MADRI Arnaldo Cohen a g os to 2 0 0 9
aTIPOGRAFIA os leitores TEATRO INFANTIL Cristina Antunes ESTAVA ESCURO E ESTRANHAMENTE CALMO
ANISTIA The story of Anvil
CULINÁRIA POPULAR GAMES
THE OFFICE Tereza Costa Rêgo
BURLE MARX Renato Valle
MADAME SURTÔ
A estrela sobe ADRIANA MELO Há elementos tão presentes no nosso cotidiano que nem nos damos conta deles. Ou melhor, deles nos apercebemos, mas não pensamos neles. Esse é o caso das letras com que lemos os textos. Enquanto focados na leitura, não nos preocupa que tipo de fonte tipográfica está sendo usada, se ela nos agrada ou facilita a fruição do texto. A tipografia ou a arte de formalizar e estruturar a comunicação visual é um dos assuntos que trazemos nesta edição, que abordamos sob diversos aspectos, como os novos tipógrafos; a manutenção de gráficas com tipos móveis junto à crescente demanda por criação digital; e o mercado para esse tipo de produção em consonância com o ensino formal acadêmico. Desde que adotou novo projeto gráfico, a própria Continente experimenta famílias diferentes de tipos. A revista foi a primeira publicação a usar a fonte Velino, criada pelo typedesigner português Dino dos Santos, autor também de outra fonte usada por nós, a Prelo, com a qual se lê este editorial. Nossos títulos são impressos com Archer, fonte criada pelos designers norte-americanos Jonathan Hoefler, Tobias Frère-Jones e Jesse Ragan. Outro assunto que nos parece oportuno, e que é pouco valorizado no contexto da criação artística,
são os videojogos. Esses jogos – comumente associados ao universo nerd, dos jovens que gastam horas imersos em realidade virtual – têm conquistado adeptos insuspeitos (os adultos que eram crianças quando eles surgiram?) e aumentado seu território, criando novas profissões e um competitivo setor na indústria do entretenimento. Os games aliam arte e tecnologia, indicando mudanças de comportamento social e de mercado que não podem ser ignoradas, ainda que muitas vezes resistamos a elas. Por fim, esperamos que o leitor tenha a mesma satisfação que tivemos aqui na redação ao contemplar as imagens feitas por Tiago Lubambo para a nossa matéria de capa, uma afetuosa homenagem aos 100 anos de nascimento de Burle Marx. O paisagista, que era filho de pernambucana, viveu e trabalhou no Recife, legando à cidade um conjunto de jardins e praças que foram pensados para o lazer e a reflexão. Compartilhamos com os arquitetos que se empenharam nesse assunto o desejo de que logo se efetive o tombamento como patrimônio cultural das praças construídas por Burle Marx no Recife, para que elas sejam o testemunho de que é possível (e necessário) que valorizemos o acervo natural e arquitetônico de que dispomos.
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sumário Portfólio
Madame Surtô 06
Online + e-mails
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Viagem
07
Expediente + colaboradores
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Matéria Corrida
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Entrevista
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Visuais
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Claquete
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Leitura
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Sonoras
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Saída
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34
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Um link para o internauta baixar o jogo Choice, premiado na Imagine Cup 2009
Adriana Melo Desenhista conta como entrou no universo das HQs e passou a trabalhar para editoras internacionais
Balaio
Documentário mostra Bernard Shaw defendendo o uso de gás letal contra os “parasitas sociais”
Em 1ª mão
Tereza Costa Rêgo Pintora apresenta, com exclusividade, painel de 12 metros que acaba de concluir
Conexão
Howcast Site ensina o passo a passo de tarefas básicas
Perfil
Cristina Antunes Bibliotecária fala da sua paixão pela leitura e do cuidado com o acervo de José Mindlin
Madri A capital espanhola segundo os filmes de Pedro Almodóvar
A grife pernambucana, criada há quatro anos pela estilista Thaís Asfora, destacase no cenário da moda nacional, com peças que exploram a feminilidade
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José Cláudio Homenagem à amiga pintora
Renato Valle Artista reúne no Mepe grandes desenhos sobre lona
The story of Anvil Documentário registra a história da banda que tenta o estrelato há 30 anos
Infantil Estava escuro e estranhamente calmo prima por texto e ilustrações
Arnaldo Cohen Pianista destaca suas preferências de repertório
Beatriz Castro Repórter em defesa do meio ambiente
Baú
Anistia Há 30 anos era aprovada a lei que desculpava os acusados de crimes políticos no Brasil
especial
Tipografia Com o auxílio de softwares, designers dedicam-se à criação de famílias de fontes, num mercado que começa a ser ampliado também no Brasil
22 Capa FotoGRAFiA Tiago Lubambo DesiGn Ricardo Melo
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Arte e tecnologia Games
Palco
Antes associados a crianças e jovens, os videojogos hoje atraem gente de todas as idades, alimentam a indústria cultural e contribuem para a educação
Com 70 anos de história, as encenações voltadas às crianças mantêm-se em cartaz o ano todo, mas carecem de investimentos
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Teatro infanto-juvenil
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capa
cardápio
No centenário do arquiteto-paisagista, um retrato de sua contribuição à criação de jardins e praças no Recife
Cozinheiras experientes, Dona Mira, Dona Geralda e Da Paz dão sabor especial a pratos da culinária popular
Burle Marx
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Ago’09
Regional
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online+e-mails A cultura dos games IMAGENS rEprodução
os jogos eletrônicos vêm conquistando um público mais amplo e
não são mais vistos exclusivamente como passatempo de crianças e jovens. Desde o precursor Atari até os atuais consoles, que respondem a comandos baseados na leitura dos movimentos corporais dos jogadores, muita coisa mudou. Em reportagem desta edição, mostramos como essa indústria tem se expandido e convergido com outros meios, como celulares, computadores pessoais e a internet. Nosso site traz um link para o internauta baixar o jogo Choice, premiado na Imagine Cup 2009. O objetivo do game de estratégia, criado pela equipe pernambucana Levv IT, é aplicar ao mundo as oito metas do milênio da ONU. Outro assunto de destaque no site são as seis praças do paisagista Burle Marx, no Recife, que serão tombadas como patrimônio cultural. Acesse e confira!
destaques
Vídeos, fotos, textos e muito mais conteúdo, além dos textos integrais das edições anteriores, você vai encontrar em
continenteonline.com.br continenteonline.com.br
Confira outros looks criados por Thaís Asfora para a coleção preview de verão da Madame Surtô e os endereços das lojas que comercializam a marca.
Assista ao trailer do documentário dirigido por Sasha Gervasi, The story of Anvil, que registra a história de um grupo canadense de senhores metaleiros.
Rabeca
Regional
Gostaria de comentar a matéria sobre o município de Ferreiros, publicada na edição 102. Aprecio demais o trabalho de Siba e essa história da rabeca é conhecida. Ele ficou hospedado por vários dias em Ferreiros; era levado todo dia para o Sítio Encruzilhada e, para surpresa de todos, não agradeceu a ninguém no seu primeiro disco. Em Natal-rN, fez a mesma coisa. o músico Cleudo Freire apresentou a ele a obra do coquista Chico Antonio. Ele usou a música Usina, e não citou Chico Antonio. parece que essas e outras histórias agora vão para o mundo. Infelizmente, o bom artista que é não se reflete na pessoa de Siba Veloso. Adorei a matéria, e uma sugestão: reportagem sobre Cravo Branco, também lá de Ferreiros, grande mestre do cavalo marinho.
penso que a Continente poderia apostar no nicho regional para demarcar melhor seu espaço. No final, a revista acaba sendo mais uma entre tantas que circulam no país. Com a demarcação regional, ou seja, abordando melhor assuntos ligados ao Nordeste, a revista se tornaria a grande referência em nossa região. Acredito que esse caminho é possivelmente fácil de trilhar. E, dessa forma, atrairia o olhar da mídia nacional, ávida por novas abordagens da nossa realidade cultural.
Danielle brito natal – rn
modA
Vídeo
Simone caValcante recife – Pe
Achado Todos vocês que fazem a revista Continente estão de parabéns. Ter conhecido essa revista maravilhosa foi um dos meus maiores achados literários. o meu estado querido, pernambuco, estava necessitando de uma lindíssima revista como
essa, que representa a essência e a alma da cultura pernambucana. Jair moura DoS SantoS recife – Pe
Distribuição Sugiro que vocês ampliem a distribuição da Continente, pois, é a melhor revista cultural do país. getúlio coSta SalVaDor – ba
Periodicidade Adoro receber a revista e descobrir que bom gosto não vos falta. Não inventem de deixar de ser mensal. Se passam a semanal, vão perder a característica analítica e deliciosa. Tornando-se apenas mais uma. leonarDo leão recife – Pe
ERRATA Na edição 103, o nome do compositor José Alberto Kaplan foi grafado de forma errada na página 80. Na coluna Matéria Corrida (página 88), onde lê-se “dá”, leia-se “dar”.
Você faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. a seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, santo amaro, Recife-PE, CEP 50100900). as mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. a Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone (81) 3183 2780 Fax (81) 3183 2783 email
redacao@revistacontinente.com.br
Site
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a reDação
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colaboradores
Ana Bizzotto
Ana Rita Sá carneiro
carol Almeida
Patrícia Amorim
Jornalista
doutora em arquitetura e atual
Jornalista e mestra em
Jornalista, mestra em design
coordenadora do Laboratório da
comunicação pela uFpE
e professora da Aeso
paisagem da uFpE
Rodrigo dourado
tárcio Fonseca
tiago Lubambo
Jornalista e mestre em
Jornalista
Fotógrafo e sócio da pick Imagem
comunicação pela uFpE
e mAiS Beatriz Castro • Breno Laprovitera • Carlos Eduardo Amaral • Eduardo Cesar Maia • Eliza Brito • Fernando Monteiro • Fred Jordão • Gabriel Laprovítera • Hélder Tavares • Marcos Bizzotto • Olívia Mindêlo
GoVeRno do eStAdo de PeRnAmBUco
SuPerintenDente De eDição
contatoS com a reDação
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Armando Lemos Alexandre Monteiro
Mário Hélio (presidente) Cristhiane Cordeiro
arte
rosana Galvão
José Luiz Mota Menezes
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Gilberto Silva
Luís reis
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Luzilá Gonçalves Ferreira
Zenival (ilustrações) Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e impressão)
Continente é uma publicação da Companhia Editora de pernambuco - CEpE reDação, aDminiStração e ParQue grÁfico rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro recife/pernambuco CEp: 50100-140 Fone: 3183.2700
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ADRIANA MELO
Com os super-heróis na ponta do lápis Quadrinista paulista é uma das poucas mulheres brasileiras a trabalhar com grandes editoras internacionais, para as quais desenvolve desenhos de personagens como os de Star Wars e Miss Marvel texto Carol Almeida
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Entrevista
na adolescência, Adriana Melo
não se identificava com o padrão. E, para se adaptar a essa intuitiva diferença, resolveu copiar. O decalque se transformou então na válvula de escape de alguém que muito cedo aprendeu a gostar daquilo de que as meninas corriam léguas: histórias em quadrinhos de super-heróis. Hoje, aos 33 anos, ela é uma das duas desenhistas brasileiras que conseguem exportar seu trabalho para a indústria dos comics norteamericanos. Adriana, que já assinou a arte de títulos de quadrinhos como Witchblade, Star Wars e, mais recentemente, a Miss Marvel, publicada no Brasil dentro da revista Os Novos Vingadores, tenta há mais de 10 anos adotar para seu trabalho aquilo que ouviu do roteirista americano David Campiti: se o roteirista de quadrinhos faz o roteiro da história, o desenhista dirige o filme. A primeira mulher brasileira a desenhar heróis para grandes editoras como Marvel e DC Comics conversa com a Continente sobre seu trabalho, sobre o fluxo intenso da indústria dos
quadrinhos americanos e sobre como sua arte é um “outro tipo de criação”. continente De que maneira começou sua relação com a história em quadrinhos e com a cultura pop? ADRiAnA MeLo Quando pequena, enquanto todo mundo brincava, eu desenhava. Lembro que minha felicidade era quando me davam quilos de papel, daqueles de impressora matricial. Engraçado que na minha cabeça havia uma ideia fixa de fazer quadrinhos. Eu pensava: “Quero trabalhar com a Mônica, quero trabalhar com a Mônica”. Claro que, em se tratando de quadrinhos, a maioria dos meninos crescia com uma revista de super-herói debaixo do braço. Eu achava tudo aquilo muito dramático. Mas aí, aos 14 anos, me matriculei numa escola técnica de desenho, e uma das coisas que a gente precisava fazer era comprar uma revista de superherói e copiar aqueles desenhos. continente Lembra qual foi a revista que você comprou? ADRiAnA MeLo Claro que sim. Foi A
Morte do Super-Homem. Na época, todo mundo falava dessa história. E foi ali que comecei a perceber que aquilo era legal; gostava daqueles desenhos. Passei a comprar revistas dos X-Men; amei aquilo. Começaram então as aulas de anatomia e peguei gosto pela coisa de estudar a imagem e trabalhar o corpo humano como ele é. E aí vi uma matéria publicada com Roger Cruz [desenhista brasileiro que fez a arte de títulos como Motoqueiro Fantasma e Hulk]. Ele dizia uma coisa que eu uso até hoje. Defendia que o caminho para desenhar quadrinhos de super-heróis tinha que ser copiando, treinando e observando. E foi isso que fiz desde então. Passei a comprar muitas revistinhas, a frequentar a Gibiteca Henfil e ler muita coisa. Foi mais de um ano treinando sozinha. Depois desse tempo, o Roger e o Marcelo Campos [desenhista e roteirista de quadrinhos, com trabalho no mercado americano e histórias originais publicadas no Brasil] ofereceram um curso na Escola Panamericana de Artes. Fui lá e era muito engraçado, porque havia 35 pessoas na sala, 34 caras e eu no meio.
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divulgação
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O Roger e o Marcelo começaram a olhar o trabalho de cada um e quando chegou a minha vez eles viram aqueles desenhos em caneta Bic. Roger perguntou se aquilo era uma cópia, eu disse que sim, e aí ele falou: “Mas você fez a cópia direto com a Bic?”, e respondi que sim. Acho que o Roger olhou pro Marcelo e falou: “E aí, você acha que dá?” E Marcelo falou: “Acho que sim”. Os dois fizeram uma proposta pra que eu pudesse acompanhar o trabalho deles lá na Art Comics: “Se você quiser vir aqui todo dia e olhar o trabalho do pessoal, pode vir”. Eu ia todo dia.
pensa em um dia sair um pouco desse padrão e criar um traço que fuja disso? ADRiAnA MeLo Vou ser bem sincera. Eu amo esse estilo de super-heróis. É com o que eu me identifico, é o que eu gosto de fazer. Não sou de criar. Pensar histórias e personagens não é comigo. Traço estilizado é complicado pra mim. E essa coisa de desenhar os personagens da minha infância é uma realização. Na verdade, meu projeto de médio-prazo é conseguir fazer artefinal de meus desenhos e fechar 100% do processo de arte sozinha. continente Como é seu trabalho na hora de produzir uma página? ADRiAnA MeLo Quando olho um roteiro, as primeiras coisas que
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continente Você trabalhava nessa época em algum outro lugar?
havia entrado em contato e quatro ou cinco pessoas da escola produziram desenhos. O editor escolheu o meu trabalho e o de um outro menino. Aos 19 anos, fiz um desenho publicado no Homem de Ferro. Depois disso, fiz uma minissérie do Quarteto Fantástico e trabalhei em três revistas de uma editora que faliu e não me pagou nada. Foi aí que eu deixei tudo de lado por um tempo. Pensei que estava na hora de ter um trabalho com carteira assinada. Quando completei 22 anos, minha filha nasceu e eu decidi não trabalhar com quadrinhos até que ela estivesse na escola. Ainda assim, durante esse tempo resolvi estudar meus pontos fracos no desenho. Não era boa com tecidos e cenários.
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Entrevista ADRiAnA MeLo Não, não trabalhava. E ia pra lá só ficar olhando mesmo. A partir daí foi o começo. O Hélcio de Carvalho [editor de quadrinhos que trabalha com títulos de super-heróis] fez uma proposta pra ser meu agente. Enquanto isso, ia tendo aulas. O Luke Ross [um dos artistas brasileiros que mais se projetou no mercado de quadrinhos americano] e o Roger foram os caras que mais me ajudaram. E aí, depois de seis meses, surgiu a oportunidade de desenhar duas ou três páginas do Homem de Ferro. A Marvel
continente Como era esse processo de pesquisa? ADRiAnA MeLo Eu pegava tudo que podia em revistas, até mesmo catálogo de lojas tipo Renner, C&A, para desenhar roupas. Não havia essa quantidade e facilidade de informação que a internet oferece. Hoje não se tem mais desculpa para desenho malfeito. Está tudo online, todas as aulas. continente Você trabalha para histórias em quadrinhos que exigem um padrão de desenho e são produzidas em larga escala. Não
“não havia essa quantidade e facilidade de informação que a internet oferece. Hoje não se tem mais desculpa para desenho malfeito. está tudo online, todas as aulas”
vejo são o local onde ele se passa e os diálogos. Sigo uma regra bem básica: cada página tem que chamar atenção do leitor. E em cada quadro dentro de uma página é importante ter pontos de vista diferentes. Cada quadrinho precisa ter uma câmera diferente. E em 99% dos casos, a primeira imagem que formo na minha cabeça quando leio o roteiro é a imagem que será publicada. É como o David Campiti falou uma vez: ao pegar o roteiro, o desenhista precisa ser como um diretor de cinema e
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imaginar como filmar aquelas cenas. Quadrinhos não são só imagens atrás de imagens; existe uma passagem de tempo importante entre os desenhos. Na verdade, a ideia principal dos quadrinhos de super-heróis é que o leitor entenda a história mesmo sem ler os balões. continente E isso não é criar? Você falou que não era de “criar”... ADRiAnA MeLo Ah, claro, há criação sim. Outro tipo de criação. continente Você tem admiração por algum roteirista em especial ou suas referências são sempre as dos desenhistas? ADRiAnA MeLo Eu gosto de ler quadrinhos e, portanto, gosto de
continente Você acredita que quadrinhos são um gênero da literatura? ADRiAnA MeLo Sim! E entendo que nos quadrinhos encontramos um microuniverso literário, se englobarmos o mangá no gênero quadrinhos. Temos histórias voltadas para garotas, crianças, quadrinhos só de ação, terror ou erotismo. Sem contar que temos também as graphic novels, que são verdadeiras obras de arte! Histórias extremamente bem construídas como Watchmen e Sandman, retratos do cotidiano, e aí entra tudo do Will Eisner, sem contar a tonelada de quadrinhos pop, de super-heróis que são ideais pra uma leitura ligeira, de diversão. Acho que quadrinhos são mais que um
mais alongados. Tudo isso, claro, dentro de um prazo. Porque prazo é algo extremamente importante para quem trabalha com quadrinhos de heróis.
continente Do cenário que existia quando você começou a trabalhar com quadrinhos, há uma diferença na participação feminina hoje na indústria das histórias de super-heróis? ADRiAnA MeLo Isso tem mudado bastante, principalmente porque as meninas passam a se interessar agora cada vez mais pelo universo do RPG. Mas confesso que, além de mim e da Julia Bax [segunda desenhista brasileira a assumir títulos internacionais], ainda não conheci nenhuma menina aqui no Brasil que estivesse com um trabalho pronto para o mercado de fora do país.
“Quadrinhos não são só imagens atrás de imagens; existe uma passagem de tempo importante entre os desenhos. A ideia principal é que o leitor entenda a história mesmo sem ler os balões”
alguns roteiristas. Pra mim, um roteirista genial é o Frank Miller [conhecido por ter dado uma nova dimensão aos super-heróis com Batman – Cavaleiro das Trevas e por ter criado a saga Sin City]. Dos roteiristas com quem já trabalhei, acho genial o Ron Marz [roteirista americano conhecido por seu trabalho com o Surfista Prateado e o Lanterna Verde], que conseguiu dar um enfoque mais emocional em Witchblade. Mas, claro, minhas maiores referências são geralmente as pessoas que desenham.
gênero de literatura, estão mais pra uma segunda forma de literatura. continente Seu processo de desenho é todo realizado no papel? ADRiAnA MeLo 100% no papel. Já no próprio roteiro impresso eu faço os primeiros esboços e depois disso amplio o esboço e vou criando os quadros. Aliás, não gosto desse nome, “quadrinhos”, porque dá a impressão de que são quadrados monótonos, sempre do mesmo tamanho. Tento sempre criar retângulos ou quadros
O fato é que a primeira associação que elas fazem com os quadrinhos é essa coisa de pancadaria; muito difícil que uma mulher entre nesse universo. Lá fora existe muita colorista mulher, mas poucas desenhistas. Lembro que quando desenhei O Justiceiro para uma edição de crossover com Witchblade, o editor falou comigo que aquela era a primeira vez que uma mulher desenhava O Justiceiro. continente Você consegue sobreviver hoje só dos quadrinhos? ADRiAnA MeLo Totalmente.
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FOtOs: rEprODuçãO
cABeÇAS VÃo RoLAR Em Londres, desde 2007, qualquer imagem pública, seja publicidade ou cartaz de filme, corre o risco de ter a cabeça “cortada”. O artista anônimo, conhecido por Decapitator, tem seus “crimes” premeditados: depois de escolher a “vítima” na rua, ele modifica a imagem no photoshop, imprime a parte trabalhada e cola sobre a original. O Decapitator aparece encapuzado, como todo algoz, em um vídeo na internet no qual mostra o processo de como “cortou” a cabeça do jogador David Beckham. O artista (ou sua ideia) já chegou ao Brasil, e, na capital paulista, já se podem encontrar modelos e artistas com suas vértebras expostas pelas ruas.
Shaw e o “gás humano”
“Todos sabem que algumas pessoas não têm utilidade nenhuma neste mundo. Senhor ou senhora, seja gentil o bastante para justificar a sua existência. Se não o consegue, não está fazendo esforço suficiente; se não está produzindo tanto quanto consome ou, preferivelmente, mais, então claramente a sociedade não terá razão para mantê-lo vivo, porque sua vida não nos beneficia, e não pode ser muito útil nem para você mesmo”. Esse discurso, do dramaturgo irlandês Bernard Shaw (1856-1950), foi preservado numa filmagem que pode ser vista no documentário The soviet story (2008), ainda não exibido no Brasil. Shaw aparece defendendo o extermínio em massa de pessoas por categoria não racial, mas social: os desocupados e inadequados, #44 que ele qualificava como “parasitas sociais”. Em artigo publicado no jornal londrino The Listener, o escritor chegou a apelar para que cientistas inventassem um “gás humano”. Humanidade, no seu entendimento, significava matar “sem crueldade”, instantaneamente e sem dor. Dez anos depois, o tal gás foi de fato descoberto e denominado Zyklon B. Na Alemanha nazista, Adolf Eichmann, chefe da Seção de Assuntos Judeus, defendeu a ampla utilização da substância. Seus argumentos assemelhavam-se aos de Shaw: tratava-se de um “gás humano”. Eduardo CEsar Maia
con ti nen te
A FRASE
“Rara a felicidade de uma época em que se pode pensar o que se quer e dizer o que se pensa”
Balaio AnAtomiA HomÉRicA Ezra pound comenta em seu Abc da literatura: “As qualidades literárias de Homero são de tal ordem que um médico já escreveu um livro para provar que Homero devia ser um clínico do exército. (Quando ele descreve certos golpes e seu efeito, a descrição dos ferimentos é feita com tanta precisão que parecem próprias para o relatório de um médico legista)”. um exemplo está na morte de pândaro, que foi atingido pela lança de Diomedes. segue o trecho na tradução portuguesa de Frederico Lourenço: “(...) Assim falando, atirou a lança. E Atena guiou-a até ao nariz,/entre os olhos de pândaro. penetrou através dos alvos dentes./ O bronze renitente cortou a língua pela raiz e a ponta/ da lança saiu por baixo, pela base do queixo”. (Artur A. Ataíde)
umA PitAdA de iRoniA O dramaturgo e crítico alemão G. E. Lessing (1729-1781), célebre sobretudo por seu Laocoonte, em que discute as relações entre poesia e pintura, sabia o quão conturbadas podem ser as relações entre artistas e críticos. A ideia de que o crítico não deveria falar, em tese, de algo que não sabe fazer é relativizada por ele com ironia: “Eu acho a minha sopa salgada: não posso chamá-la salgada antes que eu mesmo a possa cozinhar?”.
Públio cornélio tácito
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doiS FAmoSoS deSconHecidoS O baterista robertinho silva descobriu que era internacionalmente famoso por acaso. Em uma das edições do Free Jazz Festival, estava ele na fila da cerveja, no Hotel Nacional, entendendose às maravilhas com um americano, negro como ele e com pinta de músico. Entre uma conversa e outra, o gringo confessa: — Eu vim ao Brasil para conhecer o baterista do Milton Nascimento, robertinho silva, o maior que já ouvi, confidenciou o americano. — pois está falando com ele. E você, quem é?, perguntou robertinho, abrindo um sorriso. — Wayne shorter, do Weather reporter. Você é famoso à beça nos Estados unidos; tem até fã clube. (Beatriz Coelho silva)
cRiAtuRAS
o que ViRá dePoiS do VAzio? Em meio à grave crise da Fundação Bienal de são paulo, o crítico e curador pernambucano Moacir dos Anjos assumiu, no mês passado, a responsabilidade de coordenar a curadoria da 29ª Bienal de São Paulo, que deve ser realizada no final de 2010. Com pouco mais de um ano para trabalhar, o curador terá a responsabilidade de reerguer essa que já foi uma das mais relevantes exposições de arte da América Latina. Em 2008, a proposta da curadoria manteve um dos salões completamente vazio, com a proposta de provocar uma reflexão sobre o papel da mostra no cenário atual. Agora, após essa quarentena, resta-nos esperar pelo que virá depois do vazio.
Luiz Gonzaga (1912 – 1989) Ricardo Melo
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as fotos foram gentilmente cedidas pelo fot贸grafo
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Portfolio
thaís Asfora | Madame Surtô
aquarela feminina TexTo Mariana Oliveira
Roupas bastante femininas. Saias, vestidos e blusas com aplicações e bordados, feitos à mão, com acabamento de qualidade. É com essas características que Thaís Asfora produz cada peça da Madame Surtô, grife pernambucana criada há quatro anos que vem ganhando espaço nacionalmente. “Gosto muito de ser mulher”, afirma a estilista, justificando sua opção por roupas em que a feminilidade é explorada. Depois de trabalhar para a Movimento e para a Timoneiro, ela optou por criar sua confecção, que veste senhoras, jovens de 20 anos e crianças (Madame Surtôzinha). Sem fazer uso de qualquer traço regional, a Madame Surtô conseguiu estabelecer elementos representativos, que geram uma rápida associação à marca. Em pouco tempo, a grife já pode ter suas peças identificadas entre aquelas expostas em uma loja multimarcas. O uso de tecidos naturais, como o algodão, a cambraia e o linho, de bom caimento e adequados ao clima brasileiro, é uma de suas características reincidentes. Os bordados, as aplicações diversas e poás
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Página anterior 01-02 eStilo
o uso de tecidos naturais, bordados, aplicações diversas e estampas exclusivas é característica da marca
Nestas páginas 01-03 peçAS-chAve
os vestidos têm destaque na produção da madame surtô, por serem extremamente femininos
04-06 retrô
na coleção que abre o verão 2009, os acessórios complementam as produções com inspiração nos anos 1950
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(as charmosas bolinhas), bem como o toque retrô, também são emblemas das roupas produzidas pela marca. Segundo Thaís Asfora, quando alguns desses elementos faltam numa coleção, as clientes reclamam. Como as peças fogem do convencional e são cheias de identidade, há uma preocupação em não massificar a produção. Cada modelo tem uma “tiragem” limitada. Ao todo, a Madame Surtô lança quatro coleções ao ano, cada uma com cerca de 45 criações. Esta coleção, apresentada à Continente em primeira mão, abre o verão 2009 e aposta na versatilidade das roupas. Há nela um conjunto de vestidos com dupla face, que podem servir para trabalhar durante o dia e, numa simples virada ao avesso, transformar-se em algo sofisticado para um coquetel. Outro item desta coleção é a utilização de botões antigos, todos pintados a mão. A produção da marca é feita na “fábrica”, no bairro de Casa Forte, bem perto da casa da proprietária, no Poço da Panela, de onde vem parte das 20 funcionárias que modelam, cortam, costuram e bordam as peças. Esquecendo o glamour e os fetiches que integram o mundo da moda, a estilista pretende que suas peças tenham vida para além das passarelas. “Eu quero fazer moda para alguém usar, lavar, passar e vestir outra vez. Uma roupa que a pessoa ache bonita nela, que a deixe feliz, que a faça sentir-se bem”, sintetiza.
@ continenteonline Confira outros looks da nova coleção da Madame Surtô e as lojas onde se pode encontrar as peças no site www.revistacontinente.com.br
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as roupas da marca são sempre pensadas para o corpo da típica mulher brasileira, tentando sempre alongar a silhueta
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detAlheS
Thaís asfora propõe a aplicação de ícones da coleção, como a libélula acima
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Fotografia João arraes Assistente de fotografia rafaela santos Beleza chico domingues Modelo ana cláudia perotto (agente Júlio aguiar) Produção de moda e styling equipe madame surtô Realização estúdio espaço luz 08
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Em primeira mão
pintura Diante de Deus, um apocalipse
Na chegada aos 80 anos, Tereza Costa Rêgo volta às telas de grandes dimensões, com painel de doze metros que será exposto pela primeira vez em setembro, no Mepe texto Olívia Mindêlo foto Breno e Gabriel Laprovitera
entrando no Sítio Histórico de
Olinda pela Praça do Carmo, basta subir a rua Prudente de Morais, dobrar à esquerda nos Quatro Cantos e passar pelo Mercado da Ribeira para se chegar ao número 344 da Rua de São Bento. Lá está o Museu do Mamulengo – Espaço Tiridá. O endereço, que abriga um acervo de 1.500 bonecos, tem sido, nos últimos meses, o refúgio de uma obra de arte digna de ser descortinada. Não se trata de nenhum fantoche ou boneco gigante, mas de um painel de 12 m de largura por 1,80 m de altura, fracionado em cinco partes, que acaba de ser concluído por Tereza Costa Rêgo, nos seus 80 anos. Até dar as últimas pinceladas em sua tela monumental, a pintora evitou mostrar o trabalho em processo. Passada essa fase, a Continente pôde conferir em primeira mão o mural que anuncia o Apocalipse de Tereza, e que poderá ser visto pelo público no início de setembro, data
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prevista para a abertura da exposição retrospectiva em homenagem à artista no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), no Recife. Foram necessários mais de seis meses de labuta até o painel ganhar feições de “pronto”, ou quase isso. Durante esse tempo, ela mergulhou no silêncio da garagem que alugou nos fundos do Tiridá. O museu, dirigido por ela, pareceu-lhe o espaço ideal para dar à luz a uma tela que não pode ser captada em poucos minutos. “Foi um parto laborioso, esse. É meu último quadro em grande dimensão”, afirma uma extenuada Tereza, que diz ter ganhado marcas no corpo e noites de insônia por causa dessa pintura. Olhando a obra à distância, vê-se uma cobra gigante que atravessa uma imensidão rubra. Ela tem os olhos em formato triangular, como na Santíssima Trindade. Chegando mais perto, figuras de todos os tipos e proporções emergem do ventre do bicho. Tatus, gatos, mulheres nuas. Cenas de surubas, batalhas, procissões. Uma reunião dos personagens e das cenas mais recorrentes na pintura narrativa
de Tereza, com exceção da grande imagem masculina que surge despida no centro do mural, uma novidade no trabalho da artista. Conhecida por pintar mulheres, ela diz que esse corpo simboliza Adão. Um Adão de carne e osso, sem face, sem culpa, que se entrega em igualdade a Eva – aqui tão humana quanto seu parceiro. Caveiras, arcanjos e cavalos são outros elementos pouco familiares à pintura da artista, que, ao contrário de Adão, se inserem como detalhes para serem apreciados de perto. A pintora diz que todos os seres vivos ou inanimados brotaram de suas mãos de forma intuitiva, de modo que o resultado dialoga com um embate entre o sagrado e o profano, muito recorrente no seu trabalho. “Eu vou pintando. Aí faço uma suruba, essa danação. Só que logo depois eu peço desculpa e pinto uma procissão. É a minha repressão judaico-cristã”, explica a olindense. Trechos do Apocalipse, um dos livros bíblicos preferidos de Tereza, circundam o mural, reforçando um pano de fundo religioso que trava um jogo de amarraliberta na mente da artista. É daí que
surgem contrastes surpreendentes, nos remetendo à riqueza de detalhes de quadros que marcaram a história da arte, como O jardim das delícias terrenas, do pintor flamengo Hieronymus Bosch (1450-1516). Talvez Tereza pense como ele: o destino provável da humanidade é a danação eterna. Nem céu nem inferno. O purgatório. No seu novo painel, a pintora pernambucana só poupa os bichos. Nem a igreja escapa. É só olhar direitinho para a segunda prancha do quadro e lá está Dom José, ex-arcebispo de Olinda e Recife, famoso por sua amargura, de salto alto. Enquanto isso, Dom Hélder hasteia a bandeirinha branca lá de cima para ele. São toques de ironia que dão novos sabores à pintura de Tereza. Vale a pena se perder na imensa tela. Sua proposta estética se mantém nesse mural, dialogando diretamente com a série anterior, Sete luas de sangue (2000). Mas não há nada na obra de Tereza Costa Rêgo que se compare ao esforço e à magnitude dessa pintura, capaz de fazer serpentear nosso olhar pelo seu imenso poder de sedução.
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especial
DESIGN Tipografia dá distinção à leitura A facilidade de criar fontes com o auxílio de softwares dá novo impulso às tecnologias da escrita e da impressão, ampliando as formas da linguagem visual TEXTO Patrícia Amorim
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correr os dedos entre as páginas
de um dicionário à caça de um verbete desconhecido é uma experiência de leitura para além do prazer trivial da descoberta de um novo vocábulo. Ali, arena onde se exibem todas as palavras, nenhum detalhe gráfico deve ser menosprezado: desde a baixa gramatura do papel, que alivia o peso dos livros mais volumosos, até a encadernação segura e articulada, na qual se mantêm ajustados capa e miolo mesmo após anos de inúmeras consultas. Sendo a letra, entretanto, unidade elementar da rigorosa arquitetura informacional de uma obra como essa, não é de se espantar que, em função dos melindres de seu projeto gráfico, também se faça nascer uma nova fonte tipográfica. Foi assim com a Houaiss, criada em 2001 por Rodolfo Capeto, professor da Escola Superior de Design Industrial (ESDI/RJ), para o Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa, publicado pela editora Objetiva. Seu desafio era projetar uma fonte exclusiva que permitisse concentrar num único volume mais de 228 mil verbetes e que, ao mesmo tempo, oferecesse máxima legibilidade, tendo em vista o uso de caracteres em corpo bastante reduzido, com altura aproximada de um milímetro, na maior parte dos textos.
O resultado foi uma família tipográfica baseada em estilos com e sem serifa – pequenos filetes nas extremidades das letras, encontrados em fontes como a Garamond, mas ausentes na Arial e similares –, com duas variações de peso (negrito e negro) e seus itálicos correspondentes. Um alfabeto marcado por letras e números de extensões muito curtas e de itálico mais condensado que o habitual. Ao final, a nova fonte, além de conferir personalidade à publicação, garantiu maior aproveitamento de papel e melhor leitura e identificação dos verbetes e definições, sendo utilizada também na recém-lançada edição do dicionário, adaptada ao Acordo Ortográfico. Embora esta seja uma prática ainda incomum no mercado de livros no Brasil, a criação de fontes tipográficas a partir de demandas de projetos editoriais específicos é quase tão antiga quanto a própria história da tipografia, cujo surgimento remonta ao século 15, com o alemão Johannes Gutenberg e os tipos de metal. Um caso antológico não tão distante no tempo é o da fonte Times New Roman, uma das typefaces mais populares do mundo ocidental, e que foi originalmente projetada por Stanley Morrison e Victor Lardent para o jornal inglês The Times, em 1932.
A imprensa brasileira, mesmo que de forma tímida, também contabiliza sua cota de fontes exclusivas. A Folha Minion, desenvolvida para ser usada nos textos, e a Folha Serif, para os títulos, foram projetos de autoria do tipógrafo alemão Erik Spiekermann e do holandês Lucas de Groot, contratados pela Folha de S. Paulo, em 1994, estando esta última fonte em uso no jornal até hoje. E ainda que não se tenha notícia de typefoundries – casas fundidoras de tipos – ou de alfabetos em metal forjados por essas terras, fontes tipográficas digitais – construídas no computador, a exemplo da Houaiss – são produzidas aqui há quase duas décadas, em variados graus de aprimoramento. Destacam-se aí tipógrafos como Tony de Marco, Cláudio Rocha, Priscila Farias, Luciano Cardinali, Crystian Cruz, Fábio Haag, Ricardo Esteves, Eduardo Omine, Marconi Lima e Eric Straub, entre outros, seja no desenvolvimento de fontes originais ou em intervenções em tipos preexistentes, para os mais diversos usos. A bem da verdade, o mundo digital inaugurou uma nova era nas tecnologias da escrita e da impressão, multiplicando a oferta de tipos e ampliando nosso convívio diário
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Designer criou a fonte Armoribats (acima) tendo como referência o imaginário gráfico do movimento armorial
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com eles, em seus mais diversos estilos, aplicados a qualquer artefato passível de carregar uma mensagem verbal. De banners gigantescos em fachadas de prédios, com letras que cobrem andares inteiros, a tíquetes de estacionamento que insistem em se perder dentro das bolsas, tudo comunica, e a tipografia é sua voz visual. Por outro lado, a despeito dos milhares de arquivos de tipos gratuitos disponíveis na internet, bem como dos downloads piratas e das dezenas de alfabetos produzidos aparentemente sem custos e sem autoria explícita, incluídos nos softwares de computadores, fontes digitais são produtos, têm seu preço e, como tal, movimentam mercados. A Europa, fazendo jus à tradição tipográfica que carrega desde a Renascença, está à frente nesse panorama ao lado dos Estados
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leonardo buggy
sob demanda
Gustavo Gusmão colhe elogios pela criação da família tipográfica Japiassu, para a qual planeja concluir todas as variações
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Unidos. O Brasil, recém-chegado à cena, deu passos importantes e começa a abrir caminho para as novas gerações de criadores e suas fonthouses, empresas especializadas no desenho e comercialização de tipos digitais.
tipos locais
Segundo o designer e professor Henrique Nardi, idealizador do curso itinerante Tipocracia, o interesse pela tipografia no Brasil tem aumentado nos últimos anos. “E isso é visível também na qualidade crescente das fontes desenhadas por brasileiros”, enfatiza. À sombra de um design gráfico que hoje é reconhecido no país, designers pernambucanos cultivam destaques dentro de sua pequena produção. Um dos principais articuladores da área em Pernambuco, Leonardo “Buggy” Costa, designer formado em 2000 pela UFPE, conta que a produção
de tipografia digital no Estado teve origem no final da década de 1990, em plena efervescência do Mangue Beat. “Até essa época, o pensamento tipográfico na faculdade era muito dogmático e criar fontes era quase um pecado. Foi com o incentivo de professores como Silvio Campello e Solange Coutinho, somado à agitação cultural da cidade e à facilidade trazida pelo computador, que tivemos coragem de começar a fazer tipografia e acreditar naquilo”, recorda. Membro do grupo que fundou, em 2000, a Tipos do Acaso, primeira fonthouse pernambucana, Buggy supervisionou, em 2003, a criação da fonte Manguebats, baseada no levantamento iconográfico do movimento Mangue, sob encomenda do Sebrae-PE. Selecionada pela mostra Design Brasileiro Hoje: Fronteiras, que, exibida no Museu de Arte Moderna, em São Paulo,
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fátima finizola produziu diversas fontes tipográficas a partir da linguagem vernacular nordestina, de elementos da xilogravura e de letristas populares
a produção tipográfica digital local teve origem no final da década de 1990, em período de efervescência cultural
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revisitou este ano a última década da produção de design no país, a fonte também foi destaque na Bienal Letras Latinas 2004 (rebatizada Bienal Tipos Latinos, em 2008) e na 7ª Bienal de Design Gráfico da ADG Brasil, em 2005. O trabalho ganhou notoriedade ao explorar o fundamento da fonte dingbat, em que caracteres alfanuméricos dão lugar a grafismos e pequenas ilustrações, associados à iconografia de uma determinada cultura. “O projeto teve repercussão nacional e a fonte ainda é muito utilizada. Já cheguei a ver gente tatuada com a Manguebats!”, conta. Em 2008, Buggy lançou a fonte Armoribats, construída a partir do imaginário gráfico do movimento Armorial, selecionada pela Bienal Tipos Latinos do mesmo ano. Autor de um livro sobre desenho tipográfico, O MECOTipo, Buggy atualmente tem dado especial atenção à impressão com
ferro fundido da ponte Seis de Março, conhecida como Ponte Velha, no centro do Recife. Autora da fonte dingbat Zabumba City, selecionada para a Bienal Letras Latinas 2006 e para o Pernambuco Design 2008, Finizola retratou nesse projeto elementos de destaque da paisagem urbana do Recife e de Olinda, recorrendo à linguagem da xilogravura. “Nossas fontes buscam inspiração na linguagem vernacular, não só nos letreiros estampados nas paredes da cidade, mas na linguagem do cordel, da feira, no que acontece no âmbito popular e que pode ser trazido para os nossos trabalhos no contexto do design formal”, esclarece. A fonte de título 1 Rial, criada por Finizola, em 2006, com base em placas de rua do Recife, é exemplo dessa inspiração e conserva em seus traços a rusticidade do pincel, instrumento utilizado originalmente
tipos móveis, ensaiando experimentos gráficos e incrementando a oficina tipográfica das Faculdades Integradas Barros Melo, instituição na qual coordena a graduação em design gráfico. “Possuímos uma máquina impressora Guarani e diversas caixas de tipos, equipamento ao qual nossos alunos também têm acesso nas aulas. Acho importante investir nesse resgate para ajudar a manter viva não só a estética resultante desse tipo de impressão, mas a própria plataforma tecnológica que está na origem da tipografia clássica”, salienta.
Vernacular e eXclusiVo
A designer Fátima Finizola atua na produção de fontes tipográficas digitais desde 2000, ao lado do companheiro Damião Santana, na fonthouse Crimes Tipográficos e na Corisco Design. Seu primeiro alfabeto foi inspirado no gradil de
pelo letrista. Distribuída gratuitamente através do site da Crimes Tipográficos (http://crimestipograficos.com), a 1 Rial caiu no gosto de diretores de arte do país inteiro, sendo utilizada em diversas peças de alcance nacional, como o encarte e o rótulo do CD Brasil Afora, da banda Paralamas do Sucesso; a campanha da Tramontina; e o comercial do Governo Federal e do Ministério da Integração Nacional sobre o Projeto São Francisco. “Outra boa surpresa é que, entre junho e julho deste ano, a 1 Rial saiu numa série de encartes do Jornal do Commercio sobre a Fenearte. A fonte foi utilizada em todas as capas e em vinhetas internas”, conta Finizola, curadora da categoria design vernacular da Bienal de Design Gráfico da ADG Brasil em 2009. Ciente da demanda pouco expressiva por projetos tipográficos exclusivos no mercado local, o casal de designers
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na ufpe, são realizados projetos integrados de catalogação, preservação e pesquisa sobre tipografia e alunos aprendem na prática o uso de tipos móveis
fundamental para a formação de futuros tipógrafos no Estado. Nesse sentido, o curso de design da Universidade Federal de Pernambuco já coleciona contribuições relevantes. O projeto de extensão que cuida da catalogação e preservação do acervo tipográfico da Editora da UFPE, conduzido pela professora Isabella Aragão, e a pesquisa sobre o acervo das matrizes litográficas do Laboratório Oficina Guaianases de Gravura, supervisionada pelo professor Silvio Campello, são dois desses exemplos. De acordo com Campello, esses estudos integram o projeto Memória Gráfica Brasileira, que, com o suporte do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad), une a UFPE,
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comparado a outros países, o mercado brasileiro de tipos corporativos ainda precisa se profissionalizar
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tem buscado outros caminhos para incrementar a criação de fontes na rotina do escritório: “Tentamos mostrar ao cliente que ele pode encomendar esse tipo de serviço e ter um trabalho diferenciado, o que faz com que busquemos novas soluções tipográficas para os letterings (letreiramento) das marcas que criamos”, diz ela. O designer Gustavo Gusmão, da Mooz, também aponta no mesmo sentido. “Aqui a gente não tem demanda específica por desenho tipográfico. Até porque o mercado brasileiro de tipos coorporativos ainda é muito fraco, se comparado ao de outros países. Então, o único jeito de se divertir desenhando letras e caracteres é fazendo letterings para marcas.
ensino
Praticamente todas as que já fizemos tiveram o lettering customizado”, conta. Faz parte dessa lista a elogiada fonte de texto Japiassu. “Comecei a desenhá-la há três anos, para os cartões de visita do escritório de advocacia da esposa do meu sócio, Daniel Edmundson. Ano passado tomei coragem para criar mais variações e inscrevê-la no Pernambuco Design. Meus planos agora são deixar a família mais completa e quem sabe colocá-la à venda”, comenta.
pesQuisa acadÊmica
Na retaguarda dessa movimentação em fonthouses e escritórios de design, o ensino e a pesquisa sobre a história e o desenho de tipos também ganham novo fôlego como estratégia
a PUC do Rio de Janeiro e o Centro Universitário Senac São Paulo na investigação do papel histórico e social do design no Brasil. Coordenadora da equipe paulista de pesquisadores e conhecedora da cultura gráfica local, a professora e tipógrafa Priscila Farias – autora da fonte Seu Juca, inspirada no trabalho do letrista pernambucano – dá a exata dimensão dessa empreitada: “Entendemos que isso é importante devido ao papel estratégico do design na constituição da paisagem construída, nas diversas experiências de interação por meio do comércio e da comunicação, e na formação de identidades visuais que, por extensão, ajudem a delimitar a identidade coletiva”.
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um esgotamento da criatividade do hemisfério norte, mas, sim, uma sede por soluções mais frescas, ousadas e criativas que os designers daqui possuem. Além disso, os trabalhos dos tipógrafos brasileiros têm sido divulgados de modo mais organizado, seja em exposições, congressos ou em revistas internacionais. A forma mais importante de incentivar a produção local é haver um respeito maior pela propriedade intelectual e comercial do design tipográfico (o que ainda estamos muito longe de alcançar) e, principalmente, que os profissionais do design como um todo observem, valorizem e contratem o trabalho tipográfico para projetos específicos.
Entrevista
lucIaNo carDINallI Jurado brasileiro da Bienal Tipos Latinos, importante evento tipográfico integrado por 11 países, o typedesigner Luciano Cardinali é especialista no desenvolvimento de fontes digitais institucionais, criadas para uso exclusivo de um determinado projeto editorial ou de identidade visual de uma empresa. Sócio do escritório paulista Consolo & Cardinali e autor das fontes Thanis, Reich e Paulisthania, entre outras, o designer, que desde 1993 dedica-se ao desenho tipográfico, diz que o maior incentivo à produção local é haver um mercado que pague por esse serviço. continente Como a produção brasileira de fontes digitais é vista no mercado internacional, e o que fazer para incentivá-la? luciano cardinali Existe interesse crescente pelo trabalho latinoamericano, e, especialmente, de brasileiros. Muitos foram estudar em centros importantes como Reading (Inglaterra) e KABK (Holanda) e se destacam de alguma forma. Podemos perceber que existe não
continente A que se deve a revalorização da impressão tipográfica e por que aproximá-la das escolas de design? luciano cardinali Como também sou professor de tipografia, vejo claramente o resultado concreto de se usar as mãos para entendê-la. O computador é apenas uma ferramenta com uma interface diferente daquela em que nosso trabalho será visto. Por isso, recortar e colar (com tesoura e cola mesmo!) é uma experiência que não se apaga da memória, fica impregnada na experiência de cada um. Além disso, o computador nos dá um resultado limpo, esterilizado e previsível, muitas vezes. Quando metemos as mãos na tinta, prensamos o papel contra os tipos (que podemos pegar!), percebemos sutilezas do “fazer” que máquinas não nos dão. E isso não tem nada de saudosismo: é uma forma de entendermos e enriquecermos nossas habilidades. Embora o computador continue sendo fundamental. continente As fontes dingbats, em que desenhos substituem os caracteres alfanuméricos, são, para uns, um campo menor da tipografia; para outros, um terreno fértil para projetos de inspiração cultural e, às vezes, até uma porta de entrada para a profissão. A edição 2010 da Tipos Latinos manterá a categoria Miscelânia, em que essas fontes se enquadram? luciano cardinali Os dingbats são sempre um caso à parte. Sua origem está em coleções de florões, ornamentos e outros sinais em forma de tipos móveis que eram
usados para marcar passagens de texto ou frases específicas, decorar páginas ou criar bordas. Com a mecanização e, posteriormente, a digitalização da tipografia, ficou mais fácil e divertido criar conjuntos temáticos de imagens para as mais variadas funções. Particularmente, vejo o dingbat como uma forma de registrar iconograficamente uma ideia. Mas sua utilidade prática é bastante reduzida e muito pontual. É raro vermos um uso inteligente desse tipo de fonte. A categoria Miscelânea é uma forma de reconhecermos que não sabemos o que fazer com certos trabalhos. As bases para a próxima edição estão em discussão e tanto a categoria Tipos para Tela (tipo pixel) como a Miscelânea podem tomar rumos diferentes. O que não excluirá, de forma alguma, qualquer trabalho. Apenas temos que encontrar uma maneira mais conveniente de organizar a tão variada produção tipográfica. continente Hoje convivemos com a palavra escrita projetada a partir das mais diversas técnicas, do manuscrito ao digital. Qual o significado dessa “ecologia tipográfica”? luciano cardinali A escrita começou calcada em barro e cravada na pedra. Depois vieram papiros, códices, livros, cartazes. Hoje convivemos com uma verdadeira fauna de meios que estão em constante evolução. Do mesmo modo que o design tem deixado de ser apenas “gráfico”, “interface digital” ou “produto” e passou a ser uma forma mais abrangente e eficiente de entender o mecanismo de organizar informações (seja sobre o que for), a tipografia vem se adaptando a esses novos ambientes. A tecnologia OpenType, que potencializa os recursos linguísticos e estilísticos das fontes, e o Clear Type, tecnologia que otimiza fontes em tela, são alguns exemplos. Da mesma forma que o livro impresso não desaparecerá – apesar dos e-books –, a caligrafia, o letterpress, o digital devem permanecer, ao menos por um bom tempo. A eles, devem-se somar outras tecnologias para compor uma malha de técnicas cada vez mais ampla e diversificada.
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GrÁFIcaS Esses tipos maravilhosos e suas máquinas incríveis De como a digitalização dos meios não aplaca o interesse e o uso dos analógicos tipos de ferro e madeira, que ressurgem em produtos artísticos
distribuídos entre os carros nos sinais vermelhos a sofisticados anuários de empresa entregues a clientes escolhidos a dedo, os modernos sistemas de impressão offset e digital atendem a quase totalidade das demandas do mercado gráfico hoje em dia. Ainda assim, país adentro, é possível ouvir os estalos e rangidos de impressoras tipográficas que, desdenhando os novos tempos, insistem na labuta, prensando contra folhas de papel tipos entintados feitos de ferro ou madeira. “Essa técnica vai durar pela eternidade. Isso aqui não acaba nunca”, garante, otimista, o impressor Sílvio Silva, de 45 anos de idade e 25 de profissão. Dono da Veneza Art Gráfica, instalada há 16 anos no 2º andar do Edifício Novo Recife, prédio ocupado por lojas de comércio popular no bairro da Boa Vista, Silva conquistou uma fiel clientela, ainda em busca de pequenos serviços de impressão como recibos, receituários, talões e convites, tudo isso no comando de uma máquina Minerva e de caixas de tipos de metal. Em São Paulo, a Gráfica Fidalga também é exemplo de resistência e amor à tradição tipográfica. Sua especialidade são cartazes impressos com tipos móveis de madeira, entre eles os chamados “lambe-lambes”. Fazendo uso de poucas cores e papel de baixo custo, esses cartazes, comumente empregados na divulgação de shows, são fixados com cola em muros e tapumes da cidade. Liderada pelos amigos impressores Maurício, Carlão e Carlinhos – à frente de uma máquina Heidelberg, fabricada em 1929 –, a Gráfica Fidalga, fundada há 25 anos, já foi tema de um mini-documentário realizado pelo site Cool Hunting (www. diretodoforno.com.br/cool-hunting-graficafidalga). O vídeo se tornou, em seguida, febre entre os internautas ligados às artes gráficas. Em 2007, ao entrar em vigor em São Paulo a Lei Cidade Limpa, a oficina sofreu forte redução no número de encomendas vindo de sua clientela habitual. Hoje, ela conta também com a demanda de contratantes diferenciados, sensíveis às possibilidades de sua estética tipográfica, como a galeria Choque Cultural e a editora Cosac Naify, para quem a Gráfica Fidalga já
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gráficos, designers e consumidores atentos formam uma comunidade que valoriza as oficinas tradicionais
reproDução
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herança
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artesanal e artístico
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lambe-lambes
a oficina tipográfica de são paulo compromete-se com a preservação da memória gráfica adquirindo acervo físico também em outros países, cultiva-se o interesse pela impressão com tipos, como ocorre com o norte-americano studio on fire a gráfica fidalga é especialista em tipos de madeira, com os quais se imprimem cartazes em poucas cores e papel barato
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imprimiu, respectivamente, cartazes e capas de livro. Vale lembrar que a prática da impressão com tipos móveis no Brasil ainda precisa driblar outras graves ameaças, visto que, ao serem desativadas, muitas oficinas tipográficas têm suas máquinas derretidas e o aço vendido a quilo, o mesmo ocorrendo com os tipos de metal, muitos deles já raros hoje em dia. Felizmente, iniciativas de preservação dessa cultura gráfica, incluídos aí seus processos e equipamentos, são cada vez mais frequentes. A Oficina Tipográfica São Paulo (OTSP), por exemplo, fundada em 2004, é uma das principais instituições brasileiras comprometidas
com a causa, reunindo em seu acervo quatro impressoras tipográficas, duas linotipos e centenas de gavetas de tipos de metal e madeira. “O sistema de impressão tipográfica e a composição com tipos móveis constituem uma linguagem original e uma herança técnica valiosa. A sua prática ajuda a compreender os parâmetros que nortearam a tipografia digital”, afirma Cláudio Rocha, tipógrafo e diretor vice-presidente da OTSP. Contemplando todas as teorias tipográficas e privilegiando a integração da tipografia clássica à computação gráfica, a Oficina oferece cursos e desenvolve impressos e produtos editoriais, entre eles a revista Tupigrafia e o álbum Além da Letra,
coleção de experimentos gráficos com tipos de madeira e metal. Também em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra, o interesse renovado por esse sistema de impressão é crescente, destacando-se aí o surgimento de pequenas gráficas de tipografia artesanal. Nessas oficinas particulares, designers, escritores e mesmo curiosos dedicam-se à cuidadosa produção de seus próprios trabalhos, fazendo lembrar a atuação, no Recife, do coletivo de intelectuais denominado O Gráfico Amador, em meados dos anos 1950. Em Minneapolis, no estado americano de Minnesota, por exemplo, Ben Levitz dirige um híbrido de estúdio de design e oficina tipográfica, o Studio on Fire, de onde costumam sair impressos sublimes, cujo efeito de relevo deixado pelo contato dos tipos contra o papel confere um caráter tátil à impressão. “Acho que estamos tão imersos na comunicação digital que algo que realmente transcende esse esquema sensorial não tem como passar despercebido”, acredita Levitz. “Cartões de visita produzidos em letterpress [termo em inglês para designar a impressão com tipos móveis] ganham alguns segundos a mais nas mãos das pessoas. É impossível não senti-lo enquanto se olha para ele, o que o torna uma peça memorável. Por isso o letterpress pode competir com a impressão digital no mundo de hoje; ele é extremamente impactante”, compara. “O desafio para essa tecnologia nos próximos anos será o equipamento. Essas impressoras não são mais fabricadas. Peças e conhecimento para consertá-las continuarão a desaparecer. Estamos fazendo o nosso melhor para aprender o máximo possível, não só sobre a impressão tipográfica, mas também sobre o equipamento que devemos conservar”. patrícia amorim
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lÁPIS E PaPEl Gente que (ainda) escreve com esmero
Enquanto remontam antigos documentos da história, desenhos de letras à mão ainda rendem emprego e prestígio a calígrafos TEXTO Patrícia Amorim
todas as manhãs, Roberto Marcelino Guimarães, 36 anos, recebe as ofertas do dia numa longa e insossa planilha, típica de uma tabela do Excel: ”Bisteca Suína Kg 6,79”, “Extrato Tomate Arisco 370gr 1,66”. “Eu adoro fazer isso aqui”, diz ele, e começa a desenhar, letra por letra, com traço caprichoso e hábil, mais uma placa para a seção de carnes do supermercado para o qual trabalha. Em sua pequena sala repleta de papéis, onde também há uma enorme prancheta, Betto, como está escrito no cartaz colado à porta, faz voltar à memória os primeiros escribas da Antiguidade, ocupados com o registro de colheitas e estoques de grãos, negociações de compra e venda e atestados de propriedade. No lugar de estilete de cana e tabuletas de argila, entretanto, placas reutilizáveis, pincéis com tinta à base d´água e removedores sem álcool. Nascido numa família de 23 irmãos, contados os filhos do primeiro e do segundo casamento dos pais, Betto aprendeu o ofício de letrista já aos seis anos de idade, com o irmão José Paulo, 20 anos mais velho. “Eu era muito interessado, gostava de vê-lo trabalhar, e em pouco tempo ele começou a me deixar fazer as placas mais simples”. Responsável por toda a comunicação visual manuscrita da loja onde trabalha, Betto salienta que lá o estilo caligráfico deve seguir o padrão da rede, sem muitos
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enfeites. “Aqui se usa a letra em pé. A letra deitada [itálico] é usada em supermercados mais populares”, demonstra, escrevendo ofertas nas duas formas gráficas para evidenciar a diferença entre elas. “Como a flutuação de preços é maior que em outras lojas, estou sempre ocupado, mas confesso que gosto de fazer um ‘V’ especial nas placas de vinhos”, afirma. Enredado às letras por vocação e prazer, Betto se diz bastante crítico com seu próprio trabalho e um grande observador da publicidade em geral. Curioso pela escrita alheia, o cartazista, que quando solteiro ganhava namoradas com a beleza de suas cartas grafadas à mão, está agora atento a como anda a caligrafia do seu casal de filhos. “Eles são pequenos, mas fico no pé para ver se a letra deles está bonita”.
apropriaçÕes
Ainda que a digitalização da palavra escrita seja o mais novo imperativo do mundo pós-moderno, para o calígrafo e designer Cláudio Gil, 40 anos, os aparatos baseados nesse
mesmo com a digitalização do texto no mundo atual, a comunicação visual manuscrita ainda tem suas demandas recurso tecnológico não deixam de fazer referência a técnicas mais antigas. “Há dias li no jornal uma matéria sobre o Kindle [aparelho para ler e-books e textos em formato digital], da Amazon. A imagem estampada no ‘livrinho’ que o executivo da empresa Jeff Bezos segurava em uma das mãos, enquanto era fotografado pela imprensa, era um manuscrito do Evangelho de São João, feito no século VIII!”, observa. Esse é um exemplo das apropriações recorrentes entre distintas tecnologias da informação, em que, nesse caso, o mais novo gadget do mercado editorial trazia em sua tela nada menos que a versão digitalizada de um dos quatro evangelhos do Livro de Kells, manuscrito medieval, pertencente ao acervo
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antigo e noVo
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dia a dia
para o designer e calígrafo cláudio Gil, novas plataformas digitais são excelentes ferramentas para a preservação de documentos da história gráfica Dar contornos caprichados às letras das placas de oferta dos supermercados. É disso que consiste o trabalho de roberto marcelino
da biblioteca do Trinity College, em Dublin, na Irlanda. “Uma obra original, linda, para se ler ajoelhado, e é preciso marcar hora para vê-la no original, depois de se conseguir autorização para isso”, comenta Cláudio, numa referência ao fato de que novas tecnologias não soterram aquelas de outros períodos, mas delas se beneficiam. Na lista dos que, quando garotos, eram fanáticos por desenhar letras em cadernos de pauta dupla, Cláudio começou a fazer seus primeiros letterings aos 13 anos. “Eu estava fascinado com o material de um amigo que fazia curso de letrista e cartazista. Achei o máximo e resolvi tentar por conta própria”. Os anos de prática intensa, segundo ele, acabaram levando a um refinamento do olhar. “Caligrafia para mim é desenho, e nela eu encontrei uma maneira de repensar todo o meu processo de desenvolvimento em projetos, em design gráfico”, considera. “Ela me dá segurança no aspecto técnico e estético na hora de construir uma letra, um logotipo ou compor um texto numa página. Ao mesmo tempo, é capaz de me deixar liberto no campo das inúmeras possibilidades geradas por combinações entre técnica, instrumentos, tintas e suportes”. Cláudio, que esteve no Recife em agosto do ano passado, no Festival Recifense de Literatura, não se cansa de desfiar a devoção pela palavra escrita nos cursos que oferece e nas exposições de que participa. “Muito mais do que registro, a caligrafia é gesto, ritmo, respiração, identidade, memória. Cada um tem a sua letra, o seu jeito de escrever. Ler uma carta escrita à mão por alguém que amamos ou conhecemos é como ouvir sua voz, faz parte de quem aquela pessoa é”, resume. patrícia amorim
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Conexão
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
sites sobre
cultura digital jogoS
TENdêNCIAS
TECNoLogIA
www.egw.com.br
www.link.estadao.com.br
www.wired.com
O Entertainment Game World é exclusivamente digital e se dedica ao mundo dos games, com matérias sobre suas diversas plataformas.
O Link, caderno do Estadão, vai além das novidades tecnológicas e publica matérias sobre comportamento e tendências digitais.
A versão online da revista Wired traz diariamente notícias, críticas e tutoriais sobre o mundo da informática.
AndAnçAs virtuAis Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
cineMA
LiterAturA
ArtesAnAL
coLABorAtivA
Filmes compõem quiz para testar memória cinematográfica
Revista argentina publica material relacionado à poesia
www.whatthemovie.com
www.revista-atmosfera.com.ar
etsy tem como objetivo conectar produtores e compradores de objetos feitos à mão
Para falar de artes visuais, a ideafixa usa mais imagens que texto
O site What the movie é uma boa pedida para os aficionados em cinema. Trata-se de uma brincadeira para ver quem adivinha o maior número de filmes através de uma única imagem. Os cinéfilos têm apenas um frame de uma produção para descobrir qual a obra em questão. Na maioria dos casos, o visitante pode escrever tanto o título original do filme quanto o que recebeu em português, espanhol, francês, entre outros idiomas. Há também a opção de escolher o nível de dificuldade das imagens, caso o participante não seja expert no assunto. A página ainda disponibiliza um ranking com os melhores competidores, que podem escolher imagens de filmes para colocar no site e incrementar o jogo.
A revista literária online Atmósfera traz diferenciais a este tipo de meio. Um deles é o fato de ter escolhido como assunto principal a poesia, especificamente a argentina e latinoamericana, oferecendo a cada número nomes para contribuir com trabalhos inéditos. Além dos poemas, a revista conta com outros gêneros a cada edição: relatos de viagem, ensaios, galerias, narrativas ilustradas e até dossiês sobre um autor (como os de Leónidas Lamborghini e Horacio Castillo), com entrevistas, perfis biográficos, manuscritos, imagens, vídeos, bibliografia e outros links. O layout muda a cada número, e as ilustrações usadas ficam disponíveis para download. Ponto negativo é a periodicidade indefinida.
www.etsy.com
www.ideafixa.com
“Seu lugar para comprar e vender coisas artesanais”. É com este slogan que o Etsy se tornou o site favorito de comércio virtual para artesãos e amantes de mercadorias exclusivas. Roupas, objetos de decoração e acessórios vintage preenchem as páginas da loja virtual, que tem mais de 30 categorias de produtos de todas as partes do mundo. A qualidade do artesanato atrai também os vendedores, que pagam pouco para divulgar seu trabalho. À parte do conteúdo, o projeto gráfico do site também agrada: além do visual ser limpo e elegante, os produtos podem ser encontrados através de sistemas de busca interessantes, como, por exemplo, por suas cores dominantes.
A ideia surgiu de forma despretensiosa, a partir de um almoço entre as amigas Janara Lopes e Alicia Ayala: fazer uma revista de arte online. Assim nasceu a Ideafixa, que reúne de forma colaborativa trabalhos de ilustração, design, fotografia, vídeo, moda, artes plásticas e animação. Cada edição conta com uma temática diferente e é composta de contribuições dos internautas. De periodicidade trimestral, o site apresenta algumas seções criativas: o Malditos designers, tirinha que ironiza a profissão; o projeto Cadernos de viagem, em que dois sketchbooks passeiam pelo país e recebem ilustrações dos inscritos, e a Entrevista ilustrada, cuja regra principal é contar com respostas apenas em imagem.
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BERNARDO VALENÇA
brevidades REPÓRTERES AMADORES O jornalismo colaborativo, que conta com a contribuição da audiência para a apuração e criação de notícias, é um valor incorporado com frequência cada vez maior pelas empresas de mídia. Para ensinar aos potenciais repórteres um pouco das técnicas e preceitos jornalísticos, o Youtube lançou o Youtube Reporters Center. No site, é possível encontrar depoimentos e dicas de nomes como Bob Woodward, um dos responsáveis pela matéria do Caso Watergate, e Arianna Huffington, do Huffington Post, sobre jornalismo investigativo e colaborativo, respectivamente.
WINDOWS DO GOOGLE?
Passo a passo Com mais de 100 mil vídeos, o Howcast ensina como realizar pequenas tarefas, que vão da útil feitura de bainhas à fútil orientação sobre como provocar ciúmes www.howcast.com
São muitas as críticas à internet . Entre outras, a ferramenta é acusada de ser uma facilitadora da circulação ilegal de conteúdos, de permitir aos usuários o anonimato irresponsável e mesmo de abrigar conteúdos pouco confiáveis. Todas são reclamações procedentes, mas, evidentemente, não dimensionam o todo e subestimam as potencialidades da rede. Se há uma boa qualidade desse sistema virtual de informação, é a sua praticidade. De praticidades e utilidades é feito o conteúdo do site Howcast. Percebendo que muitos procuram na rede tutoriais em formato de passo a passo, seus criadores, Jason Liebman, Daniel Blackman, Darlene Liebman e Sanjay Raman, produziram uma página web que traz instruções de como realizar atividades ou atingir objetivos, como criar as próprias pinturas, prevenir doenças e reconhecer seus sintomas ou mesmo consertar um laptop molhado. Há explicações escritas, mas a maioria são vídeos. Também há bobagens que servem ao riso, como orientações para detectar mentiras, sobre o que fazer para parecer gostosa ao sair do mar, e como fingir uma apreciação sobre arte. O Howcast mescla material próprio com contribuições externas de internautas ou de outros sites. São 25 seções, incluindo os campos: artes plásticas, fotografia, leitura, música e performance. Só no mês de junho, os tutoriais foram acessados por mais de 20 milhões de internautas.
blogs
Já faz um bom tempo que o Google deixou de ser apenas o principal sistema de busca do mundo e ampliou seus tentáculos para as áreas de e-mail, redes sociais e sites de vídeo, para não citar todos. A empresa anunciou agora, para 2010, o lançamento do sistema operacional Google Chrome OS. Mas não será dessa vez que a empresa baterá de frente com o todo poderoso Windows. O projeto só deve funcionar em netbooks, pequenos laptops usados apenas para acessar a internet.
NOVOS HÁBITOS Uma pesquisa publicada pela versão online do jornal The Guardian apontou que diminuiu o número de jovens entre 14 e 18 anos que baixa música ilegalmente. Apenas 26% dos entrevistados admitiram fazer downloads sem autorização pelo menos uma vez ao mês – bem menos que os 42% de 2007. Um hábito que vem crescendo é o do streaming, modo de ouvir arquivos de áudio sem salvá-los no computador. Para o jornalista de tecnologia Tiago Dória, é como se baixar música estivesse virando “coisa de gente velha”.
variedades
PUBLICIDADE
ILUSTRAÇÃO
www.marcelotas.blog.uol.com.br
www.ctrlpels.blogspot.com
www.louromano.blogspot.com
O jornalista Marcelo Tas, atualmente no ar com o programa televisivo CQC, mescla, em sua página virtual, dicas de cinema, toques literários e comentários sobre política. Estão também disponíveis vídeos, críticas e reportagens.
Mantido por Daniel Pels, o Crtl Pels reúne imagens de campanhas publicitárias inovadoras e criativas, além de recomendações de outros sites que mostram bons usos dos materiais midiáticos.
Lou Romano, um dos membros do Departamento de Arte da Pixar, publica no seu blog desenhos de sua autoria. Mostrou recentemente o roteiro colorido de Up, animação que será lançada em setembro no Brasil.
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Fiel depositária de livros e histórias Fascinada por livros, bibliotecária pernambucana trabalha há quase três décadas na casa de Guita e José Mindlin, cuidando de um acervo de mais de 40 mil títulos texto Ana Bizzotto FotoS Marcos Bizzotto
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Perfil
Uma vida inteira dedicada a ouvir histórias, escrever, organizar acervos e ler, ler muito. A paixão pelos livros foi o principal motivo que levou a pernambucana Cristina Antunes, de 58 anos, a conquistar o trabalho que realiza há quase três décadas: guardar e cuidar do acervo de mais de 40 mil títulos da biblioteca de Guita e José Mindlin, em São Paulo. Especialista na conservação e catalogação de livros, ela nunca quis fazer o curso de Biblioteconomia. Nem seria necessário. O contato diário com um acervo tão rico em raridades e as visitas e cursos que pôde fazer em bibliotecas mundo afora foram sua melhor escola. A infância no Recife foi o ponto de partida para a formação de uma leitora voraz. “Desde pequenininha tenho fascínio por livros. Minha mãe gostava muito de ler, e eu estudei no Colégio Nossa Senhora do Carmo, que tinha uma boa biblioteca. Conservo até hoje livros da minha coleção do Lobato, em que eu escrevia com a letra bem arredondada meu nome e a data em que ganhei”, relata Cristina, que afirma ter sido uma leitora “absolutamente indisciplinada”. “Podia ser prosa, romance, poesia, ensaio; o que caísse na minha mão eu lia. Também tinha a assinatura de uma espécie de Clube do Livro. Recebia
dois por mês, o que para mim era muito pouco”. Cristina ampliou seu leque de leituras na Sociedade Cultural BrasilEstados Unidos, onde começou a cursar inglês aos 10 anos. “Lá havia uma biblioteca ótima. Fui lendo pela ordem das estantes. Lia praticamente toda a obra de um mesmo autor, e, quando não gostava de algum livro, devolvia e pegava outro”, conta. A leitura só começou a ficar mais dirigida na adolescência. “A gente tinha obrigação moral de ler autores como Maiakóvski. Todo o meu grupo de amigos lia e eu também”. Dos autores pernambucanos, leu pouca coisa. “Basicamente os poetas. Joaquim Cardozo eu lia bastante; Ascenso Ferreira, João Cabral... O Bandeira eu adoro! Gilberto Freire, na faculdade, porque era leitura obrigatória”, revela. A principal influência da terra natal foi a literatura de cordel. Ela começou uma coleção aos 13 anos, mas perdeu tudo quando sua casa ficou inundada por uma enchente que assolou o Recife em 1967. “Depois de um tempo, voltei a colecionar cordéis e hoje tenho quase dois mil exemplares. Costumava comprar no Mercado São José, a um vendedor que morreu velhinho há uns dois anos. Ganho muitos também,
e às vezes compro em sebos, mas está ficando cada vez mais difícil de encontrar algum que ainda não tenha”. O motivo que levou Cristina a se mudar para São Paulo aos 18 anos foi um namorado paulista que conheceu no Recife. “Obviamente não me casei com ele; o namoro não durou, mas aí eu já estava encantada com a cidade, já tinha passado no vestibular, começado a trabalhar e a formar vínculos de amizade”. Formada em Pedagogia pela PUC-SP, Cristina passou em um concurso para escriturária do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), quando ainda estava na faculdade. Lá, convenceu o chefe a não trabalhar na função, que detestava, e começou a se aproximar cada vez mais do acervo, onde teve as primeiras lições como guardadora de livros. Uma graduação em Biblioteconomia, contudo, não fazia parte dos seus planos. “Eu já estava trabalhando com livros raros e na biblioteca do Mário de Andrade, que tinha as obras dos modernistas. Gostava de ler, de saber qual era o processo de conservação e catalogação. Mas naquela época as bibliotecas não eram informatizadas, então era aquele sistema de datilografar a ficha
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na máquina de escrever e eu achava aquilo um horror, então não passava pela minha cabeça fazer o curso”. Quando ficou grávida, Cristina saiu do IEB e trabalhou em casa por dois anos. Até que a amiga Alice Fontes, que trabalhava na biblioteca de Guita e José Mindlin, a indicou para um emprego no local. “Já tinha ouvido falar do Dr. José, mas não o conhecia pessoalmente. Sabia-se que ele tinha uma biblioteca, mas isso não era muito divulgado na época”, explica. Mindlin era conhecido por seu trabalho como empresário e por ter sido secretário de Cultura de São Paulo, período em que contratou Vladimir Herzog para assumir a direção de jornalismo da TV Cultura, pouco antes de ele ser assassinado no DOI-Codi, em 1975. Na entrevista de emprego, Mindlin perguntou se ela sabia e se ela gostava de fazer fichas, se era bibliotecária, se tinha experiência. “Fui respondendo ‘não’ a todas as perguntas, até que ele me perguntou se eu gostava de livros. Quando respondi que adorava, aí, sim, começamos a conversar. A entrevista foi na quinta-feira, e
na segunda da semana seguinte eu comecei e nunca mais saí”. No início, quase nenhum pesquisador visitava o local. “Depois de uma reportagem da revista Manchete, a biblioteca passou a ficar mais conhecida. Os próprios pesquisadores que vinham contavam para outros. Criou-se uma rede de comunicação e aí ela passou a ser mais procurada, até chegar a um ponto em que recebíamos pesquisadores todo dia, estrangeiros e brasileiros, mas sempre especialistas”, lembra Cristina. A biblioteca nunca foi aberta ao público devido às características do acervo, formado por uma grande quantidade de livros raros, e por estar situada em uma residência. “Recebo centenas de e-mails e telefonemas de pessoas que querem conhecê-la, mas não permitimos visitas, porque senão vira um ponto turístico e compromete todo o trabalho. Mesmo os especialistas têm que ter referências e vir com o objeto de pesquisa muito bem definido”, explica. Durante as visitas, ela procura estar sempre atenta aos “desleixados”, que podem abrir um
livro frágil do século XVII sem o menor pudor se não forem alertados. “Pode ser até uma pessoa de renome, que às vezes não sabe lidar com o material”. A relação com José Mindlin, segundo ela, é em primeiro lugar de amizade. “Às vezes ele diz que me coloca na estante, tamanho o meu grau de intimidade com os livros. Ele é uma pessoa muito fácil de se relacionar. Gosta de conversar, de contar história, é um bom ouvinte. Nós dois juntos conhecemos muito bem a biblioteca. Como ele mesmo diz, somando os dois, a gente ganha do computador”, brinca Cristina, que guarda boas recordações de Guita Mindlin, esposa de José, falecida há três anos. “Ela sempre incentivou a formação da biblioteca, tanto que acabou se especializando na conservação e restauro. Toda a parte do cuidado com os livros eu aprendi com ela”. O local de trabalho proporcionou a Cristina a oportunidade de conhecer pessoas que admira. “Algumas marcaram pela simpatia e pelo clima agradável da visita, como o Mário Soares, quando era presidente de
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“MAriA BonitA”
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Acesso
A máquina iniciou, em abril, a digitalização dos títulos que serão doados à USP A biblioteca não está aberta ao público devido à grande quantidade de obras raras
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Portugal. Mas é claro que tenho meus preferidos, como o Vargas Llosa. Quando ele veio foi fantástico; não tinha nem conseguido vaga para assistir à palestra dele no Masp e, no dia seguinte, ele estava aqui, só para nós”, recorda. “Fiquei muito feliz de conhecer pessoalmente alguns por já ter lido suas obras, como o José Eduardo Agualusa e a Inês Pedrosa. Mas já passou tanta gente por aqui que nem sei mais. Às vezes memorizo mais o rosto do que o nome, a não ser que seja um nome muito marcante para mim”. Graças às visitas e cursos em bibliotecas e universidades de outros países, a guardadora de livros teve a chance de fazer algo que adora: viajar. “A vantagem é que todas as viagens aqui foram 50% de trabalho e 50% de lazer. Isso me dava a chance de conhecer os museus, a cidade. E em geral já saio daqui com tudo articulado. Esse leque de contatos que a biblioteca permite é muito bom”. Ela diz que não tem uma biblioteca favorita, mas cita algumas prediletas, como a New York Public Library; a
Morgan Library, também em Nova York, “pelas partituras originais dos grandes compositores e pela coleção de livros infantis em miniatura”; a do Congresso dos Estados Unidos; e a Nacional de Paris. E no Brasil? “Tem essa”, brinca Cristina, que cita também a Biblioteca Nacional e a do Gabinete Português, no Rio de Janeiro. “A Biblioteca Municipal Mário de Andrade é muito boa, mas pequena para as necessidades de São Paulo. A cidade merecia uma muito maior”. A rotina de trabalho de Cristina mudou bastante desde que a “Maria Bonita” chegou. Assim foi nomeado, em homenagem à rainha do cangaço, o robô que iniciou em abril a digitalização dos títulos da brasiliana da biblioteca, que serão doados à USP em breve (acervo ainda não contabilizado). “O que acho lindo é poder democratizar esse acervo, ao qual raríssimas pessoas têm acesso”, comenta a fiel depositária dos livros, que sente saudades do tempo em que passava tardes inteiras em sua mesa de trabalho, lendo e catalogando as obras. Hoje, além de separar e cuidar do seguro de
exemplares que frequentemente são emprestados a exposições, Cristina passa o dia em reuniões com o grupo de 32 pessoas que atualmente trabalha na digitalização do acervo, em parte já disponível no site www.brasiliana.usp.br. Conhecida pelo trabalho na biblioteca, Cristina também escreve, desde menina. “Às vezes é uma necessidade, um impulso. De vez em quando acordo no meio da noite para escrever ou interrompo algo que estou fazendo para colocar ideias no papel. Não consigo escrever nada no computador. Escrevo à mão, sempre. Para mim é como se o processo criativo formasse uma linha só: o cérebro, a mão, a caneta e o papel. Gosto de caneta tinteiro, em especial”, revela. De sua “prosa poética”, definição dada por ela para o que escreve, não há nada publicado, mas um relato seu, feito durante entrevista a Dorotheé de Bruchard e Cleber Teixeira, pode ser conferido no livro Memórias de uma guardadora de livros, editado pela imprensa oficial do Estado de São Paulo e pelo Escritório do Livro.
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games sob os holofotes mundiais
Jogos digitais deixam de ser apenas diversão, sendo hoje setor mais rentável da indústria cultural, superando o cinema e a música TEXTO Tárcio Fonseca
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Direção artística, roteiristas,
produtores de som e dezenas de milhões de dólares envolvidos. Essa poderia ser uma parte da fórmula para o próximo filme de sucesso de Hollywood, mas, na verdade, estamos falando do novo capítulo da franquia Super Mario Bros. e de tantos outros títulos que fazem a cabeça dos gamers (praticantes de jogos eletrônicos) em todo o mundo. O setor cresceu, e os jogos eletrônicos são, hoje, o produto de entretenimento mais rentável da grande indústria cultural, ultrapassando o cinema e até mesmo a música, e empregando artistas das mais variadas áreas. Segundo levantamento da consultoria DFC Intelligence, o setor deve alcançar em 2009 um faturamento global da ordem de US$ 57 bilhões. E os incrementos não ficam apenas nas cifras. Foi-se a época em que os videogames podiam ser considerados apenas coisa de criança. De acordo com uma pesquisa feita em 2008 pela consultoria NPD Group, a idade média do jogador norteamericano é de 33 anos. A amostragem realizada através das 2.611 entrevistas também revelou que 67% desse total consumiam algum tipo de videogame, seja em consoles, computadores, celulares ou internet (web games). “A indústria dos games cresceu porque a população, hoje, deseja mais interatividade com o que a cerca. O game traz isso”, explica o professor e pesquisador da área de jogos eletrônicos e inteligência artificial do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (CIn), Geber Ramalho. Conhecido como um dos gurus da área de games no Brasil, Geber fundou a primeira turma em programação de jogos dentro do CIn em 1998. Esse foi o início de uma história que transformou Pernambuco num dos principais pólos brasileiros de formação de profissionais para games. As sementes plantadas por Geber há mais de uma década vêm gerando frutos para o Estado. O mais recente foi a conquista do primeiro lugar em games na competição mundial Imagine Cup pela equipe pernambucana Levv IT. O torneio, realizado anualmente pela Microsoft, teve como sede
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a equipe vencedora levv it (da esquerda para direita): Vinícius ottoni, Diogo Burgos, luciano José, edgar neto e Victor rafael Game de estratégia se baseia na aplicação das oito metas do milênio da onU empresa é a mais antiga do ramo no estado, tendo sido criada dentro do Centro de informática da Ufpe
Jogo da meantime para iphone pode ser adquirido por US$ 0,99
reproDUção
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em 1997, pela hoje extinta Art Voodoo. No início, a procura por estagiários e jovens profissionais era um grande problema, uma vez que formação e experiência na área eram bastante escassas no Estado. A partir de 1998, esse quadro começou a mudar.
eStÚDioS De criaÇÃo
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o Egito e apontou os melhores estudantes de tecnologia do mundo em diversas áreas do conhecimento, como desenvolvimento de software, robótica, design e fotografia. A equipe formada por Edgar Neto (UFPE), Luciano José (Unicap), Victor Rafael (Unibratec) e Vinícius Ottoni (Cefet), e apadrinhada por Diogo Burgos, que ganhou a Imagine Cup de 2007, conseguiu a vitória apresentando o game Choice, um jogo de estratégia e quebra-cabeças, cujo objetivo é aplicar aos países
do mundo as oito metas do milênio da Organização das Nações Unidas (ONU). “Pretendemos que o jogador possa sair com algo em mente depois que largar o joystick”, afirma Edgar. Para o futuro próximo, o objetivo é tornar Choice (www.choicegame. net) um produto comercialmente viável, seja através da venda direta aos jogadores como um game independente, seja pela venda dos direitos a alguma empresa interessada. Os primeiros passos na produção de games em Pernambuco foram dados
Ao montar a primeira turma do CIn, o professor Geber Ramalho gerou o embrião que formou o atual setor de games do Estado, composto de 13 empresas e cerca de 150 profissionais, entre programadores, game designers e sound designers (profissionais que operam nas variadas etapas de produção de jogos eletrônicos). “A Jynx foi a primeira que surgiu da minha cadeira no CIn, e é a empresa mais antiga da área em Pernambuco. A Meantime é outra pioneira que ajudei a fundar e foi a primeira brasileira a explorar o desenvolvimento de jogos para celular”, aponta Geber, ressaltando ser o game o que existe de mais moderno em conteúdo audiovisual interativo. “É produto de ponta. Atualmente, os jogos estão mais próximos de serem filmes que softwares”. Hoje um dos estúdios mais importantes em Pernambuco, o Jynx se dedica as áreas de web,
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publicidade, jogos educacionais e inovação. Em seu quadro de funcionários, além dos programadores, existem profissionais formados em cursos como jornalismo e administração. O diretor de operações da Jynx, Rui Belfort, é exemplo da multidisciplinaridade demandada. Ele iniciou no estúdio como assessor de imprensa e, hoje, coordena os programadores e game designers, fazendo a ponte entre eles e apontando, com seu olhar externo, os problemas que as pessoas imersas nessas funções não conseguem enxergar. “Os fundadores da Bioware, um dos grandes estúdios de games do mundo, eram médicos. O criador dos personagens Shigeru Miyamoto, Mario e Zelda começou numa época em que não existiam nomes para definir os profissionais que surgiam”, reforça Alex Ferrer, game designer da Jynx. Enquanto a Jynx foca nos setores acima descritos, a Meantime mira seus esforços num dos campos dos games que mais cresce anualmente, o dos jogos para celular. Em junho último, a empresa lançou, na App
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Store, o game Whack a Roach, jogo casual para iPhone, aparelho que já conta com uma base de mais de 17 milhões de usuários em todo o mundo e vem sendo considerado por muitos como um verdadeiro console portátil. O Whack a Roach custa US$ 0,99. Também o Playlore é um estúdio de destaque em Pernambuco. Mas, ao contrário da Jynx e da Meantime, não trabalha essencialmente criando os games do início ao fim. Os artistas da Playlore desempenham o papel de outsourcing (terceirizados) de arte e animação, trabalhando para projetos de empresas maiores, desenvolvendoos de acordo com as necessidades das mesmas. São cenários, personagens, veículos, roupas e itens modelados em 3D para jogos de consoles de última geração, como o Playstation 3 e o Xbox 360. Atualmente a Playlore vem trabalhando em contrato com a Sony (Playstation 3) para desenvolver conteúdos gráficos para os jogos de multiplayer massivo online (que comportam centenas de jogadores), como Star Wars: Knights of the Old Republic e DC Universe.
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ensino médio desenvolver jogos como forma de aprendizado Parcerias público-privadas propiciam formação de programadores e artistas digitais, integrando o ensino tradicional à experiência eletrônicas
além dos projetos desenvolvidos
por universidades e empresas técnicas públicas e privadas, outra instituição se destaca na área de desenvolvimento de games em Pernambuco:a Fábrica de Jogos, do Centro de Ensino Experimental Cícero Dias. A escola de ensino médio é uma iniciativa da Secretaria Estadual de Educação em conjunto com o instituto de responsabilidade social Oi Futuro, e tem por meta oferecer um ensino de qualidade e diferenciado dentro do quadro das escolas públicas.
A escola oferece um curso profissionalizante que forma técnicos de nível médio em programação e arte para jogos digitais. A Fábrica de Jogos também mantém parceria com o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), que disponibiliza profissionais da área como professores. O intuito é não apenas formar novos programadores, mas, sim, integrar o ensino das matérias tradicionais à experiência tecnológica e vice-versa. “O que os alunos viram na aula de física
ou matemática também terão que aplicar aqui na Fábrica. Eles têm que estudar as matérias para os games”, afirma o professor e coordenador do projeto, Vinícios Garcia. “Já fizemos um jogo baseado em literatura. Pegamos um conto do livro Angu de Sangue, de Marcelino Freire, e criamos em cima dele”, reforça Marcos Vinicios, aluno da instituição. Já no campo do ensino especializado e privado, a Saga (School of Art, Game and Animation) é uma escola que trata da arte, animação e computação gráfica para games e cinema. A instituição tem 11 anos, conta com filiais em São Paulo, Salvador, Brasília e Recife e oferece cursos que vão do iniciante nas artes digitais (Start) até o profissional que deseja uma formação certificada internacionalmente (Sinapse). Mas, diferentemente do que se pode imaginar em um curso de computação gráfica, quem entra na Saga vai primeiro para a prancheta lidar com lápis e papel, antes de colocar as mãos no teclado e mouse. O gerente da Saga Recife explica a escolha: “Queremos formar
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um artista digital, que tem que ser, antes de tudo, um artista também longe do computador”. De acordo com Luiz Felipe, um profissional de arte digital com formação no nível oferecido pelo Sinapse e com experiência no mercado recebe no Brasil, em média, um salário de R$ 6 mil.
olimpÍaDa
06 GaBriel maChaDo/DiVUlGação
O projeto Olimpíadas de Jogos Digitais e Educação (OjE) também propõe os games como meio para motivar o aprendizado dos alunos e melhorar o ensino na rede pública do Estado. Fruto de uma parceria entre o Governo de Pernambuco e o Porto Digital, o OjE foi desenvolvido e lançado no final de 2008, em caráter experimental. Em 14 meses de gestação, o projeto contou com a participação de empresas como a Jynx, a Meantime, a Manifesto, o Cesar e a SoftexRecife, juntamente com a Secretaria Estadual de Educação, que discutiu métodos e aspectos pedagógicos do programa. “O OjE representou um olhar modernizador na gestão pública da educação e também um incentivo à cooperação entre as empresas”, comenta o presidente do Porto Digital, Francisco Saboya. O projeto foi lançado em fase definitiva em maio último, abrangendo 368 escolas em 126 municípios, com 2.228 equipes, 18.230 alunos da 7ª série ao 3º ano e 1.046 professores fazendo papel de aliados dessas equipes. A competição vai até setembro e premiará os primeiros colocados de cada série com notebooks e os vice-campeões com videogames Nintendo DS. As escolas das equipes campeãs também serão contempladas com projetores multimídia, e os professoresaliados receberão uma TV LCD de 26 polegadas. Os resultados serão obtidos através da pontuação que as equipes conquistarem nos enigmas, que têm como base questões do Enem, e nos seis minijogos, cujos desafios incluem desde limpar o rio Capibaribe até trilhar o caminho do sucesso com uma banda de rock. O aspecto motivacional é um dos principais pontos apontados pelo professor de psicologia da UFPE e consultor de projetos educacionais
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do Cesar, Luciano Meira: “O espírito das crianças não está mais nas escolas há muito tempo. Está na web, nas redes sociais, nos ambientes digitais”, opina. “Sem perceber, o participante das Olimpíadas está jogando um game casual, que tem na base um conhecimento educacional que servirá para obter sucesso no jogo”, completa Meira.
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O OjE é um projeto com investimentos da ordem de R$ 4,9 milhões. De acordo com Francisco Saboya, o OjE atenderá até 700 mil alunos, 01-06 tendo um custo médio de R$ 7 por aluno, no triênio 20092011. “É um investimento pequeno por uma ferramenta 07-08 pedagógica fantástica. Um valor baixo para o que esse projeto pode render a Pernambuco”, estima Saboya. tárcio fonseca
cÍcero DiaS
na escola, física, matemática e literatura são aplicadas aos games Saga
instituição oferece desde cursos para iniciação até cursos profissionais sr. huh
Jogo fará parte da próxima olimpíada de Jogos e educação (oje), em pernambuco
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CRiaÇÃo entre os instrumentos, roteiro e trilha sonora
Para verossimilhança dos games e imersão dos jogadores é necessário investimento em aparato técnico e em mão de obra que muitas vezes ainda não foram catalogados TEXTO Thiago Lins
a complexidade dos roteiros de
games pode assustar. Para se ter uma ideia, o roteiro de Grand Theft Auto (o popular GTA) tem mais de 700 páginas, mais do que o dobro de muitos longasmetragens de Hollywood. O roteiro entra na primeira das três fases de criação dos jogos, a seguir: game concept (ideia do jogo, descrições básicas, contexto, ambientação), game treatment (em que são inseridas as regras e fases, os objetivos, a mecânica básica da ação, o som e as animações, sendo também gerado o primeiro protótipo)
e game design (com a definição de toda a estrutura do jogo, com detalhes e arte lapidados e desafios e regras balanceados). “Roteiro não é só a história, o enredo; é um conjunto de informações técnicas necessárias ao desenvolvimento do jogo”, define Rui Belfort, diretor de operações da Jynx. Não há uma formação específica necessária para roteiristas de games. O que conta é escrever bem, assim como o conhecimento prático dos jogos pode ajudar nos procedimentos mais técnicos. Como no Brasil
ainda não há curso específico para o desenvolvimento de roteiros para jogos eletrônicos, muitas empresas fornecem o passo a passo até que o roteirista domine estruturas de jogo. Roteiros são essenciais, inclusive, para que os jogos tenham qualidades educativas: ainda que sejam malvistos pela maioria das pessoas, como passatempos alienantes, desimportantes à formação do indivíduo, é precisamente o caráter educativo dos games que tem estado em alta. “O jogo é uma mídia como outra qualquer. Como o rádio e a televisão, que podem ser usados para o bem ou para o mal. Um pai que culpa um jogo pela agressividade do filho está se eximindo da responsabilidade de escolher os games que o filho pode ou não jogar”, defende Belfort, lembrando que os jogos eletrônicos são acompanhados de selos indicativos de classificação, para os quais critérios como violência são determinantes para estimar a idade mínima do jogador. Para o diretor de operações, é enorme o potencial dos jogos eletrônicos para repassar conteúdo.
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“Isso porque se trata da mídia mais adaptada aos padrões de comunicação do século 21. Joga quem escolheu jogar, ao contrário do telespectador, que tem de assistir aos comerciais até que comece o próximo bloco do seu programa. As mídias eletrônicas tradicionais não dão poder de escolha ao usuário”, compara Belfort. Outra qualidade por ele ressaltada é a empatia gerada pelos games. O vencedor da competição internacional Imagine Cup, Edgar Neto, cita um exemplo de como os jogos eletrônicos podem transformar as atividades educativas. Em evento do qual participou, numa escola de segundo grau, ele conheceu um professor de física que se queixava de que alguns alunos atrapalhavam a aula conversando sobre o jogo GTA. Como não sabia do que se tratava, jogou o GTA, para conhecê-lo, e acabou aproveitando em aula os elementos físicos do jogo, como as colisões e frenagens, por achar que eram bem implementados. “Com isso, o professor resolveu o problema da dispersão em sala de aula”, afirma Edgar Neto, lembrando que o GTA “é um produto totalmente ‘não-educativo’, em que o jogador deve roubar carros, assassinar e traficar para se dar bem, mas pôde ser adaptado para buscar integração em sala de aula. Ou seja, o que você vai absorver de um jogo está sujeito ao seu ponto de vista”, acredita. Hoje, os jogos eletrônicos com fins educativos já viraram um nicho: são os “jogos sérios”, também chamados de advergames. Embora o gênero seja adotado majoritariamente em empresas e escolas, eles parecem indicar que também são “coisa de adulto”. O Sebrae acreditou nisso e já contabiliza mais de 130 mil inscritos no Desafio Sebrae, simulador criado pela empresa que testa as qualidades de gerenciamento do jogador: a capacidade de tomar decisões, de trabalhar em equipe e de buscar soluções. Completando dez anos neste semestre, o programa vai ganhar um livro comemorativo, em que serão contadas histórias vitoriosas, como a dos sergipanos Artur Fontes e Vitor Neri, que, ainda na faculdade, abriram uma empresa de consultoria em tecnologia, a 4 Pro, após vencer a etapa
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estadual do programa. “O mais importante foi a visão estratégica que o jogo nos proporcionou. Dimensionar o impacto das nossas decisões foi algo que livro algum poderia ter feito”, lembra Vitor, em entrevista por telefone.
Som na caixa
Tanto para criar um jogo quanto para usá-lo, é necessário imersão. Junto com a jogabilidade (a mecânica do jogo, seus comandos e movimentos), a trilha sonora é um fator determinante para essa
finalidade. A música passou a ser imprescindível aos jogos com a chegada dos consoles de oito bits (dado que determina a qualidade gráfica e a complexidade possível a esses sistemas), na década de 1980: o Master System, da Sega, e o “nintendinho”, da Nintendo; ambas, empresas japonesas. Antes desses consoles, a sonoplastia se resumia a ruídos breves, “barulhinhos”: caso do pioneiro Atari, parte da memorabilia dos que hoje estão na faixa dos 30 anos. Mas não é preciso fazer
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“o que conta é escrever bem”, diz o diretor de operações da Jynx sobre a criação de roteiros até um jogo politicamente incorreto, como GTA, pode ser usado para fins educativos
ideias originais dão fôlego aos games independentes
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os gráficos de Braid trazem referências explícitas às artes plásticas “o que você vai absorver de um jogo está sujeito ao seu ponto de vista”, afirma o vencedor da imagine Cup Jogo independente foi o mais vendido do ano em seu gênero
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parte dessa geração para já ter ouvido as músicas de abertura de clássicos como Super Mario ou Sonic, pois ambas são largamente executadas fora do âmbito dos gamers. A trilha ajuda a definir o público alvo, sendo também um dos indícios da popularidade que essa mídia vem conquistando na indústria
de entretenimento. “Eles estão tão intensamente presentes na vida das pessoas que é comum um compositor de trilhas para games ser chamado para fazer trabalhos para cinema e TV”, explica, por e-mail, o músico paulista Thiago Gobet, ele próprio um exemplo da ascendente convergência entre as mídias, tendo trabalhado para
gigantes do setor como a empresa de cinema Lucas Arts e a Nintendo, de games. Sobre esse assunto, ele não cita a si mesmo, mas Michael Giachino. O norte-americano ficou conhecido pela trilha dos jogos da série de guerra Medal of Honor, e acabou compondo a trilha do longa-metragem Missão Impossível 3. No exterior, esse é um mercado consolidado. No Japão, os compositores têm status de ídolos. Nos EUA, astros do calibre do vocalista Josh Homme, do grupo Queens Of The Stone Age, e do virtuose da guitarra Joe Satriani já desenvolveram trilhas para games. No Brasil, a situação ainda é incipiente, mas promissora. “A maioria dos compositores brasileiros tem muito mais serviços no exterior ou com produção musical fora dos games, como vinhetas e propaganda”, atesta Paulo Souza, produtor da Playlore, empresa que desenvolve arte de jogos para empresas como a Sony. Se os astros do rock emprestam seus acordes aos games, os astros do cinema emprestam vozes e rostos. O ator Bill Murray, protagonista de Ghostbusters, série cinematográfica de sucesso dos anos 1980, trabalhou no jogo que pode ser considerado uma continuação dos filmes, já que foi escrito pelos mesmos roteiristas, Dan Aykroyd e Harold Ramis, e sua ação se passa em
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1991 – dois anos após o lançamento de Ghostbusters 2. Mais recentemente, o diretor Sam Raimi (Homem-Aranha) anunciou que vai dirigir a adaptação para as telas de Castlevania, clássico do RPG. Ao que tudo indica Ghostbusters: The Video Game apenas inaugura uma tendência.
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Além dos arrasa-quarteirões, existe uma categoria de games que está ganhando destaque em meio ao público e à crítica especializada: os jogos independentes. Criados por pequenos e médios estúdios e sem grandes investimentos financeiros, os jogos indies tentam conquistar seu espaço apostando na inovação. É o caso de Braid, da Number None Inc., um jogo de plataforma 2D no qual os inimigos e cenários se movimentam de acordo com as ações do protagonista Tim. A mecânica de Braid é totalmente ligada à história do jogo. Tim tomou uma série de decisões erradas na vida e, por isso, perdeu sua princesa. Mas teve uma segunda chance e pode tentar salvá-la do castelo onde está aprisionada. O enredo é desenvolvido sob uma ótica poética, com textos introspectivos que discutem a repercussão que uma única atitude pode gerar na vida de uma pessoa. Há
Se os astros do rock emprestam seus acordes aos games, os astros do cinema emprestam vozes e rostos também um belo trabalho nos gráficos, com cenários e personagens que parecem pintados à mão e referências a obras de pintores como o pósimpressionista Van Gogh. Já Plants vs. Zombies, da PopCap Games, cativa pelo bom humor e roteiro absurdo. O jogador controla um exército de plantas que deve impedir que zumbis invadam a casa do seu dono. Num estilo de jogo conhecido como tower defense, o player deve posicionar estrategicamente as plantas para evitar o avanço dos zumbis até a casa. Tem até zumbi vestido de Michael Jackson, dançando a coreografia de Thriller para invocar novos companheiros das tumbas. “Os indies dão fôlego aos gêneros mais saturados, apresentando ideias novas e quase sempre originais. Isso prova que há bons profissionais independentes ao redor do mundo, inclusive aqui no Brasil, dispostos a
criar algo com potencial suficiente para dividir espaço com os principais títulos do mercado internacional”, avalia Vinícios Duarte, diretor do site Gamerview (www.gamerview.com. br). Ele também cita o sucesso do título independente Castle Crashers, jogo do gênero beat ‘em up (em que o personagem sai pelo cenário correndo e derrubando quase tudo o que aparece para continuar em ação), que vendeu mais que qualquer outro do estilo este ano. O que tem facilitado a chegada desses jogos aos usuários são as compras online pelo programa de distribuição Steam, da Valve, e pela rede social Live, da Microsoft. Se antes era preciso que existisse uma distribuidora interessada no produto para que sua versão física fosse enviada por correio a compradores pelo mundo, agora basta a sua publicação nesses sistemas para que o usuário adquira-o por compra em cartão de crédito e faça o download legal do conteúdo por preços bem menores. É assim que os pequenos estúdios escoam sua produção e conseguem recursos para novos projetos.
@ continenteonline Baixe o jogo Choice, premiado na Imagine Cup 2009, no site www.revistacontinente.com.br
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Há 30 anos, era sancionada a Lei da Anistia, concedendo perdão oficial aos cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da edição do Ai - 1
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ANISTIA A campanha pela volta dos exilados
inÍcio
no dia 1° de novembro de 1979, os primeiros beneficiários pela lei de Anistia começavam a voltar ao país. Arquivo cEdEm unEsp/divuLgAção
a palavra anistia tem origem
grega e quer dizer “esquecimento”. Juridicamente, trata-se do perdão concedido pelo poder público, que declara impuníveis delitos praticados até determinada data por motivos políticos ou penais, com a anulação das condenações e das perseguições. Em 28 de agosto de 1979, o presidente João Batista Figueiredo sancionava a lei nº 6.683, que ficaria conhecida como Lei da Anistia, proposta pelo próprio governo e aprovada pelo Congresso, concedendo o perdão oficial a todos os cidadãos punidos por atos de exceção desde 9 de abril de 1964, data da edição do AI-1. Antes, ele já havia rejeitado a proposta do partido de oposição MDB, que previa a anistia ampla, geral e irrestrita. Já em 1968, alguns jornalistas, estudantes e políticos começavam, ainda timidamente, a pedir a anistia no Brasil para aqueles que estavam sendo perseguidos pela repressão militar. Com o tempo, o movimento foi agregando adesões de populares, e a campanha, no seu momento mais efervescente, pode ser comparada às manifestações pelas eleições diretas, no que diz respeito tanto à participação popular quanto ao engajamento de intelectuais e artistas. Durante esse período, as formas de propaganda pró-anistia eram variadas e criativas, com destaque para o trabalho dos artistas gráficos: pintores, desenhistas, chargistas e caricaturistas que reivindicavam, através de imagens, a volta dos exilados
con ti nen te#44 políticos. No dia da votação da Lei da Anistia o plenário estava lotado e cerca de três mil pessoas participavam de um ato público pela anistia irrestrita. Dentro do Congresso Nacional, as galerias eram tomadas pelos populares que vaiavam cada discurso dos representantes da Arena – partido do governo. Por 206 votos contra 201, foi aprovada a anistia “aos crimes políticos praticados por motivação política.” No dia 1° de novembro de 1979, os primeiros beneficiários da Lei de Anistia começavam a voltar ao País. Entre as pessoas beneficiadas pela lei, estavam os ex-governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, e os ex-líderes estudantis Vladimir Palmeira e José Dirceu.
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Entre os signos recorrentes na comunicação visual do período estão aqueles que remetem ao encarceramento, como grades, gaiolas e arames farpados, presentes nos cartazes reproduzidos nestas páginas
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A campanha pelo perdão aos presos políticos se deu também em outros campos artísticos, como a música, as artes plásticas e a literatura, com o mesmo tom de apelo, denúncia e esperança das artes gráficas. Entre presos, cassados, banidos, exilados ou simplesmente destituídos dos seus empregos, a Lei de Anistia beneficiou 4.650 pessoas no Brasil
Um dos palanques da campanha pela anistia foi a produção gráfica do período, às vezes enfática, às vezes lírica
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burle marx O homem que pensou a cidade como um jardim Nos 100 anos de nascimento do arquiteto-paisagista, Pernambuco pode prestar-lhe uma homenagem ao tornar patrimônio cultural obras de sua autoria
no início da década de 1990,
a arquiteta e atual coordenadora do Laboratório da Paisagem da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Rita Sá Carneiro, fez um doutorado na Inglaterra. Quando aportou no campus da Oxford Brookes University, a então recém-chegada passou por um constrangimento inesperado, mas que seria decisivo para uma guinada no seu foco de estudo e opção profissional. À época, os colegas europeus festejaram o ingresso da brasileira, comemorando o fato de ela ser conterrânea de um dos maiores arquitetos-paisagistas do mundo, o paulista Roberto Burle Marx. Só havia um problema: Ana Rita, como a maioria dos estudantes de arquitetura pernambucanos formados nos anos 1980, conhecia pouco, ou quase nada, sobre a vida e obra do homem que é reconhecido como um dos mestres do modernismo. “Foi uma surpresa descobrir, lá fora, o respeito à obra de Burle Marx. Obviamente, já tinha escutado falar nele; sabia que algumas praças recifenses, como a de Casa Forte, eram projetos seus. Mas confesso que durante todo o período em que fiz a graduação na UFPE, jamais sua obra foi estudada. Até hoje, não existe no Brasil, no âmbito acadêmico, especialização em paisagismo. Os profissionais que
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TEXTO Daniele Romani FOTOS Tiago Lubambo
os jardins de Burle Marx (foto) fazem parte da paisagem dos cinco continentes, o que denota o seu prestígio como paisagista desejam fazê-la são obrigados a estudar em outros países. Portanto, quando cheguei à Inglaterra, em 1991, não tinha noção da importância do conjunto de seu trabalho. Foi chato, pois eu era brasileira e me senti constrangida”, conta a profissional. Uma década e meia depois, Ana Rita redimiu-se: é considerada uma
das maiores autoridades no que diz respeito ao trabalho paisagístico do pintor e arquiteto paulista. Por ocasião dos 100 anos de seu nascimento, comemorados no dia quatro deste mês, ela lança a cartilha Os jardins de Burle Marx no Recife, uma publicação destinada, principalmente, a estudantes e professores. Na oportunidade, ela também anuncia que, após anos de pesquisa e levantamento de campo, as seis praças documentadas na cartilha serão tombadas e consideradas patrimônio cultural estadual. Ela aguarda, ainda, posicionamento do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que as praças sejam consideradas patrimônio nacional. “Enviamos toda a documentação e inventário em junho passado. A expectativa é que o tombamento federal seja anunciado até o final do ano”, situa Ana Rita. No âmbito estadual o processo está em fase final. “A proposta de tombamento já foi encaminhada ao Secretário de Educação, Danilo Cabral, e estamos esperando deferimento. Quando ele se pronunciar, a medida será imediatamente publicada no Diário Oficial”, explicou a arquiteta Neide Fernandes, da Diretoria de Preservação Cultural da Fundação de Patrimônio Histórico e Artístico
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con especial ti nen te#44 de Pernambuco (Fundarpe). “O tombamento é uma garantia de que o bem será protegido”, destacou. Tanto a cartilha quanto o trabalho de documentação para que as praças pudessem ser tombadas foram fruto de um trabalho conjunto de Ana Rita e das também arquitetas Fátima Mafra e Aline Figueirôa – todas representando o Laboratório da Paisagem –, com a parceria da Prefeitura do Recife e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e têm seu foco centrado nas seis praças recifenses que foram projetadas ou receberam intervenções do paisagista: a de Casa Forte, ou da Vitória Régia, como também é conhecida; a Euclides da Cunha, ou dos Sertões, na Madalena; a do Derby, no bairro homônimo; o conjunto Praça da República e jardim do Campo das Princesas, instalados, respectivamente, à frente
três preocupações norteavam os projetos iniciais de Burle Marx: a ecologia, a arte e a educação e no interior do Palácio do Governo de Pernambuco; a Ministro Salgado Filho, em frente à antiga edificação do Aeroporto dos Guararapes, no bairro do Ibura; e a Farias Neves, também chamada Praça de Dois Irmãos, por estar ao lado do Jardim Zoobotânico. A escolha de apenas seis praças entre as dezenas de espaços que têm a assinatura de Burle Marx no Recife é defendida com os seguintes argumentos. “Nosso trabalho é pioneiro, e está sendo feito por etapas. Ninguém antes havia realizado um levantamento de tamanho porte. São mais de duas dezenas de projetos, públicos e privados, mas não podemos abarcar todos de uma só vez. Escolhemos as mais representativas, as que estavam em melhor estado de conservação e as que foram descaracterizadas, mas que ainda podiam ser recuperadas”, explica Ana Rita.
Segundo ela, a Praça de Casa Forte foi eleita por serem nela visíveis o traçado, a mão e a concepção de Burle Marx. “É a mais intacta; temos que fazer apenas algumas alterações na vegetação”. A Euclides da Cunha passou por uma restauração há cerca de cinco anos, e voltou a ficar bem próxima do projeto original. No caso do Derby, da Praça da República e do jardim do Campo das Princesas, as intervenções propostas por ele se mantiveram parcialmente. A única em situação crítica é a Salgado Filho, que se encontra em total estado de abandono, mas cuja recuperação é considerada viável. “Optamos por recuperá-la por se tratar de um projeto inteiro dele, e que ainda é possível resgatar”, explicou.
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Os que desconhecem a obra de Burle Marx certamente se surpreenderão ao descobrir que dezenas de praças, nas quais brincavam quando eram crianças e que fazem parte da rotina de muitos bairros e comunidades, têm a assinatura do paisagista. As seis retratadas na cartilha são apenas uma pequena parte das obras recifenses produzidas pelo arquiteto, e que foram desenvolvidas em três décadas distintas: as de 1930, 1950 e 1980. Os livros de história sobre o Recife não registram o fato, mas Burle Marx chegou aqui em 1934, quando tinha apenas 25 anos. Durante três anos dirigiu o Setor de Parques e Jardins da Diretoria de Arquitetura e Urbanismo do Governo do Estado de Pernambuco, então sob a coordenação do arquiteto carioca Luiz Nunes. “Quem o trouxe foi o governador Carlos de Lima Cavalcanti, que pretendia mudar a paisagem recifense, dotando-a de ares modernistas. O convite surgiu depois que o governador esteve no Rio de Janeiro e, visitando um casal de amigos, conheceu um jardim projetado por Burle Marx, que, não por acaso, tinha sido aluno de Lúcio Costa na Escola de Belas Artes. Ele só foi embora com a instauração do Estado Novo, que via com suspeição todos aqueles que se vinculassem à arte moderna, vários dos quais tinham ligações com o Partido Comunista”, conta Fátima Mafra.
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A Praça de Casa Forte, construída em 1935 no antigo engenho Casa Forte, foi a primeira praça pública projetada e construída pelo arquiteto. As organizadoras da cartilha afirmam tratarse do primeiro jardim moderno brasileiro, e também o pioneiro na apresentação dos três eixos que norteavam os projetos iniciais de Burle Marx: o higiênico, o educativo e o artístico. “O higiênico, que hoje poderia se chamar de ecológico, tinha a ver com o crescimento das cidades, com a industrialização acelerada, presentes no início do século 20, e com a ausência de área verde nas metrópoles. Ele queria que suas praças fossem um lugar onde os trabalhadores pudessem descansar, relaxar; que funcionassem como uma espécie de pulmão da cidade. Diria que foi um visionário nesse sentido”, explica Fátima Mafra. Já o aspecto educativo era aplicado para que as pessoas conhecessem a flora
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Página anterior 01 BeM-estar Paisagista queria que suas praças fossem um espaço para descanso e reflexão Nestas Páginas 02 Modelo A Praça de Casa forte é considerada o primeiro jardim moderno brasileiro
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da sua região ou país. Na Praça de Casa Forte, por exemplo, a vegetação tropical que rodeia os três lagos traz espécies da Mata Atlântica e da Amazônia e plantas exóticas de outros países com clima tropical, como a Índia. O mesmo conceito pode ser conferido na Euclides da Cunha, onde estão presentes nove famílias de cactos, encontradas no sertão e agreste brasileiros. Ele queria ensinar o brasileiro e, especificamente, o recifense, a conhecer seu patrimônio natural e diversidade ambiental. O eixo artístico, continua Fátima Mafra, reflete sua formação como pintor modernista. “Se você observar as plantas baixas das praças, os projetos desenhados por Burle Marx, vai pensar que são quadros, tamanha a preocupação com a perspectiva e as cores das plantas, e com a textura dos troncos e copas, às vezes mais abertas, outras mais fechadas, algumas deitadas, outras em pé. Ele fazia jardins como quem pintava”, observa. Na década de 1930, Burle Marx projetou quatro praças públicas no Recife: além das de Casa Forte e Euclides da Cunha, também são obras suas a Praça Dezessete e a Arthur Oscar,
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con especial ti nen te#44 Vinte anos depois, na década de 1950, construiria as praças Salgado Filho e Farias Neves, cujos projetos, destaca Fátima Mafra, se diferenciam dos anteriores. “Nos dois casos, as praças são construídas como se fossem foyers do Aeroporto e do Jardim Zoobotânico”. Na década de 1980, o arquiteto ainda viria ao Recife, dessa vez para projetar a Praça Burle Marx, aberta à visitação no ateliê de Francisco Brennand, na Várzea, e construir o Cemitério Parque das Flores, no Sancho. Ele também fez um projeto para o Parque Memorial Arcoverde, na divisa entre Recife e Olinda, que não foi totalmente concretizado. Hoje, é grande a expectativa da equipe do Laboratório da Paisagem do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE com relação ao tombamento das praças. Sobretudo por causa do tempo e do empenho consumidos no levantamento de todos os detalhes dos espaços a serem tornados patrimônio cultural. “Verificamos o mobiliário das praças, as espécies existentes atualmente, as espécies sugeridas por Burle Marx no projeto original, as mudanças que ocorreram com o tempo; só para citar alguns estudos. Estamos finalizando as pesquisas sobre o entorno das praças e o levantamento
com o tombamento das seis praças de Burle Marx, será possível adotar medidas imediatas de conservação
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ou do Arsenal da Marinha. A primeira fica próxima ao antigo Grande Hotel, no bairro de São José; a segunda, em frente à Torre Malakoff, no Bairro do Recife. Ambas tiveram seus projetos descaracterizados. O caso mais crítico, entretanto, é o da Artur Oscar, que se encontra totalmente desvirtuada. “Era uma praça cuja vegetação, por se encontrar exposta ao vento do mar, deveria ser de espécies de pequeno porte, típicas da restinga. Hoje não se vê qualquer traço do projeto de Burle Marx; plantaram
vegetações não condizentes, entre elas, duas palmeiras imperiais. Por esse motivo, não foi incluída na cartilha. Lastimamos dizer que será quase impossível recuperá-la”, enfatiza Mafra. Burle Marx fez, ainda, pequenas intervenções em praças construídas no século 19 e no início do século 20, como as do Derby e da República e os jardins internos do Palácio do Campo das Princesas, além da Maciel Pinheiro e da Chora Menino, ambas hoje descaracterizadas.
do uso, pois elas não são ilhas; têm de ter um polígono de preservação rigorosa”, explica Ana Rita Sá Carneiro, que é também membro do Comitê Internacional de Jardins Históricos e Paisagens Culturais. Ela garante que o Laboratório, em parceria com a Prefeitura do Recife e o CNPq, vai continuar estudando os outros projetos recifenses de Burle Marx para que, futuramente, também eles sejam tombados em nível estadual e federal. Os efeitos práticos do tombamento se darão, principalmente, na captação
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de recursos para a manutenção das praças. E na adoção de medidas imediatas para sua conservação, para evitar que sejam feitos mais estragos além dos constatados. “De acordo com a Carta de Florença, uma carta patrimonial para jardins históricos formulada em 1981, o processo vai implicar a criação de uma sementeira para o fornecimento das vegetações pertinentes que ele indica para cada praça. É um plano de manejo, pois os jardins são efêmeros e têm que ser renovados”, diz a arquiteta. Ela ressalta que também serão necessários treinamentos para os jardineiros responsáveis e para os técnicos. “É preciso pessoal especializado para cuidar desse patrimônio. Afinal de contas, tratase de monumentos vivos”, explica Ana Rita, que acredita que, a partir dos tombamentos estadual e federal, as praças passarão a ser objeto de estudo dos ensinos fundamental e médio. “Os alunos pernambucanos vão ter algo a mais para aprender e de que se orgulhar”.
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Na Praça euclides da Cunha, estão presentes nove famílias de cactos e a estátua criada por Abelardo da Hora No derby, o paisagista alterou os traçados retos e manteve o estilo art noveau do mobiliário restaurada em 2008 pela prefeitura local, a praça mantém vegetação abundante, mesmo com o intenso fluxo de veículos no entorno
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praça De exclusiva da nobreza a espaço de passeio público Na história do urbanismo, esses espaços vêm sendo dedicados ao cultivo de espécies vegetais, ao descanso, à exibição e também à política
durante a ocupação holandesa,
entre os anos de 1630 e 1654, Recife teve o seu primeiro jardim. A construção, em torno do Palácio de Friburgo, sede do governo do conde João Maurício de Nassau, era um dos recantos mais belos da Mauritsstad (Cidade Maurícia), com criadouros de aves, lagos com viveiros de peixes, coelhos, espécies ovinas e bovinas, hortas, e muitos exemplares botânicos. Além de ser um espaço contemplativo, de descanso e diversão dos conquistadores holandeses.
“O Palácio de Friburgo, completamente destruído pelos portugueses, ficava localizado onde hoje está o Palácio do Campo das Princesas. Estudos da professora Liana Mesquita, que é uma das maiores especialistas no período holandês, apontam que, apesar de não haver mais vestígios das edificações, os seus traçados permaneceram. Os jardins, neste caso, tinham caráter privado. Não eram acessíveis ao público; serviam para a contemplação e o deleite de Nassau e sua corte, e também para
o abastecimento do palácio. Mas foi o pioneiro”, explica a arquitetaurbanista Aline Figueirôa, cuja tese, apresentada ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, versa sobre a história do paisagismo no Recife entre 1872 e 1937. Sem tradição na construção de áreas para o lazer público, os portugueses criariam, no final do século 18, os jardins botânicos. “Na capital do Pará, Belém, foi criado um horto em 1796, e em 1811 foi inaugurado, em Olinda, o Horto d’ el Rey. Eram espaços amplos, repletos de espécies animais e árvores, mas tinham um caráter estritamente científico e comercial, ou seja: serviam para que os colonizadores estudassem as plantas e seus efeitos, e para aprender qual seria a melhor forma de comercializá-las”, diz Aline. Somente em 1872, após a passagem da família real pelo Brasil e a instauração do Império, é que a cidade ganharia seu primeiro espaço público de lazer. O local? Novamente a atual Praça da República, chamada então de Jardim do Campo das Princesas, alusão à passagem das princesas pelo
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Recife. “Todos os jardins construídos nessa época eram dedicados às figuras reais. Com a proclamação da República, os nomes seriam trocados para homenagear os heróis e personagens republicanos”, conta. Na sua tese, Aline Figueirôa convencionou chamar de jardins românticos às praças criadas nesse período. “Procurou-se reproduzir nos jardins a paisagem dos países de clima temperado, com árvores e flores européias e palmeiras imperiais, símbolo de identificação com a Corte e de participação na nobreza do Império”, explica a pesquisadora. Segundo ela, a criação dos jardins é também fruto de um Estado laico. “No Império, o gosto de ir à rua se estabeleceu. As mulheres começaram a sair de casa, as concessões dos serviços públicos (iluminação, bondes etc.) se disseminaram, e os jardins foram uma dessas melhorias, uma conquista da sociedade”, explica. Cercados por grades, eram ornados de chafarizes, esculturas neoclássicas em mármore ou ferro (influência das arquiteturas inglesa e francesa da época) e coretos. “Nos jardins românticos, as pessoas da classe alta – por esse motivo, as grades: para que os negros e a plebe não pudessem entrar – iam fazer a retreta, passear, ouvir as bandas dos coretos, se mostrar, e, principalmente, se integrar com a natureza. Esse era o sentido maior do espaço”. Nessa época, foram construídas as praças Maciel Pinheiro (1875, então chamada Conde d’ Eu), Dezessete (à época, Praça D. Pedro II) e Visconde de Mauá, que apresentavam as mesmas características mobiliárias e paisagísticas do Campo das Princesas. Com a chegada do século 20, novas mudanças sociais. E novos projetos para os jardins recifenses. “As primeiras décadas do século foram caracterizadas por intervenções urbanísticas calcadas em campanhas de higienização, embelezamento e expansão urbana, e em ações voltadas para questões portuárias e de habitação”, explica a arquitetaurbanista. É na década de 1920, durante a gestão do governador Sérgio Loreto e do prefeito Antônio de Góes, que a cidade passa por um amplo processo de urbanização, com a
paisagem efeitOs DO crescimentO DesOrDenaDO O crescimento desordenado e acelerado é o mal do Recife do século 21. A cidade está sendo devastada pela especulação imobiliária desenfreada, pela invasão de carros nas ruas estreitas, pelo abate de árvores seculares e, principalmente, pela derrubada dos quintais residenciais para dar lugar a prédios e estacionamentos. O alerta é do arquiteto-paisagista Luiz Vieira, único profissional recifense com especialização em paisagismo, obtida em graduação na Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. “A cidade das árvores e dos quintais, das calçadas largas para os passeios, dos finais de tarde silenciosos, ficou no passado. Temos hoje uma metrópole pasteurizada, com bairros descaracterizados e espigões brotando no lugar de antigos sobrados e casas. Além de uma paisagem ‘invisível’, composta por fios, postes, placas e outdoors, pelos quais passamos sem nos darmos conta, e que só aumentam a poluição visual e a sensação de mal-estar”, diagnostica o arquiteto, que trabalhou com Burle Marx na execução do Parque Memorial Arcoverde. O profissional chega a qualificar o Recife como uma das cidades mais “sufocantes”, em termos de poluição sonora e visual, pela ausência de grandes parques e espaços verdes. “Até em São Paulo existem mais espaços disponíveis”, diz o arquiteto, que
acredita existir uma saída para o crescimento “insustentável” da cidade: a realização de concursos públicos, nacionais e internacionais, convocando jovens e antigos profissionais a redesenharem e criarem novas propostas urbanas para a cidade. O arquiteto explica que a saída ideal, entretanto, passaria pelo processo de renaturalização, movimento adotado por países europeus e norte-americanos, no qual projetos arquitetônicos recuperam o que foi depredado, resgatando o traçado original de canais, reflorestando áreas devastadas e, principalmente, recuperando para as pessoas e para a natureza o espaço ocupado pelos carros. A arquiteta-urbanista Lúcia Veras também denuncia os abusos da verticalização do Recife. Ela trabalha numa tese de doutorado sobre a perda de identidade da cidade, em especial após a construção de dois arranha-céus no Cais José Estelita, conhecidos como torres-gêmeas. “Um dos preceitos do paisagismo é o conceito de horizonte, pois o olhar precisa de extensão. A construção das torres próxima a uma área histórica como o bairro de São José provoca uma total interferência na paisagem que conhecemos. E o pior: devido ao tamanho das edificações, perdemos a escala de referência das torres das igrejas seculares, perdemos a paisagem de cartão postal que tínhamos olhando a paisagem do cais. A partir de agora, estando no Centro, próximo a São José, Bairro do Recife e adjacências, de onde se olhe, elas estão lá”, aponta. Danielle RoMani
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A fonte foi a principal intervenção do paisagista na praça inaugurada em 1872
Nesta Página 08 diálogo
burle marx manteve os bancos e estátuas do projeto original
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croqui
Proposta do paisagista para a euclides da Cunha (1935)
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polêmica abertura da avenida BeiraMar, em Boa Viagem, marcando a expansão das suas fronteiras em busca de novas áreas de lazer. “Os jardins públicos passaram a responder, essencialmente, a uma função higiênica; por isso os denominei, na minha tese, jardins salubres, preocupação marcante de várias administrações e intendentes municipais. O projeto paisagístico mesclava aspectos dos jardins franceses e ingleses, com a rigidez do traçado como expressão do domínio da natureza pelo homem”, explica Aline. Os jardins anteriores tinham vegetação pouco densa. Esses novos começam a ter árvores mais frondosas. Os coretos e as fontes permanecem, os passeios também, mas as estátuas agora mostram figuras antropomórficas, bem ao estilo art nouveau; as peças passam a ser feitas em cimento armado e, um detalhe importante, as grades deixam
de existir. A praça e os parques passam a ser, realmente, da comunidade. Todos têm acesso livre ao local. A principal construção desse período é a Praça do Derby. Outras obras importantes são os então parques do Entroncamento, do Paissandu (Chora Menino) e o Sérgio Loreto. “O jardim romântico, mais intimista, se torna agora monumental. E as praças mudam de nome, passam a ser parques, que, etimologicamente, quer dizer jardim público”, diz Aline, que registra: a partir da década de 1930, com a chegada de Burle Marx, tem início a criação do jardim moderno, com a preocupação em torno dos eixos higiênico, artístico e educativo. Danielle RoMani
@ continenteonline Conheça as seis praças do paisagista Burle Marx que devem ser tombadas como patrimônio cultural no site www.revistacontinente.com.br
Artigo
ana rita sá carneirO um nOtável espíritO criaDOr Os jardins do artista Roberto Burle Marx (1909 - 1994) fazem parte da paisagem dos cinco continentes. Isso mostra o grande prestígio que ele alcançou apresentando ao mundo a flora brasileira. De fato, a paisagem foi algo que o fascinou como expressão dos seres vivos na natureza. E tudo começou com os ensinamentos de sua mãe, a musicista pernambucana Cecília Burle, que dedicava grande amor às plantas. Com essa premissa, e com conhecimentos de história, botânica, arquitetura, pintura e música, adquiridos no Brasil e na Alemanha, Burle Marx assimilou a fisionomia do Recife, de sobrados, mocambos, muita vegetação, palafitas e águas, e criou formas para os jardins, segundo princípios de cor, harmonia, contraste, unidade e ritmo. E, assim, surgiu o jardim como uma “natureza ordenada”, pictórico, cuja linguagem “começa quando as palavras perdem a razão de ser”, como ele afirmou. O jardim pictórico de Burle Marx foi inventado no Recife em 1935, alimentado pela poesia amiga de Joaquim Cardozo, pela pintura de Cícero Dias, pelos comentários de Clarival do Prado Valadares e pelo apoio incondicional do arquiteto Luiz Nunes. O primeiro que projetou como chefe do Setor de Parques e Jardins do Governo do Estado, o jardim de Casa Forte, consistiu em um gesto artístico que associou a paisagem inglesa de plantas aquáticas do Kew Gardens e a paisagem americana da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica, distribuídas no entorno de três espelhos d’água, sob a orientação do botânico Adolpho Ducke. Seus desenhos em nanquim mostram o jardim da imaginação de tom paradisíaco e ao mesmo tempo real, de fácil identificação vegetal. Apesar
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do traçado rígido que responde ao terreno, a proposta da escultura de uma índia no lago central denota sua admiração pelo personagem primitivo – a mesma admiração que nutriu pelos tipos populares do Recife, a quem dedicou pinturas coloridas de forte expressão. Sua curiosidade o guiou no descobrimento das plantas e da arte popular, quando realizava as suas expedições em companhia de botânicos e arquitetos pelo interior do Brasil, no sertão nordestino, na Amazônia e no Vale do Jequitinhonha, entre outros lugares. Logo em seguida, Burle Marx realizou a Praça Euclides da Cunha, com plantas da caatinga do semiárido nordestino, que ficaram na sua memória desde a visita ao Jardim Botânico de Dahlem, feita no período de dois anos em que residiu em Berlim, antes de vir para o Recife. A proposta de representação da paisagem estigmatizada do sertão consolidou o jardim brasileiro num gesto político e educativo baseado na leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha. As fileiras de árvores associadas às cactáceas e à escultura de um homem de tanga enlaçam o edifício da estação elevatória de esgotos, de 1909. Recebeu severas críticas de intelectuais como Mário Melo, que se
referiu à “sertanização dos mangues do antigo viveiro da Madalena”, segundo o Jornal Pequeno de 03/03/1936. No entanto, o Diário da Tarde de 14/03/1935 afirmou que “o seu projeto da futura praça Euclydes da Cunha é typico, é nosso, é jardim pernambucano e brasileiro. Não é caricatura de praça franceza ou americana”. Ampliando o conhecimento sobre botânica, indicou plantas marinhas para a Praça Artur Oscar e novas espécies de palmeira e de plantas da restinga para a Praça do Derby, para a Praça da República e para o jardim do Campo das Princesas. Volta ao Rio de Janeiro em 1937, deixando o Recife com certa mágoa e com fama de comunista, tendo sido alvo de uma campanha por ter plantado cana da índia vermelha na Praça de Casa Forte (revista Vogue, 02/1987). Juntou-se a Le Corbusier, Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, fazendo uma composição de muita cor para os jardins do Ministério de Educação e Saúde (1938), e, em Pampulha, iniciou projetos de grandes áreas (1942). Parece que esse momento foi crucial, e o artista, expressando traços de Van Gogh, Picasso e Paul Klee, deflagrou uma série de exposições individuais (1941). A dramaticidade de cores e formas exterioriza-se espacialmente
na década de 1950, no Parque Del Este, em Caracas; no Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro; e na Praça Salgado Filho e na Praça de Dois Irmãos, no Recife. A construção dos jardins dos palácios em Brasília coincidiu com a premiação Fine Arts Medal do Instituto de Arquitetos Americanos de Washington (Lemos e Schwarzstein, 1996). O motivo indígena ressurge na calçada de Copacabana, a partir de 1970, pouco depois de Burle Marx haver recebido o título de membro honorário do Instituto de Arquitetos Paisagistas de Londres, em 1968. Por volta de 1980, o paisagista concluiu vários projetos nas capitais nordestinas, ao lado do casal de arquitetos e amigos Janete Costa e Acacio Gil Borsoi, e recebeu, em 1982, a grande medalha de ouro da Academia de Arquitetura de Paris, além do título de Doutor Honoris Causa concedido pelo Royal College of Arts da Inglaterra, que, em 1988, considerou-o o maior paisagista vivo do mundo, na sua exposição do Royal Botanic Kew Gardens. A criação artística aconteceu ao mesmo tempo para os jardins e para as pinturas, as esculturas, as tapeçarias, as jóias e os cenários, ou seja, uma vasta produção, de reconhecimento grande no exterior e pequeno no seu próprio país. Mas foi o paisagismo e a pintura que permaneceram mais fortes e o lançaram ao mundo com projetos em mais de 15 países e em mais de 20 estados brasileiros. Além de tudo, esse artista completo, nascido em São Paulo no dia 4 de agosto de 1909, é considerado por muitos um verdadeiro humanista, pelo modo como convivia com sua equipe de trabalho, como se fosse uma família. Seus jardins enriqueceram a paisagem urbana, do ponto de vista não só da arte dos jardins, mas também da arte da cidade. Para homenageá-lo almejase o tombamento de seis jardins do Recife, e é o orgulho dessa cidade que é reforçado com uma frase publicada pelo mesmo Diário da Tarde: “O Sr. Burle Marx, apesar do seu nome allemão, é o mais brasileiro dos nossos profissionais da especialidade a que elle se dedicou com notável espírito creador e originalidade de processos”.
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madri a Espanha de almodóvar existe? O cineasta criou uma imagem da cidade que equivale ao que Woody Allen fez com Nova York e Fellini, com Roma
divulgação
texto Fernando Monteiro
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e se, acaso, realmente existe essa “Espanha” particular
de um cineasta particularíssimo, não deveria ela estar (na febricitante Madri, pelo menos) toda de máscaras em rostos de Carmens Mauras e outras elegantes senhoras – disfarçadamente al borde de un ataque de nervios –, face ao novo noticiário da pandemia de uma gripe que já foi “espanhola”? Eu cá não vi nenhuma mulher com tal adereço tão pouco estético (para as mujeres ocidentais não acostumadas com a tal semi-burca da saúde em risco). De junho a julho, passeei pela Calle de Alcalá e arredores, por teatros e restaurantes, parques e praças com águas espirrando nas fontes de inspiração clássica, e tudo que vi foi a máscara alegre – ou quase – do mundo pop da era do celular triunfante comunicando-se naquele espanhol galopante das mulheres ainda mais altas nos saltos, altíssimos, de sapatos de grife empoeirados pela Madri sempre em constantes obras. Aliás, nunca vi a capital alguma vez livre de tapumes e cartazes com escusas educadas – sendo que, atualmente,
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imponência
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carmem maura
em plena Plaza de cibeles, no centro de Madri, o edifício sede dos correios se impõe, compondo um dos cartões postais da cidade Sua personagem (Pepa) em Mulheres à beira de um ataque de nervos é uma das muitas madrilenhas criadas pelo diretor Pedro almodóvar
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formam um cinturão de graffiti, anúncios de show e de teatro em torno do edifício dos Correios e nos arredores do solene centro da cidade na qual Pedro Almodóvar aportou com 17 anos, no final da década de 1960. Primaveril, ele chegava de Calzada de Calatrava, município da província de Ciudad Real (comunidade autônoma de Castilla-La Mancha), o povoado de sua aprendizagem da Espanha profunda e não alterada pela metrópole de mais de três milhões de habitantes que é personagem das mais importantes nos filmes almodovarianos mais típicos etc. Madri, naquela altura, havia decepcionado o rapaz como uma noiva vestida de ambíguo cinza num casamento de aldeia: “Ela não se parecia com o que eu tinha estado a sonhar, de longe: era opaca, gris, pouco acolhedora” – escreveu o cineasta, no Diário (publicado em 1993). Talvez essa “Espanha” de Almodóvar
seja mais propriamente Madri e sua área metropolitana, desde quando a capital tentacular e varada de tantas transformações nas últimas décadas foi sendo apresentada ao menino Pedro no envoltório das recordações da mãe: “Minha mãe falava de uma Madri da sua juventude, e seguia recebendo catálogos das Galerias Preciados a oferecer produtos de beleza e utensílios domésticos fotografados em preto e branco. Quando, afinal, ela comprava algo – que chegava pelo correio, cheio de selos da Espanha de Franco –, parecia que aquelas mágicas encomendas traziam o perfume do interior das saias de alguma imperatriz da Áustria passeando pela vastidão do jardim do Buen Retiro”... Sissi? Como pôde uma antiga imagem de filmes dos tempos de Pablito Calvo (Marcelino, Pão e Vinho, lembram-se?) vir mudando até chegar à modernidade pop da ruiva Penélope
Cruz de Los abrazos rotos, último filme de Pedro Almodóvar, no qual a Penélope mítica está num filme – Chicas y maletas – dentro do filme? Perguntas, perguntas. Madres, imperatrizes, rainhas, cortesãs de Goya, falsas ciganas da Plaza Mayor lendo a buena (jamais a mala) sorte de turistas saídos tapas das Cuevas de Luis Candelas e outras cuevas – foi por meio delas, passando da tradicional para a “nova” alma feminina madrilenha, que Almodóvar conseguiu criar, no cinema, uma imagem da maior cidade da Espanha que equivale ao que Woody Allen fez com Nova York e Fellini fez com Roma, vindo de Rimini.
DaS muLHereS
Madri é mujer – descobriu, um dia, o provinciano (como Federico) vindo pela estrada da Extremadura, em demanda da capital inchada que, ainda agora, continua a receber em
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Fale com ela
Pedro almodóvar junto à Penélope cruz, atriz que mais de uma vez deu vida às mulheres criadas pelo diretor a Plaza Mayor é uma tradição que está presente em muitas cidades espanholas no filme, almodóvar volta a explorar elementos da cultura espanhola, como as touradas, que, em Madri, acontecem na Plaza de toros de las ventas
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Atocha os atraídos por uma urbe realmente feminina, que esplende à noite, como uma dama vestida de água das fontes e de pedaços de canto jondo dançado, nos tablados, por mulheres de cabelo de azeviche e cenho franzido. “Cresci, gozei, sofri, engordei e amadureci em Madri, junto com ela, falando a sua língua diuturna” – Almodóvar já deixou claro, sentimental como um apache arrependido (falo dos antigos gigolôs do amor bruxo e não dos índios da fronteira mexicana). Falem com ele, e perceberão que o diretor de Fale com ela (2002) entende que Madri é uma Carmen de Bizet que mudou junto consigo. Madri, epicentro espanhol, de fato pulsa nas
transformações da Candela (Maria Barranco) de Mulheres à beira de um ataque de nervos, de 1988, e também na Lola (Loles León) de Áta-me, de 1990, mulheres espanholas típicas da capital que há tempos vê surgirem moças como a Kika (Verônica Forqué) turbinada do filme de mesmo nome, realizado em 1993. E a “nova” prostituta madrilenha vive na pele muito branca de Cristal – interpretada, dez anos antes, também pela Forqué –, ao lado daquele arquétipo almodovariano que, já sabem, costumava recordar a longínqua capital como uma princesa de saias perfumadas: la madre terrible, a Mãe como diva ou como modelo inalcançável, mais ou menos nos termos da composição daquela Becky
del Páramo (Marisa Paredes) de De salto alto, a obra que Pedro apresentou aos “almodovarianos” em 1991.
DoS HomenS
Nunca esquecer que, entre as “mulheres” do cineasta mais espanhol (desde Luis Buñuel), figuram os transexuais encarnados por Carmen Maura – talvez o símbolo da quintessência cine-radiofônica do cinema do manchego – e por Antonia San Juan em Tudo sobre minha mãe (1999), fêmeas “góticas” do universo de um diretor reativo, imerso num mundo próprio e respirando, tudo faz crer, pelas mulheres dentro da sua cabeça, muito mais do que pelos homens que, nela, circulariam
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um tanto à margem também da Madri feminina que Almodóvar incessantemente filma. Um dos críticos de Sight and Sound discorda disso, e escreveu na contramaré, em recente edição da respeitada revista inglesa de cinema. Para ele, Almodóvar seria “mais profundo” – ou “menos epidérmico” – naqueles (poucos) filmes em que o diretor se permite tratar de homens, como é o caso de Fale com ela e Má educação (2004). Esses seriam “almodóvares” mais complexos e mais carregados de verdade do que os filmes permeados da preferência-clichê criada para o cineasta, pelo olhar da própria crítica espanhola, mais do que qualquer outra. Os compatriotas, fascinados, são os que mais falam num fascínio de Almodóvar pelo feminino difuso em visões sempre luminosas e positivas, enquanto que o retrato do universo masculino ele o pintaria como algo sempre áspero, problemático e ambíguo. Será? Almodóvar apenas ri, nas entrevistas coletivas, quando alguém pergunta pelas “obviedades vindas da
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a estação de atocha, situada no coração da cidade, uma das primeiras da espanha, segue funcionando como uma das principais portas de entrada da cidade rossy de Palma (Juana) e verônica forqué (Kika) são mulheres típicas da capital espanhola, na visão de almodóvar
crítica”, segundo ele. E sempre volta a falar em mulheres, com humor benigno, talvez porque a sua mirada mais percuciente, apesar de tudo, seja mesmo sobre a zona obscura da masculinidade em crise que se observa – com olhares argutos – em meio às conversas de café da agitada Madri. Os maridos infiéis mais típicos, os amantes agressores, os “toureiros” em espírito, os saudosos do mundo do macho em franco declínio, andam mais ou menos como sombras acompanhadas de filhos ou sobrinhos adolescentes de brincos e piercings na confusão – à la El Corte Inglés – da capital espanhola de hoje, centro político do antigo país dividido na Guerra Civil mais fratricida do século 20, e no qual viria a se restaurar uma monarquia preparada pelo ditador odiado pela outra metade (a vencida). Nesse sentido, o cinema de Pedro Almodóvar – depois dos filmes de Bardem e de Buñuel, em décadas de outro matiz cultural – não deixa de ser um triunfo, quem sabe, da surpreendente Espanha do século 21, na qual os valores da tradição ibérica mergulham em voo rasante talvez para aspergir o perfume das saias de mulheres rainhas sobre a mancha do passado finalmente esquecido, à beira da pós-modernidade pop que apaga tudo.
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OS 80 ANOS DE TEREZA COSTA RÊGO (2)
A VOLTA POR CIMA
MATÉRIA CORRIDA José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
O último pedido de São Norberto, continuando a história do santo, foi permanecer nos andrajos até a hora de assumir o bispado. Mas quando logrou entrar no palácio que lhe era destinado, no arrocho de nobres, até de outros países, ansiosos por cumprimentá-lo, um guarda do palácio, notando aquele mendigo infiltrado entre príncipes e duques, a ele atirou-se, arrastando-o e chegando mesmo a arremessá-lo
na rua, como conta num poema Augusto Frederico Schmidt. Ante comoção geral, o guarda, coitado, já sendo ameaçado de punição, Norberto se levantou feliz e deu-lhe um abraço dizendo: “Ainda bem que alguém me reconheceu!” Como admite o grande crítico brasileiro Frederico Morais, crítica de arte é um ramo da ficção. Perdoe, pois, leitor, o incipiente exercício ficcional. Ninguém é pobre porque
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quer. Nem pode. Ser pobre, ser mártir, são utopias de rico. Escrevendo sobre Tereza Costa Rêgo me sinto como o guarda que não sabia o que estava acontecendo. Ela nunca deixou de ser rica. Não satisfeita em ser bonita, talentosa e rica, o que mais podia querer? E, diga-se, uma coisa é querer ser bonita e outra ser considerada bonita: neste caso se trata de “outro bicho”, como dizem os zoólogos, e nunca deixará de ser. O MASSACRE DOS ÍNDIOS, ACRÍLICO S/MADEIRA, 1.60X2.20M, 2008
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A PARTIDA, ACRÍLICO S/MADEIRA, 0,70X1.20M, 1981
Alguns quadros que eu via de Tereza Costa Rêgo, não sei onde nem quando, sempre pareciam de uma primeira época, uma pintura rococó, velados autorretratos, pintura de alcova, só para os íntimos, não sei se já, pelo desenrolar da sua pintura depois, pedido de socorro da prisioneira daquela cultura de gineceu. É de se perguntar se a pintura de Tereza não teria se concretizado a partir da morte, do quadro da morte, do marido comunista Diógenes Arruda, “A partida”, quadro marcante que sempre me vem à memória como começo de tudo embora pintora ela já fosse desde sempre e guardasse tudo no íntimo: ninguém faz um quadro desse sem grande preparo, recursos de toda ordem, um oceano emocional, e tirocínio para transformá-los em obra. É um grande quadro. Parece que a partir daí ela teve outra coragem, como se transferisse para a pintura o destemor que demonstrou na vida: maiores dimensões, pintura para ser vista de longe, a ousadia dos nus frontais, autorreferentes como se deduz da figura de mulher do quadro da morte de Diógenes, e essa inversão de curso do que normalmente acontece na história da arte onde a arte rococó
Somos convidados a ver seus quadros como uma predela, uma sequência de episódios de vida de santo. surge como decorrência e até degenerescência da arte barroca e aqui Tereza faz esse rio correr em sentido inverso, dos sussurros e frivolidade do rococó para o estrondo do barroco, para o cenográfico, para o gesto largo, olímpico, de vitória, uma “Nike”, mesmo no quadro que é também um lamento e, curiosamente, sem perda desse traço feminil, delicadeza e requinte de moça bem-nascida. Talvez coubesse aqui a observação de Simone de Beauvoir n’“O segundo sexo”, a de que, quando uma mulher expõe, a primeira atração é a pintora. No caso de Tereza, como ela tem consciência da beleza dela própria, aqui representando também a de toda mulher, e a essa altura consciência igualmente do seu poder de pintora, que mais lhe poderia faltar, se da riqueza já veio? É que tudo isso está ligado ao mundo terreal, e é próprio do humano querer sempre mais.
Um estudioso, Charles Hainchelin, “As origens da religião”, apresenta a questão: “Por que Jesus, deus secundário, cujas origens remontam à pré-história, foi transformado em personagem histórico?” Pois eu acho, sem ser estudioso de nada, que Tereza, de carne e osso, aspira, quem sabe até que ponto, a ser personagem mítica, ocorrendome isso ao ver o quadro de um nu, idealização do seu próprio, em cima de um caprino branco, qual imagem iconográfica. Somos convidados a ver seus quadros como uma predela, uma sequência de episódios de vida de santo. Ela está não somente criando sua estética mas a sua iconografia, altar onde o cordeiro místico, isto é, Tereza Costa Rêgo em carne, sangue e divindade, se imola, sempre solene e magnificamente, alçando-se a uma aristocracia acima dos mortais. Não vai aqui ironia mas pura constatação. Com admiração, como disse no início, e respeito. Nesse ponto, temos de olhar sua pintura como arte religiosa. Outro capítulo ainda merecia ser tocado, há algum tempo ganhando terreno em sua obra: o da pintura épica, pintura histórica brasileira, possivelmente despertada pela odisséia de sua vida pessoal.
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Diálogos Museu do estado T. (81) 3184.3174 De 7 a 30 de agosto ter-sex 9h às 17h sab-dom 14h às 17h R$ 2
diálogos O impacto de grandes desenhos sobre lona
Exposição encerra quatro anos de dedicação de Renato Valle a projeto artístico itinerante, marcado pela troca constante com instituições e público texto Guilherme Carréra
“não se pretende discutir só a obra acabada e, sim, ver o artista trabalhando, como ele raciocina, por quais maneiras ele soluciona seus problemas, enfim, entender seu processo de criação”. É dessa forma que a artista plástica Ana Lisboa compreende as possibilidades da arte contemporânea. Professora do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela convidou Renato Valle, há cerca de quatro anos, a participar da terceira edição do programa de residências artísticas O Artista, O Processo Criativo e a Mediação Cultural. À época coordenadora do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), Ana Lisboa tinha a intenção de desenvolver o programa em salas de exposição, interagindo com o público e, ao mesmo tempo, documentando em fotografia e vídeo a gênese dos trabalhos. Foi justamente desse encontro entre Lisboa e Valle que nasceu o projeto Diálogos, desenvolvido por ele desde abril de 2005 e que agora ganha exposição conclusiva no Museu do Estado de Pernambuco (Mepe). “Certa vez, no IAC, me deparei com uma pintura de Balthasar da Câmara. O encontro com essa obra me instigou a dialogar com a história da instituição; por isso intitulei a série de Diálogos”, explica Renato Valle, ao tomar como premissa do trabalho o confronto entre o criador (ele mesmo), o acervo institucional e o público. O
IAC foi o primeiro espaço a receber suas criações. Já que o processo podia ser experimental, optou por uma técnica inusitada: o uso do lápis grafite sobre lona crua. “A lona exige muito esforço, porque o grafite não pega tão facilmente como no papel. Subir e descer escada constantemente por causa das dimensões das obras também foi algo novo em minha prática”. Renato Valle se refere aos desenhos de grandes dimensões que executou, que vão de três a sete metros de largura, e de dois a quatro de altura. Além das ideias suscitadas pelo contato com obras de outros artistas, Valle diz que muito do que foi produzido advém do acervo imaterial das instituições que abrigaram o projeto. Ele explica: “O acervo imaterial são as histórias contadas por funcionários ou pessoas que estiveram nos locais trabalhando, visitando ou fazendo exposições, e que não constam nos seus arquivos”. Como exemplo dessa presença “imaterial”, ele cita a proposta que fez a Edmilson, motorista da Galeria Dumaresq, segundo espaço a abrigar o projeto, de que posasse para ele. O desenho recebeu o título Frei Edmilson de Assis sentado no confessionário do Bispo Eudes Mota (320 cm x 212 cm) e acabou sendo uma espécie de homenagem a todos os que trabalham nos bastidores das instituições. Tendo a itinerância como característica, além do IAC e da Galeria Dumaresq, os museus de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e Murillo
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La Greca completaram o circuito institucional do projeto. Dessa variação de ambiências, Renato Valle aproveitou a oportunidade para vasculhar os acervos das instituições e entrar em contato com diferentes públicos. Com a aquisição do Prêmio Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, em 2008, a quinta etapa do projeto teve um diferencial. Foi desenvolvida na unidade do bairro de Piedade do Projeto Pró-Criança, onde os próprios alunos do espaço de formação foram responsáveis pela feitura dos desenhos. Como consequência disso, um livro foi produzido, reunindo lembranças dos participantes sobre as atividades do projeto. O último desenho sobre lona, O cachorro morto (212 cm x 405 cm), contou com a contribuição desses jovens e também de funcionários do local. A exposição no Museu do Estado é a etapa final de um projeto considerado vitorioso pelo artista, e reúne os trabalhos expostos nas cinco residências anteriores. O catálogo, ainda sem data definida de lançamento, conterá texto crítico do
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Criança sentada, sob o impacto de uma determinada programação televisiva infantil (365 cm x 424 cm) expressa o cuidado do artista com as técnicas do desenho
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renato valle buscou a síntese entre o que ele observava nos acervos das instituições e o que ele ouvia do público o motorista da galeria Dumaresq serviu de modelo para a obra Frei Edmilson de Assis sentado no confessionário do Bispo Eudes Mota
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reproDução
curador Agnaldo Farias e uma breve análise do projeto e de suas ações educativas, feita por Ana Lisboa.
arte e pÚBlico
Uma das discussões concernentes à forma de se tratar a arte na contemporaneidade se relaciona às estratégias da arte-educação. A intervenção do público pode ser considerada um trabalho artístico? Ou ainda: existe a pretensão de que visitantes atuem efetivamente como artistas, tal como o idealizador da obra? Para Renato Valle, a participação do público implica necessariamente a sua formação, tendo o arte-educador um papel fundamental nisso. Ele aposta na ideia de desmistificar o
renato valle acredita que a interação com o público e as críticas e sugestões que recebe o ajudam na realização artística aspecto aurático da obra de arte: “A desmistificação do artista tira ou diminui a distância entre público e obra, e isso ocorre durante esse contato”. Em todo caso, deixa claro que os coparticipantes não são, nem devem ser, encarados como profissionais. “Digo isso em relação ao projeto que desenvolvi, pois a arte-educação é algo muito mais abrangente”, complementa. O artista afirma que a interação com o público ajudou a dar continuidade à construção dos trabalhos. Além dos visitantes, Renato Valle se refere também aos funcionários das instituições que se envolveram com a iniciativa e passaram a compreender melhor o local onde trabalham. Ele considera que a experiência contribuiu para seu amadurecimento profissional, aumentando a capacidade de ouvir críticas e sugestões durante a realização da obra. “Foram quatro anos de dedicação, contando com o apoio das instituições de artes visuais e de outras da área cultural, inclusive da mídia. Creio que tudo isso o torna relevante”, conclui.
Lançamento
nOvO pAnORAMA pARA BRUSCKY Em abril deste ano, o artista plástico Paulo Bruscky apresentou uma vasta retrospectiva do seu trabalho em uma das salas especiais da 10ª Bienal de Havana, em Cuba. O projeto incluía a publicação de um livro da autoria de Cristiana Tejo, curadora da seleção de obras levadas à ilha. Com certo atraso em relação ao evento, foi lançado no final de julho Paulo Bruscky: arte em todos os sentidos (Fundarpe), que documenta a retrospectiva. Apesar do descompasso temporal, a obra não perde importância, pois tem a pretensão de ser mais que um catálogo. Trata-se de uma publicação que busca traçar a trajetória do artista, de forma a facilitar a compreensão do público internacional e local sobre suas várias poéticas. A leitura do texto e o passeio pelas imagens do universo “brusckyano” atestam sua versatilidade e seu livro traz texto conceito expandido de arte. de cristiana tejo A publicação vem se somar à recente valorização da e diversificado obra do artista pernambucano, materializada tanto em acevo de imagens exposições locais, nacionais e internacionais quanto em publicações exclusivamente a seu respeito, até pouco tempo inexistentes no país. O lançamento, em 2006, de Paulo Bruscky: arte, arquivo e utopia, de Cristina Freire (Cepe), foi o marco inicial de um processo de catalogação do material produzido por ele. Segundo Bruscky, essa segunda publicação é complementar à outra, porque registra obras de sua autoria que não constavam do primeiro livro. “80% dos trabalhos apresentados agora são diferentes dos mostrados no livro de Cristina Freire”, situa. Entre os inéditos de Paulo Bruscky: arte em todos os sentidos está o registro da ação desenvolvida pelo artista na abertura do Salão de Arte de Pernambucano de 1978, durante o regime militar, quando ele grafitou no muro do Museu do Estado de Pernambuco a frase “A arte não pode ser presa”, minutos antes da chegada do então governador Marco Maciel. A análise de Cristiana Tejo baseia-se na relação de mais de dez anos que mantém com o artista e sua obra, desde quando ela atuava como jornalista cultural. Na apresentação do livro, Tejo afirma tratar-se do resultado preliminar de um diálogo entre ela e Bruscky, que ainda deverá gerar “outras publicações mais densas e verticais”. mariana oliveira
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QUASE FAMOSOS Aquela banda tinha tudo para ser um verdadeiro sucesso Documentário dirigido por Sasha Gervasi registra a história de um grupo canadense de senhores metaleiros, o Anvil, que tenta o estrelato há mais de 30 anos texto Thiago Lins
resistência
de hard rock do mundo excursionavam pelo Japão, num evento que ficou conhecido como “a turnê dos quatro grandes”: Scorpions, Whitesnake, Jon Bon Jovi, Anvil. Todos os grupos da grade, posteriormente, venderiam milhões de cópias mundo afora. Todos, menos um: o Anvil. Quem? Por enquanto, ainda é preciso explicar: o Anvil é um power trio canadense, precursor do heavy metal, dono de muito respeito e pouco sucesso. A banda é tema do documentário The Story of Anvil (exibido no Brasil na última Mostra Internacional de São Paulo), dirigido por Sacha Gervasi (roteirista de O Terminal), ex-roadie e eterno fã da banda.
reprodução
robb reiner e Steve “Lips” sobrevivem de serviços temporários; rock só no fim de semana
em 1984, algumas das maiores bandas
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O roteirista bem-sucedido estava de passagem pelo Canadá quando decidiu tomar uma cerveja com os amigos/ ídolos de décadas atrás. Robb Reiner (bateria) e Steve “Lips” (voz e guitarra) estão com cinquenta e poucos anos, casados e com filhos crescidos, mas ainda vivendo de serviços temporários: Reiner é operador de britadeira, enquanto Lips é entregador de comida. Isso, de dia. De noite, a dupla insiste no sonho metaleiro de mais de 30 anos atrás, tocando em pequenos clubes do Canadá. Completa o trio Glenn Five, o baixista que está na banda há “apenas” 13 anos. O documentário começa com Lips em sua rotina, dizendo aquilo que sempre pensa: “as coisas não podem
piorar”. Bem, a ideia não condiz com a sucessão de fracassos que permeia o filme. Em turnê pelo submundo (underground é eufemismo) europeu, o Anvil arranja confusão, perde trens, dorme em saguões e não consegue sequer um cachê. A cada show, Lips chega com brilho no olhar — gosta do que faz. Brilho que vai embora quando desce do palco, sofrendo com a constatação — que se recusa a aceitar — de que pouca gente, de fato, gosta do que ele faz hoje em dia. O jeito é fechar os olhos e imaginar uma multidão ensandecida, como a dos shows da década de 1980, na terra do sol nascente. É mais ou menos o que Lips deve imaginar também quando diz ao baterista que, dessa vez, eles vão
o roteirista era fã da banda. aproveitou sua passagem pelo canadá para começar a gravação do documentário conseguir “e, como rock stars, provar que o mundo está errado”. Pelos depoimentos dados por lendas como Lemmy Killmister (o respeitável senhor à frente do Motorhead), Slash (ex-Guns and Roses, atual Velvet Revolver) e Lars Ulrich (Metallica) sobre seu desempenho, parece até que a banda não precisa se esforçar nesse intuito. Pelo contrário: o que intriga é o fato de essa grande banda nunca ter virado... uma banda grande. Durante a caótica turnê europeia do grupo, em 2005, o baterista Robb simplifica: “Temos uma péssima empresária, só isso”. Robb tem tanta razão que o Anvil chega a ser assediado por um advogado na turnê: àquela altura, Tizziana Arigoni, a empresária, já desertara do entourage, com a ameaça de processar a banda – por razões não explicadas no documentário –, e ainda havia “sequestrado” o guitarrista-base do grupo, Ivan Hurd. Ele deixou a banda para se casar com a ex-agente. Mas, apesar dos percalços, a turnê continua, sempre com Lips, o otimista eterno, achando que o próximo show será num estádio lotado. O vocalista é
tão obstinado quanto ingênuo, mas, ao contrário de muitos artistas frustrados, não se acha um gênio incompreendido. Ele apenas dá o que tem, faz o que pode e quer ser recompensado.
visual retrô
O filme mostra ainda famílias divididas. É hilário um quadro compartilhado entre a esposa e a irmã de Robb. Indisfarçável sobrevivente dos anos 1980, com um corte de cabelo à la poodle, ela admite querer ser “a esposa de um rock star”, enquanto sua cunhada insiste que o sonho de Robb acabou. Essa é uma das tomadas sinceras que dão espontaneidade a um filme que poderia ter virado reality show. À vontade, os personagens agem como se tudo se passasse off the record. Claro, isso se deve ao fato de Sacha Gervasi ser um velho amigo desses personagens apaixonantes e apaixonados. Tão insuspeito quanto o fracasso histórico do grupo foi o sucesso do documentário sobre eles. Pois quem imaginava que a história do Anvil iria virar blockbuster e desbancar a insossa história da cantora juvenil Hannah Montana nas bilheterias americanas? Ou arrancar elogios de Keanu Reeves, Dustin Hoffman, Michael Moore – que disse ter sido esse o melhor documentário que ele viu em anos – e emplacar matérias em diversos e influentes veículos? De revistas de cultura pop, como a Rolling Stone americana, a semanários de informação geral, como a Newsweek, todos foram tocados pelos acordes de força de Lips. Espécie de comédia trágica, The Story of Anvil proporcionou a esses heróis da resistência um retorno triunfal. “Paguei todos os meus débitos e deixei o emprego”, diz Lips, em entrevista por e-mail à Continente. Sem falar que o Anvil agora tem um empresário de fato: ninguém menos do que Rick Sales, que também agencia a bem-sucedida banda de thrash metal americana Slayer. Atualmente, a Anvil é a banda de abertura da turnê americana do supergrupo australiano AC/DC, aquele mesmo que gravou, em 1975, It´s a long way to the top. Traduzindo: É uma longa estrada até o topo. Parece que chegou a vez da Anvil.
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Claquete thE OFFicE Seriado faz rir do ambiente constrangedor no trabalho
Oito anos depois de seu lançamento, programa britânico de humor chega para os espectadores brasileiros, já familiarizados com versão norte-americana texto Diogo Guedes
Muita gente acredita que séries televisivas são apenas entretenimento de massa, de qualidade duvidosa. Mesmo que a maioria delas insista em fórmulas gastas, é possível assistir a produções inovadoras, em que há mais do que melodrama ou risadas pré-gravadas. O seriado The office é uma prova disso. Pouco conhecido no Brasil, ele chega ao país em um box com quatro DVDs, trazido pela Livraria Cultura, que contém suas duas temporadas, dois especiais e extras. Exibido em 2001 pela BBC, logo se tornou sucesso de crítica e o primeiro programa britânico a vencer um Globo de Ouro. Além disso, teve várias versões, sendo a principal a norte-americana, encabeçada por Steve Carell, que se tornou mais conhecida do que a original. A proposta de The office é simples: narrar, em forma de mockumentary (documentário de paródia, ficcional
ou não), o tedioso cotidiano de uma empresa que vende papel. O destaque é a interpretação de Ricky Gervais para David Brent, o convencido chefe do escritório, cujo empenho para ser querido o faz perder a noção do socialmente aceitável. O brilho e a onipresença de Gervais/Brent – também criador, roteirista e diretor do seriado, junto com Stephen Mercant – transformaria The office em um show de um homem só, não fosse a presença de outros personagens bem construídos. O humor vem do fato de Brent ser ingenuamente orgulhoso de suas próprias piadas, que conta sem perceber o quanto podem ser preconceituosas, e de como as reações dos seus subordinados variam entre escutá-las atônitos, constrangidos ou enojados. Completam o elenco de personagens Tim (Martin Freeman), um bem humorado
vendedor; Gareth (Mackenzie Crook), seu rival, aficionado por assuntos militares; e Dawn (Lucy Davis), a secretária que, mesmo noiva, é a paixão secreta de Tim. Como a base do humor em The office são as características comportamentais dos personagens, as tramas são estruturadas em situações mais corriqueiras do que em acontecimentos inesperados. O estilo mockumentary faz as câmeras perderem a invisibilidade, o que se torna um dos maiores ganhos da série: a interação entre atores e máquina revela melhor a estranheza e o constrangimento das situações. A diferença entre a série inglesa e a americana é o estilo do humor – a primeira tem o característico tom ácido da comédia inglesa, sendo hilária por ser tão incisiva no efeito que busca causar, mas raramente causando gargalhadas. A interpretação de Ricky Gervais e Steve Carell se equivalem, com uma sutil vantagem para o europeu. Na versão norteamericana, é grata a inclusão de outros personagens, como o estagiário Ryan (B. J. Novak) e o bajulador Andy Bernard (Ed Helms). O fato do seriado original continuar sendo tão bem avaliado atesta o mérito dos seus criadores, embora Gervais tenha poucos companheiros e episódios para competir com todos os excelentes atores que acompanham Carell nas suas cinco temporadas.
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INDICAÇÕES Drama
Biografia
Ação
De Laurent Cantet Com François Bégaudeau, arthur Fogel, Nassim amrabt Imovision
De gus Van sant Com sean Pean, Emile Hirsch Universal Pictures
De Bryan singer Com tom Cruise, tom Wilkinson Fox Filmes
ENtRE OS MUROS DA EScOLA
o cinema francês é, muitas vezes, associado a discussões de relacionamento. Entre os muros da escola, no entanto, subverte essa lógica. vencedor da palma de ouro no Festival de Cannes 2008, o filme incide na questão identitária europeia, tendo como microcosmo uma escola pública do subúrbio parisiense. a temática social ganha corpo nos conflitos que o professor tem que enfrentar em sala de aula ao longo do ano letivo.
MiLK – A VOZ DA iGUALDADE
o fato de ter vencido dois oscars já mostra que Milk é um dos filmes mais “certinhos” de gus van Sant – na forma, não na temática. o diretor conta a trajetória do ativismo gay americano a partir da experiência pessoal de Harvey Milk, o primeiro político declaradamente homossexual a ser eleito nos eua. um dos grandes trunfos da película é apresentar as manobras nos bastidores do jogo político, sobretudo aquelas que têm base em fortes posições ideológicas.
OPERAÇÃO VALQUÍRiA
a história, baseada em fatos, aborda os bastidores de uma conspiração contra Hitler. Tom Cruise interpreta Claus Steuffenberg, um dos oficiais do exército alemão que, junto a um grupo de militares de várias patentes, planeja assassinar o Führer e tomar o controle do país para por fim às barbaridades do regime e dar um novo rumo à Segunda guerra. essa resistência interna de oficiais alemães contra o nazismo é tema pouco abordado em filmes sobre o periodo.
Drama
O LUtADOR
De Darren aronofsky Com Mickey Rourke, Marisa tomei Paris Filmes
raras vezes a história de um personagem e a do ator que o interpreta coincidem tanto como as de randy “The ram” e Mickey rourke, que deixara a carreira de ator pelo boxe. No filme, randy é um ídolo da luta livre que, após sofrer um ataque cardíaco, precisa abandoná-la. arranja um emprego e se reaproxima da filha, enfrentando problemas de adaptação. No fim, fica a certeza do quão difícil é reinventar-se quando existe apenas uma coisa que você sabe fazer.
Documentário
a qualidade da produção cinematográfica pernambucana – hoje reconhecida em âmbito nacional no trabalho de diretores como Cláudio assis, Marcelo gomes e paulo Caldas – tem antecedentes. um dos mais antigos remonta ao chamado Ciclo do recife (19231931) e se chama ugo Falangola. Falangola era um italiano, nascido em Nápoles, que veio ao Brasil fugindo da primeira guerra. ao lado de J. Cambieri, seu sócio em diversos negócios, aportou no recife com equipamentos cinematográficos. precisando retomar a própria vida, fundou a pernambuco Film, a primeira produtora de cinema local. Fascinado pela trajetória do produtor, o cineasta Marcos enrique Lopez decidiu levar à tela a história daquele período, tendo como ponto de partida a produtora de Falangola. “estava estudando a obra do professor evaldo Coutinho para o meu primeiro filme, A composição
do vazio. Minha namorada, na época, era a neta de dona didi, filha do italiano. assim, por acaso, tive acesso ao argumento do meu próximo filme”, conta o realizador, que lançou o primeiro documentário em 2001. um dos dois vencedores do prêmio rucker vieira 2008, Janela molhada – título do novo curta – pretende trazer às novas gerações imagens daquelas primeiras décadas do século 20. além das funções de diretor e roteirista, Marcos assumiu a de produtor. “a produção é uma tarefa complicada. demanda tempo, paciência, articulação e estabelecimento de parcerias”, afirma. Na direção de fotografia, está o experiente Carlos ebert (à direita na foto ao lado, durante as filmagens). Com o projeto em fase de montagem, Janela molhada deve estrear no recife na última semana de agosto, no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco (derby).
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CURTA-METRAGEM ABORDA O CICLO DO RECIFE
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infantil Uma narrativa instigante para todas as idades Estava escuro e estranhamente calmo traz ao leitor breve conto surreal, em que se destaca o primor da ilustração do alemão Einar Turkowski texto Adriana Dória Matos
A menina toma-o nas mãos e, após a leitura, pergunta: “Este livro é para crianças?”. A mãe aquiesce e ela parece convencer-se. Entrega-o e sai. Alguns minutos depois, volta: “Você me empresta ele pra eu levar e mostrar ao meu professor de desenho?”. Antes de fazer essa
Leitura
Imagens: RepRodução
pequena viagem, o livro será revisitado, acariciado com os olhos, tanto pela menina quanto pela mãe. E assim, como um objeto cujo prazer não se restringe a uma idade ou a um momento, ele permanecerá naquela casa. A mulher havia comprado aquele “livro para crianças” para si, sabendo disso mesmo: que ele faria bem a qualquer um.
Felizmente, há muitas obras pelas quais podemos sentir afeto, aquelas que nos impregnam e às quais voltamos vez ou outra. Mas, agora, nos referimos a Estava escuro e estranhamente calmo (Es war finster und merkwürdig still), que o alemão Einar Turkowski (1972) apresentou como trabalho de conclusão do seu curso de graduação e que, desde que foi lançado, vem ganhando o apreço de leitores e merecendo prêmios por aí afora, consagrando o autor que, antes da literatura infantil, trabalhava como designer em publicidade. O título, vertido ao português pela editora Cosac Naify, já conheceu versão espanhola (Estaba oscuro y sospechosamente tranquilo) e francesa (Le pêcheur de nuage). Numa iniciativa mais pragmática, talvez, os franceses traduziram o enigmático título original interpretando-o,
fornecendo ao leitor a senha para adentrar na fantástica história de um homem incomum, que pesca nuvens. Embora esta seja uma sinopse apropriada ao breve conto ilustrado, ela o reduz, porque o fascínio exercido por Estava escuro e estranhamente calmo é justamente seu caráter alegórico, surreal, em que eventos irreais permitem contar sobre uma comunidade entrópica, incapaz de compreender e abrir-se ao outro. Um lugar em que a curiosidade mórbida e a hipocrisia são maiores que a possibilidade de compartilhar, de conhecer e trocar. Sendo que Turkowski evita o discurso ideológico, mantendo-o sob um meticuloso trabalho artístico, que revela seu domínio da técnica do desenho. A narrativa começa quando um desconhecido aborda numa ilha e ocupa uma casa abandonada. Quem é aquele – passam a investigar os ilhéus –, que chega sem nos pedir licença? “Os moradores da cidadezinha quase explodiram de tanto alvoroço e curiosidade. Dia após dia, eles se encontravam atrás da antiga leiteria e avançavam sorrateiros até as dunas para descobrir o que acontecia naquele lugar. Chegavam com lunetas grossas e compridas e passavam horas ali, observando e tomando notas sobre tudo o que o homem fazia. Com isso, esqueceram-se de todos os demais afazeres. Mas nada descobriram”, escreve o autor.
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Resenha
nUM tREM PaRa liSBOa UM PERSOnagEM EM cRiSE
estava escuro e estranhamente calmo einar turkowski cosac naify Conta a história de uma comunidade que passa a observar obsessivamente um homem que, recém-chegado à ilha, demonstra a incomum habilidade de pescar nuvens
Assim como os personagens, nós, leitores, dedicamos horas e horas à observação de Estava escuro e estranhamente calmo. Neste caso, à satisfação diante de tão detalhado e rico desenho, que na sua cartela em preto e branco expressa variada gama de tons e nuances, indo da mais negra noite, passando pelo plúmbeo de nuvens carregadas, chegando ao branco da quietude. E volumes, cheiros, ventanias, sensações que as melhores narrativas são capazes de suscitar.
Trem noturno para Lisboa,
escrito pelo suíço Pascal Mercier (pseudônimo do filósofo Peter Bieri), publicado no Brasil pela Record, tornouse um sucesso editorial na Europa, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. Mas, um alerta aos incautos: esse livro não é leitura fácil, que se verte de um trago, de uma sentada. Mesmo envolvente, muitas vezes nos desce amargo, difícil, sufocante, pesado, pois nos fala de histórias que se perderam, de sonhos que se esfacelaram, de tristezas que deixaram marcas. Apesar de falar, também, e sobretudo, da necessidade de se insistir, de se correr atrás enquanto é tempo – de se pegar um trem noturno para Lisboa, e resgatar o que não se viveu. A história conta com dois personagens centrais. O principal é o professor de línguas Raimundo Gregorius, que impede que uma mulher se jogue de uma ponte na cidade suíça de Berna. Ele se encanta com o som da voz da suicida, e ao questionar que língua é aquela, descobre tratar-se do português.
Apaixonado pela sonoridade do idioma, acaba comprando o livro Um ourives da palavra, do escritor Amadeu Inácio de Almeida Prado, uma reflexão sobre múltiplas experiências de vida: solidão, morte, amizade, amor e lealdade. O texto de Prado faz Mundus – como é chamado o taciturno professor – largar a monótona vida acadêmica e lançar-se numa viagem a Lisboa, para entender e conhecer o autor, e desvendar a vida do escritor e médico Almeida Prado, que havia morrido há algumas décadas, mas que deixara uma história de amores, resistência contra Salazar e muita solidão interior. Refazendo a trajetória de Amadeu, Mundus entra em contato com amigos, familiares e amores do médico/escritor. Mas, principalmente, entra em contato com sua própria solidão e vazio existencial. Com perguntas inexoráveis, como: depois de tanto tempo, é possível retomar o rumo e ainda ser feliz? Uma bela história, que nos enriquece, e remexe com nossas esperanças e medos mais profundos. Danielle romani
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A estrelA sobe Os sonhos de leniza na Era de Ouro do Rádio
No romance mais aclamado do carioca Marques Rebelo, publicado pela primeira vez em 1939, a prosa urbana brasileira tem um de seus melhores momentos texto Eduardo Cesar Maia RepRodução
Leitura
Se um dos temas básicos de qualquer literatura, em qualquer época ou lugar, é a oposição entre indivíduo e sociedade, esse conflito, no caso das figuras femininas, já aparece naturalmente potencializado. Em meio a tantas personagens memoráveis de nossa tradição literária – Capitu, Lucíola, Macabéa, Diadorim... –, uma parece estar imerecidamente esquecida. Leniza, protagonista de A estrela sobe (reeditado agora pela José Olympio), romance de Marques Rebelo (1907-1973), é um exemplo muito bem construído de caráter feminino que se forma e amadurece sempre em condições adversas. Com habilidade, Rebelo consegue mostrar, à maneira de Pirandello, como a vida pública pode contradizer a vida íntima, e como, no fim das contas, há muitos caminhos de perdição e pouca esperança de salvação. Garota suburbana que cresce no Rio de Janeiro dos anos 1930, Leniza
percebe, desde muito cedo, que é diferente: sua ânsia de liberdade a desviava do senso comum, dos padrões morais familiares e da expectativa dos homens. A um pretendente que a questionou sobre o que esperava da vida, ela retorquiu: “Espero muito, ora! Mais do que supões. Quero ser livre, Oliveira: dispor de mim, você não compreende? Dispor de mim!”. Para ela, a estabilidade do casamento, ainda que com um homem rico, seria o fim de todas as suas ambições. Vivia-se a Era de Ouro do Rádio; Carmen Miranda era símbolo do sucesso e da ascensão social que a vida artística prometia. Leniza achou-se aí. E, ao mesmo tempo, perdeu-se. Aos 17 anos, troca sua virgindade por uma ajuda para ingressar na rádio – a liberdade, que não sabia definir muito bem, mas que tanto desejava, pouco a pouco se perde nas engrenagens da fábrica de ilusões do mundo artístico.
O narrador, que equilibradamente dosa a objetividade e a ironia realistas com um lirismo contido, desnuda cada personagem em suas pequenezas e vícios, mas não sem compadecerse deles. A visão pessimista e o tom melancólico não conseguem dissimular totalmente a compaixão diante dos que sofrem. Como pano de fundo desse verdadeiro romance de formação à brasileira, Rebelo apresenta, com a competência de um grande cronista, um painel da vida provinciana do Rio de Janeiro daquele período. O crítico Alfredo Bosi, aliás, enxergou nesse livro a consolidação da prosa urbana brasileira, coisa que “o modernismo de 22 apenas começara a ensaiar”. A obra ganha em verossimilhança e universalidade por não apresentar defesas de discursos ideológicos ou teses sociológicas. A situação de pobreza não serve de pretexto, como é tão comum na literatura nacional, para tons panfletários ou denuncismo social. A protagonista, por sua vez, não obedece a estereótipos: trata-se de um caráter ambíguo e complexo; não é a heroína romântica cheia de ingenuidade e altruísmo, mas tampouco cabe no modelo da mulher exclusivamente interesseira e corrompida. Mesmo as relações com homens aos quais ela se entrega na intenção de impulsionar sua carreira artística são sempre marcadas pelo conflito constante entre a malícia e os sentimentos genuínos; entre o desprezo e os lances de ternura. A estrela sobe foi reconhecido como um romance renovador da literatura nacional, apesar de nunca ter atingido um grande público de leitores. Ainda há tempo para descobri-lo.
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indicações CRÔNICA
SÉRgiO PORtO / StaniSlaW POntE PREta garoto linha dura agir
Criado por sérgio porto, o personagem stanislaw ponte preta ganhou vida própria, tornando-se um dos autores mais populares dos anos 1960. stanislaw assinou mais da metade da obra de sérgio em livro, e é ele quem assume a frente em Garoto linha dura, volume de crônicas que usa o humor e a irreverência para combater a repressão militar, mas que não deixa de tocar outros temas ligados à vida carioca, como a novidade do biquíni, a infidelidade amorosa, as mulheres “certinhas”, entre outros. Reeditado pela agir, representa uma oportunidade para que as novas gerações conheçam a arte de sérgio porto e de seu alterego.
ROMANCE HISTÓRICO
ECONOMIA
MaRcOS cOSta liMa Dinâmica do capitalismo pós-guerra fria unesp
o livro aprofunda o estudo das dimensões estruturadoras da globalização, reunindo textos de diversos estudiosos, organizados por marcos Costa Lima. as análises abordam aspectos da mundialização financeira, incluindo seus desdobramentos macroeconômicos e geopolíticos, espaciais e ambientais, suas configurações e consequências. os autores criticam o mito da nova economia, que toma por base o fetichismo da mercadoria e o avanço tecnológico, entre outros elementos, enquanto minimiza outras realidades sociais.
WalMOR SantOS contestado – a guerra dos equívocos – O poder da fé (vol. 1) record
a pesquisa sobre um episódio pouco conhecido da história do Brasil, a guerra do Contestado, sedimenta o romance de Walmor santos sobre o conflito religioso e messiânico entre o catolicismo caboclo e o ortodoxo, ocorrido no paraná e em santa Catarina no começo do século 20, e que acabou pela intervenção armada do estado. ao longo do romance, que envolve personagens históricos e ficcionais, o autor desfia os enganos históricos dessa guerra, que culminaram com o massacre de uma população pobre e ignorante. o primeiro volume, O poder da fé, recria o ambiente em que se deu o conflito.
ENSAIO
HannaH aREnDt Sobre a violência Civilização Brasileira
a partir de uma perspectiva histórica, tomando por base acontecimentos políticos que, no final dos anos 1960, mudaram o julgamento moral e político da humanidade – a rebelião estudantil, os conflitos raciais, a guerra do Vietnã, entre outros –, a autora faz uma crítica vigorosa à apologia da violência, analisando sua natureza e causas e examinando a relação entre guerra e política, violência e poder. a obra de arendt, escrita entre 1968 e 1969, foi totalmente revista para a nova edição. a tradução é de andré duarte, com prefácio de Celso Lafer.
Memórias
mais do que uma biografia, o livro Para sempre teu, Caio F. (ed. Record) registra vinte anos da amizade entre Caio Fernando abreu (na foto ao lado, em 1973) e a jornalista paula dip. a relação entre eles começou no final dos anos 1970, dentro de uma redação, e durou até a morte do jornalista, escritor, roteirista, ator e dramaturgo, em 1996. durante vários anos, eles mantiveram uma intensa correspondência epistolar e, à época, já imaginavam a possibilidade de publicá-la. em uma das cartas dizia abreu à amiga: “as cartas são minha herança para
você”. Há alguns anos, revirando seus baús, dip decidiu compartilhar com o público esses escritos, carinhosamente assinados pelo escritor (“para sempre teu, Caio F.”). além de desvendar muito da personalidade de abreu, uma das figuras mais importantes da literatura contemporânea, o livro faz um apanhado do cenário cultural brasileiro durante três décadas, reunindo cartas, bilhetes e depoimentos de pessoas importantes na vida do autor do clássico Morangos mofados, em cujas páginas dedica um conto à amiga.
RepRodução do LIVRo/aCeRVo da uFRgs
paRa sEMpRE caio fERNaNdo abREu
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teatro para a infância Vivo, perene, com sete décadas e alguns percalços Encenações voltadas às crianças mantêm-se em cartaz o ano todo, mas carecem de investimentos em pesquisa e linguagem, e sobretudo do apoio do poder público texto Rodrigo Dourado
Qualquer espectador do teatro
pernambucano que abrir os jornais perceberá que a temporada de infantis, pelo menos na capital, está sempre recheada de opções, ao contrário da oferta para adultos, que amarga, frequentemente, momentos de penúria. Além disso, qualquer adulto de até 40 anos deve lembrar-se de ter ido ao teatro, pelo menos uma vez, quando criança, como parte das atividades extracurriculares de seu colégio. Isso porque o teatro para infância e juventude em Pernambuco, assim como na maior parte do país, possui uma produção vivíssima, que vem há sete décadas recebendo altos investimentos de pesquisa de linguagem por grupos, diretores e artistas; mas vem também convivendo com produções de qualidade duvidosa com fins estritamente comerciais. Para o público, essa distinção nem sempre é visível, mas a verdade é que quase todas as companhias que fizeram a história do teatro local experimentaram, em algum momento de suas trajetórias, o contato com o público infanto-juvenil. Algumas se dedicaram exclusivamente a essa linguagem, outras a abandonaram. Diretores como João Falcão, por exemplo, alcançaram projeção em suas carreiras graças aos infantis e, até hoje, retornam a eles.
o início, nos anos 1930
Mas a história do teatro para infância no Estado começa bem antes, em 1939, quando o Grêmio Cênico Espinheirense lança a adaptação teatral de Branca de Neve e os sete anões, com um elenco de crianças. Nesse mesmo
ano, Valdemar de Oliveira, que em 1941 criaria o Teatro de Amadores de Pernambuco, TAP, funda o Teatro Infantil de Pernambuco, ligado ao Grupo Gente Nossa, e com ele estreia as operetas Terra adorada, A princesa Rosalinda e Em marcha, Brasil, todas de sua autoria e com crianças em cena. Nesse período, a discussão em pauta era se o teatro para crianças deveria por elas ser realizado ou para elas ser feito, tendo adultos em cena. Embora trabalhasse com crianças, Valdemar de Oliveira já defendia a presença de atores adultos nas montagens infantis. E, para a maioria dos historiadores do palco brasileiro, a encenação de O casaco encantado, de Lúcia Benedetti, em 1948, no Rio de
Montagem de Branca de Neve e os sete anões, em 1939, marca início da história do teatro infantil local Janeiro, é o marco inicial do teatro para infância no país, exatamente pela presença de atores maiores de idade em cena. É a tendência que se confirma com a fundação do grupo O Tablado, em 1951, por Maria Clara Machado, também no Rio de Janeiro. A partir dos anos 1960, uma pesquisa sistemática se sedimenta em Pernambuco. Grupos como o Teatro de Cultura Popular – TCP – e o Teatro Popular do Nordeste – TPN – investem em encenações para crianças, envolvendo profissionais
como os atores José Wilker e Nelson Xavier – que ganhariam projeção nacional mais tarde – e diretores como Rubens Teixeira. Incentivado por Teixeira e pela atriz Ruth Bandeira, ambos ligados ao TPN, um grupo de jovens estudantes decide criar uma companhia voltada exclusivamente para encenações infanto-juvenis. É o Teatro da Criança do Recife, que nasce em 1966 e segue atuante até 1979. Entre as inovações introduzidas pelo grupo estão a utilização de espaços alternativos de encenação e uma consequente comunicação maior com a plateia, pois todos os espetáculos eram levados para as escolas e adaptados aos lugares disponíveis; a quase total eliminação de elementos cenográficos; e um maior investimento no trabalho de atores. No Teatro da Criança do Recife, o diretor José Francisco Filho realiza sua primeira encenação do texto A revolta dos brinquedos, de Pernambuco de Oliveira e Pedro Veiga, que será remontado pelos grupos locais mais de 20 vezes e no qual são introduzidos os primeiros elementos anti-ilusionistas da produção infantil pernambucana, com atores vestindo os personagens à vista das crianças. Quase no mesmo período, em 1967, outro grupo dedicado exclusivamente às crianças nasce, o Clube de Teatro Infantil. Enquanto o Teatro da Criança percorria as periferias em busca de público, o Clube ocupava o Teatro do Parque, oferecendo 50% de desconto no preço dos ingressos aos espectadores que fossem associados – daí seu nome. O objetivo era despertar nos pequenos o hábito de ir ao teatro.
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Fotos: arquIvo projeto memórIas da cena pernambucana
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O debate sobre a formação de plateia pelo teatro infanto-juvenil, no entanto, permanece em aberto até hoje, sem que se tenha chegado a dados que assegurem que uma criança educada para ir ao teatro venha a se tornar um espectador adulto. A julgar pelo número expressivo de produções infantis em Pernambuco desde os anos 1960 e o esvaziamento das plateias adultas de lá até hoje, a crença no caráter formativo da cena infantojuvenil não parece se confirmar. Comuns tanto ao Clube quanto ao Teatro da Criança foram as experiências pioneiras de profissionalização, com seus artistas vivendo exclusivamente da produção e venda de espetáculos. Fenômeno ainda hoje comum na cena para crianças e que, no entanto, não se repete na produção para adultos, que amarga bilheterias quase sempre minguadas.
consolidação da cena
A partir do final dos anos 1970 e, em especial, na década seguinte, vários grupos, diretores e dramaturgos passam a se dedicar à linguagem
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Historinhas de dentro, dirigido por samuel santos, foi premiado no janeiro de grandes espetáculos deste ano
Nestas páginas 02-03 ReMontagens
o espetáculo A revolta dos brinquedos foi encendado em 1981, pela aquarius produções artísticas, e alguns anos antes, em 1972, pelo teatro da unicap
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tRansição
no teatro infantil local, a peça Avoar marca a passagem das fábulas clássicas para um universo mais realista e urbano
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infanto-juvenil no Recife. Marcus Siqueira Produções Artísticas, TTTrês Produções, Dramart, Tem na Linha, Ilusionistas, Aquarius, Haja Teatro e Roda Pião se consolidam e disputam o mercado local. Diretores jovens, como José Manoel, Augusta Ferraz, Didha Pereira e Carlos Carvalho, e dramaturgos como Macelino Freire, João Falcão e Moisés Neto buscam um teatro de menor apelo comercial, não calcado nos elementos visuais, mas, sim, em boas histórias, e menos afeito ao caráter estritamente didático-pedagógico, tendo como objetivo estimular a inteligência e a imaginação da criança, em vez de enxergá-la como um ser menor, incompleto. Inspirado nas discussões da Associação Paulista de Teatro para Infância e Juventude, APTIJ , o diretor José Manoel encena três textos do dramaturgo e presidente da associação, Vladimir Capela. Como a lua, Avoar e Com panos e lendas marcam uma transição na produção local para crianças, afastando-se das fábulas clássicas e trazendo um universo mais realista e urbano para a cena. O objetivo é fazer um teatro sem faixas etárias, que desperte pensamentos e sentimentos em crianças e adultos, sem didatismos, conferindo à encenação o mesmo tratamento que recebia o teatro para adultos, sem concessões de qualidade. No final dos anos 1980 e ao longo da década seguinte, outros
a partir dos anos 1970, começaram a se diluir as fronteiras entre linguagens para público infantil e adulto personagens surgem no cenário infantil: figuras como o dramaturgo Luiz Felipe Botelho; diretores como Manoel Constantino, com a Papagaios Produções, adaptando textos de Jorge Amado e montando autores consagrados como Sylvia Ortoff; produtores como a Métron e Ulisses Dornelas – esse último, desde então, com seu personagem Palhaço Chocolate, ocupando sistematicamente boa parcela do mercado local; ou companhias voltadas exclusivamente para o trabalho em escolas, como a Cia. do Sol.
cenÁRio atual
Que avaliação fazer, então, desses 70 anos de caminhada? O que dizer do panorama contemporâneo do teatro para crianças em Pernambuco? O diretor José Manoel garante que ainda não há uma política cultural voltada para a infância e juventude, e que, nesse sentido, o teatro para crianças continua sendo visto como algo menor. “Não há gestão institucional pensando arte para crianças,
nem mesmo nas entidades de representação. É como se no Recife não existisse cidadãocriança. O que de mais importante aconteceu brotou da verve dos artistas, nasceu da reunião entre amadores e profissionais do teatro, nunca foi ação pública”, garante o diretor, que destaca os trabalhos de encenadores como André Filho e Samuel Santos, na capital, e Thom Galiano e Charlon Cabral, no interior, como exemplos de resistência. Já para André Filho, que hoje mantém a Cia. Fiandeiros de Teatro, pela qual escreveu e dirigiu o infantil Outra vez, era uma vez, não existe uma escrita específica para crianças: “Acho que se deve escrever para o ser humano; a criança tem a mesma, ou talvez até maior, compreensão de uma história do que nós adultos”. Ele reconhece ainda a forte tradição dramatúrgica do Estado, mas reclama da falta de estímulo e debate: “A coisa fica muito pontual, no esforço de alguns indivíduos que também cansam de nadar contra a maré. Sinto falta de prêmios literários, de discussões continuadas sobre o teatro para infância e juventude, de espetáculos menos preocupados com a forma do que com o conteúdo”. Outro que iniciou a carreira como ator pela Dramart foi o dramaturgo e diretor Samuel Santos. Depois de atuar em vários infantis, ele adaptou a obra de Graciliano Ramos para o teatro e lançou A terra dos meninos pelados, em
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Palco 2002, ganhando várias premiações e realizando inúmeras temporadas. Desde então, Samuel já dirigiu outros cinco infantis, com destaque para os textos de sua autoria O amor do galo pela galinha d’água – menção honrosa pela Funarte em 2003 – e Historinhas de dentro, premiado no Festival Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano. Para ele, a escrita teatral para crianças deve ser um resgate da poesia perdida, pois “o conceito de infância hoje virou medo e preocupação; a violência está fazendo sumir o diálogo, o lúdico, o telúrico, o onírico e a contação de histórias”. Santos afirma que o teatro comercial empobrece a cena infantil ao continuar trabalhando com os arquétipos do bem e do mal, ao contrário de uma dramaturgia alternativa que trata a criança como alguém que “chora, sofre, fica doente, pensa em sexo, morre e sonha”. Já Luiz Felipe Botelho, que publicou pela Editora Paulinas os textos Menino Minotauro e O segredo da arca de trancoso, tendo sido ainda premiado pela Funarte em 2003 com o texto Mau mau miau, afirma que seu desejo ao escrever para crianças é reconhecer a inocência como um valor que transcende as idades. Mesmo apontando a ausência de uma
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escola de teatro no Recife como uma das causas para o enfraquecimento da cena infantil local, o dramaturgo aplaude os esforços dos jovens escritores e encenadores, “que tratam seu público como seres inteligentes e não poupam esforços para oferecer um resultado estético de qualidade”. Revelando ainda que é possível conciliar êxito comercial e trabalho de pesquisa, cita o caso da Métron Produções como exemplo de produtora que “busca conciliar teatro digno e retorno financeiro”.
A Métron Produções, além de ostentar um extenso currículo de espetáculos voltados para o público infanto-juvenil, realiza há seis anos um festival de teatro para crianças no mês de julho, trazendo companhias de todo o Brasil para o Recife. O grupo promove ainda encontros sistemáticos entre artistas para debater a produção infantil local, talvez o único fórum permanente dessa natureza no Estado. A produtora Edivane Bactista lembra que, no final dos anos 1990, houve desinteresse e esvaziamento
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Musical
a métron produções possui currículo de peças voltadas para crianças e realiza festival de teatro infanto-juvenil o premiado Cantigas do Pequeno Príncipe, de 1996, foi um dos espetáculos montados pelo diretor josé manoel, figura importante nas artes cênicas pernambucanas Meu reino por um drama, com texto de cícero belmar, participou do Festival de teatro para criança, em julho deste ano
Isabel: “Existiam poucos espaços para o teatro destinado à criança, mas tínhamos espaços. Em todas as casas havia horários destinados ao público de pequenos e a relação parecia-me mais transparente com o poder público”. Também diretor, Constâncio estreia neste mês sua mais nova produção infantil, Guerreiros da bagunça, peça de 1989, de Guto Greco. Em temporada no Teatro Barreto Júnior, no Pina, sempre aos sábados e domingos, às 16h30, Guerreiros
dramaturgos acreditam que o teatro infantil se mantém mais pelo esforço de indivíduos, do que por uma sólida estrutura
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dessa produção, contexto no qual surgiu a Métron. “Acho que o novo milênio serviu para que retomássemos o segmento como algo sério, que precisa de profissionais qualificados e apaixonados não só pela cena, mas pela criança em formação, e que se perguntem qual a melhor forma de se comunicar com essa criança que vive num mundo tecnológico, onde, na maioria das vezes, só vale o ‘ter’”.
baixa Qualidade
Fazendo coro à avaliação da produtora, o jornalista e pesquisador Leidson Ferraz afirma que a baixa qualidade da produção local nos anos 1990 afastou pais e crianças do teatro. Para ele, o espírito questionador da década
de 1980 parece ter sido resgatado pelos artistas de hoje, mas um novo diálogo precisa ser estabelecido com esse público, cujo perfil mudou radicalmente. Ferraz levanta uma série de ações que poderiam fomentar a produção infantil local de qualidade e critica o próprio preconceito do poder público para com o gênero, lembrando que o Teatro de Santa Isabel, principal casa municipal de espetáculos do Recife, fechou as portas para os pequenos desde que foi reinaugurada, sob a alegação de risco ao patrimônio. Rudimar Constâncio, que participou como ator de montagens importantes como Avoar, lembra que o espetáculo fez temporada de casa sempre cheia no mesmo Santa
da bagunça talvez seja uma ótima oportunidade de observar como avançou, desde seus primeiros passos, 70 anos atrás, o teatro infantojuvenil pernambucano: na direção de uma obra de arte que não seja maior nem menor que aquela voltada para os adultos, mas que tenha responsabilidade social, verdade, investimento, inteligência, sem que para isso precise perder o bom humor, tão associado à produção para crianças. Como garante Constâncio: “Sem fórmulas e receitas, sem perder de vista o lúdico, recheando sua história com poesia e humor, o autor revela a crueldade das ruas e de uma parte da sociedade que precisa ser mostrada à criança”.
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arnaldo cohen exaltação das peças curtas brasileiras
O pianista carioca revela à continente preferências de repertório, destacando a pouca vocação dos compositores brasileiros para as grandes formas texto Carlos Eduardo Amaral foto Flora Pimentel
Sonoras Uma semana antes do último São
João, Arnaldo Cohen embarcou direto dos Estados Unidos para um recital solo a portas fechadas no Teatro de Santa Isabel, no Recife. No repertório – apreciado por uma plateia de convidados de um banco privado –, Radamés Gnatalli, Francisco Braga (autor da música do Hino à Bandeira), Alberto Nepomuceno, Luís Levy (irmão de Alexandre Levy) e Ernesto Nazareth. Um trio de Mendelssohn, ao lado do violinista Michel Bessler e do violoncelista Alceu Reis, e algo de
Chopin completaram o programa com um toque mais standard. Se peças curtas brasileiras – despretensiosas no escopo, mas exigentes na interpretação – sobressaíram no recital, poucas são as partituras nacionais para piano e orquestra que Cohen inclui em seu hall. Quem navega no site do virtuose conta somente duas: o Divertimento (1963), de Marlos Nobre, e o inigualável Concerto sobre formas brasileiras (1938), do alagoano Hekel Tavares (1896-1969), o único concerto para piano em estilo
romântico tardio já composto no Brasil, sob nítida influência de Serguei Rakhmáninov (1873-1943). Isso ocorre porque, para o pianista, os concertos brasileiros, exceto o de Hekel, não se comparam aos congêneres europeus – que sustentam o público das salas de concerto dos cinco continentes. Sem querer entrar em polêmicas, Arnaldo Cohen remete-se à experiência de ter tocado a Bachianas Brasileiras n° 3 de VillaLobos (“Não gosto, mas não posso dizer que não gosto”) e explica que
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apenas não concorda com o mero ufanismo: “Só porque é brasileiro, não acho isso suficiente. O meu compromisso é com a qualidade”. Esse julgamento parece se aplicar aos compositores de todo o continente, pois os únicos concertos americanos não brasileiros interpretados por Cohen são os de George Gershwin (1898-1937) e do mexicano Manuel Ponce (18821948). O músico diz que está aberto a sugestões para repertório, mas que não teria tempo de apreciá-
las imediatamente, pois tem dado conta de estudar 20 concertos para a temporada deste ano. Entre os que tem estudado, estão o primeiro e o quarto concertos de Rakhmáninov, que serão gravados ainda neste semestre ao vivo com a Osesp e regidos por Yan Pascal Tortelier. O Rach 1 e o Rach 4 concluirão a gravação integral de Cohen das obras de Rakhmáninov para piano e orquestra, a ser lançada pelo selo sueco BIS – os concertos n° 2 e nº 3 e a célebre Rapsódia sobre um tema de Paganini foram registrados, no segundo semestre de 2008, ainda sob a batuta de John Neschling. Em tempo, uma das gravações mais aclamadas de Arnaldo Cohen até hoje é a do Concerto sobre formas brasileiras – a primeira em CD, de 2002 – com a Petrobras Sinfônica (então Orquestra Petrobras PróMúsica) e o maestro Roberto Tibiriçá. Cohen revela que futuramente executará o concerto de Hekel Tavares em Kuala Lumpur, com a Filarmônica da Malásia (orquestra patrocinada pela Petronas, a Petrobras do país asiático). A aceitação da peça no exterior, conta o pianista, tem sido tão boa que ela recebeu mais aplausos que o Rach 2 em um concerto para 10 mil pessoas no Hollywood Bowl, em Los Angeles, e que a Burlesca em ré menor (1886), de Richard Strauss, em Dallas. Hekel é um caso à parte, segundo o virtuose. Cohen exalta a excelência das peças curtas, justificando que os compositores brasileiros, pressionados por várias dificuldades de sobrevivência, não puderam se dedicar exclusivamente à música durante o romantismo e a primeira metade do século 20. Assim, não teriam deixado obras-primas nas formas consagradas de composição (sonata, trio, quarteto de cordas, concerto, sinfonia, ópera...), que possuem longa duração. O pianista (e violinista) carioca diz, por exemplo, que Arthur Rubinstein mal tocou o Rudepoema de Villa-Lobos (uma fantasia de cerca de 20 minutos dedicada ao astro polonês), mas tinha como bis favorito o dificílimo Polichinelo (da série A prole do bebê n° 1, do mesmo Villa-Lobos), que dura menos de dois minutos. Cohen, todavia, não conhecia o Concerto para violino e orquestra
de Henrique Oswald e os concertos para violino de Camargo Guarnieri (Continente de maio de 2009) e se entusiasmou em saber mais sobre eles.
AULAS eM inDiAnA
Depois de mais de duas décadas como virtuose residente da Royal Academy de Londres, Arnaldo Cohen mudou-se para os Estados Unidos, para ensinar na Universidade de Indiana. Na capital britânica, o pianista era incumbido de prestar orientações técnicas aos alunos durante dois dias por mês; na América do Norte, as vantagens profissionais tornaram-se ainda maiores, graças ao convite para o posto de Full Professor Tenure (professor pleno com estabilidade empregatícia), com um salário menor apenas que o do pianista Menahem Pressler, do antigo Beaux Arts Trio (no qual Antonio Meneses tocava desde 1998). O diferencial das universidades americanas também contou bastante a favor para Cohen se sentir à vontade no novo emprego, independentemente da remuneração: a Universidade de Indiana possui literalmente algumas centenas de pianos e, pelo cargo que ocupa, Cohen não responde a nenhum superior administrativo nem sofre restrições quanto à escolha dos métodos de ensino, fora que, durante o processo de sondagem e contratação, não foi necessário apresentar nenhum documento pessoal, programa de aulas ou currículo. “Não houve burocracia”, resume. Afortunadamente, tudo começou depois de um acidental esnobismo de Cohen, que recusara o convite para ser Full Professor, sem saber do cacife da condição de Tenure. O reitor então procurou o pianista para um café da manhã, ofereceu uma contraproposta e explicou a única condição para o exercício do cargo: “Eu só quero que seus alunos fiquem felizes”. Após completar o quinto ano morando em Bloomington, Indiana, Cohen não poderia almejar mais em nível acadêmico e, sobre os estudantes que orienta, esclarece: “Alunos são como vinho: depende da safra, depende do ano. Eu dou orientação profissional, mas não quer dizer que o aluno vá seguir essa carreira”.
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A galinha à cabidela com pão é o principal atrativo do Bar da Geralda Dona Geralda atribui seu sucesso à fé na padroeira Nossa Senhora da Conceição O restaurante funciona na Praça do Morro da Conceição, na casa da proprietária
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REGIONAL O dom de levar a gastronomia para todas as classes Nas mãos de cozinheiras experientes, como Dona Mira, Dona Geralda e Da Paz, pratos da culinária popular pernambucana ganham status de iguarias TEXTO Eliza Brito FOTOS Tiago Lubambo
necessidade fisiológica, é um ato afetivo, como ocorre às lembranças gastronômicas pessoais, sejam elas do gosto da galinha de capoeira da avó ou do cheiro de café coado em casa. Essas são memórias poderosas. É o que pensam Dona Mira, Dona Geralda e Da Paz. Para as três matriarcas da culinária pernambucana, a cozinha expressa essa relação amorosa, além de ser uma profissão de fé, pois aquilo que elas produzem em panelas está relacionado de alguma forma a crenças religiosas. E quem come das mãos dessas mulheres se sente abençoado. Geralda Cardoso da Silva aprendeu a cozinhar ainda adolescente, quando trabalhava como doméstica. Ela conta que copiava as receitas que preparava e colecionava tudo em um caderninho. Com o tempo, foi apurando os conhecimentos, abriu o próprio negócio e transformou-se em referência na culinária popular pernambucana. Nascida em Surubim, veio para o Recife aos 12 anos para cuidar da casa de uma família de classe média. Foi quando conheceu “a Santa”, maneira como se refere a Nossa Senhora da Conceição, para a qual foi erguido um santuário urbano que se enche de fiéis a cada oito de dezembro, data que lhe é consagrada no calendário católico. Ela diz que a devoção pela padroeira foi determinante para suas conquistas profissionais. Há onze anos, quando foi morar no Morro da Conceição, zona norte do Recife, “só para ficar perto da Santa”,
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Geralda Cardoso abriu um bar, que funciona em sua casa. Nos primeiros meses de atividade, quando os clientes começaram a exigir opções de almoço e alternativas de petisco, a cozinheira não sabia como servir a galinha à cabidela – iguaria de sua preferência – sem repetir o que era encontrado em outros lugares. Passou dias matutando. Ela conta que, numa noite, Nossa Senhora da Conceição lhe apareceu em sonho e disse para dividir o pão com os seus clientes, como Jesus Cristo dividiu com os apóstolos. Ao acordar, ela decidiu servir a cabidela com pão francês. É este acompanhamento que diferencia o petisco como sendo o “da Geralda”. Querida pela comunidade e pelos frequentadores do bar, Geralda Cardoso cria um clima informal entre ela e os clientes, no estilo prestativo e protetor da “mãezona”, que sempre dá um jeito de acomodar todos, nem que seja colocando mesas na calçada ou até do outro lado da rua. Simpatia, simplicidade e boa qualidade dos produtos oferecidos foram fatores que transformaram o Bar da Geralda em ponto turístico do Recife, tendo
os bares da Geralda e da Mira localizam-se no populoso bairro de casa Amarela, zona norte do recife, e atraem grande público recebido, no início de 2008, da prefeitura local, apoio financeiro para reformas e melhorias de estrutura.
sAntos cosMe e dAMião
Se Nossa Senhora da Conceição mobiliza a devoção de Dona Geralda, bem perto dali, no “asfalto” de Casa Amarela, bairro populoso da zona norte recifense, são os irmãos mártires Cosme e Damião que fazem as honras no Bar da Mira, talvez o mais famoso estabelecimento de culinária regional e popular da capital pernambucana. A fartura dos pratos servidos pela casa também se faz notar na dedicação da proprietária à festa dos santos, no dia 27 de setembro. São tantos os presentes distribuídos por Dona Mira,
muitos dos quais também trazidos por clientes e amigos, que é quase impossível chegar à porta do estabelecimento na data festiva. Junto à homenagem a Cosme e Damião, a casa também reverencia Oxum, divindade das águas doces no Candomblé. No plano terreno, a casa agradece aos que prestigiam o restaurante com fotografias de seus sorridentes frequentadores, espalhadas por todos os cômodos, mas principalmente no seu salão de fundo, o mais espaçoso e agradável do lugar. Considerada a embaixatriz da cozinha pernambucana, Dona Mira não mora mais na casinha da avenida Doutor Eurico Chaves, onde funciona o seu restaurante, ainda que passe boa parte do seu dia dentro dela. Mulher daquelas que parecem ter nascido sabendo os segredos de uma boa comida, ela diz que só prepara o que gosta de comer. “Não me peçam para cozinhar filé ao molho madeira; eu não como isso. Mas ninguém prepara um sarapatel melhor do que eu”, garante. Mira começou seu negócio nos anos 1970, vendendo quitutes na Feira do Derby, montada semanalmente no bairro recifense de mesmo nome. Com a
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sArApAtel
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cApuccino
O barista Jonathan Silva trabalha com espresso há 11 anos e aprendeu o ofício com o italiano Valentino Sergi Funcionando ao lado do Cinema da Fundação, a casa mantém um cardápio enxuto, mas composto de itens ideais à degustação da bebida
Dona Mira e seu filho Edmilson comandam o mais famoso restaurante de culinária regional da cidade O prato típico ganha o nome de “coreografia suína”, no vocabulário do relações públicas do bar
Receitas à base de café têm sido elaboradas com sofisticação e criatividade
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bar da Geralda Praça Morro da Conceição, 486, Casa Amarela – Recife Tel. (81) 3442.1382 bar da Mira Avenida Doutor Eurico Chaves, 916, Casa Amarela – Recife Tel. (81) 3268.6241 Cantinho da Paz Rua Antônio Ferreira Campos, 5024, Candeias – Jaboatão dos Guararapes Tel. (81) 3469.4359
extinção da feira, abriu o restaurante. A galinha à cabidela, o sarapatel e o bode assado são seus carros-chefe. Mas se o pedido for feito a Edmilson, filho da proprietária e relações públicas da casa, é preciso entender que ele trará uma galinha com “indexação sanguínea”, uma “coreografia suína” ou um “cabrito seco”, respectivamente. Não sem antes colocar sobre a mesa um “café alternativo” (caldinho de feijão de cortesia, servido em garrafa térmica), oferecendo ao cliente, para acompanhar, uma “hiper glacial” (cerveja gelada) ou um “petróleo negativo” (Coca Zero). O divertido e “inclonável” (inigualável) vocabulário de Edmilson se estende a aparatos como o
“instrumental cirúrgico” (talheres), vindo diretamente, claro, do “centro cirúrgico” (cozinha), e também às sobremesas, sendo uma das pedidas a “simbiose glicosada com a lactose horizontal” (queijo coalho com doce de banana, goiaba, abacaxi, mamão ou laranja). Para fechar, um cafezinho, por ele batizado de “ápice do prazer”. Se, depois da comilança, o cliente não se sentir em condições de ir embora, pode fazer uma sesta no “Centro de Terapia Intensiva”; na verdade, um quarto do restaurante reservado para quem exagerou na comida ou na bebida. Outra idiossincrasia do Bar da Dona Mira: não há cardápio à disposição, sendo o valor a pagar, somente em dinheiro, medido no olho por
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Edmilson. Desde 1994, ele figura nos recomendados do Guia Quatro Rodas, que anualmente avalia o estabelecimento.
divino espírito sAnto
Ela comanda o preparo dos pratos, fica no caixa, varre o chão e não deixa de espalhar simpatia por todas as mesas do restaurante. Essa é Maria da Paz Belarmino Guimarães, ou simplesmente Da Paz. Natural de Passira, sertão pernambucano, a cozinheira veio para o Recife aos 17 anos de idade para estudar. Depois de casada, deixou os estudos para trabalhar como costureira, serviço que lhe conferiu uma boa clientela. Em 1992, quando o marido bancário ficou desempregado, e o dinheiro começou a
para as matriarcas da culinária de pernambuco, a cozinha expressa uma relação amorosa, além de ser profissão de fé escassear, Da Paz abriu uma sorveteria, para que os filhos das clientes ficassem com os pais, enquanto as mães provavam as roupas. O sorvete levou a um sanduíche, que puxou um petisco, e a coisa foi crescendo. Um ano depois, a costureira virara cozinheira. Devota de Nossa Senhora da Conceição, como Geralda Cardoso, Da
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sAnto protetor
Além dos frutos do mar, a charque desfiada tem destaque no cardápio do Cantinho da Paz Da Paz começou a entrar no ramo da culinária quando inaugurou uma sorveteria, que foi crescendo e tornou-se um restaurante A religiosidade da proprietária está expressa na marca do estabelecimento: a pomba do Espírito Santo
Paz conta que no ano em que abriu a sorveteria fez uma promessa para a santa. De lá pra cá, o restaurante Cantinho da Paz lhe rendeu bons frutos. Para ela, apenas a fé é capaz de fazer alguém superar as dificuldades. Sua religiosidade está expressa na marca do estabelecimento: a pomba do Espírito Santo. A proprietária conta que, logo que abriu o estabelecimento, uma pomba branca pousou no bar e ficou andando por entre as mesas, todas cheias de clientes. Naquele momento, sentiu que o Espírito Santo abençoava a casa e que nada mais poderia atrapalhar o andamento das coisas. Diferentemente da clientela mais eclética dos bares da Geralda e da Mira, o Cantinho da Paz recebe quase que somente clientes das classes média e alta do Recife e de Jaboatão dos Guararapes, município em que se localiza. Mas o cardápio, assim como o das matriarcas da zona norte, privilegia o popular, regional e caseiro, com ênfase nos frutos do mar, sobretudo por sua localização praieira, a poucos metros da beira-mar do bairro de Candeias. Além da variedade de peixes (frito, em postas, cozido, com pirão), a casa se destaca pelos pratos à base de charque, como o roupa-velha, em que a carne salgada e desfiada é acompanhada de macaxeira, feijão macassa, arroz, farofa e vinagrete. Abençoadas sejam essas cozinheiras que marcam com alegria – e uma inconfessa gula! – a memória gastronômica pernambucana.
@ continenteonline Veja mais fotos do ensaio sobre as cozinheiras, feitas pelo fotógrafo Tiago Lubambo, no site www.revistacontinente.com.br
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Beatriz Castro
por um ambiente inteiro Já faz muito tempo que ando por aí descobrindo histórias pra
Beatriz castro é jornalista Divulgação/RoBÉRio RoDRiguES
mostrar. Entre tantos assuntos, tantos personagens e situações, nenhum tema rendeu tanta repercussão e tanta intimidade com os telespectadores quanto o meio ambiente. O programa Nordeste Viver e Preservar, que apresento ao lado do repórter Francisco José, meu companheiro também na vida real, me surpreende a cada temporada e revela a sintonia com uma preocupação que é de todos. Os e-mails e comentários mostram que as pessoas querem saber mais sobre a ameaça que devora os nossos recursos naturais, que abre um buraco na camada de ozônio, que aquece o clima do planeta e que já nos assusta, quando assistimos às chuvas descontroladas, o avanço do mar. Não são apenas as imagens dos ursos polares vagando em placas de gelo cada vez menores a nos assombrar. Quando o lixo acumulado nas canaletas e nas encostas dos morros provoca alagamentos e desmoronamentos, vem a certeza de que as agressões ao ambiente em que vivemos estão nos alvejando em seu efeito bumerangue. Bem perto de nós, outra tragédia silenciosa avança dia após dia. É de doer ver o pouco que resta da mata atlântica em Pernambuco (2,5%) ser devastada pelos madeireiros. Quadrilhas protegidas por pistoleiros levam caminhões lotados de árvores nobres que demoraram dezenas de anos pra crescer. Em Gameleira, na Zona da Mata, a ousadia dos criminosos é tal que eles ameaçam assentados e agricultores que tentaram denunciar. Os bandidos agem como se a floresta fosse terra de ninguém. Nas estradas de lama e buracos da região, aonde a fiscalização não chega, os destruidores da mata saqueiam o patrimônio de todos até a devastação completa. Segundo levantamento do Ibama, cerca de 200 serrarias clandestinas são abastecidas pelos madeireiros na Zona da Mata de Pernambuco. Também, é preciso ter pressa pra conhecer a rainha das orquídeas. Grande, perfumada e de uma beleza arrebatadora, a Cattleya labiata, que impressionou Lenine a ponto de batizar seu disco mais recente com seu nome, está com os dias contados. O último santuário da orquídea, Pedra Talhada, no Agreste do Estado, na Serra das Guaribas, exibe cicatrizes incuráveis. Os golpes contra a mata não param. Fotos de satélite deram a triste dimensão do estrago: em 20 anos, 40% da Mata Atlântica local foram derrubados. As orquídeas, que por capricho da natureza só existem no pequeno reduto de mais de 600 metros de altitude e muita umidade, são cada vez mais raras. Dezenas de trilhas abrem caminho na mata, de onde os moradores e madeireiros retiram lenha, e onde cortam as espécies mais nobres, que têm valor comercial. Ainda bem que as denúncias sempre produzem uma onda de indignação. Nas ruas, sentimos o clamor por providências. Pena que, na prática, a reação dos que deveriam evitar tanta destruição não acontece na mesma proporção. E eu sigo com o coração apertado, um microfone nas mãos e muitas palavras pra contar que somos vítimas e vilões das catástrofes ambientais que se anunciam.
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