aos leitores
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aneiro é o mês em que se adotam oficialmente as regras do Novo Acordo Ortográfico, válido para os oito países falantes da língua portuguesa, localizados na Europa, África, América do Sul e Ásia. Fruto de negociações iniciadas nos anos 1990, o Acordo busca a padronização da forma gráfica das palavras, já que, como apontou o seu principal negociador brasileiro, o filólogo Antônio Houaiss, qualquer língua em uso “está sujeita a variações fonéticas, morfológicas, sintáticas, vocabulares”, justamente por ser utilizada por indivíduos de localidades e culturas diversas. O Acordo explicita propósitos de natureza política, pedagógica e comercial, e em torno dele nem tudo é consenso. Há usuários da língua portuguesa que contestam sua aplicação, por considerá-la nem sempre justificável. Nesta edição, a Continente trafega na tentativa de conciliar a necessidade de reunir informações técnicas para adoção do Novo Acordo Ortográfico e de ouvir as variadas opiniões a seu respeito. Com relação à necessidade de informação, criamos a cartilha A última do português, em que são apresentadas as mudanças estabelecidas nas 21 bases do Acordo. Encartada neste nº 97, a cartilha pretende servir a consultas dos mais variados leitores: crianças, jovens e adultos; e, por isso, buscamos linguagem objetiva e bem-humorada. No que diz respeito ao que se poderia chamar de polêmica em torno da necessidade e oportunidade do Novo Acordo Ortográfico, convidamos dois jornalistas para produzirem textos em que variados pontos de vista e opiniões podem ser cotejados. Desse modo, pretendemos estimular o debate e a compreensão sobre a nova medida, que afetará todos, mas, sobretudo, aqueles para quem a língua é instrumento de trabalho.
Libório
Discutindo o Novo Acordo
Ainda neste mês, em que ocorre no Recife o Janeiro de Grandes Espetáculos, discutimos a importância dos festivais de teatro no fomento à nova dramaturgia e à formação de público, sendo esta a nossa reportagem especial. Gostaríamos ainda, leitores, de convidá-los a opinar sobre o conteúdo da Continente, não apenas quanto à edição que têm em mãos, mas também quanto à publicação como um todo. A Revista está em seu nono ano de existência e, em abril próximo, fará circular o nº 100, para a qual planejamos uma edição especial, contando com sua colaboração. Enviem comentários para redacao@revistacontinente.com, ficaremos felizes em recebê-los.
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Evaldo Parreira/Divulgação
Padronizando a língua de Camões
Fotografias de Evaldo Parreira
Fotos: Reprodução
Orquestras jovens ganham espaço
O cinema que vem da Índia CONVERSA 4 >> Glauco Mattoso e sua ligação com as tradições literárias BALAIO 10 >> Joyce se recusou a assinar protesto contra peça de Yeats CAPA 12 >> Polêmicas em torno do Novo Acordo Ortográfico FOTOGRAFIA 26 >> O olhar de viajante de Evaldo Parreira MÚSICA 34>> Jovens promovem interiorização da música orquestral 37 >> Autoritarismo policial no cancioneiro popular 40 >> Alessandra Leão busca o sagrado em seu novo CD 42 >> Agenda música PERFIL 46 >> Liêdo Maranhão cataloga falas e costumes do povo ARTE 50 >> Museu do Homem do Nordeste reabre com aquisições
ESPECIAL 58>> A vocação social dos festivais 62>> Diálogo entre palco e platéia 66 >> Tradição dramatúrgica em Pernambuco QUADRINHOS 70 >> Os 80 anos de Tintim LITERATURA 76 >> Marcus Accioly compõe personagens do século 20 80 >> Poetisas modernas traduzidas por Jorge Wanderley 84 >> Agenda livro TRADIÇÕES 86 >> Banda Cabaçal Padre Cícero grava seu primeiro CD 89 >> A vida é um carnaval para o Bloco da Saudade AGENDA.COM 90 >> Yoani Sanches, blogueira dissidente em Cuba CINEMA 92 >> Bollywood imita o pior do cinema norte-americano
HUMOR 54 >> Charges contam a trajetória política de Miguel Arraes
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Marcus Michael
Museu do Homem do Nordeste reaberto www.continenteonline.com.br
A reforma online
Tintim faz 80 anos
e mais... COLUNAS MATÉRIA CORRIDA 44 >> Três ilustres companheiros numa cama TRADUZIR-SE 56 >> A exceção e a regra SABORES 74 >> À mesa com Janete Costa
Aproveitando o gancho do Novo Acordo Ortográfico, o site da Continente reproduz na rede o conteúdo da cartilha A última do português, que circula este mês junto à Revista, para tirar as dúvidas dos internautas em relação às mudanças propostas pela reforma. A enquete do mês também aborda o tema: você está de acordo com o Novo Acordo Ortográfico? Participe!
Confira a programação do Festival Janeiro de Grandes Espetáculos
Ouça o disco Folia de Santo, de Alessandra Leão
METRÓPOLE 96>> Os percalços da tecnologia ESPECIAL Confira a animação da primeira charge publicada por Laílson sobre Arraes
A relevância dos festivais de teatro
Leia um trecho do novo livro de Marcus Accioly JAN 2009 • Continente
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conversa
Glauco Mattoso Divulgação
Criei um antiherói que entra se gabando de ser cego, masoquista, homossexual, vai desafiar o outro a humilhá-lo, e quer ser humilhado. Aparento ser perdedor e justamente me fazendo de perdedor é que vou me reafirmando
Contracultural desde sempre
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Autor de seis pelejas de cordel, cinco virtuais, o paulistano Pedro José Ferreira da Silva, Glauco Mattoso, fala sobre seu vínculo com as poéticas da voz e sobre a relação entre o artesanal e o erudito ENTREVISTA A Maria Alice Amorim
L
íngua afiada, o poeta, ficcionista, ensaísta Glauco Mattoso critica costumes, satiriza a política, maldiz a cegueira, consumada em 1995, mas não cruza os braços. Labuta diariamente com um computador falante e com os recursos mnemônicos da poesia rimada e metrificada, sem perder de vista transgressões e subversões que pratica na sua escrita maldita, desde os tempos da marginália dos anos 70. Visceralmente ligado a autores fesceninos e submundanos, a exemplo de Bocage e Aretino, a desconstrução poética que exercita a partir dos anos 90 muda o foco: desprende-se do recurso às visualidades do texto concretista para adotar o uso das oralidades tradicionais. E é aí, a partir dessa época, que reacende o fascínio pela poesia popular nordestina e inaugura um caso amoroso com o soneto, a glosa e a literatura de cordel. Autor de seis pelejas de cordel, cinco delas virtuais, ou seja, realizadas com outros poetas, via internet, nesta entrevista, o paulistano Pedro José Ferreira da Silva, 57 anos, comenta sobre o vínculo que estabelece com as poéticas da voz e como esta relação reitera o iconoclasmo e o fazer artesanal erudito da sua produção literária. Transitar do underground à tradição pode soar como paradoxo, no entanto, a vocação polêmica mantém-se na dianteira da obra de Glauco Mattoso, com esmero formal digno dos eternos paradoxos do Barroco, numa dicção única, contracultural desde sempre. Autor de mais de três mil sonetos, amante das formas fixas na
poesia, e ao mesmo tempo ícone da marginália poética dos anos 70, como se dá esta sua ligação com as tradições literárias? Estudei muito os poetas que têm a tradição fescenina, que contêm parte daquele veio subterrâneo de que falava José Paulo Paes. É uma tradição muito antiga, não tem nada de vanguarda, pelo contrário, está ligada às raízes mais remotas da poesia, que é o fescenino de Marcial, de Catulo, passando pelos goliardos da Idade Média, pelos poetas malditos. É toda uma tradição de poesia malcomportada, e dessa tradição fazem parte Gregório de Matos, Bocage, Laurindo Rabelo e vários outros. O Laurindo Rabelo, quando foi para a Bahia, instruiu-se com o repentista Moniz Barreto e aprendeu a fazer aquelas glosas. Ele é tido hoje como um Bocage brasileiro, mas teve aulas foi de um outro repentista já experiente. E dessa tradição fazem parte muitos glosadores, inclusive o Moisés Sesiom, lá do Rio Grande do Norte. E Moisés Sesiom é que é considerado o Bocage brasileiro. Desde que comecei a pesquisar Bocage e outros fesceninos portugueses, como o Lobo da Madragoa, por exemplo, e o Abade de Jasente, percebi a questão: tal poema foi escrito por ele mesmo ou é atribuído a ele? No caso de Bocage, há um xará meu, o Pedro José Constâncio, que convivia com aqueles poetas e dele seriam vários sonetos atribuídos a Bocage. Então, adotei a seguinte postura: vou cultivar o folclore. E o que é cultivar o folclore? Se houver uma lenda corrente de que tal pessoa existiu, ainda que não exista, é incrementar a existência desse mito. Para mim, Zé Pretinho existiu e quero que ele tenha existência
real. Se preciso, pesquiso o personagem até atribuir existência real a ele, mesmo sabendo que pode não ser. Na verdade, cada vez que a gente desmistifica um mito, está empobrecendo a tradição cultural. E Zé Limeira? É a tal história, quando aparece uma personalidade muito forte, funciona como um imã, vai atraindo sobre si uma porção de apócrifos, que lhe são atribuídos. Mas isso é bom, começa a alimentar a lenda e engrandece a figura do poeta. E, por tabela, engrandece a tradição poética. Se não fosse assim, o que seria de Homero? O que seria de Shakespeare? Criei um sítio chamado Sonetário brasileiro, onde ponho um verbete para cada sonetista, e então criei um pequeno verbete para Zé Limeira, coloquei alguns sonetos e eu mesmo cedi à tentação de fazer umas “correções”. Depois percebi que aqueles sonetos não poderiam ser do Zé Limeira, mas, de qualquer forma, são sonetos bem à maneira dele. Esse tipo de conspiração é o que sempre existiu na literatura. No Nordeste, há um caldo de cultura próprio para a proliferação desses tipos lendários. Desde quando vem a sua relação com o Nordeste, com a poesia de tradição nordestina? Vem desde o tempo do Jor nal Dobrabil, em que me correspondia com o Bráulio Tavares. Naquela época, eu recebia do Bráulio uma série de informações sobre o que ele andava fazendo com a poesia nordestina. Foi realmente um revolucionário, porque na época do Trupizupe ele estava fazendo a ponte com a contracultura. Existe uma JAN 2009 • Continente x
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Pesquiso o personagem até atribuir existência real a ele, mesmo sabendo que pode não ser. Cada vez que a gente desmistifica um mito, está empobrecendo a tradição cultural
relação entre o folk rock e a poesia nordestina, que é uma coisa de menestrel, aqueles poemas longos que sempre têm uma conclusão numa espécie de refrão. E existe também uma estrutura poética muito parecida – embora não seja tradição ibérica – e ainda um espírito comum, que é aquele do menestrel, itinerante, aquela coisa meio medieval. E Bráulio personificava muito isso. Então, juntamente com informação contracultural da poesia, me mandava coisas antigas, tradicionais, coletâneas de glosas famosas, coisas fesceninas e cordéis inteiros. Que cordéis, por exemplo, você relaciona à memória dessa época do Dobrabil? Cheguei a publicar um cordel inteirinho dentro do Dobrabil, que era O doutor Caganeira, o homem que borrou o mundo inteiro com uma cagada. Dizem que esse cordel já era uma espécie de versão apócrifa de um outro mais antigo e assim por diante. Já havia uma espécie de adulteração ali, de reapropriação. O cordel, tal como Bráulio me mandou, imprimi na íntegra, juntamente com outras coisas. E aí comecei a me interessar por essa forma, embora eu não a praticasse regularmente, porque na época do Dobrabil estávamos todos fazendo experimentações poéticas, era um verdadeiro laboratório e ali se misturavam grafitos de banheiro, poesia concreta, não havia muito espaço para uma disciplina, como é necessária para trabalhar com a redondilha, a base da poesia nordestina. Tudo aquilo que publiquei no Dobrabil vim a revisitar, quando comecei a fazer poesia depois de cego. Entre o Dobrabil e a poesia
que faço agora, houve um período intermediário, quando Bráulio introduziu o limeirique. E o que é o limeirique? O Bráulio viu que o limerick, que é uma forma fixa muito comum na língua inglesa, não existia em português. Ao contrário do haicai, que foi aportuguesado, abrasileirado por Guilherme de Almeida, Afrânio Peixoto e outros, o limerick não tinha nada adaptado. Bráulio, vendo que o limerick tinha um grande conteúdo satírico, lembrou do Zé Limeira e falou: “Vou fazer a associação, Limeira, limeirique”. Introduziu, mas em versos livres, e eu, então, sistematizei. Criouse uma estrofe-padrão e comecei a praticar esse limeirique. Depois de cego, voltei a praticar a poesia metrificada através de sonetos, aí abordei de vez a redondilha para fazer as glosas, as décimas. Nesta seara da poesia de tradição, e na condição de pelejador virtual, qual a importância que você atribui às pelejas de cordel? A peleja é um grande laboratório. Os poetas testam, experimentam todas as formas possíveis. É muito didática, você vê como são feitos todos os moldes, todas as estrofes, todos os tipos de martelo, a quintilha, a sextilha, a septilha. Eu gosto da peleja também por causa disso, porque você exercita várias maneiras, apesar de que a sextilha é a mais comum. Tanto é que muitos cordéis são feitos somente em sextilhas, geralmente aqueles históricos. É uma espécie de estrutura narrativa, que comparo à oitava, em relação à poesia épica. Assim como você pode ter um poema longo todo em oita-
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Pelejas entre Mattoso e poetas contemporâneos mantêm tradição fescenina de um Bocage
alguns elementos muito pessoais nesse cordelismo, e o xibunguismo é um deles.
vas, como Os Lusíadas, no caso da poesia popular é a sextilha que faz o papel da oitava. Mas você consegue fazer poesia de improviso? Não sou um repentista instintivo, posso até improvisar alguma coisa, mas um improviso provisório, sem querer fazer trocadilho. Verifico muito cuidadosamente as acentuações, as rimas, e essa verificação exige que o verso seja repensado várias vezes. Até brinquei que o meu cordel é de gabinete, não é de praça pública, não é um cordel de roda de cantador. Agora o que acho original é justamente isso: fazer uma peleja como se faz um cordel pensado. A peleja pela internet possibilita isso. Minha peleja com Astier, por exemplo, levou alguns meses, ela simula um duelo que seria feito numa noite. A internet promoveu uma revolução, porque não apenas perpetuou o gênero “peleja”, como criou uma nova maneira de pelejar. E nessa nova maneira de pelejar no cordel, como é que o poeta Glauco Mattoso constrói sua própria dicção poética? Criei um anti-herói que entra se gabando de ser cego, masoquista,
homossexual, vai desafiar o outro a humilhá-lo, e quer ser humilhado. As minhas pelejas são em cima dessa proposta: aparento ser perdedor e justamente me fazendo de perdedor e deixando que o outro tripudie é que vou me reafirmando, e o outro vai fazendo o que quero. É um mecanismo diferente da lógica do cantador, que quer vencer provando que é melhor. Mas se eu, como anti-herói, quiser que o outro me vença e se ele faz isso, faz o que quero, portanto eu é que sou o vencedor. É uma estratégia diferente, e como “xibungo” é um dos nomes mais pejorativos para o homossexual, criei o xibunguismo, para fazer ponto ao cabramachismo, aquela mentalidade viril que poetas adotam, como uma espécie de escudo. Inverti essa tendência e criei o anti-herói xibungo. É um prolongamento da minha voz poética, da minha personalidade poética, que já é masoquista normalmente, por várias decorrências biográficas, e que acaba desaguando nessa figura xibunguista, o personagem de cordel que quer perder, que, quanto mais perde, mais se realiza como perdedor, ou seja, mais ele ganha. Não me considero um mero cordelista. Introduzi
Você adota, então, fórmulas poéticas tradicionais sem maquiar de maneira nenhuma esse contexto bem particular da vida do poeta? Exatamente. Usar a fórmula a seu favor é ser fiel à sua biografia, é dar o seu recado com a sua personalidade, não se confundir com os demais, mas ao mesmo tempo inscrever-se na tradição geral, não renegá-la, e, sim, participar dela. Acho que a melhor maneira de se afirmar individualmente, inclusive dar uma contribuição original à cultura literária, é justamente preservando os valores tradicionais e se afirmando como personalidade dentro desses valores. Se você tiver que subverter alguma coisa, você subverte por dentro, não destruindo. É o que tenho feito com o soneto. Apesar de ser formalmente o mesmo soneto clássico, mexi na temática e questionei tantas coisas, fiz uma espécie de metalinguagem do soneto. Rediscuto o soneto, dentro do próprio soneto. E, numa certa medida, fiz isso também dentro da redondilha, da décima, do cordel. Uma proposta não tão volumosa, mas pode encontrar eco depois, em atitudes poéticas assumidas por outros. Assim como criei o xibunguismo, outro poeta com um fato biográfico muito relevante pode afirmar este fato através de um outro “ismo”. Os “ismos” se tornaram individualismos, ao invés de coletivismos. Mas, como sou cultivador eterno do paradoxo, o individualismo não se afirma sem você ser fiel ao coletivismo, ou seja, à tradição. JAN 2009 • Continente x
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ononono
ESPECIAL FESTIVAIS DE TEATRO ESTIMULAM AUTORES E PLATEIA
Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, AnAno IX • Nº 97 • Janeiro/2009 • R$10,50
gola, Guiné-Bissau e Timor Leste. Todos juntos em
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
umcontinenteonline.com.br novo acordo de unificação da língua. Não tí-
ideia
nhamos idéia de qual seria o primeiro país em que
QUÊ? a nossaPARA aeronave aterrissaria. Pelo que nos falou o COMO?
direção aos oito outros países de língua portugue-
Pernambuco sabe onde está indo, por isso acelera o ritmo para chegar aonde quer: ser de novo a locomotiva do Nordeste,
Presidente Leda Alves
melhorando a vida das pessoas à medida em que avança
DO NOVO ACORDO
É COM TRABALHO QUE PERNAMBUCO SE TRANSFORMA.
opção de grafia).
Cartilha com as regras que GRÁTIS passam a valer em 2009
capa manuscrito .indd 34
Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Adriana Dória Matos
leem
quase sempre lêem revistas no trajeto, para esqueORTOGRÁFICO
vamos chegom aspebom aspeto, dependendo da
dessa esperança. Movidos pela força do trabalho que tudo
Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses
Superintendente de Edição
paraquedas
to do pára-quedas, aviso de praxe. Os passageiros
OK
Os pernambucanos podem ser muito mais que passageiros
transforma, podem ser os condutores do próprio crescimento.
sa. O comissário de bordo explicou o funcionamen-
cer o medo das alturas. Ao desembarcarmos, está-
na realização de suas metas rumo a um grande futuro.
Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo
O PORTUGUÊS REVISTO EFEITOS
sim começou a nossa viagem, saindo do Brasil em
Feliz 2009 Mais saúde e educação.
Ano VIII • Nº92 •Agosto/2008 • R$10,50
Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão
voo tranquilo
bem-humorado POR QUÊ?piloto, seria um vôo tranqüilo. As-
Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos
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Colaboradores desta edição: ALEXANDRE FIGUEROA Jornalista, crítico de cinema e doutor em estudos cinematográficos. CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico musical. DIANA MOURA Jornalista e mestre em comunicação.
Superintendente de Criação
Luiz Arrais
Redação Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira Thiago Lins (assistente) Maria Helena Pôrto (revisão) Eraldo Silva (webmaster) Diogo Guedes, Gabriela Lobo, Lucas Paes e Yuri Bruscky (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio) Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza
DANIEL PIZA Jornalista e ensaísta. EVALDO PARREIRA Fotógrafo. FÁBIO LUCAS Jornalista e mestre em filosofia. FERNANDO MONTEIRO Escritor. ISABELLE CÂMARA Jornalista.
Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)
JOSÉ TELES Jornalista e crítico musical.
Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves
KIL ABREU Jornalista e crítico teatral.
Supervisão de Impressão Eliseu Souza
Janeiro 2009 – Ano 9
Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes
Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão Contatos com a Redação 3183.2780; fax: 3183.7783; redacao@revistacontinente.com.br Edição eletrônica www.continenteonline.com.br Atendimento ao Assinante 08000 81 1201/3183.2750; fax: 3183.2750; assinaturas@revistacontinente.com.br Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita
LUIZ CARLOS MONTEIRO Poeta e crítico cultural. MARCELO ABREU Jornalista. MARCO POLO Jornalista e escritor. MARIA ALICE AMORIM Jornalista e pesquisadora em cultura popular. RODRIGO DOURADO Jornalista. URARIANO MOTA Jornalista e escritor.
Colunistas: FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor. JOSÉ CLÁUDIO Pintor. MARCELLA SAMPAIO Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.
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cartas
Arquivo CEPE
Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3183-2780 – 81 3183-2783 Redação: redacao@revistacontinente.com.br
ARTE EM CUBA Gostei muito da matéria sobre a cultura cubana, particularmente a que fala sobre as artes plásticas. É um assunto ao qual a gente não tem acesso e fiquei surpreso em saber que os artistas cubanos, mesmo os que ficaram na ilha, conseguiram se manter antenados com a contemporaneidade, longe do realismo socialista que castrou tantos artistas na Rússia. Também achei bom terem destacado, em foto, Ana Mendieta, uma artista fantástica, exilada nos Estados Unidos, mas indissoluvelmente ligada à sua Cuba de nascimento. E parabéns pelo tom isento que dominou toda a matéria, criticando o que deveria ser criticado e elogiando o que merece elogio. É raro isso. Amaro O. Simas, Recife–PE
MAIS LITERATURA CUBANA A reportagem “Literatura da ilha tem peso forte no mundo”, publicada na edição de dezembro, traça um panorama histórico e político das letras em Cuba a partir da Revolução. Ela aponta autores e situações extraliterárias, como as diferentes posturas políticas adotadas por autores que permaneceram na ilha, o apoio da comunidade intelectual internacional à ilha contra o bloqueio americano etc. Entretanto, seria interessante que na oportunidade tivessem sido abordados aspectos propriamente literários, como gêneros, formas e temáticas desta literatura tão peculiar quanto estranha à maioria dos que vivem no continente. Fica a sugestão, portanto, de que a Revista aborde mais da literatura cubana. Isadora Franquinho , Fortaleza–CE
NÃO PRATICANTE Bela declaração do escritor Marcelino Freire. Adorei a frase "homossexual não praticante". Mas o que ela quer dizer?
O PODER DOS BOATOS Parabéns pela matéria de capa de novembro. Os boatos da internet estão mesmo com a corda toda.
Clara Almeida, Recife–PE
Daniel Assis, Caruaru–PE
O professor e ensaísta Lourival Holanda
A utopia é uma forma de resistir à autocomplacência, à auto-satisfação como compensação ao pior do presente. Dar forma a um sonho social é um modo de resistir ao caos. A utopia pré-fabrica a história, superandoa. Como abdicar da esperança? Sem ela não surge o inesperado. Improvável não é impossível. Falei do pior no presente: o pior é uma consciência passiva, que abdicou de fabricar significações. A utopia é um modo de desbloquear o imaginário social. Utopia e liberdade se conjugam para conjurar o determinismo social pela poética do possível. Há umas Cassandras tristes cantando o fim das utopias porque uma aposta tornou certos sonhos inexeqüíveis. E então transformam os fracassos circunstanciais em utopias negativas, bloqueando a esperança num beco sem saída de qualquer projeto social possível. Lourival Holanda
Revista nº 56 Agosto/05 Matéria: “Tristes tempos pós-utópicos” JAN 2009 • Continente
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Um contato musical Afoxé, bloco de samba, bloco de pau e corda, boi de carnaval, caboclinho, ciranda, clube de boneco, clube de frevo, coco, índio, mascarado, troça, urso. Estes são alguns dos grupos de tradição listados no Catálogo Música Recife, publicado pela Prefeitura do Recife. O catálogo não é vendido nem emprestado, mas oferecido aos que integram a cadeia de produtores musicais daqui e de acolá. A publicação é bilíngue (português/ inglês) e pode ser solicitada pelo e-mail musica.recife@gmail.com. Dele também constam contatos de estúdios, produtores, DJs e artistas contemporâneos. (Adriana Dória Matos)
Celular colombiano Nas ruas de Bogotá e da Cartagena, não é fácil encontrar orelhões. Mas se engana quem pensa que os colombianos não são chegados a conversas ao telefone. Pelo contrário, eles gostam muito de falar. São os “alugadores de celular” que suprem esse filão do mercado. Nessa profissão, homens e mulheres andam com cinco, 10 celulares presos às suas roupas, alugando-os para que os transeuntes possam fazer ligações, pagando, em média, 200 pesos (equivalente a 20 centavos) por minuto. Eles estão em praticamente todas as esquinas e parecem ter um público fiel. Fica a ideia de mais uma possibilidade de trabalho para os brasileiros, em tempos de crise. (Mariana Oliveira)
Resenhista confesso Sobre a tarefa de escrever apreciações sobre livros, que para muitos parece um elaborado exercício intelectual, revestido das mais altas intenções, George Orwell nos legou um retrato mordaz, no breve Confissões de um resenhista: “É quase impossível mencionar livros a granel sem enaltecer de forma grosseira a grande maioria deles. Antes de ter algum tipo de relação profissional com livros, não se descobre quão ruim é a maioria deles. Em bem mais do que nove entre 10 casos, a única crítica objetivamente verdadeira seria: ‘Este livro não tem mérito’, enquanto a verdade sobre a reação do próprio resenhista provavelmente seria: ‘Este livro não me interessa de forma alguma, e não escreveria sobre ele a não ser que fosse pago por isso’ ”. São os ossos do ofício, esmigalhados por quem sabia do que estava falando. (ADM)
DESAFORISMOS
"Deus é grande, mas não é dois." Lourenço Mutarelli, escritor e desenhista.
Quem te vê...
Quando tinha 14 anos, Chico Buarque, compositor de diversas canções de protesto contra a ditadura, aceitou parar de jogar o seu amado futebol. O sacrifício foi uma exigência da Ultramontanos, um embrião da organização religiosa de direita Tradição, Família e Propriedade para qual Chico foi aliciado junto com 15 colegas de sala. De acordo com os fanáticos, o juízo final logo chegaria e só os escolhidos por Deus seriam salvos. O jovem Chico só deixou a organização depois da intervenção do pai, Sergio Buarque de Holanda, que afastou o adolescente, mandando-o para um internato no interior de Minas Gerais. (Diogo Guedes)
Jovem libertário O escritor James Joyce até hoje espanta pela sua complexidade e transgressão. Tanto pela forma como pelo conteúdo da sua obra, o irlandês sofreu com a censura a alguns de seus livros. Nos Estados Unidos, por exemplo, Ulisses foi proibido até 1933, 11 anos depois da sua primeira publicação pela Shakespeare and Company. Mesmo antes de ser vítima do puritanismo, Joyce fazia defesa da liberdade na arte. Quando ainda estudava no Clongowes Wood College, um colégio de jesuítas, foi o único aluno que se recusou a assinar protesto contra o conteúdo “pagão” da peça A condessa Cathleen, de W. B. Yeats. (DG)
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Jogo de sentidos
Em 1913, as palavras cruzadas foram criadas pelo americano Arthur Wynne, do The New York Word. O passatempo de 95 anos, no entanto, tem origens ainda mais antigas. A ideia de adivinhar e cruzar palavras vem desde o Antigo Egito, quando registros apontam que alguns hieróglifos costumavam ser lidos em mais de uma direção. Além disso, William Shakespeare, ainda no século 16, era conhecido por gostar dos jogos com as letras. Tinha como um dos favoritos os acrósticos – forma textual onde as primeiras letras de cada verso geram uma palavra –, vistos com freqüência nos seus poemas. (DG)
Paulo Bruscky é o tipo de artista que anda por todos os cantos interagindo com o lugar, atento a qualquer senha ou iluminação que abra sentidos, literais ou diversos. Esta afirmativa pode parecer banal ou evidente, mas não são todos que cultivam a arte do flanar atento. No caso desse artista, a atenção aos signos urbanos adquire uma divertida carga de humor, não raro transformada em jogo verbal. Foi justamente o que aconteceu em 1982, quando Bruscky deparou-se com a sigla do Ministério da Infância e da Juventude, em Paris. Como estava indicado “MIJE” no muro de entrada, ele não teve dúvida: cumpriu a “ordem”, ainda que numa simulação. O próprio artista explica a brincadeira com o sentido das palavras, tão presente em sua obra: “Subverter sempre só tem sentido se não parecer palavra de ordem, se permitir a recreação, que é o mesmo que recriação”. (ADM)
Categorias exóticas No livro Os detetives selvagens, do chileno Roberto Bolaño, um dos personagens, um poeta gay, faz uma estranha classificação: “Romances, em geral, são heterossexuais, enquanto a poesia é completamente homossexual; acho que contos são bissexuais, embora eles não digam”. Alguém aí concorda? (Marco Polo)
“A história do livro pode ser compreendida como a aventura de um indivíduo para penetrar na consciência do outro. O meio para isso é a linguagem.” Fernando Gerheim, escritor e professor.
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Velho passatempo
A passagem da atuação para a direção “Chegou um momento em que eu estava passando por um processo de desestímulo como ator,então me lancei nessa aventura emocional e fundamental para me sentir vivo como artista e pelo desejo de fazer alguma coisa diferente. E mudança é sempre bom. Faz crescer, evoluir. Eu cresci muito como ator depois dessa experiência por trás das câmeras, em um longametragem. Quando você faz um filme, conta uma história que você escolheu. Tem a sua cara. Diferente de fazer um personagem. Era disso que eu precisava. E eu queria contar a história de alguém que ressurge da lama, que junta os cacos, que refaz a vida. O pano de fundo do Natal só destaca isso, já que é uma épocadelicada e os sentidos estão alterados.” Selton Mello, ator que estreou como diretor de longa-metragem recentemente, com Feliz Natal JAN 2009 • Continente x 11
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NOVA LÍNGUA PORTUGUESA Será que no final de 2012 estaremos discutindo o Acordo Ortográfico? Ou este assunto não terá mais qualquer relevância? Se as novas regras que passam a valer a partir de agora tiverem sido assimiladas, como esperam os países lusófonos, esta será uma página virada. Mas, por enquanto, este fato nos mobiliza, como podemos ler nas páginas seguintes.
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Exposição em homenagem aos 50 anos de Grande sertão: veredas no Museu da Língua Portuguesa
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Entre críticas e elogios,
Acordo Ortográfico
entra em vigor
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filósofo alemão Martin Heidegger escreveu que a linguagem é a casa do ser. Embora o contexto filosófico seja mais amplo, a implementação oficial do acordo ortográfico no Brasil, a partir deste ano, sugere que a casa da língua portuguesa está em reforma – reforma desnecessária para uns, tímida para outros: no Brasil, estima-se que apenas 0,5% das palavras terão sua grafia alterada, enquanto em Portugal o percentual deverá ser de 1,7%. A atual mudança busca aproximar a forma de expressão escrita nos países de língua lusófona, e vem sendo costurada desde 1986. Em 1990, foi assinado em Lisboa o Acordo Ortográfico que deveria ter entrado em vigor em 1994. Em maio do ano passado, uma nova versão foi ratificada por Portugal, para ser posta em prática em seis anos. Em setembro, foi a vez de o governo brasileiro ratificar a proposta. Antes disso, o português escrito no Brasil já tinha experimentado modificações em 1971 e em 1943. Em 1945 houve uma
tentativa de unificação que não vingou. Desta vez, após longas negociações e algumas reações por parte de entidades de intelectuais de Portugal, a reforma ortográfica promete sair do papel com menos ambição e mais pragmatismo, em direção a uma política da língua voltada para ampliar o espaço da lusofonia no cenário global. Seis países, além do Brasil e de Portugal, serão afetados diretamente pela reforma: Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Até 31 de dezembro de 2012, os brasileiros poderão escrever das duas maneiras, sob as novas ou as velhas regras, inclusive nos concursos públicos e vestibulares. Mas, em 2010, os livros escolares terão obrigatoriamente que conter a nova grafia. Entre as principais mudanças, estão a extinção do trema, a ampliação do alfabeto de 23 para 26 letras – incorporando o “k”, o “w” e o “y” – a supressão de acentos em palavras como “ideia” e “voo”, e novas regras para o uso do hífen. Apesar de se mostrar pouco empolgado com a reforma, o po-
eta e ensaísta Affonso Romano de Sant’Anna apóia a sua necessidade. “Parece que houve uma limpeza, um avanço. De tempos em tempos há que fazer isto. Queiram ou não alguns linguistas modernos, a língua, com dizia Humbolt há séculos, é um organismo vivo”. Além do mais, “há muito não usava o trema, ele não me fez falta”, brinca. Para o escritor Moacyr Scliar, trata-se de um modesto e importante passo rumo à unificação do português. “O inglês escrito na Inglaterra é igual ao inglês dos Estados Unidos e do Canadá; a grafia na Espanha é a mesma que se vê na Venezuela, na Colômbia, ou em Cuba. Só no português ocorrem essas variações regionais. Isto tem implicações – e complicações”, observa Scliar, citando o caso de seus livros que são publicados na Europa “em brasileiro mesmo”, na expressão do editor europeu. “Agora estamos avançando, mas chegaremos lá. Como Cabral acabou chegando ao Brasil.” O mercado editorial é um dos grandes interessados na reforma, já que os livros novos trarão a nova
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O que escritores, acadêmicos, filósofos, professores e jornalistas, cuja ferramenta é a palavra escrita, pensam sobre as novas regras da língua portuguesa Fábio Lucas
Para os críticos, a reforma ortográfica é simplesmente despropositada. “Reformas almejam aprimorar, aperfeiçoar, diminuir as falhas e os defeitos funcionais. O que pode pretender uma reforma ortográfica? Muito pouco em termos de unificação, já que as variações nos modos de empregar uma mesma linguagem externam idiossincrasias culturais. Há muito a separar o português falado e escrito no Brasil do de Portugal e outros países lusófonos”, afirma o filósofo e professor da UFRJ, Alberto Oliva. O escritor, tradutor e professor da PUC-Rio, Paulo Henriques Britto, vai mais fundo na argumenta-
ção. “A reforma não vai conseguir o unificar a grafia do idioma. Quem ler o documento oficial vai verificar que muitas palavras continuarão a ter grafias diferentes do Brasil e nos demais países de língua portuguesa. Isso por um motivo muito simples: já existem diferenças no nível do sistema fonológico entre o português do Brasil e o de Portugal”, explica Britto. Para ilustrar essas diferenças, ele lembra que os portugueses escrevem “moramos” para se referir ao presente e “morámos” quando se trata de referência ao pretérito. “Para eles, há de fato uma diferença de pronúncia entre as duas formas. Já para nós, brasileiros, não é possível haver diferença contrastante entre a aberto e a fechado; assim, para nós não haverá acentuação nessas formas pretéritas”. Talvez seja uma dificuldade incontornável. “Unificação ou bem é completa ou bem não é unificação; ‘unificar parcialmente’ é uma contradição em termos. Assim, o objetivo da unificação da ortografia simplesmente não vai ser atingido”, garante o escritor e tradutor.
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grafia, e muitos terão que ser reeditados. “Considero que a meta da uniformização ortográfica visa sobretudo à circulação das publicações em todos os países de língua portuguesa. Creio que prevalecem os interesses editoriais, mais que quaisquer outros”, diz a professora Norma Seltzer Goldstein, do programa de pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa da USP.
“Nenhum decreto, nenhuma lei e nem qualquer comissão técnica ou científica irá fazer um escritor escrever de uma forma diferente do dia para a noite. É impossível. Está fora de questão. Só o tempo criará uma situação favorável à aplicação do acordo, gradativamente.”
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“As principais fontes de dificuldade não são as diferenças de ortografia, e, sim, as diferenças de vocabulário. Qualquer brasileiro compreende uma grafia como ‘ideia’ ou ‘quilómetro’, o que lhe causa dificuldade é encontrar a palavra ‘autoclismo’ no sentido de ‘descarga de privada.’”
PAULO H. BRITTO
Em oposição à Academia Brasileira de Letras (ABL), uma das fiadoras do acordo ortográfico, a Academia Pernambucana de Letras (APL) é contrária às mudanças, fazendo coro às críticas de entidades como a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) e a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA). “A diversidade dentro da unidade linguística é que tem feito a fortuna do nosso idioma”, escreveu o presidente da APL, Waldênio Porto, em recente artigo publicado no Diario de Pernambuco. Segundo ele, a APL “não foi omissa e combateu a implantação da inoportuna reforma, imposta, em grande parte, pelo oligopólio editorial do Rio de Janeiro e de São Paulo”, encaminhando sua discordância em documento enviado tanto à ABL quanto à Academia de Ciências e Letras de Lisboa. A APEL não poupa palavras de ataque ao Acordo, declarando que este “não serve a Portugal”. A partir de um estudo comparativo de livros traduzidos nos dois países, a entidade conclui que “ao contrário do que é dito pelos seus defensores, não se afigura a aproximação das diversas variantes do Português, mas, sim, a consagração das
diferenças naquilo que é fundamental – a sintaxe, a semântica e o vocabulário – com clara vantagem para a variante do Brasil”. O custo financeiro estimado para a sua aplicação também é alvo de bombardeios. “A reforma não é ampla nem abrangente e os países lusófonos ainda conviverão com grafias duplas. Portanto, será gasta uma quantia razoável de dinheiro público, sem que tenhamos de fato a unificação plena. Levando em conta o momento de crise em que vivemos, penso que esse acordo poderia esperar um pouco mais para ser implementado”, pondera o jornalista, escritor e doutor em Letras, Sersi Bardari. O cálculo inicial do Ministério da Educação é de que até R$ 90 milhões sejam gastos com novos dicionários, para atender 37 milhões de alunos dos níveis fundamental e médio no país. A compra pelo governo será realizada depois que a Academia Brasileira de Letras divulgar o vocabulário da nova ortografia, uma vez que há palavras cuja escrita não ficou esclarecida pelas regras da reforma. Paulo Henriques Britto chega a sugerir uma alternativa à refor-
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quem está aprendendo a escrever agora, pois tudo que vier é novo”, reconhece a professora do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Nelly Carvalho. “Acho que a reação dos escritores e da gente alfabetizada vai ser negativa. Você está habituado a escrever de um jeito, e de repente está escrevendo errado... isso agride o ego da pessoa”, diz Nelly. O escritor de Guiné-Bissau, Tony Tcheka, é taxativo neste aspecto: “Nenhum decreto, nenhuma lei e nem qualquer comissão técnica ou científica irá fazer um escritor escrever de uma forma diferente do dia para a noite. É impossível. Está fora de questão. Só o tempo criará uma situação favorável à aplicação do acordo, gradativamente”. Para a professora Norma Seltzer Goldstein, os efeitos no Brasil não serão tão sentidos. “A ‘reforma’ é pequena, traz alterações que vão exigir atenção no início, mas rapidamente serão incorporadas pelos usuários da língua”, aposta ela. Na mesma USP, o também professor de filologia, Heitor Megale, vê a unificação ortográfica como algo que não é essencial para um país
“Política da língua é uma coisa importante. Somos a terceira língua ocidental falada no mundo, atrás apenas do inglês e do espanhol. Somos um dos maiores contingentes de falantes do mundo, e nossa língua precisa ter um reconhecimento internacional.” Foto: Rafael Gomes
ma, a fim de reduzir este e outros custos. “Se você procurar uma palavra com a ortografia britânica – por exemplo, goal –,num dicionário norte-americano, você vai encontrá-la, e lá vai estar escrito: ‘grafia britânica de jail’, o contrário acontecendo se você procurar uma grafia americana num dicionário britânico. Desse modo, é perfeitamente possível um americano utilizar um dicionário britânico e vice-versa. Esse recurso é bem mais barato, a meu ver, do que promover uma reforma ortográfica, que implicará reimprimir todos os livros e gerar uma razoável confusão na cabeça das crianças que estão se alfabetizando e dos adultos que nunca foram completamente alfabetizados, no Brasil e além-mar”, defende Britto. Professores, escritores, editores, jornalistas, publicitários, funcionários públicos e toda sorte de redatores terão que se acostumar ao fato de que não sabem mais escrever. O que era “escrever certo” se tornou “escrever errado”, e mesmo que a reforma atinja um grupo restrito de palavras, muitas delas são de uso frequente (sem trema) para as pessoas que vivem de escrever. “Só não vai estranhar
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Para o acadêmico Moacyr Scliar, é justamente para melhorar a escrita que servirá a reforma. “Ferreira Gullar sempre disse que a crase não foi feita para humilhar ninguém, mas o nosso grande poeta está enganado: a crase foi feita para humilhar, sim, para humilhar aqueles que não sabem usá-la – no Brasil, provavelmente, a maioria da população. Resultado: intimidadas, as pessoas evitam escrever. Porque o português não tem só a crase, tem acentos em profusão”, diz Scliar. A professora Nelly Carvalho participou dos primeiros estudos para o Acordo Ortográfico junto com um de seus principais defensores, o filólogo Antônio Houaiss, que veio a ser porta-voz do gover-
no brasileiro no projeto do Acordo. Segundo Nelly, um argumento de Houaiss era que nenhuma língua no mundo é regida por lei. No caso do português, a burocracia se excede: são duas leis, uma no Brasil, outra em Portugal. A professora recorda Houaiss falando: “É um escândalo! O português é regido por duas leis!”. Na França e na Espanha, são as Academias que regulam o uso da língua, que não é assunto governamental. Para Nelly, esse vício de origem reduz o campo de ação da língua portuguesa. “Precisamos ter assento nos organismos internacionais, e com esse português com duas leis, é impossível”, afirma ela, dando outros exemplos do prejuízo: “Nem na Broadway o português é adotado para traduzir os livretos, porque não sabem a que variante se reportar. Há casos de brasileiros que foram demitidos da Comunidade Européia por escreverem o português usado no Brasil, e não o de Portugal. Em Angola, milhares de livros escolares recebidos do Brasil não puderam ser aproveitados, por causa do mesmo motivo”. Reforçando o exemplo de Nelly, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, na última edição da Festa Literária de Porto de Galinhas, Fliporto, declarou que a reforma irá possibilitar às novas gerações das nações lusófonas o acesso a uma língua simplificada. O jornalista Sersi Bardari, apesar de discordar do momento da implantação, dá mais um bom motivo a favor da reforma – a simplificação do universo da pesquisa. “O Acordo também é positivo face aos avanços tecnológicos, especificamente no que se refere aos mecanismos de busca de informação por meios digitais, uma vez que facilitará a pesquisa na internet”, diz ele. Tal simplicidade costuma ser exaltada no inglês, por exemplo,
“O que há de louvável nisto é que o Brasil e Portugal fizeram o que a Itália, a França, e a Alemanha não têm coragem de fazer com suas línguas.” Foto: Divulgação
como o Brasil. “Se a preocupação constante com ortografia significasse domínio de língua, o Brasil teria tudo para ser a população que escrevesse mais corretamente e falasse melhor ainda. Há 600 anos a língua grega não recebe nenhuma alteração ortográfica, o que não impede que população escreva e leia muito bem há séculos, inquestionavelmente muito melhor do que nós”. O filósofo Alberto Oliva segue a mesma linha, ao abordar a educação do cidadão brasileiro e seu reflexo no uso da língua. “Quanto mais uma língua contém regras complicadas como a do uso da crase em português, mais tende a criar um abismo entre o formal e o ‘popular’. Nossa língua é, hoje, uma das mais vilipendiadas. É extremamente complicada e o nível educacional dos falantes e até dos diplomados é muito baixo”, aponta. Para Oliva, mais importante do que a reforma seria diminuir o fosso cultural e educacional existente “entre os poucos, pouquíssimos, que não agridem o vernáculo e os ‘falantes selvagens’, que cometem erros palmares desrespeitando regras basilares”.
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“O que pode pretender uma reforma ortográfica? Muito pouco em termos de unificação, já que as variações nos modos de empregar uma mesma linguagem externam idiossincrasias culturais. Há muito a separar o português falado e escrito no Brasil do de Portugal e de outros países lusófonos.”
ALBERTO OLIVA
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A língua portuguesa é falada em nove países, por cerca de 220 milhões de pessoas
não por acaso o idioma “oficial” das buscas virtuais. “Alguém já disse que foi a Inglaterra que conquistou o mundo e não Portugal, porque os ingleses não precisavam perder tempo acentuando palavras”, brinca Moacyr Scliar. Mas a questão dos acentos em profusão não é brincadeira: “Nossa grafia é fonética, isto é, lendo, a pessoa saberá, graças aos acentos, como se pronuncia a palavra. Mas será que isto é mesmo necessário? Muitas vezes a gente recebe e-mails de brasileiros que estão nos Estados Unidos, usando um teclado americano. A mensagem vem sem acentos, sem cedilha, e mesmo assim nós a entendemos. Daí a dúvida: será que não temos acentos demais? Será que eles não estão dificultando, ao invés de facilitar?”, indaga o escritor gaúcho. De acordo com o professor Luiz Carlos de Assis Rocha, da UFMG, são cinco os pontos positivos do
acordo ortográfico – na sua visão, para ser chamado de “reforma” o Acordo teria que ir mais fundo. Esses pontos seriam: o sentimento de unidade da língua nos oitos países lusófonos; a melhoria de trânsito para livros, jornais e revistas nesses países; a adoção de ortografia única nos organismos internacionais, como a ONU; a igualdade de status com línguas de grafias uniformes, como o inglês, o espanhol e o francês; e a oportunidade de consolidação do português brasileiro na cultura ocidental e mundial, espelhando o fato de que representamos 90% dos usuários da língua. Paulo Henriques Britto refuta a tese de que ficaria mais fácil para um brasileiro ler um livro editado em Portugal e vice-versa. “O argumento não procede, porque as principais fontes de dificuldade não são as diferenças de ortografia, e, sim, as diferenças de vocabulário, as quais não vão mudar, por
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motivos óbvios. Qualquer brasileiro compreende perfeitamente uma grafia como ‘ideia’ ou ‘quilómetro’; o que lhe causa dificuldade é encontrar a palavra ‘bicha’ no sentido de ‘fila’, ou ‘autoclismo’ no sentido de ‘descarga de privada’ ”. Com a mesma veemência, rechaça a idéia de fortalecimento da língua. “Achar que a mudança de alguns acentos vai tornar a língua portuguesa mais forte no mundo é de uma ingenuidade surpreendente. O que torna um idioma forte não é seu sistema ortográfico, e, sim, o poderio econômico e político das nações que o falam”, afirma. Além disto, a língua inglesa não serve de modelo, segundo ele. “Se dependesse da ortografia, o inglês seria uma língua obscura: ele se vale de um sistema ortográfico obsoleto e confuso, que há muito séculos não sofre uma reforma”. A reforma significa um esboço de política cultural nacional atra-
vés da língua, podendo ser tomada por uma imposição cultural, como reclamam alguns portugueses? Que a reforma é política, não há dúvida. “Política da língua é uma coisa importante. Somos a terceira língua ocidental falada no mundo, atrás apenas do inglês e do espanhol. Somos um dos maiores contingentes de falantes do mundo, e nossa língua precisa ter um reconhecimento internacional”, defende Nelly Carvalho. Affonso Romano chama a atenção, por sua vez, sobre o caráter inovador da iniciativa. “O que há de louvável nisto é que o Brasil e Portugal fizeram o que a Itália, a França, e a Alemanha não têm coragem de fazer com suas línguas”, ressalta. O escritor se refere, por exemplo, “às letras dobradas que não têm significado e representação fonética, que são simplesmente um uso corrente”, como o “ph”
francês nos casos de palavras como “pharmacie”, “photo” e “phrase”. O caminho para tornar maior a influência brasileira no mundo lusófono é outro, na visão de Paulo Henriques Britto. “Como observava o linguista Max Weinreich, um idioma nada mais é do que um dialeto provido de um exército; do mesmo modo, podemos dizer que um idioma forte nada mais é do que um idioma de uma nação provida de um exército forte e uma economia forte. Se há um interesse real em tornar o português uma língua internacionalmente importante, o caminho a trilhar é um só: tornar o Brasil um país mais rico e mais forte”. Para quem defende o Acordo, a integração da lusofonia é, sim, um forte argumento para o espírito da unificação ortográfica. De Guiné-Bissau, Tony Tcheka empunha a bandeira desse espírito: “Reconheço que há receios de várias ordens, uns de natureza fiJAN 2009 • Continente x
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Em bom português, o nome certo não é reforma Daniel Piza
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á um descompasso entre as mudanças feitas pelo acordo ortográfico, que já começam a ser adotadas neste ano, e a defesa delas como uma reforma cujo objetivo maior é aproximar os povos lusófonos. Esse descompasso explica o modo passional com que a opinião sobre o acordo se dividiu nos dois lados do Atlântico. Em Portugal, por exemplo, foram muitos os adversários da proposta, porque lhes pareceu uma concessão ao papel crescente do Brasil no cenário internacional; esse seria o motivo de regras como o fim das consoantes mudas. Os defensores, por sua vez, alegaram que tais alterações vão facilitar o aprendizado do idioma lusitano mundo afora, fazendo face ao crescente estudo de espanhol. O curioso é que ambos os lados se encontraram muitas vezes num argumento-síntese que diz: “São poucas as mudanças, para que tanta celeuma?” Os defensores lembram que a língua já passou
por várias reformas e sobreviveu bem a todas elas. Um dia também se incomodaram com a mudança da grafia de “pharmácia” para “farmácia”, ou com a queda de acentos como o circunflexo em “flôr” ou “gôsto” – e neste caso se abriu uma confusão entre o substantivo e o verbo em sua primeira pessoa do presente do indicativo (“eu gosto”, que pode ser escrito sem o pronome “eu”). Os críticos do acordo observam que justamente por não significar grande transformação ele vale pouco e poderia ser esquecido, já que só traz mais transtornos refazer livros e apostilas para que seja adotado. De fato, quem lucra acima de tudo com ele é o mercado editorial, em especial o de dicionários e gramáticas, os quais já vêm sendo publicados à mancheia. É claro que alguns ajustes tornam tudo mais fácil. Palavras como “voo” e “ideia” podem dispensar acento, porque ninguém cogita de lê-las com outra sonoridade. E o trema, embora tão charmoso, re-
nanceira e técnica, outros ligados ao sentimento de conservadorismo dos ‘guardiões da língua portuguesa’ – aqueles que se julgam donos da língua. Uma aberração, claro está. Esta língua, que não é a minha pátria, é tão minha como é de Camões, Luandino Vieira, Jorge Amado ou Saramago. Nós a conquistamos! É nossa! Cabe-nos
utilizá-la e contribuir com a nossa ampla e diversificada cultura, marcada por uma multifacetada realidade etnoliguística”. A portuguesa Margarida Castro, moderadora de um grupo de lusofonia na internet, residente em Uberaba (MG) desde 1975, diz que o Acordo deve ser ampliado a partir de uma visão estratégica comum
almente era uma dificuldade para muita gente. Vale lembrar que alguns escritores modernos brasileiros foram advogados da idéia de uma reforma idiomática. A de Monteiro Lobato, por exemplo, tinha como um dos pontos principais exatamente a queda dos acentos. Em seu caso, no entanto, a proposta era abolir quase todos os acentos, com exceção apenas de alguns totalmente indispensáveis como o de “é” (do verbo ser). Já Mario de Andrade propunha mudanças como substituir o “se” condicional (“Se a língua é inculta, ao menos é bela”) por “si”, distinguindo-o do pronome (“ele se indignou com a reforma”). Lobato e Mario, obviamente, viam na reforma do português a necessidade de romper com as regras lusitanas, proclamando assim a língua “brasileira”, dentro do projeto de independência cultural típico daquele nacionalismo modernista. O que não se pode dizer do novo acordo é que realmente seja uma transformação do idioma, até porque está muito mais do lado da conciliação entre culturas do que da ruptura. Tampouco se pode acreditar que seja suficiente para romper as diversas barreiras que ele exige para que seja bem-aprendido. Mais do que em algumas regras de acentuação e grafia, os alunos – incluindo os estrangeiros – esbarram nos 4 mil verbos irregulares, no uso dos pronomes a todos os países de língua portuguesa. “A língua representa a nossa identidade e a nossa diferença como lusófonos. Mas é importante que a ortografia seja única, pois a mesma palavra, escrita de formas diversas, confunde e inviabiliza a adoção de livros nas escolas. Em Timor, isto já acontece, com edições brasileiras e portuguesas, o que dificulta
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relativos (todo mundo diz “O filme que mais gostei foi...”, mas o certo para quem escreve é “O filme de que mais gostei foi...”), nas regências (por que “chegar a” é o correto, mas “chegar em casa” é permitido?)... Em suma, na sinta-
xe. E para mudar isso o trabalho seria insano. O outro obstáculo é o próprio vocabulário: os portugueses não deixarão de se referir ao “terno” como “facto” (ou “fato”) e os brasileiros jamais adotarão “retreta” para “descarga”...
Mas e quanto ao argumento da padronização lusófona? Convenhamos que a existência de mais algumas regras comuns – em lugares tão díspares quanto Cabo Verde, Angola ou Goa – e de dicionários supranacionais estimule de alguma forma a divulgação do idioma e o interesse mútuo entre essas culturas. Só não podemos ignorar que essa aproximação já vem se dando onde realmente deve se dar: na prática, no cotidiano vivo e não nos gabinetes acadêmicos. Me refiro (ops, um erro gramatical!) à paixão que, por exemplo, os moçambicanos têm pela literatura brasileira. Mia Couto – cujos livros são publicados no Brasil com glossário, tal o número de termos que desconhecemos – não se cansa de dizer que sua própria ficção vem da leitura de autores como Jorge Amado e Guimarães Rosa. E os brasileiros sempre leram os grandes autores portugueses, de Eça de Queiroz a José Saramago, sem precisar adaptações. Saindo do campo literário, aliás, podemos lembrar a influência das telenovelas brasileiras em Portugal, que tornaram o uso do “tudo bem?” corrente entre os jovens d’além-mar. Quem determina a aproximação, portanto, é o uso. Idiomas são organismos que se transformam e se adaptam de acordo com necessidades e aleatoriedades. Acordos pontuais podem dar uma ajudinha, mas a grandeza da língua depende de quem a fala e escreve, não de quem a legisla.
o ensino da língua. Também nos fóruns internacionais, a existência de duas versões da língua complica a união dos falantes”. Segundo Margarida, o que se pretende com o acordo é sensibilizar a população desses países com a necessidade de uma estratégia da língua. “Contudo a estratégia da língua passa por mais ações.
O acordo é um começo”. Mas o mais importante, frisa ela, é que o Acordo não faria sentido se apenas tivesse interesse para o Brasil e Portugal. “Infelizmente ainda poucos compreendem isto. E não basta ‘assinar’ o Acordo. Todos os países têm que cumpri-lo e desenvolver outros itens essenciais para o fortalecimento do meio de
comunicação comum dos lusófonos.” Entre esses itens essenciais, está a elaboração de um vocabulário unificado da língua portuguesa que contenha, senão uma ortografia sem plural, ao menos todas as maneiras de se escrever corretamente, para que se entenda o bom português em qualquer pátria lusófona.
O escritor angolano Mia Couto (D) admite influência dos brasileiros Jorge Amado e Guimarães Rosa
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Como um exu viajante Fotógrafo Evaldo Parreira dedica-se a registrar imagens do cotidiano que valorizem a cultura popular e a beleza natural do Brasil Plínio Victor e Horácio Abiahy
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valdo Parreira criou-se pelas ladeiras e bairros de Olinda, nas folgas dadas pela Academia Santa Gertrudes. Fez curso de laboratório em fotografia. As aulas, mesmo, luz, enquadramento etc. e tal, detestou. Preferiu estudar sozinho em livros. Certo dia, um francês o chamou para fotografar acerolas para uma campanha de polpa de frutas, imagens que foram expostas em SaintTropez. Não parou mais. O ensaio que ilustra estas páginas é uma parcela de sua recente mostra realizada em Nova Jersey – EUA. São fotografias sem temática definida. São trabalhos experimentais, com técnicas diferenciadas de iluminação, sem manipulação digital, captadas em diferentes períodos pelas suas andanças Nordeste adentro. O noturno de sua fotografia é repleto de luz e tons. Já o seu dia se mostra às vezes tempestuoso e sombrio, ou radiante e explosivo em cores. Evaldo está na contracorrente da fotografia contemporânea ou
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Queda de estrelas
dos modismos fotográficos impregnados de photoshops dos “fotógrafos windows”. Avesso às técnicas de manipulação digital, também não gosta de usar filtros. Seu trabalho, como ele mesmo diz, “é real, feito na munheca”. O que vemos na sua fotografia são a fidelidade de cores e contornos, sua sensibilidade e o olhar aguçado, que produzem imagens marcantes, por vezes impactantes e de rara beleza. Paisagens, flagrantes da cultura popular, do dia-a-dia, que
expressam personalidade, em uma linguagem de fácil assimilação. Assim é que as luzes que pipocam nas paredes de Olinda, nas altas copas da fruta-pão, nos escuros das mangueiras, na leveza dos coqueiros, nalguma duna nordestina – daquele sol que só existe acolá, iluminando a memória refletida no couro daquelas couraças e dos barcos ancorados à beira do Velho Chico – correram mundo afora pelas lentes sensíveis do fotógrafo. Chegaram ao Japão, Portugal, Espanha, França, Chile, Reino Unido. Evaldo Parreira é correspondente, colabora com revistas de circulação nacional sobre turismo e cultura, e trabalha para instituições públicas e privadas das mesmas áreas. O que ele quer mesmo é mostrar a riqueza cultural e as belezas naturais do Brasil, colaborando também com a preservação das tradições populares. Ele é como um exu viajante: de feira em feira, procissão de vila qualquer, trocando mensagens.
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A espera
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MÚSICA
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Orquestra Sinfônica do Recife realiza cerca de 40 concer tos anuais, incluindo os que são oficiais, no Teatro Santa Isabel; populares, ao ar livre; comunitários, em escolas e igrejas; e especiais. Descontando dois meses de férias, são quatro concertos por mês – pouco
para uma orquestra profissional, muito pouco para a de uma grande capital brasileira, quase nada para a única que existe no Estado. Nesse contexto, duas orquestras jovens têm compensado, nos últimos anos, a escassez de música sinfônica no Recife e remediado a ausência dela fora da cidade.
Sempre com boa recepção do público, a Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música (CPM) e a Orquestra Jovem de Pernambuco (Ojope) têm comprovado que a descentralização da música clássica, tendência em editais de incentivo cultural, efetivamente quebra o estigma de elitista e a torna
O dinamismo das sinfônicas jovens
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Grupos semiprofissionais juvenis promovem interiorização da música e incrementam a programação recifense Carlos Eduardo Amaral
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marcante para moradores de cidades distantes de salas de concerto. Mais do que isso, os próprios músicos se sentem compensados pelos aplausos, pela camaradagem do grupo e pela experiência adquirida. A Sinfônica Jovem do CPM finalizou em 2008 sua terceira turnê anual consecutiva pelo Nordeste. Nos Estados vizinhos, passou por Maceió, Fortaleza, João Pessoa, Campina Grande e Natal. Na Região Metropolitana do Recife, saiu de Olinda e do Recife para ir a Paulista, Camaragibe e Moreno. Nas demais regiões, visitou Paudalho, Condado (Zona da Mata), São Bento do Una (Agreste), Carnaíba e Afogados da Ingazeira (Sertão), tornando-se a primeira orquestra
sinfônica a se apresentar nessas duas cidades do Pajeú. A ascensão da orquestra partiu da iniciativa da Associação de Professores e Funcionários do CPM, que, em 2006, então presidida por Sidor Hulak (atual gestorgeral do Conservatório), captou patrocínio para a primeira turnê. Em 2008, sob regência do professor José Renato Accioly, compartilhada com o professor Sérgio Barza até 2007, os 70 músicos foram convidados a participar de um espetáculo ao lado do Quinteto Violado, com canções de Geraldo Vandré, no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG) e no Festival de Cultura Judaica.
Por sua vez, a Orquestra Jovem de Pernambuco – sem vínculo com instituições musicais nem com o poder público e enfrentando dificuldades de captação de recursos por conta disso –, há quatro anos reativou-se, após duas décadas adormecida. Fundada pelo maestro Rafael Garcia, a Ojope não promove temporadas contínuas como gostaria, mas fica parada por pouco tempo, graças aos eventos produzidos pelo regente chileno e pela esposa, Ana Lúcia Altino Garcia. A Orquestra renasceu dentro do projeto A fábrica de música, que durou de 2005 a 2007 e proporcionava aulas com professores renomados de instrumentos de cordas com arco. Ao final do curso, a Orquestra
A Ojope e o maestro Rafael Garcia em ação com a violoncelista Natalia Khoma (à frente da orquestra)
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Diversos músicos, sob elogios um tanto irrefletidos, migraram para a Bahia, a Paraíba, Sergipe e o Rio, quando o ideal seria permanecer na própria terra. O professor e pianista Edson Bandeira de Mello enaltece as orquestras jovens recifenses pelo futuro fator de engrandecimento do Estado. “Contudo, tal engrandecimento apenas será possível caso o verdadeiro objetivo das políticas culturais aqui aplicadas seja esse e não o de se aproveitar o muito que há a fazer para os jovens das classes pouco favorecidas para, logo depois, deixálos à míngua e sem um futuro préplanejado”, alerta o professor. O último aniversário da OSR, em julho, antecedido por vários e bemaplaudidos concertos de câmara, e o concerto da Osesp, em novembro no Teatro Guararapes (com mais de 90% de ocupação), mostraram o quanto a demanda por música sinfônica está reprimida no Grande Recife e que uma só orquestra profissional não satisfaz mais o público. Há ainda o fato de a OSR deixar de lado os concursos para jovens solistas e ter um calendário sempre deficiente. Assim, em lugar de se esperar o surgimento de novas orquestras ou de depender de grã-finagens cerimoniais esporádicas, os jovens recifenses continuam seguindo o melhor caminho, até aqui para uma brilhante carreira: o da rodoviária e o do aeroporto.
Flora Pimentel\Divulgação
colocava os docentes como chefes de naipes em concertos abertos ao público. Segundo Ana Lúcia Altino, a carência local de professores com formação especificamente didática e repertório pedagógico originou a idéia. Em 2008, a Ojope fez sua segunda turnê pelo interior de Pernambuco, depois participar de um projeto de interiorização em 2005. Diferente da Orquestra dos Meninos do Coque, uma ação sócio-educativa musical, a Sinfônica Jovem do CPM e a Ojope remuneram seus músicos a cada projeto executado, já que estes trabalham como prestadores de serviço. As três orquestras, sobretudo, firmam bases para a música sinfônica juvenil pernambucana e seguem o exemplo da Paraíba, cuja tradicional Sinfônica Jovem inclui compositores paraibanos vivos no repertório e planeja gravar um CD com peças deles em 2009. A Ojope e a Sinfônica Jovem do CPM também desmistificam o repertório contemporâneo. A Sinfônica Jovem do CPM, em 2008, tocou obras dos pernambucanos Clóvis Pereira, Sidor Hulak e Dierson Torres e dos falecidos gaúchos Vicente Fittipaldi (fundador da Sinfônica do Recife) e Breno Blauth; já a Ojope fez história com a primeira execução no Nordeste da Santos football music de Gilberto Mendes, em 2007.
Sinfônica Jovem do CPM finalizou em 2008 sua terceira turnê anual pelo Nordeste
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Violência nas letras de música Cancioneiro popular dos anos 50 e 60 expressa a relação conflituosa que se estabelece entre o povo e a autoridade policial José Teles
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s denúncias de violência policial, geralmente contra indivíduos das classes menos favorecidas da população, são uma constante na história brasileira. Para o povão, a autoridade não é o presidente da república, nem o governador, tampouco o prefeito. É a polícia, com a qual lida diretamente no cotidiano, portanto, a quem teme e respeita. Mais teme do que respeita. Compostos em sua grande maioria por gente do povo, muitos cocos, rojões, xotes, sobretudo nos anos 50 e 60, são crônicas desta relação de amor e ódio entre o povão e a polícia – o delegado, cabo, sargento –, sendo ela a autoridade interposta entre o povo e o governo. Em O delegado deu ordem (Genival Lacerda/Rosil Cavalcanti), gravada por Genival Lacerda, em 1958, diz a letra: “O delegado deu ordem/ pra dançar coco decente/ mas se houvesse barulho/ o pau cantava na gente/ seu delegado é homem dado/ e amigo do peito/ é doutor direito/ não tem cara feia/ porém mete a peia/ em qualquer sujeito”. Ou seja, é temido e ao mesmo tempo admirado. A letra descreve um delegado com comportamento muito semelhante ao famoso Cabo Tenório, de Rosil Caval-
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MÚSICA canti, rojão gravado por Jackson do Pandeiro, em 1958: “Olha aqui, na casa de Tota fizeram um forró/ Tenório foi só, dançar e beber/ Os cabra de lá quiseram lhe bater/ Tenório gritou, vai ter confusão/ Balançou a mão, deu murro e bofete/ Tomou canivete, peixeira e facão/ Os brabo correram, quem ficou presente/ Gritava contente no meio do salão, e dizia/ Cabo Tenório é o maior inspetor de quarteirão”. Às vezes, o medo desaparecia e era a polícia quem levava a pior, feito no Forró em Caruaru (Zé Dantas), cantado por Luiz Gonzaga, com o impagável refrão: “Matemo dois sordado/ Quatro cabo e um sargento/ Cumpade Mané Bento/ Só fartava tu”. Vale ressaltar que o “só faltava tu” significa que o compadre Mane Bento perdeu a farra. A polícia impunha a ordem à sua maneira, como canta Marinês, em Se a polícia chegar (Onildo Almeida, 1965). A letra fala de um
coco que está acontecendo, sem que se tenha pedido autorização à polícia (durante muitos anos os coquistas eram registrados nas delegacias): “Se a polícia chegar/ o que é que nós faz?/ Se acaba no pau/ mas ninguém vai”. No fim do coco, alguém avisa que a polícia está vindo, e aí o refrão é modificado: “A polícia tá vindo/ que é que nós faz/ Acabou o café/ a gente faz mais”. Sem polícia, a coisa podia ficar braba, feito em Forró em Calcaia (J. Lima / J. Bruno Magalhães / Zeguimar), cantado por Ary Lobo, no qual se narra uma matança para Lampião algum botar defeito: “Lá pra Calcaia por Vavá fui convidado/ Pruma dança de xaxado/ Na casa de um tal de Zacarias/ Houve uma briga/ dez no chão quinze estirado/também vi vinte amarrado/ pra morrer no outro dia”. A faca de ponta era a arma preferida do nordestino, como canta Luiz Gonzaga, em Forró em Caru-
aru, explicando-se à autoridade: “Mas seu delegado não tive culpa não/ dei só um risquinho nele/ o cabra é que era morredor”. Uma valentia que não se dobrava à gente togada, conforme esta história que alguns dão como acontecida em São José do Egito. Recém-chegado, o juiz vai dar uma voltinha pela cidade. No meio da caminhada, observa um caboclo descarregando os caçuás de um burro. Cada vez que ele se abaixava, mostrava o cabo do revólver. O juiz foi até ele. Educadamente, pergunta se o caboclo possuía autorização para posse de arma. Como a resposta foi negativa, o juiz pediu que o rapaz lhe entregasse o revólver. Ele tira a arma da cintura, vai estendendo ao juiz, de repente, pára a mão no ar, e pergunta: “O senhor é autoridade de que mesmo?” Ao saber que o outro era juiz de direito, o caboclo resmunga: “Oxe, mas é cada uma! Juiz de direito? Pensei que fosse
História registra relação de gato e rato entre polícia e povo
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inglês Henry Koster, no seu imprescindível Viagens pelo Nordeste do Brasil, publicado em 1816, na Inglaterra, a partir de notas tomadas na região, aonde chegou em 1810, analisa o fenômeno social, escrevendo sobre a formação do contingente policial em Pernambuco. Em um dos capítulos, ele comenta sobre a polícia pernambucana, referindo-se à negligência que encontrou nos quartéis, criticando os pequenos soldos dos soldados (“... O equipamento lhe é dado com irregularidade... São recrutados entre os piores indivíduos da província”).
Arguto e observador, Koster ressalta o poder que, não raro, um único policial mantinha sobre a sociedade: “Recife e sua vizinhança gozavam antigamente de verdadeira tranqüilidade, graças aos esforços de um só indivíduo. Era um sargento de um dos regimentos do Recife, homem corajoso, cuja atividade física e moral não tinha tido ocasião de revelar-se até que lhe entregaram a tarefa difícil de prender criminosos e, por fim, recebeu ordens especiais do governador para patrulhar as ruas de Recife, Olinda, e povoações próximas. Ficou temido por seus imitadores, mas, quando da sua
morte, ninguém apareceu para tomar-lhe a vaga”. Henry Koster não deu o nome deste verdadeiro mantenedor da lei e da ordem, tal um xerife do velho Oeste. Mas este tipo de xerife não desapareceu no século 19. O Jornal do Commercio, em 1967, dava uma matéria de página inteira sobre o comissário Manoel Norberto de Santana, mais conhecido como Seu Nezinho do Coque. Quando Seu Nezinho aceitou o cargo no comissariado do Coque, o posto estava há anos sem um titular. O Coque era um dos locais mais violentos da Região Metropolitana.
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polícia”. Dito isto, recolhe, calmamente, a arma de volta à cintura.
Genival Lacerda (no alto) e Jackson do Pandeiro gravaram canções sobre delegados e cabos
No primeiro dia de trabalho, Seu Nezinho reuniu alguns praças e deu umas batidas nas gafieiras do bairro. Numa delas, apreendeu peixeiras, canivetes, pistolas. Não apenas apreendeu. Mandou que os cabras, que encontrou armados, formassem uma fila, e mandou que lhes fossem aplicados “bolos” em ambas as mãos, com uma palmatória, batizada de Maria Bonita. Nesta noite, a Maria Bonita não teve descanso. Foram bolos até o dia amanhecer. Assim, ele foi ficando temido, e pacificando o Coque. O comissário criou seu próprio e peculiar Código Penal. Quando algum morador de sua jurisdição cometia algum crime, ele mandava um molecote entregar um chapéu ao delituoso. Este, por sua vez, já sabia como proceder se
A polícia se impunha pela violência e o arbítrio, e os forrozeiros documentam isto com a objetividade que poucos ensaios e estudos acadêmicos conseguem. Foi isso que fez Luiz de França, o Luiz Boquinha (autor de Vou pra Lua, sucesso com Ary Lobo, em 1960), em 1962, com O Cosme e o Damião, a famosa dupla de soldados que patrulhava as ruas do Recife, e eram afamados pelo rigor com que tratavam quem lhes caísse às mãos. O forró é minucioso: “Vocês estão vendo aqueles dois moços fardados/ Com os braços arreados/ e as mãos voltadas pra trás/ qualquer gatuno, assassino ou desordeiro/ eles dois não deixam em paz/ Não banque o forte porque ele lhe amolece/ na base do cassetete/ do tapa e do pescoção/ Como é o nome dele? É o Cosme e Damião”. não quisesse o comissário no seu encalço. Acompanhava o menino até o comissariado, onde não apenas se explicava. Dependendo do malfeito, a pena podia ser leve: um pedido de perdão, ajoelhado aos pés do rigoroso Seu Nezinho, e rezando pela saúde do comissário. Indivíduos que batiam em mulheres eram obrigados a pôr um vestido (que fazia parte do acervo do comissariado), e a desfilar com ele pelas ruas do bairro. Naturalmente, a humilhação era um espetáculo ao qual ninguém do Coque deixava de assistir. Segundo a matéria, o Coque passou vários anos sem mortes, agressões ou roubos. Seu Nezinho não dava moleza em momento algum. Certa feita, passando diante de uma gafieira, escutou a canção
A segunda parte descreve o modus operandi da dupla de policiais: “Num outro dia um batedor de carteira/ foi cair numa asneira de furtar um cidadão/ não foi feliz/ não chegou a dar dois passos/ pois caiu logo nos braços/ do Cosme e do Damião/ Ficou molinho que nem papa de aveia/ Saiu dali pra cadeia com as calças sem botão (a polícia arrancava os botões das calças para que o preso não pudesse correr)/ Da cadeia foi para a enfermaria/ lá passou 18 dias/ pra curar os arranhão/ Quem são aqueles dois?/ É o Cosme e Damião”. Os Cosmes e Damiões são coisa do passado, mas pelo que se vê e se lê na imprensa, com frequência, seus ensinamentos perduram até hoje. E na periferia das grandes cidades, a autoridade para o povão, decididamente, não é a que está nos gabinetes refrigerados dos palácios de prefeitos, governadores ou presidente. Covarde (Getúlio Macedo/ Lourival Faissal), sucesso, em 1960, com Cauby Peixoto. Ele não teve dúvidas. Aquilo era uma indireta à sua pessoa, ou seja, à autoridade, assim mandou fechar imediatamente a gafieira. Igual a ele havia muitos, a exemplo do Cabo Gato, conforme noticia o mesmo JC, em janeiro de 1961: “O vigário do Alto do Pascoal pede a volta do Cabo Gato: Somente ele é quem pode dar jeito aos marginais que ali fazem pousada e cometem toda sorte de desordem”. Este Cabo Gato é provavelmente o mesmo do rojão O forró do Cabo Gato (José Pereira /Barbosa da Silva), gravado por Ary Toledo, em 1958, que fala sobre um cabo que tinha um forró lá no Torreão, onde ninguém entrava desarmado. (JT) JAN 2009 • Continente x
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Ode à fé Alessandra Leão, ex-integrante da banda Comadre Fulozinha, lança o segundo CD em carreira solo, Folia de santo santo, no qual reverencia e pede proteção ao divino Isabelle Câmara
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Alessandra Leão trocou os ritmos do tambor pelos caminhos das romarias
la canta como quem faz uma prece. Alessandra Leão, fundadora e ex-integrante da banda Comadre Fulozinha, migrou dos ritmos que brincam com o tambor e adentrou os caminhos das romarias e dos romeiros, no projeto Folia de santo, álbum que tem tom de ladainha e apresenta peças musicais da cultura popular brasileira ligadas às práticas devocionais das festas populares da crença em diversas regiões do país. Alheia às querelas religiosas, e por isso assumindo um papel pacificador, Alessandra faz de Folia de santo uma ode à fé, através da qual canta benditos, louvações, excelências, romarias, novenas, ladainhas, toadas e invocações a alguns santos católicos, aos quais pede proteção e bênçãos. santo, as músicas são dispostas no Em Folia de santo álbum assim como os santos são homenageados ao longo do ano, mês a mês, no calendário gregoriano. “Foi difícil escolher os santos, tem santo todo dia! Aí eu elegi por afinidade ou pela relação com os orixás”, esclarece. A música de abertura é o bendito Prá chegar, que exerce a função de abrir a sessão para os trabalhos religiosos. Alessandra revela, em tom de confissão, que a música é uma saudação a Exu. “Eu o vejo como um guardião e não como um mensageiro do inferno.” O mês de janeiro é brindado com Derramou, uma homenagem a São Sebastião, comemorado no dia 20 de janeiro. Uma das louvações mais belas do disco, a canção diz “São Sebastião derramou amor na água que te deram pra tomar/Bebe, bebe a água que te deram pra tomar”, com música desenhada por um bandolim dedilhado. Fevereiro vem com Caminho de pedra, reverência a Nossa Senhora das Candeias. Março fica bonito para chover com São José, santo que anuncia se a colheita vai ser boa a cada ano.
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Como a Semana Santa é um dos períodos do ano que mais mobilizam a comunidade cristã, a data é celebrada em Meu Jesus, única que não foi feita para o Folia de santo. São Jorge desce da lua em seu cavalo rasgando o mês de abril com sua espada em Santo guerreiro. Maio vem embalado nos braços de Maria, em Rainha do céu. São João e São Pedro vêm pulando a fogueira em ritmo de forró. O dia dos avós, 26 de julho, é lembrado com Rosário de Sant’Ana, a avó de Cristo, a quem Alessandra pede proteção para o seu filho, mas adianta que para alcançar a graça tem que ter fé, alegria, saúde e confiança. São Francisco, o mestre, e Santa Clara, a discípula, ganham vez no mês de agosto com o Coco de Santa Clara, uma parceria com Nilton Jr. Setembro chega em dose dupla com Duas metades, celebração aos santos Cosme e Damião, composta e executada pelas irmãs, também gêmeas, Moema e Maíra Macedo. Folia de São Benedito é uma oração que pede bênçãos para o mês de outubro; letra e melodia se unem de maneira híbrida para falar do santo negro. O Dia de Todos os Santos, 1º de novembro, chega num repente violado de Ivanildo Vila Nova. O mês de dezembro é o mais abençoado, por meio das músicas Relampeou, homenagem a Santa Bárbara, que no candomblé é Iansã; Casa de flores, a Iemanjá, também conhecida como Nossa Senhora da Conceição; e Repequenino, ciranda de Siba, que fala do nascimento de Cristo. “Acredito que a fé seja uma coisa muito íntima, intensa e, ao mesmo tempo, serena. A maioria desses cantos que me instigam e me emocionam são assim, intensos e serenos”. Folia de santo foi pesquisado durante 10 anos, mas não como um estudo formal. “O disco nasceu de uma grande admiração e de um profundo respeito pela música tra-
O projeto Folia de santo inclui, além da gravação do disco, apresentações em igrejas
dicional e pelo modo como ela pode nos ligar ao Divino, de maneira leve e festiva – independentemente da casa religiosa da qual façamos parte – e foi com o intuito de fazer parte dessa festa que passamos a compor esse repertório”, explica a musicista. O projeto de pesquisa contempla, além do lançamento do CD, apresentações em igrejas de vários lugares de Pernambuco. O disco conta com participações de Juliano Holanda (baixo, direção musical, arranjos e co-produção musical); Maíra Macêdo e Moema Macêdo (cavaco e bandolim, voz e arranjos) e Missionário José (José Guilherme Lima) – co-produção musical, arranjos, edição e mixagem. Siba, Silvério Pessoa, Caçapa, Nilton Jr., Públius, Ivanildo Vila Nova, Tiné, Rudá e Bruno Vinezo também emprestam talento ao projeto. Apesar de se falar em cantos de devoção, as melodias fazem de cada música um novo gênero a se
descobrir. Aqui, um coco não é exatamente um coco. Uma ciranda não é bem uma ciranda. Tampouco um bendito é somente um bendito. Todas as músicas se aproximam esteticamente de um gênero ou outro, mas não se encaixam em conceitos fechados. E em todas elas a melodia é composta de melodias diferentes, que têm os mesmos pontos de intersecção, as mesmas notas, mas quando isoladas, têm-se melodias distintas. Folia de santo é um álbum para ser ouvido em silêncio, de preferência com as mãos unidas na altura do coração.
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Neschling adentra a selva dos Choros
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registros fonográficos de uma mesma obra dele nunca soam parecidos – ou seja, não dá para escolher uma gravação “definitiva”, apenas as que possuem mais virtudes e menos defeitos. Heitor VillaAqui, somente o Choro n° Lobos – Choros 1, interpretado por Fábio n° 1, 4, 6, 8 e 9 Zanon, sai sem ressalvas. BIS/Biscoito Fino 28,90 reais O Choro n° 4, para trombone e três trompas, flui bem, porém carece de mais organicidade e suavidade. Já no sexto, oitavo e nono Choros, Neschling segue uma linha à la Celibidache, desencobrindo contracantos, figurações rítmicas e instrumentos que ficavam escondidos, mas não dá conta do devido equilíbrio instrumental que esse procedimento acarreta e ainda demonstra uma incômoda falta de gingado nos Choros n° 6 e 8. A compra vale mais pelo repertório (afinal, são três Choros orquestrais e um Zanon indefectível). (Carlos Eduardo Amaral)
> Gosto no tempo do Brasil colonial
> Taubkin, só ou bem-acompanhado
> Difusão da música > Osesp e a Quarta contemporânea de Tchaikovsky
A vinda da família real ao Brasil, junto com alguns milhares de súditos, provocou uma substancial mudança de hábitos na colônia, inclusive pela introdução da noção burguesa de bom gosto e mau gosto e de seus respectivos escrúpulos. Através de uma investigação inovadora, multidisciplinar e de uma fluida exposição, o pesquisador Maurício Monteiro recompôs o processo de choque e acomodação cultural que construiu o gosto musical nos tempos de D. João VI, bem como a genealogia estética e estilística das composições criadas naquela época. Merece destaque a primorosa leitura antropológicomusical de quadros de Debret, Rugendas e Thomas Ender. (CEA)
O pianista paulista Benjamim Taubkin reúne neste CD o melhor de seus trabalhos mais recentes, solo e em meio aos ecléticos conjuntos de que participa – alguns, inusitados, como a Orquestra Popular de Câmara. As faixas solo, gravadas em Nova York, e O sabiá voou, com o Trio + 1 fazem parte de projetos inéditos, a ser lançados em breve. Este álbum sintetiza a trajetória de Taubkin como produtor e arranjador e nos relembra a passagem do músico na última Mimo junto com o grupo América Contemporânea, do qual participa o rabequeiro Siba. Uma das canções que arrebatou o público, Carmelita, adiós, é ponto alto do CD, ao lado do Afoxé com o Núcleo de Música do Abaçaí. (CEA)
A Tribuna Internacional de Compositores, fórum criado pelo Conselho Internacional de Música da Unesco, promove a difusão em larga escala de obras de música clássica contemporânea. A cada edição, a anfitriã, dentre as mais de 30 emissoras de rádio e TV da Tribuna, organiza a transmissão das peças selecionadas pelas filiadas. Esta coletânea de seis CDs, uma preciosa antologia de 1955 a 1999, contém a inquietante Trenódia para as vítimas de Hiroshima, de Penderecki, Ad matrem, de Górecki e gravações de mais 17 compositores. O único brasileiro a figurar é Marlos Nobre, regendo sua Biosfera para pequena orquestra à frente da Sinfônica da Rádio MEC, no CD 2. (CEA)
Reprodução
epois das Bachianas Brasileiras, John Neschling e a Sinfônica do Estado de São Paulo (foto) exploram a selva sonora do ciclo mais importante de VillaLobos, os Choros. Para esta empreitada (a primeira gravação mundial completa), as peças de câmara da série foram gravadas p or c onv i d a d o s e intercaladas às partituras sinfônicas. O presente CD, com os Choros 1, 4, 6, 8 e 9, sucede o que contém os de número 5, 7 e 11, e nos deixa no aguardo dos Choros 2, 3, 10 e 12. O bom de Villa-Lobos (ou o mau, para os perfeccionistas) é que os
A construção do gosto Maurício Monteiro 360 páginas Ateliê Editorial 40,00 reais
Uma nota sobre a outra – Benjamim Taubkin Núcleo Contemporâneo 26,90 reais
International Rostrum of Composers 6 CDs 120,00 reais
Como tornou-se marca nos ciclos de sinfonias gravados pela Osesp, este álbum, da integral em andamento de Tchaikovsky, apresenta uma sinfonia (a n° 4) ao lado de uma obra menos “séria”, o Capricho italiano (não confundir com o Capricho espanhol de Korsakov, embora seja meio iberizado no início). Enquanto as três primeiras partituras do ciclo eram nacionalistas, a Quarta introduz as perturbações pessoais que viriam a se acentuar na Quinta e na Sexta. As inquietações, porém, mais presentes no primeiro movimento, não obstruem a melancolia do segundo e a alegria dos demais: o divertido scherzo, afim do Playful pizzicato da Simples de Britten, e o festivo desfecho. (CEA) Tchaikovsky Sinfonia n° 4 e Capricho Italiano Biscoito Fino 29,90 reais
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Quando concerto e conserto coincidem
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m painel de um fusca 69 onde você dá ignição para passar às músicas: esse é o formato do menu inicial do primeiro DVD do carioca Ricardo Siri. Se você sempre sentiu que motores de carros velhos batucavam algo que podia acabar em música, o inventivo percussionista levou a idéia a cabo e transportou uma oficina inteira para o palco. Com isso, não só o motor, mas toda a lataria de um fusca serviu de orquestra para Siri e seus companheiros, munidos de baquetas, martelos e esmeril. O diálogo dos “mecânicos” com trombonistas originou três peças – na verdade, uma em três movimentos (No tranco, Concerto para conserto e Trombada) – que são o leitmotiv do DVD. A reutilização de objetos do dia-adia como instrumentos muSiri ao vivo – Concerto para sicais lembra, de imediato, conserto Hermetto Pascoal, porém a Tambor Edições fusão etnorrítmica e mul35,00 reais ti-instrumental (ensemble de cordas, trio de jazz, ata-
baques) se difere bastante da do músico alagoano. Em músicas como Pandeirata, embolada, samba e batidas médio-orientais se mesclam no bodhran irlandês, no Divulgação pandeiro árabe e pandeiro de couro ibérico; da mesma forma, Luzia Dheli prova que um baião pode soar autêntico na tabla e na moringa. E não poderia faltar no programa uma das obras mais originais da última Bienal de Música Contemporânea: N’água (veja a Continente de abril 2008). (CEA)
> Manguebeat e os seus hibridismos
> Chá de zabumba, forró e muito mais
> Anna Luisa gira com delicadeza
> Bossa-nova, MPB e pop juntos
O professor e crítico de música popular Herom Vargas estudou os álbuns Da lama ao caos e Afrociberdelia longe do mero e aparente intuito de se ater aos aspectos formais das canções do grupo Chico Science e Nação Zumbi. O pesquisador buscou indicar a contribuição do Manguebeat na renovação estética e produtiva da vida musical pernambucana, menos efervescente na década de 80, e problematizar as áreas de conflitos e convergências do Manguebeat com o Movimento Armorial – audaz e essencial ponto de partida do livro, que foi uma das melhores análises do ano e a mais destacada dos últimos anos no Estado no âmbito da música popular. (CEA)
O Chá de Zabumba está com um novo trabalho nas lojas. Sem regra é o quarto disco do grupo, fundado em 2001, com o objetivo de produzir um forró contemporâneo. Nadando contra a corrente dos forrós estilizados que dominam o mercado, a banda compõe um material de qualidade, que mistura elementos da tradição às inovações da atualidade. Não é à toa que participam do CD: China, Maestro Spok, Josildo Sá e os forrozeiros Azulão, Camarão, entre outros. O resultado são composições, em sua maioria assinadas por Climério Oliveira, que passam pelo forró, baião, carimbó, mas sempre utilizando efeitos eletrônicos, violão, saxofone, xilofone e teclado. (Mariana Oliveira)
Uma voz doce e melodiosa, uma música delicada e suave que lembra cantigas de roda. Anna Luisa compõe o seu Girando como dança. Além das canções próprias, Anna canta composições de alguns jovens personagens da cena carioca: Marcelo Caldi, Ana Clara Horta, Carlos Trilha, Léo Fernandes, sem esquecer os grandes compositores como Gilberto Gil, Pepeu Gomes e Edu lobo. É nesse equilíbrio entre clássicos e novos, nessa convivência de diferenças tão afins que reside o seu grande acerto. Numa época em que se discute com qual sigla definir a música que a nova geração faz, Anna se apressa em dizer que faz música brasileira e ponto. (Gabriela Lobo)
A bossa-nova, misturada ao pop e a MPB, caracteriza o primeiro disco da cantora paulistana Cláudia Rezende. Movimentos raros é composto por um repertório especial, com canções de Ed Motta, Jair Oliveira, Jorge Vercilo e Nico Rezende – que também produziu e arranjou o CD. A voz ingênua e precisa de Cláudia, fruto da formação erudita, parece se encaixar às companhias de Milton Guedes, na gaita, e Léo Gandelman, na flauta. O violão e o piano revelam leituras cuidadosas, que ainda surpreendem com versões inusitadas de Let´s stay together, September, e Theme from the valley of the dolls. Como definiu Milton Guedes: “É um álbum despretensioso, feito pelo prazer de cantar para o prazer de ouvir”. (Lucas Paes)
Girando Anna Luisa Universal - Sonopress 21,90 reais
Movimentos Raros Cláudia Rezende Lua Produções Sonoras 21,90 reais
Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi Herom Vargas 248 páginas Ateliê Editorial 26,40 reais
Sem regra Chá de Zabumba Independente 15,00 reais
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José Cláudio
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Três ilustres companheiros numa cama de solteiro
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uer dizer, ilustres mesmo eram “o Pierre”, que era como Carybé chamava Pierre Verger, e o referido Carybé; metendo-me eu no meio de enxerido e por generosidade deles dois. Ônibus Retiro, eu e Carybé, não sei se também Verger ou se Verger já estava lá, destino candomblé Opô Afonjá da mãe Senhora, terreiro, aliás, fundado pelo pai-de-santo do Recife, respeitadíssimo na Bahia, Ti’Joaquim, juntamente com Aninha por uma cisão do Engenho Velho, ficando este com Tia Massi, que inda alcancei bem velhinha: Edison Carneiro, Candomblés da Bahia, considera Aninha “a figura feminina mais ilustre dos candomblés da Bahia”. Parece que Senhora sucedeu a Aninha na direção do Opô Afonjá, como dá a entender Edison Carneiro, quando diz “da falecida Aninha, atualmente sob a direção de Senhora”. Descemos no terminal e enveredamos noite e mato adentro, eu, de Oxóssi, como prova tatuagem no meu braço feita por Carybé com agulha de costura dessas de costurar à mão e tinta nanquim, o certo era borra de candeeiro, mas ficou até hoje, 50 e tantos anos, Oxóssi segura o laço que o veado vai-se embora, o veado, digo, Oxossi pelo mato adentro e o veado pelo mato afora; Carybé, uma Iemanjá tatuada no grosso do braço perto do ombro e os pontinhos do Cruzeiro do Sul no antebraço que na sua pele branca ficava azul; Verger, não sei se usava tatuagem, usava o título Fatumbi, que lhe deram na África, Pierre Fatumbi Verger, se você não conhece, precisa conhecer; por que? quando conhecer, não precisa ninguém responder.
Noite breu puro, ou melhor, carvão, que o breu que se vendia na loja de meu pai em Ipojuca era amarelaço: fica preto depois que derrete? Aprendi a andar de noite no mato com Carybé nos caminhos dos candomblés, São Gonçalo do Retiro, o de Senhora, Engenho Velho, o de Tia Massi. A gente se orientava pelas pontas das folhas batendo nos braços, pelas voltas do caminho, pelos buracos do chão, pelos reflexos das folhas mais largas como de taioba, que guardassem alguma luminosidade ou viesse de nossa imaginação ou de Oxóssi, que é quem nos guia no mato. Na época, da estatura de Senhora só seu Cosme, que, aliás, era daqui do Recife e segundo Carybé terminou voltando para cá, para o Ibura, mas nunca mais eu soube dele, nem de sua filha, Linda, nem de seus filhos Nado e outros, e o filho postiço Tonho de Bualana, que aparece num livro de Verger, tanto quanto o velho Cosme: Edison Carneiro cita-o entre os últimos eluôs (adivinhos) e de fato ele adivinhou o meu futuro, ou melhor, me mostrou o rumo do qual nunca me afastei e foi quem disse que eu era de Oxóssi. Fica para outra ocasião. Quando chegamos, eu e Carybé, na porta do barracão, fiquei do lado de fora olhando pela janela o salão vazio, Senhora sentada lá espalhada na sua cadeira exatamente como aparece na foto de Verger, Carybé ia entrando, mas Senhora começou a gritar com ele porque ele não tinha vindo de branco: era justamente na noite que antecede a Água de Oxalá. Carybé então me chamou à parte e pediu para trocar a camisa co-
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Carybé então me chamou à parte e pediu para trocar a camisa comigo, eu por acaso de camisa branca, a dele azul bem vivo, aquelas estampas graúdas sobre fundo branco, por fora das calças
Reprodução
migo, eu por acaso de camisa branca, a dele azul bem vivo, aquelas estampas graúdas sobre fundo branco, por fora das calças. Acho que a própria Senhora sugeriu a troca, tolerando a minha presença com camisa de cor por não pertencer à seita. Mandou-nos levar para dormir noutra casa a alguns passos, um cômodo único, uma mesa no meio e no chão uma esteira, onde deveríamos nos deitar, praticamente debaixo da mesa, esteira dessas de pipiri, iguais às daqui, onde cabíamos geometricamente, os corpos estirados lado a lado, eu no meio, entre Carybé e Verger. A mulher que nos trouxe foi-se embora com o candeeiro, cuviteirozinho fumacento, a muriçoca disse: é aqui. Ninguém dormiu um minuto. Carybé e Verger só faziam era rir, discretamente, para não faltar com respeito.
Carybé dizia baixinho: “Porra!” e “Puta que pariu!” e Verger dizia: “Calma, rapaz”. Até que nos vieram “acordar”. Eu fiquei ali por perto e o pessoal todo desceu para uma grota no meio da escuridão. Não se via nada, mas “a noite tava divina”, lembrando verso de Paulo Vanzolini. Daí a algum tempo surgiram aquelas negras compridas vestidas de branco pouco antes do amanhecer, já se vendo algum brilho da água que lhes caía dos potes que carregavam na cabeça e molhava a pele nos ombros ou braços ou pescoço, e cantavam com doçura infinita “Agô agô lonã”. O título eu tirei dos versos “3 alegre cumpanhero/ numa cama de sortero”, do poema O pobrema da habitação, do livro Tempos de cabo, de Paulo Vanzolini, Palavra e Imagem Editora, São Paulo, 1981. JAN 2009 • Continente x
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PERFIL Mercado de São José é local de interesse permanente do folclorista
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Um homem das maiores grandezas e baixezas Liêdo do Maranhão pesquisa falas e costumes do povo com verve e afeto Urariano Mota
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á quem interprete as pesquisas de Liêdo Maranhão, sobre a cultura popular, como uma obsessão no limite do pornográfico. No entanto, Liêdo é um homem muito puro. O sexo para ele é manifestação de alegria da infância brasileira. Em lugar de proibido em conversas de boa educação, ele deveria ser divulgado para menores de todas as idades, de todas as escolas do Brasil. O registro que ele faz da fala do povo, a fala crua, sem literatice, mas que guarda história, o flagrante que ele dá no povo quando fala de sexo, que dá nomes rejeitados pela formação hipócrita como chulos, com uma verdade que nos faz rir, lembram o popular como uma criança crescida. Liêdo é desse povo cheio das maiores grandezas e de baixezas também. Isso quer dizer, Liêdo é nosso. Nosso como as frutas nordestinas, como as bonecas de pano, que muitos chamam de bruxas, as mais lindas e doces bruxas. Ele é
nosso como os brinquedos de artesãos pobres, os piões, os badoques, os carrinhos de flandres e de madeira. Ele é como os repentes criativos dos homens que fazem a nossa família, grande, imensa, do nosso misturado sangue. Nosso como o Mercado de São José, por onde ele circula até hoje, com mais intimidade do que quando esteve na barriga da sua mãe. Sei que aos 83 anos ele anda muito emotivo, chora com pouco e pouca coisa, mas não posso deixar de dizer, enfim: o seu trabalho, Liêdo, não é nem foi em vão. Os seus registros são uma felicidade, uma beleza, um bem permanente. Nascido em 1925, no Recife, no bairro de São José, com uma vida tão fecunda, ele não se irrita, não ser magoa, quando a ignorância da gente pergunta quem é Liêdo. Dirá, como disse: “Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”. Ao que, ato
contínuo, emenda com uma das suas histórias, porque Liêdo não gosta de conceitos, gosta de gente: “Lá em Beberibe, tinha um funcionário chamado João Vieira, no Posto de Saúde. Ele tomava uma cana arretada. Um dia, João estava bêbado e não pôde entrar, porque o diretor do posto não deixou. Aí eu cheguei pra ele e perguntei: ‘Que é que há, João?’ E ele respondeu: ‘Esse homem aí não quer deixar eu entrar não. Mas ele pra mim não passa de um poliglota! O senhor sabe o que é poliglota, doutor? Poliglota é o sujeito que é metido a coisa, não tem nada e vive a troco de peido’”. Então, parte para explicar, pela enésima vez, com imensa boa vontade: “Minhas pesquisas são sobre os camelôs, os come-vidro, engolecobra, os cantadores, mas sobretudo os camelôs de remédio, que são muito inteligentes. Inventam até nomes para as drogas que vendem. Tem uma que é a ‘Resina da Gerimataia’. Outro: ‘Banha do peixeJAN 2009 • Continente x
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PERFIL
Liêdo Maranhão tem pronto o livro Marketing dos camelôs de remédio, em que registra a criatividade dos ambulantes
elétrico’”. E conta mais uma de suas histórias: “Eu vou te contar uma de um camelô, pra você ver que beleza. Tinha um que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é um ambiente de mulher, de prostituta... Então, ele, com a garrafa na mão, uma ‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro, porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’”. E continuava: “Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’. Outro camelô dizia assim: ‘O homem mais a mulher é como uma balança: quando um sobe, o outro sobe, quando um desce, o outro desce, quando um chega, o outro chega, aí é tutu com tutu e bumbum com bumbum’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu tenho
um livro com tudo isso, Marketing dos camelôs de remédio.” Esse registro das falas do povo, mais vivo que um flagrante pelo buraco de uma fechadura, tem método. “Com os camelôs era o seguinte: eu passei 10 anos ali, diariamente. Então, eu já sabia o ‘disco’ de cada um. Aquilo tudo ali é muito bonito, muito criativo, muito poético...” E emenda com uma das suas vivências: “Lá na praça, tinha uma prostituta, Maria. Ela tinha vários apelidos: era Maria Branquinha, Maria Doida, Maria Chega Cedo, Maria Ligeirinho, porque quando estava com um homem, batia nas costas dele, dizendo: ‘Vá, meu filho, goze logo, vá’. Eu dava a maior atenção a ela. Então, ela dizia a mim: ‘Olhe, doutor Liêdo, eu gosto do senhor, porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra safado’. Isso pra dizer que eu gostava do povo da praça do mercado”. Outro personagem vivo, de suas pesquisas, foi Pereira, camelô de remédio. Pereira esteve, por um tempo, doente, com asma. Um
dia procurou Liêdo para lhe dizer: “Doutor, essa doença tira as forças da gente. Em casa, com a nega véia, eu entro com a ferramenta, e ela entra com a mão-de-obra”. Pereira vendia umas pomadas, à base de salicilato de metila, a substância do Vick Vaporub, e dizia que a pomada era para “dores incausadas”. Certa vez, Pereira estava na função de maravilhoso médico e Liêdo deu uma força a ele. No meio da multidão, pediu ao camelô: “Rapaz, eu queria uma latinha daquela, porque eu estava com uma dor nesse braço e fiquei bonzinho. Agora apareceu a dor no outro braço. Quero mais uma latinha”. Comprou e, ao se afastar, ouviu o anúncio no alto-falante: “Esse aí é Doutor Liêdo Maranhão, diretorpresidente da Empetur”, enquanto a pequena multidão caía em cima para comprar. No outro dia, quando foi à praça, ouviu de Pereira a proposta: “Doutor, eu queria viajar com o senhor. Porque o senhor é o maior mala do Recife”. À sua maneira, Pereira estava certo: Liêdo é mesmo mala, de amor pelo povo do Recife.
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O que é ser um homem nordestino? Museu do Homem do Nordeste reabre buscando a resposta para essa questão, evitando as visões caricatas, mas priorizando os personagens populares Diana Moura
Fotos: Marcos Michael
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Uma das peças adquiridas para a nova museografia retrata religiosidade
epois de três anos e meio fechado, o Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) volta a abrir as portas para visitação. A partir de agora, o público vai encontrar tudo novo: projeto museológico de Regina Batista, reestruturação da área expositiva, aquisição de acervo e plano de iluminação. Nada restou do espaço anterior. Apesar de surpreendente, a mudança física, projetada por Janete Costa, não é a parte mais significativa da reforma, mas cumpre bem o papel de materializar toda uma mudança conceitual que ora integra o programa do museu. Em vez de se contentar em mostrar quem é o homem do Nordeste, a instituição prefere lançar a pergunta. Cabe aos visitantes, após uma reflexão, oferecer a resposta. Em primeiro lugar, este homem tratado pelo MUHNE não é mais um só. São vários. A nova exposição chama-se Nordeste: Territórios plurais, culturais e direitos coletivos. Como o título indica, a discussão em pauta pretende dialogar com o público na busca de fazêlo compreender que a região é um território diversificado, no qual convivem saberes, culturas, artes, histórias e costumes diferentes. Entretanto, se não
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Novo espaço interno do MUHNE, projetado pela arquiteta Janete Costa. Abaixo, indumentária do bumba-meu-boi do Maranhão
é legítimo carimbá-los todos com o mesmo rótulo, é possível procurar similaridades traçadas ao longo da formação desse povo que permitam perceber identidades comuns. “O conceito de região é arbitrário. Foi criado por necessidades político-administrativas. Um dos nossos objetivos é mostrar que não se pode tomar o Nordeste inteiro como uma coisa só. Por isso, montamos a mostra sobre três eixos que norteiam o que se pode chamar de uma certa unidade nordestina: a terra, o trabalho e a identidade,” explica Vânia Brayner, coordenadora geral do Museu do Homem do Nordeste. De uma maneira geral, os elementos terra e trabalho estão intrinsecamente relacionados. Toda a história estabelecida na região está ligada à força empregada para modificar o lugar e torná-lo produtivo. Foi assim com a extração da madeira, a agricultura, a pesca, a criação de gado. É assim ainda hoje, depois
da industrialização. Logo, um traço dessa cultura diz respeito às relações que se estabeleceram a partir do trabalho. Esse fato é bem pontuado pelo novo MUHNE. Ao contrário da exposição anterior, o museu agora não se divide mais em assuntos bem-delimitados e estanques, como cana-de-açúcar, religião, artesanato, arte popular etc. Desta vez, foram eleitos temas interdisciplinares, ou transversais, para usar duas palavras da moda, aos quais foram aglutinados uma série de elementos correlatos. Ou seja, tanto o artesanato, quanto a arte popular, os ícones religiosos, entre outros objetos, vão estar presentes em várias alas do museu, associados aos diferentes conceitos que se pretende trabalhar. Onde antes estavam mostras separadas para apresentar a casagrande e a senzala, hoje se encontra uma só visão panorâmica e esclarecedora. A exposição opta por enfatizar, por exemplo, que a existência da escravidão estava ar-
Em vez de se contentar em mostrar quem é o homem do Nordeste, a instituição prefere lançar a pergunta. Cabe aos visitantes, após uma reflexão, oferecer a resposta
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raigada à presença dos engenhos. Para ilustrar essa condição, o museu coloca, frente a frente, um açucareiro de ouro e um viramundo, instrumento usado para prender, simultaneamente, pulsos e tornozelos dos escravos. Desta maneira, não são exatamente os objetos exibidos que mudaram radicalmente. Embora parte do acervo esteja renovado, várias peças continuam as mesmas de antes. O que diferencia Nordeste: Territórios plurais, culturais e direitos coletivos é a forma diferenciada de expô-las. Como se vê, uma novidade na configuração atual do museu é a elaboração de um discurso a respeito do homem do Nordeste. Enquanto a montagem anterior trazia uma narrativa passiva, pela ausência de uma proposta claramente definida, a opção desta vez foi provocar uma reflexão a respeito do que é ser um “homem do Nordeste”. Para isso, além dos
elementos de sempre – artefatos, fotografias, peças de arte popular e artesanato –, foram elaborados três vídeos, textos e um acompanhamento sonoro incidental para cada ambiente. A seleção das peças em exibição obedeceu aos dois critérios que norteiam a política do museu, o valor histórico e antropológico. Depois de escolhidos, os objetos foram agrupados de modo a criar um sentido e questionar certos parâmetros, como os limites geográficos, culturais e políticos do sentir-se nordestino. De uma maneira geral, a exposição trabalha prioritariamente com a noção de pertencimento e identidade. “O que é o Nordeste? É uma região que reflete uma cultura brasileira. A pessoa não precisa, necessariamente, ter nascido aqui para se identificar com ela. Pode ser de outro lugar, mas, de alguma forma, manifestar esse traço identitário. A exposição trabalha o tempo todo com essa questão”, destaca Brayner. Depois de percorrer os meandros de Nordeste: Territórios plurais, cultu-
Fotos: Marcos Michael
Entrada do Museu do Homem do Nordeste, que completa 30 anos este ano
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Esse recorte social delimita as bordas de um Nordeste pouco visitado pelo público do museu – na maior parte urbano, branco, de classe média e escolarizado. Mesmo assim, é visível o esforço da curadoria para respeitar as diferenças, afastando-se, o mais que possível, da visão folclórica e caricata da região. A distância entre os dois “homens do Nordeste” em questão – povo e público – serve como ponto de partida para uma reflexão: Que homem é esse? Por que a classe média é tão pouco representada? Claro que há pontos de convergência entre a classe média e o Nordeste colocado pelo museu, como as manifestações culturais e musicais populares. Essas aproximações, entretanto, têm muito a ver com a apropriação e Peça em madeira, Sagrada Família, do artesão Benedito, de Juazeiro do Norte (CE)
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rais e direitos coletivos, fica claro, para o espectador, que homem está em foco. Primeiro, ele é quase sempre popular. Do campo ou da cidade, do Litoral ao Sertão, do Brasil colonial ao século 21, o homem que mais interessa ao museu é nascido e formado no meio do povo. A exceção mais marcante fica por conta dos senhores de engenho da cultura canavieira.
Artefatos de ferro, usados para aprisionamento de escravos, integram a mostra
o consumo; pouco com a produção. Num certo sentido, a exposição aponta que a maior parte do que se convencionou reconhecer como marcas identitárias nordestinas é fruto da ação do homem popular. Essa impressão pode ser, em parte, resultado do processo de criação do Museu do Homem do Nordeste, que surgiu da junção dos acervos dos museus de Arte Popular, do Açúcar e de Antropologia, este último organizado por Gilberto Freyre. De toda forma, essa constatação, sozinha, não explica tudo. Principalmente quando se sabe que a instituição passou por uma ampla reforma, incluindo a aquisição de novas peças. Talvez a chave para a compreensão do fenômeno esteja implícita numa das sessões da mostra, intitulada Revoltas, revoluções e resistência. Nesta parte, foram incluídas, entre outras, informações sobre as práticas religiosas sincréticas regionais, que se afirmam como uma forma de resistência. Tomando emprestado esse con-
ceito, é possível imaginar a cultura popular, também, como uma forma de resistência e autoafirmação, deixando à parte as manifestações voltadas para a classe média, que nem sempre alcançariam a mesma vitalidade e durabilidade. Contudo, é visível o esforço da curadoria em garantir algum espaço para a classe média contemporânea no Museu do Homem do Nordeste. O que não fica claro é até que ponto essa parcela da população deseja se ver ali representada. Se, dos que forem ao museu, metade conseguir pensar em si mesma e em seu papel na construção desta imagem de “homem do Nordeste”, a reforma terá valido cada centavo do R$ 1,2 milhão pela Fundação Joaquim Nabuco ali investido.
SERVIÇO Museu do Homem do Nordeste (Av. 17 de Agosto, 2187, Casa Forte). Informações: 81 3073 6340 museudohomemdonordeste@fundaj.gov.br Veja mais imagens da nova montagem www.continenteonline.com.br
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HUMOR
Miguel Arraes em 23 anos de charge Permanece em cartaz até 28 de fevereiro, no Mepe, a mostra Arraestaqui, em que Laílson exibe seleção de 300 desenhos retratando o político ao lado de alguns de seus objetos pessoais Yuri Bruscky
A
charge política, compreendida como um discurso humorístico de cunho opinativo, articulado, sobretudo, pela linguagem não-verbal do traço, constitui importante veículo comunicativo, a partir do qual se suscita, pela sátira,
a reflexão acerca de algum fato ou personagem particularmente caro a uma determinada comunidade, e de onde se depreendem certos aspectos constitutivos desta. Ao chargista, cumpre estabelecer um plano de entendimento com o seu destinatário, de modo
que possam partilhar a comicidade antes oculta nos gestos e mecanismos socialmente normatizados. O humorista, diz o escritor francês Louis Ratisbonne (1827-1900), reforçando essa noção de complementaridade, “zomba da barca da existência que se movimenta ao acaso, mas sua brincadeira não tem nada de insultuoso para os passageiros: ele está a bordo com eles”. Tendo por base a noção da charge, comumente vinculada à prática do jornalismo diário, enquanto registro histórico do cotidiano social, o Instituto Miguel Arraes lançou, no mês passado, o projeto multimídia Arraestaqui, que articula, a partir de um conjunto de charges publicadas por Laílson de Holanda, no Diario de Pernambuco, entre 1979 e 2002, um panorama da trajetória do ex-governador pernambucano, fracionado em três etapas.
entrevista >> Laílson
"Essas charges causaram polêmicas" Como surgiu a idéia do Arraestaqui? O projeto surgiu a partir de um convite de D. Madalena Arraes. Ela me disse que tanto ela quanto o Dr. Arraes tinham a leitura das minhas charges como uma satisfação diária. Então ela disse que, desde aquela época, já pensava em colocar essas charges num livro. De modo que, quando ela me procurou, nós começamos a fazer evoluir a idéia de não apenas um livro, mas de uma coisa mais ampla, que combinava com a inauguração do Instituto Miguel Arraes. Diante do montante de charges, quais foram os critérios seletivos adotados? Primeiramente, elas tinham que se relacionar com os tempos em que o Dr. Arraes esteve envolvido na cena política: charges com a anistia, com a volta dos
exilados, com as disputas eleitorais etc. Após esse primeiro momento, selecionamos as charges que se ligassem diretamente à figura do Dr. Arraes. Num terceiro momento, optamos por aquelas em que ele estivesse efetivamente representado. Isso dava um total de quase duas mil charges analisadas, das quais 300 possuíam caricaturas dele. O próximo passo foi colocá-las numa ordem cronológica, para que através delas se pudesse ter uma leitura estruturada. Destas últimas, foi feita uma triagem, para verificar a qualidade tanto do desenho quanto da execução da idéia. Existe alguma, dentre as escolhidas, que tenha repercutido
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A primeira compreende uma mostra, inaugurada em 17 de dezembro, no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), onde estão expostas – além das charges produzidas ao longo dos 23 anos men-
cionados –, textos de D. Madalena Arraes (viúva do ex-governador e co-curadora da exibição, ao lado do próprio Laílson), objetos de uso pessoal de Arraes e um jornal fictício chamado O Tempo, que con-
textualiza o período de composição das charges. A segunda e a terceira etapas do projeto encontram-se, de certo modo, vinculadas a essa primeira instância, sendo uma delas a edição de um livro/catálogo com as charges e textos, e o outro, um documentário, lançado em DVD (e que permanece em exibição no auditório do Mepe, durante o período da mostra), onde agentes da cultura local, como Abelardo da Hora, Ariano Suassuna e Leda Alves, comentam aspectos de sua convivência com Miguel Arraes.
SERVIÇO Arraestaqui: Miguel Arraes em charges de 1979 a 2002. Até 28/02, no Museu do Estado de Pernambuco. Informações: 81 3426.5943 Confira a animação da primeira charge publicada por Laíson sobre Arraes www.continenteonline.com.br
de modo mais acentuado quando de sua publicação? A charge sempre causou repercussão, principalmente nos anos 80, época na qual a imprensa tinha um poder muito grande, com toda a luta pelas eleições diretas, pela redemocratização. Essas charges, principalmente as da campanha de 1986, causaram polêmicas, pressões no jornal, com acusações de que eu estava tomando partido etc. Como você avalia a importância da charge enquanto registro iconográfico e fonte histórica? Para mim, o humor gráfico, especificamente a charge política, tem uma importância muito grande porque não apenas registra costumes, vestuário, hábitos, utensílios, como também – e isso é fundamental –, registra a reação das pessoas ao momento em que os fatos acontecem. Estas são as características mais im-
portantes que a charge possui como um item de pesquisa iconográfica. Você se recorda da primeira charge em que Arraes figurou como personagem? Ele figura primeiro só com o nome, quando eu ainda não havia desenvolvido uma boa caricatura dele, e também porque na época em que havia censura na imprensa, muitas pessoas não podiam ser caricaturadas, fotografadas ou mencionadas. Esta primeira charge (que se encontra animada na exposição) ilustra justamente o retorno dos exilados, em que eu pus um caboclo saudando o avião que está voltando e em toda a plantação do campo estão nascendo pezinhos de Arraestaqui. Só que ainda como Arrastaí, a primeira versão. Arraestaqui era o nome da Brigada Musical e foi adotado no projeto para trazê-lo aos tempos atuais.
Por que a decisão de expor objetos pessoais do exgovernador? Justamente pela idéia do Arraestaqui. De repente, uma exposição apenas de charges seria apenas uma das maneiras de se compreender um personagem. Daí porque, também, o documentário, no qual pessoas próximas comentam aspectos da sua convivência com o ex-governador. A charge permeia tudo, mas nos seus próprios painéis existem frases de Arraes, porque: dizer que Arraes está aqui sem ele de fato estar, sendo apenas refletido em minhas interpretações, seria incompleto. Havia uma necessidade de inseri-lo na mostra, apresentando o contraponto que eu faço através da charge. A idéia era justamente essa, criar o ponto e o contraponto. É complicado compreender a caricatura sem conhecer o original. JAN 2009 • Continente x
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traduzir-se
Ferreira Gullar
A exceção e a regra
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scute, o mundo não tem sentido, mas nós lhe atribuímos sentido porque não suportamos viver num mundo sem sentido. Pintar um bisão faz sentido porque desejamos caçá-lo e, figurando-lhe a imagem, tornamos isso possível ou mais fácil, conforme cremos. E não é estranho que esta lasca de pedra pareça a cabeça de uma rena? Será que a imagem de um animal é uma outra forma de ele existir? Por isso, pintar o bisão e marcar-lhe o corpo com setas torna possível matá-lo. Pintar não era fazer arte pela arte, nem mesmo arte: era caçar. Até pintura virar arte, demorou muito. Mas já era arte, essencialmente. A imagem do bisão era arte pela economia e intensidade de sua forma, pela expressividade de suas linhas e de suas cores. Como também era arte o baixo-relevo do túmulo de Aknathon, no antigo Egito, os afrescos que cobriam as paredes dos túmulos dos faraós. Não havia crítica de arte nem os escultores e pintores ostentavam o título de artistas. Mas eram artistas porque, afinal de contas, arte é a excelência do fazer. E essa excelência era buscada por aqueles artesãos, pois como tais eram então considerados. Mas impossível seria ignorar que o homem que esculpiu o magnífico busto de Nefertite era um artista, um excelente artista. Mas ninguém se preocupava com isso e demorou muito até que alguém o fizesse. Séculos se passaram até que, na Grécia helênica, os nomes de um Fídias ou de um Praxíteles se impusessem à admiração das pessoas. Eles eram artistas, mas o que esculpiam, antes de serem obras de arte, eram imagens de atletas e deuses. E era por isso, sobretudo, que mereciam reverência. Porém, esculpir e pintar não eram uma atividade
espiritual comparável à criação dos poetas. E dessa mesma forma ainda se pensaria vários séculos depois, na Renascença de Da Vinci e Miguel Ângelo. Não foi por outra razão que o pintor da Mona Lisa afirmou que “arte é coisa mental”. Sabe por que disse isso? Porque se pensava que pintar e esculpir eram apenas trabalho manual e, portanto, inferior à criação intelectual dos poetas. Da Vinci, ao escrever aquela frase, quis dizer que, se o pintor trabalha com as mãos, sua criação nasce da imaginação, é produto da mente. De fato, mais que nunca, a pintura se torna então uma criação do intelecto, pois, com a invenção da perspectiva inventou-se um espaço outro, na tela, um espaço tridimensional que deu às coisas representadas uma realidade imaginária que elas jamais haviam conhecido. Nasceu, então, a nova linguagem da pintura, que, mudada, reinventada, enriquecida através dos séculos, entraria em colapso no final do século 19 e daria lugar a uma nova atitude do artista em face da arte. O que ocorre, de fato, é que a pintura, que sempre falou dos deuses e do mundo, agora, passava a falar de si mesma: a pintura se torna o tema da pintura. O quadro deixa de ser o lugar daquelas representações para se tornar, ele mesmo, o objeto da arte. E aí começa a crise que se estenderá por todo o século 20. A pintura, tema de si mesma, depara-se com sua própria desintegração enquanto linguagem. O quadro torna-se o lugar onde tudo vira arte: o papel colado, prego, arame, areia. O domínio da técnica artesanal, a exploração das significações implícitas na linguagem pictórica se perdem por desnecessárias. Tudo o que não é pintura, no quadro, torna-se arte, porque a arte deixou de ser o domínio da
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Tudo o que não é pintura, no quadro, torna-se arte, porque a arte deixou de ser o domínio da expressão, já que, agora, tudo é expressão
expressão, já que, agora, tudo é expressão. Descobriuse que, independentemente do que represente ou não represente, tudo é expressão: pedaço de alumínio, papel amassado, resto de estopa, pedaço de telha, dente, sangue de menstruação, mancha de esperma, merda, cabelo do púbis, folha, rolha, bolha – tudo é expressão. Logo, tudo, supostamente, é arte. Logo, como disse Marcel Duchamp, será arte tudo o que eu disser que é arte. Logo, como disse Joseph Beuys, todo mundo é artista. Consequentemente, tornou-se dispensável que existam Fídias, Da Vinci, El Greco, Rembrandt, Delacroix, Degas, Monet, Cézanne, Picasso ou Morandi. É finda a ditadura dos gênios. Chegou, afinal, a vez da mediocridade.
Na verdade, trata-se do reflexo, no campo das artes, da visão equivocada, segundo a qual “todos os homens são iguais”. Essa visão, supostamente generosa, esquece que as pessoas são iguais (ou deveriam ser) em direitos, mas não em qualidades. De fato, não há pessoas iguais e, por isso mesmo, digo que o homem comum não existe. Todo mundo é único e inconfundível. Daí por que nem todos são artistas, nem craques de futebol, nem ótimos artesãos, nem excelentes cozinheiros. É precisamente essa diversidade que faz da vida um mutirão de que todos participam, de uma maneira ou de outra. Por isso que, se não fossem o calculista, o serralheiro, o pedreiro, o projeto belíssimo do Oscar Niemeyer não sairia da prancheta.
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A vocação social dos festivais
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Mais que nas temporadas, é nas mostras que se apresentam os rumos diferentes da criação artística e onde se estabelece um debate sobre a vida, pela reunião de cidadãos, como na ágora antiga Kil Abreu
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izia Garcia Lorca, e com muita razão, que a civilidade de um povo pode ser medida pelo lugar e alcance que o teatro tem na vida dos cidadãos. No caso, podese entender isso pela chave de uma leitura genérica, em que comumente se elege o cultivo das artes como índice dessa civilidade. Mas o argumento parece ganhar ainda mais força quando se fala do teatro mesmo, em particular, em razão da dialética que existe na perspectiva histórica em que ele surge e nas suas características de manifestação. Historicamente, como sabemos, trata-se, na origem, de uma arte essencialmente ligada ao cidadão e à vida em sociedade. Impossível então entender a democracia sem passar pelo teatro. Além disso, permanece como coisa insubstituível – ao menos hegemonicamente – o encontro vivo que ele provoca, em uma reunião pública na qual os cidadãos – artistas ou espectadores –, ainda que em posições diferentes no jogo teatral, estão irmanados em uma mesma tarefa, a de pensar as suas condições de existência. Por isso tudo, por essa artesania humanista que continua a sustentar o fenômeno teatral – às vezes apenas formalmente, é verdade, mas muitas ocasiões efetivamente –, o advento dos festivais ganha um significado especial. É que, nos festivais, mais que nas temporadas, o teatro concentra toda a sua vocação social, seja no sentido de fazer ver, em uma mostra que seja, os rumos diferentes da criação artística, seja no sentido de, a partir desta, irmos ao diálogo e ao debate sobre a vida. Isto deveria ser, fundamentalmente, a função do festi-
val: reunir cidadãos e cidadãs, como na ágora antiga, em torno do fogo da arte e das suas estratégias, para conversar sobre a vida em sociedade. Todas as outras variantes seriam acidentais em relação a esta primeira. Entretanto, sabemos que entre esta realidade, em tudo idealizada, e a realidade, ela mesma, o que é possível fazer é ir negociando aquele tanto do prazer do pensamento ou do entretenimento gratuito que o teatro pode proporcionar a outras tarefas que são postas à mesa. Em um país onde as carências sociais são maiores que o imenso território é natural que os eventos públicos, muitos deles realizados com grande esforço das municipalidades, sejam também o lugar de solução de uma problemática bem mais grave que a da simples fruição da arte. No Brasil, há muitos festivais de teatro, com estruturas e tamanhos diversos. Guardadas as diferenças de inserção social, pode-se dizer que, em geral, são eventos fundamentais no calendário cultural das cidades onde acontecem. A maioria preserva como propósito orientador das suas programações, mesmo quando há recortes específicos, a idéia de apresentar um panorama amplo da cena. Os repertórios podem ser pautados pela produção nacional (como no Festival de Curitiba e do Recife) ou em um misto de espetáculos brasileiros e estrangeiros (como no Porto Alegre em Cena, o Rio Cena Contemporânea, o Cena Contemporânea, de Brasília, e o Festival de São José do Rio Preto). A escolha dos trabalhos é normalmente feita por uma curadoria, composta por um ou mais integrantes.
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Se forem tomados como exemplo os festivais brasileiros, uma parte dessas expectativas acabou fomentando ações importantes, assimiladas na programação, como o intercâmbio e a troca de experiências entre os grupos locais e as companhias visitantes – coisa quase sempre rara fora do ambiente dos festivais; e os projetos de descentralização das apresentações – que hoje são comuns e firmes nos festivais maiores e que representam, em uma prática por vezes pontual, mas sempre importante, o Cena da peça Algum amor para Eugênia, que participou do Festival de Teatro do Recife, em 2008
convite às periferias, para que participem da movimentação artística em curso na cidade. Se, por um lado, estas dinâmicas de certa maneira qualificam a ação cultural e justificam o investimento do dinheiro público – algo comum mesmo quando há bom suporte da iniciativa privada –, por outro, não deixa de parecer sempre frustrante o curto alcance que esses eventos têm quando a eles são direcionadas tarefas que em verdade deveriam fazer parte de políticas públicas regulares, em estratégias de ação cultural articuladas e de longo prazo. Dois casos exemplares são os da formação de platéias e da qualificação artística da cena local. A seu modo, pode-se dizer que os festivais colaboram, sim, tanto com o chamado a novas platéias quanto com a formação e a provocação dos artistas locais. Por que, então, quase sempre permanece certa percepção de pouca influência no panorama cultural das cidades, quando se olha para além do evento? Antes de tudo, é preciso ter clareza que, na maioria das vezes, estas mostras de espetá-
culos e suas atividades paralelas, mesmo quando já foram incorporadas à vida das cidades, têm por definição um alcance limitado quanto a estas tarefas. Ainda que contribuam, abrindo espaço para o intercâmbio do repertório entre os artistas, fomentando o debate estético e em geral levando bom teatro ao público – na maioria das vezes através de experiências cênicas que não se confundem com a linguagem do naturalismo televisivo –, os festivais deveriam ser vistos como um momento importante e privilegiado, mas complementar a ações formativas de fato mais ambiciosas, enraizadas no dia-a-dia das cidades, como parte da política pública continuada para a cultura. Nesta direção, há muitas experiências exitosas, que recuperam o papel do Estado, tanto na área da educação estética elementar – o que sempre foi confundido com atividade de lazer ou serviço social – como criam mecanismos de estímulo à produção artística local que dispensam os instrumentos de renúncia Val Lima/Divulgação
Naquela perspectiva de um lugar privilegiado que acaba assimilando as questões culturais como um todo, muito se cobra dos festivais de teatro, Brasil afora. Por isso a expectativa, sempre recorrente, de que eles funcionem como espaços para a realização de um sem-número de demandas, da formação artística complementar do pessoal de teatro à formação de público; da inserção social de parcelas da população alijadas dos processos culturais ao incremento do turismo, e por aí vai.
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zer circular, através dos espetáculos, as especulações artísticas que dão conta do nosso imaginário atual e da nossa sociabilidade própria. Além das citadas, há centenas de outras mostras locais, e em todos os cantos do país. O importante, por fim, é que naqueles grandes encontros ou nestes, mais modestos, há sempre nos dias de festival um exercício em que os cidadãos tentam fazer valer aquela promessa de civilidade da qual falava Lorca esperançosamente. Val Lima/Carlos Carlos Carvalho/Divulgação PMPA
fiscal – que já se mostrou ineficiente para estas questões – , tais quais fundos públicos ou leis dedicadas a proteger o trabalho continuado e a pesquisa artística. Sem esta visão um pouco mais ampliada sobre o processo, tendemos a colocar sobre as costas de Dionísio tarefas que ele, como deus rebelde que é, nunca vai cumprir satisfatoriamente. Em um balanço que pode pecar pela generalidade, pode-se dizer que temos muitos e bons festivais, que têm cumprido a função de fa-
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No Porto Alegre em Cena, há oficinas (ao lado) e espetáculos encenados na rua (abaixo)
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Diálogo proveitoso entre palco e platéia Festivais de teatro sempre foram determinantes na aproximação do fazer teatral com o público e grande estímulo para grupos amadores e estudantis Alexandre Figueirôa
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rte do encontro, do coletivo, o teatro só tem a ganhar com os festivais. Alguns exemplos distantes no tempo e no espaço comprovam tal afirmação. O primeiro é o Festival d’Avignon, que desde 1947 transforma a pequena cidade do sul da França, durante o mês de julho, numa espécie de Meca de peregrinação para grupos e companhias teatrais, encenadores, atores e amantes da arte de representar vindos de diversas partes do mundo. Criado por Jean Vilar, o festival, rapidamente, tornou-se ponta-delança da renovação do fazer teatral na França, pois mostrou que fora de Paris também existia um público jovem e interessado em experimentar novas possibilidades para o teatro. E foi graças ao êxito de Avignon, que o próprio Vilar pôde colocar em ação, juntamente com sua trupe, o projeto de descentralização e oxigenação das experiências teatrais, cuja repercussão se fez sentir no mundo inteiro, quando, em 1951, ele aceitou a nomeação para diretor do Teatro Nacional de Chaillot e o rebatizou como Teatro Nacional Popular. O segundo exemplo da importância dos festivais foi também fruto da dedicação de outro grande nome do teatro, desta feita o brasi-
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Espetáculo encenado durante o Brasília Cena Contemporânea
leiro Paschoal Carlos Magno, ator e diretor teatral e, como Jean Vilar, um militante cultural. Criador do Teatro do Estudante do Brasil, em 1958, Paschoal idealizou e organizou, no Recife, também no mês de julho, o I Festival Nacional de Teatro de Estudantes. O evento teve apresentações lotadas no Teatro de Santa Isabel e um fato inédito na sua programação foi o julgamento de personagens, uma prática em voga no teatro italiano e que, pela primeira vez, acontecia no Brasil. Os escolhidos foram Hamlet, interpretado por Sérgio Cardoso, e Otelo, vivido por Paulo Autran. Foi neste festival também que ocorreu a revelação, como autor teatral, do poeta João Cabral de Melo Neto, com Morte e vida severina, um auto de Natal pernambucano, sendo encenado pela primeira vez numa montagem de um grupo estudantil da Universidade do Pará. Os festivais nacionais de teatro foram, portanto, um grande estímulo para os grupos amadores e de estudantes em todo o Brasil, pois possibilitaram aos jovens conhecer o trabalho de amadores e profissionais de outras regiões. Paschoal Carlos Magno também incentivou festivais regionais, acentuando o programa didático com exposições, concertos, aulas e debates sobre teatro. Em Pernambuco, pelo menos dois grupos participaram ativamente desses eventos: o Teatro Universitário de Pernambuco – TUP e o Teatro de Estudantes Israelitas de Pernambuco – TEIP, que nasceu em novembro de 1958 por influência do festival ocorrido no Recife. Tanto o TUP quanto o TEIP tiveram, por anos consecutivos, Graça Melo como diretor contratado e conquistaram prêmios relevantes para o Estado. Em 1959, o TUP conquistou, no II Festival Nacional de Teatro de Estudantes, realizado na cidade de Santos, São Paulo, o primeiro prêmio de direção com Guerras JAN 2009 • Continente x
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ESPECIAL grande impacto com a apresentação do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. O elenco da primeira montagem reunia José Pimentel, Ricardo Gomes, o próprio Clênio Wanderley (no papel de Chicó), Luiz Mendonça, Ilva Niño, Sandoval Cavalcanti, Otávio Catanho, Alberique Farias, Eutrópio Gonçalves, Mário Boavista, Artur Rodrigues, José Gonçalves e Socorro Raposo. Paschoal Carlos Magno aplaudiu entusiasticamente a encenação e a anunciou como um dos mais belos espetáculos que já tinha visto. Por fim, vale registrar o sucesso do olindense Vivencial Diversiones, no Projeto Mambembão, patrocinado pelo Serviço Nacional do Teatro e que acontecia em São Paulo, Rio e Brasília, com apresentações de grupos de todo o país. Em 1979, o Vivencial levou àquelas capitais (na ocasião Brasília ficou de fora da turnê) o espetáculo Repúblicas independentes darling, criação coletiva do grupo, comandado por Guilherme Coelho, a partir de textos de Carlos
Fotos: Divulgação/Arquivo Projeto Memórias da Cena Pernambucana
de alecrim e manjerona. Na quarta edição do mesmo evento, ocorrida em Porto Alegre, o grupo foi um dos cinco que chegaram ao primeiro lugar, com o espetáculo Uma girafa para Inocêncio, de José Carlos Saroldi e direção de Maria José Campos Lima. Já o TEIP, ao montar Ratos e homens, de John Steinbeck, ficou com o prêmio de melhor espetáculo no festival de Santos. O ator Germano Haiut integrava o grupo e lembra que o TEIP, apesar de formado por judeus pernambucanos, não seguia uma temática religiosa e realizava encenações marcadas pelo idealismo e pela solidariedade universal. O repertório era formado por peças estrangeiras e o grupo viajou por todo o Brasil encenando textos de Sartre, Arrabal e Brecht. Não podemos esquecer que foi no I Festival de Amadores Nacionais, em janeiro de 1957, no Teatro Dulcina, no Rio de janeiro, que o Teatro do Adolescente do Recife, grupo dirigido por Clênio Wanderley, ganhou a Medalha de Ouro e causou
O ator e diretor teatral, Paschoal Carlos Magno, idealizou o I Festival Nacional de Teatro de Estudantes
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Drummond de Andrade, Luís Fernando Veríssimo e Carlos Eduardo Novaes. O jornal O Globo assim descreveu o espetáculo: “O Vivencial pode não ter dinheiro em caixa: pode não ter quaisquer condições para produzir-se em melhor escala. Ainda bem. Em compensação, está claro sobrar ao grupo, em termos comparativos à grande maioria de seus congêneres melhor beneficiados pelas contas bancárias, uma intensa preocupação com o público para quem trabalha, por quem buscam lançar no palco a reflexão crítica do dia-a-dia, com seus sonhos e limites”. Festivais, mostras, não importa. Como dissemos anteriormente: o teatro é arte do coletivo, do diálogo, do confronto entre palco e público e, por isso mesmo, apesar das oscilações dos interesses das novas platéias, está registrado no código genético de nossa civilização. Basta acionar o código certo e ele estará aí provocando as nossas mais inquietantes e desafiadoras fantasias. Acima, o cartaz do Festival d’Avignon. Elenco da peça Auto da Compadecida, no I Festival de Amadores Nacionais
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O autor nos festivais Desde os anos 1950, a dramaturgia pernambucana mantém-se pulsante. Mas persistem como problemas do teatro local ausência de projeto artístico-estético que aglutine autores e um mercado consolidado para o ofício de dramaturgo Rodrigo Dourado
Nelson Rodrigues em debate com o público, no Teatro Carlos Gomes, 1958
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ernambuco é um Estado de forte tradição dramatúrgica. Basta lembrar os nomes de Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Luiz Marinho, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Cardozo, Isaac Gondim Filho, Osman Lins e, por que não?, Nelson Rodrigues. Mesmo que estes não tenham alcançado igual reconhecimento em âmbito nacional e embora alguns deles sejam tomados menos como dramaturgos que como poetas, contistas ou novelistas. Boa parte da repercussão do trabalho desses autores se deve à participação de montagens de textos seus em festivais. Em 1957, por exemplo, o Auto da Compadecida tornou-se notório graças à histórica apresentação do Teatro Adolescente do Recife no I Festival de Amadores Nacionais, realizado no Rio de Janeiro. Já em 1966, o grupo de Teatro da Universidade Católica de São Paulo – Tuca – levou ao Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França, sua montagem de Morte e vida severina, consagrando-se como grande vencedor da mostra e projetando o nome de João Cabral pelo mundo. Em 1968, outro grupo, o Teatro da Universidade Católica de Pernambuco – Tucap –, leva A derradeira ceia, de Luiz Marinho, ao V Festival Nacional de Estudantes da Guanabara e o dramaturgo recebe o prêmio de melhor autor do Norte. Já em 1971, é a vez do caruaruense Vital Santos sair vitorioso do VI Festival Nacional de Teatro de Estudantes, na Aldeia de Arcozelo, também no Rio, com a peça Rua do lixo 24. Desde lá e até hoje, apesar dos percalços, a dramaturgia pernambucana vem se mantendo viva, pulsante, atuante. Mesmo que não haja um projeto artístico-estético que aglutine os autores, mesmo que as fontes de criação sejam variadas, mesmo que não exista um
mercado consolidado para o ofício do dramaturgo. Sem deixar de lado a tradição representada pelos autores referidos, a cena local, ao longo das décadas de 1980 e 1990, abriu espaço também para dramaturgos tão diversos quanto João Falcão, Luiz Felipe Botelho, Moisés Neto, Adriano Marcena, Elmar Castelo Branco, João Denys, Ronaldo Brito, Romildo Moreira e Rubem Rocha Filho. Mais recentemente, a partir de 2000, uma nova geração emergiu, formada por Newton Moreno, Samuel Santos, André Filho, Alexsandro Souto Maior, Luís Reis, Will Cruz, Marcelo Oliveira, Romualdo Freitas, Luiz de Lima Navarro, Antônio Cadengue e outros. Mas, e os festivais de teatro perderam o seu papel de fomentadores da nova dramaturgia? Em que medida ainda contribuem para o aparecimento de novos autores e como se configuram as relações entre as mostras e os dramaturgos emergentes na atualidade? Newton Moreno, pernambucano radicado em São Paulo, autor de espetáculos de grande sucesso como Agreste, Assombrações do Recife Velho e As centenárias, lembra a importância das mostras para sua carreira: “Meu primeiro texto, Deus sabia de tudo e não fez nada, foi apresentado no Festival do Recife e no de São José do Rio Preto e isso ajudou a divulgar minha dramaturgia, recém-desengavetada. Há pouco tempo, participei da curadoria desse festival e assumimos como critério selecionar novos dramaturgos para promover um debate sobre o panorama. Acho que ao menos um novo autor sempre deveria constar de qualquer curadoria, para que o público tivesse oportunidade de se aproximar de novas tendências”. Luiz Felipe Botelho, autor de textos como Lembrem-se de Lilith e Menino minotauro, garante que JAN 2009 • Continente x
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A peça Rasif – Mar que arrebenta aposta na transposição de outros gêneros literários para o palco
Festival do Recife, as iniciativas foram abandonadas nos anos subsequentes, deixando vazios espaços que merecem ser preenchidos. Não é possível dizer, portanto, que existe em Pernambuco uma política dos festivais no sentido de estimular o surgimento de novos autores e escritas. O que acontece são iniciativas pontuais ou, como antigamente, o interesse espontâneo gerado por alguma obra a partir da recepção de público e crítica. Na edição deste ano do Janeiro de Grandes Espetáculos, que acontece este mês, há, por exemplo, textos novos como Historinhas de dentro, de Samuel Santos; e Outra vez era uma vez, de André Filho. Ambos infantis. Há também trabalhos inéditos de veteranos como Anjos de fogo e gelo, de Moisés Neto; ou ainda textos algo recentes, mas já de grande repercussão, como Deus danado, de João Denys. A maioria dos espetáculos adultos, porém, investe na transposição de outros gêneros literários para o palco, como Rasif – Mar que arrebenta – a partir dos contos de Mar-
celino Freire; Fio invisível da minha cabeça – também inspirado num conto, do gaúcho Caio Fernando Abreu; Fogo da vida – construído a partir da correspondência entre Rilke e Lou Salomé; ou Por uma cabeça – baseado no universo de Nelson Rodrigues. Seria essa fuga da escrita estritamente dramática sinal de uma ausência de novos autores? Talvez sim, o que somente atesta a necessidade de investimento na formação de dramaturgos. O panorama pode ser visto, porém, como sinal de uma dessacralização do ofício do dramaturgo e ainda, no plano formal, como reflexo das distensões e do borramento das fronteiras entre os gêneros e linguagens. Tuca Siqueira/Divulgação
os festivais são “ótimas vitrines”. Em 2004, por exemplo, o dramaturgo recebeu um ciclo de leituras dramatizadas durante o Festival Janeiro de Grandes Espetáculos, quando foram lidos seus Cordéis minimalistas I, II e III. A iniciativa de promover leituras dramatizadas de textos até então inéditos ou pouco conhecidos integrou a programação do festival ao longo de quatro anos, contemplando ainda autores como Joaquim Cardozo (2002), Marco Camarotti (2005) e Vital Santos (2006). A leitura dramatizada parece ser mesmo uma boa alternativa para o fomento de novos autores. Em 2007, o Festival Recife do Teatro Nacional promoveu um ciclo chamado Nova dramaturgia brasileira em perspectiva, no qual foram lidos oito textos de dramaturgos brasileiros, entre eles, novamente, obras dos pernambucanos Luiz Felipe Botelho, com Sacos vermelhos; e Newton Moreno, com Talvez uma grande dor possa falar por ela, Medea. Infelizmente, tanto no Janeiro de Grandes Espetáculos quanto no
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regiões ou países para ser visto com olhos menos preconceituosos”. Configurando-se ou não como movimento, tendo ou não a chancela dos centros legitimadores, sofrendo ou não um deslocamento temático e formal, a dramaturgia pernambucana teima em permanecer viva. A verdade é que os festivais de teatro perdem, quase sempre, excelentes oportunidades de colocá-la em perspectiva. Insistindo em não enxergá-la, reiterando quase sempre o discurso sobre sua morte. Talvez por medo de um retorno ao “reinado” do dramaturVal Lima/Divulgação
De toda maneira, cabe perguntar se é possível falar numa “nova dramaturgia pernambucana” e se existem características identificáveis nessa escrita. Segundo Newton Moreno, “é delicado tentar traçar um perfil para esta nova dramaturgia, mas acho fundamental que os grupos e diretores de Pernambuco solicitem a presença dessas novas forças, porque só assim pode-se criar uma cultura de público para autores pernambucanos, ligados à tradição ou a um universo mais urbano”. Já Samuel Santos é categórico e garante que “sim, a nova dramaturgia está hoje mais urbana, sem perder a essência mítica do rural e do sertão”. Moisés Neto, por sua vez, reclama da pouca atenção dada aos autores locais pela crítica hegemônica do Sudeste, mas assegura: “Nunca deixei de ter as minhas peças encenadas e ganho dinheiro com elas há muito tempo”. Romildo Moreira, autor de O jogo das idades, reforça um certo afastamento das raízes populares, afirmando que vislumbra um novo fôlego na dramaturgia local, mesmo que essa não esteja ligada “a uma ‘pernambucanidade’ egocêntrica ou folclórica”. Mais cauteloso, Luiz Felipe Botelho prefere abordar a questão menos do ponto de vista das afinidades estéticas entre autores e mais da legitimidade necessária a essa “nova dramaturgia”: “Minhas dúvidas pairam sobre se nós, pernambucanos – para falar só de nosso quintal– queremos lidar com o novo quando ele aparece, ou se ele precisa ser chancelado por outras
go. Talvez ainda porque o advento do pós-dramático tenha esvaziado a noção de uma dramaturgia estrito senso. De toda forma, é preciso estar atento ao que essa escrita tem a dizer, sendo os festivais, – e em Pernambuco deve haver mais de 30, entre estudantis, amadores, de esquetes, competitivos etc. –, uma ótima oportunidade de testar a aceitação dos novos autores junto ao público e sua capacidade de sobrevivência num mercado que se mostra altamente inóspito.
SERVIÇO XV Janeiro de Grandes Espetáculos. De 14 a 31 de janeiro, nos teatros do Parque, Apolo, Hermilo Borba Filho, Armazém, Barreto Júnior (R$ 5 e R$ 10) e no Santa Isabel (R$ 15 e R$ 7,50). Informações: 81. 3423 3186 www.janeirodegrandesespetaculos.com Confira a programação completa do festival www.continenteonline.com.br
Assombrações do Recife Velho, do pernambucano Newton Moreno
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QUADRINHOS
Tintim – esse jovem de 80 anos Personagem-repórter criado pelo belga Hergé é, desde a década de 1930, reverenciado como um sofisticado contraponto ao Mickey Marcelo Abreu
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o alto do seu prestígio como estadista depois da Segunda Guerra Mundial, o general francês Charles de Gaulle disse, certa vez, referindo-se à sua popularidade no mundo: “Meu único rival internacional é Tintim”. Os criadores da pop
art norte-americana, Roy Lichtenstein e Andy Warhol, reconheceram publicamente a influência nas suas pinturas do traço do cartunista belga Hergé, criador do personagem. Em 2006, o Dalai Lama homenageou postumamente Hergé, com a comenda tibetana Luz da Verdade,
pela forma respeitosa como o belga retratou seu país no livro Tintim no Tibete. O mundo de Tintim, na ficção e na vida real, é cheio de histórias espetaculares. Há exatos 80 anos, o eterno repórter adolescente encanta crianças, jovens e adultos com suas aventuras ao redor do mundo.
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Tintim encanta e também desagrada, dependendo do ponto de vista de quem ler as histórias. Algumas de suas aventuras geraram muita polêmica e ainda provocam irritação em setores adeptos do que hoje se conhece como politicamente correto. São livros que também
fazem a delícia de acadêmicos e de críticos culturais, com seus temas diversos e suas muitas camadas de significados que podem ser reviradas e analisadas de várias maneiras. Tudo começou em 10 de janeiro de 1929, quando o jornal Le Vingtième Siècle, de Bruxelas, publicou no seu suplemento infanto-juvenil, Le Petit Vingtième, a primeira tirinha com o personagem. O autor era um cartunista de 21 anos, chamado Georges Remi, que usava como nome artístico as iniciais trocadas do seu nome, que davam, em francês, a pronúncia Hergé. Tintim no país dos sovietes foi a primeira história seriada, que levou 16 meses para se completar no jornal e virou livro no ano seguinte (fórmula editorial que Hergé repetiria sempre). O personagem já começou com polêmica. Hergé enviou o jovem repórter à Rússia Soviética, tida na imprensa conservadora do Ocidente, da época, como um antro de maldades. O conteúdo anticomunista do livro alcançou sucesso na Bélgica de então, mas, rapidamente, fez com que a história em quadrinhos parecesse anacrônica. Somente em 1973, com a distância do tempo, ela voltaria a ser reeditada em francês. Em junho de 1930, Hergé começou a segunda série que, novamente, iria causar polêmica. Desta vez, mandou Tintim à hoje chamada República Democrática do Congo, na época colônia da Bélgica. Em Tintim no Congo, o repórter caça animais sem piedade e trata os nativos africanos com paternalismo colonial. Visto hoje, o livro parece uma aula sobre a mentalidade eurocêntrica dos anos 30, sem complexos nem dor na consciência. A
reação ao livro ainda persiste. Em 2007, por exemplo, a Comissão pela Igualdade Racial da Grã-Bretanha tentou retirá-lo das prateleiras no país, acusando a obra de racismo. Posições políticas à parte, no segundo livro, o talento de Hergé já ficava evidente. O traço claro – a famosa ligne claire, com que desenhava –, e o cuidado com os detalhes de todos os quadros davam outra dimensão às histórias em quadrinhos, mais realista e humana. Numa rara entrevista, dada ao escritor Numa Sadoul, e publicada em 1971, Hergé disse ter sido influenciado, na juventude, pelo designer de moda René Vincent e pelos traços redondos de George McManus, criador de Pafúncio. Reconheceu também a influência do cinema americano e do desenho chinês, que “concilia minúcia e simplicidade, harmonia e movimento”. A história bem-contada, as reviravoltas constantes no enredo, o humor e a farsa são características que passaram a encantar o público infanto-juvenil. Os trocadilhos, a paródia e a sátira política conquistariam também os adultos. A estética visual, junto ao enredo bem-elaborado, dava à história um caráter cinematográfico. Em 1934, quando foi divulgado que estavam sendo preparadas novas aventuras de Tintim, desta vez na China, um certo Padre Gosset, pároco responsável por estudantes chineses na cidade de Leuven, escreveu ao jornal pedindo para que o cartunista tivesse mais cuidado com o que ia publicar, para evitar que os preconceitos contra aquele país fossem reforçados. Hergé concordou e decidiu buscar a ajuJAN 2009 • Continente x
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QUADRINHOS da de um estudante chinês chamado Zhang Chongren, que cursava a Academia de Belas Artes de Bruxelas. Ficaram amigos e o chinês até se transformou em personagem de alguns livros. “Foi a partir daquele tempo que eu empreendi a pesquisa e realmente me interessei pelas pessoas e países para os quais Tintim ia viajar, desenvolvendo um senso de responsabilidade para com os leitores”, disse o autor, anos depois, no livro Graphic novels: Stories to change your life, de Paul Gravett. O lótus azul (1936), resultado da colaboração com Zhang, é hoje considerado uma obra-prima dos quadrinhos, pelo retrato fiel que fez da China sob ocupação japonesa. A partir daí, os livros de Hergé assumiriam causas consideradas progressistas. Em O cetro de Ottokar (1939), retratou a tentativa de anexação de uma pequena nação dos Bálcãs por uma potência fascista vizinha, fazendo alusão à invasão da Albânia pela Itália de Mussolini e também fazendo referência à ocupação da Áustria por Hitler. Em 1940, foi a Bélgica que caiu nas mãos dos nazistas e novos problemas surgiram para as aventuras de Tintim. O Vingtième Siècle foi fechado, e o governo de ocupação encampou o diário Le Soir, onde
Hergé passou a publicar suas tiras. Durante os anos da guerra, Hergé abandonou o conteúdo político de Tintim e produziu quatro novas séries sobre temas inofensivos, como a queda de um meteorito no Oceano Ártico (A estrela misteriosa). Após a libertação, o cartunista seria preso algumas vezes e interrogado como suposto colaborador dos nazistas, por ter trabalhado em um jornal forçado a apoiar o governo de ocupação. Este fato somou-se às críticas que já se faziam às peripécias de Tintim na Rússia e no Congo. Hergé teria de conviver, até o fim da vida, com acusações de racismo, anti-semitismo e anticomunismo. Na entrevista a Numa Sadoul, admitiu que tivera de rever muitas de suas idéias do passado. Sobre seus primeiros trabalhos, disse: “Eu fui alimentado com os preconceitos da sociedade burguesa que me cercava”. Depois da Guerra, livre da censura, Tintim se soltou ainda mais pelo mundo. Esteve metido em confusões no Oriente Médio, na América Latina, no Tibete. Com os anos, Hergé desacelerou a produção de novas histórias, mas, ao morrer, em 1983, ainda trabalhava numa aventura de Tintim, que deixou incompleta (Tin-
tim e a alfa-arte). Deixou também uma ordem para que novas histórias não fossem criadas. Dessa forma, o Tintim dos quadrinhos é uma obra encerrada, composta de 24 álbuns. Hoje, Tintim é reverenciado como um clássico, um contraponto europeu e sofisticado ao Mickey norte-americano. Seus traços já foram tema de exibições em museus da Europa. Hergé é citado como influência numa geração de cartunistas europeus que vieram depois, como Jacques Tardi e Phil Elliott. Foi inovador no uso das cores e chegou a ser comparado aos clássicos da gravura japonesa, como Hokusai e Hiroshige. Seus livros, publicados pela editora belga Casterman, foram traduzidos para mais de 80 línguas, entre as quais o latim e 25 dialetos regionais da Europa. Ao todo, já foram vendidos cerca de 210 milhões de exemplares. Segundo a editora, ainda são vendidos cerca de 3 milhões por ano. Hoje, no Brasil, depois de décadas com a Record, a série é publicada pela Companhia das Letras, que completou a reedição dos 24 álbuns no final de 2008. A tradução brasileira, de Eduardo Brandão, é excelente, mantendo deliciosas expressões de época, hoje antiqua-
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Hergé, o criador do jovem repórter e, ao lado, uma página interna da aventura Tintim no Congo
das, como as interjeições “pipocas”, “carambolas” e congêneres. As aventuras de Tintim ajudaram a definir o conceito de bandes dessinées, as histórias em quadrinhos tão populares nos países de língua francesa. O enredo começa quase sempre quando Tintim, com sua trunfa loura, acompanhado pelo inseparável Milu, um cachorro branco da raça fox-terrier, recebe a incumbência para fazer uma reportagem. Na apuração, mete-se em confusões, é perseguido por bandidos e acaba desbaratando redes criminosas. Hergé antecipa, já nos anos 30, temas cada vez mais atuais, como o tráfico internacional de drogas e a falsificação de dinheiro. A série conta com personagens coadjuvantes muito marcantes que reaparecem em vários episódios, como o capitão do mar Haddock, o professor Girassol, e os detetives idênticos e trapalhões Dupont e Dupond. A única mulher com alguma importância é a cantora lírica Bianca Castafiori, inspirada em divas da ópera, como Maria Callas. Muitos tintinólogos acham os personagens coadjuvantes até mais ricos do que o próprio Tintim. O herói é um menino de quem não se sabe muito. Não aparece sua família, não se sabe sua idade e nem mesmo
suas opiniões. Só se sabe que trabalha num jornal belga, mas, curiosamente, ele nunca aparece escrevendo ou enviando suas reportagens. Às vezes, ele é que acaba sendo a notícia, quando desbarata as quadrilhas de criminosos. Mas o belga Tintim (no original francês, a pronúncia é “tantã”) não tem nada de bobo. Não é superherói nem tem poderes especiais, o que, nestes tempos de monstros e mangás, dá à sua história um tom realista e, paradoxalmente, quase romântico. Com muita astúcia, o repórter aventureiro interpreta mensagens secretas e desvenda mistérios. Com muita sorte, e com a ajuda do cachorro Milu, escapa de atentados, pula de trens em velocidade e consegue chegar ao final da história intacto. A fama do personagem só cresceu com os anos e ele chegou ao cinema em cinco produções. Houve duas séries para a televisão – uma entre 1958 e 1962 e, outra, entre 1990 e 1992. O jovem repórter chegou também ao teatro, aos musicais e ao rádio. Atualmente, estão em fase de pré-produção dois longas em 3-D que serão dirigidos por Steven Spielberg (diretor de Indiana Jones) e Peter Jackson (diretor de O Senhor
dos Anéis). Fã de Tintim desde criança, Spielberg está envolvido com o projeto desde 1982, convidado para fazer a adaptação pelo próprio cartunista. Hergé é considerado o nono escritor de língua francesa mais traduzido no mundo. Tintim já foi homenageado com a edição de moedas comemorativas e selos na Europa e até no Congo. Na Bélgica, tem status de herói nacional. A marca Tintim é comercializada em cerca de 250 produtos autorizados pela Fundação Hergé, entre eles videogames, chaveiros, canecas e roupas. Camisetas com o desenho do repórter de trunfa são vendidas de Istambul a Phnom Penh. Os produtos são consumidos por uma legião de fãs no mundo todo. Burlando as normas da Fundação Hergé, algumas edições piratas têm sido lançadas como novos e polêmicos episódios, como é o caso das paródias Tintim na Tailândia e O lótus cor-de-rosa, textos em que o jovem repórter passa a ter, pela primeira vez, vida sexual. Com ou sem polêmica, Tintim é ainda um espertíssimo jovem de 80 anos. Para os fãs, é hora de comemorar, brindando com uma deliciosa cerveja belga e fazendo “tim tim”. JAN 2009 • Continente x
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Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
À mesa com Janete Costa
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s mesas de Janete eram únicas, reproduzindo seu estilo muito especial de arquitetura. Tinham sua marca e seu jeito. Simples e generosa. Despojada e sofisticada. Arrojada e equilibrada. Harmônica e efervescente. Contemporânea, mas sem nunca esquecer raízes e tradição. Cuidadosamente planejada, mas sem deixar de seguir seus impulsos, “primeiro faço, depois penso” – assim dizia, lembrando Picasso. Juntando obras clássicas e artesanato popular. Móveis premiados e cadeiras de lona. Elementos da terra e de suas viagens – toalhas indianas, pratos italianos, talheres antigos, gamelas de madeira, cestos de palha. Além dos copos, de todo tipo e tamanho. Tinha fascinação pela transparência e pela fragilidade dos vidros – “desde menina pedia copos de presente”. Para ela, cozinhar era “uma forma de hospitalidade, um jeito de juntar gente perto da gente, de mostrar o sabor e a cor daquilo que você faz. A comida é um depoimento que fica no imaginário”. Gostava, sobretudo, dos sabores simples do seu tempo de criança: “A comida da gente é a comida da infância, sabores que nos acompanham pelo o resto da vida”. Quando recebia os amigos, em sua casa, servia sempre os pratos da terra – “muito melhores do que caviar”. Como carne de sol,
Ivan Alecrim/JC Imagem
acompanhada por farofa de bolão e cuscuz com feijão verde; sarapatel; mão-de-vaca, especialmente a preparada por seu irmão Geraldo; fritada de caranguejo. Também moquecas, feitas em panelas de barro do Espírito Santo, com muita verdura e azeite de oliva. Entre essas moquecas, preferência pela de bacalhau – honrando seu sangue lusitano. Segundo a filha Lúcia, “só servia aos convidados o que gostava de comer”. E só recebia pessoas de quem gostava. Sempre junto a Borsoi, um dos maiores arquitetos do Brasil e seu companheiro inseparável – com
quem viveu um conto de fadas ao contrário, em que primeiro foram felizes para sempre e só bem depois casaram. Conheci Janete não por acaso em um jantar, na sua casa, levados (José Paulo e eu) por amigo comum, Albérico Glasner – “o Divino”, assim o chamávamos. Lembro até hoje aquela noite (março de 1970), no velho casarão na rua do Amparo, em Olinda, onde sempre viveu. Um lugar que impressionava pelos contrastes – o antigo por fora, e o moderno por dentro, em estranha e singular harmonia. Futuro moldado com o caráter do passado.
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Para Janete, cozinhar era “uma forma de hospitalidade, um jeito de juntar gente perto da gente, de mostrar o sabor e a cor daquilo que você faz. A comida é um depoimento que fica no imaginário”
Ela, como sempre, exuberante, inteligente, charmosa. Usava, naquela noite, macacão bege-claro, cabelos compridos e brincos enormes. A mesa estava “posta com cada coisa em seu lugar”, como a de que nos falava Bandeira. Toalha preta, louça clara, guardanapos de linho, copos coloridos. Bem diferente das mesas tradicionais daquela época. No canto da sala um enorme jarro, com panamá vermelho e folhagens verdes. Os pratos foram preparados por ela mesma, em pequena cozinha que se comunicava com a sala por passagem em forma de círculo – pernil de porco, frango com vinho tinto, salada, farofa, batatas cozidas. Por tudo que representa, ficará para sempre na memória dos amigos, dos admiradores e do seu povo. Influenciou toda uma geração de profissionais e marcou, definitivamente, a história de nossa arquitetura – que bem pode ser dividida em antes e depois de Janete. Ficará também, sobretudo, por seus tantos gestos de solidariedade explícita. “Vi portas abertas e entrei. Procurei passar por todas e não passar sozinha, mas levando gente comigo porque me preocupo muito com as pessoas à minha volta”. Entre esses estavam artesãos e artistas populares. A diferença, ela mesma explicava: “O artesão faz o seu trabalho para satisfazer necessidades, para uso próprio – a esteira e a rede para dormir, o pote para
receita
Frango com vinho tinto e arroz de funghi* 3 Recheie 6 peitos de frango cortados em filés grandes com bacon. Enrole e amarre. Tempere com sal e pimenta; e frite até dourar. Depois de frio, corte em rodelas de 2 cm e reserve. 3 Com o restante do frango, faça um refogado com cebola, alho, tomate, coentro, cebolinha. Depois de pronto, coe o caldo do refogado; junte 1 garrafa de vinho tinto seco, 1 colher de sobremesa de estragão ou sálvia, champignons e 1 colher de chá de trigo misturado com 1 colher de sopa de manteiga, sal e pimenta. 3 Depois, as rodelas de peito recheadas de bacon. E sirva, com arroz de funghi. 3 Para o arroz de funghi: refogue o funghi, com cebola e alho. Junte arroz, sal e caldo de galinha. E deixe secar.
* Receita dada por Janete Costa à colunista no Natal de 2002.
carregar água, a panela para fazer comida, a cesta que funciona como embalagem. Algo que é repetido. Enquanto o artista popular é um criador, tem o poder de inventar – o que faz está ligado àquilo que ele já aprendeu, e à tecnologia”. Mas tendo sempre em conta que “do artesão poderá surgir o artista”. Para que vendessem melhor os seus produtos, muitas vezes, orientava as proporções e as formas das peças, tendo o cuidado de interferir o menos possível nessas criações. Incentivou e promoveu esses homens do povo através de exposições que organizou como curadora, por toda parte. Seu último trabalho foi a reforma do Museu do Homem do Nordeste, em projeto por ela inteiramente doado – por “uma questão de pernambucanidade”. Teria mesmo que ser algo assim, com a marca de sua generosidade. Agora ficou um imenso vazio. Uma enorme saudade. Como se nos faltasse um pedaço. Ensina Machado que, “para o caminhante, não há caminhos”, “caminhos se fazem ao andar”. Na direção indicada pela estrela mais brilhante, que se via no mar. Para ele, espanhol que era, a estrela Polar. Se assim for, Janete será, para nós, a mais nova estrela. Com seu brilho especial, intenso e generoso, derramando-se sobre todos. Iluminando e indicando caminhos no mar, agora mais triste, de nossas vidas. JAN 2009 • Continente x
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Foto: Rafael Gomes
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Retratos em sonetos Em Daguerreótipos, Marcus Accioly explicita em cada poema a tentativa sem tréguas de superação do mal, da dor e do sofrimento, intercomunicantes e originários em boa medida da culpa e do pecado Luiz Carlos Monteiro 76 x Continente • JAN 2009
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ão é fácil retratar em versos a experiência do mal. Mesmo quando o resultado desse esforço contempla um vasto painel de escritores e artistas que se vincularam ou foram arrastados, em diversos momentos de suas vidas, ao sofrimento e à dor. Do limbo do discurso marginal e maldito de Daguerreótipos, publicação mais recente do pernambucano Marcus Accioly, emergem-se poetas, músicos, atores, pintores e personagens históricos revolucionários que construíram suas obras e feitos a partir do duplo intrínseco a cada um deles. Um duplo espelho – ou dupla face – a refletir o embate infindável entre a capacidade mínima de se ser justo e solidário e a indefectível maldade e sordidez humana. O desempenho poético de Accioly pode ser conferido numa poesia que percorreu várias fases, veredas e caminhos: do armorial nordestino de Xilografi a à vertente grega dramática e épica de Íxion e Sísifo, da poesia para meninos e jovens de Guriatã à compulsão erótica em Érato, da celebração drummondiana em Ó(de)Itabira a Latinomérica, poema-síntese da América. Em termos estruturais, Daguerreótipos se aproxima bem mais à fase inicial entre as décadas de 60 e 70, pela busca intensificada da musicalidade do poema em metro e rima. A divergência se verifica, porém, na proposição conteudística e na concepção temática
da matéria – em Daguerreótipos a faceta obscura e a tragicidade humana vêm expressas em sonetos regulares, e em Nordestinados predominam o ritmo batido e o tom de exatidão do martelo, da quadra e do galope apropriados para se falar da caatinga e do canavial. Da aspereza regional e intensamente rica de Mata e Sertão, ele evolui, 40 anos depois, para uma obra de alcance cosmopolita que privilegia homens e mulheres flagrados em algum instantâneo de morte mais que de vida, ou do sopro tangencial de vida que se manifesta no instante mágico da morte. Daguerreótipos lembra antigas fotografias em preto-e-branco, bem mais expressivas em sua nudez e resolução artística. A tarefa de Accioly foi trazer até a poesia essa plêiade de rostos severos e ao mesmo tempo irônicos, graves e mordazes, serenos ou angustiados, beatificados e bestializados. O poeta tanto pode imprimir colorido à face torturada, como acentuar mais ainda o branco e o preto já existentes de antemão na composição fotográfica, representativa da configuração e feição humana momentânea do rosto no momento em que é retratado. A escolha do soneto para fixar os retratos – os daguerreótipos – pelo poeta que já experimentou em sua poesia numerosas transformações e desconstruções rítmicas e espaciais em associação com sinais e signos gráficos de múltipla utiliza-
ção, explica-se em parte pelo fascínio que essa estrutura antiga exerce sobre os que a praticam. Contribuem para isso a confluência sintética de sonoridade e ritmo, a exigência de um desenvolvimento interno que, neste caso, não logra apenas se abrir em chave de prata e fechar-se em chave de ouro ou estender-se em dispensáveis estrambotes. Embora trabalhe o soneto tradicional decassilábico, que permite poucas escansões, isto não invalida certa flexibilidade necessária ao bom andamento rítmico, cujo efeito semântico-fonético se concentra nas rimas de procedência diversa e que se enriquecem a cada estrofe, sem a rigidez estatuária e estática do passado literário brasileiro recente. Cada soneto de Marcus Accioly em Daguerreótipos explicita a tentativa sem tréguas de superação do mal, da dor e do sofrimento, intercomunicantes e originários em boa medida da culpa e do pecado. O conjunto perfaz uma espécie de invocação que desemboca na obscuridade do mito profano e do recôndito sagrado, além de absorver a bastardia artística que se opera no ponto nevrálgico onde a dor e o sofrimento se metamorfoseiam no mal e na morte. O fato é que Accioly renega e dispensa agora as peripécias visuais obsessivas, a pesquisa extensiva e ritualística da matéria insuflada na página branca em técnica pós-mallarmaica. Entretanto, alguma coisa restou daquela prática, como o uso de travessões e parênteses para meJAN 2009 • Continente x
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Da esquerda para direita: Anna Akhmatova, Fernando Pessoa, James Dean, John Lennon e William Burroughs
Imagens: Reprodução
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lhor articulação do enjambement e das repetições vocabulares, permitindo-se, assim, a interrupção momentânea ou a continuidade de versos e palavras que se alternam e justificam-se no tremendo esforço de expor o mal. A série de retratos sugere ainda, em alguns momentos, o inacabado porque interminável. As numerosas lacunas são, contudo, compreendidas e aceitas pela impossibilidade de se escrever uma obra que, à maneira de um arquivo planetário, contenha todos os nomes. O autor foi tocado e atingido em sua sensibilidade pelos nomes que mais o comoveram, por aqueles e aquelas a quem mais se identificou através de um gesto, um quadro, uma palavra, uma composição musical, uma atitude de rebeldia ou um feito inaudito e digno de registro. Uma elegia à sensibilidade feminina manifesta-se no soneto a Sylvia Plath, entrevista no instante de sua morte aos 30 anos. Os rituais advindos do suicídio e da mão de alguém a acariciar um corpo já sem vida intercalam a violência do gesto e a calma final que a poetisa inglesa tanto
buscava, sem que se possa evitar, no entanto, no soneto, certa inclinação sádica a um realismo envenenado: “Com a idade da crise, Sylvia Plath,/ isolaste a cozinha e abriste o gás./ Tua cabeça loura, para trás,/ pendeu aos poucos: consummatum est.// Alguém fecha os teus olhos e te veste,/ reza meiaoração e, não capaz/ de chorar, põe à sombra do cipreste/ teu corpo e escreve à pedra: ‘Dorme em paz’.// Depois abre o teu livro e lê: ‘As fontes/ estão secas e as rosas acabaram./ Dois suicidas, lobos da família’.// E uiva, feito um coiote, até os montes,/ porque todas as portas se fecharam/ e nada, além de ti, na névoa brilha.” Numa cronologia pautada pela escolha eminentemente individual, Accioly elege como primeiros nomes John Lennon, poeta da pacificação norte-americana nascido em 1940 – não por acaso, da mesma década em que nasceu Accioly – e Joseph Brodsky, poeta russo que escreveu sua obra sob o signo de uma ironia feroz e iconoclasta. No extremo estão Homero, o aedo cego que gravou seu nome na intemporalidade com as marcas an-
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cestrais da aventura humana e da guerra, e Safo de Lesbos, que inaugurou a diversidade sexual numa poesia de compulsão dionisíaca, já no século 7 a.C. Em paráfrase necessária, no poema inicial Daguerreótipos entrevê-se a forma do soneto como “negativo onde o mal se desfigura”. Em O soneto, polariza-se a oscilação perene entre o bem e o mal, o claro e o escuro, o homem e a natureza, o indivíduo e a sociedade, instigando o autor a perseguir “no inferno o poeta e no mal a dor”. Não faltarão exemplares para esta jornada exaustiva ao fundo do poço. Os 163 sonetos escolhidos são representativos de gerações ao longo de séculos e épocas históricas, sempre a reboque de orientações estéticas que a todo custo buscam reinventar-se. São ressaltadas no livro formas violentas ou calmas de mortes destinadas a quem transitou pela vida e pelo planeta em estágio agudo de maldição e ruína, de raros lampejos benéficos em meio ao sobressalto e ao espanto. A presença inexorável da morte por suicídio (enforcamento, gás, overdose, haraquiri), o destino traiçoeiro dos
que pereceram assassinados (García Lorca, “Che” Guevara, Euclides da Cunha) ou morreram em acidentes fatídicos, como o desaparecimento por explosão no céu dos Andes (Mário Faustino) e roído pelos peixes num naufrágio em mar italiano (P. B. Shelley). E ainda no indecifrado e inexplicável daquelas mortes que não se evidenciaram em fatos ou testemunhos comprovados, sendo a de Lautréamont a mais obscura delas. A valentia sertaneja de Lampião “plantando uma morte em cada cruz” destaca-se no modo radical e ritual da vingança empreendida. Assim como a rebeldia urbana de James Dean, personagem de si mesmo no combate a valores sociais, familiares e geracionais tradicionalistas e arraigados. A face obscura do mal se enseja em outras modalidades cruéis como os assassinatos cometidos por François Villon, o poeta rufião e quadrilheiro que executou no dia de Corpus Christi, do ano de 1455, a golpes de adaga e pedradas, o clérigo Sermoise, em Paris, e por William Burroughs, o beat louco norte-americano que, ao treinar tiro ao alvo numa maçã
colocada na cabeça de sua mulher Joan, terminou matando-a. Insurge-se um lado semiescondido desses personagens que não aflorou através da família, dos possíveis amigos e inimigos e das campanas da imprensa a qualquer tempo no rastro de autores famosos. Ainda que apareçam sob um prisma estilhaçado em perfis endemoniados, apátridas, ateus e cults, o que os transforma em personagens avessos e enviesados das gerações que lhes foi dado vivenciarem. E assim permanecem vivos no repúdio à malícia humana dos lances encarniçadamente indefensáveis e humilhantes do cotidiano e na recusa do ser ao abandono total ou parcial a um destino asfixiante e desolador.
SERVIÇO Daguerreótipos Marcus Accioly Escrituras Editora 224 páginas 35,00 reais
Leia um trecho do livro Daguerreótipos www.continenteonline.com.br
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Quando o amor tem garras Seleção de traduções de Jorge Wanderley traz para o português a palavra ao mesmo tempo sensível e cortante das poetas modernas de língua inglesa Marco Polo
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ecifense apaixonado pela cidade, Jorge Wanderley (1938-1999), por circunstâncias profissionais, radicou-se no Rio de Janeiro, onde passou a maior parte de sua vida. Poeta, foi também tradutor prolífico e inspirado, sendo o Inferno seu último trabalho, num projeto inacabado de verter para o português a Divina Comédia, de Dante, de quem já tinha traduzido toda a obra lírica. Entre outros trabalhos, também trouxe para o português a poesia mais recente de língua inglesa, na Antologia da nova poesia norte-americana e em 22 Ingleses modernos, livros de onde Márcia Cavendish selecionou os poemas que integram Do jeito delas – Vozes femininas de língua inglesa. São 10 poetisas americanas e duas britânicas (uma depois americanizada), todas do século 20, com exceção de uma que ainda no século 19 já escrevia como modernista. A coletânea começa com Sylvia Plath, que nasceu em 1932 e em 11 de fevereiro de 1963, aos 30 anos, suicidou-se inspirando gás de cozinha em sua casa. Seu livro mais importante, Ariel, foi publicado dois anos depois. Apaixonada, mas oscilando entre a angústia e o sarcasmo, Plath fazia uma poesia confessional e dramática. Nela,
o amor tinha garras. Jorge traduz Colher amoras, em que o simples ato de colher frutas, sem nenhuma alusão direta, ganha um clima de pesadelo. Contemporânea e amiga de Sylvia, Anne Sexton, filha de pai alcoólatra e mãe hostil, sofria de depressões e suicidou-se aos 46 anos. Sua poesia também é amarga e cruel, transfigurando o cotidiano feminino. Emily Dickinson, nascida em Massachusetts, é a única poetisa do livro que pertence ao século 19. Nunca se casou e levou uma vida reclusa, deixando cerca de 2.000 poemas, quase sempre curtos e de acento epigramático, nos quais muitos dos procedimentos da poesia moderna já eram antecipados. Entre seus poemas traduzidos por Jorge Wanderley está o célebre Morri pela beleza. Considerada uma das vozes fundamentais da poesia norte-americana do século 20, Hilda Doolittle, que também se assinava H. D., comparece a esta seleção de traduções com um poema curto em que prevalece certo experimentalismo e a recorrência de imagens, características da primeira fase da poetisa. Também poetisa maior, Marianne Moore está presente com um de seus mais conhecidos poemas, Poesia, que começa assim: JAN 2009 • Continente x
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LITERATURA
As poetisas Seis das 12 vozes femininas traduzidas Eu solucei com a tempestade da primavera Queimei como o verão brutal. Agora, ouvindo o vento zunir nas cordas [dos arcos, Conheço o que o inverno traz. A caça passa em fuga pela planície E o jardim escurece. Logo trarão os troféus para casa E eles hão de sangrar e morrer Ao lado das gelosias Perto da ponte que ainda faz jorrar água De diamante, Perto do charco (Que tem oito lados como o meu coração).
Louise Bogan
Morri pela beleza e mal chegara A me ajustar ao meu túmulo Quando alguém, que morreu pela verdade, Foi estendido ao meu lado. Suave perguntou por que eu morrera. “Pela beleza”, eu lhe disse. “E eu pela verdade – o que é o mesmo; Somos irmãos”, respondeu.
Emily Dickinson
Marianne Moore
E assim, como parentes reunidos, Conversamos noite a dentro Até que o musgo alcançou os nossos lábios E recobriu nossos nomes.
Eu também não gosto dela: há coisas bem mais [importantes que toda esta frioleira. Lendo-a, porém, com um profundo desprezo por [ela, a gente descobre Nela, de qualquer modo, um lugar para o que é [genuíno. Mãos que podem reter, olhos Que podem se ampliar, cabelos que podem se eriçar Se for preciso, essas coisas são importantes, não porque Uma altissonante interpretação lhes possa ser dada [mas porque são úteis.
“Eu também não gosto dela: há coisas bem mais importantes que toda esta frioleira”. Sobre ela, disse João Cabral: “Marianne Moore, em vez de lápis,/ emprega quando escreve/ instrumento cortante:/ bisturi, simples canivete”. O silêncio, a linguagem e os fracassos do amor são alguns temas recorrentes de Louise Bogan, contemporânea de Marianne Moore. Sua poesia – que, segundo testemunhos de contemporâneos dela, era escrita com grande dificuldade –, é muito refinada, tanto que para muitos Louise é uma poetisa para poetas. É considerada, também, uma grande crítica literária. Poetisa excepcional, Elizabeth Bishop tem particular interesse para nós, pois morou muito tempo no Rio de Janeiro, tendo escrito poemas sobre o Brasil. Alcoólatra e lésbica, escreve, para além dessas circunstâncias biográficas, uma poesia límpida e muito forte. Era tão rigorosa na feitura de seus poemas antes de publicá-los, que terminou deixando uma obra relativamente reduzida. Jorge traduziu o que é, possivelmente, seu poema mais conhecido, O peixe. A inglesa Denise Levertov decidiu que seria poetisa aos cinco anos e, aos 12, enviou seus poemas para T. S. Eliot, que respondeu incentivando-a. Mudando-se para os Estados Unidos, transformou-se numa poetisa tipicamente norte-americana, ligada aos movimentos de vanguarda. Ela comparece, nesta antologia de traduções de Jorge Wanderley, com o delicioso poema O segredo. Edna St.Vicent Millay também teve uma carreira precoce. Também viveu intensamente, desafiando os costumes da época com seu comportamento bissexual e, depois, com um casamento aberto. Em um dos poemas traduzidos por Wanderley, essa rebeldia se explicita: “Para baixo, para baixo, para o túmulo penumbroso,/ Vão gentilmente o belo, o terno, o delicado,/ Gentilmente o inteligente, o esperto, o valoroso./ Eu sei. Mas não aceito. E não estou conformada”.
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Silvya Plath fazia uma poesia dramática. Jorge traduziu dela o poema Colher amoras, em que o simples ato de colher frutas, sem nenhuma alusão direta, ganha um clima de pesadelo Edith Sitwell se distingue das demais poetisas desta coletânea por ser a única que utilizou a sátira e o burlesco em seus poemas, como o demonstra Canção de rua. Patrícia Hooper é poetisa contemporânea nossa. Seu texto meditativo consegue desvelar o mistério por baixo do aparentemente comum, como no poema Deserto. Elinor Wylie, não conhecida no Brasil, fecha a coletânea com um poema sensível e cruel; aliás, duas “qualidades” que parecem ser uma dominante nestas mulheres poetisas de voz inglesa. O livro vem luxuosamente recheado de nomes ilustres: orelha de Paulo Henriques Britto, contracapa de Carlos Lima, nota introdutória de Geraldo Carneiro, mais ensaios de Silvia Cavendish, Carlos Eduardo Fialho e, com destaque pela fineza e pertinência das análises, Márcia Cavendish. Este é um livro que deve atrair não apenas poetas, críticos e feministas, como todos que se interessam pelo ser humano e pela expressão maior de todas as línguas: a poesia. Deixandonos gratos a Jorge Wanderley, por ter vertido para o português, com rigor e habilidade, vozes tão fortes quanto delicadas. Do jeito delas Traduções de Jorge Wanderley Faperj/7 Letras 132 páginas 25,00 reais
O guisado misturado, a lascívia do seu corpo, sua vida local em Illinois, onde todos os acres parecem fábricas de vassouras florescentes: – já faz agora dez anos que ela é seu hábito e novamente hoje de noite ele dirá vamos, doçura e ela não o dirá o quanto além disso [é preciso Anne Sexton
Eu fisguei um peixe enorme E o mantive ao lado do barco Metade fora d’água, com meu anzol Que lhe cravava o canto da boca Ele não lutou. Ele não lutara mesmo nada. Ele era um peso pendente Derrotado e venerável E simples Elizabeth Bishop
Numa última curva Alcanço a face norte dos montes, cor [de laranja e rocha E a face olha para nada, nada exceto [um grande espaço De luzes brancas metálicas; nada exceto [um ruído de ferramentas sobre a prata, Os golpes e golpes contra um metal intratável. Sylvia Plath
Leia mais poemas traduzidos por Jorge Wanderley www.continenteonline.com.br
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MÚSICA
livros
Da erudição ao apreendido no dia-a-dia
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mão. Poeta urbano por Corpointeiro excelência, Marco Polo Marco Polo Guimarães Edições Bagaço canta a cidade em versão 112 páginas local ou estrangeira, res30,00 reais saltando o movimento anônimo de quem não adia o instante, a fluência sombria e a solidão de um domingo em qualquer urbe. Canta as mulheres, privilegiando mais a sua sensualidade palpável e beleza carnal do que o charme biliesco e clandestino de amores inalcançáveis. Não faltam versos onde ressoa uma dicção grave e pensada, com a proposição de estruturas poéticas que aliem por dentro a vida ao sujeito individual e coletivo. Tudo isso apoiado em aliterações que não discriminam, para melhor efeito poético, o vocábulo raro do chulo, a erudição advinda da leitura, da música e da pintura do apreendido no dia-a-dia de gírias, neologismos e conversas jogadas fora. (LCM)
> Sobrenatural e real na dose certa
> Jornalismo e discurso científico
> Uma visão integral > Biografia de Eça de do platonismo tardio Queiroz reeditada
À primeira vista, Crepúsculo pode causar certa descrença sobre o seu potencial. Contudo, Stephenie Meyer tem uma narrativa tão envolvente que torna fácil ao leitor “entrar” na trama. A princípio, a história de uma garota de 17 anos que muda de cidade e se apaixona por um vampiro causa estranheza. Mas, nesse universo fantasioso, os personagens de Meyer – humanos ou não – mostram-se de tal forma familiares em seus dilemas e em seu comportamento que o sobrenatural parece real. Meyer torna perfeitamente plausível a paixão de uma garota por um vampiro encantador. Esse grande sucesso editorial também se tornou sucesso nos cinemas. (Gabriela Lobo)
Em Ciência e jornalismo, a professora Cremilda Medina busca, a partir do seu reencontro com a obra de Augusto Comte (sobretudo do clássico Discurso sobre o espírito positivo, de 1848), traços do paradigma positivista que, a despeito das transformações técnico-metodológicas e conceituais do último século, encontram-se presentes no trabalho do cientista e do jornalista. Medina chama a atenção para a insuficiência dos conceitos clássicos de objetividade, neutralidade e racionalidade enquanto ferramentas analíticas das instâncias que compõem o “real” socialmente partilhado em toda a sua complexidade, mostrando ainda como boa parte dos impasses desse legado ainda se encontram insolúveis. (Yuri Bruscky)
Nesta obra, Gabriela Roxana Carone, professora e doutora em filosofia pelo King’s College de Londres, põe em questão as concepções apresentadas por Platão em seus últimos diálogos no que diz respeito às relações entre a esfera cósmica e o lugar e função do homem dentro da ordem universal (cosmos). Partindo da análise dos relatos Timeu, Filebo, Político e Leis, a autora examina as concepções éticas platônicas presentes nos mitos e argumentações que buscam a indissociável afinidade entre a ordem cosmológica, o papel do homem e o perfeito regramento da vida social. O pensamento ético tardio de Platão – já estudado à exaustão – é apresentado a partir de uma perspectiva ampla e integral. (Eduardo Cesar Maia)
Fotos: Rafael Gomes
m Corpointeiro, seu sétimo livro de poesias, Marco Polo Guimarães (foto) chega a um ponto de maturidade desejável para quem lida com a palavra. Alcança o domínio, a habilidade e a maestria no tratamento com o verbo pela transformação misteriosa, por isto mesmo nem sempre prevista ou previsível, de idéia e sentimento em forma e sentido. O poeta conta com uma experiência considerável de vida em múltiplas atividades. Mas o que mais conta é a inclinação autêntica para escre ver vers os, sem que se precise forçar a
Crepúsculo Stephenie Meyer Editora Intrínseca 416 páginas 39,90 reais
Ciência e Jornalismo Cremilda Medina Summus 118 páginas 26,90 reais
A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas Gabriela Roxana Carone Edições Loyola 328 páginas 47,00 reais
Uma oportuna parceria editorial (Editora Unesp e EDUFBA) reedita importante obra daquele que Alceu Amoroso Lima classificou como “príncipe dos nossos biógrafos”. Tratase da biografia do mestre português Eça de Queiroz, escrita pelo escritor e jornalista Luís Viana Filho. No livro, o autor de O primo Basílio, A relíquia, Os Maias, O crime do Padre Amaro, entre outros romances célebres, é apresentado como um idealista, um intelectual que buscou sintonizar o seu país – arcaico e apegado fortemente às tradições e às glorias do passado – com o que vinha acontecendo na vida cultural da Europa moderna. Eça foi um batalhador incansável contra o medievalismo, a alienação e o obscurantismo da época. (ECM) A vida de Eça de Queiroz Luís Viana Filho Editora Unesp 372 páginas 50,00 reais
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MÚSICA
Em livro, as viagens de Silvério Pessoa
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ste livro é uma seleção que o cantor e compositor pernambucano Silvério Pessoa (abaixo, em desenho de Humberto) fez de textos e fotos do seu blog www.monolitico-tema.blogspot.com, em que registra suas viagens em turnê por vários países da Europa e também da Ásia. Em frases curtas e diretas, ele fala de lugares lindos como a Ilha Tenerife; recantos curiosos como o restaurante Cueva de San Esteban, numa grutas de Segóvia; dá dicas
de como se alimentar bem Nômade gastando pouco; enfim, Silvério Pessoa Edições Bagaço Silvério não apenas narra 184 páginas as viagens e os shows, mas 40,00 reais observa e comenta tudo, sempre com leveza e argúcia. O livro todo tem aquela dinâmica típica dos blogs, com anotações sendo feitas diariamente e sobre os mais diferentes assuntos. É também muito rico em imagens, reproduzindo não apenas fotografias feitas durante as viagens, como capas de discos, cartazes, capas de revistas, desenhos e ícones visuais. No prefácio, Raimundo Carrero diz que estamos diante de um verdadeiro escritor. O que não é pouco. Silvério Pessoa começou com o grupo Cascabulho e hoje trilha uma carreira solo, tendo gravado CDs importantes, como Bate o mancá – O povo dos canaviais, Batidas urbanas – Projeto micróbio do frevo e Cabeça elétrica, coração acústico. (MP)
> Uma análise da vida de Napoleão
> A importância das províncias no Brasil
> Novidades na área da psicologia
> Uma nova história da fotografia
Dizia Napoleão que sua política “é de governar os homens como a maioria exige. Está aí, creio eu, a maneira de reconhecer a soberania do povo. Foi em me passando por católico que acabei com a guerra de Vendéia, passando-me por mulçumano que me estabeleci no Egito, passando-me por ultramontano que ganhei as pessoas na Itália. Se eu governasse um povo judeu, eu restabeleceria o templo de Salomão”. Tal capacidade de adaptação é um dos temas explorados por Thierry Lentz (diretor da Fundação Napoleão e professor da Sorbonne) nesta biografia do conquistador francês, cuja maior virtude é não apenas narrar os fatos daquela vida extraordinária, mas também refletir sobre eles. (MP)
Este estudo da historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense, Maria de Fátima Silva Gouvêa, disseca a importância exercida pela assembléia provincial fluminense em relação ao governo imperial, e tenta ampliar os limites historiográficos até hoje vigentes, que vêem a monarquia brasileira como uma organização político-administrativa altamente centralizada, sem levar em consideração a dinâmica política provincial. Organizado em seis capítulos, O império das províncias é baseado em pesquisas na Coleção de Leis da Província do Rio de Janeiro, nos Relatórios de Presidente de Província, no Jornal do Commercio e no Diário do Rio de Janeiro. (MP)
Neste livro, o psiquiatra e pesquisador YoramYovel acompanha as inovações que foram surgindo nos últimos anos nas áreas da psicologia, da psiquiatria e das neurociências, e as possibilidades que foram criadas para aliviar o sofrimento humano. Ele analisa distúrbios psicológicos e psiquiátricos, ilustrando-os através do relato de casos clínicos de seus pacientes. Yovel disseca a alma humana a partir de três ângulos distintos. Primeiro, do ponto de vista do terapeuta, o ângulo psicológico. Depois, do ponto de vista do médico, o ponto de vista psiquiátrico. Terceiro, do ponto de vista do cientista que pesquisa o cérebro. O resultado pode ser contemplado não apenas pelo especialista como também pelo leigo. (MP)
Leveza e humor dão o tom deste livro, que transcorre como uma conversa agradável sobre um tema ameno. No caso, é um escritor – o britânico Geoff Dyer – divagando, embora em forma ensaística, sobre a fotografia, sem rigor classificatório nem abordagem cronológica. Não como um especialista no assunto, mas como um curioso bem imaginativo, descobrindo relações inusitadas entre imagens, contando histórias dos fotógrafos mais famosos do mundo, tentando entender o interesse de certos profissionais por determinados temas. O resultado é uma viagem pelo mundo da fotografia em forma de reflexão. Ou como diz o subtítulo do livro: Uma história particular da fotografia. (MP).
Napoleão Thierry Lentz Editora Unesp 182 páginas 24,00 reais
O império das províncias Maria de Fátima Silva Gouvêa Civilização Brasileira 368 páginas 45,00 reais
O inimigo no meu quarto Yoram Yovell Record 476 páginas 58,00 reais
O instante contínuo Geoff Dyer Companhia das Letras 304 páginas 49,00 reais
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TRADIÇÕES
100 anos em um CD Disco da Banda Cabaçal Padre Cícero, que levou doze anos da gravação até a prensagem, registra a música de três gerações Thiago Lins, de Juazeiro do Norte (CE)
Q
uando Mestre Miguel tinha apenas seis anos de idade, seu avô lhe fez um pedido: – Não deixe a cultura morrer. Passados 60 anos, o mestre da secular Banda Cabaçal Padre Cícero não só aprendeu a lição, como também a repassou direitinho. Hoje, o grupo está em sua terceira geração, e já iniciando a quarta. Mestre Miguel, que até seus 50 anos dava mortal em cima do palco – sem tirar o pife da boca – já não tem condições físicas de assumir a dianteira do grupo. No entanto, é como se o bastão não tivesse sido passado. “O mestre é insubstituível”, afirma seu filho José, que toca caixa. Assumir a posição mais alta de uma banda histórica parece ser algo mais determinado pelo tempo do que pelos fatos: “Ainda há uma longa estrada até o patamar que meu pai assumiu”, explica José. A saúde atual do Mestre Miguel é mais uma dificuldade entre tantas que o grupo já enfrentou, ao
longo de sua história, tão extensa quanto sinuosa. Quando, em sua primeira geração, o grupo chegou a Juazeiro do Norte (sertão cearense, a mais de 500 km de Fortaleza), a cidade ainda era conhecida como Tabuleiro Grande. Com a bênção do Padre Cícero, conseguiram terra para morar e espaço para tocar. Mas a ligação do grupo com o beato não se resume a respaldo. Como José gosta de frisar, os cabaçais tocam por amor à arte – e à religião. Na fervorosa região do Cariri cearense, a religião ainda está casada com a arte – e com o lar, o comércio etc.: a figura do “São Padim” é onipresente. Lá se vão mais de 100 anos e três gerações, desde que a bandinha começou a animar os fiéis que compareciam às primeiras missas do Pe. Cícero. Banda Cabaçal Padre Cícero, o CD agora lançado, amargou um processo lento e sofrido, que começou com uma visita do produtor, Galdencio Siqueira, ao mestre Miguel, em Juazeiro, no
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não pôde ser recuperada. Passados mais de 10 anos (a gravação também foi em 1996), Tércio Araripe (que divide a produção com Galdencio) achou um técnico que mexeu em todas as músicas das duas fitas remanescentes. “Foi um trabalho totalmente artesanal, cabeçote por cabeçote, parafuso por parafuso”, lembra. O trabalho árduo pôde ser finalizado graças à aprovação do projeto no edital da SeCult (Secretaria de Cultura do Ceará), que também possibilitou a prensagem. Apesar do hiato entre a gravação e a prensagem do CD, as músicas não sofreram maiores alterações: o longo processo que houve não foi
de produção, nem de mixagem, e sim de arrecadação de fundos. Preservar as raízes é um princípio do grupo, hoje formado pelo Mestre João Branco (pífano), José (caixa), Francisco (pratos), Domingos e Maria (zabumbas). Maria é a única mulher entre as bandas cabaçais. E, em meio à manutenção de um repertório secular, como fica a criação? “As músicas antigas são executadas do mesmo jeito até hoje. A gente sempre cria, mas tudo o que a gente aprendeu é preservado”, explica José. O CD teve pré-lançamento em Brasília, em novembro do ano passado, no Teia (encontro que reúne artistas e produtores de todo o país). A Cabaçal encerrou o evento com
Imagem: Divulgação
ano de 1996. O artista estava passando por outra fase difícil: trabalhava como carroceiro, e sua burrinha tinha morrido. Estimulado pelo produtor, o mestre foi tentar a sorte com a família em Fortaleza. Passou 40 dias à beira-mar, na praia de Iracema, morando com uma comunidade circense. Conseguiram agendar shows na capital e usaram a renda para gravar um CD, que não se concretizou logo: o dinheiro tinha acabado, e o mestre, privado de seu instrumento de trabalho, não podia arrecadar mais. Ainda não tinha o título de Mestre, que propicia um benefício equivalente a um salário-mínimo. O resultado foram três fitas K7 consumidas pelo mofo. Uma
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Fotos: Divulgacão
TRADIÇÕES
A Banda Cabaçal Padre Cícero, durante apresentação no IV Encontro Mestres do Mundo
um show. “A gente foi muito aplaudido, vendemos uns 70 CDs naquela noite”, lembra José. A bolachinha foi oficialmente lançada um mês depois, num show que fez parte da programação do IV Encontro Mestres do Mundo, evento que reuniu 300 mestres da cultura popular em Juazeiro do Norte. Se, em estúdio, a banda dá uma idéia de sua força, com uma percussão mais tribal do que outros grupos do gênero (o Cariri concentra mais de 20 bandas cabaçais), no palco, a pujança que o CD transmite é posta à prova. O show de lançamento mostrou uma banda performática, que, com o perdão do trocadilho, sabe casar o passo com o compasso. Ao longo da apresentação, em que a cabaçal dança sem parar, o espectador fica com a impressão de que, em algum momento, o grupo pode descambar para uma dramatização exagerada, visto que a performance se revela meio musical, meio cênica. Mas eles acertam na dose, seguindo os passos ensinados pelo Mestre. “Até hoje, não vi ninguém bater Mestre Miguel no palco”, lembra Galdencio. “Nem aquele metaleiro, como
é mesmo? Ah, Ozzy Osbourne”, compara, lembrando a famosa história do ex-Black Sabbath, que, durante um show, arrancou a cabeça de um pombo com os dentes. De fato, Ozzy nunca deu mortal nem peão-de-cabeça no palco, muito menos sem parar de tocar. Apesar da repercussão que a Cabaçal vem alcançando junto ao público amplo, o grupo mantém o idealismo e restringe a agenda a festas populares e/ou religiosas, como reza a cartilha da cultura popular. A banda toca em casamentos, batismos e renovações. A última é uma festa católica, tradicional no interior do Nordeste, em que se celebra aniversário de casamento. Geralmente, o casal reforma a casa, simbolizando um novo ano no lar. Além de divulgar o CD, está nos planos da banda tocar pelas feiras do interior nordestino, começando pelo Ceará, num projeto concebido pelos produtores. “A idéia é fazer oficinas, aulas-espetáculo para alunos de escolas públicas”, explica Galdencio. O projeto Lançamento do CD da Banda Cabaçal
nas feiras livres está em análise. Outra idéia, mas em médio prazo, é um DVD incluindo imagens de arquivo, da temporada que a banda passou em Fortaleza. “A gente quer fazer como se fosse um documentário”, define o produtor. Tércio Araripe lembra que o Mestre Miguel, quando tinha mais saúde, não ia a lugar algum sem o seu instrumento. O artista, que faz hemodiálise, não toca mais pífano por recomendação médica. O CD, que condensa 100 anos de história, ganha outra conotação quando Mestre Miguel o carrega em sua bagagem, no lugar do pífano que não pode mais ser tocado.
SERVIÇO Banda Cabaçal Padre Cícero Banda Cabaçal Padre Cícero Independente 20,00 reais
Ouça o primeiro CD da Banda Cabaçal Padre Cícero www.continenteonline.com.br
* O repórter viajou para Juazeiro do Norte (CE) a convite da produção do IV Encontro Mestres do Mundo.
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TRADIÇÕES
O quinto passo do Bloco da Saudade
Agremiação coroa seus 35 anos com o CD A vida é um carnaval
O
êxito a tradicional marcha-de-bloco, hoje saindo pelas ruas do bairro do Recife (zona central da capital), com coral feminino, orquestra de pau e corda, e o figurino vermelho e azul que faz alusão à cultura popular nordestina. Como é de praxe, o bloco celebra mais uma data redonda com o quinto CD (o segundo sob a batuta do maestro Bozó). Equilibrado, A vida é um carnaval não deixa de fora medalhões como Capiba e Edgard Moraes, ao mesmo tempo em que dosa os sucessos desses compositores com canções recentes. “O CD contém grandes músicas, só que menos conhecidas”, define o diretor do bloco, Felipe Cabral, dando uma idéia do trabalho, meio de resgate, meio de
inovação, que orienta a bolachinha. Lançado em dezembro, com festa no Recife Antigo, A vida é um carnaval chega em boa hora para os saudosistas. O CD, cujo repertório vai de 1928 até hoje, condensa o passado e o presente do Bloco. E, depois que o Bloco passar, é só escutar o disco. (TL)
SERVIÇO A vida é um carnaval Bloco da Saudade Independente 20,00 reais
Escute o novo CD do Bloco da Saudade www.continenteonline.com.br
Rafael Gomes
Bloco da Saudade existe desde 1974, tendo sido idealizado pelo compositor de frevos Edgard Moraes (1904-1974). Na marcha Valores do passado, de 1962, em que o compositor homenageava 24 blocos pernambucanos já extintos, Moraes clamava por uma agremiação que revivesse os grupos carnavalescos mais tradicionais. Essa agremiação, então fictícia, era chamada de Bloco da Saudade. Passados 11 anos, os foliões Zoca Madureira e Marcelo Varela tomaram o nome emprestado e colocaram o Bloco na rua pela primeira vez, desfilando pelo bairro do Cordeiro, zona norte do Recife. Desde então, a agremiação vem representando com
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n CINEMA
Um tributo à blaxploitation Blaxploitation é um subgênero cinematográfico surgido nos EUA no início dos anos 70, aproveitando a explosão do black power ocorrida na década anterior. Como qualquer nicho concebido sob a égide do “cinema de exploração” (exploitation) – no qual estereótipos e temas polêmicos são tratados de modo sensacionalista –, o blaxploitation se valeu da emergente cultura black norteamericana, como a música, as gírias e o vestuário, para incrementar bilheterias ou enfatizar discursos contra a segregação racial, uma vez que a realização de
tais filmes não se restringiu aos estúdios comerciais, atingindo também grupos militantes. De sua filmografia, constam tanto produções de grande porte, como Shaft, lançado pela MGM, como as de baixo custo, a exemplo do emblemático Sweet sweetback’s badaaass song, considerado ofensivo para as platéias brancas. O site Blaxploitation – A soulful tribute to the genre possui um rico acervo referente a tal nicho, com perfis, artigos e uma seção especial dedicada as suas trilhas sonoras, pelas quais passaram músicos do calibre de Curtis Mayfield e James Brown. (Yuri Bruscky)
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blaxploitation.com/
n MÚSICA
n CINEMA
n ARTES PLÁSTICAS
Em 1997, a internet ainda não era tão usada no Brasil e Gilberto Gil já cantava “Criar meu website / Fazer minha homepage / Com quantos gigabytes / Se faz uma jangada / Um barco que veleje”, em Pela internet. Não surpreende, então, quando o cantor decide usar a plataforma de vídeos da internet para criar o Concurso Cultural Youtubeoquê. A idéia é simples: os fãs de Gil poderão inscrever as suas versões de músicas do cantor no site oficial do disco Banda larga cordel. Para tal, basta carregar o arquivo no YouTube e inscrevê-lo no concurso até 1° de fevereiro de 2009. Os resultados saem no dia 2 de fevereiro, logo depois do fim das inscrições, e os cinco vídeos mais acessados ganharão kits do novo CD do baiano. (Diogo Guedes)
É de grande valor o serviço prestado pelo Portal de Cinema e Audiovisual Latino-americano e Caribenho àqueles que se interessam pela história do audiovisual da região. Concebido como um espaço de pesquisa e discussão, o site, mantido pela Fundación Del Nuevo Cine Latinoamericano, propõe-se a contribuir com a difusão e o fortalecimento das cinematografias nacionais, disponibilizando um vasto banco de dadosvisual latino-americano. (YB)
Trans Artists é uma fundação independente sediada na Holanda que, com o intuito de fomentar o intercâmbio entre artistas e instituições de diferentes nacionalidades, organiza diretórios em que constam informações sobre programas internacionais de residência artística, sejam estes voltados à produção plástica propriamente dita ou à formação de críticos e curadores, além de divulgar editais e prazos de mostras e festivais. Dirigida por Maria Tuerlings, a fundação hospeda a seção holandesa da Plataforma Internacional de Ateliês para Convidados e coordena, igualmente em nível local, o programa European Pépinières, direcionado à formação jovens artistas. (YB)
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bandalargacordel.com.br.
cinelatinoamericano.org
transartists.nl
Concorrendo no Youtubeoquê de Gil
América Latina em cartaz na web
Redes de intercâmbio artístico virtuais
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n IMPRENSA
Preciosidades on line As revistas de atualidades são ótimas fontes para uma melhor compreensão, sob o prisma da microhistória, de elementos do cotidiano das sociedades modernas. Por suas páginas transitam temas que, a despeito da sua fugacidade aparente, revelam aspectos que se fizeram pertinentes, num dado momento, ao imaginário de comunidades específicas. Felizmente, muitas das publicações editadas no início do século passado, hoje raríssimas, têm sido (re)disponibilizadas ao público graças ao esforço de pesquisadores como os do grupo Jota Carlos em Revista, coordenado por Cássio Loredano e Julieta Sobral. Graças à verba do programa Petrobras Cultural, a equipe digitalizou os exemplares das revistas O Malho e Paratodos, lançadas entre 1922 e 1930, período em que foram dirigidas pelo cartunista e designer gráfico J. Carlos. No site, além da possibilidade de folheá-las, o internauta dispõe ainda de uma ferramenta de busca por palavras-chave. (YB) nnn
jotacarlos.org
FAVORITO
POST DO MÊS – [Blog de Yoani Sanches]
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Notas de uma blogueira em Cuba
O encontro é breve e o tom enérgico. Somos três no escritório e o que tem a voz melodiosa se apresenta como o agente Roque. Ao meu lado, o outro mais jovem me olha e diz que se chama Camilo. Me anunciam que pertecem ao Ministério do Interior. Eles não estão interessados em ouvir, existe um script escrito em cima da mesa e nada que eu faça os distrairá. Eles são profissionais de intimidação. Eu já esperava pelo tema: estamos perto da data para o encontro de bloggers que, sem segredo ou publicidade, temos organizado desde o meio do ano e eles me comunicam que vamos ter de suspendê-lo. Meia hora mais tarde, quando já estávamos longe das fardas e fotos de líderes nas
paredes, reconstruímos aproximadamente suas palavras: “Queremos adverti-la de que você transgrediu todos os limites da tolerância com sua aproximação e contato com elementos da contra-revolução. Isso a desqualifica totalmente para dialogar com as autoridades cubanas. A atividade prevista para os próximos dias não pode ser realizada. Nós, por nossa parte, tomaremos todas as medidas e faremos as denúncias pertinentes e as ações necessárias. Esta atividade, no momento em que vive a nação, se recuperando de dois furacões, não será permitida”.
PERFIL A cubana Yoani Sanches retrata em seu blog Generación Y aspectos do cotidiano e dos problemas enfrentados na “ilha de Fidel”. Recentemente laureada com o prêmio do The Bobs, foi impedida pelo governo de comparecer à cerimônia de entrega, sendo intimada a prestar depoimento.
BAIXE E OUÇA
Memória futebolística
Toda a história do futebol brasileiro, desde os primeiros campeonatos, os maiores ídolos do esporte no país e a trajetória dos clubes e técnicos, pode ser vista no site futpedia.globo.com. É a memória de um dos mercados que mais movimenta dinheiro no mundo. (Lucas Paes) www.futpedia.globo.com
As origens do Vital Weekly remontam ao cenário underground da música eletrônica/experimental do fim dos anos 80, quando ocorreu a Frans de Waard (da banda De Fabriek) iniciar um fanzine com notícias, entrevistas e resenhas sobre o tema. Na internet desde 1995, hospedou-se por 10 anos no site do selo Staalplaat. Atualmente com servidor próprio, o e-zine fixou-se como semanal e mantém-se focado na análise do cenário experimental contemporâneo e é enviado gratuitamente aos leitores cadastrados, juntamente com um podcast em que constam excertos dos discos resenhados. (YB) vitalweekly.net JAN 2009 • Continente x
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CINEMA
O cinema indiano precisa desfazer-se da "camisa-de-força" hollywoodiana e criar uma Boliúde, na qual os hindus possam enxergar a si mesmos
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Boliúde sim, Bollywood não Fernando Monteiro
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ense num cinema colonizado. Isto é, colonizado interiormente, por dentro da cabeça invadida pela antiga “Meca do cinema”. A meleca de imitação de Hollywood é Bollywood – o cinema da ex-Bombaim (hoje Mombai ou Mumbai), capital do Estado de Maharashtra e maior cidade da Índia, com seus 13 milhões de habitantes em animada reprodução. Num certo sentido, nada é pior do que ser a Bollywood dos maravilhosos números de mercado, dos efeitos especiais macaqueados da milionária matriz americana – como cinema de terceiro mundo mergulhado em alienação que faz mais do que merecido o batismo de um nome entre a jocosidade e a superpopulação. Bollywood. Não é à toa que Mumbai – também a capital indiana do entretenimento – foi recentemente sacudida por atos de terrorismo que levaram o centro produtor de filmes asiáticos para os noticiários de sangue fresco na TV e nas páginas de jornais.
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Mumbai. O futuro passa por aqui – de algum jeito. O sincrético nome de Bollywood já está consagrado – e não há pouco tempo, no mundo inteiro. O apelido foi criado, é claro, para designar a farta, a muito farta produção vista por mais de 3, 5 bilhões de pessoas (em 2007). São realmente impressionantes todos os números que dizem respeito às perfomances dessa cinematografia asiática. Talvez por isso, seus produtores, diretores, atores, atrizes e técnicos não pareçam nem um pouco incomodados com o apelido – de resto, justíssimo. Ele serviria para fixar “uma etapa fundamental na indústria do cinema indiano”, desde aquele ambiente, dos primórdios, “de uma produção caótica, com base em estruturas familiares”, conforme descreve Amit Khanna (presidente da Reliance Entertainment, uma das maiores multinacionais da Ásia). Desse quadro, os filmes hindus vieram prosperando, nos últimos 20 anos, até consolidarem um parque industrial de produtos tecnicamente bem-acabados, e que pretendem oferecer não mais do que escapismo – como uma espécie de pipoca visual –, para a população ingenuamente interessada em peripécias e música (vá lá) pop. Diversão, em suma. Diversão ao longo de três horas, na quase maioria absoluta dos longasmetragens assistidos por multidões que pagam 10 centavos de dólar pelo bilhete de ingresso nos cinemas, com imensos cartazes mostrando astros e estrelas “cantantes” que são literalmente endeusadas. Nessa linha, o presidente da Reliance diz que “dinheiro não é o problema”. Quantos produtores podem afirmar tal coisa, no mundo de hoje? E é para se acreditar no sereno Amit Khanna, sem duvidar de que recursos financeiros não faltam para uma indústria produtora de filmes que podem alcançar a média
(atual) de pelo menos três bilhões de espectadores para cada um dos 800 filmes que Mumbai realiza anualmente. Em cinco anos, eles pretendem dobrar (!) tal produção, espalhando os filmes falados em híndi – uma das 23 línguas oficiais do país –, e com versões para a região que tem mais de 100 idiomas. Tudo é grande no país do Mahatma Ghandi, incluindo esse cinema que fomos encontrar em Natal, durante o II Goiamum Audiovisual, de 8 a 12 de dezembro passado, quando lá programaram uma Mostra Internacional de Bollywood (a primeira, aqui no Nordeste), com obras produzidas por estúdios como YashRaj Filmes, Adlabs e Mukta Arts – aqueles onde dinheiro “não é problema”, enquanto a chancela do nome de um diretor simplesmente inexiste para um público que chega a construir pequenos templos para seus atores preferidos (Shahrukh Khan, Aishwarya Raí e Hrithik Roshan, que já atuou numa aventura bollywoodiana rodada – “como nunca antes” – neste Brasil. O título? Dhoom 2). Bollywood é assim. A curadoria da Mostra natalense ficou a cargo do produtor, cineasta e editor indiano Ram Prassad Devineni, dentro do Goiamum produzido por Keila Sena e equipe, com o apoio da prefeitura, via a ativa Capitania das Artes, a fundação de cultura potiguar. Nesse II Goiamum nordestiníssimo (que foi encerrado com o documentário Memória do cangaço, realizado por Paulo Gil Soares, em 1965), foram exibidos três filmes da safra indiana mais recente, e também o documentário brasileiro Corpo de Bollywood – O povo quer cinema, de Raquel Valadares, precedido de palestra do paulista Franthiesco Ballerini, crítico de cinema do Jornal da Tarde. Ballerini atualmente prepara um livro sobre Bollywood, a partir de reportagem que fez em Mumbai e noutras cidaJAN 2009 • Continente x
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CINEMA projetam nas telas bollywoodianíssimas: o vidro partido de Outro, o cinema da alma expropriada respondendo pelo tal percentual de 95% de produções made in Mumbay com o ar caracteristicamente trash das culturas que “querem” esquecer que carregam séculos e mais séculos, entre noites e dias milenares perdidos na dobra de alguns dos mais antigos mitos da humanidade. Dessa história toda, nas telas deles, restam pouco mais do que moças parecidas com uma Marina Elali (a cantora, filha de palestinos, é natalense), recebida por algum Silvio Santos indianamente jovem e também cantando canções anestesiantes no mais lato – e lasso – sentido da palavra. Canções que, em geral, não têm nada a ver com a trama dos filmes, além de surgirem inopinadamente, na narrativa, do mesmo modo como são sucedidas por loucas corridas de carros, perseguindo-se uns aos outros, na busca de diamantes (caso do intragável filme Cash, de Anubhav Sinhah) ou de qualquer
outra coisa fetichista que igualmente faz pensar em pedras falsas, vidros vulgares e espelhinhos tecnológicos manipulados por nativos convertidos à mediocridade do colonizador imitado, copiado, plagiado e até “mesmerizado”. Bollywood. O nome cai como uma luva – apertando um pescoço de psicoses terceiro-mundistas. Num cinema que já apresentou ao mundo cineastas de obras sólidas como Satyjit Ray e Shyam Benegal, é quase vexatório ver que a vulgaridade do consumo de massa vem impondo o “sucesso” de filmes que tornam as novelas brasileiras do SBT (horrorosas) pequenas “obrasprimas”, por comparação com o besteirol tecnológico-dançante que Bollywood produz para platéias anestesiadas, com a sua ajuda. Conforme diz Derek Bose (o mais conhecido especialista na coisa): “Todos os filmes surgiram parecendo seguir uma mesma fórmula: três horas de duração, com um intervalo no meio, sempre com um herói e uma heroína que cantam e dançam a cada 15 minutos. Fotos: Divulgação
des. Para ele, trata-se de uma grande vantagem que o cinema estrangeiro (leia-se: o norte-americano) consiga participar do bolo dos bilhões de compradores de ingressos nos cinemas asiáticos somente “na proporção 5%”, enquanto, aqui no Brasil, os filmes de Hollywood nos “garfam” nada menos de 70% (por aí) da ocupação das nossas telas. Muito bem. Na palestra prévia à exibição do primeiro produto de Bollywood, o jornalista do JT – com ar de jovem pastor metodista – parecia anunciar o paraíso na terra do sol do mercado cinematográfico: filmes indianos ocupando 95% da programação dos cinemas da Índia. Viva! Viva? Bem, vieram os dois primeiros longas da Bollywood supercolorida, exibidos ao ar livre (na simpática Praça Augusto Severo): os inacreditáveis Krrish e Cash, e a visão deles não deixou margem para dúvidas sobre a rendição, incondicional, do cinema de Mumbai ao modelo de fora – no que ele tem de pior. Porque poderia parecer o paraíso – possuir a quase totalidade do próprio mercado –, mas somente até se ver o que
A maioria dos filmes segue o padrão: sempre com um héroi e uma heroína que cantam e dançam
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Nunca há beijo, homossexualismo, violência contra a mulher e problemas sociais baseados na realidade. É o eterno conflito do mocinho querendo conquistar a mocinha ao som de deliciosas músicas indianas. E um ator fazia cinco filmes por dia, indo de estúdio para estúdio, tal era o ritmo de produção de filmes em série, sem reflexão sobre nada”. O mesmo Bose, entretanto, também anuncia que estariam surgindo, agora, alguns sinais de mudança, e que os estúdios bollywoodianos pouco a pouco vão se dando conta da necessidade do trabalho de novos roteiristas capazes de trazer alguma inovação contrária à monotonia extravagantemente colonizada desse cinema dos bilhões de espectadores. Ou seja, produzindo roteiros menos escapistas, com finais não tão “felizes” e até sem músicas nem heroínas. Alguns títulos já descortinam esse amadurecimento mais do que bem-vindo (para a qualidade artística – que qualquer cinematografia há que apresentar, aqui e ali pelo menos). Por exemplo, um Kabul Express estaria no extremo oposto de um Dilwale Dulhania (Le Jayenge), o filme que ficou 10 anos em cartaz, com muita dança e os sempiternos heróis imaculadamente dotados de superpoderes e otras cositas más. Na curta mostra do II Goiamum natalense, o representante dessa renovação foi, sem dúvida, a última produção exibida: The terrorist. Seu tema é o assassinato do ex-primeiro ministro Rajiv Gandhi, levado a cabo por uma bela jovem preparada para morrer em benefício da causa nacionalista levada até o extremo de um atentado. Todo o dilema da situação – também vivida, certamente, pelos homens da Al Qaeda durante as operações do “11 de setembro” – é bem desenvolvido pelo filme
Acima, cartazes da vasta produção de Bollywood; ao lado, exibição de filmes indianos no II Goiamum, em Natal (RN)
dirigido por Santosh Sivan, um cineasta trabalhando, ao que parece, na linha de “desintoxicação” do modelo americano de entretenimento. É uma linha indispensável para que Bolly-wood venha, um dia, a inspirar também respeito, e não só a admiração dos seus números e/ou quantitativos de títulos e ingressos vendidos a baixo preço. The terrorist foi exibido no Sundance Film Festival, e lançado comercialmente nos EUA, por iniciativa do conhecido ator John Malkovich (que adquiriu os direitos de distribuição). É um sinal, quem sabe, de que a consciência de si mesmos está, talvez, começando a tirar os indianos de Mumbai da “camisa-de-força”
hollywoodiana. Agora, sim, “viva”! E digamos que seja, mesmo, para se torcer no sentido de que isso de fato aconteça, para fazer surgir uma nova Bollywood – mais perto de si mesma –, de maneira a dar chances ao encontro do cinema com a Índia profunda, oferecendo o espelho real de uma Boliúde, sim, na qual os hindus possam enxergar a si mesmos, sem as deformações da cabeça dominada por qualquer tipo de colonizador. Até porque nenhum deles serve para nada que não seja perpetuar a dominação de fora ou, pior, dentro das cabeças cortadas. Assista aos trailers de alguns filmes de Bollywood www.continenteonline.com.br
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Marcella Sampaio
Os percalços da tecnologia
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tens MSN? Por quê? Trata de fazer um!” Como explicar... Resolvi investir no viés da justificativa objetiva e pragmática: “Fui clonada (o que é verdade) e fiquei com trauma (meia verdade). Cancelei, então, minha conta do hotmail e o MSN”. Não convenci. Mas ainda não fui vencida, e por enquanto uso apenas a conversa on line do gmail, que não é tão superpovoada. Por convicção e princípios, também não tenho orkut. Vou manter posição até que esta (minha posição) não se torne completamente anacrônica e eu comece fazer parte do grupo dos excluídos digitais. Li, dia desses, que o orkut já está datado. Portanto, a moderna sou eu, meu povo, desatualizado, é que não sabia. Bingo. Não que os recursos tecnológicos não sejam ótimos, em alguns momentos eles podem até ser maravilhosos. Mas, como já dizia o filósofo, tudo demais é muito, e essa ânsia por usar todas as possibilidades do celular, ler notícias em tempo real, tirar foto o tempo todo de qualquer coisa... Cansa. Quem tem menos de 20 anos não sabe o que é perguntar para um interlocutor ao telefone: “A que horas fulano volta?”. O celular existe para que a gente esteja, sempre. E isso às vezes é um saco. Sinceramente, desejo aos meus afetos, um dia que seja neste ano que começa, que se permitam não estar quando procurados. Aos desafetos, GPS.
Ilustração: Flávio Pessoa
omento após as festas de fim de ano. Todas aquelas pessoas que não víamos há milênios deram um jeito de nos encontrar, deixando um recado no orkut ou entrando no MSN para conversar via linguagem em código. Nem sempre gostaríamos que nos achassem, mas enfim... O espírito natalino faz com que sejamos mais tolerantes com o próximo, de uma forma geral. Efeito colateral: não sumimos mais, imersos que estamos nesse universo BBB onde é impossível passar despercebido. E haja GPS e privacidade consensualmente invadida. Palestra de Mário Rosa, conhecido consultor especialista em administração de crises, em encontro sobre comunicação pública. Terror na platéia: “Você está sendo vigiado. Hoje, a produção e divulgação de informações é pulverizada, sistemática e horizontal”. Ou seja, ainda que as situações vividas sejam de cunho estritamente pessoal e não tenham nada a ver com sua persona profissional ou com questões de natureza ética, elas podem ser usadas contra você. Já estão sendo criados, inclusive, mecanismos para tentar neutralizar essa condição de refém em que forçosamente estamos envolvidos. Nem sempre eles funcionam a contento, registre-se. Amigo querido de longa data, amiga de infância que conheci esse ano, alunos, orientandos: “Tu não
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