Continente #093 - Teatro do barulho

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O barulho da Trupe

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Leo Caldas/Titular

aos leitores A Trupe do Barulho estréia Apareceu a Margarida, em setembro

m 1991, um grupo de jovens atores resolve levar para o palco do Teatro Valdemar de Oliveira a adaptação de um esquete teatral apresentado numa casa noturna da cidade. Começava, ali, a trajetória de um dos mais estrondosos sucessos do teatro pernambucano. Com o título de Cinderela, a história que sua mãe não contou, o trabalho marcou o nascimento da Trupe do Barulho, cujas encenações, daquela data até hoje, foram assistidas por um público estimado em cerca de 400 mil pagantes. Paralelamente, a personagem reiterada dessas peças ocupa, há alguns anos, espaço na televisão local, multiplicando o poder comunicativo do grupo. O fato em si já mereceria um olhar detido. Ocorre que, para celebrar seus 17 anos de existência, este ano, a Trupe do Barulho decidiu encenar Apareceu a Margarida, do carioca Roberto Athayde, grande sucesso do teatro nacional nos anos 70, com Marília Pêra no papel-título e direção de Aderbal Freire Filho. A montagem, prevista para estrear este mês, aponta para uma inflexão e tanto na história do grupo: com direção de José Francisco Filho, é a primeira vez que a Trupe monta um texto de autor não pernambucano e é também a primeira experiência do conjunto com uma obra não criada sob encomenda ou livremente adaptada à sua fórmula de sucesso. A matéria de capa da Continente se debruça sobre este verdadeiro fenômeno dos palcos recifenses, surpreendendo seu diálogo com a cultura da periferia local e estabelecendo uma conexão entre o teatro debochado, grotesco e popularesco da Trupe do Barulho com seus antecedentes históricos, desde os primórdios da Comédia. Em matéria especial, aproveitamos o lançamento do filme Ensaio sobre a cegueira, dirigido por Fernando Meirelles, para discutir não apenas essa adaptação das páginas para as telas, mas a trajetória peculiar do romancista português José Saramago. O repórter Luciano Trigo esclarece as dificuldades que envolvem a leitura das obras do português: os períodos longos, a sua pontuação, os diálogos sem travessões, enfim toda a complexidade da sua narrativa, que exige bastante do leitor e também exigiu muito do diretor brasileiro durante a adaptação. Uma crítica e uma entrevista exclusiva com Meirelles, realizada pelo crítico Kleber Mendonça Filho, relatam as dificuldades, erros e acertos ao transpor uma linguagem literária bastante peculiar para outra cinematográfica. Meirelles deixa clara sua opção pela fidelidade à obra original e diz que aprendeu a lidar com as piores críticas de sua vida. Outros temas de destaque desta edição são: o barítono brasileiro Paulo Szot e sua consagração internacional, os 25 anos da morte do cineasta espanhol Luis Buñuel, diretor da célebre cena do olho cortado por uma navalha, e os 20 do falecimento do pintor pernambucano Wellington Virgolino, uma das crias do histórico Atelier Coletivo.

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A arte de Eudes Mota Ana Botafogo além da sapatilha

Hans Manteuffel

O novo caminho da Trupe

O cinema do espanhol Luis Buñuel

CONVERSA 4 >> Ana Botafogo: lição de vida e profissionalismo

TRADIÇÕES 46 >> Um mistério chamado Zé Limeira

BALAIO 10 >> Propaganda prevê tragédia

ARTES 48 >> O legado de Wellington Virgolino 53 >> Keith Haring: artista ou marqueteiro? 58 >> Eudes Mota, entre o lúdico e o rigor

CAPA 12 >> Trupe do Barulho encena Apareceu a Margarida 17 >> Uma teatro de diálogo com a cultura da periferia 20 >> As origens do grotesco AGENDA.COM 24 >> 3200 horas de conversa, no blog de Marcelo Taz LITERATURA 26 >> Uma coletânea de ensaios de Ariano 30 >> Talento e estilo em Antonio Campos 32 >> Marcelino Freire reafirma sua raiva 34 >> Agenda livros 36 >> Prosa: um picaresco e a cruz 38 >> A poesia de Cláudio Daniel PERFIL 39 >> Violeta Arraes, militante da política e da cultura

ESPECIAL 64 >> O mais desagradável dos romances de Saramago 68 >> A cegueira chega às telas do cinema 70 >> O olhar do diretor brasileiro Fernando Meirelles CÊNICAS 77 >> O movimento constante de Zdenek Hampl CINEMA 80 >> Um mestre do surrealismo crítico MÚSICA 84 >> Paulo Szot, o brasileiro premiado na Broadway 88>> Agenda música 90>> O casamento do maracatu com a filarmônica 94>> Um Geraldo Maia plenamente autoral

CRÔNICA 42 >> Antônio Maria relembra o Recife

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Fotos: Divulgação

www.continenteonline.com.br

Marketing ou arte?

Continente em Veneza Até o próximo dia 6, o colaborador, jornalista e crítico de cinema, Marcelo Costa, estará no Festival de Cinema de Veneza, fazendo uma cobertura exclusiva para Continente. O jornalista, que viajou com o patrocínio do Hospital de Olhos Santa Luzia e do Consulado da Itália no Recife, com produção de Ana Carolina Cosentino, vai alimentar uma seção especial, totalmente dedicada ao Festival, com críticas, entrevistas e comentários sobre os filmes exibidos por lá.

A escrita de Zdenek Hampl

e mais... COLUNAS MATÉRIA CORRIDA 44 >>A chamada “pintura histórica” TRADUZIR-SE 62 >> A gravura de Thereza Miranda SABORES 74 >> As especiarias e as pimentas

Confira o trailler do filme Ensaio sobre a cegueira e saiba mais sobre o seu lançamento no Brasil

METRÓPOLE 96 >> O caso dos cachorros europeus

Romance de Saramago chega às telas

Conheça a voz do barítono brasileiro premiado na Broadway

Ouça as faixas, na íntegra, do novo CD de Geraldo Maia em parceria com a banda Fio da Meada

Leia o prefácio do livro Constante movimento, de Zednek Hampl SET 2008 • Continente x

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conversa Após uma experiência de ‘nãos’ no início da carreira, aprendi que uma audição não seleciona o melhor, mas o que o diretor precisa naquele momento. Saber enfrentar essas situações sem se deixar abater é essencial

Ana Botafogo Claus Meyer/Tyba

Uma vida na ponta dos pés

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Uma das maiores bailarinas clássicas brasileiras, Ana Botafogo ainda enfrenta desafios como dançar uma coreografia contemporânea e entrar para uma faculdade a fim de aprimorar seus conhecimentos ENTREVISTA A Christianne Galdino

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nvolto em uma aura de magia, o ballet clássico sempre abrigou muitos mitos. Acreditar que a dança requer dos aprendizes apenas esforço físico é um deles. Quantas vezes já ouvimos dizer que bailarino pensa com os pés? Como se teoria e prática fossem realidades de natureza contrária. Ser bailarina clássica tem sido o sonho de várias gerações de adolescentes. Talvez porque o luxo dos espetáculos e a beleza inabalável das heroínas de sapatilhas ajudem a crer que a vida na ponta dos pés é só glamour e felicidade. Então, por que a primeira bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ícone de perfeição, se prestaria a enveredar por um universo desconhecido (e mesmo desconfortável) desafiando a si mesma numa coreografia contemporânea? E o que estaria fazendo essa primeira dama do ballet em uma faculdade de dança? Ana Botafogo, a mais famosa personalidade da dança brasileira, é a protagonista destas histórias que, de alguma maneira, refletem as transformações do cenário da dança no Brasil, desmistificando a visão fantasiosa dessa profissão e apontando novos caminhos. Além de extenso currículo nos palcos e participação em companhias internacionais, já registrou seus pensamentos sobre a dança em diversos artigos e escreveu dois livros: Ana Botafogo na magia do palco e Ana Botafogo na ponta dos pés. Uma vida inteira de dedicação à dança rendeu à bailarina carioca reconhecimento de público e crítica, e muitos títulos. Durante os

Seminários do 26º Festival de Dança de Joinville, em Santa Catarina, Ana Botafogo conversou sobre sua trajetória e a nova fase da sua carreira. Você iniciou sua carreira profissional na França. Como foi o processo de adaptação e o que você destacaria nesse período? Na vida de bailarina, a gente não consegue separar o pessoal do profissional. Fazia faculdade de Letras no Rio de Janeiro e sonhava em ser tradutora da ONU, apesar de já fazer ballet clássico. Tive a oportunidade de ir estudar francês e aproveitei para me especializar em ballet na França. Mas não foi nada fácil, até porque essa era a primeira vez que saía de perto da minha família. Isso em uma época que não havia internet e sequer DDI (Discagem Direta Internacional), todas as ligações telefônicas tinham que passar por uma telefonista. Meus pais só autorizaram a minha ida porque um tio meu morava em Paris e iria me hospedar. E também porque passaria um período relativamente curto. Na verdade, eu nem queria ficar na Europa, mas poucos meses depois da minha chegada fui fazer uma audição para o Ballet de Marseille e acabei ficando. Estreei profissionalmente nessa companhia, dirigida por Roland Petit, e minha vida mudou completamente. Tive que adquirir independência rapidamente, já que havia saído da casa dos meus tios, e ido morar sozinha em uma cidade desconhecida de um país estrangeiro. Isso incluía também o esforço em deixar de ser tímida, porque eu só era desinibida no palco, fora dele eu mal falava e nas aulas sequer tinha coragem para fazer alguma per-

gunta. Essa minha independência me fez muito bem. Sua atuação na Europa também foi marcada por experiências negativas. Em algum momento pensou em desistir do ballet? Sim. Posso destacar um momento muito difícil. Eu estava dançando há dois anos no Ballet de Marseille, e me convidaram para ingressar em uma companhia de ballet clássico de repertório em Londres. Mas, quando cheguei à Inglaterra, eles não conseguiram visto de trabalho para mim e nenhuma forma de contratação, simplesmente porque eu era brasileira, e eles davam prioridade aos europeus. Mesmo assim decidi ficar uns meses e aproveitar para estudar inglês. Então surgiu uma audição para o London Festival Ballet, mas assim que souberam que eu era brasileira, eles não me deixaram nem entrar no teatro, nem fazer audição. Eu só tive “nãos” na Inglaterra e ainda odiava o jeito dos ingleses, extremamente reservado. Nessa época eu quis desistir daquela vida de bailarina. Achava que o ballet não gostava de mim. Mas essa decisão só durou uma semana. Muitos anos depois acabei casando com um bailarino inglês e também fui convidada para participar de um espetáculo no Saddler’s Wells Royal Ballet, da Inglaterra, então esqueci as experiências negativas e fiz as pazes com os ingleses. Com uma carreira internacional se consolidando, por que optou por voltar ao Brasil e permanecer por tantos anos na mesma companhia? SET 2008 • Continente x

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Acredito que o artista deve ter em mente que faz parte da vida de seu país e que a ele cabe dar exemplos que motivem e orientem as novas vocações

Desde que comecei a fazer ballet clássico, meu sonho era entrar para o Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mas achava um sonho impossível. Depois que já estava no corpo de baile do Municipal do Rio, tive a chance de me encontrar com a bailarina Márcia Haydée, brasileira residente na Alemanha, a quem admiro bastante. Ela reforçou minha escolha com um questionamento: “As portas da minha companhia estarão sempre abertas para você, mas pense bem se é melhor você viver nômade, indo de uma companhia para outra, ou escolher uma e fazer dela seu lar”. Escolhi, e o Theatro Municipal é meu lar há 27 anos. Já viajei por todo o Brasil, passei temporadas na Europa, América do Norte, Central e do Sul, mas sempre voltando para “casa”. Acredito que o artista deve ter em mente que faz parte da vida de seu país e que a ele cabe dar exemplos que motivem e orientem as novas vocações. No ano passado foi criada uma turma especial na Licenciatura em Dança da Universidade da Cidade do Rio de Janeiro, exclusivamente para bailarinos do Municipal. Por que você decidiu participar e qual a importância de uma graduação para um bailarino? Porque me encontro em momento estável da minha carreira como bailarina e sempre pensei em fazer algum curso universitário. Inicialmente, eu não pensava em optar pela faculdade de dança, mas quando soube que se tratava de uma licenciatura e que, portanto, o foco seriam as questões ligadas à pedagogia, fiquei muito interessada. Inúmeras vezes fui convidada para dar aulas, coor-

denar cursos de dança e achei que essa graduação poderia me oferecer conhecimentos para exercer tais funções com mais propriedade. Os bailarinos precisam se preparar para o mercado do ensino da dança, que é tão assediado por profissionais da educação física e outros, alegando que não estamos habilitados para exercer a função de professor por não termos graduação. No entanto, na minha opinião, eles estudam o corpo sob outro ponto de vista. O que interessa agora é formarmos um grupo cada vez maior e mais competente de bailarinos-professores, porque a dança é uma área específica de conhecimento e, portanto, seu ensino cabe a nós. Outra coisa muito boa que estou aprendendo na licenciatura é a lidar com crianças e adolescentes iniciantes, algo que desconhecia totalmente. A faculdade está me fazendo pensar e ler mais e, com certeza, essa experiência vai se refletir no meu fazer artístico. Alguns teóricos da dança afirmam que a técnica é uma restrição, e que seu domínio pode ser prejudicial ao processo criativo. Você concorda com esse pensamento? Ter técnica nunca me pareceu restrição. O que acho prejudicial é a obsessão pelo virtuosismo técnico, temos que aprender a usar a técnica a nosso favor. Lembro que, na audição do Ballet de Marseille, Roland Petit estava precisando de uma bailarina alta, mas fui passando por todos os exercícios técnicos, e ele não teve como me reprovar. O domínio da técnica me dá mais liberdade, porque uma vez que ela está bem incorporada, a interpretação aparece mais. No começo eu me

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preocupava muito com a execução correta dos passos e movimentos, mas depois que já tinha bastante experiência me senti mais livre para interpretar e criar. Bailarina clássica há 30 anos, você já experimentou outras técnicas de dança? Com que objetivo? Sempre gostei de fazer outros estilos de aula. Em Cannes, vivi o período de maior diversidade na minha formação, fiz aulas de jazz, dança folclórica, dança-terapia e depois tive contato pela primeira vez com as aulas da técnica de dança moderna de Marta Graham. Logo na primeira aula, achei que podia acompanhar a turma intermediária porque já era bailarina. Mas não consegui e tive que ficar na turma iniciante. Fiz várias aulas dessa técnica e isso foi muito bom para minha formação. O que sempre me interessou foi ver que relação técnica podia se estabelecer, o que aquelas informações poderiam acrescentar no meu fazer artístico. Este ano você dançou um solo de dança contemporânea, criado especialmente para você pela coreógrafa Ana Vitória. Fale sobre esse processo. Já tinha dançado ballets contemporâneos, mas nada criado para mim, como esse solo. O processo foi

denso e me desafiou bastante. Ana partiu de um resgate das minhas memórias pessoais e corporais para essa composição livremente inspirada em uma escultura da artista franco-americana Niki de Saint-Phallé que ela viu em Paris, chamada La marieé (a noiva), mesmo título que demos ao trabalho. Construir essa obra foi muito difícil para mim, uma bailarina clássica acostumada a se apresentar para fora, carregando na movimentação ampla e na expressão facial. Na dança contemporânea é tudo mais introspectivo, mais para dentro, e a apresentação é mais intimista. Tive que usar outra musculatura ou aprender a tensioná-la de uma outra maneira. Tive que deixar de lado a necessidade de uma narrativa, e a vaidade típica das bailarinas clássicas. E ficar sempre atenta, senão os hábitos corporais do ballet acabavam escapando e voltando à cena. O mais difícil para mim foi aprender a relaxar o tronco. Ana me pedia para sentar na cadeira, relaxada, como se eu estivesse assistindo televisão sozinha em casa. E eu ficava lá, com o tronco ereto, porque essa é minha postura natural mesmo. Um processo difícil, mas muito gratificante. Eu nunca havia me imaginado dançando esse tipo de coreografia, mas gostei muito do resultado.

Ana Botafogo em espetáculo com Carlinhos de Jesus

Quais as principais habilidades que um bailarino deve desenvolver? Isso muda com os anos? Deixe-me contar um episódio que aconteceu comigo. Eu, como muitos bailarinos, colocava a técnica acima de qualquer coisa. Imbuída desse pensamento, quando estava passando uma temporada de três meses em Cannes (França), estudando na Academia Internacional de Dança Rosella Hightower, decidi que precisava fazer cinco aulas de dança por dia, sendo três de ballet clássico, para criar esse “ser bailarina” que eu queria. Resultado: ao final do primeiro mês, ganhei uma contratura muscular no corpo inteiro. E aprendi, da pior maneira, que percepção e autoconhecimento são habilidades fundamentais para um bailarino. O exagero, a falta de limites e critérios só atrapalham. Com minha experiência em Londres e os tantos “nãos” que levei durante minha carreira, aprendi que uma audição não seleciona os melhores, mas aqueles que o diretor ou o coreógrafo precisam naquele momento específico, para aquela determinada posição ou papel. Saber enfrentar essas situações sem deixar se abater é essencial. As qualidades mais preciosas em um bailarino são: o fôlego, a segurança e a interpretação. E, na maturidade, se por um lado perdemos um pouco do vigor e precisamos de aulas diárias para manter a musculatura preparada, por outro lado, desenvolvendo essas habilidades, esquecemos os tantos medos que nos rondam no início das carreiras e conseguimos curtir mais, ter mais prazer em dançar. SET 2008 • Continente x

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Setembro 2008 – Ano 8 Capa: Hans Manteuffel

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo

Colaboradores desta edição:

Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses

ANA MARIA MAIA Jornalista e editora do portal Dois Pontos.

Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Superintendente de Edição

Homero Fonseca

ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA Doutor em Teoria Literária e professor universitário. ASTIER BASÍLIO Jornalista, escritor, dramaturgo e autor do livro de poemas Antimercadoria (2005).

Superintendente de Produção

Marco Polo

Superintendente de Criação

Luiz Arrais

Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira (redação) Thiago Lins (assistente de redação) Maria Helena Pôrto (revisão) Gabriela Lobo, Lucas Paes e Yuri Bruscky (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio)

CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico musical da Continente. CHRISTIANNE GALDINO Jornalista e crítica de dança. CHRISTIANO AGUIAR

Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza

Escritor e mestrando em Literatura.

Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)

FERNANDO MONTEIRO

Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves

Crítico de cinema e cineasta.

Supervisão de Impressão Eliseu Souza Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira

Escritor e cineasta. KLEBER MENDONÇA FILHO

LUCIANO TRIGO Jornalista e escritor.

Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes

Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão Contatos com a Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@revistacontinente.com.br Edição eletrônica www.continenteonline.com.br Atendimento ao Assinante 0800 81 1201/3217.2581 assinaturas@revistacontinente.com.br

LUIZ CARLOS MONTEIRO Poeta e crítico cultural. PLÍNIO PALHANO Artista plástico. RODRIGO DOURADO Jornalista e mestrando em Comunicação. TEREZA ROZOWYKWIAT Jornalista. VITAL CORRÊA DE ARAÚJO Poeta e presidente da UBE/PE.

Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor.

Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095

JOSÉ CLÁUDIO

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

MARCELLA SAMPAIO

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

Pintor.

Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.

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cartas

Arquivo CEPE

Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 Redação: redacao@revistacontinente.com.br

ARTE-EDUCAÇÃO Fui motivado a escrever esse e-mail para parabenizá-los pela edição de maio/2008. Foi contemplado, pela primeira vez, o campo da arte-educação na Continente, através da entrevista com a Profª. Drª. Ana Mae Barbosa. Além das quatro páginas da Revista, a jornalista apresentou conhecimento sobre o campo e delicadeza ao tratar da temática. Coleciono a Revista desde 2001, pois o seu conteúdo me auxilia na prática como arte-educador. No entanto, foi a primeira vez em que me senti plenamente contemplado em quase uma década de publicação da Revista. Eveson Melquiades, Recife-PE

QUALIDADE A Continente é uma das minhas revistas preferidas, não apenas pelo seu tão bem selecionado conteúdo, mas também por toda a dinamicidade e qualidade apresentadas em sua formulação (diagramação, impressão e qualidade gráfica). O site também traz essas mesmas

O diretor Michael Moore

características do impresso, mantendo o mesmo nível de excelência. Renata Pereira, Recife – PE

OSMAN E ONLINE Quero parabenizar a revista Continente pelo novo site. Ficou ótimo. Aproveito também para agradecer a lembrança do saudoso Osman Lins. Luciana Melo, Brasília-DF

INTERATIVIDADE Parabéns pela nova “roupagem” do site. Realmente, está mais dinâmico, interativo e colorido! Simone de Brito, Recife-PE

CÊNICAS NO SITE Gostaria de parabenizá-los pelo novo site da Revista, principalmente pela seção de artes cênicas, que pôde contemplar de forma mais interessante e completa os acontecimentos de dança e teatro, que nem sempre alcançam espaço na revista impressa. Valéria Vicente, Recife-PE

Faço filmes que eu mesmo gostaria de ir ver numa sexta à noite. Um filme que faça rir, chorar, enquanto as pessoas comem pipoca, depois, estimular o pensamento. Minha intenção é expressar algo de relevante sobre a época na qual vivemos e me divertir ao longo do processo. Acho importante poder rir em tempos como esses. Meus filmes são sempre assim, com a diferença que, desta vez, eu sou o sério e Bush terminou ficando com as melhores piadas, escritas por ele mesmo. (...) O que me deprime na figura de Tony Blair é que ele é inteligente, e deveria saber o que está fazendo. Qual é a dele de ficar na conversa mole com um cara como Bush? Nunca entendi isso. É o casal mais estranho que já vi em toda minha vida. Michael Moore , em entrevista realizada por Kleber Mendonça Filho, durante o Festival de Cannes de 2004

Revista nº 44 Agosto/04 Matéria: Golpes violentos contra a guerra SET 2008 • Continente x

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Imagens: Reprodução

11/09 No link do site www.howdesign.com, um anúncio chama a atenção pela coincidência da imagem. A silhueta de uma aeronave atravessa as duas torres do World Trade Center, de Nova York, antecipando as cenas dantescas ocorridas no 11 de setembro de 2001 na cosmopolita cidade norte-americana. A peça é assinada pela empresa de aviação comercial Pakistan International Airlines que, entre outros itens, alardeia a venda de 3.000.000 de passagens por ano e a decolagem, a cada 6 minutos, de um avião de sua propriedade para 60 cidades espalhadas pelo mundo. Detalhe: o anúncio foi veiculado em 1985, dezesseis anos antes do maior atentado terrorista de todos os tempos. (Luiz Arrais)

Fumaça Em outro anúncio, de uma cigarrilha, postado no mesmo site, um primor de machismo e atitude incorreta. "Sopre em seu rosto e ela te seguirá por toda parte" é o título da peça em que aparece um homem dando uma baforada na cara da candidata à namorada, que, ainda sorri e aspira a fumaça do "cara de chaminé", toda satisfeita da vida. (LA)

Garota do mundo

A cor do mar

Tudo começou num boteco, em célebre cruzamento de Ipanema, Rio de Janeiro. Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim emudeciam, enxugando as cervejinhas, com a sua passagem maravilhosa. Emoldurando no seu caminhar a geometria espacial do seu balanceio quase samba, Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto deu origem, em 1962, à música Garota de Ipanema. Hoje, ela nema obtém o posto da 12ª canção mais tocada no mundo nos últimos 50 anos. A letra e melodia mais famosa da bossa-nova e MPB tornaramse esse fenômeno com a gravação em inglês (letra de Norman Gimbel), pela cantora Astrud Gilberto em 1963.

Em sua bela crônica de estréia na Continente, Zé Cláudio confessa o estranhamento causado pelo “mar cor de vinho” da Odisséia. Também estranhei a imagem homérica, bastante repetida na obra, como a da aurora de “róseos dedos” e os bordões sobre os personagens (afinal, era um poema oral e a repetição é chave para memorização dos versos). Zé, como grande pintor, registrou poeticamente um mar cor de vinho certa madrugada de Olinda. Mas tenho alternativa mais prosaica: quem sabe Homero não se referia ao vinho branco (cuja tonalidade esverdeada estaria mais próxima do Mar Jônico)? Resta aos especialistas na momentosa questão homérica agregarem mais esse ponto a esclarecer. (Ho-

(Lucas Paes)

DESAFORISMOS

"Não faça na vida pública aquilo que você faz na privada." Anônimo

mero Fonseca)

Prêmio regional Fui convidado a dar meu voto para o Prêmio Comunique-se, em que os jornalistas escolhem os vencedores entre seus pares. Recusei-me a fazê-lo. Ocorre que todos os indicados são do eixo Rio-São Paulo e estou convencido de que existe vida inteligente em outros planetas da galáxia Brasil. Nada tenho contra nenhum dos indicados, muito pelo contrário. Alguns são meus amigos e quase todos fazem jus plenamente ao galardão, como se dizia antigamente. Nem me move algum estreito e ressentido bairrismo. A questão é que nesse imenso Brasil de norte a sul tem gente boa produzindo, divulgando e discutindo cultura na mídia. Daí não concordar com esse etnocentrismo paulista-fluminense. Que mudem o título do prêmio para Torneio Rio-São Paulo – o antigo Roberto Gomes Pedrosa, lembram? (HF).

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Apropriação não é plágio O conceito de apropriação não é uma invenção pós-moderna. W.W. Jacobs (1863-1943) escreveu o conto A garra do macaco, em que um casal usa magia negra para trazer de volta o filho morto. Mas o rapaz ressuscita com o físico no estado de decomposição em que se encontra e com o caráter contaminado pela sua passagem entre os mortos. Stephen King reaproveita a idéia no romance O cemitério maldito (tornado filme em 1989). Ambrose Bierce (1842-1913) escreveu o conto Um acidente na Ponte de Owl Creek, em que um soldado foge dos inimigos e volta para sua fazenda, mulher e filhos. Só que, no final, o leitor fica sabendo que ele está agonizando, baleado, e a volta para casa ocorreu só na sua mente. Paul Auster reaproveita e amplia a mesma idéia no filme O verão de Sam, de 1999. T. S. Eliot (1888-1965) costumava incluir em seus poemas frases e versos de outros autores num processo que chamava de “eliotização”. Muitos enredos das peças de Shakespeare (1564-1616) são tomados de outros autores, só que devidamente “shakespearizados”. Como dizia Lavoisier, nada se cria, tudo se transforma. (Marco Polo) O químico francês Lavoisier

Uma das três grandes peças coral-orquestrais de Villa-Lobos, a pouquíssimo executada cantata “ameríndia” Mandu-Çarará, induz a pensar na tese das raízes indígenas do samba, defendida pelo pesquisador Bernardo Alves. Isso sem entrar no mérito de que o compositor carioca pode ter inventado uma rítmica híbrida, assim como inventava línguas aborígines e as fazia passar como se fossem reais. (Carlos Eduardo Amaral)

Rabeca concertante

Se a seção de cordas é a espinha dorsal da orquestra, os violinos são a coluna cervical. Nascidos de uma evolução da rabeca e cuja fabricação foi racionalizada e perpetuada por uma escola de luthiers que culminou nos cremonenses Amati, Guarneri e Stradivari, eles entram em perfeita harmonia com o instrumento antecessor num concerto para rabeca e cordas de Aglaia Costa, estreado em 2005. Os três movimentos do concerto substituem o tradicional esquema rápido-lento-rápido por três allegri energizantes. Está tardando para que a obra ganhe as salas de concertos do país. (CEA)

“Quem se rebaixa, quer ser exaltado.”

F. Nietzsche

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Samba indígena

IMPACTO Como a dança entrou na sua vida? "Estudei dança desde pequena, ballet clássico. Estudei piano durante 10 anos. Também joguei volleyball. Aos 16 anos, voltei a dançar já com disposição para que a dança se tornasse parte da minha vida e a minha profissão, mesmo que nessa época fosse difícil que a dança se tornasse profissão. Aos 18 anos, comecei a dançar, com apresentação e participação em grupos experimentais de dança contemporânea. Aos 21 anos, comecei a trabalhar como coreógrafa e diretora de movimento de peças teatrais, shows, TV, publicidade, filmes, carnaval. Em 1993, decidi realmente montar minha companhia. Acredito que a dança veio juntar toda minha experiência e foi capaz de unir música, esporte, imagem, movimento, e se tornar minha possibilidade de comunicação e expressão para o mundo." Deborah Colker, bailarina e coreógrafa.

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CAPA

Comemorando 17 anos de estrada, a Trupe do Barulho, mais estrondoso sucesso de público do teatro pernambucano, encena texto de Roberto Athayde e marca guinada em sua carreira Rodrigo Dourado

Apareceu a Cinderela ou Margarida do barulho

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m 1973, um jovem carioca de 23 anos resolve aventurar-se no território da dramaturgia e escreve a sua primeira peça, o monólogo Apareceu a Margarida. O texto é encenado pelo diretor Aderbal Freire Filho – tendo Marília Pêra no papel da despótica professora Dona Margarida – e alcança estrondoso sucesso. Talvez o autor, Roberto Athayde, nem desconfiasse que seu primeiro experimento viria a ser uma das pe-

ças mais encenadas no Brasil desde então – e um dos textos brasileiros mais montados em todo mundo, contabilizando encenações em mais de 30 países, com aproximadamente 40 produções na Alemanha e quase 30 na França. Já no Recife, um grupo de jovens atores resolve levar para o palco do Teatro Valdemar de Oliveira, em 1991, a adaptação de um esquete teatral apresentado numa casa noturna da cidade. Com o título de

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Leo Caldas/Titular

Três atores se revezam no papel da autoritária professora Margarida

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CAPA Cinderela, o trabalho estréia em 20 de setembro daquele ano, no inusitado horário da meia-noite, após o show Leopardos, da transformista Rogéria, em cartaz no mesmo teatro. Ali, nasce a Trupe do Barulho e um dos maiores sucessos de bilheteria da história do teatro pernambucano – talvez apenas inferior em números à Paixão de Cristo de Nova Jerusalém. Ao longo de quase 10 anos de temporada, Cinderela, a história que sua mãe não contou, realiza mais de 1.100 apresentações, para um público estimado em cerca de 400 mil pagantes. Este ano, para celebrar 17 primaveras, a Trupe do Barulho decidiu promover um inusitado encontro de recordistas, encenando

Apareceu a Margarida. A montagem tem direção de José Francisco Filho e aponta para uma renovação de repertório. É a primeira vez que o grupo monta um texto de autor não pernambucano. É também a primeira experiência do conjunto com uma obra não criada sob encomenda ou livremente adaptada à sua fórmula de sucesso. Ao longo da carreira – e apesar do inconteste fenômeno de público –, a Trupe vem sendo rechaçada por parte da crítica, da classe teatral e da intelligentsia pernambucana. Considerado um herdeiro do olindense Vivencial Diversiones, o grupo é acusado de haver esvaziado o conteúdo político e social do tra-

balho das vivecas; tido como continuador do gênero conhecido como besteirol, que proliferou na cena brasileira dos anos 80, o conjunto sofre rejeição pelo humor descompromissado e irresponsável que pratica; afiliado a uma estética do Teatro de Revista e da Chanchada, a Trupe é tachada de escatológica e vulgar pela elite local. Nesse sentido, a montagem de Apareceu a Margarida parece representar uma mudança de rumos – certamente um desafio – ou talvez uma resposta aos críticos. Montar um texto com forte conteúdo político, já encenado por grandes nomes do teatro brasileiro e mundial, com a assinatura de um diretor cujo currículo traz im-

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Marília Pêra, na encenação de 1973

Reprodução

portantes montagens de clássicos da dramaturgia, significaria uma tentativa de enquadramento, um deslocamento da margem para o centro? Apareceu a Margarida, à época de sua primeira montagem, foi tomada de imediato como metáfora do regime de exceção instaurado no país. Numa sala de aula (o teatro), para uma turma de estudantes (a platéia), Dona Margarida se apresenta como professora. Tendo como cenário apenas uma mesa e um quadro-negro, Dona Margarida aplica seu nada ortodoxo método educativo: através da tirania, do uso desmedido do poder, impõe os saberes aos alunos. Humilha-os, desengana-os, desilude-os.

O despotismo da personagem vem sendo tratado, desde então, como figura de linguagem para falar de todo regime de dominação, de sistema opressivo, de relação de tortura, tendo a sala de aula como microcosmo dessa sociedade disciplinar; o banco escolar como primeiro estágio para o adestramento. O inusitado em Apareceu a Margarida está precisamente no paradoxo da figura da professora completamente desequilibrada, quando o magistério demanda equilíbrio; violenta, quando a boa educação solicita docilidade; quase pornográfica, quando a docência pede recato. Dona Margarida é, na verdade, uma personagem de grande complexidade, um ser humano cheio de idiossincrasias. Daí, certamente, advém o interesse que sua figura desperta, suplantando tempos e geografias. “Dona Margarida vai existir sempre. Ela é um símbolo da desestrutura da educação. Traz em si uma enorme gama de personagens, é mãe, é fascista, é católica, é militar, tem a sexualidade reprimida e por isso mesmo só tem sexo na cabeça. É uma figura que permite uma enorme variedade de interpretações”, afirma José Francisco Filho, que foi convidado pela Trupe do Barulho a realizar seu primeiro trabalho com o grupo. O diretor é responsável por montagens que fizeram história no teatro pernambucano. Sua direção de Prometeu acorrentado (1973), para o Teatro da Universidade Católica (Tucap), marcou época, utilizando como espaço cênico a Igreja do Rosário dos Pretos. Um ano antes, ele havia encenado, pelo mesmo Tucap, Torturas de um coração (1972), que carnavalizou e “desmunhecou” o original de Ariano Suassuna, sendo rapidamente proibido pelo dramaturgo. José Francisco assina ainda, ao longo dos anos 70 e 80, várias

versões do texto infantil A revolta dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga, todas de grande sucesso. Já em 1990, dirige uma comédia de enorme popularidade, Salto alto, com texto de Mário Prata; e, em 1997, monta Castro Alves do Brasil, pela sua companhia, a Circus Produções, visitando o imaginário condoreiro. Sua versão de Apareceu a Margarida desdobra a personagem em três atores: Aurino Xavier, Bobby Mergulhão e Flávio Luiz. Após várias sessões de leitura e estudo do texto, o diretor efetuou alguns cortes e chegou à sua versão definitiva. Com grande fluidez, os intérpretes dividem as falas de Dona Margarida, aproveitando-se ao máximo das insinuações de cunho sexual e do deboche presentes no texto. A Trupe investe, precisamente, nesse “escracho” como garantia para angariar a simpatia de seu público. “É bem provável que as pessoas que não conhecem o texto pensem que nós inserimos os cacos”, pondera o ator Flávio Luiz, referindose ao uso despudorado que Dona Margarida faz dos palavrões. “O palavrão é um recurso da própria personagem que se adapta à estética do grupo”, ressalta o diretor. Isso porque Dona Margarida está sempre jogando com duplos sentidos, tratando os temas de maneira jocosa, revelando nos conteúdos mais ingênuos pulsões sexuais. Como na hilária aula de matemática em que ensina a divisão de “cassetes” (K-7s) por buracos; nas aulas de biologia em que explica aos alunos os “fatos da vida”; ou nas lições de português em que esclarece a existência dos verbos mais impróprios. Algemas, chicote, palmatória e até um boneco inflável compõem o universo quase sádico da Dona Margarida da Trupe do Barulho. Ela grita, xinga, recompõe-se, desce para a sala de aula/platéia, agride SET 2008 • Continente x

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Divulgação

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O diretor José Francisco Filho está atento para que os atores não sejam muito caricaturais

os alunos/espectadores, brinca com eles, intimida-os. “O texto possibilita essa proximidade com a platéia. Isso nos interessa, porque significa uma continuidade no nosso estilo”, explica Aurino Xavier. Além disso, o espetáculo utilizase de um recurso presente em todas as montagens do grupo, o transformismo. O texto original não contém nenhuma indicação de haver sido escrito para um ator e não para uma atriz, no entanto, vem sendo aproveitado por um sem-número de transformistas em todo o mundo. Certamente porque o comportamento despudorado de Dona Margarida se assemelhe muito ao humor cáustico e à sensibilidade camp desses performers. Seguramente, ainda, porque a agressividade e a violência de Dona Margarida

configura um comportamento quase masculino, localizando a personagem num entrelugar de gênero caro aos transformistas. José Francisco, entretanto, faz questão de afirmar que trabalhou os atores para atuar como verdadeiras mulheres. “O grupo tem uma linha de trabalho caricatural, mas tenho tido cuidado para que não extrapolem. Eles são atores maravilhosos, de grande potencialidade!”, elogia. Aurino Xavier atesta: “Temos nos exercitado para não repetir os gestos corporais trazidos de outras montagens, para não cair na afetação. Dona Margarida tem que ter a austeridade de quem se dedica à educação”. A grande dúvida que paira sobre a nova investida da Trupe do Ba-

rulho é: e os alunos? ou melhor: e o público? Que reação esperar dos espectadores fiéis e cativos, que lotaram os teatros do Recife para ver todos os nove espetáculos do grupo? Afinal, para acessar o humor em Apareceu a Margarida é preciso digerir todo o conteúdo político do texto. “O grande choque, talvez, seja a ausência de alegria”, arrisca o diretor. “Acho que o cômico puxa mais facilmente a reflexão”, afirma Bobby Mergulhão, que complementa: “O público da Trupe tem tanta afinidade com o trabalho, que sempre compra a idéia. Acredito que vamos conseguir trazer ao teatro aqueles que nos vêem menos”. A Trupe já havia feito outra tentativa de encenar um grande texto da dramaturgia mundial, As Criadas, de Jean Genet. No entanto, desistiu da empreitada e optou por fazer uma releitura libérrima do original, chamada de As criadas malcriadas. “Não achamos gancho no original para dialogar com nosso público”, lembra Bobby Mergulhão. Desta vez, entretanto, o desejo é renovar, sem fugir inteiramente do sólido estilo moldado ao longo dos anos. “Não é mudança, é disponibilidade para experimentar”, complementa o ator. “Será uma ótima oportunidade para as pessoas desmistificarem a idéia de que nós não pesquisamos, não estudamos”, desabafa Aurino Xavier. O sucesso já é garantido, pelo menos no que depender de José Francisco Filho, “Tenho certeza de que Dona Margarida será para a Trupe o que Cinderela foi para Jeison Wallace”, diz, referindose à grande popularidade da personagem criada pelo ator. Quem tiver interesse em conferir o resultado do novo trabalho da Trupe do Barulho, deve ir ao Teatro Valdemar de Oliveira, mesmo palco onde o grupo nasceu. A temporada acontece aos sábados e domingos, 20h, sem previsão de parada.

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Aurino Xavier/ Divulgação

Encenando o subalterno Grupo rasga cartilha das boas maneiras e garante visibilidade aos estratos periféricos

Cinderela, a personagem que foi a marca da Trupe

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epois do sucesso de Cinderela, a história que sua mãe não contou, A Trupe do Barulho só tornou a investir em outra montagem no ano de 2000, quando Jeison Wallace já havia se afastado do papel de protagonista, sendo substituído por José Brito. A última apresentação do trabalho que deu origem ao grupo acontece no Festival Janeiro de Grandes Espetáculos daquele ano. Em seguida, estréia Deu a louca na história que sua mãe não contou, uma tentativa de reeditar a fórmula do “deboche” transposto ao universo dos contos de fadas. Na encenação, Cinderela, dessa vez interpretada por Henrique Celibi – autor de Cinderela, a história que sua mãe não contou e primeiro a viver a personagem na boate Araras –, pega o metrô errado e acaba viajando por diferentes fábulas. Encontrase, entre outras, com Chapeuzinho Vermelho e com Branca de Neve, que, revoltada com a rainha má, se tornou alcoólatra. Em 2001, o grupo lança As filhas da p..., montagem baseada no cotidiano dos moradores de um morro recifense. A trama gira em torno de duas irmãs que, incentivadas pela mãe, fazem de tudo para alcançar o estrelato. No ano seguinte, Jeison Wallace retoma como ator e diretor uma paródia de grande sucesso – dessa vez com produção assinada pela Trupe –, A casa de Bernarda

e Alba, que brinca com o original do dramaturgo espanhol Federico García Lorca. Na remontagem, a avó Bernarda – vivida na primeira versão pelo memorável comediante Luiz Lima – é interpretada por Edilson Rygaard. Nesse mesmo ano, a Trupe encara o desafio de encenar um infantil, O mistério das outras cores, texto de

Paulo André Guimarães. A montagem aborda a questão da alteridade, da diferença, num mundo imaginário em que uma rainha branca escraviza as cores marrom (representando os negros), amarela (os orientais) e vermelha (os índios). No ano de 2003, estréia As malditas, de Luiz de Lima Navarro, que conta a história de três irmãs solteiSET 2008 • Continente x

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ronas, Santusa, Merlusa e Gerusa. Quando uma delas está prestes a casar, descobre-se que o noivo é homossexual e, então, o imbróglio se estabelece. De volta ao imaginário das histórias infantis, a Trupe do Barulho encena, em 2004, As três porquinhas, novo texto de Luiz de Lima Navarro, cujo enredo se passa no subúrbio de Coque City, numa clara referência a uma das regiões mais pobres do Recife, o bairro do Coque. Lá, vivem outras três irmãs, prostitutas, num terreno herdado pela mãe. O conflito se instaura quando surge José Lobo, dizendo-se verdadeiro proprietário do pedaço de terra. A fim de permanecer no local, as irmãs têm de levantar uma quantia em dinheiro, e, para isso, montam uma escola de formação de prostitutas. No ano seguinte, o grupo convida Navarro a adaptar o original de Jean Genet, As criadas, e o dramaturgo escreve a versão intitulada As criadas... malcriadas. O clássico genetiano, apropriado pela cultura gay em todo o mundo, recebe o molho da Trupe do Barulho e do diretor convidado Manoel Constantino, mantendo apenas intactos os nomes das personagens – Clair, Solange e Madame – e o mote central da peça: a inveja das criadas e o desejo de se tornarem madames levam-nas a arquitetar a morte da patroa. Aqui, entre outras armações, as criadas fazem de tudo para impedir que Madame vença o concurso de “Miss Traveca”. O último trabalho do grupo, que estreou este ano, leva o malicioso título de Chupa, chupa show e tem como personagem central Chupa Engole – interpretado por Aurino Xavier – que apresenta um programa de auditório, exibido pela TV do Barulho. A atração, repleta de shows de transformismo, é a preferida de Clair – personagem importada do espetáculo anterior, que assiste no noticiário à morte da patroa num

Flávio Luiz/ Divulgação

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Diálogo com a cultura da periferia

acidente de avião no lixão da Muribeca – outra referência ao subúrbio recifense –, herda a fortuna de Madame e passa a interagir com seu programa de TV favorito, graças à tecnologia 3G. Ao analisar a trajetória da Trupe do Barulho, fica evidente o diálogo que o grupo estabelece com a cultura da periferia recifense, com os costumes e valores do subalterno. Negros, travestis, prostitutas, alcoólatras, domésticas, todos os setores da margem, todas as vozes que nunca obtiveram representação, ganham visibilidade nos espetáculos da Trupe. Ao colocar em evidência os estratos subalternos, ao encenar a narrativa de vida desses sujeitos desviantes, o grupo encontrou certamente um dos alicerces do seu trabalho. A abordagem que faz desse Outro, entretanto, está longe de alinhar-se ao que se convencionou chamar de “politicamente correto”. O humor praticado pela Trupe

alimenta-se do riso derrisório, do preconceito reiterado, do “deboche” que, às vezes, parece concorrer para a manutenção do status quo. Um observador mais atento, porém, perceberá que o poder de comunicação do grupo com o grande público está precisamente na desestabilização que ele promove das categorias fixas. Se, do ponto de vista formal, a Trupe do Barulho se alimenta de toda a sorte de referências da cultura popular, erudita e de massa – desfazendo as fronteiras fictícias que as separam –, do ponto de vista dos conteúdos, o mesmo acontece. Ninguém, nenhum espectador – mesmo homem, heterossexual, branco e de classe média – “sobrevive” ao humor cáustico de seus atores. A Trupe, na verdade, rasga a cartilha das boas maneiras, dispensa o bom mocismo, rejeita qualquer enquadramento, não se coopta; seu projeto – e único compromisso – é fazer chiste do mundo. Naturalmente, há outras questões envolvidas no sucesso do grupo. A articulação de uma identidade urbana, que devora o popular-rural supostamente “puro” e funde-o ao pop metropolitano, é uma delas. Muito se questionou a ausência do movimento teatral pernambucano da “Cena Mangue” dos anos 90. Poucos enxergaram, porém, que a síntese pós-tropicalista e oswaldiana de Chico Science deu-se, no palco local, em paralelo, na chacrinada antropofágica de Cinderela. Sua inserção nos meios massivos é ainda outro aspecto fundamental a considerar. A partir de 1992, quando foi convidada pela TV Jornal a realizar a cobertura do bloco de carnaval olindense As Virgens do Bairro Novo, a Trupe vem mantendo um longo “namoro” com os veículos de comunicação de massa, chegando a realizar, naquela década, três especiais para a mesma emissora – entre eles, a íntegra

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do espetáculo Cinderela, a história que sua mãe não contou. Manteve programas de rádio, seus atores transformaram-se em garotos propaganda de inúmeros produtos, até que a personagem Cinderela passe a comandar, a partir de 2006, um programa diário na faixa das 11h, na mesma TV Jornal, por onde circula boa parte dos integrantes do grupo.

recorrendo às mais inusitadas estratégias de divulgação de seus trabalhos. Desde o abatimento no preço dos ingressos em troca de fichas telefônicas – quando ainda existiam –, camisinhas ou notas ficais, às dobradinhas da comédia que realiza até hoje, quando apresenta dois espetáculos numa mesma temporada, oferecendo valor mais baixo na entrada para quem assistir aos dois. Queiram seus detratores ou não, a Trupe já faz parte da história do teatro pernambucano. Se cedeu às tentações do mercado, se aposta numa fórmula de sucesso inalterável, se mantém um diálogo permanente com os modismos de última

O grupo em ação, na peça As criadas... malcriadas, adaptação do original As criadas, de Jean Genet

Aurino Xavier/ Divulgação

Sem contar com o auxílio das leis de incentivo à cultura, a Trupe do Barulho é o único grupo pernambucano de teatro profissional a sobreviver exclusivamente de bilheteria. Isso porque, desde a sua estréia com Cinderela..., vem

hora, não é possível, por isso, ignorar o fenômeno que representa. Afinal, não é todo grupo que consegue lotar o Ginásio de Esportes Geraldão duas vezes, manter espetáculos por três ou cinco anos em cartaz ininterruptamente, tampouco entrar para o panteão de ícones da cultura pernambucana – como aconteceu com a personagem Cinderela. Aos 17 anos, próxima de chegar à maturidade, a Trupe é, antes, um grupo que merece ser estudado, talvez para servir de modelo aos seus afins, mesmo que esses insistam em virar-lhe o rosto. (RD)

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Entre o ridículo e o escatalógico

Atores em cena de teatro popular, que reunia música e representação cômica

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Anco Márcio Tenório Vieira

É Fotos: Reprodução

As raízes de espetáculos como os da Trupe do Barulho remontam aos primórdios do Teatro e seus traços atuais revelam muito mais do tempo em que vivemos do que um drama que abordasse o quanto a vida tornou-se banal e sem sentido

n’Os trabalhos e os dias (700 a.C) que Hesíodo classifica “as cinco raças” que, advindas da mesma origem, deram nascimento aos homens e aos deuses. A primeira delas, segundo o poeta, foi a “Raça de Ouro”. Nesta, os “homens mortais criaram os imortais, que mantêm olímpias moradas”. Tinham corações despreocupados, as penas e as misérias não existiam para si, os frutos da terra eram generosos e eles “morriam como por sono tomados”. Mortos, “vestidos de ar”, vagam onipresentes pela terra. À “Raça de Ouro” sucede a de “Prata”. Inferior à primeira, seus membros se negaram a servir aos imortais. Expulsos do Olimpo, ocultados sob a terra — chamados de hipoctônicos —, continuaram a ser tidos pelos mortais como venturosos. A terceira Raça é a de “Bronze”. Terríveis, fortes, corações de aço e força descomunal, desconheciam o ferro, habitavam casas de bronze, assim como brônzeas também eram suas armas. Mortos por suas próprias mãos, “deixaram, do sol, a luz brilhante”. A penúltima Raça foi a dos “Heróis”. Justa e corajosa, essa raça divina é constituída por semideuses. Aniquilada em batalhas, foi levada aos confins da terra por Zeus, onde habitam a “ilha dos Bem-Aventurados”, e três vezes ao ano retornam à “terra nutriz”. Por fim, a Raça de Ferro, à qual pertence o poeta e todos nós, pobres mortais. Raça condenada ao trabalho, à angústia, a penar e se destruir, desonrar os pais, honrar o malfeitor, cultivar a inveja e a malícia; Raça que, segundo o poeta, pouco a pouco vem sendo abandonada pela “tribo dos imortais”. Conhecer a cosmogonia grega é uma das chaves para melhor entendermos os princípios norma-

tivos que fundamentaram a origem da literatura ocidental. Foi na Poética que Aristóteles definiu que a diferença entre a Tragédia e a Comédia (para ficarmos apenas no campo da dramaturgia) se dava porque esta imitava os homens piores do que eles são, e aquela, os homens melhores do que ordinariamente eles são. Se a Tragédia se valia do mito como matéria-prima para a composição da fábula e, conseqüentemente, dos atos (atos estes que estão subordinadas a uma ação una), a Comédia partia primeiramente da fábula para só depois dar aos personagens os nomes que lhes eram mais adequados. No entanto, se o mundo que viu nascer a Tragédia era o mundo habitado pela Raça de Ferro, como este gênero dramático (enquanto gênero elevado) imitava os homens superiores? Como encontrar superioridade onde só havia desonra, inveja e malícia? A resposta encontramos nas próprias peças trágicas: os homens cantados pelos tragediógrafos eram aqueles que se inscreviam na Raça dos Heróis: Édipo, Orestes, Helena, Ulisses, Aquiles... Homens que, por sua condição de semideuses, podiam ainda evocar e dialogar com os deuses. Daí o mito ser a matéria-prima da Tragédia. Matéria-prima esta, assinale-se, que não devia ser representada tal como os fatos ocorreram (este propósito cabia ao historiador), mas, segundo Aristóteles, como eles “poderiam suceder”, dentro do que era “possível segundo a verossimilhança e a necessidade”. Só através de tal recurso é que o poeta firmava sua assinatura na narrativa mítica, criando um mundo próprio que se encerrava em si. O mito deixava, assim, de ser uma forma simples, uma narrativa SET 2008 • Continente x

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Imagens: Reprodução

oral, imemorial e coletiva, para se transformar numa criação particular do poeta: a literatura. Ora, é em contraponto a esse mundo que encerrava a Raça de Heróis que nasce a Comédia. Tratando da Raça de Ferro e de todas as mazelas que lhe são próprias, o comediógrafo se volta para os “homens inferiores” e os seus “vícios”, isto é, a “parte do torpe que é o ridículo”. Mas para qual ridículo ele se volta? Segundo mais uma vez Aristóteles, o que encerra “certo defeito, torpeza anódina e inocente”. Se a Tragédia busca criar no espectador uma permanente tensão interior, tendo o seu ponto alto no processo catártico que a ação provoca na platéia, a comédia busca liberar essas mesmas tensões por meio do riso. É por meio do riso que os valores morais de uma dada sociedade são lembrados e restabelecidos, mas Fazem parte da Commedia Dell’Arte italiana a improvisação dos diálogos e da ação, o uso da dança e da mímica

é também por meio desse mesmo riso, acreditam Concetta D’Angeli e Guido Paduano (O cômico), que a moral e a razão são relativizados. Como lemos na ópera Falstaff, de Verdi: “Todos enganados! Riem-se uns dos outros todos os mortais”. E de que riem os mortais: daquela “torpeza anódina e inocente” que tanto define os atos infantis. Só que agora as “chaves” que descortinam a realidade foram invertidas. Se os atos praticados pela criança lhe permitem macular as regras estabelecidas, pois o seu horizonte mental não é o dos adultos, no adulto esses mesmos atos acusam a sua fraqueza: seja ela da razão (daí a personagem do louco ser tão recorrente nas comédias) seja da moral. É por incorrer nas regras estabelecidas pelos adultos que os homens “riem-se uns dos outros todos”. E ao rir do outro, o homem ri de si próprio, pois como

um ser dotado de razão, o homem sabe que também está sujeito a tropicar nos códigos de conduta, nas normas que regem a sociedade que habita. O riso provocado pela Comédia só se estabelece no espectador quando ele interage empaticamente com as ações que estão sendo desenvolvidas no palco. Ao rirmos, fingimos para o nosso próximo que o que está se passando no palco não nos diz respeito. Mas, contraditoriamente, rimos porque sabemos que é parte da condição humana cair em atos de torpeza e, sendo assim, rimos do que vemos e, por sua vez, somos também objetos do riso daqueles que no palco estão fingindo representar a triste condição humana. Como lembram ainda os citados D’Angeli e Paduano, “Quem ri da estupidez e da loucura, ri afirmando o poder da razão e, ao rir, exibe sua própria capacidade de empregar mecanismos racionais, instrumento não só de indagações, mas também da gestão da realidade, além de ser um fator modelador do pacto social”. Ora, se é verdade que ao rirmos da estupidez e da loucura afirmamos a nossa sanidade perante nós e os outros, também não é menos verdade que o nosso riso revela a tomada de consciência do quão frágil são os limites entre a razão e a loucura e, por sua vez, da nossa própria sanidade. Se rimos da loucura alheia, é porque, no fundo da nossa consciência, tememos também sermos alvo amanhã desse mesmo escárnio. Mas falamos até a presente linha da Comédia, ou da “alta comédia”. No entanto, o cômico não se encerra apenas na dramaturgia que persegue o castigad ridendo mores, ou seja, o rir restabelecendo a ordem moral e combatendo os vícios; o cômico também se vale de outras formas dramáticas tidas como menos nobres, a exemplo da Farsa, do Burlesco, das Atelanas e dos Arremedilhos.

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Personagens da Commedia Dell’Arte, em águas-fortes de Jacques Callot, 1619

Diversas das Comédias descritas por Aristóteles, essas formas dramáticas recuperam, cada uma ao seu modo, o espírito “carnavalesco” ou de festa popular que instruiu as primeiras comédias gregas. Daí o gosto por situações caricaturais, pouco verossímeis, de frases de dupla acepção, jocosas, dos entremeios de danças, do macaquear pessoas do povo ou de alguma relevância social e, principalmente, por se furtarem a se inscrever no lema castigad ridendo mores. Buscando antes o entretenimento do público do que a reflexão, essas formas dramáticas exploram, por meio do burlesco, o ridículo. Recusando-se a verticalizar os traços psicológicos dos personagens, voltam-se tanto para a construção de personagens estereotipados e caricaturais quanto para dadas situações que comprovadamente provocam o riso fácil. No primeiro caso, temos o tipo ingênuo, o marido traído, o avaro, a fofoqueira, o bêbado, a sedutora compulsiva etc. No segundo caso, o amante escondido debaixo da cama, o tropeço do elegante, o falso moralista, o traço ridículo dos poderosos, a hipocrisia religiosa... Condenadas pelos puristas, essas formas dramáticas são de grande apelo popular, a ponto de serem o principal traço de que se valem os

programas humorísticos midiáticos. No teatro, particularmente nos anos 90, vemos explodir o teatro besteirol: uma tentativa de conciliar a “alta comédia” com as citadas formas menos nobres. Ou melhor, uma tentativa de passar um verniz cultural em quem nunca pleiteou aspirar a tamanha nobreza. Daí vermos surgir na esteira do besteirol uma dramaturgia que, abandonando o verniz cultural, tenta encerrar todas as características da Farsa, do Burlesco, das Atelanas e dos Arremedilhos. O melhor exemplo encontra-se na Trupe do Barulho. Assumidamente carnavalesca, as peças dessa companhia de teatro assumem muitos dos traços que fizeram a Commedia Dell’Arte italiana. Ou seja, a improvisação dos diálogos e da ação, o uso da dança, da mímica e do permanente espírito galhofeiro. Seus espetáculos recuperam também um pouco do que fora o teatro no Século 19: um espaço onde se ouvia opereta, um recital de poesia, via-se um malabarista e um comedor de espadas, e só por derradeiro subia ao palco a peça em cartaz. Em geral, uma comédia. O que mudou do século 19 para o nosso? É que, ao invés da opereta, do recital de poesia e do malabarista, temos agora, enquanto es-

peramos a peça, uma imitação dos shows de auditório da TV: sorteios de prêmios, piadas com a platéia, brincadeiras de múltiplos sentidos, “musicais” etc. Mas não só isso: não raras vezes a galhofa, o burlesco e o escracho caem no escatológico — uma maneira pouco sutil de provocar o riso espontâneo, de encobrir a falta de sentido da estória que se desenvolve no palco, de competir com o circo de horrores que são os programas policiais e de depoimentos que prevalecem nos meios de comunicação do país. O teatro nunca dialogou tanto com os mídias. De certa maneira, companhias de teatro como a Trupe do Barulho revelam muito mais do tempo em que vivemos do que um drama que abordasse o quanto a vida se tornou banal e sem sentido. Através do seu riso escrachado e escatológico, vemos no que se transformou o projeto civilizatório das nossas elites e, principalmente, no que se converteram as cidades com suas massas amorfas. Se Hesíodo acreditava que nós, membros da Raça de Ferro, fomos abandonados pelos deuses, hoje ele diria que não somente os deuses nos abandonaram, mas também o nosso senso de humanidade. O que se espera de uma sociedade que trocou a crítica do ridículo pela escatologia? SET 2008 • Continente x

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pontocom n GOVERNO

n VÍDEOS

n mÚSIcA

Em ano de eleição, pode-se fiscalizar a aplicação de recursos federais pela rede. É só entrar no portal da transparência, recentemente contemplado com o Prêmio CONIP de Excelência em Inovação na Gestão Pública – o maior prêmio do governo para mídia eletrônica. Foi o quarto prêmio recebido pelo portal, que já tem no currículo a distinção das Nações Unidas como uma das quatro melhores práticas de prevenção à corrupção no mundo. Dados de todos os recursos transferidos da União para Estados e municípios são disponibilizados. Até recursos transferidos diretamente ao cidadão, como o Bolsa Família, podem ser conferidos. Com linguagem e navegação simples, o portal não tem restrições nem exige senha. (Thiago Lins)

O bom e velho Youtube não é a única opção para quem quer veicular produções caseiras na rede. O Vimeo comporta vídeos bem maiores, em alta definição. Já o MetaCafe tem outra vantagem em relação ao Youtube, além de também oferecer downloads em alta resolução: os autores dos vídeos mais assistidos podem ser remunerados, por determinação dos espectadores. Muitos amadores já embolsaram os U$$ 5 mil, que o portal concede como prêmio. (TL)

Sabe aquele refrão que você gosta de ouvir, mas ainda não entendeu direito o que diz? Ou aquele solo tão rápido, que você tenta tirar, mas não consegue identificar as notas? Letras, cifras e tablaturas, para guitarra, baixo, bateria e gaita estão disponíveis no Cifraclub. O site ainda conta com notícias do pop, fórum (onde se travam discussões variadas, do erudito ao rock) e o forme sua banda, espécie de ponto de encontro virtual de músicos. O Cifraclub também agrega o link aprenda, com cursos virtuais gratuitos. Mas, para quem precisa de um professor por perto, há um link com endereços físicos de escolas de música. Indicações de livros do ramo também estão disponíveis no site. (TL)

Transparência, antes tarde do que nunca

Há lugar para vídeos além do Youtube

Depois de ouvir muito, é hora de tocar muito

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portaldatransparencia.gov.br

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vimeo.com metacafe.com

cifraclub.com.br

n cÊNIcAS

Os arquivos da dança A história da dança em Pernambuco dispõe de um acervo bastante rico na internet, um dos resultados do projeto Acervo Recordança, idealizado pela bailarina e pesquisadora Valéria Vicente. Criado em 2004, o Recordança pretende resgatar, digitalizar e organizar os registros históricos da dança pernamabucana. Essa catalogação foi disponibilizada em um CD-ROM multimídia e chegou à internet, no ano passado, consolidando-se como um dos projetos de resgate pioneiro na utilização da rede como mídia. O site reúne, por enquanto, registros históricos referentes ao cenário da dança pernambucana entre 1970 e 2000. Há fotos, vídeos, programas de espetáculos, biografias, enfim, toda sorte de informações para pesquisadores e interessados. (Mariana Oliveira) nnn

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FAVORITO

POST DO mÊS - [ Blog do Tas]

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Cultura pop “Entretenimento levado a sério” é a proposta do Omelete. Cinema, música, quadrinhos, seriados, games e curiosidades: as variedades da cultura pop estão no site, que ainda tem trailers, entrevistas exclusivas, opinião e mais. Sempre atualizado, o Omelete também conta com o ranking das bilheterias e destaques da televisão. omelete.com.br n cULTURA

Qualquer um pode atuar no Overmundo Espécie de condensado cultural, o Overmundo é um forte canal de expressão para a produção nacional. É uma ferramenta imprescindível nestes tempos de revolução digital, em que o internauta emerge como produtor. Descentralizado (qualquer pessoa pode ser “overmano” ou “overmina”), serve de alternativa ao acúmulo de informação que não pode ser filtrado nem coberto por uma equipe, funcionando assim como rede social. O site disponibiliza conteúdo diverso, que vai de simples reflexões a teses de doutorado. Uma busca no Overmundo pode ser mais rápida e precisa do que no famigerado Google. Todo o conteúdo daquele está licenciado pelo Creative Commons, o que quer dizer que pode ser livremente compartilhado, desde que para fins não-comerciais. nnn

overmundo.com.br

A velocidade das notícias faz com que, quase sempre, percamos o fio da meada. Algum de vocês já parou para aprofundar o pensamento na informação de que a Polícia Federal grampeou 3.200 horas de ligações telefônicas do Daniel Dantas? Vou repetir: foram gravadas três mil e duzentas horas de conversa. São 133 dias e mais oito horas de lambuja falando ininterruptamente ao telefone! Não sei se vocês vão concordar comigo, mas... Qualquer ser humano, vejam bem, vou repetir novamente: QUALQUER SER HUMANO que tiver 3.200 de conversas telefônicas grampeadas vai dar muitos, talvez milhares de motivos para ser pego pela Justiça. Imagina então o Daniel Dantas, que nem parece humano! Seja sincero: quantos crimes ou, vá lá, pecadinhos você já cometeu em 3.200 horas de conversa telefônica? Coragem: ajoelhe, arrependa-se e confesse, internauta pecador!

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E se ouvissem 3.200 horas da sua conversa?

PERFIL Marcelo Tas é comunicador de TV, rádio e internet. Ficou conhecido nos anos 80 interpretando o personagem Ernesto Varela, repórter fictício que ironizava políticos. Atualmente, apresenta o programa Custe o que Custar (CQC), da rede Bandeirantes. marcelotas.blog.uol.com.br

BAIXE E OUÇA A Universidade Falada (UNIFA), em uma iniciativa digna de aplausos, produz audiobooks (livros em áudio) como forma de promover a cultura. Em seu site estão disponíveis diversos títulos de audiobooks, pode ser a leitura de um clássico, um romance, um artigo, uma aula. Na UNIFA, a maioria dos narradores são os próprios criadores da obra, o que muitas vezes enriquece o texto pela interpretação. Muito conhecido e difundido na Europa e nos EUA, o audiobook não substitui o livro, é apenas uma alternativa, mais um meio de acesso. (Gabriela Lobo) universidadefalada.com.br SET 2008 • Continente

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LITERATURA

Além do armorial Coletânea de artigos, entre 1961 e 2000, elucida o pensamento de Ariano Suassuna sobre ética, estética e cultura Luiz Carlos Monteiro

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riano Suassuna faz parte de uma vasta confraria de escritores que não tem receio de se exprimir em primeira pessoa. De Dante a Baudelaire, de Borges a Barthes, de Cervantes a Joyce, nenhum deles renegou, em momentos diversos de seu texto, a escrita autobiográfica, subjetiva, confessional. Mesmo um poeta rigoroso feito João Cabral, que repelia o lirismo doméstico, lacrimoso e cometido para uso próprio e exclusivo dos bardos (neo)românticos, deixou-se seduzir – é certo que em ocasiões raras de sua poesia – pela fala pessoal e subjetiva, permeada do seu próprio eu. Há, mais ainda, a situação insustentável daqueles escritores e poetas que se disfarçam com as vestimentas da modernidade e de um pós-moderno ainda em progresso, e não resistem a uma pitada ou outra de subjetivismo lírico. Sendo um dos traços definidores da escrita de Ariano, essa postura suscita especulações e levanta problemas na sua veiculação. Ao exigir o máximo de sinceridade e firmeza para a sua plena realização, tal postura não dispensa também uma renovação constante e contínua do pensamento, das idéias e das ações da parte de quem assim se expressa. E mesmo que já

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Ilustração: Zenival

existam de antemão posições sólidas no campo da cultura, da arte e da literatura, assumidas e assimiladas sem vacilações, a possibilidade de mudança e reinvenção no tom, na visada e na perspectiva é algo a ser pensado ao longo dos anos. O novo livro de Ariano Suassuna, Almanaque armorial, é uma coletânea de ensaios e artigos que se esticam num intervalo de tempo entre 1961 e 2000. São textos escritos para jornais, revistas e publicações acadêmicas ou de outros interesses, além de apresentações de livros por solicitação de gente próxima ao autor ou ainda discursos de posse em academias de letras como a brasileira e a paraibana. O organizador é o escritor Carlos Newton Júnior, na atualidade o maior especialista na obra de Suassuna, que já defendeu teses de mestrado e doutorado sobre ele. Carlos Newton trabalhou a série dos 25 textos em seqüência cronológica, mas não descuidou da inter-relação flagrante entre eles e da variedade de interesses e assuntos do ensaísta Ariano. Por isso, o leitor vai encontrar desde textos em estado de programa (sobre as razões e raízes ibériconordestinas do Movimento Armorial) a textos de iniciação no teatro, a partir principalmente do romanceiro popular nordestino, sensivelmente aplicado, em 1955, ao Auto da Compadecida. A pintura e a cerâmica de Brennand comparecem em mais de um momento, estando bem mais explicitadas no texto dialogado “Yaari – diálogo sobre a

Ilumiara Brennand”, que se passa num clima de mistério, esoterismo e magia, em conexão com segredos e revelações sobre a grande pintura mundial de todos os tempos. No redemoinho dos ensaios, pode-se de repente dar de cara com a crônica cotidiana de costumes, comportamentos e viagens, do futebol e do cinema, do sexo e da morte, do mal e do natal. E aqui a crônica é exercida em espaço exíguo, econômico, minimalista, às vezes subdividido em outros momentos textuais. O volume inicia-se com o ensaio “O que podemos aprender da Turquia”, publicado em quatro tempos em 1961, no Jornal do Commercio do Recife. A contundência deste texto chega a um nível irônico-satírico tão extremado que pode assustar um leitor mais desavisado. Aprende-se que até Jack, o estripador inglês, tinha bons sentimentos de respeito à lei e à justiça. Que, ao matar aquelas mulheres por um impulso assassino irrefreável, jamais pensou estar a fazer algo errado para os padrões de convivência da sociedade inglesa. Chorou ao descobrir isto, contudo pagou pelo seu desvio “inocente”, porém altamente perigoso, de esquartejar mulheres, com o enforcamento num dia de sexta-feira. A prostituição turca, inglesa e brasileira vista sob ângulos desconcertantes, o nosso destino incerto e amesquinhado de mestiços latinos e ignorantes, as propensões de subserviência a russos e ingleses, que beiram um ridículo nauseante e vulgar. Coteja impiedosaSET 2008 • Continente x

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LITERATURA de comparação, encontram-se desvendamentos e revelações estéticoformais que muito crítico militante gostaria de ter escrito, como a antecipação – com vasta argumentação – de que a poesia épico-histórica de Mensagem, de Fernando Pessoa, teria sofrido influências diretas do poema Sagres de Olavo Bilac. Ao fornecer uma verdadeira lição de crítica impressionista e dialética na sua raiz problemática profunda, quando escolhe o que prefere e descarta o que não gosta nos poemas de César Leal, permeados da ousadia de inovações formais do mundo caótico de nosso tempo (em processo de decadência ecológica e ambiental contínua, com avanços científicos inestimáveis, mas disponibilizando aparatos de uma belicidade perigosa e dispensável), propõe e faz opção pelo mundo equilibrado, legendário e épico das formas clássicas. Tudo isso sem deixar de reconhecer a dimensão e o alcance grandiosos da poesia de César Leal, a contribuição

efetiva que o poeta ainda não deixou de ofertar a gerações sucessivas de poetas da segunda metade do século 20 até agora. Ariano escreve sobre a poesia de Janice Japiassu com forte empatia e identificação telúrica. A poetisa foi presença armorial em certo instante, em poemas que cantam o sertão paraibano, tendo Monteiro como centro e a circunvizinhança de Sumé, Serra Branca e São João do Cariri, além do sertão moxotoense de Sertânia, já em Pernambuco, entre outras cidades. Dois ficcionistas são evidenciados no Almanaque: Maximiano Campos, com o texto “Um novo romance sertanejo”, que é a apresentação vigorosa e certeira de Sem lei nem rei, seu romance de estréia, que está completando 40 anos; Guimarães Rosa, companheiro de Academia Brasileira de Ariano, em “Encantação de Guimarães Rosa”, um ensaio elastecido sobre o Grande sertão: veredas, dando ênfase à construção dos personagens em suas lo-

Imagens: Reprodução

mente o sistema jurídico, político e social turco, inglês e nativo, com suas distorções absurdas e seus acertos ocasionais e pragmáticos discutíveis. O estopim do ensaio são as gafes de brasileiros nos países civilizados, contadas por um suposto amigo de Suassuna, que serve para deflagrar a ira, a ironia e uma argumentação devastadora, que se volta até contra e sobre si mesma, na defesa do país atacado por um brasileiro desenraizado, grosseiro e “de pouca educação”. No segundo texto, inaugurando uma série de reflexões sobre a poesia, César Leal é o poeta em evidência. Suassuna, conforme repete em outros momentos, intenta justificar-se do fato de não ser crítico – de arte ou de literatura. Afirmação que vai demonstrar a sua fragilidade no interior mesmo das análises que também contemplam Janice Japiassu, Fernando Pessoa vs. Olavo Bilac e outros poetas referidos de relance nos textos. Ali, permeados de sutileza interpretativa e termos

Guimarães Rosa: ensaio se detém sobre a constituição dos personagens

César Leal: obra inovadora analisada por Suassuna

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Iluminogravura de Ariano: por um barroco brasileiro

cações de sertão mineiro e em sua disposição para a luta e as paixões brutais, selvagens e avassaladoras do mundo rústico e ermo, turbulento e exato da ambiência rural. Duas outras coisas que não fazem medo a Ariano: o seu estilo e a fama de xenófobo que lhe atribuíram. No caso do seu estilo, não abdica da prática de escrever como quem fala, feito quem está dando uma aula-espetáculo bem-humorada, crivada, no entanto, de informações artísticas e literárias preciosas, para deleite de quem as assistiu ou assiste. No seu estilo há um grau de despojamento – para usar uma palavra de sua preferência – que não rejeita a sinuosidade das frases e o torneio circular de parágrafos e

blocos de textos, com o raciocínio sempre voltando ao meio e ao início do assunto que está sendo evidenciado e arrematado. A outra coisa é, no desenredo de suas idéias e posições, a negação de uma suposta fama de avesso a estrangeirismos ou a nuances da cultura advinda dos países chamados civilizados. Quem se dispuser a ler e reler os textos deste Almanaque Armorial estará propenso a receber um choque devastador do ponto de vista da análise crítica e da interpretação lúcida e corajosa de autores de fora do Brasil, de escritores, pintores e dramaturgos notáveis e canônicos da cultura mundial, com o autor sempre confrontando e ajustando

atitudes estéticas. É o que faz com freqüência nos seus textos, sem escamotear a ressonância de uma percepção aguda e sensível, tendo recebido, de muitos deles, influências reconhecidas e assumidas. No texto “Teatro, região e tradição, enumera: “Boccaccio, Cervantes, Gil Vicente, Stendhal, Molière, Plauto, Homero, Virgílio, Dostoievski são os clássicos que leio e releio sem cessar. Dos poetas, recebi influência de Lorca, Drummond, Fernando Pessoa, além dos já citados e Horácio.” Passaram por seu crivo, também, o poeta popular Leandro Gomes de Barros, o pesquisador Leonardo Mota e o poeta José Laurenio de Melo, sem deixar de lembrar e referendar suas origens paraibanas e sua vivência em Pernambuco. Assim, por mais que Suassuna esteja vinculado às fontes e eventos da cultura popular, às suas raízes mais profundas e autênticas, seus trabalhos não deixam de trazer uma carga de erudição considerável. Ele empreende todo este esforço sem cair jamais na vulgarização que abole as manifestações populares da cultura de numerosos países (inseparáveis do erudito dinamizado e necessário), em favor do pitoresco, do apenas folclórico e documental. Mesmo que não se concorde com suas idéias, opiniões e questionamentos, deve-se franquear a ele uma alta dosagem de credibilidade, confiança e responsabilidade pela firmeza, segurança e argumentação impecáveis com que defende seus pontos de vista. Almanaque Armorial Ariano Suassuna Carlos Newton Júnior (org.) José Olympio 294 páginas 40,00 reais

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LITERATURA

A poesia como destino do humano Em seu primeiro livro de poemas, Antônio Campos revela talento e um estilo pessoal de exercer a literatura

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Vital Corrêa de Araújo

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ntônio Campos, escritor, acadêmico, cronista, conferencista, pesquisador do livro como objeto cultural e ensaísta, é, também, poeta. Lança um primeiro livro de poemas – e um livro de primeira. Uma astúcia – e um equilíbrio de extração grega –, uma vontade lírica conseqüente orientaram a estrutura, concepção e composição de Portal de sonhos. O carpe diem flagra-se em passagens como “e não desespere, aproveita a vertigem da paixão, enquanto é cedo”, “cada coisa vem a seu tempo e dura apenas o seu momento.” O tema da duração temporal e humana e intemporal natural estão presentes em quase todos os poemas, conforme a correlação da temática mostra: espera, manhã, idade, safra, paixão, duração etc. No poema anafórico (último tema da 1ª parte) O cavaleiro, é possível sentir o tempo, de tocaia, ao longo das 10 estrofes. Flagra-se também uma azáfama de leitmotiven relacionados com a paisagem natural (frutos, cores, rios, pássaros, cavalos), com o ambiente cultural e geográfico do Nordeste. Pedras-de-toque, num apanhado rápido: “tanto cobre-se de ouro, como se abre em chagas”, “o rio castanho como o mel e a crina dos cavalos”, “para que as cores se sintam, Deus pintou a Natureza, com todas as tintas”, “a safra, a messe da solidão, o sofrimento domesticado, a vinda da palavra, para o nosso lado”, “a espera é consciência do tempo, hora e momento, aprendizado com a terra”, ao balanço da imaginação,

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na rede do ser, “dispara o coração, procuro domá-lo, sinto o vento lavando a várzea, correndo mais de cem cavalos”. Nesta última imagem, “correndo mais de cem cavalos”, Antônio Campos se supera e avança, como poeta, ao nível dos melhores imagistas, de agora (e aqui). No entanto, a texto primo, elejo o poema Aprendizado com a terra (titulo que é um verso do poema A espera), em que, no âmbito de 47 versos e 12 estrofes, AC alia, ao telurismo, a sinceridade da emoção por Pernambuco e traduz esse estado numa composição poética marcada pelo aprendizado cabralino de Educação pela pedra e sulcada por uma dicção poderosa, que exprime uma imagética igualmente soberba. O poema Aprendizado com a terra forma, com A duração, O cavaleiro, Paisagem, Reino do verde, No alpendre e Mundo, mundo, um (só) outro grande poema, que é uma lição das coisas de nosso tempo, na concepção humana e poética de Antônio Campos. A propósito, num poema (A espera) de 4 estrofes e 16 versos, é significante – e simbólico – o amontoado de termos (palavras) do campo semântico “tempo”: espera (4 vezes), momento (3 vezes), tempo (6 vezes), além de: sono, partida, instante, vôo, hora, terra, estação, sol, noite, verão, inverno, antes, depois. Destaco tal poema, graças à criatividade (com o objeto palavra) demonstrada no campo complexo da correlação semântica (mais intuitiva), em que arquétipos e ricas associações vocabulares (do eixo

sintagmático da linguagem) operam em tal freqüência, que não saturam, mas inauguram um estilo singular na nossa poética. Considerando o texto de Portal de sonhos, sob o estalão da criação poética, a poesia, esse quid, essa forma do espírito, esse plus do humano, essa marca da verdade do mundo no homem, cerca o mistério da vida, completa a existência, porque decifra o ser, conjuga-o, ilimita, torna o mundo humano – ou funda-o – conforme Holderlin asseverou, e Heiddger deu fundamento e conseqüência. De modo magistral – e poético –, Antônio Campos escreveu que a poesia é um destino. Acrescento: destino humano e destino da razão, porque a poesia instala-se no espírito e estende-se à página, quando a censura, o interdito, a oni(pré)potência do racional (egoístico e autoritário) são vencidos, superados, ou melhor, são escanteados pela força criativa que jaz no ser humano, permitindo abrir-se a baliza, pela irrupção ou extravasamento da bacia do inconsciente, dos nossos estratos (ou substratos) criativos, que nos tornam realmente humanos (que são ocultos, por definição, tornando-se visíveis ou operantes pela poesia). É aquinhoado, agrilhoado, batido, libertado por essa necessidade pela qual qualquer um se torna poeta, e nem ao menos entende essa disponibilidade, esse apoderar-se do espírito poético de seu corpo (organicamente considerado em toda a sua extensão complexa). Daí que, desde Platão, falava-se na possessão poética. É realmente uma

força que nos coloniza, nos possui, direciona ao que há dentro e assim permite ver o que há fora. Pela poesia, vemos além de qualquer simulação, distinguimos além e aquém das aparências, que é a festa do racional (monopolizador da práxis) em nossos olhos mortais. A poesia nos faz ver o invisível em todas as suas dimensões, em toda sua concretividade e conexões com o humano. É essa compulsão (ditada pelo que nos faz, torna e perdura de mais humano) que alveja o poeta Antônio Campos, levando-o a terçar armas com o poético, a escavar o id com o buril da alma em riste, a desentocar o íntimo e expô-lo a público. É uma vitória mais que pessoal a decisão de ser poeta e abrir os diques da represa do criativo, deixando o espírito correr como cavalo selvagem, para o leito da página, onde o aguarda o pasto macio e meio demoníaco da palavra – em – poesia, diva ração que Deus ao homem concedeu. Ex-positis, considero Portal de Sonhos êxito e pórtico, ingresso e fuga ao êxtase laborioso da palavra poética, a serviço da realidade do mundo humano. Ou seja, como consta do prefácio de Antônio Campos, para o livro do mestre Sébastien Joachim sobre um poeta pernambucano: a poesia é para nos compreendermos, não para sermos compreendidos. Portal dos sonhos Antônio Campos Escrituras 114 páginas 20,00 reais

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LITERATURA

Uma literatura de enfrentamento Rasif, novo livro de contos de Marcelino Freire, indica um autor de carreira firmada e obra amadurecida. A partir de agora, o maior desafio do autor pernambucano e de outros escritores da sua geração será evitar o impasse do estilo Cristhiano Aguiar

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á alguns meses, tive oportunidade de assistir a uma aula na qual foram discutidos alguns contos de Marcelino Freire. As opiniões se polarizaram: uns não gostaram dos textos, ao passo que outros estabeleceram uma conexão imediata e íntima com eles – uma paixão de nocaute. A concisa obra deste pernambucano de Sertânia, ganhador do prêmio Jabuti, aceita os riscos e o inegável fascínio do confronto: é cabeça contra cabeça – e cabeças esmigalhando paredes, mordendo caminhos através delas. O leitor pode perceber isto pelo título do seu novo livro, Rasif – Mar que arrebenta, que acaba de ser publicado pela editora Record com belas gravuras do artista plástico Manu Maltez. Na epígrafe, somos informados de que a palavra-título, de origem árabe, deu nascimento à palavra Recife, ao passo que o subtítulo é a tradução do tupi-guarani paranã-puca (que origina o nome do nosso Estado). Não se trata apenas de uma homenagem às origens. Temos aqui duas imagens que sinalizam o embate de forças que mol-

dam uma a outra: o mar, deformado em espuma por arrecifes que, por sua vez, são redesenhados, depois de anos, pela água salgada. Ora, as forças que nos deformam, isolam e assassinam são importantes temas da literatura de Marcelino Freire. Em Contos negreiros, isto é visto sob o viés do papel do negro na nossa sociedade; em BaléRalé, o enfoque recai na sexualidade. No caso de Rasif, contos como Amor cristão (“Amor é a mordida de um cachorro pitbull que levou a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe”), O meu homem-bomba, Maracabul e Meu último Natal constroem um acentuado horizonte de apocalipse social, o que aproxima o livro, neste sentido, de Angu de sangue. Em Rasif, estamos aos pedaços, rodeados pelos esqueletos das nossas edificações embargadas e pelas grandes curvas de concreto e fuligem. O primeiro conto, Para Iemanjá, funciona como um canto introdutório que nos apresenta às imagens bastante concretas e cotidianas da prosa do escritor pernambucano: “Oferenda não é essa perna de sofá.

Essa marca de pneu. Esse óleo. Esse breu. Peixes entulhados. Assassinados. Minha Rainha”. Como o leitor pode perceber, não é à toa que seus livros caem tão bem nos palcos. Sua prosa não tem apenas a cadência e as rimas do rap-repente. Trata-se de uma musicalidade cuja alma está nas músicas populares das antigas, os bregas dos bons, que tantas vezes nos contam histórias viscerais de amor (lembrem de Coração materno, de Vicente Celestino). Roupa Suja, I-no-cen-te, Os atores e Ponto. com.ponto tematizam desejos explosivos, escancarados, que muitas vezes terminam numa cartografia de pólvora retorcida em sangue. Como outros livros da ficção brasileira, hoje, os temas tratados em Rasif às vezes acompanham pautas da mídia, o que confere ao livro uma revigorante contemporaRasif Marcelino Freire Record 136 páginas 26,00 reais

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neidade. Dialogar de forma próxima com os meios de comunicação, aliás, parece ser uma importante tendência da nossa prosa atual. Muitas vezes queremos gritar contra o social junto com um texto que acompanhe nossos passos, nossas

revoltas e nosso olhar, pois com ele construímos um valor de reconhecimento de impasses. Isto implica, porém, num desafio: como escrever textos que já não nasçam tão previsíveis quanto os penteados de William Bonner? Marcelino: inegável fascínio pelo confronto

Como João Alexandre Barbosa apontava no prefácio de Angu de sangue, o importante é mudar as coisas de lugar, acrescentando ângulos inusitados ao que já foi por demais pisado. Este é o trunfo dos melhores contos de Marcelino Freire, principalmente quando optam por um bem-vindo, embora doloroso, humor. Em Rasif, é o caso do ótimo Amigo do rei, que conta o sonho de um menino pobre em virar poeta, o que angustia o pai (“Meu filho vai ser bicha. Credo!”) a ponto deste achar que seu filho está apaixonado por um tal de Manuel Bandeira. Com menos humor e mais afeto, Junior, outro bom conto, constrói uma cena tocante entre um homem casado, seu amante travesti e o filho daquele. Por outro lado, contos como We speak english, Tupi-guarani e Sinal fechado não funcionam bem. O humor do primeiro não consegue ir além da ironia pop, ao passo que os dois últimos caem nas armadilhas dos temas do dia. Rasif indica um autor de carreira firmada e obra amadurecida. A partir de agora, o maior desafio de Marcelino Freire e de outros escritores da sua geração será evitar o impasse do estilo, um dos dois fantasmas de qualquer escritor (o outro é o branco da página e tudo que ela esconde: expectativas, ambições, silêncio, indiferença). O conto-canto que encerra o livro, O futuro que me espera, talvez metaforize pontos de chegada e inquietações de partida. Nele há aquele tipo de utopia reversa que tanto nos dói, a nostalgia de um lugar que só pode ser habitado bem, bem dentro. Apesar de sombrio, Rasif, ao seu final, nos concede um acalanto, um resgate da fratura, um suspiro de alívio antes dos olhos fecharem. SET 2008 • Continente x

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MÚSICA

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Os mistérios da leitura

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Fotos: Reprodução

capítulo mais instigante de Os jovens e a leitura – Uma nova perspectiva, de Michèle Petit, intitula-se “O medo do livro” e condensa a perspectiva da especialista francesa, cujos estudos, nos subúrbios e comunidades rurais de seu país, apontam surpreendentes similitudes com a nossa realidade terceiro mundista. Afinal, para os jovens marginalizados, da França ou de Pindorama, os obstáculos ao acesso à leitura são uma das barragens à plena inserção em suas respectivas sociedades. O medo do livro é detectado primeiramente entre os detentores

do poder que, historicaOs jovens e a leitura mente, sempre recearam – Uma nova perspectiva Michèle Petit a força de conscientizaEditora 34 ção infiltrada nas pági192 páginas 36,00 reais nas impressas. Mas Petit aponta também o medo entre as próprias comunidades periféricas, onde, muitas vezes, as famílias desconhecem o hábito de ler e onde o potencial leitor muitas vezes é discriminado até por seus pares, como figura deslocada e diferente, para quem “a leitura era uma atividade arriscada”. Todo o texto é baseado em pesquisas de campo da autora e mostra algumas soluções encontradas em seu país para difundir a leitura, que passam necessariamente por uma política firme e pelo papel fundamental dos mediadores, como professores e bibliotecários. “A leitura – escreve ela a certa altura – pode ser uma espécie de atalho que conduz de uma intimidade rebelde à cidadania.” (Homero Fonseca)

> Contista revela o Sertão sem amigos

> Todo ócio de uma rotina de massacres

> Jornalista e barão do humor brasileiro

> Dando tratos ao futebol e à bola

Contista experimentado, o cearense Pedro Salgueiro retorna agora à ambiência literária com Inimigos. Desnudo de personagens elaborados para acender holofotes em quem lê, limpo de ambientações sobejamente repetidas, o Sertão se insurge num clima de alta densidade e tensão, narrativas raras. É afastado qualquer relato entusiasmado, berrante ou colorido. A chave de um rigor literário que se constitui pelo econômico da sintaxe. Que se revela pela ausência do digressivo e do explicativo. E que se perfaz nas entrelinhas e meandros dos eventos não-escritos, para lançar luz sobre o dito a partir do não dito e apenas pensado, incitando a imaginação ansiosa daquele possível leitor. (Luiz Carlos Monteiro)

Segundo livro de César Garcia, Cartas de Veneza traz um conjunto de histórias saídas diretamente do cotidiano da urbe. São narrativas convencionais, à maneira de uma conversa entre amigos, onde o propósito é apenas a confissão camarada e cínica, permeada quase sempre de vulgaridade. E, aí, tanto resvalam os detalhes íntimos e escondidos, debaixo dos tapetes da classe média, como os eventos pragmáticos da vida do dia-a-dia. Personagens são vistos em motéis, no trânsito, em família, nos restaurantes ou em turismo pelo mundo. Que se comportam como quem jamais consegue se afastar, mesmo no ócio, de uma rotina massacrante, castradora e extremamente rigorosa em suas exigências. (LCM)

O gaúcho Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly marcou época na imprensa brasileira por quase meio século, sob o pseudônimo de Barão de Itararé – numa referência à batalha que não houve. O fascinante personagem é o protagonista do monólogo A manha do Barão, do dramaturgo e cineasta paraibano Ipojuca Pontes, numa reconstituição ao mesmo tempo livre e bastante fiel da vida do demolidor jornalista que cunhou algumas expressões, hoje praticamente de domínio público, como: “Há alguma coisa no ar além dos aviões de carreira” e “O Estado Novo é o estado a que chegamos”, esta última terminou lhe valendo uma passagem pela cadeia. (HF)

Um livro cujo autor, o jornalista gaúcho Cláudio Lovato Filho, explora o imaginário que envolve o outrora ludopédio, rude esporte bretão, mais conhecido como futebol. São 17 contos que envolvem personagens ligados à maior atividade esportiva praticada em inúmeros campos do país, tais como o artilheiro pereba, o treinador decadente, o gandula, o maqueiro, o craque batedor de faltas, entre outros. Envolvidos em histórias muitas vezes comoventes, dramas individuais, que descambam em tragédias, como a do atacante que se mata com um tiro, em frente ao estádio em que atuava ou a do zagueiro, traído pela mulher com um companheiro de clube, e que, em jogada sutil, num treino, quebra a perna do rival. (Luiz Arrais)

Inimigos Pedro Salgueiro 7 Letras 104 páginas 27,00 reais

Cartas de Veneza César Garcia Bagaço 136 páginas 20,00 reais

A manha do Barão Ipojuca Pontes A Girafa 100 páginas 27,00 reais

O batedor de faltas Cláudio Lovato Filho Record 128 páginas 28,00 reais

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MÚSICA

A visão crítica e melancólica de um palhaço

O

herdeiro de uma rica família alemã renuncia a tudo para seguir sua vocação: ser um palhaço. Seduz e foge com a filha de um dos poucos homens que admira e cai no mundo para uma existência feliz até que a mulher o abandona; ele começa a beber, decai como comediante e termina levando uma queda que o deixa

quase impossibilitado de Pontos de vista de se mover. Começa então um palhaço a se debater emparedado Heinrich Böll Estação Liberdade entre as conseqüências 312 páginas de sua integridade moral, 43,00 reais sua incapacidade para a mentira, sua coragem desesperada e uma irresistível melancolia, afinal, “todo verdadeiro palhaço é um melancólico”. Escrito com maestria pelo Prêmio Nobel alemão Henrich Böll (foto), este romance faz uma crítica feroz ao catolicismo (pela sua moral hipócrita), ao capitalismo (pela sua avareza) e ao nazismo (pela intolerância), mas sem cair na simples condenação maniqueísta e, sim, sabendo ver as nuances que formam a riqueza do ser humano. A narrativa é veloz e sedutora, envolvendo o leitor na derrocada de um personagem que permanecerá em sua memória por muito tempo. (Marco Polo).

> Baixarias entre gênios da filosofia

> Épico de uma cruel guerra civil

> Não há nada que buscar nem esperar

> As fantasias com seres de carne e osso

Embora não concordassem em vários pontos, o suíço Jean-Jacques Rousseau e o inglês David Hume, dois dos maiores pensadores do século 18, tinham uma relação de grande amizade. Mas um episódio, que realçou a paranóia do primeiro e o senso de humor mesquinho do segundo, acabou por sepultar a relação entre os dois. Os jornalistas que assinam este livro procuram, através do conflito, contrapor o ceticismo e o racionalismo de Hume à emoção e estilo personalizado de Rousseau. Do todo, entretanto, sobra a percepção de que, por mais superiores que sejam os gênios, nem sempre seus caracteres estão a salvo das pequenezas dignas dos mais cretinos. Coisas da condição humana (MP)

O multipremiado escritor norteamericano E. L. Doctorow, autor do romance Ragtime, também transformado em filme, volta com este A marcha, um épico sobre a guerra civil que dividiu os Estados Unidos entre Norte e Sul, em 1864. O romance se centra no avanço das tropas do general Sherman, saqueando as plantações sulistas, apropriando-se da colheita, do gado e dos escravos (tornados libertos), deixando um rastro de milhares de mortos. Em meio ao grande caos, surgem os dramas particulares não só do próprio general, como de outros personagens como uma bela escrava emancipada, dois soldados desajustados, a filha de um juiz sulista e um coronel-cirurgião. (MP)

A água e a pedra, o mar e a cidade. O mar, o espaço, a cidade, o limite. Mas, para os dois, o silêncio. E a sombra, que é também “a face mais visível do silêncio”. É dentro deste negativismo beckttyano que se constrói a poesia de Wassily Chuck, uma poesia em tom menor, mas escrita em prosa, dentro de um ritmo pausado, quase solene. “Nada perguntes à pedra”, aconselha ele. “Depois do naufrágio, pedaços de alma e sonho, restos de ti boiando na solidão das ondas”, constata. Não há o que esperar; não há mesmo nem o que buscar. O niilismo de um mundo sem crenças é a única coisa que resta para o homem. Para este poeta, o mundo, realmente, não termina num estrondo, mas num suspiro. (MP)

O britânico Neil Gaiman ficou mundialmente famoso pela série de histórias em quadrinhos Sandman, mas é também roteirista de filmes e séries para a TV, além de romancista. Coisas frágeis é sua segunda coletânea de contos e revela o poder de sua imaginação para compor estórias fantásticas. Embora o sinistro ronde sempre seus engenhosos enredos, há muito de poético, no estilo do escritor de ficção científica Ray Bradbury, para quem, aliás, o livro é oferecido. Gaiman, como o norte-americano, se interessa pelo ser humano em suas carências e fragilidades, e estabelece uma grande empatia entre o leitor e seus personagens. Mesmo quando entra no terreno da fantasia pura, ainda assim consegue emocionar. (MP)

O cachorro de Rousseau David Edmonds/John Eidinow Nova Fronteira 384 páginas 49,90 reais

A marcha E. L. Doctorow Record 418 páginas 39,00 reais

Silêncios de água e pedra Wassily Chuck Ateliê Editorial 140 páginas 36,00 reais

Coisas frágeis Neil Gaiman Conrad 208 páginas 38,00 reais

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conto >> Bartolomeu Correia de Melo Relancim

P

OIS digo duma estória demais repetida – meio gaiata, meio herege – tida como passada em diversos lugares, com diferentes pessoas. Desses muitos contares – uns fativos, outros, nem tanto – nenhum com autoria confirmada. Embora com feitio de anedota, desde prosas de bodega até escritas de livro, sempre referida como sumo de verdade. Segue vagueando, tempo afora, sem rumo, nem dono, feito burro quando foge, sem cor nem figura definida. Sou bronco; não decifrando leituras, me obrigo na crença e valia daquilo visto e ouvido. E muito avistei e escutei, bem apontado e melhor contado, pelo doutor Luizim da Ribeira – sabença sem pedâncias e lordeza sem bondades. Desse um, por saudosos tempos, fui chamado “fiel escudeiro”; decerto que jeito nobre dele dizer xeleléu. Eu pariceiro menor e honrado, naquelas andanças meio malucas, beirando praias e varando tabuleiros, num prazeroso vaquejo de estórias e cantigas. Como bem, esse reconto de agora, preado no Ceará - Mirim, meu finado patrão nunca publicou, pois alguém lhe chegara primeiro. Naquela macha fineza dele, sempre fora demais escrupuloso pra jamais apoderarse de nadinha constado em livro alheio. Ah, nisso dou fé de jura! Garanto estória colhida aos pedaços, quase sem desditos, de sisudas bocas. Anotada e discutida, rascunhada e relida, revista e reescrita; pois, que Deus o tenha, sempre assim procedia. Fazeres estes, quase

todos, comigo sempre enxerido, presente ou ciente. Daí, dentre outras, essa bem restou-me na lembrança; tanto que, repito nos tintins, querendo troncho arremedo daquele jeitão sabido e gozado dele contar coisas. Era daqui mesmo, esse um; dali das barrancas do Rio dos Índios. Nascido e criado nas malocas derradeiras que – faz tempo – a cheia grande carregou. Que era bugre de pai e mãe, quem o encarasse não duvidava. Sem espanto nenhum, pois que, pelas várzeas do vale, ainda muito resta de quanta gente bem chegada nesta raça. Eu mesmo, por parte de bisavó – diz-que pega a casco de cavalo – puxado em cabelo grosso e cara acobreada, tal sangue não renego. Atendia por Boré, palavra índia pra dizer corneta. Se bem que corneta, corneta demesmo, não. Coisa assim que valha mais pra apitão de taquara rachada (de toado estridente, que nem seu vozeirão) usado pra espritar reza de pajé. Mas diz-que outros mais informados decifram o dito nome como sendo apelido ganho pela ruindade malcheirosa do fumo que mascava. Bem, seu doutor Luizim ficava matutando entre essas duas razões. Eu, porém, palpito que assim lhe chamavam, apenasmente, como um jeito mais ligeiro ou preguiçoso de dizer Caboré. Pois todos falavam num par de olhões acesos, mais afastados do que carecia a venta miúda, numa carona redonda de coruja. Mas, de qualquer jeito

– tirante avulsas pendengas entre sapiências e sabichâncias – assim de Boré chamavam a tal presepeira figura, de há muito já finada e ainda não esquecida. Nos seus tempos de vida e saúde (e bote saúde nisso!) havia, sem falhar ano, a festa da “Invenção da Santa-Cruz”... Mas, peraí, que, nesse meio, vem outra estória. Antes disso, carece lembrar uns outros sucedidos. O velho cruzeiro da Vila da Boca da Mata – depois chamada Ceará - Mirim – teve seu lugar primeiro defronte à capela de Sant’Águeda, fincada na Rua Grande. Diz-que o povo, mesmo depois de erguida a matriz, fiel aos costumes, teimava na freqüentação da antiga capelinha. Aí, no intento de chamar devotos pra igreja nova, a santa-cruz foi removida pra defronte da matriz. Porém, mesmo depois da mudança de lugar, o povo continuou rezando mais à santa-cruz que à santa padroeira. Então, dali de pertinho, bendizer nas barbas do padre, mais-e-mais, mostrou-se a preferência. Daí que, talvez por desimpaciência do vigário – quem ele, não sei – tangeram o cruzeiro ladeira acima, até adonde, inda hoje, se encontra, na chamada Rua da Cruz. Pois bom – tornando ao assunto – quanto a essa tal “invenção”, palavra metida no nome da dita festa, assim nos foi contado. Diz-que, devedor de milagre, um mestre fogueteiro de mão-cheia, por mostra de gratidão, começou festejo ao derredor da santa-cruz. Singela novena de rosários e cantos de ladainha enfeitados com fo-

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SOBRE O AUTOR

gos-de-vista. Acontece que aquela função findou mais acudida que a festa da padroeira. O padre, por despeito ou desfeita, chamava a festa de “aquela invenção do fogueteiro”. Perdeu-se no tempo o nome desse inventor, restando somente o inventado. Nesses quandos de muita ignorância e pouca tolerância, tal devoção quase virava seita de veneração ao cruzeiro. Seus fiéis, sonhando construir uma capela, deixavam muitas esmolas numa caixinha ao pé da cruz, toda adornada de fitas e velas acesas. Mas nada de erguerem a igrejinha, diziam os zeladores, por falta de mais esmolas. Um belo dia, a coisa piorou; notou-se que a féria diminuía. Somente saíam da caixa moedas de tostão, num misterioso sumiço dos vinténs, cruzados e mil-réis. Até que, certa vez, nas altas horas frias, um passante deparou com um vulto ajoelhado aos pés da santa-cruz; parecia rezar. Nele conheceu o caboclo Boré, alumiado pelos derradeiros tocos de vela. Chumbado como sempre, baralho enlecado na mão, falando sozinho. Na pouca distância, ninguém deixaria de escutar aquela voz de carro-de-boi. “Boas-noites, Sinhá Cruzinha, como tem passado? Pois é, assim-assim, entre o céu e a terra, um milagrim aqui outro acolá? Eu também vou indo, bem melhor que merecido, pois pouco pede quem pouco merece. Fhum! Mas, depau-pra-cacete, com todo respeito, vosmicê brinca de relancim? Ora, pois lhe digo ser facim, facim... Se me duvida, lhe ensino; agorinha mesmo, minha Santa. Pecado que nada! Fhum! Santa não peca... Vamos umazinha, somente pra traquejo? Deixe comigo que bem lhe amostro. ...Essa vossa, essa minha, essa vossa, essa minha... Deixa ver... Pronto! Sua vez, agora. Hi, jogou bonito, Sinhá! Apois tome

um sete! Deixa ver... Xi, bestei de novo! Três trincas, muito que lhe bem, não é que já ganhou? Viu direitim como se joga, né? Apois, dessa mão em vante, vamos de vera! Casando quanto? Vintém? Não, vintém é pouco; fichinha de caboclo! Cruzado! Preço mais de acordo com vossa majestade! Fhum! ...Essa vossa, essa minha, essa vossa, essa minha... Sinhá Cruzinha, me empresta um trocado? Isso basta, brigadim, pela fineza! Deixa ver seu jogo, minha Santinha.... Eita, joguim fraco! Mas há de melhorar. Começo eu... He, he! Com perdão do dito, sendo do home, gato não come. Descarte. Bati! Perdoe, foi sem querer... Agora, cada trinca voga uma mão, certo? Fhum! Assim jogo corre mais aligeirado! Vamos outra, a negra. Vosmicê querendo, vossa sorte há de chegar! ...Essa vossa, essa minha, essa vossa, essa minha... Pronto, lhe pago o emprestado. Agradecido. Já tenho com que aposte! Fhum! Deixa chorar vossas cartas... Arre, minha santinha, que joguim ruinzim!... Mas, baráio bota, baráio tira, doidiças do azar. Puxe. Melé não vale! Puxo eu. Trinca de damianas! Ai, ai; não é que ganhei de novo? Decerto que foi por vossa graça e caridade! Quer tirar o prejuízo? Diz-que dobrando a aposta a sorte vira... Entonce, vumbora a mil-réis! ...Essa vossa, essa minha, essa vossa, essa minha... Eita, parada roxa, esta. Agora vale melé. Aleluia, que, dessa vez, já vim batido! Pague logo pra ser feliz! Fhum! Não se arrelie; digo assim brincando... Não, tostão não conta; fica pra conga da casa. Ora, isso é de jogo, mesmo! Desculpe aí meus maljeitos, sua benção minha madrinha... Mais tem Deus pra lhe prover. Amanhã, como sem falta, a gente brinca de novo! Passe bem, obrigado, amém.” Se me duvida que assim aconteceu, apois cascavilhe nos apontos da delegacia...

Bartolomeu Correia de Melo Nascido em Natal, 1945, e considerado a maior revelação do conto potiguar, nas últimas três décadas, surgiu cinqüentão, quando, já bastante conhecido como pesquisador e professor de Química, estreou em 1977 com o livro de contos Lugar de estórias, laureado com o prêmio Joaquim Cardozo da União Brasileira de Escritores e reeditado em 1988 e 1998. Em 2002, publicou nova coletânea – Estórias quase curtas, pelas Edições Bagaço, Recife, como a anterior, de grande unidade temática e formal.

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poesia>> Cláudio Daniel

SOBRE O AUTOR

Gabinete de curiosidades Sex shop Tufos pretos e umbigo impreciso na fresta vertical em colunata.

informa os clientes sobre os hábitos noturnos de morcegos e pelicanos, Com a esperada dedicação de quem ama o seu ofício.

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Revistas de fitness fumam cigarrilhas de canela importadas da Indonésia. Faces sóbrias e ponderadas como repolhos avaliam o crescimento do superavit primário. Há um minúsculo globo ocular na xícara de café expresso.

E um singelo par de algemas com a palavra love escrita em runas ancestrais.

Tortas de queijo e presunto têm selos de qualidade internacionais e as embalagens dos produtos passam por leitura ótica.

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Claudio Daniel Poeta, tradutor e ensaísta, nasceu em 1962, em São Paulo, onde se formou em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Atualmente, cursa o mestrado em Literatura Portuguesa na Universidade de São Paulo. É editor da revista literária Zunái. Publicou, entre outros títulos, os livros de poesia Sutra (edição do autor, 1992), Yumê (Ciência do Acidente, 1999), A sombra do leopardo (Azougue, 2001) e Figuras metálicas (Perspectiva, 2005).

Nossa missão é atingir e superar as expectativas dos clientes, diz a gerente de marketing (no seio esquerdo, ela tatuou uma pítia da Groenlândia). Há uma boca retorcida no elegante toalete do café, com peças sanitárias de primeira linha e secadores de mãos automáticos. Cabeças de executivos são caixas registradoras com um estoque limitado de palavras. 2007

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Violeta do Sertão

A trajetória de Violeta Arraes, militante da política e da cultura, cuja atuação estabeleceu um surpreendente eixo Crato-Paris, passando pelo Recife e pelo Rio

Fotos: Arquivo de família

PERFIL

Tereza Rozowykwiat

Com o irmão Miguel, no Recife, década de 60

U

ma pessoa absolutamente eclética. Assim era Violeta Arraes de Alencar Gervaiseau, socióloga, psicóloga e militante política, dentre outras qualificações. Seria ela a Violeta do Sertão ou a Rosa de Paris, como costumavam chamá-la em função da forma como acolhia, em seu apartamento no Marais, os exilados que chegavam expulsos do Brasil pela ditadura militar. Ela, de fato, era Rosa e Violeta. Era de Paris e do Sertão. Dona de uma cultura que abria portas para os diversos ramos do conhecimento, SET 2008 • Continente x

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PERFIL utilizou este aprendizado dentro de uma visão internacional e ao mesmo tempo com profundas raízes regionais, adquiridas à sombra da Chapada do Araripe. O principal, entretanto, é que por qualquer ângulo pelo qual olhasse não perdia seu referencial ideológico, sempre voltado para a defesa dos direitos humanos e para a redução das desigualdades sociais. Irmã mais nova do ex-governador Miguel Arraes, Violeta, falecida recentemente, conseguiu trilhar uma trajetória própria, apesar da forte identidade de pensamento que unia os dois. Nasceu na cidade do Araripe, no Ceará, em 1926, numa família de bases fortemente rurais. Em 1940, fixou residência no Rio de Janeiro, onde iniciou sua militância política vinculando-se a Dom Helder Câmara através de trabalho desenvolvido no Secretariado Nacional da Ação Católica, ao mesmo tempo em que cursava a graduação em Sociologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC), integrando a Juventude Uni-

versitária Católica (JUC), da qual foi presidente. Voltou ao Recife em 1951, quando se casou com o sociólogo Pierre Maurice Gervaiseau, após uma temporada na França, onde estudou no Centro Internacional de Economia e Humanismo, dirigido pelo Padre Lebret. Em 1958, por ocasião da posse de Miguel Arraes na Prefeitura do Recife, transferiu-se para Pernambuco, engajando-se, ao lado de Paulo Freire, no Movimento de Cultura Popular (MCP), que reunia artistas e intelectuais de todas as áreas com o objetivo de promover um modelo de alfabetização vinculado à conscientização política. Para tanto, o MCP lançou mão não só da educação, mas também das artes plásticas, teatro, atendimento à saúde, formação profissional e música, ou seja, de tudo que pudesse servir como alavanca para o despertar da cidadania. Violeta, além de participar das ações relacionadas à educação de base, desenvolveu paralelamente atividades artísticas e literárias, além de se envolver com o Cinema Novo.

O golpe de abril de 64 trouxe em seu bojo não só a deposição do ex-governador Miguel Arraes e das principais lideranças brasileiras, como caiu feito uma bomba no MCP, que teve todos os seus arquivos incendiados e suas lideranças presas. Dentre os presos estava Violeta Arraes, detida quando visitava, junto com o marido, Dom Helder, no primeiro dia em que este assumia o Arcebispado de Olinda e Recife. Depois de quatro meses de detenção, foi expulsa do Brasil, passando a residir em Paris. Na França, Violeta voltou a se destacar. Fez o curso de pós-graduação em Psicologia no Centre Psychopedagogique Claude Barnard e na Sorbone, passando a atuar nesta área, através do Service du Docteur Widlocher-Hospital de la Pitié-Salpêtrière. Começa aí a construir o que seria chamado mais tarde de “embaixada alternativa do Brasil”, isto é, transformou seu apartamento numa espécie de ninho para acolher os brasileiros que chegavam a Paris depois de

Pierrre Gervaiseau, Rosa e Celso Furtado, em Paris

Gil, Violeta e Pierre, no apartamento do casal, em Paris

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passarem por câmaras de tortura ou sofrerem qualquer tipo de perseguição que os obrigava a buscar asilo em outro país. Sua sala foi transformada em local de decisivas reuniões políticas, mas também em ponto de encontro de artistas e intelectuais que buscavam compreender o que acontecia no Brasil e num mundo marcado por regimes autoritários. Por lá passaram, dentre outros, Celso Furtado, Josué de Castro, Waldir Pires, Luciano Martins, Luís Hidelbrando Pereira, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Foi na residência da família Gervaiseau, formada por Pierre, Violeta e seus três filhos – Maria Benigna, Henri e João Paulo –, que surgiu a Frente Brasileira de Informações, jornal que se configurava como principal veículo para a denúncia das torturas e dos crimes cometidos por regimes ditatoriais contra os direitos humanos. O informativo não se limitava ao que ocorria no Brasil. Abrangia ainda a perseguição ao nacionalismo em

Violeta com dom Helder – a quem se vinculou desde a década de 40

países como Moçambique, Angola e Guiné-Bissau e aos absurdos cometidos pelos governos militares que se instalaram na América do Sul. Militantes vindos desses locais encontravam guarida e apoio na casa de Violeta. Em 1979, ela retornou ao Brasil, após a assinatura da Lei de Anistia. Em 1984, voltou à França para trabalhar como adida do Projeto França-Brasil, através do qual realizou importantes ações na área de cultura, com destaque especial para a Exposição de Arte Popular Brasileira, no Museu de Arte Moderna. Mas foi em 1988 que se pode dizer que Violeta agarrou com força suas raízes. Convidada pelo então governador do Ceará, Tasso Jereissati, assumiu a Secretaria de Cultura do Ceará. Talvez tenha ido buscar no antigo MCP sua maneira de encarar o novo desafio, empenhando-se na conscientização política através das manifestações culturais. Preocupada com o patrimônio histórico do Estado, restaurou o Theatro José

de Alencar e o Arquivo Público, em Fortaleza. A partir de 1997, interiorizou mais ainda suas ações ao assumir a Reitoria da Universidade Regional do Cariri (Urca), onde permaneceu até 2003. Uma de suas principais iniciativas foi a criação da Fundação Araripe, sediada no Crato, que tinha como objetivo preservar a caatinga na Chapada do Araripe. Violeta criou novos cursos, estabeleceu parcerias internacionais, especialmente para o desenvolvimento de estudos de paleontologia, e construiu o Museu Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, além de ampliar o Museu de Paleontologia. Violeta morreu no Rio de Janeiro, no dia 20 de junho deste ano, vítima de um câncer de pulmão. Recebeu homenagens de intelectuais e políticos do Brasil e do exterior. Em seu velório, Caetano Veloso cantou Cajuína, uma ode à sensibilidade nordestina, conseguindo traduzir em música e poesia a personalidade da Violeta do Sertão, conhecida como Rosa de Paris.

Secretária de Cultura do Ceará, homenageando Patativa do Assaré

Com Brizola, José Almino e Arraes, no Rio, anos 90

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Imprensa no Brasil

200

anos

CRÔNICA

Lembranças do Recife Antônio Maria

C

arta de amigo, dizendo que a gente nem se lembra dele; no‑ tícia de doença na família, telegra‑ ma de jornal, contando a morte do pastor presbiteriano, Jerônimo Gueiros – tudo isto chegou num dia só e acendeu estas cinco lem‑ branças do Recife. ***

Antônio Maria Araújo de Morais nasceu no Recife, em 17 de março de 1921. Cardiopata desde a infância, faleceu fulminado por um enfarte na madrugada de 15 de outubro de 1964, em Copacabana, quando se dirigia para o restaurante Le Rond Point. Bom de copo e de garfo, se auto-intitulava “cardisplicente”, uma mistura de cardíaco com displicente. Radialista, jornalista e dramaturgo, como compositor deixou alguns clássicos da MPB, entre os quais Ninguém me ama e Manhã de carnaval. Considerado um dos grandes cronistas brasileiros de todos os tempos, teve uma antologia de seus textos reunidos por Ivan Lessa em O jornal de Antônio Maria, em 1980. Nos 30 anos de sua morte, a pesquisadora Alexandra Bertola editou pela Paz e Terra Com vocês, Antônio Maria, com vários textos inéditos em livro.

Leia mais crônicas de Antônio Maria www.continenteonline.com.br

Íamos à missa das seis e meia, todos os domingos, no Colégio Marista. Quando comungávamos, tínhamos direito a várias xícaras de café, meio pão e manteiga Sa‑ biá. Depois, vínhamos andando ao longo da rua Formosa para tomar conta do domingo, que nos ofere‑ cia os seguintes prazeres. Das nove às onze, jogo de botão, em dispu‑ ta de um campeonato que nunca terminou. Ao meio‑dia, violento almoço de feijoada, com porco assado. Às duas, pegar o bonde da Avenida Malaquias e assistir a mais um encontro entre Náutico e Esporte, acontecimento da maior importância na plana existência do Recife. Depois, voltávamos cansa‑ dos, íamos ao Politeama – se so‑ brasse dinheirinho – e dormíamos de consciência tranqüila, o longo sono dos que ainda não foram ao Vogue, ao vento do Capibaribe, fresco, sem umidade, macio, sem cheiro de Botafogo e Leblon. Quan‑ do voltávamos da missa, porém, na metade da rua Formosa, pará‑ vamos em frente à igreja do senhor Jerônimo Gueiros e, sem o mínimo respeito àquele homem inteligente, culto e virtuoso, gritávamos: “Cala a boca, burro!” Os irmãos maristas eram muito rigorosos em relação ao nosso comportamento na rua. Mas achavam muito engraçado quando interrompíamos a prédica do pastor.

*** Os preparativos para as regatas da rua Aurora assanhavam todo o bairro da Boa Vista. Três dias antes começavam a armar as arquiban‑ cadas, em três lances, cada uma pintada de uma cor, para serem en‑ tregues, depois, aos torcedores do Barroso, do Náutico e do Esporte. O primeiro páreo era de estreantes e não despertava grande interesse. Mas, depois, a coisa esquentava e a vibração dava chilique nas mu‑ lheres, cólera nos homens, sangue quente, enfim, em toda a murada do rio. Os portugueses do Barroso chegavam em primeiro lugar, mas o que interessava era a luta entre o Náutico e o Esporte, na disputa da segunda colocação. Pelas calça‑ das, depois do último páreo, mui‑ ta roupa de linho branco, sorvetes de maracujá e mangaba, grupos de oito moças, de braços dados, ocupando a calçada toda, risos, sem‑vergonhice sem pecado, en‑ contro marcado para a primeira sessão do Parque, ao fim da qual começava a fadiga de todos nós e o desencanto por tudo o que não fosse: cama de lona, lençol até a cintura, janela aberta, brisa do rio, sonho sem o menor interesse para a psicanálise. A Procissão de Enterro saía na Sexta‑Feira Santa. Lenta, acompa‑ nhada por uma orquestra de trom‑ bones de piston, tubas e clarinetas, lá vinha, com os seus paramentos roxos, com as irmandades dos ho‑ mens pálidos. A Paixão e a Morte de Cristo acontecia em cada um dos nossos corações e culminava ali, no enterro do Salvador. Ficá‑ vamos na janela pedindo a Deus que o caixão não parasse em nos‑ sa porta. Diziam que, em frente à casa onde a procissão fizesse uma

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Imagens: Reprodução

Paisagem do Recife, sem data

parada, morreria um. E era mes‑ mo. Todo ano a Procissão de En‑ terro parava em frente à casa de minha avó... e, todo ano, morria gente.

der o riso, mais ríamos. No quarto a viúva acordou e, com a voz muito sofrida, gritou de lá: “Não chorem tanto, meus filhos. A alma de Au‑ gusto, a esta hora, está no céu!”.

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Fomos velar o corpo de um pa‑ rente distante. Depois de certa hora, deram‑nos bolacha Maria, chá e fo‑ ram descansar um pouco, deixando o corpo entregue à nossa guarda. Lá para as tantas, minha prima achou que devia mudar um dos quatro cí‑ rios da volta do morto. No que fez força para colocar o círio novo, o castiçal cedeu, ela caiu, bateu com o pé no caixão e o querido defun‑ to só se salvou do tombo porque todos nós, num pulo de bicho, o seguramos no ar. Dali por diante, deu um nervosismo e começamos a rir, sem parar, muito alto, e, quanto mais nos esforçávamos para pren‑

Quando eu fiz quinze anos, ganhei um relógio de pulso e cin‑ co mil‑réis. Olhei os ponteiros, vi que era hora de fazer uma besteira e entrei no botequim. Estávamos veraneando em Boa Viagem e, quando era de tardinha, o pessoal da minha idade vinha, de banho tomado e roupa limpa, inventar mentira sobre as moças – namo‑ ros, bolinagens veladas, agrados sinistros, tudo mentira, tudo ima‑ ginação. No dia dos meus anos, em vez de conversar essas coisas, compramos uma garrafa de baga‑ ceira Pingo de Uva e eu, sozinho, para ganhar uma aposta de dois

mil‑réis, bebi toda. Anoiteceu, me deixaram na praia, a maré desceu e me levou. Quem deu por mim foi um negro chamado Paulo, que tinha ido molhar os pés na franja da onda. Não sabia onde eu mo‑ rava, nem o nome de minha mãe. Saiu, andando comigo no ombro, perguntando a todo mundo e, aos poucos, mais de cem pessoas acompanhavam o menino bêba‑ do, desacordado, que o mar ia le‑ vando. Quando acordei eram três da madrugada e minhas irmãs choravam ao pé da minha cama. Quando compreendi a gravidade daquele momento, comecei a cho‑ rar também – choramos em coro, cinco pessoas, até seis horas, sem dizer uma palavra, quando dor‑ mimos abraçados, com o pecado e o sofrimento lavados pelas nossas lágrimas quentes. (Publicada em O Jornal, em 25/4/1953) SET 2008 • Continente x

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José Cláudio

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A pintura histórica: Abreu e Bolívar

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uando eu era pequenino que mal sabia falar fui convocado pela minha primeira professora D. Dulce Marques Barreto para recitar uma poesia no regresso do nosso ilustre vigário de Ipojuca Frei Venâncio depois de umas férias na Alemanha sua terra natal. Apesar de ter somente cinco ou seis anos de idade lembro nitidamente da festinha na sacristia do convento e, da poesia, que nunca mais vi, esses dois versos: “Quero ser Vítor Meireles/ Eu quero ser pintor”. Se for mentira eu choche. Tanto que seu Virgílio dono do hotel, amigo de longa data de meu pai, costumava me chamar Zélis Teles de Meireles, juntando meu nome Zé ou Zezé ao de Vitor Meireles e ao do nosso grande pintor Jerônimo José Teles Júnior (Recife, 1851-1914). Demorou muito para eu saber o que vinha a ser “pintor”, exceto de parede,

que na loja de meu pai se vendia tinta, roxo-rei, roxoterra e alvaiade, pó preto, as maravilhosas barricas de pigmentos vindas da Bélgica, iguais às de bacalhau, mas tendo dentro as cores mais luminosas que já vi, amarelo, vermelho, azul que me deslumbravam. Demorou muito mais para saber quem eram Vítor Meireles cuja Batalha dos Guararapes saía na capa de um caderno de desenho e, muito depois, Teles Júnior, cuja tela Cobra coral é uma das preferidas do pintor Francisco Brennand. Engraçado essa citação de Vítor Meireles, nascido exatamente cem anos antes de mim (Desterro, atual Florianópolis , SC 1832 / Rio de Janeiro, RJ 1903) como se fosse uma predestinação que me ficou encalacrada mais como um nome do que pelas pinturas Batalha dos Guararapes, Primeira missa no Brasil, Combate naval de Riachuelo e outras. A Batalha dos Guararapes, quadro pintado em 1875, por ser um dos ícones da pintura acadêmica brasileira, me inibiu para a chamada “pintura histórica” embora eu tenha me tornado um entusiasta da mesma pintura histórica sem me dar conta através dos murais de Diego Rivera (Guanajuato, México

Estudo para Bolívar, Manuelita e Abreu e Lima; Na página ao lado, Estudo para a Batalha de Carabobo

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Imagens: José Cláudio

A Batalha dos Guararapes, por ser um dos ícones da pintura acadêmica brasileira, me inibiu para a chamada “pintura histórica”, embora eu tenha me tornado um entusiasta da mesma através dos murais de Diego Rivera

1886 - Cidade do México 1957), o primeiro deles pintado por coincidência no Anfiteatro Simon Bolívar, Escola Nacional Preparatória, Cidade do México, A Criação, 1922-1923. Como assinalo no livro Carybé, de Bruno Furrer, Odebrecht, 1989, onde escrevo um trecho, Carybé (Lanus, Argentina 1911-Salvador, BA 1997) considerava A Batalha dos Guararapes de Francisco Brennand “o melhor mural que existe no Brasil”. Temos aqui no Recife os magníficos painéis das batalhas, 1709, autor ignorado, com a enxutez de quem tem uma história para contar, embora Vítor Meireles tenha dito: “De nenhum merecimento artístico são aquelas pinturas” citado numa apresentação de José Luiz Mota Menezes à exposição Guararapes – As Duas Batalhas/ O olhar dos Artistas organizada por Vera Magalhães em 1994 no Museu do Estado, de que participei ao lado de outros artistas da terra. Mas só vim tomar gosto na parada em 2007 por influência do escritor Paulo Santos, autor do romance histórico A Noiva da Revolução

já na segunda edição aqui e uma terceira em Portugal, que quis porque quis que eu fizesse a capa do livro e, em seguida, criasse a cena da apresentação pública da bandeira da revolução de 1817, uma data redonda, 190 anos no ano passado, tendo sido criado pelo governador Eduardo Campos o Dia da Bandeira de Pernambuco, justamente a de 1817, 2 de abril. A tarefa agora é acompanhar em suas aventuras pelas Américas O General das Massas, título provisório do novo livro de Paulo Santos, sobre o pernambucano Abreu e Lima, que lutou ao lado de Bolívar na onda libertária que percorreu a América Latina em conseqüência da vacância do poder central, a Espanha, sob o domínio de Napoleão Bonaparte, época do quadro de Goya Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808, mesmo ano da vinda de Dom João VI, a que se seguiu a criação do Império do Brasil. Vale salientar que em 2010 comemora-se em todo o continente latino-americano o bicentenário dessas lutas de independência como propôs o escritor mexicano Carlos Fuentes. Estamos aí. SET 2008 • Continente x

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TRADIÇÕES

Uma pergunta chamada Zé Limeira

Livro de Orlando Tejo ganha 11ª edição pela Calibán, organizada pelo poeta Majela Colares

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Astier Basílio ga sobre a existência ou não do poeta negro, alto, de voz de aço e de lenço encarnado no pescoço, Tejo dá de ombros e num sorriso despista o interlocutor, evocando o discurso forense do tempo da Faculdade de Direito do Recife, onde se formou advogado, profissão que nunca exerceu: “Em caso de dúvida, pró réu. Quem diz que Zé Limeira não existe, vai ter que provar a inexistência dele”, safa-se, meio sério, meio brincando. Tejo não foi o único nem o primeiro a registrar a existência de Zé Limeira. Antes da primeira edição de Zé Limeira, o poeta do absurdo, publicada em 1971, o menestrel Vital Farias publicara o cordel Zé Limeira, o surrealista dos pobres. O repentista José Alves Sobrinho, que aparece em várias passagens do livro de Tejo cantando com Zé Limeira, registra a vida e obra do Poeta do Absurdo num verbete em seu livro Dicionário biobibliográfico de repentistas e poetas de bancada,

Ilustração: Zenival

aneiro de 1969. Quando Orlando Tejo chegou à sua casa, a pé, dona Nevinha estranhou: “Cadê o jipe, meu filho?”. O jornalista trazia debaixo do braço uma máquina de escrever portátil, uma Elgin de cor azul clara. “Troquei nessa máquina aqui”, informou. “Meu filho, o seu carro levava você a tanto lugar”, a mãe se impacientou. Tejo então profetizou: “Com o que eu vou escrever aqui mãe, eu vou viajar mais longe”. E viajou. Naquela máquina, Tejo escreveria um livro que criaria polêmicas, venderia milhares de exemplares e imortalizaria um poeta que tinha tudo para ficar restrito às brincadeiras dos cantadores, vindo a inspirar, posteriormente, músicos como Belchior, Zé Ramalho e Siba Veloso. Além disso, a obra Zé Limeira foi adotada na Universidade de Sorbonne, na França, por iniciativa do professor Raymond Cantel. A mais recente edição de Zé Limeira, o poeta do absurdo, a 11ª, já está nas livrarias. Para quem inda-

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escrito em parceria com o pesquisador Átila Almeida. De acordo com Sobrinho e Almeida, Zé Limeira é o pseudônimo de José Galdino da Silva, nascido em Campina Grande, em 1899 (a versão de Tejo diz que ele nasceu em 1886) e falecido em Teixeira, em 1955. No verbete se diz que “mais de 90% dos versos que lhe são atribuídos foram fabricados em Campina Grande e João Pessoa, a pedido e por encomenda”. O verbete se contradiz. Em princípio afirma: “Vez por outra Zé Limeira saía da realidade, o que não quer dizer que fosse o desmiolado, e cômico dizedor de disparates”. Em seguida, diz que “Limeira (...) era capaz de confundir Belém da Judéia com Belém de Caiçara”. Num ponto os dois concordam. Tanto a versão de Tejo quanto de Sobrinho batem, quando se referem à fisionomia de Limeira. Descrição de Tejo: “Caboclo de estatura avantajada”. Descrição de Sobrinho: “Preto vistoso, alto, de voz bonita”. Porém, as discordâncias foram maiores e acabaram por desfazer uma amizade de anos. Para se ter idéia de como o caldo entornou, Sobrinho não fala com o autor do Zé Limeira até hoje. “Perdi uma amizade de infância. Mas eu, um

pesquisador, não poderia concordar de modo nenhum com aquilo”, afirmou Sobrinho, que após o sucesso estrondoso do livro do examigo prometeu escrever um livro sobre Limeira, algo como a versão mais acadêmica sobre o Poeta do Absurdo. A empreitada, que chegou a ser divulgada em alguns jornais da época, nunca foi à frente. O livro 100 anos de poesia – Um panorama da poesia brasileira no século XX, de Claufe Rodrigues e de Alexandra Maia e a Antologia da poesia pornográfica – de Gregório de Matos a Glauco Mattoso, organizada por Alexei Bueno, citam o repentista de versos disparatados – obedientes, contudo, à rígida forma dos modelos e estilos da cantoria. A morte de Zé Limeira aconteceu entre os anos de 1954 e 1955. Porém, só 15 anos depois é que Tejo veio a escrever, de fato, sobre os instantes de sua convivência com o repentista, cuja duração foi de cinco anos. “Eu parava tudo para ir atrás dele. Eu o vi pela primeira vez com a voz de trovão ecoando, num cabaré dos mais vagabundos da feira de Campina Grande.” Pesquisa, gravações, anotações? Tejo não usou nada disso. Foi num jorro de memória. Tejo tirou duas

vezes férias que já estavam vencidas no Diário da Borborema, em que trabalhava como repórter. Ficou enclausurado por dois meses num quarto aos fundos de sua casa. Foi assim que Tejo concluiu sua obraprima. “Não podia ficar com aquilo só para mim, não. Era um poeta mal-assombrado demais. Um desmantelo. Algo dentro de mim dizia que eu tinha de escrever”, revela. Zé Limeira, o poeta do absurdo utiliza elementos do ensaio, da grande reportagem e se equilibra entre o fato jornalístico e a ficção. A par das polêmicas sobre a veracidade ou não do livro, o caso Zé Limeira é como o enigma de Capitu, pouco importa demarcar limites nessa obra fabulosa. A melhor maneira de ler esse livro é olhá-lo como um vigoroso romance, talvez um dos mais inventivos no qual, de modo inaugural, boa parte da mitologia do universo da cantoria nordestina se perpetuou numa obra de gênio. Zé Limeira, poeta do absurdo Orlando Tejo Editora Calibán 264 páginas 40,00 reais

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ARTES

A marca inconfundível Aos 20 anos de sua morte, Wellington Virgolino permanece como uma criança que se diverte falando de um mundo todo especial Plínio Palhano

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Atelier Coletivo (1952– 1957) foi o desdobramento da Sociedade de Arte Moderna do Recife, nascido por iniciativa de um grupo de jovens artistas, sob a orientação de Abelardo da Hora, e ganhou importância na história da arte em Pernambuco e no Brasil. Foi uma oficina prática da arte moderna, com idealismo e vontade, descrevendo o universo nordestino por dentro, falando do povo, do seu movimento no trabalho, na religião de origem africana, nos tambores expressivos dos maracatus, no carnaval, na relação social, nas lutas políticas; enfim, da gente

operária que faz a vida produtiva e a cultura de uma nação. Foi ali que Wellington Virgolino (1929-1988) definiu o seu destino como artista. Além das sessões de poses rápidas com modelos para captação no desenho, incentivado por Abelardo, aquele ambiente também lhe deu a oportunidade do contato com os materiais mais sofisticados, como o suporte devidamente preparado, a aplicação da tinta, o diluente, a mistura das cores, a composição, a idéia do que realmente era arte. Até então, só desenhava porque era uma necessidade espiritual, um imperativo de sua natureza desde os tempos

de estudante, fazendo sucesso entre os colegas com as caricaturas dos professores, realizando para estes os cartazes solicitados em função do encaminhamento didático nas aulas, mas tudo sem a direção concreta de uma obra de arte. O exercício permanente era tentar descrever e flagrar o movimento do povo, dignificando-o à maneira dos muralistas mexicanos José Clemente Orozco, Alfaro Siqueiros e Diego Rivera, que na Revolução Mexicana utilizaram obras monumentais para tornar a arte acessível às grandes massas populares, transformando-a em veículo de conquistas políticas.

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O pintor pernambucano Wellington Virgolino. Na página ao lado, Caçadora de flores Reprodução

“Não aceito a idéia de um artista divorciado do povo. É o mesmo que se separar da própria arte. Sou e pretendo ser um pintor popular”, disse Wellington, em 1955, numa entrevista ao jornal Evolução, em que indicava claramente o espírito do Atelier e a formação que recebeu. Seus trabalhos dessa fase são plenos de um vigor especial e consciente, de forte expressividade, representando o trabalhador imponente, seguro, dono de um mundo ideal. Os títulos das obras falam dessa visão: Pescadores do Capibaribe, Calçando a rua, Cortadores de cana, Calceteiros, Estivadores, Acidente do trabalho,

Reprodução

Engomadeiras, Emigrantes e O tirador de cocos. Desde a época do Atelier, Virgolino demonstrava uma disposição no desenho, com um forte traço, lembrando – além dos muralistas mexicanos – as histórias em quadrinhos, de forma desenvolta, como num natural gesto de sua verve criadora. Se solicitassem dele, os amigos poetas, escritores e jornalistas, um desenho para ilustração – com um sorriso largo na aceitação da proposta, iniciava logo o trabalho. Uma reprodução no jornal Imprensa Popular, de 1954, na II Conferência Nacional de Trabalhadores

Agrícolas, destaca, atrás dos conferencistas, um trabalho de grandes proporções realizado pelo artista. No mesmo ano, na comemoração do 30º aniversário da Coluna Prestes, na Folha do Povo, Wellington desenha Prestes montado num cavalo heróico e segurando um rifle. Atrás, dele, mãos levantando rifles e estrelas surgindo em perspectiva. Vê-se, nesse trânsito entre o desenho e a pintura, a habilidade que tinha Wellington Virgolino na ilustração, na história que narra pela imagem; fator que se acoplou ao seu trabalho em todas as fases. A impressão que temos é de que, na concepção que envolvia cada SET 2008 • Continente x

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ARTES Imagens: reprodução

O marinheiro, O soldado e O aviador: a fantasia toma conta do pincel do artista

obra, estava presente um enredo, um fato, numa conotação do humor, do trágico, do romântico, do sensual, do histórico, até mesmo do bíblico. Ele era um pintor que queria ser direto, sem nenhum esoterismo ou mistério técnico ou que demonstrasse um laivo sequer de intelectual discutindo estética em seus quadros, ele mesmo pleno com o que realizava. Isso é tão presente em sua obra que, na VI Bienal de São Paulo, em 1961, ele procurou, por todo o edifício da exposição, os seus trabalhos, encontrando-os embaixo de uma escada, junto a artistas como Heitor dos Prazeres, Manezinho Araújo, entre outros pintores primitivos. Os críticos vigentes colocaram-no junto a esses artistas, julgando-o um deles no estilo. Meio aturdido, sem entender a ligação, continuou

feliz por estar ali como o único escolhido, em Pernambuco, para participar do grande acontecimento internacional das artes plásticas, e também pelo fato de ter vendido todos os trabalhos expostos, através da Galeria Astréia, uma das mais importantes, à época, em São Paulo. Ainda mais: saiu de lá com uma boa encomenda de obras — sim, encomenda, como um profissional que lutou sempre para vender os seus trabalhos, seguindo o exemplo da humildade e da genialidade dos artistas-artesãos do Quatrocentto florentino – Donatello, Botticelli e Ghirlandaio – a quem se encomendava na sua bottega não somente a excelente pintura ou a obra-prima escultórica, mas tudo o que se realizava naquela fábrica de engenho. A partir da Bienal, o trabalho de Virgolino entrou no circuito do mercado de arte nacional, entre o

Rio, São Paulo e Pernambuco, despertando o interesse também da crítica, numa enxurrada de textos sobre a sua obra. Sheila Leirner indaga: “Seria o pintor um primitivo, um cartunista? Difícil enquadrá-lo, Virgolino é um pintor sério... de interpretação própria, rica e imaginativa”. “O mundo de Virgolino se espraia por nossas margens contidas e aplica à nossa contenção a gota de mel da transfiguração... estamos diante de um artista que, antes de mais nada, conquistou o privilégio de possuir uma linguagem própria e inimitável”, escreveu Walmir Ayala. E diz Frederico Morais: “(...) Trata-se de um pintor com bastante personalidade, que faz uma pintura figurativa diferente, lembrando, às vezes, alguns artistas primitivos, mais pela forma do que pela cor. A matéria é curiosa, e o tratamento da figura, original”. “Na pintura

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Fotos: Reprodução

atual de Wellington Virgolino, resultante de um desenvolvimento de cuidadosa coerência, mesclam-se funcionalmente a base arcaica popular e os sinais armados de contemporaneidade. Seu fundamento telúrico-crítico concretiza-se mais no registro da festa, da harmonia e do lirismo do que na dinâmica quase expressionista do primordial e do fantástico”, conceitua Roberto Pontual. O imaginário poético de Wellington Virgolino percorreu vários temas, como os Signos do Zodíaco (1969 e 1978), O Circo (1971), A Bíblia (1973), Brincadeiras da infância (1979), Os sete pecados capitais (1977), uma série sobre a enchente que ocorreu no Recife, descrevendo telas boiando e outras cenas, outra sobre Santana – a mãe de Maria– , abordando-a em várias circunstâncias, e obras avulsas que falam do cotidiano com títulos como A máquina de escrever, O jardim, O telefone, O namoro, O viajante, O iluminador, Piloto de provas, Uma tenista indecisa, Jovem aprendiz de juiz e outros, fazendo sucesso no mercado de arte que o marchand Carlos Ranulpho, ao longo dos anos, acompanhou como seu agente imediato, e a quem Virgolino se referia, com humor, quando as pessoas iam procurá-lo no ateliê para comprar diretamente, dizendo: “Fale com o meu empresário”. O marchand iniciou as atividades com Virgolino em 1969, realizando a primeira exposição associada à Galeria Ranulpho, que se instalava à beira do Capibaribe,

No alto, Operários em construção. Ao lado, Os retirantes: fase social SET 2008 • Continente x

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ARTES

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O artista conquistou um estilo que faz reconhecer seus trabalhos independente da assinatura

perto do antigo cinema São Luís, tendo vendido todos os trabalhos. Desde então, Virgolino trabalhava e entregava a Ranulpho toda a sua produção. A sociedade satisfazia a ambos: Wellington necessitava de um intermediário para negociar a sua obra, para poder trabalhar com tranqüilidade; e Ranulpho necessitava de um artista que pudesse dar impulso às suas atividades como marchand. Virgolino, com seu prestígio, permaneceu, ao longo da história da galeria, como o artista de maior circulação nas vendas, apesar de outros também participarem de exposições individuais e coletivas, como os pernambucanos

Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. A obra de Virgolino, na essência, continuou a mesma: o desenho materializado na pintura, com a linha em contorno delineando as figuras e contando as suas histórias. A cor transborda e sai daquela economia do terra e ocre dos primeiros tempos do Atelier. O que ele explora nas obras seguintes são as idéias que dão à sua visão uma alegria, uma transfiguração, com a mente voltada para as lembranças, como uma criança que se diverte falando de um mundo todo especial, na naturalidade que alcança o espanto, como quem viu uma parte do pa-

raíso e quer transmitir aos olhares e coisas reais, um humor próprio dos seus pincéis. Talvez como Monet – fazendo um paralelo quanto à felicidade – , que pintava interminavelmente o lago de nenúfares no jardim em sua propriedade, porque também aquele pintor encontrou o belo. Wellington permaneceu íntegro com o universo que construiu, sem mudar uma só vírgula do seu texto pictórico, e dizendo simplesmente que essa era a maneira – e apenas essa – de expressar o seu pensamento na pintura, fazendose presente na história da arte de Pernambuco e do Brasil como uma marca inconfundível.

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Imagens: Estate of Keith Haring/ Divulgação

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Ícones, serigrafia com estampa em relevo,1990

Entre a arte e o marketing A frivolidade da obra de Keith Haring abre um campo para duras críticas, todavia não se pode negar sua impressionante trajetória Mariana Oliveira SET 2008 • Continente x

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omo quase todo artista pop, nestas últimas décadas de domínio dos grandes meios e da cultura de massa, Keith Haring foi uma celebridade. O professor de Estética e Teoria da Arte Fernando Castro Flórez, da Universidade Autônoma de Madri, recorda a passagem de Haring por Madri, em meados de 1987, como um acontecimento. O artista norte-americano, em uma simples caminhada pelo centro da cidade, foi abordado como um legítimo pop star, por fãs que lhe pediam autógrafos e esboços rápidos de um dos seus ícones mais populares. Haring também causou furor no Paseo de la Castellana, onde o trânsito foi interrompido para que ele pudesse pintar um painel, no qual representava marcianos chegando à cidade. A intervenção reuniu as grandes autoridades institucionais vinculadas à arte da Espanha, mas, como usualmente acontecia com Haring, não contou com o apoio da crítica especializada. Depois de 20 anos, a obra de Keith Haring voltou a passar por Madri, no mesmíssimo Paseo de la Castellana, e segue em exposições na Europa, causando as polêmicas de sempre. Haring nasceu na Pensilvânia, em 1958, e cresceu cercado por comics, desenhos animados e letreiros fosforescentes e fluorescentes. Ainda criança, aprendeu com seu pai um pouco da técnica dos cartoons. O artista freqüentou a Ivy School of Professional Art, em Pittisburg, e a Escola de visual de Arte de Nova York (SVA), o que lhe proporcionou uma formação acadêmica e contato com artistas como Kenny Scharf e Jean Michel Basquiat. Foi na Big

Dog, litografia, 1985

Apple que Haring se deparou com uma pulsante comunidade de artistas que desenvolvia seus trabalhos fora do circuito das galerias e dos museus e usava como espaços de trabalho as ruas, o metrô, clubes e discotecas. Nos anos 80, quando Haring começava a despontar, vivia-se também o auge das discussões sobre a pós-modernidade. A arte do momento se desenvolvia de forma revisionista, num resgate às van-

guardas do início do século, imprimindo uma leitura pós-moderna. O fato de fazer um desenho e repeti-lo incessantemente, em várias técnicas, nunca foi praticada por ele de forma gratuita. Sua formação e seu contato com o minimalismo, as obras conceituais e o reducionismo formal foram determinantes no desenvolvimento do seu trabalho. Ele tinha consciência de que insistindo conseguiria o impacto visual que propunha. “Filho da viagem espacial”, é assim que se define, por ter nascido

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De cima para baixo: Pop Shop VI, serigrafia, 1989; The blueprint drawings, serigrafia,1990; Best buddies , serigrafia, 1990

no ano em que o primeiro homem viajou ao espaço. Para muitos, Haring seria filho, na verdade, da Pop Art, movimento que anos antes destacou nomes como o de Roy Linchestein e Andy Wahrol. Como bom filho da Pop Art, seu trabalho se desenvolveu com alguns preceitos básicos: difusão rápida e universalidade. Ele tinha uma verdadeira paixão pela diversidade de técnicas, realizando trabalhos em serigrafia, litografias, estampados em alto relevo, entre outros. Haring jogava com temas triviais, dando-lhes um tratamento estético. Buscava uma forma de refletir os ícones da cultura de massa de forma inteligente, tentando seguir, por assim dizer, a proposta de Duchamp de que a arte tem que ser antes de tudo inteligente. Para transmitir suas mensagens fez uso de símbolos que representavam a força, o dinheiro, o sexo, a religião, o racismo e a AIDS – doença que causou sua morte, em 1990, dois anos depois de se descobrir soro positivo. Sem dúvida, o artista recebeu forte influência dos grafiteiros que atuavam com seus sprays no metrô de Nova York. “As mensagens no metrô me abriram os olhos para entender essa forma diferente de ver a arte: a arte como algo capaz de impactar um grande número de pessoas e conseguir mobilizá-las”. Sua obra levou esse pedaço de subcultura eminentemente urbana para as galerias e museus. Por isso, alguns afirmam que ele seria o iniciador da Arte Graffiti, “um verdadeiro artista underground”, afirmou o crítico nova-iorquino Glenn O´Brien. Porém, como lembra Castro Flórez, é preciso pontuar que de certa forma Haring desvirtuou a essência do graffiti. “O graffiti supunha certa SET 2008 • Continente x

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ARTES clandestinidade, um fazer escondido”. Enquanto seus trabalhos eram consagrados, em meados dos anos 80, quatro milhões de dólares eram gastos, em Nova York, para destruir a coleção de imagens que se espalhavam pelos espaços públicos da cidade. Haring estabeleceu um estilo linear, com fundo monocromático e contornos grossos que contribuíram imensamente com seus objetivos: permitir uma leitura fácil e rápida das suas mensagens. Suas criações se tornaram símbolos facilmente reconhecíveis, que conservam intacto seu poder comunicativo. Isso se dá pela escolha dos temas prioritariamente universais, como a doença e a morte. Suas inspirações vinham do mundo que o rodeava e das suas próprias vivências. A história da sua vida e seu fascínio pelas crianças estão descritos em seus trabalhos, como num grande hieróglifo egípcio. Entre suas imagens mais marcantes estão o Bebê radiante (que transformou em sua assinatura por considerar uma das etapas mais positivas da vida) e o Cachorro, que simbolizaria muitos conceitos, como amizade e proteção. As obras sugerem uma reflexão, mas nunca de forma opressora ou moralizadora. “Reconheço duas imagens centrais em Haring: uma que te leva a um mundo de sonhos e outra aos pesadelos, mas nunca sendo ácido”, resume Castro Flórez, lembrando também a superficialidade com que Haring se mantém em boa parte dos seus trabalhos. A linguagem iconográfica de Haring é composta por bebês, cachorros, anjos, figuras de Batman e Mickey – batizadas por ele como Icons. Na realidade, as imagens são utilizadas para idolatrar o espírito do seu tempo. As 17 lâminas da série Blueprints Drawings – publicada

Totem, xilografia, 1989

em serigrafia, pouco antes de sua morte – são organizadas em uma seqüência, formando um rosário. As imagens de vitória e felicidade vão sempre acompanhadas de outras que representam humilhação e destruição. Nessa série, encontram-

se as imagens-chaves de seu legado, que se repetem em muitos dos seus trabalhos: cenas de força e ameaça se relacionam com imagens de sexualidade e histerismo religioso, com grande interatividade. De todas as suas séries, Apocalypse destaca-se, por trabalhar com colagens e fugir completamente do seu traço básico. Pedaços de obras de arte mundialmente famosas, como a Monalisa de Da Vinci, mesclam-se em serigrafias que apresentam os variados tormentos aos quais o mundo está exposto. É justamente na diferença que Haring se torna mais interessante. Outro ponto inegável da sua obra é o forte tom político contra o apartheid, contra o racismo e a propagação da AIDS. Segundo Castro Flórez, o Haring consciente de ser soro positivo é também mais expressivo, mais social e mais político. Em 1986, com a abertura do Pop Shop (loja onde comercializava vários produtos que levavam seus Icons), o artista passou a sofrer críticas ainda mais duras dos acadêmicos e críticos de arte, que chegaram a acusá-lo de avarento. Defendia-se alegando que as lojas eram espaços, sobretudo, políticos e serviam tanto para colecionadores como para os jovens do Bronx. A loja foi mais um passo dentro da sua perspectiva de levar arte a um maior número de pessoas. A frivolidade da obra de Haring abre um campo amplo para duras críticas, todavia não se pode negar sua impressionante trajetória. Ainda muito jovem, com vinte e poucos anos, conseguiu o respeito do público e soube como ninguém seguir o lema proposto pela Pop Art, nos anos 50 – levar a arte ao maior número de pessoas. Seu talento, dentro dessa perspectiva, é inegável. “É um artista com uma imagi-

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EXPOSIÇÃO

Jaildo Marinho expõe no Rio

Keith Haring se definia como “filho da viagem espacial”

nação barroca, que conecta com o público, um artista capaz de realizar uma obra que gera mercado, mas que não traz elementos novos para nossa cultura”, pondera Castro Flórez, que, numa entrevista informal, se aproveitou dos salões da cafeteria do Círculo de Belas Artes de Madri para demonstrar como vê a obra de Haring. Nas várias colunas do espaço, encontram-se desenhos de mulheres feitos pela artista americana Nancy Spero. Para o público leigo, que senta para um café, as imagens passam despercebidas. Se trocássemos as imagens por obras de Haring, diz ele, todos reconheceriam, apesar de se tratar de obras formalmente menos interessantes e importantes. É dentro de uma comparação que se percebe a fragilidade que a obra de Haring pode ter diante de

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trabalhos de outros artistas, quase sempre desconhecidos. O valor de Haring está muito mais na forma como ele se projetou e levou junto seus ícones do que no real valor estético aportado por seus trabalhos. “Ele é mais um artista do marketing que da arte”, sentencia Castro Flórez. Talvez, no Brasil, Romero Brito personificasse bem esse tipo de produção artística. Keith Haring é filho de uma época conturbada, do PósModernismo dos anos 80. Ele e suas obras sempre vão carregar intrinsecamente a polêmica relação entre arte e mercado. Esteja onde estiver, em galerias renomadas ou em camisetas, deve ser apreciado dentro de uma perspectiva que valorize seus méritos, sejam eles puramente artísticos ou não.

egue em cartaz até o dia 12, na Academia Brasileira de Letras (RJ), a exposição Tábua de pirulito, do artista plástico pernambucano Jaildo Marinho, há 15 anos radicado na França, onde leciona no ateliê de escultura e fundição da ADAC/ Ville de Paris. Para a sua primeira individual no Rio de Janeiro, o artista selecionou um conjunto de 12 trabalhos, divididos em seis pinturas em acrílico e seis esculturas em mármore de Carrara, inéditas, produzidas no seu ateliê em 2007. Fascinado pelas formas geométricas, Jaildo segue explorando os diálogos possíveis entre o espacialismo de suas obras e o ambiente em que estejam inseridas. “Brinco com as formas, e uma pintura vazada pendurada em uma parede ou com uma paisagem atrás torna esses cenários parte integrante da obra”, diz o artista. (Yuri Bruscky) Divulgação

SERVIÇO Tábua de pirulitos - Jaildo Marinho. Até 12 de setembro, na Galeria Manuel Bandeira - Academia Brasileira de Letras, das 10h às 18h (Segunda a sexta-feira). Entrada Franca. Informações: (21) 3974-2500 Confira mais informações sobre Jaildo Marinho www.continenteonline.com.br

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Revolvendo Eudes Mota Entre a regra e a solidão, o artista ultrapassa os 40 anos de carreira

Fotos: Divulgação

Ana Maria Maia

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um calendário pintado em 80 x 150 cm, cada mês do ano é indicado por um conjunto de traços, uns estreitos, outros largos; são códigos de barras, que reduzem e dão corpo à abstração da contagem. Eles, sozinhos, não chegam a representar o tempo, mas, como cotidiano codificado, evocam a experiência da imagem, denotam vida já vivida. Uma vida que, posta em tamanho calendário, talvez queira depor sobre sua grandeza guardada

em cochicho, talvez queira aproximarse da vida do outro, compartilhar, quem sabe, transformar passagens iminentes em presentes possíveis. A começar pela quebra da linearidade cronológica, a obra de Eudes Mota se atravessa de desejos. Acontece em cadência única e constante, submete o artista ao ativamento de seus sentidos, é submetida, por conseguinte, à prática de decantar,

simplificar, sugerir. Diante do passado, variáveis incertas, mas, antes de mais nada, variáveis. Diante do apocalipse do fim das formas, o reavivamento integrado. Diante da memória, a capacidade de “desentranhar futuros”, como certa vez ouvi da psicanalista e curadora Suely

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Escumadeira, madeira, 1,29 x 0,26 x 0,3 cm (cada), 2006. Na página, à esquerda, Pirâmide

Rolnik, em palestra sobre a arte conceitual dos anos 60 e 70, no MAC-USP. Eudes já leva mais de 40 anos criando em cima do que até então era apenas silêncio e isolamento causados por uma perda auditiva congênita. Não à toa costuma remontar a figuras da infância, como os jogos, os carrinhos, as girândolas, as casas de pombos, as palmatórias e os confessionários registrados na lembrança de uma escolaridade

disciplinadora e intransigente. Em 2006, para comemoração da efeméride de atuação, o artista montou, na Amparo 60, sua galeria à época – atualmente é a Mariana Moura–, a exposição Espólio. Lá, estavam todos aqueles objetos ancestrais, confeccionados em madeira, por vezes repetidos, todos inéditos. Não se tratava de uma retrospectiva, embora a individual remetesse a temas e contextos originais à referida trajetória poética. Tratava-se, sim, de um resgate de si mesmo a

partir dos vestígios que sobram e ficam; da capacidade narrativa a partir do conforto da distância, da reflexão, da elaboração, do tal “desentranhar”. Eudes começou a produzir aos 15 anos. Pintou a óleo paisagens distantes, desabitadas, com as quais debutou, em 1965, em coletivas na Escola de Arte do Recife, ao lado de nomes como Baltazar Câmara, Mário Nunes e Francisco Brennand, e no Teatro de Santa Isabel, onde conheceu Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, incentivadores daí por diante. SET 2008 • Continente x

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ARTE Fotos:Divulgação

Rafael Gomes

Eudes Mota apropria-se de objetos do dia-a-dia em suas obras

Quando questionado sobre a data do seu nascimento, responde, com ar de graça: “1951, um ano de grandes acontecimentos na arte”. A criação da Bienal de São Paulo naquele ano, de fato, demarca-o como de suma importância para a arte brasileira, visto que o evento potencializa a divulgação de artistas e a atração de públicos, fortalece os trânsitos entre o local e o global, inicia a formação de um circuito profissional de arte no país. Junto com a Bienal e as transições paradigmáticas que encerram a segunda metade do século 20 e o início do século 21, entre o Modernismo e a contemporaneidade – ou a pós-modernidade –, Eudes cresceu acompanhando quedas e proposições de modelos. Lembra, por exemplo, que sua primeira individual de pinturas, em 1970, no Teatro do Parque, foi iniciativa do amigo e então professor de Biblioteconomia da UFPE Milton Melo, tido como organizador da mostra, e não curador, como hoje se dá nome. “Não existiam curadores e, sim, gente que dava

A instalação Dados Alfa, na Fábrica Tacaruna, 2004

prestigio aos trabalhos, como foi Milton e também Alex, o colunista social. As ‘galerias’ eram lojas de móveis. Os Salões recebiam obras prontas e não projetos de pesquisa”, conta o artista, já ganhador de nove prêmios – aquisição no Salão de Pernambuco, em diferentes fases, entre os anos 60 e 90, e convidado pelo curador Paulo Bruscky, na 45ª edição, em 2004, a pensar a instalação Dados Alfa, especialmente para o espaço da Fábrica Tacaruna, entre Recife e Olinda. Apesar de se dizer só e de não conversar em grupo, Eudes reconhece a busca por pares ao longo de sua trajetória. Nos anos 80, cultivou interlocução com Ricardo Aprígio e Plínio Palhano; em 1988, juntouse a Isa do Amparo, Bete Gouveia e Fernando Lins para formar o coletivo Grupo dos Quatro. O mote que os unia era a investigação geométrica; bebiam em fontes abstratas e se contrapunham à tradição figurativa que designava Pernambuco naquela década. Queriam extrair da pintura “realidades indistintas”, a extensão

do plano pictórico, o ruído dos elementos plásticos arbitrários. Foi nesse momento que o artista assumiu para si a relação-signo – referente que segue observando e materializando até hoje. Uma relação em que, com igual parcela de arbitrariedade, apropria-se de objetos do dia-a-dia como partes constitutivas de sua geometria indicial e, sendo assim, não apenas formal, mas também afetiva. Seu gesto está impresso em esquemas – com setas, planos e numerações – que pinta para demonstrar movimentos e hipóteses de um jogo de futebol (Futebol, 2006), de uma partida de xadrez (Série Xadrez, 2005), ou mesmo do curso da Lua ao redor da Terra. Em todos os casos, há a imposição da regra e, diante dela, um artista atento a sínteses para as condições de existência e sociabilidade. Atento, muitas vezes, para sadicamente subvertê-las, dentro da esfera de poder que lhe cabe. Já pintou imensos e profusos códigos de barras; resguardou à impossibilidade de leitura ótica o segredo do

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De cima para baixo: Girândola, Futebol e Calendário, obras da individual Espólio

que poderiam dizer. Também pintou em tinta serigráfica sobre metal as palavras cruzadas que tanto jogou, mas que, sob seu estatuto, não mais podem ser jogadas. Ficaram os vazios dos campos de respostas numerados, congelou-se qualquer interação, desfuncionalizou-se o objeto por um uso agora contemplativo e unidirecional. A desfuncionalização, aliás, é prática antiga, também em madeira, de Eudes Mota. Prática motivada pela observação dos detalhes de janelas e portas do sítio histórico de Olinda, na mesma época do Grupo dos Quatro, na mesma busca pela geometria cotidiana, já no início dos anos 90. “Vivíamos o governo Collor; não se vendia nada, não existia material de pintura no mercado. Então, para viabilizar a continuidade da minha produção, comecei a vasculhar destroços de casas e recolher o que achava bonito”, explica. Dos destroços saíram – e ainda saem – apropriações e esculturas, a começar pela primeira série de bandeiras, exibidas na extinta Pallon Galeria de Arte, em 1992. As tramas talhadas que, em edificações antigas, interpõem dentro e fora e são usadas para iluminar e ventilar ambientes, no ideário do artista, adornam paredes com o elogio aos veios e às texturas da manufatura, feita, mais uma vez, matéria bruta. Na recente Série Interiores, que deve compor individual

na Galeria Mariana Moura, no início de 2009, a ruptura e a reinvenção da matériamadeira penetram pelo território da pintura. Sobre tela, aparecem alguns dos móveis – a exemplo da cadeira de balanço da inspetora – que Eudes encontra na lembrança e para os quais procura lugares no mundo exterior. Curiosamente, aparecem agora em tintas abrandadas e feições menos duras. Poderia a pintura regenerar os sentidos, reordenar os planos, revigorar a vida? O trabalho promove uma elipse que o artista custa em aceitar, mas reconhece. “Tudo vem de mim, por isso posso indicar convergências e afinidades, mas elas não são planejadas, pelo contrário, procuro separar o gesto de dois artistas, o da pintura e o da madeira”, refuta. Produzir é mesmo um ato contínuo, de limiares borrados entre inícios e fins, origens e desdobramentos, Eus e Outros. Acompanhado de si mesmo, Eudes Mota arquiva passagens – em recortes de jornal, panfletos, textos críticos, catálogos ou mesmo causos que conta com fala mansa – e encara o que alimenta sua criação e, portanto, permanece. A decodificação da contagem permanece nesse calendário estendido ao infinito. Dentro dele, a linguagem do artista permanece como observatório de sinais e sintomas, afere urgências particulares e universais, denota outro tanto de vida por viver. SET 2008 • Continente x

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traduzir-se

Ferreira Gullar

Thereza Miranda e a paixão da gravura

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rtista é alguém que, com seu trabalho, tenta tornar a vida mais fascinante”. Essa poderia ser a definição para muitos pintores, desenhistas, gravadores – sem falar em artistas de outros campos – e particularmente para Thereza Miranda. Ela completa 80 anos de vida e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro abriga uma exposição comemorativa dessa data redonda, reunindo 140 obras suas. Um acontecimento no campo das artes plásticas brasileiras, como faz tempo não se via. Certamente não se trata de um acontecimento midiático, capaz de estarrecer ou chocar as pessoas. Nada disso: trata-se de um acontecimento silencioso, tranqüilo, que não espantou nem estarreceu ninguém, mas comoveu a todos. A começar por mim, à medida que percorria, gravura por gravura, tela por tela, uma mostra que é, de fato, uma retrospectiva sintética da obra realizada pela artista, ao longo de sua vida. Sou amigo e admirador de Thereza Miranda, de longa data. No curso desses anos, pude acompanhar o surgimento e o desenvolvimento do seu trabalho, as diferentes fases que percorreu. Apesar disso, não deixei de me surpreender, a cada momento, ao deparar-me com as diversas etapas que percorreu em sua aventura artística. É de justiça destacar a alta qualidade tanto estética quanto técnica de suas gravuras abstratas dos anos 70, que estão entre as mais bem realizadas criações da gravura brasileira dessa tendência. Nessa fase, quando se

aproxima de outros gravadores de igual vertente estética, afirma-se a sua marca própria na concepção e execução de uma série de obras que vieram assinalar um momento de sua arte e da arte de gravar no Brasil. Outra fase significativa dessa aventura pessoal da artista se inicia com as primeiras fotogravuras, técnica de que foi a pioneira no país e à qual empresta uma qualidade rara. Como ela mesma afirma, na realização desses trabalhos, predomina a preocupação com a preservação do nosso patrimônio cultural. Sem dúvida, através dessa técnica, Thereza Miranda nos faz rever e redescobrir o casario, as fachadas, as sacadas, as bandeiras de portas da arquitetura colonial de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de São Luís do Maranhão. Não obstante, embora admita que esses trabalhos de algum modo contribuem para valorizar a memória de nosso patrimônio artístico, vejo, em suas fotogravuras, bem mais que isto: vejo nelas algo que não se vê, quando diante delas estamos, quando a temos, reais, diante dos olhos. É que, nas fotogravuras de Thereza, mais que a imagem das coisas retratadas, há uma visão poética, um tratamento de luz e sombra, de cores e linhas, uma composição delicada e sensível, que emprestam às formas reais a transcendência do sonho. Diante dessas obras, não posso deixar de aludir ao tipo de trabalho que nos são apresentados como uma nova manifestação da criatividade, ditas arte contemporânea. Como todos sabem, essas manifestações se caracterizam pela ausência de qualquer norma ou

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Divulgação

Nos trabalhos da artista, mais que a imagem das coisas retratadas, há uma visão poética, um tratamento de luz e sombra, de cores e linhas, uma composição delicada e sensível, que emprestam às formas reais a transcendência do sonho

Catete-Rio, Thereza Miranda, 1981

princípio, a ausência de qualquer continuidade, valor estético, técnica, sistema de signos, de linguagem própria, enfim, de qualquer elaboração que é, como se sabe, a própria criação de significados que definem a realização artística. Pondo de lado, se aquelas manifestações devem ou não ser consideradas arte – coisa que, no meu entender, só excepcionalmente ocorre –, a verdade é que, diante de trabalhos como estes de Thereza Miranda, fica evidente que o que nos é mostrado resulta de uma elaboração e criação de significados e valores, nascidos do domínio da linguagem e do aprofundamento de suas possibilidades expressivas.Em função disso, uma obra como a desta artista consegue superar o fortuito e circunstancial , para nos oferecer uma expressão que supera a natureza efêmera das experiências vividas. Ao longo de décadas, com empenho e entrega ao trabalho artístico, Thereza Miranda vem desenvol-

vendo uma atividade de rara significação para a gravura brasileira, não apenas por sua obra, como também mestra que é, responsável pela formação artística de sucessivas gerações de artistas. Assinale-se que sua incursão, mais recente, no terreno da pintura, revelou-nos um outro lado de sua personalidade, mais misterioso e romântico. Mas, enfim, são essas tantas qualidades que explicam o acontecimento inusitado que foi o vernissage de sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, quando as salas da exposição se encheram de gente, numa proporção como raramente se observa em eventos desta natureza. Não mencionaria este fato, se tivesse apenas significado social e afetivo. Na verdade, o que ali ocorreu foi uma manifestação espontânea de reconhecimento do meio artístico e intelectual à sua contribuição como artista e incentivadora da atividade artística no país. SET 2008 • Continente x

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ESPECIAL

Em terra de cegos Ensaio sobre a cegueira é o romance mais desagradável de José Saramago: há um desfile brutal e incessante de atrocidades, dejetos, maus cheiros, estupros e outros atos de violência que acompanham o processo de desumanização dos personagens Luciano Trigo

“F

ernando, estou tão feliz por ter visto esse filme... Como eu estava quando acabei de escrever o livro”, diz José Saramago, com a voz embargada, ao cineasta Fernando Meirelles, após uma projeção privada do filme Ensaio sobre a cegueira (Blindness). “Você não sabe como isso me deixa feliz”, responde Fernando, dando em seguida um beijo na careca do escritor, Prêmio Nobel de Literatura em 1998 (o primeiro concedido a um escritor de língua portuguesa) e autor dos consagrados Memorial do convento, A jangada de pedra (que também já foi adaptado para o cinema) e O Evangelho segundo Jesus Cristo. Gravada de forma amadora (e talvez clandestina), a cena, acessível a qualquer pessoa que entrar no Youtube (http://www. youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY), é comovente: mostra a comunhão de dois artistas e de duas linguagens, o reconhecimento da possibilidade de diálogo verdadeiro entre o cinema e a literatura. E não é uma literatura qualquer: os romances de Saramago não são de leitura fácil. Seus períodos longos, seu uso nada convencional da pontuação (há páginas inteiras sem ponto final, pródigas em vírgulas, e alguns parágrafos têm a extensão de um capítulo), sua incorporação dos

diálogos ao corpo do texto, fundindose aos pensamentos, sem travessões, seu estilo deliberadamente reiterativo – tudo isso resulta em estruturas narrativas complexas, pautadas pelo fluxo da consciência, que exigem do leitor uma disposição incomum, nada passiva. A carreira de Saramago é peculiar. Depois de publicar Terra do pecado, em 1947, ele passou 30 anos sem escrever romances – até lançar Manual de pintura e caligrafia, quando já tinha 53 anos. Seguiram-se Levantado do chão (1982) e Memorial do convento, o livro que conquistou definitivamente a atenção de leitores e críticos, ao misturar fatos históricos reais com personagens inventados. Depois vieram: O ano da morte de Ricardo Reis (1984) – para mim seu melhor romance, sobre as andanças do heterônimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A jangada de pedra (1986), no qual a Península Ibérica se desprende do resto da Europa e navega pelo Atlântico; História do cerco de Lisboa (1989) e o polêmico O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) – uma releitura humanizadora do livro sagrado. De lá para cá sua ficção ganhou um tom mais fabular, sem laços diretos com a História, mas nem por isso menos preocupados com os rumos da sociedade contemporânea. É o caso de Ensaio sobre a cegueira (1995) e A caverna (2001).

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Saramago, na caricatura de Dalcio

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Escrever, para Saramago, é uma forma de interrogar o mundo, de pensar criticamente sobre as coisas. Ensaio sobre a cegueira nasceu de uma experiência pessoal: um descolamento de retina, que o escritor sofreu em 1991. O romance trata de uma epidemia de cegueira repentina que assola a população de uma cidade não identificada – metáfora da cegueira geral e infinita dos seres humanos. Em quarentena num manicômio abandonado, os cegos se perceberão reduzidos à sua essência animal. Do lado de fora, aqueles que enxergam se transformam em autoridades, com o poder sobre a vida e a morte dos demais. Do lado de dentro, os cegos confinados se deixam dominar pelos instintos mais primitivos, num verdadeiro inferno. A premissa filosófica é que as pessoas só se tornam realmente quem elas

são quando não podem mais fazer julgamentos a partir do que vêem. São páginas de constante aflição, que trazem uma mensagem nada otimista: o ser humano não é bom, e precisamos reconhecer isso. Numa situação desesperadora, a “treva branca” se espalha rapidamente pela cidade, até sobrar somente uma pessoa que ainda enxerga: a mulher do médico (interpretada no filme por Julianne Moore), que se finge de cega para poder acompanhar o marido na quarentena. É ela quem preserva um mínimo de ordem e de valores humanos em meio à cegueira absoluta, é nela que reside um fiapo de resistência e de esperança contra a absoluta desagregação social e moral. Saramago é um pessimista: “Como será possível acreditar num

A paisagem das Ilhas Canárias, na Espanha, atual residência do escritor português; ao lado, várias capas do livro Ensaio sobre a cegueira

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Deus criador do Universo, se o mesmo Deus criou a espécie humana? Por outras palavras, a existência do homem, precisamente, é o que prova a inexistência de Deus”, ele já escreveu. Para o escritor, a humanidade – leia-se a civilização ocidental capitalista – vive tempos sombrios, perdida num caos labiríntico, marcado pela miséria e pela injustiça, pela crueldade e pelo egoísmo, pelo medo e pela culpa. Seu objetivo é chamar a atenção do leitor para a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. Mas em que consistiria essa responsabilidade? Não somente em registrar e ter consciência do horror que nos cerca, mas, sobretudo, em ser capaz de conservar a lucidez, resgatar a solidariedade. Ser capaz de amar mesmo sob as mais terríveis

pressões – tarefas que ele compartilha com os leitores. O paralelo evidente é com o romance A peste, de Albert Camus, já que nos dois livros uma epidemia misteriosa provoca o desmoronamento completo da sociedade, de tudo aquilo que se associa à idéia de civilização, ao mesmo tempo em que traz à tona as facetas mais primitivas da condição humana. Ensaio sobre a cegueira é o romance mais desagradável de Saramago: há um desfile brutal e incessante de atrocidades, dejetos, maus cheiros, estupros e outros atos de violência que acompanham o processo de desumanização dos personagens. Definitivamente, não é um livro para todos os gostos. Seja como for, Ensaio sobre a cegueira contribuiu para que o Prêmio Nobel de Literatura fos-

se concedido pela primeira vez a um escritor de língua portuguesa, chamando a atenção do mundo inteiro para os países lusófonos. O problema é que, como o português é uma língua minoritária e politicamente fraca, o Nobel de Saramago diminuiu drasticamente as chances de o prêmio ser concedido a um autor brasileiro, a curto prazo. Mas já se passaram 10 anos, e talvez em breve se volte a cogitar uma candidatura brasileira. Por outro lado, foi tímido o impacto da premiação de Saramago no que se refere à integração entre as literaturas de língua portuguesa, que ainda se comunicam muito pouco, apesar de algumas iniciativas louváveis de aproximação. Talvez o acordo ortográfico – que Saramago apóia com ressalvas – modifique um pouco este cenário.

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O ler e “S o ver, o olhar e o reparar

e podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, Livro dos conselhos. Esse pensamento introduz os escritos de José Saramago na sua obra Ensaio sobre a cegueira, e o mesmo pensamento não deixa de chamar a atenção voltando ao livro depois de ver a versão cinema, adaptada por Fernando Meirelles. Sem necessariamente jogar juízo negativo de valor sobre o olhar de Meirelles, hábil realizador de formação moderna via TV e publicidade, a capacidade de reparar qualquer um dos quadros que ele compõe é freqüentemente roubada pelo ritmo assoberbado das suas narrativas. Suspeita-se de que seus filmes funcionem mais via acúmulo sensorial ditado do que pela pacata sugestão de uma imagem a ser vista, e reparada. Com esse filme falado em inglês, numa produção internacional parcialmente rodada numa São Paulo travestida de lugar nenhum (a identidade da cidade literalmente apagada nas placas dos carros

Os primeiros 30 minutos de Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles, já revelam suas virtudes e os seus problemas Kleber Mendonça Filho

A personagem de Julianne Moore se passa por cega para poder acompanhar o marido na quarentena

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Talvez existam dois tipos primordiais de cineastas que adaptam obras literárias para o terreno das imagens narradas. O primeiro, dominado pelo respeito à obra raiz, tenta honrar as letras com o seu cinema. O segundo, crente de que os dois meios são incompatíveis (ou de que seu filme será melhor do que o livro...), parte para filmar sem mostrar constrangimentos com eventuais distanciamentos da obra original. Meirelles mostra-se claramente adepto da primeira postura, vide suas traduções coesas para Cidade de Deus, de Paulo Lins, e O jardineiro fiel, de John Le Carré.

Imagens:Divulgação

e por eficaz direção de arte), Fernando Meirelles dá continuidade ao seu projeto de cinema que visa o planeta, não tanto o Brasil como sua base temática. A ponderação vem do lamento de ver suas habilidades voltadas para o genérico, e não tanto para a sua visão universal do país em si. Curiosamente, ao almejar o genérico, num filme que, como Babel, de Alejandro Gonzalez Iñaritu, parece um ensaio alegre sobre a globalização, tanto pelo que está na tela quanto pelo sistema de produção, Ensaio sobre a cegueira alinha-se a uma série de filmes recentes que mostram um mundo em colapso, como Eu sou a Lenda, de Francis Lawrence, Fim dos dias, de M.Knight Shyamalan, ou Diário dos mortos, de George Romero. A diferença é que ele não parece reparar que fez um filme de gênero. Em Ensaio sobre a cegueira, o filme, temos um exemplo curioso das constantes correlações entre as duas linguagens, e como o cinema tenta transformar em imagem aquilo que foi originalmente criado via letras. Sensação semelhante pode afligir o crítico de cinema que escreve um texto a partir de uma série de imagens que fazem um filme, por sua vez tirado de um livro. Como viabilizar essa tradução?

Cena do filme que estréia este mês no Brasil

Assistindo a Ensaio sobre a cegueira, percebe-se a tradução literal do que é física e visualmente possível no campo do cinema, e o filme poderá virar estudo de caso. Dos segundos de abertura num semáforo ao desenvolvimento de boa parte dos incidentes que estabelecem o eixo dramático do livro de José Saramago, percebemos que a palavra de ordem é mesmo fidelidade. Aqui, a população de uma cidade (talvez do mundo) vai ficando cega. Eles só enxergam uma tonalidade branca, “um mar de leite”, e o mal súbito afeta todos, exceto uma mulher (Julianne Moore), a esposa do médico (Mark Ruffalo). Num grupo que se forma involuntariamente, há ainda “a rapariga de óculos escuros” (Alice Braga), o “ladrão de carro” (Don McKellar, também roterista), o velho da venda preta (Danny Glover)... Eles terminam numa espécie de campo de concentração, sob regime de quarentena, e o tom apocalíptico é confirmado numa série de conflitos internos que, curiosamente, têm algo de muito teatral na composição enclausurada, ou mesmo na percepção de que os atores estão participando de uma oficina especial de cegueira no palco. Os primeiros 30 minutos revelam virtudes e já seus problemas. A fidelidade amorosa de Meirelles pela

obra de Saramago chega a ser tocante, mas logo vemos que há algo mais do que a fidelidade de tom e de imagem que faz um filme existir. Como traduzir, por exemplo, a tensão transmitida pelo texto corrido e sem pontuação clara de diálogos e narração, sentida no livro? Seria com o ritmo inclemente da montagem na primeira metade? Nesse sentido, voltamos à idéia de olhar, ver e reparar. Ensaio sobre a cegueira parece estar correndo em alta velocidade com a suspeita de que precisa fazer o serviço em duas horas pontuais. Essa duração, repleta de incidentes, sugere uma obra que se beneficiaria de ainda mais tempo para existir dentro do pânico desorientado da raça humana, sugerido pelo livro. Meirelles, hábil construtor de um cinema ágil e moderno, não parece buscar no tempo um aliado para a sua narração, mas apenas um inimigo, e sua pressa (contratual? conceitual?) é reveladora disso. Numa imagem memorável na sua eficácia e síntese, por exemplo, ele nos mostra uma criança (cega) tropeçando numa mesa (invisível), a mesa repentinamente materializando-se num afiado flash de efeito especial. Essa cena talvez sintetize a diferença primordial entre o ler e o ver, o olhar e o reparar. SET 2008 • Continente x

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Cegueira nas telas

Em Cannes, Fernando Meirelles teve que lidar com duras críticas ao filme

Fernando Meirelles fala sobre a adaptação do livro, a recepção ao filme e sobre o papel de São Paulo nas imagens apresentadas Kleber Mendonça Filho

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nsaio sobre a cegueira foi publicado em 1995. Três anos mais tarde, seu autor, o português José Saramago, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Treze anos depois, o livro vira filme, após uma divulgada relutância inicial do seu autor no sentido de liberá-lo para as imagens do cinema, e a adaptação chega pelo olhar do cineasta brasileiro Fernando Meirelles. A carreira de Meirelles no cinema, depois de anos na TV e na publicidade, vem sendo pontuada por transformações enérgicas de livros em filmes. Reprocessou a narrativa multifacetada de Paulo Lins sobre a comunidade carioca de Cidade de Deus na descarga de adrenalina hiperativa e ultraviolenta que é a sua versão filmada (2002), já um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro, e é o principal diplomata desse cinema no exterior, nesta década. Sua obra seguinte, O jardineiro fiel (The constant gardener, Inglaterra/EUA, 2005), fez Meirelles mergulhar no universo do thriller internacional com tintas conspiratórias, a partir do livro do britânico John Le Carré. O resultado foi um produto de mercado surpreendentemente humano sobre a espetacular divisão que existe entre o mundo rico e o mundo pobre. Ensaio sobre a cegueira (Blindness, Brasil/Canadá/Japão, 2008), o filme, estréia este mês no país, depois de abrir o Festival de Cannes, em maio, com uma recepção que dividiu a crítica internacional. Foi em Cannes que Meirelles conversou sobre a adaptação do livro, a recepção ao filme e sobre o papel de São Paulo nas imagens apresentadas de uma história originalmente localizada em lugar nenhum.

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Kleber Mendonça Filho

Adaptar uma obra literária sobre cegueira para a mídia cinema. O que o levou a crer que isso daria certo? Eu não achei que daria certo, é verdade. Eu li o livro há 10 ou 11 anos, fiquei muito impressionado e imediatamente fui atrás dos direitos para adquiri-lo através da editora de Saramago no Brasil. Ele, no entanto, não quis vender, falou-me que “o cinema destrói a imaginação”. Eu simplesmente encerrei o caso. Seis anos depois, Niv Fichman, o produtor, comprou os direitos e, de repente, o projeto voltou para mim. De quatro mil diretores no mundo, hoje, por que eu? Entrei no projeto e voltei aos aspectos que me atraíram no livro. A fragilidade da civilização, que finge ser sólida e sofisticada, mas que, se algo dá errado, faz tudo entrar em colapso. Basta ler os jornais hoje em dia e vemos que estamos indo nessa direção, o alerta contra Sars, o Tsunami na Ásia, o furacão Katrina, em Nova Orleans. Ao voltar para o livro, percebi no processo de adaptação as muitas camadas da história, que eu tentei explorar no filme. Historicamente, produções internacionais como esta mostraram que representam a morte artística de um projeto. Como foi a combinação de tantas nacionalidades (brasileiros, japoneses, canadenses, americanos, mexicanos) para chegar a um consenso? Pura sorte de ter achado uma química. Não tivemos uma briga ou nenhum problema, foi tudo tão tranqüilo. É por isso que, nos créditos de abertura, colocamos “esta é uma produção bem independente”. Espero adotar esse modelo para sempre, daqui para frente. Como observadores do seu trabalho, percebemos que você

tem levado sua carreira cada vez mais longe do Brasil, O jardineiro fiel já apontou isso, Ensaio sobre a cegueira confirma esse lado. Nós podemos contar com o seu talento para narrar histórias brasileiras, feitas no Brasil? Esse filme foi feito em São Paulo, com técnicos brasileiros: o fotógrafo, o montador, os técnicos de som, os efeitos especiais digitais. São todos brasileiros. Na verdade, eu acho o filme muito brasileiro. A história é universal, sem uma localização exata, mas trata-se de uma história sobre a humanidade, e o Brasil faz parte dela. O filme é falado em inglês pelo fato de eu ter sido convidado para fazer um filme falado em inglês. Há também o fator orçamento, Ensaio sobre a cegueira não poderia ter sido feito em português. Quando você faz um filme em português, ele não pode custar mais de quatro ou cinco milhões de dólares, caso contrário ele não irá pagar-se. Pela estrutura do filme, ele é um projeto caro, e isso exige o inglês. De qualquer forma, eu estou trabalhando numa minissérie para a Globo, que se chama Som e fúria, toda filmada no Brasil, e estarei gravando até o mês de outubro. Para falar a verdade, eu acho que, para trabalhar em português, a melhor coisa atualmente é fazer televisão. Muita gente vê, e, no cinema, não tanto. Ainda por cima, é tão bom poder trabalhar com U$ 20 milhões, ao invés de ter que brigar com dois ou três milhões de dólares. Filmar no Brasil significa estar trancado nas limitações – é uma questão prática. Seu inglês é muito bom, mas você teve reservas sobre trabalhar o texto em inglês? É diferente o tom? É claro que eu prefiro o português. Eu falo inglês e conheço o significado das palavras, mas para cada palavra há um signiSET 2008 • Continente x

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ESPECIAL ficado obscuro, ali por trás, que eu conheço muito bem na minha língua-mãe, mas não no inglês. Se eu falo “mangueira”, em português – que, em inglês, se traduz como mango tree –, para o estrangeiro é apenas a imagem fria de um tipo específico de árvore. Para mim, lembra o meu avô, o sabor, o aroma, vai além da palavra. Quando filmo em português, troco o uso das palavras o tempo todo, enquanto, no inglês, me falta a poesia da língua, algo que lamento muito não ter.

auto-exposição do mundo do cinema, que é abrir o festival com um filme. Como lida com tanta exposição? A exposição, ou a quantidade de exposição faz parte do trabalho, e acho que alguns desses problemas que relatei aqui vieram exatamente dessa questão, “a exposição”, algo que, obviamente, eu não aprecio. Por outro lado, por fazer o tipo de cinema autoral que faço, é normal acompanhar os filmes, para o bem e para o mal. Aqui, em Cannes, por exemplo, eu tenho que lidar com as piores críticas que já tive na minha carreira. Não é uma experiência agradável, mas, mesmo assim, estou confiante de que o filme terá o seu público. Para levantar meu astral, os produtores me enviaram críticas do The Guardian, Corriere della Sera, Daily Telegraph, Los Angeles Times, um clipping de críticas positivas de jornais diários, que é o que o grande público lê, diferente das publicações voltadas para a indústria, que foram negativas. Acho que esse filme precisa de um certo tempo para decantar, você assiste, talvez não gosta muito, mas depois ele volta à sua cabeça e você passa a enxergá-lo de maneira diferente. Sinto isso com os filmes de Wong Kar Wai, que, inicialmente, me aborrecem um pouco; depois, eles ficam na minha cabeça e não vão embora.

Você falou sobre o colapso da civilização. Algum conflito interno lhe levou a enxergar Ensaio sobre a cegueira como um projeto pessoal? Talvez não devesse compartilhar isso aqui, mas a verdade é que, em 2005, por algum motivo inexplicável, eu me vi em depressão. Vale saber que aquele havia sido um excelente ano, minha família é sólida, saudável, sou casado há 22 anos e, bem, eu estava divulgando O jardineiro fiel, tudo ia bem, indicações ao Oscar etc. Mesmo assim, chegou o final do ano e me vi devastado e pensei em nunca mais fazer cinema, vi-me de cara para a parede. Decidi parar durante 2006, olhar para dentro de mim mesmo e achar o problema. Não vou dizer o que achei, claro, mas voltei, fiz esse filme e percebi que ele é um pouco isso. Ensaio sobre a cegueira faz a indagação: “Quanto teremos que sofrer para poder enxergar?”. Esse processo pessoal me pareceu semelhante ao processo da zona de quarentena, porque depois dali as pessoas são capazes de reconstruir.

Você aprendeu alguma coisa com essas críticas? Eu não as li, apenas fui informado. Ler críticas tira o meu foco. Eu já li críticas, e o que ocorre é que durante dois dias você fica respondendo, ponto por ponto, dentro da sua cabeça. É destrutivo.

Essa zona de quarentena não deixa de lembrar um pouco o próprio Festival de Cannes, que lhe convidou para assumir um das posições mais radicais de

Você disse, certa vez, que tinha medo de fazer um filme de “zumbi”, e o filme, de fato, tem uma estrutura semelhante. Eu não gosto desse gênero e meu

A brasileira Alice Braga também integra o elenco do filme junto ao mexicano Gael García Bernal

medo vinha do fato de a primeira imagem ser a de um grupo de pessoas andando por ruas desertas. Creio que o filme não vai nessa direção. Isso não deveria ser visto como algo negativo, há grandes “filmes de zumbi”, como os de George Romero. Há uma cena no supermercado que lembra muito Dawn of the dead. Eu não conheço esse filme. Qual a maior dificuldade na adaptação? Estabelecer a história. Apresentamos os personagens como no livro, a partir do momento em que eles já estão ficando cegos. Se fosse um filme hollywoodiano, tenho certeza de que seriam criados mecanismos para aliviar isso; talvez dois dos personagens teriam um passado, nós nos envolveríamos com eles e aí, sim, eles ficariam cegos. É claro que cogitamos criar um primeiro ato só para apresentar os personagens, mas fugiríamos da história. No livro, eles não têm nomes ou passado, e isso terminou sendo uma decisão arriscada. Outro aspecto que vai contra a cartilha é não termos personagens agradáveis, os principais não despertam muita simpatia. Temos

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Imagens: Divulgação

uma prostituta, um ladrão, o médico arrogante, a esposa boba. Você fala da “esposa boba”, mas, no livro, ela não é uma “esposa boba”. Talvez ela não seja, quero dizer, no livro ela é um tanto constante; creio que no filme tentamos construir um arco maior para ela no sentido do que ela era e no que ela se transformou. Qual foi a participação de Saramago no filme? Inicialmente, achei que ele não estava muito interessado no projeto. Depois, começamos a trocar inúmeros e-mails e senti que ele estava dentro, mostrando ter expectativas enormes em relação ao filme. Chegou até a dizer que a única peça que estava faltando numa grande exposição dedicada a Saramago em Lisboa era o filme, “com o filme, minha vida estará completa” – o que, claro, me fez entrar em desespero. Na coletiva de imprensa, logo após a primeira exibição de Ensaio sobre a cegueira, você mencionou a existência de dois filmes, um no sentido da imagem, outro no sentido do som. Usamos artifícios para trazer a noção de cegueira para a platéia,

como as imagens saturadas de branco, imagens multiplicadas para passar desorientação de espaço nos personagens. Em relação ao som, há uma construção no sentido de diálogos cobrirem imagens não relacionadas. Tenta passar a idéia de desconectar o som da imagem, reforçando a ilusão de cegueira. Há um bom momento, em que o garoto esbarra numa mesa, mas a mesa só se materializa no quadro com o esbarrão. Que tipo de pesquisa vocês fizeram no sentido de expressar em imagens a cegueira? Criamos uma oficina para atores e figurantes, composta por três sessões de quatro horas cada, todos vendados. Grupos de até 25 pessoas saíam com o responsável pela oficina, Chris de Voort, pelas ruas, treinando os sentidos, muitas vezes seguindo sons. Tínhamos jogos como, por exemplo, achar comida através do olfato, às vezes lutar pela comida como na própria obra. Eu aprendi muito com essas oficinas. Houve ocasiões em que, depois de duas horas com os olhos vendados, alguns começavam a ficar tristes, deprimidos, paravam e começavam a chorar como criança. Outros ficavam agressivos. Nas cenas mais

fortes, emotivas, alguns atores pediram para usar lentes de contato especiais que bloqueiam a visão, pois era demais pedir para atuar e ainda processar a atuação especial de estar ou agir cego. Sua parceria com César Charlone na fotografia é duradoura. Como é dirigi-lo? Não se dirige César, você compartilha com ele, ou você mesmo é dirigido. O eixo do trabalho foi desconstruir imagens, muita coisa no processo de pós-produção. Sobre a imagem do filme, eu estou muito orgulhoso do trabalho de efeitos especiais realizado na O2, no Brasil, efeitos 3D, 300 ao todo, nunca antes feito, mas agora sabemos como fazer. Sobre essa questão, seu filme traz para o espectador brasileiro um sentido de imagem incomum dentro de uma idéia de cinema nacional, uma vez que vemos São Paulo, cidade tão fotografada dentro do próprio Brasil, travestida com tintas de um cinema fantástico. Algo comum para os americanos, mas não para o brasileiro. É verdade. De qualquer forma, para um livro que se passa em “qualquer lugar”, São Paulo mostra-se muito claramente reconhecível como São Paulo, com imagens do Minhocão, particularmente, bem presentes. Eu tentei resistir, filmamos bem mais do que está no filme. Pensei que, para os brasileiros, paulistanos particularmente, seria um clichê bem grande. Por outro lado, pensei que, por ser uma produção internacional – que será vista em todo o mundo –, o clichê vale para apenas 5% desse público, o brasileiro. Assista ao trailler do filme Ensaio sobre a cegueira www.continenteonline.com.br

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sabores

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Pimenta e especiarias (parte I)

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uso de ervas e especiarias, pelos homens, perde-se no tempo em fins variados. Destino mais comum era, então, o de conservar carnes. Egípcios preparavam loções para embalsamar os mortos, com mistura de açafrão, alho, alho-poró, cardamomo, cássia, coentro, erva-doce, gergelim, mostarda, papoula, pimenta, tomilho. Depois foi remédio. O grego Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), considerado “Pai da Medicina”, prescrevia pimenta para falta de apetite, dores de estômago e males do amor (posto ser afrodisíaca). Os primeiros tratados de medicina aconselhavam o seu uso, que “mantém a saúde, conforta o estômago, dissipa os gases, faz urinar, cura os calafrios das febres intermitentes, cura também picadas de cobras, provoca o aborto de fetos mortos. Quando bebida, serve para tosse; e mastigada com uvas passas, purga o catarro e abre o apetite” – assim ensina o Tresor de Santé (1607), de autor desconhecido. Só aos poucos se viu que também tornava as receitas mais saborosas. Ganhou mundo a partir do Oriente – Índia e Ilhas Molucas (então conhecida como Ilha das Especiarias, atual Indonésia). Dali, saía em navios para Meca (onde pagava imposto) e pelo Mar Ver-

melho chegava a Ormuz (onde era taxada), depois Judéia (onde pagava imposto também). Em camelos ia até o Cairo (onde era sobretaxada), chegando a Roseta (depois de passar pela alfândega). Dali seguia para Alexandria (onde pagava tributo). Por mãos árabes chegou à Europa a peso de ouro. Tanto que, por vezes, substituía a moeda – do que resulta a expressão, ainda hoje usada, “pagar em espécie”. Um punhado de cardamomo valia quase o salário mensal de um operário. Escravos eram trocados por pimenta, na Índia conhecida como pippeli – daí vindo a raiz do nome, em quase todas as línguas. No início do século 15, lançaram-se os portugueses ao Mar Tenebroso, em busca de novo caminho que os levassem a especiarias. Em 1434, Gil Eanes já navegava para além do Cabo Bojador. Usavam pequenos barcos, cópias dos usados pelos árabes e gregos – batizados de caravos (lagostas). Caravela é o diminutivo de caravo. Esses barcos tinham “20 t., 20 m. de comprimento e um casco esguio, que lhes permitia alcançar grande velocidade”, segundo o historiador e jornalista Eduardo Bueno. Com a grande vantagem de poder navegar próximo à costa e entrar em pequenos portos. D. João II, O

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Nossos índios usavam pimentas (quiyá) que tinham variados cheiros, cores e sabores. Formas também – compridas (cuihen) ou redondas (cumbari)

príncipe perfeito, conseguiu ajuda financeira dos judeus expulsos da Espanha; e a busca por especiarias ganha novo impulso. Em 1482, o navegador Diogo Cão chegou à foz do Rio Zaire; e, três anos depois, ao cabo da Cruz (costa da atual Namíbia). Em 1488, Bartolomeu Dias afinal chegou ao Oceano Índico, depois de cruzar cabo que chamou “das Tormentas”, por D. João II rebatizado como da “Boa Esperança”. Mas razão tinha Dias, que, depois, naquelas mesmas águas, entregou sua alma a Deus. E já estava morto esse rei, em maio de 1498, quando Vasco da Gama finalmente apor-

tou em Calicute (hoje Calcutá). Nessa epopéia enfrentou quase tudo – de tempestades a rebeliões de marinheiros. Acabou chegando ao seu destino, quase um ano depois de partir – graças à orientação do piloto, Malemo Calado, que lhe foi apresentado pelo rei de Melinde (próximo à atual Zanzibar). O preço de um quintal (60 kg) de pimenta correspondia a 120 gramas de ouro. Cada navio comportava até 500 quintais. Chegando os portugueses a trazer com eles, para Lisboa, 30 mil quintais por ano (quase 2.000 toneladas) de pimenta da Índia.

Valeu o sacrifício. Sobretudo para Vasco da Gama. Que do novo Rei, D. Manuel I (1469-1521), recebeu título de almirante-mor das Índias e generosa pensão de 300 mil réis. Aquele comércio, até então dominado por árabes, trocava de mãos. Agora eram portuguesas. Findas as rotas terrestres, entre Índia e Europa, bem mais demoradas e caras. Assim se manteve o monopólio do comércio com as Índias, durante todo o século16. Até quando franceses, holandeses e ingleses decidiram competir por tão florescente mercado. A Europa afinal compreendia já não poder viver sem os pós de cozinha – como eram genericamente denominadas as especiarias. E tão valiosos eram, que a infanta D. Beatriz, mãe de D. Manuel I, deixou testamento em que legava, à abadessa do Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, “um saco de pimenta que pesava cerca de 15kg, 300g de gengibre, 800g de noz moscada, quase 1kg de cravo, 3kg de canela e 1 arroba de tâmaras”. a busca por esses ingredientes era um convite à aventura. Pedro Álvares Cabral foi escolhido para chefiar uma segunda expedição à Índia, com o fim de estabelecer, ali, um entreposto comercial. Partiu com três caravelas, nove naus e uma naveta de mantimentos – abarrotadas de canhões, pólvoras, espadas, alimentos e quase 1500 homens. Primeiro veio dar no Brasil, bem mais a oeste do seu destino. Afinal chegando à Índia, com uma nau a menos – a de Diogo Dias, que só na volta a Lisboa

Fotos: Reprodução

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Divulgação

receita

Filé com pimenta (Steak au poivre) 3 Esfregue 2 colheres de sopa de pimenta preta moída e 1 colher de chá de sal dos dois lados de 2 pedaços grossos de filé mignon 3 Em uma frigideira aquecida, coloque 1 colher de sopa de manteiga e doure a carne dos dois lados. Junte 2 colheres de sopa de conhaque e flambe. Retire a carne e coloque na frigideira 2 colheres de chá de mostarda e 1 caixa de creme de leite. Mexa. Se o molho ficar muito grosso, junte um pouco de água. Volte o filé para a frigideira, aqueça bem e sirva.

reencontrou a expedição. De lá, voltou carregado de especiarias. Garcia da Orta (1499-1568), famoso médico de Lisboa, acompanhou a armada de Martim Afonso de Souza. Com o fim de estudar plantas, especiarias, resinas e frutas utilizadas por médicos hindus e árabes. Nunca mais voltou. Em Goa (Índia), onde escolheu morar, escreveu Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia (1563) – mais importante registro de frutas, ervas, animais, minerais e doenças do Oriente. Destaque no livro para curiosa apresentação, em versos: Vosso favor e ajuda ao grão volume, Que agora em luz saindo Dará na Medicina novo lume, E descobrindo irá segredos certos A todos os antigos encobertos Eram versos feitos por um poeta miserável, ex-provedor de defuntos, cego de um olho (perdido em luta com mouros de Mazagão), vazado por uma seta pela “fúria rara de Marte”, segundo ele próprio; e que chegou a Goa depois de ter naufragado na foz do rio Mekong (Cambodja). Salvou-se nadando com um braço, apenas; tendo, no outro, rascunhos de um poema épico dedicado ao Rei D.

Sebastião. Só não conseguiu, segundo as crônicas da época, salvar sua companheira chinesa, Dinamene, que depois celebrou em alguns sonetos. Sobrevivia fazendo versos, em troca de comida, tarefa em que sofreu alguns contratempos. Como aquele ocorrido com o Duque de Aveiro – que prometeu uma galinha, mas lhe mandou, em troca, uma peça de vaca. Devolvendo o poeta, pelo criado por quem veio a dita vaca, versos em que expressava seu desagrado: Já eu vi o taverneiro Vender vaca por carneiro Mas não vi, por vida minha Vender vaca por galinha Senão ao Duque de Aveiro. Esse provedor de defuntos, que em versos escreveu a apresentação do livro de Garcia da Orta, viria depois a ser o mais importante poeta da língua portuguesa – Luis Vaz de Camões. Sendo aquele poema, salvo do naufrágio, Os Lusíadas. Seu nome ficava para sempre na história. “Camões é a língua portuguesa... e ler Os Lusíadas é viajar pelo mar”, segundo o escritor Marcos Vilaça. Nossos índios usavam pimentas (quiyá) que tinham variados

cheiros, cores e sabores. Formas também – compridas (cuihen) ou redondas (cumbari). “A cumbari arde no lábio do guerreiro, tornando mais gostosa a carne assada no moquém”, escreveu José de Alencar, em O Guarani (1857). Cumbari era uma espécie picante, cheirosa, braba, dessas que queimam até quase a alma. Pimentas usavam às vezes puras; às vezes, numa mistura salgada a que chamavam por muitos nomes: ijuqui, inquitaia, iuquitaya, juquitaia e, sobretudo, ionquet. Eram secas ao sol e depois piladas, reduzidas a pó, e misturadas a sal ou farinha de mandioca. São mais de 600 espécies delas, espalhadas pelo Brasil, México, Peru e pela Venezuela. Com os escravos africanos aprendemos a usar também a malagueta (Capsicum frutescens; capsicum do grego kapto, picar), que “acompanhou o negro como o arroz ao asiático e o doce ao árabe”, segundo Câmara Cascudo. O nome indica a região de onde veio – a Costa da Malagueta, na Guiné, depois também conhecida como Costa dos Grãos. Já a pimenta que vinha de Portugal, para diferenciar da nossa nativa ou da africana, acabou conhecida como do reino. Na próxima coluna falaremos das outras especiarias.

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CÊNICAS

Os escritos deixados por Zdenek Hampl foram transformados no livro Constante movimento Christianne Galdino

Um convite aberto à dança

Zdenek Hampl, na década de 70, quando trocou a Europa pelo Brasil

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uem transita no universo da dança, já deve ter ouvido falar em Zdenek Hampl, bailarino e coreógrafo que na década de 70 trocou a Tchecoslováquia, seu país natal, pelo Brasil e de 1982 até sua morte em março

do ano passado fixou residência no Recife, para o bem dos artistas locais, que muito aprenderam com ele. Dono de um humor irônico e mestre na arte de surpreender, Zdenek se apresenta agora em palavras, pois deixou algumas das suas reflexões e inquietações

sobre a dança registradas em um manuscrito, que se transformou no livro Constante movimento e está sendo lançado pela editora Associação Reviva. Segundo informações do pesquisador e crítico Roberto Pereira, em 2007 a lista de publicações SET 2008 • Continente x

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CÊNICAS

Oficina de dança numa escola de arte, Rio de Janeiro, década de 70

camos muito propensos a acreditar, como ele, que “não há nenhuma outra atividade que proporcione as condições e um clima tão favorável para surgirem amizades, como a dança consegue”. Sem preocupar-se com a cronologia, o bailarino-escritor vai deixando aparecer trechos significativos da história da dança, como o episódio em que ele, liderando um grupo de amigos, monta o ousado espetáculo Festa da pedra (1989), encenado no ateliê do artista plástico Francisco Brennand, feito inédito que inaugurou um outro jeito de se pensar e fazer dança contemporânea no Recife, abrindo novas possibilidades de criação e de diálogo entre as artes também. Zdenek foi um pioneiro que acreditava, acima de tudo, no poder transformador da dança, na forca comunicativa do gesto. Para ele, o movimento sempre é muito mais poderoso e eficaz do que a palavra, e é essa afirmação que conduz todas as narrati-

vas do seu livro. Apesar de não ter a pretensão de falar sobre história, as memórias do autor funcionam como janelas que se abrem e, assim, podemos ver como era, por exemplo, o panorama da dança e da realidade do Brasil na década de 70, através do olhar de um “gringo” assumido que, encantado com as belezas naturais (e especificamente as belezas humanas femininas) da praia de Copacabana, decidiu não voltar para o seu país após a turnê pela América do Sul da companhia Lanterna Mágica, onde atuava como primeiro solista. Se o “historiador lida com uma temporalidade escoada, com o não visto, o não vivido, que só se torna possível acessar através de registros e sinais do passado que chegam até ele”, como definiu Pesavento, o livro de Zdenek Hampl segue exatamente a direção contrária, pois é feito essencialmente de falas do que foi vivido. E, nesse caso, parece que ele não conseguia nem queria separar o pessoal e o profissional. As experiências de dança e de vida se misturam em todas as linhas de Constante movimento, e desse cruzamento brotam muitas lições – ainda que o autor não considerasse sua obra material didático, ela tem muito a ensinar.

Xirumba/Divulgação

de dança de autores brasileiros já acumulava mais de 170 títulos. Uma particularidade desse segmento crescente é a diversidade de estilos: biografias e autobiografias, registros de pesquisa artística ou acadêmica, história, material didático sobre determinada técnica, entre outros, que aumentam a cada ano a bibliografia brasileira de dança. Mas Zdenek avisa, logo nas primeiras páginas, que o seu livro não se encaixa em nenhuma dessas categorias, até mesmo porque ele próprio diz que “não tem estilo até hoje e está bom assim”, em uma rara tentativa de preservar a liberdade de expressão. Se por um lado as gavetas determinadas pelo mercado literário não lhe servem, por outro temos a certeza de que se trata de um livro de dança. Em uma escrita informal, Zdenek constrói vários caminhos que, mesmo os aparentemente alheios, falam sobre dança e transpiram a paixão avassaladora que ele sentia por esta arte e seus tantos ofícios. Contado em primeira pessoa, Constante movimento nos apresenta várias faces de Zdenek e também muitos lados da dança no desenrolar do que poderíamos chamar de uma bem-humorada e produtiva conversa com um amigo. Até mesmo porque fi-

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Zdenek Hampl no espetáculo Festa da pedra, na Oficina Francisco Brennand, em 1989

Josenildo/Divulgação

O tom crítico que pontua toda a conversa não esconde a preocupação pedagógica do zeloso e dedicado professor Zdenek, como revelam alguns trechos: “Para a dança ser tão rica e eficiente como desejamos, não basta só aprender uma, ou mesmo as várias técnicas. Temos que aprender tudo que esteja ao nosso alcance, estudar ou ao menos observar tudo possível. Afirmo com toda certeza: mesmo o que não tem aparentemente nada em comum com a dança agora, algum dia vai ter”. Dito isto, e com tal veemência, fica difícil não acreditar. Alinhado ao pensamento contemporâneo, Zdenek traz reflexões pertinentes a quem trabalha com dança, e que podem também ajudar a desmistificar algumas questões e servir para aproximar as pessoas do universo da dança. “Para começar, ‘bonito’ é uma palavra de significado dúbio. Quantas vezes já ouvi, quando alguém faz uma asneira, destruindo algo: Bonito, né? Agora vai ter que limpar tudo! Tempos atrás, fumar era bonito, e agora é nojento. Os valores são relativos, eles mudam. Então, o espetáculo foi bonito... Agradou o público? Legal para quem acha. Porém eu fiz o espetáculo para comunicar algo, o que não necessariamente vai agradar a todos. Celular comprado há um ano já é ultrapassado, e assim acontece com todas as áreas imagináveis. Por que somente em se tratando de dança o público quase que exige ver aquilo que se acostumou a ver?”, provoca Zdenek. Essa é só uma das muitas discussões instigantes que Constante movimento nos oferece. Ao mesmo tempo em que não pode ser classificado como autobiografia, manual didático ou narrativa histórica da dança, o livro de Zdenek consegue ser um pouco de tudo isso. Aqui cabe, então, a explicação de Roberto Pereira sobre a natureza desse tipo de escrita, felizmente freqüente na bibliografia brasileira de dança: trata-se de uma ”narrativa

pouco instrumentalizada e banhada por uma imensidão vivida, apaixonada, construída no cotidiano do ofício de bailarino, coreógrafo e professor de dança”. Por que ler Zdenek Hampl? Talvez para entender o que fez dele o coreógrafo que mudou o conceito de dança contemporânea em Pernambuco; ou para aprofundar os conhecimentos e reflexões sobre tais assuntos. Para quem estuda, trabalha ou simplesmente gosta de dança, Constante movimento pode ser um bom ponto de partida. O melhor é que o leitor já está previamente autorizado (pelo autor) a escolher qualquer dos caminhos oferecidos no variado cardápio de possibilidades dessa leitura. E para aqueles que ainda se sentem alienígenas no universo da dança, deixar-se levar pela emoção que conduziu obra

e vida de Zdenek Hampl pode ser uma boa sugestão, senão para tornar-se bailarino profissional, pelo menos para experimentar a dança, de alguma maneira. Constante movimento é um desabafo, uma carta que relata os desafios, as estratégias, as dificuldades e benefícios dessa arte, porém é, antes de tudo, um convite aberto à dança, para todas as pessoas de todas as idades e sem contra-indicações.

SERVIÇO Constante movimento Zdenek Hampl Editora Associação Reviva 20,00 reais

Lançamento do livro na Livraria Cultura, dia 11/09, às 19h Leia o prefácio do livro Constante movimento www.continenteonline.com.br

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Fotos: Reprodução

CINEMA

O exilado perpétuo Feroz como um touro ferido, Luis Buñuel interrogou seu país e seu subconsciente, e mais a cultura, a sociedade e a política do seu tempo Fernando Monteiro

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rimeiro, será preciso que entendam bem – ao se falar da obra de Buñuel – a diferença fundamental entre intelectuais, escritores e cineastas da geração dele, plenos herdeiros do legado humanista na sua plenitude, e quem hoje trafega no mundo cultural pós-pop, fazendo cinema, inclusive. Isso é necessário colocar, como 80 x Continente • SET 2008

preâmbulo, antes do mais, porque há, sim, uma ruptura entre o cinema de hoje, daqui e de “lá fora”, e aquele da geração dos mestres de um século que agora chamamos de passado, ao ver (ou rever) a cinematografia de um Pasolini, um Godard, um Glauber Rocha e um Luis Buñuel. Você, que está iniciando a leitura deste artigo pautado a partir

dos 25 anos da morte de Don Luis, e que, digamos, nasceu no ano do desaparecimento do realizador espanhol – neste preciso momento de uma espécie de indiferença “nova” (se comparada com a indiferença de Os Indiferentes, de Alberto Moravia, nos anos 20) –, acaso forma uma idéia clara da contribuição desses quatro artistas e, em espe-


cial, do último? Muita água tendo rolado debaixo da ponte da história da cultura, como é que você vê – do lado estreito da cultura de consumo de massa de agora – o trabalho de criadores forjados numa época de experimentação e perguntas com P maiúsculo, revoluções no campo da arte e da política e até da sinistra produção de morte em massa (essa “originalidade” tenebrosa), enquanto outros avanços da tecnologia já possibilitaram a impressão da marca do primeiro pé humano na poeira fina da Lua? Então, estamos entrando no terreno surreal – que foi o de Buñuel –, provando-se que não se começa a escrever, impunemente, sobre um gigante inconformado como esse artista do norte da Espanha que

interrogou seu país e seu subconsciente pessoal, e mais a cultura, a sociedade e a política do seu tempo, feroz como um touro ferido. Agora que colocamos tal preâmbulo, expliquemos este começo bateau-ivre como mais do que tropeço de barco embriagado: ou seja, se Píer Paolo Pasolini faz falta, se Jean-Luc Godard está recolhido como se fosse um morto antecipado e se Glauber Rocha não merece que Fernando Meirelles venha dizer gracinhas sobre a “comunicação” cinema-público, sapecando que Rocha nunca fez (graças a Deus ou ao Diabo) um Cidade de Deus, tomemos a direção deste assunto para dizer, claramente: falta, mesmo, fazem é um Luis Buñuel e a sua iconoclastia refinada, neste tempo de

muitas criações que já nascem despontando para a espuma do nada. A imaginação, no cinema, começou mais ou menos com aquele olho da Lua furado por um foguete obeso. Mélies corrompeu – no melhor sentido possível – a destinação burguesa da “sétima arte” nas mãos dos seus dois inventores (os irmãos Lumière): uma dupla de franceses sensaborões filmando ordeiras saídas de operários das fábricas e chegadas de trens no horário, na Gare de Lyon, como se fossem comboios de suíços acertando seus relógios de marca, antes de se suicidarem. Quando Buñuel deixou as securas da pequena Calanda, o futuro mestre do surrealismo cinematográfico tomava o trem sem olhos SET 2008 • Continente x

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CINEMA Famosa cena chocante do filme Um cão andaluz, de 1929

do destino que empurra para, ao menos, mudar-se de cidade – se você não consegue mudar de vida. Foi assim que o jovem Luis chegou a uma Madri que, desde sempre, só à noite se revela. Nascido no seio de uma família abastada, ele não precisava, mas foi morar no lugar mais agitado da capital espanhola de então: a Residência dos Estudantes. Ninguém poderia imaginar: entre aquelas camas desarrumadas, no meio do chulé e da falta de dinheiro, a arte jamais voltaria a ser igual a si mesma, a grande poesia iria levar balaços dos pelotões de fuzilamento da Guarda Nacional de Franco e o “cineasta de Calanda” logo deixaria a Espanha sob as botas do “Generalíssimo”, para adotar o México como a sua segunda pátria, no exílio perpétuo em que passou a viver como demonstração de repúdio à ditadura do detestável caudilho do seu país-problema. Dos quatro – Buñuel, Pasolini, Godard e Rocha –, o primeiro é o que segue fazendo mais falta, repito, inclusive pela longeva juventude rebelde que ele manteve ao longo de 83 anos, até morrer na cidade do México, em 29 de julho de 1983, de cirrose sem cansaço. Nesse dia, o Cinema Inquieto sofreu uma enorme perda. Poucos realizadores foram tão inconformados e instigantes, desde as imagens primordiais que criou ainda muito jovem e cercado de moços capazes de mudar as coisas com palavras, poemas, pincéis e câmeras. O ci-

nema pessoal de Buñuel surgiu influenciado por Der müde tod (A morte cansada), de Fritz Lang, porém apresentando o viés próprio do surrealismo mais extaltado, em cenas inusitadas como aquela da lâmina cortando um olho, assim como o foguete furava a cara inchada da Lua, nos tempos dos pioneiros. Desde esse olho seccionado, artistas e cineastas juntaram-se para criar obras cinematográficas de vanguarda, que foram – e ainda são – chamadas de “surrealistas”, com razão. Isso já não em Madri, mas na cidade das inquietudes artísticas máximas: Paris, claro. Foi lá que ele realizou Um cão andaluz (1929), seu primeiro filme, cheio de erros técnicos e acertos estéticos: um manifesto à altura de André Breton, original e, ainda hoje, boa lição para os meros Meirelles da vida. É dentro dos 18 minutos do Cão que aparecem o olho cortado e a palma furada por formigas, entre outras imagens saídas dos sonhos inquietantes do realizador e da capacidade onírica do pintor Dalí. No ano seguinte, A idade

do ouro já faria a passagem para a espécie de tenebrismo que Buñuel iria praticar sozinho, a partir dos anos 40, quando se mudou para o México. Lá, ele realizaria desde uma estupenda versão barroca de O morro dos ventos uivantes até a obra-prima Os esquecidos, prêmio de melhor direção e também da crítica internacional, no Festival de Cannes de 1951. Nesse meio tempo, o mundo havia mudado, o seu ex-amigo Salvador Dalí agora o acusava de ser comunista e o já maduro calandense se mostrava duro na queda, irredutível no que filmava, e sempre organicamente novo e severo. No México, Buñuel realizou duas das suas mais importantes obras: Nazarín (1959), Palma de Ouro em Cannes e O anjo exterminador (1962), com o entreato de uma volta temporária à Espanha para dirigir Viridiana (1961), a sua crítica mais feroz à caridade falsa – que prosperava na beata Espanha franquista. O filme também conquistou a Palma de Ouro de Cannes, apesar dos protestos de L’Osservatore Romano e de outros

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Buñuel volta à Espanha para filmar Viridiana (1961)

Catherine Deneuve em A bela da tarde (1967), ganhador do Leão de Ouro de Veneza

jornais ligados ao Vaticano (a Santa Sé nunca engoliu o cineasta que afirmava, em alto e bom som: “Sou católico e ateu, graças a Deus”), assim como gente ligada ao regime do ditador espanhol que teve em Luis Buñuel um guerrilheiro republicano que nunca-jamais disse “adeus” às armas culturais. Depois da fase mexicana, o eterno exilado retornaria à França daquela juvenil avant-garde, com o prestígio em alta num mundo ainda não domesticado pelo gosto spielberguiano que hoje vigora. Ainda se rodavam filmes apenas porque simplesmente eles mereciam ser produzidos, e não somente porque pudessem estourar nas bilheterias ou tivessem “charme” suficiente para serem cooptados para a TV. Com melhores meios técnicos do que aqueles velhos estúdios do México, o incansável Buñuel pôde voar mais alto, artisticamente, e ganhar em sutilezas narrativas: O diário de uma camareira (1965) daria a Jeanne Moreau o melhor papel de toda a sua carreira, e A bela da tarde (1967) traria o Leão de Ouro de Veneza para o surrealista mais experimentado, que soubera transformar um romance do medíocre Joseph Kessel numa abordagem moral em tom maior. Sob sua direção, Catherine Deneuve brilha algidamente,

no papel da bela, uma burguesa incapaz de manter relações sexuais com o marido (razão por que começa a trabalhar num bordel que se parece muito com a sociedade hipócrita na qual vivemos em arranjos semelhantes, dentro e fora do plano sexual, por supuesto). Uma trilogia de pensamento político neo-anarquista – e riqueza de expressão cinematográfica, como sempre – iria ser anunciada pelo vigoroso A via - láctea, de 1968. Quatro anos depois, a temática prosseguiria com O discreto charme da burguesia, uma produção surpreendentemente premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro, o que aumentou em muito as chances de financiamento do filme de Buñuel que viria como remate da trilogia, o magnífico O fantasma da liberdade (1974). Ele ainda precisava filmar mais alguma coisa? Rigorosamente, não. Ainda fez, entretanto, Este obscuro objeto de desejo (1977), fechando uma obra de coerência impecável, frescor de juventude e profundidade psicológica que ainda gera textos de exegese crítica. Nada que o cinema dos atuais realizadores – estrangeiros e brasileiros – possa esperar vir a brindá-los, na posteridade, mesmo se tratando dos que tentam trilhar pelo caminho “buñuelesco”, como David

Linch (nos EUA), Carlos Saura e outros que não ainda conseguiram emular o gênio criativo do mestre, talvez porque não possam comungar com ele, inclusive, no solene desprezo pelo resultado financeiro das produções. Não é tarde para lembrar que Luis Buñuel afirmava, com toda sinceridade: “Não acho que tenha feito algo por dinheiro. O que eu não faço por um dólar, eu não faço nem por um milhão”. Isso basta para tornar difícil aparecer um “novo Buñuel” no meio do cinema conformista que estamos vendo colher os elogios hesitantes de uma crítica entediada, comunicando-se com um público semi-enganado pelas “páginas de cultura” dizendo-se encantadas com as últimas descobertas coreanas (ou dinamarquesas) dos jornais da tarde crepuscular sem reais novidades. Como bem observou o genial diretor russo Andrei Tarkovsky: “A força dominante dos filmes de Buñuel foi sempre o inconformismo. Seu protesto – furioso, sem compromissos e exacerbado – se expressa, sobretudo, na textura sensível da obra, e é emocionalmente contagioso, pela carga de consciência poética que carrega e que seguirá tocando as pessoas como muitos de nós já não conseguimos, por qualquer motivo de tédio ou de desesperança”. SET 2008 • Continente x

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MÚSICA

A roda da fortuna de um barítono pop Paulo Szot, o cantor de ópera que um dia foi bailarino, hoje é o astro mais premiado do ano na Broadway Carlos Eduardo Amaral

Paulo Szot acompanhado pela soprano Jennifer Casey Cabot, na ópera Le nozze di Figaro de Mozart

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A Jeffrey Dunn/Divulgação

ascendência polonesa. Esta é a primeira coisa que se deve mencionar sobre o brasileiro de São Paulo, Szot, a fim de se entender outras três. Uma, a pronúncia correta do sobrenome, “chót”, à qual os americanos se acostumaram antes dos brasileiros. A segunda, o regresso à terra dos pais, para estudar. A última, o início de carreira numa companhia estatal de canto e dança. Enquanto era lugarcomum no Brasil os pais desestimularem os filhos a seguir trajetória musical, “para não morrerem de fome”, Kazimierz e Zdislava Szot colocavam a prole para se musicalizar desde cedo e preenchiam as viagens de carro da família com canções folclóricas do país natal. Assim, os cinco irmãos, três homens e duas mulheres, tornaram-se todos músicos. Em 1987, Kazimierz (para nós, Seu Cassimiro) conseguiu uma bolsa do governo polonês junto ao consulado em São Paulo, a fim de que o caçula, então com 18 anos, ingressasse na Universidade Jaguelônica, conhecida até o século 19 como Academia Cracóvia. Nada de viagem aérea: foram cerca de três semanas de navio e algumas horas de ônibus para chegar à segunda universidade mais antiga do Leste Europeu, onde estudou gente como Copérnico, o Papa João Paulo II e a Nobel de Literatura Wislawa Szymborska. Se no Brasil da Era Sarney o preço das coisas subia diariamente, na Polônia nem certas coisas para se subir o preço havia, por conta das restrições do moribundo regime comunista. Paulo conta que a intensa vida cultural polonesa o ajudou a se adaptar: “Quando cheguei, fiquei chocado com a realidade dura do comunismo, mas logo me acostumei e após alguns meses me sentia bem em estar lá e poder usufruir daquilo que o comunismo oferecia de melhor, na minha opinião – o apoio às artes”. Desde pequeno, o objetivo de Paulo era o balé clássico, cujas au-

las o atraíam mais que as de piano e violino. Parou de dançar no meio do curso, em Cracóvia, graças a uma contusão no joelho aos 21 anos. Boa fortuna número um: na mesma época abriram vagas para a Companhia Nacional de Canto e Dança Slask, ocasião em que lhe serviu o cancioneiro aprendido em casa – ganhou um lugar no coral da companhia. Paulo enveredava profissionalmente na música, no entanto, tempos depois, uma professora achou um desperdício sua permanência no coro e o persuadiu a desenvolver a performance de voz e de palco e ir para a ópera. Paulo não gostava de ópera (pensava na infância: “Um bando de gente louca gritando”, como declarou ao New York Times) e era muito tímido, mesmo assim seguiu o conselho, inscrevendo-se numa competição de canto promovida por Pavarotti. Boa fortuna dois: chegou às finais internacionais do concurso em 1995, e ganhou impulso para estrear sua voz de barítono numa produção de O barbeiro de Sevilha, em 1997. Daí, foram 30 personagens, um Prêmio Carlos Gomes em 2000 e constantes viagens entre as Américas do Norte, do Sul e a Europa. No ano passado, quando estava atuando num Don Giovanni em Boston, ficou por dentro de uma seleção em Nova York para o revival de South Pacific. Para quem sabia A chorus line de cor na adolescência e admirava Liza Minelli, aquela era uma chance, sem o menor compromisso, de tentar o sonho da Broadway que guardava consigo. Boa fortuna três: botou o mulherio para chorar no teste ao cantar Some enchanting evening, a canção mais famosa do musical, e desbancou 200 concorrentes sem estudar previamente o personagem. Estava garantido um contrato de seis meses. Seria apenas um proveitoso e realizador desvio de rota, se não fosse a última cerimônia do Tony, dia 15 de junho. Na entrega do prêmio de MeSET 2008 • Continente x

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Fotos: Divulgação

lhor Ator em Musical, Paulo Szot foi o quarto nome dos cinco indicados, aplaudido quase tão diplomaticamente quanto Fernanda Montenegro na indicação ao Oscar de Melhor Atriz em 1999 por Central do Brasil. Boa fortuna quatro, todo mundo sabe: enquanto muitos telespectadores se perguntavam quem era aquele ator, ele recebia o troféu das mãos de Liza Minelli e, puerilmente emocionado, lia sua longa lista de agradecimentos, sacada, de praxe, do bolso do smoking. Posteriormente, Szot externou sua dedicatória principal, “a todos

Paulo Szot ganhou, entre outros prêmios, o Tony de Melhor Ator em Musical

os artistas brasileiros que buscam reconhecimento”, e viu o contrato para se apresentar oito vezes por semana no Lincoln Centre Theater, em Manhattan, se estender sine die, embora o cantor garanta que volte às óperas no final do ano em Marselha e em abril de 2009 no Capitole de Toulouse. O medo inicial de atuar com um elenco habituado aos musicais, já que na ópera a garganta e o tórax valem mais que o corpo e o olhar, logo desapareceu, graças às orientações da experiente Kelli O’Hara, seu affair na peça.

Tanto desapareceu que o Tony nada teve a ver com a tal sorte de principiante. Szot ganhou em um mês e meio, nessa ordem, o Outer Critics Circle Award, o Theatre World Award, o Tony e o Drama Desk Award, além de ter sido indicado para o Drama League Award e o Audience Award. “Posso dizer que cada vez levo mais tempo para chegar em casa depois do show. Adoro o carinho do público, que me acha (e pede autógrafo) até fazendo compras no mercado, de boné e óculos escuros...”, conta o astro de South Pacific. A mais celebrada parceria do compositor Richard Rodgers com o letrista Oscar Hammerstein II é uma adaptação de duas histórias originais de Contos do Pacífico Sul (1948) – primeiro livro de James Michener (1907-1997) e vencedor do Pulitzer – e uma terceira, de tom menos sério que as outras, escrita a pedido da dupla. South Pacific se passa nas Novas Hébridas, hoje Vanuatu, onde uma enfermeira do Arkansas, Nellie Forbush, a serviço da Marinha norte-americana durante a Segunda Guerra, se apaixona por Emile de Becque, agricultor francês viúvo de uma polinésia. A ousadia de South Pacific residiu em abordar o preconceito racial em 1949, ano da estréia. Ao descobrir que os dois filhos de Becque são mestiços, Nellie, presa ao racismo provinciano com que fora educada, rompe a relação. O mesmo acontece entre o tenente Joe Cable e a jovem vietnamita Liat, o casal coadjuvante. Somente com a morte de Cable numa missão contra os japoneses, acompanhado do amigo francês, que volta ileso, Nellie decide subjugar as convenções sem sentido, em nome do final feliz. Preconceito não é algo que tenha atingido Szot, o terceiro brasileiro a ganhar notoriedade no meio musical nova-iorquino, sete décadas depois de Bidu Sayão e Carmen

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FESTIVAL Cartaz do espetáculo South Pacific, no qual o brasileiro atua na Broadway

Miranda. “Nunca percebi nenhum tipo de menosprezo no meio artístico de Nova York. O que existe é um certo protecionismo por parte das associações que defendem o artista americano nos musicais. São poucos estrangeiros na Broadway por conta disso”. A acolhida a Paulo Szot valeu também para o primeiro intérprete de Emile de Becque, Ezio Pinza (1892-1957). Os pontos em comum com o cantor italiano são outra boa fortuna que parece predestinar o brasileiro. Fora a boa recepção que ambos tiveram nos EUA, Pinza também veio de uma carreira consolidada na ópera: como baixo cantante no Metropolitan, de 1926 a 1948 – atuou inclusive com Bidu Sayão num

Don Giovanni regido por Bruno Walter em 1942, disponível em CD. O especialista italiano em ópera, Egidio Saracino, aponta que Pinza tinha uma voz de timbre rico e muito maleável, além de uma grande presença cênica. De fato, Rodgers e Hammerstein II criaram Emile de Becque especialmente para o debut de Pinza na Broadway. O diferencial de Szot, além do deliberado visual Clark Gable, deve-se à suavidade mais adequada de seu registro de barítono lírico – é possível comparar ambos no YouTube. Pinza igualmente causou suspiros e lágrimas com o vozeirão e ganhou o Tony de primeira. “Ele é impressionante com todo seu exuberante material vocal. Fantástico”, diz Szot. Pinza ainda marcou presença no cinema e Szot irá em breve pelo mesmo caminho, pois os convites já chegaram. Ele tem analisado a conciliação das propostas com o contrato com o Lincoln Center Theater. Sem previsão de se apresentar no Brasil, o paulistano revela que gostaria de cantar em Pernambuco, onde esteve uma única vez, a passeio: “Visitei o Recife e Olinda em 1985. Nunca esqueço o nascer do sol na praia de Boa Viagem – está na hora de voltar!”. Escute a interpretação do barítono Paulo Szot www.continenteonline.com.br

Quinta edição da Mimo em Olinda

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elo quinto ano seguido, a Mostra Internacional de Música em Olinda (Mimo) traz às principais igrejas da cidade renomadas atrações da música clássica e instrumental brasileira. As novidades desta edição ficam por conta do compositor e instrumentista Eumir Deodato, do trompetista cubano Yasek Manzano e do grupo América Contemporânea. Voltam à cena o violinista Jerzy Milewski, a pianista Aleida Schweitzer e o gaitista José Staneck, além de Egberto Gismonti, que inaugura o posto de compositor residente. Para estudantes, a Mimo manteve uma substancial quantidade de atividades na Etapa Educativa, que movimentará o Centro de Educação Musical de Olinda (Cemo). O grande nome da Etapa Educativa, novamente, é Isaac Karabtchevsky, que irá ministrar pela segunda vez seu curso de regência no Brasil – à frente da Orquestra Sinfônica do Recife. Os momentos finais do curso de regência com Isaac Karabtchevsky (foto) na Mimo 2007 estão disponíveis em: http://www.youtube.com/ watch?v=h63s8XyaBBE . (CEA)

Confira a programação completa da Mimo www.continenteonline.com.br

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Fotos: Divulgação

Unidos pelos versos de Neruda

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compositor Peter Lieberson e a meio-soprano Lorraine Hunt se conheceram em 1997, no ensaio de uma ópera de Lieberson no Novo México, e se casaram dois anos mais tarde. Um livro com os cem sonetos de amor de Neruda, presente de Peter, lido por Lorraine nos momentos a dois, inspirou uma obra para voz e orquestra sobre cinco dos poemas, concluída em 2005, nas férias do casal norte-americano em Abadiânia, cidade goiana próxima a Brasília. Dotadas de uma profundidade e placidez raras na música contemporânea, as Canções de Neruda impressionam por

serem, sobretudo, uma Neruda Songs declaração de amor Lorraine Hunt Lieberson transposta em pautas sings Peter Lieberson Nonesuch/Warner Music como poucas. 30,00 reais Assemelhando-se, na orquestração serena e etérea, às mais contemplativas das Canções da Auvérnia de Canteloube de Malaret (como no conhecido Baïlero), Lieberson explorou com extrema expressão a ampla tessitura da esposa, perfeita do registro de soprano ao de contralto. Esta gravação ao vivo, com a Orquestra Sinfônica de Boston e James Levine, antecedeu a despedida de Lorraine, em 2006, quando ela escolhera sugestivamente cantar a Urlicht da Segunda de Mahler (Ressurreição). Lorraine faleceria de câncer de garganta quatro meses mais tarde, aos 52 anos, e nos últimos dois Grammy viria a ganhar postumamente o prêmio; o mais recente, por este CD. (Carlos Eduardo Amaral)

> Contemporâneo, com independência

> Composições de Joaquín Rodrigo

> Para reconher o valor de Schubert

> As heroínas de Giacomo Puccini

Ciarán Farrell tem-se evidenciado entre os jovens compositores irlandeses por sua linguagem acessível e independente, pois passa distante do atonalismo e da música folclórica, qualidade que o credenciou a compor música incidental para dança, TV e cinema. Perfect state, por exemplo, atendeu a uma encomenda de uma companhia de dança e exibe vigor na versão para cordas, e The Shannon Suíte, para violão e sax soprano, sintetiza a paisagem de três lagos ao longo do maior rio da Irlanda. Cinematográfica é Hopkins on Skellig Michael, inspirada num poema e que retrata a ilha onde se situa um dos mosteiros mais antigos do país, na verdade uma peça para narrador e orquestra similar à famosa Lincoln Portrait, de Copland. (CEA)

Caso único de compositor cego na História da Música (conseqüência de difteria, aos três anos de idade), o espanhol Joaquín Rodrigo (1901-1999) sempre se manteve fiel às harmonias e melismas típicos de seu país. Autor de catálogo relevante, invariavelmente qualquer CD de Rodrigo tem de vir com seu carro-chefe, o Concerto de Aranjuez, aqui acompanhado da também prestigiada Fantasia para um gentil-homem. Nelas, o maranhense Turíbio Santos toca com a Orquestra Nacional da Ópera de Monte Carlo, à qual falta um pouco de calor ibérico nos soli de naipes e de equilíbrio nos tutti. O plus fica por conta da Tonadilla, para duo de violões, com a participação de Oscar Cáceres, e de duas peças solo: Zapateado e Fandango. (CEA)

Ofuscado em vida pelo sucesso de seus lieder, Schubert não desfrutou do reconhecimento de suas obras orquestrais, em particular da célebre Sinfonia n° 8, a Inacabada. Comparada com as primeiras, muito clássicas e sem voz própria, ela sugere ter sido um estágio de maturação que esgotou em dado momento e permaneceu deliberadamente incompleta. Neste CD, pode-se distinguir a seriedade da Oitava da frivolidade da Terceira, tocadas pela Filarmônica de Nova York sob regência de Kurt Masur. A peça mais atrativa do álbum, porém, pelo virtuosismo e pela estruturação, é a longa Wanderer-Fantasie, na transcrição para piano e orquestra de Liszt. O solista, o russo Boris Berezovsky, Prêmio Tchaikovsky em 1990. (CEA)

Segundo consta, Puccini teve relações amorosas problemáticas, em especial com a paranóica esposa Elvira, e sublimou no destino trágico das protagonistas de suas óperas os dissabores impostos por suas mulheres. Tornou-se ilustrativa dessa sutil crueldade disfarçada, inclusive na solidão da personagem em relação à orquestra, a ária Sola, perduta, abbandonata (“Sozinha, perdida e abandonada”), de Manon Lescaut. As divas puccinianas suportaram tal fardo, exceto Turandot. Esta coletânea reúne as mais queridas do público, como Madame Butterfly, Liù e Mimi, quase todas interpretadas por Kiri Te Kanawa. Um oportuno CD surgido nestes 150 anos de nascimento do compositor toscano de Lucca. (CEA)

Perfect state Ciarán Farrell RTÉ Lyric FM 50,00 reais Pedidos: http://www. ciaranfarrell.com/

Rodrigo – Obras diversas Apex/Warner Music 25,00 reais

Schubert – Sinfonias 3 e 8 e Wanderer Fantasie Apex/Warner Music 25,00 reais

Puccini’s heroines – The power of love Warner Classics 25,00 reais

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Os violões siameses da família Assad

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ardim abandonado é daqueles CDs em que os resenhistas gastam algum tempo pensando em que categoria ele se enquadra. No caso da Continente, ele poderia muito bem figurar na página ao lado, a de música clássica, mas entrou nesta aqui, após um fictício cara-oucoroa, sem necessidade de mudar o enfoque por conta disso. Seja qual for o compositor ou o estilo musical, se uma música é transcrita para um par de violões que soam tão coesos e tão completos como uma orquestra, deduzse logo, aqui no Brasil ou no exterior, que tem dedo(s) dos irmãos Assad. Cabe ao ouvinte – considerando que a execução deles não dá mostras de cair de padrão, depois de 40 anos juntos – apreciar ou não o repertório. Entre as peças que meJardim recem a atenção, estão as abandonado Sérgio e Odair Assad três de Clarice Assad, filha Nonesuch/Warner de Sérgio e sobrinha de Music Odair. Desconhecida por 28,00 reais cá, a jovem compositora,

cantora e pianista, que herdou o gene musical dominante da família, tem recebido boas críticas nos EUA. Além das composições domésticas, o Duo Assad reuniu três compositores ligados por afinidades harmônicas: Debussy, Gershwin (numa primorosa Rapsódia in Blue) e Tom Jobim. Constam ainda: Adam Guettel, filho de Richard Rodgers (ver matéria sobre Paulo Szot), e duas cenas da Scaramouche de Milhaud, ou, melhor dizendo, de Ernesto Nazareth. (CEA)

> Boleros, quizás, quizás, quizás...

> Flores de amor de Omara Portuondo

> O novo disco do SP Underground

> A variação formal do coco, a mazuca

O romantismo do bolero é o foco central do último trabalho do cubano, grande estrela do Buena Vista Social Club, Ibrahim Ferrer. Mi Sueño era um projeto antigo do músico que pretendia prestar uma homenagem ao mais romântico dos estilos românticos de Cuba, o bolero, ainda que muitos afirmassem que ele não tinha voz para esse gênero. No álbum, não faltam clássicos como Quizás, quizás, do cubano Oswaldo Farrés, faixa em que Ferrer compõe um dueto com Omara Portuondo, Si te contara, Melodía del río, Perfídia, entre outros sucessos dos bailes. O disco, que foi gravado no Teatro Nacional de Cuba, em Havana, estava em produção quando o músico faleceu vítima de falência múltipla de órgãos, em 2005. (Mariana Oliveira)

Depois da passagem pelo Brasil acompanhando Maria Bethânia nos shows do disco gravado em conjunto, a cubana Omara Portuondo volta à cena com o CD Flor de Amor, lançado inicialmente em 2004. Em 1996, a cantora participou da famosa gravação do CD Buena Vista Social Club e também do documentário homônimo de Win Wenders . Em Flor de amor, há um flerte entre a música brasileira e a cubana. As 14 canções do álbum foram produzidas pelo brasileiro Alê Siqueira e entre os instrumentistas figuram brasileiros e cubanos. Carlinhos Brown é o autor da última faixa Casa calor. O encarte traz as letras também traduzidas em inglês. No verso do disco, uma frase define o material como "coleção de cartas de amor musicadas". Nada mais justo. (MO)

O São Paulo Underground, cujo núcleo, formado em 2005, é composto por Maurício Takara e Rob Mazurek (músico norte-americano radicado no Brasil), lançou The Principle of Intrusive Relationships, seu segundo álbum, com edição nacional via Submarine Records. Neste, foi explorada a formação de quarteto, com os músicos Richard Ribeiro e Guilherme Granado, que enriqueceu ainda mais o complexo quadro rítmico do grupo, acentuando a dubiedade entre as variantes formais adotadas, que ora se condensam, ora aparentam uma refração mútua. Takara, Mazurek e Granado virão ao Recife neste mês, para tocarem ao lado de Marcelo Camelo e Akin, no festival No Ar Coquetel Molotov. (Yuri Bruscky)

O disco Mazuca de Agrestina, com coordenação de Herbert Lucena, traz o primeiro registro de uma das mais antigas e tradicionais mazucas em atividade. Surgida a partir do intercâmbio cultural entre escravos fugitivos e índios no processo de colonização do agreste nordestino, a mazuca figura como uma variação formal do coco. O CD devota especial atenção às figuras de Valdir Manoel da Silva, Joaquim Sebastião da Silva (ambos letristas) e Dona Amara, que aos 106 anos conta com quase um século de envolvimento com o estilo, sendo merecidamente titulada como A Primeira Dama da Mazuca. Como extras, um remix da faixa Coqueiro do Norte, um vídeo e depoimentos gravados por Dona Amara. (YB)

Mi Sueño IbrahimF errer MCD 19,90 reais

Flor de amor Omara Portuondo MCD 19,90 reais

The Principle of Intrusive Relationships SãoPauloUnderground Submarine 10,00 reais

Mazuca de Agrestina Mazuca de Agrestina Coreto 15,00 reais

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Alquimia musical Encontro de maracatu e banda filarmônica produz surpreendente equilíbrio numa miscigenação sonora perfeita

Arquivo Fotos: Divulgação

Homero Fonseca

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o longo de cinco séculos, a brava gente brasileira se miscigenou não apenas etnicamente, mas também culturalmente, como Gilberto Freyre desvendou-nos já na década de 1930, num processo espontâneo, original e caótico. Mas foi somente a partir do século passado, salvo engano, que houve uma busca deliberada por formas culturais híbridas: o moder-

nismo paulista em cuja matriz se misturavam o dernier-cri europeu do Futurismo, de Marinetti, e o antropofagismo tupiniquim; o Tropicalismo, associando o som da banda de pífanos de Sebastião Biano, de Caruaru, ao dos Beatles aprèsGeorge Martin e transbordando para a poesia e as artes plásticas; o Movimento Armorial, de Suassuna, amalgamando o erudito e o popular na música, no teatro, na dança, nas

artes visuais; o Manguebeat, captando com as antenas fincadas na lama da periferia recifense acordes universais aos quais se adicionou a batida do maracatu, retirado do gueto e alçado à opção preferencial de jovens de classe média. No final do ano passado, na Torre Malakoff, assisti a uma apresentação do grupo Confluência, assustadoramente juntando no palco o hip-hop e o repente nordestino,

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numa operação complicadíssima, com resultado surpreendentemente bom, à frente o DJ Big e o MC Maggo, com a participação especialíssima do violeiro Adiel Luna (leia na Continente nº 86, fevereiro/2008). Com o mesmo sentimento de curiosidade e alguma desconfiança fui ao Teatro de Santa Isabel, no domingo 27 de julho, para conhecer o projeto Eu ouvi, junção de duas bem-sucedidas experiên-

cias de inclusão social: o Maracatu Daruê Malungo, da favela Chão de Estrelas, no Recife, e a Banda Filarmônica Manoel Bombardino, do distrito de Limeira, Gravatá. O primeiro, sob a direção do mestre Meia-Noite, promove há mais de 20 anos atividades de arte-educação, formando músicos e artesãos. A banda interiorana, fundada e dirigida há mais de uma década pelo maestro Adelson Pereira (baterista

da Spok Frevo Orquestra), oferece sofisticada formação musical a jovens cuja única perspectiva, até então, era, ao invés dos trompetes e saxofones, empunhar a foice e a enxada. Beleza de projetos. Minha inquietação, entretanto, se referia à qualidade estética desse singular encontro, e seria dissipada logo nos primeiros momentos do concerto, quando os jovens gravataenses inSET 2008 • Continente x

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MÚSICA

O cineasta Lírio Ferreira vem registrando o encontro dos dois grupos

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A Banda Filarmônica Manoel Bombardino surgiu em Limeira, Gravatá

O Maracatu Daruê Malungo promove há mais de 20 anos atividades de arteeducação

terpretaram impecavelmente Assim falou Zaratrusta, de Richard Strauss, emendando com um repertório que foi de Luiz Gonzaga a Chico Buarque, canções folclóricas, Capiba, Villa-Lobos (a versão conjunta Daruê-Filarmônica do Trenzinho Caipira, que encerrou o espetáculo, é de causar arrepio até num espantalho). Surpreendentemente (repito o termo usado para o Confluência), tudo se encaixando, harmonizando-se (literalmente) num espetáculo de música, dança, gestos e cores. Uma perfeita dosagem entre o batuque frenético do maracatu e a massa sonora de uma orquestra filarmônica, quando se poderia esperar um desequilíbrio na relação melodia-harmonia-ritmo. Houve espaço para coreografias afrobrasileiras e solos de metais, numa simbiose em que a interpretação das canções era condicionada a uma releitura dos ritmos, em função da composição dos dois grupos (35 percussionistas e dançarinos do Daruê Malungo e 25 instrumentistas da Banda Filarmônica Manoel Bombardino). Tal miscigenação resultou perfeita.

E aí vai o mérito para a produtora Mônica Lapa, coordenadora geral do projeto, que anteviu as dificuldades técnicas e até pessoais (para o que contou com a participação de psicólogos na aproximação dos grupos). Se o mestre MeiaNoite possuía todas as qualificações para conduzir seus batuqueiros e o maestro Adelson Pereira idem para reger seus instrumentistas, o mesmo não se poderia dizer em relação à empreitada de miscigenar essas sonoridades díspares. Para isso, foi contratado um tercius, o maestro Sérgio Campelo, do grupo Sá Grama, responsável pela direção musical do espetáculo, que alcançou a liga exata, alternando os grupos ou mesclando-os em formações quantificadamente diversas. Um trabalho de ourivesaria musical, digamos assim. A quem não estava lá, resta aguardar o filme dirigido por Lírio Ferreira, que, além do concerto no Santa Isabel, vem registrando a vivência e o encontro entre os dois grupos, com previsão de exibição entre o final do ano e o começo do próximo. SET 2008 • Continente x

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MÚSICA

Da pesquisa à auto-revelação No CD Peso leve, Geraldo Maia é acompanhado pelos jovens da banda Fio da Meada

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arte de interpretar ainda é vista com preconceito por muitos. É como se este ato – que abrange afinação, entonação, postura e escolha de repertório, para citar só alguns pré-requisitos – fosse incompleto, quando dissociado do ato de compor. Ao longo de mais de 20 anos de carreira, essa falta de sensibilidade tem sido contornada pelo cantor Geraldo Maia com uma sacada: não regravar os previsíveis medalhões. Geraldo é conhecido pelo resgate de pérolas do cancioneiro na-

cional. Seu penúltimo álbum, Samba de São João, do ano passado, é integralmente dedicado a tesouros perdidos, selecionados a partir da pesquisa “Pernambucanos no Disco”, do jornalista Renato Phaelante, que assinou os textos biográficos do encarte. Samba trazia tanto letras de figuras carimbadas, como João Pernambuco, Luperce Miranda e Capiba, quanto de compositores menos conhecidos, como Artur de Castro e Aldo Taranto. É de se estranhar, como o próprio Geraldo afirma no texto

de apresentação do CD, que composições do calibre (ou beleza) de Começo de vida, de Capiba, nunca tivessem sido regravadas até então. Meu começo de vida/ Foi triste, foi cruel/ Nunca tive alegria/ Nunca vi Papai Noel/ E assim fui crescendo/ Sem do tempo me lembrar/ Quanto mais eu crescia/ Mais crescia o meu penar, diz a letra do saudoso compositor. Escolhido a dedo, o repertório de Samba é interpretado por Geraldo como se ele tivesse se apropriado das letras, num trabalho de

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Depois de imprimir estilo próprio em pérolas históricas, Geraldo Maia se renova em CD autoral Thiago Lins Rafael Gomes

(re)criação. Talvez, inconscientemente, os germes de Peso Leve, seu primeiro CD autoral, lançado este mês, já estivessem ali: a cara própria que dava às músicas já fazia dele um criador, mas ainda em vias de se tornar letrista de fato. O cantor (e agora compositor) nunca foi de se repetir. Mas as diferenças em Peso estão mais acentuadas. Além de trazer duas letras de Geraldo, foi concebido “literalmente a 10 mãos”: depois de três anos testando (e revezando) músicos, o intérprete conseguiu fechar o time com a banda

Fio da Meada, formada por Publius (violão, o único que já acompanhava Geraldo anteriormente), Rodrigo Samico (guitarra), Hugo Linns (baixo) e Rudá Rocha (bateria). São todos experientes, com passagens por bandas como a de Renata Rosa e Academia da Berlinda. “Fui saindo do contexto dos meus dois CDs anteriores (Samba de mar quebrado, de 2004, e o já mencionado Samba de São João), mais acústicos, quase camerísticos”, explica o cantor que, como todo músico que se preze, é avesso a rótulos, mas não descarta dois termos que chegam perto de uma definição para seu novo disco: “pop e contemporâneo”. Peso leve é isso mesmo. E ainda é acessível. O sopro de renovação na obra de Geraldo pode até se refletir no seu público. Quem escuta Nação Zumbi e Mombojó, por exemplo, não vai estranhar Peso. Não que aqueles tenham influenciado na concepção da bolachinha, mas é inevitável associar Geraldo Maia, em sua atual fase, a expoentes mais recentes, dado o frescor do CD novo. Além de duas faixas assinadas por Geraldo (Vontade e Palavra), Peso traz letras encomendadas de Lula Queiroga, Rogerman e João Falcão, entre outros. O último assina a provocadora Tô Fora (Você se espalha/ Se amostra demais/ Dentro do seu mundinho... É tudo tão pósmoderno demais). Apesar da letra, Geraldo canta com uma suavidade à la Caetano, naquelas músicas do tipo veja-como-posso-ficar-bemmesmo-sem-você. Peso é um álbum equilibrado, sem virtuosismos desnecessários, nem minimalismos comodistas. O Fio da Meada, banda que acompanha Geraldo (e completa também), já tinha as músicas praticamente prontas antes de entrar em estúdio. Daí decorre que Peso foi a gravação mais tranqüila que Geraldo já fez: passou apenas um mês em estúdio.

“Foi um parto sem dor”, sintetiza. Filho de pais portugueses, Geraldo nasceu em 1959, no Recife. Formou-se em Sociologia, “aos trancos e barrancos”: sempre quis ser músico e começou a exercer a atividade em 1980. Estreou em disco participando da trilha sonora de Baile do Menino Deus, três anos depois. A peça ficou em cartaz – e na memória dos recifenses que cresceram nos anos 80 – por anos. Posteriormente, Baile ganharia nova montagem. Em 1988, o cantor participou de outra grande peça, Arlequim. Ambos foram projetos de Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Zoca Madureira. Naquela época, ainda gravou o LP Cena de ciúme, que se perdeu junto com a cena local pré-manguebeat. Passados dois anos, mudou-se para Portugal, intercâmbio que não trouxe novos elementos para sua obra. Pelo contrário: Geraldo voltou em 1999, cansado da “estandardização” imposta à música brasileira pelo gosto dos portugueses. Aquele foi o ano da gravação do quase acústico Verd´água, primeiro fruto da volta ao Recife. Em 2001, gravou Astrolábio, interpretando compositores como Lenine e Tom Zé. Já em 2003, participou da trilha sonora do filme Lisbela e o Prisioneiro (adaptação de Guel Arraes para a obra de Osman Lins). Fazendo um balanço da carreira, Geraldo não hesita em dizer como mudou: “Meu filtro interior está muito mais apurado”, pontua.

SERVIÇO Peso leve Geraldo Maia e o Fio da Meada Independente 17,00 reais

Lançamento e noite de autógrafos na Passa disco, dia 18/09, às 19h Escute o novo disco de Geraldo Maia www.continenteonline.com.br

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metrópole

Marcella Sampaio

Os europeus e os cachorros

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uando viajamos para os tais países ditos civilizados, a coisa mais natural é elencarmos um monte de situações, modos e costumes para estabelecer comparações com o Brasil. Lá não tem sujeira na rua, não se vê miséria (pobreza, sim, mas não miséria), as pessoas respeitam as filas e aos deficientes físicos é dada a condição de circular nas cidades sem constrangimento. Há placas indicativas por todo lado, calçadas planas, estradas sem buraco e segurança. São sinais de que o respeito ao espaço coletivo e às diferenças nestes locais atingiram um grau de maturidade que o nosso país ainda não conseguiu. Passando pela Espanha e por Portugal, porém, testemunhei diversas vezes uma situação, no mínimo, esquisita, pelo menos na minha concepção. Cachorros enormes passeavam à vontade pelas ruas, ao lado das mesas dos bares e restaurantes, sem coleira. Enquanto isso, as crianças, cuja presença era raríssima, andavam amarradas em carrinhos, mesmo as maiores. Nós, pessoas normais, que achamos que cachorro é cachorro e gente é gente, não tínhamos muita opção a não ser sorrir amarelo, sob pena de magoar ou constranger o bicho e o seu dono. E sabe-se lá o que um dono de pastor alemão ma-

Reprodução

goado pode fazer. Os demais passantes estavam obrigados a achar aquilo tudo normal, corriqueiro, para serem considerados civilizados. Uma única família formada por mãe, pai e três filhotes, em todos os meus 20 dias de viagem, chegou a perguntar se a presença de seus rebentos incomodava. Alguém é louco de dizer que sim? Se não gosta de animais ao lado do seu prato de comida, o chato incompreensivo e fora de moda é você. Provavelmente, esse sentimento filial em torno dos cães tem a ver com a baixíssima natalidade das atuais famílias européias. As pessoas não querem ter filhos, e projetam nos animais a ancestral necessidade de perpetuar a espécie. Esquizofrênico, pois não? O pior é que esse hábito começa a pegar também aqui no Brasil, onde cada vez mais gente veste seus lulus de unhas pintadas com roupichas modernas, e beija o focinho dos bichinhos sem enxergar nisso o menor problema. Vá lá que seja, quando a situação fica restrita à casa de cada um. Obrigar os outros a assumir o cão como companheiro de espécie, aí já é demais. Assim como a fumaça do cigarro, a presença de um cachorro estranho, embaixo de sua mesa num restaurante, incomoda, sim. Por mais educados que sejam, animais são animais, portanto, imprevisíveis. E se uma criança pequena pisar no rabo de um deles? Natural e instintivamente, o bicho vai se defender. As conseqüências podem ser desastrosas, e parece que os cidadãos europeus ainda não se deram conta disso. A fim de compensar afetos maldigeridos e maldirecionados, o ser humano pode ser muito estranho.

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