aos leitores
Epidemia de boatos
E
le nasceu praticamente junto com a linguagem. O boato é uma forma de comunicação antiqüíssima que ganhou surpreendente fôlego no meio virtual, assumindo mesmo proporções epidêmicas na internet. Teóricos como o francês Jean-Noël Kapferer, o americano Tamotsu Shibutani e, mais recentemente, o brasileiro Carlos Renato Lopes, autor da tese de doutorado em letras Lendas urbanas na internet – Entre a ordem do discurso e o acontecimento narrativo, tem se dedicado ao seu estudo. A boataria digital pode ser dividida, basicamente, em trumors e hoaxes, dois novos verbetes em nosso linguajar contemporâneo. Trumor (true + rumor) é uma notícia verdadeira ou que se torna verdade após sua circulação (uma mentira repetida mil vezes se torna verdade). Já o hoax (literalmente, “embuste”, com derivação da expressão hocus pocus) tem alto poder de convencimento e objetiva iludir o maior número de pessoas com informações falsas. Entre eles, o que há em comum é a forma epidêmica com que são propagados pela rede mundial e os elementos que caracterizam os boatos – de acordo com o dicionário, “notícia de fonte desconhecida, muitas vezes infundada, que se divulga entre o público”. O fenômeno, tema da reportagem de capa desta edição, envolve anônimos e famosos, como Bill Gates, Steve Jobs, Jorge Luis Borges, Gabriel García-Márquez ou Carlos Drummond de Andrade. É bom estar atento para não cair nas malhas das falsas notícias na rede mundial, problema a que não estão infensos até internautas experientes. Depois de passar cinco décadas obedecendo ao modelo segundo o qual foi concebida, a Bienal de São Paulo, que há anos vem enfrentando altos e baixos, assume a crise pela qual está passando e abre com um de seus três andares totalmente vazio, simbolizando a necessidade de parar e repensar seu formato e seus objetivos. Este é o tema da matéria especial desta edição, que aproveita para ressaltar, em contraste, a vitalidade das instituições culturais que, lastreadas solidamente em entidades financeiras, têm dado visibilidade e sustentação à arte contemporânea. Ao mesmo tempo, aponta para a renovação que os museus estão empreendendo, ao trazerem as comunidades do entorno para atividades artísticas em seus, antes, solenes espaços.
Clepsidra, de Jeims, Santander Cultural
A Trupe do Barulho estréia Apareceu a Margarida, em setembro
Esta edição traz ainda uma entrevista reveladora com o escritor Marcelino Freire; um ensaio fotográfico da artista paulista Elisa Bracher e os segredos do Coco de Tebei, dançado no interior de Pernambuco.
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Novos passos do tango
Geração 65 em filme A África na Fliporto Rumores digitais
CONVERSA 4 >> Para Marcelino Freire, escritor tem que sair da redoma BALAIO 10 >> Por que Lester Young tocava sax CAPA 12 >> A epidemia de boatos na internet 20 >> Os sete rumores virtuais mais famosos 22 >> Mentira: o poema não é de Borges AGENDA.COM 24 >> O terror não acabou LITERATURA 26 >> Fliporto dialoga com a África 28 >> Quando o sentimento de culpa explica o Nobel 30 >> A poesia de Wellington de Melo 31 >> Agruras de um cidadão nos “tempos modernos” 32 >> Agenda livros CINEMA 34 >> A Geração 65 em documentário poético 36>> Cinema de animação em Pernambuco
Dançarinos pernambucanos em SP ESPECIAL 48 >> A Bienal no vórtice do vazio 48 >> Instituições culturais conquistam espaços 60 >> Museus interagem com as comunidades REGISTRO 63 >> Freyre e Suassuna em mostra no Sul PERFIL 66 >> O último editor comunista MÚSICA 70 >> Estrangeiros pesquisam raízes da música brasileira 74 >> A banda portuguesa que toca bossa-nova 78 >> Agenda música FOTOGRAFIA 78 >> Gravadora e escultora revela a estética da favela TRADIÇÕES 90 >> Os segredos do Coco de Tebei CRÔNICA 94 >> Jorge Abrantes e o sentimento do Recife
CÊNICAS 38 >> A volta, em alto estilo, do tango 42 >> O palco dos pernambucanos em São Paulo
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Cinema e animação A estética das favelas Cinema de animação
COLUNAS MATÉRIA CORRIDA 46 >> Um pintor que não se repete
Este mês, o nosso site destaca o I Festival Internacional de Cinema de Animação, que acontece entre os dias 25 e 30/11. Além do registro da edição impressa, disponibilizaremos alguns trabalhos da cena pernambucana de cinema de animação, sem esquecer da programação completa do evento. Além disso, o internauta também vai encontrar trechos do documentário Geração 65 – Aquela coisa toda, que deve estrear no circuito comercial em breve.
e mais... Assista ao DVD do Coco de Tebei de Tacaratu–PE
TRADUZIR-SE 64 >> A invenção de um mundo imaginário SABORES 86 >>A culinária de Jorge Amado METRÓPOLE 96 >> As ambigüidades do silêncio
Ouça o segundo disco da banda Volver, Acima da chuva
ESPECIAL Confira a programação completa da Fliporto
Gabriel, Tábua de cortar carne, 2005
Leia um trecho do livro-reportagem Livro amarelo do terminal, da jornalista Vanessa Bárbara
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conversa
Marcelino Freire Podem dizer que a minha literatura é panfletária, acusá-la de verborrágica, de violenta. Podem me rotular de tudo, menos de que sou frígido, apático. Eu tenho urgência. Escrevo com urgência. Escrevo porque quero me vingar. Aí solto todos os bichos
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Um escritor fora da redoma 30.10.08 11:19:27
Um dos principais credos de Marcelino Freire é que o escritor precisa circular: participar de feiras, bienais, organizar edições e festas literárias, além de dialogar com outras linguagens como as do teatro e cinema ENTREVISTA A Cristhiano Aguiar
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arcelino Freire é um escritor que gosta de mostrar os dentes. Cerrados, de preferência, pois escreve uma literatura cheia de apocalipses sociais explosivos. Mas há, nos seus contos, delicadezas surpreendentes. Em sua figura também. Simpático e acessível, este pernambucano de Sertânia sabe a importância da leveza como passaporte para o convívio no mundo literário. Este parece ser um dos seus principais credos, o de que o escritor precisa aprender a circular, ou seja, participar de feiras, bienais, organizar projetos editoriais e festas literárias, sem esquecer o fértil diálogo com linguagens como as do teatro e cinema. Lição que ele pode ter aprendido na sua própria biografia: tanto por ter escorregado do perigo de morte à certeza de vida (em 1967, ano do seu nascimento, de 10 crianças nascidas em Sertânia, cerca de metade sobrevivia), quanto pelas migrações que realizou, morando também no Recife, Paulo Afonso e São Paulo. Foi lá que Marcelino Freire afirmou-se como um dos ficcionistas mais relevantes, surgidos a partir da Geração 90, da qual fizeram parte nomes como os de Nelson de Oliveira, Cintia Moscovitch, Fernando Bonassi, Marcelo Mirisola, entre outros. Após publicar Angu de sangue (2000) e BaléRalé (2003), Marcelino Freire ganhou o prêmio Jabuti pelo livro Contos negreiros (2005). O autor conversou com a Continente sobre o seu novo livro, Rasif – Mar que arrebenta, seu processo criativo e a influência da música na sua obra, entre outros assuntos.
O processo eleitoral foi chamado de “festa da democracia”. No conto Vovozona, você vê de forma irônica este momento (leia em http://eraodito.blogspot.com/). O que aconteceu foi uma festança mesmo? Esses assuntos sempre me deprimem. Falar de eleições, democracia, festa do voto. Por isso eu escrevi o miniconto Vovozona. A história é a de uma velha, daquelas que as TVs sempre mostram em dia de eleições. Elas se arrastando, debéis, até a zona eleitoral. Para servirem de cobaia à voz dramatizada de William Bonner, do Jornal Nacional. Tudo em prol do dever cívico, a serviço da beleza da democracia. Que saco! A minha velha aproveita a audiência para dar vexame. Ela arquiteta um plano senil. Vai se borrar toda dentro da cabine, em frente às câmeras. E cansadíssima, um pó. Eu, com 41, já estou exausto. Com vontade de soltar umas bombas. Imagine essa eleitora quase centenária, coitada! A homocultura é um tema que possui muita relevância no seu trabalho. Aqui no Recife houve recentemente uma Parada da Diversidade. Este tipo de ação ajuda, ou só consolida os estereótipos? Outro assunto que me cansa! Homocultura, preconceito, parada, diversidade. Porque o assunto é primitivo, é óbvio. Em 2008, a gente ainda discute o respeito ao próximo, o respeito às diferenças. Reconheço a importância da mobilização, da causa coletiva, mas me dá preguiça. Eu sou um homossexual não-praticante. Salvo alguns amores baratos, não vou a paradas. Raramente piso
em boates. Moro em São Paulo, como você bem sabe. Aqui, acontece a maior parada GLBTUVXZ do mundo. Mas eu nunca fui. Não gosto da manipulação que a TV faz disso. Um carnaval e só. Acho que tratam, na maioria das vezes, o assunto com desrespeito. Isso me deprime. Prefiro ficar no meu cantinho. Há um conto meu, do livro BaléRalé, em que uma bicha nostálgica fala assim: “No meu tempo, o maior desfile gay que havia sabe qual era? O desfile militar, pela independência". Você se considera um desenraizado por ter mudado tantas vezes de cidade. Como é ser sempre um pouco “estrangeiro”? Aqui, em São Paulo, eu sou pernambucano. Em Pernambuco, eu sou paulistano. Em Sertânia, onde eu nasci, eu não nasci. Eu deserdei. Fico eu nesse jogo esquizofrênico. Meus personagens carregam isso no sangue. Não estão no lugar que querem estar, estão deslocados no tempo, na geografia. Por isso eu escrevi o Rasif – Mar que arrebenta. Para tentar entender a língua que falo, o chão que piso, a terra em que flutuo. Rasif não tem nada a ver com o Recife. Virou um outro canto que eu escolhi para fazer morar os meus personagens perdidos. Lá eu não sou estrangeiro. Encontrei, enfim, o meu “não-lugar”. Você já disse: “Eu escrevo porque dói”. O que isto significa? Se eu responder a verdade, vocês publicam mesmo? (risos). Eu peguei emprestada essa frase de Cláudio Assis (diretor do filme Baixio das Bestas). Perguntaram por que NOV 2008 • Continente x
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Reprodução
Aqui em São Paulo eu sou pernambucano. No meu Estado, eu sou paulistano. Em Sertânia, onde eu nasci, eu não nasci. Eu deserdei. Enfim, fico eu nesse jogo esquizofrênico
ele fazia os filmes que fazia. Ele respondeu: “Dói e eu faço”. Sinto-me irmão do Cláudio nesse sentido. “Dói e eu escrevo”. Sou movido por um aperreio, uma dor, um vexame. Podem dizer que a minha literatura é panfletária, acusá-la de verborrágica, de violenta. Podem me rotular de tudo, menos de que sou frígido, apático. Eu tenho urgência. Escrevo porque quero me vingar. Aí solto todos os bichos. De fato, seus contos são basicamente vozes corroídas... É a vontade de gritar que me faz chegar a essas vozes. Ou melhor: essas vozes é que chegam ao meu ouvido, todo dia. Eu escrevo porque eu escuto. Abro as orelhas para a rua. Personagens não faltam, gritos não faltam pelas esquinas. Sem contar que tenho em mim essa oralidade herdada de meus pais, da minha família, do Recife. Trabalho com uma memória musical. Meus personagens não têm tempo para nhenhenhém. Eu tenho sempre uma primeira frase e é com ela que vou costurando a história. Creio, também, que o teatro – que eu cheguei a fazer no Recife – muito me ajudou nesse “exorcismo”, nessa alma dos meus personagens, nesse monólogo incômodo, nessa ladainha. Costumo dizer que é a alma dos meus personagens que fala pelos cotovelos. Quando perguntam sobre suas influências, você cita autores como Bandeira, ou Cortázar. Mas, e a música popular, a de Chico Buarque e a de Reginaldo Rossi? Há um conto meu, do livro Angu de sangue, chamado O caso da menina, em que uma mãe quer dar o seu fi-
lho a um homem que passa na rua. Uma certa hora, ela dizia assim: “A criança tem dois meses”. Eu disse não, eu vou diminuir isso aí. Coloquei: “A criança tem dois dias”. Fiz isso porque lembrei do Chico Buarque. A dramaticidade, o exagero que é aquela letra, aquela história de Meu guri. É absurda, parece inverossímil, sem lógica. Mas é pulsante, gritante. Nesse sentido, pego emprestado do Chico, sempre que posso, esse recurso. Essa poesia à beira de um ataque de nervos que ele tem. Sobre o Reginaldo Rossi, nunca parei para comparar. Mas creio que alguma breguice dele colou em mim. Algum garçom, alguma “machice” que peguei emprestado, sei lá. Faz pouco tempo, falavase de uma “nova literatura pernambucana”. Em outros lugares há discussões parecidas. De onde isso vem? Necessidade de renovação, ou fetiche pela novidade? Todos nós somos novos, sempiternamente novos. Osman Lins, por exemplo, quem conhece? Conhece o escritor Campos de Carvalho? É supernovo, ninguém conhece. Ignoramos Rosário Fusco. Quem foi Hilda Hilst? E Orides Fontela? Essa discussão é longa. E infinita. Agora, existe gente muito nova chegando. E chegando com uma força incomum, bem-vinda. No Recife tem o Artur Rogério. No Rio, conheci uma poeta ótima que só tem 20 anos. Chama-se Alice Sant’Anna. De Campinas, conheci o contista Maurício de Almeida, autor do ótimo Beijando dentes. Nunca tivemos tantas bienais e feiras do livro. Você organiza, em
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Para Marcelino Freire, o Desfile da Diversidade é visto com desrespeito
se lê muito pouco. Eu não posso só escrever o livro e ficar no casulo, esperando o leitor me descobrir. Eu vou até o leitor. Por isso invento antologias, eventos. Por exemplo, a Balada Literária (www.baladaliteraria.org) eu faço sem um tostão. Vou pedindo favor, ligando para os amigos. E a festa acaba acontecendo.
São Paulo, a Balada Literária. Mas nem todos concordam com essas atividades. Um escritor paulista, ao comentá-las, afirmou: “Escritor brasileiro é muito vira-lata”. E que bom que escritor brasileiro é vira-lata. Ficaria ofendido se me chamassem de poodle (risos). Se bem que, às vezes, pelas dificuldades que enfrentamos, eu gostaria de ser um pitbull, um rottweiler. Não vejo mal nenhum nessas zoeiras literárias. Tudo serve para deixar a literatura menos solene, longe do chá das cinco. Muitas vezes, quem critica esses eventos é porque não é convidado para nada, fica se remoendo na redoma. Sem contar que o escritor acaba fazendo um dinheirinho. Eu, para sobreviver, ainda trabalho como revisor em uma agência de propaganda. Aí o pessoal me assiste, falando na Flip (Festa Literária Internacional de Parati), na Jornada Literária de Passo Fundo, me vê organizando a Balada Literária, não imagina que, durante boa parte do meu dia-a-dia, passo revisando preço de salmão-sem-cabeça para uma rede de supermercados. Eu trabalho meio período nessa agência, mas a minha vontade é
abandonar de vez o condenado do salmão. Para isso é importante o escritor circular, dar palestras, fazer oficinas, envolver-se com vários outros projetos. É importante, sim, balançar o seu rabinho onde puder. Além de agitador cultural, você publica novos autores, como Adrienne Myrtes e Gabriela Kimura, e resgata obras de escritores esquecidos como Rosário Fusco, através do selo eraOdito editOra. Como se desenvolve esta sua faceta de editor? Eu não sou um escritor que escreve muito. Pode observar que obra minha só de três em três anos, por aí. Entre um livro e outro, gosto de me envolver em outros projetos. Gosto de exercitar o meu lado amador. Comecei publicando meus próprios livros. Agora, publico pela Record. Mas não posso me sentir um autor que "chegou lá", daqueles que começam a arrotar grosso. Falaram-me uma vez: "Você já ganhou um Prêmio Jabuti, pára a sua bunda quieto". O que é isso? Tenho de lembrar que sou um autor desconhecido, "novo", em um país onde
Seu livro novo, Rasif, mal foi publicado e já está nos palcos, montado pelo Coletivo Angu. Como foi o processo de criação deste novo livro? Houve algum diálogo com o Coletivo? O Coletivo já havia feito uma montagem homônima do meu Angu de sangue. Lembro quando André Brasileiro (ator e produtor) me procurou assim que o Angu foi publicado, no ano 2000. Ele queria levar os contos ao palco. E levou, depois de quatro anos. A peça fez um supersucesso no Nordeste, no Festival de Curitiba, em Porto Alegre, Brasília, por onde passou. Um elenco maravilhoso! Aí, numa passagem por São Paulo, o mesmo André me perguntou o que eu tinha no desktop. Eu falei do Rasif. Ele endoidou. Quis logo fazer essa pulsação árabe, esse Mar que arrebenta. Aí eu fui mandando os contos, aos poucos. Tem uns dois anos que os atores foram recebendo os textos do Rasif. E aí coincidiu de livro e peça estrearem juntos. Eu não me meto não. Para que me meter? Cada macaco no seu parágrafo. Qualquer pessoa que me pede um conto para levar à cena, para fazer um filme, um curta, eu não me meto. Façam e apenas me convidem para a estréia. Antes, rezo um pai-nosso, misericordioso, para que tudo dê certo. O resto sai na purpurina. NOV 2008 • Continente x
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Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão
Novembro 2008 – Ano 8 Capa: Ilustração de Zenival sobre desenho de Norman Rockwell, 1948
Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo
Colaboradores desta edição:
Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses
ANDRÉ DIB Jornalista.
Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Superintendente de Edição
Homero Fonseca
CRISTIANO RAMOS Jornalista e apresentador do Opinião Pernambuco. CHRISTIANNE GALDINO Jornalista e crítica de dança.
Superintendente de Produção
Marco Polo
Superintendente de Criação
Luiz Arrais
Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira (redação) Thiago Lins (assistente de redação) Maria Helena Pôrto (revisão) Gabriela Lobo, Lucas Paes e Yuri Bruscky (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio) Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações) Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves Supervisão de Impressão Eliseu Souza Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira
CRISTHIANO AGUIAR Mestrando em Teoria Literária. EDMILSON SOUSA Jornalista especializado em jornalismo e crítica cultural. FERNANDA LOPES Jornalista. FERNANDO MOTA LIMA Professor de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. FERNANDO WELLER Roteirista e professor. FILIPA CARDOSO Jornalista portuguesa.
Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes
Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão Contatos com a Redação 3217.2533; fax: 3222.4130; redacao@revistacontinente.com.br Edição eletrônica www.continenteonline.com.br Atendimento ao Assinante 0800 81 1201/3217.2581 assinaturas@revistacontinente.com.br
ISABELLE CÂMARA Jornalista. LIANA GESTEIRA Jornalista e coordenadora do projeto Recordança. MARCELO ABREU Jornalista. OLÍVIA MINDÊLO Jornalista. SAMARONE LIMA Jornalista e escritor.
Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor.
Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095
JOSÉ CLÁUDIO
Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
MARCELLA SAMPAIO
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita
Pintor.
Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.
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cartas
Arquivo CEPE
Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3217-2533 – 81 3222-4130 Redação: redacao@revistacontinente.com.br
GAÚCHO PERNAMBUCANO Gostei muito de encontrar o panorama da literatura gaúcha na edição n0 94. Minhas raízes estão no Rio Grande do Sul e faz tempo que abandonei as margens do Guaíra pelas do Capibaribe. Gostaria de estar em Porto Alegre durante a Feira, tenho certeza de que esse diálogo tem tudo para dar certo. Muito interessante também a entrevista com o quadrinista e escritor Lourenço Mutarelli. Parabéns! Lucas Andrade Müller, Recife–PE
CATIMBAU NA REVISTA Inicialmente, os nossos cumprimentos pela qualidade editorial e qualidade gráfica da Revista Continente. Nossa origem: Pesqueira, Pernambuco. Gostaríamos que os senhores tivessem carinho pelo Sítio Historico do Catimbau, em Buíque–PE; é um lugar fantástico e merece todo destaque possível!...Muito obrigado pela habitual atenção dessa conceituada Revista Continente. Aluízio Silva, Pesqueira–PE
MAIS MÚSICA CLÁSSICA Gostaria de ver publicada uma matéria sobre a Orquestra Sinfônica Jovem de Pernambuco, que é ligada ao Conservatório Pernambucano de Música. Já fui a alguns concertos dessa orquestra e gostei muito do que vi. São jovens músicos de muito talento, de diferentes classes sociais, divulgando com dignidade a música clássica. Evelaine Mesquita, Recife–PE
CICLO DE PIANISTAS Acabei de receber a Continente com o excelente artigo sobre pianistas pernambucanas. Está realmente muito bom e informativo. Priscilla Dantas, com 15 anos, vai muito bem na carreira. Gostaria de ouvi-la tocar ou ter alguma gravação dela. Aliás, a partir do Frevo nº 2 pretendo, tal como o nº 1, fazer o V Ciclo Nordestino e, quem sabe, um dos movimentos poderá mesmo ser dedicado a essa excepcional menina pianista. Mas preciso ouvi-la! Marlos Nobre, Rio de Janeiro–RJ
O historiador Peter Burke
A importância crescente do efêmero representa um desafio para os historiadores, porque estes precisam de fontes que sobrevivam por um longo período. A substituição de cartas por chamadas telefônicas e e-mails é um desastre para nós, embora o gravador nos ajude. Os museus estão reagindo a esta nova situação, guardando amostras de garrafas de leite e objetos do cotidiano, imaginados como triviais, mas que hoje são vistos como parte da história da cultura cotidiana. Se são efêmeros, são também bastante reveladores sobre a nossa cultura, por estarem sujeitos a mudanças ao longo dos anos e das décadas Eu não penso que a tarefa principal do historiador, que é compreender e interpretar culturas do passado, esteja mudando, mas, sim, as maneiras pelas quais essa tarefa se cumpre. Peter Burke,
em entrevista a Luciano Trigo
Revista nº 44 Agosto/04 Matéria: “O e-mail é um desastre para os historiadores” NOV 2008 • Continente
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Razões filosóficas Lester Young foi um dos maiores saxofonistas de jazz de todos os tempos. Antes, porém, tocava bateria. Um jornalista lhe perguntou quais as razões estéticas e filosóficas que o tinham levado a mudar de instrumento. “A bateria limita muito”, explicou o artista. “Por mais que você flerte com as garotas mais bonitas da platéia, quando termina de desarmar o instrumento, os outros músicos já foram embora com todas elas.” (Marco Polo)
Ele, não ela
Resumo da ópera
Entre as mais sutis reprimendas já dadas por um leitor a um jornal, há uma clássica, do dramaturgo Edward Albee (autor da peça Quem tem medo de Virginea Woolf?) ao vetusto The Washington Post: "Adorei ver minha foto no Post, mas fiquei chocado ao saber que o jornal me arrumara uma mulher e que seu nome é Percy. Na foto, aparecem comigo uma amiga, a sra. John Steinbeck, que não se chama Percy, e o senhor Jonathan Thomas, com quem tenho vivido há 27 anos".
Em março de 1997, o sr. Gustavo Franco, então diretor do Banco Central, declarou o seguinte: “Mercado é onde a parte mais esperta ganha da menos esperta e onde todos são espertos.” Em poucas palavras, definiu o monstro e o futuro próximo. Deveria abrir uma tenda de profecias na Praça XV, no Rio, em vez de dar aulas na PUC. (FN)
(Fred Navarro)
Nada se cria etc. O célebre “Penso, logo existo”, do francês René Descartes (1596-1650), foi antecipado por Agostinho de Hipona (354-430), mais conhecido como Santo Agostinho, nascido no norte da África (hoje Argélia), então colônia romana, quando enunciou, no seu livro A cidade de Deus: “Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado”. (MP)
DESAFORISMOS
"A consciência é aquela voz interior que nos adverte de que alguém pode estar olhando." H. L. Mencken
Marlos Nobre 2009 Ano que vem, a Osesp, sob regência de John Neschling, estreará o Concerto para percussão e orquestra n°2 de Marlos Nobre, no qual o compositor tem se concentrado. A solista do concerto será a premiada escocesa Evelyn Glennie, conhecida por atuar descalça na sala de concerto, em virtude de sua surdez, e pelos concertos beneficentes que promove. A agenda de Nobre, em 2009, promete ser bastante intensa, em função de seus 70 anos de vida e 50 de carreira. (Carlos Eduardo Amaral)
Lista de casamento Segundo Anthony Kenny, filósofo contemporâneo da Universidade de Oxford, em seu Uma nova história da Filosofia Ocidental (Vol.1), “qualquer pessoa que faça uma lista dos 10 verdadeiramente grandes filósofos irá descobrir que ela se compõe quase que inteiramente de solteirões. Uma lista possível incluiria, por exemplo, Platão, Agostinho, Aquino, Scotus, Descartes, Locke, Spinoza, Hume, Kant, Hegel e Wittgenstein, nenhum deles casados”. Ok, nefelibatas, agora existe um bom argumento na hora de enrolar as noivas para adiarem o casamento por mais um tempinho…(Eduardo Cesar Maia)
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Mais Anais lusitanos
Em entrevista a Geneton Moraes Neto, em abril de 2004, contou o poeta Ledo Ivo, da ABL: “Havia, em Graciliano Ramos, um detalhe que me impressionava: o problema da formação literária. Eu ficava impressionado com o fato de que a formação literária de Graciliano Ramos era – de certa maneira – muito reduzida. Baseava-se nos brasileiros Machado de Assis e Aluísio Azevedo – um autor de quem ele gostava –, no português Eça de Queiroz e nos russos Tolstói, Dostoievski e Gorki. Com esse pequeno mundo de leitor, Graciliano Ramos fez uma obra grandiosa. Nunca leu Marcel Proust, por exemplo. Quando eu perguntava por quê, ele dizia : “Não leio veados !”.(Homero Fonseca)
Ainda das Ordenações Afonsinas (século 13): Quando qualquer mulher casada era condenada a levar açoites ou varadas, por ter brigado com outra, vinha o alvazir com ela a casa; punha um travesseiro no meio do chão, e começava a dar arrochadas em cima dele. O marido estava defronte com a mulher, e com outra vara ia repetindo nas costas dela a mesma solfa, estando à vista a Justiça e a queixosa. Se o marido não dava as varadas na mulher, com a mesma força com que o alvazil batia no travesseiro, davalhas a Justiça nele.(Duda Guennes,
O vazio de todos nós Idéias para ocupar o vazio da Bienal: Colocar 500 sofás (Leda Catunda, artista). Distribuir esculturas de criminosos do colarinho branco (Paulo Sérgio Duarte, curador). Soltar lá alguns perus. (Marco Polo, escritor)
de Lisboa)
Disneylândia lusa Vejam o que foi publicado no Diário da República, o diário oficial cá do sítio: «Aviso Nº 10309/2008 – Por decreto do Secretariado de Estado Adjunto e da Administração Interna de 16 de Março de 2007, foi concedida a nacionalidade portuguesa, por naturalização, a Disneylândia da Cruz do Espírito Santo, natural de Lobata, República Democrática de São Tomé e Príncipe, de nacionalidade santomense, nascida a 11/02/1981, a qual poderá gozar os direitos e prerrogativas inerentes”. Assinado a chefe de Departamento de Nacionalidade, Marina Nogueira Portugal. (DG, de Lisboa)
“A estatística é uma ciência que demonstra que se meu vizinho tem dois carros e eu não tenho nenhum, nós dois temos um.” Bernard Shaw, Prêmio Nobel de Literatura.
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Graciliano x Proust
O primeiro contato com uma câmera “Minha geração não teve oportunidade em escolas de cinema ou estágios nas produtoras. A formação era ligada à prática. Meu pai possuía uma câmera super-8 no início dos anos 80 e eu a utilizava em algumas experiências. Através dessa oportunidade, vi um meio de expressar a opinião política do jovem na época. A produção artesanal e industrial dos curtas foi responsável por me tornar cineasta, além de permitir um contato com o mundo usando a linguagem audiovisual. Depois de oito trabalhos, estreei em longas-metragens com o Baile perfumado. Existe uma mudança devido à obrigação de entrar no mercado, mas quem vem do curta não cede às amarras deste tipo. Mantém presente a curiosidade, a dúvida, o debate e o experimentalismo. Tenho meus princípios do tempo dos curtas, mas sempre estou aberto às novidades.” Paulo Caldas, diretor, produtor e roteirista. NOV 2008 • Continente
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web Forma de comunicação das mais antigas, o boato prolifera na internet a uma velocidade estonteante, numa proporção epidêmica André Dib
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mensagem urge na tela do computador: “A CNN já fez o alerta. Por favor, repasse esta mensagem para todos que você conhece”. O assunto não importa: um virulento programa que destrói seu computador, bebidas drogadas por traficantes de órgãos, uma catástrofe que não pode mais ser evitada, vítimas de guerra que precisam de ajuda, ingredientes cancerígenos no seu enlatado predileto, experiências genéticas em animais fofinhos, uma conspiração política, ou próximo atentado terrorista. Ao longo dos séculos, a imaginação humana tem gerado toda a sorte de boatos, fantasiosos ou não. Anos atrás, através do boca-a-boca, propagavam histórias como a loura do Escort que caçava pretendentes desavisados madrugada adentro, da popular tela cujo pintor fez um acordo com o diabo. Antes ainda, havia o papa-figo solto pelo Recife e a moça emparedada na rua Nova; os túneis secretos de Olinda; crocodilos nos esgotos de Nova York; cadáveres no reservatório d’água do Rio de Janeiro. E quanto àquele vinil que, girado ao contrário, amplifica conjurações satânicas? O ingrediente secreto da Coca-Cola? Ou a receita dos hambúrgeres do McDonald’s? O que há do lado de dentro da boneca Barbie? Paul McCartney realmente está morto? Lendas infinitas, que renderiam um belo retrato dos desejos, medos e delírios do homem contemporâneo. Eis que hoje a boataria é digital. Basicamente, elas podem ser divididas entre trumors e hoaxes, dois novos verbetes em nosso linguaNOV 2008 • Continente x
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“Há pessoas que sabem usar o ambiente virtual muito bem e outras totalmente despreparadas, o que inclui um monte de jornalistas”
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Silvio Meira
CNN e Coca-Cola, alvos dos boatos na internet. Abaixo, o Papa-figo, uma lenda urbana, em desenho de Poty
jar contemporâneo. Trumor (true + rumor) é uma notícia verdadeira ou que se torna verdade após sua circulação (uma mentira repetida mil vezes se torna verdade). Já o hoax (literalmente, “embuste”, com derivação da expressão hocus pocus) tem alto poder de convencimento e objetiva iludir o maior número de pessoas com informações falsas. Entre eles, o que há em comum é a forma epidêmica com que são propagados pela rede mundial e os elementos que caracterizam os boatos – de acordo com o dicionário, “notícia de fonte desconhecida, muitas vezes infundada, que se divulga entre o público”. Ou seja, o bom e velho zunzunzum. Autor da tese de doutorado em letras Lendas urbanas na internet – Entre a ordem do discurso e o acontecimento narrativo, o professor da Universidade de São Paulo Carlos Renato Lopes diz que entre o alerta de que algo “pode acontecer com qualquer um de nós” e o “aconteceu com alguém conhecido”,
uma estrutura se faz e refaz a todo momento, “nas caixas de correio eletrônico ao redor do mundo, renovando a idéia de que estamos cercados de perigos invisíveis, perigos microscópicos que nos podem ceifar a vida quando menos imaginamos”. O fato é que, na internet, os rumores adquiriram alcance epidêmico. Como no caso da notícia veiculada pelo canal pago Globonews, de que um avião da empresa aérea Pantanal teria caído na Zona Norte de São Paulo. De fato, as imagens mostravam muita fumaça, mas nada de avião. Em pouco tempo, a verdade surge e ridiculariza nosso glorioso e mal-apurado jornalismo control C + control V (copie e cole): era nada mais do que um incêndio numa fábrica de colchões. Tarde demais: a “barriga” já tinha sido propagada pelos portais UOL, Terra, iG, e os jornais eletrônicos por eles hospedados, como a Folha Online e o Estadão. Tome outro caso recente – desta vez de repercussão mun-
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dial –, a falsa notícia sobre o ataque cardíaco do presidente da Apple, Steve Jobs. Tudo começou quando o portal de notícias Bloomberg publicou, por engano, nada menos do que o obituário de Jobs, que realmente anda mal de saúde. O infarto foi logo desmentido oficialmente, mas a disseminação do boato via blogs levou as ações da gigante da informática a cair em 5,4% na cotação da bolsa de valores. Para Sílvio Meira, cientista-chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife – C.E.S.A.R, o melhor mecanismo para conter informações falsas ou indesejadas ainda é a educação. Quando surge alguma notícia de caráter duvidoso em sua caixa postal, Meira checa as fontes e consulta sua rede pessoal, em comunidades virtuais como o Twitter. “É a melhor vacina para não ser enganado. Há pessoas que sabem usar o ambiente virtual muito bem e outras totalmente despreparadas, o que inclui um monte de jornalistas. Não adianta somente ler, é preciso refletir sobre os assuntos. Só se engana com mágica quem quer ser enganado. Você quer acreditar, entra na viagem, mas na prática se trata de uma fantasia coletiva, um engodo social. O que a internet fez foi globalizar o otário”, opina o pesquisador. Meira lembra que, apesar de haver milhões de blogs na rede, poucos oferecem conteúdo original, o que os torna mais um foco multiplicador de boatos. “Na sociedade em tempo real proporcionada pela internet, a conversa de fim de feira se tornou uma arena global. Isso tem conseqüências muito interessantes porque, na mesma medida em que se propagam informações oficiais ou não, a contra-informação responde na mesma intensidade”, analisa Meira, que se diz otimista quanto ao futuro. “As falsas informações na internet vão afetar menos as próximas gerações.”
Em 1938, a conhecida narração de Orson Welles para o livro Guerra dos mundos, de H.G. Wells, resultou em pânico generalizado em centenas de milhares de norteamericanos, que acreditaram estar sofrendo um real ataque alienígena. Caso emblemático da importância dos mass media na disseminação de um boato. Caso oposto ocorreu no Recife de 1975, ano da histórica enchente que fez transbordar a barragem de Tapacurá e elevou em alguns metros o nível da água na capital pernambucana. Dois dias depois da grande cheia, o povo se alarmou com o boato de que “Tapacurá estourou”. De boca em boca, a notícia chegou até São Lourenço da Mata, onde uma senhora, amedrontada com o dilúvio, morreu do coração. O episódio
está milimetricamente dissecado no livro Viagem ao planeta dos boatos (Record), de Homero Fonseca. Longevo pesquisador do comportamento humano, o psicanalista José Ângelo Gaiarsa enxerga o pânico e histeria gerados pelo episódio pelo viés psicanalítico. “Existe uma ansiedade coletiva negada, pois a vida é muito incerta, e mesmo assim tem gente que se comporta como tudo estivesse bem. Mas o fato é que estamos todos assustados. Temos muitos medos escondidos, e isso é um pavio curto para qualquer faísca fazer explodir tudo”, expõe o escritor, que já publicou uma extensa análise de um fenômeno próximo ao boato: Tratado geral sobre a fofoca (Summus Editorial). “O indivíduo difunde o seu medo, e tenta assustar os outros. E as pessoas são todas medrosas,
Orson Welles na famosa transmissão radiofônica de A guerra dos mundos
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SETE BOATOS FAMOSOS NA INTERNET O turista acidental Essa piada viajou o mundo todo e foi parar em inúmeros e-mails, logo após os atentados de 11 de setembro. A imagem mostra um turista no topo de observação de uma das torres do World Trade Center, posando para um foto segundos antes da colisão de um dos aviões seqüestrados.
Criança precisa de ajuda Tudo começou em 1989, quando Craig Shergold, uma criança de nove anos diagnosticada com câncer, pensou numa forma de realizar o seu sonho de entrar para o Guiness Book. Craig pediu que as pessoas lhe enviassem cartões de agradecimento e elas assim o fizeram. Em 1991, 33 milhões de cartões já tinham sido enviados, superando de longe o recorde anterior. Felizmente, os médicos conseguiram remover o tumor e Craig hoje é um adulto saudável. Porém, seu pedido por cartões gerou variações que incluem uma menina morrendo de câncer e um garoto com leucemia querendo começar uma corrente de cartas eterna. Tráfico de órgãos O título começa com a seguinte exclamação: “Turistas, cuidado!!” A men-
porque o mundo é realmente muito perigoso. Toda a psicanálise gira em torno de revelar às pessoas quais são os seus medos. O boato é um modo de comunicar o medo. Ou vingando-se dos outros ou acordando os outros. Qualquer alternativa é válida. Ele diz: vamos espalhar o fogo
sagem alerta sobre uma onda de roubo de órgãos em que as vitimas são drogadas e acordam numa banheiracheia de cubos de gelo, poir tiveram um de seus rins extirpado para ser vendido. (?) Bill Gates distribui dinheiro “A Microsoft está testando algum novo programa para rastrear e-mail e a empresa precisa de voluntários para ajudar. Um amigo me mandou um e-mail que recebeu da Microsoft – o e-mail era do próprio Bill Gates! Duas semanas depois, como recompensa pela participação, meu amigo recebeu um cheque de milhares de dólares.”
Você pegou um vírus! Não existe um vírus Teddy Bear ou mesmo um sulfnbk.exe. A farsa do jdbmgr.exe (representado por um ícone de ursinho) alertava internautas sobre uma mensagem de e-mail com risco de infecção de um vírus enviado via mala direta do Microsoft Messenger, e que deveria ser apagado imediatamente. Mas, na verdade, não havia vírus e infelizmente o jdbgmgr.exe era um arquivo necessário. Com sua insistência em
que eu estou vendo e parece que ninguém mais está percebendo”, afirma Gaiarsa. Mas o que origina esse fenômeno narrativo, tão presente quanto efêmero, que gera histórias absurdas ou verossímeis? Para o sociólogo
afirmar que o arquivo em questão, legítimo, era um vírus, a farsa sulfnbk.exe afetou até usuários mais experientes, que removeram o arquivo. Microsoft compra o Firefox O pesadelo da comunidade do software livre: em outubro de 2006, um site até então desconhecido anunciava a compra do Firefox pela Microsoft e promovia o novo Microsoft Firefox 2007 Professional. Autópsia do ET em Roswell Roswell, Novo México, marco zero das controvérsias sobre OVNIS. É também o local onde o filme de uma autópsia de um ET foi filmado há 60 anos. Diz a história que um disco voador caiu nessa área e o governo dos EUA fez uma autópsia, às pressas, no alienígena. Em meados da década de 90, indivíduos anônimos “descobriram” o filme secreto e o revelaram para esclarecimento do público não informado. Em 2006, veio a revelação de que o filme é uma farsa criada em 1995 por John Humphreys, um animador inglês que fez tudo em seu apartamento.
Tamotsu Shibutani, especialista no estudo dos boatos, ele surge da discussão coletiva a respeito de um acontecimento ao mesmo tempo importante e ambíguo. De forma que o boato é um processo não só de difusão de informação, mas de interpretação e comentário, nas-
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cido da publicidade de um rumor localizado. De qualquer maneira, garante o pesquisador francês Jean-Noël Kapferer, pouco importa onde está o seu nascedouro, sua fonte primária. Para ele, o que torna um boato interessante é o seu poder de adesão. Kapferer é autor do livro Boatos: o mais antigo meio de comunicação do mundo – possivelmente o mais abrangente estudo sobre o assunto –, em que cita o notável caso do Boato de Orléans, falsa notícia de que meninas estariam sendo raptadas naquela cidade francesa e que foi exaustivamente analisado pelo sociólogo Edgar Morin. Em seu livro, Kapferer afirma que o boato circula rapidamente porque traz informações que as pessoas querem ouvir. O transmissor desejoso de atenção, por sua vez, repassa a “notícia” o mais rápido possível, enquanto ela ainda tem algum valor de troca. Presidente da Fundação para o Estudo e Informação sobre os Boatos, Kapferer se posiciona contra a visão negativa atribuída a esse fenômeno da comunicação. Sua teoria defende que, se todo boato fosse falso, ninguém daria atenção. Ele incomoda justamente pela possibilidade de se revelar exato, por contar informações que o poder instituído não controla. Ou seja, o boato pode ser uma arma, um contrapoder que, se usado estrategicamente, pode derrubar reis e arrasar reputações. “Os trumors podem gerar conseqüências realmente ra-
Steve Jobs, presidente da Apple: o infarto que não houve
dicais, principalmente quando não há tempo hábil de desmenti-los, como nas vésperas das eleições”, diz Sílvio Meira. O livro de Kapferer aponta ainda que a noção de que boatos são necessariamente falsos foi disseminada historicamente pelos norte-americanos, que precisavam controlar o fluxo de contrainformação durante a Segunda Grande Guerra. “A concepção negativa que associa o boato à
falsidade é de ordem tecnológica: só é boa a comunicação que for controlada. O boato opõe um outro valor: só é boa a comunicação livre, mesmo que a sua credibilidade venha a ser prejudicada. Em outras palavras, os “falsos” boatos são o preço a pagar pelos boatos com fundamento”. Por tudo isso, em vez de ser tratado como indigno ou patológico, o boato é um elemento fundamental para compreender as relações sociais.
“O fato é que estamos todos assustados. Temos muitos medos escondidos, e isso é um pavio curto para qualquer faísca fazer explodir tudo” José Angelo Gaiarsa NOV 2008 • Continente x
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É tudo mentira! Poemas piegas de Borges e Neruda, crônicas edificantes de Drummond, despedida melosa de Gabriel García-Márquez, artigos sem graça de Veríssimo... O fenômeno de falsos textos atribuídos a escritores famosos não pára de crescer na internet Cristiano Ramos
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orge Luis Borges edificou uma obra repleta de pseudotraduções, falsas referências, citações a autores e obras inexistentes. E, considerando esse labirinto de paredes densas e intermináveis, é espantoso pensar que talvez um de seus escritos mais conhecidos seja exatamente um embuste, o terrível poemeto Instantes, cujas estrofes parecem fincadas à figura do escritor argentino. Quase três décadas de estudos e depoimentos lhe negando a autoria não foram suficientes, Borges continua sendo equivocadamente acusado desse que se tornou o mais célebre dos incontáveis textos que circulam na internet com assinaturas errôneas ou como apócrifos. A lista não pára de crescer, tampouco cai o altíssimo nível das vítimas escolhidas para “assinar” essas pérolas (geralmente crônicas ou mensagens de fazer inveja ao mais
piegas dos best-sellers de auto-ajuda). Nela encontramos Shakespeare, Maiakovski, Brecht, Neruda, Borges, García Márquez; entre os brasileiros, nomes como Millôr Fernandes, João Ubaldo Ribeiro, Drummond, Quintana e os campeões Arnaldo Jabor e Luís Fernando Veríssimo. Se você, leitor da Continente, nunca recebeu um e-mail ou cartão com um desses textos falsos, sinta-se um privilegiado. Ou, então, quem sabe, não percebeu o trote e até o repassou adiante. Com seu alcance, velocidade e facilidades, a Rede Mundial de Computadores somente potencializou a difusão desse tipo de engodo. Tornou-se uma etapa seguinte na escalada das fraudes que atinge todas as artes, como uma decorrência natural do surgimento da imprensa, da mecanização dos meios de produção, daquilo que Walter Benjamin chamou de “era da repro-
dutibilidade técnica”. De fato, nunca foi tão fácil cometer adulterações literárias, tudo está a alguns cliques de distância. É possível criar novos textos e espalhá-los com autoria falsa, ou mudar a assinatura de outros já existentes. O resultado da brincadeira de mau-gosto ou do malicioso ardil pode ser insignificante, ou tomar proporções incontroláveis. Voltando ao exemplo citado, seja lá quem foi o primeiro a traduzir para o espanhol o poema do cartunista americano Don Herrold, publicado originalmente numa Reader’s Digest, de 1953, dificilmente tinha em mente as conseqüências. Sob a assinatura de Jorge Luis Borges que, segundo o boato que acompanha os versos, tê-los-ia escrito à beira da morte, aquele Instantes se transformou em estampa para peças de artesanato, camisas, cartões-postais e quadros, e até mesmo parte integrante de algumas antologias do autor de Fervor de Buenos Aires e O Aleph. Com a chegada da internet, o que já era um fenômeno logo se vestiu de febre entre aqueles que adoram atulhar as caixas eletrônicas alheias.
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tico”. E publicou na íntegra o Marionete, sem desconfiar que fosse uma fraude muito semelhante àquela envolvendo Borges. Próximo à morte, novamente um renomado autor resolve escrever uma despedida melosa e da pior qualidade literária – se é que há ali alguma literariedade. Dessa vez, tinha um fundo de verdade: Gabo realmente sofria da doença e estava em tratamento. Mas, comunista engajado, não resolvera abandonar suas convicções e nos deixar a tal mensagem cheia de citações a Deus, com frases dignas de pára-lama de caminhão. Ironicamente, quem acreditou e repassou por e-mail o Marionete tornou popular um poema escrito pelo ventríloquo mexicano Johnny Welsh para seu boneco Mofles. Um constrangido e irritado García Márquez teve que já algumas vezes negar publicamente ser dono da lamuriosa missiva. Existem, atualmente, pesquisadores que se dedicam ao levan-
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E se engana quem subestima tais ludíbrios, crendo que apenas pessoas de pouca informação caem nas pegadinhas. Professores já empregaram o falso Borges em suas aulas, políticos o citaram em parlamentos, poetas sem conta o usaram como epígrafe em seus livros. Basta dizer, ainda, que Roberto Campos repercutiu os versos em um artigo e o escritor Moacyr Scliar jamais negou parte da responsabilidade pela popularização dos mesmos, já que os trouxe de Buenos Aires, reproduzindo-os no jornal Zero Hora. A própria Maria Kodama, viúva do poeta, contista e crítico argentino, precisou ir à Justiça para negar aquela autoria e se precaver contra ações dos herdeiros do verdadeiro autor. Em Pernambuco, na segunda capa, a edição de 6 de setembro do Jornal do Commercio noticiou: “Os computadores do mundo inteiro, via internet, reproduzem um texto de Gabriel García Márquez – que vive, lúcido e consciente, seus últimos dias, vítima de um câncer linfá-
García-Márquez e Jorge Luis Borges: textos piegas lhes são falsamente atribuídos
tamento desses trotes espalhados pela web, mesmo porque não se trata apenas de negar autorias. Para além do valor estético dos mesmos, muito desse material possui copyright, há escritores sendo lesados pela moda fraudulenta que invadiu o mundo virtual. É o caso de Martha Medeiros, que se queixa de que, além de mudar a assinatura, o “co-autor” também faz enxertos. Essa nota comentando o tema está incluída em Caiu na rede, coletânea organizada por Cora Rónai e publicada em 2005. O livro reúne os mais conhecidos fakes. Muitos são os motivos que podem levar alguém a perder seu tempo – e principalmente o dos outros – com esse tipo de maquinação: a pessoa acha que tem uma mensagem importante, mas que ninguém lhe dará atenção se divulgá-la com o seu próprio nome; precipitadamente, alguém recebe um texto apócrifo e decide lhe adivinhar a autoria pelo estilo; às vezes, é parte da estratégia narrativa de um autor, ou talvez tão só a vontade de rir com o engano alheio... Para o crítico literário e professor da UFPE, Anco Márcio Tenório Vieira, “seja qual for a razão, uma coisa precisa ser observada: sempre houve casos assim na literatura, porém, em cada época os fraudadores respondem a uma demanda da sociedade. Se hoje há tantos textos falsos circulando com essa característica de auto-ajuda, é porque eles sabem que muitos leitores gostariam de ver escritores respeitados produzindo esse tipo de coisa. Por outro lado, durante o Romantismo, por exemplo, onde creio que o fenômeno tomou força, tivemos o caso dos poemas de Ossian, muito mais refinados, e que influenciaram intelectuais como Goethe”. NOV 2008 • Continente x
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CAPA Nos anos 1760, o escocês James Macpherson garimpava autores gaélicos quando anunciou a existência de um épico de Ossian, bardo e guerreiro medieval. Não demorou para que conquistasse a confiança de financiadores e editores, e as baladas se tornassem um estrondoso sucesso. Embora no final do século 19 ninguém mais acreditasse na sua autenticidade, Os cantos de Ossian já haviam marcado indelevelmente os rumos da literatura ocidental. Sua poesia emotiva, a valorização do antigo e do simples, além da volta à natureza, transformaram uma fraude literária em importante influência para o movimento romântico. Quem leu o romance de Goethe pode se recordar do desesperado Werther lendo uns cantos ossiânicos para sua amada Charlotte, não muito antes do fim trágico. Não tivesse falecido sem negar a veracidade da obra, Macpherson figuraria hoje com destacada eminência entre os não raros autores que fizeram da pseudotradução uma ferramenta narrativa. Seu real conhecimento de poesia gaélica e a qualidade do texto dificilmente teriam sensibilizado tanto alguns intelectuais, se estes soubessem que as baladas não eram autênticas, contudo seria ainda mais árduo lhes negar valor estético. De Homero às Escrituras Sagradas, dos poemas de Ossian aos nossos dias, são muitos os exemplos de que apócrifos ou falsas autorias podem legar textos de qualidade. A mídia tem histórico de embarcar nessas arapucas. Vez por outra, até apresentadores de TV lêem com entusiasmo um desses textos falsos ou adulterados. Ainda no livro Caiu na rede, Martha Medeiros recorda que sua crônica As razões que o amor desconhece foi veiculada na Bandeirantes por Olga
Dumas, vítima do Jornal do Commercio
Bongiovani, que a creditou erroneamente a Roberto Freire. De forma inadvertida (ou proposital?), no programa Provocações, da TV Cultura, Antônio Abujamra emprestou sua voz sempre marcante ao discurso de um tal índio Guaicaipuru Cuatemoc. A verdadeira dívida externa é um dos casos mais interessantes, pois vem junto com todo um contexto imaginário: a versão mais difundida alega que um cacique de alguma tribo da América Central teria proferido o libelo contra a herança colonialista durante reunião de chefes de Estado da Europa. Há, inclusive, variação da história que afirma ser Cuatemoc um diplomata mexicano... Logicamente que nenhuma das milhares de páginas na internet contendo referências a Guaicaipuru traz imagens ou dados comprovados sobre a origem do indígena, o local do suposto evento etc. Nem por isso algumas ONGs de Direitos Humanos ou de preservação da Amazônia deixaram de sucumbir à tentação de postar o discurso fake. Os meios de comunicação nem sempre são vítimas, mas também cúmplices em ca-
sos notórios de desrespeito a direitos autorais ou mesmo de falsa assinatura. Em sua tese de doutoramento, o professor de Comunicação e pesquisador Carlos Roberto da Costa registra que “entre 1830 e 1854, foram publicadas em periódicos brasileiros 74 traduções de obras de ficção. Importava-se literatura sem qualquer autorização dos autores (...) Foi tal o sucesso de O conde de Monte Cristo que o editor do Jornal do Commercio encomendou uma edição com novas peripécias do personagem, contratando para isso o jornalista português Alfredo Passolo Hogan”. Apesar de o periódico carioca ter recebido uma carta de protesto do próprio Alexandre Dumas, o folhetim prosseguiu sendo impresso, e posteriormente ganhou versões em livro pela editora Brasiliense (1925) e pelo Clube do Livro (1958). Algumas listas de vestibular e apostilas até hoje incluem A mão do finado entre as obras do escritor francês. Por tratarem do cotidiano e utilizarem uma linguagem aparentemente simples, Arnaldo Jabor e Luís Fernando Veríssimo são os mais atingidos por esse fenômeno no Brasil. Não adianta, por mais absurdos que pareçam os temas e argumentos dessas crônicas ilegítimas, sempre existem internautas prontos para presentear os correios eletrônicos dos amigos com essas amostras. Entre os “clássicos” virtuais do mundo fake, há, no momento em que esta matéria está sendo escrita, cerca de 33.000 ocorrências no google para “Bunda dura”, que Jabor praticamente desistiu de negar ser seu. Ele é parado e elogiado insistentemente nas ruas pelo mesmo. E, quando explica que nunca escreveu um texto ruim desses, o admirador se ofende pela negativa e também pela crítica depreciativa.
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UM FALSO JABOR “ Sempre odiei o que a maioria das pessoas fazem com os seus MSN’s. Não estou falando desta vez dos emoticons insuportáveis que transformaram a leitura em um jogo de decodificação, mas as declarações de amor, saudades, empolgação traduzidas através do nick. O espaço ‘nome’ foi criado pela Microsoft para que você digite O NOME que lhe foi dado no batismo. Assim seus amigos aparecem de forma ordenada e você não tem que ficar clicando em cima dos mesmos pra descobrir que ‘Vendo Abadá do Chiclete e Ivete’ é na verdade Tiago Carvalho, ou ‘Ainda te amo Pedro Henrique’ é o MSN de Marcela Cordeiro. Mas a melhor parte da brincadeira é que normalmente o nick diz muito sobre o estado de espírito e perfil da pessoa. Portanto, toda vez que você encontrar um nick desses por aí, pare para analisar que você já saberá tudo sobre a pessoa…”(...)
O Jabor falso mais recente é uma crônica sobre o uso do chamado Messenger, programa de conversação da web. A primeira linha é de uma improbabilidade quase surreal: “Sempre odiei o que a maioria das pessoas fazem com os seus MSN’s”. Será que Arnaldo Jabor teria desistido de reclamar da política, das invasões americanas, do novo “cinemão”, e estaria agora resolvido a odiar MSNs? Em um fórum de games em que o texto foi divulgado, certo colaborador não só acredita nisso, como completa (com todo o esmero gramatical típico desses sites): “Fico acordado todo dia para ver o jornal da globo pq chego só 00:30 da faculdade e só durmo depois de assistir o jornal da globo e lembro muito bem do dia que o Arnaldo Jabor comentou isso garanto que é da autoria do mesmo” . Em seguida, o mesmo telespectador assíduo do telejornal passa um pitu nos colegas de fórum, mandando-os seguir seu exemplo, pregando que passem menos tempo jogando na internet e procurem se informar! Em março de 2005, os jornais que têm Veríssimo como colunista receberam uma bem-humorada crônica abordando o tema. Ao comentar sobre Quase,
uma das fraudes mais atribuídas a ele, Luís Fernando Veríssimo confessa: “No Salão do Livro de Paris, na semana passada, ganhei da autora um volume de textos e versos brasileiros muito bem traduzidos para o francês, com uma surpresa: eu estava entre Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e outros escolhidos, adivinha com que texto? Em francês ficou Presque”. O assunto revela ainda outras maléficas facetas, como a de textos que são plagiados. Desde as escolas até as universidades, cada vez mais estudantes têm surrupiado textos na rede. No caso das pósgraduações, houve aqueles que não só copiaram teses como também as recolocaram na internet, agora com novas assinaturas. Como muitos desses trabalhos vão parar em revistas científicas, imaginem a surpresa de quem encontra partes de sua pesquisa publicadas com falsa autoria? Esse problema é tão sério que as coordenações de cursos de todo o mundo começaram a adotar programas que
buscam excertos coincidentes entre os textos de seus alunos e materiais encontrados na web. Por tudo isso, será que não chegou o momento de dar mais atenção a essas fraudes literárias? Se os diferentes tipos de fake findam por ludibriar tanto adolescentes iletrados como jornalistas e organizadores de antologias, não existe aí um campo de trabalho novo e profícuo para pesquisadores? Quantas dessas adulterações não devem ainda circular de forma despercebida, pois tanto o falso autor quanto o verdadeiro não chamam a mesma atenção como aqueles que foram aqui citados? Por enquanto, o que resta é pedir zelo para quem tem por hábito utilizar sua lista de contatos para enviar e-mails com textos, correntes, santinhos etc. O que, em si, já é uma caceteação.
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poesia>> Wellington de Melo [DESVIRTUAL PROVISÓRIO] “Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais.” Osman Lins, Avalovara. I & houve um tempo em que bastava um
clique
para que a cabeça decapitada sorrisse bits enfurecidos na tela semeada pelo tédio para que o esqueleto subnutrido da menina asi@tica fosse estuprado mil vezes num segundo para que línguas de fogo lambessem lascivas a carne rosada das duas torres de marfim para que meu sangue de alumínio escorresse pelo Verbo & se deixasse abandonar na Fome. II naquele tempo meu sorriso pasteurizado devorou o Pânico minha pupila aqu@tica renunciou a tudo que é
sólido
minha língua sem asas assistiu ao enterro do céu & adormeci pl@cidamente adormeci com o último controle remoto sobre o primeiro monte de corpos carbonizados III neste tempo um sonho metálico vomitou-me a verdade: nada mais importa nada além do não que repito ao Éter nada além do meu umbigo banhado
em mel que você lambe em finais de tarde meteóricos nada além de meu sorriso dominic@l neste tempo de c@l & treva de concreto & silício foi que finalmente a M@quina roubou de mim a palavra que me fazia humano, que me imprimia a dor: o horror
o horror
o horror [CASA] A meus pais, José Geraldo de Melo & Iraci Terezinha de Melo
SOBRE O AUTOR Wellington de Melo Nasceu no Recife, em 1976. Publicou O diálogo das coisas e tem no prelo Desvirtual provisório, prefaciado por Maria do Carmo Barreto Campello de Melo. O poema Casa recebeu menção honrosa no Prêmio Nacional Mendonça Júnior de Crônica e Poesia. Organizou, com Lucila Nogueira, A musa roubada, livro de poemas inéditos de Tereza Tenório, lançado em 2007. Produz o programa de podcast sobre literatura – Poesi@.
“A casa onde vivemos a nossa infância jamais nos abandona, tornando-se a primeira grande experiência de transmutação poética.” Gaston Bachelard essa casa que me habita & que me faz paredes abertas – me acompanha & se verte sombra em meu presente – exerce sobre mim a influência que a M@quina em vão aplaca. essa casa que me habita & que me faz medo & sonho me lembra que meu nome impresso em tua sina não se desfaz como o metal sangrento: é lume é terra é vento.
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o terror não acabou Os quadrinhos de terror foram um verdadeiro fenômeno entre os aficcionados pela nona arte no Brasil das décadas de 50 e 60. Todos os meses, diversos títulos lotavam as prateleiras das bancas de revistas. Era o tempo da saudosa editora Outubro, que corajosamente apostou nos autores nacionais, consagrando nomes como Nico Rosso, Getúlio Delphim e Lyrio Aragão, entre outros. Nas décadas seguintes, em meio às turbulências do mercado editorial brasileiro (e à tacanha investida das grandes editoras através do Código de Ética, redigido à semelhança do paranóico Comics Code norte-americano), o gênero ainda conseguiria se firmar através de títulos como Spektro, Sobrenatural, Kripta, Calafrio e Mestres do Terror, sendo as duas últimas ligadas à editora D-Arte, do desenhista Rodolfo Zalla. É justamente sobre esse rico universo que se debruça o site Nostalgia do Terror. (Yuri Bruscky) nnn
nostalgiadoterror.com
n Música
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O crítico de música Bruno Nogueira, depois de trabalhar para jornais locais, constatou que faltava espaço para bandas pernambucanas “realmente novas”. Foi quando tomou uma atitude, que acabou se materializando no exitoso Popup, um blog de conteúdo diferenciado e equilibrado: cobre eventos ignorados pela grande imprensa, porém não deixa de noticiar festivais e/ou grupos que continuam importando mesmo fora do circuito alternativo. Além da ênfase dada à emergente cena nordestina, outra sacada de Bruno são as recorrentes entrevistas com produtores – figuras de bastidores, que, apesar da discrição, muitas vezes agem mais do que as próprias bandas. (Thiago Lins)
Fundado pela crítica de artes Alicia Haber, o Museu Virtual de Artes El País –Muva– foi inaugurado em 1997, no Uruguai. O Louvre e o Whitney se tornaram on line no ano anterior, mas o Muva não tem prédio físico, é o primeiro museu cem por cento digital. Salas de seu “edifício” podem ser visitadas pelo internauta, afastando-se ou aproximando-se das obras de arte, como se estivesse ali de fato. A página contém praticamente toda a produção artística do Uruguai.
O portal de música da gigantesca National Public Radio (NPR) é uma infindável fonte de acesso a matérias de qualidade sobre música. Dedicando-se a artistas menos conhecidos ou consagrados fora do mundo pop massivo, a NPR traz comentários sobre shows em cartaz e sessões de estúdio, disponibiliza vídeos exclusivos e produz perfis e entrevistas sobre músicos. Além disso, existe uma área no site somente para a audição de músicas recomendadas, divididas em música do dia e playlists temáticas, algumas vezes escolhidas por artistas convidados. Quem já bancou o DJ para o portal americano foi Thom Yorke, vocalista e multiinstrumentista do Radiohead.
(Marco Polo)
(Diogo Guedes)
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popup.mus.br
muva.elpais.com.uy/Esp
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um Popup para não fechar
Exclusividades para ver e ouvir n arTEs
um museu que só existe na rede
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FaVoriTo
PosT do MÊs – [Blog de Tiago dória]
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Vídeos na internet: assistir – e interagir
Cibercultura Fundado em 2003 pela jornalista e professora de comunicação online Daniela Bertochi, o Intermezzo é um blog coletivo, com colaboradores do Recife a Portugal, passando por São Paulo. Consiste em “reflexões e notas sobre jornalismo e comunicação no ciberespaço”. Vale conferir a cobertura do Digital Age 2.0, conferência com gurus virtuais, entre eles Lawrence Lessig (criador do Creative Commons). (TL) n doWnLoad
Generosidade cultural Ronaldo Lemos já é figura carimbada das comunidades virtuais. Conhecido pelo trabalho pioneiro que desenvolve na área de direito autoral, o advogado tinha lançado em 2005 o imprescindível Direito, Tecnologia e Cultura, obra que se adiantava à então e ainda incipiente legislação na área de propriedade intelectual, em convergência com a internet. Agora, Lemos assina o livro-pesquisa Tecnobrega – O Pará reinventando o negócio da música. Organizado por Heloisa Buarque de Holanda, o livro abrange a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (cujo centro de tecnologia é coordenado por Lemos) sobre o fenômeno paraense, que vem reescrevendo os mandamentos da indústria fonográfica. Pregador da generosidade cultural, Lemos disponibilizou o conteúdo dos dois livros sob licença Creative Commons – outra fundação que o advogado arranja tempo para coordernar. (TL) nnn
www.creativecommons.org.br
A CBS está testando, em seu site, o Social Viewing Room Lounge, uma seção onde as pessoas podem assistir a vídeos da emissora de forma remota com outros internautas. Numa tela, está o vídeo. Ao lado, uma sala de chat para conversar com outras pessoas que estejam vendo o vídeo, um publicador onde você pode postar “em tempo real” os seus comentários. Na visão da CBS, a atividade de ver TV já é social por si só, ao contrário de assistir a um vídeo no computador, que é uma experiência solitária. Na TV, outras pessoas podem assistir ao seu lado. Além disso, naturalmente, a TV é fator de união. Muitas vezes o único momento em que uma família está reunida é para assistir ao Jor-
nal Nacional ou ao Fantástico. E para a CBS falta trazer essa “experiência social” para a web. A meu ver, trabalhar com vídeo no ambiente de rede é isso. Não é tentar copiar na web os formatos que funcionam bem na TV. É, antes de tudo, explorar os inúmeros recursos que a web proporciona.
PErFiL Tiago Dória é jornalista e consultor de mídia. Edita um blog pessoal desde 2003. Dois anos depois, o blog passou a ser parceiro do portal iG , onde é hospedado até hoje. Ano passado, foi o blogueiro oficial da Pop!Tech, uma das conferências de tecnologia mais importantes do mundo. tiagodoria.ig.com.br
BaiXE E ouÇa O site de Bob Dylan, que antes se restringia ao conteúdo informativo padrão das páginas virtuais, foi reformulado. Interativa, sua nova versão traz, entre outras sacadas, a “Rádio Dylan”, espécie de podcast com o repertório dos seus mais de 40 discos. Depois de selecionar e baixar as músicas (de graça), vale conferir a seção Geo, em que alfinetes dispostos num globo terrestre indicam as cidades nas quais o músico se apresentou. Nela os internautas podem compartilhar vídeos, imagens e impressões sobre os shows, como num fórum, reiterando a noção de vinculação por afinidades na web. (YB) bobdylan.com NOV 2008 • Continente
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LITERATURA
A nova travessia do Atlântico Em sua quarta edição, a Fliporto resgata as influências africanas e traz escritores do continente para palestras e debates Diogo Guedes
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ntre os dias 6 e 9 de novembro, a literatura se torna o principal atrativo da praia de Porto de Galinhas, no litoral sul do Estado. É quando acontece a quarta Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas – a Fliporto, apresentando não só palestras e discussões sobre o ato de escrever, mas também exibição de vídeos, exposição de artes plásticas e fotografia, shows musicais e roteiros gastronômicos e ecológicos. Este ano, a Fliporto explora o tema Trilhas da diáspora: literatura em África e na América Latina, visando constituir entre os continentes “uma nova travessia do Atlântico, livre, espontânea e fraternal”, nas palavras do recém-ingresso na Academia Pernambucana de Letras e curador-geral do evento Antônio Campos. Por isso, para a curadora literária Lucila Nogueira, o Festival deverá, em sua programação, “promover uma integração com escritores latino-americanos, prestando, assim, uma homenagem à África, de duas formas: ao convidar autores africanos, e ao trazer à tona as temáticas daquele continente”.
Para Antônio Campos, a escolha foi natural. A própria cidade-sede do evento traz no seu nome o peso do processo escravocrata: era antes um porto de tráfico clandestino de africanos, chamados de “galinhas”. Além disso, em 2008 são comemorados os 120 anos da abolição oficial da escravidão. Nesse sentido, a Fliporto também aproveita para homenagear o centenário de morte de Machado de Assis, neto de escravos, e o centenário de nascimento do poeta negro Solano Trindade e do escritor Josué de Castro. Além deles, também serão saudados Castro Alves, pelos 140 anos do primeiro recital público de “Navio Negreiro” e o simbolista Cruz e Souza, pelos 110 anos de sua morte. A extensa programação conta com abertura de Ariano Suassuna, apresentando uma aula-espetáculo. Logo depois, Marcelino dos Santos (Moçambique), Quincy Troupe (EUA), Rei Berroa (República Dominicana) e Thiago de Mello (Brasil) fazem um recital. O encerramento ficará por conta de uma aula-show de José Miguel Wisnik e da palavra final do organizador do evento, Antônio
Campos. Outros destaques do Festival são os angolanos José Eduardo Agualusa, Ana Paula Tavares e Artur Carlos Pestana, mais conhecido como Pepetela, a moçambicana Paulina Chiziane, a queniana Wangari Maathai e os brasileiros Affonso Romano Sant’Anna, Alberto Costa e Silva e João Paulo Cuenca. “No ano passado, tivemos 55 convidados de fora do Brasil, a maior parte latino-americanos, mais 45 brasileiros e 65 pernambucanos. Este ano, estamos trazendo 75 escritores de fora”, compara Antônio Campos. No total, serão três locais de palestra com atividades simultâneas, além de salas especiais que mostram filmes, recitais e instalações artísticas. Raimundo Carrero, Paulo Caldas e Cláudio Willer também organizam oficinas literárias. Sobre a seleção dos autores que, em sua maioria, têm histórico de engajamento em questões políticas, Antônio Campos
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Acesse a programação completa da Fliporto www.continenteonline.com.br
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vê com naturalidade essa tendência, em virtude da temática escolhida. “A arte e a literatura não são neutras. O continente africano foi marcado por muita luta e sofrimento, o que certamente se refletiu na criação literária de vários autores”, diz, vendo um papel importante nos debates levantados: “Assim, ao discutir a África, certamente faremos o registro de que o mundo e o Brasil têm uma grande dívida com aquele continente”. Paralelamente ao evento, ocorre a Fliportinho. Voltada para o público infantil, começa alguns dias antes, acontecendo de 3 a 9 de novembro, no espaço Porto Arena. Tem como tema Histórias que se contam embaixo do baobá, árvore africana homenageada pelo festival. Serão, ao todo, duas tendas, três salas e uma carroça itinerante promovendo diversas atividades como leituras de histórias, feira de livros, concursos de contos, colônias de férias, visitas às escolas, recreações nas ruas de Ipojuca e oficinas. Para Antônio Campos, o evento paralelo é essencial: “É preciso criar uma nova geração de leitores, e é para isso que se dirige uma grande parte das atividades”. A Fliporto, nos seus quatro anos de existência, já se consolidou como uma das quatro maiores feiras literárias internacionais do país. “Nossas armas são o diálogo de nível e a nossa própria concretização de credibilidade”, ressalta Antônio Campos, comentando que, desde que assumiu a frente do festival, na edição anterior, procurou dar ao evento “uma atuação mais ampla e internacionalizar, diversificar, profissionalizar e atualizar um certo modo de reunir pessoas para ler, ouvir e discutir literatura”. Antônio Campos também vê com muita simpatia os outros festivais literários do Estado, como o festival municipal A Letra e a Voz e o Festival de Literatura de Garanhuns. Para ele, os eventos têm muito em comum: “Temos diversas convergências. A diferença que vejo é apenas de foco e no sentido que a Fliporto é um evento literário mais internacional”. De fato, nenhum desses outros eventos tem o objetivo e, até por isso, a dimensão da Fliporto. É só notar que, em 2007, Porto de Galinhas foi o local de convergência da literatura latino-americana. Esta edição, de 2008, dedica-se à África. Com isto, percebe-se que a já internacional Fliporto está destinada a percorrer tematicamente o mundo, trazendo uma cada vez maior seleção de nomes para debater e incentivar a literatura de qualidade.
De cima para baixo: Wangari Maathai, José Eduardo Agualusa, João Paulo Cuenca e Quincy Troupe
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LITERATURA
O Nobel e a culpa do Ocidente A premiação do pouco conhecido Jean-Marie Le Clézio proporciona reflexões para além da Literatura sobre ideologias e identidades culturais Fernando da Mota Lima
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i recentemente um artigo de jornal no qual o autor especulava sobre alguns possíveis vencedores do prêmio Nobel de Literatura. Cogitava romancistas famosos como Philip Roth e Mario Vargas Llosa, embora este figurasse em posição improvável. Logo depois li o anúncio da premiação, atribuída a JeanMarie Le Clézio, um francês que desconheço completamente. Aliás, lembrando palavras da Academia Sueca no ato formal da premiação, ele é antes um nômade, um desenraizado, do que um francês. Longe de mim presumir que minha ignorância constitua em algum sentido evidência de premiação injusta. De qualquer modo, causou-me estranheza o fato de o Nobel ser neste ano conferido a um ilustre desconhecido, pelo menos para leitores desinformados como eu. Intrigame ainda a evidência de Le Clézio publicar romances e ensaios desde
o início dos anos 60, sem que eu todavia retivesse sequer o nome dele, acaso lido em algum artigo, ensaio, livro de quem quer que fosse. Marcelo Rezende escreveu um artigo, logo em seguida publicado na Folha de S.Paulo, que de certo modo me consola de minha ignorância, se é que não a justifica. Segundo ele, a premiação traduz antes de tudo um ato de culpa não declarada do Ocidente diante de culturas periféricas que este espoliou durante séculos. Sendo Le Clézio um europeu desenraizado, além de crítico impenitente da hegemonia cultural exercida pela Europa sobre culturas que ele ama e exalta nas páginas de sua obra, a atribuição do Nobel simbolizaria tanto um reconhecimento implícito de culpa quanto um gesto de valorização das culturas espoliadas ou pelo menos abafadas pelo colonialismo europeu. Longe de mim desculpar os crimes históricos perpetrados pelo
colonialismo, mais ainda sendo eu originário de uma cultura periférica cuja história foi profundamente oprimida pela dominação européia e, mais recentemente, norte-americana. Daí não cabe, todavia, presumir minha adesão à ideologia multiculturalista, muito menos minha resistência à cultura européia. De qualquer modo, parece evidente que a atribuição do prêmio a Le Clézio confere prioridade à mensagem sobre a forma, aos critérios de natureza social e política em prejuízo dos estéticos. Sei que todas as qualificações que acima esboço são objeto de controvérsia. Mencionando um único exemplo, li também a meio desses artigos um assinado por Eric Hobsbawm, no qual investe sua competência insuspeita, como europeu e notável estudioso dos problemas de identidade cultural, para questionar e, no limite, refutar o conceito de
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Le Clézio: o Nobel parece conferir prioridade à mensagem sobre a forma. No detalhe, Alfred Nobel, criador do prêmio
identidade européia. À parte isso, nunca endossei o discurso anticolonialista e antiimperialista que se estende ao extremo de exaltar nossa herança indígena e africana em detrimento da européia. Este ponto de vista deplorável trai, entre outras coisas, uma grande ignorância da nossa constituição cultural. Neste sentido, sinto-me há muito identificado com a perspectiva de iluministas e liberais como José Guilherme Merquior, Sérgio Paulo Rouanet, Octavio Paz, Vargas Llosa e mesmo nacionalistas dialéticos, que vá o qualificativo discutível, do tipo de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Em suma, entendo que somos também e antes de tudo ocidentais. Representantes de um outro Ocidente, acentuo, mas ocidentais. Para mim, toda perspectiva ou ideologia que despreze essa filiação está con-
taminada por uma noção estreita e no limite desastrosa de particularismo cultural. Infelizmente, a inteligência brasileira tem alimentado com fartura obsessiva uma concepção de nacionalismo que me parece em muitos casos autoritária e irracionalista, no pior sentido do irracionalismo, isto é, no sentido em que privilegia valores de base emotiva incompatíveis com o exercício fundamental da crítica racional, além de justificador do atraso e da ignorância. Devido a razões históricas compreensíveis, o Nordeste brasileiro tem sido pródigo na defesa de uma ideologia de fundo nacionalista e antes de tudo regionalista que, em termos práticos, funciona como uma rede de resistência desastrosa à nossa modernização sócio-cultural. Na outra ponta, visa conferir legitimidade a muitas tradições que conviria superarmos.
Uma das modas do nosso tempo consiste em atos de penitência pública, feitos por governantes de países investidos de glorioso passado colonial. Aliás, também de alguns países de constrangido passado colonizado, como é o caso do Brasil. O presidente Lula, por exemplo, já se esmerou em desculpas públicas a povos africanos oprimidos pelo colonizador português e em seguida pelos escravistas brasileiros. Atos dessa natureza são sem dúvida comoventes, mas inoperantes, para não dizer descabidos. Expressam antes a retórica hipócrita da política do que qualquer mudança efetiva. Num país cujo presente espelha ainda traços tão iníquos e rotineiros dessa nossa herança maldita, importaria arquivar essa retórica da hipocrisia, com ou sem pretexto do prêmio Nobel, em benefício de atos políticos concretos passíveis de progressivamente suprimirem as marcas vergonhosas do nosso legado escravista. Quanto ao Nobel, volta a premiar um escritor de universalidade discutível enquanto solenemente despreza nomes como os de Philip Roth e Vargas Llosa. A propósito, quem conhece estes escritores: Giosuè Carducci, Rudolf C. Eucken, Karl Adolph Gjellerup, Carl Spitteler, Jacinto Benavente, Grazia Deledda, Sigrid Undset, Ivo Andric? Foram todos agraciados com o Nobel. Poderia acrescentar muitos outros igualmente esquecidos. Em contrapartida, cito alguns cuja permanência e universalidade estão bem comprovadas pelo soberano exame do tempo: Thomas Hardy, Henry James, Joseph Conrad, Marcel Proust, James Joyce, D. H. Lawrence, Auden, Paul Celan... Nenhum destes recebeu o Nobel. Se é para reparar culpas, a Academia Sueca bem que poderia corrigir a tempo parte das suas, premiando os injustiçados do presente. NOV 2008 • Continente x
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prosa>>Joca Souza Leão
SOBRE O AUTOR
Tempos modernos
Joca Souza Leão É publicitáro e cronista Participou da antologia Maravilhas do conto da Ítalo e escreve regularmente para o Jornal do Commercio e Jornal de Idéias (Recife), revista Algomais e os sites Kritérion Sebo & Bar e Jornal da Besta Fubana.
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os anos 50, dizia-se que com a modernidade tudo seria elétrico, automático, eletrônico e rápido. A jato. Quando eu pegava um ônibus velho, caindo aos pedaços, da empresa Petrópolis, na Rua da Hora, e levava meia hora pra chegar à Guararapes, ia imaginando durante o trajeto o dia em que teria um carro. Um dia, esse dia chegou. Fusquinha 68 branco. Zerinho. Cinco minutos da porta de casa até o trabalho no Edifício Tabira, no final da Conde da Boa Vista. Mas de uns tempos pra cá vou ao Centro a pé. Levo a mesma meia horinha que levava no ônibus da Petrópolis. Se fosse de carro, levaria no mínimo 40 minutos. A velocidade média de um carro hoje no Recife é bem inferior à de um tílburi ou de uma maxambomba do século dezenove. Lembro da minha primeira viagem ao Rio, num DC3 da Cruzeiro do Sul. Escalas em Maceió, Aracaju, Salvador e Vitória. Saímos daqui do Aeroporto do Ibura de manhã cedo e chegamos ao Santos Dumont quase de noite. O DC3 era um bimotor a hélice, voava baixo e devagar. Demorava, mas a gente chegava. E na hora mais ou menos prevista. Hoje, o jato voa alto e rápido. E quase sempre chega. A gente é que não chega. Outro dia, mesmo, peguei um engarrafamento em Afogados e levei quase uma hora até o aeroporto. Quando cheguei, o vôo tinha overbook. E não adiantou nada espernear. Sobrei. Só viajei no dia seguinte. Quando tinha 13 anos, inventei de ser office-boy num banco. Fazia mandados e ajudava com a recepção de cheques. Nada automático, tudo manual. Entregava uma ficha de metal numerada ao cliente, anotava o número no verso do cheque e o passava pra compensação, que debitava o valor na conta-corrente do cliente. Aí, eu levava o cheque pro caixa e o caixa, pelo número anotado por mim no verso, chamava o cliente e pagava. O cliente esperava 10, no máximo 15 minutos, sentado. O banco servia um cafezinho para amenizar a espera. Hoje, estão todos informatizados. São outros tempos. O cliente espera horas. A seco. Sem cafezinho e em pé na fila. Minha casa era das poucas da rua que tinha telefone. Servia a toda vizinhança. Ligações e recados. Telefone automático, como na Pasárgada de Manuel Bandeira. Automático, mas analógico. Às vezes demorava um pouco a dar linha. Agora são digitais. Todo mundo tem. Dão linha na hora. Maravilha da moderna tecnologia. O problema é que quando a gente liga é uma gravação que atende. Entre ligar e falar pode levar uma eternidade. Seguramente, muito mais que o tempinho que se esperava por uma linha. Tempos modernos? De Charles Chaplin pra cá essa coisa de tempo piorou muito.
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livros
Mergulho no lado sombrio da alma coletiva Ote ambicioso. Um bom exemplo é o seu já clássico O Sumidouro do São Francisco – Origem dos conflitos no Brasil (1985), cuja pretensão totalizante do subtítulo é satisfatoriamente realizada num livro surpreendente, hoje obra de referência. O recémlançado Sexo, nação e cor – Ensaio sobre o preconceito encara o desafio de enfrentar tema de grande amplitude histórica, sociológica, política e cultural, amparando-se em erudita
pesquisa à qual se soma a Sexo, raça e cor – Ensaio própria vivência pessoal sobre o preconceito Abdias Moura do autor, também jornaTempo Brasileiro lista e ficcionista, o que, 224 páginas R$ 36,00 sem dúvida, contribuiu para a fluidez do texto e seu descolamento de um indesejável perfil acadêmico. Em oito capítulos, antecedidos por uma explanação teórica, são esmiuçados os preconceitos contra a mulher, judeus e cristãos, muçulmanos, índios, negros, pobres e doentes, homossexuais, e o matuto e o nordestino, arrematando com considerações sobre cultura e linguagem, direitos humanos, legislação contra o preconceito e cotas para os negros, em linguagem acessível a qualquer leigo. É notável a sinceridade de Abdias ao se questionar se não seria portador ele próprio de preconceitos, visto como um fenômeno social recorrente, abandonando a pose de acadêmico olímpico. (Homero Fonseca)
> A memória, fonte do conhecimento
> Prosa caótica em difusa memória
> O velho Freud num novo contexto
> A visão humana de uma rodoviária
Produto de seminário realizado na UFPE, o livro Registros do passado no presente, organizado pela pesquisadora Gilda Verri e lançado pelas Edições Bagaço, narra as experiências de profissionais dos mais diversos campos vis-à-vis o ato de documentar a realidade. Num país conhecido pelo desprezo à memória documental, a iniciativa reúne textos de inúmeros professores, como Jorge Siqueira, Lourival Holanda, Roberto Mota, Denis Bernardes, Yony Sampaio e Jomard Muniz de Brito, entre outros, focando desde o ato de ler à censura sobre livros, passando leituras de Frei Caneca, diários íntimos, inventários, seles, folguedos, teatro e cinema como material de registro da vida. (HF)
Terceiro livro de Marcelo Mirisola publicado pela Record, Animais em Extinção, traz de volta o estilo verborrágico, desconcertante e sem limites do impulsivo escritor paulista. O texto, uma mistura de romance e crônica de costumes, flui numa linguagem crua, desbocada, escatológica; ele não respeita limites, rompe com os tabus. Desta vez na pele de um Humbert Humbert tupiniquim, seduz e subjuga a "negrinha Vanusa", garotinha de programa de 12 anos, encontrada à beira-mar da praia de Cabo Branco, em João Pessoa. E, por aí vai, o personagem-pedófilo, com outras narrativas entremeadas de confissões e digressões contra amigas e escritores, tiradas de sua velha máquina datilográfica Olivetti. (Luiz Arrais)
Em 1915, Sygmund Freud escrevia um artigo intitulado Luto e melancolia, enfatizando, nesses dois estados mentais, o aspecto natural e recorrente do primeiro e o caráter abstruso e misterioso do segundo. Neste livro, a psicanalista Sandra Adler mostra porque esse texto freudiano se tornou referência obrigatória nos estudos recentes sobre transtorno bipolar e depressão. A autora sugere que nosso tempo – marcado pelo narcisismo e pelo individualismo – inflige aos indivíduos a sensação de esvaziamento subjetivo que culmina numa espécie de paralisia em relação as iniciativas comuns da vida prática. À sombra do espetáculo é uma releitura de Freud considerando o contexto social contemporâneo. (Eduardo C. Maia)
O Terminal Rodoviário do Tietê é o segundo maior do mundo. Por lá, passam, todos os dias, milhares de pessoas em trânsito. Foram as estórias desses personagens que chamaram a atenção da jornalista, colaboradora habitual da revista Piauí, Vanessa Barbara . Ela encontrou no terminal, espaço de idas e vindas, um ambiente rico em personagens, um grande mosaico humano, que, para autora, representa um versão condensada do mundo. Seguindo os preceitos do Novo Jornalismo, ela entrou, ouviu, viveu e observou as figuras humanas que transitam pela rodoviária, narrando suas impressões em primeira pessoa, humanizando seu relato. Um tipo de jornalismo, charmoso, inteligente e leve. (Mariana Oliveira)
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sociólogo Abdias Moura costuma ser saudavelmen-
Registros do passado no presente Gilda Verri, organizadora Edições Bagaço 312 páginas R$ 30,00
Animais em extinção Marcelo Mirisola Record 176 páginas 00,00 reais
À sombra do espetáculo Sandra Edler Civilização Brasileira 125 páginas 19,00 reais
O livro amarelo do terminal Vanessa Barbara Cosac e Naify 254 páginas 35,00 reais
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A onda modernista chega em Pernambuco
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pesar de tradicional pólo de artes plásticas, Pernambuco ainda carece de massa crítica, histórica e teórica sobre o assunto. Assim, é sempre bem-vinda uma publicação como este livro O grupo dos independentes – Arte moderna no Recife, 1930, de Nise de Souza Rodrigues. Nele, ela conta que, seguindo o caminho desbravado por precursores da arte moderna no estado - Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres -, um grupo de jovens artistas criou, em 1933, um salão independente de arte, que romperia com a
arte tradicional, incluinO grupo dos do aí a que estava sendo independentes Nise de Souza Rodrigues ensinada na recém-criada Edição da autora Escola de Belas Artes do 156 páginas 29,00 reais Recife. Deste grupo faziam parte Elezier Xavier, Augusto Rodrigues (em autoretrato, ao lado), Hélio Feijó, Manoel Bandeira, Francisco Lauria, Nestor Silva e Percy Lau, entre outros. Nize escreve a biografia destes artistas, recria o momento cultural e social em que viveram, os locais onde costumavam se encontrar, traça o mapa das influências e desenvolvimento (desde Paris até a Sociedade de Arte Moderna, já em 1948), pesquisa o papel da imprensa nesta movimentação, enfim, traça um painel bastante rico daquele momento particularmente criativo na vida cultural pernambucana. O livro é ilustrado com diversos quadros dos artistas citados, bem como fotos da época e desenhos. (Marco Polo)
> A influência do tao e do zen no chá
> A beleza e a força da poesia francesa
> Arte atual, crítica e mundialização
> Como utilizar a nova ortografia
Em 1906 o Japão vivia uma crise de identidade cultural, após três décadas de contato com a cultura ocidental. Em contraponto a isso, o escritor Kakuzo Okakura escreve um livro em que contrapõe ao imediatismo do mundo industrializado, a cerimônia do chá, tradição japonesa influenciada pelo taoísmo e o zen. O cerimonial em torno do chá é conduzido por um mestre, num lugar previamente (e exclusivamente) preparado para este fim. Ao entrar, os convivas são obrigados a se agachar e rastejar por uma entrada com um metro de altura, a fim de se despir de presunções. Durante o cerimonial os status hierárquicos vigentes no dia-a-dia são substituídos por uma igualdade respeitosa. (MP)
A literatura francesa do século 16 está bem representada neste livro que integra a coleção Biblioteca Martins Fontes, de clássicos da literatura nacional e mundial. Estão presentes aqui o grande Pierre Ronsard (15241585); o perseguido por sua vida livre Clément Marot (1497-1544); e a bela e talentosa Louise Labé (15251565), entre outros. Há também os poetas menos conhecidos, mas nem por isso menos importantes, como a também bela Pernette du Guillet (1520-1545), que, mesmo morrendo tão jovem, deixou versos como: “Para agradar a quem só me atormenta,/ Não quero achar remédio ao meu tormento:/ Por ver na minha dor o seu contento,/ Contente estou com seu contentamento”. (MP)
Reunindo as comunicações apresentadas durante o Seminário Internacional Arte, Crítica e Mundialização, realizado em 2004 no Museu de Arte Contemporânea da USP, durante a realização da 26a Bienal Internacional de São Paulo, este livro estuda sob diversas angulações a influência da mundialização nas artes plásticas. Alguns textos são particularmente interessantes, como o escrito por Ticio Escobar, quando questiona até que ponto países periféricos devem assimilar acriticamente a arte contemporânea dos grandes centros; o assinado por Lisbeth Rebollo Gonçalves, que vê a exposição como uma obra de arte em si; ou o de Mariza Bertoli, sobre a crítica de arte como invenção. (MP)
Passadas discussões e polêmicas, entra em cena o novo Acordo Ortográfico – firmado entre os Estados membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP): Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste –, oficializado por decreto presidencial. Sobre a matéria, temos o texto de Antônio Houaiss – defensor e principal articulador do projeto de unificação ortográfica –, revisto e enriquecido pelo professor José Carlos de Azeredo, da UFRJ, pensador da filosofia da língua e gramático. O trabalho resulta num vade-mécum de linguagem simples e comunicativa – oferecendo também o texto integral do Acordo e quadros sinóticos esclarecedores. (Maria Helena Porto)
O livro do chá Kakuzo Okakura Estação Liberdade 136 páginas 34,00 reais
Poetas franceses da Renascença Mário Laranjeira (org.) Martins Fontes 136 página 30,80 reais
Arte, crítica e mundialização Mariza B. e Verônica S. (orgs.) ABCA/Imprensa Oficial 248 páginas 35,00 reais
Escrevendo pela nova ortografia José C. de Azeredo (coord.) IAH/ Publifolha 136 páginas 19,90 reais
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CINEMA
Um poema contínuo O filme Geração 65 – aquela coisa toda reconstrói a trajetória do movimento literário valorizando a palavra e suas possibilidades poéticas na montagem Fernando Weller
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os dias de hoje. O grupo de entrevistados é composto pelos escritores Ângelo Monteiro, Domingos Alexandre, Esman Dias, Fernando Monteiro, Jaci Bezerra, José Carlos Targino, José Mario Rodrigues, José Rodrigues Paiva, Lucila Nogueira, Marco Polo Guimarães, Marcus Accioly, Raimundo Carrero, além da referência à memória de Maximiano Campos e, principalmente, Alberto da Cunha Melo (cujos poemas são ditos pelos companheiros e admiradores durante quase todo filme). A trilha sonora é toda com músicas da lendária banda Ave Sangria, que tem como principal compositor e vocalista o poeta Marco Polo Guimarães. Luci Alcântara traça o percurso da Geração 65 abordando inicialmente o descobrimento do chamado Grupo de Jaboatão pelo crítico literário e “pai” da geração, o poeta César Leal, que publicou os primeiros poemas no Diario de Pernambuco e editou os primeiros livros na
editora Estudos Universitários da UFPE. Fala-se, ainda, do papel de Eloi Melo como editor de Lírica e das Edições Pirata, já nos anos 80. Mas o assunto que predomina é o dos encontros literários que marcaram a geração em lugares do Recife como o Bar Savoy, o Teatro Popular do Nordeste e a livraria Livro 7. A idéia de fazer o longa acompanhava a cineasta desde 2000. Luci acumulou um vasto material de pesquisa e dedicou-se a um trabalho delicado de escuta e seleção, tanto dos relatos dos entrevistados, como da sua produção literária. O resultado da pesquisa é um filme extremamente sensível à fala dos entrevistados e com um foco preciso no conjunto da produção literária do grupo de escritores. Geração 65 não se perde em relatos de caráter pessoal. Quem fala no filme não são os poetas, mas a própria poesia, através dos poetas. Luci resgata uma unidade da geração na montagem minuciosa
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documentário Geração 65 – aquela coisa toda, primeiro longa-metragem da cineasta Luci Alcântara, estréia este mês, no Cinema da Fundação em sessão para convidados. Autêntico representante de uma tradição documental que aposta no discurso dos entrevistados como condutor da narrativa, Geração 65 reconstrói a trajetória do movimento literário valorizando a palavra e suas possibilidades poéticas na montagem. Trata-se de um rico panorama da safra de escritores surgidos nos anos 60 e que marcaram definitivamente a cena cultural pernambucana. O filme reúne 12 escritores que participaram diretamente do movimento, além de outros poetas, críticos e colaboradores. Acompanhamos os relatos dos encontros literários, políticos e, sobretudo, etílico-fraternais que resultaram numa intensa produção artística, viva até
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dos diversos trechos de poemas recitados ao longo do documentário. Misturados aos relatos de caráter mais histórico, os poemas costuram a narrativa do filme. O que é admirável em Geração 65 é essa delicadeza com que Luci monta todos os fragmentos, formando o que parece ser um grande e contínuo poema. A escritora Lucila Nogueira é uma das que defendem no filme a existência de uma identidade da Geração 65, embora não baseada em uma unidade estilística. Tal identidade se daria através de um “mundo compartilhado” pelos poetas, o mundo da boemia recifense, dos conflitos políticos de um país em plena ditadura militar e da efervescência cultural que reinava na época. Jomard Muniz de Brito define o movimento como uma “pluralidade de dicções” unida por um “desejo de criar uma linguagem”. Na mesma direção, o poeta e ficcionista Fernando Monteiro fala sobre a “atmosfera” da geração como uma relação de intercâmbio e troca literária. Mas a frase que melhor define o espírito do grupo é dita pelo poeta Ângelo Monteiro: “A melhor forma de se conhecer, nessa época, era conhecer-se através do outro”. Essa parece ser a preocupação central da cineasta. A escolha por não pessoalizar demais as falas é um dos grandes méritos do filme de Luci e que foge ao lugar-comum
do filme documentário baseado em entrevistas. Embora cada personagem revele um estilo próprio, o que se destaca é o tema maior da literatura e do encontro. Não há nostalgia ou saudosismo nos depoimentos dos entrevistados, algo que poderia estar presente, caso Luci apostasse nos discursos de intimidade. Ao contrário, o filme todo é permeado por uma vitalidade que reflete o próprio movimento literário. É nessa convivência fraternal de diferentes estilos e formas de perceber o mundo que a geração de poetas de 65 encontrou a sua identidade. O que define a geração, em resumo, é justamente “aquela coisa toda”, frase que insiste na fala de Jaci Bezerra e que acabou se tornando subtítulo do filme. Como explicar, afinal, “aquela coisa toda”? Destaca-se, ainda, em Geração 65 o encontro dos poetas Marco Polo Guimarães, Ângelo Monteiro, Raimundo Carrero, Marcus Accioly, Esman Dias, José Mario Rodrigues e Domingos Alexandre no Bar Central, em uma das seqüências que procura reviver os debates literários do grupo na mesa de bar. Outro belo momento no filme se passa no Teatro Apolo, quando Raimundo Carrero interpreta poesias no palco. Geração 65 deve seguir agora o calendário de festivais em Pernambuco, no Brasil e no exterior para, em seguida, ser lançado no circuito comercial.
Da esquerda para a direita: Ângelo Monteiro, Domingos Alexandre, Esman Dias, Jaci Bezerra, Marco Polo, José Mário Rodrigues e Raimundo Carrero
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CINEMA Bonecos de barro ganham vida em Até o sol raiá, de Fernando Jorge e Leandro Amorim, premiado no Animamundi 2007
Pernambuco animado
O cinema de animação vive um bom momento no Estado, buscando inspiração em elementos da cultura popular nordestina
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onsiderado a oitava arte, o cinema de animação é o gênero que compreende o desenho animado, a animação de bonecos, de fotos e a recente animação computadorizada. E o Brasil já tem motivos para comemorar: nos últimos anos, o gênero tem se desenvolvido bastante no país, graças, entre outros fatores, ao constante surgimento de festivais de cinema e a crescente participação dos produtores brasileiros em mostras estrangeiras. Tudo isso tem estimulado o surgimento de artistas independentes, e os pernambucanos estão em evidência. O Estado vem se destacando nesses festivais por meio de curtas-metragens que revelam o potencial dos produtores
Edmilson Sousa locais, além de celebrarem a diversidade cultural pernambucana. Uma prova disso é I Festival Internacional de Cinema de Animação de Pernambuco – Animage, que acontecerá entre os dias 25 e 30 de novembro. “O Recife abriga hoje uma significativa produção na área de animação. Faltava um festival genuinamente pernambucano para estimular ainda mais os criadores”, diz Antônio Gutierrez, idealizador e diretor do Animage. Mas não é a primeira vez que o Estado sedia um importante festival especializado no gênero. Em 1987, foi realizado o I Encontro Nacional do Cinema de Animação de Olinda, coordenado por Lula Gonzaga, cineasta que afirma ter sido aquele encontro o
embrião do Animamundi, considerado o mais importante festival brasileiro na área. Muito antes dessa nova safra de produtores aparecer, Lula já produzia animação, com obras como A saga da asa branca, curta-metragem de 1979 que ilustra a condição de vida dos nordestinos, unindo referências locais à animação. Entre 1995 e 1998, seu estúdio foi instalado em Igarassu para a produção do filme Igarassu (um relato da história do Brasil a partir desta cidade). O curta foi realizado através de uma oficina que Gonzaga coordenou com alunos da rede pública municipal que trabalharam desde a criação do roteiro até a produção dos milhares de desenhos artesanais.
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A produção atual tem múltiplas faces. Uma delas dialoga com elementos da cultura popular. Os filmes A moça que dançou depois de morta, O coronel e o lobisomem e A árvore do dinheiro bebem na fonte da literatura de cordel. O primeiro, dirigido por Ítalo Cajueiro e Elvis Kleber, foi produzido em parceria com o renomado cordelista J.Borges, autor da história e das xilogravuras que, dispostas em série, compõem o curta de animação de 11 minutos. O coronel e o lobisomem, dos mesmos cineastas, é narrado no estilo de cordel, por meio da musicalidade do repente, mas possui uma estética visual marcada pela computação gráfica. Em 1997, os cineastas resolveram produzir uma animação de forma autoral, unindo computação gráfica de ponta com algum elemento da cultura brasileira; a dúvida era qual seria o elemento trabalhado. Ítalo é pernambucano de Vitória de Santo Antão e, embora tenha saído de lá muito novo (mudou-se para Brasília em 1975), sempre passou férias na terra natal. Conheceu a literatura de cor-
del pelas idas à feira com seu avô, a força das gravuras e a poética de suas histórias sempre chamaram a sua atenção. “A literatura de cordel é um grande patrimônio cultural brasileiro. Percebemos que suas características poderiam ser aproveitadas em uma adaptação para o audiovisual, pois o cordel possui histórias belíssimas, narradas em forma poética; ela possui também um acervo imagético inspirador nas ilustrações de suas capas, além da musicalidade do repente. Roteiro, imagem e som, tudo em uma mesma manifestação popular.” A árvore do dinheiro, com roteiro e direção de Marcos Buccini, é outro curta que se utiliza da estética gráfica e narrativa do cordel. O enredo do filme gira em torno da história de um rapaz pobre que se apaixona por uma moça rica, num enredo místico e num contexto tipicamente nordestino. Bonecos de barro ganham vida na obra Até o sol raiá, de Fernando Jorge e Leandro Amorim. Os diretores uniram dois ícones do imaginário popular em um só lugar: Mestre Vitalino e Lampião. O curta foi produzido em computação grá-
fica 3D com impressionante nível de foto-realismo. O enredo começa quando o bando de cangaceiros, modelado no barro, ganha vida. A partir daí, é forró e tiro para todo lado. A Fundarpe iniciou, em agosto de 2007, o projeto Desenhando culturas: Cinema de animação, um curso profissionalizante na área de animação voltado para jovens estudantes de escolas estaduais localizadas no bairro de Santo Amaro, Recife. Segundo as coordenadoras Mirian Pires e Raquel Lacerda, o projeto é mais que um curso técnico, tem uma proposta de formação cidadã, pois, além das disciplinas técnicas, os alunos têm aulas de história da cultura pernambucana, português, inglês. Em pouco mais de um ano, já tem aluno planejando, por iniciativa própria, a criação de outros projetos sociais envolvendo o cinema de animação. Possivelmente, os alunos irão integrar um estúdio com a marca Desenhando culturas: Cinema de animação, uma empresa qualificada para oferecer serviços ao mercado.
SERVIÇO I Festival Internacional de Cinema de Animação de Pernambuco – Animage, de 25 a 30/11, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco e no Sítio da Trindade. www.animagefestival.com
Igarassu, produzido por alunos da rede pública com orientação de Lula Gonzaga; ao lado, A árvore do dinheiro, com roteiro e direção de Márcio Buccini
Confira a programação do I Festival Internacional de Cinema de Animação de Pernambuco e assista aos curtas Igarassu e A árvore do dinheiro www.continenteonline.com.br
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Tango nova geração Depois de passar por um período morno, o tango reaparece no cenário internacional com uma roupagem diferente Liana Gesteira
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encontro entre dois. Um diálogo à meia-luz. Um convite a ocupar os espaços vazios deixados pelo movimento do outro. Dessa forma, o tango toma corpo e despeja seu rastro de elegância e sensualidade nos bailes do mundo. De origem controversa, com registros de seu surgimento no Uruguai, na Argentina e até no Brasil, o tango é, indiscutivelmente, um símbolo tradicional da cultura portenha. A partir da década de 70, é difundido e apreciado pelo resto do mundo e, após uma época de certo ostracismo, ressurge no cenário internacional com uma nova roupagem. Com a chegada do século 21, brota um novo encontro do tango: os acordes melódicos do bandoneon e as batidas pulsantes da música eletrônica. O grupo argentino Narcotango é um dos expoentes dessa nova expressão. Em 2000, o compositor e guitarrista Carlos Libedinsky se propõe a criar uma ponte entre a tradição do tango e o novo século. Em seu CD Aldeia global, de 2001, compõe sua primeira faixa de tango eletrônico com a música Trance tango (baseada na canção Duo de amor, de Astor Piazzolla, e em uma versão eletrônica de Mi Buenos Aires querido). Em 2003, Libedinsky lançou
o CD Narcotango, dando nome ao novo grupo. À mesma época, no Hemisfério Norte, surge uma outra iniciativa musical de tango eletrônico: o grupo Gotan Project. Formado por músicos de diferentes nacionalidades (argentino francês, suíço), o encontro aconteceu na França, em 1998, e desembocou no lançamento do primeiro single Vuelvo al sur, em 2000, seguido do CD La revancha del tango, em 2001. Seguindo essa mesma tendência musical, nasceu o Bajofondo Tango Club. Apesar de constituírem uma carreira mais recente, esse grupo de músicos uruguaios e argentinos já se tornou bem-conhecido pelos brasileiros, por causa da música Pa bailar con Julieta, tocada na abertura da novela A favorita da Rede Globo. A dança não ficou de fora desse processo, e também foi contaminada pelas novas influências. O tango passou a ser tema de diferentes criações artísticas. Em 2003, a Mimulus Cia. de Dança, de Minas Gerais, montou o espetáculo De carne e sonho, um trabalho que respeita as origens da dança de salão, transcendendo as suas tradições. A trilha sonora do espetáculo incluiu músicas do Gotan Project, de Pixinguinha, de Astor Piazzolla e Vivaldi, que foram executadas ao vivo pelo Quinteto Dialeto. Outro exemplo é o trabalho
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do grupo paulista de dança contemporânea Raça Cia. de Dança, que recentemente levou ao palco o espetáculo Tango sob dois olhares, com direção de Roseli Rodrigues.
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As novas propostas de encontros artísticos contribuíram para disseminação do tango na nova geração. Segundo o fundador do Instituto Brasileiro do Tango, Paulo Araújo, essa renovação musical e artística aproximou os jovens dessa expressão. “Muitos jovens começaram a se interessar em aprender o ‘tango dança’. Atualmente, em minhas oficinas, 90% do público são de pessoas entre os 20 e 30 anos”, revelou o dançarino, que há duas décadas ensina tango em diferentes cidades do mundo. Para a bailarina e professora recifense, Luciana Cavalcanti, o sur-
gimento e proliferação do tango eletrônico também se refletiram no aprendizado do tango, localmente. “O jeito de dançar ficou mais fluido, valorizou-se o desenrolar dos passos, os movimentos ficaram mais sinuosos”, avalia Luciana, que, há 10 anos, ensina dança de salão. Segundo a professora, o número de alunos mais jovens também proliferou. A renovação, entretanto, é motivo de polêmica para os mais tradicionalistas. O discurso do desvirtuamento do tango, enquanto manifestação cultural, é o argumento principal no coro dos contrários a essas novas tendências. O professor e coreógrafo Paulo Araújo admite que exista certa resistência, mas acredita que o cenário contribuiu para reacender o interesse da sociedade pelo tango. “O jovem toma contato com a música e com a dança e depois passa a se aprofundar no aprendizado. O surgimento de um ‘novo tango’ é importante, porém deve ser uma porta
para que a pessoa entre em contato também com a essência dessa cultura”, pondera. No livro Introdução a uma poética da diversidade, o antropólogo e escritor Edouard Glissant elucida algumas das inquietudes presenciadas a partir do contato de diferentes culturas. “Como ser si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir ao outro sem perder-se a si mesmo? Essa é a questão que as culturas das Américas propõem e ilustram”, afirma. Glissant diz que o interessante é promover uma valorização mútua das culturas, a partir do contato de elementos heterogêneos, para que não haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura. O filósofo também chama a atenção para os perigos de um discurso baseado no conceito de identidade original, a partir de uma raiz única. “Essa visão da identidade se opõe à noção hoje ‘real’ nas culturas compósitas, da identidade como rizoma, da identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes”, provoca.
Narcotango (acima) e Bajofondo Tango Club: expoentes da nova safra que mistura tango e música eletrônica
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Paulo Araújo, fundador do Instituto Brasileiro do Tango, vai ministrar oficinas em Recife
Para Paulo Araújo, o encontro é justamente o elemento motor que rege o tango. “Como professor, procuro dotar as pessoas de consciência e liberdade, para a dança ser um diálogo e não um monólogo. O tango estimula a verdade de cada um, dentro de seu limite e sempre escutando o outro. Às vezes as pessoas se fecham em código, em passos predeterminados, e o tango não flui”, alega. “O tango se desenvolveu na Argentina, mas teve sua semente plantada em diversas localidades. Não se pode fazer um clone do que se dança em Buenos Aires. Em cada lugar o tango deve ser dançado de acordo com o contexto, com os humores e as peculiaridades do local”, diz ainda o coreógrafo. Em busca de novos diálogos, Paulo Araújo vai estar em Pernambuco para ministrar uma ofi-
cina durante a 3º Semana do Tango no Recife. Em sua segunda visita a cidade, o carioca se disse admirado com a fertilidade artística e com a forma de se movimentar do recifense. “O Recife tem algo particular, pois as pessoas souberam mesclar o tango com suas características culturais. Eu vi isso se manifestar de forma muito clara no movimento das pessoas dançando”, afirmou. Em sua nova visita, Paulo Araújo espera expandir os espaços do tango na cidade e promover mais um lugar imprevisível de encontros.
SERVIÇO 3ª Semana do Tango no Recife, de 19 a 22/11. Oficina: Diverso Espaço Cultural (Praça de Casa Forte, 505 - Casa Forte). Baile: AABB ( Rua Dr. Malaquias, 204 - Aflitos). Informações e ingressos: 81.3265.0286
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O discurso do desvirtuamento do tango, enquanto manifestação cultural, é o argumento principal no coro dos contrários a essas novas tendências
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CÊNICAS
Um lugar na multidão Os pernambucanos Jorge Garcia e Ângelo Madureira batalharam e se firmaram com trabalhos autorais na maior cena de dança contemporânea nacional
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Christianne Galdino
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uando falamos em mercado de trabalho no campo das artes, o impasse entre autonomia e sobrevivência aparece automaticamente. Lidar com essa questão no universo da dança contemporânea parece uma árdua tarefa, talvez por se tratar de uma realidade de natureza “líquida”, um lugar de constante construção, desconstrução e reconstrução de discursos e conceitos. Conquistar notoriedade, desenvolvendo um trabalho autônomo e independente, então, é um desafio para poucos. Os pernambucanos Jorge Garcia e Ângelo Madureira, destaques da nova geração de criadores da dança contemporânea, percorreram caminhos distintos, mas enfrentaram dificuldades semelhantes quando na década de 90 trocaram o Recife por São Paulo, e encontraram uma multidão de artistas buscando “um lugar ao sol” na mais populosa praça da dança contemporânea do Brasil. “A inserção no mercado é muito difícil, principalmente porque aqui em São Paulo tem muita coisa acontecendo simultaneamente o tempo todo. Não é fácil para ninguém, não existe um jeito fácil”– comenta Madureira, que, este ano, junto com sua esposa e parceira Ana Catarina Vieira, entrou pela segunda vez na seleta lista de melhores do ano da
Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA. Em 2003, a dupla já havia recebido o prêmio revelação em dança. Agora, na seleção de os melhores de 2007, os críticos de dança da APCA criaram uma categoria exclusivamente para eles, o prêmio Percurso de pesquisa. Também escolhendo o caminho autoral, Jorge Garcia criou em 2005 a J. Garcia & Cia – Dança Contemporânea, depois de ter participado com o bailarino Marcelo Bucoff do projeto de criação coletiva P.U.L.T.S – Por um lugar tão sonhado. “Sempre achei difícil trabalhar sozinho. Senti necessidade de defender as minhas idéias em dança, mas mesmo na companhia continuo optando por um processo colaborativo”, conta Garcia. Ele passou pelas danças de salão e foi através da capoeira que acabou entrando na Compassos Cia. de Dança, no Recife, em 1992. Iniciada a trajetória como bailarino contemporâneo, rapidamente passou a desenvolver também o seu lado criador, assinando coreografias para escolas, academias e para os profissionais do (na época, recém-fundado) Grupo Experimental. Já completamente dedicado à dança, aceitou o convite da sua professora de balé clássico, Fátima Victor, e mudou-se para Ribeirão Preto, interior de São Paulo, rumo à profissionalização. Pouco tempo
depois estava atuando como bailarino da Cisne Negro Cia. de Dança, na capital paulista, de onde saiu quando foi contratado para integrar o elenco do Balé da Cidade de São Paulo. Sobre esse período, Garcia conta que: “Trabalhávamos sempre com coreógrafos diferentes. Mário Nascimento, Ivonice Satie, Ismael Guizer foram alguns deles. E essa diversidade acaba desenvolvendo a versatilidade dos intérpretes, que eu acredito ser uma característica essencial para quem quer ser artista. Ao mesmo tempo, as experiências tão diferentes de criação me fizeram entender o que é realmente meu no movimento, qual é a minha dança”. Atualmente, J. Garcia & Cia – Dança Contemporânea, uma das companhias contempladas com a Lei Estadual de Fomento à Dança de São Paulo, trabalha na produção de Cabeça de Orfeu, com estréia prevista para o primeiro semestre de 2009. Mais uma vez a diversidade se faz presente, desde o processo de preparação dos bailarinos. Garcia foi beber nas mais variadas fontes, da capoeira angola até a arte marcial aikidô, passando por diversas técnicas de dança contemporânea, na tentativa de construir um movimento “mais visceral, mais sentido e menos representado”, perseguindo o que ele chama de “verdade cênica”.
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CÊNICAS Heudes Regis/Divulgação
O nome científico da formiga, novo espetáculo de Ângelo Madureira
Ainda quando dançava no Balé da Cidade de São Paulo, Garcia coreografou algumas obras para o próprio elenco do grupo, como Divinéia e Desatino do norte, desatino do sul; até que não foi mais possível conciliar as atividades no Balé e sua crescente produção independente. Apostando na carreira autoral, mergulhou na pesquisa de movimentos com sua companhia e descobriu o “gosto pelo acaso” na criação. Foi desse interesse pela improvisação, e inspirado no universo dos palhaços do início do século 20 e do cinema mudo, que surgiu Um conto idiota, espetáculo mais conhecido da companhia. Mantendo uma relação de aproximação constante com a cidade, Ângelo Madureira já conseguiu trazer ao Recife quase todos os espetáculos do seu repertório
autoral, frutos da parceria com Ana Catarina Vieira. Somtir, Outras Formas, Clandestino e o documentário em cena Como? participaram dos principais eventos de artes cênicas de Pernambuco. Mesmo assim, Madureira ainda sente um estranhamento por parte do público e dos artistas locais em relação à pesquisa de linguagem em dança que desenvolve. Talvez, por isso, ele alimente o desejo de passar uma temporada mais longa no Recife com o objetivo de construir um espetáculo em colaboração com bailarinos e coreógrafos da cidade. “Tenho vontade de fazer um trabalho de formação e intercâmbio com os profissionais da dança. Pergunto-me sempre: ‘Como seria trabalhar essas outras formas de dança popular que pesquisamos com as pessoas do
Recife?’ Não sei se seria mais fácil ou mais difícil do que em São Paulo, onde nosso trabalho está se consolidando há algum tempo. Acredito que esse diálogo criativo seria muito interessante e produtivo”, aposta Ângelo Madureira, que acaba de fazer uma série de apresentações na Croácia, levando, além das obras, um projeto intitulado A Casa do Outro. Como todas as produções dele, essa proposta é permeada por um forte discurso político. Quando os artistas participantes mostram continuamente suas performances – cada um em um cômodo da casa –, está implícito, entre outros questionamentos, que existem muitas formas para se montar e mostrar uma obra, não há um modelo único nem um único lugar. Essa é uma ação que sugere a
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Sílvia Machado/Divulgação
De cima para baixo: os pernambucanos Jorge Garcia e Ângelo Madureira
No mais recente espetáculo, O nome científico da formiga, ainda inédito no Recife, Ângelo Madureira e Ana Catarina Vieira mergulham fundo na sua pesquisa de linguagem, produzindo uma dança cada vez mais híbrida, a partir de um minucioso estudo baseado em 1800, com fotografias de todos os espetáculos do seu repertório. Ao mesmo tempo, a discussão sobre liberdade vem à tona novamente, alertando para o risco de homogeneização da dança e para as novas formas de censura, as prisões da contemporaneidade. “A gente não quer se prender, investimos em misturas e buscamos parceiros em diversas áreas que também tenham essa intenção e disposição para experimentar relações de mestiçagem. Nossa história é prova de que um diálogo entre diferentes pode ser fértil e dar bons resultados”– diz Madureira, referindo-se à formação em balé clássico da sua esposa e parceira e às danças populares – vivenciadas por ele nos tantos anos de atuação no Balé Popular do Recife, que são a base da sua movimentação. Propositadamente, O nome científico da formiga provoca um múltiplo “encontro de clássicos”. Picasso, Chaplin, Duchamp e Gene Kelly entram cena, dialogando com a poética dos corpos dos intérpretes e abrindo um mar de desdobramentos e leituras possíveis. O que há de comum entre os clássicos, o que os liga? Que combinações a dança pode fazer a partir daí?
Heudes Regis/Divulgação
urgência da dança em encontrar e ocupar os espaços que lhe pertencem, expandido a noção de liberdade geralmente associada à arte contemporânea.
Será que o frevo tem alguma referência da clássica cena do musical Cantando na chuva, estrelada por Gene Kelly? Existe mesmo liberdade de criação na dança contemporânea? Eis algumas perguntas que O nome científico da formiga vai deixando escapar, enquanto oferece inúmeras metáforas para nos fazer pensar na realidade da dança e seus sujeitos. O espetáculo levantou tantas questões, que surgiram idéias para duas produções futuras. A primeira delas, batizada de O animal mais forte do mundo, vai ser financiada através da Lei de Fomento à Dança de São Paulo e estréia no começo do próximo ano. Mas Madureira acre-
dita que está errado quem espera por um edital ou prêmio para poder realizar seus projetos artísticos. “Se for assim, você acaba ficando escravo de qualquer instituição ou situação. Já vi muita pesquisa consistente e muito artista talentoso se perder no meio do caminho por acreditar que estratégia de sobrevivência é se adequar às tendências, aos editais e festivais. Se você tiver uma proposta séria, não se deixar levar pelos modismos e for persistente, a sua vez vai chegar. É uma questão de descobrir que espaços têm a cara do seu trabalho e ocupá-los. Mas, acima de tudo é uma questão de crença, de acreditar no que você faz.” NOV 2008 • Continente x
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José Cláudio
matéria corrida
O flagrante sem retoque da pintura de Maurício Arraes
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erminei a coluna anterior prometendo continuar os auto-retratos comparados de Cervantes, meu, de Bocage, mas, como disse o amigo Luiz Arrais, matérias há que têm aniversário, caso desta, ficando a continuação dos autoretratos para a próxima matéria corrida, pelo visto nem tão corrida assim. Vejo aqui um pequeno texto sobre Maurício Arraes escrito por mim em 1981. Conhecera-o em 1978, ele regressando da França com 22 anos e, se de adulto tivesse pouco tempo, na pintura alcançara amadurecimento completo como se nascido pronto e sabendo desde sempre onde queria chegar; e, a essa altura podemos confirmar, 30 anos depois, sem dúvidas nem hiatos nem reticências nem titubeios. O que eu disse naquela época se mantém, o que é novidade, pois duvido que uma coisa que eu tivesse dito há tanto tempo pudesse permanecer, até sobre mim mesmo; e outra novidade é que ele nunca se repetiu, como se, a cada quadro, descobrisse o Brasil de novo, nessa capacidade inesgotável de nos ver. Veja trechos do que escrevi em 1981. “De fato quando me apareceu um dia aqui Maurício mostrando-me alguns trabalhos senti-me jogado no meio da ação como se ele propusesse uma opção para a minha pintura numa área em que até certo ponto me achava isolado, que era a da investigação do real, e vi que diante dele, da crueza de suas imagens, o meu olho ainda estava anuviado por evocações idílicas, sonhos de paraíso perdido e imaginário, eu sendo levado a eliminar da realidade o que nela me parecia acréscimo ou interferências desagradáveis; dando, por exemplo, à figura humana, um destaque que não existe no barbarismo e irracionalidade da vida de hoje seja na rua ou dentro das casas, no bar ou no campo, em que o ser humano escorraçado não tem, moral, material ou visualmente, a
importância de um sinal de tráfego ou mesmo de uma caixa qualquer de lixo ou telefone, e até um novo tipo de aro de pneu ou calota merece mais espaço no mundo e nas mentes do que a criatura humana.” E: “O pincel que pinta uma cara é o mesmo que pinta o vazio; e as cores não guardam nenhum sentido de hierarquia, seja uma fruta ou uma lata, um beiço de gente ou um meio-fio, esteja no primeiro ou último plano, perto ou longe”. Vale também citar: “Às vezes, para dar idéia de volume, apenas espicha a tinta, que se torna mais rala, mas isso também acontece sem tal necessidade; não lhe importando, ao encher uma área, que ela seja plana ou tenha relevo, possivelmente tudo dependendo de uma maior ou menor quantidade de tinta daquela cor à mão na paleta, com uma total indiferença mesmo por esse cuidado elementar de qualquer um dos mortais que é a combinação de cores. Para Maurício as cores são porque são, são-no em si, sem atender a nenhuma lógica combinatória ou composicional; tendo elas com a realidade somente o compromisso da irracionalidade do seu aparecimento como assim de fato as encontramos na superfície do planeta e não em alguns recantos prediletos com que os pintores eventualmente se encantam resolvendo perpetuá-los na lembrança que é o quadro. Não há para Maurício tais recantos prediletos. Para ele feio e bonito são iguais. As cores são taxativas sem titubeios nem meios-termos. Tem-se a impressão de que, terminado o quadro, jamais voltará este à sua mente para uma reavaliação ou o que seja, cena que se vê e esquece”. Fernando Monteiro diz: “Ainda não vi nenhum crítico de arte fazer a aproximação que me parece a mais iluminadora, em se tratando de Maurício Arraes: a da sua pintura vivaz, atenta e participativa, com o universo de Bajado, esse mestre primitivo que, na minha opinião,
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Ele nunca se repetiu, como se, a cada quadro, descobrisse o Brasil de novo, nessa capacidade inesgotável
Mulheres na praia, acrílica sobre tela, Maurício Arraes, 2008
divide o panteão naïf brasileiro com José Antônio da Silva (a quem Maurício também poderia ser aproximado, honrosamente, mesmo como pintor não primitivo, no rigor da classificação)”. Pois não é, ilustre amigo Fernando, que eu já tinha tocado no assunto, mesmo sem ser crítico de arte? “Porque no fundo ele é um primitivo do tipo daquele bárbaro de A Laranja Mecânica que curtia Beethoven.” E: “Ele morde a realidade como um cão danado que descobriu que a vida – único bem a que fomos reduzidos – não vale um tostão. É o pintor da fugacidade, do reles, do vulgar e feio, do prosaico que vai eliminando o homem a começar pelo que está em redor, de modo a que não possamos mais nos reconhecer, não por drama subjetivo, mas pela corrosão vinda de fora arrancadonos a pele e com ela a alma aos farrapos”. De lá, de 1981, para cá, 2008, muita coisa andei escrevendo, que sou dado à prática, meu violino de Ingres, pensando em mim, pensando no Brasil, aquele “quem somos” de Gauguin que nos ocorre às vezes, e
um dos artistas a cuja obra recorro, me dando base, me dando tranqüilidade para trabalhar, olhando sua grafia, entrando na temática dos seus quadros, seus chãos de asfalto ou terra seca e poeira, seus ambientes de periferia, seus brasis, é Maurício Arraes. Há pouco dizia: “Pintem, ‘fotografem’ o Brasil. Procurem-no com todos os sentidos, atento, como um estrangeiro recém-chegado aqui” (“Aos que não entraram nos ‘enta’ ”, Suplemento Pernambuco, fevereiro/2008). Pois bem: essa apresentação de 1981, de que reproduzo alguns parágrafos, tem o titulo de “O estritamente real, fotografável”. E isso a gente pode dizer, sem medo, da pintura de Maurício Arraes porque jamais poderá ser confundida com fotografia embora seja tão confiável como um flagrante sem retoque. Roberto Pontual diz: “Entende-se que as pinturas de Maurício Arraes queiram colocar-se nesse ponto intermediário entre deslumbramento e indagação”. A que eu acrescento, sem muita convicção, indignação. NOV 2008 • Continente x
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Atenção:Bienal A 28ª Bienal de São Paulo, que começou no mês passado e durará 42 dias, faz uso da idéia do vazio para refletir sobre sua história, seu formato e, principalmente, sobre o seu papel no mundo contemporâneo Mariana Oliveira 48 x Continente • NOV 2008
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az tempo, a forma de se entender os museus, as bienais e as mostras de arte vem sendo questionada. Concebidas em outros tempos, algumas instituições artísticas vivem uma crise de identidade nesse princípio do século 21. Além de exibir, guardar e legitimar as obras, teriam elas algum outro papel na atualidade? Nas páginas seguintes, trazemos à tona as discussões sobre o formato da Bienal de São Paulo, que, este ano, pára para repensar seu modelo calcado no século 19. Ao mesmo tempo, mostramos a luta pela desconstrução da idéia de museu como mausoléu, parado no tempo, e a necessidade de entendê-lo como um agente de mudança social. Destacamos ainda as instituições privadas que, com boas verbas, conseguem realizar projetos de qualidade que movimentam e legitimam a produção contemporânea, fomentando o cenário artístico.
Parte do pavilhão da Bienal, projetado por Oscar Niemeyer, e ocupado pelo vazio
em quarentena NOV 2008 • Continente x
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á cerca 50 anos, o artista francês Yves Klein inaugurava a exposição O vazio, na Galeria Iris Clert, em Paris. Klein retirou todo o mobiliário do espaço, pintou todas as paredes de branco, inclusive a vitrine, e abriu as portas para os três mil convidados da avant première. Albert Camus esteve na exposição e escreveu no livro de presença: “Com o vazio. Poderes totais”. Este ano, é a Bienal de São Paulo que pretende trabalhar “os poderes do vazio”. A instituição, um aparelho fundamental na história da arte brasileira, pára, entra em quarentena, com o objetivo de repensar sua função na contemporaneidade. A proposta dos curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen é dar uma pausa para a reflexão, repensar o próprio modelo da Bienal, sua condição atual, e as novas alternativas para as mostras de arte. Desde julho, um ciclo de conferências debate a crise do formato e da instituição, que tem relação com a perda da credibilidade da Fundação Bienal de São Paulo e de seus dirigentes, envolvidos em problemas financeiros e denúncias de má gestão. Ao todo, participaram das 27 edições da exposição 10 mil artistas, de 148 países, com 56 mil obras. Em
1951. É inaugurada a 1a Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, trazendo pela primeira vez ao país obras de René Magritte, Pablo Picasso, entre outros.
2006, foram 136 artistas de 55 países – agora (2008) serão 40 de 20 nacionalidades. O térreo do pavilhão desenhado por Niemeyer recebe os trabalhos dos artistas convidados; o segundo andar está esvaziado, “oferecendo ao visitante uma experiência física da arquitetura do edifício”; o último está ocupado pelo arquivo histórico Francisco Matarazzo (centro) durante a primeira Bienal, 1951 os que crêem ser possível discutir a da própria instituição, com docuquestão do vazio através de obras, mentos, registros, livros e catálogos não sendo preciso esvaziar parte do da própria Bienal e de outras seespaço. O que parece claro é a nemelhantes espalhadas pelo mundo. cessidade urgente de repensar esse Com o título oficial Em vivo contaformato baseado nas exposições to, a mostra foi inaugurada no dia universais do século 19 que, hoje, 26 de outubro e ficará em cartaz por no mundo contemporâneo, já não 42 dias, até seis de dezembro, tempode ser repetido como uma fórpo exato de uma quarentena. mula imutável. Desde o anúncio do projeto da Este não é o primeiro momen“Bienal do Vazio”, artistas, críticos to crítico da instituição. Durante os de arte e curadores expressaram seus quase 60 anos, houve vários cisuas opiniões: alguns defendendo clos marcados por crises. “A Bienal que a Bienal nem se realizasse, oude São Paulo entra em crise quando tros argumentando que os curadoela perde o seu foco traçado lá nos res estão fazendo o melhor possível anos 50. Na década seguinte, a Funnuma situação caótica; há também
1957. Artistas consagrados, como Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti, não participam da mostra diante da polêmica em torno dos critérios seletivos
Cronologia
1959. Embora ainda fosse ligada ao MAM, a exposição passa a se chamar Bienal de São Paulo. 1953. Conhecida como a “Bienal da Guernica”, a exposição é transferida para prédios projetados por Niemeyer, no Parque Ibirapuera. 1955. É inaugurado o Arquivo Histórico da Bienal.
1961. A última Bienal vinculada ao MAM. 1963. Já instituída como uma fundação autônoma, a Bienal passa por mudanças estruturais. É criada a Assessoria de Artes Plásticas da Fundação.
1965. O artista pernambucano Cícero Dias é homenageado com uma sala especial. 1967. A inserção das correntes artísticas mais radicais da arte contemporânea e o recrudescimento dos aparatos repressivos do governo geram uma Bienal tensa. 1969. Em protesto à censura no país, é organizado um boicote internacional à 10a Bienal.
1971. As comemorações em torno dos 20 anos da Bienal culminariam numa edição retrospectiva, autolaudatória. Forma-se um grupo de discussões sobre uma possível reformulação para a Bienal. 1973. A Bienal passa a receber o auxílio do Conselho de Arte e Cultura, criado a partir das discussões de 1971. 1975. Após mais de 20 anos, Ciccilo Matarazzo renuncia à presidência da Bienal.
1977. As propostas passam a ser inscritas independentemente dos padrões de suporte e modalidades clássicas. 1979. É extinto o Conselho de Arte e Cultura. Surge a figura do curador, que demarcará, nos anos seguintes, um novo formato para as exposições. 1981. Sob os auspícios de Walter Zanini, a 16a Bienal seria marcada pelo término do boicote internacional à exposição. 1983. Ainda dom Zanini, 17a Bienal se destaca pelas performances
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Vista da Bienal de São Paulo de 1957, que trouxe 933 artistas estrangeiros de 49 países
dação Bienal passa a se comportar burocraticamente. Sem um projeto de base, ela passa a se preocupar em produzir, a cada dois anos, um evento internacional de arte. Sem compromisso efetivo com a arte e a cultura do país”, afirma o crítico e curador Tadeu Chiarelli. A 1ª Bienal de São Paulo abriu suas portas no dia 20 de outubro de 1951, com 1.854 obras, representantes de 23 países, funcionando nos moldes da Bienal de Veneza. O evento era uma realização do Museu de Arte Moderna (MAM), fundado em 1948, por Francisco
simultâneas realizadas por membros do grupo Fluxus e pela sala especial dedicada à obra pioneira de Flávio de Carvalho. 1985. Sheila Leirner assume a curadoria da Bienal da Grande Tela, cujo foco recaía nas correntes neo-expressionistas em voga na época..
1987. Com o tema Utopia versus Realidade, a Bienal aprofunda as
Matarazzo, que visitara a exibição italiana e decidira empreender no Brasil aquela que seria a segunda bienal do mundo. A pretensão era alargar os horizontes da arte brasileira, até então isolada em seu próprio universo. Para o crítico Mário Pedrosa, o evento “proporcionou um encontro internacional em nossa terra, ao facultar aos artistas e ao público brasileiros o contato direto com o que se fazia de mais ‘novo’ e mais audacioso no mundo”. Tal proposta norteou os anos iniciais. Era clara a necessidade de estabelecer um diálogo entre a produção artística brasileira e a inter-
questões e proposições com relação às correntes pós-modernas de crítica e realização artística.
lendário. Programada para 1993, a mostra estrearia em outubro de 1994.
1989. Gera grande polêmica o anúncio de que, além de voltar a selecionar as obras por país, a Bienal voltaria a outorgar prêmios.
1996. Esta seria a mais cara Bienal realizada até então, com orçamento estimado em 12 milhões de reais.
1991. Ficou conhecida como “a Bienal que desmontou”, pela sua frágil estrutura organizacional, acentuada pela ruptura entre os curadores João Cândido Galvão e Jacob Klintowitz.
1998. Paulo Herkenhoff institui a Bienal da Antropofagia, norteada pelo conceito-chave do modernismo paulista.
1994. Pela primeira vez, a Bienal de São Paulo atrasava o seu ca-
nacional. A exposição de 1953 pode ser considerada um marco. Foram reunidos grandes nomes: Paul Klee, Georges Braque, Marcel Duchamp, Picasso (51 telas, incluindo a Guernica). Assim, a Bienal conseguiu inscrever o Brasil no calendário artístico internacional. “O significado dessa edição da Bienal, para muitos, ainda hoje a mais importante de todas e a que mais impacto exerce sobre a arte e a cultura brasileiras, ainda está aberto”, destaca a crítica Aracy Amaral. Pouco tempo depois, a instituição passou por seu primeiro momento de inflexão: sua desvinculação do MAM. Diante do brilho da Bienal, o Museu passou a ser ofuscado, atuando num papel secundário, como operacionalizador do evento a cada dois anos. A proposta de dar vida própria às instituições levou à bipartição, em 1963. Agora, a Bienal era autônoma, separada do seu museu “pai” que, como previram, não resistiu e terminou fechando. Nos anos que se seguiram, a Fundação Bienal de São Paulo, comandada por Matarazzo, levou adiante a proposta iniciada em 1951. A mostra de 1969 ficou conhecida como a “Bienal do boicote”. Depois da decretação do AI-5, o meio artístico nacional e interna-
2001. Em meio a uma crise instituída, com o adiamento da 25a edição da Bienal, realiza-se uma exposição comemorativa aos seus 50 anos. 2002. Nova crise institucional se instaura, culminando em novo adiamento da mostra, inaugurada em março, com curadoria de Alfons Hug . 2004. Com o tema Território livre – Terra de ninguém, a 26a edição da Bienal institui a gratuidade do acesso e bate recorde de público, com mais de 900 mil visitantes. O pernambucano Paulo Bruscky
recebe uma sala especial, onde tem o seu ateliê remontado nas dependências da Bienal.
2006. Com curadoria geral de Lisette Lagnado, a 27a Bienal dá grande ênfase ao projeto educativo da exposição, comandado pela museóloga e arte-educadora Denise Grinspum, visando à democratização do acesso ao conteúdo da mostra. NOV 2008 • Continente x
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ESPECIAL menta de Kassel), com um público que beirava as 500 mil pessoas. A exibição, que deveria ter sido realizada no ano 2000, terminou sendo adiada para 2001, com o foco voltado para os 50 anos da Bienal, prestando uma homenagem a Matarazzo. A sensação de crise de modelo e proposta volta a ser um tormento, com a desqualificação feita pelos críticos e a perda de público que, naquele ano, preferiu lotar uma megaexposição sobre o Antigo Egito. Em 2002, o curador alemão Alfons Hug decretou o fim das
mostras históricas, responsáveis por trazer obras de artistas consagrados do passado. Era a hora de trabalhar com a arte contemporânea. Na esteira das mudanças, em 2004, ainda sob o comando de Hug, os trabalhos foram distribuídos por suporte nos três andares do pavilhão e o público pôde, pela primeira vez, entrar gratuitamente. A Bienal tornou-se a exposição de arte contemporânea mais visitada do mundo, recebendo mais de 900 mil pessoas. Nos outdoors da cidade, a publicidade associava a questão do choque que a arte contemporânea A indiana Sarnath Banerjee está apresentando Dispatches from the city of no U-turns no pavilhão da Bienal
Sarnath Banerjee/Divulgação
cional juntou forças e, num tom de protesto, optou por não participar da 10a edição, que terminou resumida à exibição de obras de pouquíssimos países, com ausência clara dos principais artistas brasileiros. O horizonte era crítico. A Bienal sobreviveu à década de 70 debaixo de duras críticas, que apontavam sua decadência. A revista Manchete publicava: “Embora em declínio, a Bienal ainda é o maior certame de arte das Américas”. Houve a promoção de discussões que tratavam dos problemas vividos pelas grandes exposições, nos moldes da Bienal de São Paulo e Veneza e da Documenta de Kassel. Este ano, voltamos a viver essa crise, ainda que de maneira distinta. Na entrada da mostra de 1973, uma instalação anunciava: “A Bienal está em obras”. Estava. Em 1975, Matarazzo deixava a coordenação do evento, instaurando a “Era dos curadores”. Desde então, são eles que traçam o perfil do evento, às vezes, fazendo dele uma obra em si, já sem um foco específico como antes. A 15a Exposição, em 1979, foi marcada por essa idéia de retrospectiva e de uma Bienal que pretende se rever. A bienal das bienais foi em busca de artistas que já haviam passado pelos salões, para apresentar novas obras, estabelecendo uma linha evolutiva dos seus 28 anos. Na seqüência, Walter Zanini assumiu a curadoria, ajustando o foco e contribuindo sensivelmente na abertura de espaços para a arte contemporânea. Sheila Leirner, Paulo Herkenhoff e Nelson Aguilar foram alguns dos curadores que coordenaram as exposições. A Bienal recuperava sua reputação, logrando, por exemplo, que mais de 50% dos custos fossem financiados por empresas privadas, tornando-se a exposição de arte mais cara do planeta (12 milhões de reais em 1996, superior aos 10 milhões da Docu52 x Continente • NOV 2008
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provoca à novidade da gratuidade do ingresso (“A gente vai chocar você logo na entrada”). A Bienal tornava-se um parque de diversões, repleto de visitantes “chocados” e pouco conscientes do ato cultural que praticavam. “A maioria do público que freqüenta a Bienal de São Paulo é meninada de escola, que é levada compulsoriamente para lá. São turmas e turmas, com dezenas de alunos de cada vez. As últimas vezes em que fui à Bienal, em dia de semana, não havia viva alma. Para algumas famílias, virou passeio de domingo. Divertem-se muito, riem
muito”, afirma Ferreira Gullar. Em 2006, a Bienal conseguiu agradar à crítica, mas seguia a mesma linha grandiosa dos anos anteriores. Começava a se desenhar nitidamente a idéia do teórico francês Yves Michaud, para quem o universo da arte atual é formado essencialmente por eventos, e não por obras. O caráter espetacular domina os grandes eventos artísticos, nos quais o sucesso passa a ser “medido” pela afluência do público e não pela profundidade da relação que se estabelece com as obras, nem sempre de grande qualidade. As exposições terminam A vídeo projeção da performance Weightless days e o trabalho Duas máquinas (abaixo), do grupo brasileiro O Grivo, fazem parte da Bienal deste ano
caracterizando-se como confusas, ruidosas e midiáticas. No cenário contemporâneo, as bienais encontram certa “concorrência” nas feiras de arte (onde galerias e artistas expõem obras com o objetivo de comercialização), como a ARCO em Madri ou a SP Arte em São Paulo, cada vez mais em alta. Sem um norte definido, as bienais, que deveriam buscar uma interação mais profunda com seu público, distante do mercado, terminam se diferenciando muito pouco das feiras. “Hoje, o mercado vem tomando o lugar do debate sobre arte. Ou melhor, vem se tornando “o” debate. Neste sentido, para muitos (mas não para todos, felizmente), as feiras de arte assumem o papel que antes ocupavam as bienais”, argumenta Chiarelli. Então, qual seria o lugar da Bienal hoje? Essa é a grande questão que deve permear os salões do Ibirapuera este mês. Ao invés da grandiloqüência de público e de obras, a pausa para um momento de reflexão dentro de um vazio simbólico. A proposta é a de uma Bienal de pequenas dimensões, poucas obras, sem excursões escolares agendadas aleatoriamente, nas quais a visita seja feita de forma mais individual, menos massificada. Há muito, a Bienal de São Paulo pedia uma proposta nesses moldes, com um objetivo reflexivo que, espera-se, faça uma sensível diferença nas bienais do porvir. Quiçá a reformulação da instituição aponte a necessidade proeminente de formar o público, mostrando que democratizar a cultura e o acesso às artes não se faz apenas promovendo eventos com entrada gratuita. Uma possível reorientação da Bienal poderia democratizar não só o acesso físico às obras contemporâneas, mas também o acesso intelectual, oferecendo ao público mais que um passeio num parque de diversões. NOV 2008 • Continente x
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A arte dentro A arte contemporânea, antes marginal e antiinstitucional, vem tornando-se a cada dia o principal foco de centros culturais privados que se espalham pelo país Olívia Mindêlo
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nquanto a capital paulista recebe a 28ª Bienal de São Paulo, consagrada como um dos mais importantes eventos de artes visuais da América Latina, a capital carioca abriga, desde outubro, uma exposição de grande porte no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), chamada Nova arte. A empreitada no Rio de Janeiro, a priori, é semelhante àquela que percorre os andares do Pavilhão do Ibirapuera: mostra ao público o que os artistas plásticos andam fazendo no terreno contemporâneo. A coletiva do CCBB volta-se a um panorama da “nova geração de artistas brasileiros”, através da exposição de 200 obras assinadas por 60 nomes de 14 Estados do país. Independentemente das formas distintas como ambas as iniciativas se organizam, existe um componente profundo por trás do respaldo da realização dessas exposições chamado ins-ti-tui-ção. Cada vez mais, a difusão, o fomento, a própria sustentabilidade da arte contemporânea estão ancorados em
marcas como o CCBB, o Itaú Cultural, por exemplo, cuja tarefa, por trás do mostrar, é também designar ao público o que se entende por arte – formar um olhar apto a entrar no “jogo”. As instituições culturais são legitimadoras por excelência e alcançaram tanta amplitude no país que é difícil conceber o artista e sua obra, hoje, sem o aval delas. É evidente, portanto, que existe um mérito institucional, sobretudo se levarmos em conta o modelo de gestão que os centros culturais do Brasil desenvolveram no apoio continuado à produção mais experimental, em suas diversas expressões. Os artistas ganham, o público também. Não por acaso, uma exposição como essa do CCBB ocupa todos os espaços expositivos do prédio no Rio, onde se espera uma média de oito mil visitantes por dia. No entanto, antes de reconhecermos esse trabalho, é preciso entender que, se as instituições deram certo nas últimas décadas no Brasil, é porque se tornaram peçaschave de uma ampla rede, na qual
a arte se sustenta. Afora isso, um componente mercadológico entra em cena: as instituições se nutrem da arte como forma de construir uma imagem atrelada ao marketing das empresas, curiosamente bancos – em sua maioria. São justamente as iniciativas culturais mais preocupadas com o valor simbólico de suas propostas que vêm fazendo história na construção de uma política de apoio às artes, incluindo as visuais, no país. Por mais irônico e paradoxal que possa parecer, muitas instituições se colocam em pé de igualdade ao papel desempenhado por equipamentos públicos, na missão de alavancar a produção artística. E isso vale, sobretudo, para a contemporânea, que depende muito mais das ações institucionais – editais, exposições, mapeamentos, prêmios, salões etc. – para sobreviver. O próprio processo de “desmaterialização” da arte torna a definição do valor artístico muito mais complexa. A figura do marchand foi substituída pela do curador, que trabalha não venden-
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das instituições
do obras, como outrora, mas agenciando idéias diretamente com as instituições, que custeiam o projeto do artista. Se na década de 70 criadores como Paulo Bruscky e Hélio Oiticica pregavam uma posição marginal e antiinstitucional da arte, hoje o cenário é bem diferente. É tanto que o próprio Bruscky, depois de ter sido preso por realizar intervenções urbanas no período da ditadura, hoje nos dá um depoimento como este: “Os centros têm sido uma das salvações, principalmente para os jovens artistas. Os tempos mudaram, os anos são outros. Hoje você pode entrar na instituição e fazer a implosão. Antes não podia. As pessoas que dirigem as instituições hoje são mais abertas. No passado, elas eram dirigidas por pessoas que tinham cargos só por política, não tinham o menor conhecimento da área”. O Itaú Cultural é um exemplo lembrado pelo artista pernambucano como um dos mais importantes do país, sobretudo no que diz res-
Ai ntervenção do artista Jeims Duarte no Instituto Cultural Banco Real
peito ao mapeamento da produção nacional, função atualmente mais vinculada ao programa Rumos Itaú Cultural, criado há 11 anos com o objetivo de pesquisar talentos emergentes pelo Brasil. Na área das artes visuais, é uma das âncoras da instituição desde 1999, além de ser uma das ações mais disputadas pelos artistas que, claro, buscam um
lugar ao sol. Este ano foram 1.617 inscritos de todos os Estados, dos quais uma comissão curatorial selecionou 45 nomes (individuais e coletivos) para compor uma exposição no Itaú Cultural no próximo ano, afora um catálogo e outros materiais de divulgação do projeto. A maioria dos artistas mapeados pelo Rumos Artes Visuais, nas suas três NOV 2008 • Continente x
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Transestruturas, de Maria Hsu, participou de mostra no Santander Cultural
edições, obteve projeção em suas carreiras, conquistando, inclusive, o mercado internacional. Está aí a prova do carimbo institucional. O trabalho de pesquisa para a reunião de dados, na verdade, se confunde com a própria abertura da instituição paulistana ao público, em 1989, quando passou a disponibilizar um banco com informações sobre a pintura brasileira nos séculos 19 e 20, a fim de estimular o uso das tecnologias que começavam a surgir. O serviço voltado inicialmente a professores e alunos de escolas acabou gerando uma demanda por cursos, depois por vídeos e cadernos, que se tornavam fontes de pesquisa e preservação de memória. Hoje, basta clicar www. itaucultural.org.br na internet para ter acesso gratuito à Enciclopédia de Artes Visuais, cujo banco informativo, criado em 2001, reúne três mil verbetes, com a história de artistas, grupos ou movimentos, além de 12 mil imagens e informações sobre
obras, museus, eventos e conceitos da arte brasileira. São 250 mil acessos por mês, de acordo com Eduardo Saron, superintendente de Atividades Culturais do Itaú, cuja sede é na Avenida Paulista. Saron chega a comparar a trajetória da instituição no país com a do Ministério de Cultura (MinC), por exemplo, já que este último foi criado apenas dois anos antes do Itaú Cultural, em 1985. Na visão do gestor, a consolidação do espaço tem a ver com um trabalho “sério e bem-feito”, desenvolvido pela instituição ao longo desses 21 anos – realizado não só para agregar valor à marca, para ele a conseqüência, não a causa de uma ação. É por isso que espaços mais respaldados como o Itaú Cultural primam tanto por uma equipe especializada na área, que saiba lidar com os melindres da gestão cultural. Para Yara Kerstin, responsável pelo setor de artes visuais da instituição, a atuação bem-sucedida
dos centros no país tem a ver com a continuidade do trabalho e dos projetos, fator no qual o setor público encontra maior dificuldade, haja vista a troca de poderes e interesses políticos num curto tempo. Por isso, o debate em torno de uma política pública de cultura permanente, na esfera federal, prioritariamente, está na ordem do dia dos gestores e produtores do país. Poderíamos considerar ainda que as instituições culturais privadas, ou mesmo o CCBB e a Caixa Cultural (ligadas a bancos públicos), dispõem ainda de uma verba maior do que grande parte dos equipamentos do governo, nas suas diferentes instâncias. O Itaú Cultural, por exemplo, teve R$ 38 milhões no ano passado para executar suas ações, enquanto a Pinacoteca do Estado de São Paulo somou R$ 14,6 milhões. Só para se ter uma idéia, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), um dos mais importantes
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Renda, de Lívia Moura, e Mina, de Rodrigo Braga, (abaixo) fazem parte da exposição Nova Arte, no CCBB do Rio de Janeiro
Atentado, de Eduardo Srur, fez parte do projeto Rumos Artes Visuais, do Itaú Cultural
da América Latina, obteve receita de quase R$ 7 milhões, em 2007, quando comemorou 60 anos, o equivalente a pouco menos da metade da receita do MAM-SP, espaço privado que também comemora 60 anos este ano. Não é à toa que uma das principais batalhas atuais do MinC é conseguir aprovar uma lei que garanta 1% do orçamento da União à área de cultura. Poderíamos dizer também que os centros gozam de uma maior “flexibilidade para gastar recursos”, como coloca Cristiana Tejo, diretora do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), administrado pela Prefeitura do Recife com receita anual de cerca de R$ 200 mil. Há, pois, menos burocracia nesses centros, mas convém notar que eles também trabalham, ainda que nem precisem, com dinheiro dos cofres públicos, haja vista os editais feitos com base na Lei Rouanet, do MinC. Na verdade, essas instituições não chegam para anular o poder público, mas para serem somadas ao cenário, às vezes preenchendo, sim, algumas lacunas das administrações públicas. Liliana Magalhães, superintendente do Santander Cultural, em Porto Alegre, define este momento como uma “grande união de forças”. A ordem é multiplicar parcerias. A gestora não vê disparidade em relação ao envolvimento dos bancos com a cultura, visto que são agentes sociais que podem atuar em prol da comunidade, de forma coletiva e respeitosa. De acordo com ela, há três tendências de atuação no campo da economia da cultura no país. A primeira é “beneficente” e trata o apoio como caridade; a segunda é “oportunista”, enxerga as isenções fiscais das leis de incentivo como NOV 2008 • Continente x
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ESPECIAL trampolim para a própria empresa; e uma terceira corrente seria puramente comercial. Liliana diz que há ainda uma nova tendência, para a qual o setor converge cada vez mais: a “desenvolvimentista”, que vê a cultura como agente de desenvolvimento. Trata-se de um modelo adotado pelo Santander Cultural desde a sua fundação em 2001, na capital gaúcha. A opção pelo associativismo, o diálogo freqüente com a comunidade, incluindo o respeito à sua diversidade, parece ser o caminho da instituição para alcançar seu objetivo desenvolvimentista e um respaldo nacional. Mesmo apostando em uma programação diversificada, como os demais centros brasileiros, as artes visuais, sobretudo de linguagem contemporânea, têm sido o foco de atuação do Santander nesses sete anos. Basta acessar o site oficial de-
les para perceber isso. A opção tem a ver com uma pesquisa realizada com a população gaúcha, que sinalizou, antes de o centro abrir as portas, uma demanda por exposições na área. O espaço amplo do prédio, com cerca de 2 mil m², e sua arquitetura de estilo neoclássico contribuíram também na decisão pelo norte expositivo da instituição, cujo compromisso é promover o diálogo com a produção atual, além de reflexão, através de seminários, palestras e workshops, em torno dela. Aliás, a atuação dos centros é muito bem-amarrada por ações paralelas como essas, complementadas ainda por publicações. Até agora, foram quase 20 mostras contemporâneas realizadas no Santander, entre elas a recente exposição Transfer_cultura urbana. arte contemporânea. transferências. Transformações, que refletiu
A instituição em xeque Há algum tempo o papel das instituições é questionado por artistas em suas obras
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m 1913, Marcel Duchamp teve a idéia de prender uma roda de bicicleta num banquinho para observá-la girar. O artista coletaria, nos anos subseqüentes, um outro tanto de objetos que, retirados do seu contexto ordinário, sem critérios estéticos definidos, ganhariam nova carga semântica, passando a ser concebidos como obras de arte. Contudo, seria apenas em 1915, já nos EUA, que ele cunharia o termo ready-made para designar tais objetos. Em 1917, Duchamp submeteu ao salão organizado pela Sociedade nova-iorquina de Artistas
Independentes, sob o pseudônimo de R. Mutt, um urinol, invertido, com o título: A fonte. Os jurados receberam-na com um misto de perplexidade e ultraje, diante daquilo que pressupunham ser uma piada de mau gosto. Gerou-se um malestar, que culminou com a não-exposição da obra. Quatro décadas mais tarde, uma postura semelhante seria adotada por Nelson Leirner, naquilo que o artista caracterizou como “o happening da crítica”. Em 1967, Leirner envia para o 4º Salão de Artes de Brasília um par de obras designadas
sobre a arte urbana. A instituição mantém ainda uma parceria com a Bienal do Mercosul, sediando o evento que se consolidou no calendário nacional como uma das ações mais importantes de artes visuais da América do Sul. A visitação média do Santander Cultural é de cerca de 1.300 pessoas por dia. Mesmo sete vezes menor do que a freqüência do CCBB do Rio de Janeiro, por exemplo, a instituição gaúcha se tornou um dos principais agentes culturais do país. E isso deve muito à forma como foi erguido, em parceria com a população. As artes visuais, nesse caso, apresentam-se como protagonistas do processo. São as particularidades dos modelos de gestão que distinguem a contribuição de cada uma. Algumas focam no mapeamento, outras na pelo título Forma e Matéria – uma das quais consistia num porco empalhado, posto num engradado com uma corrente em volta de si, na ponta da qual havia um pernil defumado. Selecionado, o artista publicaria uma nota no Jornal da Tarde, na qual questionava: “Qual o critério dos críticos para aceitarem esse trabalho no Salão?”. À interpelação eminentemente retórica de Leirner seguiram-se as respostas dos críticos envolvidos, igualmente através de veículos de massa. Nelas, especificavam-se não apenas os critérios adotados na análise da obra referida, como os caminhos trilhados pela crítica no decorrer do século 20, a partir do advento das vanguardas européias. Críticos das mais diversas correntes aderiram ao debate, dando-lhe maior dimensionamento e acirrando ainda mais as tensões entre as alas mais “progressistas” e conservadoras da crítica de arte brasileira. (Yuri Bruscky)
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reflexão e no debate, algumas mais na exposição, mas todas dispõem de departamentos competentes de marketing para desempenhar um trabalho efetivo em sociedade, e que também dê retorno à marca. O CCBB é um desses exemplos bem-sucedidos. Completa 20 anos em 2009. O primeiro, inclusive, foi o carioca. Em seguida, veio o de Brasília (2000) e, depois, o de São Paulo (2001). É uma iniciativa consolidada, com grande aceitação da população. Para Lourivaldo de Paula Lima Júnior, gerente executivo da Diretoria de Marketing e Comunicação do Banco do Brasil, o compromisso com o público, sobretudo o “respeito à sua capacidade crítica”, foi uma das chaves para a consolidação dos CCBBs. “Também consideramos que uma programação diversificada, plural, regular e de qualidade, baseada no compromisso sempre estreito com os diversos públicos, incluindo artistas, produtores, técnicos e patrocinadores, são fundamentais”, reforça o gerente. No CCBB, as exposições quase sempre são de grande porte e primam pela excelência. No geral, incluem artistas consagrados, mesmo quando a linguagem é mais experimental. Até os iniciantes entram
com a embalagem do aval curatorial, como é o caso da Nova arte, sob a curadoria de Paulo Venâncio Filho. É no mínimo intrigante que tenha partido do centro uma censura a uma das obras da artista plástica Márcia X, em 2006. Ela teve um quadro retirado da exposição Erótica – os sentidos da arte, por apresentar dois pênis desenhados com as “linhas” de um terço. A ação do Banco do Brasil, motivada por protestos religiosos, gerou indignação a uma parcela da sociedade. O banco garante que foi um caso isolado e que respeita a livre expressão. De toda forma, não deixa de ser um sinal de que a arte contemporânea não está longe de ameaçar a imagem da instituição. E de que a liberdade da arte é, de certa forma, uma concessão institucional. Carlos Trevi, coordenador do Instituto Cultural Banco Real, no Recife, explica que a natureza polêmica faz parte da arte contemporânea e a instituição tem que acreditar no trabalho do artista. Segundo ele, até agora os artistas do projeto Contemporâneos Pernambucanos, instalado na Galeria Marcantonio Vilaça, não “extrapolaram os padrões expositivos” – ou seja, não apresentaram riscos à imagem da instituição.
Como o Banco fala para um público jovem, a iniciativa tem correspondido bem à sua imagem e já está na segunda edição. O projeto é inspirado nas ações do patrono da galeria e tem promovido nomes locais nacionalmente, através de mostras individuais no espaço, com direito a catálogo e o olhar de um curador convidado. Artistas como Rodrigo Braga e Bruno Vieira, que atuam no Recife, já passaram por lá. Além do Contemporâneos Pernambucanos, o Instituto está finalizando sua reserva técnica “visitável”, para dar acesso às 120 obras da Coleção Marcantônio Vilaça, herdadas do colecionador e galerista pernambucano, cujo trabalho no país foi apostar em linguagens de ruptura. Outras instituições como a Caixa Cultural, ou mesmo as unidades do Sesc, em São Paulo, sobretudo, também têm apostado na linguagem contemporânea em suas programações. Mas aqui essa aposta não tem sido tão expressiva. De uma forma ou de outra, quanto mais fortalecidas as instituições, mais sustentabilidade terão os artistas, e o cenário artístico como um todo. Resta saber até que ponto o apoio que concedem não deixa tão refém quem também precisa pensar no outro lado do “jogo”: o da criação.
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Museu em campo ampliado A idéia dos museus como mausoléus da arte vem sendo substituída pela discussão sobre seu papel como agente de mudança social e desenvolvimento Fernanda Lopes
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ntrar no Museu da Maré é encontrar um pouco da memória e da história impregnada em casas, ruas e moradores de uma região ainda pouco conhecida pelos cariocas como Complexo da Maré, conjunto formado por 16 comunidades ao longo da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. Os meninos e meninas que
fazem parte da equipe de monitores do Museu nasceram, foram criados ou moram na Maré e mostram com orgulho as fotos expostas nas paredes. Através delas é possível ver o desenvolvimento da região, desde a ocupação das áreas alagadiças do entorno da Baía de Guanabara, com as famosas palafitas, cantadas na música Alagados (1986) pelos Paralamas do Sucesso, até
os dias de hoje, quando a região, habitada por mais de 132 mil pessoas, segundo senso realizado em 2000, já tem o status de bairro, passando a se chamar Bairro Maré. O acervo conta a história da comunidade através de fotografias, documentos, e objetos do cotidiano, doados pelos próprios moradores da região. “A história da Maré vai se formando a partir desses agentes que Fotos: Reprodução
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são protagonistas dessa história”, aponta Luiz Antonio de Oliveira, um dos coordenadores do museu. “Se no início da história dos museus nós tínhamos instituições voltadas para a terceira pessoa, ou seja, museus preocupados em falar do outro, do diferente, do distante, hoje, como uma conseqüência dessa nova museologia, encontramos museus interessados na primeira pessoa, como instituições formadas pela comunidade para falar de si mesmas”, aponta Mario Chagas, coordenador técnico do Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Demu/IPHAN). Esse é o primeiro museu em favelas do Rio de Janeiro. Inaugurado em maio de 2006, é resultado da parceria entre o governo federal e o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), que desde 1997 mantém atividades de ensino e cultura na região. Entre os visitantes estão não só moradores da região, muitos deles indo pela primeira vez a um museu, como também moradores de outras áreas da cidade e até de outros países. “Desenvolvemos um trabalho com a memória há 15 anos, mas só com o museu ele teve impacto na comunidade. Isso mostra a força de um instrumento como o museu”, afirma Cláudia Rose Ribeiro da Silva, coordenadora da Rede Memória. “O museu abriga um patrimônio que é local, mas que também contribui para a construção do patrimônio universal e tem que ser preservado”, completa. A criação do Museu da Maré, assim como outros como o Museu Capixaba do Negro (ES), o Memorial do Imigrante de São Paulo (SP), e o Museu do Homem do Norte (AM), retomam a discussão da função social dos museus – um desafio enfrentado pelos museólogos há algum tempo. Há quase 40 anos, a área da museologia vivia um dos momentos
A Pinacoteca do Estado de São Paulo (nesta e na outra página) tem promovido ações para se aproximar das comunidades à sua volta
mais importantes de sua história. Em 1972 foi realizada em Santiago do Chile uma mesa-redonda organizada pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), em que, pela primeira vez, profissionais da área de diferentes países se reuniram para a discussão do papel dos museus na América Latina. O encontro, que ficou conhecido como “Mesa-redonda de Santiago do Chile”, é um dos
marcos da fundação de uma nova concepção de museologia, que tinha como uma de suas bases a integração dos museus à vida da sociedade, desempenhando um papel decisivo na educação, a partir da tomada de consciência da realidade e da comunidade onde está inserido. E a discussão continua atual. Prova disso foi o 3° Fórum Nacional de Museus, realizado no mês de NOV 2008 • Continente x
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julho, em Florianópolis. O evento, organizado a cada dois anos pelo Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN, tem o objetivo de refletir, avaliar e estabelecer diretrizes para a Política Nacional de Museus e para o Sistema Brasileiro de Museus. Nesta edição, profissionais de museus, museólogos, historiadores, antropólogos, artistas, arqueólogos, sociólogos, educadores, professores, secretários estaduais e municipais de cultura, agentes culturais, estudantes e interessados no assunto, reuniram-se para discutir o tema “Museus como agentes de mudança social e desenvolvimento”. A troca de experiências entre a comunidade museológica, sociedade civil, museus e órgãos de gestão museológica federais, estaduais e municipais teve como um dos objetivos delinear diretrizes para não apenas democratizar o acesso aos museus instituídos, mas também democratizar o próprio museu, compreendido como tecnologia e ferramenta de trabalho adequada para uma relação nova, criativa e participativa com o passado, o
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Memorial do Imigrante de São Paulo resgatou o debate sobre a função social dos museus
presente e o futuro. Com algumas variações, a palavra-chave de todas as conversas foi redefinição. Não só do papel dos museus na sociedade e na comunidade, mas também uma redefinição na sua atuação e de seus profissionais. Além do Museu da Maré, outra experiência apresentada durante o fórum foi a da Pinacoteca do Estado de São Paulo, um dos museus mais importantes do país, com um acervo de cerca de oito mil obras, do século 18 aos dias de hoje. O núcleo de ação educativa da instituição realiza ações divididas em três níveis diferentes de atuação: a individual, a comunitária e a social. Uma pesquisa realizada em 2002 revelou uma descontinuidade entre o que acontecia dentro e fora do museu, localizado na região do centro antigo de São Paulo, marcado por problemas sociais. A partir dessa pesquisa, foi identificada a necessidade de criar pontes de contato entre a instituição e seu entorno. Hoje, além de participar de iniciativas comunitárias na região, a Pinacoteca também desenvolve uma atuação educativa extramuros, onde os edu-
cadores vão até à comunidade e a levam para o museu. “Museus devem ser pensados como ferramentas de trabalho, como um meio, e não apenas como instituições”, concordou Mário Chagas, que citou a pesquisa “Imagens do Museu” realizada recentemente pelo departamento. O objetivo do levantamento feito entre estudantes do Ensino Fundamental II era investigar a maneira como as pessoas vêem e reconhecem os museus, mesmo que a maioria delas nunca houvesse entrado em um museu. “Nos primeiros anos de atividades do Departamento, nossa preocupação era ampliar o acesso das pessoas ao museu, aumentando a visitação a essas instituições. Agora já trabalhamos com a idéia de que contar visitantes é muito pouco. Precisamos transformar os museus em tecnologias sociais, ampliando o significado da palavra acesso”, explicou José do Nascimento Júnior, diretor do Departamento de Museus. “Não podemos ser inocentes. Nem tudo o que se faz em nome da cultura é de fato a favor da cultura. Temos que ser críticos em relação às políticas culturais e à nossa atuação.
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EXPOSIÇÃO Para sermos realmente agentes de transformação, devemos nos submeter a uma auto-análise de nosso papel, nossos objetivos e nossas práticas”, apontou Antonio Nicoulau. O diretor da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) participou do 2º Encontro IberoAmericano de Museus, também promovido pelo DEMU, que aconO Museu da Maré conta a história da comunidade através de fotografias, documentos e objetos do cotidiano doados pelos próprios moradores
teceu no mesmo período reunindo representantes dos 22 países iberoamericanos. “Muitos países podem aprender com o que tem sido feito e pensado aqui no Brasil”, completou Antonio Nicoulau, afirmando que o Programa Ibermuseus, uma rede integrada de museus ibero-americanos, é um canal através do qual será possível estender essa experiência a outros países.
Freyre e Ariano, uma travessia
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rte e literatura estão entrelaçadas em duas exposições simultâneas no Santander Cultural de Porto Alegre. Gilberto Freyre – Intérprete do Brasil e Ariano: Iluminogravuras, desenhos e o alfabeto armorial, iniciadas paralelamente à 54ª Feira do Livro de Porto Alegre, apresentam os universos dos dois escritores, cujas obras retratam literária, sociológica e pictóricamente as duas grandes áreas que compõem a região nordestina: a Mata e o Sertão. A de Freyre, parceria com o Museu da Língua Portuguesa, traz desenhos, pinturas, manuscritos originais de seus livros, documentos pessoais, fotografias, as primeiras edições de seus títulos e documentos originários de suas pesquisas. Já a de Ariano Suassuna foca a importância da linguagem gráfica e plástica do escritor dentro da sua trajetória artística, tendo como ponto de partida o estudo desenvolvido por ele em Ferros do Cariri – Uma heráldica sertaneja, 1974. Divulgação
SERVIÇO Gilberto Freyre – Intérprete do Brasil e Ariano: Iluminogravuras, desenhos e o alfabeto armorial De 31 de outubro a 15 de fevereiro Santander Cultural – Unidade Porto Alegre Local: Rua Sete de Setembro, 1028 www.santandercultural.com.br
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Ferreira Gullar
Necessidade vital
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pintura é uma linguagem que possibilita aos artistas inventar um mundo imaginário, criar significados e símbolos que só existem nessa linguagem, significados e símbolos que são ela, afinal. Destruí-la ou condená-la à morte é empobrecer a capacidade criadora do homem, já que as linguagens são alguns dos instrumentos de que ele dispõe para inventar-se como ser humano. Não me interesso pelo que se chama de “arte contemporânea”. Tenho visto, nesse campo, algumas coisas interessantes, mas, na sua maior parte, o que vi não me interessou efetivamente. Apesar disso, não considero que esse tipo de expressão deva ser excluído do mundo cultural. Nada disso. Acho que todas as buscas são válidas e, certamente, atendem a necessidades e interesses de outras pessoas que, diferentemente de mim, achamse expressadas nela. Porém, se o universo artístico de hoje é observado, o que se vê é a marginalização – para não dizer exclusão – de todo tipo de arte, dita “superada”, em favor das manifestações ditas “contemporâneas”. Os pintores e gravadores, a cada dia, têm mais dificuldade de expor suas obras, uma vez que as instituições culturais, na sua maioria, as excluem de seu programa de exposições. A culpa disso não cabe aos artistas contemporâneos e, sim, aos diretores de tais instituições que só se interessam por aquilo que, a seu ver, é “novo” e “atual”. Tratase, na verdade, de um preconceito, nascido da tradição vanguardista que predominou na arte do século 20. A vanguarda teve um papel importante na ampliação da expressão artística. Graças aos movimentos de vanguarda, a partir do Cubismo, abriram-se novos campos para a criação artística, ampliaram-se as possibilidades expressivas. Não obstante, alguns de seus princípios teó-
ricos fundavam-se em equívocos e, um deles, era a convicção de que tais movimentos significavam um “progresso” da arte. Esse conceito de progresso ou evolução foi introduzido na conceituação artística pela visão dos tempos modernos, marcados pela evolução tecnológica e conseqüentemente mudanças da sociedade e dos instrumentos de que o homem moderno se valeu. A sociedade mudou rapidamente, a partir da Revolução Industrial, as cidades cresciam e se transformavam, com o surgimento de novos meios de transporte e intensa atividade urbana. Tudo contribuía para impor à mente das pessoas a idéia de que a mudança e a modernização eram valores fundamentais na nova idade. Assim, como a técnica evolui, a arte também deve mudar e evoluir. Daí que o conceito de evolução tornou-se parte integrante da concepção artística atual. A própria palavra vanguarda indica isso, ou seja, a arte de vanguarda é aquela que mostra uma evolução estética, está adiante das demais. Exemplo disso é a afirmação de Piet Mondrian, no manifesto neoplasticista (l917), quando afirma que a expressão do movimento De Stijl era o ponto mais avançado que a arte atingira, dando a entender que toda a produção artística, desde o seu começo até aquele momento, ocorrera para chegar ao Neoplasticismo. Na verdade, a arte muda, não evolui. A arte muda porque a sociedade muda, a vida muda e exige novas formas expressivas, mas isso não significa, por exemplo, que a escultura de Rodin seja mais evoluída que a de Fídias. É diferente porque corresponde a novas necessidades surgidas com as mudanças sociais e culturais. Na verdade, o homem se inventa e inventa o mundo em que vive, tanto no plano prático quando no plano estético. Trata-se de uma complexa interação dos diferentes campos do conhecimento e da criação, na qual
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Trata-se de uma complexa interação dos diferentes campos do conhecimento e da criação, na qual a arte tem um papel específico, que é o de inventar uma realidade imaginária, um universo fictício, mas essencial à vida humana
Composição com azul e vermelho, Piet Mondrian, óleo sobre tela, 1929
a arte tem um papel específico, que é o de inventar uma realidade imaginária, um universo fictício, mas essencial à vida humana. Não por acaso, desde que surgiu no planeta, o homem começou a inventar-se e inventar esse mundo imaginário, que envolveu inicialmente as práticas mágicas e a arte, como mais tarde a tecnologia e a ciência. Ao longo dos séculos a arte desempenhou esse papel essencial e, em função disso, mudou de acordo com as necessidades humanas, tanto que não existe civilização sem arte. Como disse Mário Pedrosa, arte é necessidade vital. Não resta dúvida de que o desenvolvimento acelerado da tecnologia e da ciência provocou uma revolução de tal ordem na história humana como não havia ocorrido antes. Essa revolução mudou as relações do homem com a realidade, mas não respondeu a questões fundamentais nem eliminou necessidades essenciais a
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sua existência. A arte é, sem dúvida, uma delas. A arte tem mudado, como se sabe, no curso dos séculos, mas manteve seus valores fundamentais. A atitude antiarte é apenas a expressão de um momento de crise a que os artistas terão que dar resposta. Não sei qual será, mesmo porque, qualquer que seja, terão que inventá-la. NOV 2008 • Continente x
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PERFIL
Comunista até depois do fim O editor pernambucano que desafiou a ditadura militar publicando o pensamento de esquerda no Brasil sobrevive em São Paulo aos tempos neoliberais Marcelo Abreu
Fernando Mangarielo, dono da editora Alfa-Omega
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m 1979, o pernambucano Fernando Mangarielo era um dos editores de maior sucesso no Brasil. Dono da editora Alfa-Omega, especializada em publicações de esquerda, Mangarielo comandava em São Paulo uma equipe de mais de 20 funcionários e vendia milhares de livros aproveitando a abertura política. Seu maior sucesso, A ilha, de Fernando Morais, publicado três anos antes, estava nas listas dos mais vendidos. O editor era uma referência na esquerda brasileira e circulava com desenvoltura por feiras de livros em Berlim Oriental, Moscou e Havana. Publicava filosofia, ciência política, reportagens, Marx, Engels, Lênin, Mao, e relatos de viagens sobre os países do leste europeu.
atividade. O telefone toca, mas ele, sem interromper o que está dizendo, faz um sinal de que não vai atender. O telefone e as pequenas tarefas do cotidiano podem esperar, quando o assunto versa sobre suas paixões: o marxismo, a editoração de livros, o mundo das idéias e a importância do seu mestre e mentor, o filósofo armênio-brasileiro Jacob Bazarian. Agasalhado para a gelada tarde de julho, com um blazer sem gravata, usado sobre um pulôver, cachecol vermelho e luvas de lã, Mangarielo senta-se em um sofá e aciona a memória prodigiosa em datas e nomes. O cabelo grisalho, grande, repartido de um lado e o cavanhaque quase branco lhe dão uma aparência de intelectual da década de 70. No térreo e no primeiro andar há pilhas de livros por todos os lados. Caminhando pelas salas da editora, encontram-se caixas, pacotes, cópias com defeitos, capas
Em 2008, Mangarielo é um dinossauro assumido. Continua fiel ao marxismo. O tipo de livro que edita saiu de moda, mas, com as novas tecnologias de A queda do Muro de Berlim marcou impressão, consegue sobrevia derrocada das ver no ramo livreiro com peutopias igualitárias quenas tiragens direcionadas para faculdades. Só restou ele na Alfa-Omega. Ele e uma montanha de livros encalhados, mantidos em um porão escuro e empoeirado numa casa onde funciona a editora, em uma rua tranqüila do bairro de Pinheiros. Numa tarde de sábado, em São Paulo, Mangarielo rememorou a trajetória da editora, no seu bunker paulistano, com paredes forradas de livros, que é uma espécie de último bastião da palavra impressa de esquerda no Brasil. Aos 61 anos, o editor ainda se entusiasma ao falar de sua
separadas dos livros e cartazes de divulgação. No porão, uma montanha de livros de esquerda desafia a passagem dos anos e o interesse dos leitores. Em um espaço de 730 metros quadrados, estão cerca de 380 mil volumes editados ao longo dos últimos 35 anos por esse esquerdista empedernido que desafiou os militares com sua atividade de editar livros considerados subversivos na época da ditadura. Além de vivenciar os anos mais duros do regime militar, o editor acompanhou de perto a reabertura política, a queda do Muro de Berlim e o fim do socialismo real, com a conseqüente queda do interesse pelas obras de Lênin, Marx e tantos outros pensadores revolucionários que ele editava em tiragens de pelo menos três mil exemplares. Na Alfa-Omega, há também o Reprodução arquivo pessoal do filósofo Jacob Bazarian, armênio que imigrou para o Brasil quando criança e foi o mentor intelectual de Mangarielo, desde que este o conheceu, em 1967. Bazarian (1919-2003), autor de livros como O problema da verdade – Teoria do conhecimento e introdução à sociologia – As Bases materiais da sociedade, casou-se sete vezes, mas acabou deixando seus papéis com o amigo Fernando Mangarielo. São várias caixas com cartas antigas, fotos, livros, papéis em geral. Arquivo importante que o editor planeja doar para uma instituição de pesquisa. NOV 2008 • Continente x
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PERFIL Mangarielo nasceu e viveu no Recife até os 16 anos. “No Recife das mangas, como dizia Osman Lins”. Depois de uma passagem por Maceió, terra de sua mãe, chegou a São Paulo em 1965, com idéias hippies na cabeça, idéias que hoje considera “muito confusas”. Foi trabalhar numa fábrica de balanças. Logo em seguida, conheceu o marxismo, entrou na USP para estudar russo e armênio, travou contato com Bazarian e começou a trabalhar com livros na representação da editora norteamericana McGraw-Hill. Em 1968, estava no Cursp, o agitado conjunto residencial da USP, vendendo livros de Lênin. Era então conhecido como Fernando Moscou. Com o AI-5, acabou amargando 136 dias na cadeia. Solto, enveredou de vez pelo ramo dos livros e trabalhou em várias editoras. Em 1973, abriu a Alfa-Omega com o primeiro livro: A idéia republicana no Brasil através dos documentos, de Reinaldo Xavier Carneiro Pessoa. “Em 35 anos, não encontrei 2.500 alunos para comprar esse livro e conhecer os fundamentos da república brasileira. Tenho ainda
25 exemplares”, lamenta o editor. Seus maiores bestsellers foram da dupla Karl Marx e Friedrich Engels, cujos três volumes de Obras escolhidas de Marx/Engels venderam 100 mil exemplares, cada um. Os livros-reportagem, publicados em grande quantidade, também fizeram sucesso. Eles eram uma forma de escoar a produção jornalística mais independente e crítica dos anos 70, muitas vezes barrada pela censura nos jornais. “Aqui não havia censura”, relembra o editor. “O problema era a autocensura de quem escrevia”. Algumas vezes teve de esconder livros para evitar que fossem recolhidos pela polícia. A Alfa-Omega publicava todas as correntes de esquerda. “Só não gosto dos trotskistas”, afirma Mangarielo “Talvez seja a influência dos tratados políticos soviéticos, mas os acho muito verborrágicos. São especialistas na arte do apelo emocional da massa”. Pessoalmente, diz simpatizar mais com a linha do antigo PCB, mas nunca chegou a ser filiado. “Um editor não faz re-
volução. A pólvora do editor são as idéias que publica”. Hoje, considerase independente, mas defende, com restrições, o governo do PT. “Ruim com o Lula, pior sem o Lula.” O “ano de ouro” para a editora foi 1979. A reabertura política havia reacendido o interesse pelas idéias de esquerda, pela discussão sobre o socialismo. A Alfa-Omega recebia mais de 20 novos originais por mês, para escolher o que publicava. Fazia grandes lançamentos que reuniam várias correntes de oposição ao regime militar. “Era a frente ampla, isso aqui era um formigueiro.” Em 1984, passou a publicar a revista trimestral Socialismo e democracia, que durou 13 números, com artigos de importantes pensadores de esquerda da época, como o próprio Bazarian. Em 1985, publicou a primeira edição de Olga, de novo um bestseller de Fernando Morais, que vendeu 265 mil exemplares. Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, as vendas da editora despencaram e chegaram a apenas 4% do que haviam sido 10 anos antes. Livros sobre a Alemanha Oriental Reprodução
Monumento a Lênin e Marx na antiga União Soviética
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Mangarielo guarda nos porões da editora cerca de 380 mil volumes de obras socialistas
e relatos de líderes como Todor Jivkov, da Bulgária, tornaram-se, de repente, anacrônicos. Mas o editor não arredou pé de suas idéias. Hoje, caminhando pela editora, cada livro traz uma lembrança. Ao encontrar numa estante O messianismo no Brasil, de Maria Isaura de Queiroz, publicado originalmente em 1977, ele diz: “Um livro desses ninguém lê mais hoje em dia”. Perguntado sobre uma obra como Momentos da história do povo romeno refletidos na obra do presidente Nicolae Ceausescu (texto do então líder comunista da Romênia), de 1984, Mangarielo balança a cabeça com um ar triste: “Devo ter uns 600 exemplares desse aí”. Numa das maiores salas da editora, há uma bateria completa montada. Rock’n roll na Alfa-Omega? O editor se explica: “Enquanto eu for síndico do prédio onde moro, meu
filho Fernando, de 24 anos, não vai tocar lá. Então, ele vem com os amigos para ensaiar aqui, no fim de semana”. “Minha mulher diz que eu só penso em livros. Realmente, eu penso em livros o dia todo”. Mas a vida não é só feita de letras impressas no papel. Mangarielo circula por São Paulo em uma vistosa motocicleta Honda azul, de 150 cilindradas. Sempre irônico e freqüentemente brincalhão, conta que tem dois sítios fora de São Paulo, aos quais deu o nome de Perestroika e de Sanssouci (sem preocupação), inspirado em um palácio perto de Potsdam, na antiga Alemanha Oriental. Pessoalmente, o editor não passa a imagem de um marxista dogmático, mas sobretudo de um intelectual apaixonado pela divulgação do racionalismo científico. “Vou ganhar cabeças até o fim”, diz com
firmeza. Refletindo sobre a grande quantidade de livros no seu estoque, ele afirma que os volumes são “fruto de uma concepção tecnológica do passado”. Hoje, com a possibilidade de fazer pequenas tiragens em gráfica rápida, lança, às vezes, apenas 50 exemplares de uma nova obra, somente para os especialistas interessados. “Vi o livro mudar das grandes tiragens para as microtiragens”. Apesar de tudo, a Alfa-Omega ainda vende de 1.500 a 1.800 exemplares por mês, ou até mais em época de eleições. E investe em novos métodos de venda, como o aluguel e o download de obras pela internet. Seu estoque encalhado, todo de livros impressos no sistema tradicional, talvez nunca venha a ser vendido. Mas a montanha de volumes de esquerda dá a Fernando Mangarielo o título incontestável de maior dinossauro vivo do marxismo impresso. NOV 2008 • Continente x
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MÚSICA
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Fotos: Arquivo pessoal
Larry Crook: diversidade brasileira surpreende
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magine Liverpool sem os Beatles. Ou a Argentina sem o tango. Guardadas as devidas proporções, assim seria imaginar o Brasil sem a cultura popular nordestina, que não pode ser sintetizada no nome de uma banda ou de uma dança. Mas quem já foi ao exterior deve ter ouvido perguntas e/ou comentários indigestos a respeito do Brasil e, especialmente, do Nordeste. O Brasil é um país “exótico, selvagem”. Terra do samba e do futebol. Só isso. E o Nordeste, a região menos desenvolvida de um país ainda em desenvolvimento. Acontece que o Nordeste tem sido o destino de pesquisadores americanos fascinados pela cultura popular. É o caso do musicólogo Larry Crook que, em 2000, deixou o seu país “birracial” (a definição é do pesquisador) para dissecar in loco “a sociedade mais miscigenada do mundo”: um extenso mix de europeus, africanos e ameríndios, cujo hibridismo de sua genealogia se reflete na cultura até hoje. A diversidade étnica que Gilberto Freyre já tinha sublinhado como um dos maiores atributos do Brasil embasa a pesquisa de Crook, que culminou no livro Brazilian music – Northeastern traditions and the heartbeat of a modern nation, obra que pode ser esclarecedora até para os pernambucanos. Crook parte de um viés antropológico para analisar a cultura brasileira (especialmente a pernambucana) das origens até hoje. Autor de uma tese de doutorado sobre as bandas de pífanos, o pesquisador da Universidade da Flórida passou um ano e meio em Pernambuco, que considera o centro histórico da “região mais africana do Brasil”, dada a influência do continente na cultura local. Em seu livro, Crook também
considera a herança de outras regiões, que acabaria ganhando uma “cara” brasileira, reforçando nosso histórico de antropofagia e diversidade. É fato que “importamos” os tambores da África, mas há outros instrumentos, ou gêneros, tão difundidos no inconsciente coletivo nordestino que, dificilmente, são associados a seus lugares de origem. Como o pífano, trazido por colonizadores espanhóis que também tocavam triângulo – outro instrumento que ganharia conotação atávica com o forró. As bandas de pífano e triângulo, tão "nordestinas", ficaram conhecidas na Espanha por bombos. Fosse Brazilian music uma obra concebida apenas para inglês ver, para divulgar a riqueza cultural do Brasil e do Nordeste no exterior, teria cumprido a missão com mérito. Acontece que a obra chega a ser esclarecedora, inclusive para nós. Uma possível edição brasileira está em análise.
Na ocasião de uma de suas vindas ao Brasil, em 2001, o musicólogo foi profético. Crook dizia que o frevo, à época, carecia de dinamismo, para deixar de ser uma música saudosista, tocada praticamente uma vez por ano. E que, em algum tempo, alguém faria algo “muito interessante com o frevo”. Passados sete anos, a reportagem entrou em contato com o americano, por email, para saber se algo “muito interessante” de fato teria acontecido. A resposta foi simples: – Eu achava que alguém iria pegar o frevo de rua tradicional e modernizá-lo, com novos arranjos, virtuosismo e ênfase no improviso. Parece-me que é exatamente o que a Spok Frevo Orquestra está fazendo. Já reconhecida internacionalmente por seu trabalho de renovação, falta reconhecer localmente outro papel da orquestra: o resgate histórico. Ao ser perguntado se o frevo era música de carnaval, o maestro foi enfático: “Toco frevo todos NOV 2008 • Continente x
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Larry Crook, em Miami, tocando zabumba, acompanhado por Marco Pereira (triângulo) e Welson Tremura (violão)
os dias da minha vida”. A queixa de Spok com relação ao gênero não foi de uma eventual falta de espaço em Pernambuco. Espaço falta, sim, na sua agenda. O músico estava de malas prontas para viajar à Índia com a orquestra, no dia seguinte à breve entrevista. Outro americano fascinado pelo Brasil é John Murphy. O pesquisador já tinha publicado, em 2006, pela editora Oxford University Music Press, o livro Music in Brazil – Experiencing music experiencing culture. Abrangente, Music in Brazil analisa as identidades nacionais e regionais, do samba ao forró. Este ano, Murphy teve sua tese de doutorado, Cavalo-marinho pernambucano, publicada pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais. Para fazer a pesquisa, o professor de História do Jazz da Universidade do Norte do Texas viveu dois anos em Pernambuco, numa época (1990/1991) em que poucos estudiosos da cultura pernambucana, como Antônio Nóbrega e Hermilo Borba Filho, tinham realizado trabalhos sobre o festejo popular.
“A falta de estudos aprofundados me motivou a fazer uma pesquisa original, útil tanto para estudiosos quanto para músicos. Não como uma contribuição teórica, mas, sim, como uma documentação fiel de uma tradição importante”, avalia Murphy. O primeiro contato físico do musicólogo com o Brasil foi no Rio de Janeiro, onde residia a família de um colega de faculdade, que o hospedou. Do Rio, o jovem estudante pegou um ônibus para o Recife. “Foi então que me apaixonei pela cultura nordestina”, lembra. Durante a estadia no Recife, o pesquisador teve o que chama de “formação de rua”. “Até então minha formação tinha sido meio acadêmica, meio de rua, isso porque eu tocava jazz. Este estilo tem que ser aprendido de ouvido”, afirma. E foi o ouvido treinado de Murphy Brazilian Music (sem tradução) Larry Crook ABC-CLIO 374 páginas disponível pela amazon.com
que o ajudou a aprender e discutir tradições orais com músicos locais. A maior experiência, para John, foi “conversar com os músicos em metáforas e termos regionais, o que não se resume a falar português”. Music in Brazil e Cavalo-marinho pernambucano foram concebidos, em princípio, para o público estrangeiro. O primeiro faz o seu papel no exterior, tratando logo de esclarecer ao americano médio que o maior carnaval do mundo não é o do Rio de Janeiro (o livro tem um espaço razoável dedicado ao carnaval pernambucano). O segundo, no entanto, é um estudo completo de uma tradição. Cavalo-marinho não é desses livros que levamos ao exterior para “dar uma idéia” do Brasil. É um documento que disseca uma de nossas raízes. A tradução da edição brasileira ficou a cargo de André Bueno. O produtor Paulo André Pires, que, apesar de ser conhecido como “Paulo André do Abril Pro Rock”, desenvolve um forte trabalho de divulgação da cultura local, tem poucas e boas a respeito de seus contatos no estrangeiro. Ano passado, Paulo
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“No flm dos anos 60, os Beatles pararam de fazer turnês, em parte, por causa da diflculdade de reproduzir ao vivo o que eles criavam em estúdio. Para Chico Science & Nação Zumbi, o problema era outro: levar para o estúdio a energia e a complexidade que já exibiam nos palcos.” Trecho de Brazilian Music, de Larry Crook
John Murphy, na sanfona, esforçando-se para acompanhar Arlindo dos oito baixos
André recebeu um telefonema de sua colega Jody Gillet, da equipe inglesa da BBC, informando que a rede estava enviando, em pouco tempo, um grupo ao Brasil, para fazer uma série de documentários sobre a música nacional. Quando Gillet o informou de que a BBC ia ignorar Pernambuco, Paulo André não teve dúvida: enviou à emissora um pacotão com CDs de expoentes da cultura local. Felizmente, o material chegou a tempo. A equipe não só veio a Pernambuco, como também traçou uma imagem lisonjeira do Estado. “Pernambuco é o único lugar abordado onde a música não está associada à violência, ao contrário do Rio, com o funk, ou de São Paulo, com o rap, nem à música comercial e descartável, caso da Bahia com o axé”, defende o produtor. O documentário aborda o manguebeat desde a famosa declaração do Instituto de Washington, de que o Recife seria a quarta pior cidade do mundo para se viver, passando pela reação que partiu do antológico manifesto Caranguejos com cérebro, até os dias de hoje.
A BBC gostou do que viu aqui e, em setembro deste ano, mandou outra equipe, desta vez para fazer um mapeamento da música pernambucana tradicional. A produção do programa World Routes gravou Sebastião Dias, em Tabira, Siba e a Fuloresta, em Nazaré da Mata e Azulão, em Caruaru, entre outros. O programa ainda irá ao ar. Paulo André lembra sempre uma frase proferida por ninguém menos do que Borkowsky Akbar – diretorgeral da feira itinerante Womex, a maior de world music do mundo. O pernambucano estava tomando um maltado tranqüilamente, com o alemão, num famoso boteco do bairro do Recife Antigo. Akbar, ao observar uma megafoto do Zeppelin na parede do boteco, comentou a “montagem” com Paulo André. O gringo já sabia que o Recife Antigo abrigava a primeira sinagoga das Américas, mas não tinha conhecimento de que o Zeppelin havia de fato atracado no bairro, em maio de 1930. Akbar mandou a frase Recife surprises me (Recife me surpreende). E deve ter surpreendido mesmo: Paulo André e Akbar fecharam ne-
gócio para a realização do primeiro Porto Musical, na manguetown. Estudos como os de Larry Crook e de John Murphy poderiam responder a uma pergunta – ou exclamação – feita pela estimada Spin, uma publicação americana de cultura pop. Lançada pelo selo Luaka Bop, do ex-Talking Head e garimpeiro musical David Byrne, a coletânea What´s happening in Pernambuco, com nomes que vão de Nação Zumbi a Mombojó, já foi elogiada por jornais internacionais, como os tradicionais NY Times e fie Guardian . Mas o artigo da Spin abre com um curioso What the hell is Pernambuco? Só que o Recife surpreende: o mesmo artigo que o crítico abre com Que diabos é Pernambuco?, fecha com “Esse é um dos lugares mais espirituosos do mundo”. E não somos nós que estamos dizendo isso. Cavalo-marinho pernambucano John Patrick Murphy UFMG 159 páginas 33,00 reais
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Fotos: Manuel Abreu/Divulgação
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Bossa-nova com sotaque lusitano Reafirmando a crescente influência da bossa-nova sobre músicos portugueses, a Banda T3 Mais Uns lançou Músicas de apartamento, um álbum de música brasileira cantada em português – de Portugal – e gravada no Porto e no Recife Filipa Cardoso 74 x Continente • NOV 2008
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Filipe Diniz (percussão e bateria) da Banda T3 Mais Uns
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or que T3 Mais Uns? – é a pergunta que surge quando se vê na capa do álbum um desenho futurista de várias plantas de apartamentos. A resposta, a princípio, não surpreende assim tanto: “Porque as músicas foram gravadas entre o meu T1 e o T2 do Miguel”, responde prontamente Antero Abreu, vocalista da
banda e dono do tal apartamento T1, situado no Porto (em Portugal, as imobiliárias utilizam as siglas “T1, T2” etc., para indicar apartamento e o número de quartos). Para completar o nome da banda, devese sobrevoar o Atlântico. É que os “Mais uns” estão no Brasil, mais precisamente no Recife. Foi aí que os quatro músicos fundadores da
banda, os três portugueses Antero Abreu (vocalista), Miguel Ferreira (guitarrista) e Filipe Deniz (percussão) e o luso-brasileiro Fred Xavier (baixo) descobriram que também podiam tocar música brasileira – a bossa-nova e o samba que os acompanhou durante a adolescência, assim como o frevo e o maracatu que conheceram em terras nordestinas. NOV 2008 • Continente x
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Tudo começou com uma viagem dos músicos portugueses ao Nordeste Brasileiro, há três anos. Nessa estadia no Recife, através do prazer fascinante de percorrer a praia da Boa Viagem e as ruas coloridas de Olinda, de penetrar no bulício do mercado de S.José ou de viver as noites úmidas dos concertos ao vivo, os quatro músicos receberam a inspiração para gravar os primeiros sons de Músicas de apartamento. E foi de fato essa experiência in loco, apoiada nos conhecimentos adquiridos na cena musical recifense, que permitiu a solidiocação do projeto. As primeiras gravações foram feitas nos estúdios Fábrica, no Recife, por onde já passaram grandes nomes da música brasileira, como Lenine, Lula Queiroga e Chico César. “E tudo se desenrolou automaticamente”, conta Antero: “Marcamos com o Simeão no estúdio e, no dia seguinte, ele apareceu de surpresa com o irmão e um amigo”. Entre os músicos com quem gravaram, destacam-se os pernambucanos Simeão e André
Britto – violão e voz respectivamente – e Cesinha do Acordeom, além de João Marques, da banda de Paulo Ricardo (ex-RPM). Foi também no Brasil que realizaram os primeiros concertos, em bares da noite alternativa recifense, como o Burburinho e também na livraria Cultura. “As pessoas acharam piada ver quatro portugueses tocando bossa-nova. Mas levantaram-se para aplaudir e dançar!”, relata Antero. Nesse desolar de músicas, construíram-se então os primeiros sons e esboços que viajariam até Portugal, onde, de regresso, o grupo dedicou-se a fundo às gravações nos vários apartamentos-estúdio da cidade. O disco foi lançado no mês de junho em várias Fnac’s do país, com 10 títulos originais e um cover de Na minha rua passa um rio, de Caetano Veloso. O resultado onal do trabalho realizado entre as duas cidades atlânticas são 11 músicas que buscam a essência de sonoridades brasileiras, do maracatu à bossa-nova, passando pelo samba
e o baião, para compor temas sobre os sentimentos do cotidiano, como o amor ou a solidão. No fundo, existe em Músicas de apartamento a combinação harmoniosa de elementos das duas culturas lusófonas: “O álbum usa a melodia da bossa-nova para tocar o sentimento português”, o que se traduz sobretudo nas letras poéticas e mais melancólicas, como em Nesta noite, uma balada bem portuguesa, ou O teu corpo, sempre marcadas pelas respirações entrecortadas, no entanto suaves, da parte instrumental da bossa-nova. Mas como se atreveu um grupo de músicos portugueses a tocar bossa-nova, um estilo tão brasileiro? Apesar de pertinente, a pergunta não provoca qualquer embaraço a Antero, que faz questão de dizer haver aprendido nos discos do compositor João Bosco os segredos desse ritmo “difícil”, ainda nos seus tempos da adolescência, passada em Curitiba, no Brasil: “Basicamente, nós pensamos que enquanto portu-
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Luanda Cozetti: voz brasileira em Portugal
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gueses não temos de estar restritos à música que vem só da Europa, mas também abrirmo-nos a um horizonte mais para frente, mais ligado às nossas raízes culturais”. Do outro lado do oceano, a resposta de Fred Xavier, o elemento luso-brasileiro da banda que agora vive no Recife, faz-se chegar por e-mail: “A bossa-nova já deixou de ser exclusivamente brasileira, assim como o jazz deixou de ser exclusivamente americano (…) o mundo todo reconhece a ‘bossa’ como nascida no Brasil, mas isso não implica que os T3 não a consigam tocar, ainda mais quando em sua formação temos músicos que viveram no Brasil e artistas brasileiros”. Como projetos para o futuro, a banda pretende estender os seus horizontes artísticos aos ritmos africanos, na mesma linha que a conduziu ao outro lado do oceano, ao Recife, para redescobrir novas sonoridades, sempre com a raiz lusófona como base do projeto.
ntre outras coisas, a voz doce de Luanda Cozetti confessa a paixão pela música de Zeca Afonso, uma das vozes da Revolução dos Cravos. Sendo olha de dois antigos presos políticos da ditadura brasileira, Luanda sente-se muito identiocada com a música do cantor e compositor português. Habituada a ouvir Zeca Afonso desde criança, a cantora diz ter “crescido com a sua música e as magníocas misturas de música africana e portuguesa”. E é talvez essa saudável miscelânea da lusofonia que a leva a aormar que, se “Zeca Afonso fosse brasileiro, seria compositor de bossa-nova”. Fosse ou não fosse, o que é certo é que Luanda Cozetti trocou a arquitetura de Niemeyer da sua
Brasília pelo Tejo resplandecente de Lisboa – e, hoje, juntamente com o seu companheiro Norton Daiello (também brasileiro), forma os Coupple Cose, uma banda de bossa-nova. O mais recente trabalho do duo em Portugal intitula-se Young and lovely, um disco em homenagem ao meio século do estilo “do amor, do sorriso e da éor”. Nesse álbum, o casal elegeu o amor como o sentimento dominante, “nas suas várias formas”. Composto por 18 temas de compositores como Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lira, o álbum constitui uma homenagem ao tema interpretado por Tom Jobim, Garota de Ipanema, “e tudo o que ela personioca, a eterna juventude, a vida, o sol, a regeneração”, explica a vocalista. Divulgação/Direitos reservados
Ponte Recife-Porto: Simeão Britto, Ricardo Fraga, Antero Abreu e Fred Xavier, na Livraria Cultura, em 2007
Coupple Coffe: Norton Daiello e Luanda Cozetti
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Banda Sinfônica: estréia tardia, mas segura
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Fred Jordão/Divulgação
inqüenta anos depois de formada (pelo então prefeito Pelópidas Silveira), a Banda Sinfônica da Cidade do Recife estréia em disco, no qual fica patenteada a alta qualidade atingida pelos 70 músicos comandados pelo regente titular e diretor artístico desde 2002, Nenéu Liberalquino. Aliás, foi Nenéu quem definiu a atual estrutura da Orquestra, aumentando-lhe o efetivo e o naipe instrumental. O CD traz 13 composições arranjadas pelos maestros Herbert Clarke, Clóvis Pereira, Duda, Hudson Nogueira, José Menezes, Spok, Ademir Araújo
e Nilson Lopes, assinadas por Carlos Gomes (a indefectível “Abertura” de O Guarani, interpretada com notável segurança), Villa-Lobos (Melodia sentimental), Duda (Suíte pernambucana de bolso) e autores de MPB, como Gonzagão (Asa-branca, Baião e A volta da asa-branca), Tom Jobim (Dindi e Chovendo na roseira, Hermeto Pascoal (Bebê), Pinguinha (Segura ele) e os pernambucanos Lenine (a também indefectível Leão do Norte), Luiz Guimarães (Fogoió, homenagem a Sivuca), José Menezes (Maluqinho) e Capiba (Recife, cidade lendária). O disco é a prova da maturidade do trabalho da banda, cuja massa sonora (predominância de metais e sopros) mantém-se em perfeito equilíbrio. Traz ainda participações especiais de Edson Banda Sinfônica Rodrigues (sax), Toninho da Cidade do Recife – 50 anos Ferragutti (sanfona), MarLG Produções co César (bandolim), Teca Calazans e Gonzaga Leal (voz). (Homero Fonseca)
> Resgate de José Guerra Vicente (I)
> Resgate de José Guerra Vicente (II)
> Concerto cantado em bom português
> Desengasgando algumas espinhas
Nos últimos anos, o violoncelista do Quarteto de Brasília, Antonio Guerra Vicente, vem gravando as composições de seu pai, o português naturalizado brasileiro José Guerra Vicente (19071976). Este CD reúne quatro peças para instrumentos de madeira (oboé, clarineta e duas para flauta), solo ou acompanhado e uma redução com piano do Concerto para trompete e orquestra. As obras – das décadas de 60 e 70, marcantemente tonais e com recorrências constantes ao cromatismo – dão amostra da estética românticonacionalista que o compositor sempre seguiu. A utilização não estrita de estruturas tradicionais é perceptível, como nos movimentos da Sonata para clarinete e piano e no Divertimento para oboé e violoncelo. (CEA)
Ao lado do Concerto para trompete, o Concertino para violoncelo e cordas ocupa posição de destaque no catálogo de Guerra Vicente – neste álbum, somente de obras para cordas, lançado junto ao CD anterior. Valendo-se de células rítmicas da música folclórica, porém de forma transfigurada, tais peças ostentam pontos de semelhança com algumas do Cláudio Santoro da década de 50 e do José Siqueira dos anos 40, bem como de Osvaldo Lacerda e Guerra-Peixe. O Noturno, que requer violino solista, e Resignação, ambos da década de 30, representam uma fase anterior do compositor, mais melancólica. Os solistas no Concertino e no Noturno são, respectivamente, Antonio Guerra Vicente, autor das cadências, e Ludmila Vinecka. (CEA)
Desde que a convicção de Alberto Nepomuceno, em comunhão com os ideais do amigo Grieg, derrubou o preconceito contra o português nas canções de concerto brasileiras, valorosas parcerias marcaram o lied nacional. Uma amostra crucial está neste CD do pianista Achille Picchi, junto com Lenine Santos – tenor de timbre agradável, próximo ao de Altemar Dutra e, portanto, perfeito para as canções em estilo de seresta e modinha. Vale o lembrete para se apreciar não só o esmerado nível melódico, mas também o poético, de peças como Canção, de Machado e Nepomuceno, e Toada pra você, de Lorenzo Fernandez e Mário de Andrade, sem falar do encanto das Cinco canções nordestinas, de Francisco Braga. (CEA)
O segundo CD de Marcos Gomes, cujos carros-chefe são as transcrições para violão solo de Espinha de bacalhau de Severino Araújo e do Moto perpétuo de Paganini, demanda do ouvinte os mesmos 13 fôlegos que levou para ser gravado – número equivalente ao de intervalos entre as faixas, todas de grande exigência técnica. O domínio das espinhosidades paganinianas das partituras, para usar as analogias sugeridas pelo título do álbum, e a atenção a compositores populares quase nunca executados inscrevem o violonista no hall dos jovens virtuoses segovianos brasileiros e este CD entre os melhores do ano. Méritos extras para o luthier José Ramos, pela ótima ressonância do instrumento dedilhado por Gomes. (CEA)
Obras para instrumentos de sopro José Guerra Vicente Estúdio GLB R$ 23,00
Obras para instrumentos de cordas José Guerra Vicente Estúdio GLB R$ 23,00
Canção Lenine Santos & Achille Picchi Algol Editora R$ 27,00
Moto perpétuo, Espinha de bacalhau e outras espinhas Marcos Gomes R$ 22,00
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Acima da chuva: músicas para cantarolar
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que continua produzindo um material autoral de qualidade. Uma vez apertado o play, Acima da chuva dificilmente vai parar de tocar suas melodias bem executadas, baladas sentimentais, numa sonoridade pop, no sentido mais positivo que tal conceito possa ter. Inevitável não associar aos saudosos hermanos... As músicas grudam e no primeiro replay já estamos cantarolando. (Mariana Oliveira) Miguel Solano/Divulgação
história da Volver é parecida com a de algumas bandas da cena recifense que surgiram depois do aquecimento musical provocado pelo Manguebeat, mas que fazem músicas sem dialogar necessariamente com sonoridades ligadas à cultura popular. O grupo formada por Bruno Souto (voz e guitarra), Fernando Barreto (baixo e vocais) e Zeca Viana (bateria) foi formado em 2003. No ano seguinte, o trio participou e ganhou o Festival Microfonia, o que garantiu a verba para a gravação do primeiro CD (Canções perdidas num canto qualquer) e sua primeira participação no Festival Abril pro rock, em 2005. De lá pra cá, a banda conseguiu conquistar, na cidade, um público cativo que marca presença em suas apresentações e recebe agora o seu segundo Acima da chuva disco. Em Acima da chuva, Volver Senhor f disponível para download no 10,00 reais My Space, o grupo consagrase como uma das bandas da cena independente da cidade
Ouça a o CD Acima da chuva em www.continenteonline.com.br
> Diversidade com bastante charme
> Discreto e coeso, sem sair da sombra
> A homenagem ao > Sacro e o profano baixista Luizão Maia na corte de D. João
Praticamente um caldeirão telúrico, Manto dos sonhos é o segundo CD de Renata Rosa, paulista radicada em Pernambuco. A rabequeira passeia pela diversidade com charme. A produção concisa de Antônio Pinto (autor das trilhas de Central do Brasil e Cidade de Deus, entre outros) conseguiu casar a suavidade da voz de Renata com a força dos ritmos pernambucanos, como o coco e o maracatu. À primeira audição, os agudos quase dissonantes que Renata alcança nas faixas mais percussivas podem causar certo estranhamento. Na verdade, a cantora se vale de sua extensão vocal para imprimir a polifonia de suas influências, reforçando o caráter híbrido –e funcional- do CD. (Thiago Lins)
Mais conhecido por ter acompanhado Cazuza na fase pós-Barão Vemelho, o guitarrista e produtor Torquato Mariano chega discretamente ao quarto CD solo. O multiinstrumentista, que já foi diretor artístico da major EMI, gravou um CD coeso, com 11 músicas, todas de sua autoria. Lift me up é repleto de nuances, mas sem exageros virtuosísticos. Pode ser escutado faixa a faixa sem desagradar. No entanto, não há um riff ou uma linha de guitarra que nos faça querer ouvir uma música repetidamente. Algo que era de se esperar do ex-guitarrista de apoio de um hitmaker. De fato, Torquato Mariano, que também acompanhou Gal Costa e Ivan Lins, é um grande músico de estúdio. O problema é que deve continuar sendo. (TL)
Luizão Maia foi um dos grandes baixistas brasileiros. Desde jovem, envolvido com a música, tocou ao lado de grandes figuras como Elis Regina, Herbie Hancock e o grupo Banzai. Exímio artífice dos sons, temperou suas composições com saborosa brasilidade, evidenciada a cada traquejo de sua cadência. Infelizmente, em 2005, o destino pregou-lhe uma peça e Luizão partiu sem que sua obra recebesse a devida documentação. Em Tal pai, essa carência é suprida com maestria por Zé Luiz Maia (seu filho, também afeito às quatro cordas), que se juntou a um grupo de músicos para gravar 10 temas inéditos do pai, alguns compostos em parceria com Marku Ribas, João Rebouças e Gilson Peranzzetta. (Yuri Bruscky)
Manto dos sonhos Renata Rosa Independente 28,00 reais
Lift me up Torquato M ariano Delira Música 25,00 reais
Tal pai Zé Luís Maia Delira Música 24,90 reais
Dando continuidade à série A Música na corte de D. João VI, editada em comemoração ao bicentenário da chegada da família real, o Quarteto Colonial se volta ao universo das músicas sacras e profanas do período. O grupo, idealizado em 2003, por Aida Barroso, é composto pelos músicos Geilson Santos, Luiz Kleber Queiroz, Doriana Mendes e Daniela Mesquita. No repertório estão os Motetos para Semana Santa e para a Quarta-Feira de Cinzas do padre José Maurício Nunes Garcia, destacado compositor brasileiro do século 19, e uma série de lundus e modinhas populares, dentre as quais se destacam as compostas pelo mulato Domingos Caldas Barbosa, tido como introdutor da modinha brasileira em Portugal no século 18. (YB) O sacro e o profano na Corte de D. João Quarteto Colonial Biscoito Fino 32,90 reais
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Fotografias de um não-lugar O livro A cidade e suas margens apresenta dois ensaios fotográflcos da escultora e gravadora Elisa Bracher, reunindo cerca de 120 imagens
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primeiro ensaio, realizado em 2007 na Favela da Linha, na zona oeste de São Paulo, é fruto, em parte, do longo convívio da artista com este espaço e seus moradores – muito deles freqüentadores do Ateliê Acaia, do qual a artista é diretora. Mas é fruto também de um olhar inesperado, que soube apreender no vazio abarrotado, no desencontro brusco de uma folha de compensado, oos de arame, chapas de plástico, grades, tijolos, tábuas, e em sua organização sempre precária, ditada pela urgência, um vínculo intenso – aquilo que a artista
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define como um “desejo de mundo”. Foi um desejo de natureza semelhante que conduziu a artista a seu segundo trabalho, reproduzido no ensaio Locais de origem. A partir de informações bastante imprecisas, a artista se dispôs a fotografar rastros, laços, referências dos lugares de origem daqueles moradores cujas moradias ela havia registrado na Favela da Linha, o que a levou a uma viagem por sete estados do Nordeste brasileiro. O contraponto entre o primeiro e o segundo conjunto de trabalhos abre necessariamente um espaço para reflexão que os textos reunidos neste
livro não hesitam em explorar. Em Fotografia de um não-lugar, o arquiteto Fábio Valentim repassa, à luz do trabalho de Elisa, questões candentes da arte, da arquitetura e do urbanismo contemporâneos. Em Os pobres, a fotografia e seus (bons) limites, Rodrigo Naves, sem traçar juízos de valor, situa a singularidade da fotografia de Elisa e – por meio de paralelos com as fotos de Anna Mariani, por um lado, e com obras de Hélio Oiticica, por outro – pontua, não apenas na história brasileira, um campo de tensões que dizem respeito à arte, à experiência social e às controversas relações entre elas.
Elisa Bracher nasceu em São Paulo, em 1965, é gravadora e escultora, tendo realizado diversas exposições no Brasil e no exterior. Em 1997 fundou o Ateliê Acaia, do qual é diretora, que atende crianças e pais da Favela da Linha, da Favela do Nove e de um conjunto Cingapura na zona oeste de São Paulo. A cidade e suas margens Elisa Bracher Editora 34 208 páginas R$ 84,00
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
À mesa com Jorge Amado “A gente vive numas brenhas danadas, derrubando mata pra plantar cacau, labutando com cada jagunço desgraçado, escapando de mordida de cobra e de tiro de tocaia, se a gente não comer bem, o que é que vai fazer?” Jorge Amado (Terras do Sem Fim)
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m toda a sua extensa obra, Jorge Amado valoriza ingredientes e receitas de sua terra, “quitutes saborosos, de estalar a língua e revirar os olhos” (1). Especialmente no seu mais famoso livro, Gabriela cravo e canela – que, agora, completa 50 anos. Nele se conta a história de Nacib – um “brasileiro, nascido na Síria, que se sentia estrangeiro ante qualquer prato não baiano, à exceção de quibe”. Dono do bar Vesúvio, procurava “uma boa cozinheira que entendesse de temperos e de pontos de doces”. “Sabe cozinhar ?”, perguntou à moça, recém-chegada do sertão. “O moço me leva e vai ver”, respondeu. E foi assim que, “na pobre cozinha, Gabriela fabricava riquezas: acarajés de cobre, abarás de prata, o mistério de ouro do vatapá”. Mais bolinhos (de bacalhau e de carne), carne-seca, caruru, efó, feijoada, frigideira (de bacalhau, camarão, siri-mole), galinha de cabidela (o primeiro almoço que preparou para Nacib), molhos
de pimenta, moqueca de peixe, sarapatel. Mais banana frita, batatadoce cozida, beiju de tapioca, bolo (de tapioca, de aipim, de milho), cuscuz (de milho, de puba), doce de banana de rodinha, macaxeira cozida, mingau de puba, inhame e milho cozido. O resto da história todo mundo conhece. Nacib se apaixonou e fez “o casamento mais animado de Ilhéus” – com ele de azul-marinho, e ela de azul celeste. Depois traiu o marido e foi embora. Só que o pobre sírio “não sabia mais viver sem o almoço e o jantar de Gabriela”. Razão por que aquela morena, com “o cheiro de cravo e a cor de canela”, voltou para ser sua cozinheira e sua amante. Dandose por finda “a história de Nacib e Gabriela, quando renasce a chama do amor de uma brasa dormida nas cinzas do peito”. Em cada romance temos sabores postos “na mesa, sobre a toalha de linho bordada” (2). Nada de comer em pé. “Gosto de comer sentado à mesa. Nesse troço americano que vocês inventaram agora, fica todo mundo cercando a mesa, e eu, que sou encabulado, acabo comendo as sobras” (3). As refeições começam com tira-gostos, feitos por mãos de exímias cozinheiras. Como Dona Conceição que “deixa cair a travessa, e bolinhos de bacalhau rolam pela sala”(4). Ou
a “velha Eulina”, que “da cozinha, resmungando incongruências, envia pitus para o tira-gosto” (5). Não só isso. Também abará, beiju, casquinho de caranguejo, quibe (cru e frito), lambreta, bolinho de carne e acarajé – que para ele “não há tira-gosto igual” (6). Todos “cantados em prosa e verso – onde rimava frigideira com abrideira, cozinheira com faceira”(7). Na hora da refeição propriamente dita, “mesa de fartura e requinte. Os pitus, a frigideira de goiamum, o lombo de cabrito assado” (1), frigideira de maturi – “de castanha verde e tenra com sabor de virgem” (1), “moqueca de arraia” (8), “peixe fresquinho pescado no rio pouco antes, o molho de leite de coco bem feito”(9), “mal-assada cujo sabor oscilava entre o sublime e o divino”(2), “um cozido de sustância”(10), “a imensa feijoada que fervia em 2 latas de querosenes: quilos e quilos de feijão, de lingüiças, de carne-de-sol, de fumeiro, do sertão, carne verde de boi e de porco, rabada, pé-de-porco, costelas, toucinho” (11), “caruru feito com 12 grosas de quiabo”(2). Mais sarapatel – “de joelhos estamos diante desse sarapatel divino”(3). Sem esquecer o vatapá, prato com receita completa que veio pelas mãos de D. Flor: “Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero é o vatapá de peixe (ou de galinha) o mais famoso de
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toda a culinária da Bahia. Tragam duas cabeças de garoupa fresca... tomem do sal, do coentro, do alho e da cebola, alguns tomates e o suco de limão...” (3). Os personagens vão revelando suas preferências culinárias. “Pé-de-vento conhece uma moça cujo beijo tem gosto de moqueca de camarão” (11). “Além de cágado, caças em geral, e, em particular, um ensopado de teiú, carne tenra nos perfumes do coentro e do alecrim” (3). “– Teiú? Que bicho é esse? Uma ave? – Um lagarto. – E se come? – Delícia. Mais gostoso do que capão”(1). Ainda “envolto em folhas aromáticas, um caititu assado inteiro, ah! O rei dos grandes pratos, porco bravio, carne com sabor de selva e liberdade” (3). “Carne seca na brasa, gordura pingando na farinha crua” (10). “Sem falar na galinha ao molho pardo” (11). Até um inocente franguinho entra nesse cardápio, “Ah! Como eu compreendo Dom João VI, menino! Um franguinho assim, dourado no fogo, com a gordura escorrendo... Esse frango é um poema, menino, não há verso que valha uma gota da sua gordura”(12). Ou “galinha de parida, que por ser um prato simples é dos mais difíceis” de fazer (5).
Divulgação
Em cada romance temos sabores postos “na mesa, sobre a toalha de linho bordada” . Nada de comer em pé
Na hora da sobremesa, “mesa farta de doces, os melhores do mundo” (5), “com sabores raros: NOV 2008 • Continente x
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Relação dos livros citados: 1 – Tieta do Agreste 2 – O Sumiço da Santa 3 – Dona Flor e seus dois maridos 4 – Farda, fardão, camisola de dormir 5 – Tereza Batista, cansada de guerra 6 – Tenda dos milagres 7 – Gabriela cravo e canela 8 – A morte e a morte de Quincas Berro d’Água 9 – São Jorge de Ilhéus 10 – Tocaia grande 11 – Os pastores da noite 12 – Os subterrâneos da liberdade 13 – O capitão de longo curso 14 – Capitães da areia 15 – Mar morto 16 – O país do carnaval 17 – Jubiabá 18 – Terras do sem fim
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RECEITA
E foi “num restaurante barato que havia no mercado” que os velhos marinheiros comeram, juntos, “um prato de sarapatel e depois uma feijoada” (14). Por fim, só dizendo como o coronel Maneca Dantas, ao Capitão João Magalhães: “Comer bem é o que se leva do mundo, capitão”(18). Viva Jorge Amado! E os sabores dessa Bahia de todos os Santos, alguns milagres, superstições muitas, virtudes tantas e quase todos os pecados.
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às visitas, de jenipapo, de pitanga, de maracujá, todos de fabricação caseira” (10). Até que, depois de se refastelar, ainda exercitava a arte de “acender o charuto, não pensar em nada ”(9) e “estender-se na rede” (5), que ninguém é de ferro. Os quitutes estão, em seus livros, não só nas mesas. Também nas ruas e em toda parte. Vendidos por pretas velhas “nas barracas atulhadas, ruidosas, as comidas de coco e de dendê: caruru, vatapá, efó, as diversas frigideiras as diferentes moquecas. Tantas! Galinha de xinxim, arroz de hauçá”(2); ou equilibrados nas cabeças, representados por “Vitorina, com seu tabuleiro de abarás e acarajés” (3). A mãe de Chico Tristeza “vendia cocada” (15). E outra preta “rebolando as ancas, gritava – Amendoim torrado! Acarajé, abará” (16). Mais “pipocas, mingau, mungunzá” (17). Todas vestidas com roupas rendadas, com “anáguas e colares” (17). Como “a negra Dorotéia, com o colar de Iansã e uma conta vermelha e branca de Xangô” (6). Jorge Amado ainda fala, com saudade, dos pratos que se faziam nos mercados baianos, onde “misturavam-se os sabores e os perfumes da jaca e do jabá, das bananas e das rapaduras, dos cajás, das mangabas, dos umbus” (10).
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de jaca, carambola, groselha, araçá-mirim, passas de caju e jenipapo”(1), “cocada puxa e cocada branca” (2), “de manga, de mangaba” (5), “de laranja da terra” – servido por D. Milu, na casa de Carmosina (1), “doce de banana de rodinha – doce de puta, que tem em tudo que é casa de rapariga” (1). E “creme de abacate”(10), “quindim, fios-de-ovos, olhos-desogra, bom-bocados, brigadeiro”(4), a “umbuzada, a jenipapada, as fatias de parida com leite de coco, o requeijão”(5) e “creme do homem – musse de coco com calda de chocolate” exibido por Marialva (2) – “ai, creme mais saboroso”(3). “Um pedaço de canjica, de bolo de milho ou de puba, de cuscuz de tapioca (13). E aquele doce que, de tão bom, ele compara ao beijo roubado por Patrícia ao Padre Abelardo Galvão, com “sabor de crime e de ambrósia feita em casa” (2). Sem esquecer bebidas, presentes em quase todos os seus livros. “Os ricos bebem uísque e champanhe, os operários vinho de abacaxi” (12). Cerveja gelada, cachaça pura e o “grogue”, uma bebida de marinheiro que o capitão-de-longocurso Vasco Moscoso de Aragão ensinava aos vizinhos de Periperi (13). Mais licores que “Zilda servia
Moqueca de camarão Lave, limpe e esfregue 3 limões em 2 kg de camarão, Tempere com 1 tomate e meio, 1 cebola e meia, 1/2 pimentão, 1/2 molho de coentro e 1 dente e meio de alho; com sal e pimenta de cheiro a gosto. Coloque os camarões (junto com os temperos) em uma panela de barro. Cubra com 1 tomate e meio, 1 cebola e meia, 1/2 pimentão, 1/2 molho de coentro e 1 dente e meio de alho. Regue com 1 xícara de azeite de dendê e ½ xícara de azeite de oliva. Tampe a panela e deixe em fogo baixo. Quando estiverem quase cozidos, junte 1 xícara de leite (grosso)de coco e regue com mais um pouco de azeite de dendê.
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Na pisada do Tebei
Povoado da Aldeia Olho d'Água do Bruno, em Tacaratu (PE), dança um coco que une o trabalho ao prazer da dança Isabelle Câmara
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e realizada pelos idosos do local fizeram seu tom de voz e brilho no olhar ganharem uma cor diferente. À época, Gustavo integrava uma equipe da Associação Respeita Januário e do Núcleo de Etnomusicologia da UFPE, que refazia a trilha deixada por Mario de Andrade na sua Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. Em Pernambuco, a Missão trabalhou em apenas três cidades:
Recife, Arcoverde e Tacaratu. A pesquisa seguiu esta trajetória e o resultado do estudo pôde ser conferido no álbum Responde a Roda. Nos arredores de Tacaratu, a equipe enviada por Mario de Andrade gravou os torés e toantes dos índios pankararu e o principal gênero registrado no local: o coco. Mas, de acordo com Gustavo, quando eles chegaram por lá, mais ou
Fotos:Pedro Rampazzo/Divugação
embro que há mais ou menos quatro anos, nessas conversas tiradas no meio da noite, Gustavo Vilar me contou sobre o encontro com a comunidade do Olho d’Água do Bruno, em Tacaratu (PE), e da descoberta do Coco de Tebei. Não lembro ao certo as palavras que ele utilizou, mas o seu encantamento e a surpresa com aquela brincadeira mantida
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Dona Antônia Germana e Seu Antônio Barbosa: ela canta e ele dança
menos em 2003, já não se dançava mais o coco como todos conhecem. Entretanto, os moradores da cidade informaram que existia um grupo, no distrito rural do Olho d’Água do Bruno, que cantava e dançava um tipo de coco bem diferente, chamado de “Tebei”. Qual não foi o meu alumbramento em receber o Eu tiro o couro do dançador, álbum com CD e DVD que registram em sons e imagens a brincadeira daquele povo. Primeiro, por ter em mãos o resultado de uma pesquisa que vai além da musicalidade de um povo. Depois, pelo registro e divulgação da qualidade rítmica do que lá é produzido. A comunidade do Olho d’Água do Bruno é como muitas que habitam o sertão pernambucano: sobrevivem através do tear e da produção de farinha. Comem aquilo que plantam. Quando chove. “É, quando chove, a gente tira os legumes aqui da roça, mas quando num chove... tem casa que passa o dia sem botar uma panela no fogo”, confessou D. Maria do Carmo em entrevista à
equipe da Sambada Comunicação e Cultura, gravada no DVD, realizadora do álbum sob a batuta de Gustavo Vilar. Também tem um certo tom carro-de-boi, aquela lentidão acelerada somente pelas rodas de madeira. E pelos pés que dançam e conversam com casas quando chega a noite estrelada e é hora de assentar o chão de uma moradia de taipa que acaba de ser levantada. Aí a dança e a música do Tebei vão da boca-da-noite até o dia amanhecer. Segundo os moradores, o Tebei é um tipo de coco dançado para “pilar” o chão de uma casa. Assim: “A gente era chamada para tapar as casas de taipa. A gente (as mulheres) vai molhando a casa e os homens colocando o barro. É um contentamento!”, revela dona Maria Araújo. O Tebei é um canto de trabalho marcado pelos pés. Originalmente, é só voz e percussão feita pela batida dos pés no chão. Vozes tão rasgadas, abertas e solares quanto o sertão que as talhou. Como acontece em outras formas de canto popular, a música é em forma de verso
e resposta, mas não existe distinção entre solista e coro, tampouco definição de quem canta uma frase ou outra. Tudo acontece em tempo real e de modo espontâneo, no desenrolar da brincadeira e do trabalho. “Quem não tem marido, só canta”, acrescenta dona Maria Feitosa. Enquanto isso, os casais dançam enlaçados, num sapateado quase hipnótico, onde os pés definem a célula rítmica. O Tebei não tem roda. A batida que vem das pisadas é muito diferente do coco de embolada ou do coco praieiro. Não há qualquer instrumento acompanhando o canto e a dança. E como os próprios moradores do local definem, é um coco diferente, pois usualmente os outros são marcados por duas pisadas com o pé direito e uma com o esquerdo; por uma batida mais forte, algo conceituado no Maranhão como punga, feita ao mesmo tempo em que a umbigada em alguns brinquedos populares, e que provoca os pés a pisarem mais firme. No Tebei,
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a punga não existe, o ritmo é mais linear. Talvez seja fácil explicar: Já pensou se existisse a pisada mais forte? Como isso se resetiria no seu objetivo maior, que é o de aplainar o chão de uma casa? E os dançadores admitem: “O Tebei cansa que só”, desabafa Maria Feitosa. “O Tebei tem a onalidade de pisar o chão da casa, mas é também um espaço para diversão e o namoro”, revela Gustavo. Então, quem classiocou o Tebei como um coco? “Eu nasci e fui criado aqui e já encontrei meus pais fazendo isso. Pilar, bater o chão da casa, era muito bom pra gente. Na época dos meus pais, não era coco de Tebei, era coco de roda, mas a gente começou a evoluir e ocou coco de Tebei. Era a mesma dança. Não sei quem começou. Sei que vem da raiz dos nossos pais”, recorda seu Antônio Barbosa. “A dança do coco nós ‘comecemo’ a aprender com nossa mãe. Isso vem de muitos tempos, vem de ‘nosso bisavós”, diz D. Maria Araújo. “Quando a gente era pequena, mãe levava nós e nós gravava (decorava). É por isso que a gente sabe o Tebei”, complementa D. Maria do Carmo. Gustavo Vilar acrescenta informações à história oral: “Esse termo, Tebei, é uma invenção recente das últimas décadas, nos anos 30 essa expressão musical era chamada de Roda, como registrou a Missão de 1938. Além de cantar e dançara Roda, o grupo canta outros gêneros musicais que eles chamam de Valsa e Rojão de Roça, todos relacionados ao trabalho”. Tal como o samba e tantos outros gêneros de domínio da cultura popular, a palavra “coco” é usada com liberdade para designar formas de expressão musical variadas. Além disso, na estrutura do canto existem os versos curtos, intercalados por refrões também curtos, e versos longos, muitas vezes em forma de embolada, bem à maneira dos cocos cantados em Arcoverde. Mas, de acordo com Maria Araújo, a dança quase não acontece mais. “Hoje em dia não tem mais casas de taipa, né? É tudo de tijolo”. “As novas num querem aprender. Ói, eu morrendo, Maria do Carmo, merimã (minha irmã), Maria Feitosa, merimã, Maria da Conceição, merimã (morrendo)... o coco vai acabar!”, se entristece D. Maria Feitosa. Já Seu Antônio Barbosa é mais otimista: “A gente vai tentando pasSERVIÇO sar para os ‘infanEu tiro o couro do dançador til’, pra não acabar, Coco deTebei né?”. E, se depenSambada der do registro R$ 25,00 etnomusicológico feito pela Sambada, acaba não. É Lançamento oficial do CD/DVD no dia 23 de novembro, no só o recomeço ou Pátio de São Pedro, a partir das 20h, entrada franca. o começo de uma Assista ao DVD do Coco de Tebei pisada em outros www.continenteonline.com.br chãos.
Os casais dançam enlaçados, num sapateado quase hipnótico, com os pés definindo o ritmo
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Imprensa no Brasil
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CRÔNICA
Sentimento do Recife Jorge Abrantes
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Jorge Abrantes dos Santos nasceu em 24 de março de 1917, em São José do Egito (PE) e morreu em 29 de abril de 1961, no Recife. Foi advogado, jornalista e bibliotecônomo. Fundou a Associação dos Jornalistas Proflssionais de Pernambuco, em 1942, depois transformado em Sindicato dos Jornalistas. Foi funcionário do Departamento de Documentação e Cultura da Prefeitura Municipal do Recife e do Instituto Brasileiro de Geografla e Estatística, no Rio de Janeiro. Foi também presidente da Associação de Imprensa de Pernambuco.
Leia mais crônicas de Jorge Abrantes www.continenteonline.com.br
poeta falou do sentimento do mundo, que envolve aqueles para quem as circunstâncias de região, de pátria, de classe, de proossão, de religião, não constituem limitação aos anseios de libertação do espírito. Falo, também, de um “sentimento do Recife”, que se pode generalizar no sentimento do lugar onde se nasceu ou onde se vive, qualquer coisa difícil de deonir e da qual podemos dizer desajeitadamente, neste particular, ser a aonidade, a correspondência de coração e de inteligência que liga esta nossa cidade à personalidade de cada um dos que a amamos. Sim, porque há os ingratos e os ausentes, que brotaram para a vida e se ozeram homens dentro dos muros do Recife, ou que do Recife ozeram a cidade da sua vida, mas têm a alma seca ou fechada a esse amor. Poderá haver quem, contemplando um trecho velho e familiar do Recife, conhecendo a casa onde nasceu, revendo as casas onde sucessivamente morou, passando pelo beco onde bateu bola, pela campina onde soltou papagaio, pela janela onde namorou, pelo grupo escolar e pelo colégio onde estudou, pelos lugares onde vagabundou; poderá haver quem não se enterneça e não tenha, ao menos, a revelação desse sentimento? Infelizmente há. E esses não entendem o que quero dizer. Tentarei explicar-lhes, pela minha experiência pessoal. Em primeiro lugar, não sou daqui, mas do sertão Mas, apenas acidentalmente do sertão. Cresci, criei-me, estudei no Recife. Os meus primeiros passos para a vida foram aqui encaminhados. Aqui sofri os percalços da infância pobre. Morei numa casinha de porta e janela da rua de San-
ta Cecília, por trás da mole da Basílica da Penha e os meus primeiros deslumbramentos urbanos foram os ofícios religiosos nessa igreja e o imenso bazar colorido e ruidoso do Mercado de São José. Aí comecei a ir à escola, levando chuva como um pinto nos feios invernos recifenses, mas às vezes levando por gosto... Aí comecei a ter contato com a vida maior, num grande colégio do bairro burguês da Boa Vista. Entrementes, brincava no areal do Chupa, hoje sepultado sob o calçamento moderno e brincava de quadrilha à noite, na praça Sérgio Loreto, que foi a Campina do Bode, por causa de um português que ali morava e se chamava Bode etc. Ali oz as minhas primeiras experiências à margem do carnaval do Recife, os grandes carnavais de 1925 a 1926. Daí saí uma vez, com minha família toda, para assistir à chegada do “Jaú”, quase morrendo esmagado pela multidão que se comprimia na Praça Rio Branco. Morei também na Rua Augusta e vi crescer em torno de mim a Revolução de Trinta. As rajadas de metralhadora varriam a rua e a gente encolhida dentro de casa... Quando passou o barulho, saí escondido para a rua, para espiar o movimento e vi na praça da República um homem morto, envolvido em papel de bobina do Jornal do Commercio, que tinha sido assaltado. Morei Lima uma dúzia de vezes no arrabalde então proletário da Torre e brinquei os brinquedos de menino nas suas areias brancas e ardentes de sol. Às vezes, ia com minha mãe ao bairro do Recife e admirava-me do progresso “notável” da cidade, com aqueles prédios da avenida, então os mais novos e
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"Cinematographista" cobrindo a festa da vitória do movimento revolucionário de 30, na zona portuária do Recife
imponentes. E minha mãe falava do traçado antigo daquele bairro, inteiramente diferente do de hoje, com o cais da lingüeta, a Igreja do Corpo Santo e uma inonidade de ruas e ruelas antigas; falava dos arcos que, como a igreja, tinham sido demolidos. Notáveis eu achava também aquelas estátuas da ponte Maurício de Nassau. Amplo e misterioso achava o porto. A vida da cidade girava em torno de mim, mas eu não chegava a aprender todas as suas manifestações Os ruídos da política, da imprensa, da vida social chegavam-me como ecos abafados e, no entanto, eu sabia que aquela entidade complicada e de mil formas era o Recife, a minha cidade. Com a idade, a decifração desse mistério se foi fazendo lentamente, lentamente, ao
mesmo tempo que eu desbravava a topograoa recifense, via paisagens novas, trechos inéditos, recantos desconhecidos. Um conhecimento em extensão geográoca e em penetração psicológica. Houve também um desvendamento retrospectivo, pelo qual se me revelou toda a perspectiva histórica, desde o largo cenário do presente até aquele ponto obscuro, de onde tudo proveio: o velho burgo de pescadores e negociantes. E, de tudo isto, nasceu essa compreensão e esse amor, a que chamo, um pouco imperfeitamente, o sentimento do Recife. Sentimento de que está impregnada a obra de Mário Sette, a de Gilberto Freyre, e de tantos outros escritores, ensaístas, poetas e homens de cultura em geral. Sentimento que move e ani-
ma a Diretoria de Documentação e Cultura em sua missão de registar todos movimentos de vida da cidade, de reconstituir o seu passado e de acompanhar e incentivar as suas atividades de cultura. Sentimento de todo recifense digno realmente desse nome e que ama esta cidade acima de todas as outras. Esse amor não conhece condições de inteligência, cultura, situção socialea pode vibrar tanto no coração do rico que prefere aqui aplicar os frutos de sua riqueza, em beneocio do desenvolvimento da cidade, quanto no do pobre homem da rua, convicto de que “não há cidade como o Recife”, onde se faz o melhor carnaval do mundo... (Publicado no Boletim da Cidade e do Porto do Recife, em 1944) . NOV 2008 • Continente x
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metrópole
Mosélááo Soudoifi
A eloqüência dos silêncios brei o fllme Uma relação pornográfica, onde o casal protagonista, absolutamente (pós) moderno em sua resolução de se relacionar apenas sexualmente, é vítima do silêncio combinado. Os não ditos do fllme remetem, em um certo sentido, ao conto Missa do Galo, ambas as obras sublinhadas pela imobilidade resultante da comunicação insuflciente. Todo o diálogo que ocorre, nos dois casos, é mudo – uma conversa cujas respostas são apenas imaginadas. O desfecho, frustrante para nós, leitores e expectadores, também é provocador: a vontade que dá é de sair destilando revelações e verdades por aí, esquecendo a proteção que as máscaras nos dão. No fllme, a relação, antes apenas física, passa a ser de amor. O desejo se concretiza, mas o amor não, fadado que está à interpretação unilateral dos envolvidos. Na prática, nenhum dos dois tem coragem de dar o primeiro passo e assumir que ama, preocupados demais em não deixar transparecer a vulnerabilidade que o sentimento provoca. Se somos também o que os outros pensam de nós, o casal, que se supunha não amado, torna-se não amado de fato. O que não se diz ou não se faz, não existe, aflnal. O mesmo silêncio que envolve a dupla machadiana destrói a possibilidade neste caso. Estarão eles evitando, assim, um sofrimento maior no futuro? Talvez, mas não conseguimos evitar, personagens, leitores e expectadores, a sensação angustiante de vida vivida pela metade. Cabe a cada um descobrir em qual dos dois mundos prefere transitar. Reprodução
A
s recentes comemorações em torno da efeméride machadiana suscitaram, entre os que analisaram sua obra, poucas unanimidades. Uma delas, porém, dizia respeito às possibilidades de interpretação que o autor permite em seus textos, tão variadas que até hoje são elas os principais objetos de investigação entre acadêmicos, teóricos e críticos. As dúvidas, neste caso, estão relacionadas muito mais ao que se cala do que ao que se diz. Os não ditos impulsionam a ação ou a paralisia das personagens, e ultrapassam a obra inoculando no leitor a mesma vontade de saber, que não se concretiza. A ignorância, porém, em muitos momentos se revela menos desagradável que a certeza, e flcamos felizes assim, apostando que a história vai seguir pelo caminho que nos parece correto ou lógico. Alguém poderia dizer que o contexto da época em que transitavam as personagens de Machado necessariamente evocava situações que tais. Será? Se é verdade que hoje o comportamento social aceito (estimulado?) traduz-se em inflnitas possibilidades de dizer, ancoradas por uma necessidade esquisita de exposição que não se limita à intimidade dos envolvidos, é também verdade que as relações humanas, ainda assim, são entremeadas por silêncios. Comunicar continua sendo um exercício de inferências e deduções, e, como tais, às vezes acertadas, outras completamente equivocadas. Trazendo a questão para a contemporaneidade, lem-
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