JUNHO 2009
FUNDAÇÃO PIERRE VERGER/DIVULGAÇÃO
aos leitores
Para que serve uma efeméride? Entre outras possibilidades, constitui-se numa oportunidade de (re)encontrar temas, pessoas, situações. Quando retomamos alguns assuntos atentos ao calendário, abraçamos a História, ciência para a qual a passagem do tempo é condição de existência, em que o passado verte-se em presente. As efemérides, também, são eficazes em dois sentidos: em lembrar aos mais velhos fatos de que foram testemunhas e trazer aos mais novos notícias de um tempo/lugar distante e, tantas vezes, desconhecido. A Continente deste mês ressalta duas datas, embora, como o leitor constatará, haja outros acontecimentos marcantes sublinhados nesta edição. Um, são os 60 anos de criação da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Outro, o centenário de nascimento do ceramista Vitalino (foto), nossa matéria de capa. Para os pernambucanos, sobretudo aqueles mais assenhoreados da própria história, estes são assuntos já conhecidos, que podem provocar a agradável sensação de reencontro ou a desagradável de déjà vu. Para os leitores de outras geografias e mesmo aqueles nascidos no Estado, porém mais jovens, as duas datas podem significar revelação. Evidentemente, nossa aposta é no agradável reencontro e na revelação. Neste sentido, para ambos os assuntos históricos buscamos uma angulação atual, vieses
que pudessem promover interesse. No que diz respeito à Fundaj, nosso enfoque recai sobre o investimento que a instituição tem feito em projetos que enfatizam o binômio arte-educação, por acreditar que é na formação que se conquista público para a arte. A atenção que dedicamos ao mestre Vitalino vai no sentido de rememorar o prosaico – sua vida simples de “artista de feira” –, pelo depoimento de filhos, amigos e colegas de ofício; ao mesmo tempo em que destacamos o valor de sua obra, que não se restringe à categoria de “arte popular” (alcunha que, às vezes, escamoteia preconceitos), porque foi transformadora à sua época e na sua técnica, como se constata no artigo escrito por Maria Alice Amorim para esta edição. E como se conta da prodigalidade de Vitalino, artista que repassava conhecimento e não era sovina em compartilhar méritos, também trazemos uma matéria sobre mestres que lhe foram contemporâneos – e dizem com ele ter aprendido a arte de esculpir no barro – e aqueles que são considerados seus herdeiros, usufruindo do prestígio que a arte cerâmica de Caruaru conquistou, por conta do trabalho pioneiro de Vitalino. Diga o amigo leitor se de encontro agradável ou de déjà vu são feitas essas páginas que, um dia, esperamos, se encontrem amareladas pelo tempo, guardadas em estantes, por afeto e memória.
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sumário Entrevista
João Pereira Coutinho
06
Online + cartas
07
Expediente + colaboradores
Leitora comenta os desafios do jornalismo cultural
12-13
Balaio
18-19
Peleja
Música O forró estilizado deve ser banido do São João de Caruaru?
Em 1ª mão
36-37
Bússola
42-45
46-47
Conexão
64-68
História
70-71
Sonoras
72-75
Leitura
76-77
Palco
78-79
Matéria Corrida
88-91
Claquete
92-95
Cardápio
Caricatura relembra os 200 anos de Charles Darwin
20-21
38-41
54-55
Antônio Carlos Nóbrega Artista prepara espetáculo em que privilegia a dança
Lenine Músico destaca as qualidades da fotografia de Karl Blossfeldt e do programa televisivo Zoombido
Tradição
Ferreiros Município da Zona da Mata é famoso pela produção de rabecas
Perfil
Tião Jovem, estudante de jornalismo e apaixonado por música, ele alavanca carreira de cineasta com prêmio em Cannes
Baú
Ave Sangria Há 35 anos, surgia a iconoclasta banda recifense
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Moleskines Site destaca as qualidades dos cadernos de desenhos artísticos
Português, colunista do jornal Folha de S.Paulo, aborda temas variados como política, sociologia, comunicação e arte. Considerado “o mais bemhumorado integrante da vaga recente de colunistas da ‘nova direita’ ”, ele afirma à Continente não saber o que isto significa
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Grammy O disco que quase recebeu o “Oscar da música”
Semente de Vulcão Grupo inaugura carreira com fórmula setentista
Vampiros Mortos-vivos retornam em coletânea
Experimental Grupo inicia turnê internacional com dois espetáculos
José Cláudio Colunista comenta a marchande Tereza Dourado
Jean Charles Filme sobre o eletricista morto como terrorista em Londres
Leite Restaurante mantém-se distinto em meio ao caos urbano
Saída
Xico Sá Escreve carta aberta a Gilberto Freyre
Portfólio
Cristiano Lenhardt Artista gaúcho explora as possibilidades da videoarte e da performance, criando obras em que as imagens intrigantes remetem à ficção, à fantasia e ao sonho
14 CAPA: Roberta Guimarães
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Capa
Especial
Nascia há 100 anos o artista que transformou a arte cerâmica, ao inserir narrativas do cotidiano em peças vendidas na feira de Caruaru
Completando 60 anos, a Fundação Joaquim Nabuco consolida proposta de difusão cultural pelas ações artístico-pedagógicas
Viagem
Visuais
Mais conhecidas no Brasil como Malvinas, elas encantam visitantes pelas fauna e flora peculiares e acentuada cultura britânica
Artista prepara livro, para 2010, em que sua obra em pintura é reunida. A organização é do escritor Fernando Monteiro
Mestre Vitalino
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Ilhas Falklands
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Fundaj
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Junho’09
Francisco Brennand
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online+e-mails
O que une a sonoridade da banda Ave Sangria, dos anos 1970, a da novata Semente de Vulcão? Ambas se fazem presentes nas páginas desta revista, em momentos distintos, e se aproximam quando os integrantes da segunda afirmam a influência da primeira sobre a música que produzem. No site da Continente, o internauta escuta músicas das duas e confere influências, filiações. Ainda no campo sonoro, a seção História conta a respeito de um disco que quase ganhou o Grammy, em 1991, num percurso inusitado. Disponibilizamos on-line as faixas daquele álbum, o Brazil: Forró. No mês em que o forró é ritmo dominante, sorteamos exemplares do CD Do som da terra ao barro (detalhe ao lado), lançado pela banda recifense Som da Terra, em homenagem ao centenário do ceramista de Caruaru, Vitalino.
destaques
Vídeos, fotos, textos e muito mais conteúdo, além dos textos integrais das edições anteriores, você vai encontrar em
continenteonline.com.br continenteonline.com.br
Índios
Agradeço pelo comprometimento com o jornalismo sério proposto pela Revista Continente. Sinceramente, não vi ainda nenhuma reportagem que levantasse tamanha fidelidade a respeito das informações sobre a língua yaathé. Sei que algumas pessoas ficaram incomodadas, mas creio que isso já era esperado, quando se trata de um tipo de discussão que desperta paixões pessoais e vaidades. Afinal, o debate sobre a necessidade de preservação da língua ainda é muito politizado, segundo interesses, que, acredito, extrapolam os limites do povo fulni-ô. No mais, na aldeia, quem leu a reportagem demonstrou muita satisfação. WILKE TORRES DE MELO ÁGUAS BELAS — PE
A ideia de Deus Gostaria para parabenizá-los pelo excelente artigo “Ateísmo:
REPRODUÇÃO
Ao som do forró e da psicodelia setentista
LITERATURA
VÍDEO
Leia um trecho do livro Avenida Paulista, que reúne os textos publicados na Folha de S.Paulo pelo colunista português João Pereira Coutinho.
Assista ao trailer do filme Jean Charles, baseado em história real e protagonizado por Selton Mello. Estreia prevista no Brasil: dia 26 de junho.
as crenças dos que não creem”. Questiono muito as religiões, mas acredito na força superior que rege o universo, e que essa força nos fala através de nossas “livres” consciências. JOAQUIM C. BEZERRA RECIFE — PE
Site Parabéns pela nova “roupagem” da Revista Continente. Ela ficou mais enxuta visualmente e mais direta. Creio que nos acostumaremos a partir dos próximos números . O site
está um pouco confuso em relação ao que era antes; na primeira semana, não encontrava as edições anteriores, depois passei a não achar facilmente um lugar onde o leitor pudesse opinar — deve ser o período de adaptação! SIMONE BRITO RECIFE — PE
Jornalismo Cultural Sou leitora da Revista e gostaria de parabenizá-los pelas mudanças. A Continente ficou mais atraente do ponto de vista
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente reserva o direito de publicar trechos e não tem compromisso de publicar todas as cartas. Telefones: (81) 3183 2780 Fax: (81) 3183 2783 redacao@revistacontinente.com.br / continenteonline.com.br
gráfico, harmonizando-se de forma brilhante com o conteúdo transmitido. É nesse contexto que os parabenizo, também, pela matéria de capa (edição nº 100), que trata sobre os desafio de se produzir jornalismo cultural no mundo contemporâneo. Deixo a sugestão: explorem mais vezes essa metalinguagem. NATÁLIA DE SOUZA CABO DE SANTO AGOSTINHO — PE
Errata Ainda a respeito da edição nº 100, o nome correto da colunista da extinta seção Sabores é Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti. No sumário da edição 101: a numeração das páginas do expediente, colaboradores, online e cartas foram trocadas. O livro João Cabral de Melo Neto – Retrato falado do poeta foi impresso, mas não editado pela Cepe, como publicado na página 95. A REDAÇÃO
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colaboradores
Amílcar Dória Matos
Bruno Albertim
Fábio Lucas
Fernando Monteiro
Escritor e jornalista, membro
Jornalista, especializado em
Jornalista e mestre em Filosofia,
Escritor, autor de livros como
da Academia Pernambucana
gastronomia. Colunista do Jornal
autor do blog Câmera crônica
Armada América e A cabeça no
de Letras
do Commercio
fundo do entulho
Márcia Mendes
Maria Alice Amorim
Olívia Mindêlo
Fotógrafa profissional, jornalista,
Jornalista, pesquisadora de
Jornalista e mestranda em
mestre em Design pela UFPE
cultura popular e doutoranda em
Sociologia
Comunicação e Semiótica
E MAIS
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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Chega de José Saramago!
O colunista português, que escreve quinzenalmente na Folha de S.Paulo e se diz ao mesmo tempo conservador e libertário, afirma que os brasileiros precisam conhecer outros nomes da literatura lusitana texto Arthur Aguiar
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Entrevista
ele fala de política e arte , de
literatura e cultura, de sociologia, porte de armas, da comunicação em tempos modernos, de economia, da saudade das cartas. Tudo pode ser encontrado nas colunas e artigos escritos pelo português João Pereira Coutinho, a quem a Folha de S.Paulo, que publica quinzenalmente, às segundas, seus textos no Brasil, chama de “o mais bem-humorado integrante da vaga recente de colunistas da ‘nova direita’”. “O objetivo é o mesmo: divertir, informar, enfurecer e conquistar o leitor. No fundo, eu só quero ser amado”, dizia ele, em 2007, quando editou pela primeira vez, em Portugal, o livro Avenida Paulista, que acaba de ser lançado em edição brasileira, pela editora Record. Ele é autor também da novela Jaime e outros bichos (1997) e da compilação de crônicas Vida independente (2004). Avenida
Paulista reúne parte do seu trabalho publicado na imprensa, mas sobre ela o colunista diz apenas se tratar de “um aperitivo”. O livro é dividido em dois grandes blocos: Sambas e Chorinhos. Na primeira, estão os textos mais leves, na segunda o autor apresenta seu lado pessimista. “Arrumei tudo em duas metades, que facilmente se resumem a entusiasmos e depressões”, revela na apresentação. Nas páginas finais do livro, numa terceira parte intitulada Encore, o colunista relata algumas de suas experiências na capital paulista. Enquanto se diz conservador quando fala de política, Coutinho alega ser libertário em todos os outros sentidos, e propõe que, num mergulho na literatura lusitana, os brasileiros deixem de lado o nome mais representativo entre os recentes do país e busquem outros autores. “Chega de Saramago!”, decretou, sugerindo que o célebre ganhador do
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Prêmio Nobel de 1998 seja deixado de lado em favor da descoberta de outros escritores contemporâneos, como Agustina Bessa-Luís (Contemplação carinhosa da angústia) e José Cardoso Pires (O delfim). Nascido em 1976, na cidade do Porto, Coutinho passou a escrever a coluna no jornal paulista antes mesmo de completar 30 anos de idade, em 2005. Anteriormente, já havia sido colunista dos semanários portugueses O independente (1998-2003) e Expresso (2004-2009). Formado em história da arte e em ciência política, mistura e alterna os dois assuntos com erudição e bom humor, em um texto interessante, cujo estilo já alegou ter “roubado” de escritores brasileiros (Paulo Francis, Nelson Rodrigues, Ivan Lessa e Diogo Mainardi) e anglosaxões (H.L Mencken e Jeff Bernard). Os escritores brasileiros mais recentes, entretanto, não o
divulgação
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que escreve. Chamado de polêmico e provocador, ele nega este perfil, mas com certeza se diverte com a notoriedade. continente A Folha de S.Paulo, jornal que publica seus textos no Brasil, o descreve como “o mais bem-humorado integrante da vaga recente de colunistas da ‘nova direita’”. O que acha disso? Considera-se de fato bemhumorado? E de direita? JoÃo PeReiRA coUtinHo Não sei exatamente o que significa ser de “direita”. A distinção surge historicamente localizada na Revolução Francesa, quando as classes aristocráticas e clericais se sentavam à direita do rei nos Estados Gerais. Ora, recuando até 1789, eu não posso
Fotos: divulgação
empolgam mais, como afirmou na entrevista que se segue. A pedido do próprio Coutinho, em Lisboa, a entrevista abaixo foi concedida por e-mail. Sucinto, ele evitou se prolongar muito em explanações sobre suas respostas, mas deixa claro o que pensa ao ir direto ao ponto. Questionado sobre o porquê de preferir responder à imprensa por escrito, surpreendeu ao afirmar não ser uma preocupação com a possibilidade de ser malinterpretado, mas simplesmente um comportamento econômico. Em seus textos publicados no Brasil e em Portugal, o articulista prefere evitar analisar as notícias sobre o Brasil. Diz ser proposital,
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Entrevista por ignorância do país como um todo, pois conhece apenas “o Rio de Janeiro e São Paulo”. Ele prefere usar o espaço das suas crônicas justamente para “trazer a Europa aos brasileiros”. E faz uma ponte em que trata, sob uma ótica um tanto fora dos padrões politicamente corretos adotados na maior parte da imprensa do país, de temas que vão da reforma ortográfica ao fenômeno do YouTube, Susan Boyle. Essa fuga dos padrões ideológicos, diga-se, acaba gerando fortes reações contra e a favor do
dizer que, em princípio, estaria à direita do rei. Mas há uma coisa que eu posso dizer: sou essencialmente um conservador em política e um libertário em todo o resto. Se essa combinação gera bom humor, melhor ainda. continente A que outros nomes desta “nova direita” considera-se ligado ideologicamente? JoÃo PeReiRA coUtinHo Não me considero ligado a nenhum nome em especial, muito menos da “nova direita”.
c co on nt tiin neen nt tee JJU UN NH HO O 220 00 099 || 110 1
continente Acha que esta personalidade está exposta nos textos publicados na coluna e no livro? É possível conhecer o que pensa João Pereira Coutinho a partir dos textos reunidos em Avenida Paulista, ou fica faltando algo? JoÃo PeReiRA coUtinHo Fica faltando tudo. No livro Avenida Paulista está apenas um aperitivo. Espero que os pratos principais venham nos próximos anos. continente Que tipo de reação recebe do público brasileiro – que associa o termo “direita” ao “mal” e quase todos os políticos se dizem de “esquerda”? Como isto se reflete em sua relação com o Brasil? É daí que vem o termo “polêmico”, muitas vezes usado para descrevê-lo? JoÃo PeReiRA coUtinHo Não faço
“A literatura contemporânea brasileira é muito, muito pobre. Da nova geração prefiro nem falar. Dos veteranos, leio com regularidade Milton Hatoum (foto), Scliar, Rubem Fonseca. e tenho pena de que o Mainardi não escreva mais ficção ”
ideia. Até porque não me considero particularmente polêmico, muito menos provocador. Pelo contrário: eu sou simplesmente uma pessoa que reage quando o mundo me provoca. E o mundo provoca-me todos os dias, várias vezes por dia. continente Acredita que há espaço para esta dicotomia “direita-esquerda” no mundo contemporâneo? JoÃo PeReiRA coUtinHo Acredito, mas a dicotomia, como todas as dicotomias ideológicas, sofreu uma
evolução histórica. Penso que a grande distinção, hoje, está entre “monistas” e “pluralistas”, na boa tradição de Isaiah Berlin. Ou seja, entre pessoas que acreditam num único ideal redentor e os outros que preferem uma multiplicidade de fins últimos de vida. É possível encontrar pessoas de esquerda ou de direita em ambas as categorias. continente Antes de completar 30 anos você já tinha uma coluna no principal jornal do Brasil. Como surgiu esta “parceria”, e como você mudou e mudou sua relação com o Brasil desde então? Acha que a visão externa o ajuda na interpretação dos fatos ligados ao país? JoÃo PeReiRA coUtinHo Raramente escrevo sobre o Brasil.
seu trabalho de colunista. O que pensa disso? Que relação tem com a arte hoje? JoÃo PeReiRA coUtinHo A arte é o meu interesse principal: a pintura, o cinema, a literatura, o teatro. Mas tenho escrito sobre política porque, infelizmente, só existem os prazeres estéticos quando estão resolvidos os prazeres éticos. E estamos longe de viver num mundo onde isso seja uma realidade. continente O que pensa da produção artística e cultural do Brasil, atualmente, seja música, literatura ou mesmo artes plásticas? JoÃo PeReiRA coUtinHo A literatura contemporânea brasileira é muito, muito pobre. Da nova geração prefiro nem falar. Dos veteranos, leio
como Mário Cesariny. Chega de Saramago! continente O que alguém que escreve e, acima de tudo, admira a literatura, pensa sobre a reforma ortográfica da língua portuguesa? JoÃo PeReiRA coUtinHo Sou contra a Reforma Ortográfica por motivos que já escrevi. A língua pertence aos seus falantes, não a um conselho de sábios que se considera “dono” da língua. (Em artigo publicado na Folha, em 28 de setembro de 2008, Coutinho dizia ser “visceralmente contra. Filosoficamente contra. Linguisticamente contra.” Ele alegava ser incapaz de aceitar que uma “dúzia de sábios se considere dono de uma língua falada por milhões”. Os
“os brasileiros deveriam conhecer mais escritores contemporâneos portugueses, como Agustina BessaLuís (foto) ou José cardoso Pires, por exemplo. Poetas como Mário cesariny”
Por respeito e alguma ignorância sobre o Brasil “real”. Conheço apenas uma parte do Brasil, essencialmente reduzida ao Rio de Janeiro e a São Paulo. A minha intenção é trazer o mundo para o Brasil, sobretudo a Europa, e não servir o Brasil aos brasileiros. Existem outras pessoas mais competentes do que eu para isso. continente A entrevista foi aberta com perguntas sobre política, mas sua formação é, antes, em história e história da arte. A política parece se sobrepor à arte com frequência em
com regularidade Milton Hatoum, Scliar, Rubem Fonseca. E tenho pena de que o Mainardi não escreva mais ficção. continente E de Portugal? Muitas vezes, mesmo tendo tanta ligação histórica, o Brasil acaba ficando longe de Portugal. Da produção artística portuguesa, o que acha que deveríamos conhecer melhor? JoÃo PeReiRA coUtinHo Alguns escritores contemporâneos, como Agustina Bessa-Luís ou José Cardoso Pires, por exemplo. Poetas
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motivos da oposição eram acreditar que a língua é produto de uma história que está sendo ignorada pelo Acordo. “A pluralidade é um valor que deve ser estudado e respeitado.”) continente Você disse preferir responder a esta entrevista por e-mail. Por quê? JoÃo PeReiRA coUtinHo Porque as chamadas telefônicas são mais caras.
@ continenteonline Leia um trecho do livro Avenida Paulista no site www.revistacontinente.com.br
ArQUIVO VALérIA BArBALHO
HeRAnÇAS Extraído do livro O escritor e seus intervalos, de Hildeberto Barbosa Filho: “Flaubert nem se casou nem teve filhos. Assegurava que não queria transmitir a ninguém ‘o tédio e as ignomínias da existência’. Brás Cubas não teria bebido nesta fonte? Afinal, eis as palavras finais de sua história: ‘- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria’ ”.
DeSFAciLitAnDo
A marcha do Barbalho A bem-sucedida extração do primeiro óleo do campo de Tupi, no pré-sal da Bacia de Santos, foi comemorada pelo presidente Lula ao som de uma marcha tirada do fundo do baú, cujos autores são J. Augusto, Nelson Barbalho e Luiz Gonzaga. A Marcha da Petrobras, gravada há 50 anos em um compacto, pela RCA, descreve as então recentes descobertas de petróleo em Candeias (BA), Maceió (AL) e Nova Olinda (AM). O caruaruense Nelson Barbalho (1918-1993), autor da letra e também parceiro de Gonzagão em A morte do vaqueiro, entre outros sucessos, deixou seu nome escrito não apenas na história da música popular. Barbalho (na foto, com o Rei do Baião) foi jornalista, historiador, pesquisador e autor de quase uma centena de livros. Uma curiosidade: a marcha não foi incluída pela gravadora em LP, sob a alegação de ser “subversiva”, segundo revelou Valéria Barbalho, filha do compositor, a Ancelmo Gois, #44 colunista de O Globo. Ouça em www.franklinmartins.com.br/som_na_ caixa_gravacao.php?titulo=marcha-da-petrobras
con ti nen te
FOtOs: DIVULGAçãO
A FRASE
“o Youtube eclipsa até os blogs na sua vacuidade e absurdo de seu conteúdo. nada parece prosaico demais, ou narcísico demais, para esses macacos autores de vídeos” Andrew Keen, escritor continente junho 2009 | 12 3
Vejam que primor, os termos da súmula do árbitro Carlos Xistra relativo à apresentação do cartão amarelo ao jogador Micolli, do Benfica: “O jogador da equipa visitada, Micolli, desmandouse em velocidade tentando desobstruir-se no intuito de desfeitear o guarda-redes visitante. Um adversário à ilharga procurou desisolá-lo, desacelerando-o com auxílio à utilização indevida dos membros superiores, o que conseguiu. O jogador Micolli procurou destravar-se com recurso a movimentos tendentes à prosecução de uma situação de desaperto, mas o adversário não o desagarrava. Quando finalmente atingiu o desimpedimento desenlargando-se, destemperou-se e tentou tirar desforço, amandando-lhe o membro superior direito à zona do externo, felizmente desacertando-lhe. Derivado a esta atitude, demonstrei-lhe a cartolina correspectiva”. (Duda Guennes, de Lisboa)
Balaio DonzeLA De FeRRo O Iron Maiden não foi a primeira banda a usar o célebre nome, que em português quer dizer “donzela de ferro” e que, como todos sabem, homenageia um antigo instrumento de tortura medieval. A primeira banda a brincar com “a donzela” foi criada em 1964, em Essex, na Inglaterra, e se encerrou em 1972, após lançar um compacto que fez sucesso. Os motivos do fim da banda ninguém sabe. Os pioneiros também faziam um som pesado, já com acordes heavy.
cRiAtuRAS
“XAVe É 1 RiAL e 98”
FLOrA PIMENtEL
Começou com um simples erro de português. O chaveiro Everaldo Cabral trocou o “ch”, de chave, pelo “x”, e virou motivo de chacotas. Não faltava quem o corrigisse e logo ele percebeu que as falhas ortográficas chamavam muito a atenção. Bem-humorado, resolveu então escrachar nos erros, o que findou por ser seu maior acerto. “No Brasil, fazendo as coisas erradas é que dá certo”, atesta Everaldo. Optando pelo marketing das palavras grafadas muito erradas, seu Nabunda (como é conhecido) tornou-se, talvez, o chaveiro mais famoso do recife, mantendo seu negócio na esquina da rua da soledade, na Boa Vista, ou “soliedade”, como prefere chamar.
teRRA tReMe Em 1989, viajando por Los Angeles, Milton Nascimento voltava para casa dirigindo. Ele ainda bebia, e tomara o volante bicado. No meio do caminho, sentiu que perdera subitamente o domínio sobre o veículo. Apavorou-se: “Pensei que tinha bebido além da conta, sem perceber”. Chegou em casa são e salvo, mas só no dia seguinte é que soube que, na verdade, não tinha perdido o controle do carro. Ao contrário, tinha até guiado muito bem, porque a rua por onde passara havia sido atingida por um abalo sísmico. Por via das dúvidas, Milton logo parou de beber e nunca mais esteve em lugares onde aconteceram terremotos. (Beatriz Coelho silva)
charles Darwin, 200 anos Por Lula Palomanes
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Portfolio
FANTASIA FICCIONAL Por cristiano Lenhardt TexTo Mariana Oliveira O gaúcho Cristiano Lenhardt esteve pela primeira vez no Recife para participar da Semana de Artes Visuais do Recife, em 2004. Um ano depois foi selecionado para o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e realizou uma exposição junto com o grupo Laranjas, de Porto Alegre, na Fundação Joaquim Nabuco. Em 2006, terminou transferindo-se para o Recife. Desde então, o artista tem dado continuidade aos trabalhos que envolvem quase sempre questionamentos em torno dos mundos da ficção e das narrativas possíveis neste universo. No campo da fantasia, há um espaço mais livre para a criação e é nele que Lenhardt trabalha suas imagens, nos mais variados suportes. “Explosões, voos, luzes ofuscantes, águas, estrelas, figurinos coloridos, fenômenos óticos fazem parte desse repertório. Um mundo ficcional construído pela fantasia, que vem de uma leitura onírica da paisagem em que me situo e dessas relações que vão compondo uma trama – que por sua vez se apresenta para nutrir esse imaginário”, explica Lenhardt. Outras constelações em http://lenhardt.multiply.com/.
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Em O bouquet de gladíolos, o artista se aventura num mundo submerso, que é registrado em imagens de Jonathas de Andrade
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Piscina vira suporte para o jogo de luz e sombra em Propagação, de 2007
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Em A quarta cor, um de seus trabalhos mais recentes, o artista diz partir para a construção de uma “narrativa ficcional”
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Na série Força-tarefa, com coautoria de Fernanda Gassen, o foco é a construção de uma paisagem por meio do reconhecimento de lugares distintos que se sobrepõem
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JOSÉ TELES
O forró estilizado deve ser banido do São João de Caruaru?
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Peleja
O crítico de música José Teles é a favor do boicote ao que ele chama de fuleiragem music, acusando as bandas de machismo e baixaria. Por outro lado, Gilson Neto, empresário da Brucelose, uma das bandas pioneiras do que ele define como “forró romântico”, afirma ser vítima de preconceito
Sou favorável à iniciativa da prefeitura de Caruaru de barrar, do São João, a grande maioria das bandas de fuleiragem music, não pela música ruim, ou porque descaracterizam a mais tradicional festa do Nordeste. Sou contra pela ideologia que disseminam, pelas performances de várias delas, que mostram em praça pública o que normalmente se assiste em boate privê, a portas fechadas, pago, e vetado a menores. E aí não vai nada de moralismo. Uma sociedade existe porque se impõem limites. Sem isso, é o caos, a zorra total. Os empresários, compositores e artistas da fuleiragem music parecem ter esquecido os limites. Mais do que a literatura, a música é influência forte. Lembrem-se da revolução comportamental da qual o rock’n’roll foi pivô nos anos 1950 e 1960. As letras da fuleiragem music estão causando um mal à juventude que as curte, dança, e canta – não é preciso ser psicólogo, nem cientista social, para constatar. A temática das letras é repetitiva e de uma estupidez pouco vista na música popular. Rapariga, cabaré, palavrões, trocadilhos grosseiros, espancamento, álcool sem moderação, e o que mais possa se pensar em barbárie. O pior de tudo talvez seja a regressão à qual está sendo levado o relacionamento homem/ mulher. O que feministas levaram anos e anos para conquistar, os autores desse repertório estão destruindo em poucos e pobres acordes. Nas letras, a mulher não é só objeto, é um objeto descartável, sem valor, e sem caráter. Pegue-se uma criança com 10, 12 anos, assistindo a um show de uma banda que canta uma música intitulada Tapa na cara. A letra não é nem machista, é de uma grossura inacreditável. “Ela apanha pra dormir/e acorda pra apanhar”, e vão por aí os versos, com o cara batendo na mulher em todas as estrofes e, no fim, justificando-se: “Os vizinhos não sabem a cachorra que ela é”. Imaginem essa mesma criança, durante anos, sendo bombardeada por canções do mesmo naipe, que lhe são empurradas goela abaixo pelo Estado (as bandas são pagas pela prefeitura) – que valores ela assimilará? Não é que o povo goste da fuleiragem, ou de outras excrescências culturais, ele não tem acesso a outras opções. Por causa de alguns artigos que escrevi contra a fuleiragem music, passei a ser tomado como inimigo nº1 das bandas, com muita gente cumprimentando-me pela “cruzada” que estaria empreendendo. Inclusive, um dos artigos que escrevi, na coluna Toques Digitais, do Jornal do Commercio Online, circulou pela internet como se fosse de Ariano Suassuna. Seguinte: não sou exatamente contra o gênero, cujo ritmo é uma mescla de lambada com soca e alguns ritmos caribenhos. Pessoalmente, acho as composições muito fracas, repetitivas, os cantores e cantoras são intérpretes lamentáveis, mas música ruim é troço que não falta mundo afora. Todo mundo tem o direito de gostar do que acha que é “bom”, por pior que este “bom” seja. Tampouco sou adepto da pureza cultural que alguns pretendem do forró, o chamado pé-de-serra, que é um termo relativamente recente, e que Luiz Gonzaga não empregava. Marinês, por exemplo, tem disco inteiro de carimbó, pegando carona no ritmo da moda nos anos 1970. Sou favorável a que a música junina renove-se, dentro de padrões estéticos de qualidade e civilidade.
“ Uma sociedade existe porque se impõem limites, algo que os artistas da fuleiragem music parecem ter esquecido ”
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José Teles
GILSON NETO Eu sou contra qualquer tipo de preconceito, porém concordo que tem muita gente sem talento formando bandas apenas para facilitar a lavagem de dinheiro de alguns empresários. Eles usam a música para esse fim porque arte é algo efêmero, não é tabelado, o que facilita a sonegação de impostos. Caruaru optou por fazer um São João sem as bandas de duplo sentido e/ou de apelo sexual, dando mais espaço aos artistas da terra. Respeito a posição, embora não concorde plenamente, pois acho que há bons conjuntos, que estão em perfeita sintonia com o gosto da região, sendo excluídos do processo, conforme explicarei adiante. O São João é uma grande tradição em todo o Nordeste, e essa medida pode, inclusive, repercutir negativamente em outros polos, como Bahia, Sergipe e Paraíba. O que leva a outra questão: se Caruaru limitar o espaço aos artistas de outros estados, o que vai acontecer com os artistas daqui quando forem tocar fora de Pernambuco? Não tenho a mínima dúvida de que sofreremos retaliação, por causa de uma imposição que foi feita contra a nossa vontade. Isso sem falar na bilheteria: muitos grupos que ficaram de fora têm público garantido. É provável que Gravatá, onde as pessoas terão escolha, faça mais bilheteria do que Caruaru, onde só tocarão as bandas que contam com a simpatia da prefeitura. Como assim? O Brasil é uma democracia. Não estamos em Cuba, nem na China. O que estão querendo fazer em Caruaru se chama reserva de mercado, algo obsoleto – não existe mais nem lá, na China. Antes de tudo, sou compositor, sanfoneiro e cantor. Mas tem muita gente que não sabe fazer nenhuma dessas três coisas conquistando sucesso. Esta é uma das razões da interferência da prefeitura. No entanto, é injusto que a decisão se estenda a bandas como a nossa: tocamos há 16 anos no São João de Caruaru, por que não podemos tocar mais? Temos mais de 500 músicas registradas no Ecad (Escritório Central de Arrecadação de Direitos, órgão que regula a propriedade intelectual em todo o território brasileiro), todas de nossa autoria. Por muito tempo, fomos a única banda a fazer questão de tocar o tradicional formato com zabumba, triângulo e sanfona em forró de vaquejada. Depois, todo mundo imitou. É justo que a prefeitura faça concessões, abrindo espaço para bandas de forró romântico, como Mastruz com Leite, Cavalo de Pau etc. Nossos colegas de geração são grupos mais tradicionais, sem apelação. Mas por que só abrir espaço para três ou quatro bandas, quando tantas outras de forró romântico já faziam parte do São João de Caruaru? Concordo, sim, com critério de escolha. Mas não com o veto, como está sendo colocado. Isso constitui preconceito. O São João é uma festa popular, e o ideal é fazer algo aonde todos possam ir, crianças inclusive. Claro que alguns grupos vetados são apelativos, mas insisto: o tradicional forró romântico não deve pagar o pato. Eu não escondo essa vontade, queria muito ter continuado no São João de Caruaru.
“Não estamos em Cuba nem na China. O que estão querendo fazer em Caruaru se chama reserva de mercado, algo obsoleto”
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Em primeira mão
TESE-ESPETÁCULO Nóbrega prepara encenação em que a dança é privilegiada
Com o nome provisório de Acorde, montagem deverá ter estreia em São Paulo, em agosto, mas não tem previsão de turnê nacional TEXTO Guilherme Carréra
A preocupação em reunir a arte de interpretar, músicas cantadas ou instrumentais e linguagem corporal caracteriza os trabalhos artísticos do pernambucano Antônio Carlos Nóbrega, desde os idos dos anos 1970, quando sua carreira teve início. “Acabara de fazer vestibular para Direito, quando Ariano Suassuna me convidou para integrar o Quinteto Armorial e, como todo filho de classe média brasileira das grandes cidades, eu desconhecia o Brasil popular”, relembra Nóbrega. À época, estudante de música erudita, o jovem se dividia
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entre os concertos de violino e as canções de Roberto Carlos que estouravam nas rádios. Ter cantado O calhambeque, confidencia, valeulhe, inclusive, um prêmio no colégio Marista, onde estudava. Foi só a partir do encontro com Ariano que Nóbrega percebeu a lacuna existente entre a erudição e a cultura popular. Um fosso que o incomoda, e instiga uma reação, sendo esta, ainda hoje, o combustível de suas criações artísticas. Em seu vigésimo espetáculo, cujo título provisório é Acorde, o artista aprofunda sua busca por elementos que considera genuinamente brasileiros. Tendo a dança, desta vez, recebido atenção especial. “Sempre fui seduzido pela linguagem corporal e isto se evidencia nos meus espetáculos, na dança dos passistas de frevo, dos brincantes, da capoeira. Sou um aprendiz do universo, dos movimentos e dos procedimentos dessas danças”, pontua. Esse interesse despertou em Nóbrega a vontade não só de trabalhar questões relacionadas à linguagem corporal, como também de refletir sobre elas. “A dança não é só elemento de utilização nos meus espetáculos. Ela também me cobra, através de seu estudo, um pensamento. A gente não tem o que poderíamos chamar de uma dança brasileira. Por isso eu vou aliar à criação artística uma espécie de discurso sobre essa questão. Vai ser uma tese-espetáculo.” Com previsão de estreia para o próximo mês de agosto, na capital paulista, Nóbrega logo ressalva a alcunha de tese dada ao projeto. “É uma defesa de tese simbólica, porque não há nenhuma universidade ou instituição que a autorize como tese. Estou fazendo para o público em geral.” Para a execução do espetáculo, uma banda de oito músicos deve compor as apresentações, cujos ensaios já começaram. Acompanhando Nóbrega nas coreografias, mais duas dançarinas: Marina Candusso e Maria Eugênia, esta última filha do artista. “Gosto de reunir muita gente, o que é complicado para viabilizar as verbas. Não consegui, nesses anos todos, nenhuma instituição que me fizesse prescindir de ir atrás de patrocínio”,
afirma. Vencedor de prêmios importantes como o concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), diz que tais feitos, no entanto, não facilitam a via-crúcis em busca de apoios institucionais. “Eu ficaria muito satisfeito se essas honrarias abrandassem um pouco essa jornada de buscar patrocinadores. Eu não tenho nenhuma vaidade com os prêmios. Quem for à minha casa, não vai saber nem onde eles estão. Não me é simpática a ideia de colocá-los nas prateleiras”, afirma.
PARCERIA
Um dos profissionais envolvidos na produção da tese-espetáculo é Walter Carvalho. Diretor de fotografia e cineasta, ele recebeu o convite do próprio Nóbrega, também responsável pela direção da montagem. “Walter é um amigo que encontrei, cujo diálogo é absolutamente identificável.
“Sempre fui seduzido pela linguagem corporal e isto se evidencia nos meus espetáculos” Nós nos entendemos muito bem, há uma complementaridade nas nossas linguagens.” O trabalho do parceiro se dá em relação à fotografia. Durante os ensaios, Walter tem comparecido para registrar momentos da preparação do espetáculo. O material colhido, entretanto, não tem um produto final definido. As fotos servirão para divulgação, mas outros usos estão em aberto. “Elas irão constituir uma obra paralela. Podemos usá-las na internet, em um livro ou para uma exposição.” A parceria entre os dois já é antiga. A direção dos DVDs Lunário perpétuo (2002) e Nove de frevereiro (2008) ficou a cargo de Walter. Mais do que um registro dos shows, as gravações ampliam o significado das mensagens transmitidas no palco. A inserção de depoimentos e imagens externas corrobora isso. “Todos os meus trabalhos que ele dirigiu não são meramente reproduções dos
espetáculos. Nós comungamos da ideia de que esse tipo de material pode agregar elementos novos para o espectador do DVD.” Se Acorde terá um registro filmado, ainda não se sabe, mas, caso haja, a batuta de diretor já está definida. Grande parte do entusiasmo do artista está na vontade de mostrar ao público um Brasil que ele considera não revelado. Ao se inquietar sobre questões relacionadas à cultura popular brasileira, Nóbrega se mostra insatisfeito com a maneira pela qual os intelectuais e parcela significativa da população encaram tais manifestações do país. “Existe um vácuo cultural do Brasil. Tudo aquilo que diz respeito à sua constituição identitária vira folclore, regionalismo, ‘de raiz’. São conceitos embebidos de preconceito, que parecem brigar com a modernidade.” Embora ache que os jovens desta geração tenham assimilado cantores, compositores e músicos de décadas atrás, Nóbrega critica a valorização de ritmos importados em detrimento das produções nacionais. “Por que a gente absorve de tal maneira o hip hop e não consegue entender a capoeira? Estamos com uma venda nos olhos. E eu não sou contra o hip hop, mas é uma pena um país ter uma riqueza corporal tão grande e ter que se valer de elementos importados. Como examinar um samba de Nelson do Cavaquinho sem preconceito? Por que um Jacob do Bandolim não pode ser tão bom quanto um solo de Jimi Hendrix?”, questiona.
INTERPRETAÇÕES
Ainda sobre o novo espetáculo, o artista revela as variadas interpretações do título do projeto. “Acorde lembra acordo, que tem uma ligação com o coração. É também um imperativo: ‘acorde!’. E, se for para adicionar um pigmento semiótico, é ainda ‘a cor de’”, explica. Motivado para a estreia, Nóbrega diz que deseja trazer o espetáculo para o Recife ainda este ano, mas não tem previsão de datas. “Ficaria muito satisfeito de rodar o Brasil, ao menos com uma versão mais enxuta. Já teve aulashow, aula-espetáculo. Agora é a vez da tese-espetáculo!”, complementa.
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LINO Um mestre de muitos herdeiros Aos 100 anos de nascimento do ceramista de Caruaru, filhos e amigos lembram o homem, para além do mito TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães
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CON CAPA TI NEN TE#44 Vitalino, 69 anos, filho e um dos seguidores do homem que completaria um século no próximo dia 10 de julho, se a varíola não o tivesse vitimado em 1963: Vitalino Pereira dos Santos, artista que deu alma e vida ao barro, transformando-o em matéria-prima e sobrevivência para a família – e para milhares de artistas que trabalham, hoje, no Alto do Moura, em Caruaru. Homem simples, analfabeto, tinha como prato preferido peixe com pirão e feijão verde. Mas também cultivava seus vícios: jogava a sueca, um tipo de carteado; bebia diariamante uma “branquinha” e fumava cigarro de palha, feito com o fumo de rolo que comprava na feira. Aliás, a feira era um dos lugares de que mais gostava, a
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Por volta das cinco da madrugada, diariamente, fizesse chuva ou sol, ele já estava acordado, banho tomado, pronto para mais um dia de trabalho. Bebia um café preto, acompanhado por macaxeira ou cuscuz, cujo milho acabara de ser ralado por sua mulher, Joana. Sentava numa esteira de palha, no canto da sala de casa, e se “danava” a moldar, no barro trazido do rio Ipojuca, suas invenções: ora gatos maracajás ameaçados por caçadores, ora bois, retirantes, procissões... “Tudo o que lhe passava nas vistas e fizesse parte da paisagem do agreste era retratado. Especialistas contaram 118 temas feitos por ele, com o barro. Acho que fez ainda mais”, afirma Severino Pereira dos Santos, ou Severino
“galeria” onde, às quartas e sábados, impreterivelmente, montava o tabuleiro com as peças produzidas durante a semana; sentava num banquinho, e esperava a clientela chegar. Foi num dia desses, no ano de 1945, em plena feira, que conheceu o desenhista e colecionador Augusto Rodrigues que projetaria seu trabalho para além de Caruaru. No ano seguinte, já teria suas obras estampadas em diversas revistas nacionais, inclusive na então onipresente O Cruzeiro. “Ele viveu, dos seis anos até a morte, exclusivamente da arte. Com ela, sustentou a mulher e seis filhos (teve 16, mas 10 morreram ainda bebês). Não ficou rico, apesar da fama, mas nunca faltou comida pra gente”, recorda Severino, que, assim como os outros cinco irmãos (um deles, Antônio, já falecido), cresceu ajudando o pai a moldar figuras e peças, algumas tão semelhantes às dele, que constam do acervo de museus brasileiros como sendo do próprio Vitalino.
IMAGEM E SEMELHANÇA
Além dos filhos – Severino, Manoel, 74 anos, Amaro, 75, o mais velho da prole, e o falecido Antônio (que morreu em 1977 e faria 66 este ano) – e das duas filhas, Maria, 71, e Maria José, 61, que quando crianças ajudavam o pai na confecção dos bonecos, a esposa, Joana Maria da Conceição, também contribuía com o trabalho. “Quando ele começou a fazer as esculturas coloridas, era ela quem fazia o acabamento”, relembra Severino. A semelhança entre as peças de pai e filhos é evidente. “A gente faz réplicas, segue os mesmos temas que ele fazia. É difícil distinguir quem fez o quê”, diz Manoel que, assim como Amaro, teve paralisia em uma das mãos, e há alguns anos não trabalha mais com o barro. Apenas Severino, que é também diretor da Casa-Museu Mestre Vitalino, continua trabalhando. No museu, que abrigou o mestre em seus três últimos anos de vida, estão fotografias, a esteira, os utensílios, objetos pessoais do artista e peças produzidas por seus familiares. Entre os netos, bisnetos e tataranetos, alguns continuaram o ofício do ceramista. Entre eles, um dos destaques é Vitalino Pereira dos
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A peça mais produzida por Vitalino, segundo os filhos, foi o boi, a mais fácil. A mais difícil, dizem, era a casa de farinha Santos Neto, 36 anos, que não chegou a conhecer o avô, mas que o elege como ídolo. Outro herdeiro do artista é Elias Vitalino, também neto, apontado pelos parentes como um dos mais perfeccionistas da família.
HISTÓRIAS RECONTADAS
Filho de louceira, Vitalino nasceu no Sítio Campos, próximo ao Alto do Moura, e considerava natural que a arte de moldar o barro fosse passada aos descendentes. Sob a influência da atividade materna, fez e vendeu sua primeira peça aos seis anos. À época, o trabalho se destacou por ser totalmente diferente dos objetos confeccionados pelas crianças de sua idade – vendidos na feira como brinquedos – e das louças comercializadas pela mãe, Josefa Maria da Conceição, e pelo pai, Marcelino Pereira dos Santos. Conta-se que sua obra, nem bem pousou na esteira da feira, fez sucesso e foi comprada por dois tostões por uma senhora que viera do Recife e se encantara com a criatividade do garoto. Um grande incentivo para seguir adiante com seu estilo. Feliz com o ganho, ele dizia o que tinha pensado na época: “É tanto dinheiro, que eu não fico mais pobre!”, relata Severino, lembrando que, até os oito anos de idade, Vitalino trabalhava em casa, e sua produção era levada à feira pelos pais e irmãos. “Somente aos nove anos é que começou a acompanhá-los.” A peça mais produzida por Vitalino, segundo os filhos, foi o boi, por ser a mais fácil de executar. As mais trabalhosas, na opinião de todos e do artista, eram as casas de farinha, pelos detalhes. Apesar de lidar desde cedo com a arte cerâmica, só mudaria para o Alto do Moura em 1948, quando já tinha quase 40 anos. Maior polo de produção do gênero desde então, hoje, o Alto do Moura tem um movimento
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GALERIA AO AR LIVRE
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FAMÍLIA VITALINO
Às quartas e sábados, Vitalino expunha suas peças na principal “vitrine” da cidade, a Feira de Caruaru Na frente da Casa-Museu, quatro gerações reunidas. Próximos à porta, a partir da esquerda, os filhos do mestre, Maria, Amaro e Severino. Sentado, com camisa azul, outro filho, Manoel, em meio a netos e bisnetos
comercial mensal de R$ 300 mil, nos 700 ateliês, segundo o coordenador de artes figurativas do Alto do Moura, Wellington Branco. No bairro, distante sete quilômetros do centro de Caruaru, Vitalino morou em dois imóveis alugados, antes de comprar o terreno onde construiu sua última residência, na qual funciona atualmente a Casa-Museu Mestre Vitalino. “Foram anos bons, a gente ficava mais perto dos outros artistas, e vinha ônibus de turismo para ver as peças de meu pai”, lembra Manoel,
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CON CAPA TI NEN TE#44 destacando outra aptidão do mestre: o gosto pela música. “Ele trabalhava o dia todo, ceava pelas 17h30, comia o mesmo do café da manhã. Quando chegava de noitinha, tirava o pífano do saco e ficava tocando. Era fã de Luiz Gonzaga, que esteve na feira algumas vezes. Não sabia dançar, mas tocava muito nas procissões, era o que a gente chamava de músico de novena, e participava de tudo quanto era festa de santo, o que deixava, às vezes, nossa mãe brava”, diz Manoel Vitalino, que lembra várias façanhas do “músico”: em 1960, Vitalino fez exibições para a alta sociedade caruaruense e, no Rio de Janeiro, tocou pífano com a banda de mestre Vicente. No mesmo ano, também na capital carioca, apresentou-se no programa de TV Gente de Caruaru e gravou seis músicas folclóricas nos estúdios da Rádio MEC. O compacto simples, uma relíquia, só seria lançado em 1972.
COMPADRES
Apesar da notoriedade conquistada nacionalmente, a imagem que ficou de Vitalino é a de quem nunca perdeu o jeito simples e camarada no trato com os companheiros do Alto do Moura. Tanto que, até hoje, artistas que conviveram com ele se referem a um homem generoso, boa praça, humilde. “Era um grande amigo, e olhe que, na época, já era bem famoso e popular”, resume Joaquim Francisco
FENNEART HOMENAGEM AOS 100 ANOS A décima edição da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenneart) terá como principal homenageado o Mestre Vitalino. Além do material de divulgação ser baseado na obra do ceramista, a organização do evento montará um museu multimídia, que contará com recursos interativos,
dos Santos, 84 anos, conhecido como mestre Elias Francisco. Segundo Elias, que tem seu ateliê quase na frente da Casa-Museu, na rua Mestre Vitalino, a principal do Alto do Moura, o ceramista lhe repassava inúmeros trabalhos. “Era muito camarada, não tinha esse negócio de querer as encomendas só pra si. Eu gostava de trabalhar com moldes,
imagens e réplicas de suas obras. As homenagens seguirão durante toda a feira e, no centenário do mestre, dia 10 de julho, haverá uma programação artístico-cultural especial. “O mestre tornou-se o primeiro artista popular a ter a autoria de suas obras reconhecida pela renovação visual na arte de esculpir o barro. Como consequência, gerações de artesãos puderam se dedicar a este ofício”, afirma Roberto Lessa,
de repetir um quadro ou uma cena; já ele, não, só fazia as peças da sua temática. Portanto, dezenas de vezes, quando eu via, entrava na minha casa com os turistas pra eu fazer o que eles queriam, me passava de mão beijada os trabalhos”, conta Elias, que ressalta: “Antes, muitos já trabalhavam com o barro, mas o primeiro a dar-lhe vida e arte foi Vitalino”.
coordenador-geral do evento, justificando a escolha do homenageado. Dentre essas gerações de seguidores, está o seu neto, Vitalino dos Santos Neto, que participará da Fenneart deste ano ministrando a oficina de trabalho com argila. Em 2008, a feira homenageou o artesão Manoel Eudócio, 78 anos, que mudou o rumo de suas produções depois que viu a obra de Vitalino.
Durante os 10 dias em que a feira ocupará o Centro de Convenções, de 3 a 12 de julho, serão esperados cerca de 200 mil visitantes. Mais de 800 estandes serão montados no local. No corredor de entrada da feira – a Avenida Mestre Vitalino –, os trabalhos de 39 mestresartesãos pernambucanos ficarão à mostra para venda, privilegiando a produção popular local e autoral, diante dos outros 3.500 expositores.
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CANTO DE TRABALHO
Sentado próximo à esteira onde o pai trabalhava, Manoel mostra uma peça cuja temática foi uma das principais do Mestre Vitalino, a banda de pífanos
‘Se eu beber alguma coisa, filho, vou acabar querendo tomar umas pingas’”. A preocupação de ambos se devia a um fato: em ocasiões anteriores, durante viagens para fora de Caruaru, Vitalino já havia passado por vexames por causa da bebida. Outro que se comove ao lembrar do amigo é Luiz Antônio da Silva, 74 anos, atualmente um mestre, mas, à época, outro menino talentoso, muito querido por Vitalino. Ele lembra cenas engraçadas envolvendo o homem que aprendeu a admirar e que lhe deu inspiração para se tornar um ceramista.
BOM HUMOR
O também mestre Manoel Eudócio, 78 anos, é outro que tem boas lembranças ao citar o companheiro. “Foi um dos maiores incentivadores do meu trabalho. Quando eu era menino, fazia os tradicionais brinquedos produzidos por todos, mas, quando vi as peças dele, descobri que podia fazer outras coisas, comecei a me inspirar em novos temas.” Num dia de feira, sentado ao lado do mestre, teve suas peças elogiadas por um turista. “Na hora, ele fez tudo pra me dar força, dizendo que eu era talentoso e me ajudou a ganhar uns trocados a mais.” Anos depois, na década de 1960, já conhecido como um dos discípulos do artista, Eudócio viajou com ele para o Rio de Janeiro. Vitalino tinha problemas devido ao consumo de álcool, e, por respeito a Eudócio, que considerava como um filho, prometeu: “‘Manoel, pode deixar que, no Rio de Janeiro, eu não tomo nem um copo de soda! Prometo me comportar’. Ao que eu lhe respondi: ‘Mestre, não tem problema, não, o senhor pode tomar sua soda ou guaraná à vontade’. E ele replicou:
“Era uma pessoa muito boa, mas também tinha um lado gaiato. Um dia, a gente estava na feira, o movimento já tinha acabado, e ele não tinha vendido nada. Botou os bonecos no saco, pendurou o saco nas costas e foi pro lado da Igreja da Conceição (centro de Caruaru), onde começou a gritar: ‘Cadê Juscelino (o presidente JK), que não ajuda Vitalino!?’ Foi uma graça só! Todo mundo na rua começou a rir dele.” Luiz Antônio lembra, com bom humor, mais um episódio. Certo dia, o mestre foi intimado por um delegado de polícia. Motivo: explicar o porquê de ter feito uma peça em que um soldado da polícia aparecia batendo num bêbado. “O delegado disse que aquilo estava errado. Vitalino ouviu, desculpou-se, foi dispensado, mas na semana seguinte deu o troco. Ao chegar à feira, apresentou a todos a sua mais nova composição: desta vez era um bêbado batendo no soldado”, diverte-se o discípulo. Luiz Antônio embarga a voz, quando lembra do último contato com Vitalino. “Ele tinha chegado do Rio de Janeiro, estava com umas fotos, que distribuiu para todo mundo no Alto do Moura, e chegou na minha porta, já meio embriagado, perguntando se eu tinha recebido uma delas. Eu disse que não, e ele ficou de voltar e me dar de presente para eu botar no ateliê. Foi a última vez que o vi. Dias depois, soubemos que estava doente, enrolado em folhas de bananeira para ver se curava a bexiga (varíola). Não saiu mais da cama. Morreu ali mesmo. Foi uma tristeza danada.”
ACERVOS O QUE VISITAR NO RECIFE Museu do Homem do Nordeste Avenida 17 de Agosto, 2.187, Casa Forte. Fone: (81) 3073-6340 Museu de Arte Popular Pátio de São Pedro, casas 45 e 49, São José. Fone: (81) 3232-2492
EM CARUARU Museu do Barro ‑ Espaço Zé Caboclo Praça Cel. José de Vasconcellos, 100 - Centro. Fone: (81) 3721-3957 Casa‑Museu Mestre Vitalino Rua Mestre Vitalino, s/n, Alto do Moura. Fone: (81) 3721-3957
NO RIO DE JANEIRO Museu de Folclore Edison Carneiro Rua do Catete, 179, Catete. Fone: (21) 2285-0441 Museu da Chácara do Céu Rua Murtinho Nobre, 93, Santa Teresa. Fone: (21) 2224-8981 Museu Nacional de Belas Artes Avenida Rio Branco, 199, Centro Fone: (81) 2262-6067 Casa do Pontal – Museu de Arte Popular Brasileira Estrada do Pontal, 3.295, Recreio dos Bandeirantes. Fone: (21) 2490-3278
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FIGURATIVA As narrativas visuais feitas de barro que deram novo rumo à arte popular O mestre de Caruaru ocupa um posto emblemático: não somente fez escola em sua cidade, como inaugurou formas no cenário artístico brasileiro TEXTO Maria Alice Amorim
Que segredos nos dá a terra ,
quando apreciamos o legado de civilizações passadas? Que sentido podemos dar ao barro que, segundo múltiplas cosmogêneses, é de onde viemos e para onde retornaremos? Pois bem, o barro que nos concede assento nessa cadeia de ciclos vitais concedenos igualmente uma perpetuidade num mundo rico de imaginário simbólico, quando transformado em narrativa poética de formas e volumes escultóricos. É pela terracota modelada e cozida que podemos desvendar um pouco os modos de vida de grupos culturais, de antepassados. No Brasil dos primórdios, o principal contributo nas artes cerâmicas é devido às culturas indígenas de variadas etnias,
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em que a arte marajoara é uma das que mais se destacam. Em Pernambuco, cenário de profusão de ceramistas figurativos, o sertão, a mata, o agreste e o litoral oferecem matéria-prima para a poesia visual construída pelas mãos de inúmeros e de geniais artistas, entre eles Francisco Brennand, Tiago Amorim, Ana das Carrancas, Zé do Carmo, Severino de Tracunhaém. E o mestre Vitalino aí ocupa um posto emblemático: não somente fez escola em Caruaru, como inaugurou um novo ciclo no cenário artístico brasileiro.
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MATÉRIA-PRIMA
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O COMEÇO
A terracota modelada e cozida deu forma à poesia visual de vários artistas Até 1947, momento em que participa da 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, o mestre era um ilustre desconhecido
PROTAGONISMO
É o que confirma um dos mais importantes pesquisadores da cerâmica popular do Brasil, o antropólogo Ricardo Gomes de Lima, diretor do Museu de Folclore e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ): “A obra de Vitalino é importante não só para a arte cerâmica brasileira, mas para a arte popular como um todo e para toda a arte brasileira. Foi a produção deste sertanejo que, na feira de Caruaru, na década de 1940, atraiu o olhar do também pernambucano Augusto Rodrigues, arte-educador e também artista. E ele trouxe, pela primeira vez, a arte popular à discussão, introduzindo os objetos de fatura das camadas inferiores da sociedade no chamado mundo das artes. Talvez, Augusto Rodrigues não tivesse a dimensão exata de seu gesto, mas foi ele que, ao dar a devida importância a Vitalino, mudou o rumo da história da arte no país. Embora muitos tenham adotado uma visão preconceituosa, a partir daí a história e a crítica de arte não mais puderam ignorar essa produção. O papel de protagonista adotado por Vitalino, então, não pode ser ignorado. Pela primeira vez se apresentavam ao público, no Rio de Janeiro, objetos de origem popular e se dizia: – Isso é arte”. Vitalino era um grande desconhecido do público brasileiro, até o momento em que Augusto Rodrigues (1913-1993) organiza, em 1947, no Rio de Janeiro, a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana e apresenta diversas obras do ceramista, obras dotadas “de uma vitalidade franca e comovente”, conforme registra o texto do catálogo, escrito pelo poeta
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Joaquim Cardozo. A partir de então, passa a integrar o circuito de galerias, inclusive internacional, e diversas reportagens tornam mais visível a obra do artista. “É interessante notar que isso irá acontecer em 1947. Muito tardiamente, se considerarmos que uma primeira geração de modernistas insurgira-se contra os modelos europeus na década de 1920. Sem querer negar a importância dessa geração, não me parece ser uma profanação dizer que modernistas como Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Vicente do Rêgo Monteiro e tantos outros, que preconizaram a importância do desenvolvimento de uma arte genuinamente brasileira, se aproximaram do popular, vendo ali uma excelente oportunidade para criarem, eles próprios ‘a verdadeira arte’. Todos se aproximaram do mundo popular, mas os populares, em certo sentido, permaneceram em segundo plano. Até chegar Vitalino”, avalia Ricardo Gomes.
QUATRO ELEMENTOS
Vida, invenção, vitalidade é o que representa o nome deste artista que transformou água, barro, fogo e ar em interpretações vigorosas do diaa-dia, interpretações construídas em bases bem concretas, aquelas do ver, ouvir, sentir. Interpretações
que, antes mesmo de construídas, floresceram graças à ação de raízes bem-fincadas num terreno argiloso em que os costumes do campo, as práticas da urbe e o imbricado de relações estabelecidas no convívio das festas de rua e das feiras livres trouxeram à imaginação do mestre os motes que, poeticamente, foi glosando sob a forma escultórica de gente e bichos em cenários nos quais o binômio natureza-cultura é um todo insolúvel. Para a escultora mineira Néle Azevedo – que começou modelando figuras em situações do cotidiano –, esta narrativa visual é uma das características da escultura popular: “Pensando com os modelos próximos, o artista tenta colocar ali o que mais o toca, o que mais o atravessa, e o processo criativo é justamente a tentativa de traduzir esse atravessamento. Além disso, o barro é uma matéria que convoca uma memória ancestral. Eu mesma não consigo modelar em outro material. As figuras, que hoje construo em gelo, resina acrílica ou metal, nasceram de uma memória de tempo e espaço em minha pequena cidade, onde via as mulheres sentadas na soleira da porta ou nas calçadas, olhando o mundo”. Falar em Vitalino significa, portanto, falar em bonecos de barro que evocam memórias, testemunham
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ROBERTA GUIMARÃES
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um modo de viver local que não escapa à compreensão universal da natureza humana. Falar em Vitalino significa emocionar-se com a profusão de cores, movimentos, formas, volumes que o artista intuitivamente foi escolhendo para compor personagens e cenas características de trabalho escultórico consagrado e instituído, pelos contemporâneos e companheiros de arruado, como um estilo a ser adotado com o fervor próprio de discípulos. Falar em Vitalino significa apreender um ethos e respeitar um artista que soube aliar sensibilidade, mãos hábeis e inteligência. E, para falar sobre Vitalino, o antropólogo Ricardo Gomes ressalta que “Lélia Coelho Frota é a autora que fez a mais importante análise do caráter antropológico da obra de Vitalino. Em sua visão, ele construiu peças da maior grandeza não só em termos estéticos como também por ser o grande documentalista dos valores de seu grupo social, da sociedade de sua época. Suas peças são, assim, objetos de arte e documentos etnográficos, registros dos modos de vida, dos ritos de passagem, das festas, do cotidiano, do mundo do trabalho e do mundo do lazer, da vida e da morte, enfim, uma visão holista do mundo”.
CALUNGAS DE BARRO
Nascido no dia 10 de julho de 1909, foi em 1948 que Vitalino arranchou-se no Alto do Moura, localidade que usufrui, desde então, das benesses conquistadas pela fama mundial do ceramista. Sua obra extrapola o binômio popularerudito, como atesta a pesquisadora da USP e PUC-SP e pensadora da cultura Jerusa Pires Ferreira: “O impacto da descoberta de Vitalino foi muito grande, conduziu à descoberta da importância desse legado. E a voga chegou de tal maneira em São Paulo, que não existia nenhum lugar em que não houvesse um nicho com algum trabalho de Vitalino. Ele soube realmente sair do espaço folclórico e ganhar dimensão universal.” A partir da década de 1930, a inventividade do artista engendrou o que passou a chamar de “peças de novidade”, ou seja, a construção de grupos de figuras humanas que reproduziam o cotidiano e diferiam do que se fazia em cerâmica, na época. Um investimento, portanto, em temáticas que incluíam procissão, retirantes, boi, músicos, banda de pífano, trio nordestino. Foi a partir da condição de fiel observador do cotidiano do povo, dos ciclos vitais da humanidade, que a gente, os costumes e as crenças
funcionaram como esteio para as mãos hábeis do ceramista transformarem o barro em arte. E, graças a essas interpretações particulares da temática regionalista, lançaram olhares sobre ele os irmãos caruaruenses José, Elísio e João Condé, generosamente auxiliados pelos artistas plásticos Abelardo e Augusto Rodrigues, responsáveis por levarem o artista popular ao circuito dos salões de arte, mundo afora, e à conquista de um lugar especial no território sagrado das artes cerâmicas. Fazendo repercutir a consagração conquistada na década de 1940, em janeiro de 1949 Vitalino participa, com Severino de Tracunhaém, de exposição no Museu de Arte de São Paulo (Masp), outra vez organizada por Augusto Rodrigues: o mestre de Caruaru comparece com cerâmica policromada e o mestre de Tracunhaém com barro vidrado em tom natural. Ainda pela mão dos Rodrigues e dos irmãos Condé, participa, em 1955, em Neuchâtel, Suíça, da sua primeira exposição internacional, Artes Primitivas e Modernas do Brasil, cuja temática oferecia um diálogo entre as artes tradicionais e contemporâneas.
CERÂMICA NARRATIVA
Quanto ao estilo particular de construir uma narrativa poética visual, sabese que, em Pernambuco, antes de Vitalino, somente os Faustino tinham executado composições grupais de escultura cerâmica popular. O filho Severino diz que o artista chegou a criar, no barro, 118 temas, que ele, sobretudo ele, e os irmãos Amaro, Manuel, Maria, Antônio e Maria José trataram de reproduzir a fim de perpetuar as invenções artísticas do pai. Invenções que passam a ser eternizadas também nas revistas, jornais, fotografias, filmes e livros, a exemplo do que faz o Instituto de Pesquisas Sociais (IPSO), da Fundaj, e a Prefeitura de Caruaru que, em 1972, editam o livro Vitalino: ceramista popular do Nordeste, com texto do antropólogo René Ribeiro e fotografias de Marcel Gautherot e Cecil Ayres. A editora Massangana, da mesma Fundação Joaquim Nabuco, em 1986, publica o livro Mestre Vitalino, de Lélia Coelho Frota. Igualmente em museus, a obra do mestre é imortalizada. No
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Rio de Janeiro, pelo menos quatro deles guardam acervo do ceramista: Museu de Folclore Edison Carneiro, Museu da Chácara do Céu, Casa do Pontal e Museu Nacional de Belas Artes. No Recife, há obras no Museu do Homem do Nordeste e no Museu de Arte Popular. Em Caruaru, a memória do artista é preservada no Museu do Barro e na Casa-Museu Mestre Vitalino. “Penso que Vitalino deva ser tomado como ícone de um grupo de ceramistas que habitavam o Alto do Moura e, como ele, produziam peças de excelente fatura e significado ímpar. Refiro-me a pessoas como Zé Caboclo e Manuel Eudócio, seus ‘cumpadres’. Além de contemporâneos, constituíam um grupo bastante coeso em que a concorrência estava ausente. Há diversas passagens da história de vida desses artistas que relatam a troca de descobertas entre eles, o companheirismo, a amizade. Considero Zé Caboclo um artista cujas obras têm a mesma importância estética das peças criadas por Vitalino. O Museu de Folclore Edison Cordeiro e o Museu da Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, têm em acervo peças que confirmam o que digo”, complementa Ricardo Gomes. De fato, entre os primeiros seguidores de Vitalino estão Zé Caboclo, ou José Antônio da Silva, Manuel Eudócio Rodrigues, José Rodrigues da Silva, Ernestina Antônia da Silva, cuja atuação consolidou-se em escola artística, que ainda hoje engendra novos talentos, em sua maioria oriundos da família dos ceramistas contemporâneos do mestre.
Outro pioneirismo na cerâmica figurativa do Nordeste, ainda conforme Hermilo e Abelardo, diz respeito às peças de grande porte encomendadas a José Rodrigues, Manuel Eudócio e Severino dos Anjos, para a instalação do Museu de Arte Popular de Caruaru, em 1961. A partir daí, Zé Rodrigues passou a adotar esse tamanho nas peças, inclusive nos santos de barro vidrado. Severino dos Anjos fazia cangaceiros, metade jarro, metade gente, de cerca de um metro; santos em cerâmica vitrificada e galinhas em tamanho natural. Criada a escola, inaugurado um estilo, consagrado o artista, Vitalino aponta para a vitalidade de um conjunto artístico, legado que nos deixou e pode ser apreciado em museus e coleções. As peças narram um universo cultural deliberadamente descrito pelo escultor e, ao mesmo tempo, apontam para a construção
de uma trajetória artística que não menosprezou os experimentos com tintas artesanais, com tintas industriais, com o barro cru, com a composição de conjuntos escultóricos formados por peças esculpidas e planejadas individualmente, aos pares, ou por peças projetadas em bloco e assentadas em base única. Composições enfileiradas, espalhadas, lado a lado, em círculo, apontam para a eloquência de uma narrativa visual sem meias palavras, para uma compreensão dos dramas e conflitos da existência humana. Apontam para a existência de um artista que, olhos sensíveis, soube armar um cerco à vida e capturar-lhe aquilo que há de belo, contraditório e comovente. São golpes certeiros apontando, enfim, para a construção engenhosa de uma obra mitopoética que brindou com vida imorredoura esta invenção de mestre. 01
INOVADOR
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CONTERRÂNEO
A partir de 1930, o artista criou um trabalho batizado de “peças novidade”, que reproduziam o cotidiano, como a pega do boi A figura do negro é dominante nas peças de Zé Caboclo
Considerado o primeiro dos discípulos, Zé Caboclo caracterizou-se pelas moringas antropomórficas, com tampa sob forma de chapéu, pés de arame e cabeça de Lampião ou Maria Bonita. Filho de louceira, possuía intimidade com o barro desde a infância. Caracterizou-se por cenas rurais e de profissionais em ação - e ainda mais pelo estilo inconfundível na representação do maracatu, cavalo-marinho, bumbameu-boi. A figura do negro é presença dominante nas peças de Caboclo, o que era inusitado entre os ceramistas populares, segundo escrevem Hermilo Borba Filho e Abelardo Rodrigues, no livro Cerâmica popular do nordeste.
REPRODUÇÃO
ZÉ CABOCLO
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DISCÍPULOS Novas gerações seguem cartilha de Vitalino Criados no Alto do Moura, garotos que cresceram vendo o mestre fazer esculturas de barro também se tornaram referência na arte cerâmica TEXTO Danielle Romani FOTOS Roberta Guimarães
Mestre Vitalino deixou diversos
seguidores. Desde que começou a exibir na Feira de Caruaru suas criações, chamou a atenção de garotos que habitavam o Alto do Moura, e que passaram a imitar o seu trabalho. Muitos deles se tornariam mestres talentosos, herdeiros da arte de modelar esculturas no barro. Um dos mais respeitados desses discípulos é José Antônio da Silva, o Zé Caboclo, que nasceu no Alto do Moura, em 1921. Célebre pelo perfeccionismo de suas peças, é integrante do chamado “grupo inicial” dos produtores de objetos artísticos em cerâmica de Caruaru, formado por Vitalino, José Rodrigues, Manuel Eudócio, Ernestina e ele. É também considerado um inovador. Zé Caboclo foi criador de peças como a Nossa Senhora do vestido de chita, de maracatus e bumbas-meu-boi. Ao que tudo indica, foi ele quem começou a pintar olhos nos bonecos de cerâmica (característica das peças feitas em Caruaru), além de ter introduzido, com Manoel Eudócio, o uso de arame e também de carimbo na identificação das obras. Morreu em 1973. Outro que surpreende pela criatividade é José Rodrigues da Silva (1914-1977), o Zé Rodrigues, que, assim como Vitalino, nasceu no Sítio Campos. Apenas um pouco mais novo que o amigo, era conhecido como o santeiro do Alto do Moura, arte pouco explorada pelos colegas da região, pois, nesse tempo, queimar imagens sacras nos fornos era considerado profanação. Zé Rodrigues também se destacou por outros temas, a exemplo de grupos de cavalo-marinho, bumba-meu-boi e retirantes.
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DETALHISMO
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RELIGIOSO
Mãos da filha de Zé Caboclo, Marliete Rodrigues, evidenciam delicadeza na confeccão das peças São Jorge e o dragão, um dos principais temas de Mestre Elias Francisco, é lição de equilíbrio
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Apesar de mais novo, o também caruaruense do Alto do Moura, Manoel Eudócio Rodrigues, 78 anos, foi contemporâneo e amigo de Vitalino. Sua produção é farta e uma das mais ricas da região, sendo o colorido das suas peças uma marca registrada. São famosos os seus bois em tons de vermelho e azul, motivo que recentemente foi incorporado a peças como O casamento no boi-manso, em que as personagens Dona Joana e o Dotô aparecem sobre o boi, fazendo parte do conjunto de bumba-meu-boi, que tem sido explorado em várias versões. Aos 85 anos, Joaquim Francisco dos Santos, o Elias Francisco, autointitulase o primeiro discípulo de Vitalino, posição refutada pela família do
mestre e por estudiosos do gênero. Ceramista desde os 10 anos de idade, quando desenvolveu um trole – espécie de vagão de trem usado para carregar operários –, a partir de uma fotografia, este caruaruense do Alto do Moura se notabilizou por peças como o Boi nelore, cavalos e cenas de vaquejada. Porém, sua marca registrada são as representações de São Jorge e o dragão, lição de anatomia e equilíbrio. Outro que é considerado mestreherdeiro é Manoel Galdino de Freitas, nascido em Volta do Jacaré, distrito de São Caetano, em 1924. Poeta e violeiro, chegou ao Alto do Moura em 1974. Tem uma vasta produção inspirada em suas memórias e sonhos,
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BRENO LAPROVÍTERA
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SONHOS
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URBANIDADE
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CONTRASTES
As peças de Galdino foram inspiradas em histórias bíblicas, nas tradições do folclore e em lembranças oníricas Luiz Antônio inovou ao retratar no barro trabalho e tecnologia, como na figura do cinegrafista A obra de Manoel Eudócio é reconhecida pelo rico colorido e expressividade dos personagens criados, como o “dotô” acima
em histórias bíblicas e nas tradições do folclore. Seu personagem mais famoso, no entanto, é o prosaico Mané pãozeiro, criação inspirada num primo. Morreu em maio de 1996. Em sua homenagem, construiu-se o Museu Galdino (Alto do Moura). Bem mais novo, mas não menos hábil, Luiz Antônio da
Silva nasceu em 1935, e inovou ao confeccionar personagens e objetos da modernidade, a exemplo de cinegrafistas, fotógrafos, eletricistas e automóveis. Sua peça mais célebre é A máquina de fazer telha, que lhe rendeu um prêmio da prefeitura de Caruaru, em 1971. Hoje, aos 75 anos, conserva um constante ritmo de trabalho, preservando características da produção local — o rico colorido em tons primários e os traços fisionômicos expressivos. Sua mulher, Odete, e seus 10 filhos são seguidores do ofício. Apontada por estudiosos e por vizinhos do Alto do Moura como a primeira mulher a lidar com os motivos figurativos no barro, Ernestina Antônia da Silva (1919-1997) aprendeu as técnicas da escultura com Vitalino. Seu trabalho encanta pela delicadeza e simplicidade de detalhes. Entre
seus temas recorrentes estão o Vendedor de peixes, Velho voltando da roça, mendigos e pescadores, e até mesmo criações inusitadas como O moribundo, em que a alma de um homem é disputada por um anjo e um diabo. A caçula dos mestres ceramistas da região é Marliete Rodrigues da Silva, 52 anos, filha de Zé Caboclo, artista bem-sucedida, cujos trabalhos são praticamente feitos sob encomenda, para exportação e para várias partes do Brasil. Especializou-se em miniaturas, hoje disputadas por colecionadores. Sua obra mais conhecida é o Xadrez nordestino em miniatura, em que as peças do jogo são representadas por Lampião (rei), Maria Bonita (rainha), cavalo-marinho (cavalo), entre outros. Marliete é também autora de obras como Quadrilha, A rezadeira e Mulher dando milho às galinhas. Devido à riqueza de detalhes, sua produção é resumida.
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PIERRE VERGER REGISTROS DE UM BRASIL À ÉPOCA DESCONHECIDO Pierre Verger viajou pelo mundo e o registrou com suas lentes. Entre 1932 e 1946, o fotógrafo percorreu países da Oceania, Africa e América Latina, fixando-se no Brasil, mais especificamente na Bahia, fascinado pela cultura local, seus costumes e religião. Avançando pela costa nordestina, chegou a Pernambuco em 1947. Nas suas andanças, além de memoráveis fotografias do carnaval de rua, capturou os personagens da cultura popular local, entre os quais Mestre Vitalino. O encontro originou registro do processo criativo de Vitalino, da coleta do barro à comercialização dos objetos na feira de Caruaru, material que dá corpo à exposição Arte do barro e olhar da arte – Vitalino e Verger, sob curadoria do antropólogo e museólogo Raul Lody, no Instituto Cultural Banco Real. Para o curador, o olhar de Verger sobre os bonecos de Vitalino credita a relevância do trabalho artesanal. “Sua maestria possibilitou eternizar no barro moldado, cozido e pintado, as memórias da vida no agreste, e com elas a fama e a valorização no mercado de arte”, pontua. Pertencentes ao acervo da Fundação Pierre Verger (BA), as 109 fotografias que compõem a mostra prestam homenagem aos 100 anos de nascimento de Mestre Vitalino. “Pretendemos trazer ao grande público a importância desse simples artesão que, com suas peças, divertiu e ensinou a tantas crianças que estavam manuseando o registro das suas próprias vidas”, afirma Carlos Trevi, coordenador do Instituto. Por dominar o pífano, Vitalino chegou a gravar 15 músicas que, agora recuperadas em mídia digital, poderão ser ouvidas na exposição. O público ainda terá acesso a imagens em vídeo, leituras da obra de Verger e trechos do documentário Adão foi feito de barro, do cineasta Fernando Spencer, filmado
FUNDAÇÃO PIERRE VERGER/DIVULGAÇÃO
Exposição Arte do barro e olhar da arte Centro Cultural Banco Real
T. (81) 3224.1110 5Jun-30 Ago
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no Alto do Moura. Entre os meses de junho e agosto, o Instituto Cultural Banco Real também promoverá o seminário Encontro com Manuel Vitalino – Histórias e memórias de Mestre Vitalino. O Manuel em questão é filho de Vitalino. Os encontros esperam oferecer ao público a oportunidade de ouvir relatos sobre a vida do ceramista.
MUSEU DE ARTE POPULAR
Ainda em comemoração ao centenário, o Museu de Arte Popular reúne, na mostra Vitalinos, 32 peças do artista, e trabalhos de Zé Caboclo, Manoel Eudócio, Zé Rodrigues, entre outros mestres do barro, imagens fotográficas inéditas, textos e documentários. A abertura será no dia 12 de junho, às 19h, na sede do MAP (Pátio de São Pedro, 49, São José).
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OFÍCIO
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VIAJANTE
O fotógrafo registrou as etapas de produção das obras em cerâmica de Vitalino Em 1947, Pierre Verger esteve em Pernambuco, onde documentou manifestações artísticas e religiosas
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NANA MORAES/DIVULGAÇÃO
Oswaldo Lenine Pimentel Macedo levou
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Bússola
LENINE Da televisão à botânica, o músico pernambucano radicado no Rio de Janeiro fala de suas preferências, passando pelas experiências e descobertas em suas turnês internacionais
tempo até ver que sua música poderia lhe levar para diferentes lugares do mundo. Para ele, isso ficou claro em 1992, com o CD Olho de peixe (parceria com o percussionista carioca Marcos Suzano). As composições do CD despertariam o interesse de intérpretes como Elba Ramalho e Sérgio Mendes, e ficariam populares, como a supertocada Leão do Norte. No entanto, depois desta revelação nacional, o artista levou cinco anos até lançar outro CD. O dia em que faremos contato, seu primeiro disco solo, abocanhou dois prêmios Sharp (revelação e melhor canção). Em 1999, sai Na pressão, seu disco mais difundido: músicas como Paciência atingiram um público sem restrições – assim como o estilo de Lenine. Em 2002, veio a consagração com o Grammy Latino de melhor álbum pop: Falange canibal, gravado com os convidados de luxo do Living Colour (banda americana de hard rock). A carreira ainda seria carimbada com o Grammy Latino em 2004, com o melhor CD de música contemporânea (In Cité, gravado ao vivo, em Paris) e melhor canção (Ninguém faz ideia). Passaria o ano seguinte produzindo os discos de Maria Rita e Chico César, até lançar, já em 2006, outro álbum com o “selo de qualidade” Grammy: Lenine acústico MTV. Em 2008, lançou Labiata, marcado por parcerias com Arnaldo Antunes, Pedro Luís e Lula Queiroga, seu amigo de longa data.
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Livro
Rumo à estação Finlândia
Fotografia / Botânica
O Brasil é referência sonora em qualquer parte do planeta. Seria natural que tivéssemos muitos programas televisivos dedicados a essa forma de expressão. Mas não é o que vemos. Temos, inclusive, canais dedicados quase que exclusivamente à musica, onde impera uma miopia generalizada. Zoombido, de Paulinho Moska, que vai ao ar no Canal Brasil, é exceção. Em cada encontro, Moska deixa todos à vontade, mostrando versões íntimas do repertório do convidado, e, no final, somos brindados com um duo entre Paulinho e o convidado. A produção e o formato são muito interessantes, além da importância histórica que o programa agrega.
Todo mundo já deve saber de minha paixão pelas orquídeas. O que as pessoas não sabem é que se abriu um universo botânico – que me transformaria tanto –, por conta dessa paixão. Atualmente, ando debruçado na obra deste alemão, cujos primeiros trabalhos datam de 1928. Além do estudo acadêmico, que está associado a toda sua obra, é um pioneiro na história da fotografia. Também foi professor e escultor. Suas fotos influenciaram, de maneira evidente, muitos segmentos das artes.
Zoombido no Canal Brasil
Karl Blossfeldt
IMAGENS: REPRODUÇÃO
Construindo uma trajetória que culmina com o desembarque em 1917 do meu xará Wladimir Lenin (devo essa herança a meu velho camarada-pai, Geraldo Pimentel), depois de cruzar a Europa em guerra, Edmund Wilson narra não a revolução russa, mas, sim, o caminho do pensamento humanista ocidental. Crítico literário, jornalista e escritor, foi figura importantíssima por sua obra vasta, que inclui ensaio e ficção. É leitura obrigatória.
Televisão
Discos
Gastronomia
Por ser minha área de atuação, escolhi três trabalhos que eu não consigo tirar de meu CD player. LaXula: imagine um mix de rock britânico alternativo e a intensidade feminina flamenga. É imperdível! Outro CD: Carnaval no inferno, da Eddie, que, a meu ver, é uma das melhores bandas do atual cenário pernambucano. E Lula Queiroga. Desse, eu sou completamente suspeito para falar. Tem juízo mas não usa fecha uma trilogia poderosa desse parceiro querido, que é um dos maiores cronistas musicais de minha geração.
Ao longo desses anos, pelas viagens que fiz nas turnês pelo mundo, é quase impossível ter tempo para conhecer a cultura de cada região por onde se passa. Descobri cedo que o estômago seria a melhor opção para conhecer um pouco de cada lugar. Tem sido assim desde então. Aonde chego, corro para algum restaurante de comidas típicas e regionais e me arrisco, provo de tudo um pouco. O Jardim de Nápoles, em São Paulo, tem o melhor polpetone que italiano nenhum jamais fará.
Jardim de Nápoles
LaXula Música
Kuduro Dentre muitos lugares aos quais fomos em turnê, um em especial nos emocionou: Cabo Verde. Nessas turnês, onde parte significativa dos países não fala línguas de raízes latinas, a compreensão de meu trabalho se dá de forma diferente. Por isso mesmo é mais prazeroso tocar nos lugares onde existe a herança romana que nos une. Lá foi assim. Além de tudo isso, conheci um pouco da música angolana. O kuduro hoje é um movimento poderoso, bem diverso, com muitos representantes por todo o mundo. A música é de apelo fácil e tem uma grande similaridade com os duplos sentidos do funk carioca e a música dos trios elétricos baianos.
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Tradição Tradição
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ferreiros Município de 11 mil habitantes ganha fama como terra da rabeca
Mesmo com reduzido número de três rabequeiros em atividade, cidade é exportadora do instrumento, usado no cavalo-marinho e como peça de marketing local TEXTO Thiago Lins FOTOS Flora Pimentel 02
“Rapaz, tou bom pra entrevista não”, diz logo o rabequeiro Manoel Pereira, ao receber a reportagem, explicando que “é muito ruim fazer uma coisa pensando em outra”. Ao entrar na modesta casa de piso batido, fica claro que a “outra coisa” na qual Seu Manoel estava pensando é sua mulher, que, após sofrer um AVC, teve as pernas amputadas e passou a ficar de cama a maior parte do tempo. “Parece que já morreu”, diz ele, olhando a mulher, que dorme. Pouco a pouco, a conversa informal vai ganhando ares de entrevista.
Após discorrer sobre o drama de sua “primeira paixão”, Seu Manoel agarra sua “segunda paixão”: a rabeca. De repente, o clima muda naquela pequena sala. Com precisão e naturalidade, executa Brasileirinho, Asa Branca e começa a contar histórias da infância. Fez a primeira rabeca aos nove anos. Garoto de recados, pediu madeira como pagamento até conseguir o suficiente para fazer o primeiro instrumento, que aprendeu a tocar sozinho. Manoel Pereira é um dos 11 mil moradores de Ferreiros, cidade da Zona
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da Mata pernambucana, conhecida pela fabricação da rabeca, instrumento usado no cavalo-marinho, folguedo que, junto com o mamulengo (que lá se chama babau e é personificado pelo artista Mano Rosa), é popular no município. A alcunha de “terra da rabeca” surgiu no começo dos anos 1990, quando a pesquisadora Rosilândia Veloso estudava a geografia da região para um programa do governo e constatou que o município era o único da adjacência com “fazedores e tocadores” da boa e velha rabeca.
Hoje, os artesãos de Ferreiros são Zé de Nininha, Mongol e Mário da Prancha. Assim se conta: a história da “terra da rabeca” começa há quatro décadas, com um tal de Mané Pitunga (19302002). Natural de Itambé, o rabequeiro chegou a Ferreiros em 1963, quando tinha 33 anos, e lá fixou residência até sua morte, em 2002. “Era uma figura difícil, você tinha que saber conviver com ele”, lembra Rosilândia, que em vão tentou convencer o artesão a passar sua sabedoria para os mais novos. Como todo rabequeiro que
se preze, Manoel Severino Martins, o Pitunga, aprendeu a afinar e tocar sozinho. Quase sem querer, tornou-se professor – à maneira dele. Embora fizesse questão de não orientar ninguém, não tinha como evitar os curiosos que se aglomeravam na frente da sua casa para acompanhar seu trabalho, manual do começo ao fim. Um daqueles garotos era José Alexandre da Silva, o Zé de Nininha, que hoje tem uma oficina em sua casa. “Conheci Pitunga demais. Eu até pagaria para que ele me ensinasse,
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mas o cara era muito fechado. Tinha um vínculo de amizade entre a gente, mas ensinar era outra coisa”, lembra Nininha, 40 anos, que esticava o pescoço para ver o trabalho do velho artesão por cima da cerca de aveloz que protegia sua casa. “Ele sempre gritava: ‘O que é que vocês querem?’ Era assim, meio ignorante mesmo. Dizia ainda que rabeca era coisa pra gente inteligente e me mandava voltar para as máquinas”, completa Nininha, que à época trabalhava como operador de máquina num engenho local. “Hoje, a rabeca
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é meu roçado”, declara, dizendo em seguida: “Quem quiser comprar rabeca, vendo por 300 reais. Lá em Mongol custa mil!” E por falar em Mongol, ele diz não dever nada a Pitunga. “Nunca fui em casa de mestre, nem de Pitunga nem de Prancha”, ressalva, fazendo referência a Mário da Prancha, outro luthier de Ferreiros. José Gomes da Silva, 60, o Mongol, recebe a reportagem com entusiasmo, numa casinha tão bem cuidada quanto suas rabecas, que ele modela quase sem usar ferramentas. Mongol fala sem parar, a ponto de praticamente não deixar que as visitas falem também. No entanto, quase tudo o que ele diz, com sua voz fina e baixa, é indiscernível. A impressão é de que Mongol vive num mundo paralelo: enquanto fala torrencialmente,
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parece não notar a dupla da reportagem se entreolhando curiosa, tentando decifrar suas algaravias sussurradas. Vai e volta aos fundos de sua casa sem parar, cada vez trazendo uma rabeca diferente, depositada no colo do repórter. Depois ele pega uma de suas esmeradas rabecas e começa a tocar. Quatro, cinco músicas. É assim que ele se expressa. Chega a hora de visitar outro ferreirense: “Não, vocês não vão agora”, exclama Mongol, surpreendentemente, subindo uma oitava na voz. Para ele, a entrevista tinha começado ali, com a rabeca falando por ele. Seu Manoel, Mané Pitunga e Mongol são alguns dos artífices de um município cuja economia é movida, basicamente, pela cana-deaçúcar e por uma indústria de calçados. No que diz
Páginas 38 e 39
01 MARKetinG
O instrumento-símbolo está estampado em ambulâncias e até em escolas no município
02 pAixões
Seu Manoel, com a mulher ao fundo: a rabeca chora por ele
Página ao lado
divergências leMbranças, neM seMpre ternas, de siba e Mestre salustiano
03 tRAbAlho ARtesAnAl
As rabecas são confeccionadas a partir de solicitações de cada músico e pela maestria do luthier
04 pAisAGeM de inteRioR
A paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no centro da cidade
Box
05 dindARA
Radialista defende Siba, mas alfineta mestre Salustiano
respeito ao fomento à arte, domina a produção de rabecas, apesar da presença de outras manifestações. O símbolo do instrumento está em tudo: escolas, secretarias e até ambulâncias ganham estampa com seus contornos. O instrumento cravou raízes na terra úmida de Ferreiros como se fosse canade-açúcar, onde, aos poucos, ganha contornos de motor social. “Estamos em contato com o Ministério da Cultura e com a Fundarpe, entre outros órgãos, para viabilizar oficinas de feitura do instrumento para crianças”, adianta Claudemir Barbosa, secretário de cultura do município, após receber a reportagem num telecentro chamado Rabeca Digital. Em 1995, Ariano Suassuna e Mestre Salustiano planejavam o primeiro dos Encontros de Rabequeiros de Pernambuco. Consultaram, então, o ferreirense Severino Miguel do Vale, o popular Dindara. O radialista conta que se ofereceu para trazer ao Recife todos os rabequeiros de Ferreiros, o que não aconteceu, porque tanto Ariano como Salustiano conheciam tocadores de outras regiões. Daí que “só” seis ferreirenses participaram daquele encontro. Perguntado se, de fato, Ferreiros é a terra da rabeca, o radialista não hesita na afirmativa e instiga: “Você sabia que o cavalo-marinho nasceu aqui?”
Dois rabequeiros não ferreirenses foram mencionados por todos os entrevistados: Mestre Salu (19452008), nascido em Aliança, e o recifense Sérgio Veloso, o Siba. Ambos dividiram opiniões. “Uma vez vi uma entrevista de Sérgio na televisão. Achei bonito. Agora, disse uma coisa a ele depois. Ele chegava aqui em casa, eu o abraçava e ensinava o que sabia. Aí perguntaram na TV onde tinha sido feita a rabeca dele. Campina Grande, Sérgio disse. Mas o instrumento tinha sido feito aqui (em Ferreiros), por Pitunga”, diz Seu Manoel. Seu Manoel ainda conta que o recifense, mais tarde, se desculpou pessoalmente pelo “erro”. “Mas aquilo foi o que ele quis dizer”, contesta o ferreirense, queixando-se de que o “o menino que subiu feito foguete” teria desprezado o mestre, autor de seu instrumento, fazendo pouco caso dos ensinamentos que passou ao jovem Sérgio. “Quem sabe, sabe. Isso pra mim é bagulho. Tenho certeza de que, se
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Salustiano fosse vivo, diria de onde vem a rabeca dele”, completou Seu Manoel, único entrevistado a defender Salustiano. Do Rio de Janeiro, Siba se defende por e-mail: “Nunca mencionei Campina Grande como origem de coisa alguma”. O radialista Dindara vê Mestre Salu com outros olhos. “Ele nunca falou em Ferreiros”, alfineta, defendendo, por outro lado, Siba: “Se tem alguém que sempre lembra de Ferreiros é Sérgio. Até numa entrevista a um jornal lá da França, ele disse que tinha aprendido ‘lá em Ferreiros, uma cidadezinha’ ”, sublinha. “Sempre citei Ferreiros como uma referência obrigatória”, completa Siba, que diz usar uma rabeca de Pitunga até hoje. Dindara reconhece que a projeção de Mestre Salu, provavelmente o maior freguês de Pitunga, trouxe fama ao artesanato de Ferreiros. “Mas isso só porque ele comprava aqui. Só que comprava a 100, e vendia pelo mundo a mil. Aliás, ele comprava fiado.”
tião
Recife, Los Angeles, Cannes As histórias – e roubadas – protagonizadas pelo jovem cineasta Tião, da sua temporada na Califórnia até a premiação em Cannes, com o curta-metragem Muro texto Thiago Lins
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Perfil
o adolescente tião estava voltando sozinho de um show entre muitos que viu em San Diego (EUA), quando parou para pedir informação a um casal. Descobriu que a menina era brasileira, e logo travariam uma conversa que se estenderia até a celebrada Los Angeles, onde pegariam um ônibus, no dia seguinte, a fim de assistir a um show do duo alternativo White Stripes. Os ingressos estavam esgotados, mas, para quem viajou Califórnia afora de muletas por três meses (logo que chegou, Tião quebrou o pé direito numa vaca de skate), isso era o de menos. Os dois ainda não tinham conseguido entradas, quando surgiu uma assessora da MTV americana perguntando se queriam participar da gravação do Video Movie Awards (VMA) de 2002. Não hesitaram em aceitar o papel de figurantes, ainda que tivessem que arranjar um figurino vermelho e branco, à moda de Jack e Meg White. O
White Stripes mandou um pot-pourri com três músicas e o clipe foi gravado sem transtornos, apesar dos mais de 100 figurantes. O futuro diretor ainda figuraria na frente das câmeras num clipe do De Facto, projeto paralelo da explosiva banda alternativa At The Drive-In. Isso depois de ter sido barrado num show do ATDI: à época, não podia entrar em lugares para maiores de 21 anos, tinha apenas 19. Tião ficou do lado de fora do espaço, conversando com os roadies da banda. Depois da “sensação estranha” de estar ouvindo uma banda da qual sempre gostou sem poder assistir, Tião avistou Sony Kay, detentor do selo Gold Standard Line (GSL), que abrigava o ATDI, e contou sua história. Simpático, Kay deu uma carona e ainda deixou de cobrar por um vinil do At The Drive In que o fã brasileiro tinha comprado. De quebra, convidou-o para participar da
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gravação do clipe do De Facto em Long Beach. Àquela altura, Tião já tinha se tornado conhecido das bandas. Só não esperava ver, numa praça aberta e tranquila, uma supercanja do guitarrista John Frusciante (Red Hot Chili Peppers) com o DF. Foram golpes de sorte de um viajante que teve que dormir três vezes na rua. Numa delas, foi alugado por outro passageiro que tinha perdido o último ônibus. Inocentemente, Tião tinha sentado a seu lado, puxando assunto para matar tempo. “Hoje é meu primeiro dia fora da prisão. Peguei 10 anos. Quero ver meu filho”, contava seu novo colega de roubada. Foi o ex-presidiário que conseguiu convencer o motorista do ônibus, que só chegaria horas depois, a deixar subir o estrangeiro distraído, que havia esquecido de comprar o ticket. “O cara era muito gente boa, tranquilo”, lembra.
flora pimentel
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imagens: acervo pessoal
A música, vivenciada intensamente ao longo da viagem, foi a primeira paixão do diretor de Eisenstein (2007, codirigido por Leonardo Lacca e Raul Luna, parceiros da Trincheira Filmes) e do estimado Muro (2007, prêmio Um Novo Olhar, na Quinzena dos Realizadores em Cannes). “Com 13 anos, escutei o Chaos A. D., do Sepultura, e o Master of Puppets, do Metallica, e enlouqueci”, lembra. Mas escolhas que não configuram necessariamente paixões ainda estariam no caminho de Bruno Bezerra, hoje com 26 anos: já chegou a cursar administração, direito e atualmente se desdobra para se formar em jornalismo, intercalando o curso com seus projetos cinematográficos. Administração e direito eram como uma garantia para o então aspirante a músico: poderia se formar e conseguir um emprego estável, que não impedisse seus projetos paralelos. “A
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groupie
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de muletas
tião posa ao lado da vocalista do Yeah Yeah Yeahs, Karen o. Barrado no show da at the Drive-in, acabou conseguindo carona com o grupo
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Perfil minha vontade era de fazer nada, além de tocar, mas música não dava retorno algum”, explica. Ainda na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), fez um curso de curta-metragem e conheceu os futuros colegas da Trincheira Filmes. “Na época, eu não entendia nada de filmagem, e o curso também não adiantou muita coisa. Mas pelo menos conheci muita gente lá”, lembra o diretor, cujo interesse maior por cinema surgiu na adolescência, após assistir Quero ser John Malkovich, de Spike Jonze. Tião não tinha mais de 20 anos, e sua ideia já era fazer um longa, que concebeu com os amigos Leonardo Lacca e Raul Luna. O projeto foi arquivado. O que foi preciso para ver que não dava para rodar um longa? “Fazer um curso para tentar fazer um curta”, explica, fazendo graça quase sem querer. “Era impossível fazer o que a gente tinha pensado naquela época”, completa. Os amigos começaram a se reunir aos domingos para filtrar as ideias, num processo que daria origem ao
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curta Eisenstein, que “é tudo menos uma homenagem” ao cineasta russo, como Tião gosta de esclarecer. “A gente pensou ‘o que é interessante e o que a gente pode fazer agora?’ É bizarro, mas Eisenstein é o projeto mais simples que a gente poderia fazer”, explica, dando uma noção do quanto complicadas seriam as outras empreitadas. O cineasta lembra aquele tempo (2004) como “uma época boa”, em que os amigos estavam empolgados com a concepção do intrincado curta. Eram dias de inocência e deslumbre, coisas
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que a prática acabaria por soterrar. “Filmar é complicado e angustiante. Tanto em Eisenstein quanto em Muro, pensei de forma muito forte que eu não ia mais fazer aquilo”, lembra Tião. Os lampejos do premiado Muro são anteriores ao curta que leva o nome do diretor de O encouraçado Potenkim. O filme sobre “um estado de mundo” foi feito a partir de uma colagem de ideias que o diretor demorou para sequenciar, até perceber que “uma (ideia) nascia para completar outra: a corrida das crianças, depois a dos
flora pimentel
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Divulgação
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cena doméstica
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muro
desde que tinha 20 anos, tião sempre pensou em se dedicar à produção de filmes, começando com o curta Eisenstein
tião diz que é um trabalho sem fim arrumar o quarto
curta-metragem dirigido por tião ganhou prêmio em cannes
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homens de terno...”, comenta, fazendo referência a dois quadros de Muro. O que mais? “Tem pequenas coisas, coisas comuns, como amizade, que podem compensar esse estado de mundo, que é o mal-estar”, completa. Muro é um filme esmerado e cheio de sacadas visuais, o que surpreende mais se considerarmos a formação quase autodidata de Tião. “Aprendi mesmo foi assistindo a filmes, conversando com os amigos e filmando. É uma coisa mais de se ter disposição para fazer”, explica. Apesar do triunfo
em Cannes, Tião ainda amargaria a rejeição do filme no Festival de Brasília, depois de ter deixado de competir em importantes festivais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (um dos prérequisitos para competir em Brasília era o ineditismo nacional). O cineasta faz um ar pensativo, olha o chão e conta: “Quando me perguntavam para onde eu tinha enviado cópias de Muro, eu dizia (coça o nariz pela milésima vez, baixa ainda mais a cabeça, olha para o lado e sussurra): Para Cannes.”
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“Eu tinha vergonha. O fato de enviar seu filme para Cannes é meio absurdo, as pessoas podiam achar que eu era megalomaníaco”, pondera, com seu jeito inseguro, ao mesmo tempo em que faz pouco caso da premiação: “Eu estava sozinho, tinha acabado de acordar. Aí, li o e-mail (com o convite para o festival)”. Após ler a mensagem – um anúncio de um dos maiores momentos da vida do jovem Bruno Bezerra –, ele conta que simplesmente foi ao banheiro. “Mas fui feliz”.
ave sangria Desbunde e fúria nos anos 1970 Há 35 anos, no auge do regime militar, bem antes do manguebeat, grupo misturava rock’n’roll e música regional, irritando conservadores e levando jovens ao delírio
eles eram irreverentes , esquisitos,
rebolavam no palco, usavam roupas apertadas – algumas mostrando o umbigo – e até beijavam-se na boca, o que provocava furor em todos os sentidos. Os caretas e os militares os detestavam, taxavam-nos de viados, indecentes, loucos, subversivos. Mas os undergrounds da década de 1970 desbundavam e deliravam ao se ver diante de atitude e sonoridade tão contundentes, ao se deparar com o som revolucionário – pioneiro na mistura de rock’n’roll e som regional – da banda Ave Sangria, não por acaso, chamada de Rolling Stones do Nordeste. A existência do grupo foi meteórica. Há 35 anos se apresentou com esse nome, mesmo tempo em que fez sua primeira e última gravação – o legendário disco Ave Sangria, gravado pela Continental – e em dezembro, o último show, Perfumes y Baratchos. Uma história curta, mas marcante. Tendo na sua formação Almir de Oliveira, Marco Polo, Ivson Wanderley, Agrício Noya, Israel Semente Proibida e Paulo Rafael, a banda começara seu trabalho dois anos antes, quando ainda se chamava Tamarineira Village. “Nosso primeiro show, ainda na época do Tamarineira, foi em Nova Jerusalém, em novembro de 1972. Um desbunde: dezenas de bandas e cantores se apresentando para quase dois mil jovens, latas cheias de água com ácido lisérgico dissolvido passando de boca em boca, muito
amor sendo feito dentro das barracas”, recordou Marco Polo, em entrevista concedida a um jornal local no final da década de 1980. Sexo, amor, loucura e rock’n’roll. Nada mais flower e power. A partir daí a banda ganhou vários estados brasileiros. Mas o trocadilho com “tamarineira” – que para os pernambucanos é sinônimo de loucura e para o pessoal de fora não fazia sentido, obrigou-os a trocar de nome. O responsável pelo novo batismo do grupo foi Marco Polo, que para dotar a banda de uma aura mística e “poética”, inventou que o nome Ave Sangria havia sido sugerido por uma cigana que encontraram no interior da Paraíba. Pura invenção, mas até hoje muitos acreditam na versão, que foi amplamente contada nos jornais. A projeção alcançada por várias bandas da região, a exemplo do Quinteto Violado, fez com que as gravadoras de fora investissem no grupo. A Continental os chamou e fez o primeiro e único disco, que virou sucesso em outros estados – à época, a faixa Seu Waldir chegou a ser uma das mais executadas por uma rádio
A existência do grupo foi meteórica. Há 35 anos fez sua primeira e última gravação e um último e inesquecível show continente junho 2009 | 46 7
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paulista – e principalmente no Recife. Mas os problemas também viriam a galope. Exatamente a faixa Seu Waldir, hoje um cult, como a própria banda, atraiu a ira da ditadura militar, que enxergou na letra uma apologia ao homossexualismo, e determinou que o Departamento de Censura da Polícia Federal recolhesse o disco em todo o território nacional. Um banho de água fria nos planos do grupo. O bolachão voltaria a ser lançado, meses depois, sem a faixa proibida. Mas a mídia já havia desviado seu foco dos pernambucanos. O show Perfumes e Baratchos, em dezembro de 1974, foi o último ato dos garotos que prometiam tanto. Depois disso, o grupo se dissolveu. DAnIELLE RoMAnI
B
n
n
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sexteto
O grupo era formado por Marco Polo, Paulo Rafael, Israel e Ivinho (em pé, da esquerda para direita) e Agrício e Almir (sentados). A moça do centro, que aparece em várias fotos interpretando a “ave sangria”, era tiete e namorada de um dos integrantes do grupo
o disco
Primeiro e único trabalho da banda, o disco Ave Sangria foi lançado em 1974 e recolhido pela censura no mesmo ano. Motivo? Os militares consideraram a música Seu Waldir uma ode à homossexualidade
vocAlistA e letristA
Jornalista e poeta, Marco Polo Guimarães era vocalista, compositor e um dos mais reverenciados da banda, pelas suas atitudes ousadas. É dele a polêmica Seu Waldir, que foi censurada pela ditadura militar
Baú
sAideirA
álbum de fotogrAfiA
Cartaz do último show da banda, que foi realizado durante dois dias no Teatro de Santa Isabel, em dezembro de 1974. Quem assistiu ao show, descreve-o como o melhor realizado pelo grupo. Depois dele, os integrantes foram cada um para seu lado. Nunca mais se reuniram no mesmo palco, apesar de algumas apresentações revival realizadas pelo jornalista e poeta Marco Polo Guimarães
Uma das primeiras imagens da banda, quando ainda adotava o nome de Tamarineira Village. A cena abaixo foi registrada antes de um show realizado no antigo Beco do Barato, nas imediações da rua das Ninfas, na Boa Vista
@ continenteonline Para ouvir a faixa Seu Waldir acesse www.revistacontinente.com.br
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Viagem
FALKLAND ISLANDS Uma Patagônia com acento very british Na rota para conhecer o extremo sul do continente sul-americano, as Ilhas Falkland, mais conhecidas como Malvinas, combinam características culturais da Inglaterra com o cenário desértico e gelado natural da região texto e fotos Márcia Mendes
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paisagem
Casas de tetos coloridos e organização espacial simétrica harmonizam-se com o ambiente patagônico
embarcamos em um cruzeiro de
estilo livre, com um roteiro bemdiferenciado dos demais: conhecer o extremo sul do continente americano. Partimos do porto de Buenos Aires em direção à Patagônia argentina (Oceano Atlântico) e chilena (Oceano Pacífico). No percurso marítimo, a terceira parada do navio foi em território inglês. No dia 9 de janeiro deste ano, desembarcamos na cidade de Stanley, capital das Ilhas Falkland – mais conhecidas no Brasil como Ilhas Malvinas. Logo de início, antes de chegarmos à ilha, fomos aconselhados a não chamar o local dessa forma, pois foram os ingleses que venceram a guerra contra a Argentina na disputa por essas terras, avistadas pela primeira vez em 1592 (leia quadro na página 53). O arquipélago é formado por duas grandes ilhas, a leste – onde está localizada a capital Stanley – e a oeste, e por cerca de 740 ilhotas, a pouco mais de 400 quilômetros da costa argentina. A população é de 2.478 pessoas, mais da metade nascidas no local, e quase 85% concentradas na capital, Stanley. Boa parte das outras ilhas é tomada por fauna e flora características da região da Patagônia, ricas e surpreendentes.
DesemBaRQUe
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LocALIzAção
URUGUAI ARGENTINA CHILE POPULAÇÃO 2,478 habitantes
ILHAS FALKLAND
extensÃO 12.173 km² Stanley
idiOmA inglês
$$$
mOedA Libra das ilhas Falkland (FKP)
Fonte: visitor guide Falkland islands
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O verão patagônico é bem frio, principalmente para turistas vindos do nordeste brasileiro, com a temperatura variando em torno dos cinco graus. Nosso tempo na ilha era de sete horas, então aproveitamos para percorrer a pé o lado leste de Stanley. O navio, uma das outras formas de acessar a ilha além das rotas aéreas, era muito grande para atracar no porto da cidade. Nossa chegada foi através de lanchas salvavidas, chamadas de tander boats, com capacidade para 120 passageiros. Apesar da população da ilha praticamente triplicar com a chegada dos passageiros dos navios, ainda foi possível desfrutar da atmosfera agradável deste território inglês. Ao desembarcar, num dia ensolarado e frio, comecei a caminhar e fotografar o lugar de que antes apenas ouvira falar durante a infância, quando os noticiários da
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Viagem 01
01 stanley
A catedral anglicana e o monumento feito com ossos de baleia são atrações da cidade
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tRanQUiliDaDe
Com pouco mais de dois mil habitantes, o clima no arquipélago é o de uma típica cidade de interior DesemBaRQUe
As lanchas conhecidas como tander boats levam os turistas dos navios a terra firme
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época informavam sobre a guerra entre a Inglaterra e a Argentina pela posse da ilha, que em 1982 era a famosa “guerra das Malvinas”. Hoje, o ambiente é calmo e tranquilo. Falase de algumas minas remanescentes dos tempos de conflito, 117, todas monitoradas, mas que não oferecem risco à população. Os únicos vestígios evidentes da guerra estão nos monumentos, como, por exemplo, no Liberation Monument, construído em homenagem aos militares e civis ingleses mortos durante a disputa. Logo me encantei com a atmosfera geográfica, arquitetônica e histórica da ilha, com casas de tetos coloridos, que tornam o local mais aconchegante e simpático, em contraste com o
visual monocromático da paisagem natural patagônica. Ao longo da caminhada, deparome com igrejas, como a catedral anglicana, que, além de sua belíssima arquitetura, possui um tipo de monumento feito com enormes ossos de baleia. Durante todo trajeto fui surpreendida pelo cenário ao meu redor: de um lado, o casario com arquitetura aconchegante, e, do outro, o mar – à minha frente os relevos patagônicos e toda sua riqueza natural. Também me chamaram a atenção os hábitos da população. As hortaliças consumidas por aqui são plantadas nos quintais das casas, a maioria possui até estufas para o cultivo específico de vegetais. Os moradores costumam armazenar óleo diesel e também
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natUReza
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cUltURa BRitânica
Boa parte dos turistas que visitam as Ilhas Falkland vão em busca da sua rica fauna e flora O Deano’s Bar tem as características dos pubs ingleses, servindo o famoso fish and chips
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penduram suas roupas em varais, para secar na brisa constante que o clima desse lugar oferece. Os jardins com flores de cores variadas embelezam ainda mais a paisagem.
HeRanÇa
A cultura inglesa, evidente no arquipélago, vai além dos limites da língua oficial, o inglês. A moeda corrente é a libra das Ilhas Falkland, com o mesmíssimo valor da terra da rainha. Os telefones públicos espalhados pelas ruas seguem o mesmo padrão vermelho, um dos ícones da Inglaterra, sem falar dos famosos ônibus de dois andares. Os tradicionais pubs ingleses estão presentes no cotidiano da população, com ambientes pequenos e rústicos, onde podemos provar vários tipos de cervejas e saborear o tradicional fish and chips (peixe frito com batatas fritas) da culinária britânica. Porém,
reprODuçãO
GUERRA DAS mALvINAS DISPUTA ENTRE ARGENTINoS E INGLESES DURoU 74 DIAS
a acolhida não é tão calorosa no bar, correspondendo à rusticidade do lugar. A atendente do Deano’s Bar, por exemplo, reclamava do inglês falado por um norte-americano e, quando foi a minha vez de colocar em prática o meu inglês tupiniquim, a funcionária me serviu um espumante, ao invés de cerveja. Entretanto, o contato superficial e às vezes ríspido com os ilhéus não desbancou o prazer da viagem. Às 15 horas, embarcamos de volta ao navio com o sentimento de satisfação, com a experiência única que o passeio pela cidade de Stanley nos proporcionou. Com um cenário patagônico dominado pelos hábitos britânicos, as Ilhas Falkland se tornam um roteiro peculiar na região da Patagônia.
@ continenteonline Confira mais informações sobre as ilhas Falkland no site www.revistacontinente.com.br
Em abril de 1982, instaurou-se uma disputa territorial entre a Argentina e a Grã-Bretanha pela posse das Ilhas Falkland ou Ilhas Malvinas. Desde o século 19, os argentinos reivindicavam a soberania dessas terras, descobertas pelos ingleses em 1592. Aproveitando a pouca atenção dada ao arquipélago pelos britânicos, o governo militar argentino, liderado pelo presidente general Leopoldo Galtieri, resolveu tomar posse das ilhas – indo de encontro ao desejo da população local que pretendia permanecer sob a soberania inglesa. Em março de 1982, navios argentinos rumaram em direção às ilhas dando início à disputa. Eles tomaram a capital Stanley, que foi rebatizada com o nome de Puerto Argentino. Os ingleses tentaram negociar a retirada pacífica das tropas, mas, diante da negativa argentina, iniciaram o conflito bélico, que se estenderia até junho, durante 74 dias, deixando mais de 649 argentinos e 255 ingleses mortos. A força militar inglesa, bastante superior à argentina, desembarcou na principal ilha (a leste) e rumou em direção à capital Stanley, tomada por seus inimigos. No dia 14 de
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junho, a Inglaterra voltava a ter a soberania das Ilhas Falkland. Com o fim da guerra, a ditadura argentina ficou enfraquecida e convocou eleições democráticas em 1983. Já a liderança da primeira-ministra Margaret Thatcher ficou fortalecida. A comunidade local terminou sendo beneficiada, pois com a vitória o governo inglês passou a investir mais na região. A primeira disputa pela soberania das Ilhas Falkland data do século 18, quando espanhóis e ingleses instalaram seus assentamentos na região, abandonando o local em seguida. Logo depois, foi o momento de os argentinos se alojarem nas ilhas até serem expulsos pelos ingleses, em 1833. Esse fato era usado pelo governo argentino como justificativa para seu pleito. Já os ingleses, mesmo tendo abandonado seus assentamentos por um período, não queriam desistir da soberania, usando o forte argumento de que boa parte da população da ilha era britânica e gostaria de manter os seus laços coloniais. Atualmente, as relações diplomáticas entre Argentina e Grã-Bretanha são boas, apesar de os argentinos continuarem reivindicando a soberania das ilhas, algo inaceitável para os britânicos.
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Conexão
Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.continenteonline.com.br
sites de revistas sobre
cinema PIONEIRA
VARIADA
HISTÓRICA
www.contracampo.com.br
www.revistacinetica.com.br
www.cahiersducinema.com
Com mais de 10 anos de atividade, a revista Contracampo traz críticas, ensaios e artigos, num projeto editorial enxuto e bem-realizado.
A Cinética, criada em 2006, se propõe a tratar não apenas de cinema, mas também de televisão e vídeos de internet.
A lendária publicação, em que Truffaut e Godard escreviam, disponibiliza parte do conteúdo da revista impressa para os internautas.
ANDANÇAS VIRTUAIS Lugares para ver e rever o que de bom a web tem para mostrar
ARTE E POLÍTICA
QUADRINHOS
PORTFÓLIO
RARIDADES
Com visual simples, a revista Guernica apresenta conteúdo de qualidade, gratuitamente
Revista mineira reúne desenhistas alternativos do Brasil e do mundo
Artista cria belas cenas a partir de capas de livros, recortes e fotografia
www.guernicamag.com
www.graffiti76.com
www.thomasallenonline.com
Criado pela biblioteca do congresso americano, site congrega artigos históricos do mundo todo
Criada no fim de 2004, a Guernica é uma das mais celebradas revistas de conteúdo online da atualidade. Com periodicidade mensal, a publicação é editada pelos escritores Michael Archer e Joel Whitney e é produzida a partir de colaborações de autores de diversos países. Nas seções do site é possível encontrar ensaios, reportagens, entrevistas, textos de ficção, poesias, galerias de fotografia e arte visuais e uma seleção diária de informações. Dentre os entrevistados pela Guernica, constam nomes como o do ganhador do Nobel da paz e presidente da Costa Rica, Oscar Arias, da atriz Mia Farrow e da jornalista e escritora Joan Didion.
A Graffiti – 76% quadrinhos revela já no nome a sua principal característica: a cada edição, 76% da publicação são reservados para falar de histórias em quadrinhos. A proposta é difundir a arte sequencial e abrir espaço para a experimentação de autores já consagrados – nomes como Liniers, Cau Gomez e Marcelo Lelis - e jovens desconhecidos. No site, é possível conferir alguns dos trabalhos publicados, comprar as edições anteriores e ler – nos 24% de espaço restantes disponíveis para outros assuntos – entrevistas com artistas como Hermeto Pascoal, Tom Zé, Itamar Assumpção e Jards Macalé.
O site do americano Thomas Allen pode ser considerado comum pela proposta: serve para o autor comentar os trabalhos que tem feito e mostrar parte deles. O que realmente se destaca são as obras em si, realizadas com uma técnica criativa: o artista seleciona capas de livros pulp (feitos com papel de baixa qualidade) e recorta, conferindo-lhes a impressão de tridimensionalidade. Acrescentando outros elementos de colagem, Thomas forma cenas dramáticas e belas, fotografando-as com precisão. Além de fazer ilustrações para revistas e capas de livros, o americano lançou recentemente o livro Uncovered, que reúne 27 de seus trabalhos.
www.wdl.org A recém-lançada Biblioteca Digital Mundial disponibiliza, em versões digitais e alta qualidade, uma gama de tesouros culturais de todo o mundo. Podem ser encontrados no acervo manuscritos, mapas, livros, partituras, gravações, filmes, fotografias, gravuras, desenhos arquitetônicos, dentre outras raridades. Na página inicial, um mapa-múndi disponibiliza alguns links distribuídos pelos continentes de origem; no rodapé, uma linha do tempo permite a seleção do período em que foi publicado o documento desejado. O site é bom para estudiosos e curiosos, que não precisam ter cuidado ao “manusear” as páginas amareladas pelo tempo.
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REPRODUÇÃO
BREVIDADES “EU RETIRO” Durante a turnê da banda Oasis pela América do Sul, com shows no Chile, Argentina, Brasil, Peru, Venezuela, o guitarrista Noel Gallagher teceu alguns comentários sobre os espetáculos. No blog Tales From The Middle Of Nowhere, hospedado no Myspace do grupo, Noel, por exemplo, elogiou bastante a passagem pelo sudeste brasileiro. Já em relação a Curitiba e Porto Alegre, o britânico reclamou: “Por que não apenas dois enormes shows no Rio e São Paulo?”. No dia seguinte, despedindo-se do país, Noel disse retirar o que havia falado anteriormente.
RESPOSTA
DE ESBOÇOS A ILUSTRAÇÕES DETALHADAS O site Skine Art reúne produção de desenhistas feita nos cadernos-fetiche utilizados por grandes artistas, hoje chamados de moleskines www.skineart.com
Em 1986, o escritor-viajante Bruce Chatwin, ao descobrir que seu tipo preferido de caderno de rascunhos parou de ser produzido, fez um texto descrevendo as suas características e criou uma alcunha para eles. Sem pretensão, sua atitude deu origem, 10 anos depois, a um dos suportes de desenhos e anotações mais adorados da atualidade: os moleskines. Tão simples quanto marcantes, os caderninhos de acabamento refinado viraram fetiches por suas características básicas: capa dura, tradicionalmente de cor preta (hoje já existem outros tons), cantos de páginas arredondados e lombada costurada, permitindo a abertura em 180°. A fama dos moleskines advém também do fato de serem anunciados como o tipo de caderno usado por artistas como Van Gogh e Matisse. Apesar de continuar servindo para anotações e registros de viagens — uma versão, a City Notebooks, inclui um guia de visitação para as principais cidades do mundo —, os moleskines hoje são bastante usados para a prática do desenho, abarcando desde rascunhos até complexas ilustrações. O objetivo do site Skine Art é, portanto, celebrar essa vasta produção, contando com um imenso acervo de páginas linkadas. No total, são mais de 500 colaboradores de estilos completamente diferentes, e, apesar da falta de um critério específico para aceitação de obras, o site apresenta uma seleção de qualidade.
blogs
Nos seus respectivos endereços eletrônicos, os ilustradores Caco Galhardo e Samuel Casal responderam à declaração do governador José Serra de que o quadrinho Dez na área, um na banheira e ninguém no gol seria de “extremo mau gosto”. Uma das respostas mais bem-humoradas foi a de que a frase seria sensacional como merchandising da próxima edição da obra, chamada de “pornográfica e violenta”.
NOVO WOODY Depois da trinca de filmes realizada na Inglaterra e do recente sucesso Vicky Cristina Barcelona, filmado na Espanha, o diretor Woody Allen retorna a Nova York com a comédia Whatever works, prevista para estrear em novembro no Brasil. A produção, que abriu o Tribeca Film Festival nos EUA, foi definida pelo cineasta como “uma história romântica entre gente excêntrica que, ao encontrar-se, cria muitos conflitos e problemas”. No elenco, nada da musa Scarlett Johansson. Larry David, Evan Rachel Wood e Patricia Clarkson encabeçam o casting. O trailer já está circulando na internet.
FOTOGRAFIA
COMENTÁRIOS
INDEPENDENTE
cameragun.blogspot.com
pedroalexandresanches.blogspot.com
www.innewmusicwetrust.com.br
No Câmera Gun, o fotógrafo Daigo Oliva apresenta seu trabalho, focado principalmente em cobertura de shows, e que cativa pela originalidade. As imagens são de grupos como Radiohead, REM e bandas alternativas de punk.
Pedro Alexandre Sanches, jornalista da Carta Capital, escreve no seu blog sobre qualquer coisa que renda um bom texto - notícias, filmes, livros, perfis e, é claro, música, a sua especialidade.
De nome sugestivo (In new music we trust, algo como Na nova música nós confiamos), o blog é mantido por Denis Pedroso e cinco colaboradores. Lá, a pedida é divulgar músicas de bandas alternativas de todos estilos.
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FUNDAJ Um lugar para fomento e fruição da cultura em suas múltiplas vertentes Fundada por Gilberto Freyre no final dos anos 1940, instituição comemora 60 anos de atividades, em que as ações artístico-pedagógicas efetivam a relação direta com o público TEXTO Fábio Lucas
Fotos antigas, livros e documentos
raros, filmes com quase um século de idade convivem com o melhor da cultura contemporânea, num ambiente em que a tradição histórica é arejada por uma política de formação que privilegia a criatividade e a percepção crítica. Fonte recorrente para estudantes e pesquisadores, a
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) surgiu como instituto em 1949 – idealizada por Gilberto Freyre, tendo como eixos de atuação a pesquisa e a documentação – somente transformado em fundação, por decreto, em março de 1980. Em 21 de julho, a Fundaj dará início a uma série de eventos para comemorar seus 60
anos de atividade. Na programação estão previstos colóquios, seminários, mostras e edição de livros (veja no quadro da página 63). Um dos atributos da Fundaj, vinculada ao Ministério da Educação e Cultura, é contribuir com estudos e pesquisas da realidade das regiões Norte e Nordeste para a difusão
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FOTOS: TIAGO LUBAMBO/DIVULGAÇÃO
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ARTE
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ANIMAÇÃO
Exposições do projeto Trajetórias apresentam ao público pernambucano novos talentos da arte contemporânea Oficina de bonecos e arames realizada pelo departamento de artes plásticas
cultural, na perspectiva de ajudar na estruturação de projetos de desenvolvimento sustentável e inclusão social em diversas áreas. Quase ameaçada de extinção na década de 1990, a Fundaj, naqueles anos, enfrentou as dificuldades advindas dos baixos orçamentos, mas, aos poucos, retomou o papel que lhe cabe como um dos agentes de produção científica e cultural da região. A integração com variados segmentos da sociedade tem proporcionado resultados que o ex-ministro da Justiça, Fernando Lyra, presidente da entidade desde 2003, credita à ampliação das ações de cunho educativo, que promovem maior aproximação com o Ministério da Educação, “Requalificando as nossas unidades de serviço, como o Cinema da Fundação, o Museu do Homem do Nordeste, a Biblioteca Blanche Knopf, o Centro de
Documentação, e criando o Núcleo de Digitalização”. Para Lyra, “O saldo é muito positivo e nos anima a continuar no esforço em torno de tudo o que resta fazer, dando continuidade a um projeto nascido da clarividência de Gilberto Freyre”. A organização de ciclos de palestras e a recepção de artistas e cientistas, ao longo do tempo, fizeram com que surgisse um trabalho cultural que, no final da década de 1970, foi incorporado aos propósitos da instituição. A atuação cultural foi de tal forma desenvolvida, que, hoje, é responsável pela afluência de um público que busca não apenas a fruição de obras artísticas, mas, sobretudo, programas de formação no setor. Segundo o primeiro diretor de cultura da instituição, o escritor e cientista social Frederico Pernambucano de Mello, a
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Em dezembro de 2008, depois de passar três anos e meio fechado ao público, o Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) apresentou a primeira etapa de sua reforma. Hoje, o prédio está às vésperas de uma segunda fase de obras, ainda em licitação. A atual proposta museográfica foi projetada pela arquiteta Janete Costa e finalizada, após o seu falecimento, por seus filhos, Mário Santos e Roberta Borsoi. Além de deixar o prédio mais seguro, com melhores condições de conservação, o projeto acrescentou aos serviços um café e uma loja com produtos baseados no acervo do museu. Novas peças foram adquiridas. Ao acervo, foram acrescentadas em torno de 500 obras, dentre as quais, cerca de 130 vieram de comunidades indígenas do Nordeste, da região do São Francisco. Outras preenchem lacuna: “Não tínhamos nada de cangaço nem de Canudos”, diz Vânia Brayner, coordenadora geral do MUHNE. O museu preocupou-se em prover o acervo, também, com
necessidade verificada na prática coincidiu com resoluções da Unesco, que, à época, caracterizavam a cultura como um instrumento privilegiado de desenvolvimento. “A cultura assumia um papel essencial no esforço de desenvolvimento das nações, dos povos e das regiões. Coube à Fundaj receber esse comando internacional, afeiçoá-lo às suas características locais e somá-lo com o que era sua própria demanda”, conta Frederico Pernambucano, na instituição desde 1972. Nascia assim, em 1980, o Instituto de Recursos Humanos e Promoção Cultural da Fundaj, que, ao longo dos anos, mudou seu nome para Instituto de Promoção Cultural, Instituto de Assuntos Culturais, Instituto de Cultura, atualmente Diretoria de Cultura. E qual era a base conceitual de sua atuação? “Cultura, para mim, na vertente de abrangência máxima
peças de outros estados, pois o foco concentrava-se em Acervo Pernambuco – obtiverampermanente se peças de Sergipe, Bahia, Museu do Homem do Nordeste Ceará e Maranhão. T. (81) 3073.6340 A exposição que inaugurará a segunda etapa contará também com a antiga balança da Fábrica da Pedra de Delmiro Golveia e um tear manual da cidade de Tacaratu, que serão inseridos no contexto da história do algodão e da produção fabril no Nordeste. Quem, hoje, visitar o Museu do Homem do Nordeste verá 800 das quase 15 mil peças do seu acervo, distribuídas numa área de 750 metros quadrados. A exposição em cartaz desde a reinauguração intitula-se Nordeste: territórios plurais, culturais e direitos coletivos, e foi planejada pela museóloga Regina Batista. “A abertura da exposição é um vídeo que mostra o que é o Nordeste hoje, em todas as suas facetas. A gente começa do contemporâneo, para que as pessoas possam entender melhor o passado”, explica Vânia.
A Fundaj surgiu como instituto em 1949, tendo como eixos de atuação a pesquisa e a documentação proposta pela Antropologia, não se bastava na sublimação do espírito que conduz à produção de arte, no campo da denominada cultura expressiva, mas se detinha também na identificação dos processos econômicos de produção, geradores da cultura dita material. Olhar a festa sem esquecer a mesa, vez que ambas as dimensões se interpenetram e fertilizam reciprocamente na existência do homem e das sociedades”, responde Frederico. Ele dá um exemplo. “Você pode
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Museu do Homem do Nordeste requalificado
recolher etnograficamente as práticas do cultivo do fumo no agreste de Alagoas em dado período, olhos postos num processo econômico de produção por excelência, sem desprezar as cantigas entoadas pelas plantadeiras em seu cotidiano de trabalho.” Na opinião dele, nos países com problemas sociais agudos, “Uma entidade de cultura não tem o direito de se resumir a um fomentador das belas-artes ou das belas-letras”. Entre 1981 e 1990, chefiada por Frederico Pernambucano de Mello, a área cultural da Fundaj promoveu cursos de formação de ator, projetos de artes cênicas, ateliê de dança clássica e contemporânea, ateliê de capoeira, e cursos de formação de plateia. Também data desse período a criação do Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges, conhecido como Cinema da Fundação, e uma sala menor
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UM RICO ACERVO
de cinema e vídeo, a João Cardoso Ayres, com estrutura de anfiteatro.
AUDIOVISUAL
Fonoteca Discos da primeira década do século 20, registros antigos da MPB e depoimentos de músicos, compositores e cantores fazem parte de uma coleção com cerca de 17 mil discos (78 rpm e LPs) e três mil partituras. Há gravações de artistas como Nelson Ferreira (foto), Jota Soares e Valdemar de Oliveira.
Rótulos de cachaça Composta de 4,3 mil rótulos de aguardente, oriundos de diversos estados brasileiros, a coleção foi adquirida em 1981 e faz parte do acervo da Coordenadoria de Iconografia, do Instituto de Documentação.
Vídeos experimentais O acervo de videoarte da sala Cristina Tavares (Fundaj/Derby) é formado por 129 trabalhos de 16 artistas. Trabalhos seminais de videoartistas como Marina Abramovic, Bruce Nauman (foto), Gary Hill, Gordon Matta-Clark e Sophie Calle integram o conjunto.
A partir de 2003, com a gestão de Fernando Lyra, e a chegada de Isabela Cribari à diretoria de Cultura, a Fundaj passou a investir mais em audiovisual e artes plásticas. O programa de exposições Trajetórias inseriu o Recife no circuito nacional, trazendo artistas de renome e revelando outros, nacionalmente, como Jonathas de Andrade e Rodrigo Braga. O Trajetórias 2009 acaba de ser lançado, e segue com inscrições até o dia 6 de julho (veja regulamento no site www. fundaj.org.br). Em 2004, foi inaugurada a sala de videoarte Cristina Tavares, com destaque para os 129 títulos adquiridos junto à Eletronic Art Intermix e Video Data Bank, entre os quais constam obras de artistas como Marina
Em 2007, foi implantado o Centro Audiovisual Norte e Nordeste, para produção de cinema nas regiões Abramovic, Vito Acconci e John Baldessari. Na lista dos videoartistas nacionais com obras no acervo estão Anna Bella Geiger e Letícia Parente. O acervo está à disposição do público na Fundaj do Derby (Rua Henrique Dias, 609), gratuitamente, mediante agendamento. Em 2007, foi implantado, também no Derby, em parceria com a Secretaria do Audiovisual, o Centro Audiovisual Norte e Nordeste – CANNE. Este centro disponibiliza, gratuitamente, equipamentos de captação e edição de imagens (câmeras 35mm e HDTV e ilha de edição digital) para a realização dos filmes culturais e independentes das duas regiões. A seleção se dá mediante inscrição de projetos na página da Fundaj (www.fundaj.gov. br/canne). São oferecidos, também gratuitamente, cursos técnicos para profissionais da área (assistência
de câmera, eletricista para cinema, maquinista, cinematografia digital, captação e finalização de som, edição de imagens, cinematografia subaquática, entre outros). Nesses dois anos, a Fundaj contabiliza a capacitação de 400 pessoas do Nordeste. Este ano, os cursos passam a ser oferecidos na região Norte. Na área de fomento, foram lançados concursos de videoarte e de roteiro – Rucker Vieira, para documentário, e os concursos Mário Pedrosa e Nélson Chaves, de ensaios. Este ano, o Mário Pedrosa, sobre arte e cultura contemporânea, que será lançado este mês, com inscrições até setembro, concederá premiação de 60 mil para os três primeiros colocados (30 mil para o vencedor, 20 mil para o segundo, e 10 mil para o terceiro). O Concurso de Videoarte 2009 foi lançado junto com o Trajetórias, e as inscrições vão até 9 de julho.
PENSAMENTO CRÍTICO
O mais recente setor criado no âmbito da Diretoria de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, em 2008, foi a Coordenação de Capacitação e Difusão Científico-Cultural – Cadif, que tem como objetivo sistematizar uma programação de cursos, seminários e publicações sobre a cultura contemporânea. De acordo com a coordenadora, Cristiana Tejo, ainda este ano, a Cadif realizará três seminários de formação crítica. O primeiro, intitulado A crise na cultura e a cultura na crise, discutirá as relações da cultura com o capital, o financiamento cultural e a visão dos produtores sobre a crise. O segundo, A educação além do digital, pretende abordar as novas formas de troca de conhecimento e o ciberespaço como oportunidade educativa. A geografia cultural nos últimos 20 anos, pósqueda do Muro de Berlim, será o tema do terceiro seminário. Três cursos avançados, com duração de seis meses, começaram a ser ministrados este mês pela Cadif: Arte e Tecnologia, Teorias do Contemporâneo e História da Arte Brasileira. De acordo com a instituição, além de gerar pensamento crítico, eles buscam interligar campos de conhecimento.
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Entrevista
ISABELA CRIBARI A CULTURA LIGADA A TRÊS SETORES Responsável pela Diretoria de Cultura desde 2003, Isabela Cribari vem priorizando em sua gestão as linguagens de artes plásticas e audiovisual. Defensora de uma visão integrada da cultura nordestina, ela fala nesta entrevista sobre a importância da liberdade de pensamento crítico e criativo para a arte e para a região. CONTINENTE Como a atividade cultural se incorpora ao projeto de Gilberto Freyre para a instituição? ISABELA CRIBARI - Estimular o pensamento crítico sempre foi função da Fundaj. Na exibição de filmes, por exemplo, temos a preocupação de trazer os realizadores, em promover uma troca de experiências. A democratização do pensamento foi uma marca do nosso fundador. A Fundação foi crescendo, mas não perdeu esse espírito. Em todas as áreas isso deve permanecer. Precisamos trazer a complexidade atual do mundo cultural para debate. Hoje, a cultura não é mais somente aquele conteúdo de expressão simbólica, vai muito além, com três grandes áreas ligadas a ela, que são o direito, a economia e a tecnologia. Essas três áreas estão modificando o fazer cultural.
CONTINENTE Como se insere nesse contexto a cultura nordestina? A visão regionalista ainda tem peso? ISABELA CRIBARI - Eu não gosto muito dos termos que separam. Ninguém ganha com separativismo, só perde. Na hora em que a gente fala de uma cultura nordestina, é como se a cultura nordestina estivesse aqui e as outras, lá. A rede que separa o Nordeste das outras regiões deve ser removida. Toda a nossa tentativa é de integrar, não de separar. E mostrar que a cultura nordestina possui muitas outras coisas além das excelentes rendas e dos excelentes ceramistas. Temos excelentes artistas plásticos, dramaturgos importantíssimos. A música nordestina, hoje, ocupa destaque nacional. O cinema nordestino, especialmente o pernambucano, sem nenhum bairrismo, é um cinema de mercado, autoral, de vanguarda. O Nordeste tem que ser respeitado pela sua cultura de qualidade. CONTINENTE Qual a diferença para o gestor público que vem da área cultural? ISABELA CRIBARI – Quando a pessoa está com seu projeto, vê um universo menor do que o seu projeto consegue alcançar. Quando o projeto chega a uma área de gestão, aparece a cadeia produtiva e o que o projeto pode estimular nela. É um olhar ampliado, com lupa. Quando o gestor já trabalha em algum elo da cadeia produtiva, fica muito mais fácil de enxergar o resto. Há quem defenda que somente gestores assumam as áreas gerenciais das instituições públicas, e, não, artistas. Mas existem aquelas pessoas que trabalham no meio cultural e podem desenvolver um trabalho gerencial. Esse é o perfil mais indicado. Um gestor de planejamento que chega à área de cultura entende muito pouco, e vai precisar de um tempo maior para entender como tudo funciona. E o setor cultural tem um mecanismo de funcionamento próprio. É uma vantagem ser da área. O aspecto gerencial se aprende. Além disso, é importante não olhar
de cima para baixo, mas manter o olhar de companheiros de uma mesma atividade. CONTINENTE Apesar de serem espaços distintos, a recuperação do Engenho Massangana segue a mesma linha da reforma do Cinema da Fundação? ISABELA CRIBARI – Se não tivesse nada na área cultural da Fundaj, eu não instalaria equipamentos municipais, como o cinema, que parte de uma responsabilidade municipal. Mas esse cinema foi instalado e hoje é referência. A primeira providência, quando assumimos, foi melhorar a sua estrutura física. O Estado, às vezes, se preocupa em ser concorrente da produção independente, produzir a sua própria cultura, e esquece que seus equipamentos culturais estão aos pedaços. Nenhum produtor cultural vai fazer isso, porque é a missão principal do Estado cuidar desses equipamentos. Ações excelentes em locais degradados não funcionam. Assumimos, há cerca de um ano, o Engenho Massangana, e a primeira ação, também, é a recuperação física. A partir daí, vamos pensar no uso, em parceria com outras instituições e a sociedade civil. CONTINENTE Como se pode definir a atividade cultural hoje em dia? ISABELA CRIBARI – A cultura está se profissionalizando muito. Antes, era como se fosse a cerejinha do bolo, dava charme agregar uma atividade cultural. Os artistas não podiam viver de sua obra, dependiam de uma atividade paralela, e até da “brodagem”. Hoje, vivemos um momento interessante. No Brasil e no mundo, as áreas estão se profissionalizando, e deixa de haver a delimitação das linguagens: ocorre o inverso, há uma contaminação de linguagens. A dança com elementos de audiovisual, as exposições com performances. As coisas não têm mais limites tão claros como antigamente. É nesse caminho que estamos trabalhando.
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FILME “CABEÇA” Sala de exibição do Derby recebe público cinéfilo Há 11 anos, o Cinema da Fundação atua com programação composta de obras do circuito alternativo e cult, promovendo mostras que destacam filmes de autor Quem não se lembra das cadeiras de madeira, duras e barulhentas, do calor, do contorcionismo para ver a tela, quando alguém mais alto ocupava o lugar da frente? Referência para apreciadores de filmes exibidos fora do circuito comercial – os chamados filmes “de arte”, “cult” ou “alternativos” – o Cinema da Fundação, em poucos anos, mudou de um cinema desconfortável para uma bem-equipada sala de exibição, ganhou a confiança dos distribuidores e conquistou a preferência de um público cativo e exigente. “Muitos, hoje, cobram que a gente traga filmes que nem chegaram ainda ao Brasil”, brinca o jornalista Luiz Joaquim, que desde 2001 é um dos curadores do espaço, ao lado do crítico e diretor de cinema Kleber Mendonça Filho. Criado como Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges, ainda nos anos 1980, o Cinema da Fundação alcançou status de sala especial de filmes de arte em 1998, começando com apenas uma sessão diária, de sábado a terça-feira, e uma frequência semanal de 200 pessoas. O cinema registra, atualmente, uma média de público semanal que varia entre 700 e 1.100 espectadores. Vale lembrar que, com a modernização, em 2005, a lotação caiu de 325 para 200 lugares, com a substituição das cadeiras por poltronas mais largas e filas mais distantes umas das outras. Para o engenheiro eletrotécnico e cinéfilo Wlademir Moura, frequentador assíduo da Fundação, as salas alternativas “proporcionam ao público um convívio diário com cinema de qualidade, sem discriminação e rótulo, tendo como um dos maiores
ganhos a incorporação desse hábito a uma população acostumada com mais do que as monótonas salas comerciais oferecem”.
SEM CONCESSÕES
Para os curadores, o reconhecimento do público é consequência de um trabalho de paciência. “A gente nunca se curvou em função de uma plateia grande, para exibir filmes que não achássemos interessantes”, garante Luiz Joaquim. Segundo ele, o problema agora é o inverso da época do surgimento da sala, com a oferta de muitos filmes pelos distribuidores e uma grade limitada para exibição. Com três sessões diárias e a capacidade reduzida em nome do conforto, o Cinema da Fundação está
As mostras são as mais aguardadas, com reprises dos melhores filmes do ano e antecipação de alguns do ano seguinte se tornando pequeno para a demanda gerada por ele mesmo. O cinema digital também tem seu espaço na sala da instituição, que foi a primeira do Norte e Nordeste a receber essa tecnologia. O que não significa que o formato de 35 milímetros será abandonado. “Cultura não pode ser nunca imposição. São as pessoas que decidem”, afirma a diretora de Cultura, Isabela Cribari. “Há documentários investigativos que não podem ser feitos senão em digital. E há vários filmes que, como linguagem,
precisam ser feitos em 35 mm. Não é papel do Estado definir isso. O artista define o que quer, e por isso ele precisa de opções”, ressalta ela.
MOSTRAS
As mostras são os momentos mais badalados, quando filas de espectadores congestionam o corredor do primeiro andar do campus da rua Henrique Dias, a “Fundaj do Derby”. Dentre elas, a Retrospectiva/Expectativa tem sido a mais aguardada, proporcionando reprises dos melhores filmes do ano que
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Cinema da Fundação
Rua Henrique Dias, 609, Derby
T. (81) 3073.6688
CALENDÁRIO Projetos e eventos programados para o segundo semestre JULHO 3º Concurso de Videoarte Serão divulgados os dois ganhadores do concurso, que pretende incentivar a produção audiovisual. Cada um deles receberá 6,5 mil para colocar o roteiro em prática.
AGOSTO Colóquio Internacional Diálogos Culturais e Cooperação Científica França-Brasil Entre os dias 3 e 7 de agosto, estão programadas atividades acadêmicas e culturais, dentre elas o Colóquio Internacional e a Mostra Especial de Filmes Franceses.
OUTUBRO Projeto Louis Vauthier, Um Engenheiro e Humanista Francês no Brasil Estão previstas três atividades dentro do projeto: lançamento do catálogo/inventário Louis Vauthier: Fontes para o progresso, Pernambuco 1840-1874, que disponibilizará no site da Fundaj conteúdo que abrange o acervo documental sobre engenheiro francês; a exposição Louis Vauthier: Um engenheiro de ciência, arte e idéias. França-Brasil: 1840 – 1901, prevista para o período de 19/10 a 15/12; e o Colóquio Internacional Pontes e Idéias: Louis Vauthier, engenheiro francês no Brasil, entre 19 a 22/10.
NOVEMBRO
finda e adiantando outros que estarão em cartaz meses mais tarde. Em 1998, foram 14 filmes em uma semana. Já em 2001, a seleção de mais de 20 filmes contava mais com inéditos do que com reprises. As mostras internacionais acontecem, geralmente, em parceria com instituições como o Consulado da Itália, a Embaixada da Espanha, o Centro Cultural Brasil-Alemanha. Apesar da fidelidade do público, Luiz Joaquim acredita que ainda falta uma divulgação maior do espaço, durante a programação normal. Por outro lado, há
casos de briga para assistir às grandes mostras anuais. “Com uma equipe maior e duas outras salas, poderíamos fazer uma programação mais quente, com filmes que acabaram de estrear em São Paulo”, diz ele. “Ou fazer sessões em plena madrugada, nos finais de semana, como na Maratona Odeon, no Rio de Janeiro. Mas isso é sonho”, admite o curador. O importante é que, com apenas 11 anos, o Cineteatro José Carlos Cavalcanti Borges inscreveu o nome da Fundação Joaquim Nabuco no circuito de cinema.
Concurso Nelson Chaves de Trabalhos Científicos Sobre o Norte e Nordeste do Brasil Abrange três categorias: monografia, dissertação de mestrado, e tese de doutorado ou trabalho científico de pesquisadores seniores. Para monografia, a premiação será de 5 mil, mais a publicação na Revista Ciência & Trópico ou nos Cadernos de Estudos Sociais. Na dissertação de mestrado, o vencedor será contemplado com 10 mil, mais a publicação pela Editora Massangana. Na categoria tese de doutorado/trabalho científico, o prêmio será de 20 mil, mais a publicação pela Editora Massangana.
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Hist贸ria
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grammy O disco de forró que quase ganhou o “Oscar da música”
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produtor
Zé da Flauta foi responsável pela gravação do disco que ficaria no limbo até ser descoberto por agentes musicais ingleses e norteamericanos
Gravado no Recife em 1980, onze anos antes de concorrer ao grande prêmio internacional, Brazil: Forró não levou o primeiro lugar em sua categoria por apenas um ponto texto Gilson Oliveira
em 1991, uma informação chegou
à imprensa de todo o Brasil, deixando os editores surpresos e desconfiados: um CD de forró tinha não apenas sido indicado ao Grammy, como poderia figurar na relação de finalistas do prêmio na categoria Traditional Folk. Como, à época, ainda não existia o Grammy Latino, criado em 2000, isso significava que forrozeiros estavam concorrendo a um prêmio acirradamente disputado pelas multinacionais do disco e astros e estrelas internacionais. Comprovada sua autenticidade, a informação deixou ainda mais perplexos os jornalistas, ao descobrirem que o disco, na verdade, fora produzido no longínquo ano de 1980, em um pequeno estúdio recifense, e focalizava as obras de artistas desconhecidos até mesmo em Pernambuco. O significado do fato para a história da música brasileira fez com que jornais de várias partes do país lhe dedicassem preciosos espaços, inclusive chamadas de primeira página e capas de cadernos culturais, principalmente no dia da festa de entrega do prêmio, em 20 de fevereiro de 1991. O entusiasmo atingiu também as outras mídias. Em seu programa no SBT, disse Jô Soares, ao se referir a Zé da Flauta,
produtor do disco: “Vou apresentar um pernambucano que conseguiu um feito que nem George Martin, produtor dos Beatles, conseguiu. Ele levou para o Grammy quatro rapazes de Caruaru. George Martin não conseguiu fazer o mesmo com os quatro rapazes de Liverpool”. Uma ideia da repercussão de Brazil: Forró na imprensa internacional – até mesmo antes de concorrer ao prêmio – é dada por uma matéria publicada no Jornal do Commercio de 17 de abril de 1990, assinada pelo crítico musical Heber Fonseca, com o título “A Europa cai no forró, a ‘música para piniqueiras’”. De acordo com Heber, a revista norte-americana Beat assim saudou o disco: “Um perfeito complemento para o atual interesse sobre a música brasileira”. Jonathan Romney, da CD Review, também dos EUA, afirmou: “Meu xodó pessoal, na atual safra de música brasileira, é a compilação Brazil: Forró”. Considerada a “bíblia dos jazzófilos”, a Down Beat veiculou um anúncio do CD, demonstrando que o disco poderia agradar até mesmo aos ouvidos mais exigentes dos States. Uma das pessoas que receberam com maior surpresa essa história toda foi o produtor do disco, Zé da Flauta. Afinal, como imaginar que um dia concorreria ao mais prestigioso
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galardão da indústria da música internacional uma produção em que, por falta de uma zabumba, usara-se uma pequena lixeira, e, em busca de “incrementar” o som, recorrera-se aos corredores do prédio do estúdio para gravar as sanfonas e ao banheiro para o registro de algumas vozes?
primeiros acordes
Já definido como um “caçador de novos sons”, em certa manhã de 1980, o produtor e músico Zé da Flauta – responsável pelo primeiro registro fonográfico de Lenine e de vários outros artistas e grupos – conheceu, por acaso, o cantor e compositor Toinho de Alagoas, que terminou apresentandolhe mais três desconhecidos forrozeiros. Para surpresa deles, em pouco tempo, quatro gravações saíam do forno do Estúdio Clave, pertencente ao produtor. Além de registrar os trabalhos de Toinho, Heleno dos Oito Baixos, José Orlando e Duda da Passira – os três primeiros residentes em Caruaru –, as fitas traçavam um pequeno painel do forró, espécie de guarda-chuva musical que abriga ritmos como baião, xote, xaxado, coco e marchinha junina. A primeira surpresa proporcionada pelas gravações não foi nem um pouco agradável para Zé da Flauta e
reproDução
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História os forrozeiros: nenhuma gravadora se interessou em lançá-las. Seis anos depois, Zé cismou de mexer no fundo do baú e mostrou as fitas ao produtor Carlos Andrade, dono do selo Vison. Por um preço quase simbólico, o carioca comprou as fitas e lançou os discos de Toinho de Alagoas e José Orlando. Artistas desconhecidos, músicas idem, o destino dos long plays não poderia ser outro: dormir, profundamente, nas prateleiras das lojas. Acontece que, num belo dia de 1989 (tem sempre um belo dia nessa história), “Carlão” foi visitado pelo consultor musical das gravadoras independentes Globstyles (da Inglaterra) e Rounder Records (Estados Unidos), o norte-americano Gerald Seligman, que viera ao Brasil em busca de novidades e terminou colocando na mala as gravações dos quatro forrozeiros.
Não deu 15 dias e Seligman ligou de Londres para Carlão, dizendo que a Globstyles gostara de quatro gravações do Vison. A vibração do produtor só não foi maior do que a decepção que veio a seguir: “Não brinca, rapaz! Eu te boto na mão parte da nata da música brasileira e vocês decidem lançar o pessoal do forró!... Olha: só quem ouve esse tipo de música aqui no Rio é empregada doméstica e chofer de táxi...” Em contato com Zé da Flauta, Seligman terminou soltando que, para Carlão, o forró era um tipo de música consumida apenas por empregadas domésticas e taxistas. “É isso aí: pode botar no disco que ele foi produzido para esse pessoal!”, respondeu Zé. E foi assim que surgiu o nome do CD lançado na Inglaterra em 1990, compilando os trabalhos dos quatro forrozeiros, Brazil: Forró – Music for maids and taxi drivers, significando o “sobrenome” do disco “música para empregadas domésticas e motoristas de táxi”. “Como o forró nasceu do povão, funcionava até como marketing chegar ao mercado inglês voltado para esse segmento. Mas eu sabia que, como no
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xilogravura
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todos juntos
Capa do lp, que se tornou CD na versão internacional, teve seu projeto gráfico premiado. marcelo Soares é o autor da gravura raro registro de todos os integrantes reunidos. o grupo se dissolveu já na década de 1990, tendo um dos músicos se tornado protestante
Brasil, o forró poderia interessar ao lado mais culto da sociedade europeia. E não deu outra: o disco começou a ser divulgado em todo tipo de mídia”, comenta Zé. Primeira produção de forró no formato CD – em terras brasileiras os discos do gênero ainda estavam na era do vinil –, Brazil: Forró mostrou, logo ao ser lançado, que estava disposto a provocar muitas e boas surpresas. Ilustrado com uma xilogravura do caruaruense Marcelo Soares, conquistou o prêmio de melhor capa de lançamento estrangeiro. A entrada em grande estilo do disco em território anglo-saxão atraiu a atenção da revista Veja 28 Graus. Em tom brincalhão, disse o repórter Renato Ferraz, em reportagem de janeiro de 1991: “Sinead O’Connor, Lisa Stanfield e o grupo INXS dividem o sucesso no disputadíssimo mercado musical inglês com companheiros inusitados: quatro forrozeiros que nunca saíram das fronteiras do agreste pernambucano”. Pouco depois, o CD chegaria ao Japão, Canadá e aos Estados Unidos, onde foi lançado pelo selo Rounder Records e, sem que ninguém saiba explicar exatamente como, terminou desfilando – de mãos dadas com empregadas domésticas e motoristas de táxi – sobre os tapetes grammyanos.
“greme... isso É Bom ou ruim?” A quase surrealista história do CD Brazil: Forró tem entre seus melhores capítulos as inesperadas reações que a informação sobre o Grammy gerou entre os forrozeiros – que sequer sabiam da existência do prêmio. O primeiro para quem Zé da Flauta telefonou a fim de dar a notícia foi
arquivo peSSoal/ zé Da flauta
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Duda da Passira: “Duda, você agora é internacional! Você está no Grammy!”, disse o produtor, sem maiores explicações. Depois de um pequeno silêncio, o sanfoneiro respondeu: “Quer dizer que nós estamos no Greme... Ô Zé, isso é bom ou é ruim?” Heleno dos Oito Baixos foi o segundo procurado pelo produtor, que mais uma vez disse à queima-roupa: “Você agora é internacional! Você está no Grammy!”. Ex-jogador das equipes de base do time do Central, Heleno terminou respondendo: “Zé, eu não estou jogando bola mais não... Mas me responda uma coisa: é Internacional ou Grêmio?” Terceiro forrozeiro a receber a notícia, dada da mesma maneira, José Orlando ficou um tempão repetindo palavras, como se tivesse imitando um disco arranhado: “E é, né, Zé?... E é, né, Zé?... E é, né, Zé?...” Mas o melhor da história viria com Toinho de Alagoas. Para início de conversa, ele não tinha telefone e o produtor teve que viajar para Caruaru a fim de contar as boas-novas. Logo ficaria claro que, para o forrozeiro,
“boas-novas” agora significavam, literalmente, “Evangelho”. Toinho foi encontrado na Feira de Caruaru, com uma Bíblia na mão, em pregação religiosa. Ao lado dele, uma mesa com suco de fruta e coxinhas de galinha, com que sustentava a família. Muito receptivo de início, o cantor mudou totalmente de tom ao surgir o tema forró: “Eu agora só canto hino evangélico. Meu ministério não é mais o do diabo, e, sim, o do Senhor”. Àquela altura do campeonato, a notícia de que um disco de forrozeiros caruaruenses poderia ganhar o maior prêmio musical do mundo – coisa que não acontecera nem com Luiz Gonzaga, o “Rei do baião” – já havia provocado um grande alvoroço na cidade. O próprio prefeito da época – o hoje vice-governador de Pernambuco, João Lyra Neto – se dispôs a apoiar a produção de um clipe com a música escolhida pela americana Rounder Records como carro-chefe do CD: No balanço da canoa, de Toinho, que seria regravada por Alceu Valença. Difícil era convencer o cantor a participar do filme, o que foi tentado até
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por repórteres de várias partes do país. Um apelo que tocou o artista foi o de Letícia Lins, do Jornal do Brasil: “Se Deus lhe deu esse dom é porque Ele quer que você sirva a Ele cantando forró!”. Pouco depois, Toinho diria: “Antes de assumir compromisso com Jesus, eu assumi com Zé da Flauta”. Tudo certo para a gravação do clipe, na Feira de Caruaru, uma equipe de 25 profissionais se deslocou do Recife com toneladas de equipamentos. Integravam o grupo o cineasta Lírio Ferreira – que, pouco tempo depois, junto com Paulo Caldas, produziria O baile perfumado – e o ator Aramis Trindade, hoje no elenco de artistas nacionais da TV Globo. Mas, chegada a hora da gravação, “Cadê Toinho?” era a pergunta que todos se faziam. Depois de longa busca, ele foi encontrado na rodoviária, de onde fugiria para outra cidade. A gravação, no entanto, ficou para o dia seguinte, aumentando os custos da produção com novas diárias em hotel e demandas outras. Desta vez, para convencer Toinho, prometeu-se até mudar o roteiro do clipe, que começava mostrando
arquivo peSSoal/ zé Da flauta
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comemoraÇÃo
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surpresa
na noite em que foi entregue o Grammy, zé da flauta encontrouse com Hermeto pascoal, que fazia show em nova York reportagemd e capa do caderno B do Jornal do Brasil revelava que os músicos desconheciam o prêmio
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História bonecos de barros representando quatro forrozeiros, que, por efeito de animação, cantavam e tocavam. Mexer no roteiro, ninguém mexeu, mas Zé da Flauta deu uma interpretação bem livre do enredo: “Você estará no filme como num sonho, lembrando do tempo em que vivia no forró, antes de se tornar um homem salvo. Não esqueça, Toinho: é só um sonho, um sonho!..” A equipe somente se esqueceu de combinar a história com os outros evangélicos, que, naquele horário da manhã, circulavam em grande quantidade pela Feira. Logo, um deles gritou espantado: “Aquilo é o irmão Toinho cantando forró?!”. Rapidinho o cantor foi cercado pelos religiosos. Dirigindo-se à inesperada platéia, Toinho começou a gritar, nervosamente: “Tão ficando idiotas, é? Vocês não tão vendo que isso é só um sonho?!” Com todos os atropelos, o clipe foi concluído e terminou muito bemrecebido na festa do Grammy, da qual os forrozeiros não participaram por falta de apoio para aquisição das
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passagens. Apenas os produtores marcaram presença, assumindo os custos da viagem.
Foi por pouco
Apenas um ponto. Essa foi a diferença da votação entre os CDs Brazil: Forró e On prayng ground, que conquistou o Grammy em 1991, na categoria Traditional Folk. Produzido pelo norte-americano Doc Watson – um veterano ganhador do prêmio –, o disco vencedor recebeu 56 dos 111 votos dados pelos membros da National Academy of Recording Arts and Sciences. Os 55 restantes foram para os forrozeiros. “Depois da série de acontecimentos fantásticos, começamos a achar que tudo era possível para o disco, inclusive ganhar o Grammy. Mas, vendo a grandiosidade da festa de premiação, conscientizei-me de que já havíamos chegado ao máximo. Ir além, seria contrariar os interesses de grandes conglomerados empresariais”, diz Zé da Flauta. Embora não tenha conquistado a estatueta do “Oscar da música”,
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a chegada à finalíssima do prêmio elevou o prestígio e ampliou a projeção do forró. Uma das pessoas que mais vibraram com o fato foi Hermeto Paschoal, que – por mais uma das incríveis coincidências que acompanharam a história de Brazil: Forró – na noite da grande final do Grammy fazia show em Nova York, junto com Egberto Gismonti. Terminada a solenidade do prêmio, no Radio City Music Hall, de Manhattan, Zé da Flauta decidiu assistir à apresentação dos brasileiros na Blue Note, “o templo do jazz nos Estados Unidos”. Ao saber da presença do pernambucano, Hermeto decidiu prestar uma homenagem, improvisando uma versão de Asa-branca. Antes de tocar, o “bruxo dos sons” disse: “Estou muito feliz, porque a música de minha terra conseguiu se destacar no Grammy”.
@ continenteonline Ouça algumas faixas do disco Brazil: Forró – Music for maids and taxi drivers, que quase ganhou o Grammy no site www.revistacontinente.com.br
flora pimentel
Sonoras
SEMENTE DE VULCÃo Violão, craviola, bandolim... E atitude rock’n’roll
Grupo acaba de estrear sob evidentes influências de Secos e Molhados e Ave Sangria, além de uma pitada da fase setentista de Alceu Valença texto Thiago Lins
Alguma coisa parecia ter acontecido na última quinta-feira de abril. Naquela chuvosa véspera de feriado, a Semente de Vulcão tocou num bar do centro do Recife em condições inóspitas. Mas músico que se preze sabe que nesse ramo nada sai dentro do previsto, e a banda fez o melhor que pôde. O suficiente para
cativar bêbados no fundo do bar, que alternavam elogios com palavrões. Já na frente do palco, uma mulher ameaçava roubar a cena com uma dança esotérica. O que não ocorreu por causa do carisma de um certo João Menelau, 25. João é daqueles homens de frente que leva os jornalistas a cometerem
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excessos poéticos: mais cedo ou mais tarde, alguém vai acabar adjetivando sua performance de transcendental. Afeito a caras e bocas, o corajoso vocalista, compositor e violonista consegue definir bem seu estilo numa frase simples: —Não tenho frescura. E ninguém na banda tem. Apesar de numeroso (são seis: Ruan Andrade, 20, baixo e voz; Marcelo Araújo, 22, violão e voz; Leonardo Stegman, 30, violão, craviola e bandolim; Rostan Junior, 26, e Anderson Lopes, 26, percussão, além de João), o grupo consegue manter regularidade de ensaios, mesmo que os integrantes ainda precisem se virar em seus respectivos empregos. Embora a banda já tenha construído um repertório razoável, eles estão juntos há pouco mais de um ano. João e Leonardo estavam deixando seus conjuntos anteriores
INDICAÇÕES sabiam – e aquele bando de alucinados maquiados devem incomodar as mentes das criancinhas até hoje. “Ninguém bateu palma, todo mundo ficou com medo”, lembra Leonardo. Já em outro evento, numa livraria, João – o performático – sugeriu que o grupo subisse ao palco “com cara de doido” e depois fingisse rezar. Em princípio, os outros integrantes discordaram: alguém poderia ter uma crise de riso no palco. Mas acabaram cedendo. João é o primeiro a entrar e não falha em cena. Já o grupo, que deveria segui-lo, desiste na última hora. Terminado o transe simulado, o vocalista olha para os lados e percebe que ficou sozinho. E outro show começa com imprevistos. Com sete faixas, a bolachinha que leva o nome do grupo contém doses certas de psicodelia e regionalismo, suficientes para criar uma identidade – sem barrar outros (o primeiro tocava frevo elementos, a exemplo da e o segundo, hardcore) Tropicália. Títulos como Boi e começaram a trocar encantado e Morena do espaço figurinhas, especialmente dão uma ideia da temática depois que Leonardo “vulcânica”. apresentou a lendária Ave João e Leonardo são Sangria ao vocalista. Junto letristas acima da média, com Secos e Molhados como sugere O vício: e a fase setentista de “Caminho difícil tens a Alceu Valença, a antiga percorrer (...) controla banda de Marco Polo é teus simples problemas/ uma influência maior no maiores dilemas hão de caldeirão da Semente. aparecer”. A propósito O grupo foi formado do título da faixa, “por basicamente por um mais que possa parecer”, círculo de amigos. Time como sublinha Leonardo, fechado, gravaram um EP substâncias relaxantes não em novembro passado compõem a química do e vêm angariando grupo afiado. É nada mais shows – e histórias. A do que a loucura da arte. primeira apresentação, que fizeram na sede do @ continenteonline SESC Pernambuco, era Ouça músicas da Semente de Vulcão no site www.revistacontinente.com.br para crianças. Eles não
MPB
LEILA PINHEIRo E EDUARDo GUDIN Pra iluminar – ao vivo Tacacá Music
MPB
DANIEL TAUBKIN Sertão negro organismo vivo
a paraense leila pinheiro e o paulistano eduardo Gudin lançam o primeiro CD em parceria. a trajetória dos dois se cruza, mais uma vez, nesse novo disco, Pra Iluminar. nele, leila canta e toca piano, interpretando muito bem os samba-canções. Com mais de 40 anos de carreira, eduardo Gudin, além de tocar violão e cantar, assina todas as 17 músicas do disco, junto a alguns parceiros de renome como paulinho da Viola e paulo Vanzolini.
Sertão Negro é o quinto disco do cantor, compositor e instrumentista, Daniel taubkin. Quase 100 músicos se reuniram para a composição deste trabalho, que, ao contrário do que se possa imaginar, não se mostra carregado. o CD tem canções próprias de taubkin e outras, de Chico Buarque (Tem mais samba), Dorival Caymmi (O dengo que a nega tem), além da valsa Caprichos, que na letra mistura versos de Castro alves com fagundes Varela.
MPB
POP
universal
EMI
MARIANA AYDAR Peixes, pássaros, pessoas Sob a alcunha de nova voz da mpB, mariana aydar despertou a atenção da crítica e do público em 2006. a cantora paulista chega agora ao seu segundo álbum, Peixes, pássaros, pessoas. influenciada pelo samba, a artista continua apostando no gênero, sem negligenciar a mistura de estilos. mariana aydar também se inicia nas composições das faixas Palavras não falam e Aqui em casa. Com produção de Duani e Kassin, o disco conta ainda com as participações de Zeca pagodinho e mayra andrade.
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PARALAMAS Do SUCESSo Brasil afora terceiro disco dos paralamas do Sucesso, após o acidente do Herbert Vianna, este não traz inovações musicais, mas reforça a vocação do grupo para canções suingadas, baladas com letras de qualidade e ecletismo – que pode ser ouvido na participação especial de Zé ramalho, na faixa Mormaço. o trabalho alterna momentos calmos com baladas aceleradas, como Tão Bela e Brasil Afora, que agradarão os apaixonados pelo som dos paralamas das antigas.
REPRODUÇÃO
Leitura
Flávio Moreira da costa
vampiros De gota em gota, de gótico em gótico
Nova edição da coletânea Contos de vampiros reúne 14 histórias que têm o fascinante Conde Drácula como protagonista e algoz texto Amílcar Dória Matos
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não para. Ele é mais do que um trabalhador cultural, no sentido de que, além da sua própria atividade de ficcionista, crítico e poeta, tem um faro especial para estender as asas de sua contribuição à difícil e paciente arte de captar lampejos de fogo literário onde se insinue o mais tênue sinal de fumaça. Daí sua proeminente presença de antologista, de garimpador de textos quase sempre vinculados a uma temática geral, sendo ele organizador de títulos como Os melhores contos da América Latina e Os grandes contos populares do mundo. É o caso deste Contos de vampiros – 14 clássicos escolhidos (em verdade, uma edição ampliada de 13 dos melhores contos de vampiros, de 2002), no qual, com o selo da PocketOuro (Agir Editora) envereda pelos caminhos sombrios e fascinantes do vampirismo.
Por que o fascínio? O próprio livro é pródigo em informações sobre o assunto, que tem atravessado séculos da história humana, a partir da premissa de que “o sangue é a vida”. Estaria aí uma das explicações para sua persistência, sem dúvida intrigante e aparentemente contraditória, numa época em que os avanços assustadores da ciência vêm conduzindo à mecanização humana. Com isso, seria de esperar que histórias como as de vampiro, mesmo as sofisticadas versões cinematográficas (que a elas acrescentaram características dos tempos modernos e futuristas), teriam vencido seu prazo de validade. Não têm, como se sabe. É que toda essa sofisticação muitas vezes preserva a ambientação “transilvânica”, com seus pântanos e florestas arrepiantes, seus bosques misteriosos e seus castelos feudais com torres levadiças e fossos alagados.
Ocorreria, assim, uma volta ao o que ameniza a tragédia que o passado campesino, suas superstições acompanha. Sempre e para sempre. e crendices, às estradas poeirentas por Daí o fascínio, que, aliás, onde se agitam diligências puxadas comparece, por exemplo, ao panteão por estranhos corcéis, não menos de heróis cósmicos e ídolos da estranhos que seus cocheiros malespionagem, por mais absurdos assombrados. Ambiência tão bem e risíveis. A ficção moderna não retratada em Carmilla, de Sheridan Le descarta os vampiros, como não o Fann, uma das peças de sustentação faz em relação ao noir, ao insólito e do volume; como também o é o ao gótico em geral. Lembre-se, como célebre conto A morta apaixonada, ressalta o autor, que Edgar Allan Poe de Théophile Gautier, ao abordar a cultuou, no século 19, “de forma paixão de um pároco pela vampiresa inaugural”, o terror e o policial. E seu Clarimunda. Se, nesta pequena conto Berenice, também aqui incluído, obra-prima de criação psicológica, tornou-se um clássico literário. estão ausentes os arquétipos acima Com relação à permanência de referidos, nela não escasseiam raposas interesse pelo tema nos últimos e corujas, água benta e aspersórios, decênios, mencione-se o sucesso tudo envolto em atmosfera alcançado pela novelista Anne Rice fantasmagórica. e sua saga vampiresca, iniciada em No livro, como não poderia 1976, com Entrevista com o vampiro, e a deixar de ser, ganha relevo a figura atual expectativa, sobretudo dos mais imortal do conde, antagonizado jovens, em torno do romance entre o por crucifixos, alhos e estacas. E “vampiro vegetariano” Edward Cullen o sol. E o fogo do sol. É um mito e a pálida Bella Swan, protagonistas recorrente. Imbatível, como o medo de Crepúsculo, Lua nova e Eclipse, criação ancestral do homem. É o medo que da estadunidense Stephenie Meyer, remonta às cavernas, aninha-se que deverá se estender por um total de no subconsciente e se contrapõe cinco volumes. aos inimigos, visíveis e invisíveis, Interessa observar ainda que, entre os quais o mais temido deles, embora haja papel protagônico a morte, a extinção definitiva. de mulheres em Contos de vampiros, Talvez esteja exatamente na representando o gênero entre os imortalidade a autores, figuram atração exercida apenas a inglesa Mary pela sanguinária Elizabeth Braddon (A figura de Drácula. É boa senhora Ducayne) e verdade que, pelo a estadunidense Mary menos em algumas Eleanor Wilkinsversões, ele se sente Freeman (Luella Miller). infeliz, e injustiçado, E a provar que de perseguido e traído, subliteratura não se o mais solitário dos trata, Flávio Moreira seres, destinado a da Costa, com esta sofrer por toda a antologia, rasga o eternidade. É também véu das trevas onde verdade que seu se movimentam instinto de vingança autores de todos os contos de vampiros ombreia com a inveja tempos e personagens Flavio moreira da dos seres normais. inesquecíveis; costa (org.) É ainda verdadeira antologia, diga-se, que Agir sua implacabilidade não escapa a cochilos Coletânea reúne 14 contos quando se trata de e senões, tanto de autores de vários países e enfrentar os que se lhe nas apresentações épocas, em que se evidencia a opõem. Mas tudo isso como nas traduções, ambiência sombria das histórias de terror e suspense. Trata-se de faz nele emergir um o que poderá ser uma reedição, acrescida de mais lado sofrido, o aspecto corrigido em futuras uma história, de 13 dos melhores amoroso ou romântico empreitadas do contos de vampiros, de 2002 em sua crueldade, gênero, se houver.
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quaDrinhos parceria entre manara e pratt em Verão índio
Narrativa traz confronto entre os peles-vermelhas e os puritanos que colonizaram os EUA, a partir de briga entre uma família e uma tribo de índios
REPRODUÇÃO
texto Danielle Romani
Leitura o veneziano Hugo Pratt foi um mestre na criação de roteiros de aventura, todos dotados de uma encantadora aura de mistério e toques de existencialismo, além de autor de um dos personagens mais charmosos das histórias em quadrinhos, o inabalável e impenetrável Corto Maltese. Milo Manara, nascido na cidade de Luson, também sabe manejar bem uma pena para escrever belas histórias, mas seu forte foram (e são) as curvas sinuosas e traços precisos de suas femmes fatales, retratadas à perfeição na série Clic. Autorais, os dois artistas sempre trabalharam sozinhos – com exceção da também magistral parceria entre Manara e Federico Fellini em Viagem a Tulum – pois, diante da particularidade de suas temáticas e maestria dos desenhos, podiam se dar ao luxo de criar o que bem entendiam, de delirar e envolver, cada qual à sua forma,
leitores do mundo inteiro. Mas dois encontros uniram esses artistas especiais, que alçaram a velha bota – juntamente com o também italiano Guido Crepax – a uma grande referência entre os criadores de HQs. O primeiro trabalho assinado em conjunto foi El Gaucho, lançado no Brasil em 2006 pela Conrad Editora, em que narram a conquista dos pampas argentinos. O segundo, Verão índio, acaba de sair do forno da editora paulistana, e também retrata a saga dos conquistadores europeus contra índios, só que desta vez ambientado no velho oeste, na Nova Inglaterra, atual Estados Unidos. Profundo conhecedor da colonização e do período histórico retratado em Verão índio, Hugo Pratt (1927–1995) nos oferece um roteiro primoroso, enxuto, e mostra o confronto dos peles-vermelhas com os puritanos que colonizaram os
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EUA. A história retrata a briga de uma família contra uma tribo de índios, mas vai além: aborda o puritanismo dos colonizadores, fazendo menções à cidade de Salem, onde, à época, aconteceram julgamentos contra supostas bruxas. A ênfase deste trabalho é o registro histórico, um olhar sobre terras e culturas desconhecidas. Marca indubitável dos roteiros e preocupações de Hugo Pratt. Mas certamente por se tratar de uma parceria com o genial Manara, pelo menos nesta narrativa, em particular, sobram cenas eróticas e sexuais, com lindas mulheres exibindo seus corpos e ardendo em sensualidade. Uma bela obra, que foi lançada originalmente em 1987 e chegou a ser eleita na década de 1990 como uma das 100 melhores HQs do século 20. Um trabalho que comprova o talento e genialidade dos dois mestres da arte sequencial.
DiVUlgAÇÃO
Resenha
REPRODUÇÃO
mario vargas llosa erotismo e imaginação
Crítica de arte
REVISTA TATUÍ CHEGA MAIS ROBUSTA AO Nº 5
publicado em 1988 e reeditado no Brasil pela Alfaguara, é uma boa chance para se entrar em contato com literatura de primeira qualidade e passear pela verve e talento do peruano Mario Vargas Llosa, que no livro brinca e desafia o leitor a enveredar pelos caminhos do erotismo, do amor escancarado, sem pudor. Ora o amor adulto, repleto de sons, cheiros, boas e más intenções, sexual, carnal; ora o amor que acaba de ser descoberto, inflama-se de longe, que se intui, nutre-se de mil fantasias, que não é permitido, o que espreita, o que suspira. O inebriante amor proibido. O leit motiv já está no título do livro: a paixão de um adolescente pela bela e balzaquiana madrasta Lucrecia, que inspira no enteado, Alfonsito, as primeiras labaredas do amor erótico. Mas tanto nesta jornada, a dos calores e loucura que inflamam o garoto, como na do seu pai, dom Rigoberto, que igualmente se incendeia
ao descobrir com a segunda mulher um mundo cheio de prazer e volúpia, Vargas Llosa não descreve uma só cena explícita de sexo. Pelo contrário: sacode e inebria a mente alheia lançando mão de imagens mitológicas, de descrições de cores e aromas, da transcrição dos pensamentos e sentimentos mais escondidos, da voz “proibida” interior que insiste, muitas vezes, em nos fazer pensar coisas que não queríamos – ou não devíamos – deixar passar por nossos pensamentos. Mas que vez por outra emergem... Toda essa profusão de emoções, de impressões, é repassada por Llosa através de capítulos curtos, rápidos, em que entremeia a história de Lucrecia, seu marido Rigoberto e o enteado Alfonsito, com a narrativa de histórias e mitos eróticos, a exemplo de Diana (Ártemis) e sua amante Justiniana, ou de Caundales, rei da Lídia, e de sua esposa Lucrecia. Um livro apaixonante. danielle romani
DiVUlgAÇÃO
Elogio da madrasta,
Publicar tem sido o modo mais eficiente de legitimação. A Tatuí tem buscado esta legitimação na crítica de arte desde 2006, quando lançou seu primeiro número. De um produto improvisado, a revista tem amadurecido ao longo do tempo. Não há periodicidade definida, mas o investimento no que a publicação chama de crítica imersivas. As editoras são artistas plásticas e esperam construir um pensamento crítico experimental a partir do vínculo estreito entre prática e teoria. Neste número 5, a proposta lançada foi a de “problematizar a relação que a produção artística brasileira tem instaurado com o ‘passado’ ”.
Crônica social
A SãO PAUlO DE MENOTTI DEl PICCHIA As crônicas estão quase sempre ligadas aos costumes, são relatos que depõem em favor de um tempo. É através das crônicas do modernista Menotti Del Picchia que a arquiteta e urbanista Ana Claúdia Veiga de Castro vai registrar a São Paulo dos anos 1920. Os textos do escritor, publicados diariamente no Correio Paulistano, entre 1919 e 1930, criam uma imagem da “cidade moderna” que começava a formar-se. Na obra A São Paulo de Menotti Del Picchia – arquitetura, arte e cidade (Editora Alameda, 296 páginas) somos apresentados a uma cidade, através de textos e fotos, que caminha para tornar-se uma metrópole.
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experimental Zambo e Conceição partem em temporada europeia Dois dos 20 espetáculos de autoria do grupo foram escolhidos para representar seu repertório em apresentações pela Espanha, Portugal e Itália texto Bernardo Valença
imagens: Divulgação
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o Grupo experimental de dança contemporânea surgiu em 1993 e, desde então, vem criando espetáculos com temas voltados, quase sempre, à cultura pernambucana. Em junho, o grupo viaja pela Espanha, Portugal e Itália com dois dos seus 20 espetáculos autorais, Zambo e Conceição. “A música já tem seu espaço lá fora, Pernambuco está muito mais fora do que dentro do país. Talvez este seja um momento da dança abrir canais e ver perspectivas futuras para outros convites”, espera Mônica Lira, diretora e coreógrafa do grupo. O motivo da escolha dessas duas peças é, segundo ela, “Pontuar a carreira do Experimental, exibindo dois espetáculos que são marcos na trajetória do grupo”.
Zambo, estreado em 1997 e remontado em 2003, teve grande repercussão nacional, chegando, também, a se apresentar no Equador em 2006. Nessa viagem, os integrantes do grupo estabeleceram trocas culturais positivas com grupos de dança de outros locais; “os bailarinos estrangeiros queriam aprender a fazer os movimentos peculiares de Zambo, ficavam todos curiosos quando nos viam dançar”, conta Helijane Rocha, bailarina mais antiga do atual elenco da peça. O sucesso da apresentação deve muito ao contexto em que ela foi lançada. Impulsionada pela morte do líder do Movimento Mangue, Chico Science, a coreografia foi
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uma tentativa de colocar para fora o sentimento de alguns integrantes do Grupo Experimental que eram próximos ao cantor. “Foi uma forma de conviver com a perda de Chico”, afirma a diretora do grupo. O resultado final da obra, porém, abrange mais do que apenas esse sentimento de amargura; ele reflete sobre a arte de Pernambuco, passando por suas diversas manifestações, questionando, inclusive, o futuro da abertura cultural promovida pelo manguebeat. O espetáculo se utiliza de alguns sons ao vivo. Nas primeiras apresentações, nos anos 1990, o próprio Jorge du Peixe, atual vocalista da Nação Zumbi, era quem tocava alfaia, instrumento
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presente em muitos momentos de Zambo. A peça envolve elementos culturais que estão na base criativa do Movimento Mangue. Dentre esses elementos, a capoeira, o maracatu, o caboclinho e o rock compõem as danças, intercaladas por momentos de silêncio, que simbolizam o luto pela morte de Chico. O nome Zambo, sinônimo de mestiço, faz referência ao Dr. Charles Zambohead, nome do cientista imaginário criado por Chico Science, que experimentava ritmos africanos, também presentes no espetáculo, com as sonoridades e conceitos da estética mangue. Os movimentos em Zambo são emblemáticos: os bailarinos utilizam golpes de capoeira, passos
que lembram a pisada do frevo e uma dança referente às performances que Chico fazia no palco, lembrando o caranguejo (símbolo do manguebeat).
ReLiGioSiDADe
Já Conceição é uma metonímia da religiosidade: a peça parte da festa de Nossa Senhora da Conceição, que acontece anualmente no Morro da Conceição no Recife, para mostrar os sentimentos religiosos individuais.“Nao queremos contar a história da festa, o espetáculo é baseado nas sensações que foram vistas e vivenciadas pelos bailarinos nas idas à festa do morro”, explica Christianne Galdino, produtora do Grupo Experimental.
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ConCeição
Zambo traz alguns elementos que estão na base do movimento mangue apesar de ser um espetáculo recente (2007), foi uma das peças com a qual o grupo mais viajou
Tendo os bailarinos como coautores, a criação das cenas foi feita preservando seu caráter intimista. “Tem muito da pessoa, de suas crenças, de seus sentimentos. Mesmo os bailarinos que chegaram depois da peça pronta recriaram alguns passos referentes aos seus sentimentos”, explica Helijane. Nessa coreografia predomina a dura caminhada pela salvação, pelo perdão da santa. A dança sugere o pagamento de promessas e a dificuldade em carregar o peso do pecado durante a longa subida da ladeira do morro. O próprio elenco, ora fazendo o papel de pecadores, de chão ou da própria santidade, preenche toda a cena, que se utiliza apenas de um simples cenário ao fundo. A luz é um elemento muito importante, os vermelhos enfatizam a dor da religião, o sacrifício pela fé, e contrastam com as luzes mais amenas e com escuridões em cena. Dentro do contexto da festa religiosa, o som de tossidas e pigarros, inseridos na trilha criada por Tomas Alves de Souza, da banda Profiterolis, representa a triste condição humana, também figurada no esmoleiro de caneca na mão, que pede moedas à plateia. Conceição teve sua primeira apresentação em 2007, no Teatro de Santa Isabel, e, embora esteja saindo do Brasil pela primeira vez, foi uma das peças com a qual o Grupo Experimental mais viajou. Terminando essa turnê internacional, patrocinada pelo Funcultura, o grupo parte para novos projetos, ainda em fase embrionária. “Terá a ver com a cidade, mais com o Bairro do Recife”, aponta Mônica, que, assim que acabar as apresentações no exterior, pretende iniciar os trabalhos de pesquisa. “Estou mais preocupada com o tempo, com a história, com o que é e o que foi esse bairro. Mas também terá a ver com as pessoas do local, que trabalham e vivem aqui há anos”.
TEREZA DOURADO (VITÓRIA DE SANTO ANTÃO, 1925 – RECIFE, 2009)
MATÉRIA CORRIDA José cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
A gente chega a certa altura da
vida que mesmo que não faça como declara nosso grande compositor e poeta Levino Ferreira no soneto “Coluna dos Mortos”, “De preferência leio, reverente, /A coluna dos mortos nos jornais”, a coluna vem até nós como quem diz: prepara-te. No número anterior falei da perda do meu colega de colégio e de pintura, a quem devo ter seguido o rumo que tomei na vida, Ivan de Albuquerque Carneiro (Recife, 28/06/l929 – Rio de Janeiro, 12/02/09); mais recentemente, Maria Tereza Dourado (18/12/1925 – 11/04/2009). Tereza fez da pintura local uma extensão de sua casa, uma coisa doméstica, como se não distinguisse pintor de amigo. A relação comercial, que ela não descuidava, de límpida e imutável honestidade, se transformava numa consequência natural de que nem se precisava falar. Embarcando conosco numa viagem em que o
coração era quem mandava, uma espécie de Père Tanguy se podemos fazer essa comparação sentimental, via cada quadro como um acontecimento sagrado, dádiva divina, carta do céu, presença do alto, manifestação de amizade e paz, prova da existência de Deus, conseguindo transmitir isso ao cliente que entrasse em sua casa, porque a galeria dela sempre foi em sua casa de morada, da qual ele visitante sairia impregnado tanto da pintura que via nos quadros quanto da fidalguia da dona da casa. Esse o seu grande aval, seu tácito juízo crítico se assim podemos dizer. Ela passava para os quadros o respeito que ela própria inspirava. Na sua humildade fundamental, sentia-se dignificada com o quadro que expunha. Sua sinceridade não conhecia dúvidas nem reservas, aquilo que no meu tempo de colégio se chamava “respeito humano”, medo da interpretação alheia filha da
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ignorância e má-fé, pequenez enfim. E Tereza sempre foi grande. A sua cultura artística saía sem que precisasse citar ninguém; se exprimia nesse ar que se respirava no seu ambiente não lá muito grande, uma escrivaninhazinha encostada na parede, uma cadeira de balanço, nada que intimidasse ninguém. Mas seu olho não errava: com exceção deste que escreve, nunca expôs um pintor ruim. Aqui acolá era que sua escolaridade vinha à tona burlando o absoluto pudor. Nunca fez alarde de nenhuma novidade. Qualquer quadro que entrasse em sua casa logo se compunha com os outros como se fizesse parte de uma coleção particular de altíssimo nível que se poderia chamar de “suíte Tereza Dourado”: Gil Vicente, Eduardo Corrêa de Araújo, Guita Charifker, Luciano Pinheiro, Maurício Arraes, Roberto Ploeg, André Nóbrega e tantos outros, sem esquecer
arquivo josé cláudio
tereza fez da pintura local uma extensão de sua casa, uma coisa doméstica, como se não distinguisse pintor de amigo
o seu amado José de Barros, pintor de primeira grandeza, falecido há alguns anos na flor da juventude e que está a merecer se faça um levantamento de sua obra. Se alguém diz que adquiriu um quadro em Tereza Dourado é como se não coubesse dúvida quanto ao valor do mesmo, como se fosse uma segunda assinatura, não importando preço maior ou menor de acordo com a quilometragem do pintor no mercado: se é Tereza, é bom. A exceção foi uma lojinha que alugou numa galeriazinha na Rua do Chacon onde fiz uma exposiçãozinha de presépios, imitando o Irmão Afonso, que todo ano expõe seus presépios de mesmo feitos com palhas do serrado de Itaguatinga onde mora e santinhos trazidos da Alemanha; os meus, quadrinhos de pequena dimensão, para ajudar na crise, que a pintura sempre esteve em crise, mas nos saímos bem. Certa vez também o “soupé” virou
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banquete estrondoso com a exposição que ela fez comigo e com Gil Vicente sobre o quadro “Saudades” de Almeida Júnior, uma de suas antigas predileções da arte brasileira, no Museu do Estado, no prédio da frente, esvaziado para isso, onde ela trouxe até o Governador Miguel Arraes, as salas entupidas de quadros e foram vendidos todos! Ela não tinha nenhum perfil de socialaite: o light dela ela luz e era leve, fazendo questão de manter o perfil de classe média do interior, muito diferente de locomotiva da capital. Numa dessas travessias da vida quando, depois de anos de exclusivo do marchand Renato Gouvêa desfizemos o contrato, sofri uma ressaca: há quem não adquira quadro meu até hoje por conta dessa minha recusa de burlar a exclusividade. Houve uma reserva dos compradores. Quem rompeu essa reserva foi Tereza Dourado. Saudades.
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ensaio Francisco Brennand prepara livro em que destaca pinturas Artista, que este mês completa 82 anos, apronta trabalhos e seleciona obras de seu acervo para publicação de Escrito na porta, que deverá ser lançado em 2010 texto Fernando Monteiro
À imagem e semelhança das culturas mais ou menos “inseguras”, a nossa ainda persegue a si mesma. Historicamente, ela sempre se procurou num espelho de três raças (no mínimo), e prosseguiu na busca de sinais autóctones com quase comovente incerteza de si própria, olhando em pelo menos três direções diferentes. Esse sentimento é que explica, por exemplo, todas as hesitações tateantes da confusa Semana de Arte Moderna de 1922, numa ponta – antiga, já –, enquanto, noutra ponta, torna-se a chave também para se entender aqueles que, como Ariano Suassuna, sonham com impor ao Brasil o que eu chamaria de uma “mitologia de emergência” (por não possuirmos uma autonomamente nossa). Claro que não dá certo, não é por aí, não é bem assim que se processam as coisas – pelo menos na cultura. Esse assunto é o primeiro que se cruza, necessariamente, com o da pintura de Brennand, uma vez que esse pernambucano universal também “gozou”, digamos, do desconforto (é essa a palavra exata?) que se introduz na alma de todos os artistas originais que, “neste país” das máscaras de ferro, não se lançaram somente pelas estradas esquizofrênicas das perguntas, de 500 anos, sobre quem somos. A resposta, na pintura de um Brennand, não foi – reconheçamos, desde já – para um país, para uma cultura apenas, ali no gueto do seu
ateliê, no qual continuou pintando, mesmo depois de considerado uma espécie de pintor lateral, cujo nome segue ligado a algo como um néon acendendo e apagando: “Cerâmica – Ceramista – Cerâmica”. Na realidade, nem sequer podemos dizer que ele tenha querido responder às perguntas angustiantes (em torno de si mesmo, como cultura), que o Brasil sempre fez – e continuava a se fazer na altura em que o jovem Francisco retornou da sua primeira viagem à Europa, com influências do velho continente que quase todos tomaram como tatuagens menores, a posteriori, no Movimento de Cultura Popular e outro de uma época tão rica, ideologicamente, quanto perigosa para a liberdade essencial – ou radical – de um artista. Aliás, não há liberdade que não seja radical, no melhor sentido da palavra liberada dos antigos “patrulhismos”. Bem, seja como for, naquele retorno é que se pode dar por começado o caminho do pintor Francisco Brennand, evoluindo por conta própria, com a máscara de ferro não voluntariamente na face e a elegância – elegante demais – de não dizer: “Não, eu não sou propriamente o ‘ceramista’ do conforto identificatório dos outros”. Pelo contrário, ele aceitou elogios que lhe estreitavam – e ainda lhe estreitam – a inequívoca realização artística maior do que os encômios. Tem culpa no cartório dessa coisa toda. (É difícil se desvencilhar do abraço do
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artista jovem
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Autorretrato como cardeal inquisidor é óleo sobre tela, datado de 1947
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tamanduábandeira que vem nos afagar com limites disfarçados, com tesouras cortantes sobre a zona do eixo do talento, enquanto atiram-se facas de sombra na água dos pincéis todos os dias lavados.) Há uma história a se contar – sempre há – enquanto os cães passam e a caravana ladra.
moeDa Da alma
A “história” se inicia quando Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand, sozinho com o seu nome luxuoso, com as suas leituras, os seus pintores admirados, os seus filmes vistos e revistos, veio a assumir a solidão de criador que marca a vida de todos os artistas verdadeiros (são tantos os falsos, hoje em dia, que adjetivar como “verdadeiro” é não menos que importante – para que se saiba ao que nos referimos). Ninguém – entre os que não são de barro falso – assume algo assim sem pagar caro, em moeda da alma, e
arranjando algum sério problema para si mesmo, no dia-a-dia prosaico que os artistas (mesmo os maiores ou mais verdadeiros, repita-se) também vivem. A verdade é simples, quando se resolve dizê-la como quem diz: “Há aviões no céu que já não nos protege”. Decolando, de novo: a história se inicia naquele ambiente artístico –
a “história” se inicia quando o artista assume a solidão de criador dos artistas verdadeiros nacionalmente falando – que colocava questões bem postas (e impostas) nos anos de 1950 para 1960, se não um pouco mais além, até a data fatídica do golpe militar de 1964 e os anos que vieram com bloco de chumbo envolvido em gaze molhada. Voltemos com o filme do Brasil a se perseguir como um doido no espelho.
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A cena da vida brasileira que, então, se nos apresenta – no que diz respeito a Brennand –, fora do centro desfocado, é a de um pintor pernambucano de família rica e perturbada na zona de sombra dos conflitos que dividiam a sociedade, reproduzindo o modelo do Brasil do “retrato na parede”, à procura de si próprio, atrapalhado pela origem e confundido por elogios ao que ele ainda não sabia se era o centro ou o fundo da obra que estava tentando arrancar do massapê, sempre movediço, da juventude. A frase é longa como a memória é curta. Brennand sabia que nenhum homem amadurece sem a dor de se descobrir só, nas Antilhas das viagens interiores, feitas para se perder (tudo é para se perder) e para se perceber como Robinson se autopercebe, na ilha de antes de Sexta-Feira. Brennand é um Crusoé que teve o Segunda-Feira e o Terça, o Quarta e o Quinta (além do Sexta) na sua saison en enfer de pintor crescendo em semissolidão povoada de vozes. Tais vozes inicialmente diziam que era vital e necessário afirmar, por
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Na alcova, acrílica de 1995, é uma das pinturas em que se destaca o enquadramento inusitado
O pântano, acrílica sobre tela, é um dos trabalhos realizados pelo artista nos anos 1980
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exemplo, a “brasilidade” da obra – em qualquer linguagem – antes dos Juízes Sem Rosto se permitirem apreciar uma coisa, artisticamente. Era assim. Muitos paravam o andar da carruagem de uma boa crítica (não só sobre ele), para analisar se o criador em questão acaso seria ou não seria “brasileiro”... Ao longo do tempo, é claro que a expressão artística brennandiana, levada para a cerâmica – por influência indireta do pintor (sempre a pintura) Picasso –, foi se impondo pelo menos ao olhar atraído para a Várzea, no lugar onde se ergue a imponente e quase desconcertante Oficina Cerâmica criada, pelo pintor, com plena consciência do que ela significa (ninguém pretenda entender a Oficina mais do que o próprio artista a entende). Dou como exemplo este trecho de uma carta que Francisco nos enviou no dia 9 de agosto de 1993: “Como eu lhe disse, a Oficina é uma estrutura frágil, quase uma miragem, podendo até desaparecer com um simples olhar de gente estranha. De um estranho sobretudo que penetre nessa parte secreta do segredo, nos 22 anos de
sua existência, desde aquela tarde de novembro em que caminhei solitário por entre as ruínas, escapando das urtigas brancas, cobertas de pêlos ameaçadores, que vicejavam entre sucatas de máquinas, tijolos escamosos e madeiras carcomidas, desde esse primeiro olhar, pude adivinhar o casulo fechado: um universo paralelo, incognoscível.” Fecha aspas. Prosseguindo: de modo que está tudo muito bem quando se trata da escultura cerâmica de FB, vista pelo viés do mundo concentrado na velha fábrica restaurada e convertida em oficina produtora de beleza artística e de cerâmica utilitária, povoada das figuras do criador “dionisíaco” que o bom crítico Olívio Tavares de Araújo descobre como Cabral descobriu o Brasil, claramente afirmando a importância maior da escultura, no caso do pernambucano.
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Quanto a mim, prefiro acompanhar o próprio artista, que sempre se disse pintor, embora nem por isso tenha conseguido convencer ninguém (ou
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quase ninguém) a levar ao pé da letra a declaração não só sincera, mas verdadeira e justa. Reiterada, repetida à exaustão, a autodefinição ainda hoje encontra ouvidos distraídos pelos olhos fixados no conjunto escultórico-arquitetônico, entre as fumaças da Várzea. Com tudo isso eu quero dizer que se trata – a pintura de FB – do terreno indevassado no qual alguma obsessão “profana” não só se tornou crônica (o deus, no radical da palavra) como também compensada e redimida por algo como um culto das formas, da representação das coisas, tramado com aquele senso de religiosidade profunda do mundo pagão esquecido no qual todas as artes serviam para apontar no sentido do Alto como do Baixo, desde a “tábula esmeralda” do Trimegisto – que permanece enigmática – ao culto eleusino centrado na existência breve e intensa da carne, Dionísios solto no jardim do que ainda não era “pecado”. Mais de dois mil anos de cristianismo praticamente apagaram tais lembranças, ou sufocaram os conteúdos remotos de uma celebração
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Duas meninas espreitam o espectador em Jogos da infância, acrílica sobre duratex de 1991 artista escolheu a pintura Pequena jardineira (1991) para ilustrar a capa do livro
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O lobo figura como um contraponto ao repertório de pinturas de mulheres
Visuais como a grega primitiva, por exemplo, da qual até os austeros cristãos primitivos puderam retirar alguma coisa (naturalmente transformada em outra – com certeza bem menos interessante). Porque tais reminiscências voltam, nos finais de era (e o século 20, por sua vez, ainda não acabou, mesmo diante das Duas Torres caídas em pó, sob o relógio do terror), uma vez que tudo tem a ver com tudo, no círculo do tempo, e aqui está um artista que se situa, como pintor, numa esquisita dobra entre o muito novo e o muito velho, entre a hora passada e a hora futura prestes a se dissolver num mostrador, derretendo-se como aquele de um quadro – do espanhol Salvador Dali – popular como um gadget da arte mercantilizada, fetichizada e, ao fim e ao cabo, esvaziada de conteúdo “por aí”. O relógio de Dali ainda marcava uma piadinha ácida, posta em alta por um mestre talentoso e cobiçoso. O relógio daqui, entretanto, o tal que não marca as horas do desconhecimento da pintura de mestre
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Francisco Brennand, é um instrumento do sol do trópico que só parece rir quando dói (ou é o contrário?). Aviso aos navegantes (ou aos montanheses da planície): não se enganem com a palavra “trópico”, logo depois de “selvagem”. Esse pintor não está naquela tradição mais domingueira da arte de Pindorama, ele não é um Cícero Dias espalhando cores exaltadas, e, nunca-jamais, o pintor dos sonhos brasileiros de simplificação das coisas, com a alegria botocuda de muitos dos seus pares laboriosamente dedicados aos temas compreensíveis e/ou “encaixáveis” em grupos de assuntos constituídos por gatos e cangaceiros, mulatas e místicos, casario e jangadas, mulheres e homens vestidos de sol na pintura lunar que ele prefere praticar, distante da preocupação imediata com o Brasil ou com cenas da prosaica vida brasileira, como tema – pois Brennand é, por todos os títulos, um pintor fora de tempo, fora de lugar e, acima de tudo, fora de sequência no corpus da arte que tanto mudou (para sempre, ao que parece) nos últimos decênios.
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Não se pode tomar senão assim todos os quadros da já citada série que ele chamou de Chapeuzinho vermelho ou as recriações irônicas de Suzana e os velhos, séries pintadas com uma novidade do olhar para o qual ainda precisamos encontrar classificação crítica – se é que tal coisa ainda importa.
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Nessas séries, há moças perseguidas por algum personagem equívoco – geralmente pisando, fortemente, o chão realista da Oficina – ou simplesmente encaradas pela maldição da pintura: revelar um rosto, apanhar um gesto, crucificálo contra a luz, sendo que a perna de uma menina se arqueia para que ela possa se empinar, como se a torção da ginástica lhe impusesse um gesto artificial; ela é um modelo e uma pessoa real, ela examina uma foto como se não estivesse nua, a carne treme sob a luz, e Brennand, implacavelmente, a refrata na unidimensionalidade que dirá sempre: “Somos frágeis e temos apenas a sensação sexual a nosso favor”.
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Ele fixa as moças com uma piedade que só adquiriu na maturidade, comovido de vê-las na juventude sem tempo – o passado e o futuro são duas abstrações para os moços –, antes da marca da vida se insinuar pelo baixo ventre dos acontecimentos (Marilyn Monroe perguntando e dizendo, em The Misfits, de Arthur Miller/John Huston: “Do que você depende? Eu dependo do próximo acontecimento”)... Brennand se tornou um pintor da ação – a ação interior – no interior do tempo e revelada pelo corpo, despudoradamente. Nem por isso lhe peçam que pinte um painel sobre a invasão do Iraque – porque tudo que se passa no interior dos seus quadros (com mulheres, geralmente) é tão secreto que somos convidados, pelo tratamento do artista, a nos manter além da cerca, fora das vistas, contemplando um gesto que não se completa ou seguindo uma mulher por um beco interminável, uma metáfora da falta de saída da vida, um modo de pintar que foi, em parte, também o modo de filmar de Mário Peixoto, para expressar o
Brennand é um pintor fora do tempo, fora do lugar e da sequência no corpus da arte que tanto mudou Limite, a prisão das algemas do corpo como lâmpada acesa na sala onde a moça nos defronta com o olhar das mulheres: culpado de tudo, e de tudo inocente, seja numa garota da noite tornada “viúva” precoce – na série brennandiana das Viúvas, literalmente – ou numa ginasta que ainda não saiba das traições do corpo que nos sustenta, única realidade visível, tudo que temos e não temos, como numa outra série (a da Juventude estudiosa) ele nos ensina, ironicamente. A liberdade pessoal dessas “séries” trafega em todas as direções possíveis, na pintura. Um artista só pinta assim quando chegou à plena maturidade do seu meio de expressão principal, razão de ser da sua vida e obsessão que ele
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mantém, ainda. Pensa na escultura – com o seu “coração de pintor” pulsando como no dia, seis décadas antes, no qual recebeu o Prêmio do Salão de Arte de Pernambuco (com o quadro Segunda visão da Terra Santa, 1947) como se houvesse escalado um Everest. Havia montanhas mais altas no seu caminho secreto – trilhado como se ninguém o percebesse na luta, já renhida, com a Baleia Branca da pintura. Talvez ingenuamente, passa pela minha cabeça que ainda se pode reverter um tanto desse desequilíbrio crítico entre o peso da cerâmica (conforme é vista pelos outros) e o centro sinérgico da sua pintura tomada, até aqui, como uma atividade de backstage (idem). É o contrário. Ou, se não é bem o contrário, se as duas vertentes da sua obra estão perfeitamente equilibradas sobre a balança do talento para ambas as expressões, o fato é que a cerâmica veio, toda, da pintura que subsiste sob ela. Não se trata de tentar conciliar antinomias, porém, antes, de descobrir no mínimo a complementaridade de uma linguagem em relação com a outra, sendo a pintura a expressão precedente na proto-história do artista que começou frequentando, em 1945, o ateliê do pintor e restaurador Álvaro Amorim, um dos fundadores da Escola de Belas Artes de Pernambuco (juntamente com Balthazar da Câmara, Mário Nunes e Bibiano Silva). Francisco Brennand é, essencialmente, um pintor, e, nessa esfera da sua criação, tal qualidade se revela de muitas maneiras – nenhuma das quais, infelizmente, óbvia como um gatinho olhando para uma moça tocando alaúde ou alguma natureza realmente mais morta do que viva numa mesa quadriculada de amadores (com um violão em cima, ou uma jaca madura). Nada contra as jacas. Nada contra os gatos. Nada contra o violão, o alaúde, a mesa, e, principalmente, contra a moça. Eu não conheço nada sobre o que valha a pena se escrever que role pelo trilho engraxado das obviedades próprias do gosto da maioria de nós, índios disfarçados de brancos, mas tenho o privilégio e a sorte de estar escrevendo sobre um pintor de temas inusitadamente
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Espaço Cícero Dias
Exposição DEstACA murAis Do pintor pErnAmbuCAno
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Visuais simples, nas suas pinturas e nos seus desenhos, nas suas pinturas-desenhos e nos seus desenhospinturas (as classificações explodem debaixo do sol escuro de Francisco), colagens, assemblages, escolham um nome e façam as suas apostas. Qual arte sobreviverá ao “século da Horda”? A dos gatos nas mesas dos violões das moças em cima dos alaúdes? Ou dos alaúdes em cima das mesas dos gatos dos violões das moças... Francisco Brennand é um pintor, e isso está escrito na sua porta, para todo mundo saber que adentra o mundo de um pintor pintando seus pesadelos. Reais e noturnos, belos e estranhos como o encontro de uma guilhotina
com uma máquina de passar a ferro a máscara de seda que pesa mil quilos de chumbo sobre a face do “ceramista” por cima do rosto do pintor que segue pintando como se a crítica e o público acompanhassem esses quadros que irão sobreviver ao século 21 – não tenho medo de afirmálo neste país de tantos medos de afirmações e tantas certezas de negações que traem crenças e credos estéticos e nãoestéticos. Prossigo com o estudo da obra pictórica de Brennand – que é o núcleo do livro intitulado Escrito na Porta, a ser publicado no próximo ano – mesmo que a caravana mais do que nunca ladre. Recife, 11 de maio de 2009, exatamente a um mês dos 82 anos de Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand.
eDuaRDo QueiRoga/Divulgação
até o dia 28 de agosto, a sede da secretaria da Fazenda de Pernambuco (sefaz) é palco da exposição Cícero Dias – 60 anos dos primeiros murais abstratos da América Latina. a mostra conta a história dos nove murais – que retratam as paisagens do engenho, da praia e dos canaviais (no detalhe) – pintados no local pelo artista durante suas férias no Brasil, em 1948. o evento, parte do Projeto Cícero Dias, 100 anos do artista – 60 anos da obra, em parceria com a Fundação gilberto Freyre, marca a inauguração do espaço Cícero Dias, que fará parte do circuito que leva o nome do artista e inclui o Marco Zero, a Casa da Cultura e o primeiro atelier do pintor, no Recife, localizado na avenida Martins de Barros.
Sobreposições
QuEiroGA obsErVA CAmADAs Do tEmpo são apenas dez imagens, ampliadas em média e grande dimensões. nelas, eduardo Queiroga registra as camadas de tempo impressas nas paredes da cidade. “a imagem traz o acúmulo desses vários instantes. Como um inventário de tempos percorridos,” escreve o fotógrafo em apresentação à mostra. o local escolhido para o registro da cidade-palimpsesto foi o Bairro do Recife, onde essa história visual é facilmente encontrada nas fachadas de um casario que registra os vários usos dele feitos. apropriadamente, a exposição, que tem entrada franca, ocorre na galeria arte Plural (Rua da Moeda, 140, fone: 81. 3424.2231), até 28 de junho.
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Claquete continente junho 2009 | 89 8
Jean charles Estreia nacional
www.imagemfilmes. com.br 26 Jun
jean charles História do eletricista morto como se fosse um terrorista Filme estreia no Brasil, trazendo Selton Mello no papeltítulo do mineiro que se tornou conhecido depois de ter sido assassinado “por engano” pela polícia londrina texto Olívia Mindêlo
em 2002, um eletricista nascido no interior de Minas Gerais seguiu a sorte de outros tantos brasileiros: arrumou as malas e atravessou o oceano. Com o espírito dos que acreditam na linha do horizonte e esperam o melhor do lado de lá, partiu em direção ao Reino Unido. Juntou-se aos milhares que deixam o país todo ano, quase sempre com o mesmo propósito – o de “tentar a vida”. Estima-se que cerca de 200 mil brasileiros vivam na GrãBretanha, a maioria espalhada entre as mais de oito milhões de pessoas que habitam a capital inglesa. Jean Charles de Menezes seria mais um entre eles, não fosse a má sorte de acabar confundido com um terrorista, no dia 22 de julho de 2005. Quase quatro anos após seu assassinato pela polícia londrina, o mineiro que já foi tema de livro (Em nome de sua majestade, de Ivan Sant’Anna) e de música (We’re all criminals now, da Pet Shop Boys) volta agora como protagonista de cinema, num filme com estreia nacional marcada para o dia 26 de junho. Nem documentário, nem docudrama. Uma ficção baseada em fatos reais. É assim que os roteiristas definem Jean Charles (Brasil/Inglaterra, 16 mm, 90 minutos), produção que chega ao país em 200 cópias. Ainda não há previsão de quando entra continente junho 2009 | 89
em cartaz na Europa. Aqui, o longametragem deve reavivar o rebuliço da opinião pública em torno do caso que ficou conhecido no mundo inteiro. E é provável que a figura de Selton Mello no papel-título empurre o filme para perto da população que está do lado de cá. A direção é de Henrique Goldman, autor do script com o jornalista Marcelo Starobinas (ex-BBC Brasil). Ambos são brasileiros radicados em Londres e já estavam na cidade quando Jean Charles foi baleado na estação de metrô de Stockwell (sul da capital inglesa), durante a desastrosa operação antiterror dos agentes da Scotland Yard. Entre explorar o caso judicial de uma vítima inocente, que pôs em maus lençóis a fama da polícia inglesa, mas não a puniu; ou adentrarse na vida da comunidade brasileira da qual o eletricista fazia parte até ser assassinado, o diretor ficou com a segunda opção. Ele já havia conduzido a história de um transexual brasileiro radicado em Milão no longa Princesa (2001), e agora estava interessado em partir do caso Jean Charles para tocar novamente na vida dos seus conterrâneos imigrantes – os outsiders por quem confessa ter fascínio. São os que largam tudo no Brasil para sobreviver no exterior atrás de balcão de cozinha ou pendurado
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Claquete em andaime – como era o caso do eletricista. O filme aponta suas lentes justamente para esses anônimos que fazem um “outro Brasil” fora daqui, sem, no entanto, perder foco do seu personagem principal. Caso contrário, Goldman poderia ter escolhido tantos outros exemplos da comunidade brasileira, mas ter como mote alguém que virou celebridade depois de morto, por um motivo tão acintoso, era um trunfo para qualquer diretor. E o cinema, sabemos, não costuma desperdiçar chances assim. “Poderia ser outra pessoa da comunidade, mas aí não ia ter a mesma força. Jean tem uma dimensão dramática, ficou conhecido no mundo inteiro pelo absurdo que aconteceu. Até hoje é notícia em jornais daqui e de fora”, comenta de Londres Marcelo Starobinas, que tem este roteiro como o primeiro do seu currículo. O diretor completa a defesa: “O nome do Jean Charles virou símbolo de alguns dos temas mais importantes da atualidade: imigração, fundamentalismo religioso e guerra ao terror. Tudo isso faz parte do nosso filme, que mostra uma história pessoal colidindo com um momento histórico – a era Bush. Essa interação entre o singular e o coletivo é o que mais me interessa quando procuro uma história para contar”.
BeM-ReLAcionADo
A insistência no viés brasileiro dentro desse contexto tem a ver com a própria origem do longa. Em 2006, Goldman havia começado a produzir um drama televisivo encomendado pela BBC britânica para lembrar um ano da morte do mineiro. Mas o cineasta ficou incomodado com o rumo do trabalho, que tendia a recair sobre o erro da polícia, numa ótica inglesa, e não na realidade brasileira fora do país, o tema que lhe interessava de fato. No meio das filmagens, o projeto caiu e ele resolveu partir para a produção independente do filme. “Foi o Fernando (Meirelles, diretor de Cidade de Deus e Ensaio sobre a cegueira) quem me passou a bola da BBC, que não vingou. Conheço ele há muitos anos. Fomos câmera do Ernesto Varella, personagem interpretado pelo Marcelo Tas. Foi bom não ter rolado, porque provavelmente teria sido um filme bem chato”, revela o diretor, um paulista radicado em Londres há 18 anos. Goldman é um cineasta bemrelacionado. Para este filme, por exemplo, conseguiu colocar na sua equipe o inglês Stephen Frears, um dos que assinam a produção executiva. Para quem não lembra, Frears é o nome por trás de filmes como A rainha (2006) e Ligações perigosas (1988),
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ambos premiados com o Oscar. Do lado brasileiro, o diretor pescou o rosto conhecido de Selton Mello. Consagrado por suas atuações além-Globo, como Lavoura arcaica (2001), O cheiro do ralo (2007) e Meu nome não é Johnny (2008), o ator não hesitou em aceitar o convite do diretor para viver Jean Charles, procurando, segundo ele, se colocar no estigma de um brasileiro trabalhador, “sonhador”, que manda dinheiro para a família e sente saudades de casa. A maior preocupação do ator foi não causar nenhum constrangimento
Diretor havia participado de uma produção da BBc sobre o caso Jean charles que acabou naufragando aos parentes do morto. Esse, aliás, foi também um cuidado desde o processo de feitura do roteiro, calcado em entrevistas com pais, primos e outras pessoas ligadas a Jean Charles. “Mas nem tudo que está no filme é verdade, nem tudo é mentira”, adverte Starobinas, desde 2000 em Londres. De acordo com ele, o roteiro passou
INDICAÇÕES 01 RecoRte
longa-metragem enfoca o curto período que antecede a morte do eletricista
Drama
Documentário
LINHA DE PASSE
JOGO DE CENA
o cotidiano da empregada Cleuza e seus quatro filhos na periferia de São Paulo é o ponto de partida de Linha de passe, terceiro longa realizado pela dupla Walter Salles e Daniela Thomas. os sonhos e as frustrações do quinteto são o combustível da trama. Melhor atriz no Festival de Cannes de 2008, Sandra Corveloni lidera um elenco inspirado, sob coordenação da preparadora Fátima Toledo. Foram realizados diversos testes até que os atores fossem definidos.
Eduardo Coutinho colocou no jornal um anúncio em busca de mulheres que topassem contar um fato marcante de suas vidas. Depois chamou atrizes consagradas e outras desconhecidas para interpretar tais relatos. Também pediu que as atrizes contassem momentos de suas trajetórias. o resultado é um impressionante mosaico de histórias. Jogo de cena faz o espectador acreditar na ficção, para depois impor a força da realidade.
De Walter Salles e Daniela Thomas Com Sandra Corveloni, Vinicius de oliveira universal Pictures
De Eduardo Coutinho Com Marília Pêra, Fernanda Torres, Andréa Beltrão Videofilmes
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por 12 versões diferentes até chegar à atual. “Sou um contador de histórias. Faço cinema para poder contar verdades com a liberdade da mentira”, reforça Goldman. Ele, aliás, optou por mesclar no elenco atores não profissionais, alguns vivendo o papel deles mesmos, como é o caso de Maurício Varlotta, patrão brasileiro de Jean Charles em Londres, e Patrícia Armani, prima dele. “Abrimos as portas para deixar a realidade, com todas as suas imperfeições, invadir a tela”, diz Goldman. As cenas foram rodadas em Londres e Paulínia, cidade do interior paulista que se vestiu de Gonzaga (MG), a terra natal do protagonista. O ponto de partida são os últimos momentos de Jean, dividido entre a atenção aos primos Alex (Luís Miranda), Patrícia (Patrícia Armani) e Vívian (Vanessa Giácomo), recém-chegada
do Brasil à Inglaterra, e a busca por novos “bicos” para sobreviver na capital inglesa. No dia em que sai de casa com a promessa de um novo trabalho, a fatalidade cruza seu caminho. A partir daí, o filme narra o desfecho da tragédia e a luta da família pela justiça. Para Starobinas, o longa não “carrega as tintas” em favor de Jean Charles. Em vez disso, diz, tenta fazer com que a história fale por si. O próprio tema da xenofobia, um dos maiores efeitos colaterais do combate ao terrorismo e aos imigrantes na Europa atualmente, passa longe de Jean Charles. Na ficção, existem, aliás, passagens mais bem-humoradas da vida do personagem, que devem ajudar a dar certa leveza à já carregada dramaticidade dessa vida real.
@ continenteonline Veja o trailer do filme no site www.revistacontinente.com.br
Suspense
VIOLÊNCIA GRATUITA De Michael haneke Com naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt California Filmes
Dois jovens invadem a casa de campo de uma família e iniciam jogos de tortura. Dez anos após o lançamento de Funny Games, Michael Haneke propõe um retorno à mesma trama, só que com atores norte-americanos. a troca do idioma germânico pelo inglês não alterou os rumos da história, filmada com planos idênticos e cenário sob a mesma medida. um instigante exercício sobre a violência no cinema.
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Comédia
QUEIME DEPOIS DE LER
De joel e Ethan Coen Com George Clooney, john Malkovich, Frances McDormand, Brad Pitt Paramount Pictures
Toda paranoia é cômica. Esta é a visão dos irmãos Coen em Queime depois de ler, sátira aos filmes de espionagem. a obra relata o vazamento de um CD com supostas informações sobre a Cia para as mãos de dois funcionários de uma academia de ginástica. a película ironiza os absurdos de alguns roteiros. E deixa a impressão de que, nas mãos de Joel e Ethan Coen, obras como Os infiltrados teriam um potencial humorístico.
LEITE Por onde continua a passar a fina flor dos bem-nascidos
O Restaurante mantém-se impávido, em sobriedade e elegância, em meio ao caos de camelôs ruidosos e lojas de eletrodomésticos no centro do Recife TEXTO Bruno Albertim FOTOS Yêda B. Mello
Cardápio A mesma armadura medieval
recebe quem chega. Ao fundo, os dedos do maestro percorrem diária e suavemente o mesmo piano de cauda. É como se, a qualquer momento, Gilberto Freyre fosse entrar pelo salão, não sem conduzir pelas mangas do casaco o visitante Jean-Paul Sartre, para um pouco de existencialismo regado a licores e cartola. Não o adorno indefectível na cabeça dos senhores de outrora, que fique bem claro – mas a icônica sobremesa pernambucana de banana e queijo fritos, cobertos por açúcar e canela. Que, aliás, tem no Leite o seu mais nobre abrigo. Gilberto nunca deixou que qualquer visitante ilustre abandonasse a cidade sem provar da
iguaria na casa. Fundado em 1882, é o Leite o restaurante mais antigo em atividade contínua no Brasil. Também as mesmas cortinas pesadas de veludo protegem os salões da luz ofuscante do Recife, essa luz que, como bem lembrava o próprio Freyre, não é a mesma um só minuto. Símbolo de uma belle époque cabocla, o Leite remanesce como monumento implicante na cidade que, a exemplo do Rio de Janeiro do demolidor prefeito Pereira Passos do começo do século passado, vem trocando sua vocação de Paris tropical pela progressiva condição de o avesso do belo. Implicante no burburinho decadente do centro, enquanto sobrados e prédios históricos
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sucumbem a fachadas de gosto duvidoso e seus antigos e elegantes cinemas dão espaço a lojas varejistas para o deleite e endividamento dos menos abastados, o Leite insiste em ser clássico. Segue como que imponente diante da praça batizada com o nome de Joaquim Nabuco – ele próprio um dos antigos frequentadores, empolgado por estratégias pela abolição entre uma perna ou outra de cabrito assado com batatas coradas. Mais que estabelecimento, a casa parece se situar na categoria das vocações. Como bem vaticinou outro visitante ilustre, o modernista Mario de Andrade, que registrou sua passagem pelo Recife de 1927 no livro O turista
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trAdiÇÃo Fundado em 1882, o restaurante é o mais antigo em atividade contínua no Brasil
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cArtoLA Sobremesa feita de camadas de banana e queijo é uma das iguarias mais pedidas da casa
aprendiz: “Meu foi Recife e mais Recife dia inteirinho, aliás, muito prazer. Ascenso e Inojosa no cais. Praia de Boa Viagem, manhã, água de coco gelada. Almoço no Leite, essa fatalidade recifense”. Por lá, entre muitos de uma lista, passaram também Orson Welles, Assis Chateaubriand e Juscelino Kubitschek. Não houve cantor da época dourada do rádio que não tenha pisado os pés no salão repleto de móveis pesados de jacarandá. Mas o Leite não é apenas evocações. Seu destino não é ser apenas a memorabilia de uma cidade que poderia ter sido (o que os antigos cartõespostais da Rua da Aurora ou da Imperatriz apontam) e não foi. Salvo em ocasiões especiais, já não serve jantares. O último deles foi em abril deste ano, em torno da presença do cineasta grego Costa Gavras, homenageado no último Festival de Cinema do Recife. Mas, diariamente, o balé de garçons e clientes se repete. Na hora do almoço, são pelo menos 300 refeições.
pALetÓ BrAnco
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Sob a batuta incansável do chef Edmilson Araújo, o famoso Bigode, um artífice da velha escola, sua cozinha expressa a culinária burguesa resultante do encontro das tradições portuguesas com os ingredientes nativos. Uma culinária que resume a tropicalização da grande cozinha lusa nestas margens do Atlântico. Semanalmente, azeites, sardinhas e outros enlatados chegam diretamente de Portugal. Poucas são as casas da cidade com o capricho de oferecer na carta, por R$ 480, o mítico vinho alentejano Pêra Manca (embora, claro,
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haja opções bem, bem mais acessíveis, do velho ou do novo mundo). Numa época em que o mercado só quer saber de contemporaneidades, garçom de piercing e cabelinho espetado não tem vez aqui. A brigada segue impecável de ternos brancos e gravatas pretas (alguém lembra deste figurino?). Alguns itens aparecem com a força de clássicos no cardápio quase imutável. Como a chapa de frutos do mar, camarões, lagostim, polvo e peixe puxados no azeite com ervas e molho de vinho branco, o bacalhau alto grelhado com cebola, alho e, como solicita a cartilha, muito azeite. Ou o filé na chapa. Apenas no Leite e em pouquíssimos outros endereços da cidade ainda se encontra um filé à Chateubriand – ao contrário do que reza o senso comum, pratos aqui não entram e saem de moda como peças de roupa. Exemplo ululante dessa cozinha derivada do projeto colonial português no Brasil é o filé de sirigado ou outro peixe fresco guarnecido com pirão de frutos do mar. Coalhado de pedaços generosos de polvo, mexilhões e camarões, está lá o brasileiríssimo caldo engrossado pela farinha da mandioca que os colonizadores aprenderam a usar com os nativos. Mas a forma de cocção tem DNA genuinamente luso. Ou também a carne de sol de filé, alta como manda o figurino, respaldada por uma interiorana farofa de bolão, aquela que nossas avós comiam de mão, temperada com cheiro verde. Para as entradas, bolinhos de bacalhau, liturgicamente sequinhos. Só não esqueça, por favor, de finalizá-los com o azeite de pimentas.
Cardápio
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O Leite assistiu ao Recife ganhar seu porto, urbanizar-se e expandir-se. Como vários personagens históricos – principais ou secundários – enrolaram ali seus bigodes, discrição é regra capital entre os funcionários. “Garçom só ouve pedidos, nada mais”, brinca Xavier, 30 dos seus 76 anos de serviços prestados ao Leite. Trabalhou muito, inclusive, nos suntuosos bufês servidos pelo restaurante na casa da fina flor pernambucana.
LoUÇA inGLeSA
Nesta página 01 eSpeciALidAde Bacalhau alto grelhado com cebola, alho e, como reza a cartilha, muito azeite
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fiGUrino O salão é ordenado por garçons vestidos de paletó branco e gravata, como Xavier, 30 anos de serviços prestados ao Leite
Próxima página 03 conforto Além do salão principal, os clientes contam com piano-bar e variada cartela de bebidas
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Antes mesmo que o Recife ganhasse seu porto, o Leite estava funcionando às margens do Capibaribe. Mal desembarcou do vapor vindo da terrinha, o português Manoel Leite abriu um quiosque com seu próprio nome nas proximidades da Ponte da Boa Vista, à Rua do Sol. “A louça era inglesa, as taças e copos do mais fino cristal Bacarat francês, os talheres de prata Christoffle e as toalhas de damasco francês”, registra a pesquisadora Goretti Soares, no livro O Leite ao sabor do tempo. Com o sucesso, o quiosque foi abandonado e o restaurante passou a ocupar três imóveis em frente à então chamada Praça da Concórdia. “Os senhores de engenho, os políticos e as personalidades da época frequentavam
políticos, turistas, gourmets e homens de negócios cruzam, engravatados ou não, a calçada rumo ao restaurante
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o restaurante rigorosamente vestidos açucareira do fim do século 19 estava de paletó e gravata, as senhoras e em mais uma de suas eternas crises. senhoritas trajavam a mais requintada Dependia dos empréstimos dos ingleses moda de Londres. Tudo refletia responsáveis pela urbanização do a influência britânica, presente Recife com seus bondes e iluminação nas louças, móveis e objetos que a gás. Com os hábitos sucumbindo à guarneciam as casas do Recife”, liturgia inglesa, um restaurante como o descreve ela. Algumas administrações Leite estava plenamente justificado. depois, a casa foi assumida, em Muitos cristais depois, por pouco a 1956, pelos irmãos Amadeu, Luiz e casa não se tornou a arena do episódio Armênio Dias, ao lado do amigo Hugo desencadeador da Revolução de 1930. Laprovítera. Hoje, seu João Pessoa almoçou Armênio conduz o no restaurante no dia Leite salão com a devoção em que morreu. O Praça Joaquim Nabuco, 147, (e os olhares) de um assassino João Dantas, Recife almirante. também. Mas o crime Tel. (81) 3224 7977 Sem mão-demais notório do dia Aberto das 11h às 16 h Domingo a sexta obra, com a extinção 26 de julho de 1930 da escravidão, a elite só aconteceria horas
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depois. Noutro endereço igualmente obrigatório do footing, a extinta Confeitaria Glória. Com as pencas de marinheiros enchendo os bordéis e casas noturnas do Recife, o Leite viveu um período especialmente glorioso durante a Segunda Guerra Mundial – em 1947, chegou a ter no anexo uma distinta boate de danças. A equação era simples: como os americanos convocados para as bases do Nordeste nunca foram efetivamente à guerra, o que fizeram mesmo foi regar e fazer florescer viçosamente a prostituição e também os serviços elegantes nas ruas antigas do Recife – os dois, aliás, grandes apaixonados por dólares. Ainda hoje, enquanto políticos, turistas, gourmets, personalidades e homens de negócios cruzam, engravatados ou não, a calçada no rumo do salão, putas adiposas encostam-se às paredes revestidas de azulejaria portuguesa à cata de clientes. Mal cabem nos minúsculos shorts adquiridos no camelódromo não muito longe dali. São, também, evocações do passado.
Xico Sá
CARTA ABERTA A GILBERTO FREYRE caro mestre de Santo Antônio de Apipucos, o motivo desta
Xico Sá é jornalista e escritor
con ti nen te#44
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Saída
JOSÉ DINIZ/DIVULGAÇÃO
é tão-somente te dar notícias sobre os modos de homem e, principalmente, sobre a involução das modas de mulher. Amigo, se já temias o avanço da modinha europeizante no madrugador 1986, não te darei uma boa-nova, muito pelo contrário: a fêmea brasileira se tornou a maior consumidora de tinta loira do planeta. Sei que não és de espanto, viste de tudo nesse mundo – aqui incluídas as assombrações como os pernambucaníssimos papa-figos –, mas a nossa morenidade sofre um golpe atrás do outro. Sim, ainda vemos grandes bundas, ótimos latifúndios dorsais, mas na maioria dos casos contra a vontade das suas angustiadas proprietárias. Elas perseguem um outro corpo, um outro ideal de belezura, sonham com Giseles e outros fetiches ao melhor estilo vara-pau, bunda-seca, bundinhas que não rendem um pastel de feira. Estás sentado, amigo? Então escuta mais esta: os cabelos encaracolados que enfeitavam as cumeeiras das nossas Sônias Bragas, lembras?, eita, estes sumiram de vez da nossa paisagem. Alisaram o mundo todo, amigo. A humanidade das fêmeas virou Vera Fischer por estas plagas. A chapinha esquentou em todos os cocurutos, mesmo nos mais melanizados. Temos um salão de beleza a cada esquina, nos sobrados e nos mocambos, na casa-grande e na senzala. O clareamento é a tônica. E não tão-somente nos quesitos capilares, meu velho G.F.. Do teu livro Modos de homem & Modas de mulher (1986) para cá, tem sido uma reviravolta, um sururu na área a cada instante. Sabes a maciez da mulher brasileira, as carnes de se apalpar em safadezas tantas? Pois bem, meu caro, todas correm a perdê-las na primeira fórmula milagrosa que encontram. Não existem mais os corpos para os quais fomos sentimentalmente educados. Os colos macios de moças são cada vez mais raros. Tudo músculo endurecido de traveco ou de zagueiro. Não é mais nem aquela coisa assim Roberta Close, por quem nutrias uma admiração pela fartura da bunda. É só dureza. E pronto. As cheinhas ou desapareceram ou estão meio desgostosas, isso é trágico, meu velho. Claro que molho a pena no tinteiro do exagero, mas precisamos ser panfletários para evitar a catástrofe definitiva. Aqui me despeço, atenciosamente, mirando uma bela bunda, essa, sim, uma rara morena, uma jambo-girl, como diríamos em tempos de aldeias globais, uma legítima afilhada dos trópicos que passa sob a luz do final da tarde da rua da Aurora, a melhor iluminação natural, sem filtro, para se ver a cor morena no mundo todo.