Continente #103 - Prato do dia

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julho 2009

AnTÔniO CRuz/ABR

Gil FERREiRA/SCO STF

aos leitores

Foi revogado, no mês passado, decreto que desde 1969 dispunha sobre a obrigatoriedade de diploma para exercer a função de jornalista no Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) ponderou, principalmente, o aspecto político da decisão, já que a legislação datava do regime militar, quando o governo pretendia vigiar e censurar qualquer produção noticiosa que confrontasse o poder vigente. Ainda que esta seja uma justificativa histórica relevante, por que tanto tempo desde a abertura política para promover tal revogação? Que interesses e contextos subjazem à decisão? Ainda nos anos 1980, quando se discutia a liberdade de imprensa, entre outras prerrogativas da descompressão política, o jornalista Clóvis Rossi falava em “liberdade de empresa”, expressão irônica que já apontava ali quem definia as regras do jogo. E, claro, não eram os jornalistas empregados e prestadores de serviço de uma atividade que – embora já exercida oficialmente no país desde a primeira metade do século 18 – apenas começava a esboçar um campo profissional, que se estabelece quando são definidas as bases de sua constituição e estas são reconhecidas como legítimas pela sociedade. Quais os atributos da profissão de jornalista? Porque, se o STF entende que é desnecessário cursar a graduação para ser jornalista, este campo não se estabelece pelo aprendizado sistemático

em sala de aula, mas pela prática profissional, para a qual qualquer indivíduo pode se candidatar, sendo assim as redações de jornais, TVs, rádios, revistas e quaisquer outros meios de informação, um campo aberto, uma feira livre. Curioso como esta ideia se soma à atual realidade da produção e difusão de informações via web, celulares e variadas fontes digitais ou virtuais. Desde que a internet surgiu, a produção noticiosa pelos tradicionais meios massivos e poderosos conglomerados de mídia vem sendo sistematicamente questionada. E os motivos vão desde a velocidade de transmissão de informação à polifonia e diversidade de pontos de vista, ambos infinitamente maiores no campo virtual. Assim é que esta decisão chega ao Brasil num momento em que a produção industrial de informação, pautada pela objetividade (um dos pilares do jornalismo moderno), vem sendo desacreditada no mundo todo. A Revista Continente entende a complexidade do tema – que será seguramente objeto de estudos acadêmicos demorados e aprofundados. O que buscamos, nesta edição, é repercutir o assunto ainda no calor da hora, indo além do factual, apontando sinais de que a questão transcende a polêmica meramente corporativa. Tomara que não tenhamos que esperar outras quatro décadas para conseguirmos entender esta mudança com a clareza que ela demanda.

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sumário Portfólio

Tarcísio Andrade 06

Online + cartas

50

Bússola

07

Expediente + colaboradores

56

Tradição

60

Em 1ª mão

78

Sonoras

82

Leitura

88

Matéria Corrida

90

Visuais

94

Palco

08

12

30

32

38

42

44

Leia um trecho da biografia do pensador Isaiah Berlin

Entrevista

Eric Marty Escritor conta a experiência de ter sido aluno e amigo do pensador francês Roland Barthes

Balaio

A sabedoria do jogador e livre-pensador Carlinhos Bala

Peleja

Universidade Fotocopiar livros para fins educativos é justificável?

Mercado

Produtor musical A contribuição desse profissional na concepção de CDs

História

Sertão A ocupação da região no século 17

Conexão

Obit Site dedica espaço exclusivo a assuntos ligados à morte

Cultura Pop

Apolo 11 Chegada do homem à Lua inspirou artistas a produzir obras sobre a exploração do espaço

96

Weydson Barros Leal Poeta revela seu amor pelo Rio de Janeiro e Portugal

Patativa do Assaré Cem anos de nascimento do poeta cearense

Nascido em uma família de artesãos, o artista olindense afirma seu gosto de contar histórias, em obras construídas pelo entalhamento e recorte de madeira

14

Barbara Wagner Fotógrafa lança publicação na Holanda

Compomus Laboratório de Composição da UFPB estimula compositores jovens

Alceu Amoroso Lima Cândido Mendes escreve obra hermética sobre o crítico

José Cláudio Colunista comenta aniversário de Tereza Costa Rêgo

Interatividade Mostra convida público a participar das obras

Circo Grupos utilizam arte do picadeiro como instrumento de inclusão social

Saída

Geneton Moraes Neto Um encontro imaginado com Gabriel García Márquez

Capa: Ricardo Melo

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capa

Diploma A partir de agora, não é mais necessário possuir graduação em Jornalismo para exercer a atividade no Brasil

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Pernambucanas

claquete

Inaugurada em 1930, a construção é um dos exemplares da arquitetura do ferro no Recife, recebendo público diversificado

Documentário dirigido por Marinho de Andrade mostra como foi construída uma cidade no meio da selva amazônica

Mídia

cardápio

Produtos culturais que, a partir de uma matriz, circulam na televisão, no cinema, em jogos, como ocorreu a Tomb Raider

O Brasil é o maior produtor mundial e exportador do grão, sendo o segundo maior mercado consumidor, atrás apenas dos Estados Unidos

Mercado de Casa Amarela

52

Transmediação

62

Fordlândia

68

Café

72

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Jul’09


online+e-mails

A polêmica suspensão da obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tema da matéria de capa desta edição, ganha espaço também no site. Disponibilizamos online opiniões e argumentos contra e a favor da decisão, reservando um espaço para que os internautas possam expressar seus pensamentos em relação ao tema. Os interessados em participar do debate vão encontrar links para páginas na web que discutem a questão de forma responsável e aprofundada. Outro destaque no site, este mês, é a composição Sonata, de José Alberto Kaplan, que colhemos junto ao Laboratório de Composição Musical – o Compomus, da UFPB, reduto de novos compositores de música erudita. Confira também a programação completa do Virtuosi Gravatá.

destaques

Vídeos, fotos, textos e muito mais conteúdo, além dos textos integrais das edições anteriores, você vai encontrar em

continenteonline.com.br continenteonline.com.br

Ferreiros

parabéns ou agradecimento? Não sei o que devo dizer à revista, e principalmente à dupla Thiago Lins e Flora pimentel. A matéria Tradição, feita de forma tão honesta sobre os rabequeiros da minha terra, está ótima, justiça seja (foi) feita. A revista está cada dia melhor. maria de jesus de a. figueiroa olinda – Pe

Sugestão Sou pernambucana, mas moro e trabalho, como professora de inglês e de literatura, em Juazeiro do Norte – Ce. Gostaria que vocês publicassem algo sobre a escritora cearense Ana Miranda. Seus livros Boca do inferno e Dias e dias valem pela poeticidade e pelo trabalho inovador da biografia romanceada. danny melo juazeiro do norte – ce

Sugestão II parabéns pela nova apresentação da Continente! Vigorosa e ótima em

reprodução

o peso do diploma

literAturA

Vídeo

Leia um trecho da biografia Isaiah Berlin, uma vida, que narra a trajetória pessoal e intelectual de um dos principais pensadores políticos do século 20.

Assista ao trailer do filme Fordlândia, que resgata a história da cidade idealizada e financiada em plena Amazônia por Henry Ford, hoje uma cidade fantasma.

tudo, sem qualquer restrição.Tomo a liberdade de sugerir matéria que julgo importante nos campos da história, da cultura e da economia aos tempos do Brasil Colônia: que tal escrever sobre a estrada real em Minas Gerais? amauri rodrigues brasília – df

Sugestão III A assinatura da Continente foi um presente maravilhoso que ganhei da minha filha. Gostaria que a revista não ficasse muito “pop” e lamento a saída da coluna Sabores. zoracy guerra recife – Pe

Fulni-ôs Gostaria de parabenizá-los pela matéria sobre a língua falada pelo índios fulni-ôs, na edição de maio. por meio de um texto extremamente completo do ponto de vista do conteúdo, já que analisou a temática a partir

de diversas óticas, a matéria de danielle romani também é excepcional no que se refere à estética; o modo como a jornalista articula suas ideias é brilhante. natália de lima souza cabo de santo agostinho – Pe

Marcuschi Adorei a reportagem sobre o professor Marcuschi, publicada em maio. Vocês, realmente, conseguem nos surpreender. josélia gomes da silVa caruaru – Pe

Marcuschi 2 Que bom rever Marcuschi, Guarnieri, conhecer denser, e por aí vai... Mas, o número 101, poxa, com conteúdo tão bom, juro que merecia revisão ortográfica mais apurada... exemplinho: na matéria sobre pavese, “experenciado”?! Teve mais em outras páginas, mas perdeu-se na poeira das ruas... Prof. israel Vainsencher belo horizonte – mg

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Você faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua coelho leite, 530, Santo Amaro, recife-Pe, ceP 50100-900). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente reserva o direito de publicar trechos e não tem compromisso de publicar todas as cartas. telefone: (81) 3183 2780 Fax: (81) 3183 2783 email: redacao@ revistacontinente.com.br Site: continenteonline.com.br


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Ana lira

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Gilmar de carvalho

Jornalista e doutor em estudos

Jornalista e fotógrafa, participa

Biblioteconomista e estudioso

professor da uFCe e especialista

Cinematográficos e Audiovisuais

da revista literária Vacatussa

da obra de Gilberto Freyre

em literatura popular

pela universidade paris III

Kalina Vanderlei

raul Aguiar

renata do Amaral

doutora em História pela uFpe

Ilustrador, professor da Aeso

Jornalista, mestra em

e professora da upe

e sócio do Studioaurora

Comunicação e colaboradora do site Quinto pecado

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eric marty

Fragmentos de uma conversa com um amigo e discípulo de Barthes Autor de livros como Ecriture du jour e Sacrifice, escritor comenta sua relação com o pensador francês, um dos mais influentes do século 20, em Roland Barthes – O ofíco de escrever, publicação que mescla memória e análise crítica texto Schneider Carpeggiani

con ti nen te#44

Entrevista

É impossível falar de um só Roland Barthes (1915-1980). Melhor pensar num Roland Barthes em meio a muitos: o semiólogo, o construtivista, o crítico literário, o filósofo, o intelectual francês alimentado pelo tédio. Aquele que foi criador de um sistema de pensamento e que – no momento em que a maioria conforma-se ao território conquistado – decidiu desconstruí-lo, em busca de outras maneiras de apreender o mundo (ou a si mesmo?). Por conta disso, foi criticado, sobretudo pelos seguidores. A necessidade de demolição subjaz à sua obra derradeira, A câmera clara – “surrado” manual sobre fotografia que, desde os anos 1980, quando foi lançado, faz-se presente nos currículos de cursos de Ciências Humanas. Mas não se trata de um manual com regras fechadas, e é na percepção desta qualidade que reside a chave para se entender a multiplicidade de Barthes. Ao falar do punctum da fotografia (zona que atrai o olhar, o desejo próprio de cada observador), o pensador deixa a lição: o importante não é só o que a imagem diz, mas também o porquê de querermos interpretá-la.

Conhecimento é também escolha, afeto, apontava o ex-estruturalista, exsemiólogo... Assim, por que não, cada um escolher o próprio Barthes? O escritor Eric Marty tem bons motivos para cultivar “seu” Barthes, porque usufruiu dele a dupla relação de discípulo e amigo. Essa experiência está por ele descrita em Roland Barthes – O ofício de escrever, misto de relato de uma amizade e de análise da obra do pensador francês. Ele conversou com a Revista Continente sobre essa valiosa experiência. continente Qual seria a forma correta de apresentar Roland Barthes a alguém que nunca ouviu falar sobre ele: seria um ensaísta, um semiologista, um crítico da cultura ou talvez apenas um escritor? Como lidar com todas essas facetas de Barthes? eRic MARtY Se precisasse escolher, seria “ensaísta”. Isso por duas razões: a primeira é que a palavra ensaísta não elimina as outras categorias, a segunda é que a palavra abrange, na França, uma grande e bela tradição que vai de Montaigne a Paul Valéry, tradição na qual eu acho que se pode situar

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Roland Barthes. Ensaísta significa, a meu ver, que as ideias, os sistemas, os conceitos não têm valores autônomos, mas engajam antes de tudo uma subjetividade viva que permanece a guardiã dos pensamentos. Diante disso, pode-se dizer que Barthes foi um verdadeiro semiologista, até mesmo que ele foi o fundador da semiologia, de um sistema de leitura do mundo fundado na ideia de que as coisas, os eventos, os objetos são antes de tudo sistemas de signos: um fait-divers, um carro, um vestido, uma eleição política, tudo isso se endereça a nós como um conjunto organizado de signos. continente Barthes criou vários sistemas de pensamento para, no final da sua vida, destruir boa parte deles ou talvez todos. Pode-se dizer que a necessidade de demolição é uma das suas maiores heranças? eRic MARtY A palavra demolição é talvez um pouco violenta demais para convir. Barthes não destruiu realmente o que ele tinha construído, ele fingiu, às vezes, “Queimar o que tinha adorado”, mas sem nunca fazer obra de destruição. Assim, seu último livro A


divulgação

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eRic MARtY Se eu escolhi fazer um livro, de fato, múltiplo, que associa um relato de memórias a uma análise teórica e crítica, foi, em primeiro lugar, em função da minha própria biografia, uma vez que eu fui, quando muito jovem, próximo de Barthes, um de seus discípulos; essa experiência me parecia importante e achava importante relatála. Por quê? Penso hoje (e isso não é verdade apenas para Barthes) que a modernidade – o grande movimento que acendeu (ou inflamou) a França no plano intelectual da década de 1960 à década de 1980 – é o objeto de muita honra para a nova geração, mas de um modo muito fictício e redutor. Eu quis, então, restituir um Barthes vivo e o mais intenso de uma época no plano

william klein/reprodução de a câmara c lara

câmara clara parece abandonar as antigas ferramentas da linguística em favor de uma leitura filosófica (fenomenológica) da imagem, mas, em realidade, na época da semiologia, Barthes já tinha proposto uma leitura da fotografia muito próxima (embrionária) daquela de A câmara clara, onde a foto revela um “ça a été” (isto foi) irredutível, em que a analogia entre a imagem e o objeto ou o ser representado próprio à fotografia, conduz a uma ruptura nas ferramentas de análise. Outro exemplo: numerosos elementos de Fragmentos de um discurso amoroso (obra do fim da vida) estão presentes em Sobre Racine, um trabalho da época estruturalista, que gira em torno do ciúme, do poder, do sujeito

con ti nen te#44

Entrevista amoroso e do sujeito raciniano. Como, frequentemente, o último Barthes já está presente no primeiro, mas ainda mascarado, ainda contido. Pode-se dizer, neste sentido, que a obra de Barthes é um empreendimento em que, para retomar a palavra de Nietzsche, ele se tornou ele mesmo, ele se tornou o que ele era. continente Seu livro publicado no Brasil é um misto de memória e crítica, com a vida que atravessa a obra, como Barthes amava. Para bem conhecer Barthes deve-se ser múltiplo?

das existências privadas. Sendo assim, pode-se perfeitamente entender Barthes a partir de sua própria obra, de sua escrita. A parte muito pessoal de meu relato é apenas uma maneira de revelá-lo e, a essa primeira parte, sucedem duas outras que são leituras da obra. continente Em um de seus textos, o senhor fala da relação entre professor e aluno que teve com Barthes. Até onde o Barthes professor formou o Eric aluno? Como eram as relações de Barthes com seus discípulos?

c co on nt tiin neen nt tee jju ullh ho o 220 00 099 || 110 1

eRic MARtY Tenho o sentimento – e acho que é o caso da maioria dos que como eu foram alunos de Barthes – de não ter tido um professor, mas um mestre. Meu relato gira inteiramente em torno disso: “O que é um mestre?”. Essa categoria é, a meu ver, uma figura fundamental de toda civilização, e a experiência que eu tive com Barthes não deve ter sido tão distante daquela de um jovem da Grécia Antiga junto ao filósofo ou de um jovem indiano junto ao guru… Essa é uma experiência para toda a existência, de tal maneira, que à questão “até onde o Barthes professor formou o Eric aluno?”, eu responderia que Barthes simplesmente pronunciou a fórmula que todo mestre pronuncia e da qual ele fez a substância das suas

“em A câmara clara, a foto revela um ça a été (isto foi) irredutível, em que a analogia entre a imagem e o objeto ou o ser representado próprio à fotografia conduz a uma ruptura nas ferramentas de análise”

conversas com o discípulo: “Você pode pensar”. Esse “você pode pensar” é a única coisa que o jovem homem, o discípulo deve colher das suas conversas com o mestre. No meu livro, eu quis, pelo relato e pela lembrança, dar uma imagem muito concreta e encarnada das relações mestre/discípulo: eram relações que misturavam uma forma de ascetismo e ao mesmo tempo um grande senso de prazer. Ascetismo porque Barthes era muito silencioso, com a vida inteiramente dedicada à


escrita, no entanto também tinha o prazer, pois esse silêncio, esse reinado da escrita tinham uma dimensão estética muito forte.

Proust, Kafka, Ponge – de captar no insignificante o sentido mesmo do mundo. continente Barthes escreveu sobre tudo. Pode-se dizer, de fato, que ele era fascinado pela ação da escrita? eRic MARtY Sim, acredito que escrever era toda a vida de Barthes. Ele gostava da vida, era alguém muito sensual, que gostava das coisas, das paisagens, dos seres, porém vivia tudo isso mais no modo da escrita do que no modo do “vivido” – consequentemente, dava sempre ao cotidiano um grão, uma nuance, um estilo que era seu. Sua vida parecia acontecer como uma página de escrever. De qualquer maneira, é dessa forma que eu, como discípulo, o via

reprodução

continente Em outra parte do texto, o senhor diz que Roland Barthes parecia amar seu próprio tédio, comente um pouco essa impressão, por favor. Depois dessa atitude, será que é possível dizer que Barthes criou uma personagem para ele mesmo, é possível dizer que tinha um Roland Barthes público? eRic MARtY A temática do tédio é importante em Barthes, ele fala sobre isso no seu Roland Barthes por Roland Barthes. Acredito simplesmente que esse “tédio” é o tédio que ele tinha de viver, em estar no mundo, era talvez uma forma de sofrimento melancólico,

continente Barthes acrescentou à academia um interesse por questões que eram tratadas como frívolas, a exemplo das revistas de moda e do discurso amoroso, assuntos que estão hoje no centro dos debates universitários. Gostaria que o senhor comentasse um pouco o interesse dele por temas que não eram vistos como “ nobres”? eRic MARtY Sua pergunta é muito importante. De fato, Barthes é um dos raros intelectuais da sua época que se interessou por objetos “medíocres”, aos olhos da academia – o senhor fala da moda, mas há muitos outros nas Mitologias: tratar dos carros, do sabão em pó, da publicidade, do vinho… E depois, de fato, por fim, tem o discurso amoroso. A verdadeira modernidade de Barthes está aí, a meu

“A verdadeira modernidade de Barthes está aí, nessa capacidade em entender que o mundo é uma totalidade, que não tem, de um lado, as abstrações como o tempo, a razão, o espaço… e, do outro, a realidade profana”

mas era igualmente a condição para ele escrever. Esse tédio refletia o isolamento no qual o ato de escrever o conduzia em relação ao mundo e aos outros. Na medida em que esse tédio melancólico pertencia também a sua escrita, tornou-se de fato um estilo, uma maneira de ser, contribuindo sem dúvida nenhuma na construção da personagem “Barthes”: uma personagem muito silenciosa, muito atenta, porém distante, um tipo de elegância muito controlada, e, portanto, uma imagem social de escritor.

ver, nessa capacidade em entender que o mundo é uma totalidade, que não tem, de um lado, as abstrações como o tempo, a razão, o espaço… e, do outro, a realidade profana. Um verdadeiro pensador pode encontrar tanto sentido na fotografia de moda quanto em um texto de Kant. Tem, no gosto de Barthes em falar também sobre objetos tão ordinários, um tipo de ética que determina o caráter indissolúvel do mundo humano. Talvez, é também nisso que Barthes é um escritor, nessa capacidade – como

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e era, obviamente, fascinado por essa exigência existencial. continente Hoje, qual é a recepção de Barthes? eRic MARtY A França vive, como todos os países europeus, uma grande crise, que não é apenas econômica, mas também intelectual. Os mestres do fim do século 20 (Barthes, Foucault, Deleuze, Lacan…) não foram substituídos. Sendo assim, Barthes permanece uma grande referência. (Tradução François Tardieux)


divulgação

acnes intelectuais o blogueiro alexandre soares silva, nos idos de 2003, escreveu o post Lendo o blog de uma adolescente, em que apontava o descompasso – tantas vezes verificável – entre a beleza física e a intelectual. ele dizia: “pessoas bonitas deviam escrever bem; seria uma extensão natural do cuidado que têm com a pele”, referindo-se à tal mocinha, que ficava bem na foto. para, em seguida, concluir: “É linda em tudo, mas tem uma prosa deformada; é uma mutilada-de-guerra da prosa. uma meninafeia da prosa, com aparelhos dentários na sintaxe e acnes nas orações”.

lógica cartesiana o jornalista Miguel esteves Cardoso, no gambrinus, o restaurante mais chique de lisboa, perguntou por que não serviam Cozido à portuguesa e recebeu a seguinte resposta, que é um primor de lógica lusitana: “Não podemos, doutor – senão toda a gente quereria...” (duda guennes, de lisboa)

Dá-lhe bala, carlinhos!

As declarações dos jogadores de futebol deixaram de ser interessantes, há algum tempo. A rotina de enfrentar as mesmas perguntas à beira do gramado levou a uma “profissionalização” das respostas, de clichês como a referência ao técnico como “professor” e do tratamento excessivamente respeitoso aos adversários. Em Pernambuco, pelo menos, há um caso que foge à regra: o divertido José Carlos da Silva, mais conhecido como Carlinhos Bala. Atualmente no Náutico #44 e com passagens pelo Sport e Santa Cruz, o jogador é autor de frases lapidares, como “a mão que aplaude é a mesma que vaia”, e, respondendo sobre o que fazer após uma derrota, “Agora é abaixar a cabeça e seguir em frente”. Suas principais declarações, no entanto, aconteceram durante a Copa do Brasil, atuando pelo Sport, quando disse que Deus o procurou e avisou previamente do título do rubro-negro. E logo Bala, que não tem papas na língua, chegou a afirmar, quando incitado por um repórter a polemizar com adversários: “Quem ganha a vida falando é camelô e advogado”.

A FRASE

“os livros têm os mesmos inimigos que o homem: o fogo, a umidade, os bichos, o tempo e o próprio conteúdo”

Fotos: reprodução

con ti nen te

Paul Valéry continente julho 2009 | 12 3

Balaio exPlosiVo o habitué das praias hodiernas dificilmente se choca com o desfile de tangas e fios dentais minimalistas vistos por toda parte. Há meio século, contudo, o maiô de duas peças provocou frisson. Criado pelo estilista francês louis réard (18971984) e batizado de bikini (em homenagem ao arquipélago homônimo, palco de testes nucleares em 1946), a peça foi considerada tão, mas tão ousada, que as modelos profissionais da época se recusaram a mostrá-la nas passarelas. segundo conta o jornalista Marcelo duarte, o jeito encontrado por réard para exibir sua invenção foi contratar a stripteaser do Cassino de paris, Micheline Bernardini, para desfilar o revolucionário bikini.


coisa De torceDor Boa parte das pessoas deixa a sobriedade de lado quando o assunto é futebol. o território neutro da conversa ganha contornos de arena, em que as bandeiras se levantam em lados opostos. a crônica tem sido um dos gêneros em que escritores e jornalistas vestem a camisa dos seus times, expressando com graça a paixão pelo esporte. No recém-lançado A cabeça do futebol (Casa das Musas), José roberto torero conta sobre o dia em que virou santista. É a tocante história de quando foi levado ao campo por seu pai, justamente na noite em que todos no estádio caíram em pranto quando o melhor jogador do mundo anunciou – de joelhos, no meio do gramado – que deixava o futebol. aquele homem era pelé. e foi no dia mais triste da história do time alvinegro que o cronista tornou-se santista.

cRiAtuRAS

isaBel saNtaNa

meu amigo xico

o jornalista Xico sá é um camarada popular nas plagas paulistanas. dia desses, quando recebeu convidados para um bota-dentro de seu novo residencial, o amigo Joca reiners terron decidiu demonstrar esse bem-querer público, com graça, confeccionando uma máscara com seu rosto. “Cheguei à festa com cara de Xico sá”, conta terron. e foi assim que, no dia seguinte, o blog do escritor (www.jocareinersterron. wordpress.com) estava repleto de “sósias” do jornalista, numa preconização do que seria a irreversível “xicosazão do mundo”. o ensaio fotográfico foi feito pela esposa de terron, isabel santana, e rendeu gargalhadas pelo ambiente virtual.

michael Jackson (1958 – 2009) Por Kacio

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Portfolio

uma forma de contar o mundo Por tarcísio Andrade

TexTo: Adriana Dória Matos FoToS: Breno Laprovitera Em uma peça que Tarcísio Andrade produziu no início dos anos 1990 e que pertence hoje ao acervo da Pousada do Amparo, do Sítio Histórico de Olinda, estão mescladas passagens de duas narrativas bíblicas: A criação do mundo e a história de José do Egito. Exemplar do trabalho deste artista autodidata, a obra, um maciço quadro de 120 cm x 100 cm, é feita de recortes sobre madeira, montada a partir de uma estrutura em camadas, em que cada parte se junta para dar sentido ao todo. O centro de A criação do mundo é ocupado por um imenso Anjo, do qual se irradiam cenas em que há bichos e anjos, Adão e Eva expulsos do Paraíso, até chegar-se à moldura, em que os percalços de José do Egito são contados. Tarcísio Andrade nasceu numa família de artistas e artesãos. A mãe confeccionava colchas de fuxico, que vendia no Mercado da Ribeira, em Olinda, lugar onde ele vendeu seu primeiro trabalho, quando tinha uns 15 anos. Ele diz que gosta de contar histórias e construir cenários. O ditado de que “quem conta um conto aumenta um ponto” encontra no artista um aliado, já que suas narrativas

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Página anterior 01 circo

Entre as peças atualmente mais produzidas pelo artista encontram-se as cenas circenses, que contam com técnica de fixar figuras flutuantes por meio de fibras de carbono

Nestas Páginas bAtAlhA

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No alto relevo, observa-se uma complexa organização de planos que dão profundidade de campo e vigor ao episódio narrado são joão

Detalhe de Casamento na roça, de 2007, peça que reúne elementos tradicionais da festa junina

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são acrescidas de interpretações nada ortodoxas, quase todas de cunho afetivo. Em Batalha dos Guararapes (2008), um painel de 3,5 metros de largura, é possível observar as licenças poéticas que se permite o artista. Enquanto “invasores” e “defensores” se digladiam em luta caótica e cômica, araras cruzam o espaço, palmeiras “balançam” folhas, cachorros aglomeram-se e cruzam. Outros detalhes divertidos vão sendo aos poucos observados, nesta peça que levou quatro meses para ser concluída, e que pertence à coleção do banqueiro suíço Pierre Landolt. Mas o aspecto lúdico da produção de Tarcísio Andrade se realiza plenamente em objetos que retratam a cultura popular, como circos, pastoris, carnavais, festas juninas. Como ocorre a muitos artistas que exibem trabalhos em galerias, lojas de artesanato e pontos turísticos olindenses, a obra de Tarcísio escoa praticamente toda para fora do Brasil, na bagagem de espanhóis, ingleses, franceses, suíços, alemães, portugueses, norte-americanos. São suvenires sofisticados, produzidos em insuspeita oficina nos fundos de uma casa bem-cuidada de uma rua sem calçamento de Jardim Fragoso, bairro “rural” de Olinda.

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@ continenteonline Confira outras imagens das obras de Tarcísio Andrade no site www.revistacontinente.com.br

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festA PoPulAr

Carnaval de Olinda, exposta no Sítio das Artes, no Alto da Sé, tem seu ponto de partida no cenário ao fundo, em que se veem ladeira e casario do Sítio Histórico PArAíso

Narrativas bíblicas estão entre os temas do repertório de Tarcísio Andrade, como neste A criação do mundo, em que episódios do Antigo Testamento são mesclados


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jornalisMo Mais que uM canudo

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Decisão do STF, que extingue a necessidade do diploma, provoca reações e gera polêmica, mas pode levar à reformulação das escolas de jornalismo texto Fábio Lucas

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o termo opinião pública surgiu na França, no século 18, e foi difundido na Europa graças à propagação dos primeiros jornais. Em 1711, era lançado na Inglaterra The Spectator, com o intuito de levar a filosofia para fora dos muros acadêmicos, estimulando os leitores a participar, escrevendo cartas. O espírito comunitário foi tão influenciado pelos jornais, no século 18, quanto o sentimento de nacionalidade o foi no século seguinte, de acordo com os professores Asa Briggs e Peter Burke, autores de Uma história social da mídia – De Gutemberg à internet (Jorge Zahar, 2004). E, talvez possamos acrescentar, tanto quanto foi o individualismo fomentado no século 20. De tal maneira o jornalismo atrelou-se à dinâmica


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social, que, ainda em 1850, apareceu a expressão “quarto poder” para designar a imprensa, em livro escrito pelo jornalista F. Knight Hunt. Em cada fase, o espírito dos velhos escribas, ou dos filósofos da Antiguidade – que tinham na oralidade, na transmissão do conhecimento e na formação do pensamento crítico a essência do seu ofício – acompanhou a evolução dos meios de comunicação e a transformação do profissional que faz da mídia um meio de vida. Foi este profissional que sentiu, no dia 17 de junho deste ano, no Brasil, o golpe de uma decisão judicial que afeta não apenas o jornalismo, como todo o universo da mídia no país. Sob o argumento principal de que se

tratava de uma legislação anacrônica e antidemocrática, imposta pelo regime militar com o objetivo de impedir a presença de intelectuais de esquerda nas redações, o Decreto 972, que dispunha sobre a obrigatoriedade do diploma para o exercício da atividade jornalística, foi revogado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Quarenta anos depois, o decreto de 1969 foi tachado de “inconstitucional”, e a graduação em jornalismo, definida pelos juízes como “desnecessária” – a se estender ao máximo a compreensão de que ninguém precisa entrar numa faculdade e estudar Comunicação para atuar profissionalmente como jornalista. A alegação de que a exigência do diploma fere a liberdade de expressão

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atenta contra um dos princípios mais caros da atividade jornalística. A liberdade de informação tem sido ao longo da história ameaçada e reprimida pelo poder e pelos donos das empresas, chegando mesmo a conformar os profissionais de redação. A afronta à liberdade de expressão seria um “argumento rústico”, nas palavras de Jânio de Freitas, até para os que defenderam a extinção da necessidade do diploma. Para muitos, como o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, o STF não era sequer a instância adequada para a discussão da matéria. O advogado participou do programa Observatório da Imprensa, exibido no final de junho em Pernambuco pela TVU, que repercutiu a decisão. No mesmo


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“o cidadão que cursa Direito, em 99% dos casos, está pensando em ser advogado, procurador, juiz, não em ser jornalista” ivanildo Sampaio

MUDanÇaS no MeRcaDo

O diretor de redação do Jornal do Commercio, Ivanildo Sampaio, concorda que a decisão do Supremo deve modificar o mercado, mas duvida da invasão das redações por outros profissionais: “O cidadão que cursa Direito, em 99% dos casos, está pensando em ser advogado, procurador, juiz, não em ser jornalista. Se assim fosse, teria feito vestibular de Jornalismo. O mesmo vale para estudantes de Medicina, de Engenharia

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gIANNe CARvAlhO/RepROdUçãO

programa esteve presente o professor Muniz Sodré, que acompanhou o raciocínio: “Essa decisão é mais um capítulo da judicialização da vida social. É uma legislação indevida da Justiça em cima de assuntos que deviam ter sido discutidos no Legislativo e com a comunidade”, completou Sodré. A decisão se deu em virtude de processo que tramitava desde 2006, e já era esperada pela Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), mas mesmo assim teve um efeito devastador nas universidades e nas redações. No primeiro encontro de estudantes e professores sobre o assunto no Recife, dois dias após a votação, o clima era de velório, em uma sala de aula na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), instituição pioneira no ensino de graduação em Jornalismo, em Pernambuco, com curso aberto em 1961. “Sou pessimista. Acho que daqui a alguns anos o curso de Jornalismo será apenas um curso técnico de curta duração, e as empresas de comunicação estarão cheias de profissionais de outras áreas”, opinou na ocasião o presidente do Sindicato de Jornalistas do Estado, Ayrton Maciel.

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ou Informática”, pondera. Apesar de ter o diploma, Ivanildo diz que sempre foi contra a “reserva de mercado” para a profissão: “Carlos Heitor Cony, Jânio de Freitas, Clóvis Rossi, Juracy Andrade, Fernando Menezes, Milton Coelho da Graça, Mino Carta, todos no ‘batente’, não têm diploma, afora dezenas e dezenas de grandes talentos que se aposentaram ou morreram. Então, as redações deveriam ser fechadas para eles?” Segundo Ivanildo, o caminho a partir de agora pode ser a exigência de um curso superior, em qualquer área, seguido de um período de formação nas próprias empresas, como ocorre nos grandes jornais de São Paulo. Entendimento semelhante

ao do professor Roberto Romano, da Unicamp, que ressalta a importância de uma formação específica em áreas de conhecimento antes da atuação profissional jornalística: “Caso contrário, será mantida a atual balbúrdia, com jornalistas que redigem coisas sobre assuntos que ignoram quase totalmente, e, deste modo, apenas acentuam o argumento de autoridade no universo público”. Por sua vez, a coordenadora do curso de Jornalismo da Unicap, Paula Reis, viu a decisão do STF como um reflexo da compreensão estreita sobre o conceito de comunicação pública. “Os juízes confundiram liberdade de expressão com uma comunicação pública qualificada, para

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AgÊNCIA eSTAdO

“o problema não reside nos cursos de jornalismo, mas em todo o ratio studiorum acadêmico, que força em demasia as ‘especializações’” Roberto Romano

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concoRDância

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RegUlaMentaÇão pRofiSSional

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RoBeRto RoMano

O diretor de redação do Jornal do Commercio diz que sempre foi contra a reserva de mercado A professora Ivana Bentes, da UFRj, acredita que o fim da obrigatoriedade abre oportunidades para os novos meios Alfredo vizeu, professor de jornalismo da UFpe, defende a criação de um conselho de jornalismo, nos moldes da OAB

Filósofo defende formação específica em áreas de conhecimento, antes da atuação jornalística

a qual é necessária uma preparação”, avalia. De qualquer modo, a prática acadêmica não deve ser tão alterada, de acordo com Paula. “O curso de Publicidade não é regulamentado, no entanto é um curso em expansão. As agências reconhecem que formação é necessária, e buscam aqui os seus estagiários”, compara Reis. Alfredo Vizeu, professor do Centro de Arte e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acredita que a decisão da corte suprema deve suscitar a criação urgente de um conselho de jornalismo, nos moldes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a fim de regulamentar a atividade profissional.

noVoS MeioS eM DeBate

O professor da UFPE José Afonso Júnior chama a atenção para o fato de que a revogação do diploma acontece em um momento culturalmente

complexo no mundo. “Twitters, facebooks e blogs ocupam lugar e impactam definitivamente na cobertura jornalística cotidiana. São mídias pessoais inseridas numa dimensão pública, diversificada e múltipla”, aponta, citando as eleições no Irã como exemplo, quando o governo proibiu o acesso a vários sites na internet, mas esqueceu o Twitter, por onde as informações passaram fragmentadas. “Ter um vídeo de assassinato de civis, no caso dos protestos no Irã, é questionável quanto à autoridade da fonte. Mas ter um enxame de vídeos redundando e complexificando esses eventos, só reforça o papel de mídia e o fenômeno de ancoragem do jornalismo diante de uma realidade multimediatizada”, observa. Este ano, o New York Times criou a editoria de “mídia social”, com o objetivo de colher dados e tendências na internet, sobretudo na mata densa dos blogs e das redes de relacionamento. “À medida que a nova mídia se torna menos nova, o que era informal vai sendo institucionalizado”, escreveu Kevin Anderson, editor de blogs do inglês The Guardian, a propósito da nova editoria do NYT. Com o advento das chamadas “novas mídias”, cresce a noção de que a produção da informação se constitua uma atividade livre, franqueada democraticamente a qualquer pessoa portadora de um aparelho de telefone celular, por exemplo. “Estamos vivendo uma transformação na

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linguagem. O mundo está cada vez mais visual”, afirmou em palestra recente o jornalista Caio Túlio Costa, defensor da queda do diploma – assim como o jornal em que atuava, a Folha de S. Paulo – desde a década de 1980. Em editorial que comentou e celebrou a decisão do STF, o jornal O Estado de S.Paulo perfilou a evolução tecnológica como uma das razões que deixavam “ainda mais despropositada e inteiramente inócua” a exigência do diploma. Para o jornalista e professor da Unicap, Marcelo Abreu, é preciso ter cuidado quando se fala em “nova mídia”. “Não se questiona se o que há na internet é jornalismo produzido pela internet ou canibalizado dos meios tradicionais”, lembra. A professora Ivana Bentes, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é uma das grandes entusiastas da mídia digital, e comemorou o fim da exigência do diploma como uma rica oportunidade, em artigo para a sua coluna na revista Carta Capital. “O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo no Brasil abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da Comunicação pós-mídias digitais”, escreve ela. “O fim do diploma tira da ‘invisibilidade’ a nova força do capitalismo cognitivo, as centenas e milhares de jovens free-lancers, autônomos, midialivristas, inclusive formados em outras habilitações de Comunicação, que eram impedidos por lei de fazer jornalismo e constituem hoje os novos produtores simbólicos, a nova força de trabalho ‘vivo’.” O professor Marcelo Abreu comenta a apologia do espaço virtual promovida por Ivana Bentes: “Quem nos dera se


jOãO CARlOS mAZellA

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No Recife, estudantes e professores protestam contra a decisão do Supremo O presidente do STF alegou que a obrigatoriedade do diploma fere a liberdade de expressão

já fossemos pós-digitais e tivéssemos superado essa fase adolescente em que a humanidade parece hipnotizada pela tecnologia. Mas ainda não é o caso. Sua comemoração encaixa-se perfeitamente na louvação desenfreada e acrítica desse mundo barato, banal e pobre instituído pela tecnologia digital. Um mundo em que ativistas e acadêmicos se especializaram em arrotar novos rótulos tecnológicos (‘capitalismo cognitivo’, ‘pré-cogs’, ‘midialivristas’, para citar somente três) com o intuito de preencher seu vazio existencial”, critica, acrescentando que “eles defendem a desregulamentação de tudo, inclusive de profissões essenciais como o jornalismo. E consideram como retrógradas e anacrônicas as lutas sindicais. O artigo representa bem a nova idiotização reacionária em que a precariedade é exaltada como liberdade e democracia”.

José Afonso Jr. evoca o teórico canadense Marshall McLuhan, que apontava os meios de comunicação como extensões do homem, muito antes do advento da tecnologia digital. “Isso não só aconteceu, como o contrário também é verdade: os homens são meios de extensão dos dispositivos de mídia. Carregar um celular multimídia não é mais novidade, é quase um apelo comum ao atual patamar de comunicar-se, é uma questão que se sobrepõe à delimitação de ser humano num contexto digitalurbano-midiático. É exatamente o que está acontecendo hoje”, garante Afonso, que é graduado em jornalismo, com mestrado e doutorado em estudos de jornalismo. Para o diretor da Casa do Saber de São Paulo, ex-ombudsman da Folha de S.Paulo, Mario Vitor Santos, “O que está se discutindo é uma questão democrática profunda, que diz respeito não ao comportamento da mídia, mas à sociedade como um todo, e aos direitos democráticos e republicanos do cidadão”. Em entrevista ao Observatório da Imprensa, Santos, corroborando o discurso de Ivana Bentes, afirmou que o debate sobre o diploma está ultrapassado pela tecnologia. “Será que quem trabalha como jornalista no imenso território da internet precisa

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necessariamente ter o diploma de uma faculdade autorizada pelo MEC para exercer sua profissão?”. Na sua visão, o jornalismo encontra-se “incontrolavelmente disseminado” pela rede mundial de computadores. No mesmo programa, Muniz Sodré rebateu: “A internet abala de algum modo a identidade clássica do jornalista. Mas não creio que o jornalismo se resolva como uma questão técnica”. O poder de síntese, cada vez mais imprescindível na comunicação dos fatos em tempo real, o conhecimento de teorias que relacionam o mundo ao leitor ou espectador, e a experiência concreta do trabalho jornalístico em face dos novos meios impõem um movimento de adaptação. “Os desafios colocados pela mídia digital, mais do que a questão do diploma, fazem com que os estudantes tenham que estar mais preparados, do ponto de vista teórico e prático”, analisa o professor Alfredo Vizeu, da UFPE. Para Vizeu, a valorização do curso superior de Jornalismo, mais do que nunca, precisa ser defendida.

fUtURo Do eStUDo acaDÊMico A decisão do STF, por mais controversa que seja, parece ter chegado num bom momento para o jornalismo brasileiro. Pois a crise de identidade reforçada


ANTÔNIO CRUZ/ABR

no cinema, a corrida espacial foi marcante em dois clássicos: 2001, uma odisséia no espaço e a comédia Barbarella

“Um excelente chefe de cozinha poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima estarmos a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área” gilmar Mendes

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pelo fim da obrigatoriedade do diploma encontra em pleno processo a discussão sobre o futuro curricular da profissão. Desde o começo do ano, o Ministério da Educação instalou uma comissão para proceder à revisão das diretrizes curriculares do jornalismo (o presidente da comissão, José Marques de Melo, assina artigo para a Continente nesta edição). E, se uma mudança já se delineava, agora ela é bem-vinda, como uma resposta aos anseios dos futuros jornalistas e diante das dúvidas geradas pela “queda” do diploma. “O campo midiático é central na sociedade, por onde passam todos os discursos”, observa a professora Paula Reis. “São esses discursos que são gerenciados pelos jornalistas. O jornalista formado tem melhor percepção da articulação da mídia com os outros setores da sociedade. Ele deve saber o que está fazendo”. Segundo o filósofo Roberto Romano, isso remete a outra questão. “O problema não reside nos cursos de Jornalismo, mas em todo o ratio studiorum acadêmico, que força em demasia as ‘especializações’, as quais geram profissionais capazes apenas de operar dentro dos limites estreitos de sua ‘competência’”, critica. O professor da UFPE, Alfredo Vizeu, integra a comissão nacional, presidida

por José Marques de Melo, que estuda a alteração do currículo de jornalismo. “A comissão precisará dialogar um pouco mais, e ver como a revogação da obrigatoriedade do diploma mexe com as diretrizes curriculares. É importante mostrar à sociedade que é necessário ter um bom curso de jornalismo, como profissão estratégica numa democracia”, diz Vizeu. No Observatório da Imprensa, Mário Vitor Santos provocou: “Que venham os cientistas, que venham os artistas, os diretores de teatro, que os escritores voltem a trabalhar na imprensa e a competir com os jornalistas formados pelas universidades. Isso será muito positivo para os jornalistas formados. Essa competição é salutar, e vai inclusive incentivar a melhoria das faculdades de comunicação”. A mesma opinião é compartilhada por professores e profissionais de imprensa em todo o país, talvez como uma forma de atenuar nos estudantes a ansiedade provocada pelas palavras definitivas do ministro Gilmar Mendes. “O jornalista de qualidade será obrigado a se reciclar permanentemente, mantendo-se ligado a algum nível de vida acadêmica, pois um diploma só é pouco”, escreveu em sua coluna Gilberto Dimenstein. Mas a professora Paula Reis alerta: o tempo acadêmico

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é diferente do tempo do mercado. “E a universidade não está só para atender o mercado, mas também para refletir sobre ele, melhorando-o, apresentando inovações”, sustenta a coordenadora de Jornalismo da Unicap. “Se os cursos conseguirem se reinventar, a demanda pode até aumentar”, afirmou em seu blog o jornalista Reinaldo Azevedo, defensor da livre atividade da profissão. A perspectiva é de que a melhoria na qualidade do ensino possa gerar mais qualidade na informação dos meios de comunicação, fazendo com que o mercado se abra naturalmente para os profissionais formados nas faculdades, como tem acontecido nos Estados Unidos, na Europa e em países da América do Sul, como a Argentina. A estudante de Jornalismo da Unicap, Aline Fontelli, acha que o momento é oportuno para elevar a qualidade do ensino. “A decisão do STF foi somente o estopim. Temos que mobilizar a sociedade em defesa do jornalismo, porque o jornalista é o primeiro a protestar, e tomar partido quando a sociedade precisa. Se não fosse a imprensa, ninguém se mexia para fazer nada”, avalia a futura profissional. “Eu não sei ser outra coisa. Eu me sinto jornalista. Quero ter o meu diploma e dizer: isso vale!”


RepROdUçãO

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cenÁrio inTernacional como alguns países lidam com a prática jornalística e a demanda da graduação A não-exigência do diploma em parte da Europa e América deu suporte à argumentação do STF para justificar ser desnecessária formação específica ao exercício da profissão TEXTO Danielle Romani

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Rotina

Na maioria das redações europeias, como na do El País (acima), valem a experiência e a filiação sindical


a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão de jornalista caiu como uma bomba sobre a cabeça de grande parte dos profissionais da área que, perplexos, ainda se perguntam: a partir de agora, como funcionará o mercado, de que forma ele será regulamentado? Mas a decisão do Supremo não transforma o Brasil numa exceção. Muito pelo contrário: na contramão do que ocorria em território nacional, a esmagadora maioria dos países do Ocidente dispensa a obrigatoriedade do diploma, apesar de mercado e empresas do exterior terem regras rígidas para a admissão de profissionais.

A não-exigência do diploma na maioria dos países europeus e americanos foi uma das bases da argumentação do presidente do STF, Gilmar Mendes, para justificar que jornalistas – assim como cozinheiros, conforme comparou – não necessitam de diploma nem de formação específica para o exercício da profissão. O professor, escritor e jornalista Felipe Pena, autor do livro Teoria do jornalismo, lamenta a decisão do Supremo, mas admite que, hoje, diferentemente do que pensava no passado, não considera que a obrigatoriedade do diploma seja um fato inquestionável. “Sou favorável ao diploma de jornalismo, o que não significa defender a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. Acho que deveria haver algum tipo de regulamentação, nos moldes do que existe na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que faz provas para verificar se o profissional está habilitado a exercer a profissão, embora o diploma, nesse caso, seja obrigatório”, afirmou Pena, que conhece a legislação de alguns países, a exemplo dos Estados Unidos, da Espanha e França, onde fez pósdoutorado em semiologia. “Nos Estados Unidos, por exemplo, não há exigência em relação ao diploma, porém, 79% dos profissionais da imprensa têm formação acadêmica em jornalismo. Mas trata-se de uma formação de pós-graduação, um curso de um a dois anos de duração, que o sujeito faz depois de cursar outra carreira (o que eles chamam de undergraduate). Não há regulamentação para exigir o diploma, os bons profissionais permanecem”, explica. Na Espanha e na França, ainda segundo Pena, também não há exigência do diploma, apesar de nos dois países os cursos de jornalismo serem regulamentados, formando profissionais na graduação. “A Universidade de Navarra, no País Basco, inclusive, é uma das melhores do mundo”, observa ele, que estudou na Sorbonne e é professor de jornalismo da Universidade Federal Fluminense (RJ). No livro Les journalistes (Presse Universitaires, 1995, sem tradução em português), Michel Mathien

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nos estados Unidos, não há exigência em relação ao diploma, mas 79% dos profissionais cursaram Jornalismo detalha como se dá o funcionamento desses dois importantes mercados europeus. Na Espanha, não há obrigatoriedade de formação superior, o acesso à profissão é condicionado à nacionalidade espanhola, inscrição no registro de jornalistas e, ainda, à posse de diploma em ciências da informação ou de um currículo em que se comprove entre dois a cinco anos de experiência. Na França, também não há obrigatoriedade de formação superior, apesar dos cursos de graduação e pós-graduação disponíveis. Lá, quem exerce a profissão, e sobrevive dela, é considerado um profissional da área. Na Alemanha, exige-se um aprendizado prático de 18 a 24 meses, e, após esse período, o aspirante poderá ser reconhecido por empresas e organizações sindicais. Na Dinamarca, a licença é concedida pelo Sindicato dos Jornalistas. O mesmo acontece em Luxemburgo e nos Países-Baixos. Na Bélgica, o acesso à profissão também é condicionado ao reconhecimento por parte da organização profissional, mas os diplomados têm vantagens salariais sobre os que não possuem diploma de graduação. Na Grécia, a exigência é de que se tenha três anos de experiência na área. Na Irlanda, não há regras, entra quem se dispuser. Em Portugal, para exercer a profissão também não é necessário fazer o curso de jornalismo, mas é preciso ter graduação em alguma área de ciência da informação e ser associado ao Sindicato Nacional. “Aqui não se exige formação superior em jornalismo, e o sindicato defende isso, chama de ‘livre acesso à profissão’”, explica a jornalista portuguesa Lídia Marôpo. Na Itália, quem dita as regras é a Ordine dei Giornalisti (Ordem dos Jornalistas), uma instituição de direito público autônoma. Ela não tem vínculo com o governo e, diferentemente de um sindicato, como acontece no Brasil,


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a filiação à Ordem é obrigatória: todos que querem exercer a profissão no país têm que se submeter à sua aprovação. O profissional italiano não precisa ter diploma superior – apesar da Ordine brigar há décadas para que ele seja adotado –, mas é necessário estar em dia com as parcelas pagas à instituição (cerca de US$ 110 anuais), caso contrário, terá a licença cassada. Na Inglaterra, Escócia e País de Gales, segundo entrevista concedida pelo jornalista Silio Boccanera para o programa televisivo Observatório da Imprensa, não existe diploma nem exigência desta formação específica. “Os editores consideram que o essencial é a formação da pessoa. Uma qualificação universitária é bem-vista, e ela pode ser feita, inclusive, em jornalismo”, explicou o repórter. Na Argentina, como em grande parte dos países americanos, o diploma não é tradição e nunca foi cobrado, apesar de a maioria dos profissionais ser formada em jornalismo, o que se constata com o término da ditadura militar. Especialista em Direito da Comunicação, o advogado José Paulo

a tendência futura é de que várias nações dos países desenvolvidos passem a exigir o diploma universitário Cavalcanti Filho afirma que, apesar da não-exigência do diploma na maioria dos países, a tendência futura é de que várias nações dos países desenvolvidos passem a exigir o diploma universitário. “Principalmente nos Estados Unidos, os jornais, e não os jornalistas, brigam para que o diploma seja uma condição. E por que isto? Porque temem as altas indenizações estipuladas pela Justiça, cobradas quando o repórter comete uma falha, e pagas, normalmente, pelas empresas. A tendência, portanto, é de que o mundo ande em direção contrária ao Brasil”, afirma o advogado, que considera a decisão do Supremo um equívoco. “Sob o pretexto da liberdade de expressão, patrocinaram um

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excelÊncia

A Universidade de Navarra, no país Basco, é considerada uma das melhores do mundo na área de comunicação

retrocesso que afetará decisivamente a qualidade do nosso jornalismo”. Para exemplificar a preocupação dos editores americanos, José Paulo citou o caso protagonizado, em 2003, por Jayson Blair (que alegava ser graduado, mas jamais concluiu o curso de jornalismo da Universidade de Maryland, como foi descoberto posteriormente), e que causou grandes constrangimentos ao New York Times, além do desembolso de indenizações e multas milionárias, em ressarcimento a pessoas lesadas pelas matérias do repórter. À época, Jayson Blair fez várias matérias inventadas, uma delas sobre a família de um soldado do Iraque. Neste caso, plagiou o San Antonio Express-News . Em outras, inventou fatos que não presenciou. Diante de situações como essas, e de legislações competentes para punir erros e difamações publicadas pelos jornais, os países desenvolvidos buscam profissionais melhor capacitados, com conceitos éticos e legais mais arraigados, e que apresentem uma conduta profissional responsável.


Artigo

josé Marques de Melo jornalisMo: coMpeTência e responsabilidade

O diploma não era obrigatório, quando, há meio século, ingressei no exercício da profissão. Aprendi a fazer notícias e comentários, capitalizando a experiência do leitor atento que sempre fui, além de observar as rotinas de trabalho vigentes na redação. Assimilei naturalmente as lições ditadas, no Jornal de Alagoas, pelo meu editor, Carvalho Veras, nutrindome ainda na escassa literatura então existente sobre a matéria. Mas cedo percebi que a prática era limitada e o autodidatismo insuficiente. Resolvi estudar jornalismo na universidade. Foi a decisão mais acertada que poderia tomar. Depois, quis saber se a teoria aprendida se aplicava à realidade. Isso foi possível através do estágio no jornal Última Hora – Nordeste e na Rádio Universitária do Recife. Também me beneficiei da iniciação científica feita no Instituto de Ciências da Informação – Icinform, útil para refinar a apuração dos fatos e necessária para sua interpretação.

Já me encontrava em São Paulo, no auge da carreira, quando o diploma foi decretado. Providência salutar para o saneamento da profissão, invadida por oportunistas. Estes só queriam beneficiar-se da isenção tributária sobre a renda ou ter desconto em viagens aéreas e outras vantagens concedidas aos jornalistas. Tais privilégios foram abolidos, desaparecendo o encanto que seduzia os arrivistas. Com a profissionalização das empresas, o jornalismo deixou de ser bico, requerendo jornada em tempo integral. Melhores salários e mais oportunidades de trabalho contribuíram para multiplicar os cursos de jornalismo. As políticas públicas de fomento aos laboratórios didáticos e a vigilância do Estado em relação à competência dos professores elevaram a qualidade do ensino. Mas isso não se deu uniformemente em todo o território nacional. Os processos de avaliação periódica foram decisivos para separar as boas escolas daquelas ruins, que se converteram em autênticas “fábricas de diplomas”. Fator negativo foi a proibição do estágio, distanciando os estudantes de jornalismo do mercado de trabalho. Por outro lado, a radicalização das posições, nas entidades sindicais, tanto dos trabalhadores quanto do patronato, a propósito da formação de jornalistas especializados, produziu uma brecha ocupacional que se foi alargando com o tempo. A necessidade de contratação de profissionais de outras áreas do conhecimento para reforçar as editorias de finanças, política internacional, ciência, cultura e tecnologia, esbarrava na lei do diploma, que requeria a graduação específica. Em outros países, esse impasse foi solucionado através da diplomação em cursos pós-graduados. O Supremo Tribunal Federal, ao invés de aperfeiçoar a legislação vigente, corrigindo distorções, regulando adequadamente as relações de trabalho nas empresas e contribuindo para a melhor qualificação profissional nas universidades, adotou medida extrema. Aboliu simplesmente a exigência do diploma de nível

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superior para o exercício da profissão de jornalista. Trata-se de retrocesso perigoso, que pode infestar o mercado de trabalho de aventureiros. Penetrando através dos flancos eventualmente abertos por empresas que não se pautam pela responsabilidade social, eles podem frustrar o direito da sociedade à informação veraz e à opinião abalizada. No vácuo existente, torna-se decisivo o papel a ser desempenhado pelas universidades. Primando pela melhoria da qualidade do ensino e formando jornalistas competentes e competitivos, em sintonia com as demandas da sociedade, elas poderão contribuir para neutralizar conflitos e harmonizar providências de interesse público. A sociedade brasileira atravessa conjuntura peculiar e sinaliza um novo tipo de jornalismo. Por um lado, abastecendo as elites de informações especializadas, que aprofundem a interpretação dos fatos e ajudem suas vanguardas a tomar decisões estratégicas. Mas, por outro lado, nutrindo os grandes contingentes da população de informações gerais, capazes de fortalecer a cidadania e sedimentar a democracia. Trata-se de corresponder às carências cognitivas dos famintos de cultura e sedentos de valores éticos, espalhados pelos grotões e periferias de todo o país. Avulta, portanto, o compromisso das escolas de jornalismo, reestruturadas, a partir do próximo ano, de acordo com as diretrizes instituídas pelo Ministério da Educação, subsidiando a formação de uma nova geração de profissionais competentes, empreendedores, criativos e responsáveis.

� presidente da Comissão de especialistas em ensino de jornalismo do ministério da educação. docente fundador da escola de Comunicações e Artes da Universidade de São paulo, ocupa atualmente o cargo de diretor da Cátedra Unesco de Comunicação da Universidade metodista de São paulo. Autor das recentes obras: Vestígios da travessia: da imprensa à internet (paulus/edufal), Jornalismo, forma e conteúdo (difusão) e Jornalismo, compreensão e reinvenção (Saraiva).


Gustavo escobar

Fotocopiar livros para fins educativos é justificável?

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Peleja

Prática recorrente nas universidades brasileiras, o ato ilegal de fotocopiar livros vem sendo reprimido, com mais intensidade, pela apreensão de materiais nas copiadoras, em ações policiais que têm sido tão discutidas quanto a própria reprodução de publicações, sobretudo aquelas para uso didático. Para debater o assunto, a continente convidou o advogado Gustavo Escobar, especialista em propriedade intelectual, e o professor e doutor em Filosofia Marcelo Pelizzoli.

O nosso sistema de direitos autorais está em crise. No Brasil, há uma “cultura de violação” desses direitos. Isto é materializado pela cópia em larga escala de livros ou de grandes trechos dos mesmos. Parece existir a “tranquilizadora” desculpa de que, por ser educação, os fins justificam os meios. Assim, não seria nada demais copiar um manual para estudar. Será? Para se dedicar ao estudo de algum tema, autores investem tempo, dinheiro e raciocínio. Muitas vezes, após longos períodos de imersão acadêmica, acham que podem compartilhar o seu conhecimento e, ao mesmo tempo, serem recompensados pela grande dedicação à ciência e cultura. Isto feito, acertam – quando conseguem – a publicação de sua obra com uma editora, recebendo um percentual (royalties) diretamente ligado à vendagem da obra. Assim sendo, fica evidente a legitimidade do direito da remuneração pela comercialização do livro, o que é consagrado em nossa legislação. Diga-se também que, consoante o Art. 29. da Lei 9.610/98, “Depende de autorização prévia e expressa do autor (...): I – a reprodução parcial ou integral”. As exceções e limitações ao direito autoral, expostas na mesma legislação, não se amoldam à prática em nossas faculdades, ou seja, a cópia é indiscriminada e generalizada. Uma única exceção poderia ser aplicada em situações esporádicas, vejamos: Art. 46. “Não constitui ofensa aos direitos autorais: II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro”. Não é isso que acontece, na verdade: temos o que poderíamos denominar a “indústria da xerox”. A origem desse problema não está somente no aluno. Há acervo suficiente nas bibliotecas? E, com a carência dessas, a aquisição de livros seria alternativa lícita. Será que nossa renda per capita permite esse “luxo”? Devemos ponderar ainda sobre a responsabilidade solidária do estabelecimento de ensino, já que, para a prática da cópia, ele faz, no mínimo, “vista grossa”. Sobre isso, vejamos o que diz a mesma lei: Art. 104. “Quem vender (...), adquirir, distribuir ou utilizar obra (...) reproduzida com fraude, com a finalidade de obter (...) proveito, lucro direto ou indireto, (...) será solidariamente responsável como contrafator, nos termos dos artigos precedentes”. Esta prática traz consequências de natureza civil (indenizatória), mas também criminal. Como resolver este imbróglio? O que se revela como negativo não é a reprodução em si, mas a falta de autorização para tanto. Assim sendo, as instituições de ensino superior poderiam, em conjunto com as editoras, celebrar acordo para que houvesse a autorização para a cópia acadêmica e parte da receita seria repassada às editoras e aos autores. Outra alternativa seria a criação do que já vem sendo chamado de “livro didático universitário”, em que teríamos a matéria a ser abordada pelo professor e compilação de citações de outros livros, ação esta que não corresponde à violação. Estas são duas sugestões. Enquanto isso, cumpre-nos obedecer a lei e estimular o respeito à propriedade intelectual.

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“o nosso sistema de direitos autorais está em crise. no brasil, há uma ‘cultura de violação’ materializada pela cópia de livros”


fotos/flora Pimentel

Gustavo Escobar

marcelo pelizzoli No âmbito do ethos, que é aquele do comportamento humano e dos dilemas morais, toda ação deve ser referida ao seu contexto e momento. A lex dura lex positiva, como tal, é uma abstração, e sempre que cai em cada realidade é dada a ideologias, interesses, carências e poderes em jogo, dominação, capital.... Há leis para regular direitos autorais, como no caso de livros, um copyright. Bom. Ela é uma proteção ao criador (ao autor, umas migalhas por cento, diga-se), à editora e à livraria (muitos por cento...). Há criações, no Leviatã (monstro leviano e esmagador), um deles chamado Mercado, que são supérfluas, ou que não são essenciais (a maioria). Há outras, de grau essencial, tal como boa parte dos livros. Na boca política, educação é ouro; na prática, pode ser Midas. É por isto que surge, formal e informalmente, entre as sociedades de menor poder econômico em especial, um tipo de copyleft, ou copyfree, que na verdade tem um custo – o custo da fotocopiagem, e o custo de uma transgressão à lei. No mundo da desigualdade, não há ética sem transgressão, somente ética hipócrita. Ao mesmo tempo, sem bom senso e normas, beiramos o descontrole. A lei reconhece um pouquinho disso quando dá a possibilidade de fazer “uns pouco por cento” de cópias de cada obra. Muitos alunos precisam, frequentemente, de mais que isso, de fato. Talvez devesse haver algo como cotas para livros ?! De quando em vez, o poder editorial e comercial do livro – que recebe isenção em impostos, ou seja, nós todos pagamos parte do produto – vem com a polícia e faz um “arrastão” nas fotocopiadoras próximas ou até dentro das universidades (inclusive federais, onde somente o poder federal deveria entrar. Mas transgressão é comum para o pobre e para o rico, não é mesmo?). No Brasil, uma pergunta que não quer calar é: como e por que o poder privado se utiliza e abusa do público? Questões: se não houvesse cópias ilegais, haveria mais compra de livros e o custo deles diminuiria? Em parte, sim, mas provavelmente o olho do lucro cresceria e, portanto, a variação seria insuficiente para o nosso leitor. O incremento de políticas “bibliotecalizantes”, públicas, ou com apoio privado, melhoraria a situação? Melhoraria em boa parte. Sugiro que lutemos por uma ação e política integrada para a cultura do livro, na qual, por exemplo: teríamos edições mais acessíveis, em papel reciclado (papel branco em geral é antiecológico); o olho do lucro da editora e da livraria se aquietasse; o governo investisse mais em educação; os projetos culturais governo/empresariais com suas isenções aportassem mais em leitura e menos em cultura semi-inútil; e, ao mesmo tempo, houvesse uma política cultural educacional de promoção da leitura, contação de histórias, banco de livros, clube do livro etc., tudo isso dentro da superação das políticas tecnicistas e racionalistas de ensino e educação. Catolicamente (Doutrina Social da Igreja), e legalmente (Código Civil), o furto, na fome, não é bem furto. Livro é pão. Qual é a sua opinião? Certamente, seja ela qual for, depende também dos livros...

“no mundo da desigualdade, não há ética sem transgressão, somente ética hipócrita”

Marcelo Pelizzoli continente JULho 2009 | 31


no estúdio Aparadores de arestas O que fazem os produtores musicais, onde eles se situam na indústria fonográfica e como influem no resultado final da obra TEXTO Diogo Guedes FOTOS Flora Pimentel

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mercado

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o significado da expressão

“produtor musical” nem sempre é compreendido corretamente por pessoas alheias à cadeia fonográfica. Normalmente, o mal-entendido é confundir a tarefa com o cargo de produtor executivo de uma banda, artista ou até mesmo de um evento – caso de, por exemplo, Paulo André Pires, que empresaria DJ Dolores e Mundo Livre S/A e organiza o Abril Pro Rock. A atividade só é mais bemdefinida quando o profissional é chamado de produtor de discos, nome que, na verdade, sugere uma atividade mais industrial do que artística. O produtor musical é como um integrante temporário adicionado a uma banda na hora de se fazer um CD. Trata-se, de fato, de uma espécie de artista convidado sem uma função específica, além de palpitar ou fazer o conjunto prestar atenção em detalhes das faixas e da obra só perceptíveis a partir de uma visão externa. Não é à toa que um dos maiores produtores do mundo, George Martin, ganhou o apelido de “quinto Beatle”, por sua participação fundamental em quase todos os trabalhos dos ingleses. Embora Martin soubesse tocar piano, para a atividade de produtor nunca foi obrigatório o domínio de um instrumento ou conhecimento técnico sobre os equipamentos de estúdio – essas habilidades, no entanto, são muito bem-vindas. Mais importante é saber se relacionar bem com artistas e ter o famoso “faro” de transformar uma música em estado bruto em uma faixa limpa, melódica e que ainda mantenha a sua proposta original. “Até os anos 1990, o produtor era mais um cara que conhecia música, mas não sabia necessariamente operar os equipamentos”, conta Zé Guilherme Lima, produtor e criador do estúdio Jardel, sediado em São Paulo. No entanto, em tempos de internet e acessibilidade à informação, essa tendência mudou: muitos dos mais promissores nomes atuais, como Alexandre Kassin, produtor de artistas como Caetano Veloso, Jorge Mautner, Los Hermanos, começaram a se interessar pelo trabalho a partir de experiências como músicos em gravações e foram aprendendo a mexer nas mesas e aparelhos de som.

“Eu aprendi fuçando. Sempre fui muito de correr atrás de site na internet, revistas, livros”, conta Leonardo Domingues, ou Leo D, produtor e um dos donos do estúdio pernambucano Mr. Mouse, narrando história comum a toda uma geração que começou realizando gravações caseiras, apenas para satisfazer a vontade de ter uma fita demo. “Quando eu comecei a frequentar os estúdios, meu lado nerd passou a se interessar mais pela questão técnica”, explica Zé Guilherme, completando: “Era, na verdade, quase um trabalho de adivinhação”. Mas o que faz músicos em início da carreira preferirem ficar mais afastados dos palcos e trabalhar com produções de outros artistas? Antes de tudo, a descoberta prazerosa de participar do processo de construção e gravação de músicas – a paixão em ser parte de uma banda diferente a cada trabalho realizado. “Eu não sou músico nato, não gosto muito de fazer shows”, confessa Alexandre Kassin, apontado como o Tom Capone da atualidade. Na década de 1990, Capone se consagrou ao realizar discos com Legião Urbana, Raimundos, Lenine e Maria Rita. Pessoas que construíram seu nome a partir de trabalhos mais alternativos, como Kassin, ou que acabaram criando seus próprios estúdios, como Beto Villares, Zé Guilherme ou Leo D, dizem ter liberdade muito maior na escolha dos trabalhos que vão aceitar e de como vão fazê-los, se comparados aos profissionais empregados nas grandes gravadoras, que precisam responder, por vezes, até pela vendagem da obra.

ProceSSoS

Um disco começa, antes de tudo, com um contato com o artista, seja a partir de uma relação de amizade ou de interesse mútuo. O produtor, então, escuta uma gravação caseira ou acompanha um ensaio do artista para conhecer o repertório disponível para o disco. Esse início é parte essencial do processo: “Na pré-produção, você tenta cortar os problemas antes de eles acontecerem no estúdio”, explica Zé Guilherme. As músicas escolhidas, as possíveis mudanças nos arranjos e nas letras, a definição geral da sonoridade e da proposta do disco e até o plano

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de gravação de cada instrumento são decididos nessa etapa. Pode ser importante para o produtor até a convivência com o mundo do artista, para captar a essência do que ele quer passar em um CD. “Quando gravei o primeiro disco de Siba com a Fuloresta do Samba, fiquei 20 dias em Nazaré da Mata, só vivenciando aquilo, comendo macaxeira e carne seca e olhando para pés de cana-de-açúcar”, conta o produtor Beto Villares, que, além de trabalhar com Siba, produziu os dois trabalhos da cantora Céu e trilhas para cinema. Com repertório e arranjos definidos, chega o momento da captação do áudio. O mais importante para essa fase é que os músicos já venham bem-ensaiados, até porque, segundo o produtor do Estúdio Fábrica, Jefferson Moura, “É bem diferente ensaiar para shows e para sessões de estúdio”. Normalmente, os primeiros instrumentos a serem gravados são os que compõem a “cozinha” das bandas: a bateria e o baixo, seguidos das guitarras (base e solo) e dos vocais. Quando não são necessárias

o produtor musical é como um integrante temporário adicionado a uma banda na hora de se fazer um cd as repetições das tomadas, por conta de erros, sobra mais tempo até para experimentações dos músicos. A partir da edição é que são trabalhados os elementos mais técnicos do processo de produção. Envolvendo menos horas do que o tempo de gravação, essa etapa tem duas funções básicas: corrigir erros – tanto de execução quanto de saída de tempo – e permitir a escolha dos melhores trechos captados. “As pessoas subestimam essa parte”, conta Jefferson, “Mas ela é como uma limpeza da sessão de estúdio”. Na mixagem, momento em que a música ganha seus contornos finais, o papel do produtor é, ao equalizar o volume dos canais gravados,

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“Direcionar a atenção dos ouvintes para determinados elementos da música”, segundo Zé Guilherme. Mesmo que quase nada seja acrescentado às gravações editadas, podem-se criar alguns efeitos, como delays (pequenos ecos) e reverbs (reflexões no som). O resultado é que a faixa, antes composta de diversos canais, sai convertida em LR (em inglês, esquerda/direita, referência ao som estéreo, dividido em duas saídas de som). “Cada mixagem feita é uma nova interpretação da música”, completa o carioca. Por fim, a masterização é feita normalmente por um profissional especializado: “É o processo mais mecânico, até porque não se muda muito a sonoridade da música nessa etapa”, explica Jefferson Moura. Por isso, em estúdios mais simples, como o Mr. Mouse, a recomendação é de que as bandas façam o trabalho fora. “Mas se o orçamento do grupo estiver apertado, a gente faz”, diz Leo D.

reSULtadoS

Com a participação constante em cada uma dessas etapas, é difícil


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creScimento

Os produtores Léo D e Sérgio Kyrillos, no estúdio Mr. Mouse, criado há nove anos e atualmente sediado no Varadouro, em Olinda

negar a relação de responsabilidade do produtor com a obra realizada – assim como também é questionável atribuir a ele todos os seus méritos e deméritos. “O produtor faz com que uma ideia, um rascunho se desenvolva e vire uma música tocada, gravada e mixada apropriadamente”, argumenta Beto Villares. Uma visão mais pragmática, defendida por Zé Guilherme e Leo D, é a de que o trabalho consiste em cortar os defeitos dos músicos e maximizar suas qualidades. Já Kassin e Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi e produtor de Nada de novo, da Mombojó e Agora tá valendo, da Devotos, veem na atividade que exercem, também, o papel de mediador da tríade artista, gravadora e público. Segundo Beto Villares, no resultado final de um disco, o artista responde pelo repertório e pela habilidade musical, enquanto cabe ao produtor cuidar para que o registro seja feito com excelência técnica e com o conceito estético escolhido pelo autor. Kassin, no entanto, é mais direto no modo que separa as características dos dois trabalhos. “Para o produtor, o trabalho acaba quando o disco sai; para o artista, aí é que ele realmente começa”, compara. “São os músicos que vão apresentar a obra finalizada ao público. Eles têm que ter ainda mais orgulho do que fizeram”, concorda Zé Guilherme.

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Apesar de ainda não competir com capitais mais influentes, como São Paulo e Rio de Janeiro, sede dos principais estúdios do país, Pernambuco, atualmente, apresenta um maior leque de possibilidades, tanto de locais para gravação, edição, mixagem e masterização, como de profissionais para atuar nessas áreas. Nem sempre foi assim. Em meados da

influentes dAs mesAs pArA o showbizz Quando o espectador assiste a um trailer, um dos elementos logo destacados é o nome do diretor do filme, seguido da menção a algum arrasa-quarteirão de seu currículo. O mesmo acontece com alguns produtores: de tão influentes, suas assinaturas viram selo de qualidade. Nos anos 1960 e 1970, vários discos multiplatinados vinham com o selo “A Phil Spector record”. O superprodutor foi o pioneiro da técnica que ficou conhecida como “parede de som”, que consistia em inserir orquestrações nos álbuns. Spector não dava sugestões nas obras, mas, sim, realizava intervenções, de maneira que os discos saíam com sua marca. Tanto que Paul McCartney relançaria, quase 30 anos depois, Let it be... Naked, reedição do clássico dos Beatles, sem o toque do produtor tão genial quanto genioso, recentemente condenado por homicídio. Outro Midas da produção fonográfica é Rick Rubin, conhecido por “ressuscitar” artistas. Em 1986, quando os royalties do Aerosmith já tinham virado pó (literalmente), o barbudo produziu o single Walk this way, regravação do grupo de hard rock junto com os rappers do Run DMC: depois de seis anos, o Aerosmith emplacou um hit. Já no ano passado, Rubin produziu Death Magnetic, discaço que marca o retorno do Metallica à boa e velha forma,

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depois de uma sucessão de álbuns mornos. Há, ainda, casos em que o produtor acaba pegando carona na fama do artista, caso de Jack Endino, que produziu Bleach, a estreia do Nirvana, em 1989. Esgotada a primeira tiragem, de cinco mil cópias, o disco só seria relançado em 1991, após a revolução de Nevermind. Endino tem um currículo respeitável – antes mesmo do trio grunge, já tinha gravado Mudhoney e Soundgarden –, mas até hoje, é mais conhecido como “o cara que produziu Nirvana”. Ele próprio já admitiu a ironia de que seu trabalho mais renomado seja o menos produzido: a gravação crua de Bleach custou nada mais que 600 dólares, que o selo SubPop demorou a desembolsar. No Brasil, um dos produtores mais assediados é Carlos Eduardo Miranda. O jurado mais carismático do programa Ídolos (imitação brazuca de American Idol) vem dando tiros certeiros no pop nacional desde os anos 1990, época em que capitaneava o selo Banguela, junto com os Titãs. Revelou Raimundos, produziu Skank e sua última empreitada foi C_mpl_te, CD dos incensados Móveis Coloniais de Acaju. O criador do TramaVirtual costuma dizer que sua intuição não o engana, mas deixou passar o Planet Hemp, ainda na época do selo Banguela. Certa vez, o produtor justificou que o bando de doidões “precisava de alguém que os tirasse da cadeia, e não que fosse preso junto”. Razoável. thiago lins


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década de 1990, já existiam os estúdios DB3 e o Somax, mas nenhum deles se voltava para o incentivo à produção de bandas locais – caso de novas iniciativas, como o Estúdio Fábrica e o Mr. Mouse. “Os antigos estúdios não sabiam tirar corretamente o som do rock alternativo, do grunge, com uma guitarra mais pesada”, conta Leo D, explicitando a motivação para criar o seu próprio espaço, destinado às bandas locais. Criado há cerca de nove anos, o Mr. Mouse mudou-se recentemente para uma nova sede no Varadouro, em Olinda, que não está completamente finalizada – o aquário, local onde os músicos tocam durante a gravação do áudio, ainda não foi tratado acusticamente para receber baterias, baixos e guitarras. O Fábrica também se dedica a atender o mercado estadual, baseandose principalmente em parcerias para captar recursos de leis de incentivo à cultura – um caso recente de sucesso foi o disco da Orquestra Contemporânea de Olinda, que recebeu elogios nacionais e internacionais. Os

no final de 2007, surgiu outro elemento importante para a cadeia musical local: o curso de Produção Fonográfica dois locais se gabam de não oferecerem apenas espaço, equipamentos e acompanhamento técnico para os artistas; defendem que o diferencial é o serviço de consultoria ofertado.

FormaÇÃo

Recentemente, no final de 2007, surgiu mais um elemento importante para a cadeia musical pernambucana: o curso de Produção Fonográfica, da Faculdade Barros Melo, um dos quatro existentes no país. Segundo Gustavo Almeida, coordenador da graduação, a proposta é tanto formar alunos preparados para atuar em áreas específicas da produção de áudio como incentivar o empreendedorismo e as reflexões sobre a complexidade do mercado. “O curso

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tem tido apoio total dos estúdios, até pela capacidade de formação de futuros profissionais para os seus negócios”, comemora, acrescentando que a procura dos estudantes pela graduação ainda não é a ideal, mas já vem se tornando “interessante”. Mesmo com tantos projetos e ações, ainda não há circulação de muito dinheiro no mercado local. “Infelizmente, as bandas de rock daqui não têm grana. Então, não dá para o preço do estúdio ser muito alto – ao mesmo tempo, você não pode cobrar um valor que não pague nem os seus custos.”, comenta Leo D, completando: “Tem grupos que se bancam mesmo, tiram dinheiro do bolso e fazem até cotinha entre os integrantes”. Para Zé Guilherme, que começou a carreira de produtor em Pernambuco e mudou-se posteriormente para São Paulo, o principal problema de exercer a atividade na região é o menor número de bandas e artistas interessantes: “No Recife, o teto é meio baixo. Quando você vê, já trabalhou com todo mundo da cidade”, lamenta.


fernando villela

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Hist贸ria continente julho 2009 | 39 8


rumo ao sertão a guerra dos bárbaros e a expansão do Brasil

A sociedade açucareira no século 17 se interiorizava e o conflito aconteceu em um momento de crescimento urbano e demográfico TEXTO Kalina Vanderlei Silva

o coMeÇo

Desde o século 16, algumas tentativas de adentrar os interiores em direção ao oeste haviam sido feitas a partir do litoral canavieiro, mas só na segunda metade do século 17 o interesse na região foi se tornando mais forte, depois de expulsos os holandeses, e principalmente devido às doações de terra feitas aos veteranos dessa guerra. Além disso, o próprio crescimento da sociedade canavieira fez com que se buscassem novas áreas de exploração. Assim, os grandes senhores que queriam investir em pecuária e os novos proprietários egressos das guerras holandesas foram os primeiros a tentar estabelecer uma exploração colonial no sertão das

capitanias do norte. Esses senhores vinham principalmente de dois dos mais importantes núcleos urbanos da América portuguesa, Salvador e Olinda. Os pecuaristas (curraleiros ou sesmeiros), para estabelecerem sua criação extensiva ao longo dos rios sertanejos, começaram a desalojar os habitantes originais. Chamavam os grupos indígenas das mais diversas etnias, genericamente, de tapuias, o que queria dizer bárbaros. Estes, diante da expansão dos currais, opuseram uma feroz resistência, que resultou na série de conflitos espalhada do Recôncavo da Bahia até as margens do Rio Açu, no Rio Grande do Norte, que mobilizou diversos grupos indígenas, como os cariris, os tarairiús, os acroás, os paiaiás, de um lado, contra as tropas dos sesmeiros e os homens do litoral alistados pela Coroa de outro. Era a guerra dos bárbaros.

A GUeRRA

A expressão guerra dos bárbaros foi usada pela Coroa e pelos colonos da sociedade açucareira para designar todos os conflitos que envolviam indígenas dos sertões das capitanias do norte do Estado no Brasil, durante a segunda metade do século 17 e o início do século 18. Justamente durante a fase de expansão e consolidação da pecuária. Com essa expressão, os colonos e os representantes régios do litoral generalizavam todos os muito diversos povos indígenas do continente em um único bloco, considerando-os selvagens e bestiais, demonstrando, além disso, o pouco que se preocupavam em conhecer seus adversários, e menos ainda suas reivindicações. A guerra, mais do que um evento unificado, foi constituída por uma série de conflitos independentes promovidos por grupos indígenas distintos em regiões diferentes. Caso dos paiaiás, que se revoltaram no Recôncavo da PERDAS DE PERNAMBUCO rios daTERRITORIAIS guerra do açu Bahia, dos cariris, no rio São Francisco, e dos tarairiús, no Rio Grande do Norte. Em comum, esses conflitos tinham apenas como adversários: os sesmeiros e a Coroa portuguesa. Mas Rio Apodi-Mossoró a repressão foi praticamente a mesma Rio Açu-Piranhas em todos os casos, começando com Açu os sesmeiros usando suas próprias Natal a Rio Seridó naíb tropas para desalojar os indígenas, Par io R Paraíba Rio Piancó sendo desbaratados por estes e Itamaracá Rio Pajeú Olinda terminando por pedir o socorro da Recife Rodelas Buíque Sirinhaém o Coroa portuguesa, que enviava, então, Palmares ic sc Porto Calvo ran F em cada caso, suas tropas sediadas o Sã Rio nas cidades do litoral, reforçadas pelos sertanistas paulistas. Foi assim que os pobres livres das vilas açucareiras foram levados a lutar por uma terra que não era deles, agu arib e

bem distinta da atual, formando, juntamente com o Estado do Grão Pará e Maranhão, a colônia americana do Império Português que, até mais ou menos o meio daquele século, era composta quase que totalmente de litorais. Sua área mais rica era, então, a zona do açúcar, que se estendia pelo litoral desde o Recôncavo da Bahia, onde era mais larga, até a Paraíba, alcançando um pouco das áridas costas do Rio Grande do Norte. Dentro dessa região se sobressaíam cidades e vilas bem prósperas, que eram pontos comerciais e administrativos para os produtores de açúcar. Dessas vilas partiram homens que, empurrados pela Coroa portuguesa e pela elite canavieira, fizeram guerra aos povos indígenas nos interiores daquelas capitanias, terminando por conquistar o sertão e ajudar na formação de uma nova sociedade colonial.

Rio J

no século 17, o Brasil era uma região

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bAndeiRAnte

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fRAnz poSt

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dAnÇA doS tApUiAS

domingos Jorge velho combateu os índios do norte e massacrou, em 1694, os negros do Quilombo dos Palmares Tropas iberoamericanas em fuga no rio São francisco (1644-1645) os indígenas eram chamados genericamente de tapuias, o que queria dizer bárbaros

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História

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por uma região que para eles era tão estrangeira quanto seus habitantes originais. Mas, apesar de lutarem pelos interesses de latifundiários e do Estado português, esses homens, brancos, pardos e pretos livres das vilas açucareiras terminaram por contribuir também com a formação da sociedade sertaneja, uma vez finda a guerra. Principalmente porque muitos deles se fixaram na região. Mas os primeiros a fazerem guerra no sertão foram os sesmeiros. Como a colonização foi iniciada por eles, a eles também coube a responsabilidade de conquistar e defender as novas terras. Isso porque a Coroa portuguesa, através de seus governadores, limitava-se, inicialmente, apenas a conceder aos curraleiros títulos e patentes militares. Assim, grandes senhores de terra, como Garcia d’Ávila, o senhor da Casa da Torre, dono de uma extensão de 640 léguas de terra, foram os primeiros a combater os indígenas do sertão, custeando uma guerra particular. O filho de Garcia d’Ávila, Francisco Dias d’Ávila, é um bom exemplo da participação desses latifundiários na

conquista: em 1692, ele comandou a pedido suas tropas particulares contra os acroás do sertão de Rodelas, no rio São Francisco. Com o título de Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre, Dias D’Ávila chefiou 900 homens, moradores agregados em suas terras, mais 200 índios, 100 mamelucos e 150 escravos. Sua missão, designada pela Coroa, era abrir um caminho para o Maranhão, mas ela resultou principalmente na ampliação das sesmarias da Casa da Torre. É difícil definir quando a conquista começou a sair do controle dos sesmeiros. Em cada lugar, isso aconteceu em uma época diferente, mas aconteceu em todo lugar. No Rio Grande do Norte, por exemplo, onde os conflitos mais ferrenhos envolveram principalmente os tarairiús, naquela que ficou conhecida como guerra do Açu, o marco foi o governo do pernambucano João Fernandes Vieira, antigo líder da guerra contra os holandeses. Vieira comandou a capitania da Paraíba entre 1655 e 1657, cometendo uma série de desmandos contra os janduís, de etnia tarairiú.

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Isso fez com que estes se sublevassem, chegando a cercar a cidade de Natal, levando os colonos a pedirem o socorro do Governo Geral da Bahia. A partir desse momento, a Coroa portuguesa resolveu intervir na região, solicitando que o Governador de Pernambuco enviasse tropas para o Rio Grande do Norte.

oS HoMenS

Foi por pertencer a uma área que o governo de Pernambuco considerava sua jurisdição, o Rio Grande do Norte, que as tropas de Olinda e do Recife foram deslocadas para o sertão daquela capitania. Tropas compostas principalmente por pobres de todas as cores, uma gente que as elites e a Coroa consideravam como excesso na zona canavieira, já que o trabalho nessa região deveria ser feito todo por escravos. E uma vez que eram considerados excessivos, de pouco ou nenhum valor para a produção de açúcar, a única coisa que importava então, eram recrutados à força para ajudarem de outras formas na expansão colonial.


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AS tRopAS

Para reprimir os movimentos populares surgidos no norte e nordeste durante os séculos 17 e 18, as capitanias do Brasil setentrional contavam com tropas de cavalaria e infantaria formadas por brancos, índios, negros e mestiços

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Como soldados, esses homens recebiam pouco, eram maltratados e desrespeitados. O que os levava não poucas vezes a fugir. E foi através da fuga que muitos deles, uma vez empurrados para as guerras no sertão, terminaram por se fixar na região, levando para lá um pouco dos modos de vida das vilas açucareiras. Enquanto os oficiais conseguiram, algumas vezes, sesmarias para se tornarem eles próprios grandes pecuaristas, os soldados só podiam se tornar agregados dos grandes sesmeiros, moradores livres sem terra, jagunços, ou mesmo bandidos. Na guerra dos bárbaros, lutaram diversos tipos humanos. Do lado da colonização estavam indígenas aldeados, ex-escravos e uma das tropas mais famosas de então, os sertanistas paulistas, que depois ficariam conhecidos como bandeirantes. Vindos da capitania de São Paulo, eram quase tão estrangeiros aos colonos do açúcar quanto os indígenas, ou os quilombolas de Palmares, e eram considerados, muitas vezes, selvagens. Mas eram

especialistas em lutar nos interiores do Brasil, em combater índios, e isso lhes valeu a contratação pelos governadores de Pernambuco e da Bahia. Os paulistas, chefiados por Domingos Jorge Velho e Antônio de Morais Navarro, comandaram seus homens no Açu, além de numerosos guerreiros indígenas aldeados, e mesmo as tropas de Pernambuco. Essas, sempre detratadas por serem consideradas mal-preparadas e indisciplinadas, causaram muita dor de cabeça a seus comandantes no sertão, principalmente por desertarem na primeira ocasião. Os pobres livres do litoral, recrutados à força, malpagos, famintos e desprestigiados, viam poucas vantagens em lutar até a morte contra aguerridos guerreiros indígenas que, por sua vez, não viam problemas em morrer em batalha. Mas, desertando ou não, esses homens foram tirados das vilas do açúcar em grande número para lutar no sertão. Por um lado, os sesmeiros e o Estado precisavam de braços para lutar em sua guerra, por outro os senhores de engenho queriam

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se livrar o quanto antes daquele excesso de gente livre nas vilas do açúcar. Nesse sentido, o emprego das tropas de Pernambuco servia a vários propósitos da colonização.

o fiM dA GUeRRA

Após a guerra dos bárbaros, a colonização sertaneja teve que lidar com esses personagens que para lá haviam sido levados. Fossem desertores, brancos ou pardos, milicianos pretos, oficiais e paulistas, uma gente que ia se transformando em lavradores, bandidos, ou quem sabe, sesmeiros. Uma gente que, de uma forma ou de outra, ia se estabelecendo nessa nova sociedade colonial em formação. A sociedade açucareira no século 17 era um espaço em expansão. A guerra dos bárbaros aconteceu em um momento de crescimento urbano e demográfico das vilas canavieiras, o que contribuiu para a intensa participação de sua população na expansão para o sertão. E se a sociedade sertaneja foi fruto da ampliação da colonização portuguesa e dos projetos da Coroa, foi também filha da expansão da zona do açúcar, de seus tipos humanos e seus anseios em interação com o meio e os homens do sertão. E foram os valores desses personagens e desse cenário, independendo muitas vezes da contrapartida encontrada na própria sociedade sertaneja, que produziram a idéia de sertão remanescente até hoje. Pois a imagem de sertão que persiste no Brasil do século 21, a de lugar exótico, áspero, bonito, mas perigoso, levemente selvagem, na verdade, é uma imagem criada não pelos sertanejos, mas pela sociedade açucareira colonial, que durante e depois da guerra dos bárbaros, praticamente inventou o sertão.

� a autora é doutora em História pela ufPe, professora adjunta da uPe e colaboradora no mestrado em História da ufrPe. Publicou O miserável soldo & A boa ordem da sociedade colonial (fCCr, 2001) e é co-autora do Dicionário de conceitos históricos (Contexto, 2005). este artigo sintetiza ideias que estão no estudo Nas solidões vastas e assustadoras – A conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII, que será publicado este ano, pela Cepe.


Conexão

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MULTIMÍDIA

ENTRETENIMENTO

www.boston.com/bigpicture

lens.blogs.nytimes.com

www.vanityfair.com/photos

The Big Picture, site do Boston Globe, traz coberturas de acontecimentos com fotos em alta qualidade técnica e linguagem apurada.

Para construir o que chama de “jornalismo visual”, o Lens, do New York Times, investe em fotos, vídeos e apresentações de slides.

A Vanity Fair conta com belos ensaios de artistas e celebridades assinados por nomes como Annie Leibovitz.

andanças virtuais lugares para ver e rever o que de bom a web tem para mostrar

obituários

revista

LÍngua e tecnoLogia

design

Busca pela celebração da vida a partir das lentes da morte

Portal +soma reúne material inédito sobre cena independente

Dicionário Wordnik apresenta definições em multimídia

Tipografia é destaque de acervo online de textos e imagens

www.obit-mag.com

www.maissoma.com

www.wordnik.com

www.tipografos.net

“Há quem pense que a valorização do obituário pela imprensa de língua inglesa seja um ritual de morbidez, mas isso é uma falsa impressão”. A frase de Matinas Suzuki Jr., no posfácio de O livro das vidas, uma coletânea de obituários do New York Times, serve muito bem para ilustrar o trabalho da Obit (em inglês). Dedicada exclusivamente a assuntos ligados à morte, a publicação online passa longe de uma abordagem fria e distante nas suas reportagens, perfis e até curiosidades relacionadas ao tema. Segundo um dos seus criadores, J. Robert Hillier, a proposta é, usando por vezes até recursos de humor, “celebrar a vida a partir do exame do seu capítulo final”. Destaque para a seção Died on the same day, que põe lado a lado duas personalidades que morreram em um mesmo dia.

A publicação paulista +Soma, com versão impressa distribuída em diversos locais do país, combina um belo projeto gráfico com matérias e entrevistas sobre cultura alternativa. Com edições bimestrais, a publicação já está no 11º número, que traz Ed Motta, Mr Catra, Cia. da Foto, o grafiteiro Nunca e Tony Herrington, da revista The Wire, dentre outros. No site da revista é possível ter acesso tanto ao exemplar atual como aos anteriores, além de ler notícias sobre eventos, resenhas sobre discos, livros e quadrinhos, ver e ouvir conteúdo exclusivo na seção Somacast e conhecer listas de cinco melhores de figuras, como Fabrício Nobre, presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin).

Apesar das potencialidades do formato digital, os dicionários online pouco diferem dos grossos livros impressos – exceto, talvez, pelo uso de links para navegação entre as palavras. Os fundadores do Wordnik, enxergando as vastas possibilidades nessa área, criaram um site que permite não apenas a consulta a um verbete, como também a audição de gravações com pronúncia correta feitas pelos usuários. Além de mostrar mensagens com o termo postadas em tempo real no Twitter, exibir fotos que o expliquem e apresentar um gráfico com o seu uso ao longo do tempo, o site apresenta também sinônimos, antônimos, palavras de classificação gramatical e usos semelhantes e até anagramas.

O português Paulo Heitlinger expande o conteúdo apresentado no livro Tipografia: origens, formas e uso das letras para o formato online em seu site Tipógrafos. Apaixonado pelo assunto, o autor juntou diversos artigos relacionados ao tema, que são divididos em seções como História da tipografia, Como fazer fontes, Glossário e Boas práticas. Mas o destaque fica para Cadernos tipográficos, uma publicação em formato PDF, editada pelo próprio Paulo. Cada número tem um tema central, apresentando diversos artigos, imagens e reportagens, num layout mais agradável para o leitor interessado nesse rico universo.

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REPRODuçãO

BREvIDADEs FeLLini musicado O trailer do novo filme do diretor Rob Marshall (Chicago) já está circulando na web. Trata-se do musical Nine, baseado no espetáculo da Broadway inspirado em 8 e ½, uma das obras-primas do cineasta italiano Federico Fellini. Com Daniel DayLewis interpretando Guido Contini, um diretor em crise de meia-idade que reavalia as mulheres de sua vida e tenta emplacar um novo sucesso profissional, o longa reúne ainda as presenças de Nicole Kidman, Penélope Cruz e Marion Cotillard.

inviabiLidade

a PrancheTa: variedades entre amigos Blog criado por Eduardo Rocha há um ano, de forma despretensiosa, hoje está reformulado, com diversidade de colaboradores e parceria com grande portal www.aprancheta.com

o que acontece quando oito amigos se juntam para falar sobre música,

cinema, literatura, fotografia, design, entre outros tópicos? Em tempos de hipermídia, monta-se um blog. Pelo menos com Eduardo Rocha, sócio do escritório de design Mooz, esse foi o trajeto percorrido da ideia à realização. A Prancheta foi criado há cerca de um ano e, de início, funcionava de forma mais modesta: sem colaboradores e sem a parceria com o portal PE360graus. Mas, com o tempo, o site ampliou seus objetivos, buscando divulgar trabalhos de artistas desconhecidos, realizar entrevistas e ensaios fotográficos exclusivos. A empreitada exigiria um time competente. “Assim que decidi ter colaboradores, comecei a fazer uma lista de amigos que eu poderia convidar”, diz Eduardo. Na seção Em voz baixa, Vicente Quintas garante um espaço para os contos; em Café com cigarro, Rick Monteiro comenta filmes e movimentos cinematográficos e, em Hot!Hot!Hot!, a ideia é postar notinhas sobre as novidades da cena cultural. Uma das seções mais interessantes é Yeah! Q.I., em que um artista responderá sempre a sete perguntas e indicará o entrevistado sucedente. Cada bate-papo durará três posts e terá um assunto específico. Com visual heterogêneo, A Prancheta mistura fotos em preto-e-branco, dicas de lugares moderninhos e reflexões em tom de crônica. Tudo isso sem perder o bom humor.

blogs

Em entrevista à versão online do jornal The Guardian, a banda americana Sonic Youth falou sobre o lançamento do seu mais novo CD, The Eternal. Na ocasião, o grupo foi perguntado por que não fez um esquema de vendas semelhante ao de Radiohead, que permitiu que os internautas escolhessem quanto pagariam pelo download do álbum In Rainbows. A vocalista Kim Gordon elogiou a ideia, mas disse que nem todos podem arcar com esse sistema. Ainda segundo ela, “Isso faz com que todos os outros pareçam ruins por não oferecerem suas músicas por qualquer preço”.

imPrensa sociaL O Twitter, misto de rede social e microblog para textos de até 140 caracteres, vem se provando útil para a imprensa. A popularidade é tamanha que um comunicado interno do New York Times recomendou que os repórteres não instalassem nos computadores da redação o aplicativo TweetDeck, que estaria sobrecarregando as máquinas. Dado o sucesso do site, o programador Dave Winer desenvolveu um sistema para listar quais pessoas os jornalistas dos Times seguiam. O nome mais influente é Brian Stelter, do próprio veículo.

cuLtura PoP

estatÍstica

tecnoLogia

www.zuper.com.br

www.guardian.co.uk/news/datablog

http://smeira.blog.terra.com.br/

A jornalista Carol Almeida retoma a vida bloguística com o Zuper, agora com as ferramentas do wordpress. Ela fala sobre quadrinhos, sua preferência; cinema, sua paixão; música, sua obsessão e o que mais der na telha.

O Datablog, hospedado pelo jornal britânico The Guardian, tem um foco bem-definido: disponibilizar estatísticas e dados jornalísticos. O diferencial do site é a criteriosa apuração e o bom uso de ilustrações e infográficos.

O cientista-chefe do Centro de Estudos Avançados do Recife (C.E.S.A.R.), Sílvio Meira, posta notícias e comentários sobre as novidades da informática e assuntos afins no blog Dia a dia, bit a bit.

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espacial a arte no mundo da lua Chegada dos primeiros homens à Lua, que completa este mês 40 anos, inspirou toda uma geração de artistas a refletir sobre a exploração do espaço texto Marcelo Abreu

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cultura pop

o cantor David Bowie, o estilista Paco Rabanne, o cineasta Stanley Kubrick, o artista plástico Robert Rauschenberg, os músicos da banda Pink Floyd, entre muitos outros, têm em seus currículos algo em comum. Todos eles foram influenciados, no fim dos anos 1960, pela corrida espacial que invadiu o imaginário coletivo dos habitantes da Terra, sobretudo depois da chegada do homem à Lua, acontecimento que celebra seu 40º aniversário este mês. Entre os anos de 1965 e 1975, uma parte significativa da produção artística da Europa e dos Estados Unidos foi criada a partir de referências na chamada conquista do espaço. Palavras como estrelas, exploração, nuvens, voo, futuro e cosmos passaram a fazer parte do vocabulário da música pop, das artes plásticas, do design, da moda, das artes gráficas, do cinema, e inspiraram os

artistas a refletir sobre os mundos extraterrestres. A ficção científica esteve presente na cultura popular, sobretudo na literatura e no cinema, desde o fim do século 19. Mas a partir do lançamento do satélite Sputnik, pela União Soviética, em 1957, e da viagem de Yuri Gagarin, em 1961, a exploração espacial passou a ser real e não mais apenas coisa de escritores imaginativos. Em 1962, quando os americanos entraram para valer na disputa, e o presidente John Kennedy prometeu mandar um homem à Lua até o fim da década, era natural que muita gente se entusiasmasse pela grande empreitada espacial, que acabaria por dar uma nova consciência sobre o papel do ser humano no universo. A chegada da Apollo 11 à Lua, com os astronautas Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins, foi o

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ápice desse processo. Acompanhar as aventuras dos projetos Gemini e Apollo, e dos soviéticos Soyuz e Vostok, passou a fazer parte do cotidiano de qualquer cidadão comum.

The stoned Moon foi série produzida pelo artista, depois de ter assistido ao lançamento do saturno V, que levou a apollo 11 à Lua Cantor integrou o space rock, música inspirada nas galáxias, que tinha proximidade com o andrógino glam rock disco Space ritual, gravado ao vivo em turnê no fim de 1972, exerce poder hipnótico nos ouvintes, sobretudo pelos riffs repetitivos

psicoDelia Musical

A música Space oddity, de David Bowie, composta em 1968, mas lançada nove dias antes da chegada à Lua, pela primeira vez, em julho de 1969, representa bem essa época. “Aqui estou dentro de uma lata / bem acima do mundo / o planeta Terra é azul”, cantava Bowie, que viria a lançar três discos relacionados ao tema. Ele criou também um personagem, Ziggy Stardust, que tocava acompanhado pela banda Spiders from Mars (Aranhas de Marte) e falava sobre suas aventuras pelo espaço. No começo da carreira, ele fez parte da tendência que se convencionou chamar de space

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ainda liderados por syd Barrett (d), os ingleses contaram em seu repertório com músicas “viajadas” sobre o espaço, como Astronomy domine e Interstellar overdrive o tecladista norteamericano Herman Blount foi um dos precursores do repertório futurista na música, nos anos 1950, quando começou a usar planetas e galáxias como tema pintura da fachada da loja apple, aberta pelos Beatles em Londres, em 1967, foi realizada pelo coletivo holandês

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rock; a música inspirada nas galáxias tinha também grande proximidade com o glam rock e com a androgenia em voga na época. Muita gente de destaque embarcou na onda espacial. Os Beatles, já em 1967, com a instrumental Flying (do disco Magical mystery tour), e os Rolling Stones, com 2000 light years from home e She’s a rainbow, do mesmo ano. Elton John lançou Rocket man, em 1972. O grande barato do rock espacial é que, por uma dessas coincidências que alguns chamariam até de “conspiração cósmica”, a exploração do espaço se intensificou no momento em que a contracultura dos hippies fazia experimentos com drogas que davam exatamente a sensação de viagem por territórios não explorados. Não é à toa que uma palavra que caracterizou os anos de 1967 a 1975 na cultura pop foi trip (“viagem”, em todos os sentidos).

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Os ingleses do Pink Floyd embarcaram fundo nesse repertório, desde o início. Seu primeiro disco, The piper at the gates of dawn (1967), ainda liderados pelo genial Syd Barrett (que praticamente enlouqueceu devido às suas experiências lisérgicas), tem músicas marcantes sobre o espaço, como Astronomy dominé e Interstellar overdrive, esta com quase 10 minutos (uma das primeiras canções “viajadonas” da época). O segundo disco, A saucerful of secrets, cuja capa mostra todo o universo, tem Set the controls for the heart of the sun e Let there be more light. E o LP The dark side of the Moon, já em 1975 (um dos mais influentes de todos os tempos), trouxe Eclipse, que foi usada em 2004 pela sonda Opportunity, em Marte. As apresentações do Floyd, que contavam com iluminação colorida e psicodélica e com uma bateria corde-rosa, que mais parecia uma bolha


o rock aproveitou o potencial poético das aventuras espaciais. são músicas que utilizam elementos da psicodelia alienígena no meio do palco, era a própria personificação da cultura espacial. A imagem da banda ficou tão ligada aos sons do universo, que uma gravação do show Delicate sound of thunder foi levada numa fita cassete para o espaço, pelos cosmonautas soviéticos da nave Soyuz TM–7, em 1988, rumo à estação Mir. Dois membros do Pink Floyd assistiram ao lançamento da nave em Baikonur, no Cazaquistão. Outra banda que radicalizou a experiência foi a também inglesa Hawkwind, sobretudo no seu disco Space ritual, gravado ao vivo numa turnê no fim de 1972. O show era uma orgia de rock pesado com duas horas ininterruptas de guitarras uivando, sons atmosféricos, dança, mímica, show de luzes e poesia sobre temas do espaço sideral, o que foi descrito então como uma experiência “audio-visualcerebral”. O som do Hawkwind, através de todos os recursos externos à música e dos riffs repetitivos, exerce um poder hipnótico nos ouvintes. O rock aproveitou o potencial poético das aventuras espaciais. Em termos de sonoridade, são músicas que utilizam elementos da psicodelia e sintetizadores eletrônicos para criar momentos climáticos que iam muito além dos tradicionais zumbidos e botões iluminados que acompanham os clichês do cinema comercial, quando o assunto é espaço. Apesar do caráter datado de muitas dessas obras, há entre elas algumas preciosidades. A relação intensa entre música e espaço começou, na verdade, no jazz, lá pelos anos 1950, quando o tecladista negro norte-americano Herman Blount, conhecido como Sun Ra, começou a usar planetas e galáxias como tema para suas músicas. Sun Ra (1914–1993), cujo nome artístico mistura suas fascinações pelo espaço sideral e pela mitologia egípcia – e que

afirmava, a sério, ter sido abduzido e levado para Saturno quando tinha 22 anos – fundou nos anos 1960 sua Arkestra e gravou discos experimentais, calcados no hard bop e no free jazz. Trabalhos com nomes como The heliocentric worlds of Sun Ra, We travel the spaceways, Space is the place, On Jupiter e Disco 3000. Junto com a música, a onda espacial invadiu o desenho de pôsteres que anunciavam shows de rock, sobretudo os ligados à cena psicodélica de São Francisco. O coletivo holandês, The Fool, produziu capas memoráveis para discos de rock sob a “estética espacial”. Um dos trabalhos mais memoráveis da dupla Simon Posthuma e Marijke Koger, que compunha o The Fool, foi a pintura da fachada de três andares da loja Apple, aberta pelos Beatles em Londres, em 1967, para vender roupa e artefatos psicodélicos.

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BalÕes prateaDos

Nas artes plásticas, desde 1966, Andy Warhol usava o espaço como inspiração para os seus balões cor de prata, em forma de travesseiros inflados com hélio e oxigênio, que flutuavam por entre as paredes revestidas de papel prateado na Galeria Leo Castelli, em Nova York, num trabalho conhecido como Silver clouds (Nuvens prateadas). Robert Rauschenberg, um dos pioneiros da pop art, foi convidado pela Nasa para assistir ao lançamento do Saturno V, que levou a Apollo 11 para a Lua. Da experiência, produziu a série The stoned Moon (um trocadilho com a palavra stone [pedra], que remete ao nome da técnica de reprodução usada – a litografia - e também à gíria “chapada”, bem conveniente à cultura da época).


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Rauschenberg foi somente um dos 250 artistas que a Nasa convidou, ao longo dos anos, a interpretar os voos espaciais através da arte. No design, a estética espacial inspirou o finlandês Eero Aarnio, que projetou, na segunda metade da década de 1960, objetos como a cadeira-bolha e a cadeira-globo, feitas de fibra de vidro. Seus traços se tornaram influentes numa grande quantidade de outros objetos que passaram a ser produzidos em formato arredondado, como mobiliário, aparelhos de rádios e TVs, sempre presentes nos filmes de ficçãocientífica.

pretÉrito Do futuro

No cinema, a corrida espacial foi marcante em dois filmes considerados clássicos: 2001, uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, e a comédia eróticoespacial Barbarella, de Roger Vadim, com a musa daquele momento, Jane Fonda. A obra de Kubrick é um tratado futurista e filosófico de duas horas 40 minutos, que vai da pré-história ao futuro distante. O roteiro, de Kubrick e do escritor Arthur C. Clarke, imagina um futuro com naves espaciais silenciosas, onde os objetos – criados pelo designer francês Olivier Mourgue – são acionados pelo leve toque dos dedos das mãos e deslizam suavemente.

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Uma das questões centrais do filme é o papel exercido pelo computador “inteligente” Hal 9000, que tenta comandar uma missão espacial. Já, em Barbarella, a imaginação do futuro é menos científica e mais divertida, beirando o kistch em certos momentos. Os figurinos foram feitos por Paco Rabanne, na época um dos enfants terribles da costura francesa. As possibilidades e o drama do avanço científico-tecnológico foram também tratados por nomes como Jean-Luc Godard, em seu Alphaville (1965), em que narra as aventuras do detetive

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Lemmy Caution (Eddie Constantine), que viaja a um planeta dominado por uma ditadura tecnocrática. O objetivo de Caution é destruir o computador Alpha 60, que havia eliminado do cotidiano conceitos como o amor e a poesia. Um futuro assustador é também tema de Planeta dos macacos, de Franklin Schaffner, cujo primeiro episódio foi lançado em 1968. Do outro lado do muro, o russo Andrei Tarkovsky fez o belo drama psicológico, Solaris, em 1972. A corrida espacial viria ainda a provocar uma série de filmes ao longo dos anos, como a série Star wars – Guerra nas estrelas, de George Lucas, o seriado Jornada nas estrelas, no cinema e na TV, e a série Perdidos no espaço, grande sucesso no mundo todo nos anos 1960–1970. E, recentemente, o divertido desenho em 3-D Os mosconautas no mundo da lua, de Ben Stassen.


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Na moda, além do trabalho de Paco Rabbane, o espaço esteve presente nas criações dos então jovens estilistas, como André Courrèges e Pierre Cardin, que passaram a experimentar formas geométricas e materiais inusitados como o metal e o plástico para fazer roupas femininas para os novos tempos que pareciam se aproximar. Na época da corrida espacial, o interesse pela tecnologia era mais filosófico, mais audacioso, quase espiritual em muitos casos. Diferentemente do mundo

no cinema, a corrida espacial foi marcante em dois clássicos: 2001, uma odisséia no espaço e a comédia Barbarella

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2001, uma odisséia no espaço é um dos clássicos do cinema de ficção científica, em que se imagina um futuro com naves espaciais silenciosas a cadeira-bolha e a cadeira-globo foram criadas nos anos 1960 pelo finlandês eero aarnio, sob influência da estética espacial a comédia erótico-espacial dirigida por roger Vadim teve como protagonista Jane Fonda, que no filme desfila modelos criados pelo estilista franceses paco rabanne

tecnológico, a partir dos anos 1990, em que o interesse tornou-se mais pragmático desde que o computador virou apenas um eletrodoméstico a ser descartado com frequência. O computador futurista na tradição de 1984, utilizado na ficção de Godard e Kubrick, está hoje, de certa forma, dentro das casas e nos bolsos de todos, com efeitos ainda a serem estudados e explorados pela arte. Mesmo passados tantos anos, a ida do homem a Lua nunca saiu totalmente de discussão. Em 1996, o compositor inglês Billy Bragg fez uma das mais belas músicas sobre o período, The space race is over (A corrida espacial acabou). Depois de recordar o barato que era ser criança e acompanhar a ida à Lua em 1969, Bragg – conhecido por suas posições políticas de esquerda e pela atuação no underground da Londres dos anos 1980 – reflete sobre a ilusão da infância, a decepção do adulto com os motivos por trás da exploração espacial e a consequente falta de perspectiva do presente: “Eu sabia que algum dia todos navegaríamos para a Lua / na alta maré da tecnologia / mas os sonhos foram todos tomados (...) Não me ofereça um lugar no cyberspace / porque, afinal, onde diabos fica isso?”


divulgação

Aos 20 anos, em 1983,

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Bússola

weydson de barros leal O poeta e crítico de arte, atualmente radicado no Rio de Janeiro, comenta suas preferências no circuito artístico carioca e lusitano, e recomenda cânones nos campos da literatura e da música c co on nt tiin neen nt tee jju ullh ho o 220 00 099 || 550 1

o pernambucano Weydson Barros Leal começou a publicar suas primeiras poesias em jornais do Recife. Dois anos depois, lançou o livro de estreia Água e pedra. Seu primeiro prêmio foi o Mário Mota de Poesia, em 1988. Hoje tem seis livros de poesias lançados, além de publicações sobre a obra de artistas como Francisco Brennand (Brennand desenhos), Abelardo da Hora (Ensaio com Abelardo da Hora), Corbiniano Lins (Corbiniano Lins, um olhar sobre sua arte) e João Câmara (João Câmara [Coleção Portfólio Brasil]). Uma de suas atuações mais recentes no campo artístico tem sido a dramaturgia. Escreveu, em parceria com o encenador espanhol Moncho Rodriguez, as peças Caetana, Ciudad Rodrigo e As mulheres do Minho, encenadas no Brasil, em Portugal e na Espanha. Seu trabalho mais recente junto com o encenador, Eu Reino – Afonso Henriques 900 anos, estreou em junho, em Portugal, e trata dos 900 anos do nascimento do primeiro rei de Portugal. Entre os projetos previstos para este ano, estão o lançamento do livro de poesias A quarta cruz, e um livro sobre fotografia. Segundo Weydson, assim como ocorre a tantos escritores, artistas plásticos, atores e músicos, a sua arte – a poesia – fez com que ele pudesse conhecer lugares e pessoas inesquecíveis.


Gastronomia

além dos botecos tradicionais e turisticamente famosos, principalmente no leblon e em ipanema, creio que o visitante do Rio não pode deixar de comer aqui a melhor feijoada do Brasil. Para isto, basta visitar lugares como o Bar do Mineiro, em Santa Tereza, a academia da Cachaça e o Brasileirinho. Não fosse pela impecável feijoada, esses lugares mantêm o clima intimista e amigável dos bons botecos cariocas, o que torna as visitas obrigatórias. E para o melhor cabrito assado do Brasil, imprescindível uma visita ao restaurante Nova Capela, na lapa.

Livros

Para ler os clássicos Esta é uma área relativamente difícil para minha bússola, no que concerne a apontar ou sugerir direções. a literatura é vastíssima, e qualquer lista ou cânone implica em perda ou omissão. Creio que amantes ou não da poesia não deveriam deixar de conhecer as obras de Fernando Pessoa, Carlos drummond de andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Ferreira gullar. Em outras línguas, não vale a pena desperdiçar uma vida sem iluminar a alma com os poemas de Jorge luis Borges, Rimbaud (foto), T.S. Eliot e dante. Na prosa brasileira, Machado de assis, guimarães Rosa e Euclides da Cunha. Em prosa estrangeira, indispensáveis seriam Proust, Tolstoi e dostoievski. Na crônica de costumes e no teatro brasileiro, o gênio, o humor e a sagacidade de Nelson Rodrigues.

Cinema

Allen, Almodóvar... Considero o cinema uma arte indispensável à reflexão e ao conhecimento humano. Não consigo imaginar uma filmoteca básica sem toda a filmografia de Charlie Chaplin, Woody allen e almodóvar (foto), acrescida de filmes como Cidadão Kane, Um estranho no ninho, Laranja mecânica, Blade Runner, Hair, Vestígios do dia, Orgulho e preconceito, e, por que não, Quatro casamentos e um funeral e Melhor impossível. REPRoduçõES

o Rio de botecos e feijoadas

Viagem

Portugal: riqueza além-mar Quem conhece a Europa e a riqueza cultural do velho continente, sabe que, em países de ascendência latina, as afinidades com a cultura brasileira são latentes. Mas nada se compara à hospitalidade e afeição dos portugueses para com os brasileiros. a nossa música e a nossa cultura não só são amplamente conhecidas, mas também adoradas por lá. Entre as cidades de Portugal que considero imperdíveis ou imprescindíveis a todo brasileiro, estão lisboa (foto), Porto, guimarães e Braga. E se para esta viagem você tiver a companhia de queridos portugueses, estas cidades passarão a fazer parte do mapa do seu coração.

Livrarias

A travessa e os sebos Música

De acordo com as horas a minha carta musical é vasta e variada. Tenho afinidades muitas vezes raras e conflitantes, quando não, excludentes, mas, como a própria vida cotidiana, há horas para Mozart, Beethoven, Haydn, Brahms, Chopin e horas para o Rolling Stones e o Pearl Jam (foto); há manhãs para Chico Buarque, vinicius de Moraes, Milton Nascimento, Tom Jobim, e tardes para arnaldo antunes, lenine, Nação Zumbi e Cordel do Fogo Encantado; há madrugadas para Keith Jarrett, george Winston, Billie Holliday, e noites para vanessa da Mata, adriana Calcanhoto e Zeca Baleiro. a música, assim como a literatura, geralmente encontra o seu espaço e o seu instante, e o nosso corpo e a nossa alma nem sempre têm as mesmas fomes. uma vez saciado o corpo, em geral pergunta à sua alma: “E agora, você tem fome de quê?”...

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Entre as livrarias do Rio de Janeiro, incluo os melhores sebos do Brasil. Entre aquelas, recomendo uma visita à leonardo da vinci e a qualquer filial da livraria da Travessa, um impecável exemplo de livraria completa. Para finalizar este roteiro, se calhar do visitante estar no centro da cidade, é mister uma demorada visita à Confeitaria Colombo, na Rua gonçalves dias, endereço dos mais belos e memoráveis encontros da literatura brasileira.


para todos Mercado pĂşblico de Casa amarela

Localizado numa das ĂĄreas mais populosas do Recife, logradouro foi inaugurado em 1930, sendo um exemplar da arquitetura do ferro, trazida ao Brasil no sĂŠculo 19 texto Danielle Romani fotos Ana Paula Lira

Pernambucanas

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o Mercado Público de Casa Amarela, localizado no largo de mesmo nome, na zona norte do Recife, é um dos marcos e orgulho do bairro centenário, uma de suas artérias mais pulsantes: ponto de compras e de encontro, de pequenos e grandes negócios, de boemia e gastronomia, de arte e convivência social. Um espaço de vitalidade, marcante para os moradores do bairro e arredores, hoje e há décadas, cercado de histórias e fatos enigmáticos. O mais curioso diz respeito às suas origens. Pesquisadores, frequentadores, curiosos: ninguém sabe quando e onde, exatamente, foi erguido; ou quem foi o responsável pela sua construção. No início do século –, afirmam o historiador Marcelo Lins, o arquiteto Geraldo Gomes e o administrador do mercado, Aluysio Gomes – a edificação localizava-se nos arredores da avenida Caxangá. Uma das versões sobre a mudança, registrada no livro Mercados do Recife, de Marcelo Lins, aponta que o prédio foi inaugurado em 1900, e que sua transferência foi providenciada para outra localidade por obra de um “coronel” que morava nas redondezas e, cansado da “bagunça” provocada pelos feirantes, ordenou que o governo estadual afastasse o foco da sua irritação: ou seja, que mudasse o mercado de lugar. A historiografia oficial, entretanto, especula outros motivos para a inusitada mudança. “A aglomeração urbana observada no bairro de Casa Amarela, na década de 1920, possivelmente fez com que o governo optasse pelo deslocamento de bairro. À época, a feira, que até hoje está em forte atividade, já era um grande centro comercial. Em termos de integração e serviços para a população, sem dúvida, era mais importante ter um mercado em Casa Amarela do que na Caxangá”, explica o arquiteto Cristiano Borba, lembrando que a construção de grandes espaços, como mercados públicos, fábricas, estações de trens, manicômios e hospitais, teve origem no final do século 18, no período pósrevolução francesa, quando houve uma reorganização do espaço urbano. Esta tendência fez surgir novas escolas de arquitetura e engenharia para execução continente julho 2009 | 53


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Pernambucanas das obras grandiosas, que teve no francês Louis Vauthier – construtor do Teatro de Santa Isabel e do Mercado de São José – um dos seus expoentes.

ARQUitetURA Do FeRRo

As estruturas de ferro do mercado, invenção da engenharia europeia pósrevolução industrial, possibilitaram a desmontagem do edifício, que começou a ser transportado de bonde pela empresa Burricone, nos idos de 1928. Dois anos depois, no dia 9 de novembro, o mercado foi inaugurado oficialmente – no pátio de Casa Amarela, com a porta de entrada em frente à rua Padre Lemos e os fundos para a rua de Casa Amarela. À época, possuía boxes apenas nas áreas laterais internas, e o espaço central era ocupado por um vão livre. Seu projeto arquitetônico, com um amplo teto e laterais de ferro abertas para a rua (antes sustentados

por paredes de madeira, hoje, após exigências da fiscalização sanitária, por tijolos de alvenaria), permite a iluminação e a ventilação do ambiente. Quem observar o teto, confere, no centro, um lanternim, faixa elevada no telhado, com fendas laterais, que permitem a entrada de luz e ar. Segundo a administração, não existe nenhum ponto em que o ferro seja fundido: suas junções são todas com cravo e parafuso. Outra particularidade, segundo o arquiteto Geraldo Gomes, especialista no uso arquitetônico do ferro, é que, diferente do Mercado de São José, que é fechado até a coberta – estilo europeu – o de Casa Amarela é um edifício aberto em todas as suas fachadas, guarnecido somente por grades, o que sugere que tenha sido projetado para os trópicos. Atualmente, o prédio principal abriga 100 boxes, muitos deles voltados para a rua, o que permite

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maior interação entre o mercado, o bairro e a comunidade. Lá podem ser encontrados artigos religiosos, artesanato, armarinhos, como o de Joaquim Elias, que está há 60 anos no mercado; confecções e serviços (conserto de relógio, sapataria etc.), e principalmente bares, como o do Galego, que ficam abertos da manhã até a madrugada, ao contrário do lado interno do mercado. Além do edifício central, há dois anexos. No primeiro, estão 34 boxes, com lojas de frios, bomboniéres e tabacarias. No segundo, mais 20 boxes e cerca de 50 toldos, com praça de alimentação, rações para animais, secos e molhados. Há também uma área conhecida como Sempre-Viva, que não faz parte do mercado, mas já se integrou a ele. “A feira também se transformou numa extensão”, avalia Aluysio Gomes, que calcula uma visitação entre duas a três mil pessoas nos finais de semana – moradores de Casa Amarela e arredores. O mercado abre ao públido de segunda a sábado, das 6h às 18h. Nos domingos e feriados, funciona das 6h às 12h.


03 Página anterior 01 PoRtão De entRADA Na fachada principal é possível perceber o teto elevado (lanternim), que permite a entrada de luz e ventilação Nestas Páginas 02 coloRiDo No prédio – sede e nos dois anexos –, estão à venda produtos variados

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MARcA ReGiStRADA O teto e as pilastras de ferro foram unidas sem o uso da solda, apenas com cravos e parafusos

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teMPo PASSADo O sino que avisava sobre a abertura e fechamento do mercado virou peça decorativa; há anos foi aposentado

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24 hoRAS No bar do Galego, Josefa da Cunha (Zefinha) seduz os fregueses dia e noite, com suas iguarias

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ARQUitetURA Inaugurado em 1930, o mercado tem estrutura de ferro, invenção da engenharia europeia pós-revolução industrial

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memória aspectos do legado de Patativa do assaré Ao invés de laudas e homenagens pouco eficazes, melhor seria valorizar sua poesia com reflexões mais sérias acerca de sua contribuição à produção literária nacional, situando-a devidamente texto Gilmar de Carvalho

Tradição Tradição

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cem anos depois de seu nascimento

e sete de sua morte, Patativa do Assaré (1909-2002) merece uma reflexão que ultrapasse o laudatório e envolva questões mais densas sobre sua contribuição à poesia nacional, a recepção de sua obra e o tratamento dispensado ao seu legado. A família está mais desamparada, depois da partida do provedor. O que poderia ser feito – que não resvalasse para o assistencialismo? Talvez, colocar à disposição deles um bom advogado. As três casas onde ele viveu na cidade de Assaré, a 490 quilômetros de Fortaleza (CE), estão de pé. A de taipa, onde ele nasceu, foi reformada depois da ameaça de desabamento. Há também a casa onde morou a maior parte do tempo, com dona Belinha. A casa da cidade tornou-se uma extensão do memorial que leva seu nome. Mas não deveria se transformar num mausoléu das lembranças, que são muitas e para sempre. O Memorial Patativa do Assaré, situado em um dos imóveis mais importantes do município, reúne uma parte da vida do poeta. A

manutenção do equipamento se revelou problemática, desde sua inauguração, em 1999. Lâmpadas queimadas, células fotocromáticas que não funcionam, imagens em movimento que permanecem estáticas, som que não funciona dão a exata dimensão da falta de zelo para com o bem comum. O mais grave pode ter sido sua transformação, pelo poder público municipal, em um cabide de empregos, com jornadas reduzidas de trabalho. Isso inibiu a troca dos saberes e o amadurecimento das práticas, pelo rodízio permanente dos funcionários, em geral rapazes e moças sujeitos aos caprichos da política local. No centenário de nascimento do poeta, o governo do Ceará, por meio da secretaria da cultura, bancou a contratação de cerca de 10 bandas de forró para apresentações em sua homenagem. Sem pretender ser porta-voz do Patativa, era tudo o que ele não queria. Não publicaram livros, não lançaram discos, não produziram DVDs, nem organizaram uma exposição itinerante. Parte desse dinheiro poderia ter sido investida na

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edição, a custos baixos, de seus livros, que poderiam ir para as salas de aula de todo o Ceará e do Brasil, impulsionando a leitura e assegurando a permanência de sua poética. Quanto a publicações, um tema polêmico: editoras de porte nacional detêm a maior parte dos direitos de publicação da obra de Patativa do Assaré. Pode-se pensar, como sugeriu a colunista cearense Leda Maria, em texto publicado no jornal Diário do Nordeste, no dia 5 de março deste ano, na aquisição desse acervo pelo governo do Estado do Ceará e na constituição de um instituto que gerenciasse a divulgação de sua obra poética. Mas, antes disso, seria conveniente se pensar na edição crítica de sua obra. Uma equipe interdisciplinar poderia definir uma grafia e ditar um cânon para uma poética da voz, sujeita a transcrições várias, sem critérios definidos, por parte das pessoas mais próximas a ele. A repercussão no exterior é importante e este não é o olhar do colonizado. Muitos scholars vieram de Lyon, Poitiers, Strasbourg, Liverpool e Milão para conhecer o poeta “das mãos


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Fotos: roberto arrais

pobre, mas doutor

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Tradição calejadas”. Pesos pesados de várias instituições brasileiras o conheceram durante a realização de eventos. A tradução de Patativa também merece estímulo, como uma forma de a poesia dele circular pelo mundo afora. As relações com a indústria fonográfica bem que poderiam ser mais transparentes. O episódio envolvendo Fagner (que gravou poema seu e não lhe deu os créditos) nunca foi bem-explicado. Aconteceu no disco Manera Fru-Fru, de 1973, e continua do mesmo jeito, 36 anos depois. A Sony teria devolvido os originais de Poemas e canções e de A Terra é naturá para o produtor e, até hoje, inexplicavelmente, os discos não foram relançados. Quem buscar o som de Patativa nas lojas de

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memorial

centro criado para preservar a obra do artista tornou-se cabide de empregos e encontra dificuldades de manutenção do acervo

discos de todo o Brasil, corre o risco de nada encontrar. A UFC indicou Patativa do Assaré para o vestibular, em 2006. Até hoje o livro Cordéis e outros poemas faz parte da listagem dessa instituição. Deu problema. As academias de letras detestam o poeta porque era pobre, estudou pouco e a visão elitista ainda prevalece. As universidades mudaram um pouco o discurso. Ele foi doutor honoris causa de três universidades públicas (UFC, UECE e URCA) e uma particular (a Tiradentes, de Sergipe). Ganhou abordagens aprofundadas e tem sido objeto de teses, dissertações e monografias. Será que só o tempo dará a verdadeira dimensão de sua contribuição à poesia brasileira?

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Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré, nasceu em 5 de março de 1909, na Serra do Santana, em Assaré, no Sul do Ceará, a 490 quilômetros de Fortaleza. Filho de pequenos proprietários rurais, ajudava os pais no cultivo da terra, e cresceu ouvindo histórias, os ponteios da viola e folhetos de cordel. Frequentou a escola por poucos meses, aos 12 anos, época em que começou a fazer repentes e poesias. Em 1956, publicou seu primeiro livro, Inspiração nordestina, que seria reeditado em 1967, passando a se chamar Cantos do Patativa. Em 1970, lançou a coletânea Patativa do Assaré: Novos poemas comentados, e em 1978 lançou Cante lá que eu canto cá. Também são seus Ispinho e fulô e Aqui tem coisa, lançados, respectivamente, em 1988 e 1994. Casado com dona Belinha, teve nove filhos, e, apesar da pouca cultura, era considerado um gênio da música e poesia popular. Com a divulgação da sua obra, obteve popularidade nacional, e foi várias vezes agraciado com premiações, títulos e homenagens, chegando a ser nomeado, por quatro vezes, doutor honoris causa. Para chegar aonde chegou, tinha uma receita prosaica. Dizia que para ser poeta não era preciso ser professor. “Basta, no mês de maio, recolher um poema em cada flor brotada do sertão”, declamava. Morreu em julho de 2002, na cidade onde nasceu.


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Em primeira mão

fotografia Estética do gosto, do consumo e da marginalidade A fotógrafa Bárbara Wagner lança publicação na Holanda, com ensaios em que a poética pós-moderna é discutida a partir de retratos da atual cultura urbana texto Mariana Oliveira fotoS Bárbara Wagner

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consumo, moda, gosto, marginalidade, espetáculo são termos bastante referentes para se pensar a contemporaneidade. São essas ideias que compõem a poética dos trabalhos da fotógrafa pernambucana Bárbara Wagner. Suas imagens quase sempre perpassam questões presentes no dia-a-dia das cidades, e não é à toa que seus últimos ensaios fazem do espaço urbano um campo a ser explorado. Neste mês, ela lança em Sittard, pequena cidade da Holanda, uma publicação que reúne dois projetos desenvolvidos dentro do programa Made in mirrors (cujo objetivo é incentivar a troca de experiências entre instituições de arte que sobrevivem em cidades periféricas), junto com seu trabalho anterior, quando suas lentes captaram os banhistas da orla de Brasília Teimosa, no Recife, e um outro, realizado este ano, no qual Bárbara capta os brincantes do Maracatu Estrela


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HoLAnDA Na pequena Sittard, a fotógrafa registrou a vida dos kampers, comunidades que vivem em trailers e são marginalizadas pela maioria da população

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brAsiL Na praia de Brasília Teimosa, no Recife, Bárbara Wagner captou imagens dos banhistas como se eles fossem celebridades

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cHinA Ensaio parodia os books de casamento, em que casais chineses brincam com cenas de filmes ocidentais como Titanic

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Brilhante despidos de suas fantasias. A previsão é de que a publicação seja lançada no Brasil em 2010. Em outubro de 2008, Bárbara foi cumprir as duas etapas de sua residência artística na China, na cidade de Guangzhou, e em Sittard, na Holanda. Em Guangzhou, a fotógrafa se debruçou no estudo dos tradicionais books de casamento. “Essa ideia da representação da felicidade no casamento me chamou a atenção. Jovens chineses de classe média juntam a maior grana para investir nesse pacote de fotos, é uma questão de status”, destaca. As imagens, feitas nos bastidores, brincam com a estética kitsch (há casais que imitam cenas clássicas de filmes como Titanic) e com a percepção do casamento como uma coisa única, já que os chineses terminam transformando esse processo numa linha industrial de produção, feita por vários casais, ao mesmo tempo, num ritmo acelerado.

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Já na Holanda, Bárbara dedicou-se a fotografar as comunidades de ciganos, chamados de kampers, que vivem em traillers, pagam bem menos impostos e, por isso, são marginalizados pela grande maioria da população. “Eles estão entre a civilidade e a marginalidade. Decidi fotografá-los dentro de casa, para desmistificar a ideia de exótico, da ligação com o crime”, pontua. Os ensaios apresentados transitam em universos correlacionados, como o questionamento aos padrões hegemônicos da moda, do gosto, a centralidade e a marginalidade, os espaços das subculturas e a forma como seus integrantes se veem e são vistos pelos outros. Bárbara vai além da estética e trabalha conceitos e questionamentos do nosso tempo. Nada mais contemporâneo.

@ continenteonline Veja mais imagens dos ensaios no site www.revistacontinente.com.br


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Mídia

cinema e tv transmediação é palavra da vez no cenário digital Produtos culturais criados a partir de uma mesma matriz, que circulam em diferentes meios, como televisão, cinema e jogos, começam a ganhar destaque no mercado nacional, depois de boas experiências internacionais TEXTO Alexandre Figuerôa

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studioaurora

De tempos em tempos, novos conceitos no campo da comunicação e dos estudos de mídia e cultura entram em circulação e, da noite para o dia, transformam-se em uma espécie de referência incontornável para os intelectuais. No cenário de convergência digital e globalização, quando o assunto é indústria midiática, a bola da vez é a transmediação. O termo está definitivamente inserido nas discussões que envolvem formas culturais não mais baseadas em um medium, mas em um conjunto de media transferíveis de uma plataforma para outra. A palavra dá seguimento a outros termos já usados para definir fenômenos dessa natureza, tais como cross media, hybrid media, intertextual

commodity, multimodality e que, ao final de contas, podemos resumir como sendo produtos culturais que circulam em diferentes meios como televisão, cinema, games, criados a partir de uma mesma matriz que se desdobra e se molda aos veículos nos quais serão consumidos. Algumas das referências do processo contemporâneo de transmediação são os filmes da série Guerra nas estrelas, de George Lucas, cujas histórias das telas do cinema pularam para as telas do computador e o game Tomb Raider, que fez o caminho inverso e chegou ao cinema e às telas de TV. Matrix foi mais um desses fenômenos cujo conceito transitou do cinema para os quadrinhos online, games e animações. No Brasil,

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Auto da Compadecida e Invenção do Brasil, de Guel Arraes, produzidos pela TV Globo, podem ser considerados experimentos/protótipos dessa lógica. Ela vem sendo assumida, em proporções cada vez mais amplas, pela emissora e seu braço no mercado cinematográfico, a Globo Filmes, em produtos audiovisuais como Antônia, Cidade dos homens, Os normais, A grande família, entre outros, embora estejam longe de atingir o público na mesma intensidade de seus congêneres norteamericanos. Como todo assunto que ganha dimensões espetaculares, a transmediação já provoca uma série de indagações e interpretações, e também já tem seus gurus, a exemplo do


divulgação

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Mídia

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tRAnSFeRÊnciA

o clássico Guerra nas estrelas saiu do cinema para as telas dos computadores e dos games. Já Tomb Raider fez o caminho inverso e chegou à telona e à tv

norte-americano Henry Jenkins, cujas considerações em torno do conceito podem ser a chave de compreensão do fenômeno. Ele é professor em Ciências Humanas e fundador do Programa de Estudos de Mídia Comparada do Massachusetts Institut of Technology e autor do livro Cultura da convergência, já lançado no Brasil. Segundo Jenkins, a transmediação é fruto do contexto da cultura digital e sua localização se dá, sobretudo, no meio dos grandes conglomerados de comunicação que possuem interesses no cinema, na TV aberta e por assinatura, em jornais e revistas, no mercado editorial e nas mídias digitais.

FRAnQUiAS

Para a professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Yvana Fechine, “Esses conglomerados já atuam,

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hoje, com uma lógica comercial que Jenkins denomina de franquias de entretenimento”. Fechine está iniciando uma série de estudos em torno das narrativas transmidiáticas e não hesita em apontar a Rede Globo, no caso da indústria cultural brasileira, como sendo a emissora que mais claramente tem assumido este papel. Ela pondera que “se não podemos ainda classificar as investidas da Globo como franquias de entretenimento, já podemos, dentro da especificidade da indústria midiática brasileira, analisar parte de sua produção como uma estratégia de circularidade inerente à transmediação”. O que a Globo tem feito com produtos como Ó Pai ó ou Carandiru não movimenta ainda negócios milionários, a exemplo da série norteamericana 24 Horas, da Fox, que surgiu na televisão e se expandiu para os quadrinhos, videogames, livros, e até


os fenômenos de transmediação bemsucedidos são aqueles nos quais cada mídia dá uma contribuição ao sistema narrativo espectadores que tomam contato com aquele universo ficcional pela primeira vez, por meio de uma determinada mídia, quanto para aqueles outros que buscam aquele universo ficcional em múltiplas mídias”. Guel Arraes, segundo ela, foi um precursor dessa experiência na televisão brasileira, embora num estágio ainda inferior ao que Jenkins discute na sua obra. Cadu Rodrigues, diretor da Globo Filmes, afirma que a experiência do Auto da Compadecida, filme produzido para TV e cinema, não foi uma ação planejada, mas, como deu certo, motivou a empresa a investir em produtos associados diretamente à grade de programação da TV Globo. A empresa aposta que O bem-amado, o mais novo trabalho de Guel para o cinema e que já foi novela e série, deverá lotar as salas. 02

episódios para telefones celulares, mas são experiências sinalizadoras de que este é um caminho sem volta quando falamos de processos da cultura digital. O cineasta e roteirista Léo Falcão afirma que “a transição entre mídias está se tornando um hábito contemporâneo”. Mesmo consciente da existência de jogadas mercadológicas por trás dessa tentativa de expansão de um universo dramático que tenha dado certo numa mídia específica, ele considera um campo interessante para os realizadores. Falcão acha a exploração de novas linguagens um processo instigante para quem trabalha com criação. “A leitura em mídias lúdicas (games) ou episódicas (séries) é de certa forma mais complexa do que num filme, e você termina criando outro tipo de relação com a história embutida ou com a narrativa episódica. Por outro lado, o filme demanda uma

energia, uma atenção maior, até porque tem uma experiência mais circunscrita no tempo, com uma imersão mais imediata. Como a tônica dos nossos tempos é a multiplicidade de sensações, parece natural o maior espaço dedicado a essas transmediações”, completa. Yvana Fechine observa que entender e investir na produção de conteúdos voltados aos produtos transmidiáticos é uma necessidade urgente no âmbito da cultura contemporânea, e a implantação da TV digital vai exigir dos realizadores o domínio dessas novas linguagens. Ela acrescenta que os fenômenos de transmediação bem-sucedidos são aqueles nos quais cada mídia dá uma contribuição ao sistema narrativo como um todo, mantendo, no entanto, sua autonomia. “Idealmente, a narrativa proposta por cada meio deve fazer sentido tanto para os

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RecePÇÃo

O crítico de cinema, Luiz Joaquim, observa, porém, que cada caso deve ser analisado, separadamente, no que diz respeito principalmente à recepção. Ele lembra que Auto da Compadecida e Cidade dos homens foram sucesso em formato de minissérie na TV e obtiveram boas bilheterias no cinema. Já Antônia, de Tata Amaral, alcançou boa audiência na telinha e, apesar da qualidade da narrativa cinematográfica e reconhecimento da crítica especializada, foi um fracasso retumbante de bilheteria. Ele cita, ainda, o exemplo de Pedra do Reino, adaptação do romance de Ariano Suassuna por Luiz Fernando Carvalho para o formato minissérie pela Globo. Posteriormente, ele foi transformado em filme e não logrou êxito em nenhum dos dois veículos. “Do ponto de vista de audiência na TV, foi um fracasso. Depois, a Globo fez às pressas uma versão para o cinema,


divulgação

03 RecePÇÃo

apesar do sucesso, a minissérie Antônia foi um fracasso de bilheteria no cinema

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o filme Cidade de Deus terminou se transformando na bem-sucedida série Cidade dos homens

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emiSSoRA

a rede globo mostra sua força no campo das narrativas transmidiáticas com produtos como A grande família

Mídia 03

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à revelia do diretor, e o resultado foi ainda pior”, pontua. Fechine reconhece ser um desafio para os realizadores compatibilizar os desdobramentos nas distintas mídias a partir do mesmo ambiente narrativo, ou seja, um mesmo núcleo de personagens envolvidos em um mesmo programa narrativo de base que se reconfigura a cada mídia. “Os criadores precisam investir na proposição de universos ficcionais capazes de acolher múltiplos personagens, do mesmo modo que estes devem ser compostos para sustentar múltiplas situações.” A transmediação não significa o espectador ver a mesma coisa, mas, sim, a expansão dos universos

xilogRAvURA

Capa do lP, que se tornou Cd na versão internacional, teve seu projeto gráfico premiado. Marcelo soares é o autor da gravura

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transmediação não significa ver a mesma coisa, mas, sim, a expansão dos universos narrativos em diferentes meios narrativos em diferentes meios, de modo que o espectador permanece no mesmo mundo, mas tendo acesso a outras experiências. O professor do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense, Tunico Amancio, segue a mesma linha de raciocínio e diz que, do ponto de vista da concepção dos roteiros,

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o mais importante é a abertura para outros formatos que suponham uma maior interação entre texto e espectador e uma relação formal entre diferentes modelos de narrativa. Os cursos de audiovisual no Brasil, contudo, segundo Amancio, não se deram conta dessa novidade e da necessidade de se adequar a ela. Na instituição da qual é professor, só agora se está trabalhando com roteiro multiplataforma, envolvendo os cursos de Estudos de Mídia e Cinema e Audiovisual. E defende: “Do ponto de vista de mercado, isto é inevitável, pois, cada vez mais, para um público nativo digital, estes cruzamentos e hibridações serão uma obrigatoriedade”.


Divulgação/Daniel carneiro

Claquete

fordlândia Um sonho de megalomania perdido no meio da selva Documentário registra a saga da cidade-fantasma paraense, erguida para a produção de borracha nos anos 1920, pelo industrial norte-americano Henry Ford texto Thiago Lins

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sinal dos tempos a caixa d’água e o sol: relógios de diferentes tempos em Fordlândia


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1926. a Ford inaugura a linha de produção em massa com o modelo T-Ford Bigode, no Brasil. Sucesso absoluto (até hoje só vendeu menos do que o carismático fusca), o modelo que praticamente inaugurou a indústria automobilística tinha pneus com borracha importada da Malásia. Tanto a demanda dos consumidores quanto o orgulho americano de Henry Ford eram grandes demais para depender daquele país, à época uma colônia da Inglaterra, que detinha o monopólio da borracha.

Influenciado por um estudo precipitado da American Rubber Mission (Missão Americana da Borracha), que atestava ser viável a produção do látex no Brasil para uso da indústria americana, o empreendedor Henry Ford decidiu construir um braço de seu império no Norte brasileiro: nascia a Fordlândia, uma babel tropical no interior paraense. Como um carro, a cidade foi montada peça por peça, com material todo enviado de Detroit: cimento, tijolos, telhas e... hidrantes. Junto com as telhas

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francesas e os espaçosos terraços, os hidrantes davam um tom de arquitetura e grandeza americana em Fordlândia, um centro industrial que virou fim de mundo: na década de 1920, nordestinos e até estrangeiros migravam para a região em busca de trabalho. A cidade concentrava um dos hospitais mais modernos da época, luz elétrica e água encanada, cinema e mais de 20 línguas. Até o pagamento quinzenal, em dinheiro, era inovador para os padrões de então: na era pré-Ford, os trabalhadores costumavam trocar látex diretamente por mantimentos. Mas o pagamento foi uma mudança menor na vida simples dos trabalhadores locais. De repente, o tempo que era marcado pela chuva e pela seca passou a ser cronometrado em pontos espalhados pela cidadeindústria. A imponente caixa d´água suspensa, marca registrada da montadora ainda hoje, tinha virado ponto de referência. Um apito insistente chamava os trabalhadores para o turno de nove horas, com intervalo de uma hora para almoço, que consistia em espinafre enlatado, o que culminou num motim antiespinafre. Sob gritos de “abaixo o espinafre”, os trabalhadores fizeram greve e clamaram por arroz e feijão. Posteriormente, ainda protestariam contra o self-service vigente nos refeitórios: queriam ser servidos. Os operários não se adaptavam à imposição do modus operandi fordista, muito menos ao estilo de vida americano, o que culminou em escassez de mão-de-obra. E em escapadas para a “ilha dos inocentes”, onde poderiam encontrar prostitutas e bebidas, que eram estritamente proibidas no limite de Fordlândia: a concessão da empresa era, também, residência dos empregados. Se o megalômano Henry Ford não conseguiu mudar a natureza humana, mudaria muito menos o curso da própria natureza. Hectares foram devastados para a monocultura da seringueira, danificada pelo vento e pela umidade. Mais tarde, o fungo do mal-das-folhas arruinaria o delírio de Ford, que, afinal de contas, já vinha se tornando obsoleto com o surgimento da borracha sintética. Esquecido, o


Divulgação/Daniel carneiro

Claquete 02

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o bom Filho charles Towsend voltou a Fordlândia depois de mais de 50 anos

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Forma e conteúdo Daniel augusto e Marinho andrade: o primeiro cuidou do visual, o segundo desenvolveu a pesquisa

Eldorado tropical já virou história. Mas também virou filme.

todos indolentes

Marinho Andrade, que dirige a película Fordlândia junto com Daniel Augusto, se diz um fuçador. Conta que certa vez viu uma notinha num jornal de São Paulo sobre Fordlândia. Por algum tempo, esse foi o único material de trabalho que o cineasta tinha. O jeito era apurar in loco. Juntou suas economias de publicitário – profissão que exerce até hoje, até

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mesmo para capitalizar seus filmes – e deixou a megalópole rumo àquilo que parecia uma “terra do nunca”. Duas horas de avião de São Paulo a Belém foi pouco. Teria que encarar, ainda, três dias de barco. À época (1991), nenhuma estrada de terra levava à distante Fordlândia. Hoje, uma estrada passa por lá, mas pouca gente para num lugar sem nenhum tipo de comércio. São 800 pessoas vivendo de aposentadoria e subsistência, “Todos indolentes”, nas palavras do diretor. Andrade estava indo à cidadefantasma com “a cara e a coragem”. Já tinha varrido as bibliotecas paulistas, como a da USP, sem resultado. Na rota, fez uma escala em Santarém, cidade a 200 quilômetros de Belém. Lá visitou a ONG do estudioso Cristóvão Sena, um dos entrevistados do filme. Sena já tinha recebido Elaine Lourenço, pesquisadora que defenderia uma tese de mestrado sobre Fordlândia. Uma

Fordlândia abriga 800 pessoas, todas aposentadas ou vivendo de subsistência cópia da tese ficou com Sena, que, por sua vez, a cedeu para Andrade. Para o diretor, foi uma mão na roda: nem na fundação Henry Ford, nos Estados Unidos, encontraria um estudo tão completo sobre a babel esquecida. E foi lendo a tese que Andrade teve notícia do Arquivo Nacional de Washington, onde encontraria pilhas de filmes com material documentado: Henry Ford nunca pisou na Amazônia, acompanhava tudo o que acontecia no seu milhão de hectares por gravações. Ainda nos EUA, Andrade praticamente deu plantão na sala de espera do escritório de Robert McNamara, ex-diretor executivo da Ford. Não foi atendido. Mas o fuçador encontraria Charles Towsend, um filho de Fordlândia, de pai americano (funcionário da Ford) e mãe brasileira. Towsend, hoje um banqueiro de 69 anos, deixou a cidade natal para estudar nos EUA, quando tinha 14 anos. Só voltou recentemente, na


INDICAÇÕES Comédia

LOCALIzAçãO

Belém Fordlândia PARÁ

ocasião do documentário. A equipe fez suspense: só ao voltar para Fordlândia o banqueiro saberia da situação da cidadefantasma, que ele nem imaginava. Tampouco imaginava encontrar a tranquila Dona América, sua babá na infância – num dos momentos mais fortes do filme, que é dedicado a ela: a senhora de 82 anos veio a falecer logo após o encerramento das filmagens.

cheFe de cerimÔnia

Outro filho a retornar foi o irmão de Charles, o simpático Ed. Este foi por coincidência. Quando Hillary, uma de suas duas filhas, entrou na universidade, Ed lhe deu uma viagem com destino aonde a filha quisesse ir, com a família inteira. Hillary escolheu a terra natal do pai. “Tem certeza?”, perguntou à jovem inocente, que não fazia ideia da cruzada que teria de enfrentar até chegar lá. Ed é uma espécie de apresentador do documentário de 52 minutos bem-conduzidos, orçado em 700 mil reais (com recursos cedidos pela Companhia Siderúrgica Nacional) e visto pela reportagem da Continente

em primeira mão. Boa parte de Fordlândia usa a memória afetiva de Ed como fio condutor, dando um toque pessoal à película. Além dos filhos de Fordlândia, o filme conta com depoimentos de estudiosos do norte brasileiro, como o lendário jornalista Lúcio Flávio e o próprio Cristóvão Sena, comentando o passado do lugar, mostrado em valiosas imagens de arquivo: resgatar a memória daquela neverland é a proposta maior do filme. Alternando com as imagens de arquivo e entrevistas, estão os quadros que a equipe filmou no local. É aí que entra Daniel Augusto, parceiro de Andrade na Grifa Mixer. O autor do premiado Mapas urbanos, junto com o fotógrafo Roberto Santos Filho, é corresponsável por outro acerto de Fordlândia: o esmero visual. Os quadros, que Augusto diz terem “um ritmo de contemplação”, dão um tom de filme de arte ao documentário. Como sintetiza seu parceiro, Andrade: “A gente está mais para cinema do que para Globo Repórter”.

@ continenteonline Veja o trailer do filme no site www.revistacontinente.com.br

Drama

VICKY CRISTINA BARCELONA

A TROCA

De Woody Allen Com javier Bardem, Penélope Cruz Imagem Filmes

De Clint Eastwood Com Angelina jolie, john Malkovich, Michael Kelly universal Pictures

um dos mais profícuos cineastas em atividade, Woody allen, escreve e dirige seus roteiros em ritmo industrial. o exemplar de 2008 é o cultuado Vicky Cristina Barcelona. ao reunir Javier Bardem, Penélope cruz e Scarlett Johansson em uma trama passada na espanha, o diretor fez as pazes com a crítica e obteve bilheteria expressiva nos cinemas. o triângulo amoroso alleniano dá margem a diálogos afiados em meio a vinhos, pinturas e traições.

outro setentão do cinema norteamericano que não dá sinais de cansaço é clint eastwood. em A Troca, o diretor se une à atriz angelina Jolie para contar a história de christine, na los angeles dos anos 1920. logo no início do filme, seu filho desaparece sem maiores explicações. Dois meses depois, a polícia encontra o garoto, mas christine insiste em que aquele não é seu filho. eastwood é também o responsável pela trilha sonora do filme.

Drama

FALSA LOURA

De Carlos Reichenbach Com Rosanne Mullholand, Cauã Reymond, Maurício Mattar Imovision

em seu cinema de autor, fica evidente o comando de carlos reichenbach na construção da narrativa. não foi diferente com seu último lançamento, Falsa loura. centrado na hipnotizante figura de rosanne Mullholand, o filme segue o cotidiano de Silmara, uma operária que sustenta o pai, enquanto sonha com o ídolo musical, luís ronaldo (Maurício Mattar). com referências irônicas a godard, o diretor faz um filme que se diferencia das atuais produções brasileiras.

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Romance

UMA GAROTA DIVIDIDA EM DOIS

De Claude Chabrol Com ludvine Sagnier, Benoit Magimel Imovision

não há como dissociar a nouvelle vague de claude chabrol. em atividade há mais de quatro décadas, o cineasta filma gabrielle (ludivine Sagnier), sua protagonista, perdida entre o encantamento que sente por um escritor mais velho e as investidas de um jovem mimado. Sagnier, atriz em ascensão no cinema europeu, já trabalhou com nomes como François ozon e christophe Honoré, e faz aqui seu primeiro trabalho com o mítico realizador francês.


CAFÉ Preto, amargo, quente, é (mesmo) mania nacional

Maior produtor e exportador mundial da bebida, o Brasil ocupa o segundo lugar no seu consumo, seja com o cafezinho de rua ou com o sofisticado espresso texto Renata do Amaral FotoS Eduardo Queiroga

Cardápio não tem discussão: café é a cara do

Brasil. Coado em pano ou filtro, espresso (“Com ‘s’, à maneira italiana, por favor”, diriam os puristas), feito na cafeteira moca, à moda turca (ou café de soldado): não importa o modo de fazer, mas sem a xícara diária o brasileiro não passa. A cerveja também tem seus momentos, mas o cotidiano é mesmo do café. Chegou visita? Café. Pôr a conversa em dia? Café. Inspiração para enfrentar a labuta? Com açúcar, por favor.

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O Brasil é o maior produtor mundial do grão, com 33,4 milhões de sacas em 2007, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic). É também o maior exportador, responsável por mais de um terço da produção mundial. Por fim, é ainda o segundo maior mercado consumidor, atrás apenas dos Estados Unidos. São 2,7 milhões de hectares plantados, sete milhões de empregos diretos e indiretos e US$ 3 bilhões em faturamento anual.


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O Estudo de Tendências de Consumo de Café (2007), da Abic, indica que 80% dos brasileiros tomam café diariamente. Se o café disputa com o chá a preferência em alguns países, por aqui não há dúvida de que é a bebida nacional por excelência. O consumo vem crescendo entre os jovens, rejuvenescendo a base de consumidores. Quem não toma, considera que a bebida faz mal à saúde (56%) ou não gosta do sabor (20%).

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mAis AmAdo

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esPResso

No Brasil, o café é a bebida nacional por excelência, tomada por 80% da população Esta é a grafia correta para o famoso café “espresso”, que significa “preparado especialmente para a ocasião”

O médico Darcy Roberto Lima vem coletando estudos que mostram que a bebida tem substâncias anticancerígenas, protege contra doenças degenerativas e diabetes e contém antioxidantes benéficos à saúde. A conclusão a que chegou é que o consumo em quantidades moderadas – ou seja, até quatro xícaras, o que equivale a 400 a 500 mg de cafeína ao dia – não causa mal algum. Se ainda hoje a bebida é acusada de fazer mal à saúde, pode-se dizer que a situação já foi pior. “É um dever de todos os pais e mães do mundo proibir severamente o café a seus filhos, se não quiserem que eles se tornem maquininhas secas, mirradas e velhas aos 20 anos”, disse o francês BrillatSavarin, para quem o café causava grande excitação no cérebro e impedia uma noite de sono tranquilo. Fundador da ciência da gastronomia, ele escreveu, em A

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fisiologia do gosto, de 1826, que o café era melhor quebrado no pilão do que moído. Também torceu o nariz para a versão da época do espresso: “Um dos meus experimentos foi preparar café numa cafeteira de alta pressão; mas o resultado foi um café amargo e carregado de matéria extrativa, bom apenas para arranhar a garganta de um cossaco”. Mal sabia ele que essa versão seria a mais festejada hoje. É curioso observar um certo tom didático em alguns cardápios do Recife: no Pátio Café, por exemplo, pode-se ler no cardápio que “espresso” não está com erro de ortografia nem tem nada a ver com “expresso”, feito rapidamente, mas, sim, com a palavra italiana que significa “preparado especialmente para a ocasião”. Já o Castigliani Cafés Especiais oferece as versões curto e longo, lembrando que o curto, com menos água e a mesma quantidade de pó, é superior ao longo.

XÍcARA PeRFeitA

Apesar de contar com um bom número de cafeterias e de apreciadores, somente este ano o Recife ganhou um curso de formação de baristas. Na verdade, dois, mas sob a batuta do mesmo professor: o baiano Jonathan Silva dá aulas no Senac, em Santo Amaro, e no Coffee Center, em Setúbal.


Cardápio

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Na cidade, há apenas quatro meses, ele trabalha com espresso há 11 anos e aprendeu o ofício com o italiano Valentino Sergi. O barista é o profissional que domina as técnicas de extração da bebida e precisa conhecer toda a cadeia produtiva do café, desde o plantio até a mesa. No Senac, o curso básico dura 20 horas e as turmas têm até 30 alunos; no Coffee Center, são 15 horas para até seis pessoas. Esta escola oferece mais três cursos sobre o tema: drinques de café para fazer em casa, drinques de café para quem já atua na área e degustação. Segundo Silva, a formação em barista vem sendo mais procurada por pessoas ligadas à área gastronômica interessadas em abrir casas de café, mas ainda é rara a presença de profissionais que já estão no mercado. É preciso estudo para lidar com máquina complexa, cujo valor fica R$ 8 mil e 25 mil. “Não conhecer bem os recursos é como ter uma Ferrari e usá-la como se fosse um Fusca”, compara Silva. Não contar com uma supermáquina de espresso não é desculpa para descuidar do cafezinho caseiro. O

Formação em barista vem sendo procurada por pessoas ligadas à área gastronômica interessadas em abrir casas de café barista dá as dicas para o melhor resultado: nunca ferver a água, usar pó moído recentemente, consumir o mais rápido possível (nada de garrafa térmica!), tomar em xícara de porcelana aquecida (para parecer com xícara de cafeteria, basta escaldar rapidamente), usar produtos de qualidade e guardar o pacote na geladeira depois de aberto. Na hora de degustar, convém evitar açúcar para não mascarar as características da bebida. Ele usa potes com diferentes aromas – coco, amêndoa, chocolate amargo e pêssego são alguns deles – para treinar o paladar dos alunos. Degustar, no entanto, não equivale a tomar café no dia-a-dia. “O melhor café é o de

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que você gosta, seja puro, com açúcar ou adoçante”, afirma o barista. “Há vários métodos de preparo, mas tudo é café”, completa.

consUmidoRes APAiXonAdos

E não é mesmo? Que o diga a universitária Desireê Antônio, cuja cota diária de cafeína chega perto de um litro: uma caneca de 300 ml ao acordar, mais 200 ml no meio da manhã, outros 100 ml depois do almoço, a mesma medida no meio da tarde, “Para animar um pouco”, e “Uns dois dedinhos, às 18h, 18h30, pra esquentar”. Sempre coado. “O espresso costuma ser fraco, meio translúcido, e não tem o mesmo cheiro que o de coador”, reclama. Ela é tão louca pela bebida que foi presenteada por uma amiga com uma camiseta – cor de café, claro! – com os dizeres “coffee lovers”. “Foi um reconhecimento público do vício”, brinca. A mania começou cedo; quando ela tinha cinco ou seis anos, começou a estudar pela manhã e o pai encontrou no café uma maneira de acordá-la. No começo, ela se satisfazia com o cheiro. Depois, começou a beber


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estUdo

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cAstigiAni

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cAPUccino

O barista Jonathan Silva trabalha com espresso há 11 anos e aprendeu o ofício com o italiano Valentino Sergi Funcionando ao lado do Cinema da Fundação, a casa mantém um cardápio enxuto, mas composto de itens ideais à degustação da bebida Receitas à base de café têm sido elaboradas com sofisticação e criatividade

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puro ou com leite. Sem ele, ainda hoje, o dia não começa. “Eu gosto mesmo é de tomar o café que eu faço, no meu coador velho. Gosto do ritual de ver a água quente passando por ele e se transformando em café, enquanto o cheiro toma conta da cozinha. Acho meio mágico. Quando tenho tempo, nos fins de semana, gosto de tomar café com biscoito de polvilho e queijo Minas ou com pão de queijo. Bom demais!”, conta, com sotaque mineiro que não nega as origens. Na tradicional Padaria Santa Cruz, que conta meio século de existência no bairro da Boa Vista, no Recife, o café briga com refrescos, refrigerantes e caldo de cana pela preferência do público. Pela cafeteira industrial, com capacidade para cinco litros, passam cerca de três pacotes do pó por dia. O cafezinho é coado e o reservatório prateado conserva a temperatura correta com ajuda de água quente. Sai por 50 centavos a xícara pequena e por um real a grande. De acordo com o gerente Gaudêncio Aguiar, a bebida é coadjuvante na padaria. A culpa,

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Cardápio

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cotidiAno

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cAseiRo

Nas ruas, o cafezinho é vendido a preços populares O café coado ainda agrada aos paladares tradicionais

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quem sabe, pode ser das promoções, que combinam coxinha ou pizza com refresco a preços atrativos. São poucos os clientes que pedem a implantação de uma máquina de espresso. Aguiar, que trabalhou por 39 anos no restaurante Galo D’Ouro, hoje extinto, recorda com saudade do café de lá. “Aquilo é que era café!”, suspira.

no inÍcio, eRA o cAFÉ

Coffea arabica. Apesar do nome, o café não tem origem árabe e, sim, africana. Conta a lenda que os efeitos da planta foram descobertos quando o pastor Caldi, da região da Abissínia (atual Etiópia), notou que suas cabras estavam bastante agitadas e não conseguiam dormir à noite. No dia seguinte, prestou atenção redobrada e viu que elas

haviam comido uma pequena fruta vermelha de um arbusto. O café passou a ser usado por monges para manter a vigília durante suas orações, devido ao seu alto teor de cafeína, de propriedades estimulantes. O arbusto se aclimatou na Arábia e passou a ser considerado o vinho islâmico, uma vez que os seguidores da religião muçulmana não podiam consumir bebidas alcoólicas. Torrado pela primeira vez na Pérsia, disseminou-se a partir do século 16. Não demorou para a moda chegar à Europa. Os cafés passaram a fazer parte da vida das principais cidades europeias. Em Paris, eram considerados verdadeiros catalisadores culturais, onde intelectuais se reuniam e realizavam saraus. Em 1750, havia

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nada menos que 600 estabelecimentos do tipo na cidade. A máquina de café espresso surgiu na França em 1822, mas foi aprimorada pelos italianos, país que se tornou sinônimo de qualidade da bebida. No século 18, foi a vez de o Brasil conhecer o café. A versão mais conhecida é de que foi trazido ao país pelo sargento-mor Francisco de Melo Palheta em 1727. A produção nacional começa a ganhar impulso no sudeste depois da Independência (1822), mas é na primeira metade do século 20 que os grãos passam a ser parte importante da economia brasileira, principalmente do estado de São Paulo. De tão celebrado, o café já foi até tema de uma cantata de Bach, na qual um pai se preocupava porque a


filha bebia tanto café que dificilmente arranjaria um bom marido. No período barroco, o costume de se reunir em cafés engatinhava e não era visto com bons olhos para uma moça, pois suspeitava-se que a bebida pudesse causar esterilidade. “Ah, como é doce o seu sabor / Delicioso como milhares de beijos / Mais doce que um moscatel / Eu preciso de café!”, reclama a donzela. Por aqui, Chico Buarque cantou a bebida em Cotidiano, música na qual o marido ouve que a mulher o está esperando para o jantar e recebe um beijo com gosto de café – repudiado, por outro lado, na canção A expressão exata, da pernambucana Mundo Livre S/A, na qual o personagem promete até dar seus neurônios ou néfrons para a amada, contanto que ela nunca o beije “depois de ter tomado aquele café quente, amargo e preto”.

cARo e inUsitAdo

Os países tropicais são os principais produtores de café e é possível perceber as características do local em

que foi cultivado, de forma semelhante ao que se passa com o vinho e seu terroir. Os melhores cafés ficam em plantações a mais de mil metros de altitude acima do nível do mar, com dias quentes e noites frescas. É o caso da Colômbia, segundo produtor mundial, com grãos de qualidade internacionalmente reconhecida. É preciso levar em conta o blend, ou seja, a proporção de diferentes cafés usados, mas pode-se dizer, de modo geral, que o café do tipo arábica tem melhor sabor e aroma que o da variedade robusta. Este grão é mais resistente a pragas e fatores climáticos, mas possui sabor adstringente e amargo demais. Os cafés gourmet ou especiais costumam ser 100% arábica, enquanto o robusta é mais usado em solúveis. O café mais caro do mundo faria muitos apreciadores torcerem o nariz: é o Kopi Luwak, feito com grãos ingeridos e excretados por uma espécie de gambá que vive na Indonésia e nas Filipinas. Eles passam pelo sistema digestivo do animal, intactos e originam um café

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cAsAs de cAFÉ no ReciFe CASTIGLIANI CAFÉS ESPECIAIS Rua Henrique Dias, 609, 1º andar, Derby, fone (81) 3073.6683 COFFEE CENTER Rua João Cardoso Aires, 875, sala 7, Setúbal, fone: (81) 3426.4432 O PÁTIO CAFÉ E COZINHA Avenida Rui Barbosa, 141, Graças, fone: (81) 3221.6793 PADARIA SANTA CRUZ Rua de Santa Cruz, 101, Boa Vista, fone: (81) 3231.3009 SENAC Av. Visconde de Suassuna, 500, Santo Amaro, fone: (81) 3413.6666

que chega a custar US$ 600 por meio quilo. Especialistas dizem que ele tem gosto de chocolate e suco de uva e possui menor amargor e acidez do que qualquer outro tipo. Qualquer brasileiro sabe, no entanto, que não é preciso ir tão longe para apreciar um bom café.


Sonoras

compomus Espaço para criação de música erudita

Laboratório de Composição Musical da UFPB estimula parceria com grupos instrumentais paraibanos, realizando pesquisas e acervos documentais sobre repertório nacional texto Carlos Eduardo Amaral fotos Flora Pimentel

Boa parte dos grandes

compositores eruditos do século 20, em particular dos Estados Unidos, passou pelas mãos da mais conceituada professora de composição da história da Música, Nadia Boulanger (1887-1979), no Conservatório Americano de Paris. Boulanger, no entanto, por mais que transmitisse sólidos conhecimentos aos seus alunos, muitos dos quais cruzavam oceanos para vê-la, nunca lhes quis impor uma concepção estética: seu objetivo era ajudá-los a descobrir o próprio estilo.

Assim, a mestra francesa tutoreou jovens nomes tão consagrados mais tarde quanto Copland, Gismonti, Piazzolla e Quincy Jones – todos na casa dos 20 ou 30 anos. Esta é a faixa de idade de grande parte dos alunos de um projeto de extensão que nasceu em 2002, dentro do Departamento de Música da Universidade Federal da Paraíba, e vem revelando talentos cujas obras têm circulado discretamente pelo Brasil nos últimos anos. No início, o Laboratório de Composição Musical da UFPB, ou

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simplesmente Compomus, realizava pesquisas e acervos documentais sobre música brasileira, mas a criação de cursos de composição voltados não somente aos discentes acadêmicos, algo sem similar no país, deu um novo impulso ao projeto e desencadeou parcerias com grupos instrumentais profissionais e juvenis para divulgar as obras despertadas com as aulas. Os cursos – surgidos com a finalidade paralela de gerar receita para o Compomus, já que o laboratório não possui dotação prevista no orçamento da universidade – abrangem disciplinas básicas, como Introdução à composição e Editoração de partituras; adiantadas, tal qual Orquestração e Composição avançada I e II; e até fora do universo da música erudita, como História do rock. Já os concluintes de Composição avançada II podem ir mais longe e se habilitar à disciplina Tutorais de composição, na qual são acompanhados por um professor durante um semestre, enquanto aperfeiçoam a própria linguagem musical.


SALA de AuLA José Orlando Alves,do coletivo carioca Prelúdio 21, durante uma de suas aulas no Compomus

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PARtituRA Contrafactio, composição do ex-aluno e atual docente Marcílio Onofre, que contabiliza cerca de 40 obras

divulgAçãO

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Em pouco tempo, o Compomus garantiu uma contínua alimentação de estudantes para a graduação e impeliu a instituição do programa de pós-graduação em música da UFPB, em 2004. O compositor e professor Eli-Eri Moura, um dos sete docentes fundadores do laboratório, aponta que o fato de uma ação de extensão em música ter gerado demanda por uma pós não tem precedentes entre as universidades brasileiras e ressalta que o Compomus preparou alguns alunos diretamente para o mestrado em composição, sem que eles tivessem obtido graduação equivalente antes.

ReVeLAÇÕeS

Foi o caso de Ticiano Rocha, de 27 anos, hoje professor no Mato Grosso e autor de quase 20 obras; entre elas, seis para orquestra sinfônica e de câmara. Ana Lúcia Altino Garcia, primeira chefe do Departamento de Música (DeMus) da UFPB e conhecida no Recife por conta do festival Virtuosi, pontua que o próprio bacharelado em música da universidade paraibana veio também de um curso de extensão.

Tanto o bacharelado quanto o departamento datam de 1980. Outro dos alunos revelados no Compomus, Marcílio Onofre, de 27 anos, atualmente ensina no laboratório e é professor substituto do DeMus, onde ministra disciplinas de Harmonia tonal, Contraponto modal e Editoração de partituras com software Sibelius. O catálogo de Marcílio contabiliza cerca de 40 obras, três gravadas em CD, e participações em três bienais de música recentes (uma nacional e duas no Mato Grosso, que abriga a única bienal estadual do Brasil). O compositor pessoense está ainda entre os oito finalistas do Concurso de Composição Camargo Guarnieri, cujo vencedor será escolhido no Festival de Inverno de Campos do Jordão deste ano. O Compomus fez com que a Paraíba se tornasse a segunda nascente de compositores fora do eixo Rio-São Paulo, depois da Escola de Música da UFBA – fundada na década de 1950, dinamizada pelo compositor suíço, naturalizado brasileiro, Ernst Widmer (1927-1990) e berço de nomes como Jamary Oliveira e

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Lindembergue Cardoso (1939-1989). Por sua vez, na falta de cursos de composição nos estados vizinhos, o Compomus tem atraído diversos estudantes, como Henrique Maia Lins Vaz, de 20 anos, graduando da Licenciatura em Música da UFPE. Fã de Luciano Berio, Edgard Varèse e do minimalista La Monte Young, Henrique explica que as insatisfações com a vida acadêmica na graduação levaram-no a procurar acolhida em João Pessoa: “Conjeturava encontrar no Compomus um nicho producente onde se fizesse canalizar tanto minhas aspirações enquanto compositor como meus trabalhos, na certeza de que seriam abrigados e avaliados com maestria”. Ele afirma que o retorno recebido o tem motivado a deixar o Recife futuramente: “A benevolência, o humanismo intrínseco aos docentes, para além do espírito de investigação e partilha, persuadem-me a continuar minha carreira acadêmica na UFPB”.

eStiLo LiVRe

Sem querer, Vaz toca em um ponto comum a Nadia Boulanger,


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SuceSSo O Compomus fez da Paraíba a segunda nascente de compositores fora do eixo Rio-São Paulo

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à Escola de Música da UFBA e aos professores do laboratório paraibano: a não-influência no estilo dos alunos. O Compomus enfatiza o ensino de linguagens e técnicas contemporâneas ao mesmo tempo em que evita estabelecer qualquer tipo de “discipulado”, como nas chamadas Primeira e Segunda Escolas de Viena, centradas respectivamente em torno de Haydn, baluarte do Classicismo, e Arnold Schoenberg, o papa do serialismo – ou no embate tupiniquim entre Guarnieri x Koellreuter, ressoado pelos seguidores e detratores de ambos nos anos 1950. A Continente conversou com cinco docentes do Compomus, em João Pessoa, sobre as conquistas, dificuldades e projetos do laboratório: Liduíno Pitombeira, futuro professor do curso de música da Universidade Federal de Campina Grande; José Orlando Alves, do coletivo carioca Prelúdio 21; Marcílio Onofre; Wilson Guerreiro, professor de composição e de engenharia elétrica; e Eli-Eri Moura, compositor da ópera armorial Dulcineia e Trancoso, com letra de W. J. Solha, que vai estrear no Recife este ano. Num Estado de tradição em música erudita como a Paraíba, que precisa, porém, desenvolver a circulação de informações fora de suas fronteiras e

proporcionar incentivos suficientes (problemas extensivos a quase tudo que se destaca nas artes paraibanas em geral), Eli-Eri chama a atenção para o esforço dos integrantes do Compomus: “Às vezes, a gente fica pensando que o sucesso do laboratório só acontece por causa das adversidades. Talvez, se a gente tivesse tudo do bom e do melhor, isso não acontecesse, porque é impressionante o que se faz aqui sem se ter condições”. O compositor lembra que os próprios alunos e professores reformaram a sala principal do laboratório e que hoje o Compomus já integra o futuro plano de expansão do DeMus.

conceRtoS e cdS

O Compomus descobriu uma maneira eficiente de dar vida às obras criadas nas salas de aulas e propagá-las: organizar concertos e produzir álbuns ao lado de grupos locais. A mais recente dessas iniciativas, o CD Brassil interpreta compositores da Paraíba, foi lançada em uma turnê nacional no final de 2008. Para este ano, estão previstos um CD de obras de câmara para cordas, com o Sonantis, e outro com a Camerata Arte Mulher – este, somente com peças de alunos do laboratório, enquanto

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os dois anteriores incluem peças de professores. O Sonantis, único grupo de câmara residente do Compomus, surpreende por não ter número fixo de integrantes, pois recruta instrumentistas e coralistas de acordo com o repertório. Encontra-se em discussão a produção de um CD com a Sinfônica Jovem da Paraíba, que realiza todo ano um concerto promocional com obras dos alunos dos cursos de composição. As apresentações da orquestra juvenil, gravadas em áudio e vídeo, serão disponibilizadas na internet junto com as respectivas partituras, após os compositores acertarem a revisão das obras. Será a maior ação de difusão empreendida pelo projeto de extensão musical da UFPB. Enquanto isso, na falta de espírito empreendedor do meio musical e acadêmico pernambucano, os jovens do Estado podem até não cruzar “oceanos” para se aperfeiçoar fora do país, mas rodam duas horas de estrada para tanto – tempo aproximado que se leva para percorrer os 130 quilômetros que separam o Recife de João Pessoa, as duas capitais mais próximas do país.

@ continenteonline Escute a sonata de José Adalberto Kaplan, no site www.revistacontinente.com.br


divulgAçãO

INDICAÇÕES SAMBA

MPB

Zambo discos

universal

aNa cosTa Novos alvos

NaNDo rEis Drês

A carioca Ana Costa cerca-se de parcerias no seu segundo lançamento. Participam, entre outros, Carlinhos Brown, Celso Fonseca, Mart’nália, leila Pinheiro e Martinho da vila. A cantora imprime personalidade nas gravações, destacando-se como genuína intérprete de samba, em letras bem-humoradas (Caderneta – A minha nega), sem esquecer as dores de amor (Coisas simples), tema caro ao universo do gênero. A produção é de Alê Siqueira, que já trabalhou com nomes como Caetano veloso e Marisa Monte.

Terceiro álbum de estúdio do ex-baixista dos Titãs. Os seus álbuns são marcados por baladas – o que muda a cada disco são as musas. Drês, portanto, descreve o começo, o meio e o fim do último relacionamento de Nando Reis, que reconhece suas limitações como instrumentista e cantor (até hoje, suas canções mais famosas foram imortalizadas por Cássia Eller). Ainda assim, Nando Reis é um dos compositores mais gravados do Brasil e fez um disco acima da média – melhor, inclusive, do que o último dos Titãs.

ROCK

MPB

Sony BMG

Biscoito Fino

Música erudita

VirTuosi Em GraVaTá durante este mês, composições de Bach, Schumann, Haydn, vivaldi, entre outros clássicos da música erudita, vão ser executadas em gravatá, no Agreste do Estado. A cidade vai receber o i Festival virtuosi de gravatá, na igreja Matriz de Sant´Ana, entre os dias 7 e 12. O festival vai levar à serra o maestro João Carlos Martins, que, após perder o movimento em uma das mãos, abandonou o piano e dedicou-se exclusivamente à regência. Na abertura, ele o objetivo do festival vai reger a Orquestra virtuosi é abrir espaço de gravatá, formada para para a música a ocasião, que conta com 22 músicos jovens e cinco clássica no interior professores de Pernambuco e da Paraíba, todos instrumentistas de cordas. Participarão do festival o violoncelista Antonio Meneses, o flautista Rogério Wolf e os estrangeiros Benjamin Sung (Taiwan), victor Asuncion (Filipinas), Catalin Rotaru (Romenia), entre outros. Essa não é primeira vez que a pianista Ana lúcia Altino e seu marido, o maestro Rafael garcia, propõem a descentralização do virtuosi. Há seis anos, além das duas edições recifenses, eles participam do Festival de inverno de garanhuns. O desejo dos organizadores é abrir espaço para música clássica no interior. “democratizar o acesso ao bem cultural - esta é a importância de levar a música erudita para além das fronteiras do Recife. Na verdade, todo o Estado deveria receber com regularidade espetáculos de música erudita”, concluem.

pEarl Jam Ten – legacy Edition Edição especial que abre as comemorações dos 20 anos de Ten, disco de estreia que desbancou o arrasa-quarteirão Nevermind, do Nirvana. Legacy Edition reúne dois Cds. O primeiro nada mais é do que uma remasterização do bom e velho Ten. O segundo é uma colcha de retalhos, com remixes do produtor Brendan O’ Brien (AC/dC, Bruce Springsteen) e seis faixas inéditas. O Cd chega antes da hora – o PJ completa 20 anos em 2011, data prevista para o lançamento do documentário dirigido por Cameron Crowe (Quase Famosos).

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DolorEs DuraN Entre amigos gravações feitas a partir de encontros espontâneos. disso é feito o álbum Entre amigos, um registro de gravações inéditas da década de 1950, de dolores duran. O Cd traz duran cantando, num clima de jam session, clássicos da música americana, como Cry me a river e Cheek to cheek, da canção francesa (Hymne a l´amour) e até do samba nacional. Em algumas faixas, duran é acompanhada por ninguém menos que Baden Powel, ao violão. uma relíquia que nos leva de volta ao charme dos anos dourados.


REPRODUÇÃO

Leitura

ISAIAH BERLIN O centenário do pensador das liberdades

Apesar dos radicalismos ideológicos que marcaram a época em que viveu, Berlin manteve-se cético e tolerante com as ideias divergentes texto Eduardo Cesar Maia

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Se for necessária uma explicação

para que se trate, numa revista mensal, de uma obra publicada no Brasil há quase 10 anos, além do valor e pertinência do livro, este resenhista pode argumentar que o intelectual retratado na biografia Isaiah Berlin: uma vida estaria agora completando 100 anos de vida, não houvesse falecido em 1997, aos 88 anos. O autor, Michael Ignatieff, é canadense e colabora com periódicos importantes, como o The Observer e o The New Yorker Review of Books. Talvez essas experiências jornalísticas sejam uma das explicações para o estilo fluente e instigante desse historiador da Universidade de Harvard. O livro sobre a trajetória pessoal e filosófica de Isaiah Berlin é fruto de 10 anos de intensa convivência intelectual entre biógrafo e personagem, relação que se tornou uma grande amizade e durou até os últimos dias do pensador. Nascido na cidade de Riga, Letônia, que à época era território do império russo, filho de um mercador judeu, Isaiah Berlin mudou-se com toda a sua família para a Inglaterra em 1920, país que o adotou – e que foi adotado por ele – de forma tão leal e intensa, que lá chegou a exercer funções diplomáticas após a Segunda Guerra, recebendo a prestigiosa Ordem do Mérito Britânica. A vida de Sir Isaiah Berlin, apesar das grandes catástrofes que marcaram o tempo em que viveu, transcorreu quase sempre de forma tranquila, como respeitado acadêmico de Oxford. Sua versátil inteligência e traquejo social – diz-se que era um conversador brilhante e sedutor – sempre chamaram a atenção de figuras notáveis, intelectuais ou não, em todos os lugares em que esteve. Albert Einstein, Virgínia Woolf, John Kennedy e Winston Churchill estavam entre seus admiradores. O exame do instigante percurso intelectual de Berlin nos permite distinguir alguns temas recorrentes em seus trabalhos: o exame dos autoritarismos de esquerda e de direita, a importância e as contradições intrínsecas dos ideais iluministas, a crítica dos românticos ao racionalismo universalista, as diversas concepções históricas da ideia de liberdade e a suspeita em relação ao poder

emancipatório da política. A questão sionista também foi um tópico renitente em seus livros e debates públicos.

limiteS da política

A política, por exemplo, é caracterizada por ele como um instrumento sempre deficiente, porém inevitável – um mal necessário –, devido às imperfeições e diferenças inconciliáveis entre os homens. Berlin percebeu que, durante toda a história do pensamento ocidental, muitos filósofos defenderam a premissa de que, se os problemas morais e políticos fossem genuínos, deveriam admitir uma solução universal, quer dizer, uma única e verdadeira resposta para todos os homens em qualquer lugar e em qualquer época. Ele enxergou aí uma perigosa fonte de autoritarismo, na medida em que a visão de mundo que se suponha “mais racional” teria a prerrogativa de se impor sobre todas as outras. Para ele, portanto, os projetos utópicos, desde a república platônica até o igualitarismo marxista, invariavelmente, trazem em suas concepções esse elemento tirânico, derivado da crença de que alguém pode em algum momento saber o que é verdadeiramente bom e justo para todos os outros. Berlin demonstra que as utopias racionalistas serão sempre inviáveis, porque acreditar que pode haver concordância entre os homens a respeito das finalidades da vida e sobre a forma correta de viver é fruto de um

Dois conceitos de liberdade, ensaio de isaiah Berlin, tornou-se referência na filosofia política contemporânea delírio da razão. Daí advém sua defesa das sociedades abertas e pluralistas. A partir da oposição entre o romantismo alemão e os ideais racionalistas do iluminismo francês, Berlin construiu uma visão sintética original, que recusava e admitia, de acordo com sua perspectiva própria, valores e peculiaridades de ambos

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isaiah Berlin michael iGNaTiFF Record Biografia narra a trajetória pessoal e intelectual do filósofo, destacando a profunda influência de seu pensamento na atualidade

os movimentos filosóficos. Por um lado, ele mantinha a fé em certas bandeiras do Iluminismo, como o ataque à autoridade e ao dogma religioso; a defesa dos direitos humanos e da liberdade do indivíduo contra a tirania do Estado. Por outro, denunciou a deficiência dessa razão que pregava que os valores humanos podiam ser diretamente inferidos de uma natureza humana universal. Berlin mostrou que os românticos nos haviam previnido de que os valores eram criações humanas que se alteravam com o tempo e o espaço, de acordo com a forma de vida de cada sociedade. Consequentemente, os valores são históricos, relativos a cada cultura em que são engendrados e, até mesmo, conflitantes, visto que há elementos de contradição na própria natureza humana. O maior mérito da biografia escrita por Michael Ignatieff é mostrar que a vida intelectual pode ser tão intensa e emocionante quanto outras formas de existência. O retrato que fica de Isaiah Berlin, após a leitura, é a de um autêntico livre-pensador: curioso, cético, irônico e amplamente tolerante com as ideias alheias.

@ continenteonline Leia trecho do livro Isaiah Berlin: uma vida no site www.revistacontinente.com.br


cORtEsia acERvO cEntRO alcEU amOROsO lima PaRa a liBERDaDE

Leitura BIOgRAfIA Alceu hermetificado por Cândido Mendes Em livro que busca relatar vida e a obra do crítico, ensaísta e professor mantém narrativa empolada e de díficil leitura texto Edson Nery da Fonseca

Uso o verbo hermetificar em referência não ao marechal-presidente Hermes da Fonseca e, sim, ao deus egípcio Thot, conhecido como Hermes Trimegisto. O fundador da alquimia parece ter encarnado no insigne pensador brasileiro Cândido Mendes, que é um excelente orador, mas sempre hermético quando escreve. Pela grande admiração e amizade que me ligou a Alceu Amoroso Lima, comprei e tentei ler o recente livro de Cândido Mendes Dr. Alceu: da “persona” à pessoa (São Paulo: Paulinas, 2008): tentativa frustrante! São 600 páginas de um hermetismo que lembra as ciências ocultas de Hermes Trimegisto. Depois dos maravilhosos textos sobre Alceu escritos por Carlos

Dante de Moraes, Mário de Andrade, Roberto Alvim Corrêa, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux – nenhum deles citado por Cândido Mendes! – e dos belos poemas a ele dedicados por Carlos Drummond de Andrade (O escritor e Alceu, radiante espelho, no livro de 1985 Amar se aprende amando), o volumão de Cândido Mendes é um verdadeiro blefe. Ele alude, no título, ao pseudônimo com o qual Alceu Amoroso Lima se destacou como crítico literário, procurando distinguir o escritor do advogado e empresário. Prefiro, a propósito, os lindos versos de Carlos Drummond de Andrade: “Tristão e Alceu a mesma/ fiel cristalinidade/ uma criança sorrindo/ no sábio à sombra de Deus”.

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Admirador de Álvaro Lins desde que fui seu aluno nos dois últimos anos do antigo curso ginasial (19381939), tinha, como ele, uma paixão literária por dois grandes escritores brasileiros que, pertencendo à mesma geração, nunca se entenderam bem: Gilberto Freyre e Alceu Amoroso Lima. A divergência entre eles começou nos anos 1930, quando católicos pernambucanos de extrema direita fizeram com que Alceu, então no auge de sua conversão ao catolicismo, escrevesse um lamentável artigo acusando Gilberto de subversivo. Gilberto vingou-se, acusando indelicadamente Alceu de citar um livro de autor sobre o Brasil “só para mostrar que sabia alemão”. Mas o fato é que foram ambos grandes presenças no panorama cultural brasileiro. Anos depois, Alceu nobremente concordou em colaborar na obra coletiva Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte (Rio de Janeiro: José Olympio, 1962) com um excelente ensaio intitulado Gilberto Freyre visto por um católico (p. 37-45). Ninguém melhor do que ele poderia mostrar que não existe nenhuma heresia na obra de Gilberto Freyre, como alardeavam o jesuíta goês Antonio Ciríaco Fernandes e seus discípulos da Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica


do Recife, um dos quais sugeriu que o livro Casa-Grande & Senzala fosse queimado em praça pública.

Resenha

fILOCtEtES O HERóI ABANdONAdO

Conheci pessoalmente Alceu Amoroso Lima em solenidade na embaixada da França em Washington, quando ele recebeu a comenda da Legião de Honra. Exercia, então, a direção do Departamento Cultural da Organização dos Estados Americanos. Essa temporada nos Estados Unidos (1951-1953) foi muito importante para o equilíbrio intelectual de quem teve uma formação predominantemente europeia. Seu caso se assemelha ao de Thomas Merton, outro europeu que se converteu ao catolicismo nos Estados Unidos. Os dois, aliás, tiveram um demorado encontro na abadia trapista de Nossa senhora de Getsemani (em Louisville, Kentuck), onde Merton passou grande parte de sua vida como simples Faher Louis OCSO (Ordem Cisterciense na Estrita Observância). Embora tenha sido o crítico literário do Modernismo, seu primeiro livro, publicado no mesmo ano da Semana de Arte Moderna (1922), foi dedicado ao escritor regionalista mineiro Afonso Arinos. Recordo, a propósito do autor de Pelo Sertão, o segundo e último encontro que tive com Alceu Amoroso Lima. Ele estava em Brasília – que magistralmente definia como “capital cesariana” – para receber o prêmio de conjunto de obra da Fundação Cultural Distrito Federal. Acompanhava-o sua companheira de muitos anos felizes, irmã do romancista Otávio de Faria, e tive o prazer de ciceroneá-los. Paramos, uma tarde, na praça que tem no centro um buriti, lembrando a conhecida crônica de Afonso Arinos que é uma verdadeira profecia do surgimento, no Planalto Central do Brasil, de uma civilização que confirmaria o sonho de São João Bosco. Jamais esquecerei a emoção de Alceu diante do buriti de Afonso Arinos: era uma emoção “ardente como um soluço sem lágrimas”, como Manuel Bandeira desejava que fosse o seu Último poema. Hoje, como é sabido, Brasília traiu o sonho do santo italiano e a profecia do escritor mineiro, tornando-se um triste reduto de nepotismo e corrupção.

REPRODUÇÃO

eqUilíBRio intelectUal

a tradição homérica consagrou

Odisseu – também chamado de Ulisses – como um dos mais importantes heróis gregos, tanto por sua coragem quanto pela sagacidade na hora de resolver situações difíceis. Mas, como se sabe, as narrativas e mitos gregos sofriam mudanças e adaptações nas mãos de cada geração de poetas e tragediógrafos. Em uma de suas últimas peças, por exemplo, o dramaturgo Sófocles narra a saga de um exímio arqueiro, Filoctetes (na pintura acima, de Nicolai Abildgaard), e surpreendentemente apresenta Ulisses como uma espécie de anti-herói, ou pelo menos como um estrategista pouco honrado, que coloca as razões políticas antes da moral pessoal e dos valores heroicos. A tragédia de Filoctetes tem início na viagem dos gregos a Tróia. No meio do trajeto, eles aportam na ilha de Crisa a fim de prestar homenagem à deusa do lugar e o arqueiro acaba picado por uma serpente. Levado de volta ao barco por seus companheiros, o herói

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acaba sendo largado numa outra ilha, por decisão de Ulisses, que acreditava que o cheiro pútrido exalado pela ferida e os gritos de dor de Filoctetes atrapalhariam a viagem e o sucesso deles na batalha. Dez anos depois, Ulisses escuta do vidente Heleno que só conquistaria Tróia com a ajuda daquele que havia abandonado: do portador do arco e das flechas de Héracles. Maliciosamente, Ulisses repassa a tarefa de resgatar o arqueiro ao filho de Aquiles, Neoptólemo, que não havia participado ainda da guerra e tinha ânsia de provar seu valor. A complexidade e ambiguidades nos diálogos em que o filho de Aquiles, envergonhado por saber estar participando de uma trama desonrosa, tenta convencer Filoctetes a se juntar novamente ao exército grego, é a força maior nesse drama em que não há nenhum embate físico, seja assassinato ou guerra, mas somente conflitos de ordem psicológica e debates de natureza moral. eduardo cesar maia


imagEns: REPRODUÇÃO

Resenha

MARCELLO QuINtANILHA REALISMO EM QuAdRINHOS

Memória

LIVRO CATALOGA VIDA E OBRA DE VIRGOLINO alguns artistas são de tal modo luminosos, que se tornam onipresentes, ainda que num dado fragmento temporal. isto ocorreu a Wellington virgolino (1929-1988), cujas pinturas eram como que obrigatórias em locais de circulação daqueles que se diziam apreciadores da arte produzida em Pernambuco, entre os anos 1960 e 1980. nas duas últimas décadas, entretanto, a obra desse artista tem-se mantido submersa. O lançamento de Virgolino – O cangaceiro das flores pode trazer um novo interesse sobre o seu legado. O livro cataloga com detalhes a produção do artista, trabalho realizado com esmero pelo irmão Wilton de souza.

Leitura

Poesia

CIDA VERSA MULHERES EM AS FILHAS DE LILITH três mulheres coassinam este trabalho, que principiou na poesia de cida Pedrosa. Encantada pela pintura de tereza costa Rego, ela convidou a artista para ilustrar o seu livro, que contou com o bem-elaborado projeto gráfico de Jaíne cintra. cada uma contribui para o resultado: um produto bonito, enfeitado como fêmeas em flor. E é de fêmeas que a poeta fala, tal qual uma narcisa, ora terna, ora tensa, de voz enfática e prosaica. a poesia de cida é como uma conversa que de tão franca chega a ser agressiva, e talvez este seja o seu maior mérito.

o álbum Sábado dos meus amores, de Marcello Quintanilha, é um achado. Pela originalidade? Não, pela simplicidade. Nesta história em quadrinhos, lançada pela Conrad, pode-se conferir seis narrativas sem grandes pretensões. Sem superheróis, mulheres fatais, sagas históricas ou grandes aspirações. Apenas casos comuns, episódios passíveis a qualquer cidadão mediano que cruza a esquina da rua ao lado, que joga na loteria esperançoso de uma virada da sorte, que torce, com loucura, pelo time do coração, que alimenta superstições, que mente para parecer melhor do que é, na verdade. Histórias, digamos, banais, talvez por isso tão reais, talvez por isso comoventes. No conto De como Djalma Branco perdeu o amigo em dia do jogo há uma pequena amostra de como a paixão por um time desenvolve tiques e rituais, e é capaz de transformar um sujeito comum num poço de crendices e manias. Atire a

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primeira pedra o torcedor que nunca assim procedeu! Em A escola primária, um amor singelo entre um pescador e uma analfabeta, que é evangélica, comove. Já em Atualidade, um operário que não tivera tempo de arriscar os palpites no “bolão”, por estar envolvido demais no trabalho, descobre, depois, que todos os companheiros ficaram milionários. Apontado pelo letrista Aldir Blanc como o “Rosselini brasileiro” – uma referência ao cineasta italiano, um dos papas do Realismo –, Quintanilha nos conta essas pequenas histórias fazendo uso de grafite ou aquarela, alternando tons claros e escuros, que dão aos quadrinhos um acabamento original, peculiar. Desde 2002, o artista mora em Barcelona, onde desenha as séries Sept balles pour Oxford, da editora belga Editions du Lombard. Talvez por se encontrar tanto tempo fora, a brasilidade do autor esteja tão presente, e suas histórias transmitam tanta emoção. daNielle romaNi


INDICAÇÕES CONTOS

JEAN-CLAudE CARRIÈRE Contos filosóficos do mundo inteiro

INFANTIL

JuLIO CORtÁZAR discurso do urso

ediouro

Galerinha record

O primeiro texto do escritor argentino Julio cortázar, dedicado ao público infantil, Discurso do urso, ganha uma edição cuidadosa, em homenagem aos 25 anos da morte do autor. Escrito em 1952, o pequeno conto, dedicado aos filhos do pintor e poeta Eduardo Jonquières, traz a história de um ursinho que vive nas tubulações dos prédios bisbilhotando a vida dos humanos. apesar da pretensa ingenuidade, o conto, que fez parte da obra Histórias de cronópios e famas, presta-se a várias leituras. as ilustrações do espanhol Emilio Urberuaga iluminam ainda mais o texto.

as diferentes histórias passam de boca em boca, giram em torno e se desenrolam no seio de um mesmo povo. Outras, de maneira sutil, atravessam o tempo e o espaço, e se perpetuam resistindo aos conflitos, às lutas pelo poder etc. Roteirista de O tambor, A insustentável leveza do ser e dos filmes mais importantes do diretor espanhol luis Buñuel, o historiador francês Jean-claude carriére compilou durante 10 anos, este painel da tradição oral dos relatos das lendas, tradições e histórias carregadas sempre de bom humor e aqui divididas em capítulos temáticos que tratam, entre outros, do poder, as desavenças entre ricos e pobres, Deus e a morte.

ENSAIO

POESIA

Global

Um dos méritos das seleções e coletâneas é apresentar autores a um público heterogêneo e nãoiniciado. Figura nesta categoria o livro Sousândrade, com seleção de poemas do professor adriano Espínola, que fez apreciação crítica introdutória às obras nele publicadas. Do romântico (18331902), revalorizado pela crítica a partir de estudos dos irmãos campos, o título reúne poemas de O Guesa, Liras perdidas, Harpas Selvagens, Eólias, Harpa de Ouro e Novo Éden. O poeta maranhense, por sua lírica épica e ousada, é apontado como um transgressor do romantismo.

fLOREStAN fERNANdES AdRIANO ESPÍNOLA Mudanças sociais Sousândrade Global no Brasil Publicação reúne 12 ensaios escritos entre 1946-1959, em que o autor aborda questões sociológicas, culturais, econômicas e históricas, tanto no âmbito nacional (na primeira parte do livro) como num aspecto mais focado no estado de são Paulo (segunda parte). Em alguns momentos, o sociólogo abandona o tom impessoal da pesquisa e adota o opinativo do pensador engajado. no conjunto, há duas resenhas publicadas por Florestan na imprensa. como destaca o prefaciador, os textos reunidos contribuem ao conhecimento crítico do Brasil.

Documento

LEIDSON FERRAZ LANÇA ÚLTIMO VOLUME DE ANTOLOGIA TEATRAL a arte do coletivo em Pernambuco acaba de ganhar o quarto volume da coleção Memórias da cena pernambucana, que abrange 10 grupos teatrais. Desses, oito ainda estão em atividade – alguns intensamente, como a hilária trupe do Barulho. O fato dá um tom contemporâneo à pesquisa iniciada em 1998, época em que a Federação de teatro de Pernambuco (Feteape) chamou o jornalista e pesquisador para assessorar

encontros de produtores teatrais. as conversas foram gravadas em fitas K7, cujo conteúdo foi reproduzido nos volumes anteriores. Dessa vez, o pesquisador resolveu fazer diferente: refez as entrevistas. “Eu não poderia pegar um depoimento de 10 anos atrás, sobre um grupo que ainda está em atividade e publicar”, justifica. O livro, que sai com incentivo do Funcultura, traz fotos inéditas e ainda abrange

grupos que nunca tinham sido documentados, como o olindense mamulengo sóRiso (foto). Recentemente, leidson voltou do Rio de Janeiro, onde, a convite da Funarte, promoveu o lançamento da tetralogia. agora, o pesquisador se articula para lançar o quarto volume nos municípios do interior pernambucano, como fez com os anteriores. Diz que pretende dar continuidade à pesquisa, talvez para um projeto de mestrado.

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OS 80 ANOS DE TEREZA COSTA RÊGO (1)

UM ENCONTRO NO ALÉM

MATÉRIA CORRIDA José cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

não preciso ter cuidado para falar de Tereza Costa Rêgo porque o que me move é uma grande admiração a ponto de causar certo distanciamento até proposto por ela com a monumentalidade de sua pintura: zumbidos de mosquito, grãozinhos de incenso barato no caco das brasas das comemorações dos 80 verões, anotações esparsas nos intervalos das minhas próprias pinturas. Li no Jornal do Commercio, Recife, 26/abril/2009, a importante matéria sobre Tereza “O tempo é aliado”, “Pintura de carne e osso”, “Terezinha, Joana e Tereza” e a entrevista “A voz da arte que sangra”: apesar da extensão e excelência de tudo, pela primeira vez não morri de inveja, “como se fosse uma ofensa pessoal” citando um escritor que disse que isso acontecia com ele quando via a glorificação do outro, ainda mais, no caso presente, tratando-se de artista da mesma geração, embora não da

mesma extração, e da mesma cidade, motivo mais que de sobra para uma atitude. A história de Tereza me lembra a de São Norberto. O sonho dele era o contrário das aspirações do comum dos mortais, justamente por não ser um comum dos mortais. Membro das famílias reinantes da Lorena e da Alemanha, nascido em Xantem, Renânia, 1082, seu sonho, inalcançável, era ser pobre. No Natal de 1115 desfez-se de todos os bens e vestido como um pobre saiu pelo mundo aceitando os trabalhos mais rudes. Mesmo de pé no chão, limpando estábulos, terminavam descobrindo que pertencia à nobreza. Mas de tanto insistir durante anos e anos, esqueceram dele. Começando então a colher os frutos daquela vida a que se destinara, humilhado, anônimo, escorraçado, faminto; o papa Gelásio II, procurando alguém

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confiável — que naquela época a dignidade andava em baixa — para reerguer a Igreja naquelas bandas, lembraram-lhe Norberto. Acharamno. Ele fez tudo para se livrar da indicação para bispo de Magdeburgo (Alemanha), mas, religioso, sujeito aos votos de pobreza e obediência, pobre de fato iria se tornar voltando, por obediência, a ser rico. Não dá satisfação de seus atos a ninguém e principalmente à hipócrita burguesia, a essa moral burguesa a que estava imolada sem nenhum lucro, pior do que as prostitutas que ela conhecia através das conversas dos irmãos e que pelo menos tinham conquistado a liberdade total, a quem tudo era permitido, ou melhor, permitiam-se a si próprias sem precisar de avaliação de seu ninguém: qual seria a opção mais radical para demarcar bem essa separação e repúdio àqueles valores tradicionais


A NOIVA, ACRÍLICO S/MADEIRA, 1.60X2.20M, 1988 –REPRODUÇÃO: FLORA PIMENTEL

que a oprimiam, tolhendo-lhe a autonomia, amordaçando-a, tirandolhe a possibilidade de expandir-se, de se comunicar, de desabrochar? Qual seria essa ida sem possibilidade de volta? Qual o maior inimigo dessa tralha toda, Deus, pátria, família, religião? O comunismo apátrida e ateu. Então vamos lá: ser quenga dum comunista. Mas tinha que ser dum comunista confiável, notório, para que não restasse dúvida, para que do litoral ao sertão fosse ouvido o seu grito de independência ou morte, as duas coisas ao mesmo tempo, porque para a “alta sociedade”, como diz a reportagem, onde vivia, era morte com desonra (1965). Hoje ninguém sabe mais o que é isso, com o comunismozinho manso que nem proibido é. Essa “moral burguesa” foi sarjada em todos os sentidos, restando escombros para tentar garantir, sem saber como,

A história de tereza me lembra a de São norberto. o sonho dele era o contrário das aspirações do comum dos mortais

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os restos de propriedade privada ameaçada. Até a zona acabou. Um tipo de morte de fato existiu porque teve com o amante de mergulhar na clandestinidade. Fugida do Brasil, foi obrigada a fugir de novo do Chile escapando por milagre de ser presa carregando numa bolsa todo o dinheiro do Partido: será que era essa a mesma bolsa bojuda de couro com que a encontrei num voo na Europa, Espanha se não me engano, pegada com as duas mãos, vindo no corredor do avião? Fez que não me conheceu ou de fato não me teria reconhecido já que nos tínhamos visto somente uma vez, ela ainda casada, em sua casa, onde fui levado por Wilton de Souza, e ficamos conversando sobre pintura somente nós três, ela, Wilton e eu. Esse encontro agora era como se ela tivesse saído do nada, como se no além. É provável que nem tenha acontecido. (continua).


paulo melo jr./Divulgação

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c co on nt tiin neen nt tee jju ullh ho o 220 00 099 || 990 1


O lugar dissonante toRRe MAlAkoff T. (81) 3184 3182 até 26 Jul ter-Sex 10h às 19h Sab-Dom 15h às 20h Entrada Franca

interatividade Quando o público é parte da obra

Com a proposta de unir arte e tecnologia, a exposição O lugar dissonante convida os visitantes a interagir com as obras, ajudando a completar seus sentidos texto Olívia Mindêlo

– não estou entendendo nada. O que é isso? – O trabalho é o seguinte: você vai fazer aqui uma composição sonora através desses celulares. – Como? – Eles vão tocar quando lermos esse código com esse outro celular aqui, entendeu? A tentativa do monitor de situar uma das visitantes no terreno expositivo de O lugar dissonante, em cartaz na Torre Malakoff, no Recife Antigo, parece não conseguir evitar uma desconfortável franzida na testa. A advogada Creuza de Almeida, 24, não esconde: está perdida diante de tantos sons e imagens que compõem a mais recente mostra do 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco, cujo enfoque é a relação entre arte e tecnologia. Ela não é a única a demonstrar reação semelhante. No geral, o público tem deixado escapar no semblante um misto de curiosidade e aflição ao adentrar no espaço dos cinco trabalhos que integram a exposição coletiva, reunidos sob a curadoria do paulista Lucas Bambozzi e da pernambucana Clarissa Diniz. Em grande parte, as obras propõem uma interação direta com os visitantes, convidados a completar o sentido dos trabalhos; a compartilhar a própria autoria com 01

PARticiPAÇÃo

em Teia, o espectador aciona o dispositivo sonoro através do calor de sua mão

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os artistas. Estratégia, aliás, até bem recorrente na arte contemporânea – embora isso não evite o estranhamento. E é mais frequente ainda na produção de artes visuais feita com tecnologias recentes, que “na vida real” já se pautam por essa interface, mas na criação artística ultrapassam sua função usual. É o caso do trabalho citado, Suite 4 mobile tags, uma parceira da artista plástica Giselle Beiguelman com o músico Maurício Fleury (SP). A partir da experimentação tecnológica com celulares, eles usam oito aparelhos e seus oito respectivos QR-codes – códigos bidimensionais semelhantes aos códigos de barra e parecidos com gravuras – para incitar os visitantes a construírem sua própria composição sonora. Uma maneira de dizer que há múltiplas formas de se fazer música, até mesmo com a confusão de toques de telefone, quando acionados ao mesmo tempo. É o que acontece nessa proposta. A partir de um celular com câmera (há um apropriado para isso na mostra), o público é levado a fazer a leitura digital dos QR-codes na parede, que, representando os números telefônicos, vão fazer o celular discar para os aparelhos, disparando seus toques. “É como se o código fosse usado como um instrumento”, explica Fleury.


paulo melo jr./Divulgação

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eScUtA inDiScRetA

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YOur life, Our mOvie

em Ouvidoria, as conversas transmitidas vêm dos orelhões instalados no térreo do prédio acionando celulares, visitantes interagem com a obra Suite 4 mobile tags ricardo Carioba criou um cubo gráfico, cuja imagem se movimenta segundo “imperfeições sonoras” a obra de Fernando velázquez utiliza a internet e o Flickr como pontos de partida para criação

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“É meio estranho, né?”, comenta a advogada Creuza, enquanto o som dos celulares se confunde ao ruído agudo de Teia, obra de Paulo Nenflídio (SP) que divide espaço com a da dupla paulista. O trabalho do artista também depende do público para fazer acionar seu dispositivo sonoro, acoplado a um emaranhado de fios. No caso, é o calor da mão que faz o barulho vir à tona, quando alguém se aproxima da instalação. O estranhamento de Creuza, que até então nunca havia pisado numa exposição de arte contemporânea, não tira, porém, sua atenção e curiosidade. “É interessante. Acho que tudo isso aqui é arte. Arte é tudo aquilo que o ser humano pode transformar em outra coisa. É a arte da tecnologia, não do futuro, mas a de agora, que pode afetar a gente. E afeta muito”, arrisca. A estudante de direito Ladjane Santos, 25, a amiga que a levou para a Torre Malakoff, discorda: “Não acho que seja arte isso, é pura tecnologia. Na verdade, foi muita ousadia dos artistas fazerem esta exposição, porque estão


fazendo a gente notar a confusão tecnológica, o turbilhão de tecnologia que a gente está acostumada a ver, mas não para pra ouvir”. Mirella Lima, outra estudante (de publicidade), 25, parece refletir algo semelhante a partir da exposição, embora, ao contrário de Ladjane, acredite ser arte o que está ao seu redor: “Há um vício da sociedade na tecnologia e na comunicação, a gente não vive sem”.

por dentro do salão Promovido pelo Governo do Estado, através da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), o 47º Salão de Artes Plásticas teve início no fim de 2008, com a exposição Narrativas em madeira e muro: presença da xilogravura popular nas obras de Gilvan Samico e Derlon, no Museu do Estado de Pernambuco. Além de O lugar dissonante, estão previstas mais duas exposições com artistas convidados, além da grande mostra de encerramento, em novembro, apresentando o resultado de pesquisa visual dos 20 bolsistas selecionados. Os locais ainda serão definidos.

SenSAÇÃo De AlUcinAÇÃo

Do outro lado do espaço expositivo de O lugar dissonante, dividido por uma passarela no primeiro andar da Torre Malakoff, o artista plástico e arte-educador gaúcho Ted Henrique circula pelas outras salas da exposição um tanto atordoado. Prefere não separar arte de tecnologia, ou discutir algo desse tipo. Está mais atento ao resultado sensitivo desse casamento e, com uma câmera na mão em modo noturno, tenta captar a reação do público na escuridão, como se procurasse se ver também. Ted está em Ouvidoria, obra de Lourival Cuquinha e da dupla Hrönir (Thelmo Cristovam e Túlio Falcão/ PE). Sons por toda parte preenchem o espaço, distorcidos, ecoados. Nenhuma luz na frente, nenhum palmo de certeza. Aqui, a audição é a guia, não os olhos. As vozes parecem surgir de todos os lados, mas vêm dos orelhões instalados no térreo do prédio, de onde o público pode fazer suas ligações. São essas conversas que vão parar em tempo real na sala negra. “A sensação é de alucinação. Tomei uma cerveja long neck, mas saí como se tivesse bebido três caixas. É a sensação de outro lugar, mexe com a audição e o sentido mental”, opina o visitante sobre a obra que mais o impressiona na exposição. Recepção contrária tem outra artista que circula pela mostra, para quem nada ali suscita sentimento. “Acho interessante a relação entre arte e tecnologia, mas o que adianta pensar só na técnica, se falta a relação fundamental que é a da emoção e da poesia?”, questiona Maria Fachini, 41. “Me fica um vazio”, conclui. Além das obras Suite 4 mobile tags, Teia e Ouvidoria, a coletiva do salão reúne ainda mais duas propostas:

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Your life, our movie, do artista e designer Fernando Velázquez (de Motevidéu, Uruguai, radicado em São Paulo), e Abra, do músico e artista plástico Ricardo Carioba (SP). Enquanto a ideia do uruguaio compartilha elementos comuns com os demais trabalhos da mostra – de autoria coletiva e interação técnica (mais direta) com o público – a obra de Carioba se coloca de forma mais individual e “isolada”, digamos, embora isso não tenha impedido de muitos visitantes interagirem com seu trabalho. Diante da projeção do cubo gráfico, que se contrai e se dilata na parede segundo “imperfeições sonoras”, muita gente chegou a ficar parada um bom tempo e até a tirar fotografias. “A ideia é abrir o campo tridimensional, brincar com essa história de 2D e 3D”, comenta Carioba, que construiu sua obra a partir da fusão da imagem e do som, traduzidos em linhas e ruídos. “Tudo isso é para criar um campo de tensão sensorial”, justifica. Aqui, como em outras criações da mostra, é o som quem dita o espaço, promovendo um alargamento das

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fronteiras auditivas e visuais. É aí onde está situada uma das linhas da proposta curatorial de Bambozzi e Clarissa, ao nortear o olhar do visitante em torno da arte e tecnologia – e das questões que reverberam a partir dessa junção. No caso da proposta de net art de Velázquez, para quem a questão da autoria coletiva lhe é cara, a imagem é o código primeiro. A “moeda de troca” é a palavra, fornecida pelos visitantes. O intermediador é o Flickr, site de relacionamentos da internet, onde são compartilhadas imagens, sobretudo fotos. No processo interativo, o público digita uma palavra em um dos três terminais instalados e imagens aleatórias referentes, pinçadas do Flickr, surgem. O resultado é um painel em vídeo, dividido em três partes que se alternam segundo a sequência de imagens disparadas. Pena que a mostra esteja sendo “vítima” da própria tecnologia – ou a falta dela. A conexão lenta da internet no local impede uma participação mais direta por parte do público neste trabalho. É quando escapa outro componente dessa interface: o ruído na comunicação.


Palco na lona Um circo que se arma de responsabilidade social Grupos que utilizam as artes do picadeiro como instrumento de inclusão deixam sua marca na passagem do Cirque du Soleil pelo Brasil texto Rodrigo Dourado foto Flora Pimentel

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enquanto milhares de espectadores brasileiros estão desembolsando quantias consideráveis para assistir ao espetáculo Quidam, da bemsucedida companhia canadense Cirque du Soleil, em circulação pelas principais capitais do país ao longo deste ano, jovens da periferia dessas cidades usarão o grafite para traduzir em imagens o sonho, tema do espetáculo, num enorme painel de dois metros por seis. Mas qual a ligação entre esses dois mundos aparentemente distantes? Os


painéis que materializarão os anseios de mudança desses jovens serão expostos na lona do Soleil, erguida em cada capital visitada e, ao final da temporada, leiloados. Os recursos mobilizados serão distribuídos entre instituições do chamado Circo Social, que utiliza as artes do picadeiro como instrumento de inclusão, ressocialização e resgate da cidadania. No Brasil, essas instituições integram a Rede Circo do Mundo, que congrega 28 projetos sociais em nove estados, além do Distrito Federal. A maioria dessas organizações desenvolvia um trabalho autônomo, com apoio indireto do Soleil, até que em 2000 decidiram se unir numa articulação nacional. Em cada cidade onde existem instituições ligadas à Rede, os projetos receberão, em seu conjunto, 400 ingressos para assistir à pré-estreia do espetáculo Quidam, quando será lançado o painel de grafite e a imprensa poderá conhecer melhor a pedagogia do Circo Social.

contra a pobreza

Garantir visibilidade a essas instituições, que dependem do apoio da sociedade civil para manter suas atividades, é uma das ações do Soleil, que, desde que ganhou notoriedade como a mais importante companhia de circo do mundo, vem tentando envolver-se com comunidades e jovens em situação de risco, lutando contra a pobreza e engajando-se em questões globais. Tendo seu proprietário, Guy Laliberté, na lista de homens mais ricos do mundo da revista Forbes e com um orçamento anual de bilhões, a companhia destina atualmente 1% de sua receita para projetos sociais de 80 comunidades, atuando em cerca de 20 países, em especial na América Latina e na África. Quando esteve no Brasil, em 2006 e 2008, com os espetáculos Saltimbanco e Alegria, caravanas de jovens ligados à Rede Circo do Mundo acorreram a São Paulo e Rio de Janeiro, alimentando o sonho de conhecer os artistas que são referência naquilo em que eles são ainda aprendizes. Alguns grupos, como a Escola Pernambucana de Circo, no entanto, não conseguiram levantar recursos para realizar a viagem e ficaram de

fora da temporada 2008. A chegada do Soleil às grandes capitais fora do eixo Rio-São Paulo garantirá que esses jovens possam conhecer de perto a excelência artística da companhia, como aconteceu no último mês de maio em Fortaleza, quando integrantes das escolas de circo Zoin e Pé de Moleque, ambas do Piauí, conseguiram apoio em suas cidades e pegaram a estrada rumo a Quidam. “Quando ouvimos falar que eles vinham para o Recife, logo pensei em ir, mas depois fiquei sabendo que ia ser difícil, quase impossível, porque é muito, muito caro. Quando soube que a Escola ganharia os convites, não consegui acreditar. Não vejo a hora de entrar na lona e ver o cenário, ouvir a música e ver os artistas, só aí vou ter certeza de que o sonho é uma realidade”, garante Henrique Palmeira, 11 anos, integrante da Escola Pernambucana. O trabalho do Soleil não serve apenas de fonte de inspiração artística, tampouco tem um caráter meramente assistencialista. Através de seu braço social, o Cirque du Monde, a companhia canadense promove oficinas de formação de educadores, visando multiplicar junto aos jovens os princípios do equilíbrio, da superação, do desafio, da disciplina,

Fundada em 1996, a escola já realizou mais de cinco espetáculos, todos dialogando diretamente com a cultura popular do autocontrole, do espírito de equipe, todos basilares para a arte circense e para o exercício da cidadania. Esses são os fundamentos da metodologia utilizada pelas organizações que investem no cruzamento das artes circenses com a intervenção social. “O circo social, para nós, tem a sociedade como centro, as questões da desigualdade, do preconceito, do direito. Nossas práticas devem efetivamente contribuir para mudar esta realidade”, afirma Fátima Pontes, coordenadora da

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Escola Pernambucana de Circo. Ela, no entanto, adverte: “Não construímos a relação com o Soleil com a intenção de reproduzi-lo, nossa preocupação central é a manutenção da diversidade, das múltiplas identidades culturais”.

vila do buriti

Ao que tudo indica, o trabalho vem rendendo excelentes frutos. Fundada em 1996, a Escola já realizou mais de cinco espetáculos, todos dialogando diretamente com a cultura popular pernambucana, com o manguebeat, com artistas tradicionais do picadeiro. Além das atividades circenses, a organização investe na música, na dança, no teatro, possui bloco carnavalesco, quadrilha junina e realiza mensalmente intervenções na praça da Vila do Buriti – comunidade onde está localizada –, na Macaxeira, Zona Norte do Recife. Ano passado, inaugurou sua nova sede, o Centro Circo da Juventude, e, desde então, vem promovendo rodas de diálogo sobre vários temas de interesse da juventude, sessões de cinema e oficinas diversas para a comunidade. E foi em sua sede nova que estreou, este ano, o espetáculo Ilusão, um ensaio melodramático circense. A trama conta a história de uma garota que, como tantas outras, se apaixona pelo circo e segue viagem com ele. O trabalho é uma metáfora do poder que o picadeiro tem de mudar a vida das pessoas e das comunidades. Como foi dito por Fátima Fontes, o que organizações – como as que integram a Rede Circo do Mundo – almejam não é que seu trabalho seja uma reprodução da estética do Cirque du Soleil. Mas que possa dialogar com o contexto e a realidade em que vivem, transformando-os e sobrevivendo ao sopro renovador que a passagem da companhia por suas cidades venha a trazer. Pois, ao contrário da protagonista de Ilusão, essas organizações não desarmarão suas lonas e seguirão para outras praças, mas permanecerão com suas tendas montadas, acreditando em que o circo pode intervir na realidade, num sonho que precisa ser sonhado junto com todos os setores da sociedade civil.


Geneton Moraes Neto

Chega de realismo. peço para mentir um pouCo o cansaço deixou marcas inconfundíveis no rosto de

Gabriel García Márquez: os olhos estão vermelhos, os cabelos desgrenhados clamam por um pente, a camisa branca exibe marcas de suor nas axilas. São 11 e 45 da noite. Se pudesse escolher, ele estaria dormindo o sexto sono. Mas o Prêmio Nobel é homem de palavra. Cumpre a promessa feita horas antes: depois de passar a tarde falando a estudantes de cinema sobre os segredos da criação literária, ele chega sozinho à recepção deste hotel de terceira categoria em Havana. Desaba o peso do corpo sobre uma poltrona vagabunda. Acende um charuto. Aceita com um meneio de cabeça a oferta do garçom: um copo de água. García Márquez acha que qualquer tempo concedido a repórteres é puro desperdício. Mas aceitara dar uma entrevista desde que o assunto não fosse literatura. O único tema permitido em nossa conversa seria o mais improvável e aparentemente mais desimportante de todos os assuntos por ventura merecedores de menção num diálogo com um prêmio Nobel de Literatura: o fascínio que as matinês de cinema exercem sobre ele. Pode parecer absurdo e banal, mas o que é a vida, se não um grande catálogo de banalidades absurdas? O homem determinara com antecedência o número de perguntas: somente três. Nada além. Número cabalístico? Jamais se saberá. Não pude perguntar. Não era este o assunto da entrevista. Por que o senhor considera as matinês tão fascinantes? “Os que assistem à sessão das três procuram, inconscientemente, passar despercebidos. É o sentimento de culpa da matinê”. O que é que diferencia o frequentador de matinês dos das outras sessões? “Um cinema à hora da matinê se parece a um museu. Ambos têm um ar gelado, uma quietude funerária. É a hora preferida dos verdadeiros cinéfilos. O verdadeiro cinéfilo vai ao cinema sempre sozinho. Não mastiga chiclete nem come qualquer tipo de guloseima. Permanece nas nuvens, com ar de concentrada estupidez até começar a projeção” Pelo que o senhor conseguiu observar no escuro, como é que este cinéfilo se comporta depois de iniciado o filme? “Cinco minutos depois de começada a projeção, pode estourar uma bomba no cinema que o verdadeiro cinéfilo não se dará conta” Meia noite e meia. García Márquez disfarça o bocejo, mas emite um suspiro de cansaço e impaciência, como a dizer que chega, já tinha dito o que queria sobre as matinês, um assunto mais importante do que todas as inúteis teorias literárias.

con ti nen te#44

continente julho 2009 | 96

Saída

DIVULGAÇÃO

� Tanto os encontros com Gabriel García Márquez quanto as perguntas da entrevista são imaginários: um exercício de realismo mágico amador. Mas as divagações do escritor sobre as matinês são verdadeiras: foram extraídas do texto “Por que você vai à matinê?”, publicado no livro Textos Andinos (Editora Record)

Geneton Moraes neto é jornalista




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