos como magistério, religião, família ou a condição da mulher. Obviamente que, em sua obra, configurada por uma competência que referenda a extensão, ela vem se descobrindo e descobrindo as faces ignoradas de seus leitores e personagens, além de mapear um país que assumiu como seu, quando se pensa nas suas origens galegas. A estreante de 1961 com Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, que teve recepção favorável da parte do crítico Fausto Cunha, não mais parou de escrever e vem se afirmando como autora de romances antológicos e reconhecidos de público, a exemplo de A casa da paixão, A força do destino e A república dos sonhos. Estes trabalhos abordam, respectivamente, entre outras coisas, um erotismo sem concessões, mas não pornográfico, a paródia bem-humorada de uma ópera de Verdi e a imigração espanhola para o Brasil, mais especificamente de um grupo de pessoas que veio da Galícia. O reconhecimento

internacional alcançado por Nélida Piñon comporta uma extensa listagem de prêmios, homenagens, traduções ampliadas de seus livros, passagens por universidades, além de títulos de doutorado honoris causa. A mulher ocupa um lugar destacado nos ensaios de Aprendiz de Homero. Começa com Sara a conspirar contra Abraão e a rir de Deus por querer o divino romper a sua esterilidade depois de velha. A memória de Sara é a memória da submissão de todas as mulheres ao patriarcalismo de Abraão e à unilateralidade religiosa de Jeová, embora ela esconda segredos que ouviu dos diálogos entre ambos, a que nem o próprio Abraão conseguiu ter acesso. Em “Dulcinea – a agonia do feminino”, retorna até o texto cervantino, a inquirir sobre o visionarismo de Maritornes, mulher mundana e empregada da estalagem onde o Quixote e Sancho se hospedaram, e que não

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aceita o fato de o Cavaleiro ter idealizado uma dama tão impossível de existência quanto Dulcinea. Todo um tratado sobre a ilusão é feito em “O espetáculo da ilusão”, que talvez seja um dos textos de mais difícil realização, pois analisa por dentro o livro A doce canção de Caetana, da própria Nélida. Uma leitura dentro da leitura, onde ela fornece as motivações para a escrita do romance, informa sobre a evolução da personagem Caetana, que tem como objetivo transformar-se em Maria Callas, numa apresentação teatralizada no lugarejo Trindade. A romancista não esquece de aludir à performance e ao sacrifício de artistas que impulsionam o teatro mambembe: “Caetana, contudo, na condição de atriz pobre, integra-se às expectativas geradas pelo espetáculo teatral que se anuncia no cine Íris. Sua natureza exigente requer da grei de artistas ativa participação. E, graças à ilusão que vai semeando em torno, sentem-se todos condenados à aliança imposta pela arte”. As grandes amizades refletemse nos textos sobre Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, estendendo-se a suas mulheres. Mas o vetor analítico de Nélida não deixa ofuscar a sua crítica da obra de ambos, sobre a narrativa que engendraram. De Vargas Llosa em “O escriba Mario” ela faz o percurso crítico aprofundado do seu livro El hablador, onde Mario é personagem e autor ao mesmo tempo, narrador onisciente e sujeito participante junto aos índios machiguengues do Peru. Segundo ela, Vargas Llosa “infiltra o texto com artimanhas e artifícios. Impõe-nos, como conseqüência, o convívio com um autor que, de seu

A mulher ocupa um lugar destacado no livro de ensaios de Nélida

mirante de observador, fortalece-se por meio da perícia com que situa o imbróglio narrativo sobre o tablado livresco”. Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon perfaz um roteiro críticointerpretativo que alia uma marca subjetiva, visível em toda a sua prosa, ao expressionismo de afirmações seguras e pensadas racionalmente sobre a obra de numerosos autores, canônicos ou não. Por isso seu estilo pode, em certos instantes, oscilar e bipartir-se explicitamente entre o real e o onírico, entre a cidade e o campo, entre o antigo e a modernidade. E é neste ponto que ela faz a defesa da inserção do clássico no contemporâneo, e vice-versa.

Disserta sobre o deslocamento das massas rurais para os alojamentos urbanos precários e compartimentados, descarnando certa aculturação proveniente do êxodo rural para as grandes capitais, da substituição da natureza e da vida simples pela luta desigual pela sobrevivência, que só permite de passagem e fugazmente a consecução do tempo e do lugar para o sonho. Aprendiz de Homero Nélida Piñon Editora Record 368 páginas 38,00 reais

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LITERATURA

O romancista português apreciava a boa mesa

Eça em novo livro de Dagoberto Escritor piauiense radicado no Recife vai entrar no Guiness como autor do maior número de livros sobre Eça de Queiroz Edson Nery da Fonseca

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u seguia, nos anos 30, o curso ginasial num colégio católico do Recife quando ouvi pela primeira vez o nome de Eça de Queiroz, definido por um padre português como “um patife semelhante a seu mestre francês Émile Zola”. Ao concluir, em dezembro de 1939, o curso ginasial, vi numa pequena livraria do bairro do Recife o livro, que acabava de ser publicado, História Literária de Eça de Queiroz. Seu autor – Álvaro Lins – fora expulso do corpo docente do colégio por haver escrito sobre o “patife Eça de Queiroz”. Como eu sabia que nosso melhor professor era católico dos chamados praticantes, li com avidez o livro, começando pelo capítulo dedicado ao romance O Crime do Padre Amaro. Para Álvaro Lins, embora Eça de Queiroz tivesse combatido a decadência do clero português de sua época, ele apresentava no romance dois tipos de padre: o que prevaricara por não ter vocação e o virtuoso que era vocacionado. Deste modo, Eça de Queiroz salvara-se como artista porque – observação do crítico católico Álvaro Lins – para o padre verdadeiramente vocacionado a castidade não é um voto difícil de ser cumprido. Devo, portanto, a Álvaro Lins tanto o conhecimento da obra de Eça de Queiroz como a convicção de que os próprios colégios católicos contribuem para uma visão

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inquisitorial da Igreja. Tudo isso poderia fazer-nos concluir pela incompatibilidade entre o catolicismo e os grandes escritores. Mas o próprio Álvaro Lins já me havia esclarecido que tal incompatibilidade não existe, apontando, entre outros exemplos, o poeta e ensaísta florentino Dante Alighieri, no século 14, passando pelo poeta jesuíta inglês Gerard Manley Hopkins, no século 19, até o século 20 com o grande romancista francês Georges Bernanos. Com o fim da Segunda Guerra Mundial – durante a qual servi ao Exército –, voltei a trabalhar com José Césio Regueira Costa, na Diretoria de Documentação e Cultura. Era o ano do centenário de nascimento de Eça de Queiroz, comemorado pela DDC com um concurso de ensaios sobre Eça e de ilustrações de seus personagens e uma conferência de Viana Moog, que havia publicado em 1938 o livro Eça de Queiroz e o século XIX. Recordo estes episódios para mostrar como sou um eciano histórico. Se não pertenço à Sociedade Eça de Queiroz é porque sou um eremita seguidor do grande Capistrano de Abreu, que dizia pertencer somente a uma sociedade – a humana – e mesmo assim por não ter sido consultado. O que não me impede de admirar ecianos como o saudoso Paulo Cavalcanti e o dinâmico Dagoberto

Dagoberto Jr. é médico e escritor

Carvalho Jr., que lançou recentemente mais um livro sobre Eça de Queiroz, na tradicional e querida instituição recifense que é o Restaurante Leite: “Uma casa portuguesa, com certeza / com certeza uma casa portuguesa”. Dagoberto Carvalho Jr. é um dos muitos piauienses que deixaram sua terra para brilhar em outras praias, como – para citar apenas duas figuras emblemáticas – o jornalista Carlos Castello Branco e o diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva. Dagoberto vai entrar no Guiness como autor do maior número de livros sobre Eça de Queiroz. Começou em 1994 com A cidadela do espírito: considerações sobre a

arte sacra na obra de Eça de Queiroz (reeditada em 2007), continuando em 1996 como organizador da obra coletiva Eça e Gilberto na Fundação Joaquim Nabuco. É médico, mas não cultiva a retórica pomposa de tantos doutores deste país. Admira o barroco, mas escreve sem floreios rococós, seguindo o exemplo de Stendhal, que lia diariamente o Código Civil para evitar os excessos da oratória, a maior inimiga do bom gosto literário. A boa mesa de Eça de Queiroz Dagoberto de Carvalho Jr. Editorial Tormes 238 páginas 30,00 reais

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MÚSICA

livros

João Alexandre: o homem, o editor, o crítico inda adolescente, ganhei dois presentes inesquecíveis de João Alexandre Barbosa (foto). A primeira publicação de um poema meu na grande imprensa, no caso o suplemento literário do Jornal do Commercio, do Recife, e um livro que me apresentou à poesia de João Cabral de Melo Neto. Depois João mudou-se para São Paulo, onde passei a acompanhar sua ação frente à Edusp, Editora da Universidade de São Paulo, transformada por ele – de mera co-publicadora sem autonomia – em uma casa profissional, com um catálogo diversificado e de alta qualidade, tornada modelo impecável para outras editoras universitárias do país. E também seu trabalho como crítico, na verda-

de um dos melhores que O leitor insone o Brasil teve nos últimos Plinio Martins Filho e Waldecy Tenorio (Org.) anos. Morto há dois anos, Livraria da Travessa João tem um livro publi456 páginas 60,00 reais cado em sua homenagem e que leva como título “o leitor insone”, aquela categoria de leitor perfeito almejado pelos grandes escritores e à qual certamente João pertencia. O livro vem dividido em três partes. Na primeira, os depoimentos pessoais que atestam sua grandeza humana. Na segunda, uma crítica aos seus livros de ensaio sobre literatura, sempre agudos e abrangentes. A última aborda o universo dos interesses maiores de João Alexandre Barbosa, como as obra de Valery, Eça, Cervantes e Cabral. Enfim, uma homenagem à altura do homenageado. (Marco Polo) Divulgação

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> O homem que criou a democracia

> Uma voz diferente > Vidas e livros num na poesia brasileira deserto mexicano

> Contos sensíveis com simplicidade

O século 5 a.C. ficou conhecido como o século de Péricles (495-429 a.C), que liderou a Grécia experimentando pela primeira vez a democracia como modelo de governo. Durante sua época, houve um extraordinário florescimento cultural, com o nascimento da história e da filosofia, da arquitetura que ergueu a Acrópole e com o surgimento do teatro de Eurípides, Ésquilo e Sófocles. Esta biografia do grande orador grego é dividida em quatro partes. Na primeira, mostra-se a Atenas que antecede o surgimento de Péricles. Na segunda, é estudado o desenvolvimento do conceito de democracia. Na terceira, é destacado todo o esplendor de sua época. Na última, é revelado o homem para além do mito. (MP)

Age de Carvalho, paraense radicado na Áustria, é uma voz diferente na atual poesia brasileira. Seus poemas, quase sempre curtos e cifrados, exigem do leitor uma faca afiada na atenção e uma grande fenda na sensibilidade. A faca para levantar com a ponta cada palavra e espiar o que está por baixo; a fenda para se deixar fecundar pelas sensações que estas palavras emitem. Outra maneira de ler estes poemas quase herméticos está na dança esgrimática de avanço e recuo. Uma terceira: um exercício estimulante para quem acredita que o poema é de fato uma arma, capaz de ganhar função e disparar sua bala quente de informações e emoção, quando o leitor souber puxar-lhe o gatilho. Escolha a sua. (MP)

Apesar de fazer referências à cultura pop – rock, HQs, filmes – e falar de personagens em sua maioria jovens, Lima Trindade não envereda pela violência e pelas drogas nem pelo sexo explícito e indiscriminado. Ao contrário – e isso talvez se dê por vivenciarem cenas de tônica homoerótica –, seus personagens atuam com sensibilidade e, quando se desesperam, se desesperam por esperar mais amor do que recebem. A linguagem é sóbria, em geral evitando gírias e palavrões, embora mantendo o tom de atualidade. Alguns recursos estilísticos menos ortodoxos são usados sempre com parcimônia e funcionalidade, tudo resultando em contos simples, mas com um toque de encantamento. (MP)

Péricles. O inventor da democracia Claude Mossé Estação Liberdade 264 páginas 47,00 reais

Caveira 41 Age de Carvalho 7 Letras/Cosacnaify 112 páginas 25,00 reais

Numa pequena cidade do México, cercada de deserto e assolada pela falta de água, um homem acha uma menina morta dentro de um poço. Sem saber o que fazer, vai procurar Lúcio, seu pai, e responsável pela biblioteca do lugar, à qual, aliás, ninguém freqüenta. Através da leitura dos livros, Lúcio procura interpretar a morte da menina e indicar ao filho como deve se comportar para não ser incriminado. Lúcio – que tem por hábito jogar num cômodo cheio de baratas os livros que desaprova por serem vulgares, mal-escritos ou piegas – domina este romance em que literatura e vida dialogam e duelam, numa relação ora de clareamento ora de obscurecimento. Um romance que regala e seduz o leitor. (MP) O último Leitor David Toscana Casa da Palavra 160 páginas 29,00 reais

Corações blues e serpentinas Lima Trindade Arte Paubrasil 150 páginas 25,00 reais

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Ensaios que resistiram ao tempo

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canalítica de Hamlet, das obras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, passando pelo romantismo à brasileira. O psicólogo, crítico e professor paulista assume a ótica de um “intelectual engajado” (postura meio fora de moda hoje, quando o neoliberalismo triunfa nos espaços antes hegemonizados pela esquerda acadêmica, nem sempre lúcida), sempre com profundidade e clareza. São escritos dos anos 50, 60 e 70 praticamente atuais, como a questão do empobrecimento da linguagem escrita e a ausência de literatura no jornalismo diário. Mas sua reedição é, sobretudo, pertinente pelo elevado nível do debate em que essas análises são alçadas pelo autor. Como nesta assertiva fundamental: “Toda literatura – ou toda grande literatura – é quase sempre um sinal de fim ou de início de uma era.” (Homero Fonseca)

>Originalidade além do engenho

> Os valores num mundo sem Deus

> Mulheres em tempos masculinos

> Mulheres, autoras e protagonistas

A canonização definitiva do gênio artístico do dramaturgo inglês William Shakespeare se deu somente na segunda metade do século 18, em meio ao movimento romântico, no qual o valor da “originalidade” sobrepôs-se à rigidez das normas e formas poéticas clássicas. Pedro Süssekind, doutor em filosofia e autor desta obra, mostra como, a partir dessa época, o talento do escritor passou a ser medido não somente pela perícia na execução e pela perfeição formal laboriosamente construída. O criador de Hamlet representava a inteligência livre e autônoma, desgarrado das normas em busca de uma arte que refletisse uma verdade íntima. (Eduardo Cesar Maia)

Ao personagem de Dostoiévski, Ivan Karamazov, que concluiu que “Se Deus não existe, tudo é permitido”, o filósofo parisiense André Comte-Sponville responderia que não é preciso haver Deus para que existam valores: a vida humana em comunidade exige o estabelecimento de regras e princípios, ainda que não absolutos. Humanista, racionalista e materialista, o autor deste livro argumenta que o niilismo é o grande mal da nossa época porque, ao contrário do relativismo, não discute os valores estabelecidos, simplesmente os oblitera. Com Deus ou sem Ele, acredita ComteSponville, é possível uma existência feliz e virtuosa. (ECM)

Para quem já leu Casa-grande & senzala, Sobrados & mucambos e outros títulos de Gilberto Freyre centrados na formação de nossa sociedade, não deixa de ser surpreendente constatar o quanto de feminista contém essas obras, sem, obviamente, qualquer relação com militância. Isso fica patenteado em Sexo à moda patriarcal, da antropóloga Fátima Quintas, cujo recorte específico traz o tema ao primeiro plano. A orgia sexual dos tempos de colonização, em que a índia, a portuguesa e a africana tiveram papéis bem conhecidos, é interpretada num quadro mais amplo. A autora inova na categorização de bens-mulheres, ao examinar aspectos econômicos e de poder nessas relações ancestrais. (HF)

Gênero e ficção na obra de Luzilá Gonçalves: um estudo sobre A Garça malferida, de Anamelia Dantas Maciel, envereda pelo caminho da discussão sobre a voz específica das mulheres na literatura, tema recorrente nos debates literários. O opúsculo condensa as teorias sobre a escrita feminina no mundo, reivindicada pioneiramente pela inglesa Virgínia Woolf, desembocando na obra da escritora pernambucana, em especial seu romance de 2002 que tem como protagonista a célebre Anna Paes, a rebelde do século 17 que foi amiga de Nassau e desposou dois holandeses. Anamelia defende a existência, sim, de uma escrita feminina e aponta Luzilá como uma das suas expoentes. (HF)

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ara quem lê, feito o locutor que vos fala, grifando os trechos mais importantes, uma folheada posterior revelará a dimensão de um livro pela quantidade de grifos. E quando consideramos que uma obra se paga quando contém uma idéia original ou uma frase brilhante – imaginem uma que reúna ambas, a granel. O meu volume de O amor romântico e outros temas, de Dante Moreira Leite (1927-1976), está todo riscado, ressaltando inumeráveis idéias originais e muitas brilhantes. Os ensaios abrangem do caráter nacional aos problemas da tradução, da teoria da ingratidão à interpretação psi-

Shakespeare, o gênio original Pedro Süssekind Jorge Zahar Editor 136 páginas 29,00 reais

O espírito do ateísmo André Comte-Sponville WMF Martins Fontes 192 páginas 32,50 reais

O amor romântico e outros temas Dante Moreira Leite Editora Unesp 302 páginas 45,00 reais

Sexo à moda patriarcal Fátima Quintas Global Editora 184 páginas 32,00 reais

Gênero e ficção na obra de Luzilá Gonçalves Anamelia Dantas Maciel Editora da UFPE 48 páginas 10,00 reais

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poesia>> Juareiz Correya Limites Urbanos

Uma Mulher Madura

A insegurança bate à tua porta Como uma venda lotérica Um anúncio de jornal Ou um pedido de pão.

É uma mulher inteira. Mais certa. Mais ela mesma. Não é fruta, só macia carne, Promessa de fantasia; É um corpo na medida De vida mais verdadeira. Uma mulher madura Não olha apenas, vê; Não fala apenas, diz; Não nega nunca um sim E sabe sempre ser. Uma mulher madura Não quer ser a ideal Ou a qualquer mulher igual: Sabe que é essencial. Uma mulher madura Completa o homem no mundo E quando o corpo desnuda Dá alma à própria Vida E é o princípio de tudo.

A rua te assalta Com postes acesos À luz do dia E as casas não te encontram Portas não te abraçam Janelas não te vêem. Ônibus e carros buzinam Estragos desenfreados Sobre os nervos do teu medo. Estás só como ninguém Crucificado na paisagem Desaparecido na vertigem Do passeio da tua casa à cidade Sozinho como uma multidão cega Perdido no teu próprio seqüestro Sem resgates ou exigências Como um número que não conta Um nome que não existe

SOBRE O AUTOR Juareiz Correya é poeta, escritor, editor e gestor cultural pernambucano, criador e ex-presidente da Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho.

Olinda, junho / 2005

Olinda, março / 2005

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entre linhas

Luzilá Gonçalves Ferreira

Uma mulher e a escravidão

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rente, responde aos opositores: “Como Joana D’Arc, não este 2008 festeja-se mais um aniversário da tenho que temer o santo churrasco”. Abolição da Escravatura no Brasil, um dos Ativista, ela freqüenta as reuniões, onde ataca “a auúltimos países no mundo a abolir a escratoridade arbitrária” do espaço público revolucionário. vidão de negros.Todos conhecemos nomes Em mais de 50 artigos de cunho político, filosófico e dos que escreveram, pelo mundo afora, para que se reliterário, defende os direitos dos oprimidos, dos negros conhecesse que essa mancha recaía sobre os que a proque os brancos dominaram pela força, evitando que se vocavam, como Montaigne, Voltaire, Harriet B.Stowe, instruíssem, para melhor os escravizar. Mas o texto que José Mariano, Castro Alves, Maria Firmina dos Reis a tornou conhecida foi a Declaração dos Direitos da – mas pouca gente lembra uma mulher que afrontou a Mulher e da Cidadã, em que advoga, entre outras coisas, ira de colonos exploradores do trabalho negro, na Franigual tratamento para os dois sexos, segundo capacidaça do século XVIII, sobretudo. de e talento, no que concerne a lugares e empregos púApesar do prenome pretensioso e da partícula sublicos; a possibilidade para as mães solteiras de efetuar gerindo nobreza – chamava-se Olympe de Gouge –, legalmente a busca de paternidade para os filhos.Define era quase inculta, de origem obscura, pobre. Queria ser o casamento como “o túmulo da confiança e do amor”, escritora, mas escrevia mal, ignorando a ortografia e reReprodução propondo sua substituição gras de gramática. Quepor um contrato que dure ria reformar a sociedade, enquanto subsistirem as mas criticava aqueles que “inclinações mútuas”. sonhavam com a justiO artigo mais citado ça social, os iluministas, da Declaração é aquele pelo “excesso de racionaque lembra que ninguém lismo”, “inconseqüências”, deve ser inquietado por exceção feita a Rousseau. suas opiniões: “se a muNo prefácio ao seu dralher tem o direito de suma, A escravidão dos Nebir ao cadafalso, também gros ou o Feliz Naufrágio, deve ter o direito de subir encenado na Comédie à tribuna”. Foram-lhe Française, em 1789, ela concedidos os dois diescreve: “Os Sábios poreitos. Por várias vezes, dem se deter e se perder Olympe de Gouge subiu em observações metafíà tribuna para denunciar sicas.Quanto a mim, que os desmandos da Revolusó estudei os bons prinção, inclusive a “ambição cípios da Natureza, não louca e sanguinária” de defino mais o homem, e Robespierre... Condenameus conhecimentos selda em 2 de novembro de vagens só me ensinaram 1793, foi guilhotinada no a julgar as coisas através dia seguinte. de minha alma”. IrreveOlympe de Gouge enfrentou colonos exploradores de negros JUL 2008 • Continente x

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ARTE

Belezas híbridas

Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, localizado próximo à cidade de Belo Horizonte (MG), oferece ao visitante nove galerias de arte espalhadas em meio à natureza, e entra no rol das principais coleções particulares do mundo Sara Correia

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Eduardo Eckenfels/Divulgação

A galeria temporária Fonte é formada por grandes vãos que permitem versatilidade na apresentação de obras

Marco Mendes/Divulgação

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paixão pelo colecionismo no mundo das artes, seja por amor ou com foco em investimentos, ganha força a cada dia. Quem também sai no lucro é o público. A dimensão que as coleções particulares vêm ganhando no país e seu potencial como base para a organização de museus e centros de exposição trazem à tona opções culturais – e turísticas – sofisticadas. Um lugar no

meio do Estado de Minas Gerais chama a atenção não apenas pela curadoria de suas galerias de arte e qualidade das obras que abriga, mas pela suntuosidade ao propor a união da arte e da natureza – e, por que não, o diálogo entre elas. Com essa proposta nasceu, sem pressa, Inhotim – Centro de Arte Contemporânea, localizado no município de Brumadinho (MG), distante 60 km da capital mineira, Belo Horizonte.

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ARTE dialogar com flores, árvores, palmeiras, lagos, patos e capivaras, Inhotim possui um acervo artístico de altíssima qualidade e relevância internacional, com 450 obras de mais de 60 nomes. Entre os artistas que têm suas obras expostas – alguns em galerias próprias e permanentes – estão Cildo Meireles, Tunga, Adriana Varejão, Hélio Oiticica e Doris Salcedo, além de Doug Aitken, Matthew Barney, Rivane Neuenschwander, Pipilotti Rist e Carrol Dunham. O acervo de Inhotim vem sendo formado desde meados de 1980, quando o empresário e colecionador mineiro Bernardo Paz, que vive no Rio de Janeiro, começou a colecionar obras de arte moderna e de arte contemporânea em sua propriedade. Pintura, escultura, desenho, fotografia, vídeo e instalações de renomados artistas brasileiros e internacionais são exibidos nas

galerias espalhadas pelo Centro de Arte Contemporânea. Quase 50 anos de arte estão reunidos ali. Entretanto, foi somente em 2004 que Bernardo Paz resolveu apresentar seu acervo ao público. Em 2005, Inhotim passou a receber visitas para atender à rede escolar da região de Brumadinho e a grupos específicos, e em outubro de 2006, finalmente, com estrutura completa para sua inauguração, abriu as portas ao grande público. Desde então, Inhotim recebeu mais de 170 mil visitantes, número que coloca o museu entre as instituições de arte com maior fluxo de público no país. A idéia, para o futuro, é que Inhotim ganhe um centro de convenções e uma pousada. O centro de convenções, fruto de uma parceria entre Ministério do Turismo e o Governo de Minas Gerais, será construído no entorno de Inhotim e está previsto para ser inaugurado em 2009.

Eduardo Eckenfels/Divulgação

O caminho que leva a Inhotim – Centro de Arte Contemporânea não oferece nem um pouco de entusiasmo para quem decide dedicar um dia (ou parte dele) ao passeio pelo local, situado numa área de 45 hectares dentro de uma reserva de 2.100 hectares de área (600 de mata nativa preservada). Sem paisagens bonitas ou um percurso atraente, a viagem de aproximadamente uma hora (saindo de BH) não dá sinais de que seja um passeio que o valha. Mas vale. Vale Muito. Os 45 hectares de jardins – parte deles projetada pelo paisagista brasileiro Roberto Burle Marx (1909-1994) – possuem extensa coleção botânica de espécies tropicais e abrigam, entre um bosque e outro, quatro lagos ornamentais e nove galerias de arte contemporânea, com obras produzidas internacionalmente, datadas dos anos 60 até a atualidade. Complexo capaz de colocar obras de arte contemporânea para

A sala individual do artista Franz Ackerman

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gação Ricardo Labastier/Divul

Comprometido com o desenvolvimento da comunidade de Brumadinho, Inhotim utiliza sua coleção botânica e seu acervo de arte contemporânea para, de maneira sistemática, desenvolver projetos educativos, sociais e ambientais. Por meio do Instituto Cultural Inhotim, que participa ativamente da formulação de políticas para a melhoria da qualidade de vida na região, são realizadas atividades voltadas para a formação de profissionais de áreas ligadas à arte e ao meio ambiente. “Além dos museus e dos jardins, Inhotim é um lugar dedicado à educação, meditação e deleite. Disponibilizamos diversas atividades voltadas para a comunidade de Brumadinho, como, por exemplo, aulas de iniciação musical e esportivas, além do acolhimento digital para idosos”, explica a diretora social de Inhotim, Roseni Sena. Na região de Brumadinho e seus arredores, há cerca de cinco comunidades quilombolas atendidas pelo Instituto Cultural Inhotim. Freqüentemente, integrantes dessas comunidades se apresentam no Centro de Arte Contemporânea, com congadas e shows musicais. “A idéia é que haja a preservação do patrimônio cultural e ambiental de Brumadinho e de seus distritos.

Eduardo Eckenfels/Divulgação

A obra Rodoviária de Brumadinho, de autoria dos artistas John Ahearn e Rigoberto Torres; Abaixo, a união entre arte e natureza, um dos focos do Centro

Nesse sentido, incentivamos projetos de educação, infraestrutura, turismo e desenvolvimento econômico e social”, conclui Roseni Sena. Outro compromisso é com o meio ambiente. Com o objetivo de reduzir o impacto ambiental e fazer de Inhotim um local totalmente auto-sustentável, no que diz respeito ao uso dos recursos naturais, o instituto trabalha com base na gestão ambiental eficiente, uma das bandeiras de Inhotim. Essa gestão eficiente permite o cultivo de uma grande diversidade de espécies da flora (cerca de 1.400). Destaque para as coleções de Beucarnea recurvataliliacea (nolina ou pata-de-elefante), Cycadaceae e zamiaceae (sagus), e palmae (jerivás, butiás, tamareiras, macaúbas, buritirana etc.). Os espaços expositivos de Inhotim são divididos entre cinco galerias dedicadas a obras permanentes e outras quatro onde acontecem, com periodicidade bienal, apresentações de recortes da coleção. As galerias permanentes foram desenvolvidas especificamente para receber obras de Cildo Meireles, Adriana Varejão e Doris Salcedo, além de Tunga (Galerias Lézart e True Rouge). As galerias temporárias – Lago, Fonte, Praça e Mata

– têm cerca de 1 mil m² cada uma e contam com o mesmo tipo de arquitetura, com grandes vãos que permitem aproveitamento versátil dos espaços para apresentação de obras de vídeo, instalação, pintura, escultura etc. A curadoria de todas os pavilhões é responsabilidade do diretor artístico de Inhotim, Johann Jochen Volz, e equipe, composta pelos curadores Allan Schwartzman e Rodrigo Moura. Nas suas salas individuais estão obras de Albert Oehlen, Ernesto Neto, Franz Ackermann, Iran do Espírito Santo, Janet Cardiff e Jarbas Lopes. Os destaques vão para a obra Troca Troca (2004), do carioca Jarbas Lopes – com seus fuscas coloridos, efeito de desmontagem e remontagem dos carros –, e para a emocionante Forty Part Monet (2001), de Janet Cardiff. Esta última, uma instalação sonora composta de 40 caixas de som (cada uma em um canal), oferece ao visitante um estranhamento inicial, sendo substituído, imediatamente, por um estado emocional de encantamento e êxtase. Basta encostar o ouvido na primeira, na segunda e nas caixas seguintes para compreender a senJUL 2008 • Continente x

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sibilidade e a diferença entre as sintonias clássicas, misturadas a cantos gregorianos, entre uma caixa e outra. É de tirar o fôlego. Esta galeria reúne vídeo, pintura, escultura e fotografia dos artistas Anri Sala, Larry Clark, Michel Majerus, Nuno Ramos, Paul McCarthy e Tobias Rehberger, compondo uma mostra coletiva cujo objetivo parece ser desvelar experiências contemporâneas entre diferentes gerações e nacionalidades através da linguagem artística. O destaque é o trabalho fotográfico do americano Larry Clark, apresentado pela primeira vez no Brasil nas séries Tulsa e Teenage Lust. As imagens, captadas nos anos 70, representam a base da pesquisa de Clark no universo adolescente de sexo, drogas e violência, que mais tarde resultou em filmes que são sucesso de público como Kids e Ken Park. Este pavilhão apresenta, ainda, produção do pintor Michel Majerus, que representa a revitalização da pintura na Alemanha. Falecido precocemente em 2002, Majerus deixou uma obra que impressiona artista e críticos por sua força criativa, marcada pela força da cor e pela fusão de referências populares e eruditas. Uma seqüência de trabalhos que exploram as várias conexões existentes entre espaços arquitetônicos e experiências individuais do corpo está presente nessa galeria, que reúne obras de Damián Ortega, Janine Antoni, José Damasceno, Laura Lima, Luisa Lambri e Valeska Soares. O destaque é a obra da artista Valeska Soares, em que apresenta, pela primeira vez no Brasil, o filme Walk on By , filmado em um set nos jardins de Inhotim. Projetada em duas telas em HDV, a obra lembra trabalhos do escocês Douglas Gordon, que manipulou filmes clássicos como “Psicosis”, de Alfred Hitchcock – para criar a obra 24 Hours Psycho –, e The Exorcist e The Song of Bernadette – para dar vida à Between Darkness and Light (After William Blake)”, expostas em várias galerias do mundo. Esta galeria está dividida em quatro grandes instalações de Artur Barrio, Chris Burden, Hélio Oiticica & Neville D’Almeida e Navin Rawanchaikul & Rirkrit Tiravanija. As mostras investigam as formas como indivíduos se relacionam em suas sociedades. Ali, o artista norte-americano Chris Burden – nome de referência para a performance e a body art – apresenta sua escultura Samson, um dispositivo ligando uma catraca de controle de público a um mecanismo que pressiona as paredes do museu. Se há espaço para o questionamento do museu como espaço consagrado da arte, também há para temas como efemeridade e a psicologia do espectador. Assinada pelo artista português Artur Barrio, a peça O Ignoto, uma

Ricardo Labastier/Divulgação

ARTE

Há um pavilhão permanente dedicado a Cildo Meireles

das instalações mais célebres do artista, está exposta e provoca o visitante. Já a Cosmococa 5 – Hendrix War, uma obra revolucionária de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida, na qual o artista e o cineasta reinventaram a sala de projeção de cinema, complementam o espaço e convidam o espectador a um deleite. Com redes espalhadas e disponíveis, a sensação é de que os tempos de Jimi Hendrix voltaram e a vontade é mesmo de deitar e viajar ao som do guitarrista, mestre do rock. O pavilhão permanente, dedicado a Cildo Meireles, faz um recorte preciso e significativo da obra desse ar-

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qual as paredes brancas são alteradas pela colocação de uma extensa grade metálica em toda a sua extensão. Um longo processo de montagem resulta em uma obra carregada de emoção e que, de maneira muito sensível, se relaciona com memórias de opressão, segregação e violência.

A galeria de Adriana Varejão é a mais ousada de Inhotim

tista matricial para a arte brasileira. O espaço conta com algumas de suas obras mais importantes: Através (19831989), pela primeira vez exposta no Brasil, Glove Trotter (1991), e a impressionante Desvio para o Vermelho (1968-2006). Esta última oferece ao visitante experiência única e apaixonante, onde tudo é rubro e os detalhes não são apenas detalhes. Ali estão instalações e esculturas da artista colombiana Doris Salcedo. Neither (2004), que já foi exposta na Galeria White Cube, em Londres, se confunde com o espaço expositivo ao criar um recinto confinado no

Der Rosa Salon, do alemão Albert Oehlen, exposta na Galeria Praça

Seguramente o museu mais ousado de Inhotim, o de Adriana Varejão, projetado pelo arquiteto paulistano Rodrigo Cerviño Lopez, já impressiona. Um grande bloco de concreto suspenso nos jardins de Inhotim abriga obras da artista carioca, que reflete em seu trabalho forte influência barroca. Celacanto Provoca Maremoto (2004-2008), especialmente criada para o espaço, evoca a maneira desordenada e casual com o qual são repostos os azulejos quebrados dos antigos painéis barrocos. Ali, 184 azulejos foram pintados sobre a base de gesso com tons de branco, azul e terracota, e colocados em painéis, formando um grid. Outra obra (perturbadora) de Adriana Varejão é “Linda do Rosário” (2004). Em um conjunto de esculturas, Varejão se associa do corpo, e a matéria de construção se torna carne. Uma parede de azulejos em ruínas revela pedaços de entranhas em seu interior. Escultura e monumento, a obra foi inspirada no desabamento do Hotel Linda do Rosário, no Rio de Janeiro, em 2002, cujas paredes azulejadas caíram sobre um casal num dos cômodos do prédio. Adriana Varejão passou por um processo criativo que durou três anos para concluir as obras expostas em Inhotim. Durante o período, que envolveu aquisição de trabalhos preexistentes, a criação de um princípio de montagem, a produção de novas obras e a concepção do edifício, propriamente dito, Adriana Varejão mergulhou em pesquisas. O resultado é a união de beleza, delicadeza e sutiliza, onde a pintura é a matriz, mas que lida com a arquitetura, a abstração, a ruína, o monocromatismo e com o espaço exterior. A Galeria True Rouge exibe, em caráter permanente, obra homônima do escultor, desenhista e artista performático Tunga. True Rouge (1998), que significa verdadeiro vermelho, dialoga com sensações e percepções, ao unir diferentes materiais. A instalação possui esponjas e garrafas presas a uma grande rede, ocupando todo o espaço a ela reservado. As obras do artista pernambucano nascido em Palmares se comunicam umas com as outras, com repetições de temas e matérias-primas utilizadas. Lezart (1989), que também dá nome a uma das galerias de Inhotim, apresenta tranças de cobre, pentes de aço e imãs gigantes. Outro registro importante é da peça Deleite (1999), exposto no grande jardim do Centro de Arte Contemporânea. Ali, sinos de ferro com couro dão outro cenário ao trabalho de Tunga, interagindo diretamente com a natureza. JUL 2008 • Continente x

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Ferreira Gullar

O gesto sem erro A necessidade de realizar a forma “que não deixa resto” de Amílcar de Castro implica apostar tudo no gesto único que, por alguma clarividência da mão, tornaria impossível o erro

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arte não-figurativa – e como parte dela, a arte construtiva – defrontou-se com o desafio de criar uma nova semântica estética, desvinculada das referências ao mundo exterior. Não foi por acaso que Van Doesburg, em 1936, propôs que a pintura construtiva, geométrica, fosse chamada de “arte concreta”, ao contrário da designação, até então vigente, de “arte abstrata”. Argumentava que abstrata era a figura, por exemplo, de um animal, que representaria uma coisa real, enquanto um quadrado vermelho seria concreto porque não se referia a nada senão a si mesmo. O problema, porém, que permanecia era “o que significa um quadrado vermelho? Ou seja: como imprimir significação estética, poética, a uma forma que nada representa, que não se refere ao mundo real nem à vida afetiva das pessoas? Esse problema foi enfrentado, também, como seria inevitável, por Amílcar de Castro, quando optou pela linguagem geométrica como o caminho de sua obra escultórica”. Como se sabe, a escultura, desde sua origem, sempre teve como matéria de expressão o volume, a massa, fosse essa de granito, mármore, madeira ou barro. A expressão mais radical da escultura moderna resultou da eliminação da massa que foi substituída pelo espaço vazio. Um exemplo desse tipo de expressão foi a Unidade tripartida, de Max Bill, premiada na I Bienal de São Paulo, em 1951, isso para me referir a um artista que influiu sobre Amílcar e outros jovens artistas brasileiros daquela época. A forma vazada da Unidade tripartida indicou o novo rumo que a escultura deveria seguir. E Amílcar aceitou a indicação.

Mas como reinventar a escultura sem massa, sem volume palpável? Nesse particular, o artista mineiro fez uma opção radical, que determinaria todo o percurso futuro de sua obra escultórica: ele adota a placa bidimensional como o elemento primeiro, originário, de sua linguagem. Essa escolha é, ao mesmo tempo, expressão de uma exigência ético-estética, cuja radicalidade não tem equivalente em nenhum outro escultor dessa tendência. Ao aceitar a proposta nova da eliminação da massa como matéria escultórica, opta ele pela placa bidimensional como elemento mínimo possível de onde partir para inventar a escultura. Nesse particular, Amílcar se aproxima do que fez Malévitch e, mais tarde, Lygia Clark, no campo da pintura, quando a reduziram à tela em branco, como ausência de toda forma ou figura, ainda que geométrica. Como voltar a pintar, como reinventar a pintura negando-se a qualquer tipo de representação figurativa? Ao equivalente se propõe Amílcar de Castro, ao tentar reinventar a escultura, limitando-se à placa bidimensional. Para criar a tridimensionalidade, o “volume”, que define a escultura, apenas corta a placa em algum ponto e levanta a parte cortada: nasce então a terceira dimensão, sem volume, sem massa, sem concessão à linguagem do passado. Essa opção pela mínima interferência sobre a matéria original (a placa) reflete um conceito, surgido com a modernidade, de que a verdadeira arte exclui a

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A exposição de Amílcar de Castro, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte

fantasia, a habilidade e repousa na construção racional do objeto artístico. Mas, no caso de Amílcar, eu intuía alguma coisa mais, que só recentemente consegui apreender e formular. Chamava-me a atenção o modo como ele realizava seus desenhos: molhava a trincha larga na tinta e desferia um gesto definitivo sobre o papel ou a tela. A pincelada seria vertical ou horizontal, mas era como um gesto “sem erro”, irreversível, insuscetível de correção. Associei esse gesto ao outro – o corte da placa – e vi que havia entre ambos uma semelhança. Mas qual? Lembrei-me de uma frase de Amílcar, que havia lido, alguns anos atrás, e que dizia: “Tenho fé na forma que não deixa resto”.

De algum modo era isso, mas não era tudo. A necessidade de realizar a forma “que não deixa resto” implica apostar tudo no gesto único que, por alguma clarividência da mão, tornaria impossível o erro. E ele mesmo o disse, em outro momento: “Um relâmpago estampa claro a forma pronta”. Amílcar é o escultor das formas simples, criadas em chapas de aço, sem polimento, exposto à corrosão da ferrugem. Mostra-nos a materialidade do mundo, sem fantasia. No entanto, creio ter entendido afinal que, se a expõe, é para transcendê-la. Como um gesto único, que operaria o milagre. Confirmei minha descoberta ao visitar uma ampla exposição de suas obras, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte. JUL 2008 • Continente x

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ESPECIAL

Difícil encontrar, na história universal, fora-da-lei de tamanha exposição na mídia e de vida pública tão notória quanto Lampião, que desde 1922 assumiu a dimensão de mito Frederico Pernambucano de Mello

À luz de 70 anos de um mito

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le não tinha menos de 1,80m de altura, ombros largos curvados para a frente, quadris estreitos, pernas finas, ossos longos e delgados, a musculatura rígida, mas não volumosa, descarnada em tendões pela ação intensa em meio físico hostil, pela alimentação irregular e por um cotidiano de sobressaltos que ocupou, desde a passagem da adolescência, uma vida de apenas 40 anos. A pele, nas porções expostas ao sol, mostrava-se cor de chocolate, e os cabelos, negros, lisos, levemente ondulados, chegavam-lhe a roçar os ombros, untados por brilhantina da melhor qualidade, a que fazia juntar respingos generosos de um dos bons perfumes que a França nos mandava à época: o Fleurs d’Amour. Não é só. No convívio com os coronéis sertanejos de maior destaque – em regra, seus protetores – aburguesa-se ao ponto de não mais dispensar o uísque White Horse, o brandy Macieira e o licor de menta. Para além do desenho

de tipo humano comum no Brasil, como é esse do caboclo, sua figura particularizava-se por um sinal de pele mais escura situado abaixo do olho direito – olho que vem a perder ainda menino, por mal de nascença precipitado em acidente –, pelo predomínio crescente do branco no espaço da córnea (leucoma), com a queda parcial da pálpebra, no olho assim arruinado, e pela caminhada em movimento pendular lateral, o pé direito precisando ser sacudido para a frente por conta de ferimento à bala que retira do órgão a função recuperadora ainda na fase inicial das aventuras. Mesmo assim, corcunda ao peso dos bornais, caolho e coxo, óculos professorais a lhe desenharem a face, o Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião – como gostava de se apresentar –, impõe seu império por duas décadas, alvejado pelas volantes policiais de sete Estados da região, submetidos pelo terror em suas porções rurais.

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O traço de vida em Lampião nos remete ao nordestino ancestral, necessariamente cruento, que devassou o sertão e se impôs sobre o índio e o animal bravio, assentando as fazendas de criar ao longo dos séculos 17 e 18. O trisavô de cada um de nós. Vivesse naqueles primórdios, ele teria sido um desbravador admirável, ao lado dos seus cabras de sangue no olho, beirando as duas centenas em alguns períodos. Um colonizador de energia exemplar. No século 20 de sertão tocado pela presença coativamente organizadora do poder público, não havia lugar para seu despotismo, senão na cadeia. Como não era homem para isso, lutou até morrer, livre de canga e corda pelas caatingas que conhecia como ninguém. É assim que chega aos nossos dias sublimado em emblema de um tempo em que o Estado não conseguia andar montado em nosso cangote, a nos sugar o sangue como hoje. E virou herói ao olhar irrecorrível do povo. Do JUL 2008 • Continente x

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ESPECIAL dias, que se enquadra na moldura geral do que temos chamado de irredentismo brasileiro, definido pela postura daqueles grupos sociais que não aceitaram, desde os primórdios da colonização, mais pela atitude que por palavras, fraternizar com valores europeus de civilização. Nada de acumulação, de propriedade, de moeda, de tempo linear, de pontualidade, de comércio, de subjugação religiosa. Nada, enfim, daqueles cabrestos que sustentavam o mercantilismo como ideologia dominante no mundo ocidental nos séculos 15 e 16, transpostos para a Terra dos Papagaios através das concepções culturais portuguesas do Quinhentismo e do Seiscentismo. A essa gama de novidades, reagiam por trás de individualismo elegante, captado na frase que permeia boa parte dos documentos reinóis do século do Descobrimento: eles vivem sem lei nem rei e são felizes. Foi assim que o europeu que aqui aportava, atolando o pé na carne morena das índias

– como disse Gilberto Freyre –, retratou o nativo que estava encontrando. E quedou siderado no instante seguinte, acusando o impacto de tanta liberdade sobre a alma de quem velejava com os olhos arregalados sobre os monstros e gigantes do boato fenício poetizado pelos gregos, e que, no Velho Mundo como aqui, sobrevivia vergado ao cambão de chumbo da Coroa portuguesa e do Papado de Roma. Um Papado com Inquisição ateada em fogueiras. Uma Coroa absolutista. O cangaço é a expressão contínua de irredentismo que falta agregar à historiografia brasileira dos cinco séculos de colonização. Uma historiografia de longa data sensível às recorrências irmãs desse irredentismo de chapéu de couro, representadas pela intermitência infalível do levante indígena, do quilombo predominantemente negro e da revolta social branca ou mestiça, à frente, quanto à última, a tragédia de Canudos. Não é o Divulgação

cordel de João Martins de Ataíde ao barro de Vitalino. É andar pelas feiras do sertão, Caruaru à frente. A morte no limiar da maturidade, realizado e depressivo, faz pensar na compulsória da Ópera de Paris aposentando os bailarinos aos 45 anos. Os desafios físicos e psicológicos do cangaço pediam um homem de 23 anos. Era a média de idade dos cabras em armas. Lúcido como sempre se mostrou, o maior dos cangaceiros tinha consciência de que num sertão tomado pela luz elétrica o seu lampião já não clareava muita coisa. Nem por isso deixou de morrer trocando tiros com a volante do tenente João Bezerra em grota vizinha ao beiço sergipano do rio São Francisco, no quebrar da barra de 28 de julho de 1938. O homem do Nordeste, em particular, ao lado de brasileiros e estrangeiros cada vez em maior número, tem-se mostrado sensível à sedução desse épico popular ao alcance da mão, quase de nossos

Luis Carlos Vasconcelos no papel de Lampião em cena do filme Baile perfumado

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Acervo Frederico Pernambucano de Mello

cangaço, nessa visão que propusemos, fenômeno surgido do nada, solto no tempo e no espaço, como se pensou até ontem, mas parte – e parte tão ilustre quanto as que acabamos de mencionar – do desvio de fogo que corre parelhas com o leito central de nossa história, a de expressão majoritária, a impor finalmente os valores reinóis a ferro e fogo, no instante em que as raças castanhas baixaram a cabeça à subjugação pelo branco europeu. Nem todos. Houve quem apanhasse a luva e saísse a campo em defesa do nicho de existência tradicional de pais, avós e bisavós, é quanto temos demonstrado em livros e artigos. O cangaço de Lampião, o mais conhecido pelos brasileiros nos dias que correm, marchando para se confundir com o próprio conceito, não foi senão o canto de cisne dessa vertente contínua, secular, minoritária e metarracial – branco,

preto, índio ou mestiço, você podia ascender à chefia de grupo – em nossa história, sem que se esteja a negar o diferencial de volume e requinte presente nos 20 anos de aventuras daquele que seria chamado pela imprensa, ainda em vida, de Rei do Cangaço, Tigre do Sertão e Terror do Nordeste, à base do talento pessoal e do engajamento de massa que logrou carrear para suas fileiras. A ele ficamos a dever o ocaso portentoso do cangaço, explorado até mesmo pelo New York Times e pelo Paris Soir, a se ocuparem das peripécias do bando, de 1930 até o desfecho de 1938. Difícil encontrar, na história universal, fora-da-lei de tamanha exposição na mídia e de vida pública tão arejada quanto Lampião. Freqüentador de oficiais de polícia, de prefeitos, de parlamentares, inclusive federais, e de ao menos um

governador de Estado, blindado, este, em interventor federal a partir de 1935: o de Sergipe. Um oficial do Exército, dublê de político a partir da Revolução de 30, com acesso direto ao presidente Vargas, de quem receberia presente invejável no começo da velhice: cartório na Rua Sete de Setembro, no Rio de Janeiro. O arquivo que o cangaceiro conduzia num dos bornais, apanhado por morte, fez-se motivo de constrangimento para as autoridades ao ter o conteúdo coado pela imprensa, mesmo que de modo vago. Seria abafado em poucas horas, sem margem a exame detido. Não destruído, como até se compreenderia nas circunstâncias, mas vendido a peso de ouro aos emitentes e subscritores apavorados mas ainda poderosos. Estava ali a elite do Baixo São Francisco em correspondência animada com o Rei do Cangaço. Da autoridade pública ao latifundiário. JUL 2008 • Continente x

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ESPECIAL Ao comerciante de grosso cabedal. A inocência ficando por conta de bilhete de pessoa pobre pedindo dinheiro para “acudir a despesas com os filhos no colégio, na capital”. Ou do retrato de cunhada com sobrinhos. Ao menos uma foto de oficial de polícia foi identificada. Certo comandante de força volante veterano no ofício. Com dedicatória ao destinatário... Lampião fez por onde ficar tão conhecido. E não se credite o renome apenas a uma existência rocambolesca que nem mesmo Ponson du Terrail seria capaz de maquinar. Os anos de correria guerreira por sete Estados da região respondem por boa parte dessa nomeada, é certo. Como as duas biografias em livro erudito, publicadas ainda em vida do cangaceiro, nos anos de 1926 e 1934, assinadas por Érico de Almeida e Ranulfo Prata – exemplar da segunda destas, recolhido por morte, trazendo anotações do biografado à margem – para além das centenas de folhetos de cordel com façanhas antigas ou da véspera, cantadas pela flor dos poetas do gênero, um Francisco das Chagas Batista, um João Martins de Ataíde, um José Bernardo da Silva, para não falar dos tantos anônimos, do repentista de déu em déu, do cego rabequeiro de pátio de feira, recorrentes no louvor de gesta. Não há relato de Lampião hostilizando poeta. Ao contrário. Sob

as estrelas de couro de seu império, a tradição do encontro discreto da viola com o punhal, ergue-se a norma averbada junto a toda a cabroeira, da chã da caatinga à ponta da serra, não sendo rara no período a ocorrência de pedido de guerreiro a menestrel para que lhe “tirasse uma obra”, ao que se seguia o relato paciente da façanha a se alongar em tema com poucos dias. E o interesse invariável do recebimento. Dia tal, às tantas horas, em ponto determinado, por intermédio do portador fulano, tudo sob “resguardo de boca”, de interesse recíproco. Assim foi produzido o Adeus com que o chefe se despediu do pasto pernambucano de berço, no meado de 1928, obrigado a refugiar-se na Bahia. Um poema longo e sentido, além de irrepreensível quanto ao roteiro dos lugares do vezo. Os fotógrafos também não padeciam às mãos de Lampião, sendo longa a lista dos que documentaram o bando a partir de 1922, à frente Genésio Gonçalves de Lima, de Triunfo, Pernambuco, a quem se seguiriam Lauro Cabral de Oliveira e Pedro Maia, em 1926; Francisco Ribeiro e José Otávio, 1927; Alcides Fraga, 1928; Eronides de Carvalho, 1929; e Benjamin Abrahão Botto, em 1936. O último

iria além dos demais, conferindo gesto e movimento ao cangaço, deixando para trás a velha posição de sentido, inteiriçada, e chegando ao instantâneo. Não satisfeito com a imagem de todo modo estática da fotografia, bate mão de câmera cinematográfica moderna, uma Ica de 35mm, da Zeiss, e filma o bando comendo à sombra rala de uma quixabeira, dançando ao som de gaita de beiço, rezando o Ofício de Nossa Senhora – todos de joelhos e descobertos –, ensaiando passos da coreografia guerreira habitual, risonhos, nutridos, ornamentados, o chefe recebendo o carinho de Maria Bonita, ao se perfumar, ao ler a revista nacional Noite Ilustrada, ao tomar seu brandy de fim de tarde, a mostrar as cartucheiras cheias de moedas de ouro, os bornais caprichosamente bordados com flores. Honesto, Benjamin não deixa de mostrar o mosquetão e o punhal de quatro palmos nas mãos implacáveis do dono. Para que ninguém pensasse estar diante de cena de recreio em estação d’águas européia. Lampião não somente se presta a tudo para mostrar ao mundo o sucesso a que chegara na vida de sua escolha: num assomo de comunicação, fala para a câmera demoradamente,

Coleção dos longos punhais usados pelos cangaceiros

Acervo Frederico Pernambucano de Mello

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mesmo sabendo tratar-se de filme mudo. Tange o patético. E abre para nós o desafio da leitura labial. Encerrado o trabalho, escreve carta de autenticação em favor de Benjamin, que a faz publicar em fac-simile no Diario de Pernambuco de 18 de fevereiro de 1937. Do sírio recebe – contrapartida valiosa em circunstância de falsificação de correspondência – grande quantidade de cartões-de-visita e postais com a própria foto no anverso, fumando, cachorro ao pé, debaixo do chapéu de couro. Quantos brasileiros ostentariam esse requinte em 1936? Com jornalistas, a solicitude não podia ser a mesma: “São umas pestes pra aumentarem as coisas”. Mesmo assim, assinalam-se duas entrevistas dignas do nome concedidas no Juazeiro, Ceará; em 1926 e em Tucano, Bahia, 1929, transcritas na imprensa diária das duas capitais e logo espalhadas por todo o Brasil. É difícil imaginar alguém que sangra a punhal sete soldados no meio de uma tarde qualquer de

1929, pintando de vermelho o pátio da delegacia de Queimadas, Bahia, para entregar-se ao mais animado forró no salão da Prefeitura na hora seguinte, os cabras rodopiando com as damas da comunidade, e que à noite, no acampamento, luz de fifó, usa a quicé para cortar na vaqueta alvíssima uma estrela de oito pontas que costura, daí a pouco, na aba do chapéu de recruta, a sovela furando o couro num tempo sem relógio. Mas ele existiu. E encarnava o paradoxo. Foi o mais brutal cangaceiro que se possa imaginar, em quem a solução violenta era a primeira que se insinuava ante conflito ou simples futrica de coiteiro, mas se mostrava calmo e bem educado no trato com as pessoas, caindo na confiança de quase todos os padres e chefes políticos sertanejos. Costurava e bordava de maneira exímia, no pano e em couro, na máquina Singer de mão, depois de rabiscar o molde em papel, incentivando seus rapazes a fazerem o mesmo. Um critério de subida na hierarquia mole do bando. E uma higiene mental intui-

tiva, pode-se concluir. Falava baixo, mas era obedecido cegamente. Ria pouco, mas gostava muito de se divertir. Da dança – pé de valsa notório – e do jogo do 31 a dinheiro. Fumava e bebia moderadamente. Escrevia com eficácia, humor e um grão de ironia. Capaz de produzir o primeiro desenho de sua história de vida, através de relatos incansáveis a auxiliares e coiteiros – desde os anos verdes de vaqueiro, amansador de burro brabo e tropeiro, ofícios duros, o segundo considerado, a bem dizer, mortal – e de revolucionar a funcionalidade e a estética dos equipamentos de que se serviam os cangaceiros, redesenhando-os e reestilizando-os com talento inegável. É ver as fotos de antes de sua chegada e da fase em que atuou. O longo par de décadas que Leonardo Mota reconheceu em livro – de 1930 ter sido o “tempo de Lampião”. O tempo de uma requintada saga nordestina que foi capaz de nos legar a própria marca da região: a meia-lua com estrela. E que se apagou há 70 anos, sem perder a chama.

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Nelson Xavier e Tânia Alves em cena da minissérie Lampião e Maria Bonita

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ESPECIAL

A imprensa e o marqueteiro do cangaço Utilizando-se da ambigüidade da imprensa no tratamento simultaneamente reprovador e enaltecedor ao cangaço, Lampião reforçava sua imagem em estratégicas entrevistas Homero Fonseca

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xímio manipulador de sua própria imagem, Lampião, além de se deixar fotografar e filmar, concedeu algumas estratégicas entrevistas à imprensa, nas quais revela um aguçado senso de marketing pessoal. Ora justificando-se como vingador, ora assumindo tratar-se de um “negócio”, construiu um discurso conveniente (e convincente) para si próprio, com cumplicidade de uma mídia que, para disfarçar, não se cansava de qualificá-lo de “bandido sanguinário”. Entretanto, apesar dos adjetivos violentos, ele sabia que a imprensa era essencial para a construção do mito e sabia usá-la com destreza, no conhecido “toma-lá-dá-cá” da mídia com suas fontes. Durante sua visita ao padre Cícero Romão Batista, em Juazeiro do Norte, quando foi agraciado com a patente de “capitão” para enfrentar as tropas da Coluna Prestes, entre 4 e 7 de julho de 1926, deu célebre entrevista ao médico Otacílio Macedo, publicada em seguida no jornal O Ceará. A conversa inicia-se com o esclarecedor diálogo: – Que idade tem? – Vinte e sete anos. – Há quanto tempo está nessa vida? – Há nove anos, desde 1917, quando me ajuntei ao grupo do Senhor Pereira. – Não pretende abandonar a profissão? – Se o senhor estiver em um negócio e for se

As artes visuais consolidaram a imagem mítica do cangaceiro (pintura de Jool, 1974)

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Reprodução

dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo? Pois é exatamente o meu caso. Porque vou me dando bem com esse “negócio”, ainda não pensei em abandoná-lo. – Em todo caso, espera passar a vida toda nesse “negócio”? – Não sei... talvez... preciso porém “trabalhar” ainda uns três anos. Tenho alguns “amigos” que quero visitá-los, o que ainda não fiz, esperando uma oportunidade. – E depois, que profissão adotará? – Talvez a de negociante. – Não se comove a extorquir dinheiro e a “variar” propriedades alheias? – Oh! Mas eu nunca fiz isto. Quando preciso de algum dinheiro, mando pedir amigavelmente a alguns camaradas. Fica patente a observação do pesquisador Frederico Pernambucano sobre o cangaço como meio de vida, postura ainda mais explicitada em trechos seguintes da entrevista. Reparem como o chefe fala do seu bando como nada mais nada menos que uma empresa capitalista: – Consigo meios para manter meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando à força aos usuários que miseravelmente se negam de prestar-me auxílio. – Tudo quanto tenho adquirido na minha visa de bandoleiro mal tem chegado para as vultuosas despesas do meu pessoal – aquisição de armas, convindo notar que muito tenho gasto também, com a distribuição de esmolas aos necessitados. – Até agora não desejei abandonar a vida das armas, com a qual já me acostumei e sinto-me bem. Mesmo que assim não sucedesse, não poderia deixá-la, porque os inimigos não se esquecem de mim, e por isso eu não posso e nem devo deixá-los tranqüilos. Poderia retirar-me para um lugar longínquo, mas julgo que seria uma covardia, e não quero nunca passar por um covarde. JUL 2008 • Continente x

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ESPECIAL Imagens: Reprodução

– Desejava andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não o organizo conforme o meu desejo é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a manutenção do grupo – roupa, alimentação, etc. Estes que me acompanham é de 49 homens, todos bem armados e municiados, e muito me custa sustentá-los como sustento. O meu grupo nunca foi muito reduzido, tem variado sempre de 15 a 50 homens. Mas logo o cangaceiro passa, competentemente para a auto-justificativa, em que o argumento da legitimidade da justiça pelas próprias mãos é complementado com notável franqueza: – Em Águas Brancas, foi meu pai, José Ferreira, barbaramente assassinado pelos Nogueira e Saturnino, no ano de 1917. Não confiando na ação da justiça pública, porque os assassinos contavam com a escandalosa proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu progenitor. Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar, e efetivamente consegui dizimá-las consideravelmente.

Xilogravuras de Dila, de Caruaru (Rastos Rastos das histórias, s/d). Mais acima: a notícia da morte de Lampião ocupou toda a 1ª página do Diario de Pernambuco, 29/07/1938

Sobre a complexa teia de relacionamentos entre o cangaço, as elites econômicas e o poder instituído, Lampião revela, deliberadamente, certas relações perigosas, ao mesmo tempo em que se jacta de uma proteção que vai além da mística do “corpo fechado”: – Não tenho tido propriamente protetores. A família Pereira, de Pajeú, é que tem me protegido, mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos, que me facilitam tudo e me consideram eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos.

Num jogo de diplomacia política, define-se em relação às “classes” sociais do seu tempo: – Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de preferência as classes conservadoras – agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem os homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns já me têm salvo de grandes perigos. Acato os juízes, porque são homens da lei e não atiram em ninguém. Só uma classe detesto: é a dos soldados, que são meus constantes perseguidores. Reco-

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ra?

Matéria de jornal recifense republicada por O Povo, do Ceará (1928): relações perigosas

nheço que muitas vezes eles me perseguem porque são sujeitos, e é justamente por isso que ainda poupo alguns quando os encontro fora da luta. Finalmente, não perde a oportunidade para reforçar a sua imagem de estrategista, utilizando um discurso vivamente expressionista, a confiar na fidelidade da transcrição do entrevistador: – Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando como louco e correndo rápido como o vento quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito vigilante, e confio sempre desconfiando, de modo que dificilmente me pegarão de corpo aberto. Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda parte, e estou sempre avisado do movimento das forças. Tenho também excelente serviço de espionagem, dispendioso mas utilíssimo. Pouco menos de dois anos depois, em junho de 1928, jornais do Recife (A Noite) e de Fortaleza (O Povo, reproduzindo matéria do primeiro), estampam nova entrevista do cangaceiro, feita pelo repórter José Alves Feitosa.

Ao estilo do jornalismo da época, a entrevista, bem mais curta que a anterior, é precedida de chamadas que hoje seriam talvez classificadas como sensacionalistas, na postura tão comum da grande imprensa – acusar formalmente e enaltecer implicitamente – quando trata de forasda-lei famosos: “A palavra de Lampião – O monarca selvagem dos sertões” “Não sou cangaceiro por maldade minha, mas pela maldade dos outros”, diz, em impressionante entrevista a A Noite, o jaguar bravio do Nordeste” O texto identifica claramente o local da conversa – engenho de rapadura Boa Vista, a cinco léguas da cidade de Missão Velha, de propriedade de um certo sr. Rosendo, de quem Lampião “aperta as mãos hospitaleiras” ao se despedir – e ressalta o à vontade do cangaceiro, que assoma à porta, desarmado, à chegada do repórter. No trecho inicial, o hábil articulador da fala faz charme com o fato de ser uma celebridade e arrota boas relações... na própria polícia:

– É o capitão Virgulino Ferrei-

– Às suas ordens. – Já o conhecia através de fotografias. – Ah! Foram esses retratos, de que o senhor fala, que me inutilizaram. Se não tivesse deixado fotografar-me seria desconhecido e já poderia ter desaparecido, sumindo-me no mundo, indo para longe, ganhar a vida tranqüilamente, sem atribulação dessa angústia constante de ser perseguido. – E o senhor é perseguido? Dizem na capital que a polícia... – ... não persegue porque sou amigo dos oficiais. É verdade, mas ainda, assim, as traições, o senhor compreende... Aproveitando a deixa do jornalista, Lampião centra seu discurso na justificativa ética da sua opção de vida, numa linguagem folhetinesca, de forte apelo emocional: – Disse-me, há pouco, se pudesse abandonaria o cangaço... – Sim. Porque eu não vivo a vida do cangaço por maldade minha. É pela maldade dos outros. (...) Tenho que vingar a morte dos meus pais. Era meninote quando os mataram. Bebi o sangue que jorrava do peito de minha mãe e, beijando-lhe a boca fria e morta, jurei vinga-la. É por isso que, de rifle às costas, cruzando as estradas do Sertão, deixo um rastro sangrento, na procura dos assassinos dos meus pais. O texto jornalístico se encerra, emblematicamente, evitando julgamentos de forma a, consciente ou inconscientemente, alimentar o mito: “Diante da narrativa da vida de Lampião, cheia de episódios romanescos e impressionantes como aquele em que há a cena comovente e soberba do juramento sobre a boca hirta de uma mãe, quem ousará atirar a primeira pedra sobre o quadrilheiro imortalizado nas crônicas sangrentas do Sertão?” JUL 2008 • Continente x

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CINEMA

Affonso Beato O diretor de fotografia brasileiro de maior projeção no mundo equilibra-se entre o local e o universal, ainda acreditando nas tecnologias tradicionais Kleber Mendonça Filho 56 x Continente • JUL 2008

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Fotos: Divulgação

Beato saiu do Brasil na ditadura e ganhou cidadania americana

Uma câmera na mão e os pés no mundo

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contribuição brasileira para o mercado mundial de imagens cinematográficas existe não apenas no cinema nacional que ganha exposição lá fora – o Urso de Ouro para Tropa de elite no último Festival de Berlim, as estréias em Cannes de Linha de passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles, A festa da menina morta, de Matheus Nachtergaele, exemplos recentes –, mas também via trabalho de composição e luz de profissionais brasileiros da câmera. Entre esses nomes, o claro destaque chama-se Affonso Beato, carioca que desde 1970 vive entre o mundo e o Brasil, com base nos Estados Unidos. Responsáveis pelas imagens dos filmes acima citados – Lula Carvalho fotografou Tropa de elite e A festa da menina morta, Mauro Pinheiro Jr. Linha de passe, César Charlone Ensaio sobre a cegueira –, eles constroem carreiras de grande destaque, e deverão alcançar o tipo de perfil internacional administrado por Beato ao longo dos últimos 40 anos, particularmente num mundo onde o mercado de trabalho mostra-se cada vez mais globalizado. Beato, por exemplo, assina seu trabalho com as siglas das associações de cinematografia brasileiras (que ajudou a fundar) e americana, a ABC e a ASC.

Além de extensas contribuições para o cinema brasileiro, Beato foi também colaborador de cineastas como o americano Jim McBride (O acerto de contas), o espanhol Pedro Almodóvar (Tudo sobre minha mãe) e o inglês Stephen Frears (A rainha), depois de ter começado em grande estilo com ninguém menos do que Glauber Rocha em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1968), filme que acaba de ser relançado em cópia restaurada. Antes de Glauber, foi um jovem colaborador de Júlio Bressane em Cara a cara (1964) e de Antônio Carlos da Fontoura em Copacabana me engana (1967). A repercussão de O dragão da maldade, conhecido internacionalmente como Antônio das Mortes (ganhou o prêmio do Júri no Festival de Cannes), certamente alavancou o trabalho de Beato mundialmente, que na época uniu a instabilidade política no Brasil às oportunidades profissionais que surgiam no exterior. De fato, obteve cidadania americana em 1971. Aos 67 anos, desempenha a função cinematográfica nobre de diretor de fotografia, tradicionalmente o braço direito de um cineasta no sentido de traduzir a linguagem visual de filmes. Impressiona sua parceria tripla com Almodóvar – além de Tudo sobre minha mãe (1999), fez A flor do meu segredo (1995)

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CINEMA

Em A rainha, de Stephen Frears, Beato faz trabalho primoroso de fotografia

e Carne trêmula (1998) –, eloqüente tradutor de uma luz quente que pode ser vista como marca registrada do autor espanhol. Almodóvar uma vez disse que, depois de Kika (1993), começou a achar que fotógrafos espanhóis estavam tentando emular a imagem do norte da Europa, imagens frias. A escolha de Beato para A flor do meu segredo colocou Almodóvar na busca por “uma imagem ibérica, algo mais Goya”, busca que o levou a mais dois filmes cujas imagens são expressivas o suficiente

em termos de cores para marcar fortemente um estilo que associamos a Almodóvar e a um sentido de Espanha. A segunda colaboração de Beato com Almodóvar marcou a estréia do diretor espanhol no formato largo de composição cinematográfica, o scope, aspecto que permanece nos seus filmes subseqüentes (Fale com ela, A má educação e Volver). Os três volumes da filmografia Almodóvar cinematografados por Beato só perdem em número de par-

cerias apenas para o trabalho com Jim McBride, que Beato considera “um irmão” (ambos têm a mesma idade). Essa relação teve início em 1974, quando trabalharam juntos em Hot Times, teve continuidade em filmes de estúdio nos anos 80 – O acerto de contas (The Big Easy, 1987), com Dennis Quaid e Ellen Barkin, e uma outra colaboração McBride/Quaid/Beato em A fera do rock (Great Balls of Fire, 1990). Desde então, foram mais sete filmes, de produções para as salas de cinema e mercado televisivo.

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Fotos: Divulgação

Curiosamente, Beato é capaz de equilibrar essa carreira internacional com contribuições para o cinema brasileiro. Nos últimos 10 anos, fez Orfeu (1999) e Deus é brasileiro (2003) com Cacá Diegues, juntou os dois lados ao fotografar projetos de realizadores brasileiros para estúdios hollywoodianos como Voando Alto (View From the Top, 2001), de Bruno Barreto, e Água Negra (Dark Water), de Walter Salles.

Tudo sobre minha mãe, de Almodóvar, tem o toque de Beato

O dragão..., de Glauber, deu visibilidade internacional ao fotógrafo

Água negra, de Walter Salles, teve fotografia de Affonso Beato

Tendo acabado de rodar o drama romântico Nights in Rodanthe, com Richard Gere (aguarda lançamento), o último trabalho de Beato foi a adaptação para o cinema do clássico literário de Gabriel Garcia Márquez, O amor em tempos de cólera (Love in the Time of Cholera), produção internacional que uniu o espanhol Javier Bardem e a brasileira Fernanda Montenegro, dirigida pelo inglês Mike Newell, lançado no final do ano passado. Essa versatilidade ganha sensação de apaixonado equilíbrio toda vez que Beato ouve questionamentos sobre a sua relação com a mais radical revolução já trazida para a imagem de cinema, revolução que acontece neste momento: a utilização de plataformas digitais que prometem aposentar a película 35mm. Numa entrevista recente, Beato disse que, embora já seja usuário de tecnologias digitais ao longo do processo de fotografar e trabalhar a imagem de cinema (via, principalmente, a chamada “intermediação digital”), “o rolo de filme é o melhor e mais potente software já criado, e que vem sendo atualizado há mais de 100 anos. E a câmera é o hardware que vem sendo atualizado há cerca de 150 anos”. Ele acredita que o digital veio para ficar, mas que há ainda muito trabalho a ser feito no sentido de imagem na captação. JUL 2008 • Continente x

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O canto claro de Isaar

Beto Figuerôa/Divulgação

MÚSICA

Depois de trabalhar com a Comadre Fulozinha, Antônio Carlos Nóbrega e DJ Dolores, Isaar França lança seu primeiro disco solo José Teles

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em São Paulo, já tinha disco, era bem conhecido. Ali conheci quase todos. Não fosse assim, seria difícil, porque eu morava em Jardim São Paulo, e quase não saía à noite”.

Porém, até Isaar mergulhar fundo na música, houve alguns obstáculos. O principal foi a família, que gostava de música, mas não de artista em casa. Preferiam que a menina terminasse o curso de Rádio e TV, que aparentava ser muito mais seguro do que a carreira de cantora. Até estágio ela já havia conseguido. E logo dois: um no Hospital das Clínicas, e o outro na TV Universitária: “Estagiei na TVU, num programa chamado Plural, de Kethuly Góes, um negócio que foi também muito importante em minha vida. Era um programa que falava de cultura em geral, eu fiquei na parte de música, então conheci muita gente, a turma da Mestre Ambrósio, Chico Science. Este pessoal já estava morando

A brincadeira de São João desaguou, em 1997, no Comadre Fulozinha, a primeira banda feminina do movimento mangue, que logo, como era comum naqueles anos, recebeu convite para gravar um disco: “O Recife naquela época estava supermovimentado. Posso dizer que dei sorte, porque mal começou o Comadre Fulozinha, recebi um convite de Nóbrega para participar de uma turnê dele. Foi uma experiência ótima, porque até então eu só havia tocado com a Comadre Fulozinha, nunca tive outra banda antes, nem de garagem. De repente, a gente está em um meio bem profissional, conhecendo outras cidades, outros países, e músicos de outros gêneros. Quem tocava com Nóbrega neste tempo era Spok e alguns músicos que depois formariam a orquestra dele”, rememora Isaar, que, para continuar a carreira, decidiu sair de casa e da universidade. Apesar da fala mansa e aparente timidez, Isaar nunca hesitou diante de decisões, por mais difíceis que fossem – sair da Comadre Fulozinha, por exemplo. Uma decisão tomada em 2004, para surpresa de muita gente, já que o timbre de sua voz era uma das marcas registradas do grupo: “Eu já estava com Dolores (DJ Dolores) há um bom tempo, e a gente já havia feito composições juntos. A Comadre Fulozinha não estava fazendo muitos shows, e eu tinha mais tempo para Dolores. Comecei a participar da banda dele, quando foi criada a Aparelhagem; não havia mais a Santa Massa, o trabalho dele ficou muito presente no que eu fazia. Tive que optar, e optei por sair da banda. Comadre Fulozinha foi uma escola, tive oportunidade de participar de trabalhos que foram além da música, como trabalhar com Zé

primeiro show que Isaar França viu na vida foi do Quinteto Violado, no Parque 13 de maio. Ela estava com 10 anos, e foi levada pelo pai. A banda a impressionou, mas ela nem sonhava que um dia ganharia a vida como cantora: “Na verdade, eu sempre gostei de cantar, e na minha casa se ouvia música o tempo inteiro, sei muita coisa de MPB por isto”, diz ela, que não tem antecedentes de artistas na família, embora o avô fosse chegado a uma seresta. A carreira de cantora começou meio por acaso, sem premeditação.Quando começou a brincar no maracatu Piaba de Ouro, no bloco Boizinho Alinhado, em meados dos anos 90, Isaar conheceu vários músicos que participavam do bloco, que saía nas quartas-feiras de Cinza, na rua da Boa Hora, em Olinda. Entre estas, uma que teria grande importância na sua vida uns poucos anos depois –Karina Buhr: “O embrião da Comadre Fulozinha está nestas brincadeiras, tanto no boizinho, quanto nas festas de São João que aconteciam em Casa Forte, porque Karina e Renata (Mattar) foram morar no Poço da Panela naquela época”.

Celso, em São Paulo, nas peças Os bacantes, e Os sertões”. Fora da banda, ela teve mais oportunidade de mostrar a voz, uma das mais peculiares da MPB, um pouco aflautada, mas que nas canções mais lentas assemelha-se um lamento. Suave, mas ao mesmo tempo de nítidas raízes africanas: “Com Dolores eu tive mais liberdade como cantora, foi um aprendizado. Acho que no Azul-claro (seu primeiro disco solo) fiquei mais segura, e ao mesmo tempo com um pouco de medo, talvez porque tenha demorado muito a me lançar como cantora”, comenta. Isaar somente lançou seu disco solo em 2006, uma edição independente que logo estaria esgotada (este ano ela relançou o álbum com uma faixa extra. Com a boa aceitação do CD, viu-se obrigada a tomar mais uma decisão drástica – parar de cantar no grupo de DJ Dolores. E às vésperas de mais uma turnê internacional, em alguns dos palcos mais badalados do verão europeu, diz: “Acabei de chegar de São Paulo, onde fiz o projeto Prata da Casa do SESC Pompéia, e surgiram outras propostas. Foi uma viagem muito produtiva, porque além dos contatos cantei para um público diferente. Dolores já havia me convidado para a turnê de verão, que sempre é muito legal, você participa de festivais, como o Womad, e está ali com Peter Gabriel, David Byrne, mas o meu objetivo é trabalhar o Azul-claro. Conversamos, eu e Dolores, e achei melhor não participar da turnê, até porque nos damos muito bem, e eu não posso garantir que vou estar disponível quando ele precisar de mim. Mas existe a possibilidade de no futuro a gente gravar um disco juntos”. Azul Claro Isaar Independente 14,90 reais

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Música para se comer

Rafael Gomes

MÚSICA

Gravação do DVD Samba de latada, a ser lançado somente no ano que vem, acrescenta ingredientes ainda mais saborosos ao estupendo disco de Paulo Moura e Josildo Sá Homero Fonseca

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uando o maestro, clarinetista e arranjador Paulo Moura lançou seu primeiro disco – o LP Sweet Sax, pela RCA – , em 1958, Josildo Sá não era nem nascido. Cinqüenta anos depois, o paulista de São José do Rio Preto, mas formado musicalmente no Rio, e o pernambucano da cidade de Tacaratu, antigo aldeamento de índios da tribo Pancararu, no Sertão do São Francisco, encontraram-se no Teatro de Santa Isabel, no Recife, para gravar o DVD Samba de latada, dando seqüência ao projeto iniciado no ano passado com o lançamento do CD de mesmo nome. Aparentemente, o encontro teria toda a possibilidade de ser classificado como improvável. Paulo Moura, verdadeiro monumento da música instrumental brasileira, com dezenas de discos gravados e um currículo em que consta sólida formação musical erudita, começou a carreira, numa família de músicos, ainda menino, tocando piano. Clarinetista concursado da orquestra do Teatro Municipal do Rio, já se apresentou com os maestros Eliazar de Carvalho, Karabtchevsky, Stravinsky, Leonard Bernstein. Josildo, criado na Fazenda Beldroega, da família, “amansan-

do cavalo, tangendo cabra, dormindo no mato com a sela como travesseiro, campeando e ouvindo aboio dos vaqueiros”, é um autodidata que traz forró nas veias e apenas tardiamente abraçou a carreira de músico. Antes de Latada, gravara dois discos de forró: Virado num paletó véio (1999) e Coreto (2003). Todos são (merecidos) sucessos. O encontro dessas biografias díspares, entretanto, resultou num disco (e agora DVD, a ser lançado em 2009) que é um dos mais harmônicos, instigantes, criativos e saborosos produtos da música brasileira atual. Para não ficar só nas discrepâncias, teoricamente fator impeditivo, ressaltem-se os pontos em comuns, contributivos para o notável resultado do projeto conjunto. Moura sempre cultivou a música de dança, a gafieira – onde o samba, o choro e o samba-canção imperam. Josildo é um forrozeiro intuitivamente moderno, aberto a influências de todo tipo. O samba é o ponto de união das duas trajetórias. Como explica o crítico José Teles, no encarte do disco, antigamente, no Nordeste, forró e samba denominavam a mesma coisa: a festa dançante. Quando

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Josildo Sá e Paulo Moura: química musical perfeita

o samba, a partir do Rio, nas primeiras décadas do século passado, tornou-se um (o) gênero musical nacional, aqui foi adaptado para sanfona, triângulo, zabumba e instrumentos de sopro. Jackson do Pandeiro e seus parceiros são os expoentes desse subgênero. Josildo é fã dele, como de Gonzagão e de Chico Science. Paulo Moura também os conhecia, claro, e admirava. E quando Josildo ligou para ele, que conhecera rapidamente ciceroneando-o numa das viagens ao Recife, convidando o mestre para uma participação especial (“Ao telefone, cantei uma faixa, fazendo percussão no peito”), recebeu, surpreso e feliz, a contraproposta de uma parceria. E nasceu Samba de latada, o segundo termo explicado ainda por Teles: “Latada ou ‘puxada’ era uma extensão da casa, coberta por folhas de flandres, onde aconteciam os forrós ou sambas.” Paulo Moura, que sempre gostou do forró (tem seis músicas nordestinas no seu recente disco Leopoldina, faz questão de assinalar), considera o trabalho uma continuidade do que vinha fazendo e gosta de fazer – música de dança, em bailes e gafieiras – que, por outro lado, precisava de renovação. Ele também conhecia o casamento do clarinete com o acordeom: ainda nos anos 50, escutara discos do quarteto do americano Art van Damme e, depois, no próprio Rio, com o conjunto liderado por Rudy Wharton, que tocava no Copacabana Palace, e tinham essa formação. En passant, o maestro levanta uma hipótese curiosa, a ser aprofundada por musicólogos e outros estudiosos: “O pessoal sobrevivente de Canudos veio em boa parte para o Rio. Não é absurdo achar que, instalado nos morros, de alguma forma esse pessoal influenciou o samba.” (Cabe lembrar que

o próprio termo favela refere-se a um morro nas proximidades do arraial de Canudos, onde abundava a planta espinhosa de mesmo nome, e foi transplantado para o Rio por ex-combatentes da guerra retratada por Euclides da Cunha). Isto posto, ambos arregaçaram as mangas, com a participação fundamental de Gennaro, na sanfona, e o apoio de guitarra, baixo, bateria, zabumba, cavaquinho, percussão e vocais. As gravações incluem composições do próprio Josildo e de seu parceiro Anchieta Dali, de Gonzaga e Zé Dantas (Forró de Mané Vito), Caçote do Rojão, Cecéu (a impagável Pra virar lobisomem), Oswaldo Oliveira, Apolônio da Quixabinha e do próprio Paulo Moura. Há até uma parceria feita no decorrer das gravações entre Paulo Moura e Gennaro: “Eu fiz um fraseado no clarinete, ele pegou a deixa, desenvolveu no acordeom, e aí fomos dialogando até o fim. Quando Josildo e Anchieta ouviram, disseram: ‘Essa tem que entrar no disco’.” O balanço do conjunto, a interpretação vital de Josildo, o fraseado estupendo de Moura no clarinete garantem um dos melhores discos dos últimos tempos num mercado tão pobre de boas iguarias. Para a gravação do DVD, dia 26 de abril passado, contaram ainda com o toque importante do cenógrafo Leopoldo Nóbrega, que Josildo fez questão de levar até Tacaratu, para conhecer “a cor do chão, as serras, as redes, o artesanato, as cores locais, para tecer o cenário.” Isso sinaliza para o nível de capricho do novo trabalho. E, por último, mas não menos importante, tem o acréscimo da esfuziante presença de palco do forrozeiro de Tacaratu. Esses novos ingredientes acrescentam ainda mais sabor a essa música que se ouve como quem saboreia um acepipe. É esperar para ver. JUL 2008 • Continente x

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MÚSICA

Nohely Oliveros/Divulgação

Orquestras-modelo para o mundo

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Sistema de sinfônicas jovens da Venezuela, que projetou o maestro de maior ascensão nas últimas décadas, proporciona educação musical para mais de 300 mil crianças e adolescentes Carlos Eduardo Amaral

Vestidos de jaquetas com as cores do país, os “Tricolores” propagam o sucesso de um projeto inédito, existente há 33 anos

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ma cena impensável para os apreciadores da música sinfônica está se tornando cada vez mais comum em teatros europeus e de toda a América, protagonizada por adolescentes de nosso país vizinho rico em petróleo: tocar obras de compositores clássicos baseadas em ritmos nacionais e regionais, dançando pelo palco e girando os instrumentos no ar. Vestidos de jaquetas com as cores do país, os “Tricolores” propagam o sucesso de um projeto visionário e inédito, existente há 33 anos, cuja vitrine é a gigantesca e vibrante Orquestra Sinfônica Nacional da Juventude Venezuelana Simón Bolívar (OSNJVSB). A orquestra que fez Plácido Domingo chorar e John Williams vestir a jaqueta tricolor para reger o tema principal de Guerra nas estrelas nasceu em 1975 junto com a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar (OSSB), hoje uma das mais importantes da América Hispânica. Ambas foram idéia de um economista especializado no setor petrolífero que também se formou em música, José Antonio Abreu. O ex-deputado e ex-ministro de cultura concebeu – sem estar exercendo mandatos – uma fundação estatal no intuito de selecionar professores e obter financiamentos para a então Orquestra Nacional Juvenil da Venezuela e outra orquestra jovem, a Juan José Landaeta. O projeto, iniciado em 1979, expandiu-se pelo país e adotou o nome atual em 1996: Fundação do Estado para o Sistema Nacional das Orquestras Juvenis e Infantis da Venezuela, ou simplesmente Fesnojiv, mas aclamado em nível mundial como “El Sistema”. O referendo de sete governos sucessivos permitiu à Fesnojiv resistir às instabilidades políticas e atender mais de 300 mil crianças e adolescentes de baixa renda. A estrutura do Sistema, que custa 29 milhões de dólares anuais, emprega cerca de 15 mil professores e mantém 150 orquestras juvenis e 70 infantis, fora os corais e grupos de câmara. No ano passado, foi inaugurada a nova sede da Fesnojiv, em Caracas, o Centro de Ação Social pela Música, de quase de quase 15 mil m2. As orquestras de base do Sistema se dividem em três categorias etárias (pré-escolares, infantis e juvenis) e se apresentam semanalmente. Elas selecionam os estudantes mais avançados para as orquestras estaduais e estas para a OSNJVSB e para a Orquestra Sinfônica Nacional Infantil e Juvenil da Venezuela (OSNIJV). A OSINJV fez dois concertos em Olinda, em 2000: no Centro de Convenções e na praça Simón Bolívar, onde fica a estátua do Libertador da América que sempre tem a espada furtada. JUL 2008 • Continente x

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Mathias Bothor/Divulgação

O Sistema projetou Gustavo Dudamel, que nos últimos anos subiu no estrado das principais orquestras do mundo

e cegas, no da editora de partituras em braille. Por tudo isso, o Sistema recebeu 10 distinções internacionais, o título de Embaixador Nacional da Boa Vontade da Unicef de 2004 a 2006 e desencadeou outras redes de educação musical no exterior, tal qual a Orquestra Jovem das Américas (OJA), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Mark Churchill, vice-

Alfredo Rugeles regendo a Orquestra Sinfônica Simon Bolívar

Divulgação

O Sistema não ensina música, ele a utiliza como princípio, meio e fim de reabilitação social. Assim, a Fesnojiv vai além: cuida de crianças abandonadas tuteladas pelo Estado, capacita luthiers em vista de uma futura rede nacional de microempresas fabricantes de instrumentos e investe em programas especiais para crianças surdas-mudas, autistas, portadoras de Síndrome de Down, no caso do Coro de Mãos Brancas,

presidente da OJA, aprendeu português e defendeu tese sobre a obra para violoncelo de Villa-Lobos. Ele virá em breve a Pernambuco a convite do maestro Rafael Garcia, que deseja criar aqui a primeira versão brasileira do projeto bolivariano. José Antonio Abreu ganho, em 2001, na mesma ocasião em que Leonardo Boff, o Right Livelihood Award, conhecido como o Nobel Alternativo. Atualmente, questiona-se quem sucederá Abreu à frente da Fesnojiv, mas a consolidação do Sistema após tantas mudanças de governo deverá impedir um declínio semelhante ao de outro projeto latino-americano de envergadura muito maior: o canto orfeônico, que se assentava no apoio varguista a Villa-Lobos. Vale ressaltar, ainda, que os corais orfeônicos, compostos por milhares de vozes, não legaram nenhum nome para a posteridade, enquanto o Sistema projetou Gustavo Dudamel, o jovem astro que nos últimos três anos subiu no estrado

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das principais orquestras do mundo e trouxe Claudio Abbado e Sir Simon Rattle para reger a OSNJVSB. Para não incorrer em hipérbole, eis algumas orquestras que aclamaram Dudamel: as Sinfônicas de Chicago, Boston, Birmingham e Academia de Santa Cecília de Roma, e as Filarmônicas de Israel, Berlim, Viena, Teatro La Scala de Milão, Nova York e Los Angeles. Esta última lhe confiará o posto de regente titular em 2009. Dividindo o tempo entre a OSNJVSB e a Sinfônica de Gotemburgo, na Suécia, o maestro que virou artis-

ta exclusivo da Deutsche Grammophon e da Askonas Holt – a agência promotora de Angela Gheorghiu, Abbado, Zubin Mehta e Yo-Yo Ma – teve a honra de conduzir o concerto de aniversário do Papa Bento XVI em 2007, disponível em DVD. O mais novo CD da OSNJVSB, Fiesta, reúne as obras que estão conquistando as platéias de concerto pelo mundo, inclusive o Danzón n° 2 de Arturo Márquez (1950) e o Mambo do musical/filme West Side Story, de Leonard Bernstein (1918-1990). Fora Dudamel, o Sistema forjou o mais novo músico a entrar

na Filarmônica de Berlim, Edicson Ruíz, primeiro latino-americano do quadro da orquestra, derrubou 95 concorrentes aos 17 anos, em 2002, e conquistou a simpatia do grupo dirigido por Simon Rattle mesmo sem falar alemão direito. O contrabaixista certa vez resumiu a importância das orquestras jovens nas periferias venezuelanas: “Se você vem de um bairro onde vê loucura, delinqüência, corrupção, miséria, pobreza e lhe dão música, sua mentalidade muda”. Histórias como as de Ruíz e Dudamel nos lembram de outra, aqui no Recife...

O rumo dos jovens concertistas

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Ricardo Stuckert/Divulgação

o Quartel do Cabanga, em 25 de julho de 2006, Gilson Cornélio Filho encantava os presentes à inauguração da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC) do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Cussy de Almeida, maestro do Grupo Orange e coordenador musical da Associação, explicou que o estava preparando para estudar no exterior. Descoberto no projeto Alto do Céu do Conservatório Pernambucano de Música e introduzido ao violino pelo professor Ademar Rocha, Gilson tocou uma dificílima paráfrase escrita por Cussy sobre Carinhoso, de Pixinguinha. O violinista, um dos monitores da ABCC, simbolizava naquele momento os alunos prestes a serem afastados da violência cotidiana do Coque e de Joana Bezerra por intermédio da música. As crianças ainda estão bem

aquém do patamar de uma orquestra infantil venezuelana, mas salvas de perder o gosto pela vida. Adquiriram noções de português, matemática e educação doméstica e podem optar por violino, viola, violoncelo, bateria ou flauta doce. Duas delas, Júlio Carlos e Inaldo Nascimento, foram selecionadas recentemente para tocar no Theatro Municipal do Rio em abril, com jovens de projetos sociais do Brasil inteiro. A ABCC, que estendeu sua atuação à comunidade do Caiara, na Iputinga, pretende alcançar o Sertão e busca os aportes financeiros necessários para atender à demanda por bons instrumentistas de cordas no país; acontece que o respectivo mercado de trabalho clama por organização e empreendedorismo de músicos e produtores para se ampliar. Agora com 19 anos, Gilson Filho, órfão de pai, graças à violência urbana, comprou seu violino com a ajuda da mãe e se despediu de Cussy de Almeida. Ele seguiu o inevitável caminho de quem quer fazer carreira na música clássica pernambucana: ir embora do Estado – o promissor virtuose passou no último concurso de admissão da Sinfônica de Salvador. Que ele aprenda inglês e vá mais longe. As lições de alemão de Antonio Meneses ocuparam tanto tempo A Orquestra Meninos do Coque e Cussy de Almeida (sentado) com o presidente Lula quanto as de violoncelo.

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Do violão ao pianolon

Fotos: Rafael Gomes

MÚSICA

A saga de Paulo Sérgio, o primeiro luthier formado no Recife Thiago Lins

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m 1975, quando Paulo Sérgio tinha apenas 13 anos, pegou o violão que tinha ganho de uma tia, um Gianini Trovador, e abriu: queria saber como funcionava. “Abri, mas não consegui fechar daquela vez”, lembra, à sua maneira expansiva e tranqüila. O adolescente estava encantado com a engenharia do instrumento. Tinha descoberto que a força aplicada entre as cordas e o cavalete (suporte de onde saem as cordas) equivalia a 36 kg, uma discrepância, considerando a espessura milimétrica das cordas. Paulo não parou de mexer nos instrumentos. Fazia reparos em violões de amigos e de músicos do circuito de bares que tinha começado a freqüentar. Autodidata, montava violões “copiando aquele que quebrei aos 13 anos”. De fato, o jovem Paulo tinha habilidade para a luteria, mas sua vocação só ganharia contornos de ofício em 1987, aos 25 anos. Foi quando conseguiu uma bolsa no curso de luteria do Conservatório Pernambucano de Música (CPM), onde aprendeu teoria e aperfeiçoou a prática, tornando-se o primeiro luthier formado no Recife. Paulo teve aulas com o carioca Fernando Arantes Ferrão, que, por sua vez, tinha sido aluno de uma referência no ramo: Guido Pascoli, cujos violinos customizados valem até 1800 dólares, hoje em dia. Depois da profissionalização no CPM, Paulo decidiu recomeçar a vida. Tinha passado dois anos sem férias, num emprego que achava “um saco” (Paulo estudou Economia e trabalhava na tesouraria de uma concessionária de veículos). O futuro artesão não agüentava a sobrecarga de rotina comum. “Não queria passar o resto da vida num escritório, nem ter uma penca de filhos. Minha vida é nômade, apesar de nunca ter deixado o Recife. Na minha cabeça, viajei o mundo umas três vezes”, explica – ou tenta. Em 1989, o artesão passou a cuidar do acervo de instrumentos de cordas do CPM, que estava em expansão. Àquela altura, Paulo já tinha sua primeira criação. A “birra” se assemelhava a um banjo. Mas a caixa de ressonância da birra era uma cabaça (fruto da cabaceira, ainda pode ser usado como recipiente). Paulo explica que a birra não se tratava de uma preferência, mas, sim, do que ele pôde fazer naquele momento, com suas próprias e ainda poucas ferramentas. “Mas foi válido, por ter experimentado a caba68  Continente • JUL 2008

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Paulo Sérgio, em seu ateliê em Rio Doce, Olinda

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Arquivo CEPE

ça como caixa de ressonância. Até porque você não tem esse material na Europa, de onde a gente importa a padronização”, completa, levantando outra questão: “Como a gente pode tocar um instrumento concebido para um alemão de dois metros de altura?” Realizou seu segundo experimento em 1997. De novo utilizando a cabaça como caixa de ressonância, e já se valendo com mais propriedade das técnicas de luteria, fez uma viola de cabaça. A consistência porosa do fruto fez com que as 10 cordas da viola soassem macias, aveludadas. Bem diferente do timbre de uma viola nordestina, que é mais metálico. Em 2001, depois da birra e da viola de cabaça, “instrumentos conceituais”, Paulo fez uma rabeca “conceitual e temática”, como

gosta de frisar: é a homenagem do artesão ao Mestre Salustiano e aos cortadores de cana brincantes que na entressafra fazem o cavalo-marinho (variante do bumba-meu-boi). A rabeca de cana-da-índia (espécie parecida com o bambu) tinha três cordas, ao invés de quatro: pesquisando a história do instrumento, o luthier descobriu que, originalmente, a rabeca tinha uma corda a menos. Três cordas já propiciam um acorde perfeito, de três notas. Mas não foi o suficiente para agradar Mestre Salú. Num episódio curioso, quando este foi apresentado por Paulo à rabeca de cana-da-índia, não hesitou em pedir ao luthier uma rabeca de quatro cordas, afirmando que não era “aleijado”. Atendido o pedido, o rabequeiro tocaria satisfeito no Rock In Rio, com o instrumento que apelidou de “pau liso”. Pouco depois, os violoncelos e alaúdes que o artesão recebia para restaurar despertaram seu gosto pela vuella, instrumento de cinco cordas da Idade Média. Paulo acrescentou uma sexta corda à vuella, que assim ganhou afinação de vio-

lão, mas preservou a sua forma original: na Idade Média, os músicos tocavam sentados no chão, com as pernas cruzadas, posição para qual a vuella foi concebida. Paulo ainda fez um marimbau de cabaça e um “perimbau”. Tocado com baqueta, o marimbau consiste em duas caixas (cabaças, no caso) ligadas por duas cordas. As caixas são dispostas em cima de uma placa de madeira. Sobre a cabaça, matériaprima indispensável nos experimentos de Paulo, ele abre um parêntese: “No Brasil, falta madeira. A nata toda é exportada. E eu não derrubo uma árvore para fazer meus instrumentos. A cabaça é um fruto, portanto, eu colho, e não desmato”, explica. O outro instrumento percussivo, o perimbau (cujo prefixo é uma homenagem ao estado de Pernambuco), é uma espécie de berimbau turbinado: tem um captador móvel, que acompanha o movimento da corda, e dá todas as notas, ao contrário de um berimbau comum, que se limita a duas (Mi e Fá). Durante a entrevista, o luthier tocou a melodia de

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MÚSICA

Toinho Alves (1943 - 2008)

No espaço onde dá aulas, fazendo pose (esquerda), e tocando o pianolon (direita)

Asa branca no monocórdio. Como se não bastasse, fê-lo com um wah-wah (pedal de efeito eternizado por Jimi Hendrix).

sicais do Criança Esperança, onde começou a ensinar em 2006 (o espaço atende uma comunidade no Grande Recife, oferecendo ainda oficinas de dança e informática), Paulo finalmente terminou de fazer o pianolon. Como a guitarra havaiana, o instrumento é tocado na horizontal, mas é acústico e tem uma distância maior entre as cordas. A exemplo do violão, o pianolon pode ser plugado e , assim, amplificado, mas Paulo esclarece que a captação ainda deixa a desejar: “Até num violão, a captação não reproduz perfeitamente o som, que fica metalizado. O problema é generalizado. Muita gente vem tentando resolver, até agora sem sucesso, mas continuo estudando”. Em meio à física, à geometria e à música desse pool de técnicas, está lançado mais um desafio.

esponsável pelos arranjos, repertório, produção dos discos e direção dos espetáculos do Quinteto Violado, além de cantar e tocar baixo, Toinho faleceu no dia 29 de maio, vítima de infarto. Natural de Garanhuns (Agreste pernambucano), o baixista aprendeu música antes mesmo de aprender a ler: vinha de uma família de músicos. Já no Recife, onde chegou a exercer a profissão de engenheiro químico, antes de se dedicar integralmente à música, fundou, na primeira metade dos anos 60, o grupo Bossa Norte, do qual o percussionista Naná Vasconcelos fez parte. A idéia de fundar o Quinteto surgiu quando Toinho integrava a banda TVU-3 (cujo baterista, Luciano Pimentel, tocaria com o QV até 83). Desde 1971, quinze integrantes já passaram pelo Quinteto – que deve continuar, apesar da perda. Toinho tinha 64 anos. Certa vez, o baixista, que tocava instrumento sob medida, deu uma aula especial aos alunos do Criança Esperança, espaço onde Paulo Sérgio dá oficinas de luteria. (TL) Divulgação

Por último, influenciado pelo violão de mesa de Nenéu Liberalquino (que superou as limitações físicas, impostas pelo nanismo, desenvolvendo uma técnica própria e tocando um instrumento feito sob medida) e pela cabala do multiinstrumentista Antúlio Madureira (a cabala é um instrumento de sete cordas com corpo de bambu, tocada sobre as pernas, e tem uma sonoridade que remete tanto à cítara indiana quanto à viola nordestina), Paulo desenvolveu o que batizou de pianolon. A idéia, na verdade, surgiu em 1999, quase 10 anos antes do pianolon ficar pronto. O intervalo é extenso, sim, mas não constitui um hiato na carreira do artesão: ele explica que precisava se dedicar mais à restauração de instrumentos, sua atividade remunerada. De lá para cá, Paulo criou também os instrumentos citados, que exigem menos (mas ainda assim muitos) recursos. O luthier define seu ofício como “um pool de técnicas”: precisa, inclusive, fabricar as próprias ferramentas. Incentivado por seus alunos e garimpeiros mu-

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Detalhes da vuella, abaixo, e da viola de cabaça, na página ao lado

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MÚSICA

Reflexos ibero-renascentistas no Brasil

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instrumentais antigos para que a mistura das cores mediterrâneas e macunaímicas de ontem e hoje ganhasse novos matizes. Desvencilhado de qualquer ideário nacionalista anacrônico, o grupo é um dos poucos dedicados à música antiga no Brasil, a exemplo do paulista Carmina, do cearense Syntagma Espelho – Anima e do Allegretto; este, do CD-book Conservatório PernamProdução independente bucano de Música, úniR$ 34,90 co dos quatro que ainda não lançou disco. O Anima escolheu o espelho – símbolo do simbolismo no misticismo islâmico, segundo o sexteto de Campinas – como parábola dos reflexos de trovas, monofonias gregorianas e danças medievo-renascentistas que reluzem em cantigas de Estados tão distantes entre si quanto São Paulo (Casinha pequenina), Rio Grande do Norte (Engenho novo), Minas Gerais (Beiramar) e Pará (Sereia). (Carlos Eduardo Amaral)

> Um vasto estudo sobre Guerra-Peixe

> A Polêmica saga de Wagner em DVD

> Coletânea latinoamericana, parte 1

>Coletânea latinoamericana, parte 2

No mês anterior ao de sua morte, César Guerra-Peixe (1914-1993) revelou o desejo de ver publicado um estudo abrangente sobre sua vida e obra, deixando anotados os temas a compor essa análise e os nomes dos respectivos autores a desenvolvê-los. Só em 2007 o idealizado livro, que foi dividido em duas partes, se concretizou. A segunda parte, constituída de depoimentos muito particulares (que quase nada acrescentam à primeira, de artigos valiosos), deixou de fora dois ex-alunos muito gratos ao mestre: Jarbas Maciel e Clóvis Pereira. Convém lembrar que nem o punho do compositor nem o de ninguém dão o atestado de “definitivo”; cada tópico pensado pelo Guerra vale uma tese de mil desdobramentos, sem falar de seus inéditos escritos. (CEA)

Em Wagner (1982), Richard Burton protagoniza a errática, mas triunfante trajetória do mais revolucionário dos operistas. Envolto em perseguições políticas, bancarrotas, amores proibidos e avançadas concepções musicais, finalmente Wagner encontra a felicidade afetiva ao lado de Cosima Liszt (Vanessa Redgrave), a tranqüilidade financeira via príncipe Ludwig II da Baviera e a glória artística no teatro construído na cidade de Bayreuth. As oito horas de duração do filme – deve ser assistido um DVD por noite – também perpassam o ostensivo anti-semitismo, a influência das concepções de Schopenhauer, a amizade com Nietzsche, depois desfeita, e o extravagante modus vivendi do compositor alemão. (CEA)

Há quase 10 anos, o compositor Manuel de Elías fundou o Colégio de Compositores Latino-Americanos de Música de Arte no intuito de agregar compositores contemporâneos de longa trajetória, reconhecidos em seus países, e difundir a obra deles por meio de gravações e divulgação de partituras. Neste primeiro álbum, em dois volumes, constam peças de câmara de Celso Garrido-Lecca (Peru), Fernando García e Eduardo Cáceres (Chile), Carlos Alberto Vázquez (Porto Rico), Guido López-Gavilán (Cuba), Andrés Posada (Colômbia), Marlos Nobre (Brasil), Manuel de Elías, Juan Trigos e Héctor Quintanar (México), Alfredo del Mónaco e Alfredo Rugeles (Venezuela) e German CáceresBuitrago (El Salvador). (CEA)

Mesmo limitando o número de membros a três por país, o Colégio editou um segundo álbum, este em três volumes (o primeiro dos quais contém somente trios para piano, violino e violoncelo), a fim de incluir obras de compositores eleitos após a fundação ao lado das de membros fundadores. Além de Vázquez, Cáceres-Buitrago, Garrido-Lecca, López-Gavilán, García, Posada, de Elías, constam Alberto Villalpando (Bolívia), Jorge Sarmientos (Guatemala), Adina Izarra (Venezuela), Leon Biriotti e Héctor Tosar (Uruguai), Carlos Fariñas (Cuba) e Edgar Valcárcel (Peru). Outro brasileiro que integra o Colégio e que deverá ser contemplado em futuras gravações é Gilberto Mendes. A coletânea continental pode ser adquirida por e-mail. (CEA)

Fotos: Divulgação

eentrelaçar os finos fios ibéricos dispersos no vasto tecido do cancioneiro anônimo brasileiro, através de um labor tão artesanal quanto o das costureiras, rendeiras e fiandeiras que espalham essa fiação melódica há cinco séculos pelos vilarejos do interior e litoral. O quarto CD do Anima, uma bela e rara peça de tapeçaria musicológica na discografia independente nacional, tingiu canções de plantadores, lavadeiras, pescadores, escultores e amas-deleite de todo o Brasil com pigmentos

Guerra-Peixe – Um músico brasileiro Lumiar/Chediak 262 páginas 35,00 reais

Wagner 4 DVDs Dir.: Tony Palmer Classic Line 480 min 58,90 reais

Colégio de Compositores Latinoamericanos de Música de Arte Vol.1 2 CDs Pedidos:ma_de_ elias@yahoo.com.mx

Colégio de Compositores Latinoamericanos de Música de arte Vol.2 3 CDs Pedidos: ma_de_ elias @yahoo.com.mx

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Mundo Livre S/A em coletânea

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uando lançou o primeiro volume do Bebadogroove, o Mundo Livre S/A também anunciava a volta ao “esquema de garagem”. Longe de gravadoras, esquemas de divulgação massiva e participação numa mídia de porte maior, muitas vezes por caminhos pouco aprovados entre artistas. A mensagem era dramática, mas na verdade Fred 04 e sua trupe só estavam, nos bastidores, ganhando impulso. Combat Samba, coletânea que sai pela Deckdisc – por ser a editora que detêm o direito das músicas deles – tem produção artística de Carlos Eduardo Miranda, executiva de Paulo André Pires (Abril Pro Rock) e um foco bem delimitado: o mercado internacional. É a primeira banda da geração 90 a lançar uma coletânea. E, como Combat samba compilação, Combat Samba Mundo livre SA localiza o Mundo Livre em Deckdisc 24,90 reais sua melhor fase, do gênero que carrega no título. Deixa de lado o momento político

que eles viveram, O Outro Mundo de Manuela Rosário, e a pegada ainda mais punk dos primeiros discos, mesmo com a referencia ao Clash no título. É melodia e harmonia pura em prol de canções de amor. A música inédita Estela só reforça que o samba é a chave mágica para o público norte-americano. Para o público secundário, os próprios conterrâneos, é oportunidade para revisar o motivo de sucesso da carreira da banda. Sem extremos de qualidade, o Mundo Livre S/A se sobressai como uma banda meticulosamente bem dosada. Uma carência de letra é sempre acompanhada por uma boa harmonia e vice-versa. (Bruno Nogueira)

>Uma roupa nova para os standards

>Força e delicadeza ao piano, em disco

>Miscelânea pop pernambucana

>Ouriços: um vôosolo de arranjador

O engenheiro francês Bernard Fines chegou ao Brasil em 1992 para trabalhar na indústria automobilística e, depois de conhecer a música brasileira e dedicar-se ao estudo do canto, em 2003 tornou-se músico profissional. Seu primeiro disco foi lançado em maio, respondendo a um desafio sério: cantar os maiores standards da música francesa, de La vie en rose a C’est si bon, passando por Les feuilles mortes, todas com centenas de gravações. Pois ele se saiu mais que airosamente, fazendo-se acompanhar por trio de jazz brasileiro e amigos. Com sua voz minimalista e bem colocada, seu balanço jazzístico e arranjos surpreendentes, conseguiu dar uma nova roupagem aos velhos clássicos da chanson. Maravilha. (Homero Fonseca)

As jovens pianistas Bianca Gismonti e Cláudia Castelo Branco foram uma aposta da gravadora Delira Música, que tem investido na divulgação do primeiro disco delas, Gisbranco. A aposta deu certo, pois, apesar dos verdes anos da dupla, o CD revela segurança e paixão nas interpretações de compositores como Ernesto Nazareth, Moacir Santos, Guinga, Egberto Gismonti, César Camargo Mariano, Toninho Horta, além dos menos conhecidos Leandro Braga, Delia Fischer e André Mehmari. Cada uma também tem uma composição própria no disco. O resultado é um disco de muita delicadeza e força, ao mesmo tempo. Por toda a minha vida, de Jobim, e Nanã, de Moacir Santos, são destaques, pela sutileza dos arranjos e beleza do fraseado melódico. (HF)

O que esperar dum álbum chamado Pigdigigarêlépó Miscigenação? O título não define a música do ex-Querosene Jacaré, mas prepara o ouvinte para uma viagem maluco beleza. Conhecido por suas engenharias sonoras, Cinval (que produz o disco) garante experimentações diversas, mas não desnecessárias. Consegue casar rabeca com programação eletrônica na mesma faixa e seu repertório é instigante. Pena que este produtor de mão cheia fique devendo como compositor. As letras não têm a mesma qualidade impressa em seu estilo próprio e randômico de produção. Às vezes, Cinval repete versos exaustivamente – mas é um defeito menor, pois suas alucinações musicais garantem a diversão. (TL)

Ouriços é o primeiro registro como compositor de Pablo Lapidusas, argentino radicado no Rio de Janeiro. Pianista e arranjador, começou a carreira de solista em 1997, paralelamente ao trabalho que sempre desenvolveu com artistas díspares, como Marcelo D2, Eduardo Dussek e Quarteto em CY. Versatilidade que não se reflete no CD, só que por uma questão de estilo, e não de limitação. Chega a surpreender as participações especiais de Hermeto Pascoal no solo de Piripiri e de Carlos Malta, que toca sopro na faixa-bônus Choro n° 1, encerrando o álbum: os dois acrescentam um relativo hibridismo à homogeneidade erudita de Ouriços. (Thiago Lins)

Sous le ciel de Paris Bernard Fines e Julio Bittencourt Jazz Trio Delira Música 24,90 reais

Gisbranco BiancaGismontieCláudia Castelo Branco Delira Música 34,00 reais

Pigdigigarêlépó Miscigenação Cinval Independente 22,00 reais

Ouriços Pablo Lapidusas Delira Música 28,00 reais

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sabores

Sabores e saberes do São João (II)

Imagens: Divulgação

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

“Sois bafo de cuscuzeira Sois caldo de milho quente Sois a canjica do milho Sois milho pessoalmente Tu sois forte no batente Tu sois como milho assado Se não for bem mastigado Sai inteirinho da gente.” Jessier Quirino (Zé Qualquer e Chica Boa)

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s principais ingredientes da culinária de São João são milho e mandioca. Milho é planta nativa das Américas. Mas, bom lembrar, para o índio brasileiro não tinha a importância que lhe davam os da América Central e da América do Norte, para quem esse maiz era base de toda alimentação (“Maizena”, claro, vem de maiz). “E quando o milho está crescendo, o embalam no amor do fogo, para que continue caminhando sobre a terra”, dizia Eduardo Galeano. A primeira plantação conhecida foi feita no vale de Tehuacàn (México), há sete mil anos. Mas, para os índios brasileiros, esse milho foi sempre alimento de passatempo. De brincadeira. Divertiam-se assando milho nas fogueiras. E, também, com o barulho do milho bem verde estalando no borralho (braseiro coberto de brasas). Ao grão desse milho que estalava chamavam popoka (pele estalando).

O mesmo princípio descoberto por aças, bem depois, em meados do século 19, pelo fazendeiro americano Olmested Ferrier; ao observar que um tipo especial de milho, com mais água em seus grãos, estourava em contato com o fogo. A esse grão chamou de pop (onomatopéia de estalar) corn (grão)”. A diferença é que o americano aproveitou e ficou rico. Daquele milho, os índios faziam ainda um mingau grosso que chamavam de pamuña; e uma bebida muito apreciada, o abaati – a partir de grãos de milho que eram mastigados por mulheres índias e depois misturados a mel de abelha. Nem portugueses nem espanhóis deram a esse milho maior importância. Por achar, a princípio, que se tratava do sorgo – um alimento por eles considerado, na Europa, de segunda categoria. Milho era aqui, então, apenas alimento de animal e de escravo. Mas a partir desse milho, juntando outros ingredientes

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Milho é planta nativa das Américas. Mas, bom lembrar, para o índio brasileiro não tinha a importância que lhe davam os da América Central e da América do Norte, para quem esse maiz era base de toda alimentação

(os que lhes era permitido usar), e usando técnicas que conheciam na terra distante (especialmente o cozinhar com leite de coco), esses escravos foram criando pratos novos, logo incorporados pela casa-grande – angu, mungunzá, canjica, pamonha, cuscuz. Angu é palavra que vem do tupi angau. Receita com origem no infundi africano – feito por lá com caldo de peixe ou miúdos de boi, engrossado com farinha de sorgo. Aqui passou a ser feito só com leite de coco, farinha de milho, sal ou açúcar. Podendo ser, desde aqueles tempos, indiferentemente prato salgado ou doce. Mungunzá vem do africano mu’kunza (milho cozido) – prato que, por ter sustança, era servido às pessoas que passavam a noite velando seus mortos. Essa espécie de sopa doce é feita com milho branco cozido em água, leite de coco, açúcar, erva-doce, canela ou cravo (no sul do Brasil é chamado de canjica). Canjica (do africano kanjica) é prato feito com milho não muito verde, leite de coco, sal, açúcar, manteiga. O creme grosso é colocado em travessa e polvilhado de canela – técnica que aprendemos com os portugueses. No sul, essa canjica é conhecida por curau. Pamonha veio do pamuña indígena. Mas os escravos transformaram esse creme grosso e sem graça em prato muito especial. Juntando leite de coco, açúcar e sal. E assando esse creme em folhas de bananeira. Depois foi sendo aperfeiçoado, passando a ser cozido na palha do próprio milho. Além de cuscuz JUL 2008 • Continente x

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RECEITA

Pé - de – moleque  Lave 1 kg de massa de mandioca. Peneire em pano fino e torça. Reserve.  Tire o leite de coco de puro de 4 cocos (passando no liquidificador o coco ralado com bem pouca água), e reserve ½ xícara. Tire o leite de coco fino (passando no liquidificador novamente o bagaço com água).  Leve 500 g de açúcar granulado ao fogo, para caramelar – quando estiver dourado, junte água para fazer a calda. Deixe esfriar.  Moa 300 g de castanhas. Reserve umas inteiras, para enfeitar o bolo.  Coloque em tigela massa de mandioca, calda do açúcar, sal, leite de cocos (ralo e grosso), 3 ovos, 1 xícara de café forte, 1 colher de sobremesa de erva doce (misturado com água quente e coado, como chá), 1 colher de chá de cravo (torrado, pisado e peneirado), 1 colher de chá de canela em pó e castanhas moídas. Misture tudo. Coloque em forma bem untada com manteiga.  Jogue por cima do bolo, antes de assar, ½ xícara do leite de coco grosso (que ficou reservada). Mais a calda (feita com ½ xícara de açúcar granulado, no fogo) e as castanhas inteiras.  Asse em forno pré-aquecido quente. Sirva. E Viva São João!

– prato de origem moura, já bem conhecido de portugueses e africanos em suas terras. Aqui esse prato foi tomando nosso jeito. Da receita original conservamos só o modo de cozinhar no vapor. Farinha de sorgo ou de arroz substituímos por farinha de milho. Juntamos leite de coco e açúcar. Enraizouse em nossa cultura, a ponto de acabar sendo prato obrigatório, de todas as mesas, ainda hoje. Aos poucos, o milho foi sendo apreciado também pelo colonizador. Porque perceberam que, diferente do sorgo, era mais macio, mais doce e muitíssimo mais saboroso. Só então os portugueses nos ensinaram as técnicas de plantar. Preferencialmente no dia de São José (19 de março), quando quase sempre chove – permitindo que esteja no ponto de ser “quebrado”, às vésperas de São João. Em que, segundo a tradição, também sempre chove. Outro ingrediente importante do São João é a mandioca – o principal de todos os ingredientes, para nossos índios. Presente em todas as refeições. Dessa raiz faziam farinha chamada “de pau”, para diferenciar da “farinha do reino”, vinda de Portugal – feita

de trigo. Também faziam cauim, uma bebida de muito prestígio. E mingaus, pirões, papas, beiju (em tupi mbeiú, que quer dizer “enrolado”). Os escravos, aos poucos, foram aperfeiçoando esses beijus. Criaram receita feita da goma de mandioca espremida, chamadas pelos índios de tipioka. Nasceram então, por aqui, tapiocas de todo tipo – recheadas só com manteiga, com coco ralado, com queijo de coalho. Além das ensopadas de coco, bom exemplo dessa nossa miscigenação culinária – dado se usar, nessa receita, mandioca (alimento indígena), leite de coco (africano) e mais sal, açúcar, canela (português). Outro ingrediente indígena importante nas nossas mesas de São João é o amendoim. Cozido em panelas de barro, assado diretamente no fogo ou transformado em paçoca – palavra indígena usada para designar tudo que transformavam em farinha, usando pilão. E a pakova, que os portugueses passaram a chamar de “banana da terra” – para diferenciar de outra banana, que aqui veio trazida pelos africanos. Com as senhoras portuguesas aprenderam os escravos a fazer bolos usando trigo, manteiga e ovo.

Também doces e sobremesas. Aos poucos, foram substituindo ingredientes das receitas originais pelos disponíveis na terra. Assim acabaram nascendo bolo de milho, bolo de fubá, bolo de macaxeira, bolo Souza Leão, cocada, bom-bocado, grude, arroz-doce. Além do principal bolo do São João, o pé-demoleque – que recebeu esse nome porque, depois de pronto, fica bem escuro. Lembrando os pés dos moleques daquele tempo, sujos de terra – tão diferente das crianças de hoje, que brincam com meias coloridas e tênis americano, em volta de jogos eletrônicos, computadores e celulares. Esse bolo era feito, a princípio, com rapadura derretida. Depois, passaram a usar calda feita de açúcar. Com esses escravos aprendemos também a apreciar cachaça. Acabou transformada em bebida oficial do São João, com o nome de quentão – cachaça, açúcar caramelizado, canela, casca de limão, cravo, gengibre. Servida bem quente, em canequinhas de barro. Bom para tomar coragem e dizer no ouvido da pessoa amada, como na música de Luiz Gonzaga e José Fernandes, “Foi numa noite igual a esta/ que tu me deste o teu coração”.

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Rafael Gomes

PERFIL

"É preciso urbanizar o forró" Com pouco tempo de carreira, Xico Bizerra é figura central na produção de pé-de-serra de Pernambuco Bruno Nogueira

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ão precisa de muito esforço, numa manhã de pouca chuva no Mercado da Madalena – ponto de encontro dos forrozeiros em Pernambuco –, para perceber o quanto a figura de Xico Bizerra é central. Ele, ao contrário da maioria, não está tocando nenhum instrumento ou mesmo cantando. Mas quem se arrisca num acorde, sempre olha em volta, buscando uma aprovação. Quem chega, faz questão de cumprimentar aquele que hoje é o compositor mais gravado do forró

no Estado. São cerca de 160 intérpretes. Apenas Se Tu Quiser, sua música mais emblemática, teve mais de 65 regravações. Seus cabelos brancos comprovam a sua longa trajetória no forró pernambucano. Mas, na verdade, de carreira efetiva são curtos oito anos no currículo. “Eu comecei a compor aos 15 anos, mas achava que não teria uma atividade profissional com isso. Preferi ganhar a feira, porque com música não conseguiria”, recorda. “Quando eu me aposentei, no ano 2000, comecei a

Xico Bizerra é o compositor (de forró) mais gravado no Estado

pensar no que fazer para ocupar o tempo e lembrei das músicas.” Xico Bizerra nasceu no Crato, interior do Ceará, mas veio para o Recife ainda jovem, no começo da década de 70. “Tenho mais tempo de vida aqui, por isso sempre digo que sou cearense de paridez, mas pernambucano de coração.” A primeira lembrança musical vem de lá. “A poesia vem do meu avô, com quem eu me correspondia por carta, sempre em forma de sonetos; enquanto minha mãe tocava bandolim. Eu compunha, mas não JUL 2008 • Continente x

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Xico Bizerra ao lado de Dominguinhos, que participa do disco Cantadores da Nação do seu Luiz

dava vazão. Guardava para mostrar a alguém no momento correto.” Quando chegou essa hora, Xico mandou uma cópia da sua primeira gravação, Forroboxote I, para 10 músicos do cenário pé-de-serra do Recife. “Foi gravado por Zé Bicudo na Sanfona, que este ano foi homenageado no São João do Recife. E dois meninos que eu conheci no Bompreço: Bico de Pádua e Serginho Luz.” Três, dos 10, responderam ao compositor com elogios e incentivo para continuar e colocar o disco nas lojas. Irah Caldeira, Maciel Melo e Petrúcio Amorim. Ele prefere não lembrar o nome dos sete, mas garante que todos já gravaram pelo menos uma de suas canções. Esse foi também o primeiro contato que garantiu ao compositor contato com outros músicos

de pé-de-serra. “Fui me chegando, juntando, conhecendo as pessoas. Foram me respeitando, talvez pelos meus cabelos brancos, vendo minha experiência. Então foram ouvindo, gravando. Hoje, eu faço parte até como fundador da Sociedade dos Forrozeiros de Pé-de-Serra e Ai”, lembra. Num apartamento bem mais distante do centro, em Candeias, a assepsia das paredes brancas contrasta com o cenário que o forró constrói em seu público. O escritório de Xico é extremamente organizado, com um ar condicionado forte garantindo a tranqüilidade do trabalho no computador. Sinais de uma organização quase compulsiva, que justifica todo o funcionamento de uma sociedade dos forrozeiros. Segundo Xico Bizerra, tudo come-

çou de forma bastante empírica. “A gente se reunia para conversar aqui e acolá, trocando idéias do que deveria ser, até que em 2005 ela foi constituída por direito.” A Sociedade dos Forrozeiros Pé-de-Serra e Ai (o termo no fim é expressão comum no meio) é uma Organização Não Governamental que tem como principal objetivo “gerenciar o forró” e repassar informação de gestão para os músicos e compositores. “Até alguns anos ninguém sabia o que era um home list ou uma proposta de negociação, era uma coisa muito solta”, conta Xico. Já organizados nesse ponto, eles começam a ganhar noções maiores de uma cadeia produtiva do forró pé-deserra através de cursos e parcerias. “Pretendemos também dar curso de zabumba e triângulo, já tivemos um de canto”, garante. Formação

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que nunca fez parte da história do compositor. “Nunca cheguei a estudar música. Aliás, eu não quero aprender absolutamente mais nada. E não é por achar que já sei de tudo, mas é que meu tempo para isso passou. Às vezes, até brinco, quando me perguntam se uma música é em tom maior ou menor. Eu não sei! Faço de um jeito que a música sai e pronto”, brinca. Apesar da produção prolífica, ele também garante que não tem método. “Eu não sento no computador e digo ‘pronto, vou compor’ e faço algo”. O discernimento justifica para ele, mesmo com um grave quase barítono na voz, nunca ter arriscado cantar. “Não canto por vários motivos, e o primeiro é que eu não sei cantar. O segundo é porque tem tanta gente boa por aí, que é melhor que faça as músicas e elas cantem”, afirma com modéstia. Xico diz que já se arriscou a montar uma banda, mas a experiência não funcionou. E, nesse compasso, ele já completa sete discos que carregam sua marca Forroboxote. Com o sucesso do primeiro trabalho, Xico Bizerra passou a lançar um disco por ano, sempre com uma temática central. O segundo foi todo interpretado por Cleo Dantas e, no terceiro, fez uma homenagem às cantadoras do Estado. “O disco se chamava Mulheres Cantadeiras de uma Nação Chamada Nordeste, com Irah Caldeira

e Nádia Maia, entre outras, cantando minhas músicas.” A versão masculina veio no Forroboxote 4, chamado Cantadores da Nação do seu Luiz, com participação de Dominguinhos, Flávio José e Quinteto Violado. Seu disco mais marcante seria lançado no ano seguinte. Mesmo sem saber tocar sanfona, Xico Bizerra lança o Alma Sanfônica, seu primeiro disco sem nenhum forró. “Foi justamente para mostrar a beleza da sanfona como instrumento harmônico, então tinham sambas, choros, tudo instrumental.” Em seguida, para homenagear os 60 anos do baião, ele resgata os intérpretes originais da terra do ritmo em Baião do Reino Encantado do Novo Exu, as Veredas do Resto do Mundo e Adjacências. Em 2008, ele consegue implementar o forró pé-de-serra como instrumento didático nas escolhas públicas de Pernambuco com o Forroboxote 5. “Lancei o Ser Tão Criança, um disco com temática infantil, valorizando ritmos como xote, xaxado, baião, com temática mais lúdica, falando de céu, terra, sol e de outras coisas que não ‘chupa que é de uva’, para tentar combater esse crime, que é essa música que faz estímulo á droga, bebida e raparigagem.” Xico Bizerra está longe de ser um modelo purista, daqueles que quer guardar o ritmo que toca em uma redoma. “Precisamos urbanizar o

Ser tão criança – Forroboxote 7 Independente Xico Bezerra 15,00 reais

forró. Tem que cantar o Sertão, sim, mas também tem que cantar o urbano. Se continuarmos falando de juazeiro, da asa-branca, do gibão e da sanfona, o público mais jovem não vai querer saber disso. É por isso que eu procuro ter sempre algo moderno.” Entre os intérpretes mais contemporâneos de Xico está também o cantor Geraldinho Lins, que representa melhor esse público. “Até porque Gonzaga, em sua magnitude, esgotou. Falou de tudo, do pássaro, da planta, da árvore, do rio, da terra, da seca. E falou tão bem, que qualquer pessoa que falar disso hoje não consegue fazer como ele fez”, completa. O orgulho se fere mais quando o forró eletrônico entra em questão. “Já fui sondado por uma banda, queriam conhecer meu repertório, mas disse que o meu estilo não combina com o que eles fazem. São concessões que não valem a pena fazer”, diz. “Eu pessoalmente recrimino, e contesto a estética do forró que eles usam”, continua o compositor. “Acho até que o Ministério Público é omisso em algumas circunstâncias, porque uma música que fala ‘dinheiro na mão, calcinha no chão’, incita a prostituição. Um órgão público deveria impedir isso.”

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CÊNICAS

O teatro de Caruaru Argemiro Pascoal e Arary Marrocos fomentam a cena teatral caruaruense há 46 anos, quando fundaram o Teatro Experimental de Arte (TEA)

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Leidson Ferraz

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uando ouvia a notícia de que mais um circo mambembe ia chegar àsua cidade, um menino magricelo não parava quieto. Em Bezerros, na estação de trem, ficava a esperar os artistas em caravana e os acompanhava até ver a lona armada. “Aquilo para mim já era um grande espetáculo”, lembra Argemiro Pascoal, hoje com 79 anos. Quase naquela mesma época, em outro município pernambucano, Belo Jardim, uma garotinha, alguns anos mais nova que ele, também não escondia sua admiração pelos raros circos que lá chegavam. Sua maior felicidade era quando o pai a convidava para conferir famosas trupes circenses em Caruaru. “Minha maior alegria de criança era estar numa platéia”, confessa Arary Marrocos, 70 anos. Seria lá, na capital do Agreste, a terra que uniria esses dois jovens apaixonados pela arte circense, mas que, além de complemento um para o outro, descobriram no teatro a razão de suas vidas.

O espetáculo Cancão de Fogo, de 2002

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Mas a grande reviravolta na vida deles aconteceu em julho de 1962, quando Caruaru recebeu o I Festival de Teatro de Estudantes do Nordeste, evento que contou com o crítico de teatro Joel Pontes, atuante no Recife, mas natural da cidade, como um dos coordenadores. Diante dos vários espetáculos convidados, das oficinas e palestras oferecidas, ficou evidente a defasagem da produção cênica caruaruense. E dessa constatação de que o teatro local precisava ser menos empírico, Joel foi o primeiro a propor intercambiar uma série de oficinas junto a professores do Recife. Nascia assim, no dia 16 de julho daquele ano, como “grupo de estudo”, o Movimento Teatral Renovador que, pouco depois, diante da existência de um partido político homônimo em terras gaúchas, seria rebatizado de Teatro Experimental de Arte (TEA). No nome da equipe, o significado do experimentarse, com uma boa dose de ousadia. A partir daí, o teatro em Caruaru nunca mais foi o mesmo. Nada de apenas decorar um texto, repe-

Segundo o historiador Joel Pontes, sob direção de Luiz Mendonça, este grupo revigorou a cena no interior pernambucano, especialmente pelas escolhas dramatúrgicas. Obras de Gianfrancesco Guarnieri, Joracy Camargo e Isaac Gondim Filho figuravam em seu repertório. No carnaval de 1960, através de um amigo integrante do TAC, Ararê Marrocos, Argemiro conheceu Arary, jovem que também tinha tendências à arte, pois, desde que se mudou para a capital do Agreste, com 12 anos de idade, costumava declamar poesias, incentivada pelo então diretor do Colégio de Caruaru, Luiz Pessoa. Bastou um ano de namoro para o casamento acontecer. Em fevereiro de 1962, nascia Fábio Pascoal, fruto dessa união que já dura quase meio século. Formado em Contabilidade, Argemiro passou a dividir-se entre os números e a arte. Aos poucos, trouxe a esposa, pedagoga, para junto de suas duas atividades. Por incrível que pareça, o casal, até hoje, consegue conciliar mundos tão distintos.

Paulo Vieira / Divulgação

Argemiro envolveu-se com a arte cênica ainda em Bezerros. Em 1948, foi convidado a ser “ponto” no Grupo de Teatro Carlos Gomes, cuja função era “soprar” as falas para o elenco, numa época em que os atores não decoravam os textos por completo. Em 1951, mudou-se para Caruaru, exatamente quando o Grupo Intermunicipal de Comédias reunia gente da alta sociedade para, em experiências efêmeras, mergulhar no mundo artístico. De origem mais simples, ele preferiu esperar um outro momento para dedicar-se definitivamente aos palcos. Isso aconteceu em 1956, quando fundou, junto a companheiros como Wilson Feitosa, Cosme Soares, Creuza Soares e Antônio Medeiros, o Teatro de Amadores de Caruaru (TAC).

tir marcas já esperadas, e subir ao palco quase sem consistência interpretativa. A proposta era ler várias obras do teatro universal, conhecer e estudar autores, discutir melhor cada elemento da cena e, acima de tudo, valorizar a cultura do país. Gratuitamente, ao longo dos anos, vários professores se dispuseram a contribuir com esse aprimoramento no TEA: Clênio Wanderley, Isaac e Estephania Gondim, Walter Estevão, Luiz Maurício Carvalheira, Romildo Moreira, Didha Pereira, José Manoel. Nesses 46 anos de trajetória ininterrupta, mais de 50 espetáculos foram encenados, de clássicos como Antígona, de Sófocles, ou A via sacra, de Ghéon, a textos mais experimentais como Feira de Caruaru, estréia do caruaruense Vital Santos como dramaturgo, a Ratos de esgoto, do baiano Vieira Neto. Diante de uma inegável dificuldade em decorar falas, Argemiro Pascoal, de ator, decidiu arriscar-se na direção, depois, lançou-se à dramaturgia. “Sempre preferi estar nos bastidores”, diz, entre sorrisos. Em

O casal Argemiro Pascoal e Arary Marrocos junto ao filho Fábio Pascoal: a família que dá vida ao TEA

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CÊNICAS

Arary Marrocos em cena de A Via Sacra, 1976

1975 conseguiu levar à cena um de seus textos, O testamento, com boa recepção. Com mais de 15 peças escritas, algumas ainda inéditas como Um país chamado Caruaru e O retirante, Argemiro passou a ser o autor e diretor mais presente na história do TEA. Escrita e dirigida por ele em 1983, A epopéia do beato Torquarto Maria de Jesus, uma divertida anunciação do fim do mundo em Caruaru, conquistou elogios quando de sua passagem pelo extinto Festival de Teatro do Recife. Também sob sua direção, Morte e vida Severina, de 1979, conquistou público e crítica por transformar em teatro de vanguarda a peça-poema de João Cabral de Melo Neto. Assim, o TEA conseguiu circular por mais de 60 cidades do Nordeste, chegando, também, ao cultuado Festival Nacional de Teatro Amador de São José do Rio Preto, em São Paulo. Não faltaram prêmios em meio a realizações que, infelizmente, passaram quase que despercebidas. Arary, sempre presente nos elencos, aos poucos também foi assumindo outras funções, como maquiadora, figurinista e diretora, até dedicar-se à atividade que, até hoje, mais a anima: a de arte-educadora.

Paralelo à montagem de tantas peças, o TEA sempre promovia oficinas de capacitação para seus artistas, com a participação, inclusive, de grupos amadores de cidades como Garanhuns, Belo Jardim, Pesqueira, Angelim, Lajedo e Arcoverde. Em 1982, numa sugestão do filho Fábio Pascoal e de Chico Neto, um dos atores de seu elenco, foi criado o Festival de Teatro Estudantil do Agreste (Feteag), para atrair estudantes da rede pública e particular de ensino, ainda distantes do teatro naquele momento. Aos poucos, e buscando uma melhor qualidade dos trabalhos apresentados, o evento começou a chamar a atenção de grupos amadores e profissionais. Desde 2002 atrelado ao Festival de Teatro do Estudante de Pernambuco (Festepe), participam da competição produções escolares de todo o Estado, tendo, numa mostra paralela, atrações convidadas de outras regiões do país, quando a verba é suficiente. A entrada é sempre franca. Mais de dois mil jovens já passaram pelas oficinas do TEA, promovidas anualmente, nos finais de semana, sem custo algum para os alunos. Paralela ao Feteag, essa

ação pedagógica do casal Arary e Argemiro tem sido fundamental para a renovação de artistas em todo o Estado. “Posso dizer que 80 ou 90% das pessoas que fazem teatro em Caruaru passaram pelo TEA, porque, naquela época, só existíamos nós a promover oficinas. E muita gente de talento veio daí: Vital Santos, Cleytson Feitosa, Maria Alves, Severino Florêncio, Welba Sionara, Cleonice Matias, Walter Reis, José Carlos, Jô Albuquerque. Uma grande parcela também passou pelo Feteag: Prazeres Barbosa, Francisco Torres, Wagner Salles, Kelly Moura, Cláudio Soares, Gabriel Sá. Bom, não sei se desencaminhei alguém, mas tenho muito orgulho de ter conduzido tanta gente por esse caminho”, diz, sem falsa modéstia, Argemiro Pascoal. Independentemente da qualidade dos trabalhos encenados ao longo de tantos anos – e muitos conquistaram platéias em suas trajetórias –, o TEA orgulha-se por possibilitar a inúmeros adolescentes um processo de formação não só como artistas, mas como cidadãos. Tanto que o casal, com recursos próprios, chegou a transformar a garagem de sua casa no Teatro Lício Neves, um teatro de bolso, hoje com 80 lugares, voltado especificamente para as aulas e espetáculos promovidos pelo grupo. “Entendemos que o teatro é uma das ferramentas básicas para um crescimento integral do homem, pois o sensibiliza e o politiza, transformando-o em um ser melhor. Nós, aqui, damos apenas a linha e o anzol, mas o peixe o aluno tem que buscar”, lembra Arary, consciente da importância dessa aprendizagem. A mais recente montagem do Teatro Experimental de Arte, estreada em março deste ano, no Teatro João Lyra Filho, em Caruaru,

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Euclides Ferreira / Divulgação

TEATRO

Rubem Rocha Filho (1939 - 2008)

A peça A metamorfose deve entrar em cartaz no Recife, em setembro

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trajetória artística do casal que, para não se distanciar da arte, transformou a garagem de sua casa num espaço teatral a promover oficinas e espetáculos. Em outubro, é a vez do lançamento do livro Memórias da cena pernambucana-04, deste articulista, tendo o TEA como um dos grupos teatrais em destaque. Quanto aos espetáculos, neste mês, O palácio dos urubus retorna ao Teatro João Lyra Filho, em Caruaru, cumprindo temporada aos sábados e domingos, às 20h. Já durante todo o mês de setembro, nos mesmos dias e horários, no Teatro Joaquim Cardozo, é a vez dos recifenses poderem conferir A metamorfose, fruto do Núcleo de Pesquisa, uma ramificação do grupo coordenada por Fábio Pascoal. Com adaptação e direção do próprio, a peça revela o drama de uma família que se vê obrigada a conviver com um de seus membros transformando-se, lentamente, num inseto. O resultado impressiona por descortinar o universo kafkiano com grande sutileza. Pelo visto, Fábio herdou dos pais o gosto pelo teatro, felizmente. E a história continua...

(Thiago Lins) Divulgação

reúne quase 15 jovens artistas em cena. O palácio dos urubus, texto do carioca Ricardo Meirelles, sob o comando do diretor e professor Jô Albuquerque, ganhou uma encenação totalmente circense. Desse mesmo universo que fez Arary e Argemiro, desde pequenos, acreditarem que a arte seria uma espécie de salvaguarda para a felicidade, ou um elixir da eterna juventude, como afirmam. “Através do teatro, diariamente entramos em contato com muitos jovens, e tanto ensinamos quanto aprendemos com eles. Eu gosto dessa convivência, por isso costumo dizer que, mesmo com quase 80 anos, ainda não fiquei velho. Claro que a matéria sofre as conseqüências, mas o espírito não. E, assim, posso afirmar, com certeza: o teatro rejuvenesce”, conclui sabiamente Argemiro. Neste mês de julho, a Fundação Joaquim Nabuco vai lançar dois documentários que, em meio a depoimentos sobre o teatro como ferramenta de educação e inclusão social, traduzem a importância de Arary e Argemiro para as artes cênicas pernambucanas. Divertido, o vídeo Quando as garagens virarem teatros conta, em tons biográficos, a

escritor, ator e dramaturgo Rubem Rocha Filho faleceu no dia 28 de maio, aos 69 anos. Em 1968, Rubem deixou o Rio de Janeiro, onde nasceu, para dirigir o Teatro Popular do Nordeste, aceitando o convite de Hermilo Borba Filho. Durante a década de 70, viveu na Europa, produzindo e escrevendo programas para a BBC de Londres. Voltou a Pernambuco em 1979, e desde então vinha dirigindo espetáculos (O anjo azul, Da práxis à dramática) e atuando, no teatro e no cinema. Rubem ainda teve suas obras infantojuvenis, como A batalha dos mamulengos, adotadas em escolas do Brasil. Prolífico, deixou inéditos artigos sobre cultura e cidadania, além de crônicas. Rubem também era bacharel em Ciências Sociais.

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Imagens: Reprodução

REGISTRO

UFOS – apocalípticos e desintegrados Chupa-cabras ou vampiros estratosféricos, os homenzinhos verdes, cinzentos (nunca pretos), tripulantes de supostas naves espaciais dão Ibope e movem uma indústria de revistas, livros, filmes e DVDs Fernando Monteiro 84 x Continente • JUL 2008

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ão sei se agora já é de “bom-tom” (era assim que se dizia, antigamente) ter visto ao menos um único disco voador – como eram conhecidos os UFOS, nos tempos de discos compactos e bolachões. Eu nunca vi. Nem por isso tenho a obrigação de duvidar dessa coisa que de vez em quando aparece nas estradas (desertas, de preferência), ou entre nuvens atravessadas por aeronaves de comandantes que, então, também aparecem para dar entrevistas sobre como seus boeings à explosão (ôpa) foram perseguidos por silenciosos Objetos-Voadores-Não-Identificados, os ÓVNIS – a forma portuguesa que Luciana Gimenez um dia desses utilizou para perguntar se era devido “à forma de ovo” (a um ufólogo entrevistado no “intelectualizado” programa Superpop). OVNIs, UFOS, Discos Voadores e todas as naves supostamente extraterrestres são um assunto superpop, mesmo. Dão Ibope os homenzinhos verdes, cinzentos (nenhum extraterrestre preto foi até agora registrado, nas solidões racistas das alucinações coletivas) ou que cores tenham as estranhas criaturas de seis dedos, cabeças realmente de forma ovóide e olhos amendoados, com uma expressão ligeiramente estúpida, pelo que vejo nas ilustrações dos ETs, desde os mais “calmos” aos chupa-cabras ou vampiros estratosféricos. Estratosféricos? Intergalácticos, no mínimo. Eles vêm, parece, de ainda mais longe do que Taperoá,

os “bichos” de metal reluzente (e mais aquelas luzes chatinhas de Steven Spielberg), vistos por sertanejos como lamparinas já corriqueiras. Tem matuto até cansado delas, as naves desocupadas – isto é, sem ter o que fazer, aparentemente, lá nos seus planetas, porque vêm xeretar por aqui, num sobe-e-desce indiscreto, largando-se da Conchichina do espaço sideral mais siderado. Os discos, nada empenados, vêm e voltam, voam e somem, e alguns até explodem, como se fossem humaníssimas naves Challenger feitas em pedaços diante das câmeras do exCabo Canaveral (hoje, Cabo Kennedy – o que parece ter trazido má sorte para os astronautas vestidos como aqueles tripulantes do Capitão Nemo, de Júlio Verne). Como era gostoso o meu disco voador! Talvez tenha acabado de explodir mais um, de novo numa

fazendola de Roswell, Novo México (EUA), território de Billy The Kid, que virou a meca dos ufólogos na pista de naves inteiras ou quebradas, arrebentadas como um carango espacial qualquer. Em Roswell, já deveria existir uma oficina para UFOS fodidos, avariados, trombados como os rodantes de um brinquedo da antiga Festa da Mocidade (no Parque 13 de Maio), chamado “Autopista”, tão grande é a fama do lugar que recebeu, ao que se sabe, o primeiro disco sinistrado da história, em 1947. No ano seguinte, praticamente endoidou a Ufologia nascente: foi o ano de mais avistamentos da face da Terra visitada, como nunca, por turistas interplanetários sem pêlo nenhum no corpo de meio metro de roupa apertada por velcro (o qual consta ter sido observado pela primeira vez na roupa deles, isto é, daqueles capturados ou levados para mesas de dissecação, fedorentos

Suposto tripulante de um Óvni caído em Roswel, EUA, em 1947 JUL 2008 • Continente x

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REGISTRO

Foto de suposta aparição de óvni, em local não identificado, EUA, 1952

como batata doce cozinhada com alho, couve e leite de magnésia). Bem, é isso aí: 1948 marca a era da corrida especial dos “espaciais”. Nunca foram vistos tantos objetos não identificados no céu da América então louca por um mistério, um comunista para investigar ou um disco que não era mais de Frank Sinatra ou de Nat King Cole, e, sim, um tremendo vinil cinza-esverdeado (ou azulado?), de algum esquisito material indobrável, porém não “irrebentável”, porque um deles caiu em Roswell, já se sabe, matou alguns ETs e tudo teria sido logo amoitado pelo Pentágono, o Exército americano e a turma local da boataria, deixando de falar dos longos passeios de carro da mulher do xerife da cidadezinha perdida na poeira, para falar da “marcianita, branca ou negra/ gorduchinha, baixinha ou

gigante/ serás meu amor” (como era gostosa a Celly Campelo das estradas do céu!)... Sim, porque já houve até “casos” de humanos com ETs do sexo feminino – se é possível chamar de caso o caso de um caipira brasileiro levado para dentro de uma nave a fim de ter relações com uma viajante do outro mundo (e o resto? Tudo certo, tudo no lugar?)... O matuto não deu explicações sobre essas partes. Todavia (via de regra, não uso essa palavra, caro Nelson Rodrigues – que dizia que “via de regra” era uma expressão obscena), ambos teriam ido às “vias de fato”, sem briga, matuto comum e “matuta” de seis dedos e... bom, deixa pra lá. Seja como for, o vuco-vuco foi descrito como ocorrido em cima de uma mesa de aço, debaixo de luz de operação de emergência, com a alienígena magra e feiosa como Hebe Camargo.

Vôte! Como pôde comparecer, o nosso rapaz, nessa hora, sem três viagras, é um mistério maior do que o dos discos que tocam nos céus como fantasmas alucinatórios, vaqueiros dos Arizonas das estrelas e valquírias colhendo sêmen brasileiro – conforme os ufólogos ufanistas –, para criarem híbridos de humanos e extraterrestres, de maneira que venha a nascer uma espécie de mix de um Maguila com a ex-ministra Marina Silva (aliás, minha solidariedade, à ministra tão reta quanto distante, anos-luz, de uma miss Amazonas) ou, então, do pobre sujeito raptado com alguma senadora Ideli Salvati de lá (uma ET do PT!)... Minhas indagações em torno desse assunto aéreo (e bote aéreo nisso) são estas: por que eles não abduzem Lula, o Planetário? Ou, opção dois, por que Lula não manda comprar um UFO, para voar ainda

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mais rápido, lá no supermercado da misteriosa “Área 51”? Se você não sabe, a “Área 51” é um lugar super-hiper-secreto (algo assim como o cofre da casa de Sílvio Abravanel), onde o Pentágono faria jus à sua fama de quinta potência: na “51” estariam guardadas caninhas branquinhas e discos intactos e avariados, modelos de todos os tipos, com portas e sem portas, além de corpos de ETs reduzidos a nitrato-de-pó-de-peido-da-manta-do-cavalo-do-bandido-rendido. Ou seja, tão mortos quanto Billy The Kid, porém conservados numa espécie de formol espacial, feios como a cabeça de Lampião exibida, durante anos, no Museu Nina Rodrigues. Por sinal, alguns cangaceirólogos-ufólogos dizem que o “capitão” Virgulino Ferreira teria visto uns UFOs perto de Mossoró, e dado uma carreira para se esconder numas moitas brabas, deixando Maria Bonita pra trás e mais meia dúzia de cabras que voltavam, com ele, da fracassada sortida contra a brava cidade potiguar. Corisco estava nesse subgrupo, superarmado, e teria atirado para o alto, contra o OVNI sertanejo, inutilmente. “É mentira, Terta?” Consulte-se Frederico Pernambucano de Mello, o espírito de Chico Xavier e José Luís Datena (este, deve saber; ele sabe de tudo – muito mal, mas sabe). Hollywood e Roliúde já trataram de UFOS. A primeira, todos sabem, é a capital do cinema, e já produziu

um monte de filmes sobre invasões de discos voadores e alienígenas vivendo entre nós (como Mangabeira Unger vive); o segundo, é um romance de Homero Fonseca contando as aventuras de um contador de filmes chamado “Bibiu”, que, em certo momento, também se envolve com a caça aos ETs, no alto sertão. Só o Vaticano ainda não se pronunciou, em solene latim, a respeito dos OVNIUNS, que, seculoseculorum, seriam manjados por estas bandas desde os tempos da Bíblia (e até antes). Os sumérios, para alguns fanáticos do assunto, não eram menos que produtos de sucessivos cruzamentos de visitantes oriundos de Sirius – o “décimo-segundo planeta” – com antigos habitantes desta Terra que tem ouvidos babilônias de besteiras. Segundo mais essa, o remotíssimo – e incertíssimo – astro Sirius (hoje desaparecido) teria usado então, a primitiva raça humana em “experiências”, a fim de dispor de batalhões de escravos, naquela época tão distante de nós que qualquer um pode afirmar qualquer coisa sobre ela. Também será assim, a nosso respeito, no futuro século 333: arqueólogos encontrarão, por exemplo, vasos sanitários sepultados nas ruínas dos nossos banheiros, e, quem sabe, pensarão que acabaram de descobrir sagrados objetos dedicadas à misteriosa deusa

C.E.L.I.T.E, de acordo com inscrição decifrada na branca louça da relíquia do século 21. Bem, eu estou fugindo do assunto. Estou voando para o futuro, que é uma ilusão – assim como o passado e os discos voadores, essa Utopia doida da nossa civilização de loucuras (por exemplo: a segunda eleição maracutaiada de Bush, a invasão do Iraque – por esse mesmo senhor, aliás – e, sinal dos tempos, a eleição do ET Paulo Coelho para Academia Brasileira de Letras e Bolinhos de Aipim). Fábio Júnior e Maurício de Souza afirmam que foram perseguidos por luzes que não eram de faróis da polícia. O presidente Truman teria visto corpos de ETs falecidos sem choro nem vela, e, perturbado, deixou de dormir, por semanas, ao lado da mulher dele (que desculpa!). O trêfego presidente John Fitzgerald Kennedy... Chega. É um assunto vasto e inesgotável. E, por fim, eu começo a temer que os ETs estejam desistindo de nos salvar, a esta altura do carnaval. Porque, apesar das montanhas de revistas, livros e DVDs dedicados ao assunto dos UFOS, a verdade é que eles andam meio desaparecidos, ultimamente – talvez cansados da ilusão no fundo do espelho do céu vazio que preenchemos de seres, sóis e sinais, desde que o tempo é tempo. JUL 2008 • Continente x

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ECONOMIA

Cultura em tempos de globalização Livro de economista e produtor cultural pernambucano aponta a globalização como ameaça às culturas locais Renato Lima

Divulgação

Alfredo Bertini, economista e produtor do Cine-PE

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O

economista pernambucano Alfredo Bertini é bem conhecido pela sua atividade de produtor audiovisual e, no recémlançado A economia da cultura – a indústria do entretenimento e o audiovisual no Brasil (Editora Saraiva), tenta colocar nexos numa área que todos sabem ser importante, mas ainda carece de boas fontes de referência. No caso acima, é nítido como valores locais e poder econômico e político foram evidenciados, como pontua a citação de Bertini. Era de se esperar, numa obra com esse título, um manual de análise econômica de setores da cultura ou um ensaio com insights inovadores, abordando as novas formas de produção de conhecimento colaborativo, como é o caso de Wikinomics, de Don Tapscott (Nova Fronteira, 2007). Ou ainda textos que abordem a interface entre desenvolvimento e cultura, como se encontra no livro A cultura importa (Editora Record, 2002), organizado por Lawrence Harrison e Samuel Huntington. Infelizmente, a obra de Bertini fica mais centrada na idéia de defender a importância do peso da cultura na economia, apresentar estatísticas e tecer breves comentários. A exceção fica por conta da parte audiovisual, a especialidade do autor, que ele aborda de forma mais aprofundada. O autor defende o modelo de exceção cultural, em que o Estado deveria subsidiar a produção de bens culturais, pois representaria parte integrante da identidade nacional. O livro repete exaustivamente que é preciso criar meios de resistência à globalização, pois ela é “capaz de padronizar uma hegemonia cultural

deletéria” e até mesmo acabar com a criatividade humana, ao homogeneizar mercados, “fato que propicia o fim da diversidade, da criatividade e da espontaneidade”. Essa toada é repetida à exaustão no livro. A verdade é que os mercados mudam e as inovações tecnológicas propiciam custos decrescentes na produção e consumo cultural. E, claro, não há limites para a criatividade e espontaneidade humana. Para citar apenas uma mudança de mercado, basta ver qual era o poder das grandes gravadoras e como estão hoje depois do MP3 e redes ponto a ponto (lembrou do Napster?). Esse medo exagerado de perda de identidade teria razão de ser levantado no início dos anos 90, mas já estando no final desta década é possível dizer que isso não aconteceu. Mercados locais de produção, como o Bollywood da Índia, ganharam força sem precedentes. Temas interessantes que poderiam nortear escolhas públicas quanto à alocação de dinheiro para incentivo a cultura continuam sem respostas. Bertini defende que o Estado deve pagar para que se faça cultura (em nome da “resistência à globalização”), mas como avaliar qual o tamanho e eficácia de subsídios públicos no fomento de atividades culturais? Isso é ainda mais importante num país que sofre com carências básicas, como saneamento e educação primária. Qual a taxa de retorno para cada atividade cultural, mesmo que em valores aproximados, o que poderia justificar maiores investimentos – tanto público quanto privados? Como a mobilidade – telefones celulares – está interagindo com a cultura, ao vender músicas e vídeos em aparelhinhos? O que não falta são temas para abordar cultura e economia, mas que continuam sem respostas.

O livro também passa ao largo do mercado editorial, que já mereceu um estudo específico do BNDES (A economia da cadeia produtiva do livro, de Fábio Sá Earp e George Kornis). Não aborda a economia e cadeia gerada por editoras, gráficas, bancas e livrarias. O produto livro parece não fazer parte da “Economia da cultura”. Por estes aspectos, a sensação é que o livro é limitado e não busca interpretações originais. Na apresentação de dados econômicos encontra-se falha grave. Mesmo na especialidade de audiovisual. Em dado momento, o autor coloca que o preço médio do ingresso de cinema no Brasil subiu de US$ 0,50 na década de 70, para US$ 2,50 nos anos 80 e atingiu US$ 4,70 em 1997. Não há indicação de como se chegou a esses números nem se esses valores estão ajustados para a inflação americana (que dos anos 70 para cá não é desprezível) e se foram calculados pelo câmbio nominal ou pela paridade de poder de compra, que analisa as variações de câmbio a partir de uma cesta de consumo – o que ajusta eventuais disparidades. Ainda seria importante analisar se os valores levam em conta uma média ponderada pelos ingressos vendidos na modalidade meia entrada e se a tributação foi elevada neste setor. O tema em si é importante e ainda vai render novos estudos. Não há dúvida de que Bertini como empreendedor cultural contribuiu muito para o assunto, mas o seu livro fica devendo. Economia da cultura Alfredo Bertini Editora Saraiva 240 páginas 49,00 reais

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Viagem infinita Dissertação de mestrado sobre Terra sonâmbula, de Mia Couto, é premiada e se transforma em livro

Imagens: Divulgação

TESES

Cristhiano Aguiar

P

ara muitos, a idéia de ler uma dissertação de mestrado, ou uma tese de doutorado, pode causar calafrios e bocejos. De fato, a principal função de uma tese é ser síntese de um percurso de pesquisa. Pode parecer chocante, mas o público-leitor com o qual os mestrandos e doutorandos se preocupam consiste, primordialmente, no grupo de professores que os avaliarão. A ressonância social de uma tese consistirá não necessariamente na sua circulação por um público-leitor, mas, sim, no modo como o conhecimento científico produzido será articulado pelo pesquisador nas suas publicações, atividades de ensino e em outras etapas de suas pesquisas e reflexões acadêmicas. Alguns destes pesquisadores, contudo, se preocupam com uma

escrita que a priori preveja o diálogo com um público mais amplo. Este é o caso de Viagem infinita: estudos sobre Terra Sonâmbula, dissertação do professor e poeta Peron Rios, publicada em livro pela Editora Universitária da UFPE. O romance Terra sonâmbula, do moçambicano Mia Couto, propõe um contundente discurso de crítica social – o livro foi escrito no contexto das guerras civis moçambicanas –, fundado numa linguagem inventiva que reconstrói uma realidade violada. Enquanto seus personagens vagam no meio de histórias de forte raiz mítica, poesia e imaginário realizam suturas que ressuscitam, na palavra, a vitalidade de uma carne massacrada a fogo e chumbo. O leitor deve lembrar-se das barraqui-

nhas que vendem folhetos de cordel. Terra sonâmbula se organiza de maneira parecida: seu enredo principal tem a função de um fio no qual diversas histórias sucedem umas às outras, penduradas. A comparação não é gratuita: na obra de Mia Couto, o chão e o ouvido – tradição, memória, cultura popular – são fundamentais. Neste sentido, a preocupação principal de Viagem infinita consiste em refletir como forma e tradição literária alcançam e reescrevem a história e as tradições culturais. Ao instituir o texto como ponto de partida e chegada, Rios evita cair no risco do sociologismo. Na leitura de Viagem infinita, é possível perceber que muitos dos impasses recentes da literatura africana não constituem novidade para nós. Não é que os tenhamos resolvido:

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tais impasses ainda persistem, porém se encontram num nível e sentido diferentes de quando surgiram pela primeira vez. Uma das questões fundamentais, por exemplo, é a da identidade nacional. Como construir uma identidade própria através da linguagem do colonizador? Nossos escritores românticos e modernistas tentaram responder uma questão que os africanos tentam resolver nestas décadas recentes. Portanto, nada mais natural que a nossa literatura tenha sido considerada, por alguns destes escritores africanos, como paradigma de rompimento com uma situação de dependência cultural, conforme afirma Elisalva Madruga no livro Nas trilhas da descoberta: a repercussão do modernismo brasileiro na literatura angolana. Tópicos como os da terra, da tradição e da infância, ainda segundo Elisalva, são freqüentes tanto na literatura angolana que se consolida quanto na nossa literatura modernista. Em diversos momentos, Rios enfatiza esses três aspectos, ao demonstrar que as crianças e os velhos exercem, em Terra sonâmbula, a função de realinhar o sonho utópico à memória. Moçambique, tal como Angola, tal como nós mesmos, se reconstrói. País em infância; mãe violentada. Num romance em que peregrinam linguagem e personagens, nada mais natural que Viagem infinita tenha um forte sabor de ensaio. O resultado é bem-sucedido, como neste trecho: “Tuahir, a partir de uma aprendizagem, vai abandonando as resistências da razão – deserto de solaridade cáustica – como se abre uma mão fechada em deslumbrante primavera. Os dedos vão se abrindo como uma rosa, pétala por pétala, até que o personagem se surpreenda, as mãos espalmadas, com o espanto do imaginário”. Em alguns momentos, no entanto, o texto de Peron Rios adquire um tom retórico excessivo. Com uma sólida erudição, o autor

A literatura do moçambicano Mia Couto alia um forte discurso de crítica social aos experimentos com a linguagem

faz citações não apenas às teorias da linguagem e da literatura, como também a outros textos literários, peças de teatro, filósofos e obras de arte. Mais uma vez, contudo, o crítico cai nas armadilhas de sua própria linguagem: aqui e ali o grande acúmulo de citações estagna o texto num peso de âncora. Muitos reclamam que as dissertações e teses colocam a literatura numa camisa-de-força chamada teoria. Em alguns casos, esta observação procede. Afinal, qual seria a utilidade da teoria? Tentar transformar dispersão em precisão. Funcionar como um instrumento que confere equilíbrio à análise da obra. Em Viagem infinita ela aparece de forma pontual, muito bem integrada às questões levantadas por Terra sonâmbula. Quando, por exemplo, Rios precisa lidar com as relações entre fala e escrita literária, as considerações teóricas aparecem no momento certo, com o fôlego apropriado à argumentação realizada. Em outro momento, ele consegue demonstrar bem por que a nomenclatura “literatura fantástica” não é adequada ao romance Terra sonâmbula. O fantástico propõe um curto-circuito no nosso conceito de real, através de um discurso ambíguo que causa rachaduras neste conceito e propõe a instabilidade como

viga-mestra da própria realidade. Os fantasmas que aparecem em Terra sonâmbula, por exemplo, não são um desafio ao que entendemos como real, eles fazem parte de uma cultura que acredita que os mortos continuam caminhando na terra e interagindo com os vivos. Faz falta, contudo, um aprofundamento sobre a pertinência, ou não, de pensar o romance com os conceitos de “realismo mágico” e “realismo maravilhoso”. Outra questão importante, que poderia ter sido melhor trabalhada, consiste na análise crítica da grande quantidade de neologismos que Mia Couto, na trilha aberta por Guimarães Rosa, cria. Até que ponto muitas destas palavras novas recaem num ludismo fácil e um tanto vazio? Mais ou menos no meio de Terra sonâmbula, o menino Muidinga diz: “Não inventaram ainda uma pólvora suave, maneirosa, capaz de explodir os homens sem lhes matar. Uma pólvora que, em avessos serviços, gerasse mais vida. E do homem explodido nascessem os infinitos homens que lhes estão por dentro”. Pólvora: literatura? É possível ao leitor brasileiro enxergar na Moçambique de Terra sonâmbula infinitos brasis, infinitas experiências de dor e esperança? Sim. À boa crítica, as faíscas. JUL 2008 • Continente x

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Mucamas cozinhei

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pontocom n ACeRvO

n PORTAL

entrevistas do Roda Viva vão para a rede

Comunidade de arte contemporânea Os interessados em arte contemporânea podem unir-se à forte comunidade virtual do Canal Contemporâneo. Completamente baseado na informação compartilhada, o Canal congrega artistas, críticos, curadores, pesquisadores, galeristas e interessados em arte num portal composto por fóruns, críticas, portfolios, blogs, programações de eventos entre outras informações. No link Como atiçar a brasa, o grupo lança posts com artigos publicados na imprensa, seguidos de comentários, com o objetivo de ampliar o destaque dado à arte contemporânea nas mídias tradicionais e às discussões sobre as políticas públicas culturais. (Mariana Oliveira)

Isso é como gravidez, ninguém fica só ‘um pouco’grávida. Um pequeno sistema de controle já tornaria a internet completamente diferente da rede livre, porque seria aplicado a inúmeras coisas."

nnn

jornalista canadense, editor do Boing Boing, o blog mais popular do mundo, segundo o ranking do site especializado technorati.com

canalcontemporaneo.art.br

Cory Doctorow,

Economicamente inviável para ser todo editado em papel, um dos maiores arquivos jornalísticos da tevê brasileira está agora disponível ao público, graças à internet. O Memória Roda Viva já colocou na web 205 entrevistas do seu acervo, em formato de texto, complementadas por verbetes, fotos e um vídeo do entrevistado. O programa, há 21 anos transmitido pela TV Cultura, já colocou na roda personalidades como Fidel Castro, Luís Carlos Prestes, Lula, Millôr Fernandes e Ayrton Senna. Semanalmente, serão inseridos outros programas, até que todos estejam no site, resultado de uma parceria entre a Cultura, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e a Unicamp. nnn

tvcultura.com.br/rodaviva/

n imAgem

O ditador, a garota e o fotógrafo O autor da foto ao lado é Guinaldo Nicolaevsky. O senhor com a mão estendida é o general Figueiredo, ditador de plantão entre 1979 e 1985, e a menina... Bem, ninguém sabe o paradeiro dela. O site Pictura Pixel, ao republicar a foto, em fevereiro, com texto do fotógrafo Cláudio Versiani e um depoimento do próprio Guinaldo, deflagrou a campanha "Quem é essa garota", que ganhou adesão na blogosfera. A foto foi tirada em 1979, em Belo Horizonte. Na época, Guinaldo já trazia no currículo passagens pelas principais revistas e jornais do país e muitas histórias de coberturas fotográficas de eventos políticos. O jornal O Globo, para o qual ele trabalhava, não publicou a foto, que acabou ganhando destaque na imprensa de oposição à ditadura militar e também no exterior. Guinaldo Nicolaevsky morreu em 27 de maio passado, aos 69 anos, sem ter notícias da garota. (Ricardo Melo) nnn

picturapixel.com/blog/?s=guinaldo&submit=Go

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BAiXe e OUÇA

POST DO mÊS - [ Blog do Sergio Amadeu ]

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Projeto de Lei aprovado em comissão no Senado cria o provedor dedo-duro

Ninguém melhor do que o experimentador Tom Zé para estrear um projeto alternativo da Trama, o Álbum Virtual, que disponibiliza o conteúdo integral de CDs, além de encartes, fichas técnicas e fotos. O show de Danç-Êh-Sá, álbum de 2006 do baiano, foi gravado num estúdio da Trama. Virou CD virtual, acrescido de dois vídeos. Nenhuma música de Danç-Êh-Sá tem letra: depois de ter visto uma pesquisa apontando a pouca importância que os jovens brasileiros dão às composições, Tom Zé “compôs” com ruídos, onomatopéias e vocalises, o que não é lá uma surpresa, em se tratando de suas miscelâneas ao longo de mais de 40 anos. albumvirtual.trama.com.br

FAvORiTO

Sexta Cultural Uma ótima pedida para quem se interessa pelo que se discute sobre cultura hoje em Pernambuco é o Blog da Sexta Cultural. O segmento de arte e entretenimento do programa Opinião Pernambuco, da TV Universitária (Canal 11 / Recife), vai ao ar sempre às sextasfeiras, 20h, e agora conta com um blog próprio. sextacultural.zip.net

Na última semana, em uma sessão corrida e esvaziada, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o projeto de lei (PLC) 89/03 que define quais serão as condutas criminosas na internet. Os exageros que constam do projeto podem colocar em risco a liberdade de expressão, impedir as redes abertas wireless, além de aumentar os custos da manutenção de redes informacionais. O mais grave é que o projeto apenas amplia as possibilidades de vigilância dos cidadãos comuns pelo Estado, pelos grupos que vendem informações e pelos criminosos, uma vez que dificulta a navegação anônima na rede. Crackers navegam sob a proteção de mecanismos sofisticados que dificultam a sua identificação. (Continua no blog)

PeRFiL Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. É professor da pós -graduação da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero. Autor de várias publicações, entre elas: Exclusão digital: a miséria na era da informação. Militante do Software Livre. samadeu.blogspot.com

n POLÊmiCA

Corintianos "tomam" a ilha do Retiro A manipulação do áudio na transmissão da final da Copa do Brasil, entre Sport e Corinthians, pela Rede Globo, bombou na web. No site Blue Bus, o colunista Júlio Moreira denunciou: “Não pára, não pára, não pára! Este era o canto da torcida organizada do Corinthians que se ouvia ontem à noite, durante o início da transmissão do jogo pela TV Globo. Pelo menos aqui em São Paulo (...) Mas veja, o Estádio da Ilha do Retiro tem capacidade para 36 mil pessoas, das quais 35 mil eram torcedores do Sport e apenas 1000 torciam para o Corinthians. Como então o canto da torcida era corintiano?” No Observatório da Imprensa, o jornalista Walter Falceta Jr. saiu-

se com essa: “Alternar o punctum do áudio não consiste em ‘agradar’, mas em informar quem, na oportunidade do espetáculo, é minoria dentro e maioria fora. Se preciso, que se convoque o sr. Roland Barthes ao debate”. Tenho minhas dúvidas se Roland Barthes, se vivo estivesse, toparia entrar nesta polêmica, mas o recém-inaugurado site de memórias da Globo bem que poderia definir qual versão da partida deixará para a História. (RM) nnn

observatorio.ultimosegundo.ig.com.br bluebus.com.br memoriaglobo.globo.com JUL 2008 • Continente

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CRÔNICA

Imprensa no Brasil

200

anos

Em comemoração aos 200 Anos da Imprensa no Brasil, a Continente continua publicando crônicas de autores nascidos em Pernambuco ou que tiveram forte relação com o Estado. “O amor perdoa...” é da ativista Anayde Beiriz, que nasceu em 18 de fevereiro de 1905 em João Pessoa, Paraíba. Professora, alfabetizava pescadores da vila de Cabedelo. Tinha idéias progressistas e participava ativamente do movimento intelectual e artístico da cidade. Vestia roupas decotadas, cabelo cortado a la garçonne, defendia a participação das mulheres na política e não se prendia a relacionamentos amorosos convencionais. Tinha, aliás, um caso com João Dantas, político local que fazia oposição ao governador da Paraíba, João Pessoa. Quando este roubou e publicou sua correspondência íntima, incluindo as cartas amorosas de Anayde, Dantas matou o governador a tiros. Preso, foi levado para a Casa de Detenção, no Recife, onde apareceu degolado, em 8 de outubro de 1930. A morte foi dada, oficialmente, como suicídio. Anayde foi encontrada envenenada, no dia 22 do mesmo mês. Tinha apenas 25 anos.

CRÔNICA

O amor perdoa... Anayde Beiriz

T

inha uma boca que sorria sem alegria e uns olhos que choravam sem lágrimas... Loira como uma partícula de sol. Chamava-se: – um nome pequenino como ela mesma – Nelly. Viera de longe, lá das terras das montanhas geladas, dos lagos cristalizados, dos países nevoentos onde não há claridade de sol... Tinha, por isto, a cor da neve que vestia o cume das montanhas da sua terra. Conheci-a, de lá. Apresentou-ma o amante, o romancista Jean Martin, por quem a sabia apaixonada. – Encheu-me a vida de encantamento e o coração de amor – disse-me ele, alegre, um sorriso comovido no rosto simpático. Foi isto há dois anos, quase. De então, não mais ouviu falar nela. Daí, a minha surpresa encontrá-lo errando na multidão cosmopolita que enchia o salão do hotel, a tristeza azul do olhar e a rósea doçura do sorriso... – Já não sabe quem sou, juro-o... Estendeu-me a mão, longa e branca, que a gota de sangue de um rubi manchava. – Juraria falso, acredite. Apertei-lhe os dedos fuselados, de unhas polidas, dizendo-lhe da minha alegria – mesclada à curiosidade – de avistá-la ali. Sorriu, apontando-me, convidativa, um lugar perto de si. Teve uma frase banal: – Contingências da sorte, minha amiga. Conversamos, frivolamente, longamente. – Jean? Recolheu o sorriso, e numa emoção inconsciente: – Em Nice. Escreve um novo romance e ama uma nova mulher. A ninguém que, involuntariamente, lhe escorria da voz, refreou-me a pergunta indiscreta. Compreendeu-o. Calou-se também, escondendo nesta mudez a resignada amargura da sua saudade, a revolta inútil do seu desespero. Logo, continuou... A voz parecia ter freio: – Há três meses. Deixou-me por uma atriz, uma bailarina espanhola que o enganara e por quem, dizem, está enlouquecido de paixão. Talvez seja por isso que ele a ame tanto.

Eu nunca lhe fui infiel; era-lhe estupidamente sincera e isso, por certo, o aborrecia. Os homens, parece, têm a volúpia de serem ou de se crerem enganados. A imutabilidade do sentimento da mulher amada enfara-os. Só o amor que apresente a traição pode viver, porque o ciúme não o deixa morrer. Mas eu não sabia ainda isto, não podia saber... E só agora, que é tarde, aprendi... Silenciou, outra vez. Olhou lá fora. No céu muito azul, varrido de estrelas, apenas o recorte luminoso do crescente. No jardim, as flores dormiam, ressonando perfumes. As rosas eram chagas sangrentas, abertas no corpo verde das roseiras... O lago, com frio, enrola-se no lençol do luar. Do salão, chegavam-nos uma surdina de vozes e o choro do violino que se desmanchavam em lágrimas de sons. Como demorasse calada, insinuei consolando: Mas isso não durará, talvez, longo tempo. A paixão morre breve, quando não se torna amor. E, sinceramente, não creio que ele ame essa mulher. A saciedade de uma trará depressa a saudade da outra... Quando o souberes sozinho, Nelly, vai ter com ele... Na paisagem triste do olhar, o Sol Verde brilhou, mas no sorriso nevavam ainda desenganos. Replicou: – Mesmo que fosse como dizes, eu não seguiria o teu conselho... Seria isso a confissão de que não o esqueci, no abandono. Não. Ele não haverá nunca de saber que eu sofri, nem de dizer que eu o incitei a essa volta ao passado... – Mas então é que não o amas, não o amaste nunca. Não amou uma, quem não perdoa muitas vezes. E recusas perdoar, apenas uma vez... Calcou a gota sanguínea do rubi: olhar novamente, lá fora, agora com um olhar mais demorado... E concluiu, baixo, a voz menos triste, mais doce: – Iria. Perdoaria... se ele me pedisse que o perdoasse... Publicado na Revista da Cidade, 13 de outubro de 1928. Ano III, nº 125.

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metrópole

Marcella Sampaio

Sobre meninas e mulheres

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Divulgação

m dos filmes mais interessantes dos últimos tempos, Juno (foto), que conta a história da gravidez precoce de uma menina particularmente encantadora e inteligente, traz à baila questões como a consciência da própria falta de maturidade e a impossibilidade de levar adiante responsabilidades que, a priori, fariam parte apenas da vida adulta. No filme, a clareza com que Juno percebe a própria condição deixa no ar uma pergunta: não seria ela, afinal e paradoxalmente, a mais madura entre todos os envolvidos com a questão? Ela não oscila, é dona de firmes convicções e argumenta com uma lógica que impressiona. A pouca idade não impede que enxergue a mulher que pretende ser no futuro, e as suas ações estão todas voltadas para o caminho que ela considera justo e digno. As meninas que crescem e precisam assumir as tais responsabilidades frente a um mundo cheio de apelos contraditórios entre si são as personagens principais da película que, de certa forma, também trata de crescimento e maturidade. Comentadíssimo e assistidíssimo nos quatro cantos do mundo, Sex and the City talvez pretenda revelar a concretização das possibilidades que uma garota como Juno teria aos 16 anos. A grande questão do filme é que, para elas (as pós-balzaquianas), o tempo já não está tão a favor, pelo menos no que diz respeito ao que a sociedade espera de uma mulher “bem-sucedida” (marido,

filho(s), emprego estável e rentável etc...). Quais seriam, então, essas possibilidades? O que uma menina bacana como Juno pode esperar do porvir? A grosso modo, segundo a série e o filme, as adolescentes da pós-modernidade podem virar mulheres com pânico de relacionamento, duronas e workaholics; princesinhas doces em busca do encantado; moças sexualmente vorazes e insensíveis a qualquer demonstração de afeto que crie vínculos; ou, finalmente, alguém que resume várias dessas características de acordo com o momento, refletindo o tempo todo sobre a própria condição. Mesmo compartimentadas nos estereótipos que elas mesmas criaram para si, as mulheres maduras urbanas sabem que mudar de rumo hoje é mais fácil que antes, o que, por si só, não deixa a vida menos angustiante, pelo contrário. O fato das possibilidades serem muitas só aumenta a responsabilidade da escolha. A jovem Juno tem toda a vida pela frente. Embora não saiba ainda o que quer, tem certeza do que não quer: casamento-clichê, filho antes da hora, crescer e perder a leveza. As moças de Sex and The City, noves fora os questionamentos estéticos que possam estar relacionados ao filme, entenderam finalmente que a trajetória e o ponto final não são coisas muito diferentes uma da outra. Ao chegarem lá, no lugar onde tanto desejaram, descobriram que em alguns momentos as expectativas eram muito mais interessantes que a realidade, a despeito de tantas reflexões, às vezes até um tanto amargas. Os desejos têm dessas coisas: de vez em quando se concretizam. JUL 2008 • Continente 

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