aos leitores
P
ela primeira vez em sua história, a Cepe constitui um Conselho Editorial, com o objetivo de assessorar a Diretoria na edição de publicações e obras de relevância sobre a cultura pernambucana. O novo órgão é presidido pelo jornalista e escritor Mário Hélio e composto pelo professor Luís Reis, o arquiteto José Luiz Mota Menezes, a jornalista Cristhiane Cordeiro e a escritora Luzilá Gonçalves, que deixa de assinar a coluna Entre Linhas para se dedicar com exclusividade à nova tarefa. Para ocupar seu lugar foi convidado o pintor José Cláudio, que consegue escrever tão bem quanto pinta, sempre com uma percepção peculiar das coisas e uma erudição que não se exibe, aflora naturalmente. • Em nossa matéria de capa, mostramos que a música brega já se tornou indústria – e muito rentável. O sucesso avassalador de artistas e bandas classificados nesse polêmico “gênero” musical leva aqueles que investigam as relações entre cultura de massa e cultura popular a muitas indagações. Sem o background de grandes gravadoras ou incentivos estatais, a onda brega toma conta das rádios, TVs e palcos do país – tornando-se um fato cultural que não pode mais ser desprezado. No ano passado, a banda Calypso bateu a dupla Zezé Di Camargo e Luciano conquistando, em pesquisa do Datafolha, o título de músicos mais ouvidos do Brasil. Tamanha popularidade pode ser explicada por vários fatores, mas seguramente um deles é o viés econômico. A opção pela autogestão da carreira dá independência financeira e flexibilidade às bandas. A Continente investiga esse fenômeno sob vários aspectos. Em primeiro lugar, discutimos como se dá o funcionamento econômico dessa indústria; depois, buscamos traçar uma genealogia do gênero, desde sua origem como uma música romanticamente inocente e melosa até sua apelativa versão atual, a fuleiragem music, nas palavras do jornalista e crítico musical José Teles; por último, refletimos com mais profundidade e sem preconceito sobre uma questão que ainda não está resolvida: o brega é uma manifestação da cultura popular ou não passa de um fenômeno mercadológico de massa? Ou é algo que foge a essa esquematização? • Em matéria especial especial, o repórter Samarone Lima escreve sobre bibliotecas comunitárias criadas e mantidas exclusivamente pela dedicação de “militantes da leitura” e que funcionam em bairros com índices de violência muito altos, como o Coque. Outros temas presentes, nesta edição, são as exposições do acervo do MAC USP, no Museu do Estado de Pernambuco; um conto inédito do novo livro de Dalton Trevisan e os 10 anos da morte e 40 da estréia literária de Maximiano Campos.
Mário Hélio, Luzilá, José Luiz, Cristhiane e Luís Reis integram o Conselho da Cepe
Fotos: Rafael Gomes
O novo Conselho
Dança feita em coletivos
Divulgação
Cia da Foto/Divulgação
Divulgação
Rafael Gomes
O brega e a sua indústria O universo do cordel em mostra O cinema e a TV para Guel Arraes
CONVERSA 4 >> Guel Arraes: uma referência no audiovisual brasileiro
TRADIÇÕES 62 >> Cordel ganha exposição
BALAIO 10 >> As confusas listas de frases absurdas
CINEMA 64 >> Um muro enigmático e instigante
CAPA 12 >> Brega: cultura popular ou cultura de massa? 16 >> O brega de hoje não é o mesmo de ontem 19 >> O fenômeno que tomou conta do Brasil
HISTÓRIA 66 >> Monumentos da Antiguidade ameaçados
LITERATURA 26 >> Há 40 anos estreava o escritor Maximiano Campos 30 >> Um conto inédito de Dalton Trevisan 32 >> Ângelo Monteiro lança seleção poética 34 >> Festival busca saídas para incentivar literatura 36 >> A presença atemporal de Osman Lins 39 >> A poesia de Márcia Maia 40 >> O caso do assalto na padaria 42 >> Agenda livros 44 >> Os descaminhos da poesia moderna AGENDA.COM 46 >> O novo portal da Revista Continente ARTES 48 >> Acervo do MAC de São Paulo chega ao Recife 54 >> Cultura e paisagem na obra de Bruno Vieira 58 >> Livro analisa a trajetória de Hélio Oiticica
MÚSICA 73 >> Nos bastidores da música erudita 76 >> Agenda música ESPECIAL 78 >> A militância pelas bibliotecas comunitárias 84 >> O leitor que retirou 99 livros, em um ano 84 >> O açougue que virou biblioteca CÊNICAS 86 >> Coletivos de dança buscam autonomia criativa 90 >> Lou Salomé e Rilke no palco 92 >> Lapada: o coletivo dos coletivos de teatro CRÔNICA 95 >> Renato Carneiro Campos
2 Continente • AGO 2008
Sumario_2_3.indd 2
7/24/2008 4:31:08 PM
Bruno Vieira/Divulgação Fotos: Rafael Gomes
www.continenteonline.com.br
Osman Lins em vídeo
Bruno Vieira expõe na Mariana Moura Bibliotecas comunitárias no Recife
O escritor Osman Lins, cuja morte completou 30 anos no último mês de julho, está entre os principais criadores da literatura brasileira do século 20. Nascido em Vitória de Santo Antão, viveu muitos anos em São Paulo, longe de suas três filhas. O vídeo Quarteto revela as correspondências do pai e escritor Osman Lins com suas três meninas.
Rafael Gomes
e mais...
Arquivo CEPE
COLUNAS
Confira o ensaio do fotógrafo Dada Petrole sobre o Cariri A maior exposição individual de Duchamp na América Latina
José Cláudio estréia coluna
MATÉRIA CORRIDA 40 >> O amanhecer de um novo dia TRADUZIR-SE 60 >> Para entender Duchamp SABORES 70 >> A sopa nossa de cada dia METRÓPOLE 96 >> Literatura tembém é mercado
Saiba mais sobre o lançamento do novo CD da banda Fim de Feira e ouça as faixas na íntegra
Vídeo Cultura em Revista Pernambucana faz um registro histórico das revistas culturais de Pernambuco AGO 2008 • Continente
Sumario_2_3.indd 3
3
7/24/2008 4:33:24 PM
conversa Guel Arraes Ainda é comum que os críticos da televisão vivam em alerta contra a 'estética da TV' no cinema, o que já considero um avanço: antes não se reconhecia nem que a TV pudesse ter uma estética
Imagens: Divulgação
Entre o cinema e a televisão x Continente • AGO 2008
Uma das principais referências do cinema e da televisão brasileiros, Guel Arraes tem sua trajetória profissional analisada em livro que reúne artigos de seis pesquisadores do audiovisual do país ENTREVISTA A Alexandre Figueirôa e Yvana Fechine
O
pernambucano Guel Arraes é um dos mais respeitados criadores de televisão do Brasil. Filho do ex-governador Miguel Arraes, viveu na Argélia e na França depois que seu pai foi deposto pelo regime militar, em 1964. Em Paris, estudou antropologia e participou do Comitê do Filme Etnográfico, quando travou contato com o criador do cinema verdade, o etnólogo e documentarista Jean Rouch, e adquiriu uma formação quase autodidata em cinema. De volta ao Brasil, em 1980, acabou indo para a TV Globo, onde passou a trabalhar com Silvio de Abreu, e junto com Jorge Fernando, colaborou na direção de telenovelas. Aberto às diversas influências – da nouvelle vague francesa às chanchadas da Atlântida –, acabou por se tornar diretor de um núcleo de produção da Rede Globo e tem comandado equipes responsáveis por programas, minisséries, seriados e quadros, que se tornaram sinônimo de entretenimento inteligente na TV. Armação ilimitada, TV Pirata, Programa legal, Comédia da vida privada, Central da periferia, e tantos outros, são marcos de uma proposta estética de qualidade que permitiram abertura de espaço ao experimentalismo na maior emissora comercial do Brasil. Nos anos 90, Guel foi um dos responsáveis pela reconfiguração do mercado audiovisual brasileiro, a partir da articulação das produções televisiva e cinematográfica. Experiências de transformação de minisséries em filmes, como O
auto da compadecida, e A invenção do Brasil, são exemplares no cenário de convergência entre os dois campos. Como cineasta, Guel dirigiu ainda o filme Lisbela e o prisioneiro, adaptação do texto homônimo de Osman Lins, produziu sucessos como A grande família e agora volta às telas como diretor de Romance. Em setembro, com edição da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE, chega às livrarias Guel Arraes: uma referência na trajetória audiovisual brasileira, coletânea pioneira de textos sobre Guel Arraes, evidenciando a sua importância para se compreender transformações e características da produção audiovisual brasileira e reunindo artigos de seis pesquisadores que se propõem a discutir distintos aspectos da sua atuação. Em meio às viagens de promoção
de seu novo filme, Guel conversou conosco sobre os rumos de sua carreira: O que o Núcleo Guel Arraes tem feito de mais inovador nos últimos anos? Um método de trabalho coletivo, juntando autores e diretores e muitas vezes atores também. A busca de equilíbrio entre o experimental e o comercial na TV aberta. Esse núcleo possui ainda o mesmo pendor experimental dos anos 80? Nós continuamos tentando. Mas, nos anos 80, a dinâmica de grupo era mais intensa. Hoje, os criadores estão mais dispersos, os trabalhos mais individualizados. A partir da sua associação com produtoras independentes, o
O coronel e o lobisomem, de Guel Arraes, filme baseado na obra de José Cândido de Carvalho
AGO 2008 • Continente x
Poder contar com um estudo acadêmico tão abrangente vai nos ajudar a fazer um balanço destas mais de duas décadas de produção audiovisual
Núcleo promoveu, no Brasil, uma articulação pioneira entre a produção cinematográfica e televisiva, acolhendo projetos pensados, ao mesmo tempo, como filme e minissérie. São exemplos disso, além do bemsucedido Cidade dos homens, as produções Carandiru – outras histórias e Antônia. Depois de incorporar inovações do vídeo independente, do teatro alternativo dos jornais nanicos (nos anos 80), é esse o novo caminho de inovação do Núcleo? Por definição, muitas das inovações destas produções são mérito das próprias produtoras e de seus criadores, pois a idéia é partir de um projeto trazido por elas. E é certo que elas vêm nos alimentando com idéias novas e entusiasmo na maneira de realizá-las. O Núcleo se tornou conhecido por seu experimentalismo. Nesse cenário de implantação da TV digital do Brasil, tem havido, entre vocês, alguma preocupação com a experimentação de novas formas narrativas que explorem as potencialidades do meio (narrativas interativas, por exemplo) ou novos modos de roteirização e de produções transmídias? O novo projeto para o Central da periferia, proposto pelo Hermano Vianna, deverá ser feito com muito conteúdo colaborativo, um pouco à maneira do site Overmundo. Recentemente, o Jorge Furtado e eu fizemos escaletas de seis programas para o seriado Ópaió e enviamos para o Bando de Teatro Olodum improvisar os diálogos.
x Continente • AGO 2008
Em seguida, reescrevemos os programas, aproveitando parte deste material. Qual a avaliação que você faz do seu papel e trabalho, hoje, no cenário da produção cinematográfica brasileira? Até agora ele tem sido mais ou menos o mesmo que na televisão: procurar um equilíbrio entre experimentação e comunicação com um público mais vasto. Apenas na TV e no cinema os vetores encontram-se invertidos: na primeira, costuma haver mais comércio que experimentação; no segundo, o contrário. Mas, se o cinema pode abrir mais espaço, proporcionalmente, para a experimentação que a TV comercial, acho que o cinema brasileiro não sobreviverá só disso, pois precisa também de uma boa platéia. No cinema que você produz ou dirige, é possível falar também da existência de um grupo
Divulgação
Romance (ao lado) é o mais novo filme de Guel Arraes.
de criadores articulado assim como ocorreu na TV e resultou no Núcleo? Em outras palavras, o “núcleo Guel Arraes” pode ser identificado também na produção cinematográfica? Sim, na medida em que esta tentativa de conquistar um público e ao mesmo tempo inquietá-lo também está presente na TV.
considera um filme mais pessoal, menos vinculado a essas relações com a televisão? Eu o considero um filme mais autoral. Embora as relações com a TV também façam parte do que considero meu trabalho autoral. Aliás, além de seu tema principal, o romance, o filme também fala das relações entre a arte e indústria.
Como vê a atuação e o papel da Globo Filmes? Qual o seu papel nela? A Globo Filmes tem contribuído muito para a formação de um Cinema Popular Brasileiro. Minha função tem sido a mesma da TV: às vezes criador, às vezes produtor artístico. Acho que este cinema mais dirigido ao público, antes quase que só restrito aos filmes infantis, vem se diversificando e melhorando a sua qualidade artística.
Como você avalia, de modo geral, as relações entre cinema e TV no Brasil no momento atual? Acho que há menos preconceito dos dois lados. Mas ainda é comum que os críticos da televisão vivam em alerta contra a “estética da TV” no cinema, o que já considero um avanço: antes não se reconhecia nem que a TV pudesse ter uma estética.
O seu novo filme Romance acompanha a mesma lógica das produções anteriores ou você o
Em matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo, recentemente, informa-se que o Núcleo Guel Arraes foi chamado para “alavancar” a audiência do
Fantástico. Como você encara esse desafio? Na verdade, já trabalho no Fantástico há muitos anos, produzindo cerca de dois quadros por semana. Mais recentemente, convidei Cláudio Paiva e Maurício Farias para entrarem neste trabalho comigo e diversificamos a produção ao mesmo tempo que estreitamos os laços com o jornalismo. Como você recebeu a iniciativa de um livro sobre sua produção audiovisual? A decisão de estudar nosso trabalho já é o reconhecimento de sua relevância e isto nos deixa bastante honrados. Além disso, para nós que produzimos na urgência do dia-a-dia, que temos acesso apenas a críticas, na maioria impressionistas sobre o que fazemos, poder contar com um estudo acadêmico tão abrangente vai nos ajudar a fazer um balanço destas mais de duas décadas de produção audiovisual. AGO 2008 • Continente x
Agosto 2008 – Ano 8 Capa: Leo Caldas/ Titular
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo
Colaboradores desta edição:
Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses
ALEXANDRE FIGUERÔA Jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle.
Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Superintendente de Edição
Homero Fonseca
ANA MARIA MAIA Jornalista e editora do portal Doispontos. ARTUR ATAÍDE Crítico literário e integrante do corpo editorial da revista Crispim.
Superintendente de Produção
Marco Polo
Superintendente de Criação
Luiz Arrais
ASTIER BASÍLIO Jornalista, escritor e dramaturgo, autor do livro de poemas Antimercadoria (2005). BRUNO BRITO Jornalista.
Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira (redação) Thiago Lins (assistente de redação) Maria Helena Pôrto (revisão) Gabriela Lobo, Lucas Paes e Yuri Bruscky (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio)
CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico musical da Continente.
Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza
CHRISTIANNE GALDINO Jornalista e crítica de dança.
Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)
FERNANDO FONTANELLA Professor do curso de Publicidade e Propaganda da Unicap e mestre em Comunicação pela UFPE.
Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves
FERNANDO MONTEIRO Escritor e cineasta.
Supervisão de Impressão Eliseu Souza
GEISA AGRICIO Jornalista.
Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira
Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes
JOSÉ TELLES Jornalista e crítico de música popular.
Superintendente de Negócios Armando Lemos
LUIZ CARLOS MONTEIRO Poeta e crítico cultural.
Departamento de Marketing Alexandre Monteiro
MARCELO COSTA Jornalista e crítico de cinema da Continente.
Publicidade Rosana Galvão
RODRIGO DOURADO Jornalista e mestrando em Comunicação.
Contatos com a Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@revistacontinente.com.br
SAMARONE LIMA Jornalista.
Edição eletrônica www.continenteonline.com.br
YVANA FECHINE Jornalista e professora do programa de pós-graduação em comunicação na UFPE.
Atendimento ao Assinante 0800 81 1201/3217.2581 assinaturas@revistacontinente.com.br
Colunistas:
Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita
Expediente_Cartas_8_9.indd 8
FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e autor de livros como Poema sujo, Dentro da noite veloz, Muitas vozes e Cultura posta em questão. JOSÉ CLÁUDIO Pintor. MARCELLA SAMPAIO Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.
7/24/2008 4:16:04 PM
cartas
Arquivo CEPE
Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 Redação: redacao@revistacontinente.com.br
EUDÓCIO E O TEA Foi com grande prazer que encontrei, na edição de julho da Continente, uma reportagem sobre o Teatro Experimental de Arte – TEA de Caruaru e sobre o grande Manoel Eudócio. Vivo na "capital do agreste" e tenho muito orgulho de tudo que é feito por aqui. O trabalho de Agemiro Pascoal e Arary Marrocos merece todos os elogios. Há mais de 40 anos eles mantêm a paixão pelo teatro em Caruaru. Manoel Eudócio e os outros artistas do Alto do Moura também são um orgulho para a cidade. Parabéns pelo material! João Silva Brito, Caruaru – PE
O CINEMA DE ESCOREL A entrevista com o cineasta Eduardo Escorel revela, além de um grande realizador, um autêntico pensador do cinema nacional. Concordo com ele, quando diz que, no Brasil, o gênero documentário sobrepõe-se em qualidade ao cinema de ficção. Aldemir Andrade, Recife – PE
A REVISTA Sou escritor, assinante da Continente e venho acompanhando o desenvolvimento dessa excelente revista. Fiquei tão bem impressionado com o primeiro exemplar que li, que cheguei a enviá-lo para meu irmão, professor da UNESP em Jaboticabal, São Paulo, a fim de que ele soubesse que aqui no Recife já se faz uma revista dessa envergadura. Shoia Durand, Recife – PE
GILVAN LEMOS Merecido o registro do octogésimo aniversário do escritor Gilvan Lemos. A matéria está sóbria e bem-argumentada, sem cair no discurso simplesmente laudatório. Guilherme Paiva, São Bento do Una – PE
NOTA DA REDAÇÃO
A matéria "Um Dom Quixote encabulado", publicada na edição anterior, a respeito dos 80 anos do escritor Gilvan Lemos, é de autoria do jornalista Cristiano Ramos.
O cineasta Woody Allen
Hollywood até que gosta quando um filme sai bom, mas eles gostariam muito mais de ver um filme que saísse não muito bom, mas que gerasse muito dinheiro. É por isso que vemos tanta coisa ruim, produtos de equipes inteiras que trabalham duro para dominar uma fórmula que engessa por completo o processo criativo, assim minimizando os riscos e aumentando a possibilidade de lucro. (...) Parece que a crítica, mesmo nos Estados Unidos, escolheu fazer vista grossa com os meus erros e limitações, destacando sempre as coisas boas que eu fiz. Não que tenha sido assim sempre, mas percebo uma enorme generosidade. Woody Allen , em entrevista realizada por Kleber Mendonça Filho, durante o Festival de Cannes de 2002
Revista nº 30 Junho/03 Matéria: "Um cego poderia ter filmado isso"
Expediente_Cartas_8_9.indd 9
7/24/2008 4:17:36 PM
Imagens: Reprodução
Curiosidades confusas De vez em quando aparecem listas de frases absurdas de alunos mal (in)formados, em provas do vestibular. No site Possibilidades inusitadas, um certo prof. Bandeira faz a sua misturando indiscriminadamente maluquices engraçadas ou surrealistas como "Lavoisier foi guilhotinado por ter inventado o oxigênio" ou "As aves têm na boca um dente chamado bico" com outras que são verdadeiros achados poéticos como "A harpa é uma asa que toca" ou "A insônia consiste em dormir ao contrário". Seria muito pedir ao professor que separasse o “toio” do “jrigo”? (Marco Polo)
Dançando no escuro Apesar da primeira graduação em dança ter surgido há 50 anos (na UFBA), os pesquisadores desta área ainda sofrem com a falta de espaço para abrigar seus projetos e acabam buscando brechas em cursos e instituições de outras áreas. O resultado? Muitas pesquisas sendo desenvolvida, mas pulverizadas e invisíveis. Por isso, alguns professores, pesquisadores e artistas se reuniram na UFBA, nos dias 03 e 04 de julho, para apresentar o primeiro Catálogo Nacional de Pesquisa em Dança (CD ROM), contendo 180 resumos de trabalhos realizados por pesquisadores brasileiros de todas as regiões do país. O catálogo impresso das pesquisas mapeadas será lançado este ano. (Chris Galdino)
Interpretações
Falares de cá e lá
Em recente entrevista a Paula Picarelli (TV Cultura), Mário Prata revelou que uma de suas crônicas constou no programa do vestibular de universidade. Seguiam-se oito perguntas de interpretação do texto. Ele as respondeu e conferiu no gabarito: foi reprovado, por não acertar uma só resposta sobre sua própria escrita. E arrematou, entre perplexo e gozador: “Mas o que eu queria dizer era exatamente o que estava no texto!” (Homero Fonseca)
Nos últimos 30 anos, a presença brasileira na televisão portuguesa tem sido constante. São as telenovelas, os programas humorísticos, filmes e séries, bordões e gírias. Tudo começou com Gabriela e daí para a frente passou a ser “cotidiária”. O esperado “choque lingüístico”, contudo, não aconteceu, e a “invasão”, que tanto os portugueses temiam, foi totalmente “descomida” e banalizada. Durante essas três décadas, consumindo produtos brasileiros, muito pouca coisa foi absorvida no falar português, e quase todas as expressões tomadas por empréstimo se revelaram de enorme utilidade. Eram palavras que faziam falta e foram bem-vindas. É o caso de manchete, que substituiu parangona, contramão em vez de sentido contrário, mordomia, tudo bem, churrascaria de rodízio, picanha, caipirinha, chuteira etc. Bicha, que no Brasil e em Portugal, originariamente, significava fila, ganhou nos dois países significado de homossexual masculino, mas que já está a ser ultrapassado pelo termo saxônico gay. Do italiano, via Brasil, entrou a saudação ciao, substituindo o poético e lusitaníssimo adeus, o que é uma pena. (Duda Guennes, de
Colonialismo O sax tenor Moacyr Silva, da orquestra do Maestro Zaccharias, gravou um LP solo em 1958 com standards americanos pelo selo Musidisc, acompanhado por piano, baixo e bateria. Um sucesso nas vitrolas em festas de casa de jovens que dançavam agarradinhos ao som de... Bob Fleming, pseudônimo que a gravadora impôs ao músico, para “americanizar” o seu produto fonográfico. (HF)
DESAFORISMOS
Lisboa)
"É melhor morrer de vodca do que de tédio" Maiakovski
Burrocracia Da coluna "Direto da Fonte", de Sonia Racy, nO Estado de S. Paulo, de 8 de junho: um parecer do MinC justificava a demora em liberar o espetáculo O processo, para incentivos da Lei Rouanet. É que faltava a assinatura de um certo... Franz Kafka. (Luiz Arrais)
10 x Continente • AGO 2008
Balaio agosto 10_11.indd 10
7/23/2008 4:21:21 PM
Única presença brasileira entre os oito escritores que encerraram a sexta edição da Flip, lendo trechos de alguns de seus “livros favoritos”, a gaúcha Cíntia Moscovich teria o direito – inclusive constitucional, reconheço – de escolher, para a sua leitura, até um trecho de autoria da “mãe-de-calô-de-figo”, tudo bem. Mas, que tal se a moça houvesse aproveitado a oportunidade para homenagear algum autor brasileiro vivo ou morto (por exemplo, Machado de Assis, cujo centenário de morte está transcorrendo – neste 2008 que marca também o centenário de nascimento de Guimarães Rosa), no lugar de ler trecho de um dos romances do apenas mediano escritor israelense Amos Oz? (Fernando Monteiro)
Cinemateca lusa A Cinemateca Portuguesa completou 50 anos, em junho. E até o final de 2008, estará comemorando o cinqüentenário com mostra de vários clássicos, revisão de ciclos e uma exposição que contará não só a história do edifício-sede, mas também exibirá todos os catálogos, cartazes e fotografias que documentam a história dessa muito especial sala de cinema de Lisboa. Também está programado um ciclo dedicado ao realizador português António Lopes Ribeiro, cujo centenário transcorre neste ano. (FM).
Divulgação
Alienígenas
Colesterol, Yes Os produtos low-fat (com baixo teor de gordura) têm um nicho de mercado garantido na Grã-Bretanha e na Irlanda, possivelmente resultado de uma consciência alimentar adquirida se pensarmos por exemplo no alto colesterol gritante do tradicional full breakfast inglês e suas variações no resto do Reino Unido, no Eire e nos Estados Unidos, sempre à base de ovos e bacon. Em Edimburgo, o Scottish Breakfast leva ovos estrelados, bacon, feijão, lingüiça frita, salsicha idem, white pudding (tipo uma tortilha de banha de porco, sem sangue – com sangue é o black pudding), torradas e margarina. O sabor do feijão não se parece nada com o nosso, é bem adocicado, e o caldo dele é menos espesso. (Carlos Eduardo Amaral)
Sem patriotadas A escritora portuguesa Inês Pedrosa, autora de A eternidade e o desejo, comparando Eça de Queiroz e Machado de Assis, diz que o primeiro tinha certo viés sociológico, enquanto o brasileiro, além de primar pela construção psicológica dos personagens, alçava o estilo a uma construção estética. (HF)
“Nada tenho a dizer fora dos livros. Só a obra interessa, o autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista.” Dalton Trevisan
IMPACTO Como a poesia entrou de vez na sua vida? "Para essas coisas do lado artístico, sou eu e a Torre de Pisa: sempre tive inclinação. Sempre fui de desenhar, pintar, tocar violão, compor alguma coisa, ouvir, dizer causos e recitar. Traquejava com arquitetura, e a poesia era o leite de coco do meu “manguzá”. Minha incursão literária começou em 1996, com o livro Paisagem de interior. Hoje, são sete livros e quatro CDs. A mudança de arquiteto para poeta e artista foi se dando aos poucospouquinhos, e com cuidado, como quem carrega roupa engomada. Com a publicação dos dois primeiros livros, fui marcando presença, feito pimenta em panelada, e os convites foram aumentando. Em 2001, após o lançamento do livro Prosa morena, não pude mais fugir a este reconhecimento e a poesia foi assumindo a dianteira. Hoje, faço alguns projetos de arquitetura, mas não como antes. Agora, faço poesia e espetáculos, e o arquiteto observa tudo, quietinho, feito ajudante de missa." Jessier Quirino, arquiteto e poeta AGO 2008 • Continente
Balaio agosto 10_11.indd 11
11
7/23/2008 4:21:35 PM
CAPA
O fenômeno Embora o brega tenha sido pensado em monografias, publicações e eventos culturais dos mais diversos, essa discussão não se esgota Fernando Fontanella
O
brega é cultura popular? Fazer essa pergunta, hoje, talvez seja entrar tarde demais no assunto, pois o brega e suas variações (tecnobrega, brega pop, brega paraense ou recifense) já entraram na esfera de interesse do debate cultural há alguns anos, acompanhando a reaproximação da academia e dos meios de comunicação com estéticas emergentes das periferias das grandes cidades. Além disso, a “onda” midiática do brega que tomou a região metropolitana do Recife apenas alguns anos atrás aparentemente esmaeceu, ou talvez melhor, desdobrou-se em outros estilos que se adaptam às dinâmicas do consumo das audiências locais. No entanto, feita a proposta de discutir o brega nessas páginas, é pertinente manter a
questão viva. Embora o brega tenha sido pensado em monografias, publicações e eventos culturais dos mais diversos, essa discussão não se esgota. Mais do que algo a ser resolvido, respondido pelos intelectuais dispostos a lidar com ela, a pergunta traduz um problema que sempre está presente, de maneira mais ou menos explícita, quando se pensa a forma como as populações periféricas da cidade interagem ativamente com as estruturas hegemônicas de comunicação de massa através do seu consumo cultural. As estéticas que negociam essa interação, entre as quais o brega se inclui, precisam ser constantemente rediscutidas no pensamento crítico, e no debate atualizado, de forma a desvelar as perspectivas culturais, econômicas e políticas que de maneira geral se apagam na abordagem
12 x Continente • AGO 2008
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_12 12
7/24/2008 4:39:48 PM
Rafael Gomes
mais superficial. Isso se faz necessário, também, de forma a evitar a redução do brega, ou de qualquer outro estilo midiático popularesco, a uma curiosidade estética para o consumo irônico dos detentores de alto capital cultural. Nesse sentido, a pergunta introduz um caminho importante: o brega, mais do que um estilo formalmente definido, é uma estética resultante da interação complexa entre a sensibilidade periférica emergente nas grandes cidades brasileiras com os padrões historicamente desenvolvidos pelas indústrias culturais
globalizadas. É um entendimento que compreende o encontro de interesses diversos, convergentes ou conflitantes, e cuja negociação se dá de forma geralmente instável e desigual. De um lado estão as diversas empresas de comunicação, muitas conglomeradas em sistemas complexos e abrangentes, aliadas aos seus anunciantes, competindo entre si e buscando estratégias para a sedução das audiências da “base da pirâmide”, alçadas nesse início de século ao status de segmento de consumo interessante. Do outro, esses “novos” consumidores, desejo-
sos de participar das promessas da cultura de consumo que até então não lhe pertenciam, embora sempre tenham fascinado. A cultura resultante do advento dos meios de comunicação de massa sempre gerou um mal- estar e um impasse em meio aos pensadores da cultura popular. Até que ponto a audiência massiva pode ser equivalente ao conceito, tão caro, de povo? De um lado, posições mais populistas definiram o “popular” como “aquilo que agrada ao povo”, sustentando uma apologia da cultura midiática A banda Calcinha Preta em apresentação no São João da Capitá 2008
AGO 2008 • Continente x
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_13 13
13
7/24/2008 4:39:53 PM
CAPA e legitimar ideologicamente as hierarquias sociais. Por trás do debate sobre o que deve ou não deve ser considerado dentro do termo de “cultura popular”, estão interesses mais ou menos declarados, mais ou menos conscientes de si mesmos. Geralmente essa análise age mais em defesa da posição crítica aos meios de comunicação do que para a mais populista. Afinal, o receio em relação às indústrias culturais tem como ponto central a constatação do papel do mercado e das estruturas globais de poder. Mas esse é justamente um risco, pois a cultura popular tida como “autêntica” não é algo dado, natural: nesses casos quem define o que é o popular? Como indica o estudo do historiador Paulo César Araújo sobre a música popular cafona no Brasil, aquilo que foi chamado de “Música Popular Brasileira” (MPB) esteve mais comprometido com o ambiente de uma elite intelectual de alto capital cultural e teve pouca penetração nas massas, em relação a músicos como Waldik Soriano, Nelson Ned, Odair José ou Lindomar Castilho. Pode ser uma crítica fácil, mas de certa forma incomoda, justamente porque expõe a contradição no conceito do “popular que não é popular”.
O brega oriundo de periferias possibilita uma perspectiva interessante porque coloca em evidência os interesses imediatos de uma audiência que é muito debatida, mas que raramente se manifesta no debate (quem pode ser declarado o porta-voz do povo afinal?). Mais importante, e aí está talvez o interesse singular que o brega desperta: ele obriga a discutir o papel de agência dos indivíduos e grupos periféricos não só no consumo, mas em uma produção cultural com ambições midiáticas, representando a si mesmos de forma afirmativa, como consumidores bem-sucedidos, como celebridades, como estrelas em um espaço que antes lhe era restrito, muitas vezes sob o argumento de que era para seu próprio bem. Some-se a isso o hibridismo presente no brega, absorvendo referências da cultura pop global e combinando-as com sua própria visão de mundo. Pode-se construir uma postura crítica em relação a esse processo, como de fato convém, mas isso não invalida o ponto de que o gênero obriga quem se dispõe a pensá-lo a sério a questionar a oposição simplista entre cultura popular e cultura de massa.
Rafael Gomes
pelo seu próprio sucesso de vendas. A “popularidade” seria assim a legitimação dada pelo próprio povo, baseada no princípio inatacável da democracia de massas. Mas, para muitos, essa é uma posição inaceitável, pois ignora a relação desigual de forças e os mecanismos de processamento da cultura presentes nessa cultura midiática, que tenderia a manipular e pasteurizar os produtos culturais segundo seus próprios interesses econômicos e políticos. Essa posição geralmente é acompanhada da busca e da defesa de uma cultura popular “autêntica”, espontânea, legitimada pela ausência de intervenção nociva do capital de mercado. Além disso, a autenticidade muitas vezes é associada diretamente a valores da tradição popular em uma espécie de narrativa de origem cultural. Essa divisão, aqui, obviamente muito simplificada e reduzida, traduz uma discussão teórica, de origem acadêmica, mas que claramente se expandiu para um debate cultural mais abrangente. É nesse ponto de abertura que o problema reaparece dentro de disputas que devem ser assinaladas, em que o que está em jogo são hierarquias culturais que têm por trás um papel de traduzir
O São João da Capitá 2008 levou 80 mil 14 x Continente • AGO 2008 pessoas ao Chevrolet Hall, em dois dias
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_14 14
7/24/2008 4:40:09 PM
As formas dominantes de produção cultural, o cânone estético midiático se mostraram majoritariamente ineficientes como apelo para os consumidores das classes C e D, essencialmente porque as pessoas não se identificavam com o que lhes era oferecido. Na busca por melhores canais de comunicação, as indústrias culturais se viram obrigadas a introduzir em seus repertórios formas antes banidas porque “popularescas”. Não se trata de um processo novo, apenas da intensificação de um processo de mercado em andamento há décadas. A aparência de novidade acontece para aqueles que até então gozavam de relativa primazia nos espaços dos meios de comunicação de massa: os consumidores de maior poder aquisitivo e as classes médias, público-alvo prioritário da publicidade que sustenta a grande maioria os sistemas de comunicação massivos no país. Com a “descoberta” do consumidor popular houve uma mudança de foco, e os intermediários culturais ligados aos meios de comunicação passaram a pesquisar e processar a sensibilidade do novo público desejado. Se ela foi apropriada para interesses comerciais e se em grande
parte o que é realmente “popular” foi depurado no processo, também é necessário destacar que houve uma mudança significativa naquilo que era oferecido que deu visibilidade para uma periferia um pouco mais próxima das perspectivas de quem vive nela. A cultura sempre foi um lugar de disputa e negociação de poder, e não é diferente para a cultura de consumo espetacular que emergiu na segunda metade do século 20 e hoje é hegemônica. Os segmentos populares periféricos manifestam seus interesses na medida não só em que rejeitam os papéis limitados que lhe são determinados, mas também quando se vêem habilitados a negociar estrategicamente sua representatividade e a inserção de sua sensibilidade particular nos produtos culturais massivos destinados ao seu próprio consumo, sem o detrimento das possibilidades de dinamismo e interação com outras esferas culturais que lhe são distintas. Se existem riscos e os resultados podem ser os mais variados, para o bem ou para o mal, dependendo da posição crítica assumida e do objeto em particular que se analisa, também é verdade
que também se abre um potencial espaço de manifestação para a criatividade subalterna, notória por aflorar nas situações de adversidade combinando valores absorvidos das mais diversas fontes. Existem muitos aspectos incômodos, para muitos até mesmo indigestos, na negociação de posições que ocorre no brega – assim como ocorreu no funk carioca, no forró eletrônico, ou em qualquer outro estilo popularesco que venha a surgir. E eles devem ser apontados pelo pensamento crítico. A sensibilidade corporal indisciplinada, típica da cultura popular carnavalesca, foi processada em sexismos toscos e em uma sexualidade apelativa que pode chocar os que não participam dela. Na ânsia pela fama, muitos indivíduos se sujeitam a situações degradantes em que têm seus interesses manipulados para o lucro de agentes dominantes na indústria cultural local. No entanto, o fenômeno do brega , sua sobrevivência durante anos às margens do interesse das mídias e sua ascensão dentro de um contexto de mercado fazem com que ele mereça ser pensado dentro dos interesses daqueles que realmente usufruem dele.
AGO 2008 • Continente x
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_15 15
15
7/24/2008 4:40:10 PM
CAPA
Do à fuleiragem music Com o passar dos anos, o que era brega romântico foi se metamorfoseando em fuleiragem music, que apela muito mais ao baixo-ventre do que ao coração José Teles
A
Leo Caldas/ Titular
nos atrás, numa entrevista na TV (salvo engano), Agnaldo Timóteo esbravejava contra os que o consideravam brega (naquele tempo chamava-se “cafona”): “Eu canto Beatles, eu canto Frank Sinatra, eu canto Roberto Carlos. Essas músicas são cafonas?!” O que rotula uma música de brega não é propriamente a música, mas todo um contexto, que vai do arranjo à interpretação do cantor, além, claro, da música mesmo. O Brasil sempre teve uma queda irresistível pela música brega, que tanto podia estar nos versos (mais para o kitsch): “Que será/da luz difusa do abajur lilás/se nunca mais vier a iluminar/outras noites iguais” (Que será? de Marino Pinto e Mario Rossi), na voz de Dalva de Oliveira, ou na trágica Coração de luto, do gaúcho Teixeirinha, um dos primeiros discos brasileiros a romper a barreira de um milhão de cópias vendidas. Rebatizada de Churrasquinho de mãe, pelo implacável cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), esta rancheira contava uma história verdadeira, vivida pelo compositor Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha (falecido em 1985). O país inteiro, em 1961, condoeu-se com o drama: “O maior golpe do mundo/que eu tive na minha vida/foi quando com nove anos/perdi minha mãe querida/morreu queimada no fogo/morte triste dolorida/que fez minha mãezinha/dar o adeus da despedida.”. O morreu “queimada no fogo”, está para o brega assim como o
16 x Continente • AGO 2008
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_16 16
7/24/2008 4:40:56 PM
Marizilda Truppe/O Globo
Waldick Soriano e Reginaldo Rossi (página ao lado): ícones do “brega” do passado
“coqueiro que dá coco” (de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso), para o samba. Aliás, o grande Ary Barroso tem umas letrinhas de lascar. Algumas delas só escaparam de cair na lista da cafonice, certamente, porque Ary era muito bem-relacionado com jornalistas e intelectuais. Uma letra feito esta, do samba-canção Risque, se feita por um Waldick Soriano seria um clássico do brega: “Risque meu nome do seu caderno/ pois não mereço o inferno do nosso amor fracassado”. Mas na época de Risque, anos 50, a alma passional brasileira estava à flor da pele. Fracasso era um dos termos constantes nas músicas, assim como hipócrita, doidivana, interesseira, como cantava o baiano Anísio Silva, hoje um brega cultuado pela intelectualidade: “Interesseira, não amas a ninguém/não tens coração/só fazes o mal/a quem te quer bem”. Um dos bregas mais famosos de Anísio Silva, maior influência de Roberto Carlos (a outra foi João Gilberto), Atirastes um pedra, acabou como um clássico da MPB,
ratificando que não é exatamente a música, mas o intérprete que confere o status de brega ou não. Por falar em “ou não”, o conterrâneo de Anísio Silva, Caetano Veloso, é pródigo em transformar pérolas do brega em jóias da MPB. O exemplo mais interessante desta alquimia aconteceu com Coração materno de Vicente Celestino (que a lançou em 1937). A letra descreve uma arrepiante tragédia romântica, que pode ser assim resumida: Como prova do amor do namorado por ela, a moça exige que lhe seja trazido o coração da mãe dele. O rapaz amava a jovem mesmo. Foi até a genitora, que encontrou de joelhos a rezar, e extraiu-lhe o coração, levando-o ainda ensangüentado e pulsante para a namorada. No meio do caminho, porém, tropeça, quebra a perna, o coração salta-lhe da mão, e fala: “Vem buscar-me, filho/que ainda sou teu”. A música acabou tropicalista, no álbum-manifesto Panis et circenses, de 1968 (mesmo
ano da morte de Vicente Celestino). A Jovem Guarda tinha um pé no brega. Quando o movimento acabou, grande parte dos seus ídolos assumiram a breguice, casos, entre outros, de Sérgio Reis e Martinha, que debandaram para a música sertaneja, infeccionando as duplas com o germe do iê-iê-iê. Foi assim que a verdadeira música caipira praticamente se extinguiu. No final dos anos 80, as gravadoras descobriram que as duplas sertanejas eram campeãs de vendagem de discos, mas só no Sul e CentroOeste. Por que não no resto do país? Bem-divulgadas, bem-jabazeadas, elas adentraram no horário nobre, avalizadas pela TV Globo, pelo presidente Collor, que costumava convidá-las para cantar na Granja do Torto – o sertanejo se tornou a música da maioria silenciosa verde-amarela. No Nordeste, as duplas mandaram nas emissoras de rádio e nos grandes eventos públicos, até o surgimento da fuleiragem music. AGO 2008 • Continente x
17
Reprodução
A música Coração materno de Vicente Celestino foi regravada numa versão tropicalista por Caetano Veloso
A princípio, esses grupos, que costumavam se batizar com misturas alimentares ou infusões – Mastruz com Leite, Caviar com Rapadura, Limão com Mel, Acarajé com Camarão, Leite com Mel –, foram inspiradas no grupo Kaoma. O Kaoma, por sua vez, foi cria da febre de lambada que assolou o Brasil no começo dos anos 80. Empresários franceses testemunharam a febre em Porto Seguro, e foram embora com a idéia de espalhar a lambada na Europa. Formaram, em Paris, um grupo com africanos, franceses e brasileiros, e emplacaram um
megassucesso internacional, Chorando se foi, mais conhecida como Lambada. A formação de palco do Kaoma foi copiada pelo empresário cearense Emanoel Gurgel, quando fundou a Mastruz com Leite, matriz da praga de bandas que se espalhou pelo Nordeste (e começa a tomar conta do país). Era brega, mais light, de letras fáceis, românticas, onde “chama” sempre rima com “cama”, e “beijo” invariavelmente com “desejo”. Passaram a chamar de forró, por causa da sanfona usada no acompanhamento, mas a Mastruz com Leite fazia lambada.
Com o passar dos anos, o que era brega, de qualidade duvidosa, foi resvalando para a fuleiragem. As canções de letras cada vez mais apimentadas, beirando o pornô, explicitadas pelo gestual no palco. Calcinha Preta, Calcinha de Menina, Calcinha Cheirosa, Cueca Branca, Braguilha Aberta (sic), Cipó de Broxa, Safada & Assanhada, Levanta a Saia e Os Raparigueiros do Forró, são alguns dos singelos nomes de bandas que animam arraiais, vaquejadas, carnavais fora de época (com um “Elétrico” à frente do nome) pelo Nordeste. Sua música não é a expressão de um povo, como acontece com o brega. É forjada por compositores profissionais, por encomenda dos donos das bandas, cujos músicos e vocalistas são assalariados. Os donos são empresários com dinheiro suficiente para fazer grupos como Saia Rodada, Calcinha Preta, Cavaleiros do Forró competirem, em tecnologia de palco, em pé de igualdade com astros popularescos, como os da axé music. Curiosamente, quem está resvalando para o brega é o forró pé-de-serra, cujos compositores, em sua grande maioria, perderam o bom-humor, falam pouco do que está ao seu redor, do povo, e prendem-se a um romantismo que pouco difere do que cantam as duplas sertanejas. Estas, por sua vez, voltaram para suas origens, Sudeste e CentroOeste, pela força das bandas de fuleiragem music que, pelo caminhar do andor, vieram para ficar. Bons tempos os dos bolerões lacrimosos do pernambucano Orlando Dias (tio do compositor J.Michiles): “Eu te dei tudo/ mas mesmo assim você acha tão pouco,/Eu chego em casa tão cansado/Mas você não liga não/Pelo contrário/ você me recebe com pedra na mão/com pedra na mão/você me recebe com pedra na mão...”
18 x Continente • AGO 2008
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_18 18
7/24/2008 4:42:20 PM
Leo Caldas/Titular
Artistas desse gênero conquistaram o país sem possuir contratos com gravadoras multinacionais e sem apoio das leis governamentais de incentivo à cultura Bruno Brito
E
les estão em todos os lugares e nas mais diferentes ocasiões. São as atrações principais de festivais. Tocam suas músicas nas emissoras de rádio. Apresentam-se nos programas das principais emissoras de TV. Estrelam campanhas de publicidade. Também não dispensam o potencial da internet, com sites bem elaborados, canções e vídeos para download gratuito e trechos de shows no Youtube. Fatos concretos não deixam dúvidas e tornam evidentes a ascensão e a valorização no cenário nacional de bandas e artistas identificados com os gêneros brega e forró estilizado. AGO 2008 • Continente x
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_19 19
19
7/24/2008 4:42:23 PM
CAPA ros do Forró, do Rio Grande do Norte. Contratos renováveis regem as relações entre músicos, cantores, equipe técnica e empresários, garantindo a cada um a mobilidade para apostar em projetos musicais mais lucrativos. A contratação de shows merece destaque. Artistas dos dois gêneros conseguem alcançar a média de 30 apresentações em um mês, sem contar o período junino. De olho nos lucros desse filão, há empresas que detêm a exclusividade na comercialização dos shows. Uma delas está situada no Recife. É a Luan Promoções e Eventos que tem o direito exclusivo de vender as apresentações de Calypso, Saia Rodada e Garota Safada para todo tipo de evento – festivais, rodeios, festas e feiras. Para quem contrata, é uma grande vantagem a diminuição dos custos com passagens aéreas e aluguel de equipamentos de som e iluminação. Cada banda possui transporte (ônibus e carretas), estrutura de palco e equipe técnica próprios, contabilizando em média 40 pessoas. Há também um braço informal nessa economia. São os camelôs que se espremem nas ruas das grandes metrópoles brasileiras, vendendo as cópias dos discos e DVD’s lançados. Esse novo sistema comercial
também é exemplar, por conseguir driblar o problema da pirataria, transformando-a em aliada na divulgação do trabalho. Por outro lado, não há pudor entre empresários e músicos na hora de falar do pagamento de jabá (verba publicitária) às emissoras de rádio para executar faixas dos CD’s lançados em horários pré-agendados. Nesse mercado, vence quem tem maior poder de propagação e o jabá é apenas um elemento. Muitas vezes, o jabá é convertido em shows nos eventos promovidos pelas emissoras nos bairros periféricos das regiões metropolitanas. No Recife, não faltam oportunidades para ver bandas do gênero brega e forró estilizado dividindo palco. Uma dessas chances ocorreu nos dias 6 e 7 de junho, quando aconteceu o festival São João da Capitá 2008, realizado na área externa Alexandre Belém/JC Imagem
A mais recente prova dessa onipresença ocorreu em 2007. A banda de tecnobrega Calypso conquistou o primeiro lugar em uma pesquisa do Instituto Datafolha que aferiu quais são os músicos mais ouvidos no Brasil. A pesquisa abordou 2.166 pessoas em 135 cidades de todas as regiões do país com a pergunta “Qual é o cantor, cantora ou banda que você mais tem escutado?” Eis que 14% ouviram a música da cantora Joelma e do guitarrista Chimbinha, proprietários e líderes da Calypso. A dupla sertaneja Zezé Di Camargo e Luciano ficou em segundo lugar com 12%, seguidos por Bruno e Marrone (10%) e Roberto Carlos (8%). Há quem aposte na economia para explicar tanta popularidade. Afinal de contas, bandas como Calypso, Saia Rodada, Calcinha Preta, Aviões do Forró e Cavaleiros do Forró conseguem gravar, distribuir, divulgar e comercializar discos, DVD’s e shows sem integrar a lista de contratados das gravadoras multinacionais e sem o apoio dos sistemas governamentais de incentivo à cultura. A autogestão da carreira e a independência financeira, sem dúvida, foram escolhas corretas, servindo de modelo para artistas de outros gêneros. Mas é preciso detalhar melhor esse dado econômico. Algumas bandas são de propriedade de seus próprios músicos, como é o caso da Calypso, de Belém do Pará. Outras são de propriedade de empresários do entretenimento, como a C ava lei-
Joelma e Chimbinha, proprietários da Calypso, são os músicos mais ouvidos do Brasil
20 x Continente • AGO 2008
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_20 20
7/24/2008 4:42:55 PM
centram nos quadris das mulheres? Questionados sobre o assunto, cantores e dançarinos sempre alegam que “a maldade está nos olhos de quem vê” ou que “o apelo está na cabeça de quem interpreta”. As coreografias, contudo, não deixam dúvidas sobre a simulação de uma relação sexual e eliminam o duplo sentido das letras, atribuindo um único significado às performances. O compositor Rodrigo Mel, 30 anos, é um dos autores da canção Chupa que é de uva, interpretada pela banda Aviões do Forró. Ao lado do parceiro musical e co-autor Elvis Pires, ele afirma que não cabe ao compositor interferir na coreografia usada na canção. “A expressão é falada quando se acha uma pessoa bonita. A letra veio desse ditado popular. Muita gente fica pensando que existe duplo sentido, mas apenas descrevemos um beijo. Não temos como interferir se a coreografia intensifica essa interpretação. Só fizemos a letra e repassamos para a banda”, explica.
Jailson Santos. “Procuramos evoluir, trazendo coisas novas. O que está em evidência hoje é a pura sacanagem, que é o repertório de minha responsabilidade, que é falar de cachaça, mulher, gaia, corno e rapariga. O próprio Alex Padang (proprietário e compositor da banda) me colocou nessa área. Mas esse duplo sentido é uma brincadeira. Tenho certeza de que se fizéssemos algo imoral, o pai de família não traria os filhos para ver nosso show. Temos o carinho dos adultos e das crianças. O show também tem o momento romântico e, quando a banda surgiu em 2001, estava em evidência a levada “vanerão ligeiro” e tocamos muito esse
Rodrigo também revela que não anda muito preocupado com as críticas. “Luiz Gonzaga foi criticado na época dele por fazer música popular. Ocorre o mesmo hoje. Não estamos preocupados com essa resistência. Queremos levar alegria para o povo, que abraçou a idéia da nossa canção. Eu também acho que todo mundo gosta de extravasar emoções e essa música tem tudo a ver com esse momento.” Na Banda Cavaleiros do Forró, do empresário Alex Pandag, o repertório direcionado para o duplo sentido é responsabilidade do vocalista
Divulgação
do Chevrolet Hall, uma das maiores casas de shows da cidade. Com público estimado em 70 mil pessoas, o evento já faz parte do calendário junino do Estado. O homenageado desta edição foi o sanfoneiro Dominguinhos, mas ele mal pisou no palco principal, ocupado pelas bandas dos dois gêneros já citados. Em apresentações muito parecidas, esses grupos reuniram a mesma fórmula: cantores e dançarinas com excelente aparência física, projeções de imagens e ritmos dançantes. Entre uma música e outra, os cantores anunciavam a presença de um membro da equipe entre o público, comercializando DVD, camisas e CD a preços acessíveis (de R$ 5,00 a R$ 30,00). A música nesse contexto fica em terceiro plano literalmente. No palco de 500 metros quadrados, os cantores ficam no ataque, sempre interagindo com o público, solicitando o coro e as palmas da multidão. No meio de campo, estão os bailarinos. Na zaga, a banda em uma única linha: bateria, metais, baixo, guitarra, sanfona e teclado. Um telão projeta imagens no fundo do palco. Letras de duplo sentido e coreografias apelativas são marcas de vários gêneros musicais brasileiros, como o samba, o funk, o forró, o axé music e o brega. A cada época, uns exploram ao máximo esse segmento, enquanto outros sequer tocam no assunto. Como a linha sexual e etílica está em evidência no forró estilizado, o povo presenciou um festival com as apresentações das bandas Saia Rodada, Calcinha Preta, Aviões do Forró, Garota Safada e Cavaleiros do Forró. Instigado pelo espetáculo visual, o público cantou todos os versos das canções Cachaça, Mulher e Gaia, Senta que é de menta, Chupa que é de uva, Beber cair e levantar, Tome, tome e Comendo água. A coreografia dos bailarinos é um caso a ser analisado. Por que os movimentos praticamente se con-
Os vocalistas da banda Cavaleiros do Forró cantam o sucesso Cachaça, mulher e gaia AGO 2008 • Continente x
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_21 21
21
7/24/2008 4:43:16 PM
CAPA
Fotos: Rafael Gomes
ritmo.” São da banda as músicas Cachaça, Mulher e Gaia, Senta que é de menta, É gaia, Passe a mão na bunda dela e Fazer bebê. Qualquer relação com o movimento das bandas baianas, que também exploravam coreografias apelativas, não é mera coincidência. A semelhança é tanta, que até o mercado musical da Bahia abriu suas portas para o projeto elétrico das bandas Saia Rodada e Cavaleiros do Forró, respectivamente Saia Elétrica e Cavaleiros Elétrico. O laboratório da Saia foi à cidade de Caruaru. Hoje, as bandas também se apresentam nos carnavais fora de época, a exemplo do Recife Indoor. A idéia de música para entreter (ou para pular) sem questionamentos existenciais ou morais encontra respaldo entre as pessoas que assistem às apresentações. “Adoro forró eletrônico e acho que é o gênero ideal para escutar em casa, curtir na balada e dançar”, afirma a estudante de Turismo da Fafire, Ana Beatriz, 17 anos, fã da Calcinha Preta. Para ela, o fato de a banda ter colocado as dançarinas só de calcinhas e de costas para o público nos primeiros minutos do show é uma estratégia
de marketing. “Para fazer o marketing da banda, eles deixaram bailarinas apenas de calcinha no início do show. Em relação às outras bandas de forró, a Calcinha Preta apela menos. Ela tem homens e mulheres como bailarinos. As outras só têm mulheres dançando”, defende. O forró estilizado possui um público bem diversificado em faixa etária e nível socioeconômico e cultural, mantendo relação com o estilo pé-de-serra. Contudo, na hora de falar dos apreciadores do brega, o preconceito impera. Ninguém nega que a estética do gênero surgiu na periferia das grandes cidades, mas é certo que seu alcance como fenômeno musical já extrapolou a barreira de classes sociais. Há um público fiel em vários estratos da sociedade – sobretudo na parcela com maior poder aquisitivo e na classe média. O que se reflete no número espectadores nos shows do gênero. Além da multidão pagando de R$ 10,00 a R$ 35,00 em um ingresso, há também quem retire do bolso uma quantia bem maior – entre R$ 40,00 e R$ 80,00 – para ocupar um espaço nas áreas vip’s das casas
de espetáculos. Sem contar com os membros de fã-clubes – que são capazes de gastar R$ 1.000,00 em passagens, hospedagens e ingressos para acompanhar apresentações em outros Estados. No dia 7 de junho, ocorreu o show da banda Calypso no São João da Capitá. Horas antes da apresentação, era possível identificar vários fã-clubes na área vip protegida por um gradil na frente do palco. Além do público recifense, também havia fãs de Estados vizinhos como a Paraíba e até de Brasília para ver a performance do casal Joelma e Chimbinha. O casal Eduardo Felício Barbosa e Virginia dos Santos, acompanhados das duas filhas, Eduarda e Rafaela, destacavam-se na área dos camarotes, trajando as camisas do fã-clube “Eternamente Calypso” do Rio Grande do Norte. Residentes em Brasília, a família abriu uma filial do fã-clube e já está acostumada a acompanhar os shows realizados em Goiás, Fortaleza, João Pessoa e Minas Gerais. Para ver o show do grupo no Chevrolet Hall, eles gastaram pouco mais de R$ 1.000 em passagens. A recompensa para eles é
Segundo os compositores, “a maldade está nos olhos de quem vê” as coreografias
22 x Continente • AGO 2008
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_22 22
7/24/2008 4:44:00 PM
Durante a apresentação da banda Calcinha Preta, as dançarinas fazem um striptease parcial
o encontro após os shows com o casal e a compra do kit (disco, DVD e camisa) por R$ 25,00. “Os seguranças já conhecem os fãs e nos deixam falar com Joelma e Chimbinha após a apresentação. Aproveito os shows para comprar os produtos da banda, sempre com preços acessíveis”, explica Eduardo, que é servidor público da Câmara dos Deputados. Para explicar a classificação da Calypso no gênero brega, Eduardo Felício explica que o conceito de cafona faz parte da cultura brasileira. “Você olha em volta e vê que tudo é brega. Não acho que é discriminação afirmar que a Calypso é brega. Acho até bonito. A gente vive esse clima e não tem por que fugir. É bonito e aprovado. Eu estou no meio e não tenho vergonha disso. Joelma e Chimbinha têm um carisma enorme com o público. Acredito que é a banda mais amada do país”, analisa. Para a estudante de arquitetura, Daniela Lima, 22, o som da Calypso não pode ser mais enquadrado dessa forma. “No primeiro disco, a banda tinha um som mais brega. A partir do terceiro álbum, o som do grupo ficou mais dançante, tocando
ritmos como a lambada e o carimbó. Eu gosto de todas as fases”, justifica. Daniela é a vice-presidente do fãclube Vivemos por Calypso, do Recife, com 70 membros cadastrados. Para não perder um show, a divisão das tarefas é prioridade. “Decidimos quem vai conferir a agenda de shows, o custo das passagens e do ingresso e conversamos com a produção para saber qual o hotel em que o Calypso vai ficar.” Sob aplausos, a banda começou o show às 1h34 da manhã do domingo. Com os primeiros acordes, o público nem precisou de ajuda para começar a cantar. Joelma entra no palco acompanhada por dois casais de dançarinos e vai interagindo com os fãs, enquanto a banda vai alternado os ritmos a cada música. Lambadas, carimbós, calypsos, cúmbias, salsas, merengues, reggaes e forrós são os ingredientes dessa mixagem. O guitarrista Chimbinha faz escalas e solos em todas as músicas e ainda mostra um trecho de uma guitarrada no meio da apresentação. Ele é um dos poucos músicos brasileiros especialistas nos ritmos latinos, a ponto de ser requisitado antes mesmo da Calypso existir.
Essa mistura musical é o principal argumento dos fãs para justificar que a Calypso possui um som autêntico e criativo, distanciando-se do brega. Contudo, as vestimentas, as letras românticas, a forma como Joelma canta e as coreografias da cantora ainda mantêm forte relação com a estética do gênero. Essa preocupação em associar a imagem do grupo à variedade musical também está nas declarações. No início da carreira, em 1999, o grupo cantava músicas alusivas ao gênero – como Bregafó. Hoje, isso não ocorre mais. Para o guitarrista Chimbinha, o termo tem um significado que não condiz com a música que o grupo faz. “O som da Calypso mistura uma série de ritmos como carimbó, lambada, samba, salsa, cúmbia e merengues. Brega é quem se veste mal e está de mal com a vida e com o mundo. Não existe uma música brega.” Se o rei do gênero no Nordeste, Reginaldo Rossi, é considerado cult sem ter feito uma única mudança em seu repertório brega, então a justificativa dos fãs da Calypso talvez seja validada no futuro. Quem sabe, não é? AGO 2008 • Continente x
Capa Brega_12_13_14_15_16_17_18_23 23
23
7/24/2008 4:44:35 PM
José Cláudio
matéria corrida
Meu canto de luta guerreiros ouvi Avante! que o dia é um leão que ruge. Mas não há lugar para medo. Nem raiva nem tristeza. “Viver é lutar”, como já dizia Gonçalves Dias na Canção do Tamoio
C
ontinuo lutando denodadamente para viver. Ia dizer “desesperadamente” porque essa palavra também tem o sentido de esforço grande e contínuo, mas não se trata de falta de esperança nem muito menos de alegria ou felicidade embora pule da cama cedo como um escravo, mas eu o feitor de mim mesmo, e tome banho frio mesmo agora no inverno para “tirar a caruara” como gostava de dizer Carybé, salve a Bahia, para acordar por completo, para espantar a tristeza. Mas pode ser a tristeza genérica ou genética de todo ser humano, a consciência da morte, e isso, pelo contrário, nos empurre para a vida, nos faça feliz por mais um dia que amanhece: pelo caga-sibito cantando na goiabeira, pela sensação de vitória de chegar primeiro no convívio dos homens sendo um deles. Triste ficar na cama sem obrigação enquanto o sol passa por cima da casa como se nos procurasse em vão, e tanto fizesse passar como não passar, mesmo com chuva, como se passasse sobre um túmulo. A pintura, a obrigação de pintar, e só sei pintar de dia, isto é, me sinta seguro embora não saiba, de preferência com a luz da manhã, a obrigação de pintar como meio de vida, a felicidade de poder extrair da pintura o pão de cada dia, e rico fosse tal felicidade não teria, essa premência de pegar na enxada cada manhã, em sentido próprio no caso me lembrando do meu avô paterno Pedro Taveira, Joaquim Pedro da Silva, morador de engenho, para não ver o barco afundar, esse exercício de náufrago dele no mar do ca-
navial, seja necessário para nos manter vivos, botando nossos órgãos para funcionar, esse “levanta-te e anda” com que a primeira claridade do dia nos tira da cama ainda o mar cor de vinho como dizia Homero. (Homero tem umas três imagens mais freqüentes quando fala de mar: o mar sonoroso, as ondas grisalhas e o mar cor de vinho. Ao lê-lo, a princípio estranhei esse “mar cor de vinho”. Um belo dia e dia belo realmente, já aqui nesta casa em Olinda que fica em lugar relativamente alto, alto até certa altura digamos, a meia encosta como se diz na linguagem dos vinhedos de Portugal, acordando cedo como já pegara esse hábito, olhei o mar ainda não poluído pelas luzes de poste àquela época, há mais de trinta anos, e pude ver que o grande poeta, nem podia ser, não era maluco: o mar estava ali cor de vinho para quem quisesse ver, e em toda a sua extensão, ou para quem, cego, tivesse lido Homero que ainda dizem que era cego. E, engraçado, já pintara, mais de uma vez, aqui mesmo onde moro, por motivo dessas minhas madrugadas, de memória fresca que não dava para pintar na hora porque ainda escuro, o mar cor de vinho, tendo visto ultimamente um desses quadrinhos em casa da poeta das rosas selvagens cor de sangue, ou de vinho, Deborah Brennand.) “Graças a Deus por mais um dia”, essas frases começam a ter sentido. Porque ainda podemos pular da cama e, além disso, tendo necessidade de fazê-lo por outro motivo que não seja mijar na cama, não podendo deixar passar a luz impunemente. Avante! que o dia
24 x Continente • AGO 2008
Nova coluna_Matéria corrida_24_224 24
7/24/2008 2:37:22 PM
Ilustração: José Cláudio
é um leão que ruge. Mas não há lugar para medo. Nem raiva nem tristeza. “Viver é lutar”, como já dizia Gonçalves Dias na Canção do Tamoio. Depois que estou escrevendo estas linhas, numa manhã roubada à pintura, Altamiro Cunha escreveria “nu’a manhã” embora a manhã não estivesse nua, para evitar o cacófato, um jumento já zurrou três vezes fazendo dueto improfícuo com os caga-sibitos ou um trio com outro bicho que não sei qual é, não sei se uma jia raspa-coco ou um rato coró como os que cantavam na mata no Rio Madeira: bom-dia, Paulo Vanzolini amigo velho que me levou por lá. Bom-dia, Gilvan Samico que outro dia torou a cabeça do dedo na tupia, bem que Abel disse que não queria, Abel Accioly arquiteto que faz moldura além de ter feito minha casa.
Bom-dia, Leonice minha mulher arrumando a mesa para botar o café além de sair correndo para trabalhar de bibliotecária que é, meus filhos Maria e Mané, Seu Amaro meu pai que me chamava Zé-perequeté. Bom dia à moça que caiu no mar e seu criador o poeta Murilo Mendes que conheci em Roma em 1957 e a Santo Agostinho que também conheci em Roma por obra de um padre português horrorizado por eu não ter encontrado nenhum livro na nossa língua em toda a Cidade Eterna depois de Olinda nem mesmo a Bíblia na biblioteca do Vaticano me deu “Confissões”: “Tarde te amei, beleza que não morre”. Bom dia, padre português, cujo nome não guardei, mas sou eternamente grato, como à língua portuguesa que nos atrelou ao nobre latim. AGO 2008 • Continente x
Nova coluna_Matéria corrida_24_225 25
25
7/24/2008 2:37:40 PM
George Barbosa/Reprodução
LITERATURA
Relançado, com novos estudos críticos, o romance Sem lei, nem rei, que marcou a estréia de Maximiano Campos Luiz Carlos Monteiro
O legado de
M
aximiano Campos teve um tempo de vida breve, porém rico e intenso no âmbito da produção literária. Nascido no Recife a 19 de novembro de 1941, passou parte da infância num engenho da família na mata Sul pernambucana, o que marcaria irremissivelmente sua vida e seu fazer literário. Deixou uma obra
que, embora não tão vasta, revela um estilo próprio e autônomo. O desempenho estético-formal alcançado através de uma visão muito particular do poético, como já lembrou Ariano Suassuna, fez com que ele não se enquadrasse naquelas manifestações demasiadamente realistas e documentais, deslocadas do regionalismo mais autêntico. E essa visão
26 x Continente • AGO 2008
maximiano campos_26_27_28_29.ind26 26
7/23/2008 4:33:55 PM
lúcida e intransferível fez mais ainda, quando evitou que cultivasse indiscriminadamente na sua prosa o excessivo do panorama e da cor local. O escritor não renegava, contudo, sua origem nordestina, ao contrário, ela servia como principal motivadora de sua ficção. Em 1968 estreou com o romance Sem lei nem rei, pela então editora O Cruzeiro, do Rio de Janeiro. O livro foi republicado agora, em São Paulo, pela Escrituras, depois de outras edições esparsas, para comemorar os 40 anos da estréia do autor. Preserva o ensaio inicial de Ariano Suassuna, “O novo romance sertanejo”, à maneira de posfácio, que se revela esclarecedor do percurso e da composição do romance de Maximiano em termos de personagens, cenários, psicologia e situação históricoliterária. No volume, são acrescidos ainda textos de Raimundo Carrero, Antônio Campos e Frederico Pernambucano de Mello. À época da primeira edição do romance, a geração 65, da qual Maximiano fazia parte, passava a contar com um novo ficcionista, cuja obra inicial ensejava dar continuidade à tradição do romance de perfil rural. A gênese de Sem lei nem rei é correlata, na abordagem direta ou
indireta do cangaço e na denúncia da exclusão social, a duas outras novelas suas que ficaram inéditas depois que morreu. Publicada em 2003, Os cassacos descarna, através do narrador-personagem Rodrigo, a precariedade, a decadência e a desolação de um engenho de fogo morto. A multidão solitária, de 2006, expressa inquietações sociopolíticas centradas na miséria urbana, acentuadas pela turbulência das décadas finais do século 20, sendo a interferência de Filipe, o personagem a quem dedicou mais páginas, adaptada a um mundo diferenciado do engenho, e que agora emerge em cheias, favelas, cadeias, hospícios e praças onde se realizam comícios e protestos. Sem lei nem rei enfoca as lutas pelo poder e pela terra, ao narrar a história do cangaceiro Antônio Braúna, que ousava enfrentar a política desigual e permeada de desmandos e traições dos lugarejos sertanejos. Ele assumia a condição de aliado ou inimigo dos coronéis e autoridades municipais que não conheciam fronteiras para as suas ações arbitrárias. A luta entre os coronéis Joaquim Wanderley e Juvêncio Teixeira explicita, por dentro, as contradições econômicas e sociais do regime patriarcal dando os seus
últimos rugidos e suspiros. No centro está Braúna, apoiado e acoitado por Joaquim Wanderley, que termina por perder a luta. Com a morte do Coronel Joaquim, o romance parece ter chegado a seu termo, mas o leitor é surpreendido por outro desfecho, quando Braúna vinga o velho Coronel, redimindo a sua memória sem complacência nem vacilação. Os cangaceiros dão um “fogo” na vila de Mimoso, lavando tudo em sangue, poupando apenas os aliados do Coronel Wanderley e suas famílias. Contudo, o cangaço de Antônio Braúna, mesmo com a demonstração de valentia em investir contra fazendas, vilarejos e cidades inteiras, mostrava estar vivendo os seus momentos finais, com a forte pressão ao governo federal empreendido por uma burguesia rural e interiorana temerosa das invasões impiedosas dos bandos. Depois de Sem lei nem rei, suas publicações seguintes vão privilegiar principalmente o conto e a novela. Seus livros do gênero conto até agora – As emboscadas da sorte, As sentenças do tempo e As feras mortas – foram antologiados na coletânea O viajante e o horizonte, em 1997, enquanto ele ainda estava vivo. Outra coletânea posterior resultou no
AGO 2008 • Continente x
maximiano campos_26_27_28_29.ind27 27
27
7/23/2008 4:34:16 PM
LITERATURA volume Na estrada, publicado postumamente em 2004, que complementa, enriquecendo-a, a seleção feita em O viajante e o horizonte. Nos contos rurais de Maximiano Campos predominam os relatos das vivências que se enraízam fortemente entre a fome e a riqueza, a valentia e o acovardamento, a preguiça e o trabalho. A lida inglória no canavial reforça as formas de mobilização e persuasão ideológica, mas também os castigos de morte, surra e prisão, como conseqüências das campanhas salariais. Nas narrativas do campo quanto nas da cidade aparece o personagem Filipe, um escritor temporariamente frustrado, a viver um dilema político-existencial que se afunila na literatura: a incapacidade de escrever algo que lhe satisfaça nos dias em que se arrasta impaciente ou apático pela casa-grande do engenho ou no labirinto urbano.
De configuração mais urbana, o conto Noite é um dos seus textos que se removem entre a recordação e o presente, entre o que aconteceu num passado ainda próximo e a vida vivida no momento em que tudo está acontecendo. Obedece a um ritmo delirante e mistura lembranças da cidade e do campo. Inicia-se com a referência a uma música do argentino Astor Piazzolla e finaliza com uma valsa. A infância, a vida boêmia, o circo, os letreiros luminosos. Também a festa com champanha, muita alegria, mulheres elegantes e refinadas. A visão enviesada dos marginalizados da sociedade, daqueles que vivem impulsionados pela teimosia e a insistência, espremidos nas subcondições das favelas: “Homens, mulheres, crianças e ratos amontoados”. Vinganças e compaixões, a espera e a esperança. O conto A vingança, de andamento circular e de diálogos extre-
mamente rápidos, é a história de um conflito entre Antônio Jesuíno e Ezequiel Mão de Pilão. Ezequiel matou Rivaldo, irmão mais novo de Antônio, por causa de uma traição conjugal. Na maior parte do texto, a vingança não fica explicitada, citada ou referida. No entanto, ela está implícita nos gestos e nas falas dos personagens, mesmo quando dizem ou sugerem o contrário. Antônio volta à rotina da fazenda, intentando convencer a si mesmo de que os seus exercem um tipo de pacifismo que só emerge em violência quando sumariamente atacados, ao confessar ao seu interlocutor oculto: “Mas, moço, a gente, os Jesuínos, até que somos um povo cordato”. A psicologia dos personagens de Maximiano Campos revela uma grande inclinação para a loucura e uma tremenda nostalgia da infância. Este modo de delinear
Maximiano não abriu mão do direito de rebelar-se contra o discurso previsível das coisas cotidianas, preferindo mesmo desvendá-las nas suas manifestações indecifráveis e obscuras
28 x Continente • AGO 2008
maximiano campos_26_27_28_29.ind28 28
7/23/2008 4:34:18 PM
personagens através da montagem de seus traços de loucura, de suas manias e fraquezas, de sua revolta ou acomodação, de seu humor desbragado ou tristeza, se repete em quase tudo que escreveu. Sua primeira novela publicada, A loucura imaginosa, apareceu agregada aos contos de As sentenças do tempo, em 1973. O Coronel Turíbio de Albuquerque, personagem central desta novela, enlouquece e assume a pele de um herói da Restauração. Atira aleatoriamente contra os participantes de uma festa de São Pedro, imaginando serem invasores holandeses, mouros ou franceses,
Imagens: Reprodução
Sem lei, nem rei Maximiano Campos Escrituras Editora 168 páginas 27,00 reais
embora fossem apenas os trabalhadores de seu próprio engenho e dos engenhos vizinhos. A novela culmina num embate feroz entre o trabalhador João Magreza e o vigia do engenho, Silvino, num desfecho fatídico onde ambos acabam morrendo. Tal embate é resultante das tensões entre senhor, administrador, vigia e trabalhadores, numa constante vigilância e fiscalização cerrada daqueles três em relação aos passos e atitudes destes. Mesmo num engenho de fogo morto, à espera de uma reviravolta na loucura do patrão, vigia e administrador são guiados por uma fidelidade canina. Em 1975, vem a público O major Façanha, editado no Rio de Janeiro. A “Nota introdutória” levava a assinatura de José Cândido de Carvalho, que afirmava sobre o livro e o autor: “Façanha saiu das oficinas de Maximiano já de carteira de identidade no bolso, vivinho em folha, falador como ele só e contador de acontecidos e sucedidos como ninguém.” O major Façanha, de nome Valentim Cavalcanti de Albuquerque Wanderley, é um desenraizado que sai do engenho em ruínas para morar na cidade, à beira-mar, e imagina-se um herói que vence todas as batalhas de amor e de guerra que encampa. Exímio conversador e inventor de histórias, o major diverte a quem o procura para conversar, aplicando em tudo uma alta dosagem de humor e fantasia. O seu grande amigo é o pescador Cícero, sujeito também chegado a uma invencionice. João Valente Bravo de A memória revoltada (1982), em conseqüência de seu discurso ideológico nacionalista, alterna sua vida entre a cadeia e o hospício. O poder do discurso que se transforma de oral em escrito é o eixo central deste livro. Discurso que enfeixa uma série de monólogos que se expandem pelo mundo circundante, alternando lembranças do engenho, do in-
ternato e da sua vida até os 40 anos. João Valente Bravo é um deserdado da própria classe abastada da zona da Mata, que distribui as terras do seu engenho e incendeia sua casa na cidade para protestar contra o conformismo pequeno-burguês. Dentre as mais fortes características de sua ficção, encontra-se a grande dosagem de humor e ironia que atravessa as páginas de seus contos e novelas. Ele intercala um humor perspicaz, deslavado, sem amarras com a seriedade exigida para dizer as verdades mais latentes e fortes que guerreiam no seu espírito inquieto e teimam por ganhar o mundo Há momentos em que a ironia é tão explícita que pode até se transformar em mera sátira ou gozação. A descoberta das camadas mais internas do preconceito e da fanfarronice, que se tornam demasiado externas pelo uso popular indiscriminado, também vem à tona. Maximiano Campos deixou este mundo no dia 7 de agosto de 1998, aos 57 anos, tendo transitado pela vida com um objetivo inequívoco e definidor: cumprir a sua missão humana e a sua jornada de escritor. Ambas inseparáveis na própria essência, reafirmando o perfil prático do homem e o percurso intelectual do escritor. O ofício de escritor conseguido ao custo de não se dedicar de modo mais constante a outras funções, como o direito, a política, a administração pública ou privada. Pois, para não ver declinar o esforço da sua arte literária, não abriu mão do direito de rebelar-se contra o discurso previsível das coisas cotidianas, preferindo mesmo desvendá-las nas suas manifestações indecifráveis e obscuras. Assim, não deixou de contrapor-se a tudo o que poderia entravar o seu desempenho literário. Aqui repelindo o conformismo e a omissão, ali a repetição e a mesmice. E foi isso o que ele sempre fez na literatura e na vida. AGO 2008 • Continente x
maximiano campos_26_27_28_29.ind29 29
29
7/23/2008 4:34:24 PM
LITERATURA
O lado soturno da vida Novo livro do contista Dalton Trevisan rompe todos os diques de violência e erotismo com sua visão microscópica da patologia humana Homero Fonseca
A
os 83 anos, o curitibano Dalton Jérson Trevisan continua produzindo e mergulhando cada vez mais fundo no lado soturno da alma humana. Para um autor miticamente recluso, como ele, é incrível esteja tão antenado com a realidade circundante, a dinâmica do linguajar atual e a ética trôpega das ruas assombradas pela insegurança e pela falta de sentido de tudo. Seu novo livro – O maníaco do olho verde – parece gerado no ventre putrefato de uma sociedade enferma, sem perspectivas de cura. Menos conciso e mais estridente, certamente não é o melhor Trevisan, mas o impacto é o de um soco no estômago do leitor e nisso o autor vem se empenhando com afinco. Lembro bem a funda impressão que me causou seu Novela nada exemplares (1959), lido numa reedição dos anos 70, semelhante à causada por Feliz ano novo, da mesma época, de outro mestre do conto brasileiro contemporâneo, Rubem Fonseca, igualmente misantropo e arredio a fotografias e entrevistas. Contista por excelência, com quase quatro dezenas de livros publicados (apenas uma novela, A polaquinha), Trevisan injetou uma
dosagem descomunal de náusea na literatura brasileira, a ponto de provocar estranheza em ninguém menos que Otto Maria Carpeaux, para quem o mundo por ele retratado em suas narrativas é essencialmente patológico (cito de memória, de um artigo lido nos anos 70). Aliás, apesar de alguns elogios, parece que o velho Carpeaux tinha uma quizila com o curitibano, chegando a classificar seus contos de crônicas do cotidiano, o que, para quem é atento às hierarquias literárias, deve soar como depreciativo. O fato é que Trevisan, nesses anos e livros todos, veio depurando seu estilo e ajustando seu foco cada vez mais para as patologias de personagens inicialmente da classe média e média baixa e ultimamente mergulhando no universo da marginalidade desbragada (já bem cristalizada em Macho não ganha flor, de 2007). Nas últimas obras, o erotismo e a violência rompem todos os diques, como se o escritor, ao invés de se amaciar com a idade, como sói acontecer, mais assuma a postura juvenil de épater le bourgeois, acrescida, entretanto, da amargura de um observador maduro sem qualquer ilusão. Nesse último livro, que está sendo lançado por estes dias, cujas histórias entrelaçadas, como num
romance fragmentado, parecem saídas das páginas policiais de um jornal popular, todos praticaram um crime, embora aleguem inocência (o que é mostrado com uma dosagem de ironia que afasta qualquer resquício de paternalismo sentimental). Curiosamente, a famosa concisão do escritor, cuja trajetória, já se disse, parecia levá-lo ao hai-kai, é deixada de lado nesse universo de meliantes tagarelas. Há algo de desleixado nesses textos, onde pululam expressões repetidas, talvez para refletir uma pobreza vocabular tão generalizada nas entrevistas à TV, e não apenas de personagens do lumpen proletariat. A linguagem do cinema contamina as narrativas, especialmente no último conto – o que dá título ao volume – cujas explicativas do personagem para sua doença mais se assemelharem à psicologia barata de um serial killer em qualquer filme hollywoodiano, culminando, porém, com a tirada genial: “Eu sou um de vocês.” Afinal, mesmo com esses tropeços, um Trevisan é sempre um Trevisan. A seguir, uma amostra dos contos de O maníaco do olho verde (um dos contos mais curtos, por sinal). Leia outro conto inédito do livro O maníaco do olho verde www.continenteonline.com.br
30 Continente • AGO 2008
Dalton_30_31 .indd 30
7/23/2008 4:34:55 PM
Uma das raras fotos do escritor, famoso por sua aversão a aparições públicas
Por cinco paus Dalton Trevisan Eu não lembro o dia. É certo, eu atirei no Buba. Mas não por causa de cinco paus, não. Foi em legítima defesa. Minha e da minha noiva Marta. Ele era pessoa viciada sempre ali na espera. 0 Buba mais o irmão Tonho. E roubava todo mundo na Vila. Puxava fumo, cheirava pó, queimava pedra. E se adonando de tudo que tivesse valor. O que achasse na casa dos pobres ele punha a mão. Nesse dia, não lembro o dia, umas três da manhã. No começo foi mesmo por causa de cinco paus. Eu vinha de uma festa de aniversário com a noiva. Esses dois quando eu passava pediam dinheiro, uma vez cinco, outra dez. Eu sempre dava, assim obrigado, né? Nesse dia fiquei sem nenhum. Tudo gasto na festinha. O cara total fora de controle. Era viciado demais. A mãe dele já
não agüentava. Tinha vendido tudinho da casa. Rádio e máquina de costura, né? Sapato, vestido e óculo da triste velhinha. Nesse dia faltavam os cinco paus, que o Buba cobrava pra dar passagem. A gente vinha de carro e ele me parou. Eu e a noiva. Ele fez sinal e me barrou e pronto. Daí pediu os cinco paus. E você tinha? Nem eu. Falou que tava armado e desci do carro. Ele chutou a porta com força. 0 38 aparecendo na cintura. Eu sem nada e o tipo me ameaçou. Disse que ia se cobrar na minha noiva. Será que ela valia cinco paus? Dez, quem sabe vinte? Então nós discutimos. Sem que esperasse, tomei dele o berro na cinta. E veio com tudo pra cima de mim. Dei um tiro. O Buba não parou. Dei outro. Ele rodopiou e despen-
cou lá do alto. Caiu de joelho. E bateu de cara no chão. Esse já era. Não olhei mais pra ele. Cuidava do irmão Tonho que vinha crescendo pro meu lado. Já tava perto. E apontei o 38. O cara gelou assim direto, as mãos no ar. Subi no carro com a Marta. Lá na frente joguei fora a arma. Falei o tempo todo até a casa dela. A pobrinha não deu um ai. Agora que tô fugido, o Tonho quer me acusar. 0 traficante seria eu, não o Buba. Ah, é? Então me diga: qual dos dois trabalha de garçom e tem carteira assinada? Me jurou de morte matada, assim que eu apareça. Viver ou morrer lá na Vila? Isso aí, cara. Cinco paus o teu preço. O maníaco do olho verde Dalton Trevisan Editora Record 128 páginas 28,00 reais
AGO 2008 • Continente
Dalton_30_31 .indd 31
31
7/23/2008 4:35:16 PM
LITERATURA
Ângelo Monteiro, entre o mito e a miragem A sua poesia diferenciada corre a contrapelo dos seus pares da geração 65, pelo grau de estranheza e autonomia estilística que sugere Luiz Carlos Monteiro
E
xiste na literatura de todas as épocas uma linhagem rara de poetas, a daqueles que também são filósofos. São poucos os nomes brasileiros que se abrigam sob as duas matrizes, mas podem ser lembrados na atualidade o carioca Antonio Cícero, o paulista Rubens Rodrigues Torres Filho, o último Bruno Tolentino e, em Pernambuco, Ângelo Monteiro. Uma propensão metafísica e transcendente para questionar o estrato lógico-racional do mundo é retomada por eles, mesmo que em alguns não fique explicitada essa intencionalidade. Neste passo, em sua produção literária, além do desenvolvimento da poesia das coisas cotidianas, ensejam trabalhar em paralelo categorias e áreas de um sentido poético que revele a busca da verdade e do saber. A obra poética publicada de Ângelo Monteiro, de 1969 para cá, aparece num volume substancial intitulado Todas as coisas têm língua, numa seleção feita por ele
mesmo, processando o corte de poemas em vários livros. A sua poesia diferenciada corre a contrapelo dos seus pares da geração 65, pelo grau de estranheza e autonomia estilística que sugere. Ela se faz inseparável dos questionamentos definidores do homem como o nascimento e a morte, a presença e a ausência, a solidão e a vida coletiva, a obsessão pelos elementos circundantes a uma natureza que ainda teima em resistir. Nesta coletânea, alcança momentos da mais alta poesia associados a um texto ou outro que por vezes se encontra deslocado do andamento e do ritmo próprios à matéria poética. Alguns poemas, do início ou mais recentes, podem resvalar, em sua feitura, na parcialidade de uma prosa indesejada, pelo não achamento da palavra exata ou do verso preciso exigidos pela própria especificidade estético-formal do objeto acabado. Aliás, deve-se registrar que o livro O ignorado se
apresenta como um expressivo poema em prosa, que adquire as características do ensaio e perfaz um roteiro filosófico que passa pelos clássicos Aristóteles e Platão e por um contemporâneo como Nietzsche. Em O rapto das noites ou o sol como medida, o autor fornece pistas que levam a poetas-filósofos de sua predileção, ao homenagear William Blake e Frederico Hölderlin. Poeta dilacerado entre o sagrado e o profano, o mito e a miragem, o passado remoto e a contemporaneidade, Ângelo Monteiro empreende uma visão extremada e alerta das coisas e acontecimentos, permeada por um futuro incerto. Visão que descarta o malogro funcional do nosso tempo, que por sua vez tende a privilegiar as cartas carcomidas da política, os foros da concorrência e da indiferença pelo Outro e as estatísticas comparativas e vazias. O perfil dos “manequins” – os conformistas, os usurários e os de inclinação burguesa e consumista irrefreável
32 x Continente • AGO 2008
Angelo_32_33.indd 32
7/14/2008 4:22:23 PM
Rafael Gomes
Ângelo Monteiro, em sua biblioteca: um poeta tocado pela filosofia
– é retratado impiedosamente no poema A fila, de As armadilhas da luz. Com seu destino de “satélites sem glória”, demonstram uma grande empatia ao culto do banal, das atitudes ultra-reacionárias e da mesmice, como nesta estrofe: “Eles estão na fila, através das idades,/ incensando o best-seller e o último modelo./ A lista telefônica é a sua identidade/ e a crônica social seu derradeiro apelo”. Há ocasiões em que o filósofo e o poeta são destituídos pelo cristão, pelo cultor sublimado de um Ente Supremo. Um forte teor de religiosidade emerge em instantes de beatitude e submissão ao Senhor da Espera, traduzidos em hinos e expectações, ou inscritos e realizados numa literatura de salmos, exortações, sermões, cantos ou litanias. A natureza, na poesia de Ângelo Monteiro, não é simples oposição à cultura, mas instância filosófica fundadora da interação do homem com o mundo e a vida, com variantes poemáticas servindo
à contemplação neo-românica e à comunhão do poeta com nuvens e árvores, ventos e rios, mares e céu. Em Recitação da espera ele referenda a defesa do verde, a metapoesia e a condição solitária do Ser. A dicção é grave, solene, descentrada embora daquele real cotidiano repetitivo e massificado. Outros poetas são identificados, em influência direta ou indireta, nas presenças de Alberto da Cunha Melo e Carlos Pena Filho, por exemplo. O inquisidor expõe e contextualiza literalmente uma poesia da indagação e da interrogação exaustiva. Intenta desvendar as mais profundas aspirações humanas, assim como deixa entrever a fluência de um passado em que não se lamentava a perda e inacessibilidade do paraíso. A poesia de Todas as coisas têm língua pode causar certo estranhamento no leitor desavisado – pela sua originalidade e exclusividade, sem epigonismos e nem imitações gritantes de outros poetas e pelo
seu conteúdo hermético e quase sempre de difícil acesso. O preço a ser pago pelo poeta será, talvez, o distanciamento e a incompreensão de um ou outro leitor, habituado ou não à leitura de poesia. Isto não significa, contudo, que haja uma inclinação apenas erudita da parte de Ângelo Monteiro, pois ele enseja chegar ao leitor mediano em momentos diversos e não tão raros, onde desenvolve trechos ou poemas inteiros ao gosto popular. As inquietações irremissíveis dos nossos dias não levam o poeta a abandonar a crença na beleza, na harmonia e no mistério das coisas, a fé na redenção do homem e a permanente busca do seu lugar no mundo. Todas as coisas têm língua Ângelo Monteiro Companhia Editora de Pernambuco – CEPE 499 páginas
AGO 2008 • Continente x
Angelo_32_33.indd 33
33
7/14/2008 4:22:32 PM
LITERATURA
Além do festival Travando discussões que não devem terminar com o evento, A Letra e a Voz chega à sua sexta edição Thiago Lins
D
iferentemente de festivais de cinema e/ou de música, como o CinePE e o Abril Pro Rock, em que gerações variadas se encontram, às vezes indo só para ver gente, festivais de literatura ainda não são tão familiares à sociedade. Apesar de eventos como A Letra e a Voz já estarem carimbados no calendário cultural de Pernambuco, falta romper de vez o círculo de estudantes, acadêmicos e, claro, escritores, para chegar ao grande público. “Literatura não é um fenômeno de massa, mas, ainda assim, é algo estruturador”, define a organizadora do festival, Heloísa Arcoverde. Já ciente do problema de sustentabilidade que o ramo atravessa no Brasil e no Nordeste, a questão para Heloísa, agora, é chegar à raiz desse problema. Foi com esse intuito que a edição de 2008 do A Letra e a Voz adotou o tema “Recife de todas as leituras”: formar um público leitor ativo, que participe diretamente da cadeia produtiva literária. As ferramentas estão aí já faz algum tempo. São concursos literários, editoras que publicam a custo relativamente baixo, coletivos culturais, leis de incentivo, os próprios festivais e, a internet. Mas o de-
Fotos: Divulgação
O festival também traz programação para o público infantil
safio de fechar um ciclo produtivo-colaborativo ainda existe. Para Heloísa, o problema maior reside na circulação. A organizadora reconhece o esforço da imprensa local em estimular a cultura, assim como a pujança do circuito de eventos literários em Pernambuco, que ainda sedia a FliPorto e a Bienal do Livro, entre outros. Mas faz uma ressalva: “É preciso mais ações inclusivas”. Assim pode ser justificada a concepção da Oficina de criação e leitura para jovens, um dos seis eixos componentes do festival, que também conta com a Festa do Livro (que disponibiliza 60 bancas
para profissionais e amadores da escrita), o Seminário Releitura de Josué de Castro (com análise da linguagem do escritor, que foi ofuscada pelo conteúdo social da sua obra), o Diálogo Brasil-França (intercâmbio com acordo firmado entre as prefeituras de Recife e de Nantes), o Recitata (concurso de recital) e o seminário Veredas da poesia, Veredas da prosa, que discute a literatura contemporânea no mundo, e inclui, em parceria com a Revista Continente, o grupo de trabalho Circulando a Literatura (no dia 30 deste mês), que vai analisar as políticas e alternativas do mercado editorial.
34 x Continente • AGO 2008
Letra e Voz_34_35 .indd 34
7/14/2008 4:18:34 PM
Ao longo de seis anos, o festival acumula realizações, como a façanha de 150 obras lançadas num só dia (no ano passado), visibilidade nos meios de comunicação, aumento de inscrições no Recitata (de 30, no primeiro ano, para 100, em 2007), que, agora, além do júri popular, tem também júri especializado, atendendo a pedidos dos poetas, e frutos como a antologia poética bilíngue Nantes Recife, lançada no Brasil e na França. Mas, apesar da expansão, A Letra e A Voz ainda tem suas aspirações: sedimentar-se definitivamente e ampliar as parcerias público-privadas, para dar mais respaldo aos canais de divulgação. Segundo Heloísa, o festival está “curiosamente mais concentrado e descentralizado”. Ela explica: “Os eventos não se chocam, cada um tem seu respectivo horário. Os temas das discussões também estão
menos amplos, para não perder o foco”. Por outro lado, os eventos este ano ocorrem em seis lugares, tão diferentes quanto o Teatro de Santa Isabel e o Nascedouro de Peixinhos. Homenageando o centenário de nascimento de Josué de Castro e Solano de Trindade, a edição deste ano já tem confirmada a presença de Milton Hatoum, Fernando Monteiro e Marcelino Freire, entre outros. Heloísa lembra que o festival deve ser “cada vez menos evento e cada vez mais discussão”: propiciar uma articulação em torno da cadeia produtiva literária que continue, mesmo após o fim do festival. Algo razoável, considerando as muitas atividades distribuídas em logradouros públicos e o apoio da imprensa.
O poeta Jessier Quirino
Confira a programação completa do Festival A Letra e a Voz www.continenteonline.com.br
AGO 2008 • Continente x
Letra e Voz_34_35 .indd 35
35
7/14/2008 4:18:39 PM
LITERATURA
Fotos: Arqu
ivo de fam íli
a
Osman Lins: 30 anos de uma presença atemporal
Em nen hu escritor m outro br criação asileiro, a lit mais ali erária esteve ad reflexão a a uma s do liter obre as relaçõ es ário com o mund Fábio A o ndrade
36 Continente • AGO 2008
Osman lins_36_37_38.indd 36
7/14/2008 4:20:44 PM
U
m misto de perda e celebração: lembrar a morte de Osman Lins (19241978) é recompor uma trajetória de rara paixão literária. Paixão que ele modulava com um alto senso de responsabilidade artística. Osman Lins saiu cedo de Vitória de Santo Antão, sua cidade de origem, para correr o mundo com uma determinação pessoal radical: tornar-se escritor, fazer-se escritor. Para muitos, isso se resumiria a escrever alguns livros capazes de proporcionar certo dinheiro e alguma fama. Não para ele. Como deixou registrado em várias entrevistas e mesmo em sua própria obra, ser escritor significava buscar, através das palavras, compreender melhor o mundo e a condição humana, sua miséria e beleza: “Quase tudo, no mundo, para mim é sombrio; o véu se entreabre – só um pouco, e nem sempre, logo se fechando – nos breves momentos em que procuro escrever”. Hoje, Osman Lins figura entre os principais criadores da literatura brasileira do século 20, tendo sua obra comentada, estudada e lida no Brasil e em vários outros países. A descoberta efetiva desse continen-
te singular que é sua obra tem se ampliado cada vez mais nos últimos anos. Cresceram os empreendimentos interpretativos em torno da obra osmaniana. Acrescentaram aos já clássicos estudos de Ana Luiza Andrade e Sandra Nitrini reflexões fundamentais – é o caso dos textos de Regina Delcastagné, Hugo Almeida, Ermelinda Ferreira e outros. Parece-nos, porém, que num aspecto específico Osman Lins é uma solitária estrela no vasto e rico campo da nossa literatura. Em nenhum outro escritor brasileiro, a criação literária esteve mais aliada a uma reflexão sobre as relações do literário com o mundo – uma reflexão ao mesmo tempo histórica e atemporal. Aquele que não souber ler os matizes dessa reflexão que é, em si mesma, também criadora, não saberá “ler” de maneira adequada o texto osmaniano. Sua obra expressou as tensões do momento histórico em que estava imerso sem hesitar em oferecer, ao mesmo tempo, uma elaboração formal que lhe valeu a incompreensão de muitos. Livros como Nove Novena (1966) e Avalovara (1973) inovaram, respectivamente, o conto e o romance brasileiro. Paralelamente à criação, desenvolvia-se
uma das mais argutas e profundas críticas ao tratamento que era dado ao escritor e à literatura, que ele materializou em seu livro Guerra sem testemunhas (1974). Nele, Osman discute questões cruciais: a idéia de vocação, a relação do autor com sua obra, com a “máquina” editorial, com o objeto livro, com o leitor, com a crítica e com a sociedade. O título, por sinal, exprime com felicidade o contexto adverso a que o artista está submetido naquele momento. Se o escritor é um animal que tem, segundo o próprio Osman Lins, por clima natural a liberdade, sua responsabilidade era participar da luta geral com as armas de que dispunha – papel e palavras. Em sua obra ficcional se inscrevem as marcas de sua crítica combativa. O romance Avalovara, entre muitas outras coisas, fala-nos do percurso de Abel, personagemescritor que, ao longo do livro, não cessa de refletir sobre sua condição de criador: “Sei bem: há, tem havido outros males na terra, sempre e inúmeros. A opressão, fenômeno tendente a legitimar muitos outros males e em geral mais prósperos, reduz a palavra a uma presa de guerra, parte do território invadido. Lida o escritor, na opressão, com um bem confiscado”.
Algumas obras de Osman Lins, editadas no Brasil e em outros países
AGO 2008 • Continente
Osman lins_36_37_38.indd 37
37
7/14/2008 4:20:59 PM
LITERATURA O fazer e o refl etir sobre esse fazer são a marca distintiva de Osman Lins. Esse binômio inseparável, responsável por uma unidade inconfundível, torna sua obra tão singular. Criação e crítica, que estavam juntas, seja no seu pensamento crítico propriamente dito – em Guerra sem testemunhas o escritor apresenta-nos personagens para dialogar com ele no desenvolvimento de suas reflexões – seja na sua ficção, comunicando ao longo de Avalovara como o próprio livro foi construído, numa lógica metanarrativa (narrativa que fala sobre si mesma). Ao viajar para a França, como bolsista da Aliança Francesa, em 1961, o escritor pernambucano trava contato com vários artistas e intelectuais franceses. Michel Butor foi um deles. O contato, então, com os autores franceses do chamado “novo romance” (Allain Robert-Grillet, Butor, Claude Simon etc.) deixou certas marcas na ficção osmaniana, levantadas pela professora Sandra Nitrini, que analisa as narrativas de Nove, Novena.. Mas, como a própria estudiosa faz questão de enfatizar, foi muito mais um caso de convergência de interesses do que de influência. A consciência formal do escritor Osman Lins foi se formando através de sua prática literária, uma prática autoconsciente, ativa e incansável. Imagem desse trabalho é o pássaro mitológico que estrutura o seu livro, Avalovara, que o escritor confessou ter se inspirado na figura do Avalokiteshvara, divindade hindu da compaixão e do trabalho, representada algumas vezes possuindo vários braços. Símbolo de um amor universal pelos seres, Avalovara representa também aquilo que o próprio escritor pode oferecer aos homens.
Em Sorbonne, França, em 1961, no período em que recebia bolsa de estudos
Quando questionado, numa entrevista, a respeito da dificuldade que seu livro oferecia aos leitores, respondeu da seguinte maneira: “Avalovara, como cada livro meu em cada época da minha vida, corresponde ao melhor que a minha capacidade criadora e imaginativa poderia oferecer aos meus semelhantes. Eu me sentiria degradado, e não me parece que honraria a literatura e os meus leitores, se agisse de outro modo”. Escrever, como se vê, se constituía, para ele, um ato social e, ao mesmo tempo, um ato de amor individual e coletivo.
Celebrar a lembrança de uma obra tão vigorosa, passados 30 anos da morte do escritor Osman Lins, é reafirmar a esperança de que a literatura mantenha sua única e essencial função: ampliar o sentido da vida através das palavras, insistindo sempre num olhar renovado sobre as coisas e sobre o mundo, que uma visão determinada, de ave de rapina, pode empreender através do tempo e a favor do homem. Acesse e assista ao vídeo Quarteto sobre as correspondências entre Osman Lins e suas filhas www.continenteonline.com.br
38 Continente • AGO 2008
Osman lins_36_37_38.indd 38
7/14/2008 4:21:10 PM
poesia>> Márcia Maia crash
dança comigo?
o ruído de vidro partido inunda a madrugada
que importa no compasso além do passo se passo-a-passo passo além da porta que encerra qual comporta o pouco espaço e em marca-passo irmana passo e aorta —
de estilhaços rubros
quase-cenário calcinha sobre a mesa roupas e sapatos espalhados pelo chão nada a ver com noites de amor e orgia só uma tola tentativa de trapacear a vida de enganar a solidão
intransitivo e àquele olhar petrificou-se a face paulatinamente
retorta que destila o descompasso do corpo quando lasso se transporta e à porta aporta feito em sangue e laço (nenhum estardalhaço se suporta) comporta antes ousar unir o traço ao braço que no abraço outro conforta e à dança desentorta em novo passo
SOBRE A AUTORA Márcia Maia é médica e se aventura nos caminhos da poesia. Publicou Espelhos (2003), Um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas (2004) e Em queda livre (2005), além de participar de coletâneas no Brasil e em Portugal. Edita os blogs tábua de marés ( http://www.tabuademares. blogger.com.br) e mudança de ventos ( http://www. mudancadeventos.blogger. com.br).
um passo e outro passo o chão recorta rompendo o lacre à porta e ao compasso ao qual além do passo nada importa Olinda, março / 2005
ao largo medusa alguma tampouco a possibilidade de ar rependimento
AGO 2008 • Continente
Poesia_39.indd 34
39
7/14/2008 4:15:21 PM
conto >> Izabela Domingues Padaria
–D
eixa ver o que tem aí. Inocência não tinha nada que inventar de ir comprar tubaína na padaria logo numa hora daquelas. As mãos tremeram com o pedido, ao mesmo tempo em que seguraram a bolsa. – Tem o quê, aí? – Pode levar tudo. Bem que diziam que era perigoso mulher andar sozinha naquela rua escura tarde da noite. Mas Inocência confiava em Deus e só Deus sabe o que ela era capaz de fazer com tanta confiança. – Pode levar. Taqui dez reais e meu cartão de crédito. Angelita nunca tinha feito uma coisa assim. O que a falta de um marido não faz. Depois que colocava as crianças pra dormir, falava pra mãe que ia ver se tinha aparecido alguma vaga de emprego no mural da padaria. Isso desde que o marido foi embora e ela ficou morando com os filhos, a mãe e o vira-lata. Todas as vezes em que foi à padaria, ficou observando a movimentação das pessoas dentro e fora do lugar. A moça do caixa sempre distraída, muitas vezes lixava as unhas, contando mais os minutos para ir embora do que as moedas coladas com durex, recebidas durante o dia. Em casa, Angelita dizia que costumava ir à panificadora nesse horário porque tinha menos gente e dava para ver os reclames das firmas de maneira menos avexada. Ninguém suspeitou que pudesse ser diferente. Nem a mãe, muito menos o cachorro. Quando resolveu comprar a tubaína, Inocência tinha cansado de ver televisão. Achava os programas
repetitivos e, por mais que adorasse ver as estrelas das novelas, cada vez mais constatava que os ricos sempre ficam cada vez mais ricos. Enquanto que os pobres, ah, meu senhor, esses sim ficam cada vez mais precisados de uma promoção para ver se ganham um carro, uma casa ou até mesmo uma casa com um carro na garagem. Deve ser muito bom ter uma casa com um carro na garagem. – Leva tudo. Pode levar. Taqui dez reais e meu cartão de crédito. Do alto de seu um metro e setenta e cinco, Angelita olhou nos olhos da mulher que, com uma sandália de saltinho cor-de-rosa, mal batia no ombro dela. Pegou os dez reais antes que a outra tivesse a chance de fugir ou de engolir o dinheiro. Foi assim no filme que ela tinha visto de madrugada enquanto esperava o marido chegar da gafieira. Falavam que era um pé-de-valsa triste. Não faltavam sirigaitas para aprender a dançar com ele. – O que tem mais aí? Fala logo. Angelita passou a mão na testa tentando enxugar o suor que teimava em aparecer. Nunca foi mesmo boa nisso de botar moral em alguém, nem nela própria. Sentiu a pele suada por entre os seios. Ainda bem que, ali, a talzinha não perceberia como ela estava se sentindo. – Só tem isso. Dez reais, meu cartão e um batom. Inocência nunca saía sem batom. Era uma pessoa autoconfiante somente pelo fato de se achar filha de Deus. Com um batom, então, valha-me, Cristo. Tanto que, para ir à padaria aquela noite, colocou na bolsa somente dez reais para ti-
rar a tubaína, o cartão de crédito para caso resolvesse comprar mais alguma coisinha e o batom. – Juro. Só tem isso. Dez reais, meu cartão e um batom. – Me dá aqui esse batom. Fazia somente quinze dias que Inocência tinha conseguido tirar o cartão de crédito. Lançaram uma linha popular e ela não pensou duas vezes. Agora se sentia uma mulher de verdade. O próximo
40 x Continente • AGO 2008
Conto_40_41.indd 40
7/11/2008 3:41:39 PM
SOBRE A AUTORA Ilustração: Raul Aguiar
Izabela Domingues é publicitária e escritora. É autora do livro A menina marca-texto, publicado pela Editora Calibán.
passo era jogar um blondô naquele cabelo sarará. Cabelo bom, carro bom. Com um cartão de crédito e os cabelos pintados de dourado, com certeza, tudo ficaria mais fácil. Isso se todo o sonho não fosse desmanchado por aquele assalto. – O cartão eu não quero. Só os dez reais e o batom. Essa não era a primeira vez que Inocência tinha sido assaltada. Mas era a primeira vez que via algum ladrão preferir um batom a um cartão de crédito. Se tinha forças
até para assaltar alguém, como Angelita não teria forças para se olhar de frente no espelho e colocar um batom novamente? – Bora. Passa logo o avon. Inocência nunca pensou atender tão rápido e tão satisfeita ao pedido de um ladrão, ou melhor, de uma ladra e, olha, pelo jeito bem vaidosa. Foram-se os dez reais, mas ficou o cartão de crédito. Com ele, compraria quantos batons quisesse, um de cada cor, compraria o blondô e conquistaria o homem dos seus sonhos. AGO 2008 • Continente x
Conto_40_41.indd 41
41
7/28/2008 9:28:23 AM
MÚSICA
livros
A sedução do fascismo vista por dentro
N
Reprodução
esta obra, Michael Mann, professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, busca investigar as diversas manifestações do fascismo a partir da mentalidade de seus asseclas, penetrando nas convicções e desejos daqueles – muitos! – que acreditaram e fomentaram esses movimentos coletivamente organizados. O autor enfatiza a contextualização dos ideais fascistas dentro das principais correntes políticas, ideológicas e filosóficas do século 20, período que não pode ser compreendido sem que entendamos a motivação desses ideais, pois o fascismo, acredita Mann, foi parte
essencial da moderniFascistas dade. Três característiMichael Mann cas seriam básicas para Editora Record 560 páginas classificar um movi66,00 reais mento como fascista: o nacionalismo orgânico, o estatismo radical e o paramilitarismo. Longe de apresentar o tema como investigação de um passado distante e apagado, Michael Mann argumenta que os fascistas tinham um ideário internamente coerente, baseado num corpo altamente convincente de valores e propostas que procuravam responder às questões mais prementes da sociedade da época. O autor também discute a permanência – mesmo que disfarçada – de algumas formas de fascismo na atualidade, comprovando que o poder de sedução dessa ideologia representa um perigo ainda presente, principalmente em países liderados por populistas e demagogos. (Eduardo Cesar Maia)
> As muitas faces de Jayme Ovalle
> Um curso de frevo > Paixão, revolução e para não iniciados morte em biografia
> Um outro olhar sobre John Lennon
A tentativa de resgate da história pessoal e familiar, além da ambição de traçar um perfil psicológico de uma figura plurifacetada como Jayme Ovalle, não é tarefa das mais fáceis. O jornalista mineiro Humberto Werneck assumiu esse desafio e nos descreve a intrigante trajetória de um indivíduo extremamente talentoso, porém com uma obra artística não plenamente realizada. Amigo de intelectuais e artistas como Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e Mário de Andrade, Ovalle era dono de uma visão de mundo bastante particular, baseada numa forte fé religiosa misturada a uma vivência intensa do mundo boêmio carioca. Artista de si mesmo, foi um homem que parece ter sonhado a própria existência (ECM).
O texto do livro O frevo rumo à modernidade, do jornalista e crítico de música popular José Teles, foi inscrito “no último minuto do segundo tempo da prorrogação” no concurso de ensaios promovido pela Prefeitura do Recife para assinalar, ano passado, os 100 anos do primeiro registro impresso da palavra, que se convencionou comemorar como o centenário do próprio gênero musical pernambucano. Numa linguagem eminentemente jornalística, traça, a vôo de pássaro, uma panorâmica do ritmo nascido nas ruas do Recife, no final do século 19, até a atual onda de renovação, passando por polêmicas e crises xenófobas. É leitura indispensável para os não iniciados. (HF)
Nascido no outono europeu de 1940, debaixo de intenso bombardeio alemão, o beatle John Lennon foi um acidente – cria de uma garrafa de uísque, sábado à noite, conforme suas palavras. Sua mãe, Julia, desafiava vivamente as convenções da época, das quais a tia Mimi que o criou, era escrava. Sua infãncia conturbada é contada por uma de suas meias-irmãs, também de nome Julia, que narra situações inéditas sobre o início da sua carreira, a amizade com Paul McCartney e ainda o momento duro da perda da mãe, atropelada por um policial bêbado. Como acontece nas melhores famílias, há os casos de brigas por bens, disputas diversas, e choques com a cunhada Yoko Ono, que nem a chamou, tampouco a família, para o funeral do irmão. (LA)
O santo sujo Humberto Werneck CosacNaify 400 páginas 55,00 reais
O frevo rumo à modernidade José Teles Fundação de Cultura/PCR 92 páginas 15,00 reais
Maiakovski (1893-1930) foi o primeiro poeta russo a engajar política e ideologia à poesia. Revolucionário militante, gostava de declamar em grandes espaços, com seus amigos do futurismo soviético, ao surgir com uma camisa amarela provocante, sua marca registrada. Suas aparições eram quase sempre entremeadas de bate-bocas, vaias e aplausos. A partir de 1917, sua atividade se intensifica, escreve peças para teatro, roteiros para cinema, ensaios e, ótimo artista gráfico, faz centenas de cartazes para o movimento. Até que, como previa em a Flauta-vértebra ("Seria melhor talvez/pôr-me uma bala como ponto final"), com problemas de saúde e sentimentais, matou-se com um tiro no coração, em abril de 1930.(Luiz Arrais) Maiakovski: o poeta da Revolução Aleksandr Mikhailov Editora Record 560 páginas 68,00 reais
Imagine: crescendo com o meu irmão John Lennon Julia Baird Editora Globo 326 páginas 35,00 reais
42 Continente • AGO 2008
Agenda Livros_42_43.indd 42
7/23/2008 4:37:12 PM
MÚSICA
Uma viagem pelos desvãos sombrios da alma
A
historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco (foto) foi amiga de grandes nomes do pensamento contemporâneo, como Gilles Deleuze e Jacques Derrida, o que já bastaria para referendar sua inteligência, não fosse ela autora de alguns livros que pensam o papel da psicanálise na sociedade. Lançado na Flip, seu novo livro tem como subtítulo Uma história dos perversos, numa análise do conceito de perversidade ao longo dos tempos. Desde as santas que se martirizavam a ponto de beber o pus das feridas de leprosos, passando por Gilles de Rais, que originou a lenda dO
Barba Azul, percorrendo a A parte obscura de trajetória de Sade até o ranós mesmos cionalmente planejado exElisabeth Roudinesco Zahar Editor termínio dos judeus pelos 224 páginas nazistas, ela mostra como 34,00 reais ser perverso passou de uma distorção na obediência a Deus até um desafio à divindade, tornando-se, a partir de Darwin, a manifestação do animal no homem e, com o advento da psicologia, uma doença, para finalmente ser visto como um desvio passível de conserto através da química. Mas, e aqui chegamos a um ponto nodal do livro: será que devemos erradicar essa parte obscura de nós mesmos? Roudinesco defende a tese de que eliminar a perversão poderia levar à destruição da própria idéia de distinção entre o bem e o mal que fundamenta nossa civilização. Um livro forte, escrito numa linguagem sem jargões. (Marco Polo).
> A história de um disco mitológico
> Uma vida digna de livros e filmes
> Sexualidade e mundo feminino
> A palavra serena de Eloi, o poeta
Autor de Kind of Blue – A história da obra-prima de Miles Davis, o jornalista norte-americano Ashley Kahn debruça-se agora sobre a elaboração de outro disco marcante na história do jazz. Fazendo exaustiva pesquisa documental – fotos, partituras, anotações – e entrevistando mais de 100 músicos, produtores e testemunhas, incluindo os participantes das sessões de gravação do disco ainda vivos – o pianista McCoy Tyner e o engenheiro de som Rudy Van Gelder –, mais entrevistas nunca publicadas do próprio Coltrane e do baixista Jimmy Garrison, Kahn liga um holofote sobre a construção de um dos melhores discos de um dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, o saxofonista John Coltrane. (MP)
Herói, escritor, militar, agente secreto, arqueólogo e diplomata. Todos esses adjetivos cabem em Thomas Edward Lawrence (1888-1935), retratado neste livro em capa dura, com fotos e imagens da época e do personagem, escrito por Malcom Brown para a coleção The Bristish Library – Vidas Históricas. Fascinado por histórias e narrativas de cavalaria, Lawrence começou a se preparar para uma vida aventurosa já adolescente, submetendo-se a rigorosos exercícios físicos a fim de desenvolver sua resistência. Logo foge de casa para servir como recruta juvenil na Real Guarnição de Artilharia. Daí em diante é uma sucessão de fatos que tornaram sua vida digna de livros e filmes, como de fato ocorreu. (MP)
São mais de 100 contos curtos que o escritor japonês Yasunari Kawabata, prêmio Nobel de 1968, colecionou desde o início de sua carreira, ainda jovem, até seu suicídio, em 1972, aos 73 anos. Considerado um clássico no gênero, a reunião dessas narrativas curtas ou brevíssimas, mostra o virtuosismo da escrita de Kawabata, que rejeita o realismo em busca de uma prosa lírica, impressionista, carregada de imagens inusitadas em parte influenciadas pelo Surrealismo. A harmonia da natureza em contraste com a força sensorial das pessoas realça a fragilidade do ser humano. O autor é famoso também por ter estudado com obsessão o mundo feminino, a sexualidade e o eterno tema da morte. (MP)
O paraibano Eloi Firmino de Melo marcou sua presença na história da literatura pernambucana ao publicar, na década de 60, os primeiros livros de alguns poetas que depois ficaram conhecidos como participantes da Geração 65. Agora, ele chega ao livro que mostra sua própria produção poética. Chuvas de uma estação tardia traz um tom geral de serena aceitação da vida vivida, em seus erros e acertos: “É o mistério da/ vida/ que por ser/ mistério,/ num dia se/ afirma,/ em outro se/ nega”. Essa palavra sóbria, entretanto, pode guardar surpresas: “Eu aprendi, no rigor do/ meu ofício,/ que o domingo era azul;/ e a segunda-feira,/ amarga./ Que direi do sábado?” Seja bem-vindo ao ofício da poesia, Eloi. (MP)
A Love Supreme Ashley Kahn Barracuda 288 páginas 44,00 reais
T. E. Lawrence – Lawrence da Arábia Malcom Brown Nova Fronteira 228 páginas 49,90 reais
Contos da palma da mão Yasunari Kawabata Estação Liberdade 496 páginas 59,00 reais
Chuvas de uma estação tardia Eloi Firmino de Melo Editora Universitária/UFPB 120 páginas 15,00 reais
AGO 2008 • Continente
Agenda Livros_42_43.indd 43
43
7/23/2008 4:37:53 PM
LITERATURA
Vamos afundar Veneza Os mal-entendidos a respeito da poesia moderna e do significado de liberdade artística Artur A. de Ataíde
A
frase é bem conhecida de muitos: “A poesia está morrendo”. Igualmente conhecido é o suposto responsável pelo crime, nomeado freqüentemente logo em seguida: o monstro abominável do mercado. (Enquanto isso, Sancho Pança nos grita de longe: “Mas são só moinhos!”) Pondo-se de lado o melodrama, talvez estejamos diante, na verdade, de um processo histórico bem mais complexo, cheio de sutilezas, e cuja avaliação global pedirá alguns matizes mais entre a “doença terminal” e a “saúde plena”. Dentre os tantos e
variados sintomas desse quadro aí suposto, apenas um será de nosso interesse discutir agora: tem relação direta com a circulação da poesia, mas não em meio ao grande público, e, sim, entre os próprios poetas. O caso é que a história da arte, de repente, ficou mais simples: simples a ponto de nos bastar, para aprendê-la inteira, que rabisquemos ao acaso, ensinados por ninguém, o nosso primeiro e atualíssimo verso “moderno”. É assim que nos formamos poetas, e, por não sei que formas de auto-sugestão, é assim que nos convencemos
44 x Continente • AGO 2008
literatura-perfil_44_45 .indd 44
7/23/2008 10:36:47 AM
de que a leitura dos nossos textos por outrem lhes possa proporcionar alguma espécie de prazer, ou proporcionar a ilusão, tão esperada por todos, de que talvez tenham em mãos, por alguns momentos, as chaves para uma melhor compreensão de si mesmos ou do mundo em volta. Salvo engano maior, esse estado de coisas pode ter raiz num único mal-entendido. Charles Baudelaire, freqüentemente dedurado como principal responsável pela gênese da modernidade em poesia, teria mostrado com sua arte que, sim, é possível produzir beleza a partir de materiais vivos, extraídos diretamente da vida em volta, em lugar de recorrer a motivos pré-moldados e empoeirados, carimbados por aquela academia ou por aquela escola. O vigor das formas artísticas de um modo geral, ante os nossos olhos, dependeria justamente de como elas absorveriam em si o ambiente ético em que vivemos: as cruzes de nossa época, suas transformações, os milhões de desejos frustrados, as buscas ainda em curso e as pequenas glórias e misérias diárias, ora bem conhecidas daquele que escreve e dos seus circunstantes, ora por eles apenas sofridas, de modo inadvertido. A “eternidade” da arte, nas palavras de Baudelaire, precisaria se alimentar das “contingências” do nosso tempo para sobreviver entre nós. Sem isso, a poesia talvez tivesse continuado a falar em vasos gregos, enquanto a Europa sufocava de angústia. Com Baudelaire, as palavras mais espúrias, então alijadas do vocabulário “poético”, começaram finalmente a cantar, e a cantar tão bem quanto as suas irmãs aristocráticas, ou até melhor que elas. Dessa maneira, todo um complexo de tensões, típico da época, pôde ganhar voz – uma voz estranhamente bela aos ouvidos.
O que nos interessa nisso tudo: Baudelaire, sim, voltouse para os pedintes que perambulavam pela Paris da época, e leu, por exemplo, Swedenborg, o místico, enriquecendo sua visão de mundo para muito além das limitações cientificistas do século, mas O poeta francês Charles Baudelaire nem por isso deixou outro, o prazer dos cinco sentidos de ler – não deixou mesmo – Théque, desde o século16, tem-se expeophile Gautier, “um mero parnasiarimentado ao se ler Camões. no”. Esse detalhe – a componente Em 1917, quando da publiGautier – alguns querem paradocação do primeiro livro de Eliot, xalmente dispensar, e acham que Prufrock and other observations, podem virar Augusto dos Anjos, ou um bom número de resenhas surAntero de Quental, apenas lendo giu em ataque, como se o volume Haeckel, o naturalista. Outros, tão não passasse de mais uma gratuiou mais revolucionários, vão perdade “moderna” sem critério. A correr os presídios brasileiros atrás lição de música compreendida, de versos a la François Villon, vão por exemplo, pelos seus cinco priinvadir manicômios atrás dos gêmeiros poemas passou batida por nios etéreos de Hölderlin, vão revimuitos que, no calor da hora, esrar as sobras dos açougues atrás da tavam ali presentes. Drummond, cadência de Une charogne (poema ainda hoje (ou sobretudo hoje), de de Baudelaire sobre uma carniça), modo semelhante, tem sua mestria vão fustigar o entregador da far“formal” – palavrão na boca de almácia para ver se conseguem algo guns – freqüentemente ofuscada como a Morte do leiteiro, de Drumpela intimidade indisfarçável de mond. Poesia mesmo, que é bom, seus poemas com a vida comum, mal lemos (ou lemos mal). com a vida “sem mistificações” do cotidiano. Ambos os casos pareT. S. Eliot, Drummond, Bandeira cem sugerir: temos sido incapazes e muitos outros: por mais que os de admitir a convivência desses poemas de todos eles sejam bastandois aspectos – atualidade e meste diferentes entre si, terão seguido tria – num mesmo objeto artístico. uma fórmula geral semelhante: esSe essa é a verdade, damos um tiro tudaram o cantar de outrora enem nosso próprio pé, jogando no quanto escutavam – auscultavam lixo por engano alguns milhares de – o falar de agora, assim como Baupáginas escritas de Baudelaire para delaire. Desse cruzamento fizeram cá. Ou não será por engano? Das surgir, cada qual a seu modo, uma duas, uma: ou somos vítimas de terceira modalidade de música que, um grande mal-entendido a resantes da publicação de suas obras, peito da poesia moderna e sua tão não existia. Dito de outra forma, propagada liberdade, que é de ouDrummond, por exemplo, seria tra ordem, ou a palavra de ordem a ponte entre duas realidades em de hoje é de novo afundar Veneza, princípio incomunicáveis: de um como quis Marinetti. lado, as duas guerras mundiais; do AGO 2008 • Continente x
literatura-perfil_44_45 .indd 45
45
7/23/2008 10:36:50 AM
pontocom
n WWW.CONTINENTEONLINE.COM.BR
Um 'continente' de cultura online A partir deste mês, a nossa revista entra numa nova fase, com o site continenteonline.com.br, que trará muito mais do que o conteúdo da revista impressa, constituindose num novo veículo, em perfeita consonância com as exigências de comunicação do século 21. O novo portal vai trazer o conteúdo que não cabe no formato da revista mensal, funcionando às vezes como um complemento, às vezes como uma ferramenta à parte. Músicas, vídeos, podcastings, traillers de filmes: uma Continente interativa, sintonizada com o melhor da produção local, nacional e internacional. Links mencionados na Revista darão acesso a vídeos e fotos, completando o conteúdo das matérias. O endereço eletrônico ainda incluirá a programação cultural do Recife e de 46 Continente • AGO 2008
O CD A revolução dos pebas da banda Fim de Feira está disponível no portal
outras cidades do país, em constante atualização. Toda a equipe da Revista estará envolvida na realização do projeto que inclui também o blog da redação e um espaço para os leitores darem suas opiniões e sugestões. Lançada em dezembro de 2000, a Revista Continente propõe-se a abordar, de forma plural e abrangente, temas relacionados aos diversos campos culturais, como a Literatura, as Artes Plásticas, o Tea-
tro, a Música, o Cinema, o Romanceiro Popular, a Dança, entre outros. Produzida mensalmente pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, empresa estatal responsável pelo Diário Oficial do Estado, no intuito de valorizar e difundir a cultura, em todas as suas manifestações, aqui produzida, abre uma janela para as criações nacionais e universais, rompendo os estreitos limites do provincianismo. Tradição e inovação. O cânone e o novo. O local e o global. O popular e o erudito. Essa “miscigenação” estará disponível agora na internet de forma bem mais completa e interativa. Acesse e confira! nnn
continenteonline.com.br
n MÚSICA
n DESIGN
n MENU
Reunir canções de ninar de várias partes do mundo em um site é o projeto que vem sendo tocado pelo Instituto Auditório Ibirapuera há quatro meses e entrou no ar em julho. A iniciativa inédita de garimpagem de pouco mais de 90 registros contempla até línguas indígenas. O psicanalista Leandro de Lajonquière, em artigo para o site, não duvida de que os acalantos “sejam tão velhos quanto o homem, bem como tão naturais quanto andarmos para frente”. O site reproduz um vídeo da índia Piã, da etnia saterémawé, cantando para um macaco, o que confirma a idéia de que a mãe canta também para tranqüilizar a si mesma. (Ricardo Melo)
Formado por sete estudantes da Faculdade Impacta Tecnologia, de São Paulo, o blog Design Coletivo reúne material diversificado sobre o assunto. O principal objetivo é estimular e atualizar debates sobre, não apenas a criação, como também o mercado nacional do design. Um destaque é o artigo "Cultura popular do nordeste expressa na arte urbana", de Tiago Martins, que fala de jovens grafiteiros, como o pernambucano Derlon Ameida e os paulistas Speto e a destacada dupla osgemeos, que se apropriam da iconografia da xilogravura popular para transformá-la em arte contemporânea. (Marco Polo)
Que tal um cardápio de 15 panquecas com queijo e cebola, anéis de cebola, 8 pedaços de frango frito e 8 de frango assado, 8 pimentas, 10 tacos completos recheados de carne, queijo, cebola e molho, 4 cheeseburgers duplos com queijo e bacon duplos, 1 bisteca grelhada sem osso e com molho e 1 torta de pêssego ligth? Esse foi o último pedido de Mauriceo Brown, condenado à morte, horas antes de ser morto, com injeção letal A informação compõe um site mórbido, que traz o último desejo gastronômico dos condenados à morte, nos EUA. Entre pedidos de pizzas e Macs, Robert Buell, em contraposição, morto por injeção letal, pediu só uma azeitona preta. (LA)
nnn
nnn
nnn
auditorioibirapuera.com.br/home_acalanto.aspx
designcoletivo.com
deadmaneating.com
Dorme nenê que a cuca vem pegar
Arte popular vira grafitagem pop
Último desejo: uma azeitona preta
n GASTRONOMIA
Comida popular na rede Do mercado da Madale- valorizando a produção pona aos sofisticados restau- pular. O blog é atualizado rantes contemporâneos da três vezes por semana (secidade. O blog gastronômi- gundas, quartas e sextas). co Cacimba de Letras, aloja- A semana começa sempre do no Portal Folha Digital, com a sugestão de um luabre espaço para todos. Ini- gar especial para degustar cialmente, o projeto dos jor- comida caseira; na sexta, há nalistas Lucas Lima e Eliza sempre uma indicação de liBrito era criar um blog que vros ou filmes relacionados juntasse literatura e gastro- ao tema. Entre notinhas e nomia, mas, desde o início, críticas, há sempre uma boa foram os sabores que toma- idéia para uma refeição praram conta, transformando zerosa. É acessar e degustar. Cacimba das Letras num (Mariana Oliveira) espaço dedicado à culinária nnn pernambucana e ao circuito de restaurantes do Recife e cacimbadeletras.blogspot.com cidades vizinhas, sempre AGO 2008 • Continente
47
ARTE
Cronologia da arte brasileira
A subida do foguete, Cláudio Tozzi, guache e ecoline s/ papel, 49,1 x 49,1 cm, 1969
A trajetória do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, cujo acervo chega ao Recife em exposição no Museu do Estado, desenha o mapa da arte contemporânea brasileira Geisa Agricio
E
stamos diante dos tempos em que a arte contemporânea atinge um compasso real e urgente, adequado ao presente instante. O que se destaca da produção é pinçado entre artistas vivos e pungentes em debate constante a respeito do “agora”. Numa conjuntura dinâmica, o “recente” é quase imediatamente legitimado no cenário da arte – a exemplo do convite da Tate Modern londrina para que grafiteiros brasileiros Nunca e osgemeos modificassem sua tradicional fachada. O que aconteceu entre as rejeições comumente resumidas na expressão “Meu filho de 5 anos faria melhor” e o esperançoso caminho da reação positiva ao “novo”? Há que se ponderar a respeito do trajeto que permitiu a extensão do ápice apontado pelas vanguardas modernas até o atual status adquirido pelas vertentes fundamentadas na
experimentação de novas linguagens e no uso de novos meios. No Brasil, sem dúvida, um dos pontos nevrálgicos de uma conjuntura globalizada favorável ao despertar das estéticas contemporâneas é a existência de uma instituição atenta e de atualização contínua voltada para a causa. A criação do primeiro museu nacional de arte contemporânea inserido no universo de investigação e pesquisa da maior universidade do país, num crucial momento de transição, situa o MAC USP, fundado em 1963, como a mais relevante organização impulsionadora desse processo. Nascido de um precioso conjunto de obras, doado pelo mecenas Francisco Matarazzo, com um vasto panorama de obras da arte moderna brasileira da primeira metade do século 20, mas estruturado sob a ótica de uma nova museo-
48 x Continente • AGO 2008
MAC-USP_50_51_52_53.indd 48
7/24/2008 4:04:43 PM
Fotos: Divulgação/ CCBB
AGO 2008 • Continente x
MAC-USP_50_51_52_53.indd 49
49
7/24/2008 4:04:44 PM
ARTE
Costureiras, Tarsila do Amaral, óleo s/ tela, 73,3 x 100,2 cm,1950
logia discursiva, o MAC paulistano é o mais amplo e plural órgão que traça através do seu próprio acervo um registro histórico da arte contemporânea desde suas influências até o apontamento de tendências incipientes. “Podemos dizer que o MAC reúne a arte do século 20, em que dialogam as vanguardas históricas que tinham como pressuposto questionar a evolução da arte como linguagem assim como a dinâmica contemporânea de construir novas realidades e criar situações intencionais de interpretação em que a resposta do expectador integra o sentido da obra”,
avalia Lisbeth Rebollo Gonçalves, diretora do museu. Com mais de 10 mil obras, de artistas brasileiros e participações estrangeiras, que o colocam no mapa das artes mundiais, a composição do acervo do MAC nos dá a possibilidade de, através do olhar, criar a perspectiva de que “a arte brasileira chegou até aqui porque partiu dali”. Há desde nomes essenciais das gerações modernistas como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Volpi, Di Cavalcanti, Portinari e Iberê Camargo, como passagens pelos primordiais expoentes da arte contemporânea como
Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape, Paulo Bruscky, Carlos Zílio e, mais tarde, Leda Catunda, Maria Bonomi, Cildo Meireles e Waltércio Caldas. Entre jovens artistas, estão presentes nomes da década de 80 como Leonilson e Nuno Ramos até realizadores atualíssimos como Amílcar de Castro. Coleções raras de Lygia Clark e trabalhos de Modigliani e Max Bill são preciosidades disputadas comumente para empréstimos estrangeiros. A presença de uma das 21 obras em papel de Robert Rauschenberg, doadas pelo próprio artista para 21 museus espalhados pelo mundo, é uma simbólica
50 x Continente • AGO 2008
MAC-USP_50_51_52_53.indd 50
7/24/2008 4:05:22 PM
Dança da bandeira vermelha, Clóvis Graciano, óleo s/ tela , 58 x 48,5 cm, 1943
exemplificação de como o MAC se tornou uma referência internacional, pontuada ainda por peças de Klee, Miró, Jean Arp, Chagall, Kandinsky, Picasso, Matisse, grupo Fluxus, entre outros. Mas apesar de tão valioso acervo, riqueza capital não é a moeda de barganha que garante a qualificação do MAC. Com parcos recursos para aquisições, a história do museu foi construída basicamente por doações de grandes colecionadores como Matarazzo e Rockefeller, comodatados e parcerias com articuladores como Marcantonio Vilaça, recebimento de obras das bienais de São Paulo e ainda entregas voluntárias feitas pelos próprios artistas que reconhecem a importância de entrar para o rol da casa. Isso sem falar de golpes favoráveis do destino. Recentemente, o MAC foi um dos agraciados por uma decisão judicial que impunha a distribuição da vasta coleção de Edemar Cid Ferreira, ex-dono do Banco Santos, preso por crimes financeiros, para instituições públicas. O museu recebeu 1.561 obras, entre elas mais de mil trabalhos de fotógrafos modernos e contemporâneos, que vieram em boa hora para preencher uma lacuna no arquivo da instituição. O acervo é a prova material da consolidação do MAC, mas prescinde de sua disposição conceitual a semente de um caráter precursor. É fundamentalmente pela sua natureza acadêmica e docente que o museu conseguiu desenhar um modelo que inspira outras instituições no país: o museu para além da exibição, que se coloca no
papel de um espaço de discussões públicas para construção de novos conhecimentos sobre a arte. Assim, foi um dos primeiros a se abrir para instalações, intervenções e para a arte tecnológica, numa condicional perspectiva de observar os recentes temas e propostas do fazer artístico sob um olhar crítico, voltado à atualidade e a tendências não apenas sob o subjugo da história tradicional da arte. Aí reside sua agilidade e perspicácia para agregar jovens artistas e acompanhar seu amadurecimento. E se hoje é hype os centros culturais disporem exposições de “novos nomes”, no MAC funciona como uma política pública permanente que vai além da frivolidade das itinerâncias, suscetíveis ao sabor do vai-e-vem das gran-
des produções e que se perdem na memória. É um suporte ao crescimento do artista e da arte como um todo com a sua presença real e contínua. “Creio que o diferencial para outras instituições, graças à administração realizada pela USP, é o conjunto de medidas a respeito da circulação da arte contemporânea, desde a conservação e a pesquisa como também a disponibilização. Muitos institutos terceirizam a produção, são grupos externos que colocam esporadicamente um olhar determinado sobre a arte; aqui temos professores-curadores-críticos que, como funcionários públicos, acompanham há 10, 20 anos, o desenvolvimento do museu e de seus artistas e podem lançar uma visão mais ampla”, explica a diretora. AGO 2008 • Continente x
MAC-USP_50_51_52_53.indd 51
51
7/24/2008 4:06:13 PM
ARTE
Retrato de Paulo Rossi Osir, Candido Portinari, óleo s/ tela, 55 x 46,2 cm, 1935
Além das mostras, o MAC emprega recursos para facilitar o acesso à arte. Num investimento contundente de pesquisas informáticas da USP, foi criado um catálogo virtual das obras do museu (http://www.macvirtual.usp.br/). O público pode acessar, ainda, obras reflexivas desenvolvidas pelos núcleos de investigação da casa, como o projeto Arte do Século XX / XXI – Visitando o MAC na Web (http:// www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/index. html), que explica didaticamente em módulos a história da arte atual através do material acumulado pelo próprio museu.
Usar o próprio acervo como trunfo para traçar uma linha do tempo da arte também é o cerne da idéia da exposição itinerante Arte Brasileira no Acervo MAC USP, que tem curadoria de Lisbeth Rebollo Gonçalves. Dividida em quatro núcleos (Modernismo e Seus Descobrimentos, Tendências Abstratas, Impactos da Nova Figuração e Caminhos da Arte Contemporânea), resume precursores, desenvolvedores e novas referências da contemporaneidade nacional. A mostra, possibilitada pelo Circuito Banco do Brasil, já passou por Salvador em fevereiro, visita o Recife em agosto e volta a São Paulo em outubro,
oportunamente em paralelo à 28ª Bienal. Há ainda uma possibilidade de chegar ao Rio Grande do Sul no fim do ano. Distribuídos em três sedes, duas na cidade universitária da USP e o original prédio do Ibirapuera anexo ao pavilhão da Bienal, os braços do MAC devem ser estendidos para que comporte melhor seu gigante acervo. Em 2007, o Governo de São Paulo concedeu ao MAC o antigo prédio do Detran, próximo ao Parque Ibirapuera, para instalações. Além de mais espaço e mais visibilidade, ao deixar de ser praticamente um “quartinho dos fundos da vitrine da Bienal”, ganha de presente o
52 x Continente • AGO 2008
MAC-USP_50_51_52_53.indd 52
7/24/2008 4:08:02 PM
luxo de colorir artisticamente um projeto de Oscar Niemeyer, assinatura arquitetônica da futura casa. A mudança está prevista para 2009, com uma abertura circunstancial de uma mostra histórica. “Esperamos que com essa extensão possam ser dados saltos na produção, o ‘calcanhar de Aquiles’, que amarra a agilidade do MAC, para acompanhar e apresentar à altura a produção atual de relevância. Acho que tornará possível o
funcionamento de uma sociedade de patronos que poderá cobrir as verbas que não temos para produção de exposições de alto nível”, conclui Lisbeth.
SERVIÇO Arte Brasileira no Acervo MAC USP – Museu do Estado de Pernambuco (Av. Rui Barbosa, 960), de 14/08 a 21/09, de terça a sexta-feira, das 9h às 17h, sábados e domingos das 14h às 17h. Confira mais informações no portal da Revista Continente www.continenteonline.com.br
Brasiliana 9, Antônio Henrique Amaral, óleo s/ aglomerado de madeira, 104,9 x 122,3 cm, 1969
AGO 2008 • Continente x
MAC-USP_50_51_52_53.indd 53
53
7/24/2008 4:09:11 PM
ARTE
Castelo de areia, fotografia, 75 x 110 cm, 2008
Espaços e tempos contidos 54 x Continente • AGO 2008
O jovem artista Bruno Vieira apresenta exposição individual na galeria Mariana Moura, falando de cultura e paisagem Ana Maria Maia
B
cos anotados e me adianta que, na individual Obrigação do horizonte, quer falar de “cultura e paisagem”, materializar lugares constitutivos e simbólicos para a experiência humana que, na condição de artista, universaliza e narra (ver as silhuetas em acrílico e tamanho real Elementos integrados). O sociólogo de formação quer falar de origem, de subjetividade e de apego, mas, ao assumir-se parte de um todo, de um sistema complexo para a vida e para a arte, abdica disso e se contém na administração de responsabilidades compartilhadas. Nunca te vi é sintoma de compartilhamento. Ocupa uma face da Mariana Moura com registros de uma convocatória por fotografias de sombras projetadas sobre monumentos urbanos de cidades ao redor do mundo. Do amplo banco de destinatários, alguns conheciFotos: Bruno Vieira
runo Vieira me recebe em sua casa, longe do centro, perto da praia, em Boa Viagem, Recife. É ali que trabalha, que traça os rumos de uma carreira artística, que cataloga a história que já viveu. Atende-me à porta e, já da entrada, aponta para um ambiente doméstico tomado por obras. Um exemplar de Cidade de areia sobre o sofá; alguns de Deriva na esquina, entre porta-retratos e um arranjo floral; atrás da mesa de jantar, uma montagem fotográfica de Lapsos. O portfólio expositivo, no corredor, revela “presentes e parcerias” de que Bruno se cerca. Estão ali afixados, entre outros, Carlos Melo, Paulo Meira, Flávio Lamenha (PE), Arthur Leandro (PA), Evandro Prado (MS), Helio Eudoro (RS), Fabio Okamoto, Marcelo Cidade (SP), Chico Fernandes, Cildo Meireles (RJ). Todos amigos, referências, interlocuções, em diferentes medidas e contextos. Pertencentes não só a esse acervo particular, mas à rede de mais de seis mil contatos eletrônicos a partir da qual o artista tece discursos e estratégias de trabalho. Precisamos conversar sobre a exposição que apresenta, a partir deste mês, na Galeria Mariana Moura, uma de suas representantes comerciais junto à Virgílio (SP), à Anita Schwartz (RJ) e à Belizário (BH). Vamos ao quarto, sentamos diante do computador, entre catálogos repetidos, livros de curadores –“para saber como eles pensam” – e um escritório de objetos, fotografias e arquivos de matérias de jornais e revistas. Bruno tem tópi-
dos pessoalmente, outros apenas através de listas e ferramentas de relacionamento na internet como o Multiply, onde possui uma página pessoal (http://brunovieira.multiply. com), o artista recebeu e selecionou as 12 imagens que exibe. A prática de endereçamentos e colecionismo de vistas particulares – muitas vezes íntimas – é recorrente desde os anteriores Deriva (concluído em 2007) e Imagens do afeto (iniciado em 2005), em que, respectivamente, lança ao mar uma resma de e-mails trocados e coleta memórias num álbum virtual público (imagensdoafeto.multiply.com). As praças de embates e encontros são subterfúgios que vêm e vão na pesquisa poética de Bruno Vieira. Se em Depósito ele preenche a amplitude do resultado de sua residência na Bolsa Pampulha (Belo Caixas do tempo, fotografia aplicada em caixas de acrílico 30 x 20 x 6 cm, 2008
AGO 2008 • Continente x
55
Fotos: Bruno Vieira
Rafael Gomes
ARTE
Bruno Vieira quer falar de cultura e paisagem na individual Obrigação do horizonte
Horizonte – MG, 2003) com caixas lacradas de doações que recebeu para a ocasião, em O Prêmio, executado no 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (Recife, 2006), repassa parte de seu pró-labore aos três visitantes que alcançarem o maior número de voltas à exposição. Em ambos os casos, usa da autoridade que lhe é dada para constituir elos através dos quais público e instituição possam pensar formas de convívio, utopias possíveis, mesmo que momentaneamente. Da série Cidades: Castelo de areia é um lugar ideal(izado) que habita a Galeria. Espelhada nos mesmos céu e mar vizinhos ao artista e à sua obra, a fotografia impressa em grandes proporções congela uma figura de encantamento e se completa enquanto percurso da impossibilidade de permanência que a matéria condena à potência de deleite estético intensificado no pré-colapso. Abaixo dela, na montagem da individual, estão Rosas azuis, reproduções de uma mesma flor em três estágios de envelhecimento, sobre plataformas acrílicas ovais que elucidam as coordenadas geográficas de um mapa-múndi. O mesmo enunciado indicial é 56 x Continente • AGO 2008
tomado em Vista inevitável, sobreposição de um retrato campestre em uma persiana. A instalação do objeto sobre uma parede sem janela dá a falsa impressão de que ali se esconde uma paisagem. Uma regra em que a representação nega a realidade e a arquitetura distancia o horizonte do alcance. Ao ornamento se segue a linha de minitelas Metro quadrado, e, com elas, o infinito da vontade de conter. Cai a tarde e Bruno Vieira ainda me fala do tempo e de suas tentativas de aprisioná-lo. Isso lhe é muito caro, dos traçados de Invasões (2003 – 2008) aos gestos registrados em vídeos como Água-viva (2005) e Caminhando (2007). Isso se atualiza no ambiente da Mariana Moura em exemplares de Caixas do tempo, em que traduz à literalidade o desejo pela providência do eterno. Dessa forma, o pôr-do-sol pode durar para sempre, de dentro de um aquário refletido. Pode durar assim como a própria história da arte, que segue sendo fonte temática do artista, em citações estilísticas e diálogos constantes entre passado e presente. Diálogos que o motivaram a es-
No alto, Vista inevitável, fotografia impressa sobre persianas, 115 x 122cm , 2008. Abaixo, Nunca te vi, instalação de fotografias, 30 x 45cm (cada), 2008
Flávio Lamenha/Divulgação
Rosas azuis, objeto contendo fotografia, 24 x 26cm, 2008
tudar o movimento desacelerado da filmagem de um corpo de balé, em Projeto Degas (2006), à luz do legado do impressionista que postulou matizes e ângulos para cenas efêmeras. Nesse caso, interessavalhe o remetimento a possibilidades de captura; interessava-lhe a pintura como paradoxo de dinâmica e registro, disciplina e imaginatividade. Embora nunca houvesse investido na técnica, certa vez mapeou, com Gil Vicente e Bete Gouveia, os pintores e suas grades de composição. De uma linha evolutiva, tirou 170 nomes e apresentou-os em panfletos de feições contemporâneas para seu ciclo social. Desaparecidos, circulavam Pablo (Picasso), Juan (Miro), Tarsila (do Amaral), Iberê (Camargo), sempre de costas, sem sobrenome e com uma indicação de telefone de contato que juntava ano de nascimento ao ano de morte. Assim como outras que ativam circuitos, a série sai do controle, mas não da vigília de Bruno, que
ainda recebe feed backs da procura coletiva e brinca com a pertinência da obra em tempos de assaltos aos acervos do MASP e da Pinacoteca do Estado de São Paulo. O exercício revela um artista de voltas e elipses, que insere a si mesmo em eqüidades históricas e assume, antes de mais nada, a contemporaneidade como postura política, da qual afere sintomas e transita a partir da percepção de conceitos comuns. Quando monitor do educativo do Museu de Arte Moderna Magalhães –“para aprender a montar e a me relacionar”–, em 2002, Bruno Vieira, na época integrante do Grupo Aleph, cruzou com Nelson Leirner, marco da geração 60/70, que, em 1967, testaria os critérios do júri do IV Salão de Arte Moderna de Brasília com um porco empalhado (Happening da crítica) e que, naquela mesma semana, abriria no espaço a mostra Adoração. Para prestar-lhe reverência, Bruno interpretou o colar que o carioca sempre leva ao pescoço no similar HNL – Homenagem a Nelson Leirner, feito com restos da montagem e cartas de baralho. Do encontro, restam o próprio colar, uma foto do momento em que exibe a peça para Nelson e para o então diretor do MAMAM, Moacir dos Anjos, e a explicação de que a performance espontânea demarcara “uma trípli-
ce aliança” entre artistas e curador, peças de um mesmo jogo na arte. Prestes a partir, recebo de Bruno alguns de seus catálogos, um do Projeto Prima Obra, de que participou, ainda em grupo, na Funarte (Brasília – DF, 2002-2003); um da Temporada de Projetos do Paço das Artes (São Paulo – SP, 2005 – 2006); outro do Atos visuais de 2006, também da Funarte. Levo um Goya “desaparecido”, gravo imagens no meu pen drive e deixo contatos de MSN e Skype. Dali a poucos dias, reencontramos-nos na abertura da exposição Quando foi 1968?, na Fundação Joaquim Nabuco. Voltamos a conversar, eu ainda com um relato a escrever. Continuamos, agora pela internet, onde parecem ainda mais evidentes os hiperlinks de intenções, proposições, resultados expositivos e textos críticos que encerravam data e hora para aquele universo de trabalho. Assumo terceira pessoa e parcela de responsabilidade. Faço-me veículo para Bruno Vieira e para as levas do que pode e do que não pode conter.
SERVIÇO Obrigação do horizonte – Bruno Vieira, na Galeria Mariana Moura (Av. Conselheiro Aguiar, 1552, Boa Viagem), a partir de 21/08. Informações: 81 3465 5602 Acesse e assista ao vídeo Zeitgeist, do artista Bruno Vieira www.continenteonline.com.br
AGO 2008 • Continente x
Arte - Bruno Vilela_54_55_56_57.57 57
57
7/11/2008 3:42:37 PM
ARTE
Unindo os fios da arte com a vida Livro traz artigos de estudiosos de cinco países sobre o trabalho e o percurso de Hélio Oiticica
Fotos: Reprodução
Marco Polo
Metaesquema (c.1957-1958): fase construtivista
U
ma das mais importantes artistas plásticas do cenário nacional, a gaúcha radicada em São Paulo Regina Silveira, acha que na década de 80 os “críticos internacionais se limitavam a entender a arte contemporânea brasileira como descendência direta de Lygia Clark e Hélio Oiticica, aplicando uma fór-
mula muito reducionista”. Em parte ela tem razão. Mas é inegável que os dois foram, no Brasil, os precursores de uma arte que se desdobrava para além de si mesma, integrando de tal forma o seu fruidor, que este deixava de ser um mero espectador para participar ativamente do processo. A partir deles, a obra só se realizava de fato no momento em que provo-
cava a interação com o “outro”. Muito embora, assinalar apenas este aspecto do trabalho dos dois, também seja uma atitude reducionista. Nas Anotações conta-gota, escritas em 1978, Oiticica dizia que “os fios soltos do experimental são energias que brotam para um número aberto de possibilidades”, e que “no Brasil há fios soltos num campo de
58 x Continente • AGO 2008
Oiticica_58_59.indd 58
7/14/2008 4:25:44 PM
possibilidades; por que não explorálos?” A partir deste mote, a mestra em História da Arte e doutora em Filosofia da Arte Paula Braga organizou o livro bilíngüe (português/ inglês) Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica, em que, juntamente com pesquisadores e estudiosos da arte de cinco países, assina artigos sobre a obra do artista carioca. O livro é enriquecido com fotos, manuscritos inéditos e uma cronologia. O fato de conter autores de outros países reafirma o interesse internacional na obra do artista, trazendo, inclusive, Michael Asbury, pesquisador da University of the Arts London, que faz uma espécie de “provocação” escrevendo um artigo chamado “O Helio não tinha ginga”, a fim de abrir portas novas para a análise do trabalho do brasileiro. Ou seja, ao verificar as fotos de Oiticica na quadra da Mangueira, constatou que ele, evidentemente, não tinha o jeito solto e espontâneo dos outros sambistas – que “já nasciam sambando” –, evoluindo ao seu lado. Hélio teve que aprender, estudar, exercitar-se e tentar o que os outros faziam com naturalidade e isto é apenas a ponta de uma questão maior: a celebrada “integração” entre o artista e a favela não foi tão harmônica assim, pelo contrário, seu amigo, o falecido poeta baiano Wally Salomão, relatou diversos conflitos do artista com os moradores do morro, provavelmente relacionados com sexo e drogas. Explica o pesquisador que tal levantamento de dados quer apenas mostrar como pode estar equivocado um certo consenso acadêmico que superdimensiona a relação de Oiticica com a favela, esquecendo outros elementos transformadores de sua arte. O que não quer dizer que a relação Oiticica-Mangueira seja desimportante. Era importante justamente porque alargava o horizonte de um artista que vinha de
Núcleo NC2 (c.1960): tirando cor e forma da bidimensionalidade
uma formação culta e que, ao entrar em uma espécie de contato-choque com um universo eminentemente popular e marginalizado, acabou estabelecendo a exata tensão que fez efervescer suas novas inquietações. A partir dessa percepção, diz o britânico, deve-se aprender a perceber que Oiticica não pode ser explicado por um dos momentos de sua trajetória, mas deve ser sempre iluminado por toda a “articulação de paradoxos que marcam sua trajetória de pensamento e prática”. Este tipo de angulação diferenciada é um dos atrativos do livro, ao lado dos textos escritos pelo próprio Hélio Oiticica. Suas cartas e anotações mostram como permanecia constantemente elaborando e teorizando os problemas que ele próprio suscitava, num exercício contínuo e perpétuo de questionamento e inconformismo, assim como seu total mergulho no que fazia, de maneira
a ficar impossível dissociar sua vida como um todo e seu comportamento cotidiano do que estava pensando, realizando ou pensando em realizar em termos de trabalho. Preocupado com uma constante renovação da arte e sua integração com o mundo – interior e exterior –, Hélio Oiticica foi agraciado, em Fios soltos, com um documento sério e sóbrio, excelente para quem deseja conhecer ou se aprofundar em sua performance, infelizmente tão curta. Hélio morreu em 1980, sete dias depois de sofrer um acidente vascular cerebral e quatro meses antes de completar 47 anos. Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica Paula Braga (Org.) Editora Perspectiva 416 páginas 65,00 reais
AGO 2008 • Continente x
Oiticica_58_59.indd 59
59
7/14/2008 4:25:47 PM
traduzir-se
Ferreira Gullar
Buscando entender Duchamp O artista não era propriamente uma personalidade fácil de entender, pois com freqüência assumia atitudes contraditórias ou ambíguas
T
alvez o que vou dizer neste artigo desagrade tanto os que exaltam Marcel Duchamp quanto os que o desancam. Sempre tive uma visão crítica a respeito de Duchamp, mas não me situo em nenhuma dessas duas facções. Quem tenha lido meus artigos na Continente, saberá que sustento uma visão bastante crítica da atitude de Duchamp frente à arte, embora não o considere um charlatão nem um artista medíocre, cujo propósito único tenha sido escandalizar. Na verdade, consideroo uma personalidade complexa, contraditória, que encarnou alguns dos conflitos e impasses que marcaram a arte do século XX, na qual teve um desempenho marcante e decisivo. Tenho afirmado, na tentativa de compreender esse processo artístico, que, na base dele, está o conflito entre a natureza artesanal da pintura e as novas tecnologias que passaram a dominar a produção de máquinas e objetos. Uma ideologia do progresso tomou conta da sociedade ocidental, determinando tanto o curso da vida social e tanto o processo político quanto a produção artística. O Cubismo provocou a ruptura com a linguagem pictórica surgida no Renascimento que, em função dessa problemática fundamental, agrava a crise da expressão artesanal e abre caminho para as diversas experimentações: nascem as vanguardas. Dentro desse contexto, o jovem Marcel Duchamp – inicialmente chargista de um jornal – tenta encontrar seu caminho nas diferentes lições que a arte de então lhe ensinava, mas talvez a lição decisiva foi a que apren-
de ao ver, na exposição de Indústria Naval, em Paris, em 1915, uma hélice de navio, que lhe pareceu tão bela quanto uma escultura de Brancusi. Um ready-made. O ready-made foi uma resposta ao conflito arte artesanal x idade industrial. Uma resposta irônica, sarcástica? Eis uma questão à qual não sei responder, mas, conforme outros críticos têm observado, Duchamp não era propriamente uma personalidade fácil de entender, pois com freqüência assumia atitudes contraditórias ou ambíguas. Mas é inegável que, desde que abandonou a tela e os procedimentos artísticos tradicionais, adotou modo de expressar-se que às vezes contradizem o radicalismo de sua postura dadaísta. Por exemplo, ao mesmo tempo que criava ready-mades, trabalhava pacientemente numa obra artesanal como é o Grande vidro, cujo nome por extenso é Une marieé mis à nue par ses célibataires, même, título indiscutivelmente surrealista e brincalhão. Nada mais contrário a um ready-made – que dispensa a realização da obra pelo artista – do que uma obra como essa, em que ele investiu oito anos de trabalho artesanal, de 1915 a 1923, para depois abandoná-la, dando por inacabada. Duchamp sempre foi contraditório – e é curioso que a principal contradição dele, como artista, envolve sempre a questão artesanal. Outro exemplo semelhante é a célebre “maleta”, (Boîte en valise) em que reuniu miniaturas, feitas por ele à mão, de diversas obras suas. A concepção básica desse trabalho implica, sem dúvida, uma espécie de desmistificação do conceito de obra de arte, tanto mais quando as obras miniaturizadas são de sua
60 x Continente • AGO 2008
Traduzirse_60_61.indd 60
7/11/2008 3:44:04 PM
Reproduçção
Étant donnés, Marcel Duchamp, 1946-1966
autoria. Não obstante, essa miniaturização é um trabalho artesanal, realizado com apuro e dedicação. Desse modo, cabe igualmente uma outra leitura: a de uma nostalgia da realização artesanal, do trabalho precioso, realizado pelas mãos do artista. Não é menos contraditório ter ele dedicado os últimos anos de sua vida a uma outra obra de natureza artesanal e poética, que nada tem do aparente niilismo que parece traspassar a sua história de criador da antiarte, do negador do valor próprio à realização artística, quando afirma que “será arte tudo o que eu disser que é arte”. Se realmente acreditava nisso, preferiu não apostar em tal certeza, do contrário não se dedicaria à criação de uma obra de tão complexa realização como Étant donnés. E não só: com ela, Duchamp pretende nos envolver numa atmosfera onírica, erótica, que só a
entrega apaixonada do artista torna possível ocorrer. Jamais tal objetivo seria alcançado por uma simples frase sarcástica ou a eleição de um urinol como obra de arte. Étant donnés nos faz evocar o mundo poético e transcendente de uma obra como A virgem dos rochedos, pintada por Leonardo Da Vinci, em 1510. Não seria arbitrário, ao constatar a semelhança de ambientação e atmosfera poética dessas duas obras, lembrar que uma das primeiras manifestações da irreverência de Duchamp, no terreno da pintura, foi acrescentar bigodes e barbas à Mona Lisa, também obra de Da Vinci. No caso de Étant donnés, a irreverência de Duchamp parece visar a atmosfera da obra do mestre renascentista, que é mística; e ele a torna erótica, pondo em lugar a Virgem, a figura de uma mulher nua que sustém, numa das mãos, uma lâmpada de gás... AGO 2008 • Continente x
Traduzirse_60_61.indd 61
61
7/11/2008 3:44:07 PM
Image ns:
Reprod ução
TRADIÇÕES
Universo do Cordel em exposição Instituto Cultural Banco Real sedia mostra – que abrange desde os clássicos até as versões multimídia
N
a ocasião do nonagésimo aniversário da morte do cordelista Leandro Gomes de Barros, vale lembrar um artigo de Carlos Drummond de Andrade, publicado no Jornal do Brasil, em 1976: “Em 1913, certamente mal-informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação, porque o título só poderia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista Fon-Fon, mas vastamente popular no Nordeste do País. E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros. Um é poeta erudito, produto da
cultura urbana e burguesa média; o outro, planta sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão.” A comparação pertinente de Drummond abrange dois extremos. A poesia de Bilac, pomposa e de influência européia, é indissociável ao bem-estar social, e bem aceita entre a elite brasileira. Se sobra erudição, fica devendo ao complexo de experiências que só a sabedoria popular agrega. Passando do conteúdo à forma, é claro que o português do cordel é rústico, mas nem por isso menos expressivo. Pelo contrário, é mais acentuado, o
que se reflete na oralidade de autores abertamente influenciados, como Ariano Suassuna (que teve adaptadas para a TV as obras Auto da Compadecida e, mais recentemente, A pedra do reino, ambas de linguagem muito própria), e João Cabral, que afirmava ter se iniciado nas letras através dos “romances de barbante”. Resumindo a importância de um grande pioneiro da poesia popular brasileira, o artigo mencionado pode levantar outra questão: cultura popular não é sinônimo de cultura de massa. Se bem que o cordel tem seus best-sellers: A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho, o maior deles, vendeu 500 mil exemplares. De autoria desconhecida (há tanto edições creditadas a Firmino Teixeira do Amaral quanto a José Bernardo da Silva), a obra faz par-
62 Continente • AGO 2008
Cordel - tradições_62_63.indd 62
7/15/2008 9:57:49 AM
te da leva que pertence ao ápice do gênero, entre 1930 e 1950. À época, o cordel tinha um caráter noticioso, sendo o primeiro jornal do sertanejo. Depois da morte de Getúlio Vargas (1954), por exemplo, foram impressos 60 títulos sobre o assunto, somando 2 milhões de exemplares. Assim como a grande mídia, os livretos chegaram até a pautar a vida das pessoas. Foi o que aconteceu em 1967, com o clássico A mulher que vendeu o cabelo e visitou o inferno, de J. Borges. À época, as mulheres do interior vendiam cabelo para que fossem feitas perucas – dinheiro rápido, dadas as condições de então. A mulher... vendeu 40 mil exemplares em apenas dois meses. Mesmo tempo que levou para as mulheres deixarem de vender cabelo. O gênero ainda assume outros papéis, como o de educar. Há ser-
tanejos que se alfabetizam com os livretos, que também podem ser usados como veículo de campanha, caso de A fera invisível, de João José da Silva, sobre a vacinação contra a tuberculose. Mas as características tiveram de ser renovadas com a expansão do rádio e da televisão. Os folhetos acabariam se alinhando àqueles veículos, mais imediatos, fechando um círculo curioso: livros inspiravam tele/radionovelas, que, por sua vez, eram adaptadas aos folhetos, como foi o caso de Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado. Já a internet tem sido uma aliada do cordel desde sempre, e é até mesmo uma espécie de palco para pelejas virtuais. Há inclusive uma forte semelhança nos dois meios: qualquer pessoa pode dizer o que pensa. A origem do cordel no Brasil data do século 16, tempo da colonização portuguesa. A fixação no
Nordeste como ícone de literatura regional pode ser explicada por mero determinismo: a mitologia do cangaço, o messianismo das procissões, as brigas entre famílias, enfim, condições culturais e sociais, bem-contadas por gente que tem o dom de fazer do chão inspiração. As diferentes fases do cordel podem ser conferidas no Instituto Cultural Banco Real, que abriga a exposição O universo do cordel, em quatro módulos: arte popular, cordel, multimídia e vídeo-registro. (Thiago Lins)
SERVIÇO O Universo do Cordel – Aberta ao público até 10 de agosto, no Instituto Cultural Banco Real (Bairro do Recife). De terça a quinta, das 14h às 20h e de sexta a domingo, das 14h às 22h. Confira mais informações no portal da Revista Continente www.continenteonline.com.br
AGO 2008 • Continente
Cordel - tradições_62_63.indd 63
63
7/15/2008 9:58:49 AM
CINEMA
Muro de arrimo
O estranhamento e a asfixia num curta-metragem sobre progresso e rarefação Marcelo Costa
H
á determinados filmes ou, de uma maneira mais genérica, obras de arte que, mesmo incompreendidos na sua plenitude, são capazes de provocar um estranhamento, uma sensação instigante e um estímulo para reflexão daquilo que foi visto, ouvido ou apresentado; uma tentativa de alcance que vai ecoar de acordo com a experiência pessoal de cada indivíduo. Essa impossibilidade da impassibilidade parece ser um dos pontos mais interessantes de Muro (18’, 2008), curta-metragem de Tião, apresentado na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes e que retorna ao país com o prêmio Novo Olhar, conseguido no balneário francês. O filme é resultado de um longo pro-
cesso, que se tornou viável a partir de 2004, quando o roteiro foi premiado no concurso Ary Severo. Depois de realizar seu primeiro trabalho, o conceitual Eisenstein, em conjunto com os parceiros da Trincheira Filmes, Leonardo Lacca e Raul Luna, Tião retomou o árduo processo de pré-produção e partiu com a equipe para Conceição de Cima, comunidade do distrito de Serra Talhada. Após a filmagem, o material ainda foi talhado e lapidado durante um ano na ilha de edição. O minimalismo dos detalhes, as arestas aparadas fazem valer cada etapa e centímetro de esforço quando se está diante da versão apresentada – tendo em vista o caráter aberto e inacabado do filme, que
passa por reformulações na cabeça do espectador. Diante de uma entrada audiovisual tão incomum e pessoal, é difícil delimitar um sentido para a obra sem recair em reducionismos ou divagações. A lacônica sinopse “alma no vazio, deserto em expansão” sugere um pouco a sensação de desamparo – seja sensorial ou referencial – presente no filme e no espectador durante a sessão. Num primeiro momento, somos apresentados a uma cidade remota de interior, cujos moradores se preparam para uma sessão de cinema da chegada do homem à lua. Em seguida, as pernas de uma mulher soterrada de ponta-cabeça bailam no ar sob a observação de uma velha ao lado de uma mesa repleta de copos em
64 x Continente • AGO 2008
Cinema - Muro_64_65.indd 64
7/11/2008 3:47:10 PM
Imagens: Divulgação
Cartaz de divulgação do filme Muro, segundo curta-metragem de Tião
Muro, do jovem cineasta Tião, trata da idéia de progresso e da transitoriedade das coisas
movimentos circulares: cena que remete à David Lynch e sua capacidade em provocar estranheza. Apesar do estranhamento, há um evidente argumento perseguido pelo filme no seu transcorrer. Da corrida espacial à corrida propriamente dita, Muro expõe a idéia do progresso e de como ele se insinua de maneira arrasadora e sufocante. Há uma sensação de asfixia constante em suas seqüências, seja na mulher enterrada até o pescoço, nos homens comprimidos por suas gravatas ou pela supressão da respiração numa brincadeira entre crianças; como se um peixe vivo agonizasse num aquário bonito e moderno, mas vazio. Anteriormente denominado Muro das Lamentações, em referência ao único vestígio do Templo de Herodes, onde os judeus se dirigem para orações e pedidos, o filme se refere a algo que existe e logo deixará de existir, trazendo à tona a sensação de melancolia própria da transitoriedade das coisas; algo também vivenciado em A história da eternidade, de Camilo Cavalcanti. Em seu segundo curta-metragem, o jovem cineasta de 25 anos demonstra maturidade e segurança próprias do artista que, mesmo sem
saber exatamente que forma tomará a criatura, ainda sem distinguirlhe o rosto, conhece-a intimamente e conduz o processo com intuição precisa. Rodado em 16mm e convertido para 35 mm em cinemascope, o filme tem na beleza poética de suas imagens e som a pungência de uma construção via sucessão de metáforas. O uso da luz e de recursos muitas vezes banalizado, como a câmera lenta, assume um lugar pertinente reivindicando sua importância numa fotografia apaixonada pela linguagem cinematográfica. Apesar do tom hermético do conjunto, suas cenas são claras e diretas e seguem uma narrativa incomum, mas em momento algum capaz de provocar o alheamento do espectador, imerso no ritmo bemdefinido da montagem, onde nada falta e nada sobra. A excelência da técnica associada a uma energia criativa em plena ebulição faz de Muro uma experiência sensorial muito singular e um salto importante na cinematografia pernambucana. Diante disso, o longo e oneroso processo de realização parece fazer sentido; afinal, como escreveu Rilke em suas cartas a um jovem poeta: “Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento, e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade: só isso é viver artisticamente na compreensão e na criação”. Talvez essas palavras justifiquem como um muro pode ser erguido com concreto e sentimento; – não para ser escalado ou transposto, mas apenas para nos manter no chão. AGO 2008 • Continente x
Cinema - Muro_64_65.indd 65
65
7/11/2008 3:47:14 PM
A Acrópole ameaçada Monumentos da Antiguidade Clássica sofrem dramáticos efeitos da poluição, o que “não deixa de ser um grito contra o nosso modo de vida e contra o que estamos fazendo, de um modo geral, com o planeta” Fernando Monteiro
Imagens: Reprodução
HISTÓRIA
O
termômetro marcava quase 40 graus à sombra (bem pouca, aliás), no caminho que sobe, tortuosamente, do bairro da Plaka para o cimo do conjunto portentoso da Acrópole. Estava apenas no meio da manhã de 17 de junho último, e, por puro acaso, eu subia para rever uma das obras arquitetônicas mais impressionantes do mundo antigo, ao lado de um velho americano debaixo de uma sombrinha de papel lilás sobre a calva cabeça. Eu também havia comprado uma, na mesma hora, dos jovens coreanos que oferecem o objeto frágil, em variadas cores – e, com a minha sombrinha amarela (vale qualquer coisa debaixo do sol grego de junho), passei a prestar atenção na conversa que ele iniciou, depois de perguntar se eu falava inglês e dizer que visitara aquelas grandiosas ruínas do século 5 (o de Péricles), em 1949. Dizia ele: – Isso aqui era completamente diferente, em 1949. Eu tinha 19 anos, e quase não havia ninguém subindo por este acesso que só tem a novidade do calçamento. No mais, continua tão escarpado como sempre... Fiz as contas, e vi que estava avançando mais uma vez em demanda das gloriosas ruínas de mármore, na companhia de um oitentão ainda vigoroso o bastante para suportar o caminho íngreme e o calor. Continuou:
66 x Continente • AGO 2008
História_66_67_68_69.indd 66
7/14/2008 3:46:41 PM
– Quando cheguei lá em cima, faz quase 60 anos, eu não creio que houvesse mais de 100 pessoas. – Só? – E parecia ter menos. Como a Acrópole abrange 4,5 hectares, deu-me a impressão de que eu tinha essa glória toda somente para mim, com Atenas estendendo-se a meus pés, lá embaixo. Você respirava ar puro, a atmosfera ática bem clara, tonificante para a gente... Bem, o velho – do Iowa, arquiteto aposentado há anos – e eu subíamos acompanhados, naquele momento, por uma pequena multidão, sem exagero, saída de ônibus e mais ônibus de turismo ou levados para o monte (que parece um grande navio de pedra esculpido contra o céu) por outros meios. Ou seja: gente, muita gente. E mais gente – muito mais – lá em cima, subindo em fila pelas escadarias do Propileus, uma espécie de pórtico para a grandeza inacreditável do conjunto de construções sagradas (para os gregos antigos), ainda hoje espetaculares na sua beleza arquitetural. Lá em cima, vi que o americano estava bem mais cansado do que eu. E deixei-o com as lembranças da sua juventude, embora cercado daquele burburinho turístico de 2008. Lá no platô, também, encontrei o Parthenon agora todo amparado, internamente, por altíssimos andaimes de ferro – fiquei sem saber desde quando estavam lá (em 1994, a estrutura do templo estava livre de tais “muletas”). E não há só o templo principal com sinais de socorro técnico: há mais dois templos me-
nores, também construídos há 25 séculos, naquele momento especial – o século 5, chamado “de Péricles” – em que o gênio grego encontrou as linhas de uma beleza ainda não igualada. Fizeram mais: adornaram esses templos com frisos que restaram – em Londres, na maior parte – como tesouros da escultura ornamental. Ainda no lugar original, resta pouca coisa dos adornos artísticos: o que já foi um impetuoso cavaleiro de mármore pentélico, um cavalo finamente esculpido (parecendo relinchar como um animal de Guernica em formas clássicas). Mas, há tanta gente lá em cima, que nada, hoje, pode ser visto na paz desfrutada pelo velho americano, em 1949 (olhei à volta: não consegui descobrir os ombros encurvados debaixo da sombrinha arroxeada). Naquele ano – e até meados da década de 80 –, ainda se podia entrar nos templos. Atualmente, claro que é proibido, eles só podem ser admirados do exterior. O resto de friso que eu ainda pudera contemplar, há 14 anos, hoje está bem mais disforme, como se uma lepra tivesse avançado, cruelmente, sobre a pedra mármore. E foi isso mesmo o que aconteceu, não só nas “sobras” dos frisos saqueados por Lord Elgin. A Acrópole inteira está doente, na verdade. As construções antigamente magníficas, os portais propiciatórios, as Cariátides delicadas, tudo que ainda resta no monte mais orgulhoso da Grécia, está, talvez, com os dias contados – se o mundo não se mexer, muito rapidamente, para livrá-lo do mal que criamos
para nós e para o resto: a poluição devastadora. Chefe carismático de um mundo então ordenado entre o céu, os deuses e a terra, foi Péricles quem convenceu os atenienses a gastarem uma enorme soma na construção de novos templos, lá no alto, em substituição daqueles mais antigos, incendiados pelos persas. Não há motivos para descrer disso que ainda hoje se conta na Grécia: a certa altura, os atenienses antigos se arrependeram da gastança que haviam autorizado, naquela primeira democracia do mundo, e quiseram retirar a permissão dada ao chefe. Péricles, então, teria respondido, altaneiro como o futuro santuário da deusa Athena: “Está bem, eu não vou continuar a gastar o vosso dinheiro, mas passarei a pagar eu próprio todas as despesas. Entretanto, uma inscrição dirá que estas maravilhas foram construídas não pelos atenienses, mas por Péricles”... Os cidadãos se entreolharam – e retiraram as suas queixas, deixando Péricles a gastar o dinheiro da cidade, sem limitações grosseiras. Valeu a pena. O Parthenon repousa sobre uma base retangular do melhor mármore, com três degraus de 69,54m de comprimento por 130,89m de largura. Tinha 46 fortes colunas exteriores, com 10,5m de altura e 1,9m de diâmetro. E deve ser, provavelmente, o maior exemplo de ilusão ótica do mundo. Isso porque, apesar de todas as suas linhas parecerem retas, o templo é, na verdade, um conjunto de curvas muito ligeiras – um truque do AGO 2008 • Continente x
História_66_67_68_69.indd 67
Suposto tripulante de um Óvni caído em Roswel, EUA, em 1947
67
7/14/2008 3:46:43 PM
HISTÓRIA
A Atenas moderna, com cinco milhões de habitantes e seus veículos e fábricas poluentes: ameaça ao patrimônio milenar
construtor para resolver o seguinte problema: como uma coluna reta, de cerca de 10,5m de altura, pareceria delgada no meio, o arquiteto da Acrópole fez com que as engrossassem em 35mm, ou seja, o suficiente para fazer com que pareçam direitas – artifício que, em arquitetura, passou a se chamar êntase. Mais: embora os distraídos turistas (milhares) não notem, todas as colunas são ligeiramente inclinadas para dentro (pura matemática: se continuassem subindo, iriam se encontrar a mais ou menos 2,5km acima do templo). Houve um dia terrível para toda essa perfeição envolta em beleza saída das mãos do escultor Fídias: o meio da manhã de 26 de setembro de 1687. Naquela época, uma guarnição turca usava o Parthenon como paiol de pólvora (literalmente)! Num ataque de tropas venezianas, o explosivo foi atingido pelos tiros inimigos, e o desastre – inevitável – fez ruir 14 das 46 grandes colunas já mencionadas. Milhares de estilhaços se dispersaram sob a base do monte e ainda hoje continua o trabalho de dispô-los em filas ordenadas por partes.
Houve outro desastre: a chegada de Thomas Bruce a Constantinopla, em 1802, com sua paixão predatória pela antiguidade helênica. Nomeado embaixador britânico junto ao Império Otomano, o escocês Bruce, sétimo conde de Elgin, convenceu o sultão turco (então, senhor de toda a Grécia) a lhe conceder permissão para retirar “alguns pedaços de pedra com velhas inscrições pagãs e figuras gravadas”. Resultado: o sujeito depenou as melhores partes do friso exterior, levando-as para o Museu Britânico, onde ainda são conservadas em sala especial, debaixo das reivindicações gregas (as mais enfáticas, feitas por uma combativa ministra grega da Cultura, a falecida atriz Melina Mercouri). Em vão. Os astutos ingleses – que vendem milhares de ingressos, todos os anos, no célebre Museu, aos curiosos interessados em ver de perto os mármores de Fídias (hoje chamados “de Elgin”) – sustentam que o Lord embaixador os obteve sob autorização legal da autoridade turca. Nada disso, no entanto, significou catástrofe maior do que a que vem preparando o tempo em associação com o dióxido de enxofre
(SO2) resultante da combustão dos produtos petrolíferos. O dióxido é um gás que corrói a pedra, e vem sendo expelido, durante anos e anos, pelos veículos que rodam na Atenas superpovoada (cinco milhões de habitantes, atualmente). Por outro lado, novas fábricas também lançam mais fumaça na antigamente límpida atmosfera grega, e, tudo junto – segundo o Dr. Giorgio Torraca, especialista italiano na conservação de monumentos de pedra – funciona como “um câncer” num organismo vivo. Nas suas palavras: “O mármore é altamente poroso e compõe-se de grandes cristais de carbonato de cálcio, unidos entre si por uma espécie de cimento da mesma substância, feito de grãos mais finos que os do açúcar. Então, o que acontece? Os produtos químicos poluidores, especialmente o SO2, combinam-se com a umidade do ar, formando uma espécie de ácido diluído. E esse ácido penetra nos poros do mármore, desintegrando primeiro aqueles finos cristais de ‘cimento’, e depois os cristais maiores, que também se desagregam. É isso que está acontecendo com a Acrópole, e seu efeito sobre ela não deixa de ser um grito contra o nos-
68 x Continente • AGO 2008
História_66_67_68_69.indd 68
7/14/2008 3:46:49 PM
so modo de vida e contra o que estamos fazendo, de um modo geral, com o planeta”. Diante da impossibilidade de se reduzir, significativamente, a poluição oriunda do consumo dos produtos do petróleo, especialistas internacionais queimam as pestanas para encontrar soluções paliativas. Alguns pesquisam certos compostos químicos cuja aplicação poderia couraçar o mármore, detendo parte da ação dos ácidos que o atinge. Silicones, resinas sintéticas apresentam tanto vantagens quanto inconveniências, na sua aplicação sobre esse tipo de pedra. E são, todos, bem caros – além de necessitarem de mão-de-obra especializada, nada barata. A Grécia é um país pobre, e, ainda por cima, se debate em dúvidas sobre a real eficácia de tais medidas (para muitos, a umidade que ficaria dentro da “pedra impermeabilizada” continuaria a atacá-la da mesma maneira). Talvez a esperança esteja no caminho do aperfeiçoamento de uma técnica desenvolvida na Universidade de Nova York, pelo especialista Z. Lewin. Esse professor norteamericano inventou um “coquetel” de produtos químicos
baratos (hidróxido de bário, uréia e glicerina) que atinge, no seu cerne, os poros do mármore – sem os tapar – e, ao mesmo tempo, se combina com os produtos químicos já desenvolvidos como “impermeabilizantes” da pedra. O resultado é uma película dura em torno dela, como ele já pôde comprovar primeiro em velhas pedras tumulares nos Estados Unidos e até mesmo em pedras de Veneza (outro tesouro arquitetônico, este ameaçado de afundar na lama do Adrático). Já faz tempo, um diretor-geral da Unesco estimou em pelo menos 20 milhões de dólares o custo de uma operação de “salvamento” parcial da Acrópole. Mas o dinheiro ainda não foi conseguido, mesmo com a participação dessa organização educacional, científica e cultural da enfraquecida ONU. Lembrado disso, no dia 17 de junho passado, no meio da Acrópole cheia de gente, eu fui “caçar” o americano com o qual
havia subido a ladeira de acesso ao mais importante dos monumentos gregos. Encontrei-o sob a sombra do inacabado pórtico que dá acesso à área do Parthenon, e lhe perguntei se, como arquiteto, sabia qualquer coisa a respeito do projeto/campanha da Unesco. Ele balançou a cabeça, negativamente: “Deve continuar na gaveta, à espera de recursos. Sabe, my friend, isso é porque os homens diminuíram de tamanho, desde que se levantou esta maravilha. Há quase 3.000 anos, Péricles se ofereceu para pagar do seu bolso a despesa toda. Devia ser muito rico. Mas não tão rico, certamente, quanto um Bill Gates, hoje. Então, onde estão os Gates, os Forbes, os homens que amealharam dinheiro a vida toda, quando esta maravilha (ele fez um gesto, abrangendo todo santuário) pede socorro? Se ele não vier, um dia poderão subir aqui apenas para ver um monte de pedras desmoronadas”... Ele calou, e eu também. Depois, deixei-o com as recordações dos seus 19 anos, quando visitara uma Acrópole “bem diferente”. Tinha direito a estar em paz, na talvez última visita ao lugar, na sua já longa vida. O Parthenon, obraprima da arquitetura da Antiguidade, também sofre com a corrosão do mármore pelos ácidos
AGO 2008 • Continente x
História_66_67_68_69.indd 69
69
7/14/2008 3:46:53 PM
sabores
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
A sustança das sopas “A sopa é a consolação de um estômago necessitado.”
ção
ulga
: Div
s Foto
prod s: Re gen
proteção de suas maviosas (segundo ele) cordas vocais. A partir da Idade Média, difundiu-se, pela Europa, o costume de preparar caldos de urtiga e ervas daninhas. Além de outros mais elaborados, feitos com leite de amêndoas, cebola, fava, temperados com canela, gengibre, mostarda e vinho.
Ima
P
rimeiro o homem descobriu que a carne, cozida em água, não ficava esturricada. Dando-se também conta de que aquele caldo, em que foi preparado o alimento, guardava sua cor e seu sabor. Assim nasceram as sopas – durante muito tempo, principal alimento de populações inteiras. O nome veio depois, da Alemanha, com o supper (ato de ensopar o pão – por ser o caldo servido sobre fatias de pão). Um nome, a partir de então, consensualmente adotado: Zuppa (inzuppano, ensopando o pão) na Itália; soupe (ensopar o pão) ou potage (pot, pote), na França; soup, na Inglaterra; além, claro, de sopa em Portugal e Espanha. Está em todas as culturas. A Bíblia nos conta que, quando a fome “devastava a terra”, Eliseu disse a seu servo: “Toma uma panela grande e prepara uma sopa para os filhos do profeta” (II Reis, 4, 38). Na Grécia tinham grande prestígio: em Atenas, a de lentilha; em Esparta, o famoso caldo negro (preparado com sangue de animais misturado em ervas aromáticas, sal e vinagre); e uma sopa de rosas (feita com pétalas perfumadas, azeite, gemas de ovo, miolo de pássaros, pimenta e vinho). Em Roma, Nero tomava um caldo de alho-poró para
ução
Brillat-Savarin (A fisiologia do gosto)
No Renascimento, o Sr. Boulanger (em francês, padeiro), embora ganhasse a vida como vendedor de caldos (marchand de bouillon), inventou uma sopa fortificante, restauradora, feita de carne de boi, carneiro e legumes que denominou restaurant. A placa afixada, em seu estabelecimento, dizia assim: “Boulanger vende restaurantes divinos, vinde a mim, vocês que têm o estômago em penúria, eu os restaurarei”. Daí veio a própria origem da palavra restaurante. Depois, tudo se sofisticou. Em 1680, Domingos Rodrigues, no seu Arte de cozinha, indicava 12 receitas de sopas: à italiana, à francesa, dourada, dourada de nata, de nata, outra sopa de nata, de queijo e lombo de porco, de queijo e caldo de vaca, de qualquer gênero de assado, tostada, de pêros (variedade de maçã doce,
70 Continente • AGO 2008
Sabores_70_71_72.indd 70
7/14/2008 3:48:50 PM
E o gastrônomo Grimod de La Reynière ensinou que todo jantar deveria começar com sopas (no mínimo duas); porque, segundo ele, “a sopa está para um jantar assim como o portal está para um palácio”
com forma que lembra a pêra) camoenses. E de amêndoa – segundo ele, que “se faz, deitando-se em meia camada de leite oito gemas de ovos, meio arrátel de açúcar, quatro onças de amêndoas muito
bem pisadas, e uma quarta de manteiga: tudo isto junto, depois de muito bem batido, ponha-se em um tacho a cozer em lume brando e, como for engrossando, lance-se em um prato, ou frigideira, ponhase a corar na torteira, ou no forno, e corado leve-se à mesa”. Cem anos depois, Lucas Rigaud, um francês que chegou a Portugal para servir à rainha D. Maria I, A Louca, acabou afrancesando a culinária portuguesa. É dele o Cozinheiro moderno ou Nova arte de cozinha, em que relacionava 63 caldos e sopas. Entre elas uma sopa branca de arroz: “Ponhase a cozer meio arrátel de arroz num pouco de caldo de raízes. Deixe ferver pouco e pouco, e temperado com um bocado de manteiga; em estando cozido, desfaçam em caldo sete ou oito gemas de ovos e, postas ao lume, mexendo sempre com uma colher até estarem ligados, e sem que ferva, e de bom gosto, sirva-se misturado com o arroz, e tudo bem quente”. Logo depois, Marie-Antoine (Antonin) Carême criou mais de 500 delas. E o gastrônomo Grimod de La Reynière ensinou que todo jantar deveria começar com sopas (no mínimo duas); porque, segundo ele, “a sopa está para um jantar assim como o portal está para um palácio”. Ainda se preocupando em ensinar boas maneiras: “Para tomar a sopa, qualquer que seja, deve-se usar exclusivamente a colher”, e “uma vez tomada a sopa, deixa-se a colher sobre o prato, evitando pousá-la sobre a toalha”. AGO 2008 • Continente
Sabores_70_71_72.indd 71
71
7/14/2008 3:48:58 PM
RECEITA
Sopa de batata Refogue ½ kg de batata, 1 cebola e 1 talo de alho-poró na manteiga. Junte 1 litro de caldo de carne (preparado com ½ kg de músculo, azeite, 2 dentes de alho, 1 cebola, 2 tomates, coentro, cebolinho, 1 folha de louro. Refogue tudo no azeite, junte 2 litros de água e deixe em fogo baixo por 1 hora. Coe.) Deixe no fogo até que as batatas estejam bem-cozidas. Passe no liquidificador, coe e volte ao fogo. Tempere com sal e pimenta a gosto. Junte 1 caixa de creme de leite. Sirva quente, acompanhada com cubos de pão passados na manteiga.
Na França, algumas sopas ficaram famosas: soupe a l’oignon (de cebola), consommé (caldo de carne ou de galinha) – batizado com este nome porque fica apurando no fogo, lentamente, enquanto a água é consumida; e bisque – com camarão, lagosta ou siri, mais conhaque ou vinho branco. Na Espanha, gazpacho. Na Itália, minestrone. Nos Estados Unidos, gumbo. Na Rússia, borchtch. Na China, mais recentemente, sopa de ninho de andorinha, de preferência yen yen – que se alimentam apenas de mariscos e algas. Em 1857, Julius Liebig, químico alemão, conseguiu produzir extrato de carne concentrado, que acabou dando origem ao caldo sintético. Findando a idade romântica desse prato com a invenção das sopas em pó. Em 1882, na Suíça, Julius Maggi passou a fabricar um caldo de galinha concentrado. Carl Heinrich Knorr, em 1889, fez sua primeira sopa pronta desidratada – a erbswurst, uma sopa de ervilha empacotada em plástico, na forma de um salame; e, em 1912, o primeiro caldo de carne em cubos. Dois nomes, Maggi e Knorr, que hoje estão em pacotes de sopas instantâneas de todos os nossos supermercados. Morre o homem e fica a fama.
Mas o prestígio das sopas, entre nós, se deve à presença portuguesa que, para índios e escravos, nunca tiveram importância. A primeira que nos veio foi uma sopa de cavalo cansado – preparada (sem nenhum cavalo) com vinho tinto, açúcar, canela e pão torrado, usada como revigorante por lavradores de Portugal. Enquanto Leonardo da Vinci, em seu Caderno de cozinha, dá receita de uma sopa de cavalo (tendo como ingrediente o cavalo em carne e osso): “A melhor maneira de ingerir um cavalo é esta: devese prepará-lo como a sopa de vaca, mas no lugar de três cenouras, três cebolas”. Boa porque, segundo ele, “um cavalo dá de comer a 200 pessoas”. Ainda hoje se faz, por aqui, uma sopa parecida, a de cachorro cansado – (também sem nenhum cachorro) segundo se conta, capaz de levantar até defunto. Depois chegaram receitas que o colonizador trouxe de muitos outros lugares. Da Índia, a canja de galinha – por lá conhecida como kanji (arroz com água) – uma “água de expressão de arroz com pimenta e cominho a que chamam canja”, segundo a descrição de Garcia da Orta. Caldo de arroz – como, um século mais tarde, a chamou o jesuíta Manoel Godinho. Aqui pas-
sou a ser feita também com macuco (do tupi ma’kuku) – uma ave de grande porte, parecida com a perdiz, que vivia nas florestas brasileiras. No início reservada apenas para doentes, logo essa canja passou a freqüentar jantares elegantes. Era o prato preferido de Dom Pedro II, muitas vezes resumindo-se nela suas refeições. E a provava em todo canto. Até no teatro, “entre o segundo e o terceiro ato – que só começava, por isso mesmo, ao ser dado o aviso de que Sua Majestade terminara a ceiazinha”, segundo R. Magalhães Júnior. O que levou o teatrólogo Artur Azevedo, em 1888, a dizer: “Sem banana, macaco se arranja, mas não passa monarca sem canja”. Sopas típicas pernambucanas não são muitas. Entre elas, a de cabeça de peixe – onde se aproveita a cabeça de peixes da região (camurim, cavala, cioba, garoupa), usados em outros pratos. A de testículo de boi – originalmente tomada pelos vaqueiros das fazendas de gado. As de batata, beterraba, cenoura, inhame, jerimum, macaxeira. A de legumes – mistura de legumes, triturados depois de cozidos. A de milho verde – sobretudo perto do São João. E a de feijão – aproveitando o feijão já pronto do almoço.
72 Continente • AGO 2008
Sabores_70_71_72.indd 72
7/14/2008 3:49:07 PM
MÚSICA
Reflexões com toques de escândalo Livro de Norman Lebrecht expõe jogos de bastidores que direcionaram a história da indústria fonográfica da música clássica ao longo de um século Carlos Eduardo Amaral
E
m 2008, os selos de música clássica tiveram uma peculiar data redonda para aquecer as vendas. Depois de sucessivos “tributos” a compositores – como o centenário da morte de Grieg e o cinqüentenário da morte de Sibelius, em 2007, ou os 250 anos do nascimento de Mozart e o centenário do nascimento de Shostakovitch, em 2006 –, veio a hora de elaborar estratégias de marketing em torno de um regente; e não só de um, mas de dois; e não de quaisquer dois, mas dos dois que mais possuíram inclinações midiáticas e construíram em torno de si uma aura de perfeccionismo e prestígio.
Herbert von Karajan (19081989) e Leonard Bernstein, uma década mais novo e falecido em 1990, iniciaram a carreira antes da transição da gravação mono para estéreo – e ultrapassaram a do LP para o CD – mais cultuados do que já eram, como não o puderam vivenciar Toscanini ou Furtwängler. Além de testemunharem as duas evoluções tecnológicas mais cruciais da história da indústria fonográfica e se beneficiarem dos lucros delas, ambos se destacaram de seus contemporâneos por uma eficiente comunicabilidade com o público, no caso do maestro norte-americano, e por uma estetiza-
ção singular da auto-imagem, no caso do austríaco. Respaldados por turnês bem-sucedidas à frente de suas orquestras, Bernstein e Karajan conseguiram o poder necessário, quase absoluto, para as realizações que almejavam em suas gravadoras na época (respectivamente a CBS e a Deutsche Grammophon). Como eles dois levaram a cabo seus planos narcisistas e se tornaram mitos vivos é apenas um breve episódio de Maestros, obras-primas e loucuras: A vida secreta e a vergonhosa morte da indústria da música clássica (Editora Record), de Norman Lebrecht, recém-lançado no Brasil. Da indúsAGO 2008 • Continente x
Musica - maestros_73_74_75.indd 73
73
7/14/2008 4:30:28 PM
tria fonográfica, diga-se, conforme está na edição britânica. A narrativa do crítico inglês, clara, fluida e temperada com detalhes pessoais de muitos dos personagens envolvidos, inicia-se com os “pais da gravação fonográfica” e suas invenções – a gravação sonora por Thomas Edison, o gramofone por Emil Berliner, e mormente a comercialização de discos por Fred Gaisberg. Nela, predomina o tom enaltecedor até a consolidação das seis grandes gravadoras do século 20 – RCA, EMI, Decca, CBS, DG e Philips – graças a personalidades hoje esquecidas, como a diretora musical Elsa Schiller na DG e o produtor John Culshaw na Decca. Só que esse período vai do primeiro sucesso mundial de vendas, as árias cantadas por Enrico Caruso em 1902 e registradas por Gaisberg, ao maior desses sucessos, a caixa com O anel dos Nibelungos completo, regido por Sir Georg Solti de 1958 a 1965 e produzido por Culshaw. A partir daí, com a aposentadoria dos que construíram a reputação de suas respectivas gravadoras e a concomitante aparição dos maestros-estrelas, Lebrecht desce o porrete em seus bonecos de Judas prediletos: os regentes ególatras e os executivos ambiciosos e sem familiaridade com a música clássica. Não é de hoje que Lebrecht bate forte em medalhões ou em eminências pardas. Maestros, obras-primas e loucuras forma uma trilogia com outros dois sucessos polemistas, dos quais retoma e atualiza fatos: O mito do maestro: grandes regentes em busca do poder (1991) e Quando a música pára: diretores, maestros e o assassinato corporativo da música clássica (1996), conhecido nos Estados Unidos como Quem matou a música clássica? Se você quer entender por que existem centenas de discos da Quinta de Beethoven
ou das Quatro Estações de Vivaldi, Lebrecht lhe responde, lúcido e incisivo. A culpa recairá na tríplice falta de competência, criatividade e audácia de muitos maestros, mais ou menos como nossas queixas sobre a qualidade da programação televisiva, que param na velha justificativa dos diretores ou produtores dos programas (ocupantes de posição similar a de um regente) e dos executivos das emissoras: “É o que o povo quer ver”. Em posição equivalente à das emissoras estão as gravadoras, a quem Lebrecht responsabiliza, entre outras coisas, pela banalização de Mozart, transformando suas obras-primas em música para elevador e para mães grávidas, e pela concessão de status de artistas clássicos a sucedâneos risíveis. Maestros, obras-primas e loucuras divide-se em três partes. Maestros, que ocupa metade do livro e fala igualmente de executivos e diretores musicais, é a principal; vai de Gaisberg e Caruso aos ersatzen Il Divo, Andrea Bocelli e the friends of Pavarotti – aos quais podemos juntar a Família Lima, André Rieu e os new agers Yanni e Vangelis. Obras-primas são as indicações das 100 melhores gravações de música clássica até o momento, não propriamente por qualidade de execução, mas por importância histórica. O único brasileiro na lista é Nelson Freire, graças a Variações Paganini de Lutoslawski, ao lado de Martha Argerich em 1982, pela Philips. Loucuras, a menor e última parte, lista as “20 gravações que nunca deveriam ter sido feitas”, segundo Lebrecht. Não aquelas da lavra de músicos desconhecidos, mas as que foram promovidas com uma galhardia desproporcional aos trágicos resultados sonoros e renderam um mea culpa ou uma varrida para debaixo do tapete a muitos ídolos das salas de concertos. Nesse ces-
Fotos: Divulgação
MÚSICA
O inglês Norman Lebrecht: exato e maldoso
74 x Continente • AGO 2008
Musica - maestros_73_74_75.indd 74
7/14/2008 4:30:31 PM
Maestros, obrasprimas & loucura Norman Lebrecht Editora Record 350 páginas 47,00 reais
O maestro austríaco Herbert von Karajan (1908-1989): obcecado pelo poder e pelo estrelismo
to de lixo simbólico estão canções de Natal de Kiri Te Kanawa, uma Variações Enigma de Elgar com Bernstein e um Concerto tríplice de Beethoven com Richter, Oistrakh, Rostropovich e a Filarmônica de Berlim regidos por Karajan. Vale a pena saber por quê. A acidez de Lebrecht nos comentários às obras-primas e às loucuras é perspicaz e legítima ao alvejar o mérito artístico de uma interpretação, contudo, mostra-se apropriada a um tablóide britânico nos capítulos sobre os maestros e diretores musicais. Neles, Lebrecht não se importa em subscrever as especulações sobre a vida sexual de Culshaw,
um discreto homossexual, ou que Glenn Gould era “um pouco biruta”, embora notável, ou que Sergiu Celibadache era uma figura cult, apesar de “meio aloprado”. Tudo verdade, mas isso não acrescenta nada à história das gravações ou performances – e teve quem abrisse a boca para responder. Klaus Heymann, fundador da Naxos, o selo clássico independente mais importante da atualidade, foi retratado por Lebrecht, em suma, como um explorador de mão-de-obra barata de orquestras do Leste Europeu. O empresário entrou na Justiça apontando mais de 15 citações difamatórias no livro e saiu vitorioso. A editora de
Lebrecht no Reino Unido entrou em acordo com Heymann, pagou uma indenização de valor não revelado (fora os custos do processo), pediu desculpas e recolheu os exemplares não vendidos. Heymann doou alguns milhares de libras para uma ONG de educação musical; Lebrecht ficou calado. Descontando isso, Maestros, obras-primas e loucuras possui, de qualquer forma, uma grande virtude: mostrar que a indústria fonográfica forjou os primeiros pop stars antes do que se vê nos estudos acadêmicos, que abordam o jazz, o folk, o rock, a bossa-nova, o pop, menos a música de concerto. Se, de acordo com o escritor inglês, “A revolução pop nunca atravessou a barreira dos clássicos”, foi porque o pop não quis, esnobando os clássicos por serem menos vendáveis que ele. Porém sabemos que a busca da fama, as esquisitices, os modismos e as intrigas dão o que falar há muito mais tempo. Imagine se os gramofones tivessem sido criados uns 100 anos antes e Lebrecht comentasse que Chopin usava luvas brancas feito Michael Jackson e era misógino. Que Schubert e outros tantos podiam ter baixado o fogo e se poupado de DSTs. Que nada garante que Clara Schumann e Brahms tenham resistido ao clima amoroso por consideração a Robert. Que Paganini “pegava todas”, mesmo sendo baixinho, magro e de mãos finas. E que antes de qualquer roqueiro, o primeiro cabeludo a ditar estilo foi Franz Liszt, que, por sinal, teve um genro muito mau caráter, que chifrou um maestro de quem era mui amigo... AGO 2008 • Continente x
Musica - maestros_73_74_75.indd 75
75
7/14/2008 4:30:34 PM
MÚSICA
Música irlandesa contemporânea
O
Contemporary Music Centre, em Dublin, foi fundado no intuito de divulgar a obra de compositores irlandeses e norte-irlandeses em atividade, investindo na construção de um referencial acervo de partituras e na promoção de concertos periódicos em toda a Irlanda. Paralelamente, o CMC inaugurou um selo fonográfico e Ireland, um a série de discos Contemporary Music from Ireland work in progress que já chegou ao sétimo volume. Os CDs, ao mesmo tempo em que compilam uma amostra significativa daquela obra, comentada por cada um dos compositores, confiam a execução aos grupos e intérpretes igualmente significativos, alguns dos quais planejam se apresentar futuramente no Brasil. Dentre as peças de linguagem pessoal mais atrativa,
na série, estão a dadaística Above under now, de Andrew Hamilton, e a enigmática Afterjoyce I, de Benjamin Dwyer (vol. 4), a inquieta Crossing the threshold, de Micheal Alcorn, a épica Baginbun – 1170 AD, de Vincent Kennedy (vol. 6) e a bem-humorada Honk, de Greg Caffrey, (vol. 7). Os CDs são gratuitos, mas disponíveis apenas para instituições de memória fonográfica e divulgação musical interessadas no intercâmbio de material de pesquisa, ou para emissoras de rádio especializadas em música clássica, já que a radiodifusão também é gratuita. (Carlos Eduardo
> Novos talentos do piano nacional
> Marlos Nobre e Heitor Villa-Lobos
> O contrabaixo em destaque num solo
> Jane O’Leary e a música da Irlanda
O I Concurso para Piano Cidade de Belo Horizonte concedeu os três primeiros lugares, respectivamente, ao mineiro Ricardo Castelo Branco, ao gaúcho Josias Matschulat e ao paulista Thiago Bertoldi. Na competição, todos cumpriram um programa de peças nacionais e internacionais; as primeiras, registradas neste CD. O ganhador escolheu a Bachianas Brasileiras n° 4. Josias, a Suíte Floral, também de Villa-Lobos, e a Sonata Breve de Marlos Nobre; Thiago, as Impressões Seresteiras, do Ciclo Brasileiro do Villa e os seis Estudos Transcendentais de Mignone. Se a execução de Nobre e Mignone foi ao menos segura, o carioca das Laranjeiras, matreiro, proporcionou problemas de andamento e dinâmica aos três laureados. (CEA)
Joaquim Freire há quase quatro décadas mora na Suíça, onde seu pai, Paulo Freire, fixou residência depois do exílio no Chile e nos Estados Unidos. Ex-aluno de violão de Turíbio Santos e Dagoberto Linhares, Freire é casado com a também violonista Suzanne Mebes – ambos dirigem o selo Léman Classics, que planeja chegar em breve ao Brasil. Nesta gravação de 1993, Freire interpreta Villa-Lobos e o conterrâneo Marlos Nobre, encarando sem dificuldades os 12 Estudos de Villa. Já Reminiscências, op. 83 de Nobre é uma lembrança do Estado natal do compositor e do intérprete em seus três movimentos: choro, seresta e frevo, mais festivos e desafiadores que a Homenagem a Villa-Lobos, op.46, que completa o disco. (CEA)
Tempo vai, tempo vem, e o contrabaixo, por mais essencial que seja na orquestra, permanece quase sem evidência como solista. Instrumentistas de primeira linha existem desde Bottesini (1821-1889), mas uma substancial contribuição parece ser esperada até hoje. O romeno Catalin Rotaru, conhecido do público do Virtuosi, é um dos que têm de recorrer às transcrições para expandir seu repertório e escolheu para este álbum duas peças originais para violoncelo: a sonata de Rachmaninoff e a primeira de Brahms. Tocando nas notas agudas, sempre de forma irrepreensível, Rotaru explorou os graves no intermezzo do CD, a transcrição que fez para cello e baixo da Chacona da Partita n° 2 para violino solo de Bach. (CEA)
A compositora Jane O’Leary, norteamericana residente na Irlanda e um dos principais nomes da música clássica contemporânea irlandesa, possui uma linguagem que busca criar “um espaço ressonante próprio” entrelaçando “formas, sons e texturas”. De fato, cada peça em In the stillness of time – desde a obra-título – pode ser imaginada como um painel abstrato, composto por uma sucessão de timbres esparsos. Exceto em alguns momentos de Mystic play of shadows, espere somente seqüências de sons soturnos, misteriosos ou siderais, tal qual em a piacere..., para clarone, e something there, para clarineta, cello, violino e acordeom. Particularmente belo, sobretudo, é o uso da viola da gamba em Why the hill sings. (CEA)
Coleção Música Brasileira Produção independente 30,00 reais mnedition@uol.com.br
Joaquim Freire Marlos Nobre & Heitor Villa-Lobos Léman Classics R$ 50,00 mnedition@uol.com.br
Amaral) Contemporary music from Ireland CMC Pedidos: http://www.cmc.ie/
Bass*ic cello notes Catalin Rotaru Summit 25,00 reais
In the stillness of time Music of Jane O’Leary Capstone Records 50,00 reais concorde@eircom.net
76 Continente • AGO 2008
Agenda Musica_76_77.indd 76
7/14/2008 4:34:30 PM
Depois do preá, é a vez do peba
E
m tempos de brega e fuleiragem music (ver matéria de capa desta edição), é raro encontrar bandas de forró que mantenham uma produção autoral de qualidade. O grupo Fim de Feira, criado em 2004, é um desses biscoitos finos. Os jovens músicos da banda provam que é possível assumir uma postura de resistência às tendências do mainstream e o seu forró estilizado. Este mês, será lançado seu segundo disco: A revolução dos pebas. Nele, as influências, já delineadas no primeiro CD, O incrível coice do preá, são mantidas. As composições inspiram-se no repertório dos poetas populares, na literatura de cordel, dando visibilidade ao trabalho de Pinto do Monteiro, Manoel Filó e Dedé Monteiro, entre outros. As músicas passeiam por vários ritmos: A revolução dos baião, carimbó, choro, forpebas Fim de Feira ró, maxixe, numa produção independente bastante híbrida. Abrindo o 10,00 reais álbum, um depoimento de João do Pife, de Caruaru, se-
Fotos: Divulgação
guido pela canção Na feira não falta nada. Destaque para a dançante Sina de passarinho, capaz de fazer qualquer um se mexer. Bruno Lins, vocal da banda, demonstra a desenvoltura de um showman, que em certos momentos lembra a atitude performática de Lirinha, do Cordel do Fogo Encantado. Os garotos conseguem adaptar muito bem as suas composições contemporâneas ao universo sertanejo. (Mariana Oliveira) Ouça a íntegra do CD da banda Fim de Feira em www.continenteonline.com.br
> Peranzzetta e Senise, outra vez
> Uma homenagem ao grande Cartola
> Grupo de baque solto só de mulher
> Mais um CD sobre a música na corte
Amigos de longa data, Gilson Peranzzetta e Mauro Senise talvez formem a dupla mais entrosada dos últimos tempos na MPB – e mais ativa, pois quando não gravam ou se apresentam a dois, estão no mesmo palco/estúdio que outros nomes consagrados, como Wagner Tiso, Edu Lobo e Ivan Lins, fora os projetos próprios, como Casa Forte, o primeiro CD e DVD de Senise. Êxtase é um agrupado de homenagens e “trilhas sonoras sem filme” de autoria de Peranzzetta, mas que foram concebidas para o piano fazer companhia aos saxes e flautas de Senise. As homenagens são maioria: confira Laurie no Choro, Mestre Sivuca, Ondine e Apanhei-te pianinho; as trilhas ficam por conta de Êxtase e Mel. (CEA)
Se estivesse vivo Angenor de Oliveira, o Cartola, completaria 100 anos este ano. Numa data redonda como essa, não poderiam faltar coletâneas que homenageassem o fundador da Mangueira. O CD Angenor traz 16 composições do inesquecível Cartola, muito bem interpretadas pela cantora e atriz paulista Cida Moreira. O disco foge da obviedade, apresentando ao público canções bem menos conhecidas do mestre (O silêncio do cipestre, parceria com Carlos Cachaça), junto a outras mais populares (A canção que chegou). O clássico As rosas não falam não faz falta, a delicadeza, a simplicidade e o lirismo do material conquistam qualquer um. Destaque para os sambas Acontece, Cordas de Aço e O mundo é um moinho. (MO)
Liderado pela Mestra Gil, o Coração Nazareno é o único grupo de baque solto formado exclusivamente por mulheres . Com o apoio da Associação de Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam), que mantém oficinas culturais, o conjunto garante a continuidade da manifestação popular, desta vez com o respaldo do programa Cultura Viva (o álbum foi gravado no estúdio Zé Duda, um ponto de cultura em Aliança, interior de Pernambuco). Os temas das seis faixas giram em torno de cidadania, gênero e violência. A arte foi a maneira que as mulheres encontraram de impor sua força e delicadeza num ambiente patriarcal. Ação que tem agora seu primeiro resultado concreto: um CD. (Thiago Lins)
Executado com maestria pelo coro e pela Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, além dos solistas Veruschka Mainhardt (soprano), Carolina Faria (mezzo soprano), Gellson Santos (tenor) e Maurício Luz (baixo), sob a batuta de Ernani Aguiar, o CD abrange as peças Te Deum & Réquiem, do Padre José Maurício Nunes Garcia. A segunda peça tem uma história curiosa: foi feita sob encomenda para D. João VI, na ocasião do falecimento de D. Maria I, ela mesma, a louca. Por coincidência, o padre tinha perdido a mãe no mesmo período, o que explica a densidade íntima que José Maurício imprimiu na peça. O álbum é o primeiro da coleção A música na corte de D. João VI, que resgata a produção do período. (TL)
Êxtase Gilson Peranzzetta e Mauro Senise Marari Discos 23,00 reais
Angenor Cida M oreira Lua Music 22,00 reais
Maracatu Coração Nazareno A rosa do Maracatu Independente 15,00 reais
Te Deum & Réquiem Padre José Maurício Nunes Garcia Biscoito Fino 38 ,00 reais
AGO 2008 • Continente
Agenda Musica_76_77.indd 77
77
7/14/2008 4:34:40 PM
Fotos: Rafael Gomes
ESPECIAL
Militantes das bibliotecas Iniciativas em comunidades carentes desfazem a idéia de que os brasileiros não gostam de ler e provam que é possível despertar o interesse pela leitura Samarone Lima
R
eginaldo Marques Pereira, de 24 anos, estava destinado a ser um dono de fiteiro em alguma rua do Recife, ganha-pão do seu pai há muitos anos. Cleonice da Silva, de 42, deveria continuar com as dificuldades de sempre, na presidência perpétua do “Clube de Idosos Unidos Venceremos”. Ambos vivem na comunidade Caranguejo Tabaiares, no Recife. Gabriel Santana, de 23, mora em Olinda, e ano passado entrou no curso de Pedagogia, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Luiz Amorim, de 41, alfabetizado somente aos 16, é dono de um açougue cultural, em Brasília. Rivaldo Procópio da Silva, de 23, vive no Coque, Recife. Tra-
balha como voluntário no Instituto de Cegos de Pernambuco e no final do ano vai fazer vestibular para Ciências Sociais. Reginaldo, Cleonice, Gabriel, Luiz e Procópio vivem em lugares diferentes, passaram por dificuldades que se assemelham, têm histórias de vida marcadas por impasses, falta de estrutura, mas transformaram tudo e refizeram a vida. O caminho escolhido por todos eles envolve a tentativa de democratizar um bem cultural a que milhões de brasileiros ainda não têm acesso – o livro. Cada um deles, a seu modo, ajudou a criar uma biblioteca comunitária, no lugar onde vivem. Deixaram de lado a cultura da reclamação,
a frase feita de que brasileiro não gosta de ler, confirmaram que livro é mesmo muito caro, mas juntaram esforços, pediram ajuda, começaram a fazer alguma coisa para fazer a vida ser melhor. Hoje, o sonho deles ajuda a iluminar a vida de milhares de outras pessoas. Perdão: milhares de outros leitores. De fato, o brasileiro lê pouco. Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL), a média nacional é de dois livros por ano. O Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, publicado no início de 2008, mostra que apenas 28% dos brasileiros entre 15 e 64 anos têm domínio pleno da leitura e escrita. Mas as coisas estariam bem piores, se não fosse a luta dessa legião de militantes das bibliotecas.
78 x Continente • AGO 2008
Militantes das bibliotecas_78_7978 78
7/14/2008 4:43:30 PM
Crianças na Biblioteca Comunitária da Coque. Na página ao lado, a modesta casa que abriga a Biblioteca Comunitária Tabaiares
Reginaldo, o ex-quase-dono de fiteiro e Cleonice, presidente do clube de Idosos, são os coordenadores da Biblioteca Comunitária Tabaiares, uma pequena, modesta e quente casinha, encravada no meio da comunidade Caranguejo Tabaiares, quase como um símbolo de resistência na comunidade, que tem pouco mais de 3.700 pessoas, às margens do Rio Capibaribe. Das 895 residências, 88% não estão ligadas à rede de esgotos, e 66% despejam seus dejetos em valas a céu aberto. Cleonice é uma mulher de baixa estatura e determinada, de olhos que brilham quando falam de seus sonhos, e um sorriso que se desarma, quando o assunto é a biblioteca.
Ela faz parte dos 72% de brasileiros que têm habilidades de leitura e escrita rudimentares ou básicas – sequer terminou a 4ª série. Perdeu um filho assassinado, há 15 anos, por causa do envolvimento com drogas. Sua dor virou uma redenção. Resolveu que precisava fazer alguma coisa, para que outros jovens não entrassem no mesmo caminho. Decidiu criar uma biblioteca onde vive. Para isso, usou um refrão que costuma repetir, e parece pequeno poema: “Sonhar é de graça”. Chamou Reginaldo para ser o comparsa na idéia. Reginaldo é um jovem magro que fala pelos cotovelos. Ele achava que não tinha sentido nenhum trabalhar com o pai, que tinha um fiteiro. Vender balas
e cigarros a retalho, nas ruas do Recife, não era seu projeto de vida. “Aquilo não preenchia minha alma. Eu sentia um vazio. Agora me sinto pleno.” Reginaldo também sonhava com uma biblioteca em sua comunidade. Os dois se juntaram, encontraram uma casinha modesta, conseguiram uma parceria com a Faculdade de Administração de Pernambuco (Fecap), que fica nas imediações, e depois de encontros de sonhos, um santo professor resolveu pagar o aluguel, de R$ 150,00. A Faculdade pediu contribuições de livros, e chegou o primeiro lote. Reginaldo, de vez em quando, resolvia tentar algo na Prefeitura da Cidade do Recife. Seguia a pé mesmo, porque não tinha dinheiro para a pasAGO 2008 • Continente x
Militantes das bibliotecas_78_7979 79
79
7/14/2008 4:43:33 PM
ESPECIAL sagem de ônibus. Andava alguns quilômetros debaixo do sol, e nem sabia direito a quem pedir. Mas descobriu que, sem pedir, os livros não chegariam nunca. “Eu pegava no pé. Fazia ofício, ficava na porta, dizia que a gente estava sem livros, perguntava por capacitação, enchia a paciência deles”, conta. Na base do boca a boca, os dois conseguiram criar uma rede de 25 pessoas, que são os “amigos da biblioteca”. Cada uma colabora mensalmente com R$ 5,00 ou R$ 10,00. O valor da cooperação depende do mês e das dívidas de cada um. O dinheiro serve para pagar dois estagiários, que fazem trabalhos educativos com as crianças da comunidade e acompanham a movimentação dos livros. Cada estagiário ganha R$ 150,00 por mês. Em outubro de 2005, a biblioteca foi inaugurada. No ano seguinte, os dois resolveram fazer a “Semana do Conto”, e mais de 300 crianças participaram. Em 2007, a semana ganhou um dia a mais, tamanha era a participação da criançada. Em 2008, foram 15 dias de contação de histórias. “A gente praticamente morou aqui, na biblioteca”, lembra Cleonice, que acompanha silenciosamente, mas com uma pitada de orgulho quase maternal, tudo o que Reginaldo conta. Recentemente, eles conseguiram mobilizar a comunidade e, com as sobras de um projeto da Prefeitura, compraram uma casa maior, ampla, ventilada, mas com problemas de infra-estrutura; lá pretendem construir uma biblioteca grande, confortável, com espaço até para as aulas de capoeira do Seu Djalma, ou o “Mestre Onça”, que é um dos muitos parceiros do projeto. Por enquanto, Mestre Onça dá aulas na rua mesmo. O acervo tem 1.300 livros, e 200 leitores estão cadastrados. A biblioteca funciona todos os dias. Os dois sonhadores agora tentam novas parcerias.
Cleonice e Reginaldo, fundadores da biblioteca, na comunidade Caranguejo Tabaiares
Há quatro anos, Gabriel era apenas um jovem estudante da rede pública de Olinda, interessado em livros. Quando resolveu fazer uma pesquisa, por conta própria, para saber como funcionavam as bibliotecas da cidade, ficou desapontado. Descobriu que a principal da cidade, a terceira mais antiga do Nordeste, não tinha uma secretaria responsável. “Era uma biblioteca que ficava boiando dentro da administração, mas ninguém cuidava”, lembra. “Olinda é Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, mas os funcionários faziam cotinha para pagar o telefone e a água”, diz. Por instinto e paixão, ele se aproximou da turma do Movimento Cultural Boca do Lixo que, desde os anos 90, reunia vários grupos culturais da cidade. Colocou na pauta do Movimento a questão dos livros, a necessidade de um espaço de leitura, uma biblioteca e a formação de novos leitores. Em 2002, o Boca do Lixo invadiu um Matadouro abandonado, que virou Nascedouro Cultural. Para conseguir livros, os shows organizados pelo Movimento tinham duas opções. A pessoa podia levar 1 kg de alimento ou um
livro. A outra alternativa foi ainda mais pé-no-chão. “A gente saía de casa em casa, com um carrinho de mão, pedindo livros.” Gabriel hoje coordena as atividades de leitura da Biblioteca Nascedouro. O projeto agora tem apoio do Instituto C&A, através do Programa Prazer em Ler, e de uma ONG alemã, a ASW. Nove pessoas fazem parte do núcleo gestor, até uma bibliotecária foi contratada. Recentemente, Gabriel foi ao Rio de Janeiro, conhecer experiências de bibliotecas comunitárias de todo o Brasil. Hoje, o acervo da Nascedouro é de mais de seis mil livros, e 300 leitores estão cadastrados. O espaço é bonito e ventilado, com mesas para as crianças, mas a trajetória do projeto teve vários momentos de impasse, lutas por espaço. A biblioteca ficou sem lugar certo para funcionar durante uma reforma, os livros foram encaixotados, a umidade e os ratos acabaram com mais de dois mil exemplares. “Perdemos muitos livros e leitores”, lamenta Gabriel. Em junho de 2007, quando seria inaugurado o novo Nascedouro, os gestores descobriram que o espaço da biblioteca seria destinado ao Bolsa-Família. Não tiveram dú-
80 x Continente • AGO 2008
Militantes das bibliotecas_78_7980 80
7/14/2008 4:43:40 PM
vidas. Partiram para uma ação mais radical. A ocupação do espaço. “Fizemos uma ação de guerrilha, na surdina. Passamos uma madrugada montando estantes e organizando os livros. Foi uma segunda ocupação”, comemora. Hoje, além dos livros e leitores, o grupo gestor da Biblioteca Nascedouro realiza atividades em vários bairros de Olinda. Três vezes por ano, acontece o “Biblioboca”, uma iniciativa de levar livros para as ruas de uma comunidade escolhida previamente. São colocadas seis tendas, o “cantinho do leitor”, e oferecidas oficinas pedagógicas, de teatro e vídeo. “Aqui, a gente elabora o projeto, desenvolve e gerencia”, explica Rafaela Lima, de 23 anos, uma das “crias” do Boca do Lixo. Quando adolescente, ela acompanhava os shows e eventos culturais. Hoje, quer fazer História ou Antropologia, e pensa, junto com Gabriel, em organizar a Rede de Bibliotecas Comunitárias do Recife – que está em fase de discussão.
Já num estágio mais avançado de organização, a Biblioteca Nascedouro se preocupa com uma questão essencial em qualquer movimento relacionado a livros – a formação de novos leitores, ou os “mediadores de leituras”. Para a historiadora Ana Dourado, coordenadora do Prazer em Ler, a presença dos mediadores de leitura é fundamental em espaços comunitários. “Fazer a pessoa gostar de ler não é fácil, especialmente se a pessoa começa tarde e não tem tradição na família. Com os adolescentes, fica muito mais difícil. Por isso é preciso começara bem cedo”, diz. O Programa acompanha 48 bibliotecas comunitárias, em todo o Brasil. Outras guerrilhas envolvendo luta por acesso aos livros e formação de novos leitores, estão se espalhando pelos bairros mais pobres de todo o país, onde o poder público não chega – a não ser com a Polícia. De uma articulação de vários jovens, integrantes MABI
(Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis), surgiu, no ano passado, a Biblioteca Popular do Coque. O bairro é apontado como um dos mais violentos do Recife, e aparece nos jornais principalmente com notícias relacionadas a crimes. Basta percorrer algumas ruas do bairro, para ver que não há espaços de cultura, pouquíssimas árvores ou lugares de lazer. Biblioteca, nem pensar. Rivaldo Procópio da Silva é um dos líderes do Movimento. Os rapazes queriam fazer algo para mudar a cara da comunidade, e buscaram parceiros. Conseguiram apoio da ONG Núcleo Educacional dos Irmãos Menores de Francisco de Assis (Neimfa), da Igreja São Francisco de Assis, e de alunos da graduação em Comunicação Social da UFPE, a partir do projeto Coque Vive, de extensão universitária. O projeto literário surgiu no mesmo estilo de “um sonho na cabeça e alguns livros nas estantes”. Conseguiram alugar uma casinha
A Biblioteca Nascedouro, em Peixinhos, investe na formação de novos leitores AGO 2008 • Continente x
Militantes das bibliotecas_78_7981 81
81
7/14/2008 4:43:48 PM
ESPECIAL modesta, mas com problemas, sem livros, estantes, cadeiras, mesas. Quem pagou o aluguel, nos primeiros meses, foi um padre franciscano que há mais de 30 anos trabalha na comunidade, frei Aluízio Fragoso. Os jovens se empolgaram, fizeram uma campanha de doação, junto às lojas de material de construção do bairro, organizaram mutirões, aos finais de semana, e adaptaram a casa de dois quartos para ficar com um jeito de biblioteca. Entre julho e dezembro de 2007, através da Oficina de Formação de Leitores e Escritores do Nordeste, a Biblioteca recebeu o patrocínio do Programa BNB de Cultura, do Banco do Nordeste. O acervo hoje é de três mil exemplares, construído ao longo dos últimos meses a partir de doações de amigos e colaboradores, como a União de Cordelistas de Pernambuco e a Fundação Joaquim Nabuco. A exemplo da Biblioteca Nascedouro, eles criaram um grupo gestor. Os quatro eixos do projeto são Ética, Moral, Comunicação e Educação. “É com educação que
a gente vai mudar esta realidade”, avalia Procópio. A conquista dos livros, para os que lutaram pela biblioteca, é uma forma de enfrentar a violência. “Esperamos que com este e outros projetos realizados no bairro, os jovens da região sintam-se motivados a lutar por condições de vida mais humanas e a exigir mais respeito da mídia e da sociedade na representação do Coque”, observa. “Para além da pobreza e da violência, existem muitos aspectos positivos e motivos de orgulho na comunidade, como coragem, força de vontade e solidariedade, esperando para serem reconhecidos.” A poucas estações da parada do metrô Joana Bezerra, onde funciona a Biblioteca Popular do Coque, um projeto simples e cuidadoso faz o que gestores públicos esquecem. Dentro da estação central do metrô, funciona, desde abril de 2007, o Leitura nos Trilhos, associado ao projeto Ler é Saber. A idéia é disponibilizar livros de qualidade aos milhares de usuários do metrô do Recife, que dificilmente teriam temRivaldo Procópio articulou uma biblioteca num dos bairros mais violentos do Recife, o Coque
Aldemir Félix, "Suco", despertou para leitura aos 18 anos
Revelações de um amante da literatura
A
ldemir Félix gosta de ser chamado de “Suco”. Negro, 20 anos, morador de Brasília Teimosa, nunca pensou que o mundo dos livros pudesse entrar em sua vida com tanta força. Ele foi um dos meus alunos da Oficina da Palavra, na escola Kabum! No começo arredio, sem muita conversa, começou a se aproximar e levar livros para casa. Aos poucos, foi mergulhando na leitura e descobriu que tinha uma coisa na cabeça – poesia. “No início, eu não gostava de ler. Quando via as prateleiras das bibliotecas, achava que elas não diziam nada. Na verdade, eu queria um livro que gritasse para mim. Eles permaneciam calados. Aos 18 anos, encontrei sangue em minha garganta, pois estava lendo A imprensa livre, de Fausto Wolff. Eu não li
82 x Continente • AGO 2008
Militantes das bibliotecas_78_7982 82
7/15/2008 10:03:02 AM
esse livro, engoli todo com capa e contracapa. Senti medo de absorver o livro por completo, não queria perder a inocência do mundo. Mas o medo teve sua recompensa. Compreendi as palavras de Wolff. Esse foi o primeiro livro que li com devoção, foi o primeiro a construir minha crítica à base de ferro e brasa. Me apaixonei pela poesia quando conheci Miró, poeta recifense. Ele recitou alguns poemas em pleno Carnaval, na mesa onde eu estava. Passei mal. Definitivamente, senti algo que não consigo explicar. Naquela mesa, estava nascendo alguém que não era eu. Depois, passei a ler de verdade. Já tinha passado por Ferreira Gullar, Fausto Wolff, Josué de Castro, Eliane Brum, entre outros escritores. O que falta para o jovem ler é bons livros e mais bibliotecas. As pessoas ao meu redor passaram a tentar seguir meu exemplo, de ler por amor e paixão e repassar isso adiante. Antes eu não tinha nenhum livro a não ser a Bíblia, hoje tenho um pequeno acervo. Alguns foram comprados, outros doados. Tenho 64 livros, entre crônicas, ficção, poesia, romances.”
po e dinheiro para comprar livros. No pequeno espaço do Leitura, mais de três mil livros, novinhos e para todos os gostos, estão disponíveis para locação. Com uma foto 3X4, RG, CPF e comprovante de residência, qualquer pessoa pode levar um livro por dez dias, renovável até três vezes. Dia de quartafeira tem a promoção da “carteira relâmpago”, e a pessoa pode sair com o livro na hora. Funciona de segunda a sexta, das 9h às 17h. Brasileiro não gosta de ler ou não tem acesso a bons livros? Em pouco mais de um ano, o Leitura nos Trilhos catalogou 3.100 usuários, gente que não estava lendo por dois motivos simples: tempo e distância. A Biblioteca Pública do Estado (uma das três públicas do Recife) fica no Parque 13 de Maio, bem distante da estação central do metrô, e a livraria mais próxima fica duas pontes e algumas ruas depois. “A média é de mais de 200 empréstimos e devoluções por dia”, informa a empolgada gerente do espaço, a historiadora e professora Valéria Vieira, de 24 anos. Depois de trabalhar no mesmo projeto em São Paulo (onde já funcionam cinco bibliotecas no
metrô), Valéria diz que há uma beleza especial na relação dos pernambucanos com os livros. “As pessoas não querem apenas levar uma obra, ler e devolver. Elas vêm agradecer, querem conversar sobre o livro, contar a história. Já veio aqui muita gente simples pegar livro de filosofia. Descobrimos pessoas muito simples e muito cultas.” Gente que já amava os livros, aproveita o acesso fácil para ampliar a bagagem literária, como o designer Airton Santos, que se cadastrou logo que o projeto começou. “Ao contrário de muitas bibliotecas, aqui é de fácil acesso, há livros novos, atualizados. A comodidade é a maior possível”. Entre uma viagem e outra, ao logo dos meses, ele já alugou mais de 100 livros. “Brasileiro não é mau leitor. Os livros é que são caros e de difícil acesso.” Nas duas mesas disponíveis para os leitores, é fácil encontrar estudantes, pessoas simples, olhando vitrines e buscando informações. “Tem gente que pensa que os livros são para vender, e pergunta o preço”, conta Valéria. O estudante Samuel Henrique, que cursa Eletrônica na CEFET, aproveita o Leitura nos Trilhos para ampliar o leque cultural. “Como é caminho de casa, sempre pego um livro a mais.” A média tem sido de um livro por mês. Os dois últimos: Casa Grande & Senzala e Anna Karenina. “As pessoas precisam é de apoio para leitura”, completa. Ao completar o primeiro ano de funcionamento, a biblioteca listou os 10 maiores leitores, e teve uma surpresa: o campeão foi um programador de manutenção da antiga RFFSA, Cícero da Silva Melo, de 50 anos. Em um ano, o homem leu 99 livros (veja na próxima página). “Se o brasileiro não lê, é porque não tem estímulo”, diz Valéria. AGO 2008 • Continente x
Militantes das bibliotecas_78_7983 83
83
7/15/2008 10:03:04 AM
ESPECIAL
Recorde nos trilhos Cícero da Silva Melo retirou 99 livros, em um ano, da biblioteca instalada na estação central do metrô do Recife
M
orador de Jaboatão, município a 12 estações do metrô Recife, Cícero da Silva Melo, ou “Seu Cícero”, como é chamado pelo pessoal do Leitura nos Trilhos, nem imaginou que seria o campeão de leitura, no primeiro ano do projeto. Ele vinha alugando livros no Rotary ou em centros espíritas, já que a biblioteca de Jaboatão dos Guararapes está numa eterna reforma. “Quando vi, meu primeiro intuito foi o de me associar. Não tenho nem superlativos para falar deste projeto”, diz. Em um ano, foram 99 livros alugados, mas ele já tem a nova contabilidade – “Já passei dos 110”.
Para chegar ao Recife, ele atravessa 12 estações e, quando tem tempo, vai lendo. No trabalho, que fica próximo ao metrô central, almoça em 15 minutos e aproveita o restante do tempo para... ler. Quando chega em casa, à noite, Cícero se organiza para a hora mais esperada. A partir das 22h, ele mergulha nos livros e, se a obra for realmente boa, ele vai até a madrugada. “Algumas vezes, cheguei a virar a madrugada lendo.” Este homem, de 50 anos, cabelos brancos e olhos azuis, com ares de Sivuca, casado, pai de Israel e Viviane, é um silencioso apaixonado pelos livros desde os 13 anos. Lamenta não ter catalogado antes os livros
que foi lendo. De 1994 para cá, foram 1.186, anotados rigorosamente em um caderno. “Leio porque amo a leitura, ou porque a leitura me ama”, diz. Ele sonha com bibliotecas espalhadas em outras estações do metrô, em lugares os mais diversos, facilitando o acesso das pessoas mais simples aos livros. “Quem lê, quem ama a leitura, quer que todas as outras pessoas tenham as mesmas condições de amá-la. Como dizia Platão, não sou sábio, sou amigo do saber.” Uma boa conversa com Seu Cícero é o suficiente para perceber o quanto o Recife empobreceu, no quesito livros e bibliotecas, ao longo dos últimos anos. Ele recorda quando trabalhou na Rua da Aurora, nos anos 80. “Meu passatempo era ir para a livraria Síntese, depois para a Livro 7, que era um ícone literário do Recife. As duas não mais existem. Onde funcionava a Livro 7, existe, hoje, um templo da Assembléia de Deus. No caminho da estação central do metrô até o seu trabalho, pas-
D
Carne ou livros? Em Brasília, um baiano, alfabetizado aos 16 anos, transformou um açougue em biblioteca e levou livros para as paradas de ônibus
Divulgação
os muitos projetos de Biblioteca Comunitária, envolvendo o sonho de alguma pessoa apaixonada pelos livros, nada parece ter acertado tão “na veia”, para usar uma expressão do futebol, quanto o Açougue Cultural T-Bone, de Luiz Amorim. Aos sete anos, ele saiu de Salvador (BA) e foi morar com a família no Gama, a 40 quilômetros de Brasília. Trabalhou com pedreiro, engraxate, até que, aos 12 anos, foi contratado para trabalhar em um açougue, na quadra 312-Norte. Por conta dessa luta toda pela sobrevivência, ele só foi alfabetizado aos 16 anos. Dois anos depois, esbarrou num gibi sobre filosofia, e se apaixonou pela leitura. Ali, sua vida começou a mudar. A dele e,
84 x Continente • AGO 2008
Militantes das bibliotecas_78_7984 84
7/14/2008 4:44:07 PM
Cícero da Silva Melo, o campeão de leitura, no primeiro ano do Leitura nos Trilhos
por que não dizer, a vida de milhares de pessoas. Como morava no açougue, Luiz aproveitou o tempo e se dedicou aos estudos e às leituras – chegou a ler uma média de 15 livros por mês. “O mundo mudou de sentido”, diz. Em 1994, ele comprou o açougue e resolveu colocar 10 prateleiras com livros. Passados 14 anos, o sonho de Luiz virou uma realidade com milhares de livros e leitores. Em setembro de 2003, foi inaugurada a Biblioteca T-Bone, a única biblioteca comunitária da Asa Norte, com acervo de 20 mil livros. Os leitores podem fazer empréstimos sem pagar nada. Podem pegar dois livros de cada vez e ficar com eles um mês inteiro. Em caso de atraso, o pagamento será feito com doa-
ções em livros. O Açougue mantém apenas algumas estantes, com empréstimo de 500 livros. A exemplo de vários outros idealizadores de bibliotecas comunitárias, Amorim discorda de que “brasileiro não gosta de ler”. “Você tem é que facilitar o acesso ao livro. Agora, se numa cidade tem meia dúzia de bibliotecas, que ficam longe de casa, você tem poucos dias para devolver, isso não desperta o interesse. Além disso, rende pouco voto”, observa. Como gosta de provar que as pessoas gostam de ler – mas o que falta é oportunidade – , Amorim disponibilizou livros nas paradas de ônibus de Brasília. São 35 estantes de ferro na Asa Norte. Qualquer pessoa pode levar ou deixar livros.
sando pelas ruas Floriano Peixoto, Praça Sérgio Loreto, Avenida Sul, Rua Imperial, Cícero vai fazendo sua peregrinação sobre os autores preferidos, livros inesquecíveis. Seu filósofo predileto é Espinosa, mas entre uma fala e outra, o homem fala de Cícero, Eurípedes, Shakespeare. Lamenta que sejam gastos R$ 2.600,00 por mês para manter cada preso no sistema penitenciário, quando os custos para manter uma Orquestra do Coque não passem de R$ 600,00 por criança ao mês. Cícero fez vestibular três vezes para Medicina, mas, como não conseguiu, foi cuidar da vida. Trabalhou em vários lugares, criou os filhos e, para 2009, pretende realizar um velho sonho: estudar Filosofia. No final do ano, ele vai se aposentar e logo vai fazer o vestibular. É que Cícero se aposenta no final do ano. E não se espantem, se ele resolver fazer uma biblioteca comunitária em Jaboatão. “É uma utopia de minha parte. Todos os que amam a leitura querem dar condições para que outros leiam.” (SM) “A gente foi ampliando as ações, e deu certo”, observa. Desde 1998, o Açougue Cultural T-Bone realiza a Noite Cultural, projeto que faz parte do Calendário Oficial do Distrito Federal, com público de mais de 10 mil pessoas. O primeiro encontro foi dentro do açougue, com pouco mais de 30 pessoas. A 22ª edição, realizada no final de maio, teve a banda Blitz. Ao longo desses anos, mais de 100 mil pessoas já participaram do projeto. Mesmo com todo o sucesso do sonho de Amorim, ele não esquece seu velho companheiro, o livro. Atualmente, está lendo o clássico Paidéia, que fala da formação do homem grego. “O que liberta mesmo é a leitura”, diz. “Não tem objeto mais perseguido no mundo que o livro.” (SM) AGO 2008 • Continente x
Militantes das bibliotecas_78_7985 85
85
7/14/2008 4:44:11 PM
Os coletivos de dança contra-atacam
A
organização em coletivos não é nenhuma novidade no universo da dança; a proliferação deles no Brasil nos últimos anos, talvez seja. Mas o que estaria motivando artistas e outros profissionais a buscarem esse formato? Ao fazer essa pergunta, vemos-nos diante de um complexo de múltiplas respostas, até mesmo porque são múltiplas as formas de “ser coletivo na dança”. No entanto, em todos os casos, escolher organizar-se assim é um jeito de responder. É uma resposta da arte ao sistema rígido e hierárquico imposto pela sociedade capitalista. Porém é, ao mesmo tempo, um sintoma das políticas mercadológicas do tal sistema, que prega a competição e apresenta o “profissional autônomo” como único modelo de sucesso. Em busca dessa autonomia, seja financeira, ideológica e/ou criativa, os que não decidem trabalhar sozinhos costumam encontrar espaço de produção nos coletivos. Para entender como se dá essa organização na dança e como está se configurando essa rede social no Brasil, o Itaú Cultural reuniu no encontro Coletivo-Corpo Autônomo alguns representantes dessa forma de ser e pensar a dança: Coletivo Dança Rio (RJ); Couve-flor-Minicomuni-
dade Artística Mundial (PR); O 12 (SP); Núcleo de Criação do Dirceu (PI); Hibridus (MG) e o Movimento Dança Recife (PE). Na dança, são muitos os caminhos que acabam por convergir para ambientes de coletividade, mas em todos está presente o ideal da nãohierarquia, ou melhor, uma relação diferente entre criação e hierarquia. O Couve-flor, formado por sete artistas de Curitiba, com gostos e referências diversas, oferece espaço no seu “Cafofo” (sede que eles mantêm há um ano e meio) tanto para as pesquisas individuais dos seus membros quanto para produções em parceria com outras pessoas de dentro ou de fora do coletivo. E assim vão descobrindo um jeito de estar juntos sem precisarem necessariamente realizar criações envolvendo todo o grupo. Já o Hibridus, de Ipatinga, costuma convidar outros coreógrafos para interferir ou dirigir suas obras e projetos, que sempre envolvem todos os seis bailarinos-criadores. Uma estrutura que não é muito diferente da forma colaborativa como funciona a maioria das companhias brasileiras de dança contemporânea atualmente. Além de produzir os seus próprios trabalhos, o Hibri-
Cia de Foto/Divulgação
CÊNICAS
dus investe também em um evento anual de/sobre dança, o ENARTCI, para “possibilitar a difusão de informações; a circulação de produções; e o intercâmbio de artistas”, como explica um dos fundadores, e uma espécie de porta-voz do grupo, Wenderson Godoy. Não que exista a figura de um diretor instituído ou uma hierarquia convencional dentro desse coletivo do Vale do Aço, mas as situações acabam por determinar o surgimento de lideranças momentâneas, diretamente relacionadas à função de cada integrante nos projetos. Aliás, qualquer agrupamento humano, para permanecer, tem que se pautar em negociações, acordos estes que incluem a questão crucial da liderança. E foi exatamente da vontade de um desses líderes, o bailarino Marcelo Evelin, que surgiu o Núcleo de Criação do Dirceu, grupo que encontrou no apoio institucional uma alternativa para garantir a desejada “sustentabilidade com autonomia”. A Fundação Cultural Monsenhor Chaves, órgão vinculado à Prefeitura de Teresina, é quem disponibiliza o espaço físico e financia projetos, criações e as bolsas dos pesquisadores. “O que importa é que temos liberdade para criar e também
86 x Continente • AGO 2008
DaNÇA coletivos_86_87_88_89.indd86 86
7/14/2008 5:07:34 PM
Em uma resposta ao sistema rígido e hierárquico do mercado cultural, dançarinos, produtores e artistas se articulam em coletivos, buscando uma autonomia ideológica, criativa e financeira Christianne Galdino
autonomia para gerenciar a verba destinada às bolsas. Através de uma decisão partilhada, a remuneração é definida de acordo com o nível de envolvimento e a efetiva participação de cada um de nós nos projetos do Núcleo”, comenta Evelin, que passou 21 anos atuando na Europa e agora se divide entre Amsterdã e o bairro do Dirceu, maior periferia de Teresina.
Quase nu, Ricardo Marinelli, do coletivo Couve-flor
Reunindo profissionais de várias áreas, o Núcleo optou por investir na formação dos seus 18 bolsistas nesses dois primeiros anos de vida, apesar de manter também algumas atividades de intervenção na própria comunidade com o objetivo de aproximar os moradores do universo da arte contemporânea e colaborar com a formação de platéia. Esse é o caso, por exemplo, dos projetos permanentes Instantâneo, Mapas do Corpo e Paisagens do Corpo. Distante geográfica e esteticamente da vanguarda da dança contemporânea, “Teresina está se rendendo ao Núcleo do Dirceu”, como diz Evelin, com a convicção de quem conhece bem “o antes e o depois” da relação entre a comunidade local e a arte. Quando voltou para o Brasil em 2005, para AGO 2008 • Continente x
DaNÇA coletivos_86_87_88_89.indd87 87
87
7/14/2008 5:07:40 PM
assumir a direção do Teatro Municipal João Paulo II, o experiente bailarino trouxe consigo a idéia de que aqui “os coletivos são estratégias para permanecer, sobreviver, e poder estar junto em um ambiente não-hierárquico de troca de informações”. Buscar o apoio direto de órgãos públicos e empresas privadas, sem concorrer com os outros artistas nos editais foi uma das estratégias encontradas pelo Movimento Dança Recife, coletivo pernambucano que, desde 2004, se organizou para discutir políticas públicas para a dança. Com declarado foco político, “o Movimento sempre constrói coletivamente suas ações, validando todas as decisões através de assembléias mensais com os membros, pessoas que trabalham ou tem interesse pela dança, seja ela popular, contemporânea, clássica ou de qualquer outro
firmada e anunciada: em 2009, o XI Fórum Nacional de Dança, será organizado pelo Movimento e realizado no Recife. Desde 2005, o Movimento promove a Plataforma Recife de Dança, um espaço de confluências das ações do coletivo. “O formato de cada edição surge de um diagnóstico das prioridades da dança no momento, por isso o evento não tem um perfil fechado. Na verdade, a primeira Plataforma surgiu porque naquele ano nenhuma montagem ou circulação de dança tinha sido aprovada nos editais, então aproveitamos a disponibilidade de pautas do Teatro Arraial e, com pequenos apoios, conseguimos mostrar 15 obras de vários grupos e artistas da cidade, oito das quais inéditas”, conta a coreógrafa e diretora do Grupo Experimental, Mônica Lira. A presença de um representante do Movimento em curadorias de prêmios nacionais, estaduais e municipais, e a própria criação de uma Gerência de Dança, antes inexistente, na Fundação de Cultura do Recife são bons exemplos da capacidade de alavancar o desenvolvimento que um coletivo pode ter. Bruno César/Divulgação
Apresentação do Movimento Dança Recife, durante a terceira edição do Plataforma Recife de Dança
estilo”, como informa uma das fundadoras do Movimento, Marília Rameh, que coordena o coletivo junto com Marcelo Sena e Mônica Lira. O Movimento Dança Recife mantém um site (www.dancarecife.net) com textos, notícias, informações sobre editais, um blog e uma revista mensal com os principais destaques da dança, priorizando os acontecimentos e as produções pernambucanas, mas sempre articulada com os eventos nacionais e internacionais. Passados quatro anos, mesmo sem contar com nenhum tipo de patrocínio nem tampouco remunerar seus quadros, o Movimento acumulou em seu repertório, importantes avanços para a dança local. Um dos mais recentes foi a criação da Licenciatura em Dança na Universidade Federal de Pernambuco, fruto de uma parceria entre a instituição e o coletivo. E mais uma conquista já está con-
Observando as tantas formas de ser coletivo na dança, percebemos que mesmo aqueles que enfatizam os processos artísticos criativos e
88 x Continente • AGO 2008
DaNÇA coletivos_86_87_88_89.indd88 88
7/14/2008 5:07:51 PM
dedicam-se mais às questões puramente estéticas são também permeados por um discurso político de resistência perante os sistemas de fomento às artes, vigentes no Brasil. A pesquisadora Helena Katz, crítica confessa desse esquema, explica: “Ainda não se desmanchou no Brasil o processo de exclusão pela inclusão que os editais promovem. Quando os editais abandonam a razão pela qual devem existir, que é a de serem a forma de viabilizar democraticamente a execução de programas em políticas públicas, consolidados de acordo com as necessidades do segmento ao qual se referem, eles passam a ser somente repassadores de dinheiro público. Quem é contemplado, sai momentaneamente do campo de extermínio, onde permanecem os não contemplados – esperando pela sua vez de serem retirados. O mecanismo que vai retiVários grupos reunidos no encontro Coletivo-Corpo Autônomo
rando uns aqui e outros ali vai imobilizando todos os nele envolvidos. Exclui temporariamente alguns, que depois devolve ao campo de extermínio. Manter-se ativo, resistindo a esse quadro, é admirável”. Conseguir fazer isso de maneira isolada é, no mínimo, pouco provável. Mas se a organização em coletivos é por si só uma estratégia para tentar driblar esse ciclo vicioso, como garantir a sustentabilidade, inclusive financeira, dos artistas e projetos, mantendo a autonomia e sem virar refém do sistema? Ainda não temos respostas, mas as muitas reflexões mostram que a articulação em redes e a construção de parcerias entre os próprios profissionais da dança são possíveis rotas de fuga para tentar sair definitivamente do tal campo de extermínio. E os coletivos parecem ser o espaço propício para experimentar estas e outras alternativas.
Escola de Frevo e o passo
V
irar do avesso, dar voz e vez ao que se esconde atrás da máscara do passista, esse foi o desejo que levou a coreógrafa e diretora Célia Meira a criar o espetáculo Avesso do Passo. Em um diálogo instigante com o teatro e a música, os bailarinos da Escola de Frevo do Recife Maestro Fernando Borges vivenciam simbolicamente a travessia do “passo” no tempo, acrescentando ingredientes contemporâneos aos da tradição. A trilha sonora segue essa lógica, mesclando clássicos do gênero com obras criadas para o espetáculo por jovens compositores como o Maestro Forró. Frevo de rua, de bloco e frevo-canção estão representados, e as tantas interferências do contexto sócio-cultural em que essa movimentação batizada de passo foi gerada vão se revelando durante as cenas. (CG) Divulgação
Marcelo Evelin, do Núcleo de Criação do Dirceu, se apresenta durante o encontro Coletivo-Corpo Autônomo
Fotos: Cia de Foto/Divulgação
ESPETÁCULO
SERVIÇO Avesso do Passo – Companhia da Escola de Frevo do Recife Maestro Fernando Borges, no Teatro Barreto Júnior, a partir de 20/08, todas as quartas-feiras, às 20h. Informações: 3232.8192
AGO 2008 • Continente x
DaNÇA coletivos_86_87_88_89.indd89 89
89
7/14/2008 5:07:55 PM
Fogo morno
Ao optar por economia, o espetáculo O fogo da vida subtrai flama da relação entre Salomé e Rilke Rodrigo Dourado
Sônia Bierbard vive Lou Salomé e André Riccari o poeta Rilke
90 x Continente • AGO 2008
teatro - Fogo morno _90_91.indd 90
7/14/2008 5:12:07 PM
Divulgação
O
Recife possui uma geração de atores e atrizes de fazer inveja a qualquer praça. A maioria deles, no entanto – e infelizmente –, passa longos períodos longe dos palcos. É uma geração de intérpretes que, por haver recebido uma sólida formação escolar e por haver experimentado em cena os grandes clássicos da dramaturgia mundial, tem na palavra seu principal suporte criativo. Sônia Bierbard, que comemora 30 anos de carreira com o espetáculo O fogo da vida, pertence a esse grupo. É impressionante a maneira como a atriz ocupa com sua voz e presença o imenso Teatro do Parque, palco-armadilha para intérpretes de todos os gêneros. A articulação das palavras, a beleza das inflexões, a precisão das pausas e da respiração, a compreensão plena do que diz. Lições basilares que muitos atores contemporâneos vêm esquecendo e que regem o trabalho dessa intérprete. O domínio que possui da palavra se justifica também, em parte, por ser ela mesma escritora e poetisa. O fogo da vida tem texto assinado por Bierbard e pelo ator Gustavo Falcão, a partir de pesquisa sobre o romance entre a escritora Lou Andréas-Salomé e o poeta Rainer Maria Rilke. O casal, que se conheceu na segunda metade do século 19, manteve uma tórrida história de amor num ambiente intelectual de grande efervescência, povoado por figuras como Nietzsche, Paul Rée, Richard Wagner, Rodin e Tolstói. Lou Salomé era uma mulher madura, sedutora, forte e de pensamento inquieto.
Rilke, um jovem poeta em início de carreira, inexperiente e apaixonado. Apesar de casada, Salomé manteve um relacionamento de três anos com Rilke, tendo sido ela quem o batizou de Rainer (seu nome era René). O fogo da vida tenta capturar as nuances, a intensidade, os embates intelectuais e a beleza desse romance, transpondo para cena não somente as idéias que povoam as obras de ambos, mas lances biográficos que poucos conhecem. A encenação, assinada pelo português João Mota, optou, entretanto, pela economia do gesto, pela contenção emotiva e, em alguma medida, apagou um pouco da flama que incendeia aquele romance. Num palco completamente tomado por um tecido branco, em cujo tablado estão espalhadas flores vermelhas e folhas de papel, vislumbramos apenas uma escrivaninha. É lá que Salomé rascunha seus escritos. Aos poucos, a brancura da caixa cênica vai sendo tomada pelos atores, e aquela história vai sendo rabiscada – como numa página em branco que espera a pena do poeta. Ao final do espetáculo, porém, é como se a imaculada brancura daquele papel tivesse sido apenas amarelada pelo tempo e não avermelhada pelo fogo daquela paixão. O exercício da economia é, sem dúvida, de grande valia para todo intérprete. Especialmente numa cena como a pernambucana, cuja matriz popular do teatro de rua e para grandes platéias está na base do trabalho de atuação. Passar pelo exercício da contenção amplia, portanto, o espectro criativo dos atores locais. No
caso de O fogo da vida, no entanto, a opção pela economia acabou redundando numa frieza que depõe contra a intensidade do romance que se quer mostrar em cena. Apesar da grande presença cênica e do preciosismo com a palavra, Bierbard constrói uma Salomé seca, demasiado racional. Já André Riccari se mostra menos virtuoso no trato com a palavra. E se sua personagem demonstra maior instabilidade emocional, os pequenos momentos de arroubo que lhe cabem soam completamente destoados do conjunto. O fogo da vida corre mesmo o risco de se tornar uma peça de tese. Esse gênero pouco conhecido consiste num embate de idéias que estrangula a forma dramática, transformando os personagens em meros enunciadores de conceitos; e os diálogos em jogos dialéticos de pouca força cênica. Em algumas passagens, o espetáculo do diretor João Mota se aproxima desse formato, experiência sempre enfadonha para a platéia, mas não se pode dizer que seja de todo o caso. O espetáculo tem, sim, um encontro de grande força dramática, dois personagens de enorme teatralidade e uma maravilhosa história para contar. Só é preciso atear um pouco mais de fogo à encenação e de vida às atuações para que sejamos tomados por esse tão belo poema de amor.
SERVIÇO O fogo da vida, no Teatro do Parque, aos sábados e domingos, às 20h, até 31/08. Informações: 3232 1553
AGO 2008 • Continente x
teatro - Fogo morno _90_91.indd 91
91
7/14/2008 5:12:12 PM
Os teatros do Nordeste conversam entre si Grupos nordestinos de teatro criam o coletivo dos coletivos, o Movimento Lapada, buscando um diálogo profícuo focado nas pesquisas estéticas Astier Basílio
Fotos: Divulgação
CÊNICAS
N
em centro nem periferia. É com esse princípio de contradição que é iniciado o manifesto do Movimento Lapada, um coletivo que, há um ano, reúne grupos de teatro do Nordeste, cuja linha de trabalho é focada nos princípios da pesquisa estética. Mas a contradição não se restringe apenas à tentativa de definir o lugar em que se insere coletivo de coletivos. As companhias, sediadas em Estados vizinhos, já se apresentaram mais vezes no eixo Rio de Janeiro São Paulo do que em sua própria região. Fernando Yamamoto, um dos fundadores do movimento, conta que, atualmente, há sete grupos integrando o Coletivo Lapada. São: Clowns de Shakespeare (RN), Estandarte (RN), Bagaceira (CE), Teatro Máquina (CE), Piollin (PB), Alfenim (PB), Ser Tão Teatro (PB).”Outros três grupos têm ligação com o movimento, seja na sua fundação ou num processo de aproximação, que são O Pessoal do Tarará (RN), Contratempo (PB) e Coletivo Angu (PE)”, finaliza. Sobre o processo de diálogo entre os grupos, Fernando Yamamoto frisa que: “Não existe formato fechado de troca. A idéia é que possa-
92 x Continente • AGO 2008
Teatro_92_93_94.indd 92
7/14/2008 5:34:08 PM
PornoGráficos (ao lado) e Realejo, espetáculos do grupo Bagaceira (CE)
mos criar um ambiente de contínuas experimentações, sem nenhuma pretensão de encontrar um formato ideal, até porque as nossas práticas e nossas idéias vão se transformando ao longo do tempo”. Editais em conjunto para realização de mostras e festivais, criação de espetáculos em conjunto, tudo isso faz parte do sonho. Enquanto muito do que se projeta não é realizado, algumas ações já foram feitas como a I Mostra de Teatro de Grupo, realizada no mês de abril, em João Pessoa, além de encontros em Natal, Mossoró, João Pessoa e Guaramiranga. Mais do que isso: os coletivos conversam entre si e estabelecem trocas. Yamamoto relata que no Encontrão, realizado no início do ano em Fortaleza, cada grupo fez uma demonstração técnica do seu trabalho a todos os outros grupos. “Em outra oportunidade, a troca se deu de grupo para grupo, diretamente. Os grupos se revezaram dois a dois, para trocar experiências práticas, procedimentos de criação, de aquecimento, treinamento etc.”
O mais recente espetáculo do Clowns de Shakespeare, O Casamento, texto de Bertolt Brecht, teve como consultor de encenação, Márcio Marciano, da Companhia do Latão (SP) e fundador do Alfenim, na Paraíba, Estado em que reside há três anos. Marciano assina e dirige Quebra Quilos que, por sua vez, tem direção musical de Marco França, do Clowns. O músico e ator potiguar também foi consultor da montagem Vereda da Salvação, clássico de Jorge Andrade, com direção de Christina Streva, montado pelo paraibano Ser Tão Teatro, em João Pessoa. Tadeu Gondim, do Coletivo Angu (PE), vai além. Pensa montagens realizadas em parceria. “Achamos importante essa união, a título de força política e também de abertura de possibilidades de novos projetos e criações, conjuntas, inclusive.” Conquistando prêmios, participando de festivais e mostras importantes, recebendo o aval da crítica especializada, os coletivos teatrais
que compõem o Lapada também se aproximam num ponto: já se apresentaram mais fora Nordeste do que em sua própria região. Quem sintetiza bem a questão é Rogério Mesquita, do grupo Bagaceira (CE), que participou em abril da 3ª edição da Mostra Latino-Americana, em São Paulo. “Embora sejamos vizinhos, é difícil circular pelo Nordeste fora dos esquemas de festival, pois não existe uma prática disso. Portanto, é mais fácil um grupo de Fortaleza apresentar-se em São Paulo do que em Natal.” Sobre esse olhar da região Sudeste, por vezes de espanto, ao verificar o desempenho da cena teatral, o Manifesto Lapada reflete: “Quando rompemos o isolamento e conseguimos levar nosso trabalho para os grandes centros, somos acolhidos com espanto e bonomia, como se uma implacável lei da natureza impedisse o rigor estético e a ousadia de conteúdos em regiões historicamente alijadas do sistema de geração e acumulação da riqueza”. “Existe um maior interesse, atualmente, no teatro que é feito AGO 2008 • Continente x
Teatro_92_93_94.indd 93
93
7/14/2008 5:34:09 PM
CÊNICAS A peça Quebra quilos, do grupo Alfenim (PB)
O espetáculo Fábulas, do grupo Clowns de Shakespeare (RN)
no Nordeste. O Festival de Teatro Nordestino de Guaramiranga, Ceará, tem contribuído bastante para o intercâmbio desses grupos de pesquisa do Nordeste”, comenta Tadeu, do Angu. “Hoje, uma maior circulação dos trabalhos realizados aqui permite mais visibilidade dos mesmos. Mas isso ainda é muito pou-
co... Precisamos ter mais apoio para a realização de trabalhos. Acreditamos na importância de um maior apoio a projetos de circulação e com um movimento organizado como ‘A Lapada’ teremos mais força para buscar isso.”
Márcio Marciano acredita que a perspectiva é a de continuar trabalhando em duas frentes simultâneas e complementares, uma estética e outra política. “De um lado, inventar continuamente formas de intercâmbio dos procedimentos de criação entre os participantes do Movimento, de outro, buscar uma integração maior com movimentos semelhantes como o ‘Arte Contra Barbárie’ e o ‘Redemoinho’ “, analisa. O viés político do coletivo, todavia, não é o de busca por uma representação geográfica, esclarece Yamamoto. “A idéia d’A Lapada não é se tornar um movimento representativo de todos os grupos de
teatro do Nordeste, mas representar a nós mesmos, a esse grupo, por enquanto pequeno, de coletivos que têm uma identificação nas suas práticas, por mais diversas que sejam”. Mas, afinal, quem é que pode integrar o seleto grupo? Teatro nordestino, mesmo o chamado “comercial”, é bem-vindo ao Lapada? Quanto à escolha dos grupos, responde Márcio Marciano, não se trata de ser seletivo por esnobismo ou mania de grandeza, mas por afinidade de procedimentos diante do ato criativo. “Por princípio, todo grupo que se reconhece na procura de novos caminhos é bem-vindo ao Lapada. No entanto, a identidade de um grupo não se constrói a partir do olhar benevolente sobre si mesmo ou dos pares à sua volta, mas do contato produtivo e continuado com o público”, ressalta. No que se refere ao “teatro comercial”, Marciano acrescenta que: “Não podemos esquecer que todos nós, integrantes ou não do Lapada, afeitos a um teatro que convide ao prazer da reflexão crítica, estamos no mundo da mercadoria. Por isso, se não fôssemos em certa medida “comerciais,” seríamos expelidos do sistema como matéria ‘irreciclável’. Aí reside nossa contradição, e é dela que tiramos nossa disposição de luta”. Yamamoto, fazendo coro com Marciano, ratifica: “O foco d’A Lapada é a troca estética, a troca de procedimentos, a reflexão das nossas práticas, por mais que inevitavelmente estejamos, com isso, trocando politicamente também”. Que teatro se pretende com o Lapada? O manifesto do coletivo de coletivos é quem melhor responde a essa questão: “O teatro que almejamos fomenta a ação porque corrói as esperanças fatalistas; catalisa a revolta porque repele os acertos de ocasião; destrói o pavimento das certezas para fincar raízes nos escombros da contradição. Um teatro que prepara o amanhã.”
94 x Continente • AGO 2008
Teatro_92_93_94.indd 94
7/14/2008 5:34:16 PM
Imprensa no Brasil
200
anos
CRÔNICA
O biquini ´ amarelo Renato Carneiro Campos
O
Dando prosseguimento à comemoração dos 200 Anos da Imprensa no Brasil, publicamos um texto de Renato Carneiro Campos, considerado um dos melhores cronistas de Pernambuco. Renato Carneiro Campos nasceu em Jaboatão dos Guararapes (PE), em 8 de março de 1930. Foi pesquisador e diretor do Departamento de Sociologia do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, professor de Literatura da Universidade Federal de Pernambuco, vice-coordenador do Seminário de Tropicologia. Conferencista, ensaísta, jornalista, escritor, além de colaborar em revistas e jornais, escreveu os livros Folhetos Populares na Zona dos Engenhos de Pernambuco; Ideologia dos Poetas Populares do Nordeste; Arte, Sociedade e Região; Igreja, Política e Região; Carlos Pena Filho, o Poeta da Cor. Suas crônicas – a maioria publicada no Diario de Pernambuco – foram reunidas no volume Sempre aos Domingos, que teve sua segunda edição lançada em 2006 pelas Edições Bagaço. Morreu no Recife, em 31 de janeiro de 1977. Acesse e leia mais crônicas de Renato Carneiro Campos www.continenteonline.com.br
moça que acabava de aterrissar? homem acordou cedo. As pálpeUm senhor de cabelos grisalhos, bras ainda pesadas de barbitúrico. barriga indiferente à alta do petróleo, Abriu a janela, afastou as cortinas verinterrompe o seu Cooper e se dirige à des, olhou o mar. A praia estava pouco jovem de biquíni amarelo. Senta-se ao freqüentada. Apenas senhores de idade seu lado e – parece mentira – de saída, provecta empenhando-se no teste de dá-lhe um demorado beijo na boca. Ele Cooper. Desfile matinal de barrigas, tem uma aparência viciosa, decadente, parecendo até uma enfermaria fazenmeio fanada. Ficam de mãos dadas do ordem unida. Pessoas, andando em contemplando o mar. Um casal de nadupla, com passadas coordenadas. Homorados, vejam só. Um namoro comemens ricos, executivos, profissionais liçado ardentemente, logo nas primeiras berais, todos com medo do enfarte. Os horas da manhã. A bela e a fera. O vebarrigudos para cima e para baixo. Alrão e o inverno. O verde e o cinza. Só guns param e fazem uma breve ginássei que mostravam muita ternura e entica sueca, dão pulinhos, ensaiam uma levo. Depois de uma hora, aproximadacarreirinha de poucos metros. A praia mente, o cavalheiro se despediu. Voltou fica cheia de tubarões de duas pernas. De repente, uma adolescente, de biquíni amarelo, sandálias Como participando de um ritual, brancas, cabelos compridos e passou óleo de bronzear nas partes soltos cruza a avenida em direção à praia. Um moreno doura- descobertas. Cuidadosamente, do, uma juventude estourando devagar, muito devagar por todas as partes do corpo, ao seu teste de Cooper. Andou, andou, um andar preguiçoso e cheio de música, perdeu-se de vista. Sumiu. A jovem de conduzido por pernas esplendidamente biquíni amarelo demorou pouco temmodeladas, com os quadris bem feitos po. Logo, desarmou o seu guarda-sol, e generosos, martarocheanos. Dois pevestiu uma calça jeans e veio para a caldaços de carne branca formam sugesçada. Tomou um táxi e também desativas fronteiras. Lentamente, em ritmo pareceu. Deixou no ar alguma coisa de de embuá, ela armou o seu guarda-sol mistério, de amor proibido. amarelo de franjas azuis. Como partiO homem, de binóculo na mão, cipando de um ritual, passou óleo de assistiu à partida da jovem de biquíni bronzear nas partes descobertas. Cuiamarelo. A praia, agora, estava inteidadosamente, devagar, muito devagar. ramente deserta. Teria sido realidade? Dava a impressão de que estava se acaEstava mesmo acordado? Talvez tenha riciando. Depois, pegou, com o mesmo sido o sonho de uma manhã de verão. ritmo, a escovar os cabelos. Todos esses Quase sem querer, o homem acenou preparativos terminados, sentou-se e um rápido adeus em direção ao táxi. começou a ler um livro. Não dava para Na hora de tomar café, ainda lembranver o título. Doce pássaro da juventude? do a moça de biquíni amarelo, ficou O homem usou, pela primeira vez, pensando, longamente, no capítulo o binóculo que o amigo lhe emprestara dos gestos inúteis. O insólito pouso do dias antes. Trouxe-a quase para o seu pombo na pista de sargaço. Ao se leterraço. Um animal jovem, cheio de vantar da mesa, o homem voltou para saúde, enchendo a manhã de praia de as suas incansáveis releituras, vestido beleza e galhardia. Andorinha só fade uma já gasta túnica de paciência. zendo o verão. Quem seria? Por que estava tão cedo na praia? Uma aero(14.11.1976) AGO 2008 • Continente
Cronica_95.indd 95
95
7/14/2008 5:14:42 PM
metrópole
Marcella Sampaio
Book is business
N
Divulgação
um filme ou de uma novela. O círculo das feiras de liteeste mesmo período, no ano passado, conratura é ainda restrito a uma parcela da população, mas versando com alguns escritores para uma não deixa de ser curioso observar que tais eventos reúreportagem sobre literatura e business, pude nem cada vez mais gente, nem sempre interessada em comprovar o que já intuía apenas observanouvir o que os escritores têm a dizer ou a adquirir livros. do a movimentação que envolve os que lêem e os que Não é à toa que as palestras dos autores cujas figuras são são lidos, no Brasil e fora dele também: apesar da aura conhecidas através da TV despertem maior curiosidade que, de certa forma, elitiza o livro e evoca glamour para e invariavelmente sejam sucesso de público. quem, orgulhosamente, afirma ter o hábito de ler, a liteNada disso quer dizer, no entanto, que as feiras literatura não escapou da espetacularização da cultura que rárias não são interessantes ou que não atraiam leitores nos envolve cotidianamente. Já não causa mais espanto, genuínos. Tais eventos cumprem a fantástica missão de aliás, que os escritores, antes detentores de uma fama reunir num só lugar a produção de artistas veteranos – às vezes injusta – de excêntricos, ou, no mínimo, ese novatos, de diferentes nacionalidades e talentos, que quisitos, circulem com tranqüilidade sob os holofotes provavelmente não teríamos a chance de conhecer de das feiras e eventos literários que pululam país afora. outra forma. Associar literatura à diversão também é Essa reflexão surge a partir de dois eventos distintos, um efeito colateral bem importante, já que, historicamas que guardam uma relação estreita entre si – o lanmente, tendemos a pensar a leitura como algo sofrido, çamento da biografia de Paulo Coelho e a Feira Literária difícil, restrito a intelectuais ou a pessoas de inteligênInternacional de Parati. Sem entrar no mérito da quacia privilegiada, raramente como um hábito prazeroso. lidade artística da sua produção, Paulo Coelho é uma Ainda que o texto não seja leve ou fácil, o prazer está lá, figura emblemática para a literatura que é vista com um traduzido na emoção, alegre ou triste, que ele desperta. negócio, e inaugurou uma nova forma de relacionamenAliás, quem disse que todo sentimento prazeroso está to com o livro no Brasil. Numa época em que os títulos associado à felicidade? Perguntem aos filósofos e pside auto-ajuda ainda não eram tão populares, ele surgiu quiatras o que eles têm a dizer sobre isso. como um guru nacional que espalhava (espalha) por O problema surge quando a importância do escritor aí lições de vida, respaldado por sua própria existência é calculada a partir da sua exposição na mídia ou da cheia de lances espetaculares e exóticos. Agora, com o sua desenvoltura diante da engrenagem do showbizz. É lançamento da biografia em vida, o milionário escritor fato que nem todo mundo que desfruta de espaço nesdeverá ficar ainda mais milionário, já que o retorno de tes termos o ocupa porque seu nome, que andava possui real talento. Muitas meio esquecido, à mídia, outras questões estão em deverá trazer novo fôlego jogo, e não cabe aqui laà venda de seus títulos. mentar, apenas registrar. Aguardem uma reedição Bom mesmo é quando da obra completa... conseguimos separar o Num país onde vivem joio do trigo, buscando (e quase 200 milhões de encontrando) o que vale a pessoas e a tiragem ótipena para nós em meio a ma de um livro é de três tantos estímulos. Até pormil exemplares, o êxito que, neste caso, como em de um escritor, naturaltantos outros, a escolha é mente, não se mede da pessoal e intransferível. mesma maneira que o de Debate na Feira Literária Internacional de Parati, este ano
96 x Continente • AGO 2008
Metropole_Agosto_96.indd 96
7/14/2008 5:17:18 PM