Continente #094 - Baú de memórias

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aos leitores

Memória restaurada

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uas tranqüilas, trânsito raro, um bonde aqui, ali um automóvel; calçadas quase desertas, onde passam mulheres sem pressa, emolduradas pelo casario antigo; a imponência do Grande Hotel; o Zeppelin pairando sobre os prédios esparsos. Imagens que dão uma nítida impressão de silêncio e paz. Estas cenas são do Recife de meados do século 20, registradas pelos primeiros fotógrafos profissionais e amantes da fotografia que atuaram por aqui, utilizando negativos em chapa de vidro, a tecnologia de ponta da época. Foram recuperadas do acervo do Museu da Cidade do Recife que, após um trabalho de oito meses num processo de restauração e digitalização, selecionou 80 imagens que farão parte de uma exposição aberta ao público no próximo mês. Viabilizado por um projeto do Instituto de Desenvolvimento Humano aprovado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, este trabalho de restauração da memória pernambucana vai ganhar um reforço com o lançamento de álbum com 160 fotos históricas do Recife e municípios adjacentes, pelo Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano em parceria com a Companhia Editora de Pernambuco, Cepe. A coleção é a mais antiga de Pernambuco e a grande maioria das imagens, de autoria do francês Cláudio Burle Dubeux, é inédita. Completando o ciclo, a Cepe promoverá um Curso de Conservação de Acervos Documentais, Artísticos e Bibliográficos, destinado a todos os funcionários públicos do município e do Estado, a fim de capacitá-los na preservação do patrimônio cultural de Pernambuco. É a preservação do passado, integrada na ação de projetar o presente no futuro. Matéria especial desta edição enfoca a participação de Pernambuco, como Estado homenageado, na 54ª Feira do Livro de Porto Alegre, de 31 de outubro a 16 de novembro, numa confraternização mais que literária, reveladora de afinidades históricas e culturais entre os dois Estados. Estandes de editoras locais, lançamentos de livros, palestras e interpretações de textos pelos próprios autores, aula-espetáculo de Ariano Suassuna, gravuras de J. Borges, cordel de Allan Sales e o frevo retumbante da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério ocuparão, no período, o centro histórico da capital gaúcha, num diálogo com a sólida cultura gauchesca. Outros temas relevantes deste número são: exposição significativa do design brasileiro na Argentina, a boa acolhida na Europa do novo cinema turco e o legado do Mestre Salú, recentemente falecido, a várias vertentes da cultura pernambucana.

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A Trupe do Barulho estréia Apareceu a Margarida, em setembro

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Os novos rumos de Lourenço Mutarelli Rafael Gomes

Fotos: Reprodução

As pianistas pernambucanas

Memória restaurada

CONVERSA 4 >> Obsessões e exorcismos de Lourenço Mutarelli BALAIO 10 >> Kafka numa história não kafkiana CAPA 12 >> Museu mostra fotos restauradas do Recife 20 >> O dilema entre conservação e restauração 22 >> Álbum de luxo trará imagens oitocentistas ARTES 24 >> A função dos sites de artes plásticas DESIGN 30 >> Capista Moema Cavalcanti ganha Jabuti 34 >> Estilo brasileiro ganha o mundo MÚSICA 39 >> As damas do piano em Pernambuco 44>> Agenda música 46>> Polêmica: o jazz influenciou a música erudita? CINEMA 52 >> Cinema turco se globaliza

Arte na internet

CÊNICAS 60 >> A experiência do palco móvel do TEP 64 >> Verlaine e Rimbaud em cena AGENDA.COM 66 >> Uma janela para Pernambuco CRÔNICA 68 >> O caju, segundo Hermilo Borba Filho TRADIÇÃO 73 >> O legado de Salú, do popular ao erudito LITERATURA 77 >> A poesia de Regina Carvalho 78 >> Agenda livros ESPECIAL 80 >> Feira do Livro no Sul abre espaço a pernambucanos 82 >> Por que os gaúchos não caíram no vanguardismo 86 >> Tradição e renovação nas letras pernambucanas 90 >> Uma nau nordestina nos pampas 95 >> Livro, cordel, frevo e gravura às margens do Guaíba

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Fotos: Divulgação

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Identidade do cinema turco Rimbaud e Verlaine no palco

Pernambuco gaúcho Em alguns dias, Porto Alegre vai se transformar numa extensão de Pernambuco. Entre 31/10 e 16/11, a capital gaúcha será sede da 54a Feira do Livro de Porto Alegre, que, este ano, homenageia Pernambuco. Vários escritores e artistas pernambucanos participarão da programação, em lançamentos, palestras e oficinas. Para acompanhar tudo isso, a Continente Online estará em contato direto com o repórter Samarone Lima, que promete comentar e relatar o que estiver acontecendo por lá.

e mais... Confira o vídeo Arte/Pare do artista Paulo Bruscky e um desenho da jovem Bruna Rafaella, publicados na Mostra Catálogo 2ptos

COLUNAS TRADUZIR-SE 32 >> A obra marcante de Denize Torbes METRÓPOLE 51 >> Forma-se no ar a revolução dos pincéis MATÉRIA CORRIDA 58 >>Auto-retratos em comparação SABORES 70 >> Cravo-da-índia, canela, gengibre Romance de Saramago chega às telas

Ouça o disco Waterbikes que mistura ritmos brasileiros com o jazz

Conheça um pouco mais sobre o trabalho gráfico de Lourenço Mutarelli

Leia um trecho da coletânea, inédita em português, de Julio Cortázar

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conversa A minha infância foi muito sombria. Minha vida melhorou muito depois de O cheiro do ralo. Depois que escrevi esse livro, acho que passei a viver com certa tranqüilidade. Passei a ter uma visão melhor do passado

Lourenço Mutarelli

Rafael Gomes

A catarse no ralo

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Ficcionista e quadrinista profundamente inquieto e autobiográfico, Lourenço Mutarelli, que já teve obras adaptadas para o cinema e para o teatro, vem conseguindo a atenção e o respeito da crítica ENTREVISTA A André Dib

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ascido no emblemático ano de 1964, o paulistano Lourenço Mutarelli não vê problema algum em expor os próprios temores, traumas e falhas de caráter nas páginas de seus livros. Trata-se de uma compulsão confessa desse paulistano da Vila Mariana, incapaz de separar vida e obra nas histórias que cria. Há pelo menos 20 anos – só para citar as situações menos bizarras –, seus personagens reviram memórias de infância numa caixa de areia para felinos, conversam com caubóis imaginários, e travam alucinados relacionamentos com glúteos femininos. Um obcecado exorcismo de fantasmas e monstros íntimos que alterna entre o cômico e o trágico, e tem rendido premiadas histórias em quadrinhos, livros, peças de teatro e filmes para o cinema. O trabalho mais famoso de Mutarelli certamente é o livro O cheiro do ralo, cujo protagonista foi encarnado nas telas por Selton Melo. Trata-se somente da ponta de um iceberg, formado por títulos como O natimorto (outro que acaba de virar filme), Jesus Kid e o novíssimo A arte de produzir efeito sem causa, seu primeiro trabalho publicado pela Companhia das Letras. A convite da editora, por sinal, meses atrás viajou a Nova York para coletar material para o próximo livro, o projeto coletivo Amores expressos. Nos quadrinhos, responde por uma lista que inclui Transubstanciação, O dobro de cinco e Caixa de areia. De passagem pelo Recife, por ocasião do 6° Festival Recifense de Literatura, Mutarelli concedeu uma entrevista exclusiva à Revista Con-

tinente, na qual revelou o motivo comum a todas as suas histórias: a relação com o pai, já falecido. Por sinal, a ausência da figura paterna é colocada como um dos motivos da retirada precoce do mundo dos quadrinhos, meio em que, apesar de ter proporcionado largo reconhecimento, insiste em tratá-lo como um corpo estranho. “Fui melhor recebido na literatura, aqui sou tratado como um igual”, disse o artista, que acaba de participar da coletânea Um homem célebre (Publifolha), onde apresenta um Machado de Assis “psicografado” em poucos grafismos e muitas palavras. Mais uma ousadia desse ficcionista profundamente autobiográfico. Reescrever Memórias póstumas de Brás Cubas foi escolha sua ou dos editores? Foi escolha deles. E eu não teria coragem, teria pego um texto mais discreto, como um conto por exemplo – embora seja uma obra da qual eu gosto muito, e que na minha preferência só perde para O alienista. Como se deu a criação desse trabalho, que tem como preâmbulo uma série de desenhos? Para começar, foi preciso quase um desrespeito, justamente pelo peso e pelo apreço que tenho pela obra. Levei dois anos tomando coragem, relendo. Quando o prazo estava acabando, tomei coragem. Segui uma percepção de vários elementos simbólicos sobre o mal, presentes na obra. Acredito que parte deles estejam lá, de forma inconsciente. Por exemplo, o vento, a borboleta preta, e várias outras transfigurações. Os desenhos serviram para eu me desligar um pouco do peso da obra.

Personagens doentios, em situações de delírio, são recorrentes em seu trabalho. De onde vem esse interesse? Existe uma investigação. Tenho parentes esquizofrênicos, e tentei mapear alguns deles nos quadrinhos. Eu também tive problemas, tomo medicação há muitos anos. Estudei muito o assunto. É algo que me fascina. Tenho um irmão com o problema, isso faz parte da minha vida, está muito perto. Meus personagens estão sempre perto de um surto, uma mudança, geralmente uma coisa irremediável. É quando a realidade começa a entrar em choque, e as coisas começam a se alterar. Quando meu irmão entra em surto, emite pequeno ruído, e eu fico em dúvida: será que ele está surtando? Isso me intriga. Geralmente, eu consigo identificar quando vou ficar mal, quando algo está se alterando em mim. A inquietação com a linguagem é outra característica de sua produção. Em A arte de produzir efeito sem causa, a incapacidade do protagonista em compreender as palavras se traduz na própria escrita. A idéia era trabalhar isso, a desconstrução do texto, a desconstrução geral. O livro que agora escrevo, Amores expressos, tem uma certa relação com isso. A minha idéia é contar a historia de um personagem que decide não acordar, não abrir o olho, mas tem estímulos sensoriais externos: vive no pensamento. Ele não quer acordar e enfrentar uma cagada que fez, então sonha. É como quando a gente acorda e não quer levantar. Quero segurar essa história com OUT 2008 • Continente x

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Reprodução

Meu trabalho em quadrinhos era um diálogo com meu pai. As pessoas questionam o fato de eu ter parado, mas a verdade é que quando perdi meu pai, isso perdeu o sentido

um texto corrido, de fluxo totalmente desestruturado. Para escrever Amores expressos, você morou um mês em Nova York. Como foi essa experiência? A idéia da editora foi mandar escritores para cidades que não conheciam, para escrever uma história de amor. Eu fiquei um mês no Red Brooklin, uma área meio barra-pesada, região portuária. Dizem que é um lugar maldito – assim que eu voltei para o Brasil lançaram um conto do Lovecraft chamado Terror em Red Brooklin. É um lugar onde se segrega latinos, mas nunca tive problema. Tive problemas com a policia, mas nunca com os moradores (risos). Existe muita liberdade, mas essa coisa de entender uma cidade é um grande desafio. Dois livros seus foram adaptados para o cinema. Como foi entregar um trabalho seu a outra pessoa? Como é uma adaptação, sinto-me à vontade, porque meu trabalho está preservado. Minha obra é o livro, então, por pior que seja esse outro trabalho, ele não é meu, é de outra pessoa. Claro que, se fosse algo muito ruim, poderia comprometer o meu trabalho. Mas nesses dois casos, e também na adaptação de Mário Bortolotto para o teatro, estavam em boas mãos, com pessoas que têm uma relação importante com o meu trabalho, e tinham capacidade de executar alguma coisa interessante. Você assina as seqüências de animação de Nina, o primeiro longa de Heitor Dhalia. Como foi essa experiência? Fiz uma animação com bico de pena, poucos movimentos, com o

cuidado de não quebrar a unidade do filme. Hoje não tenho muita paciência para animação, acho algo mastigado demais. Eu gosto de quadrinhos porque eu sugiro, mas quem constrói é o leitor. Do que se trata Natimorto, que acaba de ganhar versão para o cinema? Em Natimorto existe um certo mau humor, o mesmo do Cheiro do ralo. O filme é um mergulho do personagem sem nome, um agente que fuma um maço de cigarros por dia, na época em que começou a sair a primeira campanha (anti-tabagista) com fotos. Ele foi criado por uma tia que lia tarô, então começa a perceber uma relação entre as cartas e essas figuras. Ele pensa que algumas figuras são novos arcanos e que outras se relacionam com os arcanos do tarô. Como ele compra um maço toda manhã, acha que pode saber como será seu futuro imediato. Na literatura, quais são suas maiores influências? Eu sempre falo de Kafka e Dostoievski, que influenciaram muito na minha literatura, no meu quadrinho, na minha forma de pensar. Mas isso é ingrato, porque me lembrei há pouco de um comercial da Sharp que me influenciou muito. E de um licor italiano que meu pai bebia, com uma bruxa no rótulo, que eu passava horas olhando. E no universo dos quadrinhos, quem mais lhe marcou? Principalmente os clássicos. Meu pai tinha uma coleção grande, com clássicos que me fascinavam muito: Will Eisner, Príncipe Valente, Dick

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Tracy, Flash Gordon, Fantasma. Lembro de uma história do Eisner que começa com uma advertência: “Por favor, não ria, isso não é uma história engraçada”. É uma história poética, de um cara que voa e ninguém vê. No fim, ele cai morto por uma bala perdida. A cena dele caindo é clássica. Quando eu vi aquilo, senti que era possível fazer qualquer coisa em quadrinhos, e me deu vontade de fazer também.

que eu sempre apanhava. Para uma criança, isso aterrorizava muito. Uma vez, ele me deu uma surra tão violenta que passei uma semana com dificuldades para andar. Já minha mãe era muito fria, seca, só abraçava a gente no Natal. Meu pai, pelo menos, depois da surra tinha remorso, vinha fazer um carinho, pedir desculpas. De alguma forma, ele era mais afetuoso, então eu me tornei muito mais próximo a ele.

Seus personagens geralmente vivem envolvidos com armadilhas da memória. Isso tem a ver com a forma como você encara o seu próprio passado? A minha infância foi muito sombria. Acho que há até um, dois anos atrás, eu via minha infância com os olhos de quando eu estava naquela época. Não conseguia me livrar daquela visão de menino de quatro, cinco anos, petrificado em algumas situações. Hoje eu consigo perceber que nada foi tão sombrio. Era sombrio para aquele menino. A minha vida melhorou muito depois de O cheiro do ralo. Depois que eu escrevi esse livro, acho que passei a viver com certa tranqüilidade. Eu passei a ter uma visão melhor do passado.

A relação com seu pai se reflete em praticamente toda sua produção. Qual o motivo? Quando publiquei meu primeiro álbum, Transubstanciação, assinei como Lourenço Mutarelli Jr. Vi que estava realizando um sonho dele, então suprimi o “Jr”. Meu pai fez teatro, tentou fazer quadrinhos, foi desenhista, pintou a óleo. Não conseguiu nada disso: virou policial. Ele era delegado de polícia, um cara muito rígido, muito severo. Descobri que ele fez até uma ponta num filme da Vera Cruz, que não sei o nome.

O que foi sombrio na sua infância? É que meu pai se tornou muito violento. Ele tinha uma filosofia em

O que você fazia antes de emplacar na carreira de desenhista / escritor? Eu tentava trabalhar, tinha aquela pressão familiar de ter um emprego. Trabalhei em farmácia, mas nada disso durou muito, eu não

Cena de O cheiro do ralo, filme baseado em obra de Muterelli

agüentava. Quando eu tirei as minhas primeiras férias, em 1986, comecei a fazer quadrinhos e tentar as editoras que existiam na época. Mas eles diziam que meu trabalho era muito diferente, que não se enquadrava na linha editorial. Demorou quase dois anos para eu conseguir um espaço na revista Animal. Você alega ter abandonado os quadrinhos devido à morte do seu pai. Como se deu isso? Meu trabalho em quadrinhos era um diálogo com meu pai. As pessoas que acompanham meu trabalho questionam o fato de eu ter parado, mas a verdade é que quando perdi meu pai, isso perdeu o sentido. Depois disso, descobri que passava horas na escrivaninha para vê-lo se emocionar com meu trabalho antes de ser publicado. Agora não tenho mais razão para passar tantas horas desenhando. Você pretende voltar a fazer HQ? Daqui por diante eu pretendo fazer um quadrinho experimental. Talvez devesse fazer isso para o meu público, mas nem isso me dá força para me entregar tanto quanto antes. Fora outras questões que me cercam, como o fato de ser um meio em que eu nunca fui aceito, não pelo público ou pela crítica, mas pelos quadrinistas, justamente pelos popstars que usam calça de couro. Acho que o artista, ou artesão, como gosto de chamar, é o que faz seu trabalho, independente. Há momentos em que eu me junto a outros solitários, e conheço amigos incríveis como Marcelino Freire e tantos outros. Fiz amigos, e a agressividade foi passando. OUT 2008 • Continente x

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Outubro 2008 – Ano 8 Capa: Acervo do Museu da Cidade do Recife

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo

Colaboradores desta edição:

Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses

ADRIANA DÓRIA MATOS Jornalista, professora e mestra em Teoria da Literatura.

Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Superintendente de Edição

Homero Fonseca

ALEXANDRE FIGUERÔA Jornalista, crítico de cinema e doutor em Estudos Cinematográficos pela Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle. ANDRÉ DIB

Superintendente de Produção

Marco Polo

Superintendente de Criação

Luiz Arrais

Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira (redação) Thiago Lins (assistente de redação) Maria Helena Pôrto (revisão) Gabriela Lobo, Lucas Paes e Yuri Bruscky (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio) Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações) Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves

CAMILA TARGINO Jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico musical. CARLOS NEWTON JÚNIOR Poeta e ensaísta. MARIANA CAMAROTTI Jornalista. FERNANDO MONTEIRO Escritor e cineasta. LOURIVAL HOLANDA Escritor, doutor em Letras, professor da UFPE e autor de obras como Canudos: fato e

Supervisão de Impressão Eliseu Souza Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira

Jornalista.

fábula (1999), Sob o signo do silêncio (1992) e Teatro moderno (1978).

Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes

Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão Contatos com a Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@revistacontinente.com.br Edição eletrônica www.continenteonline.com.br Atendimento ao Assinante 0800 81 1201/3217.2581 assinaturas@revistacontinente.com.br Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

LUÍS AUGUSTO FICHER Professor de Literatura Brasileira na UFRGS, tem mestrado e doutorado (com tese sobre Nelson Rodrigues) e é autor de vários livros de Teoria Literária. MARCELO COSTA Jornalista e crítico de cinema. RAFAELDIAS Jornalista. ROSÁLIA VASCONCELOS Jornalista. SAMARONE LIMA Jornalista e escritor.

Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor. JOSÉ CLÁUDIO Pintor. MARCELLA SAMPAIO Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.

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cartas

Arquivo CEPE

O escritor amazonense, Márcio Souza

Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 Redação: redacao@revistacontinente.com.br

TRUPE DO BARULHO Felicito a Continente pela excelente matéria sobre a Trupe do Barulho. O teatro pernambucano é tão relegado a segundo plano pela imprensa local, que é sempre motivo de alegria reportagens como aquela. Um grupo teatral com este sucesso e vitalidade artística deve ser reverenciado, independentemente do tipo de espetáculo encenado. Aliás, nesta nova empreitada, o que podemos desejar com Apareceu a Margarida é muito sucesso. Rogério Lagos, Olinda-PE

COLETIVOS DE DANÇA A matéria sobre os coletivos de dança no Brasil, escrita na Continente, por Chris Galdino, apresenta-nos um panorama sobre uma organização importante para a dança brasileira. Saber o que tem sido feito neste país imenso, dá-nos o termômetro da dança contemporânea e suas estratégias de sobrevivência, e nos mostra como estas regiões com suas múltiplas diferenças têm construído redes para sua

sustentabilidade. É importante que este tipo de informação possa circular Brasil afora e que possamos ampliar nossos horizontes olhando para além de nossos umbigos. Obrigado por colaborar para difusão desta história. Wendeson Godoy, Ipatinga-MG

ZÉ LIMEIRA Muito bom o artigo sobre o poeta Zé Limeira, publicado na edição de setembro. Mas, como “conteúdo é tudo”, gostaria de fazer um reparo: no trecho em que Astier Basilio escreve: "A obra de Zé Limeira foi adotada na Universidade de Sorbonne, na França". Não existe Universidade de Sorbonne. Existiu até 1968, em Paris, mas foi extinta depois da rebelião estudantil que abalou Paris. O prédio antigo e um centro administrativo, cultural, histórico e turístico da capital francesa, onde, também, funcionam diversos cursos da Universidade de Paris, estão preservados. Luiz Gonzaga Cortez Gomes, Natal-RN

Considero que a principal lição, para nós do Grande Norte, é que essa história de modernidade no Brasil está malcolocada. Parece que São Paulo puxa esse vagão com sacrifício e que nós, amazonenses, pernambucanos etc. somos uns atrasados que retardamos o ritmo em direção à modernidade. A história é outra. Quem era mais moderno: os que propunham uma democracia representativa, baseada em pequenas propriedades agrícolas e na indústria, com libertação dos escravos, ou um Estado agroindustrial exportador, baseado em latifúndios e na mão de obra escrava? Isso que ocorreu no Norte do Brasil foi a nossa Guerra da Secessão. Mas, para azar nosso, o Sul ganhou. Se o Sul tivesse vencido nos EUA, hoje teriam a confusão que temos aqui Márcio Souza, em entrevista a Eduardo Cesar Maia.

Revista nº 55 Julho/05 Matéria: “Essa história de modernidade aqui no Brasil está malcolocada” OUT 2008 • Continente 

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Imagens: Reprodução

História não kafkiana

O que o tempo faz

Já bastante debilitado pela tuberculose, Franz Kafka (1883-1924) passeava com Dora Diamant, sua última namorada, pelo parque Steglitz, em Berlim, quando viu uma menininha aos prantos, por haver perdido a boneca. Kafka disse que na verdade a boneca tinha feito uma viagem e lhe enviado uma carta. “Cadê a carta?”, perguntou a menina, desconfiada. “Deixei em casa. Mas amanhã eu trago”. Por vários dias, Kafka trouxe cartas da boneca em que esta explicava que crescera, tinha ido para a escola, conhecera outras pessoas, outros lugares e resolvera ficar por lá, embora continuasse amando a menina. Até que esta, satisfeita, aceitou a situação. Poucos meses depois Kafka morreria, aos 40 anos de idade. (Marco Polo)

Em 1968, no 3º Festival Internacional da Canção, no Rio, resultaram vencedoras na fase nacional: 1º Sabiá (Chico Buarque), 2º Pra não dizer que não falei das flores (Geraldo Vandré) e 3º Andança, de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós. A anódina Sabiá bateu asas e voou. Caminhando e cantando virou hino contra a ditadura e saiu de moda com a democracia. Passados 40 anos, Andança continua sendo uma das músicas mais cantadas nos barezinhos brasileiros. É aquela que diz: “Vim, tanta areia andei/ Da lua cheia eu sei/ Uma saudade imensa". (Homero Fonseca)

O Pravda do Papa L’Osservatore Romano, o jornal porta-voz do Vaticano, está passando por reformulação total, sob comando de Giovanni Maria Vian, que, apesar de ser um teocon (teólogo conservador), está abrindo espaço para a política internacional, a cultura pop (sob o comando de uma mulher – raridade na redação daquele jornal), além da colaboração de intelectuais agnósticos ou não católicos, como a historiadora judia Anna Foa, o pastor protestante JeanArnold de Clermont e mulçumanos, entre outros. “É possível criticar o Papa no L’Osservatore Romano?”, indagou um jornalista americano. Resposta de Vian: “Existe algum jornal do mundo que critica seu dono?” (MP)

O Recife que dança A 13ª edição do Festival Internacional de Dança do Recife, que começa dia 9, vai trazer algumas atrações nacionais e internacionais. Abrindo os 10 dias de programação, no Teatro de Santa Isabel, a performance Quinteto, do grupo carioca Staccato, dirigida pelo coreógrafo Paulo Caldas. Entre as atrações estrangeiras estão os espetáculos Tierra de Mandelbrot e Plano Difuso, do coreógrafo argentino Edgardo Mercado, e Umwelt, da companhia francesa Maguy Marin. (Mariana Oliveira)

DESAFORISMOS "Do jeito que as coisas andam violentas, no futuro só delinqüentes e fumantes circularão pelas calçadas das grandes cidades brasileiras." Tutty Vasques

Editora premiada O projeto de reportagem, A relação do público brasileiro com a arte contemporânea, avanços e diálogos, da editora desta Continente, Mariana Oliveira, foi um dos 61 ganhadores da Bolsa Avina de Investigação Jornalística. O prêmio de 3.800 dólares será utilizado para realizar uma série de artigos para a Continente. A jornalista participará do II Encontro das Bolsas Avina de Investigação, em novembro, em Cartagena, na Colômbia. (Lucas Paes)

Culpa e inocência Albert Camus, em A queda, afirma que a palavra “desconforto” tem origem numa cela de masmorra da Idade Média, onde os condenados eram esquecidos até a morte. A cela não era alta o bastante para se ficar de pé, nem larga o suficiente para se deitar. O preso, segundo Camus, “por meio do imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, aprendia que era culpado e que a inocência consiste em poder esticar-se livremente”. (Fred Navarro)

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Anais lusitanos (1)

A cor do mar

Nas Ordenações Afonsinas (D. Afonso II, 1185-1223) estão registradas algumas usanças que dizem respeito à Justiça daquele período já distante da História portuguesa – as leis gerais do reino. Se alguém dizia paravoas devedadas (palavras proibidas) a alguma mulher honrada, era obrigado a jurar-lhe, diante de 12 mulheres boas ou 12 homens bons, que a caluniara e que nada conhecia da sua conduta por onde ela perdesse. (Duda Guennes)

Como digo na primeira crônica publicada nesta Revista Continente (“Meu canto de luta guerreiros ouvi”), uma madrugada, sem nunca ter lido a Ilíada, nem a Odisséia, olhei o mar do alto onde moro em Olinda, e o pintei vermelho arroxeado da cor que vi. E assim me ocorreu depois, sem que ligasse uma coisa a outra na ocasião, ao ler os versos de Homero criador dessa imagem: o mar cor de vinho. Um outro Homero, o nosso autor do romance Roliúde, Homero Fonseca, não está tão certo da cor do vinho citada pelo grego, sugerindo que pode ter se referido ao vinho branco, “cuja tonalidade esverdeada estaria mais próxima do Mar Jônico”. Valho-me de Jesus, mostrando o cálice de vinho tinto como sempre entenderam os pintores e o padre na missa, ao dizer: “Este é o meu sangue”. Resta saber se o sangue de Jesus era branco ou azul como o dos aristocratas e da garrafa de certo Liebfraulmich (José Cláudio)

Anais lusitanos (2)

Nenhuma mulher podia queixarse de ter sido violentada dentro da vila, salvo se a metessem em lugar onde não pudesse gritar. Nesse caso, apenas saísse dali, devia vir chorando e bradando pelas ruas, e ir logo ter com a Justiça, e dizer: – Vedes, o que me fez fulano? Se o caso era fora da vila, devia vir todo o caminho chorando e gritando, e dizendo a todos que encontrasse, quer fossem homens, quer mulheres: – Vedes o que me fez fulano. E ir do mesmo modo queixar-se à Justiça. (DG)

“No fim, tudo dá certo. Se não deu certo, é porque ainda não chegou ao fim.” Fernando Sabino, atribuindo a frase ao seu pai.

Como foi publicar o primeiro livro? "Em 1987, terminei de escrever O relato de um certo oriente. Depois que enviei o manuscrito, pela primeira vez, um editor do Rio tinha se interessado e disse que ia publicar, mas não saía... Um ano depois, ganhei a bolsa Vitae de literatura, em São Paulo. Com a repercussão do prêmio, o pessoal da Companhia das Letras veio me perguntar se eu tinha algum manuscrito. Àquela altura, o prazo contratual para publicação pela outra editora já tinha expirado e, em 1989, o livro finalmente saiu, pela Companhia. Foram quase dois anos, mas eu não tinha pressa para publicar. Sabia que literatura não cai do céu. Os temas existem a partir de histórias indiviuais. É um complexo de experiências, a gente tem de passar por uma espécie de filtro. Tanto que demorei quase cinco anos até escrever O relato. Pensando, escrevendo e reescrevendo. Hoje em dia, todo mundo é ou quer ser escritor. Mas, da quantidade, sai a qualidade." Milton Hatoum, escritor. OUT 2008 • Continente

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CAPA

O Museu da Cidade do Recife exibe ao público, no próximo mês, série de fotografias,

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Vista da Praça Maciel Pinheiro em fotografia de Alexander Bérzin

produzidas em meados do século 20, na clássica técnica dos negativos de vidro

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CAPA

Camila Targino

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preservação de coleções de fotografias dá margem a instantes de recordação e emoção, a partir das inúmeras experiências vivenciadas na cidade pelos seus moradores, ao longo das décadas. Esses conjuntos de imagens são testemunhos de aparências longínquas, já bastante distanciadas de nosso cotidiano: fotografias são vestígios, restos visíveis de uma história intangível. O Museu da Cidade do Recife (MCR) exibirá ao público, neste mês de novembro, uma série de imagens fotográficas, produzidas em meados do século 20, na clássica técnica dos negativos de vidro. Encontraremos nessa exposição, intitulada Memória revelada, uma cidade repleta de construções, de eventos sociais, e de festejos. Um Recife que se percebe moderno, mas de uma modernidade impressa em um preto e branco específico, de baixo contraste, com suave dégradé de tons de cinza, tão característicos desses negativos de vidro, conhecidos tecnicamente por dry-plates ou mesmo chapas secas. A exposição é resultado de oito meses de um processo de conservação e restauro dos negativos, viabilizado por um projeto proposto pelo Instituto de Desenvolvimento Humano ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Os objetivos dessa ação congregaram a formação de jovens na área da preservação de acervos fotográficos, a conservação da coleção propriamente dita e a acessibilidade das imagens ao público. A museóloga Gabriela Severien, responsável pela coordenação do projeto, contou com a experiência de Albertina Lacerda (da Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj), do fotógrafo Elpídio Lins Suassuna (in memoriam), além de oito estagiários e dois voluntários, todos voltados para o trabalho de limpeza mecânica, restauração, acondicionamento, identificação sumária e digitalização dos negativos. Durante a limpeza mecânica, todos os negativos foram higienizados com

um composto à base de cloro, tecnicamente chamado de tricloroetileno, além de álcool e água destilada, visando à retirada de fungos, resíduos de gordura e detrito animal. A museóloga pontua que a emulsão fotográfica, lugar onde fica impressa a imagem, é bastante delicada e a limpeza foi realizada apenas com diafragma de ar e trincha bem macia, sem nenhuma intervenção química. Na etapa do restauro, vários pedaços de negativos quebrados tiveram que ser unidos com gelatina natural: mais de 100 imagens foram remontadas com o máximo de precisão possível e receberam uma moldura de vidro para proteção da peça. Em seguida, todos os negativos foram embalados em papel alcalino e acondicionados em armários de aço, preocupação somada a um maior controle da temperatura e umidade do ar, diminuindo a proliferação de fungos e ácaros na sala da reserva técnica. Para finalizar o processo, foi realizada a identificação sumária e digitalização de todo o material. Gabriela explica que essa última etapa exigiu um trabalho de pesquisa detalhado para reconhecer os negativos: “O fato é que eles já chegaram ao museu sem uma numeração que correspondesse ao livro de tombamento, e também não possuíam marcas de assinatura dos fotógrafos, o que exigiu a observação detalhada de cada um dos negativos”. Para esse discernimento, a coleção passou por um inventário mecânico no intuito de captar informações que porventura estivessem impressas nos negativos, nos envelopes de acondicionamento antigos ou no próprio livro de tombo. Contudo, antes do processo de limpeza e organização, essa coleção esteve vetada ao manuseio do público, em razão das precárias condições de conservação dos negativos. Para que todos tivessem acesso às imagens, vários positivos foram confeccionados, ao longo das décadas, a partir dos negativos de vidro. Esse trabalho foi realizado no

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1 Cais Martins de Barros, em fotografia de Alexander Bérzin; 2 Detalhe do Jardim da Praça da República (A. B.); 3 Orquestra do Centro Musical de Pernambuco (fotógrafo não identificado)

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CAPA próprio DDC ou mesmo em um antigo laboratório, hoje desativado, no próprio museu. Historicamente, qualquer consulta à coleção era realizada em livros de tombo com essas pequenas imagens anteriormente positivadas. No final de 2009, a indexação digital colocará à disposição do público, em plataforma on-line, todos os negativos. Vale a pena especificar que, em todas essas etapas, foi recorrente a discussão ética sobre a interferência do restauro na obra dos fotógrafos. Esses diálogos levaram a equipe técnica a precisar critérios para que a ação de conservação e restauro na coleção não agredisse a proposta dos fotógrafos. Algumas intervenções criativas destes – como a colagem de máscaras de papel sobre os próprios negativos –, mesmo interferindo na estabilidade do negativo, foram mantidas intactas; prevaleceu o bom-senso no momento de tais intervenções, um cuidado com as propostas inventivas dos fotógrafos da época. Betânia Corrêa de Araújo, diretora do MCR, propõe uma curadoria para pensar a relação desses negativos com a sua própria memória no campo da tecnologia, e com a memória da cidade; a fotografia como resquícios das mudanças ocorridas na paisagem do Recife ao longo das décadas de 40 e 50 do século passado. Essa edição de imagens selecionará em torno de 80 negativos fotográficos que contemplem a paisagem urbanística recifense, seus aspectos arquitetônicos, suas transformações estruturais; visará a uma contextualização histórica da técnica fotográfica dos negativos secos de vidro, seu modo de operação e, sobretudo, à visualidade específica que essa tecnologia produz no final do século 19. Na mostra será lançado catálogo com a história da coleção, o processo de conservação de fotografias em chapas de vidro, os aspectos urbanos contemplados e a história da técnica fotográfica que possibilitou a impressão das imagens. A gênese desses negativos de vidro se confunde com a própria história da

implantação das bibliotecas populares na Zona Metropolitana do Recife e com a institucionalização do patrimônio cultural da cidade. Foi Manoel de Souza Barros, na época diretor do Departamento de Estatística, Propaganda e Turismo, que, em junho de 1945, na gestão do prefeito Antônio Novais Filho, propôs a criação de uma instituição capaz de criar e gerir meios de difusão e preservação da cultura da cidade. Dessa maneira, veio a se estabelecer a Diretoria de Documentação e Cultura (DDC) da Prefeitura da Cidade do Recife. Esse espaço, então institucionalizado, surge em meio às discussões da esquerda modernista, bastante preocupada com a disseminação da cultura popular e da política no seio da massa da população. Essa vulgarização político-cultural vinha através da construção de bibliotecas populares (Afogados, Casa Amarela, Santo Amaro e Encruzilhada) e da preservação da memória documental de uma época. Vários artistas – fotógrafos ou amantes da fotografia – desenvolveram importante produção voltada para a defesa da paisagem urbana da cidade, mas não somente, uma vez que vários outros aspectos culturais foram também foco das lentes de José Césio Regueira Costa, diretor do DDC; Alexandre Bérzin, fotógrafo da Letônia radicado no Brasil; Hélio Feijó, arquiteto e artista plástico, e Benício Dias, também fotógrafo. Nos inícios dos anos 60, durante a gestão de Miguel Arraes, foram convidados alguns artistas para a composição do Movimento de Cultura Popular e, paulatinamente, a importância da antiga diretoria foi sendo relativizada. O fato é que toda uma produção de fotografias sobre a cidade foi, com a extinção do DDC, pulverizada em várias instituições da Prefeitura da Cidade do Recife, entre elas o museu que abriga a coleção.

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Museu da Cidade do Recife (MCR), De terça a sexta-feira, das 9 às 17 horas e, aos sábados e domingos, das 13 às 17.

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1 Hotel Central em fotografia de Alexander Bérzin; 2 Rio Capibaribe, Ponte da Boa Vista (Alexander Bérzin); 3 Porto do Recife – Treinamento de aviões com porta-aviões (fotógrafo não identificado); 4 Edifício Sul América, Praça do Diario (fotógrafo não identificado)

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1 Cais do Apolo, o Graf Zeppelin sobrevoa o bairro do Recife, 1936, em fotografia de Alexander Bérzin; 2 Graf Zeppelin sobrevoa a Praça da República, 1936 (A.B.); 3 Campo de pouso no Jiquiá, aeronave junto à torre, 1936 (A.B.); 4 O Graf Zeppelin, no campo de pouso no Jiquiá, 1936. (A.B.)

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Durante o restauro, os negativos em vidro foram higienizados e depois embalados em papel alcalino

A química da revelação Indústria fotográfica começa com a passagem dos experimentos em chapas de vidro molhadas para o sistema dry-plates

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chapa de vidro é um dos inúmeros suportes para a captação da imagem fotográfica no período oitocentista. De maneira hegemônica, duas tecnologias do campo do fotossensível utilizaram o vidro como suporte para a captação de negativos: as chapas de vidro molhadas (wet-plates) e as chapas de vidro secas (dry-plates). As chapas molhadas surgem com os experimentos de Frederick Scott Archer, no início da década de 50. Metragens de vidro passam a ser emulsionadas com colódio e sais de prata para a captação das imagens negativadas. Com a emulsão ainda molhada, e previamente espalhada no vidro, o negativo deveria ser colocado dentro da câmera fotográfica de madeira. Após

a captação da imagem latente na chapa de vidro, o revelador à base de sulfato de ferro a tornaria aparente, e, para finalizar a confecção da fotografia negativada, um banho químico, preparado com cianeto de potássio, fixaria a imagem no vidro para tempos futuros. O processo de confecção das chapas secas surge, a partir da década de 70, com as pesquisas de Richard Leach Maddox e, em muitas medidas, abandona a dimensão do laboratório fotográfico artesanal nos moldes do século 19. Os suportes de vidro passam a ser emulsionados com gelatina e brometo de prata pela própria indústria, que passa a centralizar, de maneira mais evidente, a produção dos insumos fotoquímicos na en-

trada do século 20. As chapas secas para a produção de negativos em vidro, os reveladores, os fixadores, entre outros produtos, passam a ser produzidos, embalados e comercializados por várias marcas, tais como Lieven Gevaert & Cie (Belga), Agfa (Alemã), Antoine Lumière et ses fils e Lumière & J. Jougla, (França), The Ilford Photographic Company (Inglaterra), J. Hauff & Co. (Alemanha). Está instaurada no final do oitocentos, de maneira determinante, a díade fotografia artesanal versus fotografia industrializada: trata-se da separação entre o mundo dos processos artesanais e a entrada na mecanização dos insumos. As dryplates compõem a era de ouro da industrialização fotoquímica. OUT 2008 • Continente x

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Encantamento histórico Álbum de luxo será lançado com 160 fotos do francês Cláudio Burle Dubeux

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Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano vai lançar, em parceria com a Companhia Editora de Pernambuco, um álbum de luxo com 160 fotos históricas. A coleção é a mais antiga de Pernambuco, e a grande maioria das imagens, de autoria do francês Cláudio Burle Dubeux, é inédita. São imagens do Recife, de municípios adjacentes e de famílias tradicionais. As mais antigas datam de 1865. Há, inclusive, uma imagem raríssima do Engenho Camaragibe, antes da reforma feita em torno de

1880. “Cláudio Burle Dubeux teve a percepção do que era o progresso no fim do século 19. Flagrou coisas que não existem mais, que foram destruídas. Resgatou, por exemplo, fases da construção da ponte da Imperatriz”, explica a presidente do IAHGP, Maria Cristina Cavalcanti. O livro ainda retrata a aristocracia dos franceses e ingleses residentes no bairro de Apipucos. “A obra reúne aspectos arqueológicos, arquitetônicos, sociais, filosóficos etc. Retrata perfeitamente o século 19 na cidade”, diz ela.

Dividido em duas partes, O Recife e outros lugares, o livro também conta a história de Cláudio Burle Dubeux, em pesquisa feita pelo arquiteto e professor José Luiz Mota Menezes. A primeira tiragem de Um olhar de encantamento (título provisório) terá mil exemplares. O lançamento deve ocorrer próximo ao Natal. “Minha sensação é de orgulho e dever cumprido. Satisfação de ter participado de algo que deveria ser feito e não esquecido”, conclui Maria Cristina. (Thiago Lins)

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1 Grupo de jovens senhoritas e senhoras, após partida de críquete, Circa 1900; 2 Grupo formado por alguns ingleses, porém, vendo-se ao centro o autor da fotografia, Cláudio Burle Dubeux (1843/1919); 3 Ponte da via férrea do Recife a Garanhuns, construída por engenheiros ingleses; 4 Garagem das locomotivas, popularmente denominadas máquinas

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Mutirão para resgate da memória em papel

Rafael Gomes

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Antônio Montenegro coordenará, na Cepe, curso de conservação de documentos públicos Yuri Bruscky

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patrimônio histórico artístico e cultural de um povo é o seu mais valioso legado. Conserválo significa, antes de tudo, manter viva uma dinâmica que, ao largo da carga de imobilismo comumente atribuída a si, preza pela memória vibrante, constantemente renovada pelo enriquecimento cultural do presente. Tal foi a premissa adotada pela Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, na elaboração do curso "Conservação de Acervos Documentais, Artísticos e Bibliográficos". A esse primeiro impulso somou-se a força de uma equipe de trabalho formada por especialistas ligados a diversas instituições da área. É o caso de Antônio Montenegro, que esteve à frente da equipe do Museu do Homem do Nordeste durante uma década e atua, há cinco anos, como coordenador-geral do Laborarte, órgão vinculado à Fundação Joaquim Nabuco, com destacado histórico de ativida-

des relacionadas à conservação de bens patrimoniais, afigurando-se hoje como uma das principais referências do assunto no Estado. Na entrevista abaixo, Montenegro fala sobre o tema e sobre o curso que ministrará na Cepe. Do que se trata e a que público se destina o curso que será ministrado na Cepe? O Curso Conservação de Acervos Documentais, Artísticos e Bibliográficos tem o objetivo de contribuir para a conservação das coleções pertencentes a instituições públicas, em todos os níveis de governo. A iniciativa primeira é da Cepe, através de sua presidenta Leda Alves. Foi formado um grupo de trabalho – de funcionários já envolvidos com estas questões em suas instituições – que agregou, passo a passo, a Fundação Joaquim Nabuco, a Fundarpe, o Museu do Estado, o Arquivo Público Estadual, a Biblioteca Pública Estadual, a

UFPE/Biblioteca Central e o Museu da Cidade do Recife. O curso será ministrado por profissionais atuantes em suas áreas: sobre Conservação Preventiva, Franciza Toledo e Antonio Montenegro; sobre originais em papel, Eutrópio Bezerra; e sobre encadernação e livros, Daniel Lima. Essa iniciativa se junta a muitas outras. Há uma carência histórica de pessoal especializado nas instituições, embora isso tenha melhorado nos últimos anos em razão de ações oriundas nas próprias instituições. A Fundaj, por exemplo, realiza cursos curtos de Conservação Preventiva, voltados principalmente para as cidades do interior da Região. Há iniciativas recentes também da Fundarpe.

Imagens: Reprodução

Da fotografia analógica ao sistema digital 1826 – Nicéphore Niépce tira a primeira fotografia permanente, com a imagem de um menino conduzindo um cavalo. 1832 – Hércules Florence, francês residente na cidade de Campinas/SP, realiza as primeiras fotografias no Brasil. 1835 – William Fox Talbot inventa o processo Calótipo e produz fotografias permanentes. 1839 – Louis Daguerre patenteia o daguerreótipo, primeiro processo fotográfico a ser entregue ao público.

1840 – William Fox Talbot inventa o processo positivo / negativo usado na fotografia moderna. 1840 – Dom Pedro II adquire um daguerreótipo e dedica-se à fotografia. 1851 – Frederick Scott Archer inventa o processo de colódio úmido. 1853 – É fundada em Londres a Royal Photographic Society, o primeiro fotoclube do mundo. 1861 – É lançado o álbum Brazil Pittoresco, do francês Victor Frond, primeiro livro de fotografia do Brasil e da América Latina.

1871 – Richard Maddox inventa a placa seca, usando emulsão de gelatina e brometo de prata. 1872 – Louis Ducos du Hauron tira a primeira foto colorida. 1876 – F. Hurter e V. C. Driffield começam a estudar a sensitividade de filmes (sensitometria). 1878 - Eadweard Muybridge captura o movimento de um cavalo com o uso de várias câmeras.

1887 – Surge o filme de celulóide. 1888 – A Kodak lança uma câmera para consumidores comuns. 1891 – Thomas Edison patenteia o cinetoscópio. 1895 – Auguste e Louis Lumière inventam o cinematógrafo. 1898 – A Kodak lança as câmeras dobráveis. 1900 – São publicadas as primeiras fotos da imprensa brasileira, na Revista da Semana.

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Qual é a alternativa para que os acervos sejam conservados sem privação do seu usufruto público? Ações como essa que está apenas sendo iniciada, reunindo instituições que têm a responsabilidade sobre esses acervos, são importantes. Mas não são suficientes. É necessário maior interesse dos gestores, é necessária uma política pública mais efetiva, perene e consistente voltada para conservação dos acervos e do patrimônio cultural público. A idéia do nosso grupo é de que esse curso signifique um primeiro passo, o início de uma série de ações – promoção de grupos de discussão, movimentação política, gestão junto a empresas e inúmeras outras – que, ao final, deverão contribuir para a melhoria do estado de conservação do nosso patrimônio cultural. No que diz respeito ao centro histórico, e aqui registro que essa é uma opinião pessoal, teríamos, antes de tudo, que ter gestores capazes e sensíveis ao problema para criar e implantar ações locais planejadas, efetivas e rotineiras que poderiam dar início, sem custos astronômicos ou idéias mirabolantes, a um saudável processo de (re)apropriação cultural do centro histórico pela população mais esclarecida. Para quem tem ouvidos, há muito a população clama por isso.

1901 – Valério Vieira realiza a fotomontagem Os trinta Valérios, premiada com medalha de prata na Feira Internacional de Saint Louis (EUA), em 1904. 1902 – Arthur Korn cria um processo prático de fototelegrafia. 1907 – As fotografias coloridas chegam ao mercado com o Autochrome Lumière. 1918 – É fundado em Porto Alegre o Photo Club Helios, primeiro fotoclube brasileiro.

Descreva as principais etapas do processo de restauração e o âmbito em que se inscrevem as medidas de conservação. Mais uma vez de maneira genérica e bastante simplificada, a intervenção de restauração de uma peça pode ser apresentada em algumas etapas: 1a) exames preliminares e diagnóstico; 2a) desmontagem e tratamento – desinfestação, limpeza, remoções de elementos estranhos, enxertos, substituições, reintegrações; 3a) remontagem. Quero enfatizar que esta é uma descrição genérica e simplificada, na verdade essas etapas são estudadas e definidas caso a caso. Quanto à conservação, esta se baseia no princípio de que os materiais passam por processos naturais de degradação, e que o profissional deve tomar iniciativas que desacelerem esses processo, identificando e eliminando ou minimizando as causas. Um exemplo clássico: não exponha, na parede da sua casa, uma aquarela muito próxima à janela; a umidade relativa do ar e a luz natural – elementos muito presentes em nossa região – irão, em pouco tempo e sem que você perceba, esmaecer os pigmentos, aumentar a acidez do papel, ou talvez propiciar o surgimento de fungos, podendo acontecer a perda irreversível do seu patrimônio.

1923 – Harold Edgerton inventa o flash fotográfico. 1923 – É fundado, no Rio de Janeiro, o Photo Club Brasileiro. 1925 – A Leica lança o formato 35mm para fotografia. 1947 – Dennis Gabor inventa a holografia. 1948 – Lançada a câmera Hasselblad.

1948 – Thomas Frakas realiza pioneira exposição de fotografias no Brasil, ocupando o Museu de Arte de São Pulo (MASP).

Qual é o material mais delicado de se manter conservado? Alguns materiais são mais resistentes que outros. Um painel cerâmico vidrado, por exemplo, é muito resistente, mas isso não significa que não deva ser objeto de cuidados. Um documento ou obra de arte em papel, por outro lado, parece ser mais frágil, mas se for bem cuidado e acondicionado de forma adequada, continuará transmitindo informações ou permitindo fruição estética por muitas centenas de anos. E no restauro? A restauração deveria ser encarada como a ação extrema a ser feita. Por mais bem executado que seja o restauro, a peça nunca mais será a mesma. Há riscos intrínsecos a qualquer processo de restauração que podem significar a perda de informações, porque os prazos são longos e os custos são muito altos – depende de materiais e profissionais especializados. Um livro raro do qual se tem apenas alguns exemplares e que, se não passasse pela intervenção, iria se perder, deve ser considerado para restauração. Um outro que, embora antigo, seja mais comumente encontrado, ou seu estado de conservação esteja estabilizado – isto é, não apresente características de aceleração dos processos de degradação –, deve ser apenas conservado.

1948 – Edwin H. Land inventa a primeira câmera instantânea Polaroid. 1957 – Primeira câmera reflex lançada pela Asahi Pentax. 1957 – Russel Kirsch produz, no US National Bureau of Standards, a primeira imagem digitalizada a partir de um computador. 1959 – Lançada a Nikon F. 1959 – A Agfa produz a primeira câmera totalmente automática. 1965 – A fotografia é introduzida como categoria oficial na Bienal de São Paulo. 1973 – A Fairchild Semiconductor lança o primeiro chip CCD.

1975 – Bryce Bayer, da Kodak, desenvolve o filtro Bayer. 1979 – É criado o Instituto Nacional de Fotografia da Funarte (Fundação Nacional de Arte). 1986 – Cientistas da Kodak inventam o primeiro sensor de megapixel. 2000 – A Sharp e a J-Phone lançam o J-SH04, primeiro telefone celular equipado com câmera fotográfica. 2006 – A Dalsa produz o sensor CCD de 111 megapixels, a maior resolução disponível até então. 2008 - A Polaroid anuncia o fim da produção de todos os produtos de instantâneos, investindo em tecnologias de imagem digital. OUT 2008 • Continente x

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ARTES

Para que servem os sites de arte? O ambiente digital desponta como um espaço para a crítica, a discussão e a legitimação da arte contemporânea, um lugar de encontro que nos limites dos veículos anteriores não era praticado nem amplamente acessível Adriana Dória Matos

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arodiando o questionamento lançado por Patrícia Canetti e transformado em fórum de discussão – Para que servem os salões? – , em sua participação no 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambucano, em 2005, indagamos ao leitor: Para que servem os sites de arte? A pergunta, de cunho eminentemente utilitário, já que supõe as possíveis serventias do objeto analisado, pretende se inserir em uma área hoje em franco crescimento: as comunidades artísticas virtuais. Mas, ao contrário da pergunta de Canetti, que indaga sobre algo que ainda existe, numa perspectiva de crítica ao passado e à tradição (afinal, os salões foram criados no século 19 e já enfrentaram crises variadas ao longo do século 20), esta se refere a algo muito recente como fenômeno social, cultural e, sobretudo, tecnológico. Portanto, um lugar não-consolidado, um verbo no gerúndio. A resposta mais evidente à pergunta Para que servem os sites de arte? seria empática, porque os sites serviriam a todos: artistas, público, instituições de fomento e ensino, críticos, jornalistas, educadores, mercadores e a quem mais se enredasse nesta cadeia produtiva. As-

sim, o espaço hoje representado pelas comunidades virtuais artísticas traria uma perspectiva favorável, imaginando-se que a natural vocação do meio virtual em ser veloz, acessível, interativo, hipertextual e multimidiático, sem contar sua infinita capacidade de memória, alarga de maneira inédita a interação entre esses diversos agentes do sistema de arte. Que, aliás, fazem uso variado do meio fluido, oferecendo homepages de artistas, sítios institucionais, catálogos on-line, criando blogs, participando de comunidades de relacionamento (vide orkut, myspace, facebox) e endereços eletrônicos como espaços para vivência, troca de informação, divulgação, debate, crítica e ação. Embora disponíveis num mesmo ambiente – a world wide web, ou o sintético www –, as propostas estéticas e ideológicas desses agentes artísticos são variadíssimas e muitas vezes dissonantes, expressando a heterogeneidade da produção artística. Para convergir ao interesse da pergunta lançada (Para que servem os sites de arte?), é preciso fixar-se nos endereços eletrônicos que tratam de arte contemporânea. Justamente por esta se dar no ambiente mundial das novas mídias e

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Mind the Gap 4, Lourival Batista, Mostra Catálogo 2ptos

tecnologias, na qual atuam indivíduos multicapacitados, não sendo mais identificados por categorias estanques (o fotógrafo, o pintor, o escultor, o escritor, o encenador, o arquiteto, o cineasta), porque trabalham a partir de novas orientações artísticas, misturando meios e linguagens que desafiam classificações e definições monolíticas para arte. Esses artistas contemporâneos também questionam, numa atitude que define o próprio meio virtual, o papel das instituições tradicionais e do mercado na validação da arte. Quem diz o que é arte ou quem é artista? Quem permite o acesso aos meios e que meios validam obras e artistas? Que papel os artistas querem para instituições que os dizem representar? Qual o papel da crítica e dos meios massivos de comunicação neste novo cenário? Acontece que, por conta da reconfiguração dos fluxos globais e dos novos trânsitos, que bagunçam hierarquias e conceitos, há uma migração massiva para o meio virtual, que acolhe os que

pretendem atuar e influir no sistema de arte. No artigo Arte e novas mídias: práticas e contextos no Brasil a partir dos 1990, publicado na revista eletrônica Rizoma (http://www.rizoma.net), Christine Mello situa o fenômeno no país, ao afirmar que: “A partir da passagem para o século 21, com os substratos da cibercultura, da presença indissociável da internet na vida social, dos mais variados modos de processamento e de circulação das mídias, das dinâmicas de inteligência coletiva, das comunidades virtuais, do acesso a bancos de dados on-line, da rotina com os videogames e do convívio banalizado com o contexto hipermidiático de forma geral, torna-se possível observar estas novas redes de sentido produzidas no Brasil como um reflexo da popularização dos meios digitais”. Uma das formas de pertencimento e ação no ambiente virtual é o ativismo, engajamento político que transforma artistas em agentes

sociais efetivos. Foi esta idéia que estimulou a criação, em dezembro de 2000, de um dos coletivos de arte de maior atuação no Brasil hoje, o Canal Contemporâneo, que tem na linha de frente a artista carioca Patrícia Canetti, citada no início deste texto. O Canal Contemporâneo (www. canalcontemporaneo.art.br) oferece ao internauta uma epígrafe que atesta sua vocação política: “Baseado em novos conceitos midiáticos como Comunidade Virtual (H. Rheingold), Mídia Radical (J. D. H. Downing), Mídia Tática (D. Garcia/G. Lovink), entre outros, o Canal Contemporâneo desenvolve uma comunidade digital focada na arte contemporânea brasileira para promover sociabilidade, informação, participação política e senso de pertencimento, com o objetivo de provocar transformações no seu contexto. Com a participação de integrantes diversos, operam-se a informação e discussão sobre arte, circuitos, sistemas de arte e políticas públicas”. Nesses oito anos de existência,

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Abaixo, as páginas principais do Canal Contemporâneo e do Dois Pontos, em cujo catálogo está a obra Constelação (ao lado), de Cristiano Lenhardt

o Canal Contemporâneo vem somando aos seus conteúdos desde agendas de exposições e informes de concursos e editais, publicação de portfólios e textos críticos, ao fomento de debates e discussões que geram ações públicas, à criação de uma comunidade que conta com a participação de agentes de toda a cadeia do setor, como artistas, críticos, curadores, patrocinadores, pesquisadores, professores, jornalistas, assessores de imprensa, museólogos, gestores de instituições, galeristas, colecionadores e estudantes de diversas regiões do Brasil e de vários países. Para Patrícia Canetti, uma das transformações fundamentais por que passou a cultura virtual de rede nas artes plásticas brasileiras desde o lançamento do Canal Contemporâneo foi a “ampliação do acesso à informação e suas conseqüências diretas, como maior diluição do foco no eixo Rio-São Paulo, entendimento do funcionamento do sistema de arte e ampliação do mercado de trabalho”. Mas ela

diz que ainda é preciso um maior investimento na rede, principalmente por parte das instituições. “No que diz respeito ao Canal, faltam ferramentas para possibilitar a descentralização da comunicação dos usuários de nossa comunidade, que começa a ser providenciado com o patrocínio da Petrobras neste ano”, afirma. Seria o caso de uma pesquisa de fôlego para analisar e diagnosticar os resultados obtidos por cada um desses atores – e os efeitos surtidos no público – a partir da inserção de conteúdos a eles relativos, publicados por comunidades virtuais como o Canal Contemporâneo. Mas, se compararmos apenas o volume e qualidade de produção de material jornalístico e crítico de arte nos meios tradicionais (jornais e revistas impressas, rádios e TVs) e nos websites artísticos, constataremos a vantagem deste último em detrimento dos primeiros. É como se não houvesse parâmetro para comparação, vistas as especificidades de cada um dos meios.

Com relação à mídia impressa, o limite físico se impõe. Jornais e revistas, como esta Continente, não podem competir com o território amplo à disposição na Internet, por todas as vantagens do meio virtual acima apresentadas. A materialidade do papel é irrecorrível. Não se trata, no entanto, de discutir ausência ou presença de políticas editoriais, que, neste caso, regem qualquer publicação, seja em meio analógico ou digital, e os sites de arte estão aí para confirmar a definição de campos de atuação editorial. Na imprensa massiva, especialmente nos jornais diários de grande circulação e nas revistas semanais de informação (tipo Veja, IstoÉ, Época), percebe-se cada vez mais forte a predominância da escolha de notícias a partir da agenda fornecida pela indústria cultural, sob o discutível (e nem sempre verificável) critério de escolha que privilegia eventos de maior público, sendo este considerado mais consumidor de produtos artísticos que fruidor de obras de arte. Se OUT 2008 • Continente x

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Imagem do portfólio do artista Marcos Chaves, disponível no Canal Contemporâneo

estes forem os critérios, fica clara a desvantagem do setor de artes plásticas, mesmo considerando-se os megaeventos (bienais, mostras itinerantes, eventual merchandising), visto que, de acordo com dados do IBGE, 92% dos brasileiros nunca foram a um museu, instituição que, tradicionalmente, abriga a maior parte das exposições artísticas para o grande público. Na opinião de Canetti, a pobre cobertura jornalística e crítica é um reflexo da falta de políticas públicas e do pouco investimento privado no setor. “Mas, acima de tudo, reflete o problema da educação no Brasil”, pondera. “Digamos que o conhecimento da arte conceitual seja uma disciplina básica para o entendimento da arte contemporânea, então, façamos a seguinte pergunta: Quantos brasileiros ouviram falar de Marcel Duchamp na escola? O website Dois Pontos (www. doispontos.art.br) foi criado em 2006, a partir do resumido espaço para publicação de assuntos relativos à arte nas mídias tradicionais, ao mesmo tempo, tomando partido

do bom momento vivido pela produção contemporânea em Pernambuco, que, desde o final dos anos 1990, passou ao protagonismo no cenário nacional. A coordenadora executiva do site, Ana Maria Maia, destaca a mobilidade dele em relação aos veículos tradicionais, “até porque nos vemos não só como um espaço editorial, mas também suscetível a ocupações”, afirma. Assim como no Canal Contemporâneo, ao qual está associado e realiza ações em parceria, o Dois Pontos atua em rede, focando na divulgação e crítica de arte contemporânea, destacada a atualização de conteúdos relativos à agenda de eventos (exposições, concursos, editais), publicando material próprio e mesmo republicando, com autorização do veículo de origem, conteúdos de jornais, TVs, sites. Sua atuação política, entretanto, não é tão enfatizada quando na comunidade carioca, apesar de este não ser um caso de descarte, apenas uma situação circunstancial, que pode ser modificada caso haja oportunidade, como já ocorreu, lembra Ana Maria, quando o site

foi responsável por manter no ar recente polêmica quanto aos critérios de solicitação de doação de obras de arte para o MAC-PE, feita pela diretora da instituição. Formada em Jornalismo, Ana Maria Maia acredita que as comunidades virtuais podem contribuir à produção artística, fomentando estratégias e constituindo novos fóruns de discussão, dinamizando manifestos ou trocas de impressões sobre situações específicas. “As comunidades virtuais também têm a capacidade de formar massa crítica, um convívio mínimo com a arte e as questões de seu circuito; questões estas capazes de elucidar sobre a lacuna que a falta de acervo deixa numa instituição, de motivar entendimentos que motivem a compra, de captar convívios cotidianos, para além de espaços por vezes tidos como “herméticos” e “hostis”, como os museus, galerias e propriamente as obras contemporâneas”, opina. A transparência é considerada por Patrícia Canetti a melhor contribuição que as comunidades artísticas on-line oferecem ao sis-

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LIVRO

Muito além da arquitetura

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Ana Maria Maia, do Dois Pontos

tema das artes e ela cita uma experiência do Canal Contemporâneo: “Um bom exemplo disso se deu no aumento das inscrições nos editais públicos num primeiro momento, quando a publicação no Canal multiplicou por quatro o número de inscrições dos editais mais importantes e por dez as inscrições de editais periféricos; para, num segundo momento, levar os artistas a escolherem melhor os programas merecedores de suas inscrições. O fato do Canal ressaltar o custo-benefício destes editais para os artistas modificou as regras dos novos editais, inclusive aumentando os cachês e prêmios pagos aos artistas selecionados”, relata. O Canal Contemporâneo e o Dois Pontos são apenas exemplos da profusão de endereços eletrônicos voltados para arte existentes hoje no Brasil, que apontam para a consolidação deste espaço para discussão e promoção da arte contemporânea. Vale atentar também para sintomas de como a produção de conteúdos em mídias digitais ganha relevância, nesta primeira década do século 21, pela inclusão

Memórias das diferenças, de Gil Vicente

de premiações para a categoria em dois dos programas de fomento que mais atraem artistas brasileiros, o Bolsas Funarte de Estímulo à Produção Crítica em Artes e o Programa Petrobras Cultural (PPC). O primeiro oferece bolsas para críticos que analisem os Conteúdos artísticos em mídias digitais/internet, objetivando, segundo a Funarte, a reflexão crítica sobre experiências artísticas no meio, nas suas mais variadas manifestações. Neste segundo semestre, o PPC criou uma nova linha de financiamento destinada exclusivamente à cultura digital, na qual, como também divulga a Petrobras, são contemplados projetos de apoio ao aprimoramento de websites culturais e também projetos para festivais e eventos relacionados à arte eletrônica e à cultura digital. Estes são sinais de que – a despeito de mudanças e reações que as mídias tradicionais possam empreender diante do novo cenário artístico tecnológico – o ambiente digital consolida um lugar de encontro que nos limites anteriores não era praticado nem amplamente acessível.

olta às livrarias um registro primoroso da arquiteta italiana, naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi, editado em 1993 – um ano após sua morte. A obra perpassa as várias facetas do trabalho de Lina ao longo de sua carreira. Todos os textos são assinados por ela, alguns produzidos antes de sua morte, especialmente o projeto, outros selecionados de suas anotações. O material está dividido em dois blocos: o primeiro traz um curriculum literário, acompanhado por uma foto/desenho/biografia, que recria o ambiente que antecedeu sua vinda ao Brasil, em 1947. Na seqüência, encontramo-nos com sua arquitetura, que transborda os limites tradicionais, e se mostra no design de jóias e móveis, na cenografia, em exposições. Em texto publicado na revista Habitat, em 1952, Lina expõe, por exemplo, a proposta do recém-inaugurado Museu de Arte de São Paulo (Masp) de desfazer a idéia de museu como mausoléu intelectual. Há ainda um esboço de um caminhão que comportaria exposições itinerantes, aproximando arte e público. Uma justa homenagem a uma arquiteta que projetou também idéias. (Mariana Oliveira)

SERVIÇO Lina Bo Bardi Marcelo Carvalho Ferraz (org.) Imprensa Oficial de São Paulo 340 páginas 140,00 reais

Veja imagens e leia trechos do livro www.continenteonline.com.br

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DESIGN

Dama das capas

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ode-se dizer que o Jabuti já se consolidou como a premiação mais tradicional e relevante da literatura brasileira – e é possível dizer mais: do mercado editorial brasileiro. Com uma história que completa agora meio século, esse prêmio tem como particularidade a inclusão não apenas dos literatos, mas de todos aqueles que fazem parte da cadeia produtiva do objeto livro. Escritores, tradutores, ilustradores e capistas são só uma parte das 20 categorias que compõem o Prêmio Jabuti. Na edição deste ano, a designer pernambucana Moema Cavalcanti recebeu novamente a honraria por mais um trabalho como capista, assinando a arte de Ensaios sobre o medo, livro organizado por Adauto Novaes. Moema Cavalcanti cursou a faculdade de Pedagogia e o Professorado de Desenho na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Seu interesse por capas de livros começou ainda no Recife, vasculhando os livros da biblioteca do pai, o escritor Paulo Cavalcanti. Em novo projeto, as obras de pai e filha estarão unidas: a Companhia Editora de Pernambuco lançará, no fim de novembro, a

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Vencedora do Prêmio Jabuti/2008 na categoria "Capas", Moema Cavalcanti será responsável pelo projeto gráfico da reedição de obras de Paulo Cavalcanti – que serão publicadas pela Cepe

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Acima, a capa premiada com o Jabuti/2008

As obras de Paulo Cavalcanti que serão reeditadas pela Cepe terão projeto gráfico de Moema Cavalcanti

reedição de algumas obras de Paulo Cavalcanti com o projeto gráfico assinado por Moema Cavalcanti. Entre os livros que terão reedição pela Cepe, destaca-se Eça de Queiroz: agitador no Brasil, publicado pela primeira vez em 1959 – ganhou notoriedade nacional ao ser premiado pela Academia Pernambucana de Letras e, posteriormente, foi agraciado também com um Jabuti na categoria "Ensaios"; além dessa obra, a Cepe publicará os quatro volumes, editados a partir de 1978, que compõem a autobiografia política O caso eu conto como o caso foi, de Paulo Cavalcanti. A capista recifense, radicada em São Paulo, conta que o pai costumava dizer que o bairro em que viviam era um prodígio nas letras brasileiras: era o local que possuía mais Jabutis por metro quadrado (um dele e três da filha, à época). Hoje, a conta de prêmios é ainda maior para o bairro de Cajueiro. Em relação ao novo projeto, Moema destaca: "Foi muito difícil trabalhar com os livros do meu pai. O envolvimento pessoal e afetivo é muito grande". Não é a primeira vez que Moema Cavalcanti faz parceria com a Cepe – em abril de 2005 a artista produziu a capa da Revista Continente (nº 52), que tinha como tema o kitsch. O reconhecimento nacional da trajetória dessa designer é a prova de que a criação de uma capa é fundamental para o sucesso editorial de uma obra e não se resume simplesmente ao conhecimento de técnicas gráficas. É preciso, antes de tudo, ser um leitor atento das obras, para que tenha êxito o procedimento de transformar aquilo que o livro representa de forma abstrata numa imagem concreta – e num bom produto de mercado. Aos capistas cabe, portanto, uma dupla obrigação: seduzir o público consumidor de livros e traduzir artisticamente a idéia de outras pessoas. OUT 2008 • Continente x

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traduzir-se

Ferreira Gullar

A presença da pintura

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introdução, na arte brasileira, da linguagem abstrato-geométrica, no começo da década de 50, mudou o eixo de nosso universo pictórico que, a partir do Modernismo, voltarase para temas populares – favelados, negros, mulatas, prostitutas – e míticos, derivados da cultura indígena. A arte abstrato-geométrica ou concreta rompeu com esses temas e propôs uma linguagem universal, desligada de qualquer referência nacional, regional ou pessoal. Mas que significam quadrados vermelhos, retângulos verdes ou triângulos amarelos? A necessidade de superar o cunho decorativo, que tal linguagem sugeria, levou alguns artistas dessa tendência a se voltarem para a exploração das energias do campo visual, donde surgiria a op art O esgotamento dessa linguagem era previsível. No Brasil, esse esgotamento levou ao surgimento da arte neoconcreta, que rompeu com a natureza ótica do Concretismo e valorizou o seu oposto: a sensação táctil, como o fizeram Lygia Clark e Hélio Oiticica. Enquanto isso, no plano internacional, inundava as bienais e galerias de arte uma nova tendência, o Tachismo, que, ao contrário do Concretismo, dissolvia as formas em manchas e substituía a construção racional pelo gesto cego do pintor. Era o grito derradeiro de um tipo de arte, que chegara a um beco sem saída e abrira caminho para o que se chama hoje de “arte contemporânea”. Não obstante, a pintura não morrera. Alguns artistas aceitaram a proposta de uma linguagem não-figurativa, buscando outra alternativa, que não era nem o Concretismo nem o Tachismo nem muito menos o abandono dos suportes tradicionais da pintura. A essa geração de franco-atiradores pertence Denize Torbes

que, há mais de 20 anos, constrói uma obra pictórica consistente e de marcante originalidade. Denize é, sobretudo, pintora, o que significa ter na pintura, com seus recursos expressivos, sua linguagem, o seu espaço de criatividade: é nesse universo que ela se descobre e se reinventa. Deve-se refletir sobre essa questão, no momento em que, aparentemente, a pintura teria sido ultrapassada por outras formas de expressão. A pintura tem quase 20 mil anos de existência, nasceu com o homem, nas cavernas do paleolítico, e o acompanhou, desde então, em toda a sua história. É, no mínimo, uma futilidade pensar que o surgimento de tendências radicais, nestes poucos anos finais do século 20, tenha determinado o fim da pintura, que já nada teria a dizer às pessoas. Na verdade, onde há artista, há arte; onde há pintor, há pintura. E este é o caso de Denize Torbes, como o demonstra a sua obra pictórica. Não canso de surpreender-me com esse fato. Naturalmente, de tal modo a pintura foi marginalizada pelas instituições culturais, oficiais ou não, que, sub-repticiamente, instala-se em nosso inconsciente a dúvida sobre a permanência da pintura nos dias atuais. No entanto, de repente, quando me defronto com obras pictóricas realmente criativas, vejo reafirmado o que escrevi acima: onde há pintor, há pintura. É o que ocorre sempre que vejo os trabalhos de Denize Torbes. Ela pertence a uma geração que se defrontou com a crise da pintura, em seu momento crucial, quando a arte geométrica se esgotara e o Tachismo dissolvera a linguagem pictórica. Tratava-se de reinventar um caminho alternativo, fora dessas experiências esgotadas. Eu que acompanho de longa data a carreira de Denize, sou testemunha de como descobriu o caminho para dar à sua arte o sentido e a dimensão necessários.

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Anna Bastos/Divulgação

Denize Torbes faz parte de uma geração que foi obrigada a encontrar um caminho alternativo para a pintura, fora das experiências do Concretismo e do Tachismo

Documento arqueo-simbólico, Denize Torbes, 140 x 110 cm, têmpera e óleo sobre tela, 2008

Estou certo de que isso se deve, certamente, à sua indiscutível vocação de pintora, mas, também, a uma formação técnica, artesanal, que se confunde com a própria criação poética do quadro. Em poucos pintores, hoje, essas qualidades estão presentes de maneira tão vital e necessária. A essa formação poético-artesanal veio juntar-se, com os anos, a descoberta de uma temática que deu à sua arte um significado próprio, bebido em fontes nacionais, ao mesmo tempo em que lhe abriu possibilidades novas de expressão pictórica: a temática fundada na simbologia indígena, nas formas que, de uma maneira ou de outra, constituem aquele universo cultural, seja ritual, seja prático. É uma temática muito rica. Que inclui ícones tribais, como a série inspirada no grafismo Kadiwéu ou a intitulada “a transfiguração dos remos”,

originária da forma dos remos de madeira, feitos pelos índios ipurinã. Nela se incluem desenhos geométricos e de peixes, pintados pelos índios, valendo-se de material nativo, como o látex e o urucum. Denize explorou também, em seus quadros, elementos de pintura facial dos índios xicrin, que fazem parte “de um sistema visual altamente estruturado, capaz de simbolizar eventos, categorias e status”, conforme as palavras da pintora. Acrescente-se, a isso, signos transfigurados, pintura corporal, insígnias e marcas, que revelam um rico grafismo abstrato, de muita beleza, de que a pintora se valeu para inventar sua própria linguagem pictórica. Denize Torbes prepara-se para realizar uma retrospectiva de sua obra, no Rio, quando oferecerá ao público a oportunidade de uma visão panorâmica de mais de 20 anos de pintura. OUT 2008 • Continente x

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DESIGN

Com jeitinho brasileiro Fuxico, casca de coco, cipó, sementes. É o nosso design pelo mundo Mariana Camarotti, de Buenos Aires

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ara ganhar o mundo e ser global, é preciso ser cada vez mais local. A frase, muito repetida em tempos de globalização e competição no mercado internacional, tem sido levada à risca pelo design brasileiro para construir a sua imagem e se diferenciar. O desenho de objetos utilitários feito no país tem respeitado a diversidade cultural existente de Norte a Sul e bebido da riqueza do seu artesanato para agregar valor e tornar as suas peças cada vez mais originais. Em muitos objetos e soluções de acabamento, a explosão de cores brasileiras, com seus estampados e contrastes, é o grande diferencial. Além disso, o setor tem seguido a tendência internacional de defensa do meio ambiente e de produção sustentável para usar materiais vindos diretamente da natureza ou reaproveitar resíduos que aumentariam a poluição do mundo. Assim, uma folha de bananeira é utilizada para fazer revestimentos, enquanto o capim dourado do Tocantins é usado na produção de uma bolsa ou misturado a uma pedra preciosa para fazer uma jóia. Já uma cadeira premiada ganha o revestimento de fuxicos e vira uma peça completamente diferente em uma sala de estar. Quem poderia imaginar que casca de coco viraria pastilhas para revestimento de paredes ou detalhes de objetos em uma casa?

Cadeira revestida com fuxico – técnica de artesanato que usa retalhos de pano colorido costurados em forma de flores

O olhar atento para a diversidade de materiais da Amazônia – muitos deles encontrados apenas lá – e o uso de matérias-primas antes desvalorizadas, como as sementes, é outra tática dos criadores. O rico patrimônio de madeiras, com cores exclusivas da região, é aproveitado para fazer uma peça completa, como mesa ou cadeira, ou combinadas dentro da técnica de marchetaria, dando vida a mandalas,

bandejas, caixas, bijuterias e mesas de centro. Já os restos de cipós da Floresta Amazônica, descartados pela indústria, são entrelaçados e aproveitados para fazer luminárias, bancos e cadeiras. Enquanto isso, restos de bambu viram uma camiseta nas passarelas. Tudo com um jeitinho bem brasileiro. Sérgio Rodriguez, que inscreveu o seu nome na história do design na década de 1920, é um dos principais nomes vivos do design made in Brazil. O arquiteto explora madeiras e reinventa o país por meio de traços coerentes com a cultura brasileira, dando vida a móveis e imóveis. A Poltrona Mole está entre as suas criações mais conhecidas. Joaquim Tenreiro, precursor de um novo estilo, também vem ajudando a construir a imagem do Brasil lá fora com os seus móveis sóbrios. Já Zanine Caldas conseguiu mostrar em suas peças toda a potencialidade da madeira. Entre outros muitos nomes de destaque do setor estão os artistas plásticos e designers irmãos Campana. Uma das suas peças mais originais é o Sofá Boa, que se enrosca nele mesmo como uma jibóia. Com mais de 90 metros de veludo, a proposta permite que este móvel acomode várias pessoas ao mesmo tempo e faz do sofá uma peça única em um ambiente. Se de inventar e reinventar se trata, a cultura nordestina é um prato cheio. A arquiteta e design de superfície Joana Lira se baseia na literatura de cordel para produzir colchas de cama e nos ex-votos para criar objetos de decoração. Já as fitinhas do Senhor do Bonfim saíram das ladeiras de Salvador nas mãos de vários designers e viraram uma verdadeira grife Brasil afora, estampando objetos de design como bolsas, vestidos e saídas de banho. OUT 2008 • Continente x

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Jarros em vidro colorido, exemplo de um design mais tradicional. À esquerda, revestimento de vidro para paredes

Para mostrar ao mundo o que vêm produzindo, criadores e empresários começaram a fazer exposições internacionais. A primeira delas, a Brasil Casa Design, aconteceu Buenos Aires, em setembro, ocupando dois mil metros quadrados. Uma casa foi montada para ambientar e valorizar as peças. Uma galeria de peças premiadas mostrava o que o país tem da mais alta qualidade. Ao lado dessas duas propostas, uma área para rodadas de negócios. “O que o Brasil tem de diferente para mostrar são as suas diferenças culturais dentro de um mesmo país, e é isso que temos visto no design”, diz Ivan Rezende, autor e curador do Brasil Casa Design. A iniciativa, que tem o apoio da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos (Apex), planeja fazer um evento semelhante no Leste Europeu e no Oriente Médio e, depois, nos Estados Unidos.

O design tenta pegar a onda da moda e da tecnologia, cada vez mais respeitadas no exterior por sua vanguarda, qualidade e originalidade, para se posicionar no mercado internacional. “Lá fora, o Brasil é lembrado pelo futebol, pelo samba e agora também pela moda e pela tecnologia. Queremos que o design também seja uma referência”, acrescenta Rezende. A etapa vivida hoje pelo desenho de objetos do país é resultado do amadurecimento do setor, que deixou de se inspirar na produção européia e norte-americana para encontrar seus próprios traços. Assim, vem conseguindo seu espaço, ganhando prêmios e se alimentando disso para se firmar ainda mais. No século passado, alguns momentos foram determinantes no fortalecimento dos criadores e da indústria de design. A interrupção das importações no período das duas guerras mundiais e a modernização cultural vivida no país fa-

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voreceram o início de uma produção mais tupiniquim, que buscou materiais nacionais. O setor ganhava, assim, mais autonomia. “Do espírito provocador dos criadores dos anos 20, dos princípios modernistas, da fome desenvolvimentista dos anos 50, do engajamento nas questões ambientais e sociais, de tudo se alimenta esta indústria que hoje quer cada vez mais se consolidar como um produto brasileiro”, diz Rezende. Enquanto alguns apostam no meio ambiente e no artesanato, outros reafirmam os materiais tradicionais. Outra linha em expansão é a que investe em tecnologia e apresenta soluções não só para objetos como também para a construção. Todos eles têm seu mercado.

sentar ao exigente mercado argentino que a América do Sul, assim como a Europa, pode estar na vanguarda”, diz o chefe do setor de Promoção Comercial da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, Raphael Azeredo. Para a ex-diretora do Museu da Casa Brasileira, Adélia Borges, curadora e assessora de design, o setor vive hoje o seu melhor momento devido ao foco no mercado internacional e ao uso de matérias-primas que o tornam único. “Ver sementes de açaí em jóias, luminárias e até divisórias de ambientes seria algo impensável anos atrás. Estamos em uma etapa de florescimento. É um novo cenário que se descortina na nossa frente”, conclui.

Bancos feitos com cipó da Amazônia

A Argentina foi escolhida como primeira parada por sua ligação cultural com o Brasil e pela influência que a indústria brasileira de uma maneira geral tem no mercado local. “Nosso objetivo era apreCadeira em alumínio: presença da vanguarda

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MÚSICA

Ciclo da delicadeza

As mãos femininas que comandaram a tradição do ensino e da interpretação do piano em Pernambuco ao longo das últimas décadas

Reprodução

Carlos Eduardo Amaral

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Hans Manteuffel/Divulgação

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Ana Lúcia Altino é doutora em piano performance e diretora executiva do Virtuosi

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m concerto no Festival Virtuosi 2007, o filipino Victor Assunción executou pela primeira vez na íntegra o IV Ciclo Nordestino, de Marlos Nobre. A première mundial da suíte para piano representou tacitamente um tributo a importantes nomes do instrumento em Pernambuco, através de seus cinco curtos movimentos (Caboclinhos, Cantilena, Maracatu, Ponteado e Frevo). Nobre dedicou o Frevo, que nasceu como peça autônoma, a Leonardo Dantas Silva, no ano em que este publicou Ritmos e Danças – Frevo (1977). Mais tarde, o escritor e pesquisador viria a descrever em O piano em Pernambuco (1987) como a prosperidade comercial resultante da abertura dos portos brasileiros favoreceu o mercado de pianos no Recife e o respectivo universo logístico de prestação de serviços: editoras de

partituras, carregadores, professores vindo do estrangeiro... O compositor recifense criou posteriormente os demais movimentos do Ciclo e os ofereceu a quatro intérpretes, colegas e conterrâneas, que se evidenciaram pela trajetória artística nas últimas décadas: Elyanna Caldas, Maria Clara Fernandes de Lima (que divide a dedicatória da Cantilena com Josefina Aguiar, in memória), Jussiara Albuquerque e Ana Lúcia Altino Garcia. Elyanna Caldas, estrela do concerto de aniversário da Sinfônica do Recife, no último final de julho, tem-se concentrado na divulgação de valsas e choros de Capiba, motivo pelo qual viajou duas vezes a São Paulo este ano – uma fase de refrigério, depois de cinco décadas de sucesso desde que participou da final do V Concurso Internacional Frédéric Chopin, em 1955. Ex-diretora do Conservatório Pernambu-

cano de Música (CPM), por duas vezes, Elyanna Caldas estudou com Nysia e Hilda Nobre, primas de Marlos Nobre e principais expoentes do ensino pianístico de então na cidade. As irmãs Nobre mereceriam um capítulo à parte por terem aberto caminho para a geração seguinte de professoras, como Alaíde Rodrigues da Silva, Helena Farias e Maria Auxiliadora Hazin. Aluna de Magda Tagliaferro, em Paris, Elyanna Caldas relata em sua biografia, Caminhos de uma pianista, que dois fatores contribuíram para a interrupção de sua carreira internacional: uma severa gastrite, graças à inadequada alimentação na Europa, e o convite de Josefina Aguiar para integrar o primeiro corpo docente do curso de música da UFPE. A aceitação do cargo de professora a aliviou das preocupações

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financeiras pela qual teria de passar indefinidamente, se quisesse seguir morando no exterior e alcançar o reconhecimento da crítica de alhures. Esse também seria o destino de Josefina Aguiar (19362005), conforme testemunha a amiga: “Com um talento invulgar, ela poderia ter feito uma bem-sucedida carreira internacional, se não tivesse optado por permanecer em sua cidade natal. Mas a sua contribuição para a arte musical e para a formação de vários músicos de talento ficou presente”. Josefina Aguiar e Elyanna Caldas formaram um dos dois mais emblemáticos duos de pianos do Nordeste, comparável ao de Gerardo Parente e José Alberto Kaplan, radicados em João Pessoa. Elas, ao lado de Parente e de Marco Caneca, ainda participaram do projeto O piano em Pernambuco, idealizado por Padre Jaime Diniz e produzido por Leonardo Dantas Silva. O ciclo anual de concertos promoveu a audição de 403 peças de 1980 a 1983, incluindo compositoras como Argentina Maciel e Áurea Anacleto. O projeto rendeu a gravação de um vinil duplo em 1986, posteriormente reeditado como CD duplo em 2000, este somente com Elyanna Caldas e Marco Caneca. Igualmente professora e ex-diretora do CPM, Jussiara Albuquerque optou pela discrição ao deixar a direção da escola no início de 2007, após oito anos de gestão. Tanto ela quanto Ana Lúcia Altino Garcia são ausências sentidas nos recentes recitais no Estado. No caso de Ana Lúcia Garcia, doutora em piano performance pela Boston University, a carreira de instrumentista teve de dar lugar à de diretora executiva do Virtuosi – pelo menos, uma vez ao ano ela dá uma canja no festival que criou com o marido, maestro Rafael Garcia.

Divulgação

A menina Elyanna Caldas com Magda Tagliaferro, no Teatro de Santa Isabel, no começo da década de 50 Rafael Gomes

Maria Clara Fernandes de Lima, pianista pernambucana, mora em Viena há 16 anos

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MÚSICA Fotos: Divulgação

Maria Clara Fernandes de Lima, a mais jovem das homenageadas no IV Ciclo Nordestino, mora em Viena há 16 anos e sempre vem ao Recife nas férias do verão europeu. No último dia 28 de julho, o público do auditório do CPM foi agraciado por ela com um ousado programa de obras modernas, pouco ouvidas por aqui: a Sonata n° 2 do russo Dmitri Kabalevsky e a Sonata n° 1 do argentino Alberto Ginastera, além da antológica Suíte Bergamasque de Debussy.

Não foi preciso Maria Clara Fernandes recorrer aos românticos e clássicos para ser aclamada. O encore veio em dobro e em partituras nacionais: a Nazarethiana de Marlos Nobre e o Jongo de Lorenzo Fernandez. Atualmente, a pianista e professora – que estudou com Elyanna Caldas, Helena Farias e Edson Bandeira de Mello – planeja uma pesquisa sobre mulheres compositoras, na Universidade de Viena. O estímulo nasceu em um congresso na China, onde foi chamada para rea-

Jussiara Albuquerque foi diretora do CPM até o início de 2007

Dedicação e maturidade musical A pianista Priscilla Almeida Dantas, aos 15 anos, alcança reconhecimento internacional Rosália Vasconselos

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ntre escola, inglês, shoppings e baladinhas, a rotina de muitos adolescentes, somada ao estímulo incessante pelo consumo, faz com que muitos talentos se percam na busca diária (e incansável) de prazeres momentâneos. Na contramão de sua geração, e com a competência de quem sabe se dedicar com afinco ao que faz, Priscilla Almeida Dantas é, hoje, sem dúvida, uma das pianistas pernambucanas que, por sua qualidade musical, faz jus ao caminho aberto por grandes intérpretes, e também por suas conterrâneas. Quem conhece Priscilla longe do piano, sequer imagina a aptidão e a maturidade musical que ela tem. Distante das tentações que o mercado para adolescentes oferece, uma menina simples, moradora de subúrbio do Recife, que, como ela mesmo diz, “nunca precisou ir para lugar luxuoso para se divertir, mas já fica feliz com uma ida com a família para a sorveteria em uma praça perto de casa”, há seis anos tem chamado a atenção pelo talento musical.

Priscilla Almeida Dantas durante apresentação no Estado de Oregon, nos Estados Unidos

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O duo formado por Josefina Aguiar e Elyanna Caldas

lizar a primeira gravação mundial de obras da austríaca Katharina Cibbini Kozeluch (1785-1858). Ultimamente, mal ouvimos falar de jovens talentos femininos do piano, como fora considerada Rachel Casado em 1983, quando tinha apenas nove anos, ao abrir um concerto da nonagenária Magda Tagliaferro. Para Marlos Nobre, “a dificuldade de despontar um virtuose no Recife, apesar da quantidade de estudantes, está no ponto fundamental: a total entre-

Priscilla, 15, começou sua “carreira” aos nove, quatro meses antes de ser descoberta pelo atual professor, e quase mentor, Levi Guedes, quando ainda tocava teclado no Centro de Educação Musical de Olinda. Levi a ouviu tocar e percebeu que a menina, de apenas 10 anos, tinha uma habilidade especial para a música, e convidou-a para ser sua aluna de piano. Até este momento, Priscilla não seria diferente de tantas outras crianças que, muitas vezes, por vaidade dos pais, são estimuladas a desenvolver alguma atividade artística, sem, contudo, ampliá-la ao longo da vida. Mas, com uma bolsa que ganhou para estudar no Conservatório Pernambucano de Música e vendo neste caminho um dos poucos meios de mudar um destino quase fadado à mesmice, ela decidiu se render aos apelos do seu talento. Com apenas oito meses de aulas de piano, Priscilla ganhou o 7° Torneiro de Piano do CPM, em 2003. De lá para cá, a adolescente, que também adora cantar, “mas só como hobby”, tem conseguido o primeiro lugar em todas as edições do torneio. Ocupando uma

posição de destaque dada apenas às grandes pianistas, com apenas 12 anos ela foi convidada a tocar à frente da Orquestra Sinfônica do Recife, no Teatro de Santa Isabel, quando executou, como solista, o Concerto nº 13 para Piano e Orquestra em Dó, de Mozart. A garota dá agora outro salto na carreira: em julho deste ano se apresentou, pela primeira vez, em quatro cidades do Estado de Oregon, nos Estados Unidos, tocando, entre outros, a Sonata para Piano nº 8 em Lá Menor, de Mozart, Improviso n° 2, de Schubert, Rondó Caprichoso Opus 14, de Mendelssohn, além de cinco músicas brasileiras. Com a convicção de quem sabe o que fala, Priscilla diz que se deleita e se identifica com a maioria das músicas que estuda. “Gosto de tocar Rondó Caprichoso Opus 14, de Mendelssohn, porque a música tem virtuosismo e romantismo, permitindo um equilíbrio à composição, nem fica tão técnico nem tão romântico. Gosto também do jeito e da harmonia brasileiros e do ritmo sincopado de Villa-Lobos, e de Mormorio, porque ele mexe com a minha emoção”, sublinha.

ga ao instrumento e a perseverança quase maníaca para atingir a perfeição. Sem isso não se consegue. Não sei se é o clima, as praias, as tentações do dia-a-dia. Parece que a juventude atual encontra dificuldade em adquirir este alto grau de concentração”. Talvez o compositor de Concertante do Imaginário pense em criar um novo Ciclo Nordestino para as novas gerações. A obra ainda não estaria concebida por completo, mas um movimento já teria dedicatória certa...

Não é arriscado afirmar que, por contraditório que seja, a sua vida humilde foi uma das maiores contribuições para a sua extrema disciplina. Levi não hesita em dizer que o talento da adolescente tem uma explicação, a mesma que Marlos Nobre afirma levar a um virtuose. “Como Priscilla não tem muitas posses, ela não teve as distrações e as tentações diárias que outras crianças de sua idade possuem como internet, shopping, celular. O seu talento bastante acentuado e a sua disciplina com a música devem-se ao fato de que canaliza todas as suas energias para o piano e suas quatro horas diárias de estudo são atrapalhadas apenas pela escola e pelo inglês ”, avalia o professor. Sem deixar de vivenciar as experiências da idade, como as raras, mas adoráveis idas ao cinema com os amigos, Priscilla procura unir sua determinação e conhecimento ao entusiasmo típico da idade, e a ela, que já tem seduzido os apaixonados pelo instrumento com o seu talento, paixão e dedicação, já deve ser concedido o mesmo mérito das grandes pianistas.

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MÚSICA

A ponte sagrada entre judeus e cristãos

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ste CD da Boston Camerata sob direção de Joel Cohen (foto), bastante elogiado nos EUA e na Europa, agregou a condição de registro fonográfico à de musicológico não só por se voltar à música antiga, mas por ter adquirido importância documental na pesquisa da música judaica medieval. As cinco partes do repertório abrangem as Canções do exílio, cânticos sefarditas de Jerusalém; A ponte sagrada, seção-título do álbum; os

Menestréis judeus nas cortes cristãs; o Folclore judeu na bacia do Mediterrâneo, que inclui a Península Ibérica e a Provença; e as Canções da mística Espanha. Algumas dessas peças já foram gravadas por intérpretes brasileiros, como Yo hanino, tu hanina (Fortuna) e Cuando el rey Nimrod (Grupo Carmina). A reconstituição de Cohen e da Camerata remete com riqueza à época em que os cancioneiros profanos das três grandes religiões monoteístas se influenciavam, mesmo que seus fiéis fossem sujeitos a irracionais e incômodas segregações. Quanto à simbólica ponte sagrada, escute a faixa 3, que contém o Salmo 114 (In esitu Israel/B’tset Yisrael), e perceba a ancestralidade comum das melodias ashkenazy e gregoriana, The sacred bridge cantadas na mesma escala. Apex/Warner Music 25,00 reais Todas as letras do CD estão disponíveis no site da Warner Classics and Jazz. (Carlos Eduardo Amaral)

> Daniel Barenboim > A nona sinfonia de > Tchaikovsky, Lord no La Scala, ao vivo um aflito austríaco Byron e uma obra

> Viagem de Sumi Jo pelo barroco

No Brasil, lembramos de Daniel Barenboim como maestro, quando na verdade ele iniciou a carreira de pianista na infância e passou à regência já adulto. Para o primeiro recital instrumental gravado ao vivo no La Scala, o argentino naturalizado israelense escolheu três obras de Franz Liszt inspiradas na literatura italiana, e três paráfrases de óperas de Verdi, assinadas pelo virtuoso húngaro: Aída, Trovatore e Rigoletto. Dois dos, chamemos assim, poemas sinfônicos pianísticos selecionados para o público milanês saíram dos cadernos dos Anos de peregrinação: os Três sonetos de Petrarca e Depois de uma leitura de Dante (Fantasia quase sonata). O terceiro é São Francisco de Assis: o Sermão dos pássaros. (CEA)

A coreana Sumi Jo, soprano coloratura vencedora do Grammy e do International Puccini Award, aperfeiçoou-se na Academia Santa Cecília de Roma, daí sua especialidade em personagens do bel canto. Neste CD dedicado ao Barroco, acompanhada pela Orquestra de Câmara do Concertgebouw, Jo se divide entre árias sacras e operísticas de Händel, Bach, Vivaldi e Purcell (como tem sido estranhamente comum em boa parte de compilações do período, não há compositores franceses). Entre os trechos de óperas, estão os de Rinaldo e Sansão de Händel, Griselda de Vivaldi e Rei Arthur de Purcell. O encarte traz as letras de todas as faixas e o nome dos libretistas, quase nunca mencionados em álbuns do Barroco. (CEA)

Barenboim live at La Scala Liszt Warner Classics and Jazz 29,00 reais

“É aterrorizante, e paralisante, a forma como os fios de som se desintegram... cessando-os, perdemo-los todos; continuando, obtemos tudo”, disse Leonard Bernstein sobre a Sinfonia n° 9 de seu estimado Mahler. A alternância contínua entre ensembles complexos e o tutti e entre o lúgubre e o otimista, típica do aflito compositor austríaco, manteve-se inabalável em sua última obra completa. No declínio do estado de saúde de Mahler, os típicos quatro movimentos na Nona assumem uma insólita seqüência. O adágio que abre e o outro que termina a sinfonia parecem um agouro persistente, cuja presença se disfarça durante dois grotescos scherzi centrais. Nesta gravação, Daniel Barenboim conduz a orquestra da Staatskapelle, de Berlim. (CEA) Barenboim – Sinfonia n° 9 Mahler Warner Classics 28,00 reais

Aos poucos, as mais de 300 gravações deixadas por Evgeny Svetlanov (19282002) vêm sendo lançadas no mercado. Svetlanov adquiriu respeito de público e crítica, em especial, pela divulgação de russos pouco conhecidos no exterior, como Glazunov, Medtner, Scriabin e Arensky, e de peças negligenciadas de compositores famosos. A Sinfonia Manfred de Tchaikovsky, sugerida por Balakirev e baseada num poema de Lord Byron, se enquadra no segundo caso. O compositor não a incluiu na contagem das seis sinfonias “oficiais” porque ela é um imenso poema sinfônico em quatro movimentos, semelhante a Haroldo na Itália, de Berlioz, obra espelho para a Manfred e também ligada à poesia byroniana. (CEA) Evgeny Svetlanov #7 Warner Music 26,00 reais

Baroque journey Sumi Jo Warner Classics and Jazz 25,00 reais

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Um rio de músicas suingadas e dançantes

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servindo de apoio à primeira voz de Eliades Ochoa. A levada de violões dos dois cantores, mais congas, bongôs e maracas, que caracterizam a música cubana, tornando-a altamente suingada e dançante, estão presentes. Também brilha aí o tradicional solo de trompete, iluminando a melodia com seu trinado claro.A partir daí, o disco flui como um rio de música, através da voz suave de Ibrahim Ferrer e de Omara Portuondo, além do piano ao mesmo tempo delicado e vigoroso de González, numa sucessão de boleros, sons, danzóns, guajiras, sons-tumbaos, baladas e criollas, além das que têm influência da música negra norte-americana, como o gospel, o blues e o jazz. (Marco Polo)

> Universo de Rosa em disco conceitual

> Samba, choro e o improviso do jazz

> O forró de cordas de Nicolas Krassik

> Registro de um grande encontro

Bem longe do sertão, um grupo de São Paulo, “onde se ouve mais pio de buzina que de nhambu”, teve uma idéia difícil e original: fazer canções inspiradas no sertão de Guimarães Rosa. Com sucesso, a banda Nhambuzim (o nome faz referência ao pássaro cantador do sertão) conseguiu imprimir em música o atavismo peculiar da obra do escritor mineiro. Sinuoso e bem tocado, Rosário, o CD, é conceitual demais para ser escutado sem compromisso. Requer conhecimento de causa: escutar o álbum sem conhecer o universo rosiano pode causar estranhamento. Mas vale o esforço. E, para quem já explorou as veredas do escritor, agora há uma rota alternativa: a das paisagens musicais. (Thiago Lins)

O pianista dinamarquês Thomas Clausen, referência no universo do jazz, apaixonado pela música brasileira, formou, em 1997, o Thomas Clausen Brazilian Trio, com o baterista Afonso Corrêa e o contrabaixista Fernando de Marco. Agora, os três se unem à flautista e compositora Léa Freire e ao saxofonista e flautista Teco Cardoso, para formar o Maritaca Quintet ("Mary Tac’", Maria Agradecida, como preferem os músicos). O primeiro trabalho do grupo é o CD Waterbikes, gravado na Dinamarca, em 2006, com composições de Léa e Clausen, acompanhadas por clássicos da música brasileira: Retrato em branco e preto e Chega de saudade. O álbum junta ritmos brasileios, como o samba e o choro, de forma límpida, ao jazz. (Mariana Oliveira)

O violinista francês Nicolas Krassik, em seus dois primeiros discos , já incorporara algumas faixas de música nordestina ao lado de sambas e choros. Em Cordestinos, centra-se num repertório regional interpretando, em cordas (violino e rabeca) e percussão, composições de Gonzaga, Gil, Sivuca e Dominguinhos. Embora pareça mais à vontade no samba (a faixa mais instigante do disco é Opinião, de Zé Ketti), Krassik & Cia.(Marcos Moletta na rabeca e Guto Wirtti no contrabaixo acústico) passeiam pelas sonoridades do sertão mítico com segurança, lembrando em alguns momentos o antológico Quarteto Novo. A inquietação do músico produz um arranjo soberbo de Assum preto, com solo de contrabaixo. (Homero Fonseca)

O The Stone é um espaço situado em Nova York voltado à promoção da música experimental, onde, a cada apresentação, o lucro obtido é revertido para os artistas convidados. O salão edita também, com apoio do selo Tzadik, uma série anual de CDs com o registro de sessões marcantes, como é o caso do álbum que ora se apresenta. Em 11/01/08, subiram ao palco da casa três ilustres figuras que transitam com maestria entre o pop e o experimentalismo. Por quase uma hora, Lou Reed, John Zorn e Laurie Anderson se imergem, articulados pela livre improvisação, em paredes de distorção, ruídos e fraseados cortantes. É certo que grandes egos nem sempre rendem bons times, mas, neste caso, valeu a aposta. (Yuri Bruscky)

Rosário Nhambuzim Paulus 28,00 reais

Waterbikes Maritaca Q uintet Maritaca 20,00 reais

Fotos: Reprodução

história é conhecida. Em 1996, o músico e produtor norte-americano Ry Cooder foi a Havana, reuniu vários cantores e músicos cubanos que estavam no ostracismo e convidou-os para gravar. O caso mais dramático foi o do pianista Rubén González, que havia parado de tocar por causa da artrite, mas terminou se empolgando e voltando à ativa. O resultado foi o premiado álbum Buena Vista Social Club (nome que homenageia uma antiga casa de shows de Cuba), lançado há 11 anos, e o filme-documentário homônimo que o cineasta alemão Wim Wenders realizou. Agora, o disco é relançado no Brasil, com as letras de todas as canções em espanhol e traduzidas para o português. O CD abre magnificamente Buena Vista com Chan Chan um son de Social Club Vários autoria de Francisco RepiMCD lado, mais conhecido como 32,90 reais Compay Segundo, que a canta, com sua voz grave

Nicolas Krassik e Cordestinos Nicolas Krassik Rob Digital 23,50 reais

The Stone: Volume Three Tzadik 21,00 dólares

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Reprodução

MÚSICA

Influência do jazz Músicos americanos, como Leonard Bernstein e Gene Krupa, tinham visões diferentes, até hoje não harmonizadas, sobre os efeitos do jazz na música erudita Fernando Monteiro 46 x Continente • OUT 2008

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á alguns anos, o compositor e maestro Leonard Bernstein – regente da Filarmônica de Nova York aos 25 anos – e o genial baterista Gene Krupa mantiveram (amistosamente) uma acesa polêmica sobre a possível influência do jazz sobre a música erudita que vale a pena ser recuperada, aqui

no Brasil, neste momento em que a MPB – que já teve a participação de nomes como Rogério Duprat e outros – precisa voltar ao plano de refinamento que atingiu na bossanova (vinda, como ela veio, de Noel Rosa e outros mestres quase escondidos nos bares da vida, nas Lapas da cultura que não têm, na verdade, compartimentos estanques).

Antes do mais, vamos pôr alguma ordem nessa coisa de jazz: a verdade é que não se pode falar nele antes de 1915 – pelo menos com pleno direito ao termo que viria a impregnar a expressão musical do século 20, partindo do miolo da cultura norte-americana. A expressão foi posta em uso, pela primeira vez (“jass”, para ser mais exato com OUT 2008 • Continente x

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MÚSICA a pronúncia de origem), com certo acento depreciatório, por rivais do café Lamb’s, de Chicago, relativamente ao acúmulo de metais do som produzido pela Tom Brown’s Band, ou Brown’s Dixieland Jass Band, conforme o cartaz que o Lamb resolveu afixar, pegando o mote dos rivais para invertê-lo em propaganda: “A Browns Jass Band é mais uma atração nossa – diretamente de New Orleans – apresentando a melhor música de dança de Chicago!”... Pronto. O nome – jazz – estava na rua, vindo de um muxoxo, meio de nariz torcido para as orquestras basicamente de trombone, tuba, pistão, que a Reliance Brass Band e a Jack Laine’s Ragtime Band tinham posto em ação na vida dos bairros crioulos embalados pela sonoridade dixieland. A partir daí, o futuro a Deus e aos músicos negros (com a participação de alguns brancos) iria pertencer para sempre, influenciando o mundo inteiro – e até música erudita? A questão permanece em aberto, e a possível influência dessa música do reduto boêmio sobre criações eruditas a milhares de quilômetros dele, teve no jazzista Gene Krupa um opositor que reagiu, desde logo, à opinião positiva do celebrado maestro Leonard: “Meu bom amigo Bernstein afirma que a música erudita, música séria, para se ouvir na execução de uma orquestra sinfônica completa, tem revelado a influência do jazz. Será que ele pensa nas suas próprias composições? Quanto a mim, eu nunca ouvi nada, honesta e genuinamente, que eu possa identificar como derivado do jazz nesse gênero de música, seja em peças como a Ebony Suíte, de Igor Stravinsky (para a qual Woody Herman, com toda a sua instrumentação swing, fez um arranjo não menos que maravilhoso), ou até mesmo nas composições ‘sérias’ de George Gershwin, que é

tido – conforme a leitura mais imediata – como um músico do jazz americano na sua forma mais elevada, digamos assim”. O fato é que Bernstein havia escrito, meses antes, que o mais talentoso dos dois Gershwins teria trabalhado em contraposição a esse aspecto “sério” da composição musical erudita – num esforço para fazer, do material jazístico (com o qual tinha total intimidade), algo como uma sinfonização, na tradição dos mestres europeus. Ou seja, o inspirado compositor de Porgy and Bess centrara sua obra naquele “som” americano por excelência, ao invés de superpor, digamos, uma “camada de jazz” (como se fosse um glacê) a formas e estilos já cristalizados, como Bernstein afirmava que Stravinsky e Ravel haviam feito, preguiçosa ou arrogantemente (a se escolher). Segundo ele, “Gershwin abordou essa fusão pela esquerda, isto é, vindo das surdinas wahwah misturadas com dançarinos de teatro ga-ga, como se dissesse ao mestre russo (procedente da fortaleza da potência musical européia): ‘Esqueça as orquestras com quintetos de madeira e dê trégua aos anjos da guarda de Debussy e Rimsky-Korsakov. O melhor ouvido erudito para o melhor da música americana há de privilegiar o fato de o jazz, principalmente, soar como a soma de contribuições da música negra, indígena”. Prestando-se a devida atenção ao jazz de Stravinsky, é impossível não concordar com Bernstein: aquilo é, de fato, muito diferente da proposta de George Gershwin, porque “é Stravinsky plus jazz”– conforme diz o compositor de Jeremiah. Mas o resistente Gene Krupa não se mostrou convencido a respeito de GG trabalhar sua música no diapasão erudito em conexão com o de “todo o mundo sob o sol do jazz”, e respondeu também com

uma exposição didática que revela o embasamento de um músico articulado no pensamento e sensível não só com as mãos de percussionista de primeira: “O jazz pode ser a base de grande música eventualmente escrita por um compositor americano tanto quanto as melodias do folclore tcheco foram a base das composições de Smetana e Dvórak. Entretanto, eu não me iludo: o jazz só poderá fazer essa contribuição, de maneira superlativa, sendo ele mesmo. Com isso eu quero dizer que isso só acontecerá quando ambas, criação e execução da música desenvolvida

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Gene Krupa não conseguia identificar, como derivada do jazz, nenhuma música erudita

dele, estejam a cargo de músicos inteiramente à vontade com o idioma jazístico, o que significa que ele não pode ser abordado de fora.” Krupa não poderia ser mais claro. Para ele, o gênero de música no qual se consagrou não poderia ser abordado “artificial e sinteticamente”, ou com complacência – por um olhar “erudito” se aproximando “por simpatia, e não para conquistar”. E dava uma alfinetada em Bernstein, condutor da Filarmônica nova-iorquina, servindo-se do colega que se tornou uma das caras do jazz: Louis “Satchmo” Armstrong:

“Olhem para o velho Louis: ele poderia ficar à frente da Filarmônica de Nova York, e ainda assim improvisar fantásticas figuras contraponteadas, impecáveis em cor e som, acompanhando praticamente qualquer coisa que tocassem. Por quê? Em parte porque ele não tem exatamente o tipo de disciplina e lastro que se espera de um músico da área erudita, a partir do contato com a escrita musical, por exemplo. Isso é um tipo de limitação paradoxalmente importante para o jazz, que tem a sua ‘escrita” enclausurada nele, na possibilidade de ser livre e explorar essa liber-

dade de um modo especialmente difícil para o músico de formação erudita. Por isso, eu digo, com grande respeito por Mr. Stokowski e outros: Cavalheiros, se algum dia, no futuro, os senhores programarem uma peça baseada no jazz, ou contendo passagens de jazz, quando essa música estiver sendo escrita, não confiem sua execução, por inteiro, aos membros regulares do seu conjunto, que, eu sei, com certeza serão, todos, músicos altamente competentes – mas vocês estarão pedindo que eles façam algo que escapa da sua formação e até do seu interesse. Porque o jazz OUT 2008 • Continente x

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MÚSICA Maestro e compositor, Leonard Bernstein incorporou elementos do jazz ao erudito

deve ser tocado por pessoas não tão sóbrias, perto de vitrolas automáticas e outras imperfeições da vida, para os ouvidos de qualquer maestro que ouse olhar com certa condescendência para os improvisos dos pistões de Bix Beiderbecke e Louis Armstrong ou para os dedos pianísticos de James P. Johnson, assim como para a guitarra de Eddie Condon e a clarineta de Peewee Russel”... Gene Krupa talvez não tenha entendido uma parte das boas intenções de Leonard Bernstein. Primeiro, o maestro falava muito claro para qualquer bom entendedor de meias palavras: “Acho que devemos assentar devidamente, primeiro, o que chamamos de jazz. E, para isso, uma distinção se faz necessária, entre a simples canção comercial, como a entendemos em termos da Broadway e a música que conhecemos por algumas variantes formais do blues. Essa ‘canção’ popular não tem, nem pode ter influência alguma na música erudita, é mais do que claro. Até porque ela é criada apenas por dinheiro – e morre quando o dinheiro deixa de entrar. Eu diria que esse tipo de coisa é

imitativo, convencional e sem emoção – embora seja agradável (como Cole Porter o é, por exemplo). Mesmo numa parte de certas coisas de Gershwin você pode perceber isso, e, noutra parte, pode ouvir – como em Fascinating Rhythm – aquelas frases adoráveis, truncadas, nas quais George retroage ao jazz improvisado, que era, sem dúvida, a sua real fonte de inspiração”. E Bernstein dá outro exemplo, retirado da sua própria obra: “O movimento scherzo da minha sinfonia Jeremiah, certamente não traz à mente, em princípio, qualquer conotação imediata com o jazz. Entretanto, posso dizer que ele jamais teria sido escrito, se o jazz não fosse uma parte integrante – e importante – da minha vida. Mas, não só em mim você pode ouvir a contribuição jazística repercutindo na chamada ‘musica séria’. Basta ouvir com uma audição mais cuidadosa as composições de Copland, Harris, Sessions e Barber, para citar só alguns dos nomes do primeiro time. O jazz está lá, em busca da grande síntese que espera pelo gênio criador americano, quando ele voltar à sua melhor forma, espero,

num tempo mais favorável, culturalmente falando.” Claro que o maestro estava dizendo isso bem antes da atual curva depressiva dos “anos Bush” (imagine), neste momento em que a música, a literatura – vide os últimos Auster e De Lillo, por exemplo –, o cinema e a arte dos EUA, em geral, sofrem com um país governado por um texano sem cultura nenhuma, e cuja política militar de “terra arrasada” no Afeganistão e no Iraque teve uma estranha repercussão interna, numa espécie de desfalecimento das forças criadoras que revelam tantos artistas do imenso país do Norte. Se, com o mulato Barak Obama, poderá vir a surgir um sinal de luz no fim do túnel, por enquanto isso ainda é um enigma americano – muito longe do mundo meio abstrato da música erudita que não deixou de se infiltrar nos ouvidos e corações de alguns dos compositores maiores da terra de Tio Sam e do jazz, agora já podendo dizer que foi escutado nessa seara erudita, desde quando, em 1915, um cartaz foi afixado na porta de um café de Chicago

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metrópole

Marcella Sampaio

Vem aí a revolução dos pincéis?

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maiores qualidades de um profissional nesta função. Se alar (mais uma vez) sobre o papel do crítico e os só se enxergam os tais caminhos ditos não-convenciolimites de sua atuação parece discurso tautolónais, porém, corre-se o risco de banalizar este acesso, gico. E até é, num certo sentido, mas não deixa e ele, afinal, também tornar-se convencional. Ninguém de ser válido levantar a questão, principalmendisse que a tarefa é fácil. te quando as fronteiras entre as atividades cotidianas e Ao mesmo tempo, é natural que esperemos da crítia arte parecem tão tênues. Até onde vai a legitimação ca um certo tom de didatismo, principalmente quando de uma obra provocada por uma crítica? Quando é que esta crítica está vinculada ao jornalismo. O crítico joraquilo que não nos comove, porque até então estava nalista, quando ocupa um lugar que lhe confere respalalçado à categoria das atividades banais, passa a prodo e respeito, vinculado à notoriedade que só a mídia duzir sentidos diferentes dos que existiam a princípio? dá, termina por se transformar numa espécie de guia, E mais: quando é que a pessoa exposta a determinado para o bem ou para o mal. Muitas vezes, é esta a única estímulo começa a considerá-lo artístico, superando lifonte de informações do público, o lugar exclusivo da mitações (no melhor sentido da palavra) impostas pela opinião, unilateral em boa parte do tempo. noção mais conservadora que se tem da arte? É necesEstas reflexões surgem após a realização do SPA das sário que o crítico “explique”, aponte caminhos? Quanto Artes no Recife. Este ano, o evento buscou ampliar as “sabe” um crítico? Quais são os critérios de valoração ações relacionadas à formação de público, o que, quando artística, em meio a tantas possibilidades, para artistas, o assunto é arte contemporânea, passa necessariamente público e mercado? por questões filosóficas acerca da própria conceituação Encontrar as respostas para essas perguntas talvez de arte e legitimação do artista. As discussões sobre o não seja possível. Mesmo assim, é bom perguntar, já Divulgação tema, ao contrário que o questionado que muita genmento relativiza e te diz, não estão joga por terra as esgotadas. A partir afirmativas categódo momento em ricas, absolutamente que se consolidam inúteis quando nos as intervenções ardispomos a falar de tísticas nas urbes um tipo de atividade como manifestatão subjetiva. Todo ções legítimas, os preconceito é perniartistas que tracioso, mas, no caso balham com sudo crítico, é partiportes e conceitos cularmente contramais tradicionais producente assumir começam a se resuma postura de consentir da falta de cha. Estar aberto ao espaço. Aguardem que chega através de a revolução dos caminhos não-conA proposta do SPA das Artes é levar às ruas variadas intervenções artísticas pincéis. vencionais é uma das OUT 2008 • Continente x

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CINEMA

Às margens da Europa Depois de anos produzindo filmes melodramáticos, a cinematografia da Turquia reaparece, comprovando o desejo de afirmação do país, em meio à fragmentação de identidades do mundo globalizado Marcelo Costa

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Imagens: Divulgação

Cena do filme Süt (Milk), de Semih Kaplanoğlu

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CINEMA

Zeki Demirkubuz, um dos diretores turcos dessa nova fase. Ao lado, cena do filme Do outro lado, de Fatih Akin

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pesar de não vencer nenhum prêmio na última edição do Festival de Veneza, o filme Süt (Milk), do cineasta turco Semih Kaplanoğlu, despertou o interesse de um público restrito com uma narrativa poética e incomum, merecedora de destaque em meio a uma seleção de filmes com linguagens cinematográficas marcadas pelo convencionalismo. De certo modo, Süt confirma a boa fase vivida pelo cinema produzido na Turquia: país com um contexto político e social bem particular dentro do sentimento de mal-estar vivido pelo continente europeu. O filme conta a história de um jovem poeta vendedor de leite que procura manter a sensibilidade intacta, à medida que tenta se relacionar com as pessoas e com um futuro profissional que

não o mutile por completo. Tratase do segundo filme de uma trilogia sobre o personagem, formada por Egg (2007) e Honey. Diante de um mundo embrutecido e embrutecedor – personificado na imagem de poetas relegados à escavação de minas –, acompanhamos a trajetória desse personagem e o conflito entre o seu mundo particular e a realidade que se abre à sua volta. Com uma forte seqüência inicial, envolvendo a muito presente figura materna prestes a expelir uma cobra, o filme define o tom poético e vigoroso de suas imagens que, daí em diante, não clamam pela atenção do espectador. Nesse sentido, Süt funciona como um convite pouco enfático, como um salão vazio e sem música, mas ideal para ser

bailado por quem tem notas musicais nos ouvidos. Os planos longos e um ritmo lento são sugestivos de uma atmosfera rarefeita que pode provocar a imersão do espectador ou sua indiferença na história do personagem – talvez uma das razões da recepção fria do júri e da crítica em Veneza. Recém-egresso da escola, Yusuf (Melih Selçuk) está com dúvidas em relação ao futuro na pequena província em que vive. Escrever poesias é a sua paixão, e alguns dos seus poemas passam a ser publicados em obscuros jornais literários, embora sem retorno financeiro. Por isso, o jovem continua a auxiliar a mãe no simples negócio familiar de venda de leite – aqui tratado como elemento simbólico da relação de dependência e proteção estabelecida entre mãe e filho. É justamente a

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Contra a parede, de Fatih Akin, ganhou o Urso de Ouro em Berlim, em 2004

necessidade de ruptura com o seio materno para rumar novos e incertos caminhos, associada a uma desilusão amorosa, que vai provocar em Yusuf a sensação de desamparo. A idéia de conflito existencial na transição para a idade adulta é ainda potencializada por um cenário indefinido, por uma Turquia a meio caminho entre a tradição e a modernidade, entre o Ocidente e o Oriente. Nesse sentido, o filme diz muito sobre o contexto atual do país e reforça a idéia de retomada de seu cinema. A Turquia só consolidou uma indústria cinematográfica produtiva no período pós-Segunda Guerra Mundial, sobretudo na década de 50. Anteriormente, a produção do país resumia-se a documentários institucionais, na maioria dos casos

financiados por órgãos governamentais, e a peças filmadas por grupos teatrais em evidência. Nas décadas de 60 e 70, o cinema turco viveu o seu auge de popularidade e produtividade, embora isso não significasse um compromisso com o desenvolvimento de novas linguagens ou com o apuro técnico ou estético. Com uma produção média de 250 a 300 filmes por ano, o país credenciou-se como uma das grandes potências cinematográficas do mundo ao desenvolver uma indústria forte e auto-sustentável: a Yesilcam, a versão turca da Hollywood norte-americana ou da Bollywood, na Índia. Entretanto, o sucesso junto ao público muitas vezes se amparava numa estrutura demasiado melodramática e em remakes bizarros de superproduções do cinema hollywoodiano, rodados em pou-

cos dias e com orçamento mínimo. Após um duro golpe de viés político e econômico, essa prática produziria uma geração de “clássicos” do cinema trash, que, ao invés de relegar o cinema turco ao esquecimento, lançou-o ao posto de vergonha nacional no imaginário popular. É dessa safra O homem que salvou o mundo, a versão turca de Star Wars, e cópias esdrúxulas de O exorcista (Seytan) e E.T. (Badi). Esses filmes ganharam notoriedade ao reproduzirem seqüências inteiras da obra original ou mesmo pela apropriação descarada de suas cenas e trilhas sonoras. Por outro lado, a produção constante e o desenvolvimento de um sistema de distribuição regional possibilitaram a expressão de um cinema mais autoral e com maior pretensão artística; segmento que corria paralelamente sem despertar OUT 2008 • Continente x

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CINEMA

Seqüência inicial de Süt (Milk), em que a figura materna expele uma cobra pela boca

o interesse do grande público do entretenimento. É justamente essa maneira de expressão a grande responsável pela restituição do prestígio da cinematografia turca atual. Depois de sufocar com a expansão da TV, do vídeo-cassete e com o colapso econômico decorrente do terceiro golpe de Estado em menos de 20 anos, o cinema turco reaparece no cenário internacional com uma linguagem vigorosa. Um país que insiste em se afirmar em meio à fragmentação de identidades do mundo globalizado. Nos últimos anos, o cinema autoral turco tem apresentado boa representatividade no circuito internacional, através de nomes como Zeki Demirkubuz (Kader e Innocence) e Nuri Bilge Ceylan (Uzak e Climas, premiados em Cannes), vencedor do prêmio de melhor diretor na

última edição do festival, por Three Monkeys. Mais recentemente, Sonbahar ou Outono, do diretor estreante Ozcan Alper, também teve boa repercussão no Festival de Locarno. Além disso, o próprio cinema-comercial desenvolvido no país recuperou parte do prestígio e voltou a dialogar com o público, chegando a atingir 50% do consumo no mercado interno (a participação do cinema brasileiro no mercado nacional gira em torno de 12%). Através do resgate de remakes e de produções ultranacionalistas como o recordista de público Iraque, vale dos lobos (2006) – uma espécie de Rambo turco contra a presença das tropas americanas no levante –, a Turquia conseguiu retomar a sua produção e consolidar sua indústria. Com uma política estatal estruturada e a utilização equilibrada dos

recursos públicos, o país refinancia suas produções com a arrecadação obtida pelos sucessos comerciais e viabiliza, inclusive, novos projetos autorais, como Süt. Afinal, quando se trata de cinema é preciso haver uma estrutura mínima para desenvolver uma linguagem cinematográfica própria, capaz de servir como representação cultural de um país e, sobretudo, como forma de reconhecimento humano. Basta assistir à cena em que Yusuf encontra um peixe, para perceber que a fúria poética presente na atual produção turca revela a realidade de um país, mas muito mais sobre seres humanos em meio ao embrutecimento do mundo. Na conferência de imprensa realizada após a exibição do filme no Festival de Veneza, o diretor

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Seytan a versão turca de O exorcista. Ao lado, Nuri Bilge Ceylan, vencedor do prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes deste ano, por Three Monkeys

Kapanoğlu afirmou: “Os personagens não sabem se são do leste ou do oeste, se devem ir para a direita ou para a esquerda. É um retrato da sociedade na Turquia”. Esse sentimento de desnorteamento provocado por uma indefinida posição geográfica, e acentuado pela volatilização das fronteiras, é uma das características marcantes da cinematografia turca contemporânea, sobretudo quando se trata dos realizadores expatriados. É difícil se pensar na identidade de um país que recebeu múltiplas interferências e influências ao longo de sua história e que recentemente vivenciou diferentes regimes. As mudanças de diretrizes relegaram a Turquia a uma delicada situação de desemprego e fortes contrastes sociais, o que talvez intensifique a dispersão dos turcos ao longo do con-

tinente europeu. Um bom exemplo disso é a presença de realizadores turcos em outros países, como é o caso de Ferzan Özpetek – que apresentou mais um filme italiano em Veneza, Un giorno perfetto (Um dia perfeito) – e dos “kurz und schmerzlos”, nomenclatura dada às obras do cinema turco-alemão. É justamente sobre esse ponto de vista que o cineasta alemão de ascendência turca Fatih Akin estruturou o seu cinema, uma análise apaixonada e desprovida de sectarismo da realidade turcogermânica. A sua impetuosidade cinematográfica também contribuiu para a retomada do cinema no país, ao vencer o Urso de Ouro em Berlim com Contra a parede (Gegen die Wand, 2004). O filme é o retrato vivo de um casal de turcos marginalizados na Alemanha;

local escolhido para a vivência de novas referências culturais, livres das convenções sociais e morais da cultura de origem. Em seguida, Akin realizou o documentário Atravessando a ponte – o som de Istambul, sobre a riquíssima cena musical da capital turca, e, em Cannes 2007, apresentou Do outro lado (Auf der anderen Seite), vencedor do prêmio de melhor roteiro. Através de um estudo sobre a morte e o acaso, o cineasta retomou a questão do conflito cultural e racial, numa trama que envolve turcos e alemães nas cidades de Hamburgo e Istambul. Apesar da estrutura melodramática e de uma sobreposição excessiva de elementos, o filme mantém o frescor e a vivacidade de um grito contra o preconceito, de alguém que se encontra no meio do caminho. OUT 2008 • Continente x

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José Cláudio

matéria corrida

Auto-retratos comparados

O

era Dom Quixote no corpo de Sancho Pança, coisa que dava mais certo para Joca Souza Leão, arrolado entre os Quixotes da praça pela professora Dayse Vasconcelos Mayer, que escreve no Jornal do Commercio do Recife; já o poeta José Almino comentou que alguém, um escritor americano, acho, perfilha a teoria de ser Sancho Pança o verdadeiro Dom Quixote.) No entusiasmo dos primeiros anos do Atelier Coletivo (Recife, 1952-1957) dirigido por Abelardo da Hora, na ideologia incutida através dele, que nos contaminou uns mais outros menos, abominavam-se os retratos em geral e os auto-retratos em particular como herança deletéria da burguesia decadente imitada da extinta aristocracia, embora alguns dos seus membros, isto é, do Atelier, prevaricassem: o próprio Abelardo, Ionaldo, Gilvan Samico, Ivan Carneiro, Marius Lauritzen, um pintando retrato do outro ou se pintando a si mesmo. E isso me repugnava, até por nunca ter me detido em cara de homem nenhum a não ser menino em Ipojuca quando me pediam para riscar no papel de embrulho da loja de meu pai Amaro Silva a cara de Getúlio Vargas ou, com todo respeito, a de Santo Cristo e às vezes a de Joaquim Nabuco com aquele chapéu inexplicável as abas em cima da copa e muito menos minha própria Imagens: Reprodução

meu e o de Cervantes, por exemplo. Qual a serventia, se perguntará o precavido leitor sentindo-se enganado por ter desembolsado na compra desta revista o precioso metal, ou melhor, papel cuja estampa outrora contemplava os homens ilustres e hoje celebra irracionais criando novos bichos da roda, um beija-flor em vez de avestruz, dois tartaruga em vez de águia, outro bicho d’água garoupa zero zero em vez de vaca, cinco garça em vez de cachorro, 10 arara em vez de coelho, 20 macaco em vez de peru, 50 antes dezena de galo agora onça para enfatizar quem sabe o caráter selvagem da pecúnia, desse auto-retrato comparativo entre o grande homem escritor Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em Alcalá de Henares, em 1547 e o popular José Cláudio da Silva, nascido em Ipojuca, em 1932? Eu de meu não sei da utilidade de coisa nenhuma a começar pelo planeta Terra e tudo que dele se avista, abrindo exceção à lua que preside escritos como este: mas há alguém mais aluado do que o criador de Dom Quixote que se confunde com a própria criatura sendo O Engenhoso Fidalgo, aliás, mais cauteloso, pois terminou inteiro e o outro faltando um braço? (Certa vez o pintor Gilvan Samico aventou que eu

Rara fotografia de Vincent Van Gogh e auto-retrato do jovem James Ensor com chapéu florido, parodiando o último de Rubens

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Flávio Lamenha/Divulgação

Nos primeiros anos do Atelier Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora, abominavam-se os retratos em geral e os autoretratos em particular

Auto-retrato, Gil Vicente, nanquim sobre papel, 228 x 280 cm, 2007

cara que só olho para fazer a barba e naquele tempo nem isso porque imberbe. Nos auto-retratos de Rembrandt costumava acompanhar a minha decadência física glorificada pelo encanto do grande pintor, mas isso acabou há tempo já que ele morreu com 63 anos e eu já vou com 76. Quando quero lembrar de auto-retratos, tantos que já vi dos grandes pintores, o jovem James Ensor de 23 anos com chapéu florido parodiando o último de Rubens aos 63, o do também jovem Dürer aos 27, o de Velázquez no Las meninas aos 57, Goya aos 48, Van Gogh com orelha cortada aos 36, um ano antes do falecimento, aliás moço bem–apessoado como aparece na fotografia, me vêm logo dois que não foram pintados a não ser pela arte da escrita: o de Cervantes e do também ibérico Bocage, nenhum dos dois alcançando a idade provecta em que me vejo, Bocage morrendo aos 40 e Cervantes aos 69. Três anos antes publicara Cervantes as Novelas exemplares em cujo prólogo declara possuir apenas seis dentes “mal distribuídos e pior plantados, sem correspondência uns com os outros”. Também eu assim estaria não fosse a arte do Dr. Romildo José de Souza, praticante, outrossim, da arte da pintura, e do seu filho Dr. Felipe Monteiro de Souza, que poderiam ter melho-

rado a qualidade de vida do grande homem como têm melhorado a minha. Também diz ter perdido a mão esquerda num tiro de arcabuz na batalha naval de Lepanto, mas uma nota biográfica explica que tal ferimento ocasionou-lhe a amputação do braço além de atingi-lo no peito. Li no livro Infiéis de Andrew Wheatcroft, Imago, 2004, a impressionante descrição dessa batalha de que tanto ouvia falar desde o ginásio, somente trazida à realidade para mim pelo acaso de nela ter perdido a mão um ser de carne e osso chamado Cervantes, coisa que tanto quanto a batalha nos parecia lendária antes de ele o afirmar com sua própria boca, ou melhor, mão direita que lhe restou para escrever. Já eu até hoje não perdi nem mesmo um dedo, embora leve artrite me tenha entronchado os indicadores perto da unha e no direito tenha tido um panarício sarjado pelo Dr. Vicente Andrade, sobrinho de José de Barros, um dos nossos maiores pintores, falecido ainda muito moço. A cabeça do dedo ficou mole, mas nada que prejudique o exercício do pincel ou da caneta, embora cause algum transtorno na datilografia de dedógrafo, me obrigando agora a catar milho com o dedo médio. Eu e Cervantes continuamos no próximo número. E Bocage. OUT 2008 • Continente x

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CÊNICAS

Montando a Barraca Carlos Newton Júnior

Com a Barraca, o TEP pretendia levar o teatro às ruas e formar público

A

18 de setembro de 1948, por volta das oito horas da noite, aproximadamente três mil pessoas se reuniram no Parque 13 de Maio, no Recife, para assistir a um evento que entraria para a história do teatro no Brasil: a inauguração da Barraca do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). Projetada pelo arquiteto Hélio Feijó e construída pela Base Naval do Re-

Fotos: Reprodução

Há 60 anos, o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) ergueu um palco móvel em pleno Parque 13 de Maio com o objetivo de democratizar o teatro e investir na formação de novas platéias

cife, a Barraca era uma espécie de palco móvel – dotado de bastidores e camarins – com o qual o grupo do TEP, formado dois anos antes, pretendia fazer teatro ambulante. Fotos da platéia naquela noite de sábado mostram pessoas sentadas em cadeiras espalhadas pelo chão do Parque, acomodadas na grama e até mesmo no alto das árvores, comprovando a expectativa que cercava o evento.

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Aloísio Magalhães e Hermilo Borba Filho

Acima, em sentido horário, reunião do TEP, em 1963, com Aderbal Jurema, José Lins, Hermilo Borba Filho, Gastão de Holanda, Lula Cardoso Aires e Murilo Costa Rego

Costuma-se dizer que o Teatro do Estudante de Pernambuco foi fundado em 1946, por um grupo de alunos da Faculdade de Direito do Recife, sob a liderança de Hermilo Borba Filho. Muito embora a afirmação não esteja de todo errada (eu mesmo devo tê-la usado, em mais de uma oportunidade), o verbo “fundar”, aí, contém certa dose de imprecisão. Como apontou Joel Pontes, no seu livro O teatro moderno em Pernambuco, houve, a rigor, “com ligeiras variações na denominação”, quatro grupos teatrais com esse nome em nosso Estado, o primeiro deles remontando ao ano de 1940. O mais correto, portanto, seria dizer que Hermilo e seu grupo (do qual faziam parte o próprio Joel Pontes, José Laurenio de Melo,

Aloísio Magalhães, Ariano Suassuna, Galba Pragana, Ivan Neves Pedrosa, José de Moraes Pinho, José Guimarães Sobrinho, entre outros) retomaram o Teatro do Estudante sob nova inspiração teórica, direcionada, sobretudo, para a pesquisa em prol de um teatro nacional a partir das nossas raízes populares e da tradição mediterrânea. O grupo contava, ainda, com o apoio de estudantes de outros cursos, como as irmãs Ana e Raquel Canen, e de artistas com larga experiência, como Capiba, que, em 1946, aos 42 anos, já era um músico reconhecido. Outro propósito forte do grupo era democratizar o teatro, levando-o gratuitamente para o povo e investindo na formação de novas

platéias. Na conferência “Teatro, arte do povo”, proferida em 1945, antes mesmo de ingressar na Faculdade de Direito, portanto, Hermilo Borba Filho já propagava a vontade de fazer teatro ambulante, gratuito e de qualidade: “O teatro brasileiro tem vivido fechado nas casas de espetáculos, caro, inacessível ao bolso da maioria. O nosso teatro precisa de umas férias. Precisa tomar ar, respirar a plenos pulmões”. A inspiração para a Barraca vinha de Federico García Lorca, que dirigira, nos anos 30, na Espanha, juntamente com Eduardo Ugarte, o grupo de teatro universitário La Barraca. No programa impresso do evento recifense, ilustrado com foto do grande poeta e dramaturgo espanhol, já se encontrava o anúncio OUT 2008 • Continente x

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CÊNICAS de “Um espetáculo em homenagem a García Lorca numa primeira tentativa de Teatro Ambulante no Brasil”. Os estudantes tiveram ainda a preocupação de deixar, no impresso, um espaço para que o público opinasse sobre o espetáculo, depositando suas impressões em urnas localizadas ao lado da Barraca. A função daquela noite verdadeiramente memorável – e que se repetiria na noite seguinte com igual sucesso – envolveu teatro, música e poesia. Na primeira parte do espetáculo, o público assistiu à encenação da peça para bonecos Da esquerda para a direita, na primeira fila: José Laurenio de Melo, Joel Pontes, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. Na segunda, Galba Pragana, José de Moraes Pinho, José Guimarães Sobrinho e Ivan Neves Pedrosa, em 1946

Haja Pau, de José de Moraes Pinho, encenação para a qual colaboraram, entre outros, o titereiro popular Cheiroso, Capiba (música) e Aloísio Magalhães (cenários e confecção dos bonecos). Peça curta, baseada numa lenda nordestina sobre a história de um menino travesso que se transforma em pássaro devido a uma maldição que lhe é lançada pela própria mãe, Haja Pau foi posteriormente publicada em um dos livros de ensaios de Hermilo Borba Filho (Fisionomia e espírito do mamulengo). Em seguida, ainda na primeira parte do espetáculo, o público pôde se deleitar com a poesia de Lorca – cantada por Ana Canen, com música de Capiba, ou declamada por Maria Tereza Leal – e com a música de De Falla, executada ao piano por Raquel Canen.

Na segunda parte do espetáculo, o jovem dramaturgo Ariano Suassuna, que no ano anterior havia escrito a sua primeira peça de teatro, Uma mulher vestida de sol, finalmente estreava em palco com Cantam as harpas de Sião, peça que seria reescrita 10 anos depois, recebendo o título de O desertor de princesa. A direção da montagem coube a Hermilo, e os cenários e figurinos foram assinados por Aloísio Magalhães. O elenco contou com Edson Nery da Fonseca, Ana Canen, Luís Espíndola, José Guimarães Sobrinho e Genivaldo Wanderley. Ainda hoje inédita, O desertor de Princesa é uma peça curta, em um ato, talvez por exigência do programa de inauguração da Barraca. A ação se passa durante a Revolução de 30, mais especificamente durante a “Guerra de

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Material gráfico e registro jornalístico do lançamento da Barraca

Princesa”, deflagrada a partir da declaração de independência do município paraibano de Princesa Isabel em relação ao governo da Paraíba. Vindo ao Recife especialmente para a inauguração da Barraca, o escritor e teatrólogo Paschoal Carlos Magno, então diretor do Teatro do Estudante do Brasil, em consagrador artigo publicado no jornal Correio da Manhã, do Rio, a 26 de setembro, ressaltaria o sentimento de grupo dos estudantes que formavam o TEP, que tão bem se coadunava com a intenção de servir a um gênero artístico eminentemente coletivo, como o teatro. O espetáculo de inauguração da Barraca foi novamente apresentado no Parque 13 de Maio em outro final de semana, nos dias 9 e 10 de outubro. Foi provavelmente a uma dessas duas apresentações que o poeta Murilo Mendes compareceu

durante a sua célebre viagem ao Recife, uma vez que ele aqui chegou a 7 de outubro de 1948. Suas impressões sobre o evento foram registradas na crônica Viagem ao Recife, originalmente publicada em duas partes no jornal A Manhã, do Rio, no ano seguinte (13 de março e 3 de abril). Escreveu o poeta: “Assisti também a uma representação ao ar livre do Teatro do Estudante de Pernambuco, a cuja frente se encontra esse apaixonado da arte teatral, esse conhecedor que é Hermilo Borba Filho. A peça era da autoria de um jovem pernambucano – ou paraibano? – que talvez ainda não tenha entrado na casa dos 20 – Ariano Suassuna, nome que deve ser retido. Apesar dos defeitos e vacilações próprios da idade, mostra talento excepcional para o teatro. É lícito esperar dele coisas muito boas. Trata-se de um rapaz vivíssimo, de notável capa-

cidade narradora. Transmitiu-me histórias e cantos dos cantadores do Nordeste, com os quais tem larga convivência”. A impressão que Murilo Mendes guardou de Ariano Suassuna demonstra a visão crítica extremamente aguçada do poeta. O “talento excepcional para o teatro” que o jovem Suassuna demonstrava possuir já aos 21 anos de idade revelar-se-ia em todo o seu esplendor ainda antes de o autor atingir a casa dos 30, com a escritura, sete anos depois, em 1955, do Auto da Compadecida. A Barraca do TEP não teve, porém, vida longa. Sua estrutura em ferro e madeira mostrou-se bastante pesada e de difícil montagem, inviabilizando o objetivo do grupo de fazer teatro ambulante. O equipamento tão sonhado pelos estudantes e que marcara a cena teatral pernambucana terminou, assim, sendo doado a um orfanato. OUT 2008 • Continente x

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CÊNICAS

Em busca do tom O espetáculo Anjos de fogo e gelo não chega a ser a redenção de uma cena na qual as comédias de gosto duvidoso dão o tom, mas nos faz ver que nem tudo está perdido Alexandre Figueirôa

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espetáculo para marcar múltiplos retornos. Assim é Anjos de fogo e gelo, peça em cartaz até novembro no Teatro Barreto Júnior. Ela assinala a reabertura, devidamente reformada, de uma das poucas salas municipais exclusivas para as artes cênicas no Recife. Traz de volta, também, um encenador – José Francisco –, que andava afastado dos palcos; uma atriz – Stella Maris Saldanha –, cuja carreira ficou adormecida pela necessidade de enfrentar a ribalta do jornalismo; um autor – Moisés Neto –, que afirma ter voltado à adolescência de leitor voraz de poemas; e, ainda, um tema, cuja mística enfeitiça o Ocidente e já inspirou outras tantas peças, filmes e livros: a turbulenta relação entre os poetas Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, no final do século 19, na França. Numa cidade onde as comédias de gosto duvidoso dão o tom, não deixa de ser animador ver mais um grupo de pessoas se debruçar sobre um projeto teatral que tenta escapar das fórmulas previsíveis do humor fácil e afirmar: o teatro pernambucano permanece vivo. Por isso acho ser obrigação da crítica não baixar a voz e, mais uma vez, buscar estabelecer um diálogo sereno e propositivo com esta cena que resiste. Na troca de impressões, talvez consigamos recuperar um espaço que,

infelizmente, vem sendo ocupado, cada vez mais, pelas manifestações artísticas massivas onde qualidade e apuro estético pouco importam. Isto não significa que Anjos de fogo e gelo consiga ser a redenção de tantos conflitos, mas nos faz ver que nem tudo está perdido. Em primeiro lugar, é preciso ressaltar o cuidado da produção, equilibrando os recursos materiais disponíveis a partir de uma coerente articulação entre a proposta de encenação e os elementos cenográficos. No figurino, predominam as cores marrom e bege e, junto com a iluminação, em tom amarelo cobre, temos a impressão de que folheamos as páginas envelhecidas de um livro esquecido na estante. As plataformas por onde circulam os atores, com degraus decorados com sinais de escrita, também conseguem dar unidade ao drama que se desenrola diante do espectador e funcionam de forma precisa como elementos para definição do jogo dramático proposto. Contudo, há escolhas inexplicáveis ou ao menos questionáveis. O texto de Moisés Neto, mesclando vida e obra do autor de Uma estação no inferno, tal e qual o filme Eclipse de uma paixão, estrelado por Leonardo Di Caprio, parece ter se preocupado mais com o escândalo provocado pelo adolescente que seduziu Verlaine e provocou a ira de sua esposa Mathilde do que com

os versos cujas palavras mudaram os rumos da poesia do final do século 19. Arthur Rimbaud teve uma trajetória existencial provocadora, inquietante, e ela pode, de alguma forma, estar associada à sua poesia. Mas este não seria o caminho mais óbvio e traiçoeiro para quem se arrisca a condensar tantas informações num texto para uma hora de espetáculo? A poesia, em vez de revelar um espírito criador, emerge, na montagem, como um estado patológico em que o artista perde sua força inspiradora para ceder lugar apenas a um garoto caprichoso, debochado e neurótico. Esta premissa da construção textual talvez seja responsável por uma certa exacerbação da interpretação aplicada pelo diretor. Todas as falas, do início ao fim da peça, parecem estar uma nota acima do tom e sobra pouco espaço para modulações, e até mesmo para que cada ator possa esculpir a sua personagem com a inflexão adequada. Stella Maris, no papel de Mathilde, é quem consegue, com muito esforço, marcar uma presença real, orgânica com o espetáculo, algo que nem George Meireles, como Verlaine e nem Roger Bravo, na pele de Rimbaud, alcançam, e, muito menos, Ivonete Melo, no papel de sua mãe Vitalie. Todos parecem ler ao acaso frases que lhe foram impostas para serem decoradas.

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Stella Maris como Mathilde e Roger Bravo como Rimbaud

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Entre as escolhas inexplicáveis está a barba postiça que George Meireles usa no início e no final do espetáculo. Ela poderia ser perfeitamente dispensada e ninguém iria achar que ele não é Paul Verlaine. A trilha musical é outro elemento que, sinceramente, não funciona e até atrapalha, fazendo com que o espetáculo resvale no final para um registro próximo do melodrama, quando toda a encenação parecia ter optado por uma construção mais próxima dos padrões de uma forma épica de representação. Todavia, embora este espetáculo não prime por soluções que o coloquem num patamar de sofisticação cênica capaz de resguardá-lo de uma certa ingenuidade, não seria de se espantar que este grupo, caso pudesse continuar a trabalhar junto, desse o salto qualitativo esboçado aqui e acolá em Anjos de fogo e gelo. E este talvez seja o grande desafio da cena pernambucana, hoje, para se revitalizar: formatar projetos consistentes que se estabeleçam além das oportunidades ocasionais como já o fizeram o Teatro de Amadores de Pernambuco, o Teatro Popular do Nordeste, o Vivencial Diversiones, entre outros, e que por isso fizeram história.

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Janela para Pernambuco Lançado recentemente, o site foi criado para divulgar o Estado ao redor do planeta. O endereço reúne os melhores destinos do litoral ao sertão, os eventos mais importantes da cultura local, além do setor de dicas para hospedagem, transporte, alimentação, agências, compras e serviços. O visitante ainda pode viajar em fotos e vídeos pelos locais mais bonitos de Pernambuco, como a Coroa do Avião, o antigo Farol de Nazaré, a cidade de Triunfo e o passeio de jangada em Porto de Galinhas. As empresas podem se cadastrar e solicitar a participação do estabelecimento no portal do turismo – há um espaço reservado aos internautas que dão informações, sugestões, críticas ou elogios para o site. (Lucas Paes) nnn

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Apesar de renitente em seu discurso anticapitalista e ainda praguejando contra os males da globalização, o Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, aderiu recentemente ao universo globalizado por excelência: a internet. O escritor português inaugurou uma página na web, que foi nomeada O caderno de Saramago. Vivendo nas Ilhas Canárias, Espanha, Saramago explica que atuará com freqüência no espaço: “devo escrever o que for, comentários, reflexões, simples opiniões sobre isto e aquilo, enfim, o que vier a talhe de foice”. (Eduardo Cesar Maia)

"A galeria Choque Cultural, especializada em arte de rua, foi invadida por 30 pichadores no dia 6 de setembro passado. Segundo seus proprietários, apenas uma tela do artista Speto foi danificada. Pergunta para a turma do blog Sim, Viral, especializado em decifrar ações de marketing invisível: foi um PR Stunt ou foi protesto legítimo contra a domesticação da cultura de rua?” Notícias inusitadas como esta estão no interessante Blog de Guerrilha, especializado em marketing de emboscada ou de guerrilha, espécie de contrapropaganda que interfere nas propagandas oficiais com propostas anticonsumismo, antiglobalização, antipoluição e outras atitudes de protesto. (Marco Polo)

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Um espaço para a cena independente na rede

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FaVORITO

POST DO MÊS - [Blog de luiz carlos Merten]

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O cinema como teste de nervos

Capas de jornais pelo mundo Acesse, escolha um continente ou região e confira as capas digitalizadas dos principais jornais do mundo. www.newseum.org/todaysfrontpages/flASH/ n cUlTURa

acervo cultural gratuito ameaçado Imaginem um portal com um arquivo imenso de imagem, vídeo, texto e som e ainda com download. Pois bem, ele existe. O site domíniopúblico, do Governo Federal, tem como um dos pontos fortes o conteúdo gratuito e sem cadastro. Basta realizar uma pesquisa detalhada por tipo de mídia, categoria, idioma, autor ou título. A sessão de destaque reúne, por exemplo, traduções de Shakespeare e A divina comédia, poesias de Fernando Pessoa e obras de Machado de Assis. Também podem ser encontrados desde temas na área de agronomia até teses e dissertações, além de variedades em idiomas do latim ao finlandês e pinturas de Leonardo da Vinci. Só de literatura portuguesa são 732 obras. Porém, podemos perder tudo isso: por falta de acesso e divulgação o Ministério da Educação já ameaça desativar essa biblioteca digital. (Lucas Paes) nnn

dominiopublico.gov.br

O novo longa de Bruno Barreto foi indicado pela comissão do MinC para representar o Brasil na briga por uma indicação para o Oscar de melhor filme estrangeiro. "Não sei se gostei de Última parada 174, mas o filme com certeza me afetou muito. Saí do cinema achando horrível, porque experimentei uma sensação inédita que talvez não esteja conseguindo analisar direito. Já vi, como todo mundo, filmes violentos, de Meu ódio será sua herança a Tempo de violência e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para não falar de Tropa de elite, de José Padilha, que muita gente achou 'fascista', no ano passado. Em nenhum deles experimentei

o engasgo que tive em Última parada – deixou-me com ânsia de vomito. Nunca havia experimentado isso no cinema – nunca! – e a sensação me perturbou muito."

PeRFIl Luiz Carlos Merten é jornalista e crítico de cinema. Atualmente, escreve para o jornal O Estado de S. Paulo. Publicou os livros Anselmo Duarte: o homem da palma de ouro, Cinema – entre a realidade e o artifício, entre outros. http://blog.estadao.com.br/blog/merten/

BaIXe e OUÇa Sou, primeiro álbum solo do Hermano Marcelo Camelo, foi disponibilizado para dowload pelo próprio. Com o background da Hurtmold (uma cultuada banda experimental de São Paulo), que toca no disco quase todo, a diversidade e a consistência que eram de se esperar são garantidas. Diversas também são as participações especiais: Dominguinhos toca sanfona em Liberdade, praticamente um xote, e a hypada Mallu Magalhães canta e toca violão na sentimental Janta. O CD ainda conta com participação da pianista Clara Sverner e do trompetista americano Rob Mazurek. www.sonora.com.br/marcelocamelo OUT 2008 • Continente

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Imprensa no Brasil

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anos

CRÔNICA

Caju

Hermilo Borba Filho

Imagens: Reprodução

P

Hermilo Borba Filho nasceu em 8 de julho 1917, no Engenho Verde, em Palmares (PE) e faleceu no dia 2 de junho de 1976, no Recife. Teatrólogo, romancista, contista, cronista, tradutor, ensaísta, roteirista cinematográfico, diretor teatral, editor, foi também grande estimulador da arte e da cultura popular e erudita em suas várias manifestações. Participou da criação do Teatro Operário do Recife, em 1943; em 1946 criou o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP); em 1960 fundou o Teatro Popular do Nordeste (TPN) e em 1974 participou da criação do Circo da Raposa Malhada. Integrou cargos públicos como secretário geral da Comissão do Folclore, do MEC, e diretor da Divisão de Extensão Cultural, da UFPE, entre outros. A crônica Caju está no livro Louvações, Encantamentos e outras Crônicas (Edições Bagaço, 2000).

Leia mais crônicas de Hermilo Borba Filho www.continenteonline.com.br

ertence a uma família de nome pomposo: Anacardiáceas, dan‑ do, assim, uma impressão de no‑ breza quando, na verdade, é uma das árvores mais populares desta região, mesmo com a imponência daquele cajueiro de Pirangi, em Na‑ tal, que abrange uma área de 2.000 metros quadrados. Embora atacado pela mosca branca, ainda se mostra em esplendor, entrando e saindo do chão, despontando muito adiante, querendo subir mais alto, os galhos nodosos e retorcidos se assemelhan‑ do a animais, formas estranhas que lembram seres de outros planetas, em noites de lua bem podem passar por assombrações. Continua, no entanto, a atrair turistas e os frutos mal podem despontar porque as crianças não deixam, menos por uma questão de gulodice que para transformá‑los em parco dinheiro que ajude a família na farinha e no feijão. Sebastião Afonso, lá pelos idos de 20, tomava cachaça com caju durante a noite, de dia estendendo os cajus devidamente preparados em grandes esteiras, no terreiro da sua casa, para transformá‑los em passas que venderia na feira do do‑ mingo. Metia‑se também a fabricar vinho e licor de caju, mas estes não chegariam à feira porque o velho se encarregava de bebê‑los. Esta é a minha lembrança mais remota do caju: arrastar‑me com outros moleques para roubar as passas de Sebastião Afonso, bem debaixo dos seus pés, ele estirado numa espre‑ guiçadeira, curtindo a bebedeira. Coincidindo com o fim de um ano e o princípio de outro, caju sig‑ nifica precisamente, em tupi, oano, sob o nome de acaiú. É, na verdade, a fruta (todos assim o consideram, embora o verdadeiro fruto seja a castanha) de maior popularidade

em todo o Nordeste. O auge da safra caindo justamente no verão é mui‑ to comum se verem todas as praias o caju servindo de tira‑gosto para a cachaça, cortado em rodelas ou chupado inteiro, torcendo‑se a cas‑ tanha, o sumo escorrendo de pesco‑ ço abaixo. Há até quem dê injeções de cachaça no caju, guardando‑o na geladeira, para o aperitivo de antes do almoço; outros, quando o caju e a castanha estão novinhos – matu‑ ri – fazem‑nos passar pelo gargalo de uma garrafa, amarrando‑a ao galho, esperando que o caju cresça. Depois, é tirar a castanha, encher a garrafa com cachaça e deixar passar o tempo: tem‑se uma bebida de pri‑ meira. Nas praias do Nordeste podem ver‑se meninos e homens, carre‑ gados de enormes rodas de caju amarelos e vermelhos. Nas ruas das capitais os vendedores apresentam cestos com a fruta sumarenta, em seus pregões. Antigamente, o doce de caju em calda era servido em compoteiras das mais variadas co‑ res, das mais ricas, acompanhado por uma fatia de queijo‑do‑reino; ou então em forma de doce batido e até mesmo cristalizado. O refres‑ co de caju é refrigerante sem igual pelo gosto e pelas suas qualidades nutritivas. A castanha, enlatada, benefi‑ ciada industrialmente, pode ser encontrada em qualquer coquetel, em qualquer roda onde se esteja bebericando. Aqui e no estrangeiro. Só que no estrangeiro perdemos o mercado para outros países, em‑ bora o cajueiro seja autóctone do Brasil. Antigamente, em festas po‑ pulares (e ainda hoje em festas de igrejas, no interior), a farinha de castanha de caju era vendida em cartuchinhos de papel colorido.

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Natureza-morta (detalhe), Vicente do Rego Monteiro

Muito comum o galanteio ao se ver passar uma moreninha rechonchu‑ da: “Atarrachadinha como canudo de farinha de castanha”. Assar cas‑ tanhas, usando‑se uma tampa de lata bem redonda e grande para que as castanhas não colassem, cheia de furinhos, a chama elevando‑se por causa da resina, o cheiro subindo no ar e se espalhando por toda a redondeza, era um deleite. Depois de assadas, pretas como um tição, tirava‑se a amêndoa a pancadas. E os jogos eram uma diversão predi‑ leta. Obtinha‑se uma boa parracha espremendo‑se uma castanha gran‑ de no vão de uma porta, deixando‑a bem fina, alisada um tempo sem

fim com areia para perder a resina e deslizar facilmente. A parracha tornava‑se veloz com o piparote do dedo médio disparado pela pres‑ são do polegar, derrubando castelos – geralmente uma caixa de fósforos cheia de areia – e soldadinhos, cas‑ tanhas menores equilibradas em montinhos de areia, uma fila de cada lado de cada jogador. O caju aparece no folclore, nas cantigas, na medicina popular, na poesia e na pintura do Nordeste, também no artesanato. Outro dia, Jeferson Ferreira Lima invadiu a casa de Renato Carneiro Campos, gritando: “Que é que você está fa‑ zendo aí sentado? Vamos embora,

vamos sair, é tempo de caju”. E lá foram comer e beber folclore. Somos dois irmãos irmanados, come‑se um cru e o outro assa‑ do. Ainda bem o pai não nasce o filho já está de fora. O que é, o que é? a fruta que tem a semente por fora da casca? Depois de tudo o que já se dis‑ se esta adivinhação é fácil. Melhor, ainda, é aproveitar o caju enquanto é tempo de caju, tempo de verão. (Diario de Pernambuco, 13 de setembro de 1973) OUT 2008 • Continente x

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sabores

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

Pimenta e especiarias (parte II)

Reprodução

N

Na coluna anterior, falamos das pimentas. Mas existem outras especiarias, igualmente importantes, das quais falaremos a seguir: cravo-da-índia, canela, cominho, gengibre, noz-moscada e folha de louro. CRAVO-DA-ÍNDiA (Syzygium aromaticum) – É natural das Ilhas Molucas (Indonésia) e de Zanzibar (costa leste da África). Já falava nele Plínio, O Velho, (23–79), em sua Naturalis Historia – um vasto compêndio das ciências antigas, em 37 volumes, dedicado a Tito Flavio, futuro Imperador de Roma. Ele dizia ser o cravo-da-índia “semelhante a grão de pimenta, só que mais comprido”. Dos caminhos dessa especiaria nos dá conta a historiadora francesa Catherine Clément, em Por amor à Índia: “Na Idade Média, apreciadíssimo pelo Ocidente, o cravo navegou das Molucas a Java, de Java à Índia, e da Índia a Veneza...”. Acabou consagrado, pelos portugueses, como se fosse da Índia mesmo. O botão de sua flor, bem seco, desde a antiguidade tem muitos usos. Como remédio – por ser analgésico, antisséptico e digestivo. Na fabricação de fumo e perfumes. E, sobretudo, na culinária. Entre nós, está presente em doces (compotas, bolos, pães, pudins) e 70 x Continente • OUT 2008

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O nome canela vem de canne (cana), em francês antigo, por conta da forma que toma a casca depois de seca

salgados (presunto, porco, cozidos, sopas). E, também, mais recentemente, como ingrediente de repelente caseiro contra a dengue – numa infusão que mistura 1 litro de álcool (92º) e um pacote desse cravo-da-índia. CANELA (Cinnamomum zeylanicum) – O nome vem de canne (cana), em francês antigo, por conta da forma que toma a casca depois de seca. Seus primeiros registros remontam à China (canela-da-china) e Sri Lanka (canela-do-ceilão) – as duas espécies que se cultivam hoje no Brasil. Tanto foi o seu prestígio, nos tempos antigos, que chegou a merecer até citação na Bíblia: “Teus rebentos são como um bosque de romãs com frutos deliciosos: com ligústica e nardo, nardo e açafrão, canela e cinamomo com todas as árvores de incenso, mirra e aloés, com os bálsamos mais preciosos” (Cântico dos Cânticos 4, 13-14). Em 1505, os portugueses tomaram o Ceilão e ganharam, de presente, o monopólio da canela – então revendida, por toda a Europa, a preço de ouro. A casca da árvore, depois de seca, é tratada e usada em pedaços inteiros (para aromatizar caldos) ou triturada e transformada em pó. Usadas como ingrediente do arroz-doce, bolos, canjica, cartola, doces em calda, mingau, papa, pão, picles e pratos salgados. COMiNHO (Cuminum cyminum L.) – Originário da Ásia Central, é um dos primeiros condimentos usados pelo homem. Há registro

de sua presença em tumba de uma mulher da segunda dinastia do antigo Egito (3.700 a.C.). Gregos e romanos o conheciam bem. Árabes apreciavam seu poder afrodisíaco. Enquanto europeus usavam, sobretudo, como remédio, por facilitar a digestão de pratos pesados. A planta atinge cerca de 50 cm. E, dela, tudo se aproveita: folhas (eficiente chá digestivo); raízes (uma iguaria à mesa); e principalmente sementes (muito aromáticas), retiradas dos frutos antes de amadurecer, depois secas e trituradas. Cada lugar tem seu jeito próprio de usar. Na Holanda e França, por exemplo, para preparação de bolos, doces e queijos (tipo gouda e munster). Na Alemanha, em conservas, embutidos, licores e pães. Também está em temperos de prestígio, preparados com a mistura de vários condimentos: na Índia, o garum masalas, que chamam curry (corruptela de terkari, legume picante); entre árabes, o ras-el-hanout (mistura de 50 condimentos). Em Pernambuco, é bastante usado na preparação de carnes (bode, boi, carneiro, porco), arroz, feijão, legumes (batata, cenoura, repolho), ovos, sopas. Tem sabor picante e ligeiramente amargo, ainda mais forte quando levado ao fogo. Por isso, como nas propagandas de bebidas, recomenda-se “usar com moderação”. GENGiBRE (Zingiber officinale) – Originário da Índia e da Malásia, por Marco Polo (1254–1324) foi descrito como “raiz de um junco semelhante à cana-de-açúOUT 2008 • Continente x

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Divulgação

RECEitA

Peixe com canela 3 Tempere 4 filés de peixe (camurim, garoupa, sirigado) com suco de 3 limões, sal e pimenta do reino branca. Deixe nesses temperos por aproximadamente 3 horas. 3 Passe os filés na canela-da-china em pó (cobrindo completamente). 3 Aqueça o azeite numa frigideira e frite os filés até que estejam bem dourados. 3 Enxugue em papel absorvente e sirva logo.

car”. Foi durante muito tempo apenas remédio. Confúcio (551–479a. C.) e Dioscórides (50–70) falavam de suas virtudes curativas. Gregos o colocavam dentro de um pão, como se fosse sanduíche, para ajudar na digestão – daí a origem do “pãode-gengibre”. Em torno do século 14, na Europa, chá de gengibre era usado para combater a peste negra. Ainda hoje é remédio. Por ser digestivo, antisséptico e, segundo crença popular, também poderoso afrodisíaco – quando misturado à cachaça e açúcar. Sem esquecer que é eficiente no combate à inflamação de garganta e das cordas vocais – tornando a voz dos cantores mais claras e limpas. No Brasil é cultivado desde 1578. Bom para biscoitos, bolos, doces, pães, tortas; e também cozidos, molhos, peixes, picles e saladas. NOZ-MOSCADA (Myristica fragrans) – Essa noz pequena, fruto da moscadeira, já foi símbolo de poder econômico. Quanto mais se colocasse na comida, maior a importância do comensal. A árvore é das Ilhas Molucas. Portugueses, quando lá chegaram, mandaram arrancar todas as existentes nas terras vizinhas. Para garantir seu monopólio. Holandeses, que depois conquistaram as ilhas, foram ain-

da mais longe; mergulhando essas nozes em água e cal, para que não germinassem. No fundo, apenas antecipação do princípio capitalista que recomenda reduzir oferta para aumentar lucros. É usada em biscoitos, bolos, doces, pudins; em conservas, omeletes, molho branco, peixes, pratos à base de queijo, purês. Apenas se recomenda que, para não perder sabor, seja ralada na hora mesmo em que os pratos estão sendo preparados. FOLHA DE LOURO (Laurus nobilis L.) – A folha de louro, usada ao natural, em pó ou seca (com perfume mais intenso), é ingrediente importante em toda cozinha. Vai bem com quase tudo: bacalhau, carnes (boi, bode, carneiro, porco), peixes; conservas, cremes, marinadas, molhos, sopas. E feijoada também, claro. Até na medicina popular – que é digestivo, baixa a febre e acalma dores reumáticas. Só não se presta mais ao uso que tinha desde a Grécia, de eficiente protetor de raios. O templo de Apolo, não por acaso era todo coberto com folhas de louro para proteger contra doenças, bruxarias e esses raios. Uma superstição que perdurou até a Idade Média. Pierre Corneille, por exemplo, um dos fundadores da tragédia francesa, cantava loas em

louvor do “Louro, sagrado ramo que se quer reduzir a pó, / Vós que nos protegeis dos raios...”. A árvore é nativa da Ásia, e logo se espalhou por todo o Mediterrâneo. Tem porte médio, entre 5 e 10 metros, com folhas bem lustrosas que podem ser usadas frescas ou secas. Para todos os gostos e quase todos os fins. Atletas, heróis gregos e imperadores romanos usaram coroas de louro – que simbolizavam triunfo, glória e fama. Ovídio, em sua Metamorfoses, mostra como a ninfa Dafne foi transformada num loureiro para fugir às tentações de Apolo – por conta disso, louro, em grego, é Dafne. Ramos de louro eram lançados ao fogo, para ajudar a prever o futuro – bom e promissor, caso as chamas desse fogo fossem brilhantes, altas e claras. Na Idade Média, foi usado também para coroar homens sábios e bons estudantes. Suas folhas (em latim laurus) acabaram significando vitória – daí vindo laureado. Dos frutos (em latim bacca), veio bacca laurea – daí, em francês, baccalauréat, que corresponde ao bacharelado. Por mera coincidência, Bachelier é nome do botânico a quem coube o mérito de trazer, de Constantinopla, o primeiro pé dessa árvore plantada em Paris (1615). A vida, às vezes, imita mesmo a arte.

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Alexandre Belem/JC Imagem

TRADIÇÕES RETRANCA

O legado de muitos Salús Falecido aos 62 anos, o mestre de maracatu rural e cavalo-marinho teve enorme influência que transitou do popular ao erudito em vários campos da arte pernambucana Rafael Dias

O

corpo franzino e a estatura mediana enganavam os desavisados. Manoel Salustiano Soares, ou simplesmente Mestre Salú, era um pequeno gigante. Reverenciado por lanceiros, puxadores de toadas e outros mestres de maracatu, o artista multiplicava-se em muitos Salús: músico, produtor,

professor, artesão, líder de cavalomarinho e maracatu. Um brincante que, como um ser político, rugia. Que protegeu e defendeu com garra os maracatus do Recife e Zona da Mata. O mesmo corpo, resistente e bravo, sucumbiu, porém, depois de muito lutar. No último dia 31 de agosto, Mestre Salú faleceu, aos 62 anos, vítima de uma arritimia

cardíaca em decorrência do mal de Chagas, contraído na adolescência. Patrimônio vivo da cultura popular pernambucana, Salú sai de cena cedo, mas deixa um legado inestimável. Ele sabia transitar entre os diferentes matizes das manifestações populares, das toadas do maracatu ao tarol da ciranda, e, ao mesmo OUT 2008 • Continente x

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TRADIÇÕES Fotos: Divulgação

tempo, em fazê-las dialogar com outras culturas de sua época. O dom de somar, multiplicar e rejuvenescer um conjunto de expressões populares, como o maracatu e o cavalo-marinho, que, até os anos 70, eram enxergados pelos folcloristas como elementos fossilizados da cultura interiorana, fez de Salú um ímã do novo. Patrono espiritual do movimento manguebeat, o mestre da Zona Mata traduzia a idéia da antena fincada na lama: sintonizado com os sons do futuro, mas com os pés enraizados na tradição. Não à toa, Chico Science e Nação Zumbi apropriaram-se de toda a iconografia do maracatu rural em seus shows e clipes. Chegaram até a compor uma música instrumental (Salustiano Song, do CD Do caos à lama) em homenagem ao mestre. “Ele foi um dos bastiões da cultura de Pernambuco. Era o ponta-delança que corria, chutava, cabeçeava e fazia o gol”, compara, bem-humorado, Jorge du Peixe, vocalista da Nação Zumbi. “Nossa sonoridade estava muito atrelada ao que ele fazia e àquilo que juntamos de outras referências, como o hip hop e o rock. Devemos muito a ele”, declara. A lista dos que, de alguma forma, beberam na fonte Salú é extensa. Uns entraram de cabeça, criando e recriando os ensinamentos do professor, entre eles o multiartista Antônio Nóbrega, Silvério Pessoa e Siba Veloso, ex-Mestre Ambrósio, grupo que na década de 90 também recorreu à cartilha salustiana. Outros apreenderam e reprocessaram as lições em um produto totalmente novo, injetando toadas e toques de ganzá em batidas de música eletrônica, como, por exemplo, DJ Dolores com sua Orquestra Santa Massa. “Poucas pessoas alcançaram a dimensão que ele conseguiu. Ele organizou vários maracatus no interior, criou a Casa da Rabeca, o espaço Iluminara Zumbi…nada disso

Nação Zumbi: dívida para com o mestre

irá se acabar”, sentencia Hélder Aragão, o DJ Dolores. Nas outras áreas da cultura, sua contribuição inspirou outras ações. Na dança, o grupo Grial, da bailarina Maria Paula Costa Rego, criou um espetáculo com músicas de Salú. No cinema, Cláudio Assis (Baixio das bestas), Lírio Ferreira (Árido movie) e Paulo Caldas (Deserto feliz) também remodelaram, cada um a seu modo, a estética da cultura rural. Como ser humano, Salú tinha duas qualidades essenciais, segundo amigos e familiares: o dom de repassar todo o seu saber popular, identificando o potencial de cada um de seus discípulos, e, sobretudo, a generosidade em ajudar companheiros nos folguedos que estivessem necessitados de assistência na indumentária ou nos instrumentos. “Salú era um homem de caráter, leal, solidário e muito generoso. Do seu 'saber' ele nada ocultava aos que o procuravam. Só uma coisa ele nunca me revelou: por que o 'cravo' na boca do caboclo de lança e do 'reamar' "? lembra a atriz Leda Alves, atual presidente da Cepe e que, quando presidiu a Fundação de Cul-

Valéria Vicente, presença na dança

tura da Cidade do Recife e depois a Fundarpe pôde convidá-lo para trabalhar com ela, realizando um trabalho importantíssimo para os maracatus de baque solto da Mata Norte. Isso há quase 30 anos. “Com ele, ao longo desses anos, vivi uma amizade profunda e muito fraterna. Fui e sou sua aprendiz. O legado salustiano é fortemente enraizado nas várias expressões da cultura de sua região, do seu povo, nas diversas

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Salú tinha o dom de repassar o seu saber, identificando o potencial de cada um de seus discípulos, e, sobretudo, a generosidade em ajudar companheiros

Silvério Pessoa, cartilha salustiana

Professor Severino Vicente: estudos

linguagens. E dentro da caminhada de Salú, para nós tão curta, brotam as mais diferentes manifestações artísticas: maracatu de baque solto, cavalo-marinho (ou bumba-meuboi), reizado, mamulengo, ciranda, coco, forró e rabeca. Ele era o artesão do seu próprio ‘brinquedo’. E as sementes que ele semeou, muitas já brotaram e começam a dar frutos. Seus filhos representam muito bem a força da genética e a força do es-

pírito e da grande vocação de Salu: artista brasileiro” – acrescentou Leda Alves O legado de Mestre Salú não é apenas imaterial. Suas conquistas foram, e continuam sendo, bastante concretas. Após deixar o interior e migrar para o subúrbio de Olinda nos anos 60, ele fundou, em 1977, na Cidade Tabajara, em Olinda, a Casa da Rabeca do Brasil, que seria ponto de convergência de maracatuzeiros e brincantes. Trinta anos depois, nasceria o Maracatu Piaba de Ouro, espaço permanente para os lanceiros brincarem. Outros espaços importantes seriam criados nessa época, como o conjunto de cavalo-marinho e o Espaço Ilumiara Zumbi, com o apoio do então, e atual, secretário de Cultura, Ariano Suassuna, que quem Salú foi assessor especial. Uma herança que ele soube muito bem repassar à sua numerosa família de 15 filhos. Hoje administram e tocam seus negócios – Pedrinho, Manoelzinho e Maciel Salú, este à frente da elogiada Orquestra Contemporânea de Olinda. “Seu legado, na minha opinião, são seus próprios filhos, que absorveram seus ensinamentos e vão reproduzi-lo de alguma forma”, diz a jornalista e estudiosa em cultura popular, Michelle de Assumpção. Mas uma das principais facetas de Mestre Salú, além da de brincante, foi a de administrador, como ele soube fazer muito bem dentro

da Casa da Rabeca, aglutinando jovens e públicos de várias gerações. Ele teve, talvez, a característica mais importante para a cultura local, a de um hábil articulador político. Mas não um ativista político, de causas históricas e punho cerrado. Sabia dialogar e conseguir apoio para a cultura popular com facilidade em todas as vertentes políticas. No fim dos anos 80, ele criou a Associação de Maracatus de Baque Solto do Estado, que congregava 13 mestres de maracatu e reúne mais de 100 agremiações, hoje presidida pelo seu filho Manoel Salú. Graças à iniciativa, os maracatus passaram a se estruturar melhor para captar recursos e adquirir roupas e instrumentos. As brigas entre maracatus rivais, comuns no século passado, também deixaram de existir. Tudo por ação de Salú, em parceria com outros amigos, como o Mestre Batista, do Estrela de Ouro de Aliança, e Biu Hermenegildo. “Mestre Salú foi um homem mais que 100%. Ele fez com que os maracatus não ficassem mais intrigados. Ficamos mais unidos e a situação melhorou muito”, elogia o mestre Biar, presidente do Maracatu Leão Vencedor, de Carpina. A partir dos anos 90, a academia começou a olhar mais de perto o fenômeno do maracatu rural e o papel de Mestre Salu. Um dos trabalhos pioneiros nessa redimensão dos estudos acadêmicos foi o da jornalista pernambucana Mariana Mesquita, autora da pesquisa Família Salustiano: três gerações de artistas populares recriando os folguedos da Zona da Mata. A moOUT 2008 • Continente x

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TRADIÇÕES Acervo da Família

Homenagem a Salú na sede da Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, em Aliança

nografia, concebida em 1997 como dissertação de mestrado da UFRPE, é um levantamento da história e da trajetória de uma das famílias mais ilustres do maracatu rural, os Salustianos, representada, segundo ela, pela tríade João (avô), Manoel (pai) e Maciel (filho). Durante três anos, Mariana visitou a Casa da Rabeca, sede do Maracatu Piaba de Ouro, na Cidade Tabajara, em Olinda. Lá, fez várias entrevistas com o Mestre Salú, cujo conteúdo é reproduzido ipsis litteris no livro – uma heterodoxia para as regras acadêmicas. Para contar sua história, Salú exigiu, profissionalmente, a condição de que lhe pagassem. “Além de um bom artista, ele era um bom marqueteiro. Alguém assim como ele vai ser difícil surgir”, diz Mariana Mesquita.

Para a pesquisadora, Mestre Salú foi uma das figuras imponentes que fizeram o maracatu de baque solto, uma manifestação menosprezada no século passado, transformar-se em símbolo da cultura pernambucana. “Até a década de 60, o maracatu rural era tido como um folguedo menor pela Federação Carnavalesca. E é interessante como, em apenas 20/30 anos, inverteu-se essa percepção”, analisa. Outra pesquisa importante, ainda na década de 90, foi feita pelo compositor britânico John Murphy. Em 1994, ele lançou uma tese de doutorado da Universidade de Columbia (EUA) que faz uma etnografia do cavalo-marinho. Dos anos 2000 para cá, os estudos multiplicaram-se à medida que o maracatu rural e outros folguedos

ascendiam ao terreno da cultura de massa urbana. O professor Severino Vicente, do Departamento de História da UFPE, escreveu dois títulos acerca do tema, Festa de caboclo e Maracatu Estrela de Ouro de Aliança: a saga de uma tradição, publicados pela editora Associação Reviva. Especialista na biografia do Mestre Batista, fundador do maracatu Estrela de Ouro, o pesquisador ouviu relatos da presença de Salú em Aliança nas brincadeiras de cavalomarinho. Segundo ele, o maracatu ganhou relevo muito antes da explosão do manguebeat. “Começou nos anos 80. Salú, junto com os mestres Batistas e Biu Hermenegildo, fundaram a associação de maracatus de baque solto e criaram as condições para o folguedo crescer”, afirma.

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poesia>> Regina Carvalho Tenho trinta e oito anos Tenho trinta e oito anos, o meu pai setenta e seis. O dobro da idade que ele tinha quando eu nasci. Deitado a minha frente, ele definha. Eu desfio tudo o que com ele eu vivi. É véspera de natal, ele luta contra a morte, e, pensando friamente, temos sorte. Estamos juntos e bem sabemos, podemos contar um com o outro enquanto morremos.

Trocando de pele Trocando de pele sob as pedras, na aridez dos rios periódicos, as serpentes e suas escamas preciosas não sabem nada das cidades ou dos homens das cidades ou dos pensamentos vagos dos homens. Nem nós sabemos nada das serpentes preciosas e suas escamas periódicas. As existências independem entre si.

A única coisa que poderia A única coisa que poderia não posso assim permaneço sem poder algum. Os vínculos foram cortados o fosso é fundo a ponte não arreia

os dias estão contados e não há passagens secretas (Não que eu saiba) A água do poço evapora ao sol os guardas estão mortos na amurada... Contudo o cochicho das folhas caídas na varanda abandonada envolve de paz minha alma encarcerada.

O ninho

SOBRE A AUTORA Regina Carvalho Nasceu no Recife há 44 anos. Formada em Artes Plásticas pela UFPE, arte educadora há 25 anos, participou de vários salões e exposições. Tem quatro livros publicados. E-mail: reginahcarvalho@ hotmail.com

Nacos de tecido, talos de capim Infinitos pedaços de matéria Nada durável, mas indestrutível Haja o que houver O ninho É ainda para as crianças Para os pássaros novos À revelia de não saberem voar Rapinar o alimento Atacar o inimigo O ninho e a asa da mãe Só para os inocentes Porque só os inocentes ousam Acreditar que conhecem a verdade Sorrir por entre olhos marejados Sorrir como quem morde Arames e clips Revolver a terra em busca de vermes Ouvir passos que chegam e partem. Amar Será sempre o ninho Nada pode deter os que constroem ninhos Os que vivem para construção de ninhos Voam tão alto, contudo sabem Os limites eternos da gravidade Solitários deuses, por um ninho maior!

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MÚSICA

livros

Balmaceda, golpe e suicídio no Chile

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planejava abrir espaço Balmaceda para o parlamentarismo Joaquim Nabuco CosacNaify de fins do século 19, de 270 páginas vertente inglesa. Acos47,00 reais sado pelos seus próprios ministros conservadores e de orientação parlamentarista, o presidente assiste à rebelião da marinha na costa de Valparaíso, o que o faz encetar um golpe de Estado e declarar a guerra em janeiro de 1891 no Chile. Estes atos o levarão à derrota e ao asilo numa legação argentina. Balmaceda mostrava-se um homem com uma visada no futuro científico e tecnológico americano, ao mesmo tempo em que agia com mão-de-ferro na defesa do presidencialismo. No capítulo “A tragédia”, Nabuco traça impiedosamente o fim de Balmaceda, não o comovendo nem mesmo o suicídio do chileno, a 19 de setembro de 1891, motivado pela perda da guerra e do mandato. (Luiz Carlos Monteiro)

> Poesia feita de água e margens

> Reflexões sobre a Terra Santa

> Um filósofo contra a velha filosofia

> Encontros e desencontros

Água da fonte, o novo livro do paraense João de Jesus Paes Loureiro, perfaz um roteiro inverso do poeta em direção ao seu passado próximo. É um texto feito de infância e memória, de rio-terra e natureza. O poema breve Raízes pode lançar alguma luz sobre o percurso dessa poesia: “As raízes da memória/ cada vez mais se afundam/ no solo das palavras.” A linguagem assume uma função lúdica e referencial, lírica e também centrada no cotidiano nortista. A compulsão fluvial de Paes Loureiro desvenda o ritmo ondulante e misterioso das águas e seu cinturão de margens telúricas numa poesia sublime, que, no entanto, não padece de quaisquer efeitos pitorescos ou ingenuidades falaciosas. (LCM)

“Ao viajante resta a emoção de contemplar o monte, o lago, o rio, a muralha, a paisagem ou simplesmente os destroços de uma moradia ou de um povoado e associá-los aos nomes e aos fatos gravados na memória, estabelecendo pontes entre o passado e o presente, o imaginário e a realidade, a lembrança e o olhar, o coração do menino e o coração do homem.” O escritor Admaldo Matos resume, com rigor e concisão, o ato de viajar, nas reflexões finais de Sete dias na Terra Santa. Seu valioso relato é informativo e abrangente, ancorado em textos históricos, literários e bíblicos e enriquecido por sólido conhecimento prévio, ao que se acrescentam observações pessoais argutas e ponderadas. (Homero Fonseca)

Rorty e a redescrição é uma introdução clara e – relativamente – acessível ao pensamento de uma das figuras intelectuais mais influentes e iconoclastas do século passado. Falecido recentemente, Richard Rorty é apresentado nesta obra do professor Gideon Calder como um autor de um projeto sumamente ambicioso: redefinir o papel dos filósofos e minar suas antigas "verdades". A obra rortyana é a tentativa de retomada da tradição pragmatista norte-americana que endossa, grosso modo, que as idéias devem ser avaliadas não pelo seu poder de descrever pretensamente uma realidade última, mas devem ser valorizadas pelo uso na vida prática. (Eduardo Cesar Maia)

Beijando dentes é o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura do ano passado, na categoria contos. As histórias criadas por Maurício de Almeida, neste que é seu primeiro livro, parecem ser completamente independentes, no entanto, elas estão entrelaçadas por uma narrativa de aguda percepção, quase sempre áspera, sobre a vida de seus personagens, entre estes, o filho rejeitado, o marido e mulher sem diálogo ou o envelhecido roqueiro envolvido com garotas. Enfim, seus entraves com os problemas cotidianos. A partir de cenas e falas banais do dia-a-dia, o autor faz um exame das tensões nos relacionamentos humanos, lançando mão de vários recursos técnicos, sem resvalar na linguagem chula.(Luiz Arrais)

Fotos: Reprodução

livro Balmaceda de Joaquim Nabuco é publicado agora em 4ª edição em São Paulo, organizado por José Almino de Alencar. Resultante de um conjunto de textos escritos para jornal, onde Nabuco analisava a obra de Julio Bañados Espinosa sobre a saga presidencial e guerreira do estadista chileno José Manuel Balmaceda (1840-1891), tais artigos foram transformados em livro em 1895, no Rio de Janeiro. O trabalho de Nabuco aparece como um misto de biografia concentrada numa época particular e definidora do destino político de Balmaceda e de ensaio histórico que

Água na fonte João de Jesus Paes Loureiro Escrituras 208 páginas 25,00 reais

Sete dias na Terra Santa Admaldo Matos de Assis Edições Bagaço 192 páginas 25,00 reais

Rorty e a redescrição Gideon Calder Editora Unersp 60 páginas 15,00 reais

Beijando dentes Maurício de Almeida Record 114 páginas 26,00 reais

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MÚSICA

Nova editora traz para o Brasil ficção de Rama

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onsiderado um dos mais rigorosos e profundos conhecedores da literatura latino-americana (incluindo a brasileira), tendo sido convidado a dar cursos no Brasil, por Antonio Candido, o uruguaio, filho de imigrantes galegos, Ángel Rama (foto), foi também ficcionista, faceta sua pouco conhecida entre nós. Ao criar a Grua Livros, em São Paulo, Adauto Leva e Carlos Eduardo de Magalhães resolveram estrear sua editora com o romance Terra sem mapa, premiada incursão de Rama na ficção. A partir de histórias que ouviu de sua mãe, o autor entrecruza uma série de enredos, com a delicadeza e a flexibilidade das teias. São narrativas onde se misturam sem hierarquia memória e invenção, numa terra mais verdadeira do que real,

com seus cheiros, sua chuTerra sem mapa va, sua língua e seu sol. Ángel Rama Grua Livros Além de livros com alto 160 páginas teor literário, a Grua tam31,80 reais bém vai investir, sem prec on c e it o s , nos livros de entretenimento com qualidade. É o caso da segunda publicação da nova editora, Os inomináveis, do suíço Hansjörg Schertenleib, romance de suspense sobre uma seita fanático-fatalista, como as que assombraram o mundo na década de 90. Com seis títulos programados para este ano, Adauto e Eduardo pretendem chegar a mais 10 em 2009. Também está nos planos dos editores uma série de livros sobre história de costumes. (Marco Polo)

> Cortázar em dose dupla de invenções

> Prazeres noturnos de Tóquio em 1930

> Visões de Borges além do universal

> A fantasia nãocientífica de Ray

A volta ao dia em 80 mundos é o livro lançado em dois volumes, pela primeira vez em português, do argentino Julio Cortazar. Oscilando entre o humor, o gosto pelo absurdo e a espontaneidade, o escritor nos leva a passear pelo cotidiano, iluminando cenas, solos de jazz, uma mosca, uma boneca escangalhada e outros detalhes do mundo, em meio a citações de autores e artistas tão díspares quanto Man Ray e Poe, Bataille e Lester Young. Também inédito em português e em dois volumes, está sendo lançado O último round, coletânea de contos, ensaios, poemas, comentários, recortes, citações, imagens, com temas que vão do boxe ao sadismo, passando por novas técnicas culinárias, entre outros. (MP)

Mistura de garçonete e prostituta, Kimie está perturbada com acontecimentos estranhos: um belo pente que lhe é roubado em plena rua, um gato morto que aparece em seu guarda-roupa, detalhes de sua intimidade física que aparecem numa revista de escândalos. Mergulhando sem limites nem culpas num vórtice de prazer carnal, ela não percebe que pode estar provocando ciúmes e desejos de vingança. É daí que o escritor japonês Nagai Kafu parte para traçar um painel da vida noturna de Tóquio, no início do século 20. A narrativa se superpõe por mudanças de foco de um personagem para o outro, dando ao leitor diferentes perspectivas da trama, sempre sobre um delicado fundo descritivo. (MP)

Ensaio fundamental para quem quer conhecer Borges em toda sua dimensão, para além da unanimidade de escritor universal, este estudo da argentina Beatriz Sarlo procura criar uma “paisagem” para Borges, não simplesmente tentando inseri-lo numa tradição regional, mas para mostrar como, além de dialogar com grandes nomes da literatura mundial, como Dante, Cervantes e Kafka, para ele também foi vital relacionar-se literariamente com Sarmiento, Carriego e Mecedonio, além de outros livros e autores que estão fora dos cânones internacionais, mas presentes em sua formação e obsessões. O resultado é um retrato de um escritor que usou sua condição periférica para saltar no universal. (MP)

O norte-americano Ray Bradbury não gosta de ser chamado de escritor de ficção científica, embora a maioria de seus livros (contos ou romances) se passe no futuro. O que o diferencia, entretanto, é que ao invés de se preocupar com o lado tecnológico, Bradbury foca sua atenção sobre os seres humanos. Não faltam em suas narrativas os mundos alternativos, as alegorias mágicas nem os terrores psicológicos, mas há também a velhinha que quer tomar um foguete para ver Deus de perto ou o padre e o rabino que, em meio a marcianos, discutem a vinda do Messias. Tudo num misto de modernidade e decadência, típico daquelas mornas cidadezinhas norte-americanas do interior. (MP)

A volta ao dia em 80 mundos Julio Cortázar Civilização Brasileira 184 páginas 29,00 reais

Crônica da estação das chuvas Nagai Kafu Estação Liberdade 160 páginas 29,00 reais

Jorge Luis Borges, um escritor na periferia Beatriz Sarlo Iluminuras 160 páginas 35,00 reais

A cidade inteira dorme Ray Bradbury Editora Globo 196 páginas 27,00 reais

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Homenageado nesta Feira do Livro de Porto Alegre, Pernambuco comparece com uma embaixada literária em que se sobressaem, para além das diferenças regionais, afinidades históricas e culturais

fraterno abraço literário

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ento Teixeira recitando, na Sociedade Partenon Literário, para Apolinário Porto Alegre, a sua Prosopopéia – o primeiro poema brasileiro, publicado em 1601. Simões Lopes Neto bebe água de coco, ao lado de Joaquim Nabuco, sorvendo chimarrão. Gilberto Freyre e Raimundo Faoro discutindo acaloradamente o Brasil. Mário Quintana troca um dedo de prosa com Manuel Bandeira. Érico Veríssimo e João Cabral de Melo Neto caminhando às margens do Guaíba (ou seria do Capibaribe?). Dyonélio Machado lê em voz alta trechos do jornal Typhis Pernambucano, do revolucionário Frei Caneca. Cenas imaginárias a exprimir afinidades mais que literárias entre Pernambuco e o Rio Grande do Sul, Estados de histórias de lutas libertárias e fortes identidades culturais. O diálogo real será travado de 31 de outubro a 16 de novembro, durante a 54ª Feira do Livro de Porto Alegre quando escritores pernambucanos farão interpretações de seus textos e lançarão seus livros, durante a vasta programação gaúcha, que terá também aulaespetáculo de Ariano Suassuna e apresentação da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, do Recife, interpretando frevos e outros ritmos pernambucanos. Nas matérias seguintes, os professores e críticos Luís Augusto Fischer e Lourival Holanda apresentaazm um panorama da literatura de seus Estados natais, dos primórdios à produção contemporânea, e o jornalista Samarone Lima conta a recepção estelar dada a Suassuna em suas andanças pelo interior de Pernambuco (e que se repete por todo o país). (Homero Fonseca) OUT 2008 • Continente x

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Livros para serem lidos Com relativa precocidade, criaram-se no Rio Grande grupos de letrados empenhados em escrever e em ser lidos, nitidamente querendo criar um sistema literário efetivo Luís Augusto Fischer

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s ingredientes são os seguintes: província afastada do centro geográfico (tanto na Colônia quanto após a Independência), que sabe que está longe e tem algum ressentimento por isso; província com alguma exigência cultural por parte das elites, que demandavam certos tipos de serviço aqui mesmo, gerando produção local; província da língua portuguesa vizinha de províncias da língua espanhola, num atrito de grande produtividade; por tudo isso e mais alguma coisa, província com gosto pela autonomia, a ponto de haver protagonizado um episódio republicano por quase uma década, a partir de 1836; província que, por cima dessas bases, acolheu uma experiência muito forte de imigração de europeus, gente que em grande parte trouxe de lá, e continuou a ter aqui, notável apreço pela terra, tanto quanto pela cultura em geral. A soma disso tudo dá numa condição excelente para o florescimento de um circuito cultural, especificamente literário, com tendência a desenvolver bastante autonomia. Essa província é o Rio Grande do Sul. Embora seja um Estado de colonização relativamente recente, em comparação com os antigos Estados nordestinos, nascidos ainda 82 x Continente • OUT

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no século 16 já com notável vida urbana para a época, o Rio Grande do Sul se organizou apenas no último terço do século 18 e contou com todos esses fatores em sua constituição: afastado do centro e com traço voluntarioso e autonomista, dotado de orgulho localista que mais se acentuou com os contatos e as lutas de fronteira contra o castelhano, querendo produzir identidade aqui mesmo e, portanto, gerando demanda sobre artistas e intelectuais, tudo isso acrescido pela chegada de alemães e italianos, os primeiros fortemente marcados pelo esforço romântico de identificação com a terra e pelo apreço pelas letras. Não admira, assim, que aqui no Estado tenha havido, com relativa precocidade, a criação de grupos de letrados empenhados em escrever e em ser lidos, nitidamente querendo, como diz para outro caso Antonio Candido, criar um sistema literário efetivo, com autores, obras e público leitor em constante interação, a ponto de formar uma tradição local capaz de gerar sucessão. Assim se pode reconhecer desde, ao menos, a Sociedade Partenon Literário, espécie de grêmio literário formado em 1868 com características de que se pode ter orgulho mesmo hoje: acolheram mulheres desde a primeira formação; eram

republicanos e abolicionistas; editaram uma revista que publicou ficção e ensaios de todos os que quiseram se manifestar; proporcionaram ensino de alfabetização gratuito, à noite, para quem quisesse; tiveram a intenção de formar algo como uma universidade. Não era pouco, para uma cidade de escassos milhares de habitantes que apenas duas décadas antes era palco de conflito armado, a Guerra dos Farrapos; não era pouco mesmo em termos brasileiros, quando comparado com, digamos, a Academia Brasileira de Letras, fundada três décadas depois e com aspectos francamente conservadores. Certo, o Partenon não abrigou nenhum Machado de Assis, e apenas candidatos a escritor freqüentaram suas sessões – foi o caso de Apolinário Porto Alegre, principal agitador daquele grupo, poeta, ensaísta, professor, faz-tudo, republicano não autoritário, mas definitivamente um talento menor. Mas também é certo que a providência foi correta: para haver literatura é preciso haver leitores, além de escritores, e isso o Partenon começou a providenciar. Que sirva de contraprova um caso esquisito, o de Qorpo-Santo, nascido Joaquim José de Campos Leão, maluco clí-

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nico, que viveu na mesma Porto Alegre daquele grupo, escreveu muito, mas não se comunicou, nem com os do grupo, nem com ninguém. Só 100 anos depois é que seria lido. O final do século 19 vai conhecer uma geração de pouco brilho literário, mas enorme empenho político. No Rio Grande, a moda parnasiana teve escassos seguidores, e sempre menores, e o romance naturalista deixou apenas alguns rastros. Em compensação, muitos talentos letrados estavam no primeiro plano da vida política republicana, como foi o caso do grande retórico (apenas por escrito, porque era gago) Júlio de Castilhos. Será no momento seguinte que de fato vai aparecer uma geração de talentos para as letras ficcionais. Geração que pode ser vista em duas metades, incomunicáveis por sinal. De um lado, uns rapazes urbanos tocados pelo Simbolismo, que andaram dando vaza a uma tristeza européia nos frios porto-alegrenses, verossimilmente. Desse grupo, o valor saliente é um fruto tardio, Eduardo Guimaraens, legível até hoje, figura singular de talentoso anacronismo provincial, que merecia mais leitura do que tem. Do outro lado, um grupo de jovens marcados pela vida rural: filhos das famílias proprietárias, que viam chegar uma onda de modernização impressionante — a energia elétrica, a lâmpada, o telefone, o automóvel, o cinema —, acompanharam um movimento espiritual de grande alcance em sua época, dedicando-se a registrar em literatura aquele primitivo mundo que se ia. Aqui, ressalta o singular caso de Simões Lopes Neto, que, melhor que os outros (incluindo os de outros Estados, como o Monteiro Lobato de tema rural, Hugo de Carvalho Ramos e outros), soube OUT 2008 • Continente x

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Das mãos desses escritores saiu parte da melhor literatura do tempo, mas, curiosamente, nenhum autor de estilo vanguardista. Talvez por serem escritores com público inventar uma estratégia literária eficiente para dar voz e corpo estético ao homem iletrado, campeiro e eventual guerreiro, sendo nisso um legítimo precursor de certas chaves utilizadas por Guimarães Rosa em sua obra. Os anos 20, marcados pelo fim da Primeira Guerra e pelas agitações internas, que foram do explicitamente político (fundação do Partido Comunista) ao estético (a gritona Semana de Arte Moderna de São Paulo, movimento com muito de caipira e desmedido, mas ocorrido no centro econômico do país e, portanto, vindo a tornar-se hegemônico), viram aparecer uma brotação de bons talentos no Sul do Brasil. Os mais salientes valores, como Augusto Meyer, não são necessariamente os melhores, já que muitos dos poetas e cronistas do período nem lidos são, eis que sua atitude modernista

não recebe a chancela do modernismo entronizado como verdade única no Brasil, aquele paulistano e vanguardófilo, ao passo que o modernismo sulino nasceu de dentro do Simbolismo, como ocorreu em muitas outras partes. Nos anos 30 é que enfim teremos, no Rio Grande do Sul, toda uma geração de escritores de valor. Vistas as coisas pelo ângulo material, tal fenômeno teve pelo menos dois condicionantes decisivos: no plano político, a vitória da Revolução de 30, liderada por um gaúcho, que permaneceria no poder por vários anos e em evidência por toda uma geração, até seu suicídio, em 1954 — e sabemos que Getúlio não era avesso ao mundo das letras, pelo contrário, cultivando relações próximas com vários escritores, entre os quais

alguns que levou consigo ao Rio de Janeiro, para misteres burocráticos; no plano infra-estrutural, o impressionante fenômeno da editora Globo, que, vivendo numa ponta extrema do país, viabilizou um projeto editorial inédito, que contava com linhas de best-sellers triviais, enciclopédias e materiais de instrução, ao lado de linhas editoriais de alta qualidade, abastecida por uma banca de tradutores igualmente impressionante, e aí pelo meio de tudo isso linhas editoriais para autores nacionais, com lugar para autores locais. Dois nomes desse processo: Mário Quintana era tradutor contratado pela Globo, e ali certamente adestrou a mão para sua poesia e sua crônica; e Érico Veríssimo, editor da Globo, leitor preferencial do inglês, soube apresentar ao público brasileiro a ficção anglo-

Apolinário Porto Alegre, Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo, Mário Quintana

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Juan Fabre Miranda/Divulgação

saxã, muito mais comunicativa do que a francesa, em média, assim como soube, como escritor, aprender algumas preciosas lições desse mesmo berço. Com eles, gente mais e menos perdurável, mas com grande interesse ainda hoje, como Dyonélio Machado, Cyro Martins, Telmo Vergara, Athos Damasceno Ferreira, Vianna Moog e tantos outros. Das mãos desses escritores saiu parte da melhor literatura do tempo, mas, curiosamente, nenhum autor de estilo vanguardista, e, pelo contrário, todos marcados por um sólido apreço por um padrão mediano de linguagem. Alguma explicação? Talvez o fato de serem escritores com público, simplesmente: escreviam para ser lidos, não para confrontar um fantasma (como foi o caso dos modernistas paulistas, empenhados em fazer

caretas para uma velharia encarquilhada como o Parnasianismo, morto já de inanição em 1920); talvez o fato de serem autores fora dos circuitos prestigiosos do país. De todo modo, parece eloqüente o fato de viverem num Estado com bons índices de leitura, considerado o plano brasileiro. (E vale um símile, que dá o que pensar: a prosa de Gilberto Freyre deve quanto, pergunto, à sua intimidade com a língua inglesa? Para além de outras afinidades, nos anos 30 Freyre tinha dois leitores entusiasmados nesse grupo gaúcho, o subestimado Vianna Moog, influência direta, e Érico Veríssimo, tanto o ficcionista quanto o memorialista e o ensaísta. Valeria também cotejar Freyre com o pensamento do gaúcho Raymundo Faoro, um raro caso de ensaísta sulino a pensar o conjunto do país.)

Esta geração da Globo pode-se dizer que veio atuando até os anos 70, quando falece Érico e a Globo definha, para sumir do mapa em seguida. Mas já então as coisas da literatura e do pensamento desfrutavam de uma sólida existência material, acumulada pelas exitosas experiências anteriores. Não bastasse essa herança, quis o acaso que nos 70 e nos 80 o Instituto Estadual do Livro tomasse simbolicamente a frente do processo de divulgação e mesmo de reflexão sobre a literatura no Rio Grande do Sul. Autores locais eram levados a escolas em todo o território gaúcho, para conversar com alunos preparados, com leitura previamente feita, tudo isso resultando numa força nova para a literatura entre nós. Foi nesse contexto que apareceram autores como Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar, Caio Fernando Abreu, Luiz Antonio de Assis Brasil, Sérgio Faraco e outros. Naturalmente eles teriam se tornado escritores em outras condições; mas não se pode negar que o meio ajuda, quando ajuda, como foi o caso. Na mesma leva, aparecerão novas vozes no cenário, como a de Lya Luft, Charles Kiefer, João Gilberto Noll. Não estamos falando de talentos secundários, como se vê. Trata-se de escritores de obra reconhecível, lidos no país e fora dele, e vivendo basicamente na mesma cidade, agora usufruindo as vantagens da comunicação digital que nos torna, quando integrados, conterrâneos de qualquer gente. Os anos 90 assistiram a mais um estágio nessa bela tradição, aqui sumariada a traço grosso. Veja-se

Amílcar Bettega, L.A. de Assis Brasil, Cíntia Moscovich, Daniel Galera OUT 2008 • Continente x

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ESPECIAL que talentos notáveis como Vitor Ramil e Nei Lisboa, cancionistas de primeiro nível, são também ficcionistas de ótima capacidade; tomese o caso das mulheres que, para dizer de algum modo, partem do feminismo em direção ao mundo das letras, como Martha Medeiros, Cíntia Moscovich e Cláudia Tajes; considere-se o caso de gente que de algum modo liga literatura com cinema, como Tabajara Ruas, Jorge Furtado, Marcelo Carneiro da Cunha e Daniel Galera; tome-se em conta escritores de temperamento mais ou menos vanguardista que, por isso mesmo, dispõem de pouca leitura, mas de grande talento, como Paulo Ribeiro, Juremir Machado da Silva, Luiz Sérgio Metz, Amílcar Bettega, Daniel Pellizari, André Czarnobai Cardoso; pense-se nos talentosos e singulares Michel Laub, Fabrício Carpinejar e Jerônimo Teixeira. Por toda parte, em qualquer estilo ou gênero, o Rio Grande do Sul está em plena maturidade, do ponto de vista sistêmico (nem falamos do vasto e interessante fenômeno das oficinas de criação literária, de que há vários casos estavelmente oferecidos há vários anos, aqui no Sul, assim como deixamos de mencionar a importância da Feira do Livro de Porto Alegre, com mais de 50 ininterruptos anos de divulgação do livro), ainda que se possam apontar lacunas mais e menos importantes (uma delas é a quase ausência de crítica, aos moldes clássicos). Quantos desses autores durarão para além de seu tempo naturalmente é pergunta irrespondível, salvo pelo futuro mesmo — mas creio que os gaúchos podemos dizer, com orgulho mais uma vez indisfarçável, tal como ocorreu entre os associados do Partenon, que estamos fazendo a nossa parte para que o talento literário apareça. 86 x Continente • OUT

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Entre o rigor e o fervor A herança literária pernambucana cobra dos contemporâneos mais que orgulho local: uma responsabilidade de seguir criando, inovando, alargando limites Lourival Holanda

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s começos da literatura em Pernambuco – e é sempre mais prudente falar no arbítrio de um começo que numa imprecisa origem – deixam incerta sua definição: ela seria ainda (ou: já?) luso-brasileira, no século 17. Com esse peso, nem sempre igual na adjetivação, começaria a presença pernambucana assim desde a Prosopopéia, de Bento Teixeira, em 1601. O projeto encomiástico traz uma ambição maior que sua fatura. No entanto, desde já destaca a paisagem pernambucana do Recife e Olinda. Bento Teixeira é a figura emblemática do primeiro intelectual brasileiro: um ser dilacerado entre a filiação forte e a autonomia pretendida desde então por seus prosseguidores. No entanto, tomando algumas datas redondas que se prestam a balizar etapas da emergência da pernambucanidade, pode-se pensar como inaugural o poemeto de 1601; depois, e de modo mais forte, o movimento libertário de 1801, como outro marco definidor, até a criação da Academia Pernambucana, em 1901, com Carneiro Vilela. Ali. Na Prosopopéia, há apenas um prenúncio, pois a paisagem apenas

– e já – é pernambucana: Descrição do Recife de Pernambuco; e Olinda celebrada. Da gesta libertária ao gesto fundador, algo se precisa e delineia, porque já a Academia tem um intuito programático: “promover a defesa dos valores culturais do Estado, especialmente no campo da criação literária”, como diz seu fundador, Carneiro Vilela; aqui há, desde então, um propósito conjunto em instituir uma literatura de cunho com a matéria nitidamente pernambucana. Neste meio tempo de entre séculos há um nativismo de fundo e difuso que investe na paisagem local, como era de época. A literatura em Pernambuco em seus começos é, portanto, uma literatura que tateia norteios nos modelos que absorve de um Portugal, ele mesmo fundindo influências entre o barroco espanhol e o arcadismo italiano. Aqui o nativismo só se torna ativismo mais reivindicatório a partir de Frei Caneca (1778-1825). Figura emblemática da garra de Pernambuco nos anos duros de 1817 e 1824. O Império priva Pernambuco de boa parte de si (Alagoas e Paraíba, de enorme proximidade e trânsito cultu-

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ral, desde sempre); Pernambuco, o Leão do Norte, marcaria o espírito reivindicador de seu povo. Se, por um lado, há uma vertente orgulhosa de sua linhagem – isso desde A nobiliarquia pernambucana, de Antônio José Borges da Fonseca, há também um homem oriundo do povo, como Frei Caneca, que não concede tanto aos linhagistas. O padre Lopes Gama, o Carapuceiro, é um curioso testemunho dos usos, costumes e valores sociais daquele momento em Pernambuco. Já sob uma perspectiva mais nitidamente diferencial, Os desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, do beneditino Domingos Lúrido Couto, é um exemplo de valoração do indígena – que o faria simpático a Capistrano de Abreu. Em muitos autores do século 19 não há divórcio entre arte e ação, entre sonho social e crítica da vida imediata. Com outros, José da Natividade Saldanha (1785-1890) participa da Confederação do Equador, com Frei Caneca, em 1924. Muitos padres naquele momento estavam inseridos apaixonadamente na vida pública. A influência dos Oratorianos, de orientação um pouco mais cartesiana, nos estudos, é fácil de perceber nos tantos volumes que guarda a Biblioteca Pública do Estado, no Recife. O bispo de Pernambuco, Dom José Azeredo Coutinho, vai fundar o Seminário de Olinda preocupado já com reformas econômicas e com o desenvolvimento da colônia. Uma parte considerável do clero “ilustrado” há de vir daí, um celeiro de formação política e literária. Ele faz parte, com a Faculdade de Direito – de um civismo nitidamente mais libertário – dessas entidades que marcaram a formação do espírito letrado em Pernambuco. Lucilo Varejão marca seu tempo editando os romances “desde Olinda” (A emparedada da OUT 2008 • Continente x

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ESPECIAL rua Nova, de Carneiro Vilela). Bem depois, em Mauro Mota, poema e romance buscam dar conta da especificidade pernambucana. A figura notável de Joaquim Nabuco também marca a herança brasileira desde Pernambuco. Abolicionista dono de um estilo que o faz perdurar para além das circunstâncias em que escreve, é o nome que transita na memória entre o Império e a República. Outro momento marcante da cultura pernambucana é o da assim chamada “Escola do Recife” – quando, com Tobias Barreto à frente, ensaia-se uma primeira crítica cultural sistemática. Cria-se, a partir daí, como bem diz Sílvio Romero, “novos processos de crítica e de história literária”. E arremata Romero: (...) “tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola do Recife”. Cada vez que um certo marasmo ameaçou se instalar, Pernambuco reagiu reacendendo o espírito de Leão do Norte. Desde cedo pagou a rebeldia perdendo parte de seu território, depois perdendo benesses e patrocínio. Essa herança cobra dos contemporâneos mais que orgulho local: uma responsabilidade de seguir criando, inovando, alargando limites. Um século depois da Escola do Recife, Ariano Suassuna reinventava os estandartes armoriais, pela valoração do potencial criador do povo brasileiro, pondo ênfase no modo nordestino. Com o mesmo arrojo de um Sílvio Romero contra o imobilismo jurídico vigente, Suassuna investe contra uma globalização que tende a tudo diluir e homogeneizar. (Algumas vezes oferecendo

um flanco fácil aos opositores a essa defesa dos valores populares, como se preservar sua força fosse museificar sua forma). É só na segunda metade do século 20 que a literatura pernambucana vai colher, de forma inconteste, a herança da tradição que a constitui – sem se deixar enquadrar por ela. Alguns nomes respondem às expectativas críticas daquele momento com a qualidade de um Oliveira Lima; ou com a força de um Álvaro Lins, figura de crítico empenhado entre o rigor e o fervor pelas coisas culturais. O empenho do presente está mais em divulgar, em dar visibilidade à produção literária com que Pernambuco continua a marcar o cenário nacional. Os nomes de

um João Cabral de Melo Neto, um Joaquim Cardozo ou um Manuel Bandeira estão associados à matéria pernambucana, tanto quanto um Gilberto Freyre, esse intérprete inquiridor e poético das coisas nordestinas. O ritmo de Ascenso Ferreira seduziria Mário de Andrade como a prosa de Osman Lins redefiniria a modernidade pernambucana. Outros nomes emergem renovando a continuidade cultural no Estado. De Austregésilo de Ataíde e Nelson Rodrigues a Marcos Vilaça. Ainda há pouco, era a presença segura, magistral, de um João Alexandre Barbosa, na crítica literária, com paixão e ponderação analíticas. O momento contemporâneo continua a presença pernambu-

Carneiro Vilela, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, João Cabral

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Rafael Gomes

É só na segunda metade do século 20 que a literatura pernambucana vai colher, de forma inconteste, a herança da tradição que a constitui – sem se deixar enquadrar por ela cana na prosa de Marcelino Freire (Angu de sangue); no relato picaresco de Homero Fonseca (Roliúde): a permanência da arte de narrar com um grão solerte de sal e malícia. Luzilá Gonçalves Ferreira (Rios turvos) e Cristina Cavalcanti (Luz do abismo) prosseguem a linha inaugurada por Bernardino Freire de Figueiredo Abreu e Castro, no primeiro romance histórico (Nª Sª de Guararapes), fazendo falar um passado que seus relatos restituem. Na prosa recente, com Gilvan Lemos, José Nivaldo, Márcia Maia, Luis Berto e Paulo Oliveira; também Raimundo Carrero (O amor não tem bons sentimentos) prosse-

gue produzindo e agitando a cena local. Ronaldo Correia de Brito é outro contista de linguagem aprimorada de um regional moderno. A poesia tem mantido um bom nível de produção, desde Lucila Nogueira (A quarta forma do delírio) a Alvacir Raposo (A casa do vinho) ou Alberto da Cunha Melo, de dicção marcante; ou Vital Correia, Ângelo Monteiro (O inquisidor), Everardo Norões (Retábulo de Jerônimo Bosch); uma poesia podendo ombrear com a qualidade de um Carlos Pena Filho. Outras dicções como a suavidade de Déborah Brennand; ainda Micheliny Verunski; poeta de inovação formal como Delmo Montenegro; ou o traço cabralino de Welling-

ton Melo, Lenilde Freitas; ou Paulo Gervais (Guerra das flores), Fábio Andrade (Luminar presença), poetas mais recentes. Entre tantos. Uma presença forte é ainda a dos muito jovens que se reúnem no Nós Pós: um desejo de renovação os move – culturalmente, já um mérito, antes mesmo da sagração do tempo, avaliador posterior. Uma revista, Crispim, junta valores saídos da Universidade, com o mesmo empenho que tem sido o das revistas literárias pernambucanas que acrescentaram à cultura literária nacional. Esta é uma apresentação breve – deixando ao leitor aberto o espaço das descobertas de nomes que estão atuando com qualidade na variada cena literária de Pernambuco.

Alberto Cunha Melo, Osman Lins, Gilvan Lemos, Luzilá Gonçalves OUT 2008 • Continente x

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Repórter acompanha aulas-espetáculo de Ariano Suassuna – como a que abrirá a Feira do Livro de Porto Alegre – atento à recepção do público, num caso raro em que um escritor tem tratamento de “estrela” Samarone Lima

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e músicas religiosas. São homenageados o povo brasileiro (representado pela onça malhada), a luta libertária de Canudos (arraial), e o Brasil real, representado pelas favelas atuais. As danças também rendem homenagem aos índios, negros e brancos, “por ordem de chegada”, como diz Ariano. Até o final de 2008, ele terá percorrido 66 cidades, nas diversas regiões do Estado, incluindo favelas, presídio feminino, com direito a algumas escapadas para outros Estados. Uma aula no Rio de Janeiro, outra em Porto Alegre. Voltemos à fila. Defronte ao Sesi, imune ao evento, a Igreja Internacional da Graça de Deus, que reúne neste momento cinco pessoas, segue no seu ritual de expurgos. Os gritos de “Satanás vai sair de ti” ecoam pela avenida. O movimento é intenso, especialmente de motocicletas, que passam em alta velocidade, com bandeiras de candidatos à prefeitura da cidade. O vistoso Cine Theatro Visconde de Utinga, fundado em 1932, hoje serve como o diretório municipal do PR (Partido da República). Duas barracas estão sendo montadas às pressas. Delas, surgem os primeiros diálogos.

Ivan Alecrim/Divulgação

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exta-feira, 19 de agosto de 2008. Estou em Escada, município da Mata Sul de Pernambuco. A fila defronte à entrada do Sesi é imensa. A última vez em que teve tanta gente assim, explica-me um pipoqueiro, foi no Baile da Terceira Idade, que é realizado mensalmente. Alguns, atrasados, chegam atônitos. Não sabiam que precisavam de convite para assistir ao espetáculo. Os últimos 300 foram distribuídos no dia anterior. O segurança disse que não deu para quem quis. Falta meia hora para começar mais uma aula-espetáculo do escritor e secretário de Cultura de Pernambuco, Ariano Suassuna, intitulada “Nau” – que desde o início de 2007 percorre o Estado. Cinco músicos, quatro bailarinos e dois cantores, tratados como “assessores culturais”, acompanhamno nesta jornada, que lembra muito os delírios de Dom Quixote. Lutar contra a “vulgarização e descaracterização” da cultura brasileira parece mesmo uma batalha contra os moinhos de vento. “Nau” tem como tema “a onça malhada, a favela e o arraial”, levando ao palco uma fusão de música erudita com danças populares 2008

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CrôniCa da nau

Nas aulas-espetáculo, Suassuna expõe didaticamente sua visão da cultura nordestina OUT 2008 • Continente x

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ESPECIAL

Ivan Alecrim/Divulgação

Cinco músicos, quatro bailarinos e dois cantores interpretam o conteúdo da aula

“Hoje é dia de política, é?”, pergunta uma mulher, que corta os pães para futuros sanduíches (R$ 1,50) e esquenta óleo para batatas fritas (R$ 1,00). “É o pessoal de Ariano”, responde um senhor, de chapéu, com um visível sinal de irritação. Ele vai vender espetinhos de carne, coração de galinha e frango (R$ 1,00). “É de graça?” “É de graça e ainda vou ganhar dinheiro”, completa o homem, acendendo o carvão. “Ariano Suassuna... quem é esse? Já morou por aqui?”, segue a mulher. O homem pára seu trabalho e olha para ela atentamente. “Ele é o secretário de Cultura do Estado! A pessoa não conhecer Ariano Suassuna!”. Silêncio. A mulher parece não se incomodar. “Tu não conhecer Ariano Suas92 x Continente • OUT

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suna é ser uma pessoa muito desinformada, visse?” O homem me olha. Vê que estou ao lado de um fotógrafo, tomando notas, e que já conversei com algumas pessoas. “Ela é uma pessoa analfabeta e analfabetizada”. “Tais vendo, né Raminho? Ele já está me provocando”, responde a mulher, invocando a ajuda de um amigo. Os autores do diálogo: Marcelino Heliodoro, 61 anos, ex-balconista e agora vendedor ambulante. Já leu a peça Auto da Compadecida e jura ter lido também O Homem do Diabo, que Ariano nunca escreveu. Marilene Maria Gomes, que não tem a menor idéia de onde surgiu Ariano, é vendedora do “café Petinho”, e se vira nas horas de folga, com sua barraca. Os filhos Rárath Mayara e Douglas Marlon ajudam. A filha, por sinal, recebeu um convite, na escola, para assistir ao espe-

táculo, mas segue a linha da mãe, vai ficar ajudando do lado de fora. Dois dos muitos personagens que se encontraram, de alguma forma, com as aulas de Ariano. Nas muitas platéias, idas e vindas, acontece um encontro do mais famoso escritor de Pernambuco, com o “Brasil Real”, de que costuma falar em todas as aulas. Os que conseguem assistir vão embebidos pelo fascínio por uma figura que vai ganhando ares míticos, que tem muito de sua raiz na adaptação para o cinema de sua obra mais popular – Auto da Compadecida (em Agrestina, uma balconista me perguntou se “Chicó”, personagem da peça, viria para o espetáculo). Outros tantos chegam porque o conhecem das muitas entrevistas na TV e jornais. Na maior parte das aulas, anônimos são os personagens principais. Os tímidos ficam de longe, olhando, sonhando com um autógrafo, uma

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Fotos: Aldemir Suco/Divulgação

Ao lado, Marcelino Heliodoro, entre churrasquinho e livro que Ariano não escreveu. Abaixo, Gilson José da Silva, o gari e poeta de Escada

foto, que raramente conseguem. Para sair do palco, após uma tradicional ovação, Ariano precisa da ajuda de uma pequena escolta. Uma cena comum é ver jovens exaltados, com um exemplar do Auto da Compadecida, à espera do autógrafo que às vezes não chega. Encontro uma dessas criaturas junto à saída lateral do Sesi. É um homem negro, estatura média, calmo. Apenas observa a movimentação. Está quieto, mas percebo que tem um programa do espetáculo na mão, acompanhado de uma caneta. Fico ao seu lado, e digo baixinho: “Ariano está naquele carro preto, no banco de trás, do lado direito.” Ele sai devagar, bate no vidro com delicadeza, abaixa-se. Súbito, o vidro baixa, ele entrega o programa. Os longos dedos do escritor recolhem o programa, que depois é devolvido. Meu amigo volta com um largo sorriso, como se trouxesse um troféu. Gilson José da Silva, de 44 anos, é talvez o único gari de Escada que foi à aula-espetáculo. Há nove anos, recolhe lixo na cidade, com o salário de R$ 500,00. “Sou gari e poeta”, diz, com um sorriso. Com a voz pausada, tranqüila, ele conta que costuma encontrar

livros no lixo. Os que interessam, ele recolhe, limpa e leva para casa. Assim, foi descobrindo outras belezas, até que começou a escrever poesias. “Quando morre alguém que tem muito livro, os parentes jogam tudo fora.” Foi graças a esse olhar atento para os livros, que ele encontrou uma obra rara de Ariano no lixo. “Há seis anos, encontrei um livro dele que fala dos ferros de marcar boi do Cariri.” O livro – Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja – lançado em 1974, é hoje uma obra rara, conhecida apenas dos estudiosos, como Carlos Newton Junior. Com ele, Gilson começou a desvendar o universo de Ariano. “O que chamam lixo, chamo luxo”, completa. Gilson, que em 2009 vai concluir o 2º grau, também se dedica à poesia. Está trabalhando, organizando num caderno. “Um dia, ainda vou lançar um livro”, diz.

Olha o programa, uma espécie de troféu, para mostrar aos amigos, à família. “Fiquei aqui fora, esperando. Vou plastificar e guardar tudo a sete chaves. Quando meus filhos crescerem, vão ter uma relíquia nas mãos”. Os filhos têm 12, 11 e 5 anos. Conversamos mais um pouco, depois ele guarda o programa na bolsa e volta para casa. Passo diante das barracas. As vendas foram fraquíssimas para todos. Marcelino Heliodoro não reclama. O mais importante foi a visita do “Mestre Ariano” a Escada. Marlene desmonta sua barraca e reclama que o povo foi embora rápido demais. Convidado pela revista Continente para acompanhar quatro aulas-espetáculo, como a que será apresentada em Porto Alegre na abertura da 54a Feira do Livro, o repórter Samarone Lima decidiu estender sua observação até o final do ano, com o objetivo de publicar um livro em breve. OUT 2008 • Continente x

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PROGRAMAÇÃO

Entre os escritores pernambucanos na Feira de Porto Alegre: Ronaldo Correia de Brito, Marcus Accioly, Lucila Nogueira, Raimundo Carrero e Fernando Monteiro

Livros, xilogravuras, cordel e frevo rasgado

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participação pernambucana na Feira do Livro de Porto Alegre/2008 começa com pronunciamento do governador Eduardo Campos na cerimônia de abertura, dia 31 de outubro, estendendo-se até o dia 16 de novembro, domingo de encerramento do evento, quando a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, sob a batuta do maestro Forró, fará um arrastão de frevo rasgado na Praça da Alfândega, centro histórico da cidade.

TEATRO DO TEXTO Nesse intervalo, Ariano Suassuna dará sua aula-espetáculo "Nau", no Teatro Sancho Pança; o romancista Raimundo Carrero e a poetisa Lucila Nogueira ministrarão suas oficinas de ficção e poesia, respectivamente; catálogo de obras pernambucanas, gravura de J. Borges e cordel de Allan Sales (Gaúcho e pernambucano, baluartes da Nação) serão distribuídos com os visitantes dos estandes da Cepe – Companhia Editora de Pernambuco –, reunindo a produção literária de outras 12 editoras locais e da Fundarpe – Fundação para o Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco; cerca de duas dezenas de autores pernambucanos interpretarão seus textos, lançarão livros ou farão palestras em vários espaços da Feira. Num segmento intitulado "Teatro do Texto", na Tenda Pasárgada, os seguintes escritores lerão trechos de suas obras para o público: Homero Fonseca (Roliúde), Raimundo Carrero (O amor não tem bons sentimentos), Ronaldo Correia de Brito (Galiléia), Luís Cláudio Arraes (Tempo – O de dentro e o de fora), Lenice Gomes (Mãe d’Água), Marco Polo (Corpo inteiro), Lucila Nogueira (Poesias), Marcus Accioly (Latinomérica), Luzilá Gonçalves (Meu noivo é um artista).

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Outros escritores farão palestras, como Fernando Monteiro (“Quem matou o leitor?”) e Paulo Santos (“A Revolução de 1817”) e poeta Miró fará um recital poético, também na Tenda Pasárgada.

LANÇAMENTOS Entre os lançamentos, na Praça de Autógrafos, estão A palavra de Hermilo (Leda Alves e Juareiz Correya, organizadores – Cepe), Revista Continente nº 94 e suplemento Pernambuco, do Diário Oficial do Estado, Pernambucânia 2ª edição (Homero Fonseca – Cepe), O amor não tem bons sentimentos e Estratégias do narrador (Raimundo Carrero – Iluminuras), Álbum de Pernambuco 1878 (F.H. Cals, organização de Paulo Bruscky – Cepe), Vicente do Rego Monteiro, poeta, tipógrafo, pintor (Paulo Bruscky, Edmond Dansot, Jobson Figueiredo, Silva Pontual, organizadores – Cepe), Paulo Bruscky – Arte, arquivo e utopia (Cristina Freire – Cepe), Galiléia (Ronaldo Correia de Brito – Alfaguara), Tempo – O de dentro, o de fora (Luís Cláudio Arraes – Cepe), A noiva da Revolução (Paulo Santos – Comunigraf ), Corpo inteiro (Marco Polo – Bagaço), Os recitais (Lucila Nogueira – Bagaço), Pernambuco, terra da poesia (Antonio Campos e Cláudia Cordeiro, organizadores – EscriturasIMC), Panorâmica do conto em Pernambuco (Antonio Campos e Cyl Galindo, organizadores – Escrituras-IMC), Bandeira nordestina e Prosa morena (Jessier Quirino – Bagaço), De como descobri que não existo (Cyl Galindo – Cepe), Daguerreótipos (Marcus Accioly – Iluminuras), Território da palavra e Portal de sonhos (Antonio Campos – Escrituras), O círculo das sombras (Antonio Botelho – Cepe), Poesia visual (Silvio Hansen – Cepe), Só às paredes confesso (Vital Corrêa de Araújo – Bagaço), Meu noivo é um artista (Luzilá Gonçalves – Rocco).

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