aos leitores
Cartas reveladoras
C
Também nesta edição, em reportagem especial, buscamos enfocar um aspecto que consideramos pouco explorado em relação à maior festa popular do Brasil, o Carnaval – o seu lado econômico. A despeito de termos uma festa bonita e grandiosa, cheia de personalidade, no âmbito da cultura, discutimos pouco seu potencial de gerar renda e profissionalização para uma numerosa cadeia produtiva, ainda mais quando nos comparamos aos gigantes do negócio do Carnaval, os estados do Rio de Janeiro e Bahia. Por conta do sucesso obtido na edição de janeiro, a revista Continente oferece novamente como brinde ao leitor a cartilha A última do português, em que são apresentadas, com leveza e bom humor, as mudanças estabelecidas nas 21 bases do Acordo Ortográfico, oficialmente adotado entre os países de língua portuguesa desde o primeiro mês de 2009.
Ricardo Melo
artas são como crônicas, lugar em que o missivista despe-se de formalidades e fala em primeira pessoa a um amigo. Cartas são como confidências, em que o autor escreve ao interlocutor sobre assuntos de que não falaria publicamente. É a partir de uma leitura de amigo e confidente que podemos ter acesso às cartas que Dom Helder Camara escreveu a seus colaboradores e equipe, entre os anos 1962 e 1965; material vasto e inédito, que será lançado em março pela Companhia Editora de Pernambuco. Nessas cartas, podemos nos aproximar de opiniões enfáticas e íntimas do ex-arcebispo de Olinda e Recife, cujo centenário de nascimento é comemorado neste fevereiro. O conteúdo das correspondências corrobora suas ações político-religiosas, num período conflituoso da história nacional, quando dos antecedentes e da vigência do Regime Militar. Nossa reportagem de capa, feita a partir da leitura das missivas, revela o trabalho de bastidor realizado por Dom Helder, que o transformou num “conspirador do bem” dentro da Igreja Católica.
Em seu oitavo ano de existência, a revista prepara para abril próximo, quando fará circular o nº 100, uma renovação editorial e gráfica, que pretende instigar renovadas leituras. O que você acha da Continente? Envie comentários para redacao@revistacontinente.com.br, estamos aguardando sua opinião.
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Fotografias de Saul Leiter
Imagens: Divulgação
Cendhec/Divulgação
Cartas de Dom Helder
Quadrinhos documentam fatos históricos
CONVERSA 4 >> Marlos Nobre e a profissionalização da música erudita
AGENDA.COM 48 >> Blogs dominam o jornalismo na web
BALAIO 10 >> Noel Rosa zombava de si e não se "queixava"
CAPA 50 >> Dom Helder, conspirador do bem
ESPECIAL 14 >> O Carnaval sob influência da mídia e da economia
CINEMA 62 >> Como os presidentes são retratados na telona
DESIGN 24 >> A cenografia carnavalesca de Joana Lira
ARTES VISUAIS 64 >> A versatilidade artística de Renata Pinheiro
CARNAVAL 28 >> A renovação de repertório do frevo de rua
MúSICA 72 >> Tradição e refinamento da ópera de Pequim 78 >> A manifestação precoce do talento musical 84 >> Agenda música
PERFIL 32 >> Lucilo Varejão Filho reedita clássicos pernambucanos LITERATURA 36 >> Novo livro de poemas de Everardo Norões 40 >> Agenda Livros FOTOGRAFIA 42 >> O reconhecimento artístico tardio de Saul Leiter
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DANçA 86 >> Petrolina exporta bailarinos QUADRINHOS 92 >> A história retratada quadro a quadro
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100 anos de Dom Helder A matéria de capa da Continente nesta edição traz uma extensa pesquisa do jornalista Vandeck Santiago, que observou acervo inédito de cartas escritas por Dom Helder Câmara, identificando suas articulações políticas durante o II Concílio Vaticano. Leia manuscritos em versão online.
A cenografia do carnaval recifense
Como o cinema mostra os presidentes
e mais... COLUNAS SABORES 30 >> Uma história da Coca-Cola
Assista ao filme sobre o cachorrinho Guenzo, da cineasta Renata Pinheiro
TRADUZIR-SE 70 >> Redescobrindo a pintura de Burle Marx MATÉRIA CORRIDA 90 >> Coração inquieto
Confira um vídeo da ópera de Pequim
METRÓPOLE 96 >> Carla Bruni e a mídia mal-educada
Reprodução
ESPECIAL Ouça os novos frevos que esquentarão a folia em Pernambuco
O carnaval como negócio
Leia poemas de Everardo Norões, do livro Retábulo de Jerônimo Bosch. Fev 2009 • Continente x
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conversa
Marlos Nobre
O perfil estético dos jovens compositores brasileiros é muito interessante. Tenho lhes dado grande importância e espaço em minha agenda. Converso, escuto suas obras, dou opiniões
O ideal de subsistir pela arte 4 x Continente • FEV 2009
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Compositor pernambucano chega aos 70 anos empenhado em tornar sua obra mais acessível no Brasil e a reivindicar melhorias
Leonardo Aversa/Agência O Globo
na arrecadação de direitos autorais na música erudita ENTREVISTA A Carlos Eduardo Amaral
E
m fevereiro, Marlos Nobre completa 70 anos de idade como um dos compositores eruditos brasileiros mais executados e gravados no exterior. Somente em 2009, quando também comemora o 50° aniversário de carreira, suas peças terão estréia mundial nos EUA (Trio Mandala), Espanha (Cantoria concertante), Alemanha (Metalamérica) e São Paulo (Concerto para percussão e orquestra n° 2) – o Concerto, confiado à Sinfônica do Estado de São Paulo e à escocesa Evelyn Glennie, integra o programa da turnê norte-americana da Osesp, que passará pelo Carnegie Hall. Há ainda para este ano a première da primeira ópera do compositor nascido no bairro de São José, no Recife, chamada Lampião, que ele desejava realizar no país, mas que será alhures, por falta de produtores e patrocinadores aqui. Marlos Nobre, objeto de diversas teses e dissertações atualmente, da Paraíba à Sorbonne, observa que a atual geração de compositores nacionais se guia livremente por diversas estéticas e sentencia: “Isso de ‘vanguarda’ não existe mais”. Residente no Rio de Janeiro, ele tem-se preocupado, paralelamente à composição, com a questão da arrecadação de direitos autorais em concertos e principalmente com a transferência da edição de suas partituras para o Brasil, a fim de barateá-las e promover a melhor circulação delas na América Latina. No corrido dia-a-dia, contudo, apenas uma coisa tira o compositor do sério: os inúmeros pedidos para fornecer CDs e livros ou ministrar palestras e conferências de graça.
Você finalizou Lampião? Qual o enredo da ópera e como será a produção de estréia? Lampião está praticamente terminada. A idéia partiu do ensaio de Mário de Andrade Romanceiro de Lampião, onde ele faz alusão a folhetos de cordel sobre o tema. Parti então à busca dos cordéis, convicto de que minha obra seria uma ópera épica e não uma mera narrativa de fatos mais ou menos reais e históricos. Não me interessa o Lampião documental, mas o Lampião visto pela ótica do sertanejo, e para isso nada melhor do que ir diretamente às fontes populares. Possuo atualmente mais de 350 folhetos de anônimos na maioria, porém os melhores e nos quais baseio meu libreto (que eu mesmo fiz) – são os mais antigos. O enredo tem três atos: Ascensão, Soberania e Decadência (morte), e é todo costurado por um cantador de feira, que narra os fatos enquanto acontecem as cenas. Não posso adiantar nada sobre a produção, porque os entendimentos estão avançando, mas posso garantir que a estréia mundial não será, infelizmente (ou felizmente?), no meu país, e, sim, na Alemanha ou nos Estados Unidos. Por que, à exceção das obras para piano e dos concertos do Virtuosi, você é tão pouco executado na própria cidade natal? Repito a pergunta comparando ainda com o exterior, onde o número de gravações e execuções de suas obras é bem maior que Brasil. Esta situação tem de ser solucionada, porque no que mais me empenho é em ser estudado, tocado e gravado em meu próprio país. Em 1980, virei-me totalmente para a Europa e FEV 2009 • Continente x
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Caroline Bittencourt
É preciso que seja dito, de uma vez por todas, que o criador, seja compositor, escritor, artista plástico, ator, vive (ou deveria viver) daquele único trabalho que sabe fazer: sua arte
depois para os Estados Unidos; aqui, no Brasil, não havia clima nem estímulo para a criação musical no alto nível a que me propunha. Agora vejo a situação melhorando, pois a juventude começa a se voltar para os valores brasileiros. Vamos ver se agora os intérpretes recifenses e estudantes começam a tocá-las mais. Jovens músicos pernambucanos lhe procuram, em busca de partituras e gravações não encontradas no Estado? Sim, alguns jovens músicos e compositores pernambucanos me procuram, sobretudo em busca de partituras e CDs meus só encontrados no exterior. Esta situação é uma das maiores preocupações minhas, porque grande parte de minha obra estava editada na Alemanha, na França e na Inglaterra e os preços cobrados em euros tornavam-na proibitiva aos jovens não só brasileiros, mas latino-americanos. Assim, decidi criar minha própria editora, com a qual pretendo colocar todas as minhas obras disponíveis, da maneira mais barata possível, sem burocracias. A partir de sua convivência com jovens compositores brasileiros, qual o perfil estético deles? O perfil estético dos jovens compositores brasileiros é muito interessante. Tenho lhes dado grande importância e espaço em minha agenda. Converso, escuto suas obras, dou opiniões e recebo maravilhosos emails dizendo que a partir de nossa conversa a vida composicional deles mudou para melhor. Falo com eles como compositor atuante, não como teórico. É importante o contato direto com quem está com mão
na massa, com quem mexe com a composição hoje, com todos os problemas que isso implica, mas com as satisfações também. Isso tem sido ultimamente uma das minhas grandes alegrais. De maneira geral, sinto neles uma grande liberdade estética. Antes havia uma espécie de “ditadura” do vanguardismo, quem não era vanguarda não existia. Ainda hoje, há grupinhos assim mesmo no Brasil, esquecendo-se de que eles é que estão defasados. Isto de “vanguarda” não existe mais, o que existe é o pluralismo estético. Quais as principais deficiências da arrecadação de direitos autorais para compositores eruditos, atualmente, no país? O sistema de arrecadação de direitos autorais, no Brasil, é, na teoria, um dos mais perfeitos do mundo. Como quase tudo neste estranho país, a teoria é maravilhosa, mas a prática é outra. O Ecad, o Escritório Central de Arrecadação de Direitos Autorais, tem uma estrutura muito bem-montada. O único senão é que tudo converge para a arrecadação da música popular, com quase total irrelevância para a música de concerto. Além disso, a atuação dos fiscais do Ecad funciona em grandes centros como Rio e São Paulo, mas é deficiente nos demais. A estrutura (de arrecadação e distribuição) no Brasil é sui generis. Na Europa, cada país tem apenas uma sociedade de direito autoral que arrecada e distribui. Aqui no Brasil, por conta de uma secular e falha estrutura, temos um escritório central que arrecada e umas 10 sociedades de distribuição às quais os compositores têm de ser associados para receberem. Há muito que fazer, mas tanto o Ecad
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quanto a UBC, União Brasileira dos Compositores (à qual pertenço), estão sempre abertos a sugestões e a atenderem nossas reivindicações. Como, no Brasil, um compositor poderia efetivamente viver compondo? Ou isso é uma utopia sem lugar nos dias de hoje? Um compositor tem enorme dificuldade de viver somente compondo. Poderia até afirmar que isso é impossível. Por essa razão, sempre me irritam aqueles que se dirigem, às vezes, a mim, pedindo obras, CDs, palestras etc. como se o compositor fosse um ser etéreo, uma espécie de “anjo superior” que não necessitasse de prover o sustento de sua família. Por isso eu tenho sempre uma frase: “Não me peçam para dar de graça aquilo que é a única coisa que sei fazer como meu trabalho”. Esta frase não é minha, é do grande Rui Barbosa, a quem pediam tudo de graça. É preciso que seja dito, de uma vez por todas, que o criador, seja compositor, escritor, artista plástico, ator, vive (ou deve-
ria viver) daquele único trabalho que sabe fazer: sua arte. Você se furtaria em apontar três excelentes intérpretes de sua obra? Não, não me furto, aliás, é um prazer. Começo por aquela intérprete que fez as mais importantes primeiras audições mundiais e gravações de minhas obras, em todo o mundo: a pianista Maria Luiza Corker, minha mulher. Outro é o maestro Roberto Minczuk, idealizador da encomenda de minha Kabbalah, para orquestra, a ele dedicada; também escrevi para ele a Fanfarra Campos do Jordão, para metais e percussão. O outro terceiro é John Neschling, que me encomendou o Concerto para percussão e orquestra nº 2. Estes são os meus três grandes e queridos intérpretes. Como você vê o fato de não haver formação em nível superior para compositores em Pernambuco, enquanto há na Bahia e na Paraíba?
Maria Luiza e Roberto Minczuk ao lado do maestro, logo após a estreia mundial de Kabbalah
É difícil falar sobre isso. É uma decisão que deve ser tomada pela UFPE e não seria difícil de concretizá-la. A Bahia tem uma larga tradição. Na Paraíba, o curso é recente, mas motivado por uma fermentação que vem também de longe. No Recife, bem, no Recife não sei onde está o entrave. Mas que existe isso, sim, existe. Eu acredito que só haverá um curso superior para compositores quando a Universidade de Pernambuco tomar a decisão política de fazê-lo, não ficando mais atrás e a reboque da Bahia e da Paraíba. O primeiro passo – e essencial – seria o de convidar um grande compositor para assumir um curso real e profissional de compositores e assim fazer do curso de composição da Universidade de Pernambuco um eixo, um núcleo que atrairia não só jovens de Pernambuco, mas de todo o Nordeste. Sem tomar essa decisão, sem dar esse passo definitivo, não creio que haja outra solução – nossos jovens ficam a ver navios ou emigram para outros estados. FEV 2009 • Continente x
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Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE Governador do Estado de Pernambuco Eduardo Henrique Accioly Campos Secretário da Casa Civil Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão Presidente Leda Alves Diretor de Produção e Edição Ricardo Melo Diretor Administrativo e Financeiro Bráulio Mendonça Meneses
Adriana Dória Matos
Colaboradores desta edição: ANDRÉ DIB Jornalista.
Conselho Editorial Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro José Luiz Mota Menezes Luís Reis Luzilá Gonçalves Ferreira Superintendente de Edição
Fevereiro 2009 – Ano 9
CAMILO SOARES Jornalista. CARLOS EDUARDO AMARAL Jornalista e crítico de música.
Superintendente de Criação
Luiz Arrais
Redação Eduardo Cesar Maia, Mariana Oliveira Thiago Lins (assistente) Maria Helena Pôrto (revisão) Eraldo Silva (webmaster) Bernardo Valença, Diogo Guedes e Gabriela Lobo (estagiários) Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio)
CRISTHIANO AGUIAR Mestrando em Teoria Literária. CHRISTIANNE GALDINO Jornalista. DANIELLE ROMANI Jornalista.
Supervisão de Diagramação e Ilustração Joselma Firmino de Souza
DÉBORA NASCIMENTO
Arte Nélio Chiappetta (tratamento de imagem) Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação) Zenival (ilustrações)
FÁBIO ANDRADE
Departamento de Produção Gráfica Júlio Gonçalves Supervisão de Impressão Eliseu Souza
Setor de Acabamento Sóstenes Fernandes
Setor de Pré-Impressão Roberto Bandeira Superintendente de Negócios Armando Lemos Departamento de Marketing Alexandre Monteiro Publicidade Rosana Galvão
Jornalista.
Doutor em Teoria Literária. JOSÉ TELES Jornalista e crítico musical. LUCIANA VERAS Jornalista. MARCELO ABREU Jornalista. MARCO BAHÉ Jornalista. RODRIGO CARREIRO Jornalista.
Contatos com a Redação 3183.2780; fax: 3183.7783; redacao@revistacontinente.com.br
VANDECK SANTIAGO
Edição eletrônica www.continenteonline.com.br
Colunistas:
Atendimento ao Assinante 08000 81 1201/3183.2750; fax: 3183.2750 assinaturas@revistacontinente.com.br Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP: 50100–140 de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 08000 81 1201 – Ligação gratuita
Jornalista.
FERREIRA GULLAR Poeta, crítico de arte e escritor. JOSÉ CLÁUDIO Pintor. MARCELLA SAMPAIO Jornalista, mestra em Teoria da Literatura e professora universitária. MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI Professora.
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Continente: Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro, Recife-PE - CEP 50100-140 Fone/fax: 81 3183-2780 – 81 3183-2783 Redação: redacao@revistacontinente.com.br
Mudanças no português Excelente a matéria de capa sobre o Acordo Ortográfico. Apesar dos benefícios das simplificações da acentuação e da hifenização, ainda acho que vai demorar até as novas grafias serem absorvidas pela população. Além da ampla abordagem das reportagens, a cartilha que veio junto à revista é bastante útil, explicando o que mudou no idioma com um texto direto e ilustrações divertidas. Espero que a Continente promova mais iniciativas como essa.
CrítiCa à Colunista Sou leitora desta revista e gosto muito dela, mas fiquei decepcionada com a colunista Marcella Sampaio. Gostaria apenas de resumir: fala a ela que se ela não quer ser encontrada pelo Orkut, msn, fotos, celular, então vá morar em outro planeta. Mara Rúbia, Recife–PE
Colaborador satisfeito A edição de dezembro da Continente, que tem como capa a Revolução Cubana, está estupenda, tanto do ponto de vista do conteúdo – de primeiríssimo nível – como no que diz respeito à apresentação gráfica. Um número de coleção! Felicitações a todos e registro aqui meu orgulho e satisfação por ter participado desse número.
Horários absurdos Depois de ler a matéria sobre a exposição em cartaz no Museu do Estado, com obras de Samico e Derlon, fui ao lançamento do catálogo da referida mostra, que aconteceu na área externa do museu e – pasmem – não pude entrar para revê-la e nem mostrá-la a uma amiga que me acompanhava. Tinha um segurança na entrada dizendo que visitação só durante o dia. Além de curtos, os horários de visitação da maioria dos museus do Recife e de Olinda não aproveitam o fluxo de visitantes nos horários da noite.
Luis Benítez , Buenos Aires–AR
Lauro Pezzolo, São Paulo–SP
Daniela Leite, Petrolina–PE
Cineasta Eduardo Coutinho
Quando você tem certo prestígio, cria-se um mito e isso foge do controle da pessoa. Mas, mesmo que em meus filmes tenha improviso, não é simples. Há nos filmes uma técnica, as pessoas sabem o que falam, como falam, existe certa pesquisa e é feito um trabalho. É falso eu ser regra para alguém, cada um tem um valor, uma biografia. Eu cito um filme especial para mim, o Santo Forte, por exemplo, pois nele acreditei como nunca no que estava fazendo, porque são 30 anos de cinema, foram 10 anos de leitura sobre o tema, não é olhar e achar que é fácil de fazer. Então, o ideal é você dominar a técnica para esquecer da técnica. O documentário que, em especial, é um desafio, sempre foi marcado por filmes feitos com pequenas equipes, nunca foi indústria. Eduardo Coutinho,
em entrevista a Ricardo Paiva
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Rosa da boemia... Um dos maiores compositores da década de 1930, Noel Rosa já mostrava, no colegial, seu tino para a malandragem. Ainda novo, o sambista era frequentador assíduo da Lapa e já conhecia muitos dos bordéis do Rio. Mas ele não se contentava apenas em conhecer: dias depois de visitar qualquer cabaré, fazia questão de voltar lá acompanhado dos colegas de classe. Noel ficou famoso na escola, era o rei da libertinagem. Suas histórias eram tão comentadas que um dia ele foi convocado à sala do reitor – que, após muito pensar, botou a mão firme no seu ombro e disse serenamente: “Já que não pode deixar de pecar, Noel, por que não peca sozinho?”(Bernardo Valença)
... e nenhuma timidez Noel Rosa poderia ter sido uma pessoa muito recatada, como acontece com os que têm algum tipo de imperfeição. Ele tinha o queixo atrofiado devido a complicações no parto e isso poderia tê-lo tornado alvo de gozações durante toda a vida. Mas tal coisa não aconteceu. Ele mesmo brincava com o seu defeito e dizia para todos ter sido uma carimbada que havia levado ao nascer, “mas não me queixo”, ironizava. (BV)
A pé
Leandro Konder 1
O flâneur é aquele in-divíduo que caminha pela cidade sorvendo o insuspeito. É como se ele exercitasse a atenção displicente, mantendo os sentidos abertos, a curiosidade. Este espírito do andante sensível e inteligente contagiou os parceiros Plínio Santos-Filho e Francisco Carneiro da Cunha, que juntos lançam este mês guias turísticos de Olinda e do Recife que foram pensados para se usar a pé. Os títulos são Um dia no Recife (foto) e Um dia em Olinda e oferecem quatro roteiros e alguns pontos de interesse, para que as pessoas curtam as duas cidades com vagar. Este é o diferencial das publicações. Em geral, os guias são afobados e consumistas, ávidos por sorver o lugar num turbilhão. Repare nos detalhes arquitetônicos indicados pelos autores. É possível que muitos moradores dessas cidades irmãs encontrem lugares nunca vistos nas páginas dos livros, publicados pela editora Aerpa. (Adriana Dória Matos)
Aluno na década de 1950 na Fa FaUniversidaculdade de Direito da Universida de do Rio de Janeiro (atual UERJ), Leandro Konder relembra alguns professores da UDN. Um deles, Aliomar Baleeiro, aplicou-lhe uma prova oral em que ele se saiu muito mal. Ao que disse: “– O senhor está precisando de 7 e vem despreparado assim? Pelo seu nome de família, vejo que é meu correligionário, da UDN de Santa Catarina. E vou ter que reprová-lo”. Konder ainda teve outra chance, mas não se deu bem. E afirmou que não era de Santa Catarina. Ao que o professor falou: “Então o senhor é filho daquele Konder que é comuna, o Valério...”. Para a surpresa do jovem estudante, quando saíram as notas, ele passou. Ao agradecer o resultado ao professor, ouviu deste que somente fez isso para que ele não reclamasse de perseguição ideológica. (Renato
DESAFORISMOS
“Melhor escrever para si
mesmo e não ter público do que escrever para o público e não ter a si mesmo.” Cyril Connoly
Lima)
Leandro Konder 2 Leandro Konder atuou como advogado trabalhista de sindicatos – posto que foi obrigado a deixar com o golpe de 64. Passou então a fazer revisões e traduções para a editora Civilização Brasileira, de Ênio Silveira. A Civilização era famosa por editar obras de esquerda, o que atraía a desconfiança dos integrantes do regime. Konder relata uma vez em que Ênio Silveira surpreendeu agentes da repressão: – Os senhores têm mesmo um compromisso com a propriedade privada? Os agentes hesitaram, mas admitiram que sim. Ênio disse: – Então deveriam proteger a minha livraria e a minha editora, que têm sido vítimas de atentados. (RL)
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Durante e após a Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra foi obrigada a passar por um grande racionamento de comida. O poder aquisitivo dos ingleses diminuía em decorrência dos aumentos de preços. Alguns alimentos, como a manteiga, viraram verdadeiros artigos de luxo. No entanto, um dos produtos que não entrara nesse corte foi o SPAM – Spiced Ham – ou presunto condimentado. Esse produto era tão abundante nos pratos ingleses que houve um enjoo generalizado por parte da população local. Ironizando esse fato, o grupo humorístico Monty Python fez um quadro onde um casal chegava em um restaurante e todas as comidas continham o indesejado SPAM. Desse quadro, especula-se ter se adotado a nomeação spam para todos aqueles e-mails inconvenientes: com propagandas, correntes, vírus etc. (BV)
Arquivo CEPE
Spam, spam, spam...
Roger Daltrey, cantor O documentário Amazing journey, sobre o Who, é bem diferente da puxação de saco usual desse tipo de filme. A sacada é outra: lavar roupa suja. Está tudo lá, até mesmo o guitarrista e compositor Pete Townshend falando de sua prisão, supostamente por pedofilia (posteriormente nada seria provado). Outra parte delicada do longa, muito mais interessante para os fãs, é quando o guitarrista comenta os talentos individuais da banda, que tinha um baterista espetacular e figuraça (Keith Moon), um baixista trovejante (John Entwistle) e um grande guitarrista rítmico, que ainda foi um dos melhores compositores daquela geração. Ah, também tem o vocalista (Roger Daltrey), que cantava feito uma cigarra, mas Townshend, no documentário, prefere explicar assim: "Keith era um gênio. John também, e eu não ficava atrás. E Roger... bem, não é certo eu dizer isso, mas Roger... era o cantor." (Thiago Lins)
“Somos uma raça de acanhados homens-pássaro e em nossos voos intelectuais elevamo-nos um pouco mais alto do que as colunas dos jornais diários.” H. D. Thoreau, em A desobediência civil
Que livros marcaram a sua vida? “Fatos da minha história pessoal: no dia exato em que completei 14 anos, um avatar de Exu (ou Prometeu) pôs nas minhas mãos O matrimônio do céu e do inferno (de William Blake), A vida de Rimbaud (de Pierre Matarasso e Henri Petitfils) e On the road (de Jack Kerouac). Minha leitura seguinte foi Aurora, de Nietzsche. A partir daí, minha vida estava perdida para sempre. Se optei pelo caminho constante da experimentação e da ruptura (aceitando de bom grado o ódio velado da escória conservadora), devo isso aos meus santos assassinos, JeanNicholas Arthur Rimbaud e Friedrich Wilhelm Nietzsche. Até hoje nenhum livro (nem a Bíblia) me foi mais caro e significativo que as Iluminações. Delmo Montenegro, poeta, tradutor, ensaísta e autor dos livros de poesia Les joueurs de cartes – Os jogadores de cartas e Ciao cadáver. FEV 2009 • Continente x 11
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ESPECIAL
Carnaval
de crachá
Melhorar infra-estrutura e profissionalizar os agentes da cadeia produtiva podem ser senhas que abram portas à profissionalização da festa no Estado
Léo Caldas/Titular
Marco Bahé
T
odo pernambucano adora ser superlativo. Temos o maior teatro ao ar livre do mundo (em Nova Jerusalém). Nossos carros passeiam pela maior avenida em linha reta da América Latina (a Caxangá). E dizemos até que os rios Beberibe e Capibaribe se encontram na divisa entre o Recife e Olinda para formar o oceano Atlântico. O Carnaval... Ah, o Carnaval. Temos o maior bloco carnavalesco do mundo (o Galo da Madrugada), a festa mais democrática, a maior diversidade cultural. Tudo verdade, não obstante um certo exagero. Mas, quando o assunto é o lado econômico do reinado de Momo, não há como negar uma dorzinha-de-cotovelo em relação aos números da Bahia e do Rio de Janeiro. A diferença é gritante. Pernambuco atrai 730 mil turistas durante os quatro dias de folia. Salvador, 1,1 milhão. O Rio, 1,9 milhão. Pernambuco tem uma receita turística no período de R$ 315 milhões no Carnaval. A Bahia tem de R$ 780 milhões. O Rio, R$ 1 bilhão. Empregos? A Bahia gera 100 mil postos de trabalho. O Rio, 300 mil. Pernambuco não sabe quantos empregos gera, porque nunca fez pesquisa sobre o assunto. Somente este ano foi contratada a primeira pesquisa para avaliar os indicadores econômicos dos ciclos festivos do Estado. Das três maiores festas carnavalescas do Brasil, a de Pernambuco é de longe a mais amadora. Na gestão, na produção e na difusão. O resultado é um impacto econômico muito inferior à dimensão cultural do evento.
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Como não se pode voltar no tempo, a vantagem do atraso na transformação do Carnaval em um produto que gere divisas mais substanciais é poder aprender com os erros dos outros. O Rio de Janeiro e Salvador criaram modelos ótimos para os negócios. Mas optaram pelo predomínio da lógica de mercado e o modelo transformou-se em excludente e pausterizado. Há quem diga que o formato (em especial o baiano) está em franca decadência. “É possível criarmos um modelo que aumente o impacto econômico sem implicar em pausterização cultural”, acredita Luís Henrique Campos, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Luís Henrique diz que a diversidade cultural e geográfica do carnaval em Pernambuco pode transformá-lo num grande gerador de divisas. “Pernambuco tem a vantagem de possuir uma festa única. O Rio tem hoje São Paulo na sua cola, com um modelo idêntico. E Salvador criou uma estratégia de negócios que exportou o modelo para todo o país através das micaretas. Deu certo no início, mas hoje está em retração”, avalia.
Fotos: Reprodução
ESPECIAL
Venda de abadás caracteriza o carnaval uniformizado das ruas e trios elétricos de Salvador
A busca por um modelo mais profissional marcou uma mudança significativa no carnaval recifense nos últimos oito anos. A festa subiu do chão para o palco, quando a prefeitura apostou no discurso da “multiculturalidade”. Na prática, o que aconteceu foi mesclar, em pólos espalhados pelo centro e na periferia, a programação dos blocos e agremiações tradicionais com megashows de atrações nacionais – cuja
estética não necessariamente tem ligação com a temática carnavalesca. Em Olinda, o formato é bem diferente. A prefeitura não promove eventos (com exceção do show de abertura do Carnaval). “O que fazemos é organizar e ofertar infra-estrutura para manifestações promovidas pela população”, diz a secretária de Cultura olindense, Márcia Souto.
NúMeros do CarNaval 2008
RECIFE Número estimado de turistas
730 mil Receita turística
r$ 315 milhões Postos de trabalho gerados (temporários)
Não há levantamento oficial Fonte Secretaria de Turismo de Pernambuco
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A partir de 2008, o carnaval de rua de Olinda passou por um processo de ordenamento do espaço publicitário, via poder público
No calendário oficial da festa, são mais de 300 agremiações que desfilam pela Marins dos Caetés. Mas muitos blocos e troças sequer procuram a prefeitura para avisar a saída e trajeto de seus desfiles. “Essa espontaneidade dá alma ao nosso carnaval, mas transforma o desafio do poder público numa tarefa ainda maior”, afirma. Com o objetivo de profissionalizar o carnaval olindense, a prefei-
tura alega a tentativa de conciliar tradição e viabilidade financeira. A primeira medida, em 2001, foi proibir sonorização mecânica nas casas do sítio histórico, por causa da avaliação de que músicas descontextualizadas da cultura local (axé, funk etc.) estavam descaracterizando a festa. A segunda, foi dar exclusividade de exposição de marcas e de vendas aos patrocinadores da festa.
“Em função disso, em 2008 fizemos, pela primeira vez em Olinda, uma licitação para escolher a companhia de bebidas patrocinadora oficial do nosso carnaval. Duas empresas disputaram. O resultado é que a cota da companhia de bebidas subiu de R$ 700 mil, em 2007, para R$ 1,6 milhão, em 2008”, comemora Márcia Souto. São os primeiros passos de uma profissionalização que ainda
RIo dE JANEIRo Número estimado de turistas
1,9 milhão Receita turística
r$ 1 bilhão Postos de trabalho gerados (temporários)
300 mil
Fonte Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro FEV 2009 • Continente x
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está longe de chegar e que depende de muitos outros agentes. Entre esses agentes, as agremiações, blocos, troças e grupos culturais. Muitos deles sequer têm registro de pessoa jurídica, para poder disputar verbas públicas e privadas e apresentar projetos. “Na região metropolitana, ainda encontramos um número razoável de agremiações registradas. No interior, o quadro complica mais. Temos feito um esforço para despertar nesses grupos a consciência de que eles fazem parte de uma cadeia produtiva e precisam se institucionalizar para ter acesso às leis de incentivo e mecenato”, conta a presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Luciana Azevedo. A Fundarpe tem apoiado a realização de cursos de gestão cultural e captação de recursos nos municípios. No ano passado, bancou uma especialização em Economia da Cultura com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, primeira a criar mestrado na área. Também foi contratada a
primeira pesquisa para avaliar os indicadores econômicos dos ciclos festivos do Estado. A primeira etapa da pesquisa estudará o índice de impacto do Carnaval 2009. É um passo importante. O pesquisador Luís Henrique Campos, porém, afirma que só isso não é o suficiente. “É preciso criar infra-estrutura para as cidades que promovem a festa. Sem isso, o resultado na economia formal se manterá sempre pequeno. Olinda, por exemplo, dispõe de apenas 1.200 vagas na rede hoteleira. É preciso criar mais vagas. Mas isso só é viável se houver atratividade turística o ano inteiro.” É na corda bamba da necessidade de melhor infra-estrutura, profissionalização dos agentes da cadeia produtiva e estabelecimento de um novo modelo de negócio que o carnaval de Pernambuco segue em frente. Enquanto isso, os pernambucanos sustentam a autoestima com o maior bloco carnavalesco do mundo, o maior teatro ao ar livre, a maior avenida em linha reta, a maior diversidade cultural...
Ilustrações: Bernardo Valença
ESPECIAL
“Pernambuco tem a vantagem de possuir uma festa única. o Rio tem hoje São Paulo na sua cola. E Salvador criou uma estratégia de negócios que exportou para todo o país. deu certo no início, mas hoje está em retração”
NúMeros do CarNaval 2008
S A LVA d o R Número estimado de turistas
1,1 milhão Receita turística
r$ 780 milhões Postos de trabalho gerados (temporários)
100 mil
Fonte Secretaria de Turismo da Bahia
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Fotos: Reprodução
Público acompanha desfiles de escolas de samba no Rio
Espontaneidade da festa banida na mídia P
ara os setores da economia tradicional, a relação com a mídia é simples: ocupar e conquistar. Para a cadeia produtiva da cultura, as coisas não são tão fáceis assim. Se, por um lado, é praticamente impossível causar um impacto econômico significativo sem uma aliança com os meios de comunicação, por outro, a mídia – em particular o modelo atual de TV no Brasil – possui padrões, regras e exigências que acabam por interferir na estética das manifestações culturais. “Os meios de comunicação tiveram (e têm) enorme participação na criação, difusão e reprodução de costumes e tradições. Não é exagero mesmo dizer que eles foram (e são) protagonistas na construção de uma identidade nacional. Adicione-se a isso outro dado de extrema importância: no Brasil, os meios de comunicação – especialmente a televisão – se universalizaram. A escola, não”,
opina o jornalista Rodrigo Ratier, editor da revista Mundo Estranho e membro da ONG Repórter Brasil. Ratier recorre a dados do Censo Demográfico 2000 para defender seu ponto de vista. “53% da população brasileira não ultrapassou o ensino fundamental. Apenas 47% estudaram mais de oito anos. De outro lado, a mesma pesquisa estatística aponta que 88% dos domicílios brasileiros possuem televisão, e 87% possuem rádio. Possibilitando o acesso a comportamentos e modelos de conduta, a programação midiática transmite visões de mundo, valores e opiniões que atingem virtualmente a totalidade da população do país, num alcance muito maior que o da escola”, alerta. Pernambuco vivenciou, em 2008, sua primeira experiência de transmissão em cadeia nacional da festa de carnaval. Por uma cota de patrocínio oficialmente divulgada
em R$ 3 milhões, o governo do Estado conseguiu que a rede de televisão Bandeirantes realizasse flashes ao vivo da festa pernambucana. É apenas o primeiro passo de um caminho que pode ser irreversível. O resultado comercial desse tipo de ação costuma ser significativo. Em Pernambuco ainda não há dados que mostrem o impacto da divulgação televisiva na atração de turistas. Mas podemos fazer uma analogia com o São João de Campina Grande. Há quase uma década, a prefeitura local investe alto (algo próximo a R$ 250 mil por inserção) para que as quadrilhas juninas apareçam como matéria do programa Domingão do Faustão, da TV Globo. O investimento, segundo estudo do Sebrae, garante que 8% dos turistas que visitam Campina Grande sejam oriundos do Sudeste. Ou seja, o paulistano se larga para o interior da Paraíba FEV 2009 • Continente x
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só porque Faustão convenceu-o de que Campina Grande tem mesmo o maior São João do mundo. Parece loucura e talvez seja mesmo. Nos lugares em que a televisão abraçou o produto como seu, a interferência na estética foi significativa. “No Rio de Janeiro, por exemplo, os carnavalescos projetam os carros alegóricos de forma a ficarem bonitos na TV. O tempo de desfile das escolas, com penalizações para atrasos na entrada e na saída, foram moldados em decorrência de necessidades específicas da grade televisiva e não das tradições da festa. Os temas e enredos necessariamente precisam ser entendidos fora do Rio para que o produto seja consumido por outras praças”, analisa o pesquisador Luís Henrique Campos, da Fundação Joaquim Nabuco. Campos, que participou de estudo sobre o impacto econômico da festa no Rio, diz que por força da TV a clusterização (reunião de todos os agentes da cadeia produtiva num único pólo) do carnaval carioca foi acelerado. Daí surgiram o Sambódromo da Sapucaí e a Cidade do Samba, onde são confeccionados carros e fantasias dos desfiles. “Por ficarem coladas umas às outras, todas as inovações criadas por alguma escola se espalham rapidamente. E acaba que as diferenças vão sendo reduzidas e há o processo de pausterização”, opina. É certo que Pernambuco ainda engatinha na relação com a mídia e a transformação do carnaval em produto. Mas uma primeira experiência já foi criada declaradamente para atender às exigências da comunicação em massa: o Passódromo, de Olinda. Durante a folia, caboclinhos, maracatus e outras manifestações populares desfilam por uma passarela na avenida Presidente Kennedy, ladeada por arquibancadas para três mil pessoas.
Léo Caldas/Titular
ESPECIAL
“Nas ruas estreitas do sítio histórico fica impossível para a TV realizar imagens bonitas das fantasias e evoluções. O que se vê é apenas um monte de cabeças pulando. No Passódromo, essa beleza pode ser melhor explorada visualmente”, defende a secretária de Cultura de Olinda, Márcia Souto. No Recife, manifestações tradicionalmente de “chão” sobem aos palcos nos pontos em que há cobertura televisiva. E a programação desses palcos nos horários em que estão previstas inserções ao vivo nos noticiários nacionais são negociadas com as emissoras. “O modelo implementado no Recife mostrou-se vitorioso, pois resgatou um carnaval que se pensava acabado na capital. Temos tentado compatibilizar a programação de palco com o chão, ao mesmo tempo em que sensibilizamos a mídia e os patrocinadores para as especificidades da nossa festa”, pondera o secretário recifense de Cultura, Renato L. (MB)
A mídia – em particular o modelo atual de TV no Brasil – possui padrões, regras e exigências que acabam por interferir na estética das manifestações culturais
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Orquestras de frevo tocam no Recife
Profissionalização: questão de tempo danielle romani
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Clube das Máscaras Galo da Madrugada pode ser apontado como o cartão-postal do carnaval recifense. E também um modelo de profissionalismo e boa administração. Fundado há apenas 32 anos – bem menos tempo que as centenárias troças e agremiações que desfilam pelos bairros de Santo Antônio e São José –, arrasta atrás de si cerca de 1,5 milhões de pessoas durante o sábado de Zé Pereira. Cobra entre R$ 3,5 mil e R$ 4,5 mil por disputados – e sempre lotados – 64 camarotes distribuídos pelas avenidas Guararapes e Sérgio Loreto. E se dá ao luxo de ter um orçamento de R$ 2 milhões, entre cota oficial, patrocinadores e blocos, para desfilar um único dia.
Tamanha performance não se deve apenas ao carisma do simpático Galo, nem à aposta certeira de valorizar o frevo e as tradições do Recife. Para se gabar de ser o “maior bloco da terra”, o clube é controlado com pulso de ferro por Rômulo Meneses, engenheiro e ex-diretor administrativo de um banco. “Nosso sucesso se deve à valorização do frevo e das tradições locais. Mas para que o Galo tenha tomado esta dimensão foi preciso planejamento financeiro e organizacional, e muito profissionalismo”, aponta Rômulo, que se tornou diretor-presidente da agremiação desde a morte de Enéas Freire no ano passado, e que com o amigo carnavalesco formou a
dobradinha responsável pelo êxito do bloco. “Ele era o artista, eu o administrador”, compara Rômulo. O sucesso do Galo é um dos trunfos econômicos contabilizados pela Prefeitura do Recife, que, afora essa contribuição majestosa, ainda tem muito caminho pela frente para alcançar o desempenho e o profissionalismo conquistado pelo clube fundado no bairro de São José. Ainda que sem chegar próximo ao patamar de resultados alcançados pelos cariocas e baianos, o poder público local defende que o carnaval recifense está no rumo certo. “O modelo adotado em 2001 é irreversível. Construímos uma festa capaz de agregar tradição e valores culturais, sem a privatização do bem público que é o Carnaval, mas com muitos dividendos e dinamização da economia no período”, explica Renato L, secretário de Cultura da PCR. Ele admite que para que o carnaval da capital contabilize o volume financeiro movimentado nas duas outras cidades serão necessárias ações conjuntas de várias secretarias municipais, inclusive com a participação do governo do Estado na criação de infraestrutura. “Apesar disso, estamos servindo de modelo: no Rio, passaram a reeditar o nosso formato de blocos e troças. No caso de Salvador, profissionais da área já estiveram aqui para conversar sobre como construímos nosso carnaval. O modelo deles está em crise”, diz Renato. Para Roberto Peixe, secretário de Cultura da PCR nas duas últimas gestões, e responsável pela implantação do modelo que tornou o carnaval recifense uma festa “multicultural”, a entrada de mais recursos e uma profissionalização maior é uma questão de tempo. “Nossos três eixos, descentralização, democratização e diversificação da festa se mostraram corretos. Crescemos devagar, mas FEV 2009 • Continente x
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“o modelo adotado em 2001 é irreversível. Construímos uma festa capaz de agregar tradição e valores culturais, sem a privatização do bem público que é o Carnaval“ com consistência e sempre. Estamos nos consolidando, apesar de termos apenas oito anos de experiência, contra as décadas em que Salvador e o Rio vêm se vendendo”, pondera. Segundo ele, baianos e cariocas privatizaram o bem público. “Nas duas cidades, as pessoas só brincam se pagarem. Em Salvador é preciso desembolsar dinheiro para comprar o abadá e ingressar no bloco; no Rio, comprar o ingresso do Sambódromo. Aqui, além de ser tudo de graça, pela criação dos pólos, todas as atrações mostradas no centro vão para os bairros da periferia.”, diz o ex-secretário. Ele observa, ainda, que a cada ano que se passa, os recifenses aprendem a negociar o espaço carnavalesco. “Em 2001, a cota para venda de bebidas era liberada para aquele que montasse o palco, a passarela. E fim. Em 2008, a licença foi cedida por R$ 1,1 milhão. Neste carnaval, a empresa vencedora da concorrência vai desembolsar R$ 2,3 milhões. A cada ano, aprendemos a trabalhar um pouco mais com o produto cultural Carnaval”.
Vários profissionais trabalham informalmente durante o carnaval
Consumo cultural tímido e excludente o
conceito de economia da cultura começou a surgir no Brasil em meados dos anos 1990. Erroneamente confundido com a temática do marketing cultural, que invadiu empresas através do advento da Lei Rouanet (1991) e fez brilhar os olhos de executivos ávidos por divulgar suas marcas com um belo desconto no imposto de renda. O debate superficial desse novo campo das ciências econômicas, todavia, acabou por atrasar seu desenvolvimento por mais de uma década.
Só a partir de 2004 instituições como o Ministério da Cultura, IBGE e IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Avançadas) começaram a profissionalizar o debate. “De modo criterioso e consequente, começaram a ser integrados muitos indicadores provenientes de vários levantamentos e recenseamentos, publicando-se dados acerca de equipamentos culturais domiciliares, dispêndio familiar em cultura, gastos dos três níveis de governo, entre outros”, comenta o pesquisador da Unicamp, José Carlos Durand.
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Na vida real, a cultura não se acanhou em avançar cada vez mais como cadeia produtiva, profissionalizando-se e aumentando sua participação na economia. A arrecadação de impostos da indústria fonográfica, por exemplo, subiu de R$ 51 milhões para R$ 84 milhões na década passada – apesar dos CDs piratas já terem alcançado 53% das vendas. Segundo o Ministério do Trabalho, entre 2000 e 2005, o número de estabelecimentos destinados à cultura cresceu 26,4% no Brasil (e 37,7% no Nordeste). Só em Pernambuco 40 mil pessoas vivem de atividades ligadas à produção cultural. E hoje, graças às primeiras pesquisas realizadas, sabe-se, por exemplo, que as famílias brasileiras gastam (independente da classe social) cerca de 7% do seu orçamento em produtos culturais. Já os gastos do setor público em cultura (incluídas as três esferas da administração) não ultrapassam 0,2% de seus investimentos. as atividades industriais ligadas à cultura movimentam 5% da mão-de-obra empregada no setor industrial brasileiro. Já no comércio a cultura emprega 3% dos trabalhadores do setor. Nas atividades de serviço, esse contingente chega a 9%. A cultura, estima-se, movimenta R$ 10 bilhões por ano. “Infelizmente, como negócio, a cultura seguiu um modelo excludente”, avalia o secretário-executivo do Fórum de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura do Nordeste, Edgar Andrade. Os números estão aí para provar. Apenas 13% dos brasileiros frequentam cinemas pelo menos uma vez por ano. 92% nunca foram a museus, 93,4% jamais botaram os pés numa exposição de arte e 90% dos municípios não possuem salas de cinema, teatros, museus ou espaços culturais multiuso.
iNdiCadOrEs · Apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez por ano · 56,7% da população ocupada na área de cultura não têm carteira assinada · 93,4% jamais frequentaram uma exposição de arte · 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança, embora
28,8% saiam para dançar · 90% dos municípios brasileiros não possuem salas de cinema, teatro, museu e espaços culturais multiuso · 600 municípios brasileiros não possuem qualquer tipo de biblioteca (405 deles ficam no Nordeste e apenas 2 no Sudeste) · 1,8 livro per capita/ano é a média de leitura do brasileiro (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França) · 25,00 reais é o preço médio do livro de leitura corrente no país · 82% dos brasileiros não possuem computador em casa e 70% nunca acessaram a rede · 92% nunca entraram num museu
Fonte Ministério da Cultura/Fórum de Secretários e dirigentes Estaduais de Cultura do NE
E o Carnaval, como festa popular tida como democrática, acabou por sucumbir à exclusão, onde prevaleceu unicamente a lógica de mercado. A festa de momo em Salvador, por exemplo, possui grande impacto econômico local, mas está hoje debruçada frente ao dilema de reduzir a exclusão que o modelo de negócio propicia. A chamada “pipoca” (multidão que
se acotovela do lado de fora dos cordões de isolamento dos blocos baianos) demonstra bem o desejo frustrado de participação de quem já é excluído em outros momentos da sociedade de consumo. “No ano passado, e este ano deve se repetir, recebemos a visita de uma delegação de gestores de cultura da Bahia para conhecer nosso carnaval, estudar o modelo da nossa festa, na tentativa de encontrar mecanismos de tornar a festa de lá menos excludente”, revela a presidente da Fundarpe (Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco), Luciana Azevedo. Luciana defende que a inclusão de um contingente cada vez maior ao mercado cultural tem que fazer parte das políticas públicas do setor. “Ao poder público não cabe produzir cultura. Mas cabe fomentar permanentemente os agentes produtores e garantir que essa produção seja levada ao maior número possível. Cabe ao Estado fazer com que as tradições não se percam entre as gerações. E utilizar a cultura como forma de melhorar a qualidade de vida das pessoas”, argumenta. Para o economista Pierre Lucena, a profissionalização da oferta cultural não quer dizer necessariamente exclusão. “Não tem como ser purista e imaginar que os agentes econômicos vão ficar de fora da cultura. Eles já chegaram e vieram para ficar. O importante é estabelecer um modelo que possibilite às classes mais baixas ter acesso ao consumo desses bens e serviços culturais, assim como permitir que essa parcela da população também se aproprie de parte da riqueza produzida por essa indústria, através dos empregos gerados e até mesmo da remuneração pela participação que porventura ela venha a ter na criação, difusão e produção cultural.” (MB) FEV 2009 • Continente x
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Personagens do maracatu imperial povoaram as pontes do Recife em 2008
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O carnaval da aloprada Joana Lira Ao completar oito anos de serviços prestados à cenografia foliã do Recife, artista lança livro que compila produção do período Adriana Dória Matos
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oana Lira abriu nosso encontro, ocorrido num lugar “neutro” – como ela havia definido ao telefone, uma das mais conhecidas casas de café da cidade, no Bairro do Recife –, entregando-me um presente. Era uma caixa retangular, embrulhada com papel de estampa discreta e marcante, lacrada com adesivo com o nome dela gravado. “Esta é uma das coisas que ando fazendo”, disse. Dentro havia um chinelo de tirinha de borracha, com palmilha adornada com desenhos florais de sua autoria. Impressas industrialmente, eram todas coisas que ela havia criado: o geometrismo do papel de embrulho, a logo do adesivo, o desenho do chinelo, que davam distinção à pequena lembrança. Também narrado em primeira pessoa, cheio de detalhes que personalizam a publicação, foi realizado Outros carnavais – Nos bastidores da folia ou como o trabalho de cenografia surgiu, cresceu e apareceu na maior festa de rua do Recife,
que a autora passou todo o 2008 produzindo. O livro foi gestado num processo que levou a artista pernambucana radicada em São Paulo a enfrentar, pela primeira vez, atribuições que desconhecia profissionalmente. Ela participou de etapas – planejamento, pesquisa de imagens, contato com patrocinadores, edição – que acabaram tendo bons resultados e servindo como experiência de vida e amadurecimento. E como amadurecer quase sempre é doloroso, Joana conta que, depois de um ano agarrada com o projeto do livro, em dezembro, quando foi lançado no Recife, ela não aguentava nem olhar seu conteúdo. “Ainda não tive coragem de abrir o livro desde que ele ficou pronto”, contou. O livro trata de um trabalho que Joana Lira também aprendeu na marra, com um tanto de ousadia e apoio familiar: criar, por sete anos, a decoração de rua do carnaval do Recife, de 2001 a 2008, com um hiato em 2004, ano em que se
retirou da função por “esgotamento emocional”, segundo ela mesma registra no texto de apresentação à publicação. “Eu não queria que fosse um livro de arte, somente bonito de ver, ou tecnicamente competente, com especificações relativas a todos os procedimentos envolvidos num trabalho enorme como esse. Queria que fosse um livro pessoal, que desse às pessoas que lessem a ideia do meu envolvimento com aquilo”, ressalta. Então era um livro sobre uma festa pública, imensa, que catalisa os mais variados interesses, cujas imagens acabaram virando “a cara do carnaval do Recife” (isso quase literalmente, porque os desenhos estilizados de rostos de foliões, realizados para o primeiro ano de contrato com o poder municipal, em 2001, tornaram-se a logo da festa na cidade), mas mostrados sob o ponto de vista individual. Quem passa os olhos nas 264 páginas coloridas, festivas e exuberantes do livro nem percebe esse caráFEV 2009 • Continente x
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Imagens: Reprodução
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Figuras escultóricas de Abelardo da Hora serviram de inspiração para projeto de 2008
ter pessoal. Entretanto, aqueles que leem os textos da autora, percebem o tom emocionado, quase tão confessional quanto o de um diário. Ela conta que a primeira versão que escreveu – e que submeteu à crítica de amigos e do marido, que é jornalista – era tão pessoal, que foi rejeitada pelos leitores de confiança. Bateu o desespero. Mas o jeito era recomeçar, porque achava que não podia recuar na ideia de registrar em livro um trabalho que lhe absorveu tantos anos e que foi responsável por um processo de profissionalização que ela reputa não apenas a si mesma, mas a todos os envolvidos da equipe técnica, desde marceneiros, eletricistas, ferreiros, gráficos, arquitetos à própria administração pública que, segundo Joana, pôde também se organizar para realizar uma festa que envolve tantos recursos quanto o carnaval de rua. “No primeiro ano, a gente fez tudo em 15 dias, uma coisa insana. Agora, não levo menos de sete meses pensando a cenografia do Carnaval”, compara. Neste coletivo “a gente”, ao qual a artista se refere, vale registrar a mão
forte do pai dela, o arquiteto Carlos Augusto Lira, à frente do escritório responsável pela decoração da festa municipal desde aquele 2001. Voltando ao conteúdo do livro, nele, Joana Lira detalha cada passo dado rumo ao que ela considera um salto de qualidade, que teria sido conquistado de 2006 para 2008, quando a festa de rua da cidade passou a homenagear
um artista pernambucano a cada ano, tendo sido Ariano Suassuna, Lula Cardoso Ayres e Abelardo da Hora, respectivamente, os escolhidos. “Finalmente havíamos percebido que a confusão de identidade gráfica na decoração do Carnaval passava pela falta de um tema que estimulasse a criação de desenhos figurativos. A escolha de Ariano Suassuna como principal homenageado do Carnaval de 2006 nos guiou numa nova maneira de projetar a cenografia: o desenho deixava de ser coadjuvante e se tornava ator principal”, escreve ela. Naquele ano, as ruas e pontes do centro do Recife, bairros de São José, Santo Antônio e do Recife Antigo, que concentram a folia, transformaram-se no que podemos recorrer ao clichê e chamar de “galeria a céu aberto”, inundados por personagens do universo picaresco das peças de Ariano, gente, bichos e feras. Naquele momento, Joana Lira empreendia aquela fusão mágica que acontece em nossas vidas, que são mesmo pontos de virada. Ela unia – ainda que não fosse possível saber disso, senão com o posterior olhar em retrospectiva de agora – um passado que tinha começado com sua primeira exposição, Bichos
Joana Lira transpôs a sensualidade nua das esculturas para imagens supercoloridas
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Esboços realizados pela artista para homenagem a Ariano Suassuna
aloprados, de 1997, na qual havia criado pinturas a partir do universo mítico e da linguagem gráfica das iluminogravuras de Ariano Suassuna, e um futuro, que seriam os carnavais seguintes, os de 2007 e 2008, quando conseguiu se soltar mais e realizar trabalhos mais orgânicos e controlados tecnicamente. Dali em diante, o traço e as cores de Joana Lira, que sempre se orgulhara das suas influências na arte popular do Estado, passaram a dialogar diretamente com as obras dos artistas homenageados. Da obra de Lula Cardoso Ayres, a artista escolheu a fase mais concretista, em que as linhas retas e angulações são mais evidentes. “Vimos que se tratava ali de um carnaval não de detalhes, mas de figuras completas, de corpo inteiro, coloridas, gigantes, marcando ruas e pontes. Pela primeira vez o carnaval recifense homenageava a si próprio”, escreve Joana, referindo-se ao acervo de desenhos e pinturas realizados por Lula Cardoso Ayres, tendo como referência os brincantes que fazem parte da tradição local, como os perso-
nagens do caboclinho, maracatu rural e imperial, passistas e figuras de baile, como arlequins e pierrôs. No ano passado, Joana teve oportunidade de encontrar-se pessoalmente com o homenageado, Abelardo da Hora, que, segundo ela conta, foi tão solícito e generoso quanto Ariano no contato para escolha de material. Era quase inevitável, em se tratando de uma festa pagã e libidinosa, que as angulosas esculturas de mulheres nuas fizessem parte do recorte. E não é que Joana vestiu as garbosas de Abelardo? Vestiu de cores e estampas, conferindo às peças uma vibração de alegria e exuberância, assim como ela faz em outros objetos que maneja, sejam ilustrações para livros infantis, sejam convites de casamento, potes, vasos, tecidos. Em 2009, a artista trabalhou na homenagem a Cícero Dias, resultado que pode ser conferido neste fevereiro nas ruas do Recife, que inspirou Joana a fechar seu livro citando e se apropriando do famoso título da obra do artista: Eu vi o mundo, e ele começava no Recife.
É deste mesmo texto-fecho que escolhemos um trecho para concluir esta matéria, que já avança na hora: “Olho para trás e percebo que, mais que uma sucessão anual de criações, a festa continuou de certa forma sendo parte da minha vida emocional. Acompanhou mudanças, casamento, gravidez. Produziu alegria, cansaço, tristeza, insegurança, orgulho, choro. Chego ao cabo deste livro e não me esquivo de algumas pequenas crises. Palavras seriam vãs para contar a evolução de um projeto de decoração urbana?” Que não se subestimem as pessoas por trás das coisas. Elas estão ali, mesmo que ocultas sob máscaras e cenários de carnaval.
SERVIÇO Outros carnavais Joana Lira Estúdio DBA 264 páginas 75,00 reais
Veja mais imagens do trabalho de Joana Lira www.continenteonline.com.br
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MÚSICA
Frevos feitos para o asfalto Lançamento de CDs com composições inéditas pretende renovar o repertório das orquestras de rua Diogo Guedes
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esde a comemoração dos seus 100 anos, que começou em 2007 e terminou no início de 2008, o frevo vive um bom momento. Mesmo sem nenhuma mudança brusca na estrutura da festa anual, no Recife e em Olinda, o número de foliões e turistas tem aumentado sensivelmente. A consagração veio no centenário, quando foram trazidos ao Estado grandes intérpretes como Gilberto Gil, Edu Lobo e Ney Matogrosso para gravar frevos clássicos, e o gênero musical foi tema do samba-enredo da Mangueira. Alguns discos de frevo foram lançados nos últimos anos – principalmente de músicos que se apresentam prioritariamente em palco e desenvolvem performances mais complexas, como o maestro Spok, Antônio Nóbrega e Silvério Pessoa. Apesar disso, é difícil serem tocadas nas ruas músicas compostas a partir dos anos 1990, salvo algumas exceções, que ficaram famosas em vozes como a de Alceu Valença. Assim, enquanto o palco começou a receber algumas inovações
nas reinterpretações de composições já consagradas, a rua continuou a usar o mesmo repertório, tocado da mesma forma desde o fim da década de 1980. A conclusão a que se chega é que, para mudar o conteúdo das orquestras de rua – também chamadas de itinerantes –, não são suficientes os concursos de frevo e os trabalhos artísticos dos grandes nomes. É preciso fazer novas canções chegarem às orquestras e aos foliões de rua. A ideia, então, de lançar no carnaval deste ano 10 CDs compostos majoritariamente por frevos de rua inéditos e executados pelas orquestras itinerantes tem um quê de ousado e simples. Com um pequeno custo de produção por disco (cerca de R$ 3 mil), a Fundação de Cultura da Cidade do Recife possibilitou que profissionais experientes do Carnaval realizassem um trabalho original, incentivando-os a procurar composições nunca antes gravadas ou de acesso raríssimo. Quem melhor resume a proposta é o Maestro Mendes, regente da Mendes e sua Orquestra: “A intenção é dar
uma levantada no frevo, criar algumas coisas novas e dar uma renovada no repertório das orquestras”. A primeira tarefa dos maestros foi procurar as músicas a serem executadas. Para alguns, como Manoel Araújo, líder da quase centenária Orquestra 10 de Agosto, a maioria das composições veio da própria criatividade: oito das 12 canções do disco são de sua autoria. Para Mendes, que não compõe, a saída foi procurar nas fontes. “Eu passei quase dois meses pesquisando, para conseguir frevos, de preferência inéditos, com os colegas e amigos”, diz. Maestro Diodato, regente da Orquestra Harmonia e único dos escolhidos a ter gravado disco antes (em 2008, também com apoio da Fundação de Cultura da PCR), comentou que, apesar de ter duas composições próprias gravadas, também precisou buscar canções de outros. “Eu saí procurando os compositores, como Edson Rodrigues, maestro Nunes e José Constantino. Então, falei para eles que estava querendo gravar músicas
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Divulgação
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Orquestra Gouveia Frevo é uma das que tocam no carnaval de rua do Recife, festa que recebeu cerca de 600 mil turistas em 2008
inéditas. Eles foram dizendo ‘ah, eu tenho aqui’ e liberaram a gravação”, comemora o maestro. Para a maioria, coordenar as sessões de estúdio foi um grande acontecimento. “Toda orquestra tem o sonho de gravar um CD”, admite Mendes, que nunca tinha gravado uma obra sua em estúdio. “É um trabalho danado. Gravouse primeiro a percussão e, depois, os músicos foram de dois em dois. Terminou tudo em uma semana”, explica Manoel Araújo, que só agora, com 76 anos, pôde registrar o trabalho de sua orquestra. “E só dei um ensaio antes”, pontua. Nos CDs, algumas canções se destacam. Diodato tem como preferida Galo cantando, de autoria de Reginaldo Siqueira e arranjos de Edson Rodrigues. Já Mendes destaca Frevo criança, de Geraldo Silva e Frevo 1704, de Bruno Marinho, que tem influências do baião e, segundo ele, foi uma das mais difíceis de gravar. Para a maestrina Conceição, da Orquestra de Frevo Som Brasil, a música mais emo-
cionante é Sinhá no frevo, feita em homenagem a ela por Onildo Silva, ex-líder do grupo. Manoel Araújo destaca Regresso da Missangueira, que tem variações entre o frevo de rua e a marcha-regresso. Todos eles são unânimes em uma decisão: vão incorporar as novas canções quando saírem para tocar nesse carnaval. O mais entusiasmado, sem dúvida, é Manoel Araújo, que promete incluir todos os 12 autênticos frevos de rua do CD no seu repertório. Mendes deve usar seis canções, mas também valoriza a execução de alguns clássicos. “Não é por isso que os frevos tradicionais, antigos, vão deixar de ser tocados, porque eles são relíquias”, pondera. E a animação não é só em relação às novas músicas. Manoel Araújo já tem dois novos frevos compostos e Mendes quer, no próximo ano, lançar um disco duplo, para também incluir frevos-canção. Conceição, no entanto, não pretende esperar tanto para fazer algo novo: “Tenho planos para depois do Carnaval fazer um DVD de um show ao vivo, que é muito im-
portante. Eu já me animei muito, gravar esse primeiro CD foi uma emoção muito forte. Agora não vou mais parar. Todo ano, se possível, quero fazer um novo disco”. Com esse primeiro – e ainda curto – passo, as orquestras itinerantes têm uma inegável oportunidade de contornarem, ainda que sutilmente, a repetição de frevos tradicionais e mostrarem, durante a folia, as novas, ou desconhecidas, músicas escolhidas. Se já existe um frevo diversificado sendo tocado nos palcos, agora o ritmo também se volta para a rua. Os maestros, sem dúvida, aceitaram comprar a ideia. Agora resta saber se conseguirão vendê-la ao público acostumado à tradição. A pedida é antiga, como atesta anarquicamente Caetano Veloso, em Um frevo novo, de 1977: “Um frevo novo, um frevo novo, um frevo novo / todo mundo na praça / manda a gente sem graça pro salão”.
SERVIÇO Escute mais músicas das orquestras de rua www.continenteonline.com.br
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sabores
Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti
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Uma breve história da Coca-Cola (parte 1)
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o início era apenas remédio – segundo seu inventor, o farmacêutico e militar aposentado John Styth Pemberton. No quintal de sua casa em Atlanta (Geórgia, EUA), passava o tempo inventando fórmulas complicadas, capazes de curar “todos os males do corpo e da alma”: para doenças do fígado (Triplex Pillole) e do pulmão (Gingerina), afinar o sangue (Styllinger) ou escurecer os cabelos (Regina Indiana). Em março de 1885, foi a vez de um tônico reconstituinte contra “enjôo, ressaca, cansaço, exaustão física e mental”, feito a partir de uma mistura de ingredientes vindos de longe: coca (do Peru e da Bolívia), com folhas que eram usadas pelos nativos como estimulante, além de pequena quantidade de cocaína; e cola (da África), cuja noz é rica em cafeína e teobromina, empregada para combater fadiga e sede. Não
foi original na escolha desses ingredientes, já usados (embora com proporções diferentes) num xarope produzido na Córsega (França) – o Vin Mariani. Na esperança de que viesse a ser sua mais importante invenção e reproduzindo no rótulo o tipo de bebida e sua procedência, deu o próprio nome ao produto – Pemberton’s French Wine Coca. Por esse tempo, tratava-se ainda de um xarope escuro, grosso e muito amargo. Insatisfeito, Pemberton continuou acrescentando novos ingredientes à receita original, como ácido cítrico e essências de frutas. Mais tarde, com a colaboração do amigo (também aposentado) Frank Robinson, patenteou a fórmula; trocou o nome para Coca-Cola (inspirado nos seus principais ingredientes); criou logotipo, já com as letras inclinadas que tem hoje; e uma embalagem de atacado, em barris de madeira (antes usados
para armazenar uísque) pintados de vermelho – mesma cor que viria, depois, a ser usada nos rótulos do produto. Segundo anúncio no The Atlanta Journal, era “Coca-cola! Delicious! Refreshing! Exulareting! Invigorating!” (“Coca-cola! Deliciosa! Refrescante! Fantástica! Revigorante”). Seu tônico passou então a ser vendido na Jacob’s Pharmacy, ao preço de 5 cents o copo, puro ou misturado com água (natural ou gasosa). Mas não foi um início economicamente promissor. Em média, eram vendidas por dia apenas nove doses. Por todo um ano, apenas 94 litros. Faturamento de 50 dólares, contra 74 aplicados nos gastos com propaganda. Em 1891, doente e quase falido, o pobre Pemberton vendeu sua fórmula a outro farmacêutico, Asa Griggs Candler, por 2.300 dólares. Sem nem desconfiar de que estava fazendo o pior negócio de sua vida.
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De produto farmacêutico caseiro a fenômeno internacional de mercado, a Coca-Cola é a bebida que melhor representa o espírito empreendedor norte-americano
Candler aperfeiçoou o produto – cancelou a cocaína, reduziu a cafeína, substituiu ácido cítrico por ácido fosfórico, acrescentou glicerina e um saborizante à base de óleo de lima. Assim nascia a fórmula conhecida, até hoje, como “Merchandise 7x”. Um segredo guardado a sete chaves, num cofre do Trust Co. Bank (em Atlanta), que só pode ser aberto com autorização de todos os diretores da empresa. E apenas dois executivos de produção (sem identidade revelada) têm acesso, cada um, à metade da fórmula. Tão grande é esse zelo, que a Coca-Cola preferiu abandonar um país como a Índia, que em 2012 será o mais populoso do mundo, a ter que cumprir ordem governamental de revelar a fórmula. O produto era, nesse início, oferecido em garrafinhas de 185 ml, concebidas por Joseph Biedenharn. Bem diferentes, ainda, daquelas que viriam a ser definitivas, com 200 ml, verdes (no Brasil são brancas), em estilo art nouveau – criadas, em 1915, por Earl Dean. Segundo o próprio artista, inspirada nas curvas do corpo da mulher, escondidas nas saias pregueadas que vestiam na época. Não por acaso a embalagem recebeu o nome de Mae West, um símbolo sexual da América. Deu certo. Sucesso de marketing e de vendas. Candler ganhou milhões de dólares, foi eleito prefeito de Atlanta e entregou o negócio ao filho Howard – que, em 1923, por 25 milhões de dóla-
res, vendeu a Coca-Cola Company a Ernest Woodruff. Logo depois, o velho Candler teve um derrame cerebral e acabou morrendo. Muito triste e muito rico. Para Woodruff, “Coca-Cola era o sonho americano numa garrafa”. Sua estratégia de venda era “um cartaz em cada esquina, e garrafas de coca em todos os estabelecimentos”. Para conquistar o público infanto-juvenil, em 1931, contratou o publicitário sueco Haddon Sundblom. Assim nasceu – como conhecemos hoje – a figura de Papai Noel. Desde 1881, por conta dos desenhos de Thomas Nast na Harper’s Weeklys, o bom velhinho era magro e se vestia de azul, amarelo, verde e vermelho. Acabou gordinho (como a garrafa) e vestin-
do as mesmas cores do rótulo (vermelho e branco). Até hoje. Sundblom também sugeriu que fossem criados slogans próprios, em cada país. Intelectuais locais eram então escolhidos para criar esses bordões. Em Portugal, por exemplo, foi contratado Fernando Pessoa – daí nascendo, em 1928, o slogan “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Um desastre completo. O Ministério da Saúde proibiu a venda do produto, por considerar ser uma descrição das sensações que ocorrem com os alucinógenos. E Salazar mandou jogar todas aquelas garrafas importadas no Tejo. A Coca-Cola voltaria a Portugal só depois da Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974. (Continua no próximo número).
RECEITA
Bolo com Coca-Cola 3 Bata 100 g de manteiga com 3 xícaras (de chá) de açúcar. Acrescente 5 ovos (um a um), 290 ml de Coca-Cola, 1 xícara (de chá) de chocolate em pó, 3 xícaras (de chá) de farinha de trigo e 1 colher (de sopa) de fermento em pó. 3 Coloque em forma untada e asse em forno moderado. 3 Cobertura de chocolate: em uma panela coloque 2 colheres de sopa de manteiga, 8 colheres de sopa de Nescau, 2 colheres de sopa de açúcar, ½ xícara de leite. Cozinhe até que engrosse.
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PERFIL
Embate contra o esquecimento cultural Lucilo Varejão Filho persiste no trabalho de preservação e reedição de autores pernambucanos do século 19 Cristhiano Aguiar
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ma das melhores metáforas que conheço sobre memória pode ser encontrada no mito grego de Scopas e Simônides de Ceos. Por ter conseguido uma vitória importante no seu esporte, o boxeador Scopas contrata o famoso poeta Simônides de Ceos para escrever-lhe um hino de louvor. Scopas não se agrada dos versos de Simônides e por isso só paga um terço do que devia. Apesar deste constrangimento, o atleta convida o poeta para o seu banquete comemorativo. Em determinado momento, Simônides precisa sair, pois o chamavam do lado de fora. Quando volta – não encontrara ninguém –, um desastre: o teto do salão do banquete desabara, matando todos. Só o poeta sobreviveu e, por ter uma boa memória, conseguiu ajudar os parentes das vítimas no reconhecimento dos corpos, pois tinha decorado
o lugar de cada um deles antes do acidente. Essa história ilustra bem uma das principais preocupações do professor, imortal da Academia Pernambucana de Letras e poeta Lucilo Varejão Filho: o embate contra o esquecimento cultural. Assim que cheguei à sua residência – chamou-me a atenção uma das paredes da sala, na qual estava pregada uma máscara carnavalesca –, fui recebido por um senhor simpático, cuja saúde abalada não deixava de revelar um duplo olhar de força e simplicidade. Após sentarmos, ouvi uma das suas primeiras observações: “Não sabia que a revista estava tão preocupada com a questão da preservação da memória, parabéns para vocês!”, afirmou, mostrando-me uma matéria publicada numa edição passada da Continente. Mais uma vez, o embate. Não sei se você, leitor, já se questionou acerca da utilidade das incontáveis
academias de letras que temos no nosso país. Entre outros motivos, elas nasceram da necessidade da sociedade brasileira enxergar, mais claramente, os valores que ela própria considera como notáveis. Isto, claro, tem um preço: Guimarães Rosa e Manuel Bandeira colegas, na Academia Brasileira de Letras, de Getúlio Vargas e Ivo Pitanguy, por exemplo. A outra função destas academias, muito mais importante, é preservar a memória e as tradições. Varejão Filho parece seguir este preceito à risca. Graças ao seu empenho, um importante conjunto de livros esquecidos pôde voltar, em 2005, à disposição das novas gerações: trata-se da coleção Velhos mestres do romance pernambucano, publicada pela Cepe com o apoio da Chesf. Dentre os autores, todos membros da Academia Pernambucana de Letras entre os séculos 19 e 20, destacam-se os livros de
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Rafael Gomes
O escritor Lucilo Varejão vem trabalhando na reedição de obras literárias de Pernambuco, apresentando-as às novas gerações de leitores
Lucilo Varejão, pai do organizador da coleção, Mario Sette, cujo romance Senhora de engenho muito influenciou o regionalismo de José Américo de Almeida e A emparedada da rua Nova, de Carneiro Vilela, que chegou a ter certa repercussão em sua época. As edições são bem-cuidadas: além da pesquisa para encontrar os retratos dos autores, tarefa que não é tão fácil como pode parecer, Lucilo Varejão Filho realizou um levantamento biográfico de cada autor e escreveu estudos introdutórios para cada volume. Algum leitor pode se perguntar se estas obras de fato merecem retornar a nós. Mesmo que a qualidade dos livros seja irregular, principalmente naquelas obras, como Morbus: romance patológico, de Farias Neves Sobrinho, que não conseguiram escapar dos excessos dos naturalismos, a coleção
se revela um material de pesquisa excelente. Com estes livros, podemos entender melhor como se desenvolveu a cultura literária em Pernambuco e de que forma nosso Estado dialogou com a produção literária do país e do mundo. Manter a conexão entre as diferentes gerações é algo fundamental. Lucilo me pergunta se sei francês. Ao ouvir minha negativa, lamenta: “Apostei no humanismo e no francês; venceu o tecnicismo e o inglês”. Não o interpreto mal: afirma gostar muito da literatura em língua inglesa e reitera a necessidade do intelectual dialogar com outras gerações, como a minha. Seu lamento é um pouco o meu próprio, na verdade. A cultura francesa, como para parte considerável dos intelectuais da sua geração, foi muito importante na trajetória deste olindense cuja primeira infância – nasceu em 1921 – se deu num casarão na
esquina da rua 13 de Maio. Foi um habitante da Olinda alta, a Olinda dos sobrados, igrejas, vias estreitas e largos degraus partidos. Antes de perguntar sobre sua formação intelectual, não resisto e tento puxar-lhe uns fiapos de memória: “A Olinda do alto, nos anos 1920 do século passado, diferia pouquíssimo da que temos em nossos dias, exceto os olindenses de então, nossos vizinhos e amigos: o ‘seu Azevedo’ da quitanda defronte da nossa casa, da rua do Amparo, que convivia com imensos ratos chiando atrás do balcão; e no alto da colina da Misericórdia, o ‘jardim da infância’ das dorotéias, onde Madre Blandina me ensinava aos cinco anos a fazer ‘tecelagem’ com fitas coloridas de papel”, diz, enquanto lembra de tantos outros personagens levados pelo tempo. Nos anos 40, Lucilo Varejão Filho começa seus estudos na Faculdade de Direito do Recife. Naquela FEV 2009 • Continente
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Imagens: Reprodução
PERFIL
A coleção de livros Velhos mestres do romance pernambucano, publicada pela Cepe em 2005, com o apoio da Chesf, foi realizada por Varejão
época, diz, havia basicamente três áreas de estudo com proeminência: além da carreira jurídica, a engenharia e a medicina. Escolhe, como tantos outros jovens do seu tempo com inclinações humanísticas, a primeira opção. Foi durante o curso de Direito que se iniciou nos estudos da cultura francesa: “Comecei a estudar francês com Angeline Ladevèse, senhora francesa, septuagenária, que tinha vindo de Paris ensinar a língua de Racine no Pritaneu, então famoso colégio recifense. Fechado o Pritaneu, pelo falecimento da proprietária, Mlle. Ladevèse resolveu fixar-se aqui, passando a lecionar à melhor sociedade de então”. Aos poucos, o horizonte de uma carreira jurídica revelou-se insatisfatório. A cultura francesa, as artes e a literatura se tornavam cada vez mais sedutoras. Formado, Varejão Filho chegou a advogar no famoso escritório do Dr. Abgar Soriano, seu ex-professor na Faculdade de Direito, no entanto “logo tomei ojeriza à obrigação de ir a foro e cedo cheguei à descoberta de que não era aquela ‘a minha praia’”. A capa de algodão do doutor bacharel tinha, na verdade, as franjas de seda do poeta. E foi justamente a literatura que o fez pular da advocacia
ao magistério. Lucilo começou a dar aulas de francês no Colégio Osvaldo Cruz e em outros colégios particulares; em seguida, foi professor cate-drático do Ginásio Pernambucano nos tempos áureos desta instituição, antes que ela fosse desmontada pelo projeto de obliteração da educação pública realizado pela ditadura militar. A carreira universitária logo surgiria: nos anos 1960, fez cursos de especialização em literatura francesa moderna, na Sorbonne, em Paris, e tornou-se professor de língua e literatura francesas na Universidade Federal de Pernambuco, instituição na qual se aposentou. Fez parte também do grupo de intelectuais que, há 40 anos, junto com o consulado francês, fundou a Associação de Cultura Franco-Brasileira, que depois se transformou na Alliance Française do Recife. Na época em que os grandes jornais pernambucanos mantinham encorpados suplementos literários, jornalistas-escritores como Mauro Motta e Luis Delgado começaram a publicar poemas dele, até que estes foram reunidos no seu único livro de poesia, A imagem de pedra, que lhe rendeu o Prêmio de Poesia do Estado de Pernambuco (1958) e o
Prêmio Othon Bezerra de Mello, da APL (1963). Estas premiações abriram-lhe de vez as portas da Academia Pernambucana de Letras, para a qual foi eleito em 1971. O tempo vai passando e a tarde fraqueja. Ainda há alguém esperando nos escombros? Enquanto recupera a saúde, entre leituras e passeios, Lucilo me fala dos seus projetos: continuar a coleção Velhos mestres do romance pernambucano, organizar o livro A presença francesa no Recife e preparar a edição de um livro de memórias, inédito, escrito pelo seu pai. Além disso, quem sabe, preparar um novo volume dos poemas que vem publicando, lá e cá, ao longo das décadas. “Como vê, o que não falta é assunto para quem quer fazer um bom trabalho no campo das letras”, diz, do alto dos seus 81 anos, após apertar minha mão e esperar que eu entre no elevador. Enquanto desço, lembro de Dante dando voz aos que se foram, na sua Divina Comédia, ou dos anônimos poetas da Bíblia, do Popol Vuh e da epopéia de Gilgamesh, teimosos em fixar rostos às pedras. Quando o elevador pára, a porta automática começa a se abrir. Vejo uma linha de luz, vinda da rua, colocando cada coisa em seu lugar.
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LITERATURA
Defesa e ilustração da memória Em seu novo livro de poemas, Retábulo de Jerônimo Bosch, Everardo Norões apresenta um imaginário rico em referências modernas e arcaicas Fábio Andrade
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poesia moderna pautou-se pelo signo da ruptura, da quebra dos valores estéticos tradicionais. Chegou aos limites da palavra, mergulhando por vezes no abismo de um silêncio que ora se mostrava criativo, ora estéril. Essa aventura radical, apesar de ter se manifestado nas mais variadas latitudes, tinha o objetivo geral e comum de redefinir a arte literária, numa busca profunda por seu ser esquivo e indefinível. Como todo momento de crise, a modernidade e o modernismo que dela decorreu instituíram um espaço de profundo experimentalismo. A lógica da poesia e da arte experimental em geral era não reproduzir a arte do passado, negála enquanto modelo ou ordem pré-estabelecida da sensibilidade criadora. Experimentar, desbravar novas searas de nossa paisagem interior foi e é ainda a palavra de
ordem. Tal negação pode ser constatada nos programas de várias vanguardas (no futurismo italiano, no dadaísmo). Octavio Paz, em seu livro Os filhos do barro, apresentou-nos a possibilidade dessa negação, dessa ruptura converter-se numa nova tradição, iluminando assim o fato de que toda tradição, seja de ruptura, seja de confirmação dos valores do passado, deve ser contínua e individualmente reinventada por cada artista. Essa reinvenção, dialética sutil entre negação e afirmação, pode ser sentida em alguns poetas nossos atuais: Eucanaã Ferraz, Antonio Beça, Alexei Bueno, Cláudio Daniel, Paulo Henriques Britto. Seus poemas mesclam o experimentalismo com a utilização de formas tradicionais, a negação de uma certa noção de passado com a afirmação do que há de vivo e intenso no passado. Daí a contemplação lírica
de Eucanaã, os sonetos de Antonio Beça e Paulo Henriques Britto, o tom épico de Alexei Bueno, o neobarroquismo de Cláudio Daniel. Entre os poetas que transformam negação e afirmação em tensão criativa, está situado Everardo Norões. E exemplarmente, com seu novo livro – Retábulo de Jerônimo Bosch. Neste momento, a poesia de Everardo atinge plena madurez. Computando apenas quatro livros, que cobrem, entretanto, um itinerário de mais de 20 anos – Poemas argelinos, Poemas, A rua do padre inglês e este Retábulo de Jerônimo Bosch –, sua dicção foi ganhando em intensidade e perdendo em “gordura”. Não se enganem, o excesso é um mal que aflige não apenas o corpo material de nossa cultura, mas também o seu corpo mental e sensível. Nos poemas do Retábulo, o leitor reencontra a sensação do es-
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LITERATURA
de nossa vida familiar e afetiva), uma segunda que a une ao momento, ao tempo em que foi gerada, e uma terceira, que é marcada pelo processo de reminiscência, que é sua atualização no tempo presente. Toda arte que assume a memória como elemento estruturante estabelece esse jogo de relações. Tomemos, para exemplificar, o trecho do poema número 9: “Procuro uma voz / que debulhe o poema / como minha mãe / debulhava o milho”. A lembrança da mãe assume a forma de uma lição estética, transformada em memória, ela é o modelo de uma arte que responde no presente aos anseios de busca do poeta. Há uma ética no sertão, e que marca a vida do poeta Everardo, que constitui também uma estética. Baseada numa ligação inadiável com o arcaico, que permanece
como reservatório de imagens e como dique diante do entusiasmo suicida e progressista de nosso tempo. A memória configura esse sertão de dentro como uma paisagem cheia de rituais e sentidos ancestrais. Não se deve pensar, entretanto, o poeta como um profeta sertanejo nos moldes pasteurizados de um Lirinha. Ele é um homem do seu tempo, um cego, buscando costurar o tecido roto das memórias, desse sertão simbólico que nunca se revela claramente: “Cego, / submeter-se / ao livro dos dias. / E regressar à escuridão: / como carteiro / à cata / dos endereços / perdidos”. Os caminhos para a memória são reinventados continuamente, como a tradição deve ser reinventada. A atualização da memória individual funciona então como metáfora da atualização da memória coletiva e artística. Agregando a ela sempre novos significados, como
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sencial, da mola ajustada, tudo em seu devido lugar. Mas essas qualidades estilísticas não ganhariam intensidade, se o poeta não tivesse o que dizer. Podemos definir esse “dizer” como um imaginário rico, cruzado por referências modernas e arcaicas, utilização de uma linguagem simbólica ampla, produtora de múltiplos significados e de efeitos sinestésicos; e – no seu caso – a manifestação da memória como uma ferramenta crítico-criativa. Aqui, parece-nos, o essencial dessa poética. Nossas lembranças, a poesia de Everardo parece nos dizer, apesar de pertencerem à nossa vida particular, mantêm uma ligação íntima com o tempo em que foram, enquanto imagens, geradas; e mesmo com os outros homens de qualquer tempo. A memória tem essa tridimensionalidade: uma primeira dimensão íntima e particular (imagens
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assinala o verbo no presente do indicativo do primeiro poema citado. A memória se apresenta como um esforço interpretativo, trabalho inconcluso e permanente. Ela se abre também para um aspecto político fundamental: a possibilidade de reescrever um passado cristalizado e oficioso. Como se verifica no poema Estátuas, que transcrevemos na íntegra: “Na catedral de Nantes / há um general. / Um general deitado / em decúbito dorsal, / em pleno estado de composição. / Um general deitado, / arrodeado / das quatro virtudes / (nacionais ou teologais): / é um mármore frio, / no branco átrio. // Em Argel, / na rua Larbi Ben Mehdi / (enforcado por outro general), / ao ar livre / há uma estátua eqüestre / do Emir Abdelkader. // (Na gramática do tempo, / consuma-se a linguagem perfeita / das estátuas)”. As imagens das estátuas, uma deitada no
mármore frio protegida pelo passado oficioso e, outra, símbolo da resistência argelina, erguida ao ar livre, oferecem possibilidade alternativa de ler o passado. Para a poesia da memória, que media o presente pela reminiscência, como nos diz Alfredo Bosi no seu texto “Os estudos literários na era dos extremos” (do livro Literatura e resistência), a “tensão fecunda entre criação e tradição” torna o imediato menos violento. O trabalho poético assume, assim, um caráter essencialmente hermenêutico, ou seja, de arte de interpretação, mesmo múltipla e inconclusa, procurando conferir sentido aos absurdos de nossa vida e de nosso tempo. Everardo Norões nos oferece com este livro de um pouco mais de 100 páginas a esperança de reencontramos na arte poética uma dignidade própria, expurgada de
descaminhos fáceis, do entusiasmo leviano que marca parte da produção poética atual. É uma poesia de força e da memória, no que ela tem de mais humano: o interminável trabalho de buscar um lugar, que esteja nas fronteiras impossíveis do esquecimento e da lembrança.
SERVIÇO Retábulo de Jerônimo Bosch Everardo Norões 7 Letras 126 páginas 25,00 reais
Leia poemas do novo livro de Everardo Norões www.continenteonline.com.br
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livros
MÚSICA
Philip Roth e a natureza do ofício de escrever
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Bellow e o pintor P. GusEntre nós ton. Roth, considerado Philip Roth Companhia das Letras um eterno candidato ao 172 páginas Nobel de Literatura, con36,00 reais segue extrair de nomes como Primo Levi, Ivan Klíma, Bashevis Singer, Kundera e Edna O’Brien a relevância que cada um atribui a temas como religião, política, psicanálise e sexualidade na construção de suas obras. Na conversa com Primo Levi, por exemplo, percebe-se a importância crucial de dois fatores em seu labor literário: a reminiscências de Auschwitz e seu temperamento extremamente racional; no diálogo com Milan Kundera, política, nacionalismo e sexualidade são os pontos centrais – tanto na vida como na obra do autor tcheco. Trata-se de um livro fundamental por sua capacidade de mostrar como a literatura se alimenta necessariamente do mundo, e vice-versa. (Eduardo Cesar Maia)
> As novas visões sobre a estética
> A América Latina em 80 contos
> Uma poeta exilada em seu próprio país
> Descida aos porões com os Stones
Esta obra é um panorama elaborado por vários especialistas a respeito dos mais recentes estudos sobre a estética. A rejeição ao reconhecimento dessa disciplina como saber filosófico começa com Kant, para quem esses estudos não passariam de “crítica do gosto”, baseados em dados empíricos e não em leis determinadas a priori. Esse tipo de condenação é assumida por vários outros pensadores, inclusive, no século 20, pelos adeptos da filosofia analítica. Em um segundo momento, com a sua Crítica do juízo, Kant assume uma visão menos cética e é a partir do caminho traçado por ele que os estudos estéticos atuais florescem e dão resultados bastante interessantes, como atesta esta publicação. (ECM)
Flávio Moreira da Costa já se notabilizou no cenário editorial brasileiro por organizar – com competência e critério – antologias de todos os tipos, as quais, na maioria das vezes, acabam tendo um grande apelo de mercado. Agora, o antologista selecionou 80 contos que traçam um panorama da literatura latinoamericana, baseado em critérios estéticos, históricos e com objetivo de ver todos os países representados. Cinco séculos de história literária, desde a época colonial até hoje, são percorridos e fornecem ao leitor uma visão geral – que será sempre incompleta e arbitrária, porém articulada e sistemática – do que melhor e mais representativo foi produzido em nosso continente. (ECM)
Este belo livro fala da vida e obra de Anna Akhmátova, contemporânea de Maiakovski, e uma das intelectuais que mais sofreu a perseguição stalinista. Sua poesia, embora trágica, não abriga lamentações, pelo contrário, é resoluta como sua personalidade mostrava ser já na adolescência. Ao saber que ela escrevia poemas, o pai lhe disse: “Vê se, pelo menos, não envergonha o nome da família”. Imediatamente, ela decidiu adotar como pseudônimo o nome da sua bisavó materna. O livro é enriquecido com fotos de época, gravuras de Klara Kaiser Mori e um CD em que a própria Anna diz os seus textos, com versões na voz de Beatriz Segall, mais um poema musicado por Gilberto Mendes. (Marco Polo)
No começo da década de 1970, os Rolling Stones exilaram-se na Riviera Francesa, fugindo do temível imposto de renda britânico, precisando gravar um novo disco para desafogar os bolsos. Só que não contavam com o vício de Keith Richards, da heroína, o que atrasou em meses a gravação do disco Exile on Main St., hoje considerado por muitos o melhor da banda. Em meio a acidentes de kart, brigas, sexo, infidelidade, armas e o "auxílio injetável" de um médico, o livro narra os bastidores das gravações no porão da Vila Nellcôte, uma mansão à beiramar, antigo reduto de nazistas, e na época refúgio de traficantes, bandidos, parasitas e filhinhos de papai. E as agruras do "esverdeado" guitarrista para largar o vício. (Luiz Arrais)
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ntre nós – um escritor e seus colegas falam de trabalho traz muito mais do que entrevistas convencionais. A obra pode ser entendida como um grande simpósio – conversas francas e diretas com um fio de sentido e objetivos em comum – entre o ficcionista norte-americano Philip Roth e grandes nomes da literatura do século 20, além de considerações do próprio autor a respeito de escritores como Franz Kafka, Bernard Malamud, Saul
Estética – fundamentos e questões de Fil. da Arte Peter Kivy (organizador) Paulus Editora 433 páginas 73,50 reais
Os melhores contos da América Latina Flávio Moreira da Costa Editora Agir 582 páginas 59,90 reais
Anna, a voz da Rússia Lauro Machado Coelho Agol Editora 512 páginas 120,00 reais
Uma temporada no inferno com os Rolling Stones Robert Greenfield Jorge Zahar Editor 244 páginas 39,90 reais
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MÚSICA
Autorretrato em vermelho de um intelectual
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pai, Valério, era comunista, assim como outros familiares e amigos próximos. Aos 15 anos, aprofundou-se no caminho do comunismo, o que lhe valeu uma prisão, viagens a vários países (incluindo a União Soviética), livros e muitas histórias para contar. Aos 73, Leandro Konder acerta as contas com o passado nas suas Memórias de um intelectual comunista. O autor tem mais de 20 livros publicados, incluindo o best-seller O que é dialética (Editora Brasiliense), lido por quase todos os estudantes de graduação na área de humanas. Ele próprio é professor universitário no Rio de Janeiro e sempre atuou no jornalismo. Ao falar de sua vida e militância, esmiúça o cenário político e as idéias prevalecentes no Brasil,
no período pós-guerra, tanMemórias de to no Rio de Janeiro quanto um intelectual comunista no exílio europeu. ConviLeandro Konder veu com intelectuais como Civilização Brasileira 264 páginas Otto Maria Carpeaux, Ál39,00 reais varo Lins, Carlos Nelson Coutinho e o liberal José Guilherme Merquior. Sobre este, Konder faz derramados elogios e uma observação que mostra uma de suas maiores qualidades: a tolerância com a divergência. “A minha amizade com o Merquior me ensinou que também podia ser humanamente muito fecundo o caminho do convívio nas discordâncias, o diálogo que é capaz de digerir as divergências." Sua palavra de tolerância é um exemplo para todos os matizes políticos: “Não prego nada, não converto ninguém. Gostaria apenas de ter algum espaço para minhas opiniões, de modo a permitir que elas sejam civilizadamente toleradas, junto às opiniões dos outros”. (Renato Lima)
> Os meandros das lutas estudantis
> Tráfico de órgãos não é lenda urbana
> O mestre das histórias infantis
> Obra essencial sobre vanguardas
Entre os lançamentos que lembram a luta contra a ditadura militar no final dos anos 1960, nenhum desce tanto aos detalhes operacionais da militância estudantil como esta coleção de entrevistas feitas pelo historiador carioca Daniel Aarão Reis (ele mesmo um ex-militante), ilustradas pelas fotos de Pedro de Moraes. O livro, lançado originalmente há 20 anos, ganhou recentemente uma edição atualizada com um novo ensaio de Aarão Reis, no qual ele comemora a volta da polêmica sobre o significado de 1968. O trabalho reúne 15 entrevistas com militantes da época (como Vladimir Palmeira e José Dirceu) e com alguns que nem eram nascidos, como Lúcia Stumpf, atual presidente da UNE. (Marcelo Abreu)
Há pouco mais de cinco anos, um tipo de crime, até então pouco usual, tomou conta das páginas policiais dos principais jornais brasileiros. A polícia pernambucana começara a desmantelar uma quadrilha internacional que, ao invés de drogas, traficava órgãos. Os doadores eram recrutados na periferia do Recife e voavam até a África do Sul, onde vendiam um dos seus rins por cerca de seis mil dólares. Neste livro-reportagem, o jornalista Júlio Ludemir expõe ao leitor todo o universo que envolvia o esquema de tráfico de órgãos no Estado, desmistificando estereótipos, mostrando quem são as pessoas envolvidas no processo e dando voz a elas. (Mariana Oliveira)
Embora seus livros de contos (Urupês, 1918; Cidades mortas, 1919, e Negrinha, 1920) e romance (O presidente negro, 1926) sejam menos conhecidos que a sua obra infantil, Monteiro Lobato esgotava sucessivas edições dos livros referidos. É um autor que, além da apropriação de várias matrizes culturais, renovação da linguagem e diálogo com os vários Brasis de seu tempo, é carinhosamente lembrado por gerações – e conhecido e amado pelo público infantil. Em Monteiro Lobato, livro a livro (Obra infantil), abrem-se rumos para novas leituras de suas obras. Escrito por professores e pesquisadores, dedica um capítulo a cada título infantil – renovando o encantamento de seu imaginário. (Mª Helena Pôrto)
Publicado em 1974, Teoria da vanguarda, do crítico alemão Peter Bürger, afigura-se como um dos mais notáveis trabalhos sobre as vanguardas artísticas do século 20, sobretudo o dadaísmo e a “primeira geração” do surrealismo. Estabelecendo pontos de ligação com o pensamento de autores como W. Benjamin, G. Lukács e T. W. Adorno, Bürger examina as tensões entre as teorias da autonomia estética e o impulso transgressor das referidas correntes, bem como destrincha as categorias analíticas adotadas pela crítica até então, expondo não apenas traços da história da arte do século 20, como as condições que propiciaram a compreensão de tais fenômenos históricos. (Yuri Bruscky)
1968: a paixão de uma utopia Daniel Aarão e Pedro de Moraes FGV Editora 268 páginas / 55,00 reais
Rim por rim Julio Ludemir Record 301 páginas 43,00 reais
Monteiro Lobato, livro a livro (Obra infantil) Marisa Lajolo (Org.) Editora Unesp 509 páginas 62,00 reais
Teoria da vanguarda Peter Bürger CosacNaify 272 páginas 39,00 reais
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FOTOGRAFIA
Le parapluie rouge, 1963
Saul Leiter e a sensação das cores Conhecido por seu trabalho como fotógrafo publicitário e de moda, o norte-americano chega aos 85 anos alcançando prestígio no meio artístico internacional Camilo Soares 42 x Continente • FEV 2009
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lugar entre os grandes mestres dessa expressão. Não é que a ambição artística faltava para esse norte-americano de Pittsburgh, filho de um rabino célebre, visto que deixou os estudos de teologia, que seguia com brilho, para tentar a carreira de pintor em Nova York. Logo se enturmou com a segunda geração dos expressionistas-abstratos, e sob influência do pintor Richard Poussette-Dart, obteve uma primeira máquina fotográfica Leica, passando a flanar nas ruas da grande metrópole atrás de momentos fugidios. Começou com o preto-e-branco, influenciado por uma exposição de Cartier-Bresson que lhe revelara que fotografia poderia ser arte, até que decidiu comprar um rolo de película em cores para ver o que dava e gostou do que deu. Gostou muito. Mesmo sendo a fotografia em cores considerada indigna de pretensões artísticas na época, Leiter decidiu mergulhar de cabeça nessa pesquisa
estética, em busca da imagem efêmera de uma cidade em mutação, como numa mulher adivinhada nos tantos espelhos arranhados sob um muro de bar. Ela cruza a calçada, evanescente qual passante de Baudelaire, surgida em “Um raio... então a noite! – Fugitiva beleza cujo olhar me fez repentinamente renascer, não mais te verei antes da eternidade?”. Uma certa melancolia poética desbota sua palheta de tons fortes e densos; cores, no entanto, que transcendem a inexorabilidade de seu espaço, desprendendo-se do tempo no que se deixam, como na linha famosa de Pena Filho, “entrar no acaso e amar o transitório”. Não à-toa busca lascas de sensações apontando sua lente em direção de velhos espelhos, vidraças embaçadas, frestas de portas: “Tenho um grande respeito pela desordem, pelo inacabado”, confessa o próprio fotógrafo para a curadora Agnès Sire, da exposição na Fundação Henri Cartier-Bresson.
Fotos: Saul Leiter/Divulgação
alvez eu não tivesse a personalidade pa- ra ser um artista conhecido”. Assim o fotógrafo Saul Leiter ensaia uma justificativa sobre o quase ineditismo de seu trabalho pessoal durante décadas. Acha até engraçado ter respaldo internacional hoje, aos 85 anos, somando duas grandes exposições em Paris somente em 2008, na Fundação Henri Cartier-Bresson, e na galeria Camera Obscura. Leiter, que fez toda a sua carreira na fotografia de moda, não estava acostumado com a bajulação do mundo das artes. Entretanto, seus clichês coloridos capturados entre 1948 e 1963 causam, hoje, turbulências em olhares desavisados e por muito acostumados com o equilíbrio clássico da fotografia em preto-e-branco da época. Os enquadramentos inusitados e a força expressiva de seus tons compensam hoje o esquecimento histórico, elevando o fotógrafo, para alguns críticos, a um
Halloween, 1948
Tilly (pour Harper´s Bazaar), 1964 FEV 2009 • Continente x
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FOTOGRAFIA Sempre apegado à pintura, que nunca abandonou, Leiter também aplica na fotografia suas influências pictóricas, Pierre Bonnard e Édouard Vuillard como referências mais marcantes. São pintores da escola Nabis, movimento francês do final do século 19, que utilizou cores vivas e puras para se libertar da obrigação imitativa da pintura e criar lógica e simbologia próprias à sua arte. Além do delicado trabalho com as cores primárias, o fotógrafo também bebe da fonte de Bonnard e Vuillard quanto à composição do espaço, influenciada pelas estampas japonesas, com figuras cortadas por enquadramentos, abrindo as portas para o subjetivismo do não visto. Leiter não hesita em deixar a figura humana fora de seu quadro, quando, por exemplo, o que lhe interessa é o vermelho do guardachuva no meio da neve. Trabalha assim o vazio, também caro à estética oriental. Põe com delicadeza um semáforo verde no meio de uma cidade descolorida pela neve. São tais enquadramentos frustrantes que, segundo Pascal Bonitzer, introduzem na imagem um suspense não narrativo. O vazio, o fora de qua-
dro, o achatamento do sujeito favorecem uma situação estritamente espacial de impor uma percepção múltipla de tempo, o que nos afasta de uma leitura puramente factual. Leiter possui também uma visível preferência por enquadramentos verticais, que no formato 35mm obrigam a uma leitura estreita, em profundidade, em detrimento de uma leitura lateral (horizontal) de ordem narrativa. Dessa forma, a fotografia de Saul Leiter flerta com a abstração, quebrando a relação entre uma imagem e o objeto que ela ilustra e a ligação entre uma imagem com outras imagens de um conjunto composto, que são, segundo o filósofo francês Gilles Deleuze, implicações centrais da figuração ou representação: “Entre duas figuras, há sempre uma história que escorrega ou tende a escorregar, para animar o conjunto ilustrado. Isolar é, então, o meio mais simples, necessário, mas não suficiente, para romper com a representação, quebrar a narração, impedir a ilustração, liberar a figura”. Nessa solidão estética, mesmo sendo as imagens de Leiter banhadas pelo simples e trivial, elas sempre sugerem um mistério, le-
Voiture, 1956
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Boutique sur la 2ยบ Avenue, 1953
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vando-nos para um algo além do objeto fotografado. Como na imagem, onde percebemos apenas os pés de um passageiro em um vagão de trem, cujo grafismo de reflexos e linhas do chão se cruzam para cercá-lo e o isolar ainda mais. Cada imagem nos obriga a uma reflexão diante de um quiproquó visual. Tal imbróglio é necessário para a arte de Leiter, dando vazão às múltiplas leituras de suas fotografias.
Feu vert, 1955
Parapluie couleur prune, 1957
Talvez, por isso, costumava aparecer no reflexo de vitrines que fotografava, multiplicando não somente as imagens, mas duplicando o significado da própria fotografia, espécie de autorretrato escondido em cena urbana, como descreve Max Kozloff na apresentação da edição Photo Poche consagrada ao fotógrafo: “Essa imagem que, na primeira olhada, se apresenta como uma cena de rua, transforma-se então em uma natureza-morta; ela é meditação e ao mesmo tempo um gesto”. Uma imagem como essa tem o poder de quebrar a fronteira entre a intencionalidade e a iconicidade do ato fotográfico, pois, representando a Nova York dos anos 1950, ela é também nitidamente fruto de uma estética criada e aplicada pelo artista. Esse ambíguo vetor escolhido por suas composições é reforçado pela lente teleobjetiva que usa, que privilegia transições na profundidade, “deixando aberta a questão da relação espacial entre aquele que vê e aquilo que ele vê”, complementa Max Kozloff. A relevância da arte de Leiter vai, assim, muito além do pioneirismo na utilização das cores na fotografia artística. Suas imagens, mesmo que as chamem de uma certa melancolia imagética de Nova York, despontam sobretudo pela modernidade semântica de suas construções e pela intimidade de suas sensações estéticas, fugazes, misteriosas e sensuais. FEV 2009 • Continente x
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Imagens: Reprodução
Henrique Koblitz
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O Som Barato não morreu Banido pelo Google em setembro passado, o Som Barato voltou em formato peer-to-peer, sistema de troca pessoal de arquivos – e não de serviços, manobra que permite a idéia de partilha e sustentação do blog esperto. O espaço, onde já foram feitos mais de 1 milhão de downloads, agrega aproximadamente 2 mil discos, dos quais uma parte razoável não tem mais distribuição. Além de ser referência no resgate de pérolas, o blog contém entrevistas, críticas e biografias, material que também só volta agora, depois de ter sido recolhido no atentado cultural promovido pela gigante da web. Mas, como bem explica texto de apresentação, uma idéia nunca morre – e é por isso que o Som Barato não morreu. Entre as pertinentes ferramentas do blog, vale dar uma conferida no botão de pedidos, logo na página inicial. Lá, os visitantes postam seus pedidos, quase todos de obras raras – o que sublinha o trabalho de resgate que o espaço desempenha com sucesso. (Thiago Lins) nnn
www.sombarato.org
n TRADIÇÕES
Mistérios de um Recife sombrio
n MÚSIcA
Myspace, por uma democracia cultural
n cINEMA
Resgate do passado criativo do cinema
Baseado no livro de Gilberto Freyre, Assombrações do Recife Velho, o Recife assombrado é um site que tem a pretensão de preservar lendas e mitos do local. O projeto tem mais de oito anos e o seu redator, o jornalista Roberto Beltrão, vem, nesse tempo, pesquisando histórias além das de Freyre e coletando relatos assustadores nos bairros mais antigos do Recife. A página conta com lendas famosas da capital, com uma espécie de roteiro de visita aos lugares macabros da região e com histórias coletadas por Beltrão, além de um blog que conta com a participação dos leitores. O site foi premiado pela Fundaj, em 2004, e já virou até livro, intitulado Histórias medonhas d’O Recife Assombrado. (Bernardo Valença)
Ao rejeitar a tese americana de que o produtor era o responsável pelo resultado de uma película, os franceses da Cahiers du Cinéma, na década de 1950, passaram a defender que o diretor era o “dono” da obra – e alguns mais radicais, como François Truffaut, comparam o papel de um cineasta com o do escritor de um livro, esquecendo o caráter coletivo da produção fílmica. Em parte pela dificuldade de se conhecer as etapas do processo, a visão francesa ainda hoje é a dominante. Por isso, o principal mérito do Simply scripts (em inglês) é permitir o acesso a um dos elementos mais importantes de um filme, o roteiro, gratuita mente e em formato completo.
O Myspace é, primordialmente, um site de convivência (como o Orkut), mas já tem provado ser um ótimo instrumento de divulgação para bandas independentes. Essas bandas divulgam suas músicas na internet e, quando boas, são descobertas pelos novos “caça-talentos”, os internautas. Descomprometido com gravadoras e patrocínios, o que surge no site são trabalhos totalmente autorais e repletos de gratuidade artística. Essa liberdade toda faz até os artistas já consagrados se renderem à mania do site; deixando no mesmo patamar o artista da grande mídia e o garoto que gravou suas músicas no computador de casa. (BV)
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www.orecifeassombrado.com
myspace.com
www.simplyscripts.com
(Diogo Guedes)
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n BIOGRAFIA
A rotina dos artistas
POST DO MÊS – [Blog Intermezzo]
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Por que as pessoas lêem blogs ao invés de sites de notícias?
Truman Capote não conseguia pensar se não estivesse deitado num sofá ou numa cama. Ingmar Bergman, como diretor de teatro, não suportava atrasos: chegava às 10h no teatro, começava os ensaios às 10h30, às 12h45 ia almoçar, terminando suas atividades às 15h30, quando tirava o resto do dia para ler, ouvir música e escrever. Benjamin Franklin era ainda mais organizado, como mostra o esquema de suas atividades diárias (foto) exposto em sua autobiografia. Todas essas curiosidades sobre como escritores, artistas e pessoas interessantes organizam seus dias são retiradas do singelo Daily Routines, que coleta informações de biografias e matérias de jornais. (DG) nnn
http://dailyroutines.typepad.com
FAVORITO
Você já se fez essa pergunta? Os blogs teriam chegado a um patamar de qualidade de conteúdo maior do que o da grande imprensa? Seria a mudança geracional dos leitores? A tal web 2.0? Talvez. (...) Os sites noticiosos da grande imprensa não se adaptaram a mudança de comportamento que todos já estão carecas de saber: as pessoas não acessam mais; elas buscam. (...) Contudo, basta conversar com qualquer editor de redação online para ele atestar o fato de que a maior parte do tráfego do site advém do Google. (...) Diante dessa realidade, pergunto: ao realizar suas buscas, quantas vezes um site de jornal ou revista de grande circulação apareceu na primeira página de
resultados? Faça o teste. (...) As primeiras páginas do Google são praticamente domínio de blogs e de wikis. (...) A junção da tecnologia dos blogs, a ausência de tecnologia dos sites da grande imprensa e o novo comportamento dos leitores acaba retroalimentando o sistema. (...) Os sites jornalísticos – a despeito da crise do setor – são, cada vez mais, relegados às últimas páginas dos resultados de busca. Por isso, além do investimento em conteúdo de qualidade, relevante e exclusivo, é preciso também melhorar as plataformas de conteúdo.
PERFIL Andre de Abreu é jornalista e especialista em jornalismo multimídia pela PUC-SP. Atua como gerente de comunicação interna da TAM Linhas Aéreas, professor universitário e consultor. Além disso, é um dos autores do blog Intermezzo (www.imezzo.wordpress.com), ao lado de Daniela Bertocchi e Beth Saad.
BAIXE E OUÇA
Autor da série de tirinhas Macanudo, Liniers é considerado um dos nomes mais importantes da área na Argentina. Recentemente, o quadrinista publicou Macanudo 6 e decidiu desenhar à mão a capa de cada um dos 5 mil exemplares. O blog AutoLiniers publica, desde março de 2005, todas as tirinhas diárias do argentino feitas para o jornal La Nación. (DG)
Depois de uma bemsucedida turnê pelo Nordeste, a banda Macaco Bong agora se prepara para ir para além dos limites territoriais: já tem shows marcados para março em Toronto e em Austin, no Texas. O último CD do power trio é Artista igual a pedreiro, o melhor do ano para a revista Rolling Stone. Para quem quiser conferir o som, o disco está disponível para download gratuito no site do projeto Álbum Virtual. (DG)
www.autoliniers.blogspot.com
http://albumvirtual.trama.com.br
Liniers na internet
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CAPA
No centenário de nascimento de Dom Helder Camara, publicação de manuscritos inéditos revela ação do religioso para tornar a instituição “senhora e rica” em “servidora e pobre” Vandeck Santiago
A
entrada do papa João XXIII na Basílica de São Pedro, no Vaticano, naquele 4 de novembro de 1962, foi triunfal. Guardas em uniforme de gala o reverenciaram como num exercício de contorcionismo: ergueram a mão esquerda em continência, apoiaram o corpo na lança que seguravam com a mão direita e curvaram-se em direção ao joelho direito. O papa entrou sentado em um trono carregado nos ombros por quatro homens dotados dos músculos necessários para a tarefa. Na cabeça, uma vistosa tiara – um tipo de coroa – dava-lhe ar de realeza. Olhares de êxtase e admiração o acompanharam na igreja lotada de bispos e cardeais – estes, distinguindo-se pelos trajes de origem medieval, marcados por longas caudas de tecido que lustravam o chão a cada passo que davam. Uma cena que se repetia há séculos na Igreja Católica e que, para muitos, assim seria até o fim dos tempos. Um dos bispos presentes, porém, detestou o que viu e assistiu a tudo aquilo angustiado. Era um cearense de 43 anos, calvo (logo ficaria careca) e discreto, de quem o mundo nunca ouvira falar, mas cujo nome não tardaria a ocupar as manchetes da imprensa mundial. Chamava-se Dom Helder Camara.
SAGRADO
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Contra o excesso de pompa e a falta de participação popular S
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e a impressão que ele teve da cerimônia fosse publicamente revelada na época, não faltaria quem a considerasse uma heresia e motivo para censura oficial da Igreja. Estava-se então no período inicial de um Concílio (o chamado Vaticano II), espécie de congresso mundial da Igreja Católica, convocado para modernizar a prática e a doutrina da instituição. A celebração que angustiou Dom Helder ocorreu em comemoração ao quarto aniversário de coroação do papa. Em carta escrita horas depois, de madrugada, e endereçada a uma equipe dos seus colaboradores mais próximos, na arquidiocese do Rio de Janeiro, onde era arcebispo auxiliar, ele revelou suas impressões. Primeiro, lamentou “o excesso de pompa” e a ausência completa de povo (a celebração fora fechada): “Aperta-me o coração ver o povo
(inclusive peregrinos que vieram de longe) colocado fora da Praça de São Pedro”. Depois, fulminou com a palavra exata a quase acrobacia dos guardas que saudaram o papa: “Ridículos”. Em seguida, criticou o “aparato renascentista”, representado pela tiara e o trono do papa, e fez reparos às caudas dos trajes dos cardeais, arrastando-se “pela laje da Basílica”. Destacou, em tom negativo, o desfile de alguns religiosos “exibindo comendas”. E arrematou revelando que sonhava “com o dia em que o Vigário de Cristo possa ser livre de um fausto que faz o gáudio dos grã-finos e nobres, e escandaliza os pequenos e os sem-fé”. Em outra carta, pouco mais de um mês depois, tornaria ao assunto, usando uma contundência ainda maior. “João XXIII me parece um pássaro numa gaiola de ouro”, disse, acrescentando: “Dia virá em que o O luxo e a ostentação do Vaticano foram criticados por Dom Helder Camara
Pai livrará o Vigário de Cristo do luxo do Vaticano. Durante o bombardeio de Roma cheguei a pensar que Deus ia agir, deixando que uma bomba liquidasse o que de outro modo parecia impossível de largar”. Quando parece que uma bomba no Vaticano era o que de mais contundente se poderia ouvir de um bispo, ele completa de forma ainda mais vigorosa, recorrendo ao nome de célebre milionário americano para mostrar as relações do Vaticano com a riqueza: “Não daria certo. Rockfeller reconstruiria um Vaticano ainda mais amplo e luxuoso. A reforma tem que vir de dentro”. Nos quatro anos do Vaticano II, de 1962 a 1965, Dom Helder escreveu 297 cartas para sua equipe. Sete se perderam; as 290 que restaram (das quais retiramos os trechos acima transcritos) foram guardadas durante décadas e agora, pela primeira vez no Brasil, serão todas publicadas em livro pela Cepe (Companhia Editora de Pernambuco), com lançamento marcado para março. Sairão em três tomos, com o título Circulares conciliares. No período do Concílio, ele foi promovido a arcebispo de Olinda e Recife, função que assumiu em 12 de abril de 1964. As sessões (quatro) do Concílio realizavam-se no Vaticano e duravam semanas. Quando acabavam as sessões, os bispos retornavam às suas dioceses. Em Olinda e no Recife, Dom Helder manteve o hábito de fazer vigília durante a madrugada e, nesse horário, escrever cartas para seus colaboradores mais próximos – agora os do Rio de Janeiro e os de Pernambuco. As 285 cartas redigidas na arquidiocese, de 11 de abril de 1964 até setembro de 1965, compõem outros
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O religioso, no dia em que foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife, em 1964
três tomos que também serão lançados em março, com o título Circulares interconciliares. Ao todo são seis tomos, divididos em dois volumes. Um material até então acessado apenas por pesquisadores e que agora estará disponível para o público brasileiro. As cartas revelam a profundidade do engajamento do arcebispo na causa dos pobres, mostram como durante toda a vida ele conspirou dentro da Igreja em favor disso e faz com que, após sua leitura, nunca mais consigamos olhar da mesma forma para os sapatos vermelhos do papa Bento XVI. Além de “Profeta dos pobres” e “Dom da paz”, termos repetidos um sem-número de vezes para definilo, ele também foi – é o que se pode constatar em detalhes, na leitura das cartas – um hábil conspirador. Mestre na atuação dos bastidores, na conquista de aliados para suas teses, na organização de grupos para defendê-las e na articulação
pela disputa do poder nos organismos como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) – criada graças a suas articulações, em 1952, e da qual foi secretáriogeral até 1964. Com tais habilidades tornouse o mais influente bispo brasileiro no Concílio Vaticano II e contribuiu decisivamente para que a Igreja Católica na América Latina, nos anos seguintes, fizesse a “opção preferencial pelos pobres”. Segundo o teólogo José Comblin, que conviveu com o arcebispo, “ele era um articulador de primeira grandeza”. Tinha noção de que, às vezes, sua influência seria maior se não se mostrasse. “Muitas vezes os próprios colegas ignoravam donde vinham as propostas que estavam votando”, conta Comblin. Dom Helder fazia um tipo raro de conspiração – aquela do bem. Seus planos – compartilhados por muitos dentro da Igreja, em todo o mundo – visavam fazer com que
a instituição se engajasse na causa dos pobres. Que fosse “mais servidora e pobre”, e menos “senhora e rica”. Para isso, defendia inclusive o fim do Vaticano e do banco do Vaticano. Uma das propostas que foi motivo de suas articulações era explosiva, atingindo diretamente a estrutura de poder que se mantinha há séculos. Consistia na descentralização do poder decisório na Igreja, por meio da criação de uma espécie de “colegiado de bispos”. Na prática, a medida enfraqueceria o poder da conservadora Cúria Romana e – segundo opinião dos contrários à ideia – reduziria o próprio poder do papa, que ficaria como um rei num regime parlamentarista. Uma revolução por dentro, mais eficaz do que um bombardeio, como acreditava ele. Eram ideias que Dom Helder defendia em suas palestras e encontros e que, não à toa, valeram-lhe já naquela época, e da parte de setores da Igreja, o rótulo de “bispo comunista”. O colegiado não foi aprovado, mas Paulo VI, o sucessor de João XXIII, criaria algo similar (embora com muito menos poder): o Sínodo dos Bispos. Tímido por temperamento, mas de uma audácia sem limites quando defendia seus pontos de vista, Dom Helder chegou a sugerir diretamente ao papa João XXIII, seu amigo, que deixasse o Vaticano e fosse morar numa pequena casa em Roma. Nunca um papa fez isso – mas Dom Helder, que vivia cobrando dos outros o exemplo, fez. Deixou o Palácio da Arquidiocese de Olinda e Recife e foi morar numa casa humilde, nos fundos da Igreja das Fronteiras, nos arredores do centro do Recife. Vendeu o automóvel que ficava à disposição do arcebispo e passou a só andar de carona ou de ônibus – uma cena que talvez nunca mais vejamos ser protagonizada por uma autoridade católica. O ponto alto da conspiração dele para mudar a Igreja aconteceu FEV 2009 • Continente x
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João XXIII e Paulo VI apoiaram o trabalho do arcebispo de Olinda e Recife, e eram homens a quem ele admirava e reverenciava
durante o Vaticano II. Nas cartas, seguidas vezes ele refere-se ao que chamava de “sagrado complot” (escreve complô em francês). “Vocês precisam conhecer o Concílio. Divino-humano. Conduzido por Deus, realizado por homens”, afirma em um dos trechos. “Combinamos um plano completo”, confidencia em outra carta, “para levar, nos três anos do Concílio, a Santa Igreja aos perdidos caminhos da pobreza”. Seu trabalho no Concílio Vaticano II teve tal profundidade que o jornalista americano Rocco Caporale, em tese de doutorado, classificou-o como um dos 18 nomes mais influentes do Concílio, entre mais de 2.500 participantes: “(...) Helder Camara, pequeno homem afável e sorridente, que surpreende os observadores não preparados pela sua simplicidade, que esconde um dos mais importantes organizadores de todo o episcopado católico”. O centro da sua atuação ocorreu na Domus Mariae, uma espaçosa casa em Roma onde a delegação brasileira de 222 bispos ficou hospedada, juntamente com colegas da Hungria e de alguns países da África. Lá, Dom Helder – que se refe-
ria ao espaço como “o Ecumênico” – organizou reuniões, palestras e encontros. Diferentemente da quase totalidade dos outros participantes do Concílio, ele chegou para as sessões com um projeto pronto. “É de autoria dele o primeiro projeto concreto de atuação do Concílio, enviado durante o mês de janeiro de 1963 a bispos do mundo inteiro, intitulado Troca de idéias no episcopado”, informa o professor Luiz Carlos Luz Marques, que fez doutorado em Bolonha (Itália) sobre a correspondência do arcebispo e é o responsável pela coordenação do volume Circulares conciliares. No Concílio, Dom Helder ajudou a criar o grupo “Igreja dos Pobres”, que reuniu integrantes de todo o mundo. No final, eles firmaram o que ficou conhecido como “Pacto das Catacumbas” (porque realizado numa das catacumbas de Roma), comprometendo-se a dar prioridade à pobreza, inclusive com o exemplo pessoal – não possuir patrimônio nem dinheiro em banco. Cerca de 500 bispos assinaram o pacto e o documento foi enviado ao papa. “Como seria bom”, escreve Dom
Helder em determinado momento, “que os sonhos sobre pobreza na Igreja (a começar pelo papa e pelos bispos) passasse do complot de um pequeno grupo para resolução do colégio episcopal”. Dom Helder também foi um dos estimuladores do grupo de peritos e teólogos Opus Angeli (Obra do Anjo), que municiava os progressistas com estudos e propostas. Entre os participantes estava o alemão Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, que na época alinhava-se com os progressistas. Dom Helder não chega a mencionar o nome dele, mas inevitavelmente os dois devem ter-se cruzado em meio ao “sagrado complot”, confirma o professor Luiz Carlos Luz Marques. As articulações na Domus Mariae, ou no “Ecumênico”, ocorriam entre bispos. “Faltava aos nossos planos um cardeal de prestígio, com acesso ao papa na hora em que desejar”, escreveu Dom Helder, em 1962, referindo-se ao cardeal Suenens (de Bruxelas, Bélgica), que era homem de confiança do papa e um dos quatro moderadores (organizadores) do Concílio. Dom Helder e o cardeal tiveram uma admiração
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mútua. A ponto de Suenens dizer que ambos eram “grandes tímidos de uma audácia sem limites quando uma convicção nos impele”. A partir dali, todas as decisões tomadas na Domus Mariae, portanto, ganhavam um canal de transmissão direto com o papa. Havia quatro grupos informais de bispos em articulação no Concílio, conservadores e progressistas. Um deles era o dos brasileiros na Domus Mariae. O papa João XXIII, da linha progressista, morreu em 1963 e foi sucedido por Paulo VI, que encerrou o Concílio. Até os últimos instantes, Dom Helder permaneceu atuando, como mostra carta de 11 de setembro de 1965: “Organizo, com D. Eugênio (Sales, na época na arquidiocese de Salvador, BA), um plano para obter do Santo Padre que diga aos bispos da América Latina, em linguagem direta e pessoal (sem os lugarescomuns, em tom solene e piedoso, que os assessores costumam preparar, quando o papa deve falar às diversas hierarquias), que: (...) os bispos, sem perda de tempo se desfaçam das terras da Igreja, doandoas, com inteligência, aos pobres; coloquem-se, sem exceção, aberta e decididamente, ao lado das reformas de estrutura”. Tanto João XXIII quanto Paulo VI foram papas que apoiaram o trabalho do arcebispo de Olinda e Recife, e eram homens a quem ele admirava e reverenciava. O que não o impedia de lhes fazer reparos e até o de querer “reformar” o próprio papa, como se vê em carta onde, referindo-se a Paulo VI, escreve: “A quem amamos tanto, mas cuja timidez devemos abrandar e cuja formação diplomática temos de ajudá-lo a superar”. Sabia Dom Helder que a liberdade de ação de um e outro era limitada pela corte que os cercava – a burocrática Cúria Romana, conservadora por natureza e cujos pode-
O que foi o Vaticano II Concílio é o evento mais importante da Igreja Católica. O Vaticano II foi o 21º da história. Entre as modificações que ele trouxe estão a abertura para a participação dos leigos (pessoas que não são do clero), inclusive na celebração, o que antes não era permitido; acabou com a missa em latim e em que o padre celebrava de costas para o público; pôs fim à obrigatoriedade dos padres usarem batinas e admi-
tiu que é possível atingir a salvação também por outras religiões além da católica. Não teve a definição clara de um posicionamento em favor dos pobres, como queria a ala progressista do clero, mas criou um ambiente propício para isso, sobretudo na América Latina. Das articulações do Vaticano II originou-se, dois anos depois, a encíclica Populorum Progressio (O Progresso dos Povos), do papa Paulo VI, que foi a primeira na história voltada exclusivamente para os pobres e para o desenvolvimento econômico e social. Mais tarde, nas conferências episcopais latino-americanas de Medellín (1968) e Puebla (1979), consolidou-se a chamada “opção preferencial pelos pobres”. Dom Helder foi um dos membros mais influentes no Concílio Vaticano II
res o arcebispo sonhava ver reduzidos. “Não acreditem que Paulo VI não se sinta profundamente mal ao sentar-se no trono e ver um monsenhor ajoelhado, colocando-lhe um travesseiro debaixo dos pés enquanto dois outros acomodam-lhe a capa, como se ajeitassem uma velha rainha”, avalia em carta de novembro de 1963. “Sei ao contrário de ciência certa que ele anseia por libertar-se de tanto ridículo.” Nas opiniões manifestadas em público sobre a disputa de poder dentro da Igreja, bispos e cardeais costumam utilizar palavras diplomáticas, evitando até a classificação de “conservadores” e “progressistas”. Nas cartas, porém, Dom Helder fala
sobre isso com todas as letras, em trechos que demonstram a noção exata que tinha do confronto entre as duas alas e do que significava cada vitória ou derrota. Enquanto ocorria o Vaticano II, por exemplo, em 1964, houve a eleição para a CNBB, sob controle de nomes ligados a Dom Helder desde a criação da entidade, 12 anos antes. Uma articulação dos conservadores derrotou os nomes apresentados pelo arcebispo. Eis o que ele escreveu em 28 de novembro de 1964: “Mas não adianta querer negar que houve uma clara vitória ideológica. Venceu a reação (...). Aflige-me também a vitória do conservadorismo”. Em eleição no ano seguinte, para o estratégico cargo de secretário FEV 2009 • Continente x
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nacional do Ministério Sacerdotal, ele indicou o nome de Dom José Maria Pires; ganhou o adversário, Dom Vicente Zioni. A opinião de Dom Helder, em 11 de novembro de 1965: “Fenômeno estranho! (...) como explicar que, após quatro anos de Concílio, os bispos do Brasil elejam por maioria absoluta, para o secretariado nacional do Ministério Sacerdotal, um irmão nosso que não faz segredo de sua posição reacionária?”. E analisando o impacto daquilo perante o papa: “Paulo VI há de sentir que meu prestígio, em casa, anda a zero...” O Vaticano II foi o início de uma decisiva guinada da Igreja rumo às
ideias defendidas pelos progressistas. Foi encerrado com significativos gestos do papa Paulo VI. Em uma celebração na Basílica de São Pedro, ele desfez-se da tiara, pondo-a no altar das oferendas, para que fosse vendida e o dinheiro arrecadado encaminhado aos pobres da África. Depois, no próprio encerramento do Concílio, apareceu já sem a tiara, sem o trono e sem o anel que usava (“riquíssimo”, na avaliação de Dom Helder). A cena descrita no início dessa reportagem nunca mais se repetiu. Já a opção pelos pobres iria consolidar-se três anos depois, em Medellín (Colômbia), e, em 1979,
em Puebla (México), na conferência episcopal latino-americana. Em Puebla, quem estava lá, novamente envolvido nas articulações para levar o clero “aos perdidos caminhos da pobreza”? Sim, ele mesmo: Dom Helder. Em trabalho publicado em 1997, Frei Betto conta como foi: “Estivemos juntos em Puebla (...) eu, do lado de fora, em companhia de duas dezenas de teólogos da libertação; ele, do lado de dentro, repassando nossos subsídios aos bispos e, deles, às comissões e aos textos”. Desempenhando um papel que o próprio Frei Betto definiu assim: “Como um conspirador, alguém capaz de conspirar a favor do bem”.
Em 1964, os militares tomam o poder e Dom Helder assume a arquidiocese do Recife e Olinda
Os militares estavam chegando N
ão se passaram nem 48 horas de sua posse como arcebispo de Olinda e Recife e Dom Helder logo viu o que estava por vir. Quatro soldados armados de metralhadora invadiram o palácio da arquidiocese para prender o francês Pierre Gervaiseau, que estava acompanhado de Violeta Arraes (irmã de Miguel Arraes) e Maria Antonia McDowell. Os três haviam entrado na arquidiocese fugindo à perseguição dos soldados. O fato não saiu nos jornais; é descrito na carta que o arcebispo escre-
veu em 14 de abril de 1964, incluída no I Tomo de Circulares interconciliares. Pierre estava sendo procurado como “espião francês”, ligado ao Partido Comunista Francês, coisa que ele nunca fora – trabalhava com um padre francês, no Recife. “Tentei fazer ver aos rapazes a gravidade do que faziam: invadir de metralhadora a casa do arcebispo...”, conta Dom Helder, que em seguida ligou para o homem forte dos militares no Nordeste, o general Justino Alves Bastos. Este se disse surpreso
e mandou o coronel Antonio Bandeira ir até a casa do arcebispo para fazer sair os soldados e evitar a prisão das três pessoas que se refugiaram lá. Foi o primeiro problema do arcebispo com os militares; outros, mais tensos e sem final feliz, ocorreriam mais tarde. A postura de Dom Helder ficara clara desde o seu discurso de posse – uma histórica peça de coragem num momento em que mandatos eram cassados e as cadeias viviam abarrotadas de presos políticos.
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“Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, antirreformistas ou reformistas, antirrevolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa-fé ou de má-fé”, afirmou ele. “Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos, absolutamente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno.” Falou também do seu tema preferido: “(...) cuidaremos dos pobres, velando sobretudo pela pobreza envergonhada e tentando evitar que da pobreza se resvale para a miséria”. O pronunciamento saiu nos jornais; o que não saiu foram os preparativos que Dom Helder fez para a sua elaboração e divulgação, mais um exemplo de como ele agia nos bastidores. “O Comando Supremo da Revolução pode achar ruim”, conta em carta na véspera da posse. “Hoje, se Deus quiser, e sobretudo amanhã, espero articular-me com os bispos do Nordeste. Contra um é fácil agir; se a Região inteira estiver unida, já dá mais trabalho”. O “Comando Supremo” achou ruim, mas não reclamou naquele momento. Reclamaria muito depois, à medida que o arcebispo começou a agir e a falar. Não só o Comando Supremo; igualmente intelectuais favoráveis ao regime militar, como o dramaturgo Nelson Rodrigues e o sociólogo Gilberto Freyre. Em uma de suas tiradas mais célebres, Nelson dizia que Dom Helder só olhava para o céu para saber se ia chover. Era o tom costumeiro das críticas ao arcebispo, que o acusavam de “ser mais político que religioso”. Já as afirmações de Freyre tinham menos graça, mas eram igualmente difamatórias.
Padre Henrique foi torturado e assassinado no Recife, em 1969, em crime não elucidado
Em artigo para O Estado de S. Paulo de 23 de agosto de 1966, ele o compara ao nazista Goebbels, “até pela semelhança física”. Um ano antes, em solenidade pública, Freyre lhe fizera rasgados elogios, chamandoo de “desbravador e pioneiro”. Dom Helder, porém, não se enganou sobre o sociólogo pernambucano, conforme se vê na carta que escreveu em seguida (8 de maio de 1965): “Como seria bom que ele, abandonando o reacionarismo terrível de que deu provas – e que fez mal à tanta gente – passasse a atitudes mais largas... Claro que não perdi tempo. Confiando na Graça Divina, escolhi os temas que me pareciam mais capazes de
ajudá-lo a desfazer-se de equívocos, preconceitos, posições odientas e mesquinhas”. As cartas mostram a escalada de pressão dos militares sobre ele. Ora com um general afirmando que o Exército não gostara das menções que fizera, num programa de televisão, à carestia do feijão e da carne, considerada “antirrevolucionária e subversiva”; ora com outro militar convidando-o para celebrar a missa em comemoração à “Revolução de 1964” e dizendo-lhe que sempre estava viajando nessas ocasiões (ele nunca aceitou fazer a celebração). Os três tomos de Circulares interconciliares trazem cartas apenas até 1965 (as que o arcebispo fez depois disso ainda estão sendo organizadas). Não abrangem o período mais agudo do regime, quando a imprensa foi proibida de fazer qualquer menção ao nome dele (contra ou a favor) e em que um dos seus auxiliares mais próximos, o padre Henrique Pereira Neto, foi torturado e assassinado no Recife, em 1969, em crime nunca elucidado. FEV 2009 • Continente x
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titutas o procurou no palácio episcopal – certamente nunca, na história do arcebispado de Olinda e do Recife, um arcebispo sentou-se no palácio para tratar com prostitutas de questões específicas da profissão delas. E, mais inusitado do que o encontro, era o motivo dele: as moças foram queixar-se de que a polícia estava querendo interferir na “tabela” que elas cobravam para fazer sexo. Sem carro, Dom Helder costumava andar a pé, porém mal dava os primeiros passos e aparecia alguém para dar-lhe um “bigu” (carona), como se dizia na época. “Bigu” era também o nome de quem pegava a carona. Espirituoso, Dom Helder O arcebispo costumava receber escreveu o Decálogo do bigu, que em sua casa qualquer entre seus itens determinava “bigu pessoa que lhe batesse à porta não arrasta outros bigus; bigu aceita o programa de rádio que estiver sendo ouvido e bigu não muda itinerário”. Nos ônibus, sempre que ia pagar a passagem um dos passageiros (“normalmente os mais pobres”, conta ele) se adiantava e pagava por ele. Houve casos em que o motorista do ônibus mudou o itinerário para deixá-lo mais próximo do destino. honorário”. A outra, de um louco ra assim: você batia na acanhaNo falar e no agir, Dom Helder fugido do Hospício da Tamarineida porta de madeira da casa nos não era um bispo como os outros. ra: “Quando o Sr. sobrar aqui fora, fundos da Igreja das Fronteiras e ele Ele criou um novo modelo de bispo, quando os verdadeiros doidos não mesmo vinha abrir. Na maioria das rompendo com todos os padrões quiserem saber do Sr., temos um vezes, quem batia eram pobres em existentes. Está aí uma das razões cantinho guardado na Tamarineira busca de auxílio; em determinada de, apesar de ser um dos principais para o senhor”. época, jornalistas em busca de notínomes da Igreja mundial no século Dom Helder atendia a todos, cias. Mas havia casos também, para 20, nunca ter sido promovido a carsem precisar marcar audiência. utilizar expressão do próprio Dom deal – numa analogia futebolística, Certa vez uma comissão de prosHelder, de “visitas estranhas e inesalgo assim tão absurdo como peradas”, como as que narra se Kaká nunca houvesse sido em carta de 10 de janeiro de convocado para a seleção 1965, nos tomos Circulares brasileira. interconciliares. Denúncias contra ele cheA primeira, de um bêbagavam ao Vaticano enviadas do que mal se sustentava em por setores conservadores pé e que queria porque queda Igreja. Em dezembro de ria morar com ele. “Ouvi o 1964, recebeu um comuniSr. falar sobre bêbados com cado do Santo Ofício pedintanta compreensão que só do esclarecimentos sobre tendo bebido muito”, disse algumas denúncias, entre as o homem, acrescentando ao quais as de que ele tinha ido a partir: “O Sr. é um bêbado Dom Helder abriu mão do carro oficial e andava de "bigu"
Por que ele nunca chegou a cardeal
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uma igreja presbiteriana, onde fizera elogios aos protestantes, e “escandalizado os fiéis” em um programa de TV, ao defender “a honestidade dos bailes entre jovens”, chegando ao ponto de permitir a realização de um desses bailes, à noite, no próprio palácio episcopal. Dom Helder explicou que tinha ido a uma igreja anglicana durante a Semana de Preces pela união da família cristã e de lá seguido “um programa devidamente conhecido e aprovado”. Sobre a festa no palácio episcopal , per-
guntava: “Onde o crime de um pai se alegrar com a alegria dos filhos?”. Ao final, lastimava que o Santo Ofício “gaste tempo em examinar acusações tão ingênuas” e não encontrasse meios de “inteirar-se de todo um trabalho positivo que Deus permite se venha realizando na Arquidiocese de Olinda e Recife, trabalho que, naturalmente, escapa aos acusadores anônimos”. Segundo o professor e ex-padre Zildo Rocha, organizador do volume Circulares interconciliares,
o principal motivo de ele não ter sido cardeal foram as resistências internas na Igreja, de “setores conservadores que consideravam e consideram as reformas como um grande perigo para a Igreja e para a religião”. Mas pesaram também as pressões do governo militar brasileiro: “Fazer de Dom Helder um cardeal seria, sem dúvida, acirrar os conflitos existentes com o governo militar, coisa que, em princípio, não agrada muito à política vaticana”, pontua.
O início da publicação das Obras completas O
Sua equipe guardou 2.122 cartas, escritas entre 1962 e 1982. Nos seis tomos que a Cepe vai lançar estão transcritas as cartas escritas até 1965. As restantes estão sendo organizadas para publicação posterior. Todos os manuscritos encontramse hoje no Centro de Documentação Helder Câmara (CEDOHC), no Recife, que deve disponibilizar em breve a digitalização deles, em um site a ser criado. Desde a época de padre em Fortaleza, Dom Helder tinha o hábito de passar cerca de três horas acordado durante a madrugada, em “vigília”. Era o momento em que, segun-
Fotos: Rafael Gomes
lançamento de Circulares conciliares e Circulares interconciliares acontecerá em março. Parte da obra já estava concluída desde 2004. Os livros nascem de uma iniciativa do Instituto Dom Helder Camara, com o apoio do governo de Pernambuco e da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). O termo “circulares” era utilizado por Dom Helder para as cartas que enviava a integrantes de sua equipe do Rio de Janeiro e do Recife. “Conciliares” porque alusivas ao Concílio Vaticano II, de que ele participou, e “interconciliares” porque redigidas entre as sessões do Concílio.
Zildo Rocha (E) e Luiz Carlos Luz Marques foram os organizadores das cartas FEV 2009 • Continente x
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Fatos marcantes
entrava por um ouvido e saía pelo outro: Dom Helder sempre adorou “se misturar”.
7 de fevereiro de 1909 – Nasce em Fortaleza (CE), numa família numerosa: teve 12 irmãos. A mãe era professora primária e o pai, guarda-livros. Uma série de eventos vai marcar a celebração do centenário do nascimento dele, no Recife, durante todo o ano de 2009. 1931 – É ordenado padre, no Ceará. Apóia o integralismo, grupo político de direita, simpático ao nazismo. Perceberia depois que não tinha nada a ver com ideário integralista. Justificaria mais tarde que como na época as duas forças que pareciam querer mudar o Brasil eram o comunismo e o integralismo, fizera a opção por esta. O passado integralista seria utilizado contra ele por seus adversários, no futuro, como o sociólogo Gilberto Freyre, que o comparava ao nazista Goebbels, dizendo que os dois se pareciam até fisicamente. 1934 – Em um manuscrito inédito, aos 25 anos, manifesta preocupação com o que o esperava no futuro: “Passarei pela vida sem deixar nenhum sinal mais forte, marca nenhuma duradoura e inesquecível. Não escreverei a Suma teológica nem a Divina comédia (...). Pregarei alguns sermões mais ou menos louvados. E morrerei. No meu enterro alguém comentará que eu não produzi o que podia produzir”. 1936-1964 – Mora no Rio de Janeiro, onde foi bispo e arcebispo auxiliar. Sua “opção pela pobreza” foi feita já nesse período. Era conhecido como “arcebispo das favelas”. Seu superior, Dom Jaime Câmara, recriminava-o pelo contato aberto com o povo: “Você não pode fazer isso. Um bispo da Igreja é um príncipe, e um príncipe não pode se misturar”. A reprimenda
1950 – Escreve documento que se tornou um marco para o estudo do engajamento de Igreja nas questões do campo, intitulado Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma agrária. Utilizaria o mesmo modelo da frase nos anos 1960, ao dizer: “As massas deste continente abrirão um dia os olhos, conosco, sem nós ou contra nós... Ai do cristianismo no dia em que as massas tiverem a impressão de terem sido abandonadas pela Igreja, tornada cúmplice dos ricos e poderosos”. Fotos: CEDOHC/Divulgação
do dizia, encontrava sua unidade com Deus. Nesses horários ele escrevia cartas para os colaboradores, poemas e discursos (quando tinha algum evento programado). Os livros a serem lançados no próximo mês são o início da publicação das Obras completas de Dom Helder, ideia sugerida em 1981 pelo padre José Comblin, que tomou como exemplo o que a Igreja em El Salvador fizera com os escritos e homilias de Dom Oscar Romero (assassinado em 1980), publicados em 10 volumes. “Apesar de não ser conhecido prioritariamente como escritor”, explica o professor Zildo Rocha, que coordenou os trabalhos de edição do Circulares interconciliares, “Dom Helder deixou uma obra escrita realmente gigantesca, em três gêneros literários principais: as cartas que começam agora a ser publicadas; uma grande quantidade de discursos e milhares de pequenos poemas-meditação”. O coordenador do volume Circulares conciliares foi o professor Luiz Carlos Luz Marques, que fez da correspondência do arcebispo tema do seu doutorado em Bolonha, na Itália. Dos três tomos que compõem este volume, o primeiro saíra em 2004 pela Editora da UFPE; os outros dois são inéditos no Brasil. Para ele, o arcebispo foi uma “síntese rara e feliz do místico e do homem de ação”, que “contemplava e escrevia durante as madrugadas e agia pela manhã, à tarde e à noite”. Os livros trazem textos introdutórios que valem por uma edição à parte, situando o leitor na época em que as cartas foram escritas e no pensamento/trajetória de Dom Helder. São assinados por Zildo Rocha, Luiz Carlos Luz Marques, Eduardo Hoornaert, Frei Aloísio Fragoso, padre José Comblin e padre José Oscar Beozzo.
1952 – Funda a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), da qual foi secretário-geral durante 12 anos consecutivos. 1962-1965 – Foi o bispo brasileiro mais influente no Concílio Vaticano II, que abriu o caminho para a renovação da Igreja em favor dos pobres: “Se eu não me engano, nós, os homens de Igreja, deveríamos realizar dentro da Igreja as mudanças que exigimos da sociedade”. 12 de abril de 1964 – Toma posse como arcebispo de Olinda e Recife. Define-se em seu discurso como “o bispo de todos”. E alerta: “Ninguém se escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas como indignas
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Para conhecer Dom Helder
e pecadoras (...). Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas”. Essas “criaturas” estavam em sua maioria presas, cassadas ou sendo perseguidas. A partir de 1964 – Torna a Arquidiocese de Olinda e Recife o centro da igreja progressista no Brasil. “Eu não gosto muito da palavra ‘não-violência’. Eu prefiro mil vezes a expressão de Roger Schurtz: ‘A violência dos pacíficos’ ”, afirmava ele. Foi perseguido e censurado. Teve auxiliares presos e torturados. Um deles, padre Henrique Pereira Neto (1940-1969), foi torturado e morto. “Quando eu dou de comer aos pobres, me chamam de santo. Quando eu pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista”, dizia o arcebispo, numa de suas frases mais conhecidas. “Dom Helder é para a Igreja o que Paulo Freire representa para a educação e os movimentos sociais”, afirma Frei Betto. “Sem Dom Helder, talvez não houvesse comunidades eclesiais de base e pastorais sociais, campanha da fraternidade e grito dos excluídos.” 1970 – Em ato realizado em Paris, denuncia a prática da tortura pelo regime militar do Brasil.
Livros Circulares conciliares, Luiz Carlos Luz Marques (org.), Cepe (2009) Circulares interconciliares, Zildo Rocha (org.), Cepe (2009) Dom Helder Camara – O profeta da paz, Nelson Pilleti e Walter Praxedes, Editora Contexto (SP), 2008 de bispos conservadores na América Latina – como aconteceria na Arquidiocese de Olinda e Recife, cinco anos depois da visita papal. 1985 – Aposenta-se ao chegar à idadelimite para a função, 75 anos. Fora indicado três vezes para o Prêmio Nobel da Paz e recebera mais de 40 doutorados honoris causa. “Ele alimentava em nós o desejo de transformação do mundo, a idéia de que outro mundo era possível”, diz frei Aloísio Fragoso, do Convento dos Franciscanos, em Olinda. “A grande militância dele não foi para a Igreja voltada para a sacristia e os altares, mas para o mundo, para os problemas humanos do mundo”, destaca o ex-padre de Casa Amarela, Reginaldo Veloso. 15 de julho de 1985 – Posse de Dom José Cardoso Sobrinho na Arquidiocese de Olinda e Recife. Segue-se uma ação que na prática resultaria no desmonte do trabalho pastoral empreendido por Dom Helder.
1980 – O papa João Paulo II visita o Recife e chama Dom Helder de “irmão dos pobres, meu irmão”. Na gestão de João Paulo II tem início uma guinada conservadora na Igreja, marcada entre outras coisas pela nomeação
27 de agosto de 1999 – Dom Helder Camara morre em casa, de parada cardíaca, aos 90 anos. Estava errado o seu pensamento sobre o que aconteceria em seu enterro. Todos nós sabemos que produziu tudo o que pôde produzir.
Dom Helder – O artesão da paz, Raimundo Caramuru Barros e Lauro de Oliveira (Org.), Senado Federal (DF), 2000 Helder, o dom, Zildo Rocha (Org.), Vozes (RJ), 1999 Dom Helder, pastor e profeta, Pe. José Comblin, Paulinas (SP), 1983 Os caminhos de Dom Helder: Perseguições e censura (19641980), Marcos Cirano, Ed. Guararapes (PE), 1983 Dom Helder – O bispo da esperança, Marcos de Castro, Edições Graal (RJ), 1978 Exposição Fotográfica Dom Helder Camara – Memória e profecia no seu centenário (2009), em exibição no Teatro João Antônio, da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro; até o final do ano estará em Pernambuco. Disponível na internet no endereço www.cesep. org.br, do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (SP) Filme O santo rebelde, documentário dirigido por Érika Bauer (2006) FEV 2009 • Continente x
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CINEMA
Todos os filmes do presidente Enquanto o Brasil coleciona tímida filmografia tendo os chefes da nação como personagens, nos EUA o assunto chega a ser um subgênero com extensa lista de produções Rodrigo Carreiro
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e quantos filmes que tenham como personagem importante o presidente do Brasil você consegue lembrar? Não adianta puxar muito pela memória. Existem poucos trabalhos audiovisuais com essas características no nosso país, e nenhum deles é um longa-metragem de ficção – temos alguns documentários e até minisséries de televisão, mas não filmes feitos para a tela grande. Neste departamento, nosso primeiro título do gênero será mesmo a superprodução Lula – O filho do Brasil, que o diretor Fábio Barreto está filmando em Garanhuns (PE) e São Bernardo do Campo (SP), e deve lançar ainda em 2009. No entanto, se o leitor trocar de nação na hora de fazer a pergunta – o Brasil pelos Estados Unidos – vai obter uma resposta muito diferente. O maior banco de dados sobre cinema disponível, o Internet Movie Database (IMDb), registra 654 filmes que possuem um presidente norte-americano como per-
sonagem importante. A figura do dirigente máximo da nação sempre esteve rondando o imaginário de Hollywood. Basta lembrar que o primeiro grande clássico criado nos EUA, O nascimento de uma nação (1915), de D.W. Griffith, traz o ator Joseph Henabery interpretando Abraham Lincoln. O 16º presidente dos Estados Unidos também é o mandatário da nação que mais apareceu na tela grande. O IMDb registra 200 trabalhos (entre filmes de ficção, episódios de séries de TV e documentários) que contam com a presença de Lincoln, sendo 47 deles como protagonista. A lista vai do já citado filme de Griffith até a cinebiografia Lincoln, que tem estréia marcada para 2010, com Steven Spielberg na direção e o irlandês Liam Neeson no papel principal. Achou estranho? Pois saiba que até o ex-astro de luta livre Hulk Hogan (que fez um telefilme em 2006) e o multipremiado Tom Hanks (num episódio de série em 2003) já interpretaram Lincoln.
Os bastidores da eleição de Lula em 2002 estão em Entreatos, de João Moreira Salles
Outro ex-presidente norteamericano com generoso espaço das telas de cinema é Richard Nixon, que ocupou a Casa Branca entre 1968 e 1974, tendo sido o primeiro presidente do país a renunciar, após o escândalo político conhecido como Watergate. O escândalo em si, aliás, rendeu pelo menos três longas-metragens: Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula; Nixon (1995), de Oliver Stone; e Frost/ Nixon (2008), de Ron Howard. O primeiro reconstitui a investigação jornalística que resultou na renúncia; o segundo documenta a trajetória pessoal do presidente; e o último salta três anos no tempo para mostrar os bastidores da primeira entrevista concedida pelo político após a renúncia. Cinebiografias de presidentes, como a de Lula, são tão populares nos EUA que constituem uma espécie de subgênero. O diretor Oliver Stone, sozinho, já dirigiu três longasmetragens com essa característica, todos polêmicos e de grande reper-
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Imagens: Divulgação
Em sentido horário, Martin Sheen, Josh Brolin, Anthony Hopkins e Dennis Haysbert, que representam presidentes fictícios em 24 horas e West Wing e protagonizam as biografias W e Nixon
cussão: JFK – A pergunta que não quer calar (1991), sobre o misterioso assassinato de John Kennedy; o já citado Nixon (1995), que humaniza a figura soturna com Anthony Hopkins no papel principal; e W (2008), que documenta a transformação de George W. Bush, de executivo cheio de problemas com bebida a presidente odiado pelo mundo inteiro. Nos filmes de ficção, a figura do presidente dos Estados Unidos passou a ser usada a partir da queda da censura cinematográfica, no princípio dos anos 1960. Dave – Presidente por um dia (1993), por exemplo, é uma comédia sobre um sósia do político que precisa assumir de verdade o Salão Oval. Meu querido presidente (1995) traz Michael Douglas como um político viúvo que se apaixona por uma lobista. Nos thrillers Poder absoluto e Assassinato na Casa Branca, o presidente norte-americano chega a ser suspeito de ter cometido homicídios dentro da residência oficial do Governo Federal dos EUA.
Em longas ainda mais imaginativos, o presidente norte-americano deixa de lado o papel de homem comum para assumir o posto de herói de ação. Na ficção científica Independence Day (1994), Bill Pullman salva o planeta da destruição pelas mãos de alienígenas, ao pilotar pessoalmente um avião e introduzir um vírus de computador na nave-mãe usada pelos ETs. De forma mais modesta, Harrison Ford banca o exército-de-um-homem-só, em Air Force One (1997), ao detonar uma quadrilha de terroristas do Cazaquistão que seqüestra o avião onde ele está e ameaça matar a mulher e a filha dele, caso não liberte um preso político. No que se refere à cor da pele, Hollywood se antecipou à vida real em três décadas. O primeiro longa e colocar um negro no Salão Oval data de 1972: O Presidente Negro. E Morgan Freeman fez o papel do chefe executivo do país no filmedesastre Impacto Profundo (1997). Falar em presidente negro, aliás, é
falar no seriado 24 Horas, que pôs o ator Dennis Haysbert no papel. Ele foi assassinado e substituído no cargo pelo irmão (D.B. Woodside). Outra série de TV importante a trazer um presidente negro é The West Wing. No Brasil, a lista reduzida de trabalhos audiovisuais que põem o chefe da nação como um personagem importante é encabeçada por uma minissérie. JK refez, durante 47 capítulos exibidos entre janeiro e março de 2006, a trajetória de Juscelino Kubitschek. Outra minissérie, Agosto (1993), reconstitui os últimos dias do governo de Getúlio Vargas, em 1954. O período de Getúlio no poder também foi tema de um documentário, Revolução de 1930, feito cinqüenta anos depois, por Sylvio Back. A lista de documentários também inclui Os Anos JK (1980) e Jango (1984), ambos de Silvio Tendler, e Entreatos (2004), de João Moreira Salles, documentando os bastidores da campanha que acabou com a eleição de Lula, em 2002. FEV 2009 • Continente x
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Renata Superbarroca Com trajetória profissional iniciada em artes plásticas, ela atua em cenografia e na direção cinematográfica, agregando elementos das várias áreas por que transita Luciana Veras
A
infância e a adolescência foram no Pina, Zona Sul do Recife, imediações que até hoje a artista plástica Renata Pinheiro frequenta. Ela mora em Boa Viagem, cartão-postal da metrópole onde nasceu, cresceu, casou e teve uma filha, e no qual se movimenta com a naturalidade de quem o conhece há décadas. Quase quatro, pois no calendário são 38 anos de idade, muitos deles de devoção à arte. Não é exagero afirmar que Renata
é uma das responsáveis pela afirmação da criatividade do novo cinema pernambucano, ao atuar como diretora de arte em alguns dos filmes autorais mais significativos deste período, que se inicia na retomada do cinema nacional, a partir de 1994, e desemboca nos tempos atuais, em que a produção audiovisual brasileira briga para ocupar 10% do mercado no país. Renata responde pela arte de Amarelo manga (2002) e Baixio das bestas (2006), de Cláudio As-
sis; Árido movie (2005), de Lírio Ferreira; Feliz natal, de Selton Mello, e A festa da menina morta, de Matheus Nachtergaele, ambos de 2008 e estréias na direção de dois importantes atores nacionais. Seu trabalho é premiado – angariou troféus no Cine Ceará, em 2003, por Amarelo manga, e no Cine PE de 2004, por A história da eternidade, curta-metragem de Camilo Cavalcante; elogiado, recebe palavras de carinho dos cineastas com quem trabalha; e referendado:
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cruza fronteiras. Em 2007, ela foi a São Paulo para assumir a direção de arte de Hotel Atlântico, ainda inédito longa-metragem da veterana Suzana Amaral (A hora da estrela). Ela diz que, antes de iniciar o trabalho, a diretora quis ver sua cara, ouvir seu sotaque, saber quem era a tal Renata Pinheiro que, sediada no Recife, exportava uma junção de matizes em universo estético particular e delicada percepção de ambiência cinematográfica. Plausível o estranhamento da cineasta paulista, que somente conhece a pernambucana como diretora de arte. No Recife, é possível encontrar Renata no universo das artes plásticas, em que atuou mais especificamente nos anos 1990, quando integrou o Grupo Camelo e apresentou, entre outras, a individual Fe-ira (1999), montada no Museu de Arte Contemporânea de Olinda. No país, embora sua trajetória como artista permaneça um tanto subterrânea, existe respeito e mesmo reverência ao trabalho
que vem desenvolvendo nos sets, no âmbito da arte e da cenografia e também na direção. Em 2008, com Superbarroco, seu primeiro curta em 35mm, ela recebeu o prêmio de melhor diretora no 41º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A formação de Renata Pinheiro passou pelo teatro e pelas artes plásticas. Com especialização no Institut National de l’Audiovisuel de Paris, ela rememora a importância das aulas de teatro que tomou antes de se formar em Licenciatura em Artes Plásticas. Na época de estudante, o cinema era uma seara longínqua, área em que foi se “profissionalizando aos poucos”, em especial por meio de referências que trazia de experiências anteriores. Uma bolsa de estudos para pósgraduação na John Moores University, em Liverpool, foi fundamental para sua orientação artística. “Eram os anos 1990 e a arte contemporânea estava no auge. Até hoje, sou muito influenciada pelo movimentoYoung
British Art, aquela geração de Damien Hirst, Tracey Emin, Sarah Lucas, entre outros”, aponta. Ao retornar da Inglaterra, em 1996, o Grupo Camelo eram Ismael Portela, Marcelo Coutinho, Oriana Duarte e Paulo Meira. Renata foi chamada por eles para idealizar uma exposição. Surgia What do you expect to see?, instalação na qual o visitante era instado a brechar, por olhos mágicos, um quarto fechado onde três monitores exibiam imagens do corpo humano. “Havia a proposta do voyeur. Recém-chegada, tinha muitas ideias”, recorda Renata, que por um ano e meio integrou o Camelo. “As experimentações que fiz quando tinha ateliê definiram o meu estilo artístico, tanto quando faço direção de arte como quando dirijo meus filmes, principalmente com relação a materiais, cores e texturas. A idéia do artesanal, com a imperfeição natural do que é feito pelas mãos, me interessa muito. Os filmes que faço carregam essa marca, menos autômata e mais humana”, situa. FEV 2009 • Continente x
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Ilustração do CD Carnaval na obra, da mundo livre s/a (1998). Videoperfomance Arqueologia da amnésia (2003); abaixo, objeto de Fe-ira (1999)
O humano era um elemento essencial no curta Texas hotel, rodado em 1998, por um Cláudio Assis interessado em explorar as relações cruas e um tanto sórdidas dos moradores de uma pensão decadente no centro do Recife. Renata estava grávida de sete meses, quando o diretor lhe chamou. Embora já casada com um diretor (Sérgio Oliveira) e irmã de outro (Marcelo Pinheiro), seu único contato com a realização cinematográfica havia sido o vídeo América au poivre (1995), rodado por ela, Sérgio, Carla Sarmento e Nelsinho Caldas. Assim o curta de Assis se tornou sua janela para o cinema, uma arte que a escolheu, ela costuma dizer. Porque, quando percebeu, Renata já fazia parte daquele cosmos em que
imagens refletem sensações descritas em roteiros e personagens necessitam de um entorno que os legitime, que os contextualize, que os apresente para o espectador. Desse modo, o background se aliou à nova função. “Em Feira, criei peças juntando partes de ícones religiosos que, remontados, adquiriam uma conotação fantástica e mundana, tinha o dorso da negra Anastácia com corpo de Buda, cabeça de Barbie em corpo de São Sebastião. Em 2000, em Amarelo manga, terminei vendendo uma peça para Matheus Nachtergaele. Em 2007, trabalhei em A festa da menina morta, que fala de uma religião inventada, porque ele me chamou por conhecer Fe-ira”, ilustra.
Com uma década de carreira, foram distintos os cenários concebidos por ela: do bar periférico e da ambiência kitsch do hotel em Amarelo manga; do sertão reinventado em Árido movie; do casario simples, da falência da aristocracia canavieira e do culto ao maracatu da zona da mata em Baixio das bestas; da desintegração familiar em um subúrbio carioca em Feliz Natal e do fervor religioso em uma comunidade ribeirinha do amazonas, em A festa da menina morta. São registros visuais em geral calcados no Realismo e no Naturalismo, com referências ao submundo, à violência, ao grotesco e ao sobrenatural. “A direção de arte deve contribuir para a apreensão do filme. Quando dispersa a atenção para um ponto menos relevante, não joga a favor, mas não significa que todos devem
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Cena do curta Superbarroco, com o qual Renata ganhou prêmio
ter uma estética realista”, ressalta, afirmando que existem histórias que precisam de “uma aparência caricata e exagerada da sociedade”. Para Renata Pinheiro, é preciso entender cada filme que se faz. Naqueles que ajudou a construir, apresenta propostas diferentes, mas que indicam um estilo. “Adoro juntar o que não se une. Isso está em tudo o que eu faço, na pintura, como naquela que foi capa do CD de Junio Barreto, nos objetos e esculturas”, diz Renata, que, ao mesmo tempo, rechaça a idéia de uma assinatura cristalizada. “Ainda é cedo para entender o que procuro. O que sei é que acredito na imagem, acima de tudo. Quero provocar emoções pelo fenômeno estético, pela imagem mais do que pela palavra. Quem assistiu à Superbarroco pode entender isso”, resume.
Para Renata, a direção de arte deve contribuir para a apreensão do filme, não devendo dispersar a atenção para pontos irrelevantes Pode mesmo. No curta, um homem (Everaldo Pontes) se perde em uma casa onde coabitam memórias, fantasmas e os agridoces versos de Dalva de Oliveira. Na narrativa, a diretora Renata Pinheiro explora a justaposição de imagens, composição pictórica que aproxima cada fotograma de um quadro, carregado de metáforas e sinestesia. “Busquei golpear os sentidos pelo acúmulo de imagens, atordoar, atacar, subjugá-los esteticamente. Outra questão é a idéia do oco, da ilusão, do ator que
empresta seu corpo ao personagem”, sintetiza. A impressão que se insinua: Renata é barroca. Superbarroca. “É difícil admitir, mas tem verdade nisso. Matheus Nachtergaele disse que eu era a mais brasileira dos diretores de arte por ser barroca e pelo barroco ser um dos movimentos artísticos mais autênticos que o Brasil já produziu”, comenta. Em Superbarroco, que elege como o “maior desafio”, ela avançou na direção fílmica, pois em seus trabalhos anteriores (os vídeos Guenzo, de 2005, e Clipping Salvador, de 2002) não havia atores. “Deu aquele friozinho na barriga. Havia dirigido atores apenas na França e, nos outros filmes, dei vida a objetos inanimados, como cachorrinho de pilha e um barquinho de papel”. No recente curta, ela também se afastou da direção FEV 2009 • Continente x
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Invólucros foi exibido com Shadows (detalhe), no 46º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco
Artista diz que adora juntar o que não se une e que quer provocar emoções pelo fenômeno estético, pela imagem mais do que pela palavra, e cita o filme Superbarroco como referência a isso de arte e chamou amigos à função, por entender que o processo deve ser partilhado sem egolatria: “Preciso de intimidade artística que me permita fazer perguntas idiotas, sem pudor. Cinema é arte coletiva. Adoro trabalhar com pessoas que admiro, acima ou abaixo na hierarquia”. Suas admirações artísticas vão de Francisco Brennand a Fernando Peres, passando por Lygia Pape, Nelson Leirner, Maurício Arraes e Beatriz Milhazes; suas predileções cinéfilas incluem Jean-Luc Godard, Paul Thomas Anderson, Hilton Lacerda, Michel Gondry, o marido Sérgio Oliveira, O céu de Suely, de Karim Aïnouz, e Império dos sonhos, de David Lynch. “Filmes que busquem outras formas de percepção”, aponta. Atualmente, de-
senvolve o roteiro do seu primeiro longa-metragem. “O argumento é meio autobiográfico e carregado de reflexões visuais sobre espaço (território) e tempo (simultâneo). A principal personagem é uma artista plástica”, indica. Talvez a protagonista seja como Renata Pinheiro que, em 2004, montou, como bolsista do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, a exposição Arqueologia da amnésia. Um vídeo que retrata sua intervenção em casas abandonadas, por meio da projeção de fotografias antigas, obtidas com os antigos moradores. Sobre os ambientes em escombros, ela projetava imagens de quando estavam em uso. Se o filósofo italiano Umberto Eco afirma que quem não tem memória não tem alma, Renata traz corpo e espírito carregados de lem-
branças e seus contínuos resgates: “Tirei fotografias de antigos moradores do Pina e saí recolocando as imagens nos locais de origem. Alguém segurava a foto e eu fotografava novamente, numa sobreposição do passado no presente”. Passado e presente, sagrado e profano, grotesco e belo, kitsch e barroco: das oposições e convergências irrompe uma artista multimídia, cineasta, roteirista, diretora de arte, que não se reduz a um rótulo. E que sonha alto: “Minha grande inquietação é desenvolver uma linguagem que traduza o brasileiro. O Brasil é muito inspirador, há muitas possibilidades de investigação artística. A cultura popular, como o folclore, é um exemplo riquíssimo da grandeza cultural do povo que se inventa e se traduz artisticamente”.
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O caso eu conto como o caso foi
O escritor, advogado e ex-deputado federal Paulo Cavalcanti resumiu suas memórias em quatro volumes sob o título genérico “O caso eu conto como o caso foi”. A obra, agora relançada em primorosa edição, é um corajoso repositório de confissões, denúncias e revelações sobre 50 anos de lutas políticas e sociais em Pernambuco e no Brasil. Esta nova edição, três décadas depois do lançamento do primeiro volume, reafirma a importância deste testemunho, sobretudo para o conhecimento das novas gerações.
Nas livrarias ou pelo telefone 08000 81 1201
*A obra completa pode ser adquirida em caixa especial ou separadamente.
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Ferreira Gullar
Reencontro com mestre Burle Marx
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etenho-me diante de um dos quadros que compõem a mostra de Roberto Burle Marx no Paço Imperial. Trata-se de uma tela pintada em 1993 e que difere, pelas cores e pelo estilo, da maioria das obras expostas: nesta, as cores são vivas e predominam sobre os traços, as linhas negras, que marcam grande parte de suas pinturas. Aqui, a impressão que se tem é de que Burle Marx estava em êxtase, na plenitude de sua expressão e de sua liberdade inventiva, valendo-se tanto da definição das formas quanto de sua indefinição, chegando quase a manchas, em meio às quais explode um vermelho-rosa, que faz contraponto com o fundo verde de vários tons. Mas este foi apenas um momento da visita a essa exposição, que pretende também assinalar a passagem dos 100 anos do nascimento do artista, nascido em 1909. Se a homenagem é, sem dúvida, justa, a exposição por si mesma está à altura da contribuição de Burle Marx à arte e à cultura brasileira. Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial e curador da mostra, realizou um trabalho admirável tanto por seu critério na concepção da mostra, como pelo número de obras expostas, abrangendo os diferentes campos de criação desse artista, que foi, além do paisagista inovador, pintor, gravador, escultor, desenhista de jóias, tecidos e tapetes. Mas a preocupação maior do curador foi resgatar a obra pictórica de Burle Marx, que não mereceu a devida valorização crítica durante sua vida. É verdade. Eu mesmo, que já exercia a crítica de arte durante o período áureo de sua pintura, não cheguei a fazer mais que algumas referências a ela, porque não me lembro de nenhuma grande exposição indivi-
dual por ele realizada. Não obstante, em algumas poucas ocasiões em que pude ver telas de sua autoria, chamou-me a atenção a qualidade e a marca pessoal dessas obras. Uma explicação para isso, e a mais simples de todas, é a importância de sua obra de paisagista, que o consagrou nacional e internacionalmente. De fato, após a descoberta, no Jardim Botânico de Berlim, da flora brasileira, mergulhou numa experiência criativa que o consagraria como um renovador do paisagismo, inserindo nele espécimes de nossa flora tropical. Se alguma dúvida eu tivesse acerca da vocação de Burle Marx para a pintura, ela se dissiparia ao acompanhar, nesta exposição, a fase inicial do pintor que, já nos anos 1930, com pouco mais de 20 anos de idade, assimilava a lição dos mestres modernistas, como Portinari, Segall, Di Cavalcanti e Guignard, sem falar em certas lições cubistas e, particularmente, de Georges Braque. Nesse período inicial, se ainda não se distingue o perfil do pintor que se definirá mais tarde, percebese, contudo, que ali estava uma sensibilidade pictórica indiscutível, em busca de inventar seu próprio universo expressivo. No início da década de 1950, essa procura sofre uma mudança brusca, como, aliás, ocorre na arte brasileira em geral, com o surgimento da arte concreta, que rompe a tradição modernista e propõe, em lugar da temática nacional, a exploração de formas geométricas puras. Burle Marx também experimenta esse caminho, como o demonstram dois dos quadros expostos na mostra, um datado de 1950 e outro de 1953, explorando a temática abstrato-construtiva que, de certo modo, marcará sua produção dali para diante.
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Exposição em homenagem aos 100 anos do nascimento do pintor e paisagista está à altura da contribuição de Burle Marx à arte e à cultura brasileira
Em sentido horário, os quadros Costureiras, Tecido 2 e um retrato do jovem Burle Marx, um dos mais importantes artistas do país
Não se manterá fiel a essa linguagem, mas é a partir dela que irá construir sua própria linguagem pictórica, em que geometria e improviso formal se aliam. Essa linguagem, por sua vez, ao longo dos anos, passa por uma série de mudanças, muito embora mantenha, como referência básica, certas formas que encontraremos também no desenho de seus jardins. Desde que rompeu com a expressão figurativa, sua obra de pintor está isenta de qualquer referência ao mundo exterior, definindo-se, portanto, como uma invenção formal, que explora as formas e as cores em sua expressão autônoma. São variações que ele inventa e elabora, dentro de estruturas relativamente constantes e que lhe permitiram desenvolver uma experiência pictórica original, com um lugar próprio na história de nossa pintura.
Não poderia terminar este artigo sem aludir à extraordinária obra de tapeçaria que se encontra nesta mostra, cujas dimensões – 26,38 m por 3,27 m – já por si impactam o visitante. Mas a isso se soma a beleza da peça, a harmonia de suas formas e cores, aliada a uma qualidade técnica surpreendente. Essa obra, datada de 1959, foi realizada para o Salão de Eventos do Centro Cívico de Santo André, Estado de São Paulo. Ao me deter em cada detalhe dessa peça, foi-me impossível não perceber a excelência da realização artesanal e como a expressão estética, ali, depende da realização técnica da obra. O que me levou inevitavelmente a compará-la com certo tipo de manifestação, hoje vigente, em que a execução material não tem qualquer importância, isto é, a expressão não é entendida como fruto da razão operativa. FEV 2009 • Continente x
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Resistência e sedução na ópera de Pequim Gênero teatral chinês reafirma sua tradição refinada em meio à nova cultura de massas que chega ao país Marcelo Abreu
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nquanto a China se moderniza e se abre para o mundo, uma grande quantidade de novas informações culturais invade as suas grandes cidades e o fenômeno da dispersão pós-moderna chega ao país. No meio desse turbilhão, no entanto, uma forma de arte consolidada há mais de 200 anos – que remete a um passado remoto e mitológico das antigas dinastias chinesas – sobrevive aos novos tempos e, em certos aspectos, até floresce. É a chamada ópera de Pequim, um gênero de espetáculo que reúne, no mesmo palco, música, canto, dança, teatro, mímica, pintura facial, artes marciais e acrobacia. Existem, na China, cerca de 80 trupes que se apresentam diariamente nos teatros e nas casas de chá de Pequim e de outras grandes cidades. A ópera é também muito forte em Hong Kong e Taiwan. E, cada vez mais, os
chineses fazem turnês mostrando essa forma de arte na Europa e América do Norte. Se, por um lado, a juventude tende a se interessar menos pela complexa estilização da ópera, por outro lado, a maior presença de estrangeiros na China e uma economia mais forte – que se reflete também no campo cultural – tem ajudado a mantê-la viva. Além disso, depois do fim de alguns dogmas do comunismo, que combatiam as tradições feudais, a China de hoje lida melhor com o período pré-revolucionário, o que deixa a ópera mais livre para falar de generais guerreiros, mitologia budista, príncipes e princesas de passado remoto em peças de títulos sugestivos como Adeus minha concubina e A deusa do céu espalha flores. Wang Yuzen, diretora da Organização Ópera de Pequim – uma entidade que congrega várias trupes na capital –, diz
que o desenvolvimento econômico trouxe a competição com outras expressões artísticas. “Mas temos, entre os amadores, um interesse incrível pela ópera. Muitos artistas e professores estão ensinando a arte a muitos jovens. Vamos entrar no currículo das escolas e isso vai ser um grande incentivo.” Envolvida com essa forma de arte há 50 anos, Madame Wang, como é conhecida entre os que acompanham a ópera, falava ao lado do palco do Grêmio Huguang, uma sofisticada casa de chá no sul do Pequim, onde todas as noites há apresentações para fãs entusiasmados. O ambiente não poderia ser mais pitoresco. Todo o interior do salão de chá – onde ocorrem as apresentações – é revestido de madeira vermelha, entalhada com motivos tradicionais e ornamentada com inscrições em amarelo e dourado. Sobre cada
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Existem hoje na China cerca de 80 trupes que se apresentam em teatros e casas de chá
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CÊNICAS mesa da platéia, um bule com chá de jasmim aguarda os espectadores ao lado de docinhos recheados com amendoim e castanhas. O Huguang é, por si só, uma volta à China dos velhos tempos.
Cartaz escrito em inglês convida para espetáculo que tem o iraniano Ghaffar Pourazar (abaixo) como personagem cômico
Marcelo Abreu
O que se conhece hoje como ópera de Pequim é o resultado do encontro de vários estilos tradicionais de ópera da China, que começaram a trocar influências a partir de 1790. A data é bem precisa, porque, naquele ano, quatro trupes da província de Anhui foram convidadas a Pequim para celebrar o aniversário de 80 anos do imperador Qianlong. Fizeram tanto sucesso, que continuaram na capital e começaram a se misturar com companhias de outras províncias, como Hubei. Por volta de 1845, um novo gênero de ópera tradicional havia se consolidado e acabou levando o nome da capital do país. Ao longo do século
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mesa ou uma cadeira. Os personagens trazem, no máximo, uma espada na mão. Todo o resto é sugerido ao público através da mímica sofisticada que faz, por exemplo, com que se imaginem dois personagens lutando em um quarto escuro, quando o que realmente se vê é um palco muito iluminado com dois homens andando de um lado para o outro, como na peça cômica A encruzilhada. Todos os movimentos são estritamente sincronizados com a música. Ao lado do palco, uma bandinha com nove integrantes faz, ao vivo, o acompanhamento musical com instrumentos como o jinghu, uma espécie de violino, pequenos gongos de som agudo e címbalos. A percussão é muito importante porque rege todos os movimentos, mesmo nas acrobacias mais difíceis. E a parte melódica acompanha com brilho, sobretudo, as árias cantadas pela dan, a personagem feminina que dança levemente, quase flutuando 19 e começo do século 20, estima-se que cerca de duas mil trupes de ópera tradicional viajavam pela China, fazendo apresentações diárias. Em Pequim, o bairro conhecido como Qianmen, bem próximo da hoje famosa Praça da Paz Celestial, era um formigueiro de artistas e trupes que circulavam pelas ruelas e se apresentavam em pequenos teatros e casas de chá. Hoje, o bairro passa por um processo de reurbanização que tira todo o charme do passado. A ópera de Pequim basicamente conta uma história através de atores que dizem suas falas de forma cantada (daí o termo chinês jinghu ter sido traduzido como “ópera”, nas línguas ocidentais). Mas, à diferença do Ocidente, os atores também dançam, e, dependendo do papel, podem lutar artes marciais e fazer acrobacias, tudo na mesma cena. Uma das mais recorrentes características é o uso da pantomima para contar a história. Durante a apresentação, quase não se utilizam objetos cênicos. O cenário, usado em toda a peça, é apenas uma cortina no fundo do palco com alguma gravura clássica (onde os indefectíveis dragões geralmente aparecem). Eventualmente, há uma
Leveza marca atuação feminina em encenações que usam poucos recursos cênicos, como máscaras
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CÊNICAS
Rostos ameaçadores e barba longa para os vilões da ópera
sobre o palco, geralmente interpretando uma princesa, uma cortesã, ou uma fada mitológica. Para ouvidos pouco acostumados com músicas de outras tradições, a melodia aguda e o timbre do falsete usado no canto podem parecer desagradáveis, no início, antes de revelarem toda sua beleza e complexidade. Além da personagem feminina, há outros três tipos básicos: o sheng, que representa o mocinho, um estudioso, um príncipe ou um nobre; o jing, que se apresenta com um ameaçador rosto pintado, uma barba longa e pode ser um personagem fanfarrão, um general rebelde, ou um vilão qualquer; e o chou, que imediatamente lembra o palhaço na tradição ocidental, e usa também uma forte maquiagem, trazendo uma pitada de humor e farsa às apresentações. Durante os árduos anos de formação – que normalmente começa na infância –, os atores são treinados em canto, dança, recitação, ar-
tes marciais, pantomima e muita ginástica, para acostumar o corpo às exigências do palco. Ao longo dos anos, eles se especializam em um dos quatro tipos de personagens e desenvolvem as características que os identificam de longe. A forma de andar, o olhar, o sorriso, a impostação da voz e os gestos mais corriqueiros são todos estudados. A pintura facial do personagem jing (com mais de mil variações possíveis) e os trajes e adereços de todos em cena são especialmente requintados. Envolvem uma complexa simbologia de cores ligadas à cultura chinesa tradicional. Na ópera de Pequim, tudo é estilizado, nada é natural. Essa artificialidade extrema, que acontece também na tradição japonesa dos teatros kabuki e nô – é o que torna a arte especialmente bela e sofisticada. “Tudo ganha vida no próprio corpo do artista. Ele é quem cria o ambiente no qual se desenrola a
história, através de uma linguagem simbólica padronizada há centenas de anos. É um poema em movimento”, diz Wang Yuzhen. Exemplo máximo de sofisticação foi o ator Mei Lanfang (18941961), que no começo do século 20 era o grande nome da ópera, interpretando sempre papéis femininos (as mulheres só foram admitidas oficialmente no palco a partir de 1912). Mei foi o primeiro a levar a ópera ao exterior. Nos anos 1930, encontrou-se duas vezes com Charles Chaplin, em Hollywood e em Xangai, e, segundo alguns, teria até influenciado o diretor de cinema. Hoje, Mei Lanfang é homenageado em um museu dedicado a ele, em Pequim. No final de 2008, foi lançado Forever enthralled (Submisso para sempre), filme de Chen Kaige sobre a vida do ator chinês. O cinema sempre teve uma relação estreita com o teatro. O primeiro filme chinês – A batalha de Dingjunshan –, feito em 1905, foi
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o registro de uma ópera. Em Hong Kong, a ópera cantonesa (semelhante à de Pequim) foi um dos gêneros de sucesso no cinema da então colônia britânica a partir dos anos 1930. Mas a maior difusão da ópera de Pequim no Ocidente se deu com Adeus minha concubina, que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1993 e, no mesmo ano, deu a seu diretor, novamente Chen Kaige, a Palma de Ouro no Festival de Cannes. A obra conta a relação atribulada de dois atores de ópera, especializados na peça tradicional que dá nome ao filme, em meio às vicissitudes da história chinesa dos anos 20 até o fim da Revolução Cultural, em 1976. Durante os 10 anos da Revolução Cultural, a ópera de Pequim foi utilizada como forma de propaganda com a supervisão direta da temida Jiang Qing, então mulher de Mao Tse-tung. Madame Mao, que havia sido atriz nos anos 30, proibiu a apresentação de todas as óperas tradicionais no país e determinou a encenação de apenas cinco obras, todas elas de caráter revolucionário. Elas faziam parte dos chamados “oito espetáculos-modelo”, que incluíam também dois balés e uma sinfonia. Foi somente com o fim da Revolução Cultural que a ópera de Pequim pode renascer e o repertório antigo, que é composto por cerca de 1.400 obras, pôde voltar a ser encenado. Atualmente, em Pequim, além do tradicional Huguang, há espaços primorosos para a encenação como o Grande Teatro Chang’an, o Teatro Liyuan, e o moderníssimo Centro Nacional de Artes Cênicas, obra do arquiteto francês Paul Andreu, com capacidade para 2.416 pessoas. Mesmo na sua origem, a ópera de Pequim nunca foi somente uma expressão de arte da corte, mas manteve uma relação muito próxima com o povo, unindo sempre refinamento a sucesso popular.
Mesmo assim, é natural que surjam dificuldades para as plateias atuais e que concessões sejam feitas. Os textos são cantados no chinês arcaico, de difícil compreensão hoje (o que forçou alguns teatros a instalar um painel luminoso com legendas simultâneas dos diálogos traduzidos para o chinês contemporâneo e o inglês). A duração das apresentações, que muitas vezes superava as quatro horas, hoje é geralmente encurtada para cinqüenta minutos. Pelo palco do Teatro Chang’an, numa noite de domingo, circulava, após uma apresentação, um ocidental bem-ambientado no universo particular da ópera. Ele fala chinês fluentemente com os nativos e conversa com os estrangeiros em inglês. Ghaffar Pourazar nasceu no Irã, numa família de etnia azerbaijana, foi criado na Inglaterra e hoje mora na China. Em 1993, aos 30 anos, foi assistir a uma apresentação da ópera de Pequim, em Londres, e gostou tanto, que decidiu mudar de vida. Abandonou o emprego como desenhista na Inglaterra e mudou-se para Pequim para estudar. Quando sobe no palco, fica evidente que é um homem que trabalhou seu corpo intensamente para conquistar seu lugar entre os artistas chineses. Sua especialidade é interpretar o papel principal em O rei macaco, uma das peças cômicas do repertório tradicional.
Depois de 10 anos de treinamentos intensivos, junto a colegas chineses bem mais jovens, Ga Fa, como ficou conhecido em Pequim, hoje é um dos defensores da sobrevivência da ópera. Não se cansa de criticar as influências estrangeiras sobre a juventude chinesa, entre elas “Hollywood, Disney e o rock’n roll”. Mas também não é um purista. Tem tentado modernizar o repertório, estimulando o surgimento de novas peças. Fez uma adaptação de Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare, para a ópera. “É preciso achar novas peças e atrair o público”, diz Ga Fa, que sempre surpreende os chineses ao tirar a pesada maquiagem usada pelo cômico personagem chou e revelar seu rosto de ocidental.
Sheng representa a figura nobre ou o papel de mocinho
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GÊNIO? Pelo sucesso instantâneo conquistado na internet com apoio da mídia, a trajetória da adolescente Mallu Magalhães sugere indagações sobre a manifestação do talento Débora Nascimento
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unho de 2007: do apartamento de seus pais, a tímida adolescente Maria Luíza entra na internet, “conversa” com amigos, vai ao myspace.com, não para ouvir as infinitas músicas contidas no site, mas para criar sua página e inserir nesta suas próprias canções (http://www.myspace.com/mallumagalhaes), gravadas com o dinheiro dado pela família como presente de aniversário de 15 anos. A garota era mais uma entre tantos anônimos que entram diariamente na página de música e relacionamentos com o objetivo de conquistar fãs e/ou amigos. Dezembro de 2008: Mallu Magalhães, a tal menina, encerra o ano como a maior revelação da música divulgada na internet no Brasil. A cantora, compositora e instrumentista obteve, em pouquíssimo tempo, o que muitos não alcançam em anos de trabalho: contrato com gravadora (disco lançado em novembro de 2009), atenção da crítica, produção musical por profissional renomado (Mário Caldato Júnior, “mago” que já trabalhou com Beastie Boys, Super Furry Animals, Seu Jorge e Bebel Gilberto), shows em festivais importantes, aparições em eventos vips, música em propaganda nacional de gigan-
te da telefonia móvel, reportagens e fotos nas capas das melhores revistas e jornais do país, entrevistas na TV, programas na MTV, hits na boca dos fãs (Tchubaruba e J1), fãclube, promessa de carreira internacional (show, mês passado, em Lisboa) e um namorado famoso, Marcelo Camelo (Los Hermanos), com quem compôs a música Janta, considerada pela edição nacional da Rolling Stone a melhor de 2008. A revista também elegeu o disco de estréia, Mallu Magalhães, como o segundo melhor do ano passado e listou a garota entre os 50 melhores nomes da música em 2008. Um dos motivos que explicaria esse estrondoso fenômeno de mídia vai além do talento, da fofura das canções e do comportamento cool da garota. Tem a ver com aspecto destacado nas reportagens sobre seu sucesso: todas abordam sua pouca idade (15 anos no início, agora 16), festejam a precocidade e enaltecem o genial do começo temporão. No entanto, a música é arte acostumada a talentos precoces, como John Lennon, Paul McCartney, Elvis, Ella Fitzgerald, Chico Buarque, Mozart, só para citar alguns realmente geniais. Todos deram início a suas carreiras prematuramente.
Em um ano, Mallu Magalhães saiu do anonimato para o estrelato com canções na internet
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Elis Regina é um desses casos de menina-prodígio. Cantava profissionalmente desde os 11 anos, na Rádio Farroupilha, na qual integrava o elenco fixo. Em 1961, aos 15 anos, assim como Mallu, gravou o primeiro LP, Viva a Brotolândia. Contratada pela TV Rio, passou a trabalhar ao lado de Jorge Ben, Wilson Simonal e outros. Aos 20 anos, já era uma estrela nacional, ao interpretar a música Arrastão. Daí a poucos discos passou a ser considerada por boa parte da crítica a maior cantora do Brasil. O que não ocorreu à adolescente Elis Regina e a tantos outros nomes da música foi um sucesso abrupto como o de Mallu Magalhães, provocado por esse veículo conhecido como internet, que vem massificando de forma eficaz e instantânea pessoas, coisas e fatos. Não haveria, portanto, razão para tanto alarde por parte da mídia, se a precocidade já é uma velha conhecida da música. O que a internet fez (e a imprensa ajudou a fazer) foi descobri-la (possivelmente) ainda em processo de maturação, o que também vem acontecendo a fenômenos efêmeros da música pop, que passam, por outro lado, a ser brevemente esquecidos com a chegada da novidade do dia, ou melhor, do minuto seguinte, como diz a música A melhor banda de todos os tempos da última semana, dos Titãs.
No cenário internacional da música, vários foram os gênios precoces: Elis Regina, Elvis Presley, JohnLennon, Paul McCartney, Ella Fitzgerald, Chico Buarque e Bob Dylan
Segundo o crítico de música José Teles, Mallu Magalhães é um desses fenômenos que acontecem sazonalmente no mercado da música. “Certamente que a idade dela influenciou muito para que se colocassem os holofotes em sua direção. Garotos-prodígios são um assunto que a mídia gosta de explorar. Claro que ela tem talento, mas nada fora do comum. O que acontece também é a carência de novos ídolos na música pop, daí tanta badalação em torno dela. Curiosamente, a última banda que estourou no Brasil foi a Los Hermanos, em 1998. Se Mallu cantasse mais em português, teria mais chances de estourar. Em inglês, tenho minhas dúvidas”, avalia. Enquanto para o jornalista Paulo Terron (http://pauloterron.ig.com.br), do site de cultura pop With Lasers, tanto faz a língua que a artista use nas suas músicas. “O fato de ela cantar tanto em português quanto em inglês é só um reflexo da sua geração. Antigamente se dizia que ‘banda que canta em inglês não faz sucesso no Brasil’, mas a Mallu vendeu 10 mil discos. O CSS (Cansei de Ser Sexy) não emplacou aqui, mas conseguiu uma boa carreira internacional. E o Bonde do Rolê fez um caminho mais absurdo, que foi emplacar músicas em português na Inglaterra!”, analisa, citando os outros dois últimos sucessos brasileiros “lançados” pela rede. O produtor Jarmeson de Lima, que trouxe Mallu Magalhães pela primeira vez ao Recife, em setembro de 2008, e testemunhou a reação entusiasmada de 2.500 pessoas no festival No Ar Coquetel Molotov (a maior parte para ver a artista), afirma que a tal precocidade vem junto com a admiração por parte da crítica e público, levando em consideração o que tem sido feito hoje na música. “O ‘comum’ que se espera dos jovens numa ge-
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ração internet/MTV/High School Musical seria montar uma banda de rock-pop, skate-punk ou similares. Por isso causa estranhamento ver figuras como Vítor Araújo e Mallu Magalhães tocando música clássica e folk, dois ritmos tão anacrônicos para essa juventude atual. Esse alarde vem, em uma primeira instância, ajudar a reverberar a novidade musical, mas acredito que quando os dois lançarem novos trabalhos ninguém mais vai continuar falando da idade.” Até agora, um dos méritos da cantora foi ter incutido nos adolescentes internautas o gosto pelo folk, estilo de música caipira norte-americana que ganhou projeção internacional nos anos 1960, com Bob Dylan, ídolo da garota – e outro gênio precoce. O fato de ter como referência um ícone vivo da música norte-americana, enquanto boa parte das meninas de sua idade curte trilhas descartáveis, criou ao seu redor uma aura de raridade como se ela fosse uma Nara Leão versão 2.0, cuja longevidade só a internet dirá. Lembrando que, diferentemente da musa da bossa-nova, Mallu não precisa levar os amigos ao apartamento para audições – é só ligar o computador.
e bem-sucedidas (pelo menos, do ponto de vista da gravadora). Para as multinacionais, não importava se essas manobras as fizessem perder a credibilidade do público (como no caso da descoberta da dupla fake Milli Vanilli) e se havia o risco de criar “monstros” instantâneos e bastante passageiros, os famosos one hit wonders, aqueles artistas ou bandas que surgiam com uma música que emplacava nas rádios e depois passava a ser esquecida junto com seu autor, como ocorreu a Dee-Lite, Gary Numan, Twisted Sisters, Frankie Goes to Hollywood... Muitos deles hoje ganham seções “por onde andam?” na imprensa, ou sobrevivem de re-
viver o passado, fazendo shows para platéias nostálgicas. A internet vem poupando muito esse trabalho de descoberta de novos talentos, atribuído aos “olheiros” e/ou diretores artísticos das gravadoras. Algumas, ou as que sobraram, passaram a ficar de olho no “mercado” espontâneo da web (blogs, Myspace, Trama Virtual, Youtube, sites de relacionamentos), que vem fazendo uma peneira do que está sendo produzindo mundo afora. Mas é bom lembrar que esse filtro vem se firmando, pelo menos até o momento, sob a ótica do maior público que a frequenta e mantém, o jovem. E a busca incessante do novo é uma das características desse públiA banda inglesa Klaxons gerou, em poucos meses, imitadores em todo o mundo
Houve uma época na qual as gravadoras, no afã de lucrar com as vendagens dos discos, que alcançavam cada vez mais números inimagináveis (principalmente nas décadas de 1980 e 1990, a partir do sucesso de nomes como Michael Jackson, Madonna, U2 e Nirvana), passaram a investir seriamente na formulação de novos “ídolos”. Essas empresas, principalmente as majors, apostavam no lançamento constante de mais e mais “talentos”, muitos com características similares (timbre da voz, roupas, cabelos, temas das canções, arranjos semelhantes, mesmo produtor musical...) a outras “experiências” já comprovadas FEV 2009 • Continente x
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MÚSICA co. Isto significa que o interesse por aquilo que se torna difundido numa onda online tem o prazo de validade rapidamente expirado. No universo do pop, essa situação se mostra mais cruel aos aspirantes a artistas: cantores ou bandas passam de uma extrema novidade a assunto ultrapassado numa simples mexida do mouse (aliás, outro objeto em extinção). O jornalista, blogueiro e DJ paulista Lúcio Ribeiro, que mantém a coluna de música “Popload”, oferece, em post recente, uma explicação para o fenômeno (www.lucioribeiro. com.br). “O grupo inglês Klaxons, por exemplo, abriu 2007 sem disco nenhum, como a banda revelação a “ficar de olho”, a aposta do ano. Ou seja, o tamanho do Klaxons, para alguns bons, era quase-zero. Por mais que o Klaxons continue do mesmo tamanho para esses (não devia…),
é um absurdo chegar a setembro do mesmo ano em questão e ver que no Reino Unido, em Nova York, no Brasil existem bandas que se inspiram em Klaxons”, escreveu, emendando em seguida: “A fila andou: o mundo já tem várias e várias bandas boas pós-Klaxons, pós-tudo. Para quem já está perdido na Interzone e não sabe mais direito se falou com o amigo ontem no Twitter ou pessoalmente, o Klaxons tem o tamanho do Police, que tem o tamanho do grupo americano Vampire Weekend, que tem o tamanho da Stephanie Toth, a menina de 16 anos que só fez dois shows na vida inteira”. Ou seja, além do esgotamento precoce dos artistas que surgem, há a perda de referências quanto às suas grandezas. O DJ norte-americano John Richards, questionado por que as bandas de hoje são tão “passageiras” e não conseguem passar do primei-
ro CD, respondeu: “Na verdade, eu não quero nem saber se vai ter um segundo álbum. Não me preocupo com isso. Eu vejo tudo como um bom filme: fico torcendo para que não tenha a parte II”. É bom lembrar que, nesse contexto, o álbum inteiro não é mais tão importante quanto foi décadas atrás. Hoje, na era da internet, o que importa são músicas isoladas. Para Lúcio, não é mais uma questão de “quanto tempo essa banda vai durar” (lembram o trauma dos fãs com o fim dos Beatles?): “Ninguém mais se preocupa com isso. O que importa é essa música/banda/artista/estilo aqui e agora, e não o que vão representar amanhã. Isso se ainda existirem amanhã. Se não existirem, pelo menos fizeram barulho suficiente para gerar outros quatro parecidos, e nem por isso menos importantes”. (DN)
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Stephanie Toth e o grupo Vampire Weekend também foram fenômenos em 2008. Abaixo, DJ John Richards diverte-se com a efemeridade
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O éter da genialidade Para o falecido intelectual Otto Maria Carpeaux, mesmo um gênio como Mozart merece alguma ressalva, quando se trata do assunto “idade”: “Os trabalhos da primeira mocidade só são admiráveis porque feitos por uma criança, um menino. Mas, mesmo entre os números posteriores, há muito trabalho de rotina. Outras obras só serviram de divertimento musical, embora num sentido alto da palavra”. Para Carpeaux, só a produção permitiu ao compositor austríaco criar suas obras-primas, como Don Giovanni. Produzir sem bloqueios é uma das sugestões do expert em idéias criativas, Michael Michalko, autor de A brainstorming card deck (2006) e Cracking criativity (1998) – para se alcançar a excelência em qualquer atividade profissional –, ambos sem tradução para o português. Em seu site, www.creativethinkingwith.com, Michalko exemplifica: “Thomas Edison tinha 1.093 patentes. Ele garantiu a sua produtividade esta-
belecendo para si mesmo e seus assistentes ‘cotas de idéias’. Em um estudo com 2.036 cientistas, através da história, Dean Keith Simonton, da Universidade da Califórnia, descobriu que os mais respeitados cientistas não produziram apenas trabalhos excelentes, mas também trabalhos ruins. Eles não tinham medo de falhar ou produzir resultados medíocres na busca pela excelência”. Além de produzir bastante, a teoria de Michalko para se pensar e agir como os gênios se baseia em utilizar algumas estratégias: encarar os problemas de várias formas diferentes e encontrar novas perspectivas; visualizar; fazer combinações originais de idéias, não importando o quanto pareçam incongruentes ou pouco comuns; formular conexões entre assuntos dessemelhantes; pensar de forma oposta; pensar de forma metafórica e preparar-se para o acaso. Está lançada a cartilha do gênio. (DN) Reprodução
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os cinco anos, Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) já havia feito as primeiras composições. Aos seis, seu pai, Leopold Mozart, considerado o primeiro “empresário de artista” da história, passa a levá-lo para apresentações em diversos países, sempre conquistando as mais variadas platéias. Aos 15, o compositor torna-se maestro da corte de sua cidade natal, Salzsburgo. Por esses feitos, Mozart começou a ser apontado como gênio por onde passava, divulgando sua música, seu nome e criando sua lenda. Mas o que seria exatamente um gênio? Segundo o genial humorista carioca Millôr Fernandes, “é quem tem uma característica, habilidade, ou capacidade que seja altamente prestigiada na época em que vive”. E pondera: “Quantos pianistas geniais não se perderam por nascer na Babilônia?”. Para depois filosofar: “Gênio é o bom senso levado a suas extremas conseqüências”. Millôr antecipou a teoria do escritor cabeludo Malcolm Gladwell, autor do livro Fora de série (Outliers), que encabeça a lista dos mais vendidos nos EUA, com sua receita para o sucesso, que inclui fatores como o lugar onde a pessoa nasce, o tempo em que vive, as pessoas com as quais se relaciona, o apoio da família e um pouco de sorte. Outro brasileiro genial, o saudoso e polêmico jornalista Paulo Francis, definiu que “gênio é a capacidade de expressar as grandes emoções e sensações que não conscientizamos. O consumidor é a bela adormecida. O gênio, seu príncipe. Seu beijo, como o de Nietzsche, às vezes é mortal”. Já o escritor francês Gustave Flaubert tinha opinião bastante realista sobre o tema: “Não há motivo para o admirar, trata-se de uma nevrose”.
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Mozart iniciou sua produção artística aos cinco anos de idade FEV 2009 • Continente x
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Diversidade concisa
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Eddie, que voltou recentemente de sua quarta turnê européia, mantém a vibe Original Olinda Style (título do CD que a banda gravou em 2003 e que hoje virou praticamente um rótulo) dos trabalhos anteriores em Carnaval no inferno, que sai do forno em CD e SMD (formato com custo de produção bem mais baixo). O equilibrado álbum novo, que sucede Metropolitano (2006), foi produzido com esmero pelo próprio Fábio Trummer (voz e guitarra), em parceria com Buguinha. À frente da banda desde 1989, Trummer mostra que agora tem Imagens: Divulgação experiência suficiente para coordenar, também, o trabalho de estúdio. Em doses certas, está tudo lá: a voz grave de Fábio, a percussão
segura de Oreia, as pertinentes programações de teclado de André Oliveira... Ainda tem trombone e até cello (tocados respectivamente por Nilsinho e João do Cello, que fazem participações especiais), tudo sem soar exagerado: a banda passeia por estilos diversos com naturalidade. E os ricos detalhes da produção não chegam a dar a cara do disco, mas são a maior diferença deste trabalho Carnaval no inferno para o anterior. Eddie Quem espera um hit à la Independente 20,00 reais (CD) Pode me chamar ou O 5,00 reais (SMD) Amargo, aquela da cachaça (ambas de Original Olinda...), vai gostar de O baile, que tem letra de Erasto Vasconcelos, antigo colaborador e amigo da banda. A faixa é daquelas que fazem o ouvinte entrar no clima Olinda Style e esperar a próxima noite de sábado. Mas, com ou sem hit, Carnaval deve ser escutado faixa a faixa, preferencialmente numa festa de gente esperta. (Thiago Lins).
> Chorinho com influência das ruas
> Tempo de relançar > Patrimônio vivo inquietações em CD
A Choromusic tem um catálogo especializado no ritmo brasileiro que leva no nome. Até agora, já foram lançados songbooks de Chiquinha Gonzaga, Jacob do Badolim, Severino Araújo, Joaquim Callado e Ernesto Nazareth, agora lançado também no CD The Best of Ernesto Nazareth. São 16 das melhores obras do pianista executadas por nomes como Izaías do Bandolim. A seleção inclui polcas como Apanhei-te, cavaquinho!, valsas como Confidências e tangos brasileiros como Bambino e Odeon. A grande novidade é a belíssima Ideal, com solo de flauta de Daniel Allain, nunca gravada desde a sua publicação, em 1905. Além disso, a Choromusic disponibiliza as partituras das músicas no endereço www. choromusic.com.br. (Diogo Guedes)
This is the time. And this is the Record of the time (Este é o tempo. E este, o disco do tempo), anuncia a estrofe transformada em chamada de capa. Originalmente lançado em 1982, Big Science resulta de uma seleção de passagens da produção intitulada United States Live (posteriormente editada num box de 4 LPs), em que estão presentes inquietações que norteiam o trabalho da multifacetada Laurie Anderson desde os anos 70, como a tecnologização do cotidiano, os mitos fundadores americanos e a fusão de linguagens artísticas. Esta reedição traz uma faixa bônus intitulada Walk The Dog (lado B do antológico single O Superman, lançado pela One Ten Rec. em 1981), um vídeo e notas de produção inéditas. (Yuri Bruscky)
The Best of Ernesto Nazareth Vários Choromusic 18,90 reais
Laurie Anderson Big Science Nonesuch 54,90 reais
Escolhido recentemente como Patrimônio Vivo de Pernambuco, o Caboclinho União 7 Flexas existe desde 1969, mas só agora chega ao seu primeiro registro fonográfico. O CD que leva o nome do grupo tem 8 faixas de ritmos alternados (baião, toré etc.), mas sempre com a proeminência do pífano e da caixa. Atualmente, o grupo é comandado por Paulinho, filho do Mestre Zé Duda, fundador do 7 Flexas. A bolachinha chega como um documento, especialmente se considerarmos a premiação do grupo, que merece reconhecimento também pelo trabalho social que desenvolve numa comunidade recifense. Pena que o formato CD não permite uma conferida na forte identidade visual do grupo. (TL) Caboclinho União 7 Flexas Caboclinho União 7 Flexas Independente 25,00 reais
> Em busca das raízes africanas Dee Dee Bridgewater realiza turnês mundo afora desde 1969 (esteve no Brasil em novembro). Exceto por um interstício como atriz nos anos 70 e 80, quando ganhou um Tony, a cantora de jazz americana radicada em Paris, vencedora de dois Grammy, sempre primou por renovar o repertório e preservar seu brilho vocal. Ultimamente, Bridgewater tem-se dedicado a se aproximar das raízes africanas – Red earth, uma menção à terra vermelha do Mali, presta tributo aos ancestrais da artista e marca o encontro com os principais músicos do país. A virtude do disco, presente em todas as faixas, está na mescla muitíssimo orgânica do inglês com o mandingo e o bambara e das composições da cantora com os ritmos locais. (CEA) Red Earth – A Malian journey DDB Records/Universal 21,00 reais
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Diálogos entre música e filosofia
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Discurso, tradicional publicação anual de filosofia da USP, chega à 37ª. edição apresentando uma coletânea de artigos que relacionam música e filosofia, os quais – para desprazer dos músicos – primam, até a metade da revista, muito mais pelos questionamentos filoImagem: Reprodução sóficos despertados por conceitos elementares ou abstratos da música do que pelas análises suscitadas pelas próprias obras musicais. Também, não poderia ser diferente, já que as discussões estéticas se estabeleceram em categorias de
pensamento mais próximas às nossas só a partir do Romantismo. Assim, quem desejar deve pular os textos que tratam da poética e da metafísica da música na Grécia Antiga e das concepções de Leibniz e Rousseau. Dos artigos sobre Hanslick e Nietzsche pra frente, os termos são mais familiares, por mais aprofundados que sejam, e as dissertações se Revista Discurso n° 37 tornam mais instigantes. Editora Alameda O filósofo alemão aparece 444 páginas 36,00 reais como o mais recorrente; quatro textos se debruçam sobre idéias dele: acerca das ligações entre música e palavra; música, linguagem e criação; processos composicionais e contexto histórico de Palestrina; e a obra wagneriana. O segundo pensador mais dissecado no volume é Adorno (três artigos). Completam a compilação boas digressões sobre Henri Bergson, Schoenberg e Thomas Kuhn. (Carlos Eduardo Amaral)
> Um retrato parisiense ao cello
> Quintetos para metais I
> Quintetos para metais II
> Um delicado registro de Scarlatti
Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e o tcheco Bohuslav Martinu têm em comum a passagem pela Cidade Luz nos anos 20 e 30, quando Stravinsky ditava moda através do neoclassicismo. Assim, Antonio Meneses e Celina Szrvinsk reuniram obras daquele período, para violoncelo e piano, escritas pelos três compositores e por Nadia Boulanger, compositora e eminente professora na capital francesa. O programa deste CD consta da selvagem Sonata n° 1 de Guarnieri, da Sonata n° 3 de Martinu, das Três peças para violoncelo e piano de Boulanger, cujo último movimento se sobressai, e de três partituras de Villa-Lobos: o Canto do cisne negro e as transcrições da Cantilena da Bachianas n° 5 e das Bachianas n° 2. (CEA)
Desde o século XIX o Brasil forma bons instrumentistas de metais, principalmente em bandas militares. No entanto, o número de obras originais para trompete, trompa, trombone e tuba, em qualquer combinação, sempre foi reduzido. Esse fato motivou o Art Metal Quinteto a empreender um primoroso resumo de obras e transcrições para quintetos de metais (e percussão) da monarquia aos dias de hoje, abrangendo a música clássica e a popular. Assim, este CD contempla quase anônimos, como João Elias da Cunha e Zulmira Canavarros, e nomes de peso, como Pixinguinha, Anacleto de Medeiros e Camargo Guarnieri. O Nordeste está representado por Maestro Duda e sua suíte Música para metais n° 4. (CEA)
Numa trilha completamente diversa, o experiente Grupo Brassil, em colaboração com estudantes e professores do Compomus, investiu na interpretação de obras inéditas para quinteto de metais e eventual piano e percussão. O resultado, este recémlançado painel de doze composições de atmosferas e perfis estéticos únicos, veio para logo ser um dos mais significativos registros da música de câmara nacional nos últimos anos. Por mais que qualquer peça deste CD pareça dissonante ou estática nos primeiros compassos, quem ouvi-las de mente aberta será gratificado com uma rica experiência sonora ao passar dos minutos e verá que elas não têm nada de vanguardista, como se possa supor. (CEA)
Quem olha o jovem rosto de Sonia Rubinsky, não imagina que ela já gravou a obra completa para piano de Villa-Lobos – projeto só encarado antes por Anna Stella Schic – e tocou perante o lendário Arthur Rubinstein. No presente álbum, Rubinsky imprimiu seu toque delicado e preciso a 16 das 555 sonatas do napolitano Domenico Scarlatti (1685-1757), marcos referenciais da técnica tecladística e da antecipação do estilo clássico, discretamente influenciadas pela música espanhola. Mesmo perdendo o élan original do cravo, instrumento para o qual as sonatas foram escritas, a pianista brasileira compensa a interpretação com equilíbrio próprio. Vale a pena a leitura do texto de Eytan Agmon no encarte. (CEA)
Soirées internationales Antonio Meneses e Celina Szrvinsk Avie Records 50,00 reais
Dezenovevinteeum Art Metal Quinteto Ágapa 25,00 reais
Brassil interpreta compositores da Paraíba Produçãoindependente, 20,00 reais
Sonatas de Scarlatti Sonia Rubinsky Algol 30,00 reais
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DANÇA
Movimento que nasce no Vale do São Francisco Revelando talentos como o cearense Kleber Cândido, Petrolina tem se tornado, nos últimos tempos, campo fértil para o desenvolvimento da dança Christianne Galdino
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arreira internacional ainda é apenas um sonho, uma meta inatingível, para muitos brasileiros que escolheram a dança como profissão. E não por falta de talento. Talvez a dificuldade de acesso à informação e a formação de qualidade sirvam de justificativa para esse árduo percurso. E, nesse caso, quanto mais longe dos grandes centros urbanos, mais remota é a possibilidade de um bailarino alcançar sucesso, principalmente quando se trata de dança contemporânea. Contrariando essa realidade, Kleber Cândido, que iniciou carreira em Petrolina, cidade pernambucana distante 712 km da capital, hoje se divide entre a companhia Pigeons International, de Montreal, Canadá, e vários projetos artísticos que desenvolve em Lisboa, Portugal, onde mora desde 2005. Natural de Juazeiro do Norte, mudou-se com a família para Petrolina ainda na infância e, aos 14 anos, quando conquistou o segundo lugar em um festival competitivo de dança na sede local do Serviço Social do Comércio – Sesc, recebeu imediatamente um convite para participar da companhia da-
quela instituição. A partir daí, decidiu “correr atrás” da sua formação de bailarino, aproveitando todas as oportunidades que o Sesc oferecia e indo além. “Estive no Recife diversas vezes durante os festivais de dança, e procurava fazer o máximo de aulas e oficinas. Foi em 2001, durante um destes festivais, que vi pela primeira vez uma apresentação do Grupo Experimental, do Recife. E, naquele momento, decidi que queria fazer parte daquela companhia, objetivo que no ano seguinte consegui concretizar”, conta Cândido. Para chegar à companhia que tinha virado referência para várias gerações de bailarinos do Vale do São Francisco, Kleber teve que, inclusive, dormir algumas semanas na própria sede do Experimental, pois não tinha recursos para se manter no Recife. A dedicação e a força de vontade foram sendo recompensadas com o crescimento profissional e o reconhecimento do seu trabalho. Vieram as temporadas, as viagens, o prêmio Apacepe de bailarino revelação pelo espetáculo Lúmen, em 2003, e o de melhor bailarino, no ano seguinte, por sua atuação em Postais do Recife, ambas montagens
do Grupo Experimental. A viagem a Portugal foi presente de um grupo de universitários portugueses que conheceram o bailarino no Recife, fazendo apresentações e atividades recreativas em hotéis, uma das várias funções que ele teve que desempenhar para conseguir sobreviver.. Logo na primeira semana em Lisboa, participou de uma audição e passou a integrar o elenco da Cia. de Dança de Lisboa. Depois trabalhou com a Vórtice Dance, de Fátima (Portugal); com o diretor Felipe La Féria, na montagem do musical Um violino no telhado; e na Kamu Suna Ballet Company, também de Lisboa, entre outros. Kleber lembra que em Portugal abriram-se as portas da sua carreira internacional. "Nesses quatro anos, já tive oportunidade de fazer apresentações em diversos países da Europa, até no Japão fui dançar. E também foi lá que surgiu o convite para participar do espetáculo da Cia. Pigeons International, que é dirigida pela portuguesa Paula de Vasconcelos”. Antes da turnê que realiza com a Pigeons até o dia 15 deste mês, por cidades do Canadá e Estados Unidos, o bailarino esteve em Pe-
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Bailarino Kleber Cândido em duo no Pátio de São Pedro, antes de seguir para turnês internacionais
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trolina e participou como convidado de uma mostra do Sesc. “Fiquei feliz em ver que cresceu o número de grupos de dança da cidade e observei também o aprofundamento da pesquisa de alguns criadores e bailarinos, mas acredito que, para vencer nessa carreira, não basta ficar esperando as informações que chegam à sua cidade, tem que buscar sempre mais e não desistir nunca”, diz. A história de Kleber Cândido não é o único exemplo bem-sucedido saído do Vale do São Francisco. “Muitos ex-bailarinos dos grupos locais estão na graduação em dança da Universidade Federal da Bahia-UFBA, alguns atuam em companhias profissionais no Sul e Sudeste do Brasil, como o Balé Guaíra, de Curitiba, e outros tantos estão se dedicando ao ensino da dança nas cidades vizinhas”, diz Jailson Lima, um pioneiro da dança em Petrolina, que atualmente dirige a Cia. de Dança do Sesc e a Cia. Qualquer um dos 2. Do início no grupo de dança afro Batuk-ajé, da Escola Otacílio Nunes de Souza, até hoje, já são 25 anos dedicados ao desenvolvimento da dança em Petrolina. Entre as suas referências mais
próximas estão o Grupo Experimental e o Grupo Grial de Dança, do Recife; e a companhia Viladança, de Salvador. “Mas quero muito um dia estar próximo da Quasar, de Goiânia, porque acompanho a trajetória deles e acho um processo muito interessante e fascinante. Tenho estudado e visto também os trabalhos da companhia de Lia Rodrigues, e isso tem ajudado bastante na construção e na ampliação do meu entendimento de dança”, completa o coreógrafo, que acredita ser possível fazer carreira em dança, mesmo escolhendo permanecer na sua cidade natal. “Quero poder levar os meus trabalhos para outros lugares, mas não tenho vontade de migrar, pois acredito que posso fortalecer minha dança aqui mesmo. E sei que assim posso contribuir muito mais para que essa cidade se torne uma referência em dança no país”, relata Lima.
Ao que tudo indica, o incansável trabalho de Jailson, apoiado pelo Sesc, onde trabalha desde 1991, tem contribuído e muito para encurtar as distâncias entre Petrolina e os pólos de dança do Brasil. Além de oferecer cursos regulares de dança e oficinas, o Sesc promove o intercâmbio e movimenta culturalmente a cidade, através de ações capitaneadas e muitas vezes coordenadas por Jailson Lima. “Temos em Petrolina o Vale Dançar, um festival que acontece no mês de abril somente voltado para a linguagem da dança, com palestras, oficinas e mostras; e o Aldeia do Velho Chico, um grande evento que integra todas as linguagens, realizado no mês de agosto, que garante um bom espaço para a dança local, e traz a Pernambuco os espetáculos do festival Palco Giratório do Sesc nacional ”, exemplifica. Como a maioria das cidades do interior do Brasil, em Petrolina, durante muito tempo, a prática da dança esteve apenas vinculada às academias de balé clássico e aos poucos grupos de danças populares, em sua maioria, pertencentes às escolas públicas e privadas da região. A partir do trabalho desenvolvido pelo Sesc, várias companhias de dança contemporânea foram surgindo, como a Fértil Cia. de Dança, a Cia. Qualquer Um dos 2, e o próprio Núcleo
Solo do bailarino André Vítor Brandão, no espetáculo Na batida, da Cia Qualquer um dos 2
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Cena do espetáculo Fuá na casa de Zé Mané, da Cia de Dança do Sesc Petrolina. Abaixo, Vire ao Contrário, da Cia Qualquer um dos 2
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de Dança do Sesc, voltado exclusivamente à linguagem contemporânea. Nesse processo, o diálogo com artistas de outros lugares tem sido fundamental, e foi por essa via que as produções de Petrolina conseguiram espaço em alguns eventos. A Cia. Qualquer um dos 2, formada exclusivamente por rapazes, acaba de participar do 15º Janeiro de Grandes Espetáculos, no Recife, e foi tam-
bém apresentar o seu primeiro espetáculo Vire ao contrário, no projeto Quarta que Dança, em Salvador. Jailson Lima explica que, “apesar de ainda não termos sede própria ou qualquer tipo de financiamento, conseguimos manter uma agenda diária de atividades, fazemos aula, estudamos, desenvolvemos pesquisas e laboratórios criativos como qualquer compa-
nhia”. Talvez essa postura profissional, visível nos grupos e artistas locais, explique o fato de o Vale do São Francisco ter-se revelado nos últimos tempos campo fértil para o desenvolvimento da dança. No entanto, o avanço esbarra nas mesmas questões que afetam artistas da dança em todo o país. O discurso de Lima reverbera as falas dos tantos profissionais da dança que buscam espaço, reconhecimento e estratégias de sobrevivência: “As principais dificuldades são a falta de incentivo, e a ausência de políticas públicas voltadas para a linguagem da dança, além, é claro, da distância geográfica”. Relatos assim nos levam a pensar no abismo que ainda existe entre o recorrente discurso da descentralização e o que acontece na prática. A interiorização das políticas culturais tão alardeadas parece que ainda não passam de utopia. Mas Petrolina tem enfrentado essa realidade e encontrado, na realização de festivais na cidade e na busca pessoal dos bailarinos e coreógrafos, uma maneira de tentar driblar esses obstáculos e projetar sua dança mundo afora. E, ao que parece, a receita está funcionando. FEV 2009 • Continente x
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esde o dia que recebi o convite trazido pelo motoqueiro, mediante recibo, como quem diz “olha, não tem desculpa”, exatamente me senti à altura, satisfeito de ter sido convidado, apesar de achar tremendamente cacete qualquer tipo de solenidade; não tendo nem paletó e a última vez que botei gravata foi no casamento vai fazer cinquentinha, disse: Taí, irei com prazer assistir à posse de Antônio Campos. Pensei até em responder o répondez s’il vous plaît, pela primeira vez na vida. Conheci-o há bem pouco tempo na Fliporto, a Festa Literária de Porto de Galinhas, e achei nele uma simpatia natural que me desarmou completamente. Quando me recebeu com um abraço calmo sem maiores demonstrações, parecia que era eu que abraçava a mim mesmo, quando mais jovem e mais gordo. Fui à Fliporto por obrigação. Muito mimado, muito bemtratado, botaram-me na melhor pousada. Por sugestão de Virgínia Pernambucano, Antônio Campos topara reeditar dois livrinhos meus, se se podem chamar de livros coisas tão pequenas, que “não se põem em pé”, e com o mais fino trato de Patrícia Lima: ela tem a capacidade de se apaixonar pelo que faz e essas duas memoriazinhas mortas e sepultadas, Ipojuca de Santo Cristo e Os dias de Uidá, me sorriram de novo, ou melhor, era como se dessem o primeiro vagido. E por que esses dois livrinhos, no meio de tantos escritores de verdade que vieram à Fliporto, até de outros países? Em primeiro lugar, porque a praia, o lugar
Porto de Galinhas, pertence ao município de Ipojuca, cidade onde nasci, bem no centro, na rua do Comércio, tendo ali me criado até vir estudar o ginásio, que não tinha lá, interno no Colégio Marista, na então rua Conde da Boa Vista, voltando nas férias a Ipojuca; e assim também algum tempo quando deixei de estudar, na Faculdade de Direito, para me dedicar à pintura de que vivo até hoje; e quanto a Os dias de Uidá, é que do Benin, onde fica a cidade de Uidá, nos veio grande contingente de escravos justamente da tribo dos “galinhas”, que de galinhas não tinham nada, já existiam antes da descoberta do Brasil e ainda existem em vários pontos da África: de fato, chamavam-se “fule” ou “pule”, o que levou os portugueses a pensarem se tratar da palavra francesa poule (“ou”, em francês, pronunciase “u”), que significa “galinha”, não tendo fundamento a lenda de que descarregavam escravos chamandoos de “galinhas”, para enganar a fiscalização, depois da proibição do tráfico e outras histórias inventadas; maiores informações com Virgínia Pernambucano; e quanto à minha ida ao Benin, tratava-se de um encontro mundial de artistas de influência negra, maiores informações no meu livrinho mesmo. Colei, no calendário, o convite da posse de Antônio Campos na Academia Pernambucana de Letras, para não esquecer. Programei-me. Naquele dia, não quis nem sair, para chegar lá bem disposto às 19h30. Mas aconteceu um fato imprevisto, como diz Stefan Zweig ao longo do romance Coração inquieto. No fim da tar-
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Essas duas memoriazinhas mortas e sepultadas, Ipojuca de Santo Cristo e Os dias de Uidá, me sorriram de novo, ou melhor, era como se dessem o primeiro vagido
de, depois de pintar o dia inteiro, a luz ter ido embora – que só pinto com a luz do dia –, peguei sofregamente o volume, de cuja leitura vinha me ocupando nas horas vagas dos últimos dias. E noites. Não podia deixar de acompanhar os ímpetos românticos da jovem Edite, herdeira única do ricão do lugarejo onde fora parar o regimento do garboso tenente Hofmiller da Cavalaria do Exército Imperial e Real da Áustria; a letra boa de ler, li, li e não pararia de ler até que acontecesse alguma coisa, como de fato aconteceu: “Notei que Edite estava olhando para mim. Adivinhei quanto seus lábios entreabertos desejavam um contato tão íntimo como esse. Por isso rapidamente me curvei e lhe beijei a boca”. Ainda li umas páginas e peguei no
sono como se por ora a nossa missão, a minha de leitor e a do tenente de noivo, estivesse cumprida. De manhã, foi que vi, ao riscar no calendário o quadradinho do dia anterior: “Tonca, 19h30”. E o incrível é que me preparara o dia todinho para uma coisa que detesto, reunião social; mas justamente me alegrava ter de romper essa minha ojeriza para prestar uma mínima homenagem a um escritor. Mas que por outro escritor foi roubada. A moça Edite termina se suicidando. Teria o escritor imaginado que o mesmo haveria de lhe acontecer, depois de tantas peripécias da Segunda Guerra, em pleno paraíso? Só me restou passar o telegrama: “Tonca, que a mortalidade humana seja guiada pela imortalidade”. FEV 2009 • Continente x
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a história em
quadrinhos De puro entretenimento, gênero passa a tratar de temas densos e nem sempre engraçados, enfocando conflitos mundiais e personagens esquecidos pelo oficialismo André Dib 92 x Continente • FEV 2009
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Che – Os últimos dias de um herói, criação de Hector Oesterheld e Alberto Breccia
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ara os brasileiros, durante décadas, histórias em quadrinhos foram pouco mais do que um passatempo pueril. Com o tempo, e certo esforço das editoras, o padrão importado da indústria dos comics norte-americanos foi sendo quebrado. Hoje, o mercado de HQs oferece bem mais do que super-heróis, camundongos e outros bichos. Ele reflete uma produção mundial, que utiliza a linguagem peculiar dos quadrinhos para tratar de temas densos e nada engraçados, como a bomba de Hiroshima e o Holocausto, apenas para citar dois grandes marcos: Gen, de Keiji Nakazawa, e Maus, de Art Spiegelman. Após sua publicação, a partir dos anos 1970, os quadrinhos históricos ganharam relevância não somente pelo compromisso social de relembrar fatos importantes do passado, mas pela evidente criatividade de seus melhores autores. De tempos em tempos, há uma onda de boas publicações do gênero, e passamos por uma delas. Recentemente, dois bons exemplares vieram à tona, calcados em fatos históricos que marcaram a América Latina no século passado. O primeiro é Chibata! – João Cândido e a revolta que abalou o Brasil, da dupla cearense Hemetério e Olinto Gadelha. O segundo é Che – Os últimos dias de um herói, obra argentina produzida 40 anos atrás, logo após a morte do líder revolucionário. FEV 2009 • Continente x
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À esquerda, duas cenas do quadrinho Chibata! – João Cândido e a revolta que abalou o Brasil; à direita, Fidel e Guevara em Che
Listado no índex da ditadura argentina, a versão nacional para Che chegou somente no mês passado, e preenche uma lacuna na bibliografia nacional. A HQ, criada por Hector Oesterheld e Alberto Breccia, é considerada uma obra-prima, não somente pelo caráter político-histórico, mas por narrar a trajetória do personagem com maestria no uso das técnicas de claro-escuro. Além disso, o próprio livro entrou para a história, sobrevivendo à cruel ditadura argentina. A obra venceu, mas o roteirista Oesterheld e suas filhas foram presos, torturados e assassinados pelo regime dos generais. Ao longo do tempo, a dupla tem
sido adotada como referência básica por gigantes como Hugo Pratt (criador da série Corto Maltese) e Frank Miller. tanto Chibata! quanto Che foram lançados pela editora paulista Conrad. “Durante mais de 50 anos, os quadrinhos foram a linguagem artística mais censurada do Ocidente. Como eram considerados uma coisa de criança, só se aceitava que tratassem de temas que os adultos julgassem adequados às crianças. Ainda hoje, qualquer quadrinho que trate de temas mais complexos que guerras intergaláticas ou brigas de patos são obrigados a trazer o aviso: ‘quadrinhos adultos’, mesmo
que não tenham cenas de sexo ou excesso de violência”, situa Rogério de Campos, diretor da Conrad, que ostenta em seu catálogo outros capítulos em quadrinhos da história mundial, como os conflitos no Oriente Médio e Leste Europeu narrados pelo jornalista gráfico Joe Sacco, em Palestina e Uma história de Sarajevo. “Creio que os quadrinhos estão vivendo seu momento de libertação. A queda das vendas dos gibis de super-heróis e os outros gêneros tradicionais abriam espaço para outros tipos de quadrinhos. Veio também abaixo aquele muro de preconceito e ignorância que impedia muita gente de perceber
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Em sentido horário, Maus, de Art Spielgelman; Gen – pés descalços, de Keiji Nakazawa e Área de segurança: Gorazde, de Joe Sacco
que os quadrinhos são uma linguagem artística como outra qualquer, com os mesmos direitos e deveres”, reflete Campos. Ele conta que a ideia de quadrinizar a Revolta da Chibata, episódio obscurecido pela historiografia brasileira, partiu da própria editora. “Agrada-nos pensar que Chibata! surgiu em parte como resultado desse trabalho da Conrad de mostrar que quadrinhos podem falar de qualquer tema”, afirma o editor. A aposta deu certo: o projeto é considerado pela crítica especializada uma das melhores HQs de 2008. Parte do mérito veio da confiança depositada nos artistas convocados para a missão. “A Conrad foi corajosa, ao confiar nos nossos instintos e nos deixando em paz para trabalhar”, conta Hemetério, que desenhou as 244 páginas do livro. “A história brasileira é rica em fatos, mas pobremente documentada. E quando tudo vem à tona, sempre passa um quê de ranço oficial. Quanto mais houver pesquisas e questionamentos, mais os fatos poderão ser analisados à luz da crítica. Os quadrinhos nacionais podem ter um papel relevante nessa divulgação, desde que sejam divertidos e criativos, por exemplo,
ao dar voz a quem a história oficial tentou calar, ou mostrar as coisas por outro ângulo”, pensa o artista. Para ter acesso a informações sobre o levante liderado por João Cândido, o “almirante negro”, o roteirista Olinto Gadelha desenvolveu um cuidadoso trabalho de pesquisa, que se valeu de bibliotecas tradicionais à internet, que para ele foi ótima fonte iconográfica. “Um dos motivos que me atraiu foi o fato de que o público pouco sabe sobre o tema. A visão escolar é muito resumida, e isso simplifica a importância dos eventos de 1910. Por ter sido uma insurreição contra uma forte instituição nacional, e ressaltado o que havia de pior nas relações sociais e raciais da nossa sociedade, o tema sempre foi tratado com reserva. Nestes 98 anos desde os fatos, muitos que ousaram se pronunciar sobre os eventos foram perseguidos e censurados”, afirma Gadelha. Para o desenhista, o sucesso das HQ sobre temas históricos está na busca dos leitores por melhores exemplos. “Faltam-nos heróis. A história do nosso povo é cheia de distorções, ídolos fajutos, feitos atribuídos a quem teve pouca ou
nenhuma relação com os mesmos, e muita gente heroica como João Cândido é deixada no esquecimento porque seus atos ou origens iam na contra-mão da norma estabelecida." Outro nome que tem se destacado no ofício das adaptações da história para os quadrinhos é o ilustrador, cartunista e quadrinista João Spacca de Oliveira. Nos últimos anos, ele produziu Santô e os pais da aviação, Debret – Viagem quadrinhesca ao Brasil e D. João Carioca, todos pela Companhia das Letras. “Tenho a impressão de que a HQ precisa desses e outros referenciais para ser melhor aceita. Tradicionalmente, ela é fruto da indústria cultural, ou seja, é entretenimento descartável. Mas, como nos filmes B de Hollywood, surgiram autores que se destacaram e conseguiram fazer evoluir essa linguagem ao estado da arte”, avalia Spacca. Neste processo em comum a todos os casos aqui descritos, a atualização de um passado “oficial” a partir do olhar de cada autor, os quadrinhos extrapolam a condição de objeto de entretenimento para assumir uma das funções sociais da arte: estimular o pensamento e – por que não? – a ação. FEV 2009 • Continente x
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Marcella Sampaio
O biquíni branco de Carla Bruni
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unca as férias presidenciais deste último fim/início de ano foram tão documentadas e analisadas. Lula e sua Marisa, Sarkozy e sua Carla, Fernando de Noronha, Bahia e os fotógrafos, jornalistas, curiosos, enxeridos. Normal, as pessoas públicas assumem também a prerrogativa de ter que dividir suas atividades particulares com terceiros. Assunto, de fato, nenhum, porque o que existe de tão fenomenal e interessante em um casal tirar férias numa praia paradisíaca do Brasil? Nada, nada, nada. Porém... O tratamento que nossos ilustres visitantes franceses receberam da mídia brasileira foi, no mínimo, pouco lisonjeiro. Sarkozy foi tratado como um ogro que ganhou a princesa, nem tão encantada assim, e sua mulher, como a modelo-cantora-quase-puta que “ofuscou” o marido vestida num biquíni branco. Bastante comportado, como gostam as europeias, aliás. As referências a ela, de colunas de jornal a chamadas de TV, estiveram quase sempre resvalando no mau gosto, na vulgaridade. Como se fosse crime ser bonita, famosa, pouco convencional e, ainda assim, primeiradama de um país como a França.
“A cantora que encantou Sarkozy coleciona namorados”, disse um jornalão do sudeste, em janeiro último. Alguém está contando quantos namorados ela teve ao longo da vida? E por que mesmo, com que objetivo? Que relevância isso tem, caros colegas? O marido dela, que deveria ser o maior interessado, não parece estar muito preocupado com o fato. Provavelmente, é um homem Divulgação inteligente, e pouco afeito à necessidade de auto-afirmação machista e anacrônica que alguns colunistas insistem em perpetuar. Ai, que cansaço. É exaustivo perceber que as mudanças nesta seara acontecem tão devagar. A imprensa, naturalmente, reflete um estado de ânimo que é social, o que torna tudo ainda mais preocupante, mas é capaz, quando quer, de provocar e propor. Proponho eu, então, que as referências às pessoas, homens e mulheres, sejam feitas a partir do que merece registro e é efetivamente relevante para a audiência. Ainda que esta audiência esteja embotada pela overdose de bobagens que lê, vê ou ouve diariamente, vale a pena seguir por um caminho menos óbvio. Em nome de tantas outras, mademoiselle Bruni agradece.
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