OTAVIO DE SOUZA
maio 2009
aos leitores
A ideia de Deus não nos deixa em paz. Este é o princípio que norteia a discussão trazida pela matéria Novos embates da fé, que integra esta edição da Revista Continente. Se a fé não deixa margem a dúvidas, já que ela não demanda mais que crença, o mesmo não se dá no plano de sua racionalização e crítica. Vez por outra, as polêmicas entre crentes e ateus se acirram, em geral desencadeadas por um fato específico. O mais recente destes foi campanha realizada pela Associação Humanista Britânica, que fez circular nos ônibus londrinos a frase “There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life” (Deus provavelmente não existe. Agora, pare de se preocupar e aproveite sua vida). O debate espalhou-se pelo mundo e chegou às nossas páginas, como o leitor verificará adiante. Outro assunto controverso é a questão indígena. Desta vez, o que nos mobilizou em torno dele foi a informação, divulgada pela Unesco, de que a língua yaathe estaria seriamente em perigo. Ela é a única nativa falada em Pernambuco pelos fulni-ôs (foto). De acordo com as apurações feitas pela repórter Danielle Romani, linguistas especializados
no assunto contestam a classificação da instituição internacional. Diante do impasse, o melhor era seguir a cartilha do bom jornalismo: ouvir variadas fontes, checar, atualizar e interpretar dados e informações. Algumas evidências do esforço empreendido pelos fulni-ôs para falar, escrever, ensinar e sistematizar o yaathe estão na nossa reportagem de capa, composta de uma saudável polifonia e ricamente documentada pelas fotografias de Otavio de Souza. Nesta edição, ainda, entre outros assuntos, apresentamos ao leitor uma seção que faz parte das inovações editoriais da Continente: Viagem. Nela, pretendemos trazer informações sobre lugares que tenham seus atributos específicos, peculiaridades, encantamentos. A primeira parada desta Viagem foi no bairro da Liberdade, centro da capital paulista, que, sendo conhecido como o “bairro japonês”, atrai visitantes em busca de manifestações desta cultura oriental, mas que acabam encontrando lá também produtos de origens insuspeitas, como uma charmosa doceria de acento francês, ladeada por restaurantes em que a palavra mais pronunciada é sushi.
continente maio 2009 | 1
sumário entrevista
Márcia Denser
06
Expediente + colaboradores
8-9
Online + cartas
16-17
22-23
36-38
40-41
Edição nº 100 Leitores comentam o novo projeto gráfico e editorial da Revista
Balaio
Arquivo A história de uma fotografia que poderia ter sido capa da Continente e não foi
Peleja
Sim ou não Você acha que a meiaentrada para eventos culturais deve ser extinta?
Perfil
Luiz Antonio Marcuschi Coleção de livros e DVD presta homenagem a um dos pioneiros no estudo da linguística textual
Bússola
Badida A artista plástica conta aos leitores o que tem feito e do que tem gostado nos últimos tempos
48-59
Conexão
60-61
Baú
62-65
70-75
76-77
Mira Schendel Estudo mostra vinculações da artista com a filosofia
Matéria Corrida
José Cláudio Ivan Carneiro (Recife, 1929 – Rio de Janeiro, 2009)
78-79
Palco
80-94
Claquete
85-87
Cardápio
88-91
Sonoras
92-95
Leitura
Palestras na rede Site reúne discursos marcantes de personalidades de diversos campos
Caricaturas O pernambucano Emílio Cardoso Ayres criou um retrato rico da aristocracia carioca da Belle Époque
Visuais
96
Escritora paulistana, autora de Diana caçadora, fala sobre sua descrença no ambiente intelectual brasileiro, critica o recente Acordo Ortográfico e mete-se na polêmica entre Lobo Antunes e José Saramago
10
Primeiro Ato Grupo mineiro traz ao Recife seu mais recente espetáculo, Geraldas e avencas
Diretores Indústria do cinema aposta no lançamento de DVDs com versões do diretor
Prateleiras O mercado editorial no campo da gastronomia está cada dia mais farto
Camargo Guarnieri As obras para violino e orquestra do compositor são registradas em DVD
Barroco O livro Igrejas barrocas do Brasil mapeia mais de 80 templos nacionais
Saída
Marcelino Freire Elocubrações do cronista sobre a saideira
Portfólio Fotografia
Uma vitrine, uma contraluz e dois manequins – estes são os elementos da série intitulada invisibilidade, do fotógrafo Alexandre Belém
História
Jornalismo A retomada do interesse pelos relatos de guerra
18
Capa: Roberta Guimarães
continente maio 2009 | 4 5
capa
Índios
Pernambucanas
Ao chegar em Águas Belas, no agreste pernambucano, qualquer expectativa de encontrar índios plumários é quebrada no contato com os fulni-ôs, que trabalham na manutenção de sua língua, o yaathe
O número 464 da Estrada Real do Poço, no Poço da Panela, guarda acervo de mais de 10 mil livros deixados pelo jurista Ruy da Costa Antunes
24
Casa de livros
66
Viagem
especial
Incrustado no coração de São Paulo, o bairro da Liberdade torna-se ambiente de convivência de orientais adeptos à tradição e de jovens descolados
Campanha publicitária europeia, cujo foco é a inexistência de Deus, suscita a volta ao debate sobre a necessidade humana de transcendência ou sua desvinculação com as demandas da fé
Liberdade
42
Deus
50
continente maio 2009 | 5
Maio’09
cartas Novo projeto Escrevo esse e-mail para parabenizá- los pelo projeto gráfico e pela qualidade da Continente, que só tem aumentado. Com certeza vocês já leram centenas de parabenizações, porém quero ser jornalista cultural e não podia deixar de expressar meu orgulho de ser conterrâneo de uma revista tão bem escrita e bem projetada como esta. Parabéns a todos que fazem da Continente um orgulho para os pernambucanos. Carlos sílvio olinda — PE
Recebi hoje, domingo, bem cedo, a edição de número 100. Não poderia deixar de fazer os merecidos elogios. A Revista Continente, de refinado e limpo traçado visual, tem cumprido acima de tudo seu papel - excelente conteúdo e distribuição de matérias, o que favorece a leitura e alegra nosso apetite cultural. Parabéns!!! Frank souto Maior rECiFE — PE
As reminiscências de Reynaldo Jardim sobre o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil foi, para mim, o ponto alto da matéria sobre jornalismo cultural. A reportagem, aliás, está muito bem apurada e aprofundada com colaborações de nomes como Daniel Piza e Claudio Tognolli. Só senti falta dos editores dos cadernos de cultura dos jornais pernambucanos no rol de entrevistados. Sei que eles aparecem na edição do Pernambuco, mas não necessariamente o leitor vai consumir as duas publicações. Vocês acertaram em cheio nas mudanças do projeto gráfico. A Continente precisava disso. Vida longa a essa nova fase! adriana Guarda rECiFE — PE
Melhorou sensivelmente o formato da Continente, porém, na condição de, talvez, um dos mais idosos
assinantes, pediria, se possível, aumentar o tamanho das letras, não colocar textos em negrito sobre fundo cinzento ou qualquer outra cor de letra ou fundo que causem dificuldades à leitura.Deixa também saudades imensas a página Sabores, de Maria Lecticia Cavalcanti, que dá um “banho” no assunto, com abordagem histórica e antropológica. Sugiro a abordagem não só de rock, mas de música brasileira pura como choro e samba – Pernambuco possui inúmeros grupos musicais do mais alto quilate. WaltEr MarquEs FErrEira rECiFE — PE
É sempre um prazer inusitado ler a Continente. Assinante, espero pela Revista com o entusiasmo de quem almeja um dia ensolarado após uma tempestade. Parabéns pelo belo e funcional projeto gráfico e editorial. Pela qualidade do conteúdo, reafirmada no número 100. E obrigado especialmente pelas colunas: Bússola - desvendando esse precioso e múltiplo intelectual, Ronaldo Correia de Brito; História - com texto envolvente de Paulo Santos, para ser lido sem pausas; e Perfil - em que Anco Márcio Tenório, numa “conversa apaixonante” com o leitor (como lhe é peculiar), reafirma a grandeza de Edson Nery da Fonseca. WilliaMs sant’anna rECiFE — PE
Multicultural Eu sempre gostei dos assuntos abordados pela Revista. O foco, a proposta, os temas atuais, pouco abordados por outras revistas. Algo novo e rico no cenário jornalístico, informativo e cultural. A capacidade de apresentar ensaios, teses de História, crônicas e matérias jornalísticas num só caderno, com harmonia, beleza, coerência e fiel à linha editorial. Afinal, isso é a característica multicultural que nós pernambucanos temos de mais original. Então, esperava que fosse mantida a proposta originária. Em segundo lugar, há algum tempo eu já sentia a falta do nome Multicultural, e, agora, na nova diagramação, ficou evidente que o nome sumiu. * doMinGos sávio MElo da silva rECiFE — PE * Leia carta na íntegra em www.revistacontinente.com.br
Francisco de Oliveira Tenho por dever, em primeiro lugar, assinalar a primorosa edição sobre os 100 anos de nascimento deste grande homem, o nosso sempre querido D.Helder Camara. O que me move a escrever para a seção de leitores é uma referência ao livro Noiva da Revolução, do Sr. Francisco Oliveira. O livro é composto de duas partes,como bem explica o texto da Revista. A segunda parte, Elegia para uma re(li)gião, é uma reedição após
voCê Faz a continente CoM a GEntE o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-Pe, ceP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar trechos e não tem compromisso de publicar todas as cartas. telefones: (81) 3183 2780 Fax: (81) 3183 2783 redacao@revistacontinente.com.br continenteonline.com.br
mais de 30 anos fora de catálogo. Li esse livro ainda adolescente, sugerido por meu pai, a quem, entre outros, o livro é dedicado. O exemplar que ele me entregou continha anotações em quase todas as páginas. Ao entregá-lo para que o lesse, ele comentou que aquele ensaio era um dos melhores estudos sobre a época; um livro de leitura obrigatória. A minha leitura confirmou as impressões de meu pai, embora o meu entendimento, então, e possívelmente até hoje, era mais superficial do que o dele. O Sr. Francisco de Oliveira tem um filho chamado Miguel, em homenagem ao meu pai. Meu pai faleceu no dia 13 de agosto de 2005. Um sábado cinzento, havia algo de parado no ar, um paradoxal espanto inesperado, uma surpresa, triste surpresa, em muita gente. Estranho dia: não havia surpresa, havia uma dolorosa espera que todos ou alguns recusavam a aceitar. O seu desaparecimento provocou muitas reações. Curiosamente, eu esperava muito o que aquela morte significaria para o sociólogo, hoje paulista. Ele, de fato, manifestou-se. Disse que meu pai era um bom contador de histórias. Achei infame esta reação, em se tratando de uma pessoa que era muito mais do que isto.* luiz Claudio arraEs dE alEnCar rECiFE — PE * Leia carta na íntegra em www.revistacontinente.com.br
eRRAtA
Diferentemente do que foi publicado na edição de nº 100, pág. 10, abril/2009, Cau Gomez é ilustrador e chargista de A Tarde, Bahia. O escritor Ronaldo Correia de Brito é cearense, e não pernambucano, como aponta o subtítulo da seção Bússola (pág. 44). E, na página 91, foi o ilustrador Samuca quem trabalhou junto com Ricardo Mello na produção do cordel. a rEdaÇÃo
continente MAIO 2009 | 6 7
colaboradores
carlos eduardo Amaral
cristina teixeira
Flávio Lamenha
Fred navarro
Mestrando em comunicação
Professora do Departamento
Fotógrafo recifense, já expôs em
Jornalista e escritor, publicou
social pela UFPE e crítico de
e da Pós-Graduação em
várias instituições. Atualmente
Assim falava Lampião e
música clássica
Comunicação da UFPE
vive em São Paulo
Dicionário do Nordeste
e MAiS
Hélder tavares
Marcelo Abreu
Sávio Araújo
Fotógrafo, atua no Diario de
Jornalista, professor e autor
Artista plástico, premiado
Pernambuco e na Agência
de livros de viagem
nacional e internacionalmente,
Monocromo
trabalha no Recife
Cristiano Ramos • Christianne Galdino • Eduardo Cesar Maia • Lúcia Stumpf • Marcelino Freire • Marco Polo • Marisa Moreira Campos (Badida) Otavio de Souza • Paulo Floro • Renato Lima • Ricardo Humberto • Rogério Robalinho
GoVeRno Do eStADo De PeRnAMBUco
suPErintEndEntE dE EdiÇÃo
Contatos CoM a rEdaÇÃo
atEndiMEnto ao assinantE
GovErnador
Adriana Dória Matos
(81) 3183.2780
0800 081 1201
Eduardo Henrique Accioly Campos
suPErintEndEntE dE CriaÇÃo
Fax: (81) 3183.2783
Fone/fax: (81) 3183.2750
sECrEtário da Casa Civil
Luiz Arrais
redacao@revistacontinente.com.br
assinaturas@revistacontinente.com.br
Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão rEdaÇÃo
ProduÇÃo GráFiCa
EdiÇÃo ElEtrÔniCa
coMPAnHiA eDitoRA De PeRnAMBUco - cePe
Danielle Romani, Mariana Oliveira e
Júlio Gonçalves
www.continenteonline.com.br
PrEsidEntE
Thiago Lins (jornalistas)
Eliseu Souza
Leda Alves
Maria Helena Pôrto (revisão)
Sóstenes Fernandes
dirEtor dE ProduÇÃo E EdiÇÃo
Eraldo Silva (webmaster)
Roberto Bandeira
Ricardo Melo
Bernardo Valença, Diogo Guedes, Flora
dirEtor adMinistratiCo E FinanCEiro
Pimentel, Guilherme Carréra e Renata
PuBliCidadE E MarkEtinG
Braulio Mendonça Menezes
Cadena (estagiários)
E CirCulaÇÃo
ConsElHo Editorial:
Elisabeth Cristina de Oliveira (apoio)
Armando Lemos Alexandre Monteiro
Mário Hélio (Presidente) Cristhiane Cordeiro
artE
Rosana Galvão
José Luiz Mota Menezes
Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação)
Gilberto Silva
Luís Reis
Nélio Câmara (tratamento de imagem)
Danielle Brayner
Luzilá Gonçalves Ferreira
Zenival (ilustrações) Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e impressão)
continente MAIO 2009 | 7
Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE rEdaÇÃo, adMinistraÇÃo E ParquE GráFiCo Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 501000-140 Fone: 3183.2700
MÁRCIA DENSER
Deusa da literatura contra o dragão da imprensa Escritora paulista, autora do cultuado Diana caçadora, relata sua descrença quanto ao ambiente intelectual brasileiro e discute o espírito de época contemporâneo TEXTO Fred Navarro
CON TI NEN TE#44
Entrevista
A escritora Márcia Denser não deixa o seu lado jornalista dormir em paz. Por isso, assina uma das colunas de um site conceituado, o Congresso em Foco, onde vira e mexe está sentando a pua nos políticos, banqueiros e burocratas que infernizam a vida dos brasileiros. Mas a verdade é que desde o lançamento de seu primeiro livro, Tango fantasma, em 1977, esta paulistana dedica-se à literatura como poucos, e pouquíssimas, fazem no país. Os nomes de alguns de seus livros são instigantes e reveladores: O animal dos motéis, Diana caçadora, Exercícios para o pecado. Sobre ela, certa vez, Caio Fernando Abreu escreveu: “Márcia Denser é uma luluzinha querendo se fingir de Messalina”. Antes, Paulo Francis tinha dito que ela era a única escritora brasileira que sabia escrever. Polêmica, invejada, respeitada, autora de 11 livros, entre contos, novelas e romances, traduzida em diversas
línguas, Márcia Denser também organizou coletâneas de sucesso que sintetizaram quase à perfeição o universo feminino existente na literatura brasileira nas últimas décadas do século passado. O melhor exemplo disso é Muito prazer, de 1982, que fez muito sucesso aqui e foi lançado na Alemanha e na Holanda. Nesta entrevista à Continente, Márcia Denser fala sobre Clarice Lispector e Virginia Woolf, com as quais diz não ter “afinidades eletivas”, critica o recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, mete-se na polêmica entre José Saramago e Lobo Antunes, e ainda conta uma curiosa história sobre João Cabral de Melo Neto. CONTINENTE Literatura serve para quê, mesmo? MÁRCIA DENSER Se o escritor for de primeira, a literatura será uma questão de vida ou morte, porque
a literatura não é a segunda, mas sua primeira natureza. Encarando a literatura como a realização de um projeto de vida, o significado original não só permanece como também se esclarece quanto mais e mais vivemos e escrevemos. Se minha vida começou com a descoberta do universo literário, o que não existe para mim é um significado fora desse universo. Que não se encare isso como excentricidade ou alienação, mas como a necessidade de ser coerente com um projeto de vida. Um escritor é um ser superespecializado num único sentido, não é exatamente um sujeito eclético. Fazer literatura (porque um conto não é um texto, é uma obra de arte) implica profunda concentração, para ele a dispersão é fatal, por isso seu campo de ação não é diversificado. Escrever ficção é enxergar coisas além do espectro, como se o resto do mundo – todo o
C CO ON NT TIIN NEEN NT TEE M MA AIIO O 220 00 099 || 110 1
Entrevista_10_11_12_13_14.indd 10
28/04/2009 17:23:49
FLAVIO LAMENHA
CONTINENTE MAIO 2009 | 11
Entrevista_10_11_12_13_14.indd 11
28/04/2009 17:23:54
mundo – fosse daltônico. Quanto à literatura em geral, indo ao centro da questão, o que mudou foi o espírito de época. Quer dizer, mudou tudo. E nada mudou. Contudo, existe a Literatura enquanto arte, cujos valores permanecem inalterados porque esta ocorre no plano virtual, atemporal. Exemplos? Shakespeare, Homero, Guimarães Rosa, Drummond. Veja, é preciso olhar as coisas em perspectiva: existe o teu projeto poético que, se tudo correr bem, irá entrar para a trama que constitui o padrão do projeto poético brasileiro que, por sua vez, se enlaça ao projeto poético ocidental. Vendo as coisas nesse âmbito, coisas do tipo “novas mídias” ou “produção de mercado” se esclarecem, quer dizer, passam a ser encaradas pelo que são, e elas são apenas meios, instrumentos e outras coisas de somenos. CONTINENTE Você chegou ao jornalismo
CON TI NEN TE#44
aos poucos, esse jornalismo cultural, muitas vezes investigativo, político, foi dando lugar para esse jornalismoabobrinha, esse jornalismo de entretenimento, que entrou pesado e matou o resto... A gente ainda tentou alguma resistência, ainda tentou fazer um jornalismo cultural de alto nível na Interview, na A/Z, na Around, era o pessoal que escrevia para a “minoria ruidosa” (em contraposição à “maioria silenciosa” da telinha), o pessoal que fugiu dos cadernos de cultura da grande imprensa, com suas matérias tijolinhos-bobagem, o jabaculê que se tinha que pagar... Se pegarmos os cadernos de cultura de hoje e compararmos, fica evidente como perderam consistência, profundidade. Lembro da Sonia Nolasco, mulher do Paulo Francis na época, na década de 1980, em Nova York, dizendo-me: “Eles mandam cada vez mais a gente fazer coisas superficiais, cada vez mais idiotas. Emburreça!”
Entrevista na contramão de quase todo mundo, não foi? MÁRCIA DENSER Eu sou um caso diferente. A maioria começa no jornal e depois é que publica. Eu entrei no jornalismo pela porta da literatura, fui convidada por causa do sucesso de Tango fantasma, meu primeiro livro. Fátima Ali editava a revista Nova na Abril e me convidou para a seção “Nova lê livros”. Eu tinha liberdade, mas tinha que ser objetiva, tinha que ter a objetividade da terceira pessoa. E trabalhei com muita gente boa, conheci muita gente talentosa, Telmo Martino, Giba Um, Caio Fernando Abreu, Paula Dip, Antonio Bivar, Carlos Brickman, Nirlando Beirão, Walcyr Carrasco, Luiz Fernando Emediato... A imprensa alternativa era forte naquela época, tinha o jornal Movimento, o Opinião, o Pasquim, a Escrita, e as revistas Realidade, Veja. Isso era o que havia de diferente, era todo o movimento cultural que estava vivo, os espaços onde se fazia a cultura eram algo muito vivo, não tinha internet, todos tinham que se aventurar pessoalmente para conseguir o que queriam. Mas depois,
CONTINENTE É uma geração que não volta mais, você não acha? MÁRCIA DENSER Não sei, mas acho que vai ser difícil a turma mais nova captar o espírito da coisa. Porque, como eu já disse, o que mudou foi o espírito de época. Mas é importante registrar que, para os escritores, fechamento de jornal e de revista é uma coisa que mata, mata a literatura. A impressão é a de que deram a você um avião para pilotar, mas para se dirigir a um lugar ao qual você não quer ir. CONTINENTE Você disse certa vez que Clarice Lispector e Virginia Woolf eram um saco de ler. Explique melhor isso. MÁRCIA DENSER Isso tem a ver mais com minhas “afinidades eletivas” do que com algum leviano juízo de valor, dito por exibicionismo babaca. Deus me perdoe, isso deporia contra mim, pois, melhor do que ninguém, sei que “escrever é se comprometer”, logo, eu não passaria recibo. Descontando algum chauvinismo latente (que perversamente escolhe a mulher como inimiga), o fato é que nem Clarice nem Virginia Woolf – escritoras geniais cujo valor é indiscutível – fazem parte de minha “Paideia” ou literatura
de sustentação, aquelas obras e autores que leio e releio, a exemplo de Faulkner, Vargas Llosa, Cortázar, Rubem Fonseca, Proust, estes, sim, indelevelmente incorporados ao meu DNA estilístico, à minha dicção. CONTINENTE Machado de Assis é recomendado para menores? MÁRCIA DENSER Desde que a cultura de mercado entrou com tudo, ocorreu simultaneamente a abaixada geral de QI, donde Machado ficou impróprio para menores de 18 anos.
“O fato é que nem Clarice (foto) nem Virginia Woolf – escritoras geniais cujo valor é indiscutível – fazem parte de minha “Paideia” ou literatura de sustentação, aquelas obras e autores que leio e releio” Ele é extremamente complexo para os jovens contemporâneos, que não têm maturidade psicológica tampouco cultura prévia para a leitura de Machado, para o entendimento de Machado, para decifrar e curtir Machado. Aí, dançou. Vai ser muito difícil futuramente para a turma da academia que, não obstante, prossegue alienadamente fazendo teses a metro sobre Machado – porque tem medo de se arriscar e de se pronunciar sobre os escritores contemporâneos –, estudando Machado impunemente, de touca, sem conferir sua recepção entre o público leitor atual. Eles, que hoje se arriscam cada vez menos criticamente, que julgam estar seguros
CONTINENTE MAIO 2009 | 12 3
Entrevista_10_11_12_13_14.indd 12
28/04/2009 17:23:55
apostando em Rosa ou em Machado, na verdade estão pondo em risco não Rosa nem Machado, mas a pertinência e a relevância da própria academia na área das letras. Então, temos o retorno do inconsciente colonial que confere desde sempre ao intelectual brasileiro o papel de “ornamento crítico da sociedade”.
Como podemos ver, o regionalismo teve o seu esplendor no Brasil enquanto tinha razão de ser. Hoje, se o regionalismo persiste, aparece como “ornamento retórico” ou “pitoresco”, cordelismos à parte, próprio dos gêneros infraliterários, como diria Haroldo de Campos. CONTINENTE O escritor português Lobo Antunes afirma que José Saramago tem uma fama desproporcional à qualidade de seu trabalho. Você concorda? MÁRCIA DENSER Na minha opinião, REPRODUÇÃO
CONTINENTE José Américo de Almeida escreveu que um romance brasileiro sem paisagem era como “Eva expulsa do paraíso”. São Paulo serve de paisagem, de moldura,
vetores axiais “cidade” e “campo” (cultura e natureza), e que eram a essência da problemática do país em formação. Foi uma literatura de transição entre o Brasil Colônia e o Brasil República, a realizar assim uma espécie de cartografia da epopéia nacional: no Norte/Nordeste com José Lins, Graciliano, Rachel de Queiroz; no Sul, com Érico Veríssimo e outros. E naturalmente aí resplandecem o romance, a saga, Guimarães Rosa, este a cobrir epicamente o Centro-Oeste e Minas Gerais, sendo que Minas (dele)
para romances, contos e novelas? Márcia Denser Antonio Candido, citando Roger Bastide, fala de um “Machado paisagista” porque a paisagem em Machado reflete-se nos olhos de ressaca de Capitu. Nunca ele fala de céu e mar, da paisagem do Rio de Janeiro, porque estão presentes nas mulheres, aliás foi isto que eu quis dizer quando falei que Machado é duma extrema sutileza. CONTINENTE Ainda existe uma literatura regional no Brasil moderno? MÁRCIA DENSER A rigor, tanto para a crítica quanto para a teoria literária, o regionalismo no Brasil existiu como característica da produção literária de um determinado período histórico, entre 1930 e 1960, marcado pelos
é também quase sertão da Bahia, ou seja, quase Nordeste. De forma que, glosando o seu conto A terceira margem do rio, seria preciso inventar um quinto ponto cardeal, ou seja, o “Sertão Imemorial”. A propósito de Guimarães Rosa, Antonio Candido, em seu ensaio Textos de intervenção (2002), lembra um fato interessante: Rosa foi um regionalista tardio e àquela altura, nos anos 1960, os críticos já estavam saturadíssimos de epígonos sertanistas, tanto que Wilson Martins registrou criticamente Sagarana com algo assim: “Que chato, mais um regionalista!”. A crítica foi publicada e, posteriormente, mesmo reconhecido o equívoco, Wilson Martins manteve o texto original, em nome da verdade.
“Desde que a cultura de mercado entrou com tudo, ocorreu simultaneamente a abaixada geral de QI, donde Machado ficou impróprio para menores de 18 anos. Ele é extremamente complexo para os jovens contemporâneos” Lobo Antunes representa um Portugal com uma literatura de vanguarda, política, de autoconsciência. Independentemente da qualidade literária e poética de José Saramago, ele não é exatamente um escritor representativo da pós-modernidade. Com ele, creio que a Academia Sueca está apenas premiando a tradição literária portuguesa. CONTINENTE Qual sua opinião a respeito do recente Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa? MÁRCIA DENSER Absolutamente ridículo. As regras de uma língua não se estabelecem por decreto, uma vez que a língua viva não é uma coisa, um objeto rígido, imutável no
CONTINENTE MAIO 2009 | 13
Entrevista_10_11_12_13_14.indd 13
28/04/2009 17:23:57
FOTOS: REPRODUÇÃO
PAIDEIA Entre os autores reverenciados pela escritora paulista, estão William Faulkner, Mario Vargas Llosa e Rubem Fonseca
tempo, mas um processo em constante transformação. Mas as pessoas sempre se apegam a leis e acordos escritos, como se apegam a clichês e ideias vazias, que não passam de letra morta. Por outro lado, a língua viva possui valor e substância, logo, não há por que se apegar a ela, não é? CONTINENTE O que fazer para crianças e adolescentes saírem da frente da tevê e lerem mais? MÁRCIA DENSER Eu deixaria livros ao alcance das crianças, mas sem forçar a
CON TI NEN TE#44
uma palestra. Também estavam por lá o Ricardo Ramos, a Edla Van Steen, a Lygia Fagundes Telles. Bom, no final a gente estava para sair, mas faltava o João Cabral, ninguém sabia dele. De repente, levanta-se uma cortina nos bastidores e João Cabral sai, de gatinhas, mas com um copo de uísque na mão, dizendo: “Pessoal, consegui fugir…” No olhar, um reflexo de moleque levado… Saímos e ficamos conversando por toda a noite. CONTINENTE A globalização continua como um de seus temas prediletos. MÁRCIA DENSER A globalização acentua a localização, as pessoas reagem tornando-se extremamente ciosas da própria cidade, ficam localistas, provincianas, assumem todo o provincianismo que já fora superado desde a década de 1970. Ou seja, houve um retrocesso em toda sociedade, por paradoxal que seja...
Entrevista barra… Vou dar um exemplo bastante concreto: havia uma biblioteca na casa da minha avó, onde a família se reunia aos domingos, em dias de festas. Naquelas tardes remotas, modorrentas, eu, meus primos e primas – umas 20 crianças – brincávamos, em loucas correrias, e a biblioteca fazia parte do itinerário. Contudo, daquelas 20, apenas duas – eu e uma prima mais velha – paravam e mergulhavam na leitura daqueles volumes silenciosos, deslumbrantes. CONTINENTE Você esteve com João Cabral de Melo Neto em certa ocasião. Conte para os leitores da Continente o que aconteceu. MÁRCIA DENSER João Cabral de Melo Neto... Eu me lembro de que o encontrei numa bienal de literatura aqui em São Paulo, a Bienal Nestlé, que premiava novos valores de romance, poesia e conto. Ele era membro do júri e eu estava lá fazendo
CONTINENTE Paulo Francis faz falta na imprensa brasileira, ele, que disse certa
“Ainda bem que temos o Francis como paradigma, quer dizer, alguém de grande porte para botar nos devidos lugares os jabores, mainardis e demais aspirantes de somenos”
vez que você era a única mulher que sabia escrever bem no Brasil? MÁRCIA DENSER Escrevi em algum lugar que “o brasileiro não só não tem memória como antecipa o esquecimento”, contudo, como exceção à regra, esta frase não se aplica à memória de Paulo Francis. Morto há 12 anos, em fevereiro de 1997, Franz Paul Heilborn mantém acesa a chama em torno de uma legenda. Francis gozou de um estatuto raro no jornalismo brasileiro: escrevia o que queria. Não estava a serviço dos interesses políticos do patrão, quer este fosse a Folha, o Estado ou a Globo. Assim, durante décadas, graças a essa independência de espírito, cultura enciclopédica e estilo corrosivo, tornou-se o maior crítico cultural e político da sociedade brasileira. Pessoalmente refinado, amoral, elitista e excludente, publicamente temido, respeitado, odiado e sobretudo invejado, seus inimigos eram legião, e os bajuladores idem. Insubornável. Infelizmente não teve e parece que não terá sucessores. Alguém como ele não é mais possível no insalubre contexto histórico contemporâneo. No entanto, sua figura emblemática continua crescendo na razão inversa duma mídia que cada vez mais se banaliza, acanalha-se, vende-se, perde credibilidade, sua função de mídia. Ainda bem que temos o Francis como paradigma, quer dizer, alguém de grande porte para botar nos devidos lugares – aquela terra de ninguém entre a irrelevância e o esquecimento – os jabores, mainardis e demais aspirantes de somenos. Entende-se por que as mediocridades de plantão precisam destruí-lo.
CONTINENTE MAIO 2009 | 14
Entrevista_10_11_12_13_14.indd 14
28/04/2009 17:24:03
CON TI NEN TE#44
online
destaques Vídeos, fotos, textos e muito mais conteúdo, além dos textos integrais das edições anteriores, você vai encontrar em
continenteonline.com.br
Viagem, disponibilizamos na rede informações sobre museus, centros culturais, bares, restaurantes e hotéis no bairro da Liberdade, em São Paulo, nosso destino nesta edição. Os amantes da dança também vão poder participar de uma promoção para concorrer a ingressos do espetáculo Geraldas e avencas, do grupo mineiro Primeito Ato, nos dias 15, 16 e 17 de maio, no Teatro de Santa Isabel.
VÍDEO
O filme Budapeste, com direção de Walter Carvalho, baseado no livro homônimo de Chico Buarque, estreia nos cinemas brasileiros no dia 22/5. Confira o trailer.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
No dia 7 de abril , ainda para marcar as comemorações da edição número 100, a Continente promoveu o debate Jornalismo cultural na contemporaneidade, com o diretor de redação da revista Bravo!, João Gabriel de Lima (foto). A palestra do convidado e as perguntas que movimentaram a discussão foram registradas num vídeo que, este mês, está disponível ao internauta. Além disso, com a estreia da seção
FLORA PIMENTEL
O jornalismo cultural contemporâneo em debate
MÚSICA
O grupo português Buraka Som Sistema acaba de lançar seu álbum Black diamond, sem lançamento previsto no Brasil. Escute algumas das suas composições.
Cepe. Sinônimo de bons livros. A Cepe não é só sinônimo de revista Continente e suplemento cultural Pernambuco. A Cepe também é sinônimo de livros de qualidade. Como as Circulares conciliares e interconciliares, cartas em que, entre outros temas, Dom Helder Camara revela os bastidores do Concílio Vaticano II. Ou a tetralogia O caso eu conto como o caso foi, relato de Paulo Cavalcanti sobre 50 anos de lutas políticas e sociais em
Pernambuco. Ou, ainda, Consulte nosso catálogo on line. Guel Arraes – Um inventor no A Cepe tem um bom livro audiovisual brasileiro, estudo acadêmico sobre a trajetória do para você. www.revistacontinente.com.br/catalogocepe2009 diretor que inovou a linguagem televisiva e cinematográfica brasileira. E mais: biografia, história, arte, literatura.
CONTINENTE MAIO 2009 | 15
ONLINE_15.indd 15
29/04/09 11:36
GIlPINHEIRO/REPRODuçãO A rEvistA no brAsil
pinGue... Da escritora francesa Muriel Barbery, no romance A elegância do ouriço: “O problema é que os filhos acreditam nos discursos dos adultos e, ao se tornarem adultos, vingamse enganando os próprios filhos. ‘A vida tem um sentido que os adultos conhecem’ é a mentira universal em que todo mundo é obrigado a acreditar. Quando, na idade adulta, compreende-se que é mentira, é tarde demais. O mistério permanece intacto, mas toda a energia disponível foi gasta há tempo em atividades estúpidas”.
...ponGue Do escritor francês François Bégaudeau, autor do romance Entre os muros da escola, cuja versão para o cinema é sucesso de público e de crítica na França e em toda parte: “Todas as organizações, como a escola, a família e a sociedade, repousam sobre a convicção de que alguns sabem mais do que os outros, que alguns detêm o saber e a experiência. Aí está a ilusão. Ilusão na qual acreditamos até o dia em que nos vemos adultos, professores e pais. E aí nos damos de que não sabemos muito mais do que sabíamos 10 anos antes. E que não dominamos de fato o tema da vida. Daí é preciso fazer o teatro dos adultos”. (Fred Navarro)
Guardada a sete chaves
Em 1959, o fotógrafo Gil Pinheiro publicou na revista Manchete foto de uma banca que retratava com fidelidade a importância que as revistas visuais tinham naquela época pré-televisiva. A imagem foi republicada em 2000, no livro A revista no Brasil, editado pela Abril. A foto de Pinheiro pareceu à redação da Revista Continente a imagem ideal para a capa da edição nº 100, em que discutimos o jornalismo cultural. Toca a equipe a caçar o paradeiro da tal fotografia. Sabendo da morte do autor, investimos nos herdeiros ou atuais proprietários, já que o proprietário inicial, o império Bloch Editores, decretou #44 falência há nove anos. Nada. Muitos telefonemas e e-mails depois, chegamos à viúva do fotógrafo, o que nos parecia o fim da odisseia. Telefone batido na cara, zeravam as possibilidades de comprar a imagem. Em meados de abril, foi divulgada a notícia de que será leiloado todo o acervo fotográfico das revistas da Bloch, que cobre meio século de história – de 1952 a 2000 – e possui um total de 12 milhões de fotos, cromos e negativos. Um material valiosíssimo, no meio do qual deve figurar a bela foto de Gil Pinheiro. Quem sabe num futuro próximo ela se torne novamente disponível.
con ti nen te
encontro com Hollywood
REPRODuçãO
A FRASE
Balaio
“o dinheiro não muda o homem: ele apenas o desmascara” Henry Ford
Na viagem que fez a Hollywood em 1936, Blaise Cendrars ficou impressionado com a faixa etária que por lá circulava. Por onde andava, ele só se deparava com jovens, a ponto de ter intitulado a cidade de “capital da juventude”, onde a vida era “intensa, matizada e extravagante”, o que pareceu algo único ao viajante suíço. Cendrars adverte, entretanto, que tal fragor pode não ser do agrado de todos. “Gosta-se ou não de Holywood. É uma questão de idade. É uma questão de geração. É quase uma questão de fisiologia”, escreve em uma de suas reportagens. E lamenta ter chegado velho por ali.
continente maio 2009 | 16 7
Balaio_16_17.indd 16
28/04/09 15:44
FlORA PIMENTEl
limpeza urbana
cRiAtuRAS
Em pleno mictório canino (o poste), foi colocado esse estêncil. A mensagem pretende educar os donos de cachorro que passam pelo bairro de Parnamirim. Criada pela agência de publicidade Gruponove, a campanha também quer dizer “Não bote ‘propaganda’ merda na rua”.
ACERVO FAMIlIAR
a liteira de bar
Ainda nos tempos em que fazia faculdade de direito, em pleno período de repressão, Alceu Valença (foto) saiu com alguns colegas para beber num bar atrás do Cinema São luís. Enquanto bebiam, uma chuva forte começou a cair. Ao saírem do bar, os cinco remanescentes pediram a um garçom conhecido algo que lhes servisse de abrigo contra a chuva. Seguiram pela Avenida Conde da Boa Vista agrupados debaixo de uma mesa de bar. Com o agravante da bebida, a mesa, que depois virou guardachuva, terminou por se transformar em uma liteira: cada um segurando em uma perna e um quinto elemento se revezando em cima do emadeirado. “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?!”, os discursos calorosos se aproveitavam das aulas de latim da Faculdade de Direito do Recife e tornavam vivas, porém ébrias, as palavras de Cícero. Eis que aparece uma guarnição da Rádio Patrulha e, ao ver cinco estudantes molhados proclamando palavras estranhas em cima de um verdadeiro palanque, seguiram a máxima da ditadura “prender antes, perguntar depois”. Assim, Alceu e os quatro amigos curtiram a ressaca atrás das grades, sendo soltos apenas na manhã seguinte.
roberto carlos, 68 anos, 50 de música Por Sávio araújo
continente maio 2009 | 17
Balaio_16_17.indd 17
28/04/09 15:44
Port f
con ti nen te#44
continente maio 2009 | 19 8
Portfolio_20_21_22_23.indd 18
28/04/09 15:44
t folio continente maio 2009 | 19
Portfolio_20_21_22_23.indd 19
28/04/09 15:44
01
02
con ti nen te#44
Portfolio
INVISIBILIDADE
Por Alexandre Belém TexTo: Adriana Dória Matos O acaso pode ser o momento em que deixamos que as melhores coisas nos aconteçam, sem expectativas, sem cobranças, livremente. Não apenas “por acaso”, mas nos intervalos, nas brechas. Porque se nada é esperado e estamos relaxados, fluímos. Foi em situações de espera e imprevisibilidade que Alexandre Belém diz ter realizado fotos recentes que lhe renderam ótimos resultados. Como ele atua no fotojornalismo, o trânsito em busca de assuntos e reportagens é uma constante. Enquanto esperava o táxi, certo dia de trabalho, olhou para o outro lado da rua e viu a cena que daria corpo à série apresentada nestas páginas. Uma vitrine, uma contraluz, dois manequins. Não fosse a sensibilidade do fotógrafo, este seria apenas um entreato, pausa para uma troca de vestimentas. Belém tomou partido do clima futurista sugerido pela composição, por si monocromática, e buscou a ela acrescentar enquadramentos, close-ups e desfoques, realizando um conjunto que depois intitulou Invisibilidade. Ele conta que não se deteve na pós-produção, apenas tratou as imagens, captadas com equipamento digital. Quem quiser dar uma olhada em outras “aleatoriedades” bem-sucedidas do fotógrafo, pode acessar o http://olhave.com.br/portfolio.
01
inAnimAdos Invisibilidade é, junto com a série A imagem de dentro, exibida em 2008 no Museu Murillo La Greca, trabalho que Alexandre Belém realizou a partir da observação de manequins de vitrine
02
série ou ensAio? O fotógrafo prefere chamar esse conjunto de imagens de série e não de ensaio, por achar que a palavra ensaio pressupõe planejamento de execução não ocorrido neste trabalho, regido pelo “acaso” e pela sensibilidade
03
AutorAl Atuando no fotojornalismo desde 1992, Belém tem abandonado a referencialidade excessiva do gênero em fotografias mais autorais, apresentadas e selecionadas em salões de artes plásticas nacionais
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 220 1
Portfolio_20_21_22_23.indd 20
28/04/09 15:44
03
continente maio 2009 | 21
Portfolio_20_21_22_23.indd 21
28/04/09 15:44
Você acha que a meia-entrada para eventos culturais deve ser extinta?
con ti nen te#44
Peleja
De um lado, o empreendedor cultural Rogério Robalinho, diretor da Cia. de Eventos, empresa que organiza o Festival de Inverno de Garanhuns e a Bienal Internacional do Livro, entre outros eventos em Pernambuco; de outro, a estudante Lúcia Stumpf, presidente da UNE – União Nacional dos Estudantes, desde 2007. Eles discutem o benefício surgido nos anos 1930 e suas eventuais distorções e restrições
RoGÉRio RoBALinHo Penso que este debate, na verdade, mascara outra discussão, que é a virtual falência do modelo de realização de políticas estudantis. Creio ser legítima a apropriação de bandeiras pela práxis política, mas, honestamente, não vejo como possa existir defesa a ideia de que o estudante, por não ter ainda durante o essencial período de sua formação a desejada robustez financeira, proteja, em sua entidade política mais representativa, suas unidades estudantis e leve esta discussão ao foro público legislativo. Acredito que seria mais apropriado se, nos campi da vida, esta discussão pudesse remeter-nos ao bom debate e à reivindicação desse desconto sobre a aquisição do livro, instrumento fundamental à sua formação intelectual e ao enriquecimento de sua base cultural. Está evidente que espetáculos culturais alargam os horizontes das pessoas com dinheiro ou sem ele, mas essa questão ser posta como um troféu conquistado pela classe estudantil – em detrimento de debates e reivindicações mais justas – neste momento de tantas e tão grandes transformações pelas quais o país passa, sinceramente, é desalentador. Imagino que vivamos um Estado de direito e uma economia de mercado, em que este tipo de formulação, engendrada por jovens “líderes” estudantis e encampada por falsos políticos compõe um caldo cultural e uma política chinfrim que não enaltece uma geração. Procuro deixar claro que a meia-entrada justificava-se na época da ditadura, quando vivíamos uma economia fechada e o Estado era distribuidor de benesses à cata de aplauso fácil, sobretudo dos formadores de opinião, como os estudantes. Neste caso, todo um elenco artístico era inventado e contratado pelo Estado – como no Projeto Pixinguinha – por quanto bem se entendesse, e as meias-entradas eram oferecidas sem nenhum limite aos estudantes, talvez com o intuito de cooptá-los. A conta era paga com dinheiro público. Hoje, o empresário privado faz as contas ao oferecer o espetáculo ao público, não deve haver este tipo de subsídio como havia por trás deste tipo de empreendimento, por não ser justo que o outro virtual expectador, o não-estudante, pague mais este tipo de conta: basta de distorções e de falsos debates. A juventude pode e deve se comprometer com transformações. É apropriado, hoje em dia, pensar qual o grande papel da política estudantil. As bandeiras não devem ficar restritas ao ambiente acadêmico, como na época do impeachment e no golpe de 64, em que os estudantes foram fundamentais. Ainda deixo outra questão: o que parece justificar o direito à meiaentrada é a falta de recursos dos estudantes para ter acesso aos bens culturais. Resumindo, o estudante pode pagar meia-entrada, à guisa de legislação específica e corporativa, para ver bandas absolutamente desclassificadas como existem e proliferam, hoje, tantas por aí: em que aspecto esta movimentação fomenta uma sociedade mais rica culturalmente? O buraco é mais embaixo.
“o estudante paga metade para ver bandas desclassificadas. em que aspecto isso fomenta uma sociedade rica culturalmente?”
continente maio 2009 | 22 3
Peleja_22_23.indd 22
28/04/09 16:03
Flora Pimentel Divulgação
Rogério Robalinho
LÚciA StUMPF Desde a década de 1940, os estudantes brasileiros conquistaram o direito à meia-entrada para eventos culturais que garantem uma formação plena aos jovens, que aprendem não só quando estão em sala de aula, mas também indo ao teatro, cinema ou museu. O Projeto de Lei 4571/08, aprovado pelo Senado Federal no final do ano passado e que tramita na Câmara Federal, é uma ameaça a esse direito histórico. O PL propõe uma cota de 40% da bilheteria para venda de meia-entrada. A União Nacional dos Estudantes (UNE) sempre atuou de forma marcante no desenvolvimento da cultura nacional. Na década de 1960, o Centro Popular de Cultura, CPC, forjou uma geração de artistas que até hoje se destacam. Atualmente, a Bienal de Arte da UNE, que teve sua 6ª edição em janeiro, em Salvador (BA), é o maior festival artístico de juventude em toda América Latina. Além de propagar a cultura, a entidade luta por sua democratização e pela formação de plateias conscientes. E a meia-entrada é o principal instrumento que os estudantes possuem para conseguir se inserir nesse cenário. Na prática, porém, esse direito já está sendo ameaçado desde 2001, com a edição da Medida Provisória (MP) 2208/01, de autoria do então ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que estimulou a desregulamentação da meia-entrada e abriu espaço para que oportunistas de plantão montassem um verdadeiro mercado de carteiras falsas, emitidas agora por qualquer estabelecimento. A proliferação das carteiras fez com que os eventos culturais tivessem seus preços elevados: pagamos o valor integral como se fosse meia. Recentemente, o movimento estudantil conquistou uma vitória política importante na cidade de São Paulo. Um Juizado Especial Cível deu ganho de causa, em duas instâncias, a uma estudante que tentou comprar meia-entrada para o show da banda Oasis, em 2006. Na ocasião, a cota para estudantes havia terminado e ela acabou comprando uma inteira. Depois, processou a promotora do show, pedindo o valor que pagou a mais, alegando que a lei municipal paulistana, que limita a cota para estudantes em 30%, é inconstitucional, já que extrapola os limites do município, além de restringir o direito do estudante assegurado pela lei estadual paulista, que não estabelece cotas. Tal decisão abre um precedente jurídico para nos posicionarmos contra a limitação à meia-entrada. Porém, caso a lei federal seja aprovada como está, até a recente decisão da Justiça em São Paulo deixa de ter valor. Precisamos exigir a revogação da MP 2208 e o estabelecimento de um novo marco regulatório capaz de atacar o verdadeiro problema: as falsas carteiras estudantis. Defendemos a criação de um documento único, emitido pela casa da moeda, padronizado nacionalmente, que possua mecanismos capazes de coibir a falsificação. Os jovens fazem parte da maioria das vítimas da violência, do desemprego e da falta de perspectivas. Retirar o direito de acesso à cultura será um duro golpe numa geração já bastante sofrida.
“os jovens fazem parte da maioria, na falta de perspectivas. Retirar o acesso à cultura será um golpe numa geração já sofrida”
Lúcia Stumpf continente maio 2009 | 23
Peleja_22_23.indd 23
28/04/09 16:03
con ti nen te#44
índios
Apontado por estudo mundial da Unesco como idioma em perigo, ele se mantém presente no cotidiano da comunidade através de rituais religiosos e da criação de cartilhas e gramáticas próprias textos Danielle Romani fotos Otavio de Souza
yaathe
a última língua continente maio 2009 | 24 5
Especial_indios.indd 24
29/04/09 07:56
sagrada continente maio 2009 | 25
A perda de uma língua é algo irremediável para a cultura, identidade e sobrevivência de um povo. É um golpe fatal na memória, autoestima e no direito de se afirmar como nação. Mas tem sido uma realidade para muitas etnias. Ano após ano, milhões de pessoas em todo o mundo são impedidas de pensar em sua língua materna, de usá-la no cotidiano. Nas últimas décadas, centenas de nações presenciaram o desaparecimento do idioma natal, que passou a ser lembrado apenas por alguns anciãos. Ou foi esquecido por completo. “Quando um povo perde uma língua, também perde diversidade humana; perdem-se meios de compreensão e explicação do mundo; perdem-se soluções de adaptabilidade do homem ao meio, perde-se o conhecimento do potencial e do usufruto sustentável deste meio. Enfim, perdem-se conhecimentos fundamentais que venham a colaborar para a continuidade da sobrevivência do homem no planeta”, explica a linguista Stella Telles, que é coordenadora do Núcleo de Estudos Indigenistas (NEI) da Universidade Federal de Pernambuco, e que há cerca de duas décadas vem atuando em projetos de resgate e pesquisa de idiomas indígenas brasileiros. O desaparecimento de idiomas não é primazia dos índios nacionais, tem sido um fenômeno verificado em todo o planeta, e deixado a comunidade científica mundial em prontidão. Já se tornou, inclusive, objeto de preocupação de centenas de instituições internacionais, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que lançou, este ano, a nova versão do Atlas interativo das línguas em perigo no mundo. Um importante alerta sobre a necessidade de preservar milhares de idiomas. Disponível apenas em versão digital, o Atlas mostra que entre as 6.000 línguas faladas, 200 se extinguiram nas últimas três gerações. Aponta a existência de 2.500 línguas ameaçadas, classificando-as em cinco graus de vitalidade e risco. O Brasil, segundo o documento, tem 190 línguas ameaçadas, a totalidade delas indígenas, entre as quais o yaathe, idioma falado
con índios ti nen te#44 dados da unesco LínguAS AMeAÇAdAS Por países
1º Índia 2ºEstados Unidos 3º Brasil 4º Indonésia 5º México 6º China
196 192 190 147 144 143
cRitÉRioS de RiSco • Transmissão da língua entre gerações • Número absoluto de falantes • Número de falantes em relação à população geral • Material de aprendizagem e de ensino da língua • Atitudes, documentos e políticas adotadas pelas autoridades oficiais • Postura dos membros da comunidade frente ao próprio idioma • Soma e qualidade da documentação disponível • Transferência da língua • Respostas e inserções nos meios de comunicação e novas mídias níveiS de PeRigo Vulnerável A maioria das crianças falam a língua, mas seu uso fica restrito às relações familiares Em perigo As crianças já não aprendem a língua como materna Seriamente em perigo Somente os avós e as pessoas mais velhas falam a língua. Os parentes compreendem, mas não falam entre si Em situação crítica Somente falada pelos anciãos Extinta Não existem mais falantes Fonte: Unesco
pelo povo fulni-ô de Águas Belas, PE. Além deles, somente outros sete povos nordestinos, todos do Maranhão, ainda mantêm sua língua viva.
cLASSiFicAÇÃo PoLÊMicA
Elaborado por 30 linguistas de vários países, o Atlas da Unesco mostra que o desaparecimento de línguas está presente em todos os continentes, e acontece em países ricos e pobres, sem distinção. O Brasil é o terceiro do ranking, atrás apenas da Índia e EUA. Mas pelo menos no caso específico do yaathe, único idioma vivo entre os 11 povos indígenas pernambucanos, a inserção entre as línguas em sério risco virou polêmica: é fortemente rechaçada. Tanto os linguistas como os
continente maio 2009 | 26 7
representantes da comunidade fulni-ô refutam a tese de que o idioma estaria em perigo, como foi classificado pela Unesco. Muito pelo contrário: a quase totalidade dos especialistas consultados é enfática em afirmar que o idioma passa por um amplo e vigoroso processo de revitalização. A principal defensora da tese de vitalidade da língua fulni-ô é a linguista Januacele da Costa, que desde 1991 vem dando prosseguimento aos trabalhos do filólogo Geraldo Lapenda, autor da primeira gramática da língua yaathe, publicada no Brasil em 1968. Apontada pela maioria dos estudiosos como a “maior autoridade nacional em yaathe”, ela é professora de linguística da Universidade Federal de Alagoas,
01
autora da tese intitulada Yaathe, a última língua nativa no Nordeste do Brasil, e está trabalhando num projeto intitulado Gramática descritiva (de usos) do yaathe. “Se observássemos os critérios da Unesco ao pé da letra, diríamos que o yaathe está definitivamente ameaçado de extinção. Mas esses critérios são muito gerais e a comunidade fulni-ô é muito específica. Quando colocada numa escala objetiva desse tipo, enquadra-se perfeitamente como uma língua ameaçada de extinção, mas, como a própria Unesco admite, comunidades linguísticas são complexas e diversas. A comunidade fulni-ô, seguramente, não pode ser, neste momento, analisada por números e critérios gerais. Por isso
acredito que a língua yaathe não corre risco de extinção. Pelo contrário, encontra-se em um estágio de busca por revitalização e valorização amplas”, explica a especialista. A italiana Bruna Franchetto, professora do Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional e da Universidade do Rio de Janeiro, foi uma das pesquisadoras responsáveis pelo repasse dos dados relativos ao Brasil para a Unesco, e admite que hoje, uma década após a consolidação dessas informações, o yaathe parece estar em condições bem melhores do que no passado. E a fonte para sua mudança de opinião foram exatamente os estudos feitos pela linguista Januacele da Costa.
continente maio 2009 | 27
PReSeRvAÇÃo Awassury, da escola bilíngue fulni-ô, é professor e autor de gramática no idioma indigena, ainda não avaliada por linguistas
“Os dados incluídos no Atlas representam a situação anterior. Parece que a situação da língua yaathe é hoje bem melhor do que foi diagnosticado há uma década”, explicou Bruna à Revista Continente. Utilizando relatos da professora da Universidade de Alagoas, Bruna Franchetto enumera fatos que, na sua avaliação, podem mudar o status de risco do yaathe. “Houve uma evolução de falantes aparentemente passivos (entendem, mas não falam) para falantes ativos. Ela calcula que existam hoje mais de três mil falantes. É possível, ainda, que a língua tenha sobrevivido quase que escondida, preservada quase que clandestinamente, invisível (ou inaudível) pelos não indígenas, por razões óbvias, dada a estigmatização e repressão às quais foi submetida”, pondera Bruna, que destaca a feitura de cartilhas no idioma, o aperfeiçoamento da ortografia e a existência de três escolas nas aldeias fulni-ôs que ministram aulas no idioma yaathe, como outras formas que demonstram sua revitalização. “Eles parecem ter uma elevada autoestima que decorre em muito do fato de terem preservado a língua original, necessária à realização do ritual do Ouricuri, que é central para a sua vida e identidade”, diz a pesquisadora da Unesco, que, no entanto, alerta: “Ainda é preciso proceder a um diagnóstico sociolinguístico preciso. Lembro que nenhuma língua é salva na e pela escola ou na e pela escrita. Quem preserva uma língua e todos os conhecimentos a ela associados são os membros da comunidade. Principalmente no âmbito da educação doméstica e da socialização primária das crianças. Ainda não podemos afirmar que o yaathe é definitivamente uma língua com futuro garantido, ela continua ameaçada”.
con índios ti nen te#44
herança Fulni-ôs de Águas Belas lutam por preservação Habitantes do agreste meridional, índios buscam nas tradições familiares e na educação seu baluarte
01
continente maio 2009 | 29 8
os limites da reserva se confundem
com a cidade dos “brancos”, com as ruas do município de Águas Belas. Num passado recente, uma placa colocada ao lado da entrada principal deixava claro que a presença de estranhos não era permitida. Agora, o aviso não se encontra lá, mas o incauto que adentrar o território indígena perceberá, rapidamente, que sua presença não é vista com bons olhos. Tem sido assim, desde sempre, e não se pode dizer que os índios tenham culpa disso. Há séculos a convivência com os “civilizados” se dá por meio de desconfiança, violência, perseguições, conflitos em torno da posse pelas terras que formam a reserva. Terras que já tiraram a vida de muita gente dos dois lados, mas, principalmente, dos índios, massacrados primeiro pelos portugueses e, recentemente, na segunda década do século 20, quase exterminados pelos coronéis e jagunços de Águas Belas. Época em que foram, inclusive, proibidos de falar no idioma natal, o yaathe. A luta dos fulni-ôs – ou povo da beira do rio – e de outras nações da caatinga contra os colonizadores, começou para valer no século 19, quando Dom Pedro II, em 1850, mandou fazer o primeiro Levantamento Geral das Terras do Brasil, responsável pelo mapeamento das aldeias
no Brasil Distribuição por região de línguas indígenas vivas
Nordeste 5%
Centro-Oeste 17%
Sul 2%
Sudeste 1%
Norte 75% Fonte: Aryon rodrigues
indígenas. “São três momentos distintos, que acirraram os conflitos entre brancos e índios no século 19”, explica o antropólogo e doutor em etnografia Renato Athias. O primeiro se deu no momento da proclamação da Independência, por Dom Pedro I, quando o Brasil se afirmou como nação. O segundo foi deflagrado por Dom Pedro II, em 1850, ano em que se resolveu “organizar” a questão das terras. Nessa época, a grande maioria das tribos localizadas no litoral já tinham praticamente sido dizimadas pelos colonizadores portugueses. “Temos referências à maioria delas, apenas na literatura e em documentos do período (a exemplo dos caetés, que são citados no livro Hans Staden, Duas viagens ao Brasil). A partir
02
continente maio 2009 | 29
daí, começaria uma grande campanha contra as tribos do interior”, lembra o antropólogo. A terceira etapa da investida se deu em 1875, com base no mapeamento novecentista. “O Império decide que todos são brasileiros, e manda transformar todas as aldeias indígenas em vilas. A briga dos povos indígenas contra os colonizadores do sertão se intensificou neste momento. Muitos foram dizimados, poucos, como o fulni-ôs, conseguiram manter sua língua e identidade”, situa Athias, observando que a questão das terras continua sendo o maior entrave na relação entre os índios e a sociedade. “Até hoje, nenhum dos 11 povos pernambucanos teve suas terras regularizadas, mas apenas demarcadas.”
LugAR SAgRAdo
No caso dos fulni-ôs, cujas origens são desconhecidas e as primeiras referências remontam ao século 17, a briga continua. Os 11 mil hectares demarcados como área indígena são considerados insuficientes para eles. Hoje, a comunidade luta pela demarcação de mais 37 mil hectares de área, que delimitaria a terra dos índios entre a serra das Antas e a serra dos Cavalos, território considerado sagrado, e que reúne, segundo os indígenas, diversas inscrições rupestres de milhares de anos, comprovando que seus antepassados há muito povoavam o território. “O ponto de vista da terra, como lugar mítico, está intrinsecamente relacionado à dimensão do sagrado, portanto, não se trata apenas de um território, mas do entendimento de um universo cosmológico que se encontra presente entre os fulni-ôs. Esse movimento está na raiz da reafirmação da nossa identidade”, explica o fulni-ô Wilke Torres de Melo, que é sociólogo e autor de monografia sobre seu povo.
01
PASSAdo e FutuRo A anciã Itassi e sua bisneta: transmissão da fé e dos rituais indígenas
02
cidAde SAgRAdA O sociólogo fulni-ô Wilke Melo, na aldeia onde se realiza o Ouricuri, ritual que dura três meses
(Pe
Cen
Su
Su
No
Font
con índios ti nen te#44
Entrevista
Bruna Franchett0 atlas pode ser aperFeiçoado A italiana Bruna Franchetto foi uma das responsáveis pelo repasse de dados sobre a situação das línguas nativas do Brasil para a Unesco. Ela comenta alguns critérios que nortearam a realização da terceira versão do Atlas interativo das línguas em perigo no mundo, apresentado pela instituição em fevereiro deste ano. continente Quais os critérios utilizados pela Unesco para considerar o yaathe, e as demais línguas elencadas no Atlas, em extinção? BRunA FRAncHetto Em primeiro lugar, todas as línguas minoritárias, não reconhecidas oficialmente, sem lugar nos meios de comunicação (mídia) e sitiadas por uma cultura e língua dominantes (nacional ou regional) devem ser consideradas “ameaçadas”. Os critérios da Unesco valem para qualquer situação no panorama mundial, onde línguas faladas por menos de 100.000 pessoas são consideradas línguas minoritárias e “ameaçadas”. Isto vale para as línguas indígenas no Brasil, onde o tamanho médio das comunidades nativas é entre 250 e 300 pessoas, variando de etnias com alguns milhares de membros (tikuna, macuxi, xavante, caiapó, por exemplo) a etnias com poucas dezenas ou até não mais de uma dezena de pessoas. Há línguas com muitos falantes e línguas com apenas um último falante. As situações são extremamente variadas e cada uma é um fato complexo que deve ser documentado e analisado em si e comparativamente. O termo “extinção” é mais restrito do que “ameaçado” e só pode ser aplicado a línguas que, de fato, não mostram nenhum sinal de poder sobreviver na próxima geração. Todas as línguas
indígenas no Brasil são ameaçadas, algumas podem ser consideradas em processo de extinção. Sua vitalidade depende de seus falantes e das políticas positivas, públicas ou não, produzidas e destinadas para elas. Estas têm papel importantíssimo de apoio, estímulo, e devem ser reforçadas, multiplicadas e aperfeiçoadas. Mas os responsáveis pela manutenção de línguas e conhecimentos indígenas são os próprios indígenas, em última instância. continente Vocês têm feito atualização dessas análises? BRunA FRAncHetto A elaboração do Atlas da Unesco permitiu um esforço inédito para reunir a maior quantidade de informações fidedignas sobre a situação das línguas indígenas ainda existentes no Brasil. Digo “inédito”, porque até o momento não temos um quadro preciso com dados cuidadosamente checados. É preciso consultar todos
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 330 1
os pesquisadores, indigenistas, entre outros, que possam, idealmente, ter as informações que estamos procurando. Nem todos os pesquisadores linguistas possuem informações desse tipo. Levantamentos e diagnósticos de natureza sociolinguística, com dados quantitativos e qualitativos confiáveis, são raríssimos, no Brasil. Um equívoco muito comum é confundir o número de pessoas, ou seja, a população, de uma etnia ou povo indígena com o número de falantes. E ainda é preciso distinguir os indivíduos que, de fato, falam a língua, especificando o grau de fluência, dos que são somente conhecedores passivos, ou seja, entendem (em distintos graus), mas não falam. E é preciso identificar todos os domínios de uso de uma língua (e os domínios nos quais ela não é usada ou é parcialmente usada), bem como os processos de sua transmissão de uma geração a outra (ou os fenômenos de ruptura intergeracional em sua transmissão). E mais: identificar quais os segmentos sociais que mantêm e quais são os que não mantêm a língua, e quais as razões para sua manutenção ou abandono etc. É preciso, ainda, analisar a influência da mídia, da escolarização, da presença e atuação de missionários... Apesar do esforço feito em função do Atlas, este ainda apresenta erros e lacunas que são reflexo da parcialidade e fragilidade das informações de que dispomos. É claro que pretendemos proceder a atualizações periódicas dos dados sobre línguas, ampliando a consulta aos pesquisadores e aos que conhecem de algum modo as situações específicas de cada povo. É importante lembrar que o Iphan pretende realizar um levantamento o mais exaustivo possível das línguas do país, o que será a primeira iniciativa sistemática no Brasil. O Atlas Unesco está aí para ser aperfeiçoado, constantemente. Se não existisse, continuaríamos na ignorância de quem não sabe que não sabe.
Os estudiosos acreditam que a resistência fulni-ô e a longevidade dos costumes deste povo podem ser atribuídas ao intenso apego às suas tradições e rituais. Muitos sustentam que a sobrevivência do idioma nativo se deve à realização do Ouricuri, ritual sagrado que demanda três meses de dedicação dos índios e somente pode ser feito no idioma yaathe. “Nossa língua assume um papel primordial no Ouricuri. O yaathe, portanto, é nossa arma, é nossa vida. Faz parte da nossa resistência”, resume o sociólogo, lembrando que, no período de celebrações – ocorridas anualmente nos meses de setembro, outubro e novembro –, todos os membros da comunidade (cerca de 3.903, segunda a Funasa, e seis mil, segundo os índios) deslocam-se da aldeia principal para a aldeia religiosa, onde são realizados rituais em torno do juazeiro sagrado, proibidos e inacessíveis aos “brancos”. “Nenhum fulni-ô pode revelar os segredos dos nossos rituais. Por que não contamos nossos segredos? Porque, quando a gente fala sobre
Apesar do quadro de abandono, o visitante se surpreenderá com a presença de duas bem conservadas escolas (existe uma terceira, numa aldeia secundária). Em todas as três unidades, o idioma natal é oferecido à comunidade. No caso da mais antiga, a escola bilíngue Antônio José Moreira, as aulas são ministradas apenas no idioma yaathe. Lá, os alunos aprendem matemática, ciências, arte e geografia na visão do povo fulni-ô. Dirigida oficialmente por Awassury Araújo de Sá, a escola, na prática, é coordenada pela professora Marilena Araújo de Sá, ou Wadja Fulni-ô, figura que pode ser apontada como uma das principais responsáveis pela revitalização e resistência do idioma da tribo. Foi ela quem criou, em 1986, a primeira cartilha com os primeiros fonemas traduzidos para o yaathe, trabalho desenvolvido com a ajuda de linguistas do porte de Stella Telles e Adair Pimentel Palácio. Foi ela também quem incentivou os filhos Awassury, Siato e Suyane a se engajarem na preservação da identidade cultural e do idioma natal.
um saber encantado, ele passa a ser desencantado”, diz Wilke, alertando que, se algum forasteiro chegar à aldeia do Ouricuri durante os rituais, os cerimoniais serão paralisados.
contRASte e PoBReZA
Se a aldeia religiosa onde se realiza o Ouricuri se assemelha a uma cidade fantasma, com centenas de casas abandonadas na maior parte do ano, a principal aldeia fulni-ô não tem qualquer aura mística, e evidencia o estado de abandono em que se encontram os povos indígenas. Os habitantes não contam com saneamento básico, esgotos escorrem a céu aberto, há ausência de calçamento e água potável, e há muito lixo por toda parte.
“A resistência fulni-ô e a longevidade dos costumes deste povo podem ser atribuídas ao intenso apego às suas tradições”
triBos de pernamBuco O número da população total por aldeias
Aticum 4.296
Trucá 2.942
SALGUEIRO CABROBÓ OROCÓ
MIRANDIBA
Pipipã 2.350
CARNAUBEIRA DA PENHA FLORESTA
RECIFE
PESQUEIRA IBIMIRIM INAJÁ
Pancará 2.489
Xucuru 10.333
Capinauá 3.645
Cambiuá 2.867
BUÍQUE
TACARATU JATOBÁ
Tuxá 253
ÁGUAS BELAS
Pancararu 6.404 Pancaiucá
(sem dados)
São 11 povos espalhados pelo sertão e agreste pernambucanos. Todos, segundo o antropólogo Renato Athias, possuem identidade cultural, realizam rituais e cerimônias próprias, e têm forte ligação com a terra, que aparece sempre como território sagrado. Infelizmente, graças a um forte processo de aculturação linguística, apenas os fulni-ôs de Águas Belas possuem e praticam idioma próprio, o yaathe.
Fulni-ô
São 3.903 indígenas numa área de 11 mil hectares, considerados, território sagrado.
Fonte: Aryon rodrigues
continente maio 2009 | 31
con índios ti nen te#44 Os filhos honraram o esforço da pioneira Marilena. Awassury é autor de uma extensa e detalhada gramática de 400 páginas em yaathe, um trabalho ainda não reconhecido pela comunidade científica, mas que vem sendo adotado na escola bilíngue com efeitos surpreendentes. Suyane, por sua vez, vem se dedicando à tarefa de convencionar a escrita do seu povo. “Precisamos ter uma grafia única, pois até agora a língua yaathe não tem registros oficiais, existem muitas formas de grafar as palavras”, conta a jovem índia, que pediu auxílio de linguistas da Universidade Federal de Pernambuco para consolidar o trabalho. A primeira audiência com especialistas, anciãos da tribo e professores será realizada neste mês de maio. Já Siato trabalha no arquivamento dos dados culturais do seu povo, que reúne há anos. A escola bilíngue foi fundada em 1987, e desde então Marilena dedica sua
vida ao projeto de resgatar e consolidar a cultura e língua do seu povo para as futuras gerações fulni-ôs. Muitas vezes, diz tirar dinheiro do próprio bolso para copiar documentos e material didático. “Quando era pequena, estudei numa escola de Águas Belas, e senti na pele o preconceito de estar no meio dos brancos. Foi a partir desta experiência, de me sentir discriminada e da constatação de que as crianças estavam desaprendendo a língua, e também de que as outras tribos não falavam mais seus idiomas, pois estudavam apenas o português, que resolvi dedicar minha vida ao projeto”, explica a professora. “Marilena tem muitos méritos por seu trabalho, que, indubitavelmente, contribuiu para a preservação do yaathe. Quando resolveu fazer a cartilha, procurou-me e buscamos ver como poderíamos grafar os sons, de que forma ficariam mais bem representados”, explica Stella Telles,
linguista e coordenadora do Núcleo de estudos indigenistas da UFPE.
RivALidAde inteRnA
Marilena não é a única a trabalhar em prol da causa fulni-ô e da recuperação do yaathe. Embora faça parte de um grupo político rival, a também professora Maristela de Albuquerque Santos, filha do cacique João Francisco dos Santos, igualmente dedica seu tempo e trabalho ao resgate da língua e da sua cultura. Coordenadora pedagógica das escolas fulni-ôs (inclusive aquela dirigida por Marilena), que têm 2.178 estudantes matriculados, acredita ser uma missão lutar pelo bem estar do seu povo e pela preservação do idioma local. “Nossa língua é nossa força, nossa referência. Meu pai brigou para que tivéssemos três escolas nas aldeias, para que fossem evitados contatos com alunos não índios. Esses contatos
02
01
01
quAtRo geRAÇõeS
02
gueRReiRA
O ancião José Cunha Neto e seu clã: filhas, netas e bisnetas Marilena Fulni-ô é uma das principais responsáveis pela preservação do yaathe. É dela a primeira cartilha no idioma
continente maio 2009 | 32 3
poderiam prejudicar as nossas crianças, uma vez que temos que brigar para manter nossa identidade”, argumenta Maristela. Nas duas escolas coordenadas por ela, a Marechal Rondon e a Ambrósio Pereira Júnior, também são ministradas aulas de português. Na elaboração de metodologia para a prática do idioma indígena, a coordenadora conta com o apoio da linguista Januacele da Costa, que periodicamente presta assessoria aos professores fulni-ôs. “Temos um problema sério, pois a nossa língua materna não está homogeneizada, mas vários linguistas vêm nos ajudando nisso”, explica a coordenadora, que observa: o período letivo das escolas indígenas obedece aos rituais do Ouricuri. “As aulas vão de dezembro até o último dia de agosto, pois em setembro todos se transferem para a aldeia sagrada”, diz a educadora. Brigas e grupos políticos à parte, a maior parte dos fulniôs parece estar pouco se importando com rixas e desavenças políticas. Muitos comemoram o trabalho realizado pelas duas líderes e professoras em prol da língua. A anciã Itassi Ferreira da Cunha, de 78 anos, mostra sabedoria ao falar no trabalho das companheiras da aldeia. “Quando eu era criança, todo mundo falava yaathe. Estudei até a 2ª série, na aldeia mesmo, mas deixei porque não gostava de ver só português. Depois, aos poucos, todo mundo começou a estudar nas escolas dos brancos, e os mais jovens deixaram de falar nossa língua. O trabalho das escolas tem trazido o idioma de volta, os mais novos voltaram a falar. Meus netos já estão sabendo muitas frases e palavras, algumas vezes mais do que os pais sabem”, comemora a senhora, que tem 14 filhos, 11 netos e dois bisnetos. Ela aponta justificativa para que sua língua e seus rituais tenham importância para a humanidade: “Ouricuri é coisa boa, que não pode se deixar de lado. Brasileiros são felizes? Devem agradecer a nós, índios, pois nos rituais pedimos paz e ajuda para todo o mundo, para nós e para eles. Nós pedimos aos deuses por eles”.
deScoBeRtA
Índia guató fotografada no final da década de 1970 pela linguista Adair Palácio
trajetória linguista pernambucana resgatou idioma dos guatós Discípula de Aryon Rodrigues, Adair Pimentel Palácio pesquisou idioma considerado extinto: a língua guató, falada por índios nômades do Mato Grosso do Sul Adair Pimentel Palácio é nome
obrigatório quando o assunto em pauta é linguística: foi fundadora do Núcleo de Estudos Indígenas da Universidade Federal de Pernambuco, e uma das principais orientadoras de várias gerações de estudiosos de línguas indígenas. Ativa, inteligente, dona de um humor peculiar, aos 78 anos é uma das maiores conhecedoras de línguas, fonéticas, gramáticas e cosmologias das muitas nações espalhadas pelo Brasil afora. Foi responsável, no final da década de 1970, pelo resgate de
continente maio 2009 | 33
um idioma e da história de uma tribo considerada, à época, desaparecida: os guatós, do Mato Grosso do Sul. A descoberta redundou no documentário 500 Almas, de Joel Pizzini (2005). Adair começou a se interessar por línguas indígenas quando, lá pelo início dos anos 1970, leu o artigo Tarefas da linguística no Brasil, assinado pelo também linguista Aryon Rodrigues. Formada em Letras, com especialização em línguas anglo-germânicas, a jovem pernambucana decidiu que era aquilo que queria estudar.
con índios ti nen te#44
AdAiR eM doiS MoMentoS
Na década de 1970, entrevistando um índio guató para a sua tese; atualmente, professora aposentada
Entrevista
aryon rodrigues estudioso das línguas nativas Aos 84 anos, o linguista paranaense Aryon DallÁIgna Rodrigues é o mais renomado pesquisador e conhecedor das línguas indígenas brasileiras. Criou e dirige o Laboratório de Línguas Indígenas (Lali), na Universidade de Brasília (UnB), local onde pode ser encontrado diariamente, quando não está viajando para efetuar pesquisas ou participando de palestras e seminários. Começou a trabalhar na década de 1940 quando ainda era estudante. Seu trabalho prossegue até hoje, em especial na classificação e estudo do tronco tupi, sobre o qual escreve há cinco décadas. Nesta entrevista à Continente, fala da importância da língua para a manutenção dos valores culturais da sociedade, anuncia que o IBGE passará a catalogar os idiomas falados no Brasil no próximo censo e afirma:
o yaathe está vivo, milagrosamente, graças à resistência e persistência dos fulni-ôs. continente Qual a importância de uma língua para um povo, e o que representa a sua extinção? ARYon RodRigueS A língua nativa, a que a criança aprende com a família, é aquela em que ela aprende sua cultura. Tem importância linguística, mas é sobretudo o repositório de uma cultura, de modo que, se ela se perde, perde-se também parte de uma cultura. Muitas tradições, muitos rituais só podem ser transmitidos em determinadas línguas, portanto, quando uma língua morre, essas tradições não podem ser repassadas. Há uma perda cultural irreversível. continente Como o senhor avalia a situação do yaathe, língua dos fulni-ôs, a única falada em Pernambuco? ARYon RodRigueS É uma língua que vem sendo preservada de maneira bastante destacada, em contraste com as demais da região, todas em processo de extinção. Os fulni-ôs, impressionantemente, desenvolveram uma atitude de resistência, grande parte devida ao Ouricuri, ritual
continente maio 2009 | 34 5
religioso que executam durante três meses do ano e que só pode ser realizado no idioma yaathe. Nesse ritual, eles não admitem a presença de estranhos, e todos os membros da tribo participam. Mesmo os que não moram na aldeia, a exemplo de alguns fulni-ôs que conheço e moram no Rio e até aqui em Brasília, programam suas férias para as semanas mais importantes do ritual, para que possam voltar à aldeia e participar dele. Um caso raro no Nordeste e no Brasil. continente Sabemos que o Nordeste é a região mais prejudicada, com praticamente a totalidade de suas línguas extintas ou em processo de extinção. Em contrapartida, qual a região que mantém o maior número de idiomas vivos e razoavelmente preservados? ARYon RodRigueS A Amazônia, que tem 140 línguas, porque só agora ela está entrando em processo de globalização, com a presença dos posseiros, das fazendas, gado e plantações. A língua com o maior número de falantes, por exemplo, é a dos tikuna, povo do Alto Solimões, que tem 30 mil pessoas. Mas a região corre risco desde a década de 1970, época da ditadura militar. Com a
“Fiquei encantada! No artigo, ele explicava que a tarefa principal do linguista brasileiro era levantar as línguas indígenas que estavam se perdendo. Falei para mim mesma: —Vou estudar uma língua indígena. E eu era assim: quando queria, queria”, lembra-se, com bom humor, a professora aposentada. Anos depois, Adair se mudaria para Campinas, a fim de trabalhar na Unicamp, sob orientação do professor Aryon, que havia se transferido para aquela instituição. “Mas avisei a ele que queria uma língua zero quilômetro”, diverte-se ao lembrar. Foi quando, lendo um estudo do alemão Max Schimidt, que havia convivido com os guatós décadas antes, bateu o martelo: faria sua pesquisa com eles. Mas foi desestimulada pelo mestre Aryon, que vaticinou: eles estavam extintos. Teimosa, começou a fazer pesquisas, e, por acaso, soube, no Recife, da
existência de uma freira que havia morado em Corumbá e que garantia ter conhecido uma índia guató. Adair arrumou as malas e rumou para o Mato Grosso do Sul. Lá, por intermédio de outra freira, irmã Alda, conheceu a índia Francolina, que havia se desligado da tribo e vivia na cidade.“Os guatós eram nômades, e haviam se espalhado por vários locais. Francolina era muito retraída, mas aos poucos foi se soltando, e dizendo palavras que comecei a identificar como semelhantes às registradas por Schimidt.” Com o tempo ficaram amigas, e Adair descobriu algo que lhe deixou em polvorosa. “O idioma guató tinha palavras tonais, ou seja, uma mesma palavra, de acordo com o tom utilizado, tinha outro significado. Até então só se conhecia isto a partir dos ramos linguísticos asiáticos”, explica a pesquisadora. A partir deste contato
abertura de estradas, a exemplo da Transamazônia, também houve muitas perdas e até mesmo o quase genocídio de alguns povos. Um exemplo são os panará, do Mato Grosso, cujas terras estavam no meio da estrada Cuiabá-Santarém. A engenharia militar queria passar
“A língua com o maior número de falantes, por exemplo, é a dos tikuna, povo do Alto Solimões, que tem 30 mil pessoas ” pela aldeia deles, houve resistência, e dos cerca de 3.000 índios, restaram apenas uma centena. Os que sobreviveram tiveram que fugir para o Parque do Xingu. Depois de algum tempo, essas mesmas famílias voltaram a pé para as suas terras de origem. Eles se estabeleceram numa região mais afastada da estrada. Hoje já são quase 200. A unidade cultural deles é tão grande, que conseguiram preservar a língua e estão se reerguendo.
continente maio 2009 | 35
com os guatós, ela comenta que, apesar de não haver provas científicas, o fenômeno abre a possibilidade de que a tese de que os índios possam ter chegado à América provenientes da Ásia pelo estreito de Bering, possa estar certa. Durante anos, Adair conviveu com Francolina, registrou palavras e frases no idioma guató, e conheceu remanescentes da tribo que, mesmo na época anterior ao Descobrimento, jamais viveu em território fixo. Em 1984, defendeu tese sobre os guatós, em que apresentou dados sobre o povo, fonologia, morfologia e sintaxe do seu idioma. A partir deste estudo, alguns índios guatós que estavam espalhados se concentraram em Corumbá, a exemplo do filho de Francolina, que hoje é um dos líderes do seu povo. Um dos registros é o documentário do cineasta douradense (MS) Joel Pizzini. continente Quantas línguas chegaram a ser faladas no Nordeste? E no Brasil? ARYon RodRigueS Em 1500, na área do atual Brasil, havia cerca de 1.200 idiomas. Infelizmente, não se sabe quantas línguas, nesse período, eram faladas na região Nordeste. Essa, por sinal, é uma tarefa para nossos colegas nordestinos: levantar, a partir de registros, documentos, quantos povos e línguas existiam. Hoje, segundo estimativas do IBGE, existem cerca de 180 línguas faladas no Brasil. O português é a primeira delas e, acredite, o japonês a segunda. Por que isto? Porque os japoneses tendem a se concentrar em comunidades próprias, não se diluem nas outras camadas da população como fizeram os italianos e alemães. A terceira língua mais falada é desconhecida. Somente em 2010, quando o IBGE realizar o próximo censo, é que teremos essa informação, pois será introduzida uma pergunta sobre os idiomas falados. Aí teremos ricas informações não apenas sobre os idiomas vindos com as colônias européias e asiáticas, como também poderemos conhecer bem mais sobre as línguas indígenas. Será um grande serviço em prol do estudo e manutenção dessas línguas.
antônio marcuschi
a compreensão da sociedade através da linguagem O educador e pesquisador gaúcho, um dos pioneiros no estudo da linguística textual no Brasil, é homenageado com lançamento de coleção de livros e DVD texto Cristina Teixeira Vieira de Melo
cOn tI nen te#44
Perfil
Óculos, pele muito clara, barba,
bigode e compridos cabelos de algodão. Essa aparência aproxima-o do imaginário social do cientista. Trata-se, de fato, de um cientista de primeiríssimo time. A vocação e a obstinação pelo trabalho colocamno entre os melhores linguistas brasileiros. Numa época em que o gerativismo (modelo que postula ser inata a linguagem) ainda era forte no país e o sociointeracionismo (abordagem que concebe a aprendizagem como um fenômeno que se realiza na interação com o outro) não era tão bem-visto, Luiz Antônio Marcuschi desenvolveu um trabalho pioneiro na área da Linguística Textual. Desde então, foi sempre assim: trilhou antes o caminho que alguns percorreriam depois. Grande parte do que hoje é possível fazer nos campos da interação verbal, da compreensão textual na fala
e na escrita e dos gêneros textuais, é herança dele. Muitos são os seus devedores. O Google relaciona 69.400 páginas em inglês e português com o nome “Marcuschi”. Gaúcho de nascimento, reside no Recife desde 1972, quando ingressou na Universidade Federal de Pernambuco como professor do Departamento de Letras. Em 1976, em outro gesto fundador, participou da equipe que criou o mestrado em Letras e Linguística da mesma universidade. De lá para cá se tornou um acadêmico pop, daqueles que lotam auditórios em suas palestras, sempre abordado nos congressos para autografar um livro e posar para uma foto. De sorriso no rosto, ele nunca deixou de atender ao que lhe era solicitado. Aliás, a virtude que mais se destaca em Marcuschi é a sua generosidade. A forma como sempre doou seu conhecimento, seu tempo
continente MAIO 2009 | 36 7
e sua atenção ao outro causa admiração em todos. Quem teve o privilégio de ser orientado por ele, além de seu gabinete na UFPE, possivelmente frequentou a sua casa. Nessas ocasiões, os debates eram regados a xícaras de café expresso ou taças de vinho servidas por um verdadeiro sommelier. Afora as surpresas da boa mesa, quem passa na casa do mestre se depara com uma incrível coleção de peças de artesanato adquiridas nas viagens às várias cidades que visitou. Representativa também é a quantidade de quadros de artistas plásticos pernambucanos na parede, artistas com os quais Marcuschi conviveu, mais intensamente, na época em que frequentava a Oficina Guaianases de Gravura. Sua atuação intelectual ultrapassa, e muito, os muros da universidade. Assessor do CNPq e da Capes por vários períodos, sócio-fundador da Associação Nacional de PósGraduação em Letras e Linguística (ANPOLL), seu desempenho políticoadministrativo nessas instituições revela o perfil de gestor. O fato de ser, por um lado, inquieto, dinâmico, entusiasmado, constantemente grávido de idéias criativas e, por outro, bastante pragmático, organizado e sistematizador, sempre conferiu sucesso às ações que realizou. Quem trabalhou com ele nos projetos, eventos e instituições que comandou,
divulgação
continente MAIO 2009 | 37
REPRodução dE vÍdEo
coleção
sabe disso. Foi assim durante o período em que ficou à frente da coordenação da pós-graduação em Letras e Linguística da UFPE (19801984) e da Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco (19831985). Mesmo quando exerceu a posição de gestor, Marcuschi nunca deixou de arregaçar as mangas para fazer, se preciso fosse, um trabalho braçal. Também é comum descobrir, tempos mais tarde da implantação ou finalização de determinado projeto, que a iniciativa só foi adiante porque ele bancou, de seu próprio bolso, o financiamento de certos itens não contemplados pelos recursos oficiais.
o dvd que acompanha a obra de Marcuschi traz palestras e entrevistas
Docente eXeMPlar
A sala de aula sempre foi o seu habitat privilegiado e seu laboratório de investigação. Quem frequentou os seus cursos se deparou,
cOn tI nen te#44
Perfil invariavelmente, com um sujeito transbordando de paixão, prazer e alegria. Sua aula era uma festa de conhecimento. Mas o calhamaço de papéis e os muitos livros que carregava eram a pista de que, por trás da inspiração apaixonada, havia muito trabalho, muito investimento pessoal. A sua prática docente é reflexo de sua atuação como pesquisador. Superando a pedagogia em que o professor se limita a transmitir ou repetir o já sabido, a cada novo curso apresentava novas reflexões. Outra característica que deve ser destacada no seu modo de atuar como docente e pesquisador é o respeito à palavra alheia. Marcuschi sempre apostou na construção coletiva de conhecimento. O seu grupo de pesquisa, o Núcleo de Estudos Linguísticos da Fala e da Escrita (Nelfe), por exemplo, reúne um número significativo de professores, doutorandos, mestrandos e estudantes de iniciação científica. A ideia central em todo o seu percurso intelectual é a de que o estudo da interação é essencial para se entender não apenas o
funcionamento da linguagem, mas também o surgimento da própria subjetividade. Assim, os que com ele trabalharam incorporaram uma certa maneira de olhar a linguagem, o sujeito e a vida. Para além do campo teórico e metodológico, essas pessoas aprenderam com ele coisas que nem mesmo suspeita ter ensinado, atitudes que dizem respeito não apenas à postura formal do professor, mas
bibliografia • Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. • Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: lucerna, 2007. • Fenômenos da linguagem: Reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: lucerna, Série dispersos, 2007. • Fala e escrita: Guia Didático. 1. ed. Belo Horizonte: autêntica, 2005. • Da fala para a escrita: Atividades de retextualização. São Paulo: Editora Cortez, 2001. • Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1999. • Quem é quem na pesquisa em Letras e Liguística no Brasil. Recife: aNPoll, 1992.
continente MAIO 2009 | 38
à conduta do homem. Ética, lealdade, tolerância, determinação. O que não é pouco. Em homenagem a este professor notável, a Universidade Federal de Pernambuco, por meio do Programa de Pós-Graduação em Letras, da PróReitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação (Propesq) e de sua Editora Universitária lançou a Coleção Luiz Antônio Marcuschi, que se constitui de três livros e um DVD. A caixa contém uma re-edição especial do livro Linguística de texto: O que é e como se faz, de autoria do próprio Marcuschi, publicado originalmente em 1983, além de dois livros inéditos intitulados Um linguista, orientações diversas - Volumes I e II, obras coletivas, com textos dos seus ex-orientandos. O DVD Entre a imagem e a palavra: Reflexões sobre fala, escrita e ensino reúne trechos selecionados de algumas palestras e entrevistas dadas por Marcuschi ao longo da sua trajetória intelectual. Esta é uma homenagem mais do que merecida ao linguista que formou gerações de novos pesquisadores e professores, hoje atuantes em todo o Brasil.
RAPHAEL GOMES
A pintora Marisa
con ti nen te#44
Bússola
badida Artista plástica, cuja pintura remete ao mundo interior e solitário, mostra aos leitores o que tem selecionado para suas horas de fruição cultural c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 440 1
Moreira da Costa Campos, mais conhecida como Badida, é cearense, mas está radicada em Pernambuco há 40 anos. Foi no Recife que fez o curso livre de Belas Artes, em 1977. Dois anos depois, inaugurou sua primeira exposição individual, em Fortaleza. Badida vendeu todas as obras expostas, mas até hoje desconfia que tal feito se deveu ao fato de ela ser filha de Moreira Campos, um dos maiores escritores do Ceará. Desde então, a pintora vem participando de várias exposições nacionais e internacionais. Em 2001, teve uma grande exposição individual no atual Centro Cultural Banco Real. Ficou entre os 100 artistas selecionados na América Latina – dentre 3.800 inscritos – para o 1º Salão Sul-Americano do Grupo Maimeri, da Itália. Apesar de ser frequentemente caracterizada como surrealista, Badida prefere definir-se como simbolista. Outra forte influência em seu trabalho é a literatura: “Minha obra sempre esteve inspirada na literatura, que, para mim, é a arte maior”. Atualmente, seu ateliê, que pode ser visitado pelo público, está instalado na rua do Amparo, 33, em Olinda. Lá funciona o Espaço Badida, onde ela recebe grupos de alunos interessados em aprender a arte da pintura e do desenho.
Gastronomia
Ultraleve
Leitura
O livro das igrejas abandonadas É antigo o meu encantamento pelo grande poeta e roteirista italiano Tonino Guerra. Delícia de leitura O livro das igrejas abandonadas (edição portuguesa, editora Assírio & Alvim). São contos curtíssimos. Verdadeiros flashes. Geniais. Tenho procurado outro livro dele e não tenho encontrado. Mas este, com certeza, vale por toda a obra do poeta. Também sei que os filmes de Fellini (Amarcord) e Antonioni (A noite e O eclipse), tendo Tonino Guerra como roteirista, são mágicos.
Cidade Filme
Ladrões de bicicleta Dias atrás me surpreendi viajando no tempo e tendo saudade. Estava regando meus bonsais na janela quando passou um rapaz gritando que tinham roubado a bicicleta dele, na rua do Amparo, aqui em Olinda. Imediatamente me veio à memória o filme de Vittorio De Sica, Ladrões de bicicleta (1948). Belo! Parece um conto do velho Graciliano Ramos. E claro que vou procurar nas locadoras, que alugam filmes antigos, esta obra de De Sica.
olinda Sinto falta, aqui em Olinda (1a Cidade da Cultura Brasileira), de um cinema, um teatro, uma biblioteca, uma livraria, uma academia de balé, enfim, de lugares que nos ajudem a ver o tempo passar num piscar de olhos e que nos deixem contentes, repletos de bom humor.
FOTOS: REPRODUÇÃO
Meu filho Alberto me convidou, no começo de abril, para almoçar nas Graças, num restaurante simples e delicioso, Ultraleve (rua Alberto Paiva, 174, fone: 3242 3526 ). Meu filho (um glutão) e eu (inapetente de carteirinha, herança paterna) comemos muito bem e, com certeza, voltarei lá sempre que pender para as bandas do Recife.
Memória
Uma tarde Tomei um banho de chuva no meu jardim, lavando corpo e alma. Eu, já quase uma vaga, me senti menina outra vez! Tomei gosto e vou colocar shampoo perto da arueira. Chuva caiu, esqueço o chuveiro e corro para o jardim. Ainda bem que o inverno está pedindo passagem. Está virando quadro um acontecimento simples de minha memória. Eu estava deitada no gramado do sítio de meu pai, quando uma fila de gansos passou grasnando, tirandome a atenção do velho caseiro João que tentava conquistar a cozinheira. Numa mangueira, um sabiá cantava. Pergunto: por que esta tarde teima em voltar à minha memória? Por quê?
Exposição
Maison do Bonfim Viagem
Paraíso Restei surpresa, quando estive em Porto de Galinhas! Praia-balneário, com jeito de Búzios, que eu não visitava fazia muito tempo. Mocidade bonita, desfilando pela orla, possivelmente se despedindo do verão que termina. Comi, na Pizzaria Albatroz, a melhor pizza do mundo! Fina, crocante, deliciosa! Depois rumamos para uma praia belíssima de nome Paraíso; ainda não totalmente descoberta pelo público e, talvez por isto mesmo, eu me senti a própria personagem da ilha de Robson Crusoé. Perfeito o nome Paraíso para o lugar. Plagiando o poeta Ledo Ivo, reafirmo e aconselho: “Posso ir buscar entre as pedras algas autênticas. Reclina a cabeça na areia e procura o domingo perdido no chão”. Vou voltar lá, levando a minha neta Bárbara.
A cada dia 28 de abril, o restaurante olindense Maison do Bonfim (rua do Bonfim, 115, Carmo, Olinda) faz aniversário. Nestes seus 13 anos de existência, os proprietários Jeff Colas e sua esposa Lu (simpaticíssimos) me fizeram um convite honroso: apresentar uma individual lá (durante o mês de maio). São 18 quadros, ilustrando minhas histórias mais íntimas. Estou feliz!
continente maio 2009 | 41
Bussola_40_41.indd 41
28/04/09 15:48
con ti nen te#44
Viagem
02
01
são paulo
Estação liberdade
De antigo campo de enforcados, bairro japonês torna-se ponto de convergência de asiáticos e descolados de variadas gerações texto Mariana Oliveira fotos Flavio Lamenha
“Próxima estação: Liberdade”,
informa o condutor do metrô da linha azul que corta a cidade de São Paulo, entre Tucuruvi e Jabaquara. Desembarcando, a saída principal nos leva à Praça da Liberdade, ponto de encontro de jovens descolados, dos fãs de desenhos animados e mangás e também dos nikkeis (descendentes de japonês) um pouco mais velhos que se reúnem na praça para conversar ou colocar em dia a leitura de um jornal. A praça está localizada entre a avenida Liberdade e as ruas Galvão Bueno e dos Estudantes. Seguimos pela primeira até chegar ao número 63, onde vive e trabalha o jovem artista Laerte Ramos. Depois de alguns lances de escada – o prédio antigo não possui elevador –, chegamos ao loft no último andar: um grande quarto sem paredes, com um pé direito altíssimo e obras espalhadas por toda
continente maio 2009 | 42 3
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 42
29/04/09 08:19
parte. O vermelho predomina, num provável diálogo com o exterior. Da varanda, pode-se avistar boa parte do bairro, seus portais e os postes vermelhos que seguram as típicas lamparinas redondas japonesas. É daqui que Laerte costuma servir de guia quando seus amigos decidem fazer uma visita à Liberdade e precisam de uma indicação. A frequência com que é procurado para dar informações sobre o bairro levou o artista a colocar em seu site (www. laerteramos.com.br) um pequeno mapa no qual estão as lojas, restaurantes e locais que costuma visitar. O que levaria um artista sem qualquer descendência oriental a fincar suas raízes no maior bairro oriental do país? Ele conta que nasceu na Liberdade, no Hospital Santa Helena, mas há cinco anos instalou seu ateliê em uma das principais vias do bairro. O jovem artista contemporâneo acredita que a força da cultura japonesa pode ser uma boa fonte de inspiração. “Eu gosto muito da influência japonesa no design. O bairro já carrega por si só um ar bem criativo”, justifica. Faz tempo que a Liberdade vem sendo invadida por não descendentes e imigrantes de várias nacionalidades. Basta caminhar pelas ruas para cruzar com alguns árabes ou olhar o menu dos muitos restaurantes e perceber que a culinária vai além do sushi e do sashimi, abrindo espaço para as iguarias coreanas e chinesas. Hoje, os chineses estão em maior número dominando boa parte do comércio da região com muita quinquilharia, mas sem esquecer os produtos típicos das culturas orientais. Mesmo com a expansão comercial e a redução do número de famílias morando no bairro, é na Liberdade que os nikkeis conseguem comprar o arroz vindo direto do Japão e as especiarias típicas de sua cozinha.
camPo da Forca
O nome do bairro não está vinculado à comunidade japonesa. A atual Praça da Liberdade era conhecida, por volta de 1775, como Campo da Forca, local onde se fazia cumprir a pena de morte vigente na época. Bem perto dali, estava instalado o Cemitério dos Enforcados,
02
03
primeiro cemitério público da cidade, que recebia os corpos dos condenados, em sua maioria escravos, indigentes e pobres. Com a abertura do Cemitério da Consolação, em 1858, o campo-santo foi fechado e teve seu terreno loteado para venda a particulares, mantendo apenas a Capela dos Aflitos, que resiste até hoje. Foi a existência de um chafariz batizado de Liberdade que provocou a alteração do nome Largo da Forca para Largo da Liberdade. Curiosamente, a mudança aconteceu anos antes da forca ser retirada, em 1874, com o
01
domingo
02
tradição
03
souvenir
Desde 1975, a Praça da Liberdade é palco da feirinha de arte, artesanato e cultura Nikkei comercializa darumas, talismãs para a proteção, representados por um monge budista com os olhos vazios Bonequinhas de pano no estilo japonês são facilmente encontradas nos quiosques
continente maio 2009 | 43
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 43
29/04/09 08:19
con ti nen te#44
Viagem 01
01
comércio
02
Livros
A rua Galvão Bueno reúne várias lojas de produtos orientais As livrarias do bairro comercializam títulos em japonês. O destaque fica com as publicações de patchwork, artesanato e mangás
02
continente maio 2009 | 44 5
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 44
29/04/09 08:19
chaguinhas, hErói novEcEntista rEPrODuçãO
fim da pena de morte. Os escravos fugitivos e os revolucionários foram enforcados, durante anos, no Largo da Liberdade, entre eles o famoso soldado Chaguinhas, “o Tiradentes paulista” (ver quadro). A comunidade japonesa começou a se instalar e montar seus negócios no início do século passado. Em 1908, o navio Kasato Maru chegava às terras brasileiras com os primeiros imigrantes japoneses. A maioria das famílias que se aventurou a vir ao Brasil viveu histórias parecidas com a do senhor Yoshiro Fujita, 89 anos. Ele chegou a São Paulo, em 1938, com 18 anos, e logo conseguiu um emprego em uma importadora. Com a entrada do Japão na Segunda Guerra, em lado oposto ao Brasil, os japoneses perderam seus empregos e tiveram boa parte de seus bens confiscados. Não foi diferente com seu Fujita – para sobreviver, começou a vender suas coleções de livros. Com o fim do conflito, aquilo que havia começado informalmente tornou-se negócio oficial, com a fundação da Livraria Sol, em 1949. Quem me conta essa história, similar à de muitas outras famílias, é Mitiê Urayama, nora do senhor Fujita, e atual gerente dessa que é uma das mais antigas livrarias do bairro. Nas prateleiras, um número variado de títulos em japonês e alguns outros em português, mas com alguma vinculação à cultura oriental. Segundo Mitiê, há uma grande procura por publicações ligadas ao artesanato (patchwork, bordados, origamis). Esses títulos, quase sempre em japonês, são vendidos ao público em geral, que não se assusta com o desconhecimento da língua. “Os livros de artesanato japonês são os melhores do mundo. Eles são superilustrados e sempre têm o passo a passo, não precisa saber falar japonês”, explica a gerente. Na outra grande livraria do bairro, a Fonomag, também um negócio de família, as publicações na área do artesanato mantêm o papel de destaque nas vendas. Antes de trabalhar no ramo dos livros, a família de Joji Aso mantinha uma loja de discos de vinil. Terminou abandonando a área, talvez prevendo o futuro incerto que lhe aguardava, e partindo para os livros, em 1978. Hoje, são mais de cinco mil
títulos em japonês e serviços especiais como o gerenciamento de assinaturas de revistas japonesas. Segundo o proprietário da loja, Joji Aso, além dos títulos de bordados e patchwork, o outro forte são os mangás, que correspondem a cerca de 50% das vendas da loja. “Nos últimos anos, sentimos um forte crescimento no interesse de não descendentes pelos mangás”, afirma.
mangÁ, anime, cosPLaY
A cultura pop japonesa vem ganhando força e atraindo cada vez mais interessados. Segundo Tereza Lima, proprietária de uma loja especializada em mangás, o aumento na procura por esse tipo de história em quadrinhos (que tem como particularidade o fato de ser lida de trás para frente) se deve aos animes (desenhos animados) que foram veiculados na televisão, como a saga de Cavaleiros do Zodíaco. Os fãs, na ânsia de compreender mais o universo desses personagens, terminam procurando os mangás, que usualmente são bem mais complexos que os animes e têm vida mais longa.
O soldado Francisco José de Chagas, conhecido como “Tiradentes paulista” foi o líder de uma rebelião por melhores salários e terminou condenado à forca em 1821. Conta-se que, no momento de seu enforcamento, a corda que envolvia seu pescoço se partiu, impedindo assim a execução da pena. Foram três tentativas, em todas, a corda arrebentava. Os presentes, assustados com esse mistério, pediram clemência, mas Chaguinhas terminou enforcado depois que a corda foi trocada por um pedaço de couro. Estava construída a imagem de mártir do soldado. No local da sua morte foi fincada uma cruz de madeira que mais tarde, em 1891, deu origem à Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, onde até hoje os moradores da região acendem velas em memória das almas dos condenados.
“Muitas vezes a história nos animes termina, mas continua nos mangás”, explica Daiane Gomes, que trabalha na loja Dream Anime Club. Durante o fim de semana, é bastante comum encontrar fãs que de tão apaixonados por seus personagens preferidos decidem se vestir como eles – prática batizada de cosplay, condensação das palavras costume (fantasia) e play (representar). “Os cosplayers criam um personagem ou se vestem como um personagem que já existe”, explica Luciano Santiago, cujo nickname (apelido) é Awvatar. Segundo ele, esses grupos costumam organizar festas e convenções para os fãs de mangás e animes aonde todos vão fantasiados. Alguns aficionados vão mais longe e iniciam cursos para aprofundar-se mais nessas técnicas. Outros procuram aulas de japonês para ler os mangás na versão original, e ainda existem os que desejam produzir um mangá. A AreaE – Escola de Mangá é uma das opções no bairro para os interessados em aprender essa técnica – atualmente, são 300 alunos matriculados no curso
continente maio 2009 | 45
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 45
29/04/09 08:19
con ti nen te#44
Viagem que leva de um ano a um ano e meio. São três módulos: no primeiro se ensina o desenho, no segundo, cenário e arte final, e, no terceiro, roteiro e cadernização. “O traço do mangá é bem-estilizado, tem algumas marcas como os olhos grandes”, explica Cláudia Muramoto, que trabalha na escola há um ano.
vida noturna
Nos fins de semana, a vida no bairro fica agitada. O grande número de restaurantes japoneses, chineses e coreanos atrai um público diverso, disposto a provar a culinária oriental. Um dos mais bem cotados é o Hinodê, aberto em 1966, mais antigo restaurante japonês da cidade de São Paulo. O salão original foi construído por marceneiros vindos do Japão e o cardápio tem cerca de 90 opções de pratos. Para quem deseja um lanche rápido, o pastel Yoka, eleito pela Veja São Paulo como o melhor da cidade por 10 anos consecutivos, é o destaque. Outro premiado pela revista é a doceria Alteza. Casualmente, ela não oferece nenhum dos típicos doces
01
02
japoneses, mas foi eleita uma das melhores da cidade com seus quitutes de inspiração francesa. À noite, os karaokês dominam. O hábito de reunir a família para soltar a voz, bastante comum no Japão, chegou ao Brasil em 1970. Desde então, os nikkeis costumam reunirse para cantar em casa ou em espaço conhecido como karaokê box (uma sala com isolamento acústico, fechada para um grupo) e promover grandes concursos de talentos superdisputados. Na Liberdade, concentram-se muitos bares e restaurantes que também são espaços para a prática do karaokê. A Choperia Liberdade, com sua decoração propositalmente kitsch, oferece cerca de 30 mil opções de canções em inglês, japonês e português e chega a receber até 800 pessoas por fim de semana. Os aspirantes a cantores sobem num pequeno palco e acompanham as letras das músicas nos vários telões espalhados pelo bar. Aos domingos, desde 1975, acontece a tradicional feirinha de arte, artesanato e cultura que atrai um grande número de pessoas ao bairro. Nela, os artigos
glossário Anime — Desenho animado japonês. Bentô — refeição pronta japonesa. Bushidô — Código de honra dos samurais. Chochin — Luminária de papel e bambu. Cosplay — Hábito de vestir-se como personagens da cultura pop. Dô — Caminho. Futon — Espécie de edredom feito de fibras de algodão prensadas. Geta — Sandálias de madeira. Haicai — Poema formado por 16 sílabas. Happi — Quimono curto. Hashi — Varetas utilizadas como talher. Kanji — Ideograma japonês. Kataná — Espada. Kokeshi — Boneca de madeira pintada. Mangá — História em quadrinhos. Min´yo — Música folclórica japonesa. Obi — Faixa usada em volta do quimono. Ofurô — Banheira ou tina de madeira. Shibu — Dança com leque. Shodô — Caligrafia japonesa. Washi — Papel de arroz artesanal. Yukata — Quimono informal. Zazen — Meditação (sentada).
continente maio 2009 | 46 7
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 46
29/04/09 08:19
03
01-02
harmonia
03
guLa
04
cuLtura PoP
em 1908, o navio Kasato maru chegava às terras brasileiras com os primeiros imigrantes japoneses
Descendentes mantêm a tradição e convivem com jovens descolados, que fazem da Liberdade seu ponto de encontro A doceria Alteza é famosa por suas iguarias de ascendência francesa
orientais típicos se misturam a produtos ocidentais diversos. A nova geração, com seu estilo moderno e descolado, divide o banco da praça com nikkeis de mais experiência, que quase não falam o português. No outro lado da praça, os cosplayers se reúnem, em frente a um centro cultural onde senhoras ensaiam, vestidas de gueixas, as típicas danças japoneses. No aglomerado das barracas, na diversidade das pessoas, das comidas e dos artigos oferecidos, percebe-se que há muito a Liberdade deixou de ser um bairro exclusivamente japonês, para tornar-se um espaço de convivência de várias culturas distintas. Talvez seja essa pluralidade que tenha atraído o artista Laerte Ramos.
A paixão pelas histórias em quadrinhos japonesas e animes leva muitos fãs às escolas de mangá
@ continenteonline Confira dicas de hotéis, restaurantes e centros culturais na Liberdade no site www.revistacontinente.com.br 04
continente maio 2009 | 47
EMBARQUE_liberdade_46_47_48_49_50_51.indd 47
29/04/09 08:20
con ti nen te#44
Conexão
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.continenteonline.com.br
sites de
designers SÃO PAULO
BELO HORIZONTE
PORTLAND
www.kakofonia.com
www.misprintedtype.com/v4
www.nervo.tv
O site da empresa do designer Kako apresenta um impressionante acervo de realizações entre quadrinhos, fotos, ilustrações, pôsteres e tatuagens.
Misprinted Type é o site pessoal de Eduardo Recife. Nele, o designer mostra seu trabalho com colagens e ilustrações. Ele ainda publica suas próprias fontes, para uso comercial ou gratuito.
Nervo é a empresa de Nando Costa, dedicada à animação e ao design. Alguns dos clientes de seus belíssimos impressos e vídeos são Nike, Fox, Panasonic e Microsoft.
andanças virtuais Lugares para ver e rever o que de bom a web tem para mostrar
mídia
erudito
LendÁrio
FotoJornaLismo
Para colecionar pôsteres de shows e bandas
Organização disponibiliza músicas clássicas e antigas para download
tour virtual permite conhecer ângulos do berço do punk norte-americano
Revista online abre espaço exclusivo a reportagens fotográficas criativas
www.europarchive.org
www.cbgb.com
www.lunaticmag.com
A proposta do European Archive é simples: usar a internet para dar acesso gratuito a raridades da cultura do velho continente. A partir de parcerias com bibliotecas, museus e coleções particulares, o site consegue autorização para compartilhar legalmente obras para fins não comerciais. O acervo não é exclusivamente voltado para a música, mas tem poucas contribuições de filmes – apenas 22 e todos restritos à categoria de vídeos de informação do governo britânico. Quando se trata, no entanto, de canções eruditas, são mais de 800 arquivos, incluindo obras dos principais nomes do gênero, como Brahms, Beethoven, Mozart, Bach, Schumann, Chopin, Strauss, Haydn, Wagner e Debussy.
Por lá passaram, antes de entrarem para a história do rock mundial, artistas como Blondie, Talking Heads, Television e, principalmente, Ramones, verdadeiro símbolo do punk local. Não é por menos que o clube CBGB (Country, Blue Grass, Blues) é tido como um templo para quem conhece sua importância. Aberto em 1973, ficou famoso por ceder seu espaço para bandas desconhecidas do underground nova-iorquino. No site do clube, além de conhecer mais sobre o local e ver depoimentos de quem o frequentou, é possível realizar um tour virtual 360º, que mostra cada um de seus ambientes e até os mínimos detalhes de cada pichação.
Exclusivamente em formato digital, a revista Lunatic tem a proposta de abrir seu espaço para matérias que normalmente não seriam publicadas em revistas e jornais impressos. De periodicidade semestral, a revista é dirigida por Karl Blanchet, do coletivo Luna, e codirigida pelo editor de imagem Eric Hilaire. As matérias são apresentadas em txtos curtos e narradas somente com imagens, sem legendas. Na mais recente edição, os temas das fotorreportagens vão desde as pessoas que “surfam” em cima de trens em Bangladesh até um dia em um bingo de Marselha.
www.posterize.com.br Não importa se é meramente informativo ou graficamente deslumbrante, o destino provável de um pôster de divulgação de shows e eventos é ser coberto por outro, rasgado ou arrancado. Sabendo do destino perecível desse impresso, o músico e designer Ricardo Seola teve a ideia de criar um site para indexar cartazes que merecessem ser vistos e servissem de referência para interessados da área. No Posterize, Seola publicou os trabalhos que fez para sua banda e vem recebendo outros de bandas do Brasil afora. Alguns belos exemplares são os da festa da Peligro e dos shows de Portnoy, Cidadão Instigado e Rufus Wainwright.
continente maio 2009 | 49 8
Conexao_48_49.indd 48
28/04/09 15:51
REPRODuçãO
BREvIDADES prévias Lars Von Trier volta à cena com um filme de terror. A ser lançado neste maio, no Festival de Cannes, Anticristo conta a história de um casal que se muda para uma floresta a fim de melhorar a relação. O plano, no entanto, não dá muito certo. Além do dinamarquês, Quentin Tarantino e Pedro Almodóvar também disponibilizaram na web as primeiras imagens de suas novas produções. O norte-americano está no comando de Inglourious basterds, o olhar tarantinesco sobre a Segunda Guerra Mundial. Já o espanhol traz Los abrazos rotos, lançado em março na Espanha, com a oscarizada Penélope Cruz. Desde já, três dos grandes lançamentos de 2009.
veLHa mídia
dezoito minutos com especiaListas Acervo congrega palestras de grandes nomes tratando de cultura, design, entretenimento, ciências, tecnologia, negócios e questões globais www.ted.com
criada em 1984 , a TED (sigla em inglês para Tecnologia, Entretenimento,
Design) é uma conferência em Long Beach, na Califórnia, que reúne grandes nomes de cada área para desafiá-los a pronunciarem, em 18 minutos, um discurso marcante e inesquecível para o público presente. Atualmente, o evento congrega mais de mil pessoas durante seus quatro dias e tem as entradas esgotadas um ano antes de acontecer. A TED também se expandiu, criando a TEDGlobal, conferência anual em Oxford, na Inglaterra, o TEDPrize, que premia com 100 mil dólares três nomes de carreiras excepcionais, e o TEDTalk, com a função de compartilhar o conteúdo das conferências pela internet a partir do seu site. No endereço, já são mais de 200 palestras – com arquivos ainda sendo adicionados –, todas sobre a licença de Creative Commons, permitindo a reutilização e republicação dos vídeos. Nomes como os do ex-presidente Bill Clinton, do ambientalista Al Gore, da escritora Isabel Allende e do cantor Bono Vox, já passaram pelo TED. As mais acessadas, entretanto, são as do engenheiro da computação Jeff Han e da neurocientista Jill Bolte Taylor, que teve a possibilidade única de pesquisa na sua área ao sofrer um derrame e presenciar suas funções cerebrais serem desligadas uma a uma.
blogs
O Hulu, site de compartilhamento de vídeos à semelhança do Youtube, é uma das poucas iniciativas das empresas de “velha mídia” (NBC e Fox patrocinam a empreitada) a disponibilizar, de graça, conteúdo que costuma vender – e realmente tem obtido sucesso. Segundo Daniel Lyons, colunista de tecnologia da Newsweek, a empresa teve lucro líquido maior que o do Youtube com publicidade, mesmo com uma quantidade bem menor de acessos.
concurso Estão abertas até outubro, no site da Fliporto, as inscrições do 3º Prêmio Internacional de Poesia ao Vídeo. Os interessados podem participar com a adaptação audiovisual de um poema seu ou de outro escritor, desde que obtenham autorização para o uso. Além de ganharem passagem e hospedagem para Porto de Galinhas durante a Fliporto 2009, os três primeiros colocados serão premiados com 4 mil (primeiro lugar), 3 mil (segundo) e 2 mil reais (terceiro).
cuLtura pop
crítica
resenHa
www.oesquema.com.br/trabalhosujo
www.therestisnoise.com
colunas.g1.com.br/maquinadeescrever
No Trabalho sujo, o jornalista Alexandre Matias fala de tudo um pouco: lançamentos e redescobertas musicais, novidades tecnológicas, quadrinhos, séries televisivas e humor, sempre em quantidade e ritmo voraz
The rest is noise é o blog do crítico musical Alex Ross, do The New Yorker, convidado para a Flip deste ano por conta de seu livro homônimo. No site, existe um guia musical para acompanhar a leitura da obra.
Escritor e jornalista, Luciano Trigo analisa em seu endereço os lançamentos do mercado editorial e entrevista autores. Ainda abre espaço para comentários sobre cinema e artes plásticas.
continente maio 2009 | 49
Conexao_48_49.indd 49
28/04/09 15:51
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 550 1
NOVOS EMBATES ´ DA FE Desencadeada mais recentemente na Europa, discussão sobre a existência ou não de Deus acirra antagonismos entre crentes e ateus
continente maio 2009 | 51
con especial ti nen te#44
´
ATEiSMO As crenças dos que não creem Pensadores defendem que a ideia de Deus é supérflua e prescindível para a humanidade texto Eduardo Cesar Maia ilustrações Ricardo Humberto
continente maio 2009 | 52 3
no princípio deste ano , uma
controversa campanha publicitária teve início em Londres. Numa manhã de janeiro, os habitantes da capital inglesa saíram de suas casas para mais um dia de trabalho e se depararam com uma inusitada frase veiculada na lateral de alguns ônibus da cidade: “There©s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life” (Deus provavelmente não existe. Agora pare de se preocupar e aproveite sua vida). Essa pioneira e provocativa empreitada da Associação Humanista Britânica – e sua grande repercussão – se estendeu depois a cidades como Washington, Gênova, Barcelona e Madri, suscitando discussões acaloradas, querelas acadêmicas, eclesiásticas e colocando em pauta, novamente, temas que andavam um tanto fora do debate público mais amplo. A existência de Deus, o laicismo, o ateísmo e a necessidade
reprodUção
Página anterior 01 BoBaim
lore commy nulputet, suscillutaet, suscillutat. Ut lupta
humana de transcendência e de um sentido maior para a vida passaram novamente a ser objetos de artigos jornalísticos, debates televisivos e conversas entre pessoas comuns nas ruas, escolas e igrejas. A resposta dos religiosos, na mesma moeda, não tardou a aparecer. Em Madri, por exemplo, um ônibus com os dizeres “Dios sí existe: disfruta de la vida en Cristo” (Deus existe, sim: desfruta a vida em Cristo) circula pelas ruas das periferias. O “contraataque” foi financiado pelo Centro Cristão de Reunião. Já em Barcelona, Luís Martínez Sistach, cardeal arcebispo da cidade catalã, apareceu em público para defender a fé cristã e fazer pouco caso das mensagens ateístas: “Para os crentes em Deus, a fé na existência de Deus não é motivo de preocupação, tampouco é um obstáculo para desfrutar honestamente a vida. A fé é um sólido fundamento
para viver a vida com uma atitude de solidariedade, de paz e um sentido de transcendência”, disse o prelado. Essa polêmica “cruzada ateísta” e sua contrapartida religiosa, é necessário salientar, não começaram com as mensagens publicitárias, pois elas mesmas foram fruto de um terreno que já vinha sendo cultivado, há alguns anos, por uma onda de livros filosóficos, antropológicos e evolucionistas que agora atacam não somente a crença na existência de um ser superior, mas a ideia de que é preciso que haja tal ente para que o mundo faça sentido e para que qualquer concepção ética entre os seres humanos tenha um fundamento. O debate filosófico em torno da existência ou não de Deus é muito antigo e parece estar fadado a nunca se encerrar, pois nenhuma das partes – crentes ou ateus – pode refutar de forma definitiva a outra, pelo menos
continente maio 2009 | 53
campanha londrina estampou nos ônibus a frase: “Deus provavelmente não existe. agora pare de se preocupar e aproveite sua vida”
con especial ti nen te#44 da natureza como divindades origina o mito, uma forma de especulação pré-filosófica que já apresenta, em forma de narrativas, uma preocupação com o lugar do homem no universo e com a estruturação teleológica da realidade. O pensamento religioso e a investigação racional-filosófica nasceram dessa mesma raiz “mítica”. Da necessidade de ordenar o mundo caótico e dotá-lo de sentido é que se desenvolveram e fundamentaram ambas as concepções de mundo. A etimologia da palavra teoria atesta
as primeiras tentativas de racionalização do real, empreendidas pelos pensadores pré-socráticos, conhecidos como físicos, conceberam o universo como um cosmos ordenado, sujeito a leis e com um propósito
não baseada em critérios empíricos. Dois debates célebres entre os dois pólos representam bem o dito acima. Em 1948, o filósofo agnóstico Bertrand Russel e o padre-pensador F. C. Copleston, polidamente e em altonível, discutiram, num programa da Rádio BBC, a respeito da crença no divino. Resultado: apesar da riqueza intelectual dos argumentos, nenhum pôde convencer o outro de nada. Uma segunda altercação aconteceu entre o famoso escritor e pensador laico Umberto Eco e o cardeal Carlo Maria Martini – e o resultado foi semelhante. Dos dois embates, no entanto, o que fica para o nosso tempo são as concepções éticas e os argumentos morais de ambos os lados.
O que se percebe atualmente é uma relativa mudança de foco na discussão: não se trata mais, prioritariamente, de provar ou refutar a existência de uma entidade suprapessoal, mas da possibilidade – ou não – de uma saudável, solidária e feliz convivência comunitária sem uma fé comum em valores legitimados pela existência de algo que esteja além de nós mesmos.
anima
Para o homem primitivo, predominava uma visão animista do mundo em que as entidades e elementos da natureza tinham caráter divino, eram dotadas de anima (alma). Essa tentativa rudimentar de explicar os elementos
continente maio 2009 | 54 5
o que se está tentando dizer aqui – theion orao (do grego, “vejo o divino”) já carrega o pressuposto de que há uma ordem por trás da aparente contingência do real. As primeiras tentativas de racionalização do real, empreendidas pelos pensadores pré-socráticos, conhecidos como físicos (de physis, natureza), conceberam o universo como um cosmos ordenado, sujeito a leis e com um propósito. A ordem perfeita desse cosmos deveria ser o exemplo para a organização social e para a convivência entre os homens. Tal concepção não está distante do argumento religioso de que é preciso fundar uma ética a partir de algo externo, transcendental. O filósofo jônico Anaxágoras, por exemplo, cerca de 500 anos antes de Cristo, considerava a inteligência (nous) como uma espécie de divindade à qual cabia o ordenamento do mundo.
Essa necessidade de fundamentar a ética num âmbito superior ao humano é um conceito tão forte na história das ideias, que atravessou os tempos e chegou convencer um pensador de orientação empirista como o inglês John Locke, levando em conta que ainda se estivesse às vésperas do Iluminismo. Para ele, autor do famoso Ensaio sobre a tolerância (1689), todas as manifestações de religiosidade deveriam ser respeitadas, mas o ateísmo mereceu a sua desconfiança: “Promessas, compromissos e juramentos, que são as ligações da sociedade humana, nunca podem ser assumidos por um ateu. O afastamento de Deus, mesmo que só em pensamento, descompromete o ateu”.
utópicos
Não obstante todo esse debate de séculos, a questão ainda permanece aberta: a eliminação de uma perspectiva religiosa nos deixaria, então, completamente abandonados ao caos, condenados a uma existência frívola, no melhor dos casos, ou desesperada, no pior? Movimentos utopistas – e o mais claro exemplo disso foi o comunismo – tentavam, em substituição à religião, fornecer um sentido e uma direção ao mundo (a ideia da inevitabilidade histórica do comunismo marxista tem um apelo metafísico semelhante ao religioso); e, ao mesmo tempo, motivavam as pessoas ao auto-sacrifício em prol da promessa de um outro mundo, melhor e mais justo. Para efeito de comparação, a queda do muro de Berlim representou um abalo tão grande na concepção utopista do mundo quanto o que talvez o darwinismo tenha causado à visão religiosa. E hoje, como essa questão se coloca? É claro que a grande maioria das pessoas, mesmo em países laicos, ainda professam algum tipo de fé. Mas, e para aquelas que não querem ou simplesmente não conseguem acreditar – os sem-Deus e sem-utopias? A existência de um propósito maior no jogo do universo e a participação do homem nesse “tabuleiro” são uma forma de amparo – será possível prescindir desse abrigo?
para John Locke, todas as manifestações de religiosidade deveriam ser respeitadas Nos Estados Unidos, o filósofo Sam Harris, o jornalista Christopher Hitchens e o etólogo queniano Richard Dawkins (um dos idealizadores da campanha nos ônibus) são os maiores e mais fervorosos propagadores do ateísmo. Dawkins – apelidado de “rottweiler de Darwin” –, em uma entrevista para uma TV americana, disse: “Eu acho que as pessoas estão ficando um pouco cansadas de viverem a ilusão de ser protegidas por um amigo imaginário”. Esse grupo de autores tem suscitado debates
continente maio 2009 | 55
por todo o mundo – se por um lado, consegue adesões, por outro, parece reacender entre os crentes a vontade de argumentar sobre os critérios em que baseiam sua fé.
“Doutrinação infantiL”
Richard Dawkins, em Deus: um delírio, defende que as religiões são fontes de intolerância e a principal causa dos conflitos bélicos e dos fanatismos terroristas do mundo atual. Outra crítica é dedicada ao que classifica como “doutrinação infantil” – para ele, é um abuso que um indivíduo ainda desprovido de capacidade crítica receba educação religiosa. Um dos alvos mais frequentes é a tese do “design inteligente”, ensinada em muitas escolas americanas com o status de teoria científica, que não passaria, na visão desses críticos, de uma tentativa tosca dos criacionistas de harmonizarem ciência e religião.
reprodUção
con especial ti nen te#44
frases e citaçÕes soBre Deus O homem, em seu orgulho, criou Deus a sua imagem e semelhança. Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão Estou convencido de que no princípio Deus fez um mundo distinto para cada homem, e que é neste mundo, que está dentro de nós mesmos, onde deveríamos tentar viver. Oscar Wilde (1854-1900), dramaturgo e novelista irlandês Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo. Voltaire (1694-1778), filósofo e escritor francês Deus existe, mas às vezes dorme: seus pesadelos são a nossa existência. Ernesto Sábato (1911), escritor argentino Quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa. Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), escritor britânico Todas as leis humanas se alimentam da lei divina. Heráclito de Éfeso (540 aC- 470 aC), filósofo grego
Os militantes do ateísmo contemporâneo, principalmente nos EUA, demonstram um entusiasmo tão grande em relação à ciência, que chegam a defendê-la como substituta da religião. Eles não concordam com a acusação de que o ateísmo é inconciliável com a moralidade e, ao argumento de que o homem precisa de Deus para se sustentar, eles contestam simplesmente afirmando que a consideração de que a religião responda a necessidades humanas importantes não corresponde a uma prova da existência Dele. Dentro dessa mesma tendência, porém com menos proselitismo, pensadores franceses contemporâneos como André Comte-Sponville, autor de O espírito do ateísmo, e Luc Ferry, que publicou O homem-deus ou o sentido da vida, defendem que o indivíduo desprovido de crenças transcendentais não fica necessariamente perdido no caos das aparências e dos estímulos sensoriais imediatos – a negação de Deus pressupõe, para eles, a elevação de outros valores como norteadores
da vida íntima e da convivência em comunidade. Eles partem da conclusão nietzschiana de que não é preciso inventar ídolos metafísicos para dotar a vida de sentido, mas se afastam do pensador alemão na medida em que não terminam em uma posição niilista. A busca desses novos
militantes do ateísmo mostram entusiasmo tão grande em relação à ciência, que chegam a defendê-la como substituta da religião filósofos é por uma “transcendência na imanência”, pela sacralização de valores puramente humanos e históricos, que, para eles, podem ser contingenciais, mas são os mais verdadeiros por estarem enraizados no mundo da vida. Luc Ferry, que já foi ministro da educação na França, explica que utiliza
continente maio 2009 | 56 7
o termo “sagrado” num sentido bem preciso, como “aquilo pelo que alguém se sacrificaria”, como pela própria família, por exemplo. “Não aceitamos mais morrer nem por Deus, nem pela Pátria, nem por revoluções, mas buscamos a alteridade, movemosnos e aceitamos morrer por outro ser humano, se necessário”, escreveu.
autoeXame
O saldo mais positivo dessas discussões que já se espalham por outros países do mundo é que essas questões despertam nas pessoas a necessidade de se autoexaminarem, de repensarem as bases de sua fé ou de sua falta de crenças. O homem, de fato, precisa de sentido, pois o modo de desenvolver sua existência depende de como valora as coisas que lhe são externas. Ser humano é – de uma forma ou de outra – não abdicar nem renunciar a um sentido para a vida. A religião é a única forma de alcançá-lo? Essa pergunta deve ser respondida por cada um de nós, intimamente, no foro sagrado e privado de nossas consciências.
DEBATE Quantos conceitos sobre Deus cabem no mundo? Dois pensadores contemporâneos discutem os paradoxos da fé e de como ela tem sido usada para justificar atos contrários aos princípios éticos elementares texto Schneider Carpeggiani
o Gênesis nos ensina que no
princípio Deus criou o céu e a terra. A terra era sem forma e deserta e havia trevas sobre a face do abismo e seu espírito pairava sobre as águas. Então, disse Deus: “Haja luz”, e houve luz. Nas escrituras sagradas, esse é o primeiro registro de uma fala do criador. No estudo realizado pelo jornalista norte-americano e ex-jesuíta Jack Miles, Deus – Uma biografia, só a abrupta palavra “luz”, e não “haja luz”, seria a tradução precisa do original em hebraico. Afinal, se a frase é um mandamento, ela não é dita como um mandamento: a humanidade ainda não havia sido criada e ninguém dá ordens a si mesmo. Deus falava sozinho. “É como se o carpinteiro, ao pegar o martelo, dissesse em voz alta a palavra ‘martelo’”, escreveu Miles. O livro de Miles aponta que são poucos os registros de fala direta de Deus. Infelizmente, a biografia publicada em 1995 não teve como registrar as mais recentes palavras divinas, datadas de junho de 2003, e proferidas para apaziguar um momento de conflito mundial. Então, disse o Senhor: “George, vá e acabe com a tirania no Iraque”, mandamento direto para o então presidente americano George W. Bush e (segundo o próprio) grande interlocutor das forças divinas. A relação estreita de Bush com Deus foi manchete em todo o mundo, na época, pelo ridículo da situação:
continente maio 2009 | 57
reprodUção/internet
flora pimentel
con especial ti nen te#44
“Há um excesso do uso do nome de Deus para justificar tudo: guerras, assassinatos, comércio… as pessoas esquecem que existe uma diferença entre Deus e religião. o Deus de Bush não é o meu Deus” Leonardo Boff o governante da maior potência mundial lançava mão de uma justificativa esotérica para deflagrar uma guerra. Mas Bush não estava de todo errado. O argumento da vontade divina sempre foi usado para qualquer fim, das guerras ao surgimento de nações. Independentemente da fé, Deus é o álibi mais eficiente. Para entender o mecanismo de uso e abuso do nome de Deus e no que isso pode resultar, a Revista Continente conversou com dois pensadores aparentemente antagônicos: o expoente da teologia da libertação no Brasil e crítico agudo da Igreja Católica, Leonardo Boff; e o ateu militante mais atuante do momento, o norte-americano Sam Harris. Incisivos em suas crenças (e descrenças), ambos defendem o paradoxo de que a fé não pode ser cega e precisa de uma interpretação crítica.
ateísmo ético
Boff é favorável à expressão ateísmo ético. “É preciso ser crítico em relação a certas visões de Deus oferecidas pela sociedade e pelas religiões”, explicou. As críticas constantes de que o teólogo lança mão contra a alta cúpula da Igreja Católica fazem com que alguns setores da instituição o considerem apóstata. Entre os seus maiores alvos, está o Papa Bento XVI. “Ele foi um amigo próximo, mas agora não é mais. Sua visão de mundo é um retrocesso, ele está afastando os fiéis da igreja”, ressaltou. “Não quero que as pessoas digam que eu estou pregando o ateísmo, mas diante do Deus de George W. Bush, que pede a deflagração de uma guerra, ou de um Deus que é só punição, eu prefiro ser ateu.” “Há um excesso do uso do nome de Deus para justificar tudo: guerras,
continente maio 2009 | 59 8
assassinatos, comércio... As pessoas esquecem que existe uma diferença entre Deus e religião. O Deus de Bush não é o meu Deus. O problema, hoje, na Igreja Católica, é a ausência de lideranças e de membros que tenham uma atitude forte, como D. Helder Camara e Madre Teresa de Calcutá”, continuou Boff. Em relação à campanha a favor do ateísmo em andamento na Europa, Boff é categórico: “Esse é um ateísmo libertário. A religião nesta última década ficou muito ligada à ideia de fundamentalismo, com guerras, com repressão. As pessoas estão se sentindo oprimidas. Quando você diz num cartaz ‘Deus não existe, você está livre’, é uma tentativa de se libertar de tanta opressão, de tantos dogmas. Esse Deus que promove guerras não é o meu Deus. O meu Deus é amor e justiça. É um bom pastor, que não prega o medo”.
Professora de História da Filosofia da USP e ex-editora da Veja e da Folha de S.Paulo, Marilia Fiorillo acaba de lançar O Deus exilado (Editora Record), em que analisa como as religiões são feitas, refeitas e desfiguradas. Nesta entrevista para a Continente, a autora ataca os excessos religiosos e diz que a arte pode servir como substituto para a transcendência divina. (SC)
política são fermento para os fundamentalismos, não para a oxigenação do ateísmo. Os fundamentalismos, às vezes considerados desvios das religiões, poderiam, com mais propriedade, ser tratados como a expansão do núcleo mesmo de toda religião, tanto mais feroz quanto piores forem os tempos. Religião é, em si, exclusão: pertencer a uma é excluir a legitimidade das outras. E da exclusão para a intolerância é menos que um passo.
continente O fundamentalismo que marcou a última década pode provocar uma onda de ateísmo? mariLia fioriLLo Ainda não dá para temer uma escalada do ateísmo. Pesquisas em todo mundo, inclusive no Brasil, mostram que o ateísmo está diretamente relacionado ao nível educacional. Não há uma correlação 100%, mas a clientela ateísta em geral é a de melhor e mais prolongada formação acadêmica, mais culta e cosmopolita. A globalização aprofundou o abismo entre ricos e pobres. E a miséria, econômica, social, educacional, e a indigência
continente Já existe um substituto para a ideia de Deus? mariLia fioriLLo Sem dúvida. Para a moralidade, há uma frase de que gosto, que é “um dos maiores crimes contra a ética foi ter permitido seu sequestro pela religião”. Caso se entenda Deus não como a ideia agregadora de moralidade, mas como a busca do sublime, então ficamos com a arte, vantajosamente. Quem quer transcendência, certamente vai encontrá-la, por exemplo, nos últimos quartetos de Beethoven. A religião, mais que o espaço do sublime, é o do terror.
MAriliA FiOrillO
Deus como DeLírio
Um dos protagonistas da militância ateísta nos Estados Unidos, Sam Harris resume bem sua visão de mundo em O fim da fé: religião, terror e o futuro da razão, ainda inédito no Brasil. A Companhia das Letras publicou no ano passado o ensaio Carta a uma nação cristã, tratado irônico contra o suposto bem que as religiões exercem sobre o homem e contra a (em suas palavras) arrogância de uma religião achar que tem a derradeira verdade. Para o autor, é preciso tratar uma experiência espiritual de maneira ética e não como um acontecimento sobrenatural. E mais: já seria tempo de a sociedade aceitar que Deus é um delírio. Para crer, é preciso ver. Se, para Harris, Deus é o conceito de um mundo delirante, o que fazer para substituí-lo? “A questão não deveria ser como substituir Deus. A questão real
seria ‘há alguma prova concreta da existência de Deus?’ Na verdade, eu acho que para os dois casos a resposta seria não”, afirmou Harris em entrevista para a Continente. O autor defende que o trauma de “perder” Deus não difere do que sente uma criança ao descobrir que Papai Noel não passa de um joguete publicitário: “Considere o que acontece quando as crianças aprendem que Papai Noel não existe; elas não encontram uma espécie de substituto para Papai Noel. As crianças simplesmente entendem que a ideia de Papai Noel é uma contradição a tudo o que elas estão conhecendo do mundo. Pense ainda em todos os deuses mortos, como Zeus e Thor. Encontramos substitutos para eles? Não, apenas foram esquecidos”. O repúdio de Harris ao divino se apóia em bases iluministas, a partir do momento em que exige explicação
continente maio 2009 | 59
continente É possível pensar numa sociedade sem as regras religiosas? mariLia fioriLLo É uma resposta complicada. Freud achava que sim, que a religião teve seu papel civilizatório na infância da humanidade, mas que, com a educação democratizada, ao alcance de todos, poderíamos abrir mão das superstições confortadoras. divUlgação
Entrevista
objetiva para todos os fenômenos, é o lema “ousar saber” que tanto assusta as entidades religiosas. “Este é o momento certo para que nossas crenças sejam apoiadas por provas concretas. Há alguém vivo que possa provar que Jesus nasceu de uma virgem? Não. Então, que assim seja. É necessário mentir para nós mesmos, para nossas crianças sobre nosso conhecimento do mundo para sermos éticos, para mantermos relações saudáveis ou para sermos genuinamente felizes? Não. Então, vamos parar de mentir sobre religião.” Harris defende que vivemos hoje uma onda generalizada de medo de Deus: “Se existe um Deus como o descrito na Bíblia, ele precisa mesmo ser mais temido que amado. Esse é um Deus que criou mais pragas que animais. Se tudo acontece porque Ele permite, não há como pensarmos que Deus é bom”.
BELLE ÉPOQUE O flagelador do esnobismo Ao produzir primorosas caricaturas no começo do século 20, emílio cardoso Ayres criou um retrato rico – e crítico – da aristocracia carioca da época É difícil encontrar quem já tenha
ouvido falar de Emílio Cardoso Ayres, e, se nos restringirmos a conhecedores da obra do cartunista, estes são ainda mais raros. O pernambucano nasceu no dia 23 de maio de 1890, filho de Emília Vieira Cardoso Ayres e Eugênio Cardoso Ayres. A riqueza da família tinha origem nos engenhos de canade-açúcar e no comércio. Teve quatro irmãos, sendo um deles o bispo de Olinda Dom Francisco Cardoso Ayres. Emílio logo cedo demonstrou aptidão para o desenho, rabiscando em seus livros figuras de mulheres. Aos 15 anos, ainda tentou trabalhar no comércio da família, mas logo percebeu que não levava jeito para o ofício. Seus pais, então, apoiaram a decisão de se dedicar ao estudo do desenho. Teve dois professores: no Recife, Teles Júnior, paisagista que o fez adaptar-se às rígidas fórmulas clássicas, e, no Rio de Janeiro, Henrique Bernardelli, espécie de retratista oficial da sociedade carioca. O seu verdadeiro mestre, no entanto, foi o decorador da Opéra Comique Luc-Olivier Merson, que conheceu em Paris. Por ocasião da morte do seu irmão Eugênio, Emílio voltou ao Brasil em 1910, passando a frequentar os salões cariocas. Em 1911, no Rio, fez mais de 50 caricaturas em 15 dias, de acordo com Assis Chateaubriand, e, com elas, organizou uma exposição improvisada no ateliê do fotógrafo Sílvio Bevílaqua. Prevista para alguns dias, a mostra teve grande repercussão e durou cerca de dois meses. O cronista e jornalista João do Rio, autêntico representante da belle époque carioca, escreveu um texto na Gazeta do Rio em que comentava
a empreitada: “Era um grande sucesso, um imenso êxito – como nunca houve no Brasil, nesse gênero”. Em Paris, editou em 1912 um álbum – hoje raríssimo – com sua obra e colaborou nas publicações Gazette du Bon Ton, La Culotte-Rouge, Le Rire e La Nature. Obtendo reconhecimento na capital francesa, decidiu viajar, passando pela Suécia, Tunísia, Rússia, Argélia e, por fim, em Marselha, local de seu suicídio em 1916, aos 26 anos. Com o talento visível desde a infância e dedicação ao estudo do desenho, não é de se estranhar a qualidade dos seus desenhos. Herman Lima, em A história da caricatura no Brasil, conta que bastava Emílio fazer um esboço “para se saber de quem se tratava”. Mesmo irônicas, as suas caricaturas, ao menos publicamente, não desagradavam os personagens retratados. Era normalmente comparado com os franceses Sem e De Losques e com o inglês Max Beerbohm – compartilhava com este a simplicidade dos traços e o desdém pelo cenário, que raramente ia além de um piano ou cadeira. Outra característica de Emílio foi a ousadia temática. Era um dos poucos que não se dedicavam a retratar exclusivamente os políticos, registrando mecenas, artistas e mulheres – atitude rara à época. Na crônica O domínio da caricatura, Mateus de Albuquerque afirmou enxergar em Emílio “a nossa sociedade em resumo, vista através de um fino, original temperamento de artista”. (Diogo Guedes)
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 660 1
con ti nen te#44
“Quem mais parisiense da belle époque do que emílio cardoso Ayres?” Gilberto Freyre imaGens: RepRoDução
B
n
n
4
SARAUS cARiocAS
MeStReS
Gilberto Freyre destacava o caráter “sociológica e psicologicamente proustiano” das caricaturas de emílio, verdadeiros documentos históricos e críticos sobre a sociedade carioca. uma das figuras mais representadas por ayres foi a mecenas madame santos Lobo, que teve vários saraus em santa Teresa, como o da imagem acima, retratados pelo pernambucano.
ao contrário das outras pinturas brasileiras, influenciadas pela arte francesa, as obras de Henrique Bernardelli (no retrato acima), professor de emílio, eram marcadas pelo academicismo e por sua passagem por Roma, quando foi discípulo de Domenico morelli. Já Luc-olivier merson, mestre maior do pernambucano, trabalhou com pinturas, desenhos, vitrais, selos e até papel-moeda. são visíveis os traços góticos, resultado do seu envolvimento com o simbolismo, em uma de suas obras mais famosas, notre-Dame de paris, de 1881 (acima, à esquerda).
Baú oRiGinAiS
o site da galeria estadunidense Derby City Prints tem em seu acervo três obras de emílio – duas delas iguais. os desenhos, propagandas em francês com assinatura do pernambucano, foram publicados originalmente na Gazette du Bon Ton em 1914.
DeSenHoS
por três vezes emílio se representou em desenho. irônico até consigo mesmo, retratava-se com um chapéu coco e sapato francês – feito sob encomenda – de salto alto, adereços que usava para esconder a pequena estatura.
continente maio 2009 | 61
reprodução
cOn tI nen te#44
História
continente MAIO 2009 | 62 3
jornalismo relatos do front viram clássicos e atraem leitores O papel dos correspondentes que se arriscam na cobertura de situações de guerra é relevante também hoje, em tempos de notícias difundidas pela internet texto Marcelo Abreu
no momento em que o jornalismo, cada vez mais, se
baseia em pesquisas de internet, no sedentarismo das redações e nas estratégias das assessorias de imprensa, parece estar havendo, no Brasil, um renovado interesse pelo trabalho dos correspondentes que se aventuram em campos de batalha em busca do mais arriscado gênero de reportagem: os eletrizantes relatos de guerra. Os vários conflitos armados pelo mundo, com destaque para as ofensivas dos norte-americanos no Iraque e no Afeganistão, ajudaram a reavivar, nos últimos tempos, a curiosidade pelos grandes momentos do jornalismo de guerra. O jornalista Sérgio Dávila, que acompanhou pela Folha de S.Paulo a invasão do Iraque em 2003, escreveu que “repórter disposto a comer poeira atrás de boas histórias é artigo cada vez mais difícil na era da internet”. Mesmo assim, o público que admira o grande jornalismo ainda existe. Uma demonstração disso pode ser a avidez com que o mercado editorial tem explorado esse filão. Exatamente quando se intensifica o fluxo de notícias, o mercado editorial percebeu que há espaço e curiosidade para a época do chamado jornalismo romântico, na qual os enviados iam
para as trincheiras, isolavam-se do mundo e voltavam, semanas, meses depois, com relatos vívidos sobre a miséria das guerras. Essas matérias essenciais na história do jornalismo têm saído dos empoeirados arquivos e ganhado nova vida nas páginas dos livros.
os editores perceberam que há espaço e curiosidade sobre a época do chamado jornalismo romântico Muito já se discutiu a respeito das implicações éticas do trabalho da imprensa nos campos de batalha. Da censura política e ideológica (incluindo a autocensura) às restrições dos militares, das dificuldades operacionais às intimidações. O que é menos lembrado, quando se fala de guerra, é a grande quantidade de textos de qualidade vindos do front. O Brasil, que não se envolveu em guerras tradicionais nas últimas décadas, tem pelo menos um nome especial no panteão dos grandes
continente MAIO 2009 | 63
correspondentes: o sergipano Joel Silveira (1918-2007), que cobriu para os Diários Associados a campanha dos pracinhas da Itália e a tomada do Monte Castelo. Na coletânea O inverno da guerra (Editora Objetiva), Silveira narra em detalhes a rotina do fim de ano dos soldados brasileiros na Itália, em 1944. No texto intitulado Não vá além daquele poste, ele escreve: “O belo fogo de artifício (lançado pelos alemães) brilhou no céu em centenas de pequenas estrelas; depois o pequeno paraquedas foi descendo devagar até ficar dependurado numa árvore sem folhas. O pracinha Francisco de Oliveira, de Jacareí, me conta: a árvore desgalhada de repente virou uma árvore de Natal. E foi aí então que aquela era exatamente a noite de Natal”. Sobre as coberturas nas trincheiras, Silveira costumava escrever com seu humor peculiar: “O diabo, que também estava lá (como sempre esteve em todas as guerras), é testemunha de que não foi um passeio”. Mas quando o assunto é as restrições, não chega a reclamar: “Nada é encoberto ao correspondente, mas naturalmente todos sabemos o que deve e o que não deve ser dito”. Na Segunda Guerra, não parecia haver dúvidas de qual era o lado certo.
01
RoBeRt fiSk
02
joRnALiSmo BRASiLeiRo
03
peteR ARnett
o jornalista britânico é considerado um dos grandes nomes da cobertura no oriente Médio participação nacional na Segunda Guerra foi acompanhada por gente como rubem Braga e Joel Silveira peter Arnett chegou a atravessar rio com páginas de texto na boca para dar notícia do Vietnã
01
02
O escritor Jorge Amado (1912-2001), que acompanhava o conflito do Brasil, escrevendo uma coluna no jornal O Imparcial, de Salvador, reunida no livro Hora da guerra (Cia das Letras), escreveu no dia 3 de outubro de 1943 que os correspondentes “lutam com as suas tremendas armas, pena que vale um fuzil, máquinas de escrever que valem uma metralhadora”. A Segunda Guerra talvez tenha sido o último conflito em que a ideia do bem e do mal era clara para todos, pelo menos do lado de cá da trincheira, como fica evidente nas palavras de Joel Silveira e Jorge Amado.
de 1930, até as guerras civis na América Central, nos anos 1980, era indignada com o militarismo. Em seus textos, privilegiava as histórias humanas, os detalhes do cotidiano em detrimento dos combates. Na introdução, escrita em 1986, para o seu livro A face da guerra (Objetiva), ela escreveu: “Depois de uma vida inteira observando (...), vejo a guerra como uma doença humana endêmica e os governos são os portadores. Apenas governos preparam, declaram e travam guerras”. Gellhorn foi uma das que, ao transmitir toda a dramaticidade da experiência no sudeste da Ásia, ajudaram a tornar impopular a Guerra do Vietnã. Essa guerra representou uma virada na forma de cobertura do tipo, e não apenas pela presença da televisão, que mudou a opinião pública dos EUA. Foi a primeira guerra em que muitos correspondentes estavam livres do sentimento patriótico e puderam exercer sua crítica de forma mais solta. Sobre o tema, há relatos contundentes de muitos norte-americanos e até do brasileiro José Hamilton Ribeiro, enviado da revista Realidade, que narra sua aventura no livro O gosto da guerra (Objetiva). A invasão do Iraque, a partir de 2003, já numa época de imagens
coBeRtURA ViSceRAL
Joel Silveira fez parte de uma geração internacional de grandes repórteres que ficaram famosos durante a Segunda Guerra Mundial, como foi o caso dos norte-americanos William Shirer (leia o próximo texto) e Martha Gellhorn. Uma geração que foi imortalizada numa coletânea publicada nos Estados Unidos cujo título diz tudo: Typwriter batallion (O batalhão dos datilografistas). De lá para cá, as coisas ficaram mais complicadas. Martha Gellhorn (1908-1998), que cobriu acontecimentos que vão da Guerra Civil Espanhola, na década
continente MAIO 2009 | 64 5
abundantes transmitidas ao vivo, também deu ensejo a grandes textos de enviados especiais. É o caso do norte-americano Jon Lee Anderson, autor do livro A queda de Bagdá. E também do inglês Robert Fisk. Hoje considerado o grande nome das coberturas de guerra (acompanha
os tempos podem não ser mais de aventuras, mas a palavra escrita do jornalismo está aí para retratar o drama da humanidade o Oriente Médio desde o começo dos anos 1980), Fisk é autor de A grande guerra pela civilização (Planeta) e Pobre nação (Record), sobre os conflitos no Líbano. No livro Ao vivo do campo de batalha (editora Rocco), o neozelandês Peter Arnett (que ganhou fama no Vietnã trabalhando para a Associated Press) conta a forma como cobriu um golpe de estado no vizinho Laos. Quando os militares golpistas cortaram as comunicações externas do país, Arnett colocou na boca sua
iMAGeNS/reprodução
03
reportagem escrita em laudas de papel e, tentando não molhar o texto, atravessou a nado o rio Mekong, que divide o Laos da Tailândia, para transmitir a notícia do país ao lado. Mas esse tipo de história já tem quase meio século. Modernamente, a cobertura de guerras fica cada vez mais restrita ao teto dos hotéis de luxo (onde é mais fácil recarregar baterias dos celulares e laptops e fica mais perto do batepapo em torno da piscina, no final da tarde). É um comportamento que lembra o tipo de jornalismo ironizado no romance Furo, de Evelyn Waugh e retratado no filme O ano em que vivemos perigosamente, de Peter Weir, sobre a guerra civil que iniciou a derrubada do governo de Sukarno, na Indonésia, em 1965. Os tempos podem não ser mais de aventuras, mas a palavra escrita do jornalismo está aí para retratar a guerra, esse drama constante da humanidade. Referindo-se à Segunda Guerra Mundial, Jorge Amado escreveu: “Esta guerra (...) está produzindo uma interessantíssima e poderosa literatura, viva e emocionante, devida aos correspondentes”. Apesar de tudo, 70 anos depois, os enviados aos campos de batalha continuam essenciais.
entRe A hiStóRiA e o joRnALiSmo Ascensão e queda do Terceiro Reich foi obra de fôlego o norte-americano William Shirer fez muito mais do que cobrir guerras. Como correspondente na Alemanha durante o período de implantação do nazismo, pôde acompanhar de perto o cotidiano de uma ditadura totalitária. em 1960, quinze anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, lançou a monumental obra Ascensão e queda do Terceiro Reich, que virou um clássico imediato sobre o tema. o livro, que desde os anos 1970 estava fora de catálogo no Brasil, voltou às prateleiras recentemente numa edição em dois volumes da editora Agir. William Shirer é o protótipo do correspondente internacional em tempos de grandes conflitos. Conhecia a Alemanha como poucos estrangeiros e tinha uma visão de mundo ampla, que não se resumia à europa. em um trecho do primeiro volume da sua obra – chamado Triunfo e consolidação, Shirer faz uma descrição detalhada das origens do nazismo e da trajetória pessoal de Adolf Hitler e de seus assessores. Ascensão e queda tem um texto primoroso e vai muito além do jornalismo. É um trabalho de reconstituição histórica a partir dos arquivos encontrados após a queda do regime e a invasão aliada de Berlim. resgata também trechos interessantes da montanha de depoimentos gerados nos processo de Nuremberg, que julgou os líderes nazistas. Shirer nasceu em 1904, em Chicago. Aos 21 anos, foi para a europa passar um verão, mas acabou arranjando um emprego de repórter na edição parisiense do Chicago Tribune, onde ficou por sete anos. Nesse tempo, conviveu com a nata da intelectualidade boêmia norte-americana que estava em paris, entre eles ernest Hemingway e Scott Fitzgerald. Viajou pelo oriente Médio, entrevistou Mahatma Gandhi na Índia, cobriu a coroação de Nadir Khan, no Afeganistão, e a olimpíada de Amsterdã, em 1928. Chegou a Berlim em agosto de 1934 e acompanhou a nazificação da Alemanha e a preparação para a guerra. por volta de 1937, o já consagrado jornalista edward Murrow, gerente de operações da rádio CBS na europa, estava procurando um correspondente no continente e decidiu contratar William Shirer. Teria início então o trabalho de uma das duplas mais famosas do jornalismo. ele passou a integrar o grupo dos chamados Murrow’s boys, talentosos repórteres que traziam as notícias da europa para o público norte-americano naquela era de ouro do rádio. Criou com edward Murrow o roundup, programa jornalístico radiofônico na CBS que contava com a participação de correspondentes em diversas capitais, formato que se consagrou e ainda hoje é usado no rádio de qualidade. No trabalho da dupla, Murrow narrava os bombardeios aéreos contra Londres e Shirer entrava com notícias de Berlim ou de outra capital já tomada pelos nazistas. Apesar das restrições ao seu trabalho, o repórter conseguia transmitir seus boletins radiofônicos usando um estilo de frases sutis, entonação de voz sugestiva e gírias usadas nos estados unidos, desconhecidas dos censores alemães. Mas no final de 1940, com a censura apertando e um boato de que a polícia secreta, a Gestapo, estava pensando em pegá-lo, saiu às pressas da Alemanha e voltou aos estados unidos. No ano seguinte, lançou o livro Diário de Berlim, no qual conta sua experiência pessoal nos anos em que viveu entre os alemães. Voltaria à Alemanha em 1945 para cobrir os julgamentos dos crimes nazistas em Nuremberg. em 1947, brigou com edward Murrow e saiu da CBS, em um episódio que serviu de prenúncio aos problemas que o próprio Murrow teria com a direção da emissora, retratados no filme Boa noite e boa sorte, de George Clooney. devido à sua antipatia pela doutrina Truman, entrou na lista negra dos acusados de simpatizar com o comunismo. Ficou anos queimado nas emissoras de rádio e nos grandes jornais, período em que sobreviveu dando palestras no circuito universitário. reconheceu depois que, não fosse a falta de emprego, jamais teria tido tempo para pesquisar e escrever Ascensão e queda do Terceiro Reich. o livro foi publicado com enorme sucesso de crítica e de vendas. para escrevê-lo, William Shirer mergulhou em um oceano de documentos apreendidos com a vitória dos aliados, em 1945. Somente nos arquivos da Marinha alemã foram achadas 70 mil pastas. No Ministério do exterior nazista, 485 toneladas de documentos foram recuperadas no momento em que iam ser queimadas, já nos últimos dias de Hitler. Além disso, o repórter teve acesso a diários pessoais de comandantes militares alemães. Toda essa documentação embasa sua narrativa e é misturada aos fatos que ele presenciou em primeira mão, ao longo dos anos 1930 e 1940. escrevendo sobre o seu método de pesquisa, ele conta que “a avalanche de material nos impelia pelo caminho da verdade”, mas, por outro lado, deixava os estudiosos “confusos, sobretudo quando se sabe que em todos os registros e depoimentos humanos costuma haver contradições”.
continente MAIO 2009 | 65
01
con ti nen te#44
Pernambucanas
continente maio 2009 | 66 7
acervo Uma casa toda de livros Casarão no bairro do Poço da Panela abriga coleção do jurista Ruy da Costa Antunes que soma mais de 10 mil títulos de diversas áreas texto Mariana Oliveira fotos Hélder Tavares
continente maio 2009 | 67
02
Página anterior
01
interior
Sala principal da biblioteca, onde livros de vários períodos convivem com mobiliário antigo e objetos de arte
Nestas páginas
con ti nen te#44
02
família
03
música
04
curiosidade
O advogado Henrique Antunes instalou seu escritório na biblioteca deixada por seu pai Além dos livros, a família herdou peças de artesanato e coleção de discos A biblioteca chama a atenção de quem passeia pelo bairro durante o dia, quando todas as suas janelas estão abertas
Pernambucanas
03
continente maio 2009 | 69 8
são mais de 10 mil livros espalhados nas prateleiras que cobrem as paredes de todos os ambientes da casa, no Poço da Panela. Quem olha de fora, imagina que aqueles livros sempre estiveram ali, no número 494 da Estrada Real do Poço, tamanha a sintonia do espaço com o bairro, conhecido como reduto de intelectuais e artistas. A biblioteca particular foi um dos legados que o advogado e jurista Ruy da Costa Antunes deixou para os seus oito filhos, em novembro de 1994, quando faleceu. Quem nos conta a história desse colecionador é um dos seus herdeiros, o advogado Henrique Antunes, que instalou ali, em meio às publicações, seu escritório de advocacia. Filho único, Dr. Ruy foi apresentado aos livros ainda muito criança. Na falta de irmãos ou amigos para brincar, o futuro advogado e professor dedicava seu tempo livre à leitura, fazendo dos livros seus grandes companheiros. Uma paixão que durou a vida toda, desde o primeiro título colocado na primeira prateleira ao último, quando sua coleção já precisava de uma casa inteira para ser alojada.
04
04
O garoto solitário terminou entrando na Faculdade de Direito do Recife, foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista, mas teve seu mandato cassado, em 1948, pouco depois de o partido ter sido declarado ilegal. Depois desse breve período atuando na política, Dr. Ruy passou a advogar na área penal e a dar aulas na Faculdade de Direito, aproximando-se ainda mais dos livros. Como professor dedicado, foi formando uma vasta coleção de títulos jurídicos. Segundo seu filho, tudo o que ele ganhava na universidade era investido na compra de novas obras. Há alguns anos, a família contratou uma bibliotecária para organizar o material por temáticas. Não há uma catalogação, mas pelo menos é possível saber onde estão os livros dedicados a cada área de conhecimento. Os títulos sobre Direito são maioria. “Chama a atenção sua grande coleção de jurisprudência. Antigamente era preciso investir nisso. Hoje está tudo na internet”, diz Henrique Antunes. Como bom intelectual, Dr. Ruy não se limitou ao Direito. Na biblioteca, convivem harmonicamente publicações das
áreas de psicologia, artes plásticas, história, literatura... Os periódicos também atraíam sua atenção: arquivada em pastas, está a coleção quase completa de O Pasquim (só faltam dois exemplares). Uma prateleira, em pleno corredor, abriga uma boa quantidade de exemplares da revista Realidade, marco do jornalismo literário no Brasil. Além dos livros e periódicos, seu colecionismo se estendia à cultura popular (com uma vasta coleção de artesanato em barro) e aos discos, que compõem um acervo à parte.
itinerÂncia
A impressão inicial de simbiose entre livros e espaço é desfeita quando sabemos do itinerário por eles percorrido. “Nós morávamos na Rua Joaquim Nabuco, no Derby, mas houve uma cheia e meu pai perdeu mais de duas mil obras da coleção. Ele terminou mudando-se para Aldeia, levando toda sua biblioteca. Anos depois, devido aos problemas de saúde da minha mãe, ele voltou para a cidade. Foi um problema encontrar um lugar onde coubesse sua coleção”, explica.
continente maio 2009 | 69
Dr. Ruy encontrou o casarão na principal via do Poço da Panela, numa zona de preservação rigorosa. O prédio era perfeito para alojar sua biblioteca e havia um terreno bem espaçoso para a construção de uma casa, onde ele pudesse residir. A família reformou internamente o antigo casarão, que virou biblioteca, e construiu uma casa atrás dele. Desde então, o espaço chama a atenção dos transeuntes que circulam pelo histórico bairro recifense. No fim da vida, esse apaixonado pela leitura sofreu um grande golpe: sua visão não era mais a mesma, já não era fácil dedicar-se à leitura. Mesmo assim, não se privou de cuidar de seu acervo e de deixar claro aos seus herdeiros que não gostaria de ver seus livros sendo vendidos em algum sebo. Quinze anos após a sua morte, seus familiares continuam cuidando dessa herança (com as dificuldades habituais que envolvem a manutenção de livros bastante antigos), que só deve deixar o casarão do Poço da Panela para ser doada a alguma instituição pública, na qual todos os pernambucanos possam ter acesso a ela.
divulgação
Visuais 01
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 770 1
mira schendel artista tocou movimentos sem aderir a nenhum deles
Estudo realizado por Geraldo de Souza Dias mostra o interesse constante dela por questões religiosas e filosóficas e a sua trajetória profissional independente
01
02
GeoMetRiA concRetA
Pintura em técnica mista sobre papel, de 1954, está entre os trabalhos que foram denominados geladeiras e fachadas, por apresentarem pronunciada frontalidade objetos GRáficos
Entre os anos 1960 e 1970, a artista produziu vários desenhos com caligrafias e letras autocolantes impressas sobre papel-arroz e prensadas entre grandes placas de acrílico transparente
texto Adriana Dória Matos
É possível que o nome de Mira Schendel seja mais cultuado que conhecida a sua obra no Brasil. O trabalho dessa artista, nascida em Zurique (1919), formada na Itália e falecida em São Paulo (1988), cidade em que fixou residência desde 1953 e onde desenvolveu trajetória artística, está associado à arte abstrata, construtiva, conceitual, minimalista e às poéticas visuais. Entretanto, ainda que haja pertinência nesta associação de sua obra a movimentos artísticos importantes do pós-guerra, não há como filiá-la a grupos, enquadrá-la, retê-la. Porque uma das qualidades que ela preservou, e que provavelmente é motivo da consistência do seu acervo, foi a independência em relação a tendências, modismos e agrupamentos; conservava-se em estado de constante dúvida e vigilância criativa, tendo mesmo adotado uma atitude reservada, de seletividade social. E isto pode ter origem em diversos fatores, desde o temperamento até um sentimento de não-pertencimento, provocado por sua condição de “estrangeira”, resultado dos diversos deslocamentos a que foi submetida em sua infância e juventude, como garota de origem judia, assimilada ao catolicismo e perseguida na Europa nazifascista da primeira metade do século 20. Um novo estudo sobre esta artista é chegado agora no livro Mira Schendel – Da espiritualidade à corporeidade (Cosac Naify, 352 páginas), em que o autor, Geraldo de Souza Dias, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, aponta como sua obra se desenvolve a partir de pressupostos espirituais, fundamentados em reflexões
02
filosóficas. A publicação, fartamente ilustrada com reproduções de obras das variadas fases da artista, teve origem em tese de doutorado defendida pelo autor em 2000, na Universität der Künste Berlin. A originalidade da pesquisa se encontra na análise do contexto em que a obra da artista foi produzida. O trabalho se apoia em entrevistas realizadas pelo autor e no acesso que ele teve a valiosas fontes primárias, quais sejam escritos da artista, espalhados por diários, anotações e cartas – estas, trocadas com interlocutores que Schendel mantinha em várias partes do mundo, sobretudo em língua alemã. Muito desse material é inédito. Souza Dias também teve
continente maio 2009 | 71
o cuidado de elencar e comentar as correntes de pensamento que influenciaram a artista ao longo das três décadas em que se dedicou à arte.
PRiMeiRos contAtos
Quando chegou a São Paulo, vinda de um período de quatro anos de residência em Porto Alegre, Mira Schendel teve oportunidade de entrar em contato com o ambiente artístico local visitando museus, ateliês e bibliotecas. Sobre a relação com os artistas da cidade, ela diz que “nunca pensava que os pobres pintores e escultores devessem ser rodeados de tanta elegância”. Esse contato inicial fez com que ela decidisse, como destaca o autor, preservar as
divulgação
03
DRoGUinHAs
04
boMbAs
Criados com o mesmo papel-arroz dos desenhos, esses objetos retorcidos formam redes efêmeras, jogadas “no vazio para colher o nada”, como definiu o crítico Frederico Morais
desenhos da década de 1960, feitos com pinceladas de tinta e nanquim sobre papel umedecido, constituem-se em massas gráficas e geométricas em que há economia cromática
Visuais
03
próprias concepções sobre vida e arte: “O que vejo por aqui não é grande coisa. Muitas pretensões e esnobismo, quando sabemos que arte é um serviço humilde e que a vida deveria ser vivida com imensa humildade”, escreve a artista, em 1953. Mesmo num ambiente descrito por ela como de esnobismo, Mira Schendel encontra naquela cidade pessoas com quem manterá afinidade intelectual. “Em meados dos anos 1950, Mira conheceria o poeta Theon Spanidus, o físico Mário Schenberg e o filósofo Vilém Flusser, e depois o poeta Haroldo de Campos. Essas personalidades, com quem ela permaneceu em contato durante os anos 1960, formavam, por assim dizer, o núcleo intelectual do seu círculo de amigos, exercendo também, às vezes, a função de críticos de seu trabalho”, escreve Souza Dias. Cristianismo, judaísmo, orientalismo. A busca da artista por
04
Uma das qualidades do novo estudo sobre Mira schendel é a reunião de correspondências até então inéditas repostas aos seus questionamentos humanos (“A religião está no centro dos meus pensamentos. [...] Penso em Deus com angústia e paixão indescritíveis”, escreveria ela em carta não datada), levou-a a percorrer diversas linhas teológicas, o que também a fez aproximar-se da filosofia e da psicanálise, através da leitura de pensadores como Søren Kierkegaard, Gustav Jung, Karl Jaspers, Emmanuel Mounier e Hermann Schmitz. A artista manteve aproximação com os dominicanos, nos anos 1960, com
continente maio 2009 | 72 3
os quais rompeu depois do contato que teve, já no final da década, com a teologia da libertação. “O ideário de Mira mostra-se em anotações às vezes contraditórias, em virtude de suas mudanças de posicionamento ante questões religiosas”, afirma o autor. “Um autoquestionamento metafísico em sua relação com o cristianismo tradicional tornou-se o problema central de sua vida e sua arte.” Se alguns artistas chegaram ao abstracionismo pela via formal, percebemos que, para Mira Schendel, esta foi a linguagem artística que lhe permitiu refletir sobre o corpóreo e o espiritual na arte e conhecer, como afirma o crítico Rodrigo Naves, “Os descompassos entre arte e vida, entre teoria e práxis, sem que tenha abandonado a tentativa de vislumbrar, pela experiência artística, os contornos de uma vida menos fraturada”.
rePrOduçãO
homenagem Vicente do Rego monteiro revisitado por jovens
No ano em que o pintor completaria 110 anos, alunos do Recife fazem trabalhos baseados em suas obras, dentro do 1º Concurso de Releituras de Vicente do Rego Monteiro
01
02
aos 11 anos de idade, o pintor Vicente do Rego Monteiro foi para a França, onde, segundo uma de suas irmãs, ficou conhecido como le petit Rodin. Três anos depois, aos 14, participava pela primeira vez do Salon des Indépendants. Foi esse talento precoce que inspirou o galerista Carlos Ranulpho a criar o 1o Concurso de Releituras de Vicente do Rego Monteiro, como forma de homenagear o artista no ano em que completaria 110 anos. Foram selecionados 10 trabalhos de estudantes de escolas do Recife, inspirados nas obras do mestre, para serem exibidos a partir da segunda quinzena de maio, ao lado de quadros do próprio Vicente, alguns inéditos, pertencentes a coleções particulares. Segundo Carlos Ranulpho, seu desejo era prestar uma homenagem diferente ao pintor no 110º aniversário de seu nascimento. “Quando vi os depoimentos sobre o talento prodigioso
de Vicente e uma declaração sua em que dizia que pintava desde criança, inspirei-me”, conta. Com essa ideia, o galerista procurou a arte-educadora Flávia Costa, que selecionou três obras do artista no acervo da galeria, priorizando aquelas cujos elementos pudessem aproximar-se mais facilmente do universo infantil. Durante o mês de abril, várias escolas receberam o material de apoio ao professor: uma apostila com um texto de Ana Amália Barbosa sobre a prática da releitura em sala de aula, com cartazes das três obras selecionadas. A proposta era que os professores incentivassem seus alunos a produzir releituras (não cópias) de uma das obras escolhidas. Uma comissão julgadora escolheu os 10 melhores trabalhos, que foram premiados com um vale-compras de R$ 200 na Livraria Cultura e a exibição de seus trabalhos ao lado das pinturas
01
obras
02
vicente
O quadro acima foi um dos selecionados para servir como base das releituras estudantis
O pintor pernambucano foi um talento precoce – aos 14 anos, já participava do Salon des Independants, em Paris
de Vicente. Para Ranulpho, a iniciativa é um estímulo à criação dos alunos. “Acho muito interessante para a autoestima dessas crianças oferecerem a chance de exibir seus trabalhos, ainda que isso não signifique que eles serão artistas”, completa a arte-educadora. Segundo ela, a obra de Vicente do Rego Monteiro ainda é bastante desconhecida por boa parte da população. Os livros didáticos, por exemplo, não fazem nenhuma referência ao pintor pernambucano, que, segundo o crítico Paulo Herkenhoff, deixou um legado bem mais importante que aquele deixado por Tarsila do Amaral. “Vicente expôs com Braque, com Picasso. Ele não foi apenas beber na fonte europeia, ele levou uma contribuição à Europa”, afirma Ranulpho, destacando a necessidade de promover exposições e projetos que apresentem ao grande público o trabalho do pernambucano.
continente maio 2009 | 73
Visuais_84_85.indd 73
29/04/09 08:33
raPhael gOmeS
Visuais “a arquitetura como forma de
proteção do físico, a religião como preservação mental e a comida como condição sine qua non da preservação do corpo.” Assim, Alex Flemming define o que mostra em sua exposição na Galeria Amparo 60, no Recife. A exposição Alex Flemming – Fotografias reúne 12 obras do paulista residente em Berlim. São fotos com intervenções de letras e números pintados com tinta acrílica sobre um suporte de PVC. As imagens, todas de 90cm x 120cm, foram clicadas em Jerusalém, Recife, Belém e Lisboa, entre outras cidades. No eixo Brasil-Alemanha há quase 20 anos, o pintor, escultor, gravador e artista multimídia já fez de tudo um pouco, chegando a realizar até curtasmetragens na década de 1970, o que lhe rendeu participações em diversos festivais. O cidadão do mundo passou a década seguinte em Nova York, onde conseguiu uma bolsa de estudos. Já
fotogRafias as intervenções inusitadas de alex flemming Artista paulista, radicado na Alemanha, expõe, na Galeria Amparo 60, uma série de 12 fotografias, que já passou por Berlim e São Paulo texto Thiago Lins nos anos 1990, em Berlim, recolhia As obras desse provocador cadeiras, poltronas e sofás usados, integram coleções de museus como aplicando letras nos objetos e formando o Masp, Museu de Arte Moderna (Rio textos de jornais, simbolizando a de Janeiro e São Paulo), Museum of relação da leitura com estes objetos. Art of Latin America (Washington) e Mais recentemente, fotografou Preussisch Kulturbesitz (Berlim). corpos de jovens para, em De família tradicional, Fleming amparo 60 seguida, desenhar mapas chegou a se formar em recife T. 3325 4728 de zona de guerra sobre as economia e ainda estudou fotos. Politizado, Fleming arquitetura até se dedicar até 17 Mai seg a sex 9h-18h usou tapetes árabes para integralmente às artes sáb. com agendamento fazer aviões, numa referência plásticas. A arte multiàs riquezas cobiçadas pelos informacional de Flemming Estados Unidos e aos conflitos no chega à capital pernambucana após Oriente Médio. temporada em Berlim e São Paulo.
c o n t i n e n t e m a i o 2 0 0 9 | 74 75
Visuais_84_85.indd 74
29/04/09 08:33
dIVulgaçãO
dIVulgaçãO
Sala Recife
MAiS eSPAço PARA A ARte
aRtista de fim de semana O arquiteto Zezito Goiana tem no seu currículo projetos arquitetônicos importantes em Pernambuco, como os do Shopping Guararapes e dos hotéis Summerville Beach Resort, Atlante Plaza e Mar Hotel. Mas não são apenas projetos arquitetônicos que estimulam a criatividade de Zezito Goiana. Ele desenvolve trabalhos em artes plásticas – quase que acidentalmente. “Em 1978, quando eu fiz um projeto para Brennand, ele, vendo meu desenho, aconselhou-me a começar a pintar. Mas eu não achava que podia conciliar arquitetura com pintura”, relembra. O impulso partiu de sua filha, que lhe pediu para fazer um quadro de uma árvore na sua casa de praia, 16 anos depois do conselho de Brennand. “Liguei para Brennand falando da ‘encomenda’ de minha filha e ele disse para eu começar com aquarela”. O arquiteto de sucesso não largou a profissão. “Só pinto nos fins de semana, feriados e dias santos”, ressalva. Zezito mal sabia Por conta do pouco tempo que estava se dedicado aos quadros, não direcionando para o demorou muito para trocar aquarela por tinta acrílica, já universo da pop art que esta técnica tem secagem mais rápida. Em maio de 1996, montou sua primeira exposição, no antigo Espaço Cultural Bandepe (hoje Espaço Cultural Banco Real). Paisagens de praia, com os barcos de pescadores, cenas de alguns bairros (Casa Forte, Poço da Panela), vista de Olinda Cidade Alta, foram os temas recorrentes desde então. No momento, o arquiteto migra dos temas da natureza para o universo urbano, focando a poluição visual. Algo que remete ao universo da pop art. Os 30 quadros que compõem a mostra Contemporâneo urbano refletem esta nova orientação pictórica, em que ele utiliza-se de cores fortes e informações textuais espalhadas pelas cenas. Zezito Goiana apresenta esta série até o dia 28 de maio no showroom da loja Florence, em Boa Viagem.
thOmaS heNrIOt/dIVulgaçãO
Pinturas
a capital pernambucana acaba de ganhar mais um espaço dedicado à arte. a Sala recife é uma iniciativa privada, cujo critério está livre de editais, inscrições e seleções. Os artistas com obras expostas na casa são convidados do conselho, formado por eduardo Frota, gil Vicente, manoel Veiga, marcelo Silveira e renato Valle. O conselho ainda responde pela programação da casa, cujas mostras variam de um a dois meses de duração. O espaço no bairro de Boa Viagem ainda não tem patrocínio e é gerido por voluntários. Foi inaugurado mês passado, com a mostra Autoramas e outras, com pinturas em óleo sobre tela de Paulo Whitaker. O conteúdo dos eventos fica permanentemente disponível no endereço www.salarecife.com.br. No detalhe, quadro de Paulo Whitaker.
intercâmbio
A Vez dA fRANçA depois do ano do Brasil na França (2005), chegou a hora do ano da França no Brasil. Serão sete meses de cultura francesa por aqui, com expoentes da música, artes plásticas e literatura. No recife, a aliança Francesa – uma das instituições que promovem o evento – já anunciou algumas ações. este mês, o pintor francês Thomas henriot desembarca na cidade, onde deve instalar-se para pintar o cotidiano local, repetindo experiência já realizada no rio de Janeiro (foto). em junho, o pianista Vitor araújo divide o palco com a francesa Paule Cornet, apresentando composições inéditas em homenagem à França e ao Brasil. Para o segundo semestre, está prevista uma exposição de arte contemporânea. O evento abre com a Brigada Cícero dias, realizada nas instalações da aliança Francesa, no derby.
continente maio 2009 | 75
Visuais_84_85.indd 75
29/04/09 08:33
IVAN CARNEIRO (RECIFE, 1929 – RIO DE JANEIRO, 2009)
MATÉRIA CORRIDA josé claudio
ARTISTA PLÁSTICO
obstrução das vias respiratórias
por corpo estranho. Em outras palavras, engasgo. Jantando em casa, gozando de boa saúde. Um pedaço de carne. Levado imediatamente para o hospital, parada cardíaca, me informa sua filha Ana Carolina. Deixa também um filho, João. Em 28 de junho completaria 80 anos. Morreu em 12/2/09. Devo-lhe a vida. Nunca precisei lhe dizer isso porque ele sabia. E sabia que eu sabia. E que lhe era eternamente grato: ecoa dentro de nós a eternidade, lembrando-nos de que ao pó retornaremos. Rua de Santa Cruz, Pátio de Santa Cruz, tudo na minha vida de imigrante ipojucano aconteceu por ali, na Boa Vista, a começar pelo Colégio Marista onde fui interno por vários anos, meus pais ainda morando em Ipojuca, uma cidade distante. Depois papai comprou a casa 220 da Rua de Santa Cruz e, nessa rua, eu e Ivan nos encontramos,
eu já com 20 anos, bem em frente de minha casa. “Você ainda gosta de desenhar?” Se ele não tivesse falado eu não conhecia. Lembrei que tínhamos sido colegas de classe no Marista. Aí, não prestou não. Eu estudava Direito, primeiro ano, na Faculdade de Direito do Recife. Naquela época, quem gostava de literatura ia estudar Direito. Troquei a faculdade pelo Atelier Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigido por Abelardo da Hora. Saí pelo mundo, fui morar na Bahia, em São Paulo e nunca mais tinha visto ninguém daqui. Uma noite, 1958, em Milão, na Itália, seis anos depois, indo eu à feira servindo de carregador de balaio, ou melhor, cesta, uma cestona comprida que lá carregam no braço e eu preferia carregar na cabeça, no escuro do jardim em torno do Albergo al Parco, um desses “albergues da juventude” que ainda nem existiam no Brasil creio, passou por mim um
casalzinho e mesmo com pouca luz de algum raro poste meio oculto pelas árvores me veio: aquilo é Ivan! Aqui merece uma explicação. Podíamos ficar nos albergues no máximo três dias. Para demorar mais, precisava-se da boa vontade da dona do albergue, chamada na Itália de “mamma albergatrice”, mamãe albergadora. Conseguia-se isso oferecendo-se como voluntário para algum trabalho geralmente detestado pelos demais hóspedes. Nesse de Milão era carregar o cestão na feira, o que eu estava fazendo quando encontrei Ivan. Pedi licença à “mamma” e me voltei. O casal tinha parado e também se voltara. Eram Ivan e uma namorada, hóspedes como eu do albergue. Que alegria! Mas no outro dia vimos que nossos interesses eram díspares. Eu queria ir à Brera, ao Castelo Sforza, à Santa Maria delle Grazie; Ivan, ao cinema com a namorada.
continente maio 2009 | 76 7
Mat Corrida_76_77.indd 76
28/04/09 15:53
IMAGEns: DIVULGAÇÃO
01
joveM
02
Lanceiro
Ivan Carneiro em foto da década de 1950 Desenho a nanquim sobre papel
Depois disso, passei mais uns dez anos para vê-lo de novo, já casado e com filhos, no Rio de Janeiro, onde viveu até o falecimento. O tipo físico de Ivan era mais para magro e franzino, muito branco, como fazia questão de ser, achando de mau gosto tomar banho de sol, bronzear-se, praticar esportes. Sem ser presunçoso, pelo contrário, muito simpático e educado, dizia-se parisiense, por brincadeira, é claro, mas sabia de cor o mapa do metrô de Paris sem nunca ter saído daqui. Sabia do nome e da biografia de tudo que era pintor da chamada “escola de Paris”. Contava muitas histórias de Braque, Picasso, Modigliani, Toulouse Lautrec, Degas, quando eu ainda não conhecia nenhum. Mas aceitava a pregação de Abelardo da Hora por uma pintura voltada para o povo, compreensível a todos e não uma minoria, tomando as festas populares, feiras, trabalhadores, como motivo
dos quadros, ideias de Andrei Jdanov, e que a gente conferia nos muralistas mexicanos Diego Rivera, Orozco e Siqueiros. Ivan participava de tudo no Atelier Coletivo, fazendo gravuras em placas de gesso, invenção de Abelardo da Hora, pintura, escultura, conversando sobre música erudita, poesia, conhecido que era do mundo intelectual do Recife, amigo de Carlos Pena, Aloísio Magalhães, Hélio Feijó, e o que de melhor havia na praça. Não sei bem da carreira de Ivan no Rio de Janeiro. O nome dele não
contava muitas histórias de Braque, Picasso, Modigliani, toulouse Lautrec, Degas, quando eu ainda não conhecia nenhum.
entrava nos circuitos da arte do Rio nem de São Paulo e nem mesmo daqui de onde viveu tanto tempo distante. Na época da fundação do Shopping Recife apareceu para verificar a instalação de uns anúncios luminosos do cigarro Hollywood: talvez o seu lado de pintor tivesse sido adiado, como no caso de Aloísio Magalhães, apostando na propaganda, e outro membro fundador do Atelier, Marius Lauritzen Bern, que encontrei no Rio de Janeiro fotógrafo de publicidade. Ana Carolina, que me deu também notícias de sua avó, mãe de Ivan, com saúde, beirando os cem anos, Dna. Almeirinda, com quem Ivan muito se parecia fisicamente, e aqui lhe mando um abraço, embora nessa hora de tristeza, disse que Ivan estava pintando com entusiasmo ultimamente. Fiel às raízes, um autorretrato no meio de um maracatu.
continente maio 2009 | 77
Mat Corrida_76_77.indd 77
28/04/09 15:53
teatro de Santa isabel Recife
T. 3224 1020 15-17 Mai 20h e 19h(dom) R$20 e R$10
Guto Muniz/DivulGação
Palco 01
primeiro ato espetáculo investiga os limites do perfeito
Grupo mineiro traz ao Recife seu mais novo espetáculo, Geraldas e avencas, no qual discute a padronização da estética hoje texto Christianne Galdino
São tantos os truques, acessórios e técnicas para ser perfeito no mundo contemporâneo, então, por que não sê-lo? Este é o debate proposto pelo grupo Primeiro Ato, de Belo Horizonte, no seu mais recente espetáculo Geraldas e avencas, que chega este mês ao Recife. A montagem questiona a plastificação e a padronização da estética atual, que geram uma profunda descaracterização e uma expectativa de perfeição que podem levar, muitas vezes, a mutilações e deformações no corpo. A companhia mineira volta ao Estado depois de quatro anos longe dos palcos pernambucanos, para comemorar seus 20 anos de carreira, e dar boas-vindas à sua nova fase. “De certa forma, este espetáculo é um resgate de nossas origens. Um
elenco mais reduzido, com mais responsabilidades para cada um, divisão de tarefas e a alegria de descobrirmos parceiros generosos e artistas comprometidos. Especialmente para mim, representa uma mudança de postura, uma retomada. Depois de muitos anos, voltei a assinar direção, concepção e coreografia de uma obra”, conta Suely Machado, diretora da companhia. Em Geraldas e avencas, o Primeiro Ato dança também suas inquietações em relação à tentativa de homogeneização estética na dança e aposta na combinação de passos e movimentos com toques de lirismo e ludicidade, utilizando com propriedade uma lógica de composição cada vez mais rara na cena contemporânea. Quem
vê um resultado tão leve e alegre, não imagina que a gestação desta obra se deu exatamente quando o Primeiro Ato enfrentava um momento de grandes desafios. Depois de 18 anos, o grupo perdeu o patrocínio da Petrobras e parte do elenco e da equipe de colaboradores se foi junto com a subvenção. “O momento era de apreensão e de tristeza, mas de muita reflexão também. Ficaram as pessoas que acreditaram no projeto, e tinham a certeza de que perder o apoio não significaria perder o grupo. Criar sem subvenção é construir sem a certeza de que o espetáculo poderá estrear e/ ou circular. Porém, a própria angústia da perda ou da insatisfação tornase alimento para a criação”, situa a diretora. Depois de descobrir na crise sua força e a clareza dos seus objetivos, o Primeiro Ato recuperou, no ano passado, o patrocínio da Petrobras e faz agora a primeira turnê nacional desta nova etapa. Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Aracaju, Vitória e Belo Horizonte já receberam o espetáculo, que continua circulando pelo país neste primeiro semestre. O Recife não é só mais uma cidade na rota do Primeiro Ato, é um dos únicos locais no Brasil que teve oportunidade de assistir a todos os 14 espetáculos do
continente maio 2009 | 79 8
DAN‚ A_78_79.indd 78
28/04/09 15:54
repertório do grupo, mantendo sempre uma relação estreita com a companhia. O diálogo entre os profissionais da dança das duas cidades também parece fluir com facilidade e muitos foram os bailarinos pernambucanos que já fizeram parte do Primeiro Ato. “Talvez porque a bagagem artística e a riqueza cultural de Minas Gerais e Pernambuco nos aproximem e nos tornem semelhantes nas nossas diferenças. E tomara que, em breve, possamos fazer de nossas diferenças novas poéticas na dança contemporânea”, afirma Suely.
viDeoDAnÇA
Paralelamente à circulação de Geraldas e avencas, o grupo trabalha na criação de uma videodança interativa, e na remontagem de uma das suas principais obras: Isso aqui não é Gothan City, ambas sem data prevista de estreia; além de pretender iniciar a criação de um novo espetáculo ainda este ano. A irreverência e a ironia poética do compositor maranhense Zeca Baleiro ajudaram a imprimir leveza e humor à poética de Geraldas e avencas. Essa é a segunda vez que Baleiro assina uma trilha para dança, e a primeira em que o processo criativo partiu do movimento. “Ele compôs inspirado nas cenas que via nos ensaios e a partir das indicações da direção. Somente
01 eSpetáculo Depois de quatro anos sem se aprensentar no Recife, o grupo Primeiro ato volta com Geraldas e avencas 02-03 teMáticA a trilha sonora de zeca Baleiro complementa as coreografias que defendem a beleza das imperfeições
a última coreografia foi montada em cima de uma canção já concluída. Identificamos-nos muito com o Zeca. O processo foi maravilhoso, intenso, bem-humorado e afetivo, e, talvez, por isso mesmo, muito produtivo”, relata a diretora do espetáculo. Pensado para ser partilhado com o espectador, Geraldas e avencas mergulha fundo no mundo do homem contemporâneo das grandes metrópoles, para trazer à tona um discurso que é desabafo e ao mesmo tempo confissão, e parece nos dizer em cada gesto e movimento para
02
aceitarmos as diferenças e vermos a beleza das imperfeições. Tentar reverter a lógica da relação entre a plateia e a dança contemporânea também é uma proposta que aparece em Geraldas e avencas. Falando uma linguagem direta, o Primeiro Ato quer alcançar todos os públicos e ser entendido por qualquer pessoa. E para isso escolheu a simplicidade e a sutileza como caminhos.
@ continenteonline Concorra a convites para o espetáculo no site
www.revistacontinente.com.br
03
continente maio 2009 | 79
DAN‚ A_78_79.indd 79
28/04/09 15:54
Divulgação
Claquete DVD Mercado privilegia a versão do diretor
blade runner
a versão definitiva do diretor Ridley Scott só chegou ao público em 2007
Proliferação dos director’s cuts traz de volta os debates sobre a criação cinematográfica como uma obra de arte coletiva ou de autor texto Cristiano Ramos
c co on nt tiin neen nt tee M MA AIIO O 220 00 099 || 880 1
CLAQUETE_80_81_82_83_84.indd 80
29/04/09 11:37
Runner, e outros tantos que chegaram às prateleiras repletos de modificações – verdadeiros convites à reflexão sobre a autoria no cinema e a relação entre arte e mercado. A divulgação de diferentes versões para obras que ficaram conhecidas pelos conflitos gerados entre diretores, roteiristas, produtores e estúdios tornou-se uma oportunidade para cinéfilos, mas também um eficiente e muitas vezes despropositado caçaníqueis. Títulos improváveis como Robocop e A batalha de Riddick fazem parte da enorme lista de longasmetragens reformulados. Watchmen, exibido há poucas semanas nos cinemas brasileiros, já chegou às telas com anúncio de director’s cut com 34 minutos a mais. Hollywood encontrou outro meio de engordar seus cofres. Críticos e academia pouca atenção têm dado ao assunto. Raramente se indagam sobre temas como a institucionalização da visão dos diretores, que chegam a privar o público de assistir às versões anteriores de suas obras, colocando no mercado apenas as cópias refeitas. Quem, por exemplo, deseja ver Apocalypse now com os 49 minutos adicionais, precisa garimpar fitas de VHS ou arquivo pirata na web, já que o que está disponível hoje é apenas a versão redux do diretor. Seria esse o ápice da politique des auteurs, reivindicada pelos cineastas-críticos da revista Cahiers du Cinéma; ou uma outra etapa da sétima arte como produto de consumo?
cineMA De AUtoR
Se o leitor da Continente utilizar um dos sites de busca na internet, encontrará quase 50 mil resultados para “versão do diretor”. Em inglês, serão mais de cinco milhões. Tanta informação remete a um fenômeno que tomou fôlego com o advento dos DVDs: ao relançar um filme, o cineasta opta por editá-lo de modo mais fiel aos seus planos originais. Ou, pelo menos, ele assim vende a ideia. Essas duas últimas décadas trouxeram de volta clássicos como Cinema Paradiso, O exorcista, Apocalypse now, Alien, Blade
Do roteiro à montagem, dos atores ao diretor, em suas primeiras décadas, o cinema era visto, sobretudo, como uma empresa coletiva. O aparato técnico, o nível de especialização em cada etapa, os recursos financeiros envolvidos, tudo corroborava essa concepção. A mudança ocorreu lentamente, tendo como marco fundamental os franceses, nos anos 1940, a partir da Revue du Cinéma, e, posteriormente, com a Cahiers du Cinéma. Nesta última, fundada em 1951, ensaístas como André Bazin, Jean-Luc Godard, Robert Bresson e François Truffaut defendiam uma visão do cinema como expressão
pessoal. Essa política autoral objetivava uma arte fundada no diretor, cuja liberdade e estilo elevariam os filmes ao mesmo status da literatura e do teatro. François Truffaut considerava Alfred Hitchcock um modelo, pois a obra do inglês radicado nos Estados Unidos destacava o gênio diretivo e a mise-en-scène em detrimento das burocráticas filmagens que pouco faziam além de transpor para a tela o que roteiros estabeleciam. Tais postulados propiciaram a Nouvelle Vague, valorizaram nomes como Charles Chaplin, Howard Hawks e Fritz Lang, e até hoje influenciam cineastas em todo o mundo. Apesar da repercussão alcançada pelo grupo da Cahiers, o conceito de diretor-autor nunca foi consensual. Muitos continuaram entendendo o cinema antes de tudo como uma arte coletiva. E os financiadores constantemente se rebelaram contra as pretensões de cineastas ávidos em controlar todo o processo criativo. Nos EUA, caso referencial é o de Francis Ford Coppola. São lendários os seus embates com executivos, como nas filmagens de O poderoso chefão, quando, entre outras divergências, os figurões da Paramount queriam retirar do papel principal o então desconhecido Al Pacino, além de vetar a entrada de Marlon Brando no elenco. Os anos 1970 foram pródigos em batalhas semelhantes. Quase sempre o argumento dos estúdios era que as escolhas dos diretores findavam em produtos não comerciais, sendo preciso então cortar, simplificar as narrativas, incluir outras linhas dramáticas etc. Mudanças de rumo, porém, nem sempre são contrárias à opinião do cineasta. O próprio Coppola concordou com a retirada de um quarto das cenas de Apocalypse now, cuja duração de quatro horas poderia levar a um fracasso de bilheteria. E a versão redux, lançada no Festival de Cannes de 2001, segue dividindo opiniões: muitos preferem o original, sem acréscimos como o inusitado encontro dos soldados com garotas da Playboy, ou a demorada sequência da comunidade francesa incrustada no Vietnã. Para outros, são cenas essenciais à compreensão do épico
continente MAIO 2009 | 81
CLAQUETE_80_81_82_83_84.indd 81
29/04/09 11:37
eteRnAMente inAcABADAS?
O que antes tinha origem nas discordâncias de bastidores foi sendo gradualmente incorporado pela lógica do mercado. Das versões de diretores às assinadas somente como “estendidas”, esses títulos são agora um grande negócio, seja pela comercialização de DVDs e blue-rays,
Claquete seja levando as pessoas novamente às salas de exibição. Outras justificativas surgiram, tais qual a evolução tecnológica. Filmes como E.T. e Guerra nas estrelas receberam “melhorias” nos efeitos visuais. Porém, além de esses retoques nem sempre agradarem, serão as obras cinematográficas peças inacabadas, sujeitas a acompanhar os avanços de som e imagem? Assim como o conteúdo, a forma não reflete o espírito da época em que foram produzidas, sendo sua preservação um valor a considerar? A tecnologia tem sido utilizada também para recuperar películas. No entanto, enquanto rolos e mais rolos de clássicos esperam por restaurações que lhes amenizem os desgastes da ação física do tempo, são as versões de diretores que atraem grandes investimentos. Se outrora a colorização de obras-primas como Casablanca, A felicidade não se compra e O falcão maltês foi repudiada, as intervenções recentes são aceitas com naturalidade. Muitas vezes, recebem elogios da mídia especializada. No conhecido ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, de 1955, Walter Benjamin define como atributo essencial do cinema a busca pela perfectibilidade; a repetição de tomadas e as muitas edições seriam prova dessa característica. O problema está na dinâmica dos valores estéticos. Os anos passam, as noções de beleza mudam, o julgamento dos cineastas sobre suas obras sofre alterações. Numa sociedade fragmentada, com um crescente culto do vazio, da paródia,
blade runner eM QUAtRo eDiÇÕeS Em 2019, numa escura, poluída e caótica los angeles, o ex-policial Deckard (Harisson Ford) tem a missão de caçar replicantes – andróides-escravos construídos à imagem humana, capazes de simular sentimentos, e que se tornaram ilegais após um motim. Baseado no romance Do androids dream of electric sheep?, de Philip K. Dick, esse visionário clássico de ficção científica sofreu severas alterações quando da pós-produção, o que não lhe assegurou êxito nas bilheterias. Foram necessários anos para que se transformasse em um cult movie. a caixa tripla disponível nas lojas apresenta o original visto nos cinemas em 1982, uma edição dirigida ao mercado internacional na mesma época, a primeira versão do diretor (de 1992), além de uma edição que Ridley Scott considera definitiva, lançada em 2007. Nesta, o cineasta remixou a trilha, retirou as narrações em off que ele considerava redundantes, acentuou o caráter ambíguo do personagem principal e
Divulgação
livremente inspirado em O coração das trevas, romance de Joseph Conrad.
restituiu o desfecho sombrio. Nos extras, vasto material sobre os bastidores do filme. até o momento, é o mais completo box director’s cut disponível no Brasil, e uma excelente amostra das controvérsias que o tema pode encorajar.
o poderoso chefão
Nas gravações desse clássico, Francis Ford Coppola entrou em conflito com executivos da Paramount para preservar sua versão
da cópia, talvez as versões de diretores sejam realmente nada que se estranhe. Todavia, será insensato discutir sobre suas consequências e maneiras? No mínimo, os director’s cuts deveriam garantir a concomitante veiculação do original. Nesse sentido, a caixa tripla de Blade Runner é um exemplo oportuno, embora ainda incomum. Ela não só oferece quatro versões (das muitas existentes), mas também exercita a metalinguagem: um rico documentário esclarece detalhes das pressões sofridas pelo diretor
Ridley Scott, além de explorar as reações às mudanças empreendidas no filme pelo cineasta, a partir de 1992. Em tempo, ponderemos que o fenômeno não é exclusivo do cinema. Há escritores que revisam seus textos quando reimpressos, artistas plásticos que produzem versões díspares de suas telas, músicos criam outros arranjos para antigas composições... E, em todos os exemplos, a diversidade na recepção do público e da crítica ratifica a complexidade do tema e a legitimidade do debate.
continente MAIO 2009 | 82 3
CLAQUETE_80_81_82_83_84.indd 82
29/04/09 11:37
buDapeste Conflitos de um ghost writer vai das páginas às telas Depois de Estorvo e Benjamim, terceiro romance de Chico Buarque chega aos cinemas, com direção de Walter Carvalho e roteiro de Rita Buzzar texto Guilherme Carréra
A obra literária de Chico Buarque
parece ter conexão direta com o cinema. Foi assim com Estorvo, livro lançado em 1991 e transformado em filme por Ruy Guerra em 2000, e com Benjamim, romance de 1995, traduzido para as telas por Monique Gardenberg, em 2003. Considerado o melhor romance do autor, embora o recente Leite derramado sustente críticas elogiosas, é Budapeste que agora chega à sala escura pelas mãos da produtora e roteirista Rita Buzzar, responsável pela questionada adaptação do livro Olga (2004), de Fernando Morais. Na direção, o experiente homem de cinema Walter Carvalho (ler entrevista na próxima página), estreando na direção individual de um longa-metragem de ficção. Um dos mais prolíficos diretores de fotografia do país, Carvalho já havia codirigido Cazuza – O tempo não para (2004), ao lado de Sandra Werneck, além dos documentários Janela da alma (2001) e Moacir arte bruta (2005).
A ideia de adaptar o romance para o cinema surgiu assim que Rita Buzzar terminou de lê-lo. “Li o livro em uma madrugada. Fiquei depois tentando estruturar um roteiro. E quando consegui, pensei: ‘Vou procurar o Luiz Schwarcz da Companhia das Letras’. Ele me deu o contato do produtor do Chico e começamos a conversar.” Ao contrário do que alguns imaginam, não houve muitas dificuldades na autorização dos direitos do autor. “Eu nunca havia falado com o Chico antes do meu desejo de fazer o filme. Fomos conversando e a confiança foi se construindo.” Budapeste foi eleito o melhor livro de ficção pelo prêmio Jabuti 2004. Tamanho êxito fez com que Rita Buzzar ficasse receosa quanto à expectativa do criador da história. “Tive muito medo. Ele leu três vezes o roteiro. O Chico tem sensibilidade e inteligência únicas. E foi muito generoso. Ele gostou muito do roteiro.”
@ continenteonline Assista ao trailer do filme Budapeste e confira a entrevista com Walter Carvalho na íntegra no site www.revistacontinente.com.br
Na trama, José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost writer, especialista em redigir livros, teses, artigos, sempre permanecendo no anonimato. Em um de seus voos, faz uma escala forçada em Budapeste. Na cidadetítulo, ele se envolve com a húngara Kriska (Gabriella Hámori), mesmo sendo casado com a brasileira Vanda (Giovanna Antonelli). É entre as duas mulheres, os dois países e os dois idiomas que esse escritor oculto vai sendo alinhavado. “O próprio Chico me disse que Budapeste era uma história de amor, mas vivida por um escritor, guiada pelo seu ponto de vista e seu mundo. Então, essa história é sujeita à brincadeira entre a ficção e a realidade, própria do seu universo interno. Para um autor, o real e o imaginário sempre se confundem e, às vezes, o imaginário tem uma importância muito maior que a realidade.” O lançamento nacional de Budapeste está previsto para o dia 22 de maio.
continente MAIO 2009 | 83
CLAQUETE_80_81_82_83_84.indd 83
29/04/09 11:37
Entrevista
aDRiENN SzaBó/Divulgação
walter CarValho “trabalhei eM budapeste CoM as arMas Dos outros filMes”
Claquete continente Como foi o primeiro contato com Budapeste? WAlteR cARvAlho Eu recebi o convite para dirigir o filme e naquele momento eu não tinha lido o livro. Quando eu li, havia uma coisa dizendo que era bacana fazer e, ao mesmo tempo, dizia que era uma coisa muito difícil de ser feita. Eu aceitei fazer pelo medo que eu tive naquele momento. Tratava-se de um projeto difícil para o cinema. continente O que mais chamou a sua atenção na história? WAlteR cARvAlho O que tem de particular na literatura de Chico é que existe um significante sonoro ou um significante em que a palavra em combinação com a outra sugere uma imagem. Eu comecei a entender que a palavra no Chico é como o plano no cinema. O terceiro plano é o resultado da união de dois
anteriores. Essa combinação entre plano e palavra foi aos poucos me seduzindo. Eu comecei a ver que poderia manter com a imagem o viés da literatura de Chico sem danificar a palavra. O filme é sobre a palavra, sobre uma pessoa que escreve em outra língua. Quando você filma, faz a sua adaptação em cima do livro e em cima do roteiro. O roteiro é sempre um guia. Eu apenas tomei a estrada do livro, paralelamente à da adaptação e construí uma via transversal com a narrativa cinematográfica. continente O sucesso do livro condicionou as decisões no desenvolvimento do projeto? WAlteR cARvAlho Você tem que se precaver com essa questão de manter a expectativa que se tem do livro no filme, mas não pode pensar que isso não vai dar certo. Eu não trabalho com a modalidade da imitação. A própria literatura de Chico era uma ordem para mim, dizendo que eu não podia trabalhar com clichês, com imagens potencializadas na adaptação, achando que com aquilo eu estaria atingindo mais pessoas. Eu não podia fazer isso, sobretudo por conta do trabalho do escritor Chico Buarque de Hollanda. Ele não trabalha com esses elementos. Ele escreve fazendo convites para o leitor pensar. Não é uma literatura fácil. Na filmagem, foi como se eu estivesse escrevendo o livro que Chico filmou. Eu tinha que trocar esses códigos de informação, a palavra e a imagem. continente Mesmo com mais de 60 projetos no currículo, estrear na direção individual de um longa-metragem de ficção é uma responsabilidade? WAlteR cARvAlho Eu me preparo para filmar em todo filme. Eu diria a você que eu me preparei para filmar Budapeste da mesma forma que eu me preparei para filmar todos os outros filmes, seja como fotógrafo, ou diretor. Você se habitua a enfrentar a jornada e construir um filme ao longo da vida. A certeza que eu tenho é de
que trabalhei em Budapeste com as mesmas armas dos outros filmes. continente Adaptar uma história literária para o cinema é mais complicado ou mais fácil do que narrar uma biografia, como foi o caso de Cazuza, do qual você é codiretor? WAlteR cARvAlho Não dá para comparar. São universos muito diferentes. Em Cazuza você parte do real. O Costa, em Budapeste, eu posso trabalhar na transposição da literatura para o cinema, eu posso transformar esse personagem, criar outras características, adicionar coisas que ele não tem no livro. Enquanto que em Cazuza a cobrança do público e da crítica é muito maior. Porque Cazuza existiu. Eu agora estou filmando um documentário sobre Raul Seixas, e eu não posso inventar onde ele nasceu. Na ficção, eu posso trabalhar outras questões. É diferente trabalhar o fato real e o fato ficcionado. continente Qual a importância do aval da platéia como resposta a um trabalho? WAlteR cARvAlho Eu tenho muito expectativa em relação a isso. E não tenho nenhum prognóstico. Desafio qualquer segmento da produção cinematográfica a saber antecipadamente o que vai fazer sucesso. Sucesso não é real. Real é o êxito. Ter êxito com uma obra dignifica, fazer sucesso é uma coisa passageira. Eu não sei que botão você deve acionar para que um filme tenha uma carreira de sucesso. Se quem leu o livro quer ver o filme, eu vou ficar feliz. Agora, é um público específico o de Chico também. O público que lê Chico Buarque não é o mesmo público que lê Paulo Coelho. Você tem que atingir e extrapolar esse público. Nossa vontade, interesse e trabalho foram nesse sentido. Sem fazer concessões. Todos os clichês que poderiam aparecer no filme eu eliminei. O filme tem uma forma narrativa e a dignidade do livro.
continente MAIO 2009 | 84
CLAQUETE_80_81_82_83_84.indd 84
29/04/09 11:37
sopa de letras Menu sai das mesas e vai às prateleiras
Se a oferta de livros de gastronomia era escassa, hoje o mercado editorial, incluindo revistas especializadas, é farto em títulos para iniciantes e experts no assunto texto Renato Lima
claude troisgros, Jamie Oliver, Alex Atala, Anthony Bourdain... Você pode reconhecer esses nomes tanto dos programas de TV quanto das livrarias, já que eles estão entre as estrelas da cozinha que também se destacam na prateleira. Esta simultaneidade é apenas uma das faces de um mercado que cresceu sensivelmente nos últimos
Renata cadena
Cardápio
anos: o das publicações editoriais de gastronomia. “De cinco anos para cá, as livrarias estão cheias de títulos de gastronomia. E não apenas lançamentos, mas também relançamentos. Esse é o caso, por exemplo, de clássicos como História da alimentação no Brasil, de Câmara Cascudo, e Assucar, de Gilberto Freyre”,
afirma Sandra Marinho, coordenadora do curso de gastronomia do Senac/ PE. Parte desse crescimento pode ser explicada pela profissionalização do setor. De assunto restrito a viajantes glutões e diletantismo de poucos apreciadores, a gastronomia tornou-se curso universitário da moda e fonte de renda insuspeita para as classes média
continente MAIO 2009 | 85
Cardapio02 - 85_86_87.indd 85
28/04/09 15:56
FloRa piMentel
Cardápio
RepRodução
01
02
e alta, que antes não viam neste campo meio de sobrevivência e prestígio. A formação superior na área pode ser realizada hoje, no Recife, na Universidade Federal Rural de Pernambuco (Gastronomia e Segurança Alimentar) e nas faculdades Boa Viagem (Hotelaria com Ênfase em Gastronomia), Maurício de Nassau, Universo e Senac. Nesta instituição,
referência na formação profissional para o setor, já são cerca de 200 alunos para um corpo docente de 20 professores. “As turmas são bem heterogêneas. Tanto existem pessoas que já atuam no setor há anos como gente recém-saída do segundo grau”, situa Sandra. Tantos são os alunos que procuram material de leitura na área, que estimulam uma
01
cuRso
02
intelectuAis
Sandra Marinho é coordenadora do curso do Senac, referência para a formação profissional no setor gastronômico no Brasil Gilberto Freyre e câmara cascudo souberam reconhecer a importância antropológica da culinária brasileira no início do século 20
maior produção didática e editorial. O já citado Assucar (1939), grafia antiga do hoje intitulado Açúcar, comemora agora 70 anos de lançamento, data que vem sendo motivo de celebração por parte da Fundação Gilberto Freyre, que promove desde março último variados eventos em torno da obra que, se hoje é reconhecida como importante documento social e antropológico da culinária brasileira, à época do seu lançamento foi criticada por introduzir nos sisudos estudos científicos tema tão corriqueiro quanto a culinária. Açúcar testemunha o pioneirismo dos estudos freyrianos. O crescimento do mercado editorial nacional estimulou o surgimento de publicações também fora dos grandes centros produtores. Em Pernambuco, o interesse pelo assunto pode ser comprovado pela recepção ao livro do jornalista Bruno Albertim, Recife - Guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição. Enquanto poetas da cidade, por exemplo, se esforçam para esgotar livros com tiragem de 300 exemplares, Albertim já trabalha na segunda edição de um livro que teve 10 mil exemplares de saída e foi lançado em março de 2008. “Eu esperava que o livro tivesse acolhida. Mas não tão grande quanto se deu. Sobretudo porque estamos falando de uma edição independente, de autor, sem o esquema de uma grande editora por trás”, afirma. A obra tem colheradas da história da cozinha pernambucana, receitas clássicas da região e um guia dos melhores locais para se comer no Recife, de botequins a restaurantes sofisticados.
RecePtiViDADe
A acolhida da mídia foi grande e o título ganhou resenhas nos jornais O Estado de S.Paulo, O Globo, revistas Gula e Prazeres da Mesa. “Para minha enorme surpresa, foi até recomendado pelo Domingão do Faustão”, diz o autor. O sucesso da
continente MAIO 2009 | 86 7
Cardapio02 - 85_86_87.indd 86
28/04/09 15:56
primeira investida empolgou Albertim para um projeto mais ousado. “Tratase de um grande livro, pretensioso mesmo, que mapeará todos os sabores, região por região, de Pernambuco. Já tenho uma equipe pesquisando o assunto no Estado”, adianta. Bruno Albertim foi também o primeiro editor da revista Engenho (www.revistaengenho.com.br), surgida em Pernambuco, em 2004, e que recentemente passou às mãos da jornalista e empresária de comunicação Luciana Lewis. Tratase de uma revista bimestral, com distribuição no Nordeste, São Paulo, Rio de Janeiro e Portugal. Em outra linha editorial, a professora e consultora pernambucana Ester Aguiar lançou este ano Sextas gastronômicas (Editora Multifoco), com crônicas de jantares que ela prepara continuamente para a família. Obra despretensiosa, mas que traz a
realidade de uma família comum, a escolha de ingredientes e as lembranças dos momentos de reunião com amigos em torno da mesa. Mesmo com iniciativas bemrecebidas como essas, ainda não é possível afirmar que há um fluxo editorial para a gastronomia no Estado. “É incrível que nenhum chef pernambucano tenha um livro. Há coletâneas, mas não livro do chef, com trabalho cuidadoso, receituário, modo de trabalho, foto. Isso eu acho curioso não existir”, afirma Flávia de Gusmão, jornalista veterana na cobertura gastronômica, uma das precursoras desta especialização no Recife. Ela admite que teve que aprender sobre o assunto “na marra”, na prática, numa época em que existiam poucos restaurantes de qualidade na cidade e muito menos livros de alta gastronomia. “Rastreei matéria (minha) de gastronomia desde 1991, mas acho
10 obRAs PARA entenDeR gAstRonomiA aRquiVo continente
Açúcar – Uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil Gilberto Freyre, Global Carême, cozinheiro dos reis -Uma biografia com receita ian Kelly, Jorge Zahar Cozinha dos imigrantes – Memórias e receitas Rosa Belluzzo e Marina Heck, dBa Um cientista na cozinha Hervé This, Ática Gastronomia no Brasil e no mundo dolores Freixa e Guta chaves, Senac – São paulo Grande dicionário de culinária alexandre dumas, Jorge Zahar História da alimentação Jean louis Flandrin e Massimo Montanari, estação liberdade História da alimentação no Brasil luiz da câmara cascudo, Global Mestre-cuca Larousse Vários autores, larousse do Brasil Viagem gastronômica através do Brasil caloca Fernandes, Senac – São paulo
A produção editorial no brasil, hoje, é um verdadeiro oásis, em comparação com a do início da década de 1990 que já escrevia antes. Foi uma matéria sobre o Navegador, um restaurante divisor de águas no Recife. Na época, não tinha internet, não dava para entrar no Google e saber o que estava acontecendo lá fora. Ou você andava e via in loco ou não tinha acesso. Quando a gente entrevistava, na verdade, estava aprendendo”, recorda. A produção editorial no Brasil, hoje, é um verdadeiro oásis, em comparação com a do início da década de 1990. “Livros de gastronomia, em versão nacional, não existiam. O que tinha era Ofélia e outros culinaristas, não chefs de cozinha. Eram livros de receitas, sem a concepção de cozinha como arte. Era coisa para executar em casa e aprender a cozinhar”, lembra Flávia. Para ela, uma biblioteca básica hoje em dia incluiria a Enciclopédia Larousse de gastronomia, Um cientista na cozinha, de Hervé This (que destrincha cientificamente o que acontece com os alimentos durante o preparo) e um livro de um grande chef, como Gordon Ramsay ou Anthony Bourdain, ambos estrelas de programas televisivos. Flávia sugere, em primeiro lugar, Michel Bras, renomado chef de restaurante três estrelas Michelin. Atualmente, são tantos títulos que dariam para provocar uma indigestão editorial. Mas a qualidade, felizmente, acompanhou esse crescimento em títulos de livros, revistas e espaço em jornais. Para quem só tinha livros de receitas há alguns anos, a realidade mudou para um saudável ecletismo, em que cabe de tudo um pouco: história da alimentação, criações de chefs, culinária étnica, harmonização entre pratos e bebidas. “Há uma resposta do mercado editorial à necessidade do público. E ainda tem muito menos do que existe em relação ao mercado estrangeiro”, pontua Flávia.
continente MAIO 2009 | 87
Cardapio02 - 85_86_87.indd 87
28/04/09 15:56
ALAn FisCheR/ DiVuLGAçãO
02
01
Sonoras camargo guarnieri Três concertos para violino e o inventário de uma missão Primeira gravação em DVD das obras para violino e orquestra do compositor paulista acompanha CD-ROM com o registro de quase 300 melodias e ritmos folclóricos texto Carlos Eduardo Amaral
existem poucas peças brasileiras
para violino e orquestra e nenhuma delas integra o repertório standard internacional. Não por falta de qualidade estética ou de desafios técnicos ao solista: um concerto do porte do de Henrique Oswald (18521931), compositor romântico, tem credenciais para figurar ao lado dos de Tchaikovsky, Mendelssohn e Brahms. O grande empecilho está nas condições físicas e de circulação das partituras. As principais orquestras mundiais deixaram de aceitar manuscritos, ao
mesmo tempo em que o processo de revisão e edição continua custoso para viabilizar a difusão de obras sinfônicas. Não fosse isso, nomes como Guerra-Peixe, Mignone e José Siqueira poderiam ter obras-primas executadas mundo afora, sempre. Quanto a Camargo Guarnieri (1907-1993), menos de 20% de seu acervo encontram-se editados – dessa minoria, passam a fazer parte três preciosidades que encabeçam um projeto inédito: o lançamento em DVD dos dois concertos e do Choro para violino e orquestra.
01
compositor
02
missão
03
DVD
Camargo Guarnieri é um dos poucos brasileiros a se destacarem com obras feitas para orquestras O CD-ROM, anexo ao DVD, traz um registro de 300 melodias folclóricas O regente Lutero Rodrigues e o violinista Luiz Filipe gravaram o Choro e os concertos
Ao fazer um levantamento das partituras sinfônicas de Guarnieri que estavam sendo editadas em 2006, o Centro Cultural São Paulo (CCSP), realizador do projeto Camargo Guarnieri – 3 concertos para violino e a Missão, constatou que a Sinfônica do Estado de São Paulo tinha-se encarregado das sete sinfonias, e o pianista Max Barros, dos seis concertos para piano. No entanto, os concertos para violino e o Choro ainda se encontravam caligrafados. O Choro para violino e orquestra (1951) inaugurou a série dos sete Choros guarnierianos para instrumento solo e orquestra; os outros requerem clarineta, piano, violoncelo, flauta, viola e fagote. Guarnieri adotou o termo choro para designar concertos de caráter mais nacionalista e de menor duração que os concertos propriamente ditos. Assim, o ouvinte não espere ouvir uma peça baseada no familiar gênero carioca. As peculiaridades giram mais em torno do Concerto n0 1 e do n0 2. O primeiro Concerto (1940) só havia sido executado duas vezes antes, em 1942 e 1943, tendo recebido críticas negativas devido à orquestração densa, que atrapalhava o violino, e ao uso de instrumentos de samba. O maestro Lutero Rodrigues corrigiu
continente maio 2009 | 89 8
SONORA_88_89_90_91.indd 88
28/04/09 15:57
os problemas de instrumentação e dinâmica e pondera que Guarnieri não o fez porque dedicava-se a outras composições em progresso. O segundo Concerto (1953) surpreende. Desde a cadência jogada logo para o início do primeiro movimento, desenvolvida durante seis minutos após um único e breve acorde orquestral, até o xaxado do movimento final, tão vibrante quanto as peças que seriam tocadas pela Orquestra Armorial década e meia depois. O Concerto n0 2 como um todo é mais nordestino do que o Concertino de Guerra-Peixe (1972) e o Concerto para cordas e percussão (1972), do próprio Guarnieri, ambos escritos para a orquestra então regida por Cussy de Almeida. A gravação do Choro e dos concertos, confiada ao violinista Luiz Filipe, à Sinfônica Municipal de São Paulo e à regência de Lutero Rodrigues, surgiu como solução para uma iniciativa que deveria dar amostra das duas conhecidas facetas de Guarnieri: a de compositor erudito e a de livre pesquisador de música folclórica. Isso porque, no lado erudito, o CCSP possuía somente o áudio de 13 canções para voz e piano e duas peças corais, daí recorrendo às partituras não editadas e ao registro audiovisual destas, mas já dispondo de um raro acervo de pesquisa de campo.
na missão. Mesmo adiando o compromisso durante 10 anos, o compositor não cumpriu a tarefa e apresentou apenas 285 transcrições, que serviram de material para suas próprias obras e atividades didáticas. Segundo Francisco Coelho, coordenador-geral do projeto
Guarnieri adotou o termo choro para designar concertos mais nacionalistas e de menor duração que os concertos propriamente ditos Camargo Guarnieri – 3 concertos para violino e a Missão, existe um manancial bem maior: “Guarnieri tinha mais de 400 temas de candomblés, coletados diretamente na partitura a pedido de Mario de Andrade, em 1937, na Bahia”. Os temas da Bahia e todos os manuscritos de Guarnieri encontramse no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Acerca da influência dos temas da missão na obra erudita de Guarnieri, Francisco Coelho comenta: “Estamos oferecendo farto material para pesquisadores aferirem o quanto da
Em 1938, a pesquisadora Oneyda Alvarenga, ex-aluna de Mario de Andrade, idealizou a Missão de Pesquisas Folclóricas, a fim de incrementar o acervo da Discoteca Pública Municipal de São Paulo, da qual era diretora. A missão rodou cerca de 30 cidades em seis Estados (PA, MA, PI, CE, PB e PE), sob financiamento do Departamento de Cultura de São Paulo. Em Pernambuco, a equipe liderada pelo compositor austríaco, naturalizado brasileiro, Martin Braunwieser (19011991), visitou o Recife, Caruaru, Pesqueira, Arcoverde, Algodões, Tacaratu e alguns distritos. Em 1944, Oneyda Alvarenga encarregou Camargo Guarnieri de transcrever em pautas musicais os 1.230 ritmos e melodias trazidos
CARLOs Rennò/ DiVuLGAçãO
missão
sua escrita de música erudita poderá ter sido influenciada pela música de raiz. Chega a ser intuitivo afirmar que sim. Neste caso, explicar-se-ia o fato de Guarnieri ser o “objeto de desejo” de Mario (de Andrade) para a realização do projeto nacionalista, que visava buscar a célula musical permanente na cultura brasileira e elevá-la à categoria de obra musical imaginativa, criativa e de excelência”. Transformados em arquivos multimídia, os fonogramas captados por Braunwieser e as transcrições de Guarnieri compõem o grosso do CD-ROM anexo ao DVD. O CD-ROM contém o áudio das peças corais e canções guardadas no CCSP e o de uma entrevista com o compositor, além das partituras das obras do DVD, disponíveis em quatro versões para impressão: a grade do maestro, as partes cavadas da orquestra, as partes solistas e as reduções para piano. Completam o CD-ROM as análises de Lutero Rodrigues e dos pesquisadores Flávio Silva e Judie Kristie Pimenta Abrahim. Flávio e Lutero dão depoimentos no documentário Notas soltas sobre um homem só, dirigido por Carlos Mendes, filho do compositor santista Gilberto Mendes. O vídeo de 55 minutos preenche o DVD e traz declarações exclusivas de amigos, familiares, compositores, ex-alunos e intérpretes, como Laís de Souza Brasil, maior especialista na obra pianística de Guarnieri.
03
continente maio 2009 | 89
SONORA_88_89_90_91.indd 89
28/04/09 15:57
gueTToTech efeitos sonoros em composição eclética
O grupo português Buraka Som Sistema, que mistura o kuduro de Luanda com música eletrônica e hip hop, lança Black diamond, disco bem-recebido pela crítica texto Paulo Floro
FOtOs: ChRis DAVisOn/DiVuLGAçãO
Sonoras
cantado em português, com uso de ritmos oriundos de países como Angola e Brasil, o grupo Buraka Som Sistema é um caso curioso de sucesso dentro do cenário pop internacional. Desde que lançou o disco Black diamond nos EUA, em fevereiro deste ano, a banda acumula êxitos. O mais recente é a escalação para um dos maiores festivais musicais do mundo, o Coachella, na Califórnia, que recebe mais de 170 mil pessoas em seus três dias de shows. A agenda da turnê ainda passa por mais 17 cidades até junho. A premissa básica foi misturar o kuduro, gênero nascido na periferia de Luanda, com música eletrônica e hip hop. Natural da cidade de Amadora, um dos distritos de Lisboa, o Buraka Som Sistema fez sucesso em 2006 com o single Yah, despertando interesse de bandas e produtores europeus que os incluíram em seus sets. Depois de dois EPs lançados com tiragens baixas em Portugal, eles alcançaram inesperada repercussão com Black diamond, álbum que levou o grupo ao panorama da música eletrônica, quando propôs criativa mistura de música eletrônica com os ritmos tocados nas periferias de Luanda e Lisboa. O disco, ainda sem previsão de lançamento no Brasil, foi lançado pela multinacional Sony BMG, em parceria com o pequeno selo luso Enchufada. Até o momento, já alcançou disco de platina, com mais de 10 mil unidades vendidas apenas em Portugal. A gênese desse sucesso faz parte de uma conjuntura pela qual passa a música do Ocidente, de buscar uma interação com a chamada “periferia” do mundo globalizado. Neste caldo de forte apelo étnico, produtores e DJs da Europa estão indo até a África em busca de novas sonoridades. Este novo tipo de african pop vem cheio de aparatos modernos, mas traz referências à música tradicional de países como Angola, Moçambique, Congo e Malauí. A experiência antropológica musical do Buraka Som Sistema passa longe do puramente exótico. Surge no contexto de uma Europa cada vez mais miscigenada e tenta criar novos significados para a
c co on nt tiin neen nt tee m ma aiio o 220 00 099 || 990 1
SONORA_88_89_90_91.indd 90
28/04/09 15:57
INDICAÇÕES MPB
aquiLo DeL niSSo Piratininga
ana SaLVagni alma cabocla – as músicas de hekel Tavares
Piratininga, sexto disco do grupo instrumental Aquilo Del nisso, é uma bela homenagem à cidade de são Paulo, retratando a metrópole como um local onde diversas culturas convivem e se misturam – fato evidenciado nas músicas com pitadas de jazz, ritmos latinos e até de forró e baião. não é preciso muito esforço para entender o porquê da banda ter sido recomendada por nomes como hermeto Pascoal, naná Vasconcelos e Dominguinhos.
A alma cabocla do compositor alagoano hekel tavares (18961969), cujas obras sempre refletiram o espírito do sertanejo, e já foram cantadas por nomes como Maria Bethânia, é desvendada agora por Ana salvagni. neste disco, a intérprete paulista mergulhou no universo sertanejo e selecionou, entre 70 músicas, 16 para compor o disco. As faixas passeiam entre ritmos populares, mas sempre com uma leitura mais erudita.
MPB
INFANTIL
INSTRUMENTAL
Tratore
interação luso-africana, sem negligenciar anos de dominação europeia no continente. O kuduro angolano é o principal ponto de ligação. Ritmo de fortes influências tribais, ele ganhou roupagens modernas nas periferias portuguesas, como o electroclash, dance music e rap. O BSS aproveitou esse processo em ebulição e lançou o projeto que logo foi apelidado de guettotech. A boa aceitação que o álbum teve na imprensa especializada tornou o kuduro conhecido entre outros públicos. Serviu também para apresentar ritmos que, mesmo soterrados sob roupagens modernas, trazem diversas ligações com uma África tradicional. A música Kalemba (Wegue Wegue) resgata o semba, ritmo tradicional de Angola e tem versos em quimbundo, uma das línguas bantas mais faladas em Angola.
coletiVo Global
O sucesso do kuduro, através do trabalho de produtores europeus, tem semelhança com a trajetória do funk carioca
no cenário internacional. Os portugueses do Buraka Som Sistema foram além e criaram com Black diamond uma espécie de sintonizador de tendências e ritmos oriundos da África, Brasil e Europa. Estão lá o funk, com a participação da cantora Deize Tigrona, os britânicos do Vírus Sindycate, a rapper anglocingalesa M.I.A., que toca a música cartão-devisita da banda, Sounds of kuduro, além de cantoras angolanas e portuguesas, como Pongo Love, Puto Prata e MC Saborosa. A banda consegue jogar luz sobre diversos artistas que, longe de ficarem presos ao moribundo rótulo de world music, fazem parte do cenário da música pop, sem que com isso precisem se despir de suas origens locais. Mais do que um curioso sucesso do momento, o Buraka Som Sistema pode ser parte de uma nova ordem na música popular mundial.
@ continenteonline Ouça músicas da Buraka Som Sistema no site www.revistacontinente.com.br
aLaÍDe coSTa canta milton – amor amigo Lua music
Aos 73 anos de idade, a cantora Alaíde Costa lança um novo CD. Com firmeza na voz, ela interpreta músicas de Milton nascimento, uma delas (Viola violar) fazendo dueto com o próprio. A voz segue em primeiro plano acompanhada de piano e violão. Os outros instrumentos, como o violão cello, flauta transversa, sax-tenor e percussões, mais pontuam as canções. O disco é de bom gosto, embora tenda para uma homogeneidade que beira a monotonia.
Tratore
LuiZ riBeiro Teco Treco CPC-UmES
O trabalho de Luiz Ribeiro junto ao público infantil tem muita afinidade com o da “saudosa” Bia Bedran, principalmente pelas letras, ao mesmo tempo poéticas e ingênuas, pela preocupação didática e pela opção quanto à instrumentação “acústica”. em Teco Treco, as sofisticadas afinações dos violões de Ribeiro, somadas às vozes, buscam cativar até os adultos, tanto que o subtítulo do álbum é “Para crianças de 1 a 99 anos”. Brincadeiras musicais e canções folclóricas dão um brilho a mais.
continente maio 2009 | 91
SONORA_88_89_90_91.indd 91
28/04/09 15:57
arte Fé erguida em pedra e cal Igrejas barrocas do Brasil faz mapeamento de mais de 80 monumentos nacionais texto Marco Polo
o movimento Barroco , que
eclode na Europa em meados do século 16, é a contrapartida estética da passionalidade e fervor religiosos decorrentes da Contra-Reforma, caracterizando-se de um modo geral como uma arte feérica, de grande exuberância formal. Na literatura, imperam os jogos mentais e os torneios verbais, e, nas artes plásticas, a teatralidade e a profusão de elementos decorativos. Tudo permeado pela ideologia metafísica, em contraponto ao racionalismo renascentista. O estilo barroco foi introduzido no Brasil com alguma defasagem pelos padres católicos em missão
Leitura de catequese, principalmente os jesuítas. Teve como expoentes nacionais, na poesia, o baiano Gregório de Matos (além do genial orador luso-brasileiro Antonio Vieira), e, na pintura e na escultura, respectivamente, os mineiros mestre Ataíde e Antonio Francisco Lisboa, mais conhecido como o Aleijadinho. Mas foi na construção sacra – em que arquitetura, pintura e talha se acoplam – que o barroco brasileiro alcançou um nível artístico extraordinário. Relegado à indiferença durante os períodos clássico e neoclássico, o barroco brasileiro começa a ser redescoberto a partir do Modernismo, através de Mario de Andrade. Desde então, não parou
continente maio 2009 | 92 3
Leitura_92_93_94_95.indd 92
28/04/09 15:58
RepROduçãO
vercerf ectales
01 nave A capela lateral da Igreja e Mosteiro de São Bento faz parte do maior projeto monástico do Rio de Janeiro 02 fachada A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da penitência, situada em Salvador (BA), tem sua fachada em estilo plateresco, feita com calcário
02
de ser redimensionado e valorizado, alcançando admiradores e cultores como o poeta e teórico da arte Haroldo de Campos e, mais recentemente, o poeta paulista neobarroco Cláudio Daniel.
das igrejas já clássicas na relação do barroco brasileiro, pela primeira vez estão incluídas outras até então excluídas, ou porque careciam de interesse turístico ou por falta de dados apurados sobre seu histórico. Um caso exemplar é o da Igreja de identidade Santo Antônio, em Itaverava, Minas O certo é que, ao eleger o Aleijadinho Gerais, praticamente desconhecida como primeiro grande mestre da pelo difícil acesso, mas que conserva arte brasileira, Mario de Andrade pinturas do mestre Ataíde. Outras deixou inferir que o Barroco (e, em são igrejas cuidadas pela própria particular, a arte sacra comunidade local, barroca) pode ser visto sem qualquer apoio como o início de nossa oficial. O livro identidade cultural. também traz uma Entre os estudiosos relação atualizada dos do assunto está o museus de arte sacra artista plástico, espalhados pelo país. pesquisador e Um detalhe professor de Arte requintado, que Brasileira da revela o apuro Universidade Estadual técnico do trabalho, Paulista, Percival é o da contratação Tirapeli. Em parceria do fotógrafo Ricardo igrejas barrocas do Brasil com a Metalivros, Siqueira, especialista editora especializada em fotografias PERCiVaL TiRaPELi em fotografia, história, de cavernas, ou Metalivros patrimônio, cultura e seja, em locais de Na obra, são mapeadas mais de meio ambiente, sob mínima ou nenhuma 80 igrejas das regiões Norte, Nordeste e Sudeste, ricamente responsabilidade de luminosidade. Ele ilustradas por 336 imagens de Ronaldo Graça Couto e ficou encarregado de 10 fotógrafos, incluindo o próprio Roberto Feith (também fotografar o exterior autor, e o alemão Germain Basin, sócio da Editora e, principalmente, o que há mais de 50 anos lançou um livro sobre o mesmo assunto. Objetiva), Tirapeli interior das igrejas O livro também traz uma relação lança o livro Igrejas cariocas, a maioria atualizada dos museus de arte barrocas do Brasil. soterrada pelas sacra espalhados pelo país. A novidade deste sombras dos edifícios livro é que, além circundantes. 01
continente maio 2009 | 93
Leitura_92_93_94_95.indd 93
28/04/09 15:58
Resenha
CeSare PaVeSe PaISaGeM SILeNte Adriana Dória Matos
Raul Bopp e Blaise Cendrars
RELATOS ÁGEIS DE TEMPOS MODERNOS A coleção Sabor Literário (José Olympio) reúne textos breves de grandes autores que são pouco conhecidos do público brasileiro. Os mais recentes são testemunhos das agitadas três primeiras décadas do século 20. Vida e morte da antropofagia é prosa memorialística de um dos atores centrais da fase heróica do Modernismo, o poeta, jornalista e diplomata Raul Bopp. Hollywood: A Meca do Cinema, por sua vez, reúne anotações do globetrotter Blaise Cendrars em sua estada de 15 dias, em 1936, na capital da indústria cinematográfica. ele relata situações ao mesmo tempo fascinantes e cruéis, em que à fama somam-se estatísticas de suicídios e constrangimentos de imigrantes.
RepROduçãO
Leitura
Ensaios
SERROTE INVESTE EM ACERVO DIFERENCIADO Garimpar textos e imagens de qualidade de qualquer tempo e lugar é um dos atributos de um bom editor. esta é uma missão a que se tem dedicado o documentarista João Moreira Salles, que, como diretor do Instituto Moreira Salles, lança a revista quadrimestral Serrote. Centrada em “ensaios, ideias e literatura”, a publicação tem como jornalista responsável Matinas Suzuki Jr. A coleta em arquivos valiosos, a atenção a temas contemporâneos e a seleção de nomes de peso no cenário cultural nacional e de alhures, mostra-se a proposta editorial que tem tudo para atrair leitores criteriosos. Na primeira edição, 20 ilustrações inéditas de Saul Steinberg (foto).
Num intervalo de 10 anos, entre 1930 e 1940, o piemontês Cesare Pavese (1908-1950) escreveu os 70 poemas reunidos em Trabalhar cansa (Lavorare stanca). Ele estava entre os 22 e os 32 anos. Aos 42, matou-se. Estes seriam dados biográficos de caráter secundário em qualquer comentário sobre sua produção literária, não fosse o fato de Pavese ter traçado um plano de criação artística que parece tê-lo impelido a adiar o suicídio até que tivesse concluído certas obras. Ao lado do seu corpo, foi encontrado o diário Il mestiere di vivere (O ofício de viver), que, depois de 15 anos de labor, ele dava por concluído. Lavorare stanca, chegada ao Brasil em edição bilíngue, é obra de estreia de Pavese, que fez parte de uma geração de escritores e intelectuais italianos que produziram sob o facismo, tendo experenciado a tragédia de duas guerras mundiais. Ainda sobre o contexto histórico que o forjou, Pavese viveu sob demandas artísticas conflitantes, entre as quais se contrapunham o projeto de renovação e ruptura, pelas vanguardas, e o compromisso com a realidade política e social, pelos artistas engajados. Cesare Pavese não politizou sua obra nem a colocou num campo autônomo; como escreveu em seu diário, acreditava que era preciso “construir na arte e construir na vida, expulsar o voluptuoso da arte como da vida, ser tragicamente”.
fichado
escritor italiano foi preso pela ditadura de Mussolini por ocultar correspondência da amada. A experiência rendeu o livro Il carcere
Além de poeta e escritor, Pavese foi tradutor de latim, grego e inglês, idiomas que expressam as leituras próximas que ele fez dos clássicos e dos poetas modernos norteamericanos, que admirava, sobretudo Walt Whitman, sobre cuja obra defendeu tese em 1930. Neste Trabalhar cansa, edição enriquecida com cuidadosa introdução do tradutor Maurício Santana Dias, encontramos um poeta em contato com seu habitat, numa dicção desafetada, com temática ligada ao cotidiano e seus nadas, seus silêncios e solidão, seus prosaicos, de um poder de limpeza e secura admiráveis. Como nos faz perceber o tradutor, a aparente espontaneidade da escrita oculta um labor intransigente, uma busca deliberada da antilírica, “Um trabalho sistemático do que se poderia chamar de quebra do efeito poético e da cadência melódica”. Pavese não queria muito, somente que a arte fosse a própria vida.
continente maio 2009 | 94 5
Leitura_92_93_94_95.indd 94
28/04/09 15:58
INDICAÇÕES ENSAIO
FILOSOFIA
ROMANCE
aNa Mae BarBOSa e LILIaN aMaraL Interterritorialidade – Mídias, contextos e educação
SÉBaStIeN CHarLeS Cartas sobre a hipermodernidade
tHereSe FOWLer Souvenir Suma
Edições Sesc SP
esta coletânea reúne artigos de vários autores que participaram do projeto Interterritorialidade: fronteiras intermídias, contextos e educação, promovido pelo Sesc. No evento, foram discutidos os mecanismos de produção e apropriação da cultura visual no mundo contemporâneo, destacando a interterritorialidade entre as diversas linguagens e mídias. As experiências, sejam elas com dança ou com VJs, dentro de uma escola ou de um hospital, mostram que a arte transita livremente por vários territórios e não pode ser colocada em categorias estanques.
Triste, bonito e intenso, o livro conta a história de um casal desses que os mais inocentes chamam de almas gêmeas: Carson e Meg cresceram juntos e se apaixonaram, até que... ela resolve se casar com outro homem. Carson some para imergir na música, vingando-se triunfalmente anos depois, ao se tornar astro do rock – e devorador de mulheres. enquanto isso, o seu amor de adolescente se torna uma espécie de supermulher, dividindo-se entre um casamento careta, um pai doente e a filha aborrecente. depois de muito tempo, o destino bate à porta dos dois de novo, e aí se desenrola a trama que, a princípio, pode parecer batida, mas se revela contundente.
Barcarolla
Sébastien Charles tenta desconstruir o conceito de pós-modernidade, defendendo a ideia de que não abandonamos os preceitos da modernidade, mas que estamos levando-os ao seu excesso, daí porque uma hipermodernidade. No título, Cartas sobre a hipermodernidade – ou o hipermoderno explicado às crianças, Charles faz referência à obra de Jean-François Lyotard (O pós-moderno explicado às crianças). O autor relata, surpreso, que os leitores de outras edições não se apropriaram de seu pastiche. Mas conclui que em tempos hipermodernos há um vácuo intelectual que não permite o acesso de todos ao seu truque.
POLICIAL
LINDSaY aSHFOrD Sangue estranho Record
O livro da jornalista inglesa Lindsay Ashford traz como protagonista a analista de perfis criminosos Megan Rhys. Agustiada por problemas passionais, a psicóloga é uma das raras mocinhas protagonistas de tramas policiais. O livro é envolvente? É. dosa os elementos certos: suspense, sangue e morte de inocentes, polícia às tontas atrás de um serial killer que dilacera suas vítimas, e até a tal Megan, que, no fim da história, é quem acaba fazendo toda a diferença e desmascarando o autor dos crimes. Correto, o livro não pode ser apontado como uma “joia-prima” da literatura policial. Mas provoca suspense e divertirá os amantes do gênero.
Ensaio
LIVRO REÚNE CARTAS INÉDITAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO para desenhar um “retrato falado” do poeta João Cabral de Melo Neto, falecido há 10 anos, a pesquisadora Selma Vasconcelos reuniu entrevistas com familiares, amigos, críticos e intelectuais que conviveram ou estudaram a obra do pernambucano, além de cartas inéditas do escritor cuja poesia é reconhecida como um dos ápices da literatura em língua portuguesa. prefaciado pelo poeta Marcus Accioly, discípulo de João Cabral, o livro
é resultado de um trabalho de oito anos que tentou, através desses depoimentos, construir um perfil integral do artista, estabelecendo conexões entre sua vida íntima, sua visão de mundo e sua atuação pública. “Além de reconstituir a memória oral do poeta pelos depoimentos registrados, fiz um resgate da memória documental através da leitura e digitalização de sua correspondência e acervo de documentos pessoais que se encontravam sob
os cuidados de Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro”, diz Selma. João Cabral de Melo Neto – retrato falado do poeta foi editado pela Companhia editora de pernambuco (Cepe) e financiado pelo Fundo pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura).
continente maio 2009 | 95
Leitura_92_93_94_95.indd 95
28/04/09 15:58
Marcelino Freire a saideira
Marcelino Freire é escritor
cOn tI nen te#44
continente MAIO 2009 | 96
SAIDA_96.indd 96
Saída
JOSÉ DINIZ/DIVULGAÇÃO
Só mais uma, por favor. Umazinha só. Aqui, à mesa. Eu estou com sede. Estou de fogo. Estou carente. Traga, urgente. Está me ouvindo? Eu pago o que for preciso. Quanto é, meu amor? Sei que você já fechou as portas. Do seu coração. O seu juízo em combustão. Tanta confusão na cabeça. Eu entendo. Mas suplico. Uma única, juro. Para entrar num susto. Num gole, num fôlego. Um sentimento gostoso. A derradeira força. Eu peço. Como se pede um abraço. Um afago. Um beijo. Cavalheiro, prometo. Será a última. E não volto mais. Não encherei o seu saco. Desaparecerei do pedaço. Você não me verá depois dessa. Rastejar para quem quer que seja. Essa agonia. Essa ladainha. Essa peleja. Mas hoje eu necessito. Para alegrar o meu inferno. Pessoal. O trânsito que tem atropelado. O meu astral. Uma paixão que foi embora. Na boca da estrada. Essa lembrança que me mata. Feito vício. Deixa tonta a minha memória. Agora, já. Por que essa demora? Este desprezo? Estou com medo. Tenho pavor. O mundo derretendo. As camadas de gelo. O sol cinza. Desta cidade de São Paulo. Ave! Umazinha só, repito. Aqui, ó. Sou eu. Este farrapo humano, perdido. Em que nos tornamos. Todos juntos. A caminho do mesmo abismo. Moço, mocinha. Faz de conta de que sou um enforcado. À beira da sarjeta. Um calabouço aberto. Um buraco no concreto. Eu peço: misericórdia! Eu tenho direito. Venha olhar você no meu olho. Esquerdo. Estou no escuro do fundo do poço. É agora ou nunca. Um gesto só. Solidário, para sempre. Você me entende? Nem precisa ser a mais forte. Daquelas que a gente recebe. Direto da fonte. A mais gostosa, a mais quente. Não precisa ser a melhor. De repente, aquela que você tiver. Aí, jogada. Sem valor. Esquecida na estante. Ela me serve. Na prateleira, ela me serve. Em qualquer chão de bandeja. É essa que eu quero. Sério. A única. Chame o Marquinhos, o dono do bar. Eu falo com ele. Da importância que será. Neste momento em que tento escapar. De uma hecatombe. Em que tento me sustentar. Levantar os ossos. Para continuar. A luta. Essa vida que não tem cura. Difícil de equilibrar. Eu espero. O tempo que for. E aí? Vai dar ou não vai dar? Que porre! Para a minha alma bêbada, pô! Uma palavrinha só resolve.
29/04/09 11:36