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índios
Apontado por estudo mundial da Unesco como idioma em perigo, ele se mantém presente no cotidiano da comunidade através de rituais religiosos e da criação de cartilhas e gramáticas próprias textos Danielle Romani fotos Otavio de Souza
yaathe
a última língua continente maio 2009 | 24 5
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sagrada continente maio 2009 | 25
A perda de uma língua é algo irremediável para a cultura, identidade e sobrevivência de um povo. É um golpe fatal na memória, autoestima e no direito de se afirmar como nação. Mas tem sido uma realidade para muitas etnias. Ano após ano, milhões de pessoas em todo o mundo são impedidas de pensar em sua língua materna, de usá-la no cotidiano. Nas últimas décadas, centenas de nações presenciaram o desaparecimento do idioma natal, que passou a ser lembrado apenas por alguns anciãos. Ou foi esquecido por completo. “Quando um povo perde uma língua, também perde diversidade humana; perdem-se meios de compreensão e explicação do mundo; perdem-se soluções de adaptabilidade do homem ao meio, perde-se o conhecimento do potencial e do usufruto sustentável deste meio. Enfim, perdem-se conhecimentos fundamentais que venham a colaborar para a continuidade da sobrevivência do homem no planeta”, explica a linguista Stella Telles, que é coordenadora do Núcleo de Estudos Indigenistas (NEI) da Universidade Federal de Pernambuco, e que há cerca de duas décadas vem atuando em projetos de resgate e pesquisa de idiomas indígenas brasileiros. O desaparecimento de idiomas não é primazia dos índios nacionais, tem sido um fenômeno verificado em todo o planeta, e deixado a comunidade científica mundial em prontidão. Já se tornou, inclusive, objeto de preocupação de centenas de instituições internacionais, a exemplo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que lançou, este ano, a nova versão do Atlas interativo das línguas em perigo no mundo. Um importante alerta sobre a necessidade de preservar milhares de idiomas. Disponível apenas em versão digital, o Atlas mostra que entre as 6.000 línguas faladas, 200 se extinguiram nas últimas três gerações. Aponta a existência de 2.500 línguas ameaçadas, classificando-as em cinco graus de vitalidade e risco. O Brasil, segundo o documento, tem 190 línguas ameaçadas, a totalidade delas indígenas, entre as quais o yaathe, idioma falado
con índios ti nen te#44 dados da unesco LínguAS AMeAÇAdAS Por países
1º Índia 2ºEstados Unidos 3º Brasil 4º Indonésia 5º México 6º China
196 192 190 147 144 143
cRitÉRioS de RiSco • Transmissão da língua entre gerações • Número absoluto de falantes • Número de falantes em relação à população geral • Material de aprendizagem e de ensino da língua • Atitudes, documentos e políticas adotadas pelas autoridades oficiais • Postura dos membros da comunidade frente ao próprio idioma • Soma e qualidade da documentação disponível • Transferência da língua • Respostas e inserções nos meios de comunicação e novas mídias níveiS de PeRigo Vulnerável A maioria das crianças falam a língua, mas seu uso fica restrito às relações familiares Em perigo As crianças já não aprendem a língua como materna Seriamente em perigo Somente os avós e as pessoas mais velhas falam a língua. Os parentes compreendem, mas não falam entre si Em situação crítica Somente falada pelos anciãos Extinta Não existem mais falantes Fonte: Unesco
pelo povo fulni-ô de Águas Belas, PE. Além deles, somente outros sete povos nordestinos, todos do Maranhão, ainda mantêm sua língua viva.
cLASSiFicAÇÃo PoLÊMicA
Elaborado por 30 linguistas de vários países, o Atlas da Unesco mostra que o desaparecimento de línguas está presente em todos os continentes, e acontece em países ricos e pobres, sem distinção. O Brasil é o terceiro do ranking, atrás apenas da Índia e EUA. Mas pelo menos no caso específico do yaathe, único idioma vivo entre os 11 povos indígenas pernambucanos, a inserção entre as línguas em sério risco virou polêmica: é fortemente rechaçada. Tanto os linguistas como os
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representantes da comunidade fulni-ô refutam a tese de que o idioma estaria em perigo, como foi classificado pela Unesco. Muito pelo contrário: a quase totalidade dos especialistas consultados é enfática em afirmar que o idioma passa por um amplo e vigoroso processo de revitalização. A principal defensora da tese de vitalidade da língua fulni-ô é a linguista Januacele da Costa, que desde 1991 vem dando prosseguimento aos trabalhos do filólogo Geraldo Lapenda, autor da primeira gramática da língua yaathe, publicada no Brasil em 1968. Apontada pela maioria dos estudiosos como a “maior autoridade nacional em yaathe”, ela é professora de linguística da Universidade Federal de Alagoas,
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autora da tese intitulada Yaathe, a última língua nativa no Nordeste do Brasil, e está trabalhando num projeto intitulado Gramática descritiva (de usos) do yaathe. “Se observássemos os critérios da Unesco ao pé da letra, diríamos que o yaathe está definitivamente ameaçado de extinção. Mas esses critérios são muito gerais e a comunidade fulni-ô é muito específica. Quando colocada numa escala objetiva desse tipo, enquadra-se perfeitamente como uma língua ameaçada de extinção, mas, como a própria Unesco admite, comunidades linguísticas são complexas e diversas. A comunidade fulni-ô, seguramente, não pode ser, neste momento, analisada por números e critérios gerais. Por isso
acredito que a língua yaathe não corre risco de extinção. Pelo contrário, encontra-se em um estágio de busca por revitalização e valorização amplas”, explica a especialista. A italiana Bruna Franchetto, professora do Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional e da Universidade do Rio de Janeiro, foi uma das pesquisadoras responsáveis pelo repasse dos dados relativos ao Brasil para a Unesco, e admite que hoje, uma década após a consolidação dessas informações, o yaathe parece estar em condições bem melhores do que no passado. E a fonte para sua mudança de opinião foram exatamente os estudos feitos pela linguista Januacele da Costa.
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PReSeRvAÇÃo Awassury, da escola bilíngue fulni-ô, é professor e autor de gramática no idioma indigena, ainda não avaliada por linguistas
“Os dados incluídos no Atlas representam a situação anterior. Parece que a situação da língua yaathe é hoje bem melhor do que foi diagnosticado há uma década”, explicou Bruna à Revista Continente. Utilizando relatos da professora da Universidade de Alagoas, Bruna Franchetto enumera fatos que, na sua avaliação, podem mudar o status de risco do yaathe. “Houve uma evolução de falantes aparentemente passivos (entendem, mas não falam) para falantes ativos. Ela calcula que existam hoje mais de três mil falantes. É possível, ainda, que a língua tenha sobrevivido quase que escondida, preservada quase que clandestinamente, invisível (ou inaudível) pelos não indígenas, por razões óbvias, dada a estigmatização e repressão às quais foi submetida”, pondera Bruna, que destaca a feitura de cartilhas no idioma, o aperfeiçoamento da ortografia e a existência de três escolas nas aldeias fulni-ôs que ministram aulas no idioma yaathe, como outras formas que demonstram sua revitalização. “Eles parecem ter uma elevada autoestima que decorre em muito do fato de terem preservado a língua original, necessária à realização do ritual do Ouricuri, que é central para a sua vida e identidade”, diz a pesquisadora da Unesco, que, no entanto, alerta: “Ainda é preciso proceder a um diagnóstico sociolinguístico preciso. Lembro que nenhuma língua é salva na e pela escola ou na e pela escrita. Quem preserva uma língua e todos os conhecimentos a ela associados são os membros da comunidade. Principalmente no âmbito da educação doméstica e da socialização primária das crianças. Ainda não podemos afirmar que o yaathe é definitivamente uma língua com futuro garantido, ela continua ameaçada”.
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herança Fulni-ôs de Águas Belas lutam por preservação Habitantes do agreste meridional, índios buscam nas tradições familiares e na educação seu baluarte
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os limites da reserva se confundem
com a cidade dos “brancos”, com as ruas do município de Águas Belas. Num passado recente, uma placa colocada ao lado da entrada principal deixava claro que a presença de estranhos não era permitida. Agora, o aviso não se encontra lá, mas o incauto que adentrar o território indígena perceberá, rapidamente, que sua presença não é vista com bons olhos. Tem sido assim, desde sempre, e não se pode dizer que os índios tenham culpa disso. Há séculos a convivência com os “civilizados” se dá por meio de desconfiança, violência, perseguições, conflitos em torno da posse pelas terras que formam a reserva. Terras que já tiraram a vida de muita gente dos dois lados, mas, principalmente, dos índios, massacrados primeiro pelos portugueses e, recentemente, na segunda década do século 20, quase exterminados pelos coronéis e jagunços de Águas Belas. Época em que foram, inclusive, proibidos de falar no idioma natal, o yaathe. A luta dos fulni-ôs – ou povo da beira do rio – e de outras nações da caatinga contra os colonizadores, começou para valer no século 19, quando Dom Pedro II, em 1850, mandou fazer o primeiro Levantamento Geral das Terras do Brasil, responsável pelo mapeamento das aldeias
no Brasil Distribuição por região de línguas indígenas vivas
Nordeste 5%
Centro-Oeste 17%
Sul 2%
Sudeste 1%
Norte 75% Fonte: Aryon rodrigues
indígenas. “São três momentos distintos, que acirraram os conflitos entre brancos e índios no século 19”, explica o antropólogo e doutor em etnografia Renato Athias. O primeiro se deu no momento da proclamação da Independência, por Dom Pedro I, quando o Brasil se afirmou como nação. O segundo foi deflagrado por Dom Pedro II, em 1850, ano em que se resolveu “organizar” a questão das terras. Nessa época, a grande maioria das tribos localizadas no litoral já tinham praticamente sido dizimadas pelos colonizadores portugueses. “Temos referências à maioria delas, apenas na literatura e em documentos do período (a exemplo dos caetés, que são citados no livro Hans Staden, Duas viagens ao Brasil). A partir
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daí, começaria uma grande campanha contra as tribos do interior”, lembra o antropólogo. A terceira etapa da investida se deu em 1875, com base no mapeamento novecentista. “O Império decide que todos são brasileiros, e manda transformar todas as aldeias indígenas em vilas. A briga dos povos indígenas contra os colonizadores do sertão se intensificou neste momento. Muitos foram dizimados, poucos, como o fulni-ôs, conseguiram manter sua língua e identidade”, situa Athias, observando que a questão das terras continua sendo o maior entrave na relação entre os índios e a sociedade. “Até hoje, nenhum dos 11 povos pernambucanos teve suas terras regularizadas, mas apenas demarcadas.”
LugAR SAgRAdo
No caso dos fulni-ôs, cujas origens são desconhecidas e as primeiras referências remontam ao século 17, a briga continua. Os 11 mil hectares demarcados como área indígena são considerados insuficientes para eles. Hoje, a comunidade luta pela demarcação de mais 37 mil hectares de área, que delimitaria a terra dos índios entre a serra das Antas e a serra dos Cavalos, território considerado sagrado, e que reúne, segundo os indígenas, diversas inscrições rupestres de milhares de anos, comprovando que seus antepassados há muito povoavam o território. “O ponto de vista da terra, como lugar mítico, está intrinsecamente relacionado à dimensão do sagrado, portanto, não se trata apenas de um território, mas do entendimento de um universo cosmológico que se encontra presente entre os fulni-ôs. Esse movimento está na raiz da reafirmação da nossa identidade”, explica o fulni-ô Wilke Torres de Melo, que é sociólogo e autor de monografia sobre seu povo.
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PASSAdo e FutuRo A anciã Itassi e sua bisneta: transmissão da fé e dos rituais indígenas
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cidAde SAgRAdA O sociólogo fulni-ô Wilke Melo, na aldeia onde se realiza o Ouricuri, ritual que dura três meses
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Entrevista
Bruna Franchett0 atlas pode ser aperFeiçoado A italiana Bruna Franchetto foi uma das responsáveis pelo repasse de dados sobre a situação das línguas nativas do Brasil para a Unesco. Ela comenta alguns critérios que nortearam a realização da terceira versão do Atlas interativo das línguas em perigo no mundo, apresentado pela instituição em fevereiro deste ano. continente Quais os critérios utilizados pela Unesco para considerar o yaathe, e as demais línguas elencadas no Atlas, em extinção? BRunA FRAncHetto Em primeiro lugar, todas as línguas minoritárias, não reconhecidas oficialmente, sem lugar nos meios de comunicação (mídia) e sitiadas por uma cultura e língua dominantes (nacional ou regional) devem ser consideradas “ameaçadas”. Os critérios da Unesco valem para qualquer situação no panorama mundial, onde línguas faladas por menos de 100.000 pessoas são consideradas línguas minoritárias e “ameaçadas”. Isto vale para as línguas indígenas no Brasil, onde o tamanho médio das comunidades nativas é entre 250 e 300 pessoas, variando de etnias com alguns milhares de membros (tikuna, macuxi, xavante, caiapó, por exemplo) a etnias com poucas dezenas ou até não mais de uma dezena de pessoas. Há línguas com muitos falantes e línguas com apenas um último falante. As situações são extremamente variadas e cada uma é um fato complexo que deve ser documentado e analisado em si e comparativamente. O termo “extinção” é mais restrito do que “ameaçado” e só pode ser aplicado a línguas que, de fato, não mostram nenhum sinal de poder sobreviver na próxima geração. Todas as línguas
indígenas no Brasil são ameaçadas, algumas podem ser consideradas em processo de extinção. Sua vitalidade depende de seus falantes e das políticas positivas, públicas ou não, produzidas e destinadas para elas. Estas têm papel importantíssimo de apoio, estímulo, e devem ser reforçadas, multiplicadas e aperfeiçoadas. Mas os responsáveis pela manutenção de línguas e conhecimentos indígenas são os próprios indígenas, em última instância. continente Vocês têm feito atualização dessas análises? BRunA FRAncHetto A elaboração do Atlas da Unesco permitiu um esforço inédito para reunir a maior quantidade de informações fidedignas sobre a situação das línguas indígenas ainda existentes no Brasil. Digo “inédito”, porque até o momento não temos um quadro preciso com dados cuidadosamente checados. É preciso consultar todos
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os pesquisadores, indigenistas, entre outros, que possam, idealmente, ter as informações que estamos procurando. Nem todos os pesquisadores linguistas possuem informações desse tipo. Levantamentos e diagnósticos de natureza sociolinguística, com dados quantitativos e qualitativos confiáveis, são raríssimos, no Brasil. Um equívoco muito comum é confundir o número de pessoas, ou seja, a população, de uma etnia ou povo indígena com o número de falantes. E ainda é preciso distinguir os indivíduos que, de fato, falam a língua, especificando o grau de fluência, dos que são somente conhecedores passivos, ou seja, entendem (em distintos graus), mas não falam. E é preciso identificar todos os domínios de uso de uma língua (e os domínios nos quais ela não é usada ou é parcialmente usada), bem como os processos de sua transmissão de uma geração a outra (ou os fenômenos de ruptura intergeracional em sua transmissão). E mais: identificar quais os segmentos sociais que mantêm e quais são os que não mantêm a língua, e quais as razões para sua manutenção ou abandono etc. É preciso, ainda, analisar a influência da mídia, da escolarização, da presença e atuação de missionários... Apesar do esforço feito em função do Atlas, este ainda apresenta erros e lacunas que são reflexo da parcialidade e fragilidade das informações de que dispomos. É claro que pretendemos proceder a atualizações periódicas dos dados sobre línguas, ampliando a consulta aos pesquisadores e aos que conhecem de algum modo as situações específicas de cada povo. É importante lembrar que o Iphan pretende realizar um levantamento o mais exaustivo possível das línguas do país, o que será a primeira iniciativa sistemática no Brasil. O Atlas Unesco está aí para ser aperfeiçoado, constantemente. Se não existisse, continuaríamos na ignorância de quem não sabe que não sabe.
Os estudiosos acreditam que a resistência fulni-ô e a longevidade dos costumes deste povo podem ser atribuídas ao intenso apego às suas tradições e rituais. Muitos sustentam que a sobrevivência do idioma nativo se deve à realização do Ouricuri, ritual sagrado que demanda três meses de dedicação dos índios e somente pode ser feito no idioma yaathe. “Nossa língua assume um papel primordial no Ouricuri. O yaathe, portanto, é nossa arma, é nossa vida. Faz parte da nossa resistência”, resume o sociólogo, lembrando que, no período de celebrações – ocorridas anualmente nos meses de setembro, outubro e novembro –, todos os membros da comunidade (cerca de 3.903, segunda a Funasa, e seis mil, segundo os índios) deslocam-se da aldeia principal para a aldeia religiosa, onde são realizados rituais em torno do juazeiro sagrado, proibidos e inacessíveis aos “brancos”. “Nenhum fulni-ô pode revelar os segredos dos nossos rituais. Por que não contamos nossos segredos? Porque, quando a gente fala sobre
Apesar do quadro de abandono, o visitante se surpreenderá com a presença de duas bem conservadas escolas (existe uma terceira, numa aldeia secundária). Em todas as três unidades, o idioma natal é oferecido à comunidade. No caso da mais antiga, a escola bilíngue Antônio José Moreira, as aulas são ministradas apenas no idioma yaathe. Lá, os alunos aprendem matemática, ciências, arte e geografia na visão do povo fulni-ô. Dirigida oficialmente por Awassury Araújo de Sá, a escola, na prática, é coordenada pela professora Marilena Araújo de Sá, ou Wadja Fulni-ô, figura que pode ser apontada como uma das principais responsáveis pela revitalização e resistência do idioma da tribo. Foi ela quem criou, em 1986, a primeira cartilha com os primeiros fonemas traduzidos para o yaathe, trabalho desenvolvido com a ajuda de linguistas do porte de Stella Telles e Adair Pimentel Palácio. Foi ela também quem incentivou os filhos Awassury, Siato e Suyane a se engajarem na preservação da identidade cultural e do idioma natal.
um saber encantado, ele passa a ser desencantado”, diz Wilke, alertando que, se algum forasteiro chegar à aldeia do Ouricuri durante os rituais, os cerimoniais serão paralisados.
contRASte e PoBReZA
Se a aldeia religiosa onde se realiza o Ouricuri se assemelha a uma cidade fantasma, com centenas de casas abandonadas na maior parte do ano, a principal aldeia fulni-ô não tem qualquer aura mística, e evidencia o estado de abandono em que se encontram os povos indígenas. Os habitantes não contam com saneamento básico, esgotos escorrem a céu aberto, há ausência de calçamento e água potável, e há muito lixo por toda parte.
“A resistência fulni-ô e a longevidade dos costumes deste povo podem ser atribuídas ao intenso apego às suas tradições”
triBos de pernamBuco O número da população total por aldeias
Aticum 4.296
Trucá 2.942
SALGUEIRO CABROBÓ OROCÓ
MIRANDIBA
Pipipã 2.350
CARNAUBEIRA DA PENHA FLORESTA
RECIFE
PESQUEIRA IBIMIRIM INAJÁ
Pancará 2.489
Xucuru 10.333
Capinauá 3.645
Cambiuá 2.867
BUÍQUE
TACARATU JATOBÁ
Tuxá 253
ÁGUAS BELAS
Pancararu 6.404 Pancaiucá
(sem dados)
São 11 povos espalhados pelo sertão e agreste pernambucanos. Todos, segundo o antropólogo Renato Athias, possuem identidade cultural, realizam rituais e cerimônias próprias, e têm forte ligação com a terra, que aparece sempre como território sagrado. Infelizmente, graças a um forte processo de aculturação linguística, apenas os fulni-ôs de Águas Belas possuem e praticam idioma próprio, o yaathe.
Fulni-ô
São 3.903 indígenas numa área de 11 mil hectares, considerados, território sagrado.
Fonte: Aryon rodrigues
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con índios ti nen te#44 Os filhos honraram o esforço da pioneira Marilena. Awassury é autor de uma extensa e detalhada gramática de 400 páginas em yaathe, um trabalho ainda não reconhecido pela comunidade científica, mas que vem sendo adotado na escola bilíngue com efeitos surpreendentes. Suyane, por sua vez, vem se dedicando à tarefa de convencionar a escrita do seu povo. “Precisamos ter uma grafia única, pois até agora a língua yaathe não tem registros oficiais, existem muitas formas de grafar as palavras”, conta a jovem índia, que pediu auxílio de linguistas da Universidade Federal de Pernambuco para consolidar o trabalho. A primeira audiência com especialistas, anciãos da tribo e professores será realizada neste mês de maio. Já Siato trabalha no arquivamento dos dados culturais do seu povo, que reúne há anos. A escola bilíngue foi fundada em 1987, e desde então Marilena dedica sua
vida ao projeto de resgatar e consolidar a cultura e língua do seu povo para as futuras gerações fulni-ôs. Muitas vezes, diz tirar dinheiro do próprio bolso para copiar documentos e material didático. “Quando era pequena, estudei numa escola de Águas Belas, e senti na pele o preconceito de estar no meio dos brancos. Foi a partir desta experiência, de me sentir discriminada e da constatação de que as crianças estavam desaprendendo a língua, e também de que as outras tribos não falavam mais seus idiomas, pois estudavam apenas o português, que resolvi dedicar minha vida ao projeto”, explica a professora. “Marilena tem muitos méritos por seu trabalho, que, indubitavelmente, contribuiu para a preservação do yaathe. Quando resolveu fazer a cartilha, procurou-me e buscamos ver como poderíamos grafar os sons, de que forma ficariam mais bem representados”, explica Stella Telles,
linguista e coordenadora do Núcleo de estudos indigenistas da UFPE.
RivALidAde inteRnA
Marilena não é a única a trabalhar em prol da causa fulni-ô e da recuperação do yaathe. Embora faça parte de um grupo político rival, a também professora Maristela de Albuquerque Santos, filha do cacique João Francisco dos Santos, igualmente dedica seu tempo e trabalho ao resgate da língua e da sua cultura. Coordenadora pedagógica das escolas fulni-ôs (inclusive aquela dirigida por Marilena), que têm 2.178 estudantes matriculados, acredita ser uma missão lutar pelo bem estar do seu povo e pela preservação do idioma local. “Nossa língua é nossa força, nossa referência. Meu pai brigou para que tivéssemos três escolas nas aldeias, para que fossem evitados contatos com alunos não índios. Esses contatos
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quAtRo geRAÇõeS
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gueRReiRA
O ancião José Cunha Neto e seu clã: filhas, netas e bisnetas Marilena Fulni-ô é uma das principais responsáveis pela preservação do yaathe. É dela a primeira cartilha no idioma
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poderiam prejudicar as nossas crianças, uma vez que temos que brigar para manter nossa identidade”, argumenta Maristela. Nas duas escolas coordenadas por ela, a Marechal Rondon e a Ambrósio Pereira Júnior, também são ministradas aulas de português. Na elaboração de metodologia para a prática do idioma indígena, a coordenadora conta com o apoio da linguista Januacele da Costa, que periodicamente presta assessoria aos professores fulni-ôs. “Temos um problema sério, pois a nossa língua materna não está homogeneizada, mas vários linguistas vêm nos ajudando nisso”, explica a coordenadora, que observa: o período letivo das escolas indígenas obedece aos rituais do Ouricuri. “As aulas vão de dezembro até o último dia de agosto, pois em setembro todos se transferem para a aldeia sagrada”, diz a educadora. Brigas e grupos políticos à parte, a maior parte dos fulniôs parece estar pouco se importando com rixas e desavenças políticas. Muitos comemoram o trabalho realizado pelas duas líderes e professoras em prol da língua. A anciã Itassi Ferreira da Cunha, de 78 anos, mostra sabedoria ao falar no trabalho das companheiras da aldeia. “Quando eu era criança, todo mundo falava yaathe. Estudei até a 2ª série, na aldeia mesmo, mas deixei porque não gostava de ver só português. Depois, aos poucos, todo mundo começou a estudar nas escolas dos brancos, e os mais jovens deixaram de falar nossa língua. O trabalho das escolas tem trazido o idioma de volta, os mais novos voltaram a falar. Meus netos já estão sabendo muitas frases e palavras, algumas vezes mais do que os pais sabem”, comemora a senhora, que tem 14 filhos, 11 netos e dois bisnetos. Ela aponta justificativa para que sua língua e seus rituais tenham importância para a humanidade: “Ouricuri é coisa boa, que não pode se deixar de lado. Brasileiros são felizes? Devem agradecer a nós, índios, pois nos rituais pedimos paz e ajuda para todo o mundo, para nós e para eles. Nós pedimos aos deuses por eles”.
deScoBeRtA
Índia guató fotografada no final da década de 1970 pela linguista Adair Palácio
trajetória linguista pernambucana resgatou idioma dos guatós Discípula de Aryon Rodrigues, Adair Pimentel Palácio pesquisou idioma considerado extinto: a língua guató, falada por índios nômades do Mato Grosso do Sul Adair Pimentel Palácio é nome
obrigatório quando o assunto em pauta é linguística: foi fundadora do Núcleo de Estudos Indígenas da Universidade Federal de Pernambuco, e uma das principais orientadoras de várias gerações de estudiosos de línguas indígenas. Ativa, inteligente, dona de um humor peculiar, aos 78 anos é uma das maiores conhecedoras de línguas, fonéticas, gramáticas e cosmologias das muitas nações espalhadas pelo Brasil afora. Foi responsável, no final da década de 1970, pelo resgate de
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um idioma e da história de uma tribo considerada, à época, desaparecida: os guatós, do Mato Grosso do Sul. A descoberta redundou no documentário 500 Almas, de Joel Pizzini (2005). Adair começou a se interessar por línguas indígenas quando, lá pelo início dos anos 1970, leu o artigo Tarefas da linguística no Brasil, assinado pelo também linguista Aryon Rodrigues. Formada em Letras, com especialização em línguas anglo-germânicas, a jovem pernambucana decidiu que era aquilo que queria estudar.
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AdAiR eM doiS MoMentoS
Na década de 1970, entrevistando um índio guató para a sua tese; atualmente, professora aposentada
Entrevista
aryon rodrigues estudioso das línguas nativas Aos 84 anos, o linguista paranaense Aryon DallÁIgna Rodrigues é o mais renomado pesquisador e conhecedor das línguas indígenas brasileiras. Criou e dirige o Laboratório de Línguas Indígenas (Lali), na Universidade de Brasília (UnB), local onde pode ser encontrado diariamente, quando não está viajando para efetuar pesquisas ou participando de palestras e seminários. Começou a trabalhar na década de 1940 quando ainda era estudante. Seu trabalho prossegue até hoje, em especial na classificação e estudo do tronco tupi, sobre o qual escreve há cinco décadas. Nesta entrevista à Continente, fala da importância da língua para a manutenção dos valores culturais da sociedade, anuncia que o IBGE passará a catalogar os idiomas falados no Brasil no próximo censo e afirma:
o yaathe está vivo, milagrosamente, graças à resistência e persistência dos fulni-ôs. continente Qual a importância de uma língua para um povo, e o que representa a sua extinção? ARYon RodRigueS A língua nativa, a que a criança aprende com a família, é aquela em que ela aprende sua cultura. Tem importância linguística, mas é sobretudo o repositório de uma cultura, de modo que, se ela se perde, perde-se também parte de uma cultura. Muitas tradições, muitos rituais só podem ser transmitidos em determinadas línguas, portanto, quando uma língua morre, essas tradições não podem ser repassadas. Há uma perda cultural irreversível. continente Como o senhor avalia a situação do yaathe, língua dos fulni-ôs, a única falada em Pernambuco? ARYon RodRigueS É uma língua que vem sendo preservada de maneira bastante destacada, em contraste com as demais da região, todas em processo de extinção. Os fulni-ôs, impressionantemente, desenvolveram uma atitude de resistência, grande parte devida ao Ouricuri, ritual
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religioso que executam durante três meses do ano e que só pode ser realizado no idioma yaathe. Nesse ritual, eles não admitem a presença de estranhos, e todos os membros da tribo participam. Mesmo os que não moram na aldeia, a exemplo de alguns fulni-ôs que conheço e moram no Rio e até aqui em Brasília, programam suas férias para as semanas mais importantes do ritual, para que possam voltar à aldeia e participar dele. Um caso raro no Nordeste e no Brasil. continente Sabemos que o Nordeste é a região mais prejudicada, com praticamente a totalidade de suas línguas extintas ou em processo de extinção. Em contrapartida, qual a região que mantém o maior número de idiomas vivos e razoavelmente preservados? ARYon RodRigueS A Amazônia, que tem 140 línguas, porque só agora ela está entrando em processo de globalização, com a presença dos posseiros, das fazendas, gado e plantações. A língua com o maior número de falantes, por exemplo, é a dos tikuna, povo do Alto Solimões, que tem 30 mil pessoas. Mas a região corre risco desde a década de 1970, época da ditadura militar. Com a
“Fiquei encantada! No artigo, ele explicava que a tarefa principal do linguista brasileiro era levantar as línguas indígenas que estavam se perdendo. Falei para mim mesma: —Vou estudar uma língua indígena. E eu era assim: quando queria, queria”, lembra-se, com bom humor, a professora aposentada. Anos depois, Adair se mudaria para Campinas, a fim de trabalhar na Unicamp, sob orientação do professor Aryon, que havia se transferido para aquela instituição. “Mas avisei a ele que queria uma língua zero quilômetro”, diverte-se ao lembrar. Foi quando, lendo um estudo do alemão Max Schimidt, que havia convivido com os guatós décadas antes, bateu o martelo: faria sua pesquisa com eles. Mas foi desestimulada pelo mestre Aryon, que vaticinou: eles estavam extintos. Teimosa, começou a fazer pesquisas, e, por acaso, soube, no Recife, da
existência de uma freira que havia morado em Corumbá e que garantia ter conhecido uma índia guató. Adair arrumou as malas e rumou para o Mato Grosso do Sul. Lá, por intermédio de outra freira, irmã Alda, conheceu a índia Francolina, que havia se desligado da tribo e vivia na cidade.“Os guatós eram nômades, e haviam se espalhado por vários locais. Francolina era muito retraída, mas aos poucos foi se soltando, e dizendo palavras que comecei a identificar como semelhantes às registradas por Schimidt.” Com o tempo ficaram amigas, e Adair descobriu algo que lhe deixou em polvorosa. “O idioma guató tinha palavras tonais, ou seja, uma mesma palavra, de acordo com o tom utilizado, tinha outro significado. Até então só se conhecia isto a partir dos ramos linguísticos asiáticos”, explica a pesquisadora. A partir deste contato
abertura de estradas, a exemplo da Transamazônia, também houve muitas perdas e até mesmo o quase genocídio de alguns povos. Um exemplo são os panará, do Mato Grosso, cujas terras estavam no meio da estrada Cuiabá-Santarém. A engenharia militar queria passar
“A língua com o maior número de falantes, por exemplo, é a dos tikuna, povo do Alto Solimões, que tem 30 mil pessoas ” pela aldeia deles, houve resistência, e dos cerca de 3.000 índios, restaram apenas uma centena. Os que sobreviveram tiveram que fugir para o Parque do Xingu. Depois de algum tempo, essas mesmas famílias voltaram a pé para as suas terras de origem. Eles se estabeleceram numa região mais afastada da estrada. Hoje já são quase 200. A unidade cultural deles é tão grande, que conseguiram preservar a língua e estão se reerguendo.
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com os guatós, ela comenta que, apesar de não haver provas científicas, o fenômeno abre a possibilidade de que a tese de que os índios possam ter chegado à América provenientes da Ásia pelo estreito de Bering, possa estar certa. Durante anos, Adair conviveu com Francolina, registrou palavras e frases no idioma guató, e conheceu remanescentes da tribo que, mesmo na época anterior ao Descobrimento, jamais viveu em território fixo. Em 1984, defendeu tese sobre os guatós, em que apresentou dados sobre o povo, fonologia, morfologia e sintaxe do seu idioma. A partir deste estudo, alguns índios guatós que estavam espalhados se concentraram em Corumbá, a exemplo do filho de Francolina, que hoje é um dos líderes do seu povo. Um dos registros é o documentário do cineasta douradense (MS) Joel Pizzini. continente Quantas línguas chegaram a ser faladas no Nordeste? E no Brasil? ARYon RodRigueS Em 1500, na área do atual Brasil, havia cerca de 1.200 idiomas. Infelizmente, não se sabe quantas línguas, nesse período, eram faladas na região Nordeste. Essa, por sinal, é uma tarefa para nossos colegas nordestinos: levantar, a partir de registros, documentos, quantos povos e línguas existiam. Hoje, segundo estimativas do IBGE, existem cerca de 180 línguas faladas no Brasil. O português é a primeira delas e, acredite, o japonês a segunda. Por que isto? Porque os japoneses tendem a se concentrar em comunidades próprias, não se diluem nas outras camadas da população como fizeram os italianos e alemães. A terceira língua mais falada é desconhecida. Somente em 2010, quando o IBGE realizar o próximo censo, é que teremos essa informação, pois será introduzida uma pergunta sobre os idiomas falados. Aí teremos ricas informações não apenas sobre os idiomas vindos com as colônias européias e asiáticas, como também poderemos conhecer bem mais sobre as línguas indígenas. Será um grande serviço em prol do estudo e manutenção dessas línguas.