ANA LirA
setembro 2009
aos leitores
As contribuições francesas à formação da cultura brasileira, por sua intensidade e duração, são difíceis de dimensionar. Com as comemorações em torno do Ano da França no Brasil, a relação histórica de admiração e influência recíproca entre países tão diferentes passa novamente a ser tema de discussões, revisões críticas e atualizações. Dentro desse clima de celebração, a revista Continente oferece aos leitores um pequeno – porém, valioso – presente: tratase do livreto Ideias francesas em Pernambuco na primeira metade do século XIX, publicado pela Cepe Editora, encartado nesta edição. A obra é a transcrição de uma conferência do jornalista Aníbal Fernandes, na Faculdade de Direito da Paraíba, em 15 de setembro de 1957, e faz um balanço da presença francesa na vida intelectual daquele período. Nossa forma de participar das homenagens foi desenvolver, para esta edição, várias matérias que se referem às relações entre os países, assim como a presença francesa entre nós. A marcação visual disso está no selo com as cores das bandeiras francesa e brasileira que abre este editorial e várias páginas da Continente. O professor e doutor em Letras, Lourival Holanda, por exemplo, assina um artigo em que aponta, à maneira de Aníbal Fernandes, a influência que
alguns pensadores franceses exerceram na intelligentsia brasileira no século 20. Na seção Portfolio, apresentamos fotografias realizadas em várias localidades da França pelo professor Camilo Soares – imagens de pessoas em situações cotidianas, mas emblemáticas. Em relação à cultura francesa, tratamos ainda de música, história, artes plásticas, cinema e gastronomia. De volta a Pernambuco, em matéria de capa, apresentamos uma reportagem de Bernardo Valença e Ana Lira sobre a forte tradição da poesia popular no Pajeú, região em que os poetas e a poesia surpreendem pela quantidade e qualidade. A matéria mostra que a poeticidade local se relaciona diretamente ao prestígio da atividade naquelas terras: os pais passam aos filhos –“hereditariamente” – o amor e o conhecimento sobre como apreciar e fazer versos; as escolas ensinam às novas gerações o valor da literatura popular. Como fruto dessa defesa da cultura local, uma geração de jovens promessas desponta na lida com a palavra. Os repórteres constataram também que, há pouco tempo, o povo demonstra uma necessidade em expressar concretamente a importância da poesia para essas cidades: estátuas, nomes de ruas e estabelecimentos prestam homenagem aos grandes artistas versejadores.
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sumário Portfólio
Camilo Soares 06
Online + cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
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Arte-educação Leia a íntegra da entrevista com Ana Mae Barbosa no site da Continente
Eduardo Coutinho Cineasta comenta seu novo filme, Moscou, e seus atuais interesses como realizador
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Conexão
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Leitura
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Matéria Corrida
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Visuais
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Claquete
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Palco
86
Artigo
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Saída
Balaio
“Contradigo-me? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões”, disse Walt Whitman
Peleja
Incentivo Como o vale-cultura vai aumentar o consumo artístico no país?
Bússola
Adriana Falcão Escritora e roteirista revela seus gostos no campo das artes
História
Vauthier A contribuição do arquiteto francês ao Recife
Tradição
Mestre Espedito Seleiro do Cariri tem sua obra cobiçada pelos fashionistas
Moda Endereços virtuais orientam o consumo
Jhumpa Lahiri No segundo livro de contos, autora indo-americana aborda conflitos da interculturalidade
Fotógrafo viveu por seis anos na França e vê no país o retrato de uma nação envelhecida e melancólica
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José Claudio Colunista resgata seus restos de latim
Arte de rua Grafiteiros, dançarinos e ativistas franceses fazem intercâmbio com o Brasil
Nicolas Klotz Cineasta discute a lógica tecnicista no filme A questão humana
Shakespeare revisitado Com Encruzilhada Hamlet, João Denys cria espetáculo a partir de personagens do dramaturgo inglês
Lourival Holanda A influência do pensamento francês no Brasil do século 20
Dj Dolores O quanto há de jequice no consumo da arte
Pernambucanas Acaiaca
Um passeio por este exemplar da arquitetura moderna, em seus detalhes construtivos e sua riqueza humana
32 Capa Dona Bernadete Barbosa de Lima, da cidade de Carnaíba, fotografada por ana Lira Design Ricardo Melo
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especial
sonora
Profissionais envolvidos com a produção artística no Brasil ponderam que é preciso investir em projetos pedagógicos que formem público para a arte
Em sua quinta edição, reúne em um final de semana grupos do Brasil, África e Europa, em espetáculos gratuitos e oficinas musicais
capa
cardápio
Repórteres fazem a rota sertaneja em que a prática de versejar persiste entre velhos e jovens que têm na poesia um elemento de identificação cultural
Conhecidos como restaurantes simples, de bairro e de culinária caseira, esses estabelecimentos franceses ganham ares chiques em Pernambuco
Arte-educação
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Poetas do Pajeú
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Olinda Jazz Festival
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Set’09
Bistrôs
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online+cartas educação e arte criadora da Abordagem Triangular, cujos vértices são o fazer, o ver e o contextualizar, que revolucionou o ensino da arte no Brasil, a pesquisadora e educadora Ana Mae Barbosa recebeu a repórter Mariana Oliveira em sua casa, em São Paulo, para uma conversa sobre arte-educação no mundo contemporâneo.Leia na íntegra a entrevista com a maior referência da área no país. Parabéns A edição nº 104 da Continente está maravilhosa, sob todos os pontos de vista: temas escolhidos, textos, abordagem. Ponto para o novo projeto gráfico. As matérias sobre Burle Marx, Games e Tipografia merecem leitura pela análise conceitual e crítica. Parabéns. patrícia raposo recife – pe
Gostaria de parabenizá-los pela matéria sobre Roberto Burle continenteonline.com.br Marx, publicada pela Continente de agosto, e agradecer o apoio ao nosso trabalho. Transmitam também os agradecimentos a Tiago Lubambo, pois as fotos ficaram primorosas. aLine figUeirÔa recife-pe
Bibliotecária É sempre um prazer ler noticias sobre livros, bibliotecas e leitura, temas que frequentam tão pouco a grande mídia. Por este fato, reveste-se de grande impacto negativo, para a profissão e os seus trabalhadores, declarações do teor: “Especialista na conservação e catalogação de livros, ela nunca quis fazer o curso de biblioteconomia. Nem seria necessário”, veiculada na edição nº 104 desta revista. Se a senhora em questão se apresenta como bibliotecária, quero crer que deve, em algum momento, ter se qualificado e
destaques PAlco
Artistas, gestores e produtores discutem, em Salvador, no Encontro Anual da Rede Sul Americana de Dança, os rumos do setor. A grade completa do evento também está no site da Continente.
graduado nessa ciência. Se não o fez, está exercendo de maneira imprópria e ilegal atividades que são prerrogativas do profissional bibliotecário. Fazendo uma analogia com os leigos da prática da medicina: uma parteira não pode sair por aí se autointitulando médica-obstetra, por mais partos e por mais contato que tenha tido com parturientes. Da mesma maneira, uma “guardadora de livros” também não pode exibir publicamente o desprezo por uma profissão, ainda mais quando, sem a devida qualificação, apodera-se dela e de seus conhecimentos para o seu ganha-pão. Espero que a Revista, em respeito aos profissionais bibliotecários brasileiros que lutam contra a incúria pública e o descaso generalizado pelas instituições culturais, retifique o equívoco explícito na matéria e se desculpe pela insensatez das declarações. maria Das mercês pereira apÓstoLo BiBLiotecÁria
Que tipo de reportagem é esta: “Fiel depositária de livros de história”, que incentiva a ideia de ser desnecessário o curso de biblioteconomia? Será que “o prático” substitui a necessidade de se ter o curso de odontologia? Esqueceu em que século estamos? Fiquei horrorizada. marY paYVa BiBLiotecÁria
MÚSicA
Confira a programação do No Ar Coquetel Molotov. A edição 2009 traz Beirut (foto) e Clube da Esquina, entre outros.
Em referência à matéria da jornalista Ana Bizzotto, a profissão de bibliotecário é privativa dos bacheréis em Biblioteconomia. Assim sendo, Cristina Antunes pode ser uma ótima funcionária da biblioteca particular do sr. José Mindlin, mas não pode ser considerada bibliotecária e muito menos especialista em catalogação. Atenciosamente, LUciana Da conceiÇÃo figUeireDo BiBLiotecÁria
ReSPoStA DA ReDAÇÃo Agradecemos às leitoras Maria das Mercês Pereira Apóstolo, Mary Payva e Luciana da Conceição Figueiredo pela leitura crítica da matéria sob o título Fiel depositária de livros e histórias (nº 104), que revelou aos leitores o trabalho sério e relevante que a pernambucana Cristina Antunes tem realizado em prol da conservação e catalogação de livros, abordando aspectos de sua história pessoal e profissional. A rigor, bibliotecária, como diz a lei, é uma profissão privativa dos bacharéis em biblioteconomia. A pernambucana Cristina Antunes foi identificada como bibliotecária uma única vez na reportagem, na linha que apoia o título, uma imprecisão de edição, que reconhecemos. Na matéria, Cristina teve o cuidado de não se autointitular como tal, o que se percebe numa leitura atenta do texto da repórter. Não
pretendemos, em absoluto, denegrir os profissionais em biblioteconomia. Também por acreditar na importância da formação acadêmica para a geração de quadros competentes de profissionais – embora reconheçamos talento e valor também dos “práticos” e “autodidatas” –, realizamos, na edição de julho (nº 103), uma reportagem sobre o fim da exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista.
Você faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, santo Amaro, recife-Pe, CeP 50100140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone (81) 3183 2780 Fax (81) 3183 2783 email
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colaboradores
claudia Poncioni
isabella Valle
isabelle câmara
eduardo cesar Maia
Professora da Universidade
Fotógrafa
Jornalista
Jornalista e mestre em
de Paris X- Nanterre
Teoria Literária
lourival Holanda
Marcelo costa
Simone Jubert
Doutor em Letras (Língua
Jornalista e crítico de cinema
Jornalista e mestra em Comunicação
e Literatura Francesa) pela
e MAiS
Universidade de São Paulo
A. P. Quartin de Moraes • Adriana Falcão • Alexandre Figueirôa • Ana Lira • Breno Laprovitera • Bruno Albertim • DJ Dolores • Liana Gesteira • Melina Hickson • Olívia Mindelo Paulo Melo Jr. • Rodrigo Dourado • Schneider Carpeggiani
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EDUARDO COUTINHO
Um cineasta que se diz em crise
Em Moscou, o diretor de Jogo de cena assume uma deliberada invisibilidade na direção, quando delega ao grupo Galpão a responsabilidade pelo resultado da encenação texto Simone Jubert
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Entrevista
“na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem: trata-se da abertura de um espaço em que o sujeito que escreve não para de desaparecer”. Essa afirmação do filósofo Michel Foucault, em sua conferência O que é um autor? (1969), pode nos servir como uma boa referência para a discussão acerca do novo filme de Eduardo Coutinho, Moscou, afinal, o cinema é também uma forma de escrita. Diretor do clássico Cabra marcado para morrer (1964/1984), tido como um “divisor de águas” do documentário brasileiro pelo teórico e critico de cinema, Jean-Claude Bernardet, Coutinho, 76 anos, é o diretor conhecido por seus filmes centrados na oralidade. Jogo de cena, seu filme anterior a Moscou, radicalizou a experiência e a discussão no campo do documentário, registrando atrizes e não-atrizes contando experiências pessoais. Acontece que, ao espectador, não fica claro a quem tais experiências
pertencem. O que uma fala – e acreditamos tratar-se de sua vida –, depois aparece na boca de outra, e somos questionados sobre o pertencimento e a veracidade da narrativa, do ser verdadeiro e do pretender parecer verdadeiro. Moscou registra o grupo teatral Galpão, que, a pedido de Coutinho, ensaia a peça As três irmãs, de Anton Tchecov. Quem dirige o espetáculo, que não será encenado, é o diretor de teatro Henrique Diaz. O que vemos no filme, portanto, é a sinalização de uma busca que para muitos não fica clara. O Coutinho que pergunta, e a partir disso conduz seus filmes, não está presente. Em entrevista concedida à Continente, Eduardo Coutinho fala sobre seus motivos e motivações, sobre a crítica e revela aspectos do processo de produção de Moscou que nos dão material para repensar sua obra e a questão do autor. “Eu sou um fantasma, entende?”, afirma sobre sua ausência/presença no filme; fala que aproxima sua atitude, intuitivamente, do pensamento de Foucault, já que diz
não ter conhecimento do texto. Ainda assim, ele parece reafirmar o filósofo: “(...) a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita”. continente Por que Tchecov? eDUARDo coUtinHo Porque ele acorda as questões que nos permeiam sempre. Você tem um passado idealizado, um futuro que você sonha e, no caso dos personagens dele, temos pessoas incapazes de viver o presente e, mesmo assim, elas continuam. E a vida é isso, a gente continua, sem saber o porquê, mas continua. E, no caso do Tchecov, sem ilusões. Então eu penso nisso para o homem em geral, como um ser que vive entre a vida e a morte e não sabe como dar sentido a isso. O cara pode se tornar santo, revolucionário, preguiçoso, religioso, mas fora disso o que existe é o presente que você tem que enfrentar. Seja quem for a pessoa: feia, bonita, militante ou não, ela tem que enfrentar. Rico, pobre,
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Filipe Redondo/Folha imagem
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pense o que pense, seja analfabeta ou milionária, ela enfrenta essa instância: O que significa viver, à medida que você foi colocado no mundo sem pedir, não sabe até quando vai viver e desconhece o grande mistério de como dar sentido a uma vida que aparentemente não tem sentido nenhum. É isso que me interessa.
Fotos: divulgação
continente Moscou dividiu a crítica de forma muito intensa. Como você enxerga as reações da crítica ao seu novo filme? eDUARDo coUtinHo O filme serviu
de discussão que eu achava chato. Daí, simplesmente, aquela pessoa que está ausente vem e fala a fala final, e ela sobe e vem o ruído do som direto do último plano, que foi uma escolha deliberada: Isto é, a fala do filme não acaba e o filme acaba. E eu fiz de propósito e não me arrependo disso. Mas é algo que é visto na revista Cinética por outra ótica, e tem também um artigo muito interessante que fala que eu sou o ausente e o intruso no filme, algo que acho muito bom para se pensar.
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Entrevista para certos críticos como um bom objeto para pensar, o que dá margem para sentir. Se for isso, então o filme foi bom, entende? Eu ouvi percepções que são interessantes, de coisas que não estavam na minha cabeça. Duas pessoas me disseram que lembraram do Lars Von Trier, em Dogville, e eu nunca pensei nisso. Acho que se deve pela pele de teatro, pela parede nua, o giz que se usa para escrever alguma coisa. E nada disso estava na minha cabeça. Agora, é legítimo. Outra coisa é o fato de que eu estava ausente e essa impressão veio de uma montagem totalmente voluntária. No material bruto, eu tinha discussões com Henrique Diaz e eu tirei todas. Tirei o elenco e todo esse processo
continente Como você avalia esta afirmação da sua ausência em Moscou? eDUARDo coUtinHo Jean-Claude Bernardet, por exemplo, começa dizendo que o filme é uma catástrofe e depois diz que o filme não é tão bom. São coisas bem diferentes. Eu acho muito interessante quando ele fala do impasse, porque ele coloca o problema de Jogo de cena como um filme que criou uma polêmica para todo mundo que faz documentário. Agora, veja: e eu que fiz o filme, o que eu poderia fazer agora? Então, talvez, o meu caminho fosse ficar ausente mesmo, entende? Eu tinha mais que fazer um filme de risco como esse, que as pessoas recebem de formas inteiramente diversas.
continente E como foi esse caminho? eDUARDo coUtinHo Outro dia eu vi uma entrevista com Lévi-Strauss, ele falando do porquê de trabalhar com antropologia, de suas motivações. Entre outras coisas, ele fala que sofre de uma carência de identidade. E eu sofro disso ao máximo. Eu não sei realmente quem eu sou, você fala “Coutinho” e eu não sei se sou eu mesmo. Desde Santo Forte que está claro isso. E é por esse motivo que eu faço documentários. Porque eu não quero falar sobre mim mesmo. E,
“Porque, no fim das contas, esse filme me deu um bom objeto para eu pensar e sentir. e se o filme provoca discussão em gente que lida com o pensamento e com arte, eu acho ótimo”
em Moscou, eu vivo o extremo dessa carência de identidade, e achei que nada melhor do que estar ausente e ao mesmo tempo ter uma última palavra no final e ser um fantasma. Eu sou um fantasma, entende? Então, o que é defeito para uns, é qualidade para outros. Bernardo de Carvalho, um escritor conhecido, fez uma crítica em que ele diz que o filme tem problemas, que o ensaio é trivial, mas que, de repente, ele encontra uma analogia: o filme é tão irrealizado quanto as personagens de Tchecov, e isso é um fracasso e uma redenção. Já Eduardo Escorel pega a mesma coisa, mas diz que eu, como as irmãs, me conformei. Acho que me mantive passivo como solução e acho que, no fim das contas,
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acaba sendo uma passividade que está, de alguma forma, em todos os meus filmes. Eu me mantenho passivo ou num não-agir ativo, ou numa passividade que também é ativa, ou é ativa escondida. Mas é ativa porque é promulgada pelo outro, porque se o outro não me dá material, eu não tenho que dizer nada. continente As rédeas aparentam estar mais soltas mesmo em Moscou. eDUARDo coUtinHo Por isso mesmo que foi penoso. Há anos que eu faço
ia ter entrevista. Só quem entrevista e pergunta é o Henrique Diaz. Eu não questiono nada. Então, foi difícil porque meu regime é outro. O que fez com que Moscou fosse uma experiência completamente nova para mim. continente Mas, no fim, foi bom se sentir mal? eDUARDo coUtinHo Olha, eu vou te dizer que não quero mais passar de novo os meses que eu passei. Se eu fizer outro filme, gastar dinheiro e chegar ao final com 50 horas filmadas
eDUARDo coUtinHo A mulher é o outro de mim. Nunca que eu vou saber o que é parir, a dor de perder um filho que carreguei na barriga. E a mulher é um outro que tem experiências que eu não tenho e nunca vou poder ter. Eu adoraria ter 10 vidas, para ser homem, mulher, enfermeiro, judeu... Mas não dá. Tem um cara que diz que todo grande ator é mulher, e eu sinto que isso se dá pelo lado excepcionalmente receptivo delas, que é maravilhoso. Esse outro da mulher é fantástico porque me dá uma solução
“Se eu fizer outro projeto, tenha certeza de que será muito mais complicado e estará focado nesse caminho do ator, com a utilização de textos diversos, tudo filmado num lugar fechado”
filmes e tendo pesquisa prévia ou não, tem um encontro em que eu tento desenvolver o que aprendi na vida, que é ouvir e conversar com as pessoas. Nesse filme, não. Eu vou lá e observo um diretor trabalhando, e isso foi penoso para mim, porque eu sempre estive no controle e agora estava absolutamente sem. E eu não tinha como tomar controle, não tinha o menor sentido. Então me senti mal nesse aspecto. Mal ou bem, geralmente, em meus outros filmes, eu sento para conversar com uma pessoa e aí é tarefa minha, da sorte, do acaso, do que consigo extrair de alguém: uma performance, que ela conte a vida dela ou invente a vida dela. Nesse filme eu não tinha isso. Eu sabia que não
para dizer que não sei o que vou fazer, e ter que pedir auxílio dos outros, eu desisto de cinema. Porque aí não dá. Agora, por outro lado, com o filme pronto, eu, que tinha dúvidas de como esse filme ia ser recebido, e as tenho até hoje, começo a gostar mais desse filme quanto mais falam mal. Porque, no fim das contas, ele me deu um bom objeto para eu pensar e sentir. E se o filme provoca discussão em gente que lida com o pensamento e com arte, eu acho ótimo. continente Podemos notar que Jogo de cena e Moscou trabalham com uma percepção feminina de mundo. Qual a razão desses dois últimos filmes trabalharem com este viés?
de identidade, a partir do momento em que o outro me diz aquilo que eu gostaria de também poder viver. continente E o próximo projeto? eDUARDo coUtinHo A questão é que estou fazendo filme para cadeirante porque não tenho mais saúde para subir morro. Eu preciso saber se vou estar em condições físicas e mentais de fazer outro filme. Talvez a Videofilmes queira fazer outro, eu não sei. Se eu fizer outro projeto, tenha certeza de que será muito mais complicado e estará focado nesse caminho do ator, com a utilização de textos diversos, tudo filmado num lugar fechado. Mas a verdade é que eu simplesmente estou em crise. E Moscou evidencia isso.
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FOTOS: REPRODUÇÃO
FLORA PIMENTEL
CONSERTAM-SE CORAÇÕES
A vingança da poesia Há uma afirmação antiga de velha que paira nos céus do Brasil: “De poeta e louco todos nós temos um pouco”. Não interessa se velha e já sambada. Não importa. Foi talvez pensando nisso, que Renato Lima, ex-apresentador do Sexta Cultural, da TV Universitária, e agora estudando nos EUA, resolveu testar a loucura intelectual dos colegas de mesa. Cobriu a capa de um livro com papel verde e uma enorme interrogação negra. Lia os poemas do livro secreto e perguntava: “É bom poeta?” “Escreve bem?” Ninguém ousava dizer: É ruim, não presta. Não eram ruins mesmo, mas irregulares. Todos ficavam zanzando em respostas. “É Mauro Mota?”, perguntou um deles, por causa da temática e da leveza dos versos. Não, não era. No final, o poeta e #44 louco atendia pelo nome de José Sarney. Sim, esse mesmo, com veleidades literárias, e o destino desviado para a presidência da República e, depois, do Senado. Num furdunço danado. De resto, vem a convicção: a poesia demora, mas se vinga. RAIMUNDO CARRERO
CON TI NEN TE
A FRASE
“Contradigome? Pois muito bem, eu me contradigo. Sou vasto, contenho multidões” Walt Whitman
Além de uma oficina no Bairro dos Coelhos, no centro do Recife, Roberto Andrade herdou do pai a paixão pelo Santa Cruz, time de muitas glórias, mas que hoje amarga uma permanência por tempo indeterminado longe da elite do futebol brasileiro. Roberto costuma dizer, respondendo antecipadamente às provocações, que “um tricolor jamais é sofredor, apenas se decepciona. Só ser Santa Cruz já é uma alegria”. Na oficina São Luiz, consertam-se até corações tricolores.
Balaio COMEÇA ASSIM... Entre as várias primeiras linhas famosas de livros, algumas se destacam. A abertura de Anna Karennina, de Leon Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”. Albert Camus (foto) não deixa por menos em O homem revoltado: “Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes”. (Fred Navarro)
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JAMAIS UMA VIDA NORMAL Em 1975, Primo Levi respondia às perguntas de alguns adolescentes italianos sobre seu livro Si questo è un uomo (É isto um homem?) e dizia que, sem cinismo, aquele livro o tinha ajudado a suportar a experiência de deportado para o campo de concentração de Monovitz e que, depois dele, vivia uma vida normal. Havia um antes e um depois desse célebre livro. Primo Levi suicidou-se em 1978. (Flávio Brayner)
CRIATURAS
VAI TER LANCHINHO? Os músicos cariocas dizem que há uma forma de saber como um colega anda de trabalho, se cheio de ofertas ou na pindaíba. É só chamálo para uma gig (freelancer, no jargão dos músicos): se ele perguntar qual é o estilo, está muito bem, dispensando convites; se perguntar se tem cachê, não está mal, mas tem buracos na agenda; mas, se perguntar se vão servir lanche, pode saber que está correndo atrás e raramente alcançando. (Beatriz Coelho Silva)
HAJA PROMOÇÃO! Download remunerado, CD, Semi Metallic Disc... As “salvações da indústria fonográfica” parecem não vingar. Mas, eis que surgem ideias alternativas, como as de Josh Freeze, baterista dos Nine Inch Nails. Trata-se, digamos, de um pacote promocional. A pedida básica sai por U$ 7: a compra do seu CD solo. Por U$ 50, o fã, além do CD, adquire uma camisola customizada, um DVD e... uma ligação de agradecimento do próprio Josh Freeze. Por mil dólares? O pacote anterior, acrescido de peças de bateria autografada. O detalhe é que esta oferta é limitada, pois oferece jantar com o baterista, que ainda se dispõe a lavar seu carro. Para quem pensa que a criatividade do músico parou por aí, há também o pacote “exclusivo”. Quem pagar U$ 75 mil pode contratar Freeze para a sua banda temporariamente. Os interessados podem fechar negócio com o músico no seu site www.johsfreeze.com. (Thiago Lins)
Sartre & Beauvoir Marchesi
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Portfolio
camilo Soares
SOBRE A MELANCOLIA DO VELHO MUNDO
Página anterior 01 Petite MARiLYn
Menina brincando no bairro de Belle Ville, em Paris, evoca versão ingênua da célebre imagem de Monroe
Nestas Páginas 02 ViStA Do Rio
Às margens do Sena, pai e filho observam embarcações que passam
TexTo: Danielle Romani 03
Um país melancólico. Belo, porém triste, sem a joie de vivre e a jovialidade de outras nações europeias. Assim o diretor de fotografia de cinema e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Camilo Soares, enxerga a França, onde morou nos últimos seis anos e teve oportunidade de captar imagens, feitas em andanças por várias regiões e cidades do interior. “É uma nação muito rica cultural e historicamente, mas velha. Tanto Paris como as cidades interioranas me provocaram a mesma sensação.” Esse olhar estrangeiro pode ser conferido na série de fotografias publicadas nestas páginas. Nelas, flagrantes de pessoas em situações cotidianas, registradas poeticamente. “Minha intenção foi captar o instantâneo, agarrar as lembranças. Congelar o que vi”, conta Camilo, que, mesmo tendo registrado vários momentos de descontração e leveza, não abandona o sentimento de pesar. “Se olharmos bem, existe leveza, mas até ela é melancólica. O que reflete bem a alma francesa”, pontua o fotógrafo, que reflete: “A França atual tem problemas de identidade e renovação dos seus valores, em especial no que diz respeito aos imigrantes. De um lado, a igualdade, a liberdade, a fraternidade. De outro, o preconceito.
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DeMoiSeiLLe ciGARette
Num bistrô de Châtelet, mulher vive cena que bem representaria a ideia clichê de uma existencialista
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PARiS É UMA FeStA
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BAnHo De SoL
Festa da Música leva às ruas multidão de brincantes que remete ao Carnaval Jardim de SaintMalo, na Bretanha, abriga o passeio domingueiro, em que é permitido relaxar e distender-se
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renata cadena
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Peleja
Como o vale-cultura pode aumentar o consumo artístico no país? Mecenato para uns, populismo para outros. Capitalização da cultura no Brasil. Para o jornalista e editor Quartim de Moraes, o benefício deve visar à produção, e não à circulação. A empresária cultural Melina Hickson diz que a produção já conta com incentivos, mas adverte: é preciso ampliar a difusão.
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Quartim de Moraes
Melina Hickson
É impossível a iniciativa não resultar
em algum benefício sociocultural. O tempo dirá, porém, se a relação do benefício com seu custo será favorável, ou se terá se prestado apenas a aumentar o repertório do populismo neste país. Nada contra bolsas e vales, é claro. São instrumentos necessários para amenizar as desigualdades. Mas são Jornalista, editor e apenas paliativos. Há uma diferença criador da editora Senac entre dar o peixe e ensinar a pescar. A raiz dessa questão está na Educação. Enquanto não pudermos oferecer a todos um eficiente sistema de educação formal, tudo o mais será insuficiente. Mas não se pode esperar até que a questão-chave da Educação se resolva. Por isso, além e mais importante do que facilitar o acesso do maior número possível de brasileiros aos bens culturais, é preciso investir seriamente, em longo prazo, no fomento da criação artística, na experimentação, na inventividade, no regionalismo. É preciso subsidiar a base da produção artístico-cultural, pois sem tal apoio essa produção tenderá a se cristalizar; por um lado, em concepções elitistas e, por outro, em fórmulas comerciais, no big business. Isso só interessa a uma minoria de brasileiros concentrados nas regiões mais ricas do Sudeste. O investimento no fomento da produção, mais do que na circulação do espetáculo, é o que fazem os países desenvolvidos. E essa ajuda proveniente de recursos públicos, inclusive de renúncia fiscal, é canalizada prioritariamente para as atividades culturais que não têm possibilidade de captar apoio no mercado. A nova lei de incentivo à cultura, que substituirá a problemática Lei Rouanet, promete a correção dos equívocos do passado e o reforço dos investimentos diretos do governo federal em cultura. O valecultura se encaixa no espírito da nova lei. Só resta saber aquilo que até agora o MinC e o ministro Juca Ferreira não conseguiram deixar claro: quais serão os novos critérios para os investimentos oficiais, diretos ou provenientes de renúncia fiscal. Que tipos de projetos e ações artístico-culturais deverão ser beneficiados? O ministro Juca repete que a Lei Rouanet transfere para os departamentos de marketing das empresas as decisões sobre a aplicação dos recursos públicos na economia da cultura. É meia-verdade. São os atuais critérios de seleção, aplicados pelos próprios agentes governamentais, que permitem essa distorção.Esses critérios vão mudar? Em termos de consumo cultural, é muito pouco continuar oferecendo apenas mais do mesmo.
enquanto não pudermos oferecer um eficiente sistema de educação formal, tudo o mais será insuficiente
na proposta do vale-cultura há mui-
to que se comemorar, e também muito o que se refletir sobre o tema e seus resultados. É gratificante ver a cultura ser colocada num patamar maior, num nível antes só debatido em torno do essencial: alimentação e transporte. Finalmente, ela é entendida como Produtora e um componente forte na formação empresária cultural da astronave do pensamento, e como complemento à educação básica do cidadão. A grande sacada da proposta é voltar os olhos e o fomento para o consumo dos produtos culturais. A produção já vem sendo incentivada e fomentada pelas inúmeras leis e fundos de incentivo, apesar dos limites e distorções dos mesmos. O vale-cultura pensa no consumo, no escoamento e no acesso maior da população a todos os níveis dessa gigantesca produção cultural brasileira, que em determinadas áreas não chega a alcançar um público expressivo. A intenção do benefício é aumentar consideravelmente o consumo de alguns segmentos como cinema, dança, museus e artes cênicas. Mas, como uma proposta dessas não possibilita delimitar campos, naturalmente, num primeiro momento, o trabalhador empregará seu vale no produto que ele já conhece ou já ouviu falar, ou seja, aquele que ele viu na televisão ou ouviu no rádio. Um cidadão empregaria seu vale num concerto musical de um artista que ele nunca viu ou ouviu? Assim, podemos imaginar que, num primeiro momento, o benefício poderá ir aonde já ia o pouco dinheiro que o trabalhador tinha para o lazer. Mas, desta vez, com uma diferença: ele não paga sozinho, pagam também o empregador, o Governo, os contribuintes. Do ponto de vista do produtor, alguns poderão sentir imediatamente um impacto do vale no seu público, mas outros demorarão para senti-lo. Assim, os resultados esperados só virão se pensarmos num conjunto de ações complementares. Dessa forma, ele traz também a oportunidade de pensar, por exemplo, em como melhorar a difusão no país, como democratizá-la e ampliá-la. Ir além do “produto comercial”, colocando os meios de comunicação para divulgar e promover a gigante e diversa produção cultural brasileira. Esta é uma excelente ação para fazer o objetivo do benefício ser alcançado: dar oportunidade ao cidadão de conhecer coisas novas e investir também em produtos que tragam outro conteúdo, ou um pensamento novo e aditivo.
A cultura é um componente essencial na formação do pensamento e da educação básica
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especial
arte-educação Pela formação de um olhar reflexivo Arte-educadores, professores e pesquisadores afirmam que é preciso, além de fomentar a produção artística, investir em projetos pedagógicos que formem público para a arte TEXTO Mariana Oliveira
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em abril deste ano, um grupo de artistas inaugurou, com uma exposição do pintor Paulo Whitaker, a Sala Recife, anexa ao ateliê de Gil Vicente, em Boa Viagem, Recife. O objetivo era criar mais um espaço de exibição e fomento às artes plásticas, incentivando a formação do olhar e a reflexão crítica. A abertura da mostra, gratuita, figurou na mídia impressa da cidade, mas, mesmo com essa visibilidade, os números de visitação não foram expressivos. Excetuando a inauguração (que reuniu artistas, críticos, curadores e pessoas da área) e um grupo agendado de estudantes da UFPE, só duas pessoas estiveram lá. Impossível não perguntar o porquê dessa falta de interesse do público pelas artes plásticas. A música, o teatro, a dança, a literatura, o cinema são linguagens artísticas que conseguem mais proximidade com o público em geral. Com as artes plásticas, isso parece
não acontecer. É como se as obras continuassem encasteladas nas torres de marfim, isoladas em suas auras, distantes da realidade de vida das pessoas. Não é de estranhar, portanto, que dados do IBGE (2006) apontem que 96% dos brasileiros não frequentam museus e 93% nunca visitaram uma exposição de arte. “Eu tenho alunos que chegam à faculdade sem nunca ter ido a um museu. O que é uma coisa quase inacreditável de imaginar em São Paulo. Há um grande problema que a gente precisa detectar”, destaca Sérgio Augusto de Oliveira, do setor educativo do Itaú Cultural. Os pesquisadores em arte-educação percebem o avanço no fomento à produção cultural, mas acreditam que falta investir na formação e educação do público. “Um país só pode ser considerado de alta cultura quando tem a produção e a recepção ativas, vivas, críticas. Está faltando educar
a recepção”, constata a professora, arte-educadora e pesquisadora Ana Mae Barbosa, nome de destaque internacional no campo da arteeducação, que revolucionou o ensino da arte no país ao propor como método de trabalho a Abordagem Triangular, cujo foco é o ver, o fazer e o contextualizar. No Brasil, diferentemente de outros países do mundo que trabalham as duas áreas em conjunto, educação e cultura não são compreendidas como instâncias inseparáveis. “O que fomenta a produção é diferente do que fomenta a educação para a arte. Projetos de educação não são aceitos em arte e os de arte não são aceitos na área da educação”, contextualiza Mônica Hoff, coordenadora do setor educativo da Bienal do Mercosul. Como mudar isso? Como levar o público para dentro dos museus e exposições de arte? O primeiro passo para mudar esse panorama, na visão das diretorias
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rafael gomes
con especial ti nen te#44 Página anterior 01 para integrar
no instituto tomie ohtake, as crianças visitam as mostras e participam de oficinas que dialogam com as linguagens contemporâneas
Nestas Páginas 02 método
ana mae Barbosa revolucionou o campo da arte-educação com a abordagem triangular
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acesso
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mediação
fernando azevedo acredita que não basta abrir as exposições gratuitamente para democratizar a cultura a Bienal do Mercosul, em porto alegre, foca suas ações no público escolar, através de visitas agendadas a ateliês
de museus e centros culturais, é abrir as portas gratuitamente. Seria uma forma de dar início ao processo de democratização cultural, pois, segundo Rosa Iavelberg, diretora do Centro Universitário Maria Antonia, da USP, a gratuidade da entrada “pode promover o interesse e gerar hábitos de frequentação, valorização e busca pelo conhecimento”. Mas, para Fernando Azevedo, professor, arte-educador e atual presidente da Escolinha de Arte do Recife, é preciso ter cuidado para não confundir popularização com democratização. Segundo ele, democratizar a cultura implica necessariamente em um processo educativo bem-elaborado e continuado, mais complexo que a entrada franca. Tanto que, mesmo com a possibilidade de um acesso livre a várias mostras, a frequência espontânea a esses espaços no país é praticada por poucos. Os grandes números são contabilizados, geralmente, naquelas exposições que apostam suas fichas no público escolar, através do agendamento de visitas, consolidado a partir de um núcleo educativo – que pode ou não merecer essa alcunha. Como os patrocinadores e financiadores desejam um resultado quantitativo, precisam investir na participação das
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escolas. “O público passa a aparecer no Brasil como algo importante a partir do momento em que funciona como uma moeda de troca. Na visão de alguns gestores, o resultado do trabalho educativo é apenas um número”, destaca Joana D’Arc Sousa Lima, que coordenou o núcleo pedagógico do Instituto Ricardo Brennand, entre 2002 e 2008, no Recife.
departamento pedagógico
Para Ana Mae Barbosa, foi o Governo Lula que mudou a cabeça do povo
brasileiro, ou, pelo menos, fez com que as pessoas não quisessem mais se apresentar como elitistas, e a maneira dos centros culturais referendarem sua preocupação com o social foi através de um departamento pedagógico. “Todo mundo quer mostrar que tem preocupação social. Eu quero é que mostre! Se tiver alguma preocupação social, não vai ser pontual. Eu acho bom que esses projetos sejam desenvolvidos, mesmo que apenas para estarem em voga. É um começo”, aponta.
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Seja visando o marketing, ou com uma real preocupação social, muitas instituições têm formado equipes fixas e criado departamentos pedagógicos, coisa que não era comum anteriormente. A ex-coordenadora do setor de artes plásticas da Fundação Joaquim Nabuco — Fundaj (PE), Cristiana Tejo, lembra a luta que enfrentou na instituição para mostrar a importância do trabalho dos mediadores para uma exposição de arte contemporânea e a necessidade de remunerá-los por esse trabalho. A Fundaj tem, agora, um departamento dedicado à educação, que pensa ações variadas dentro de seus equipamentos culturais. O mesmo acontece com o Itaú Cultural (SP), para o qual o educativo deixou de ser um departamento que trabalhava em função dos outros e passou a ser uma área de expressão, cujo trabalho vai além de apoiar as iniciativas dos outros setores e cria seus próprios produtos. Até algumas exposições temporárias vêm mostrando essa preocupação. Em Porto Alegre, a Bienal do Mercosul declara como seu principal
a forma encontrada pelas instituições culturais para referendar sua preocupação social é o setor educativo objetivo a formação de público, e daí a necessidade de manter um núcleo educativo fixo, atuando nos anos em que o evento não acontece. No outro extremo do país, em Belém, o salão anual Arte Pará também demonstra o interesse em desenvolver uma vertente pedagógica. “Acontece a premiação, a exposição, mas o que fica é o diálogo com o público. São os mediadores que vão fazer aquilo acontecer ou não, eles estão na linha de frente”, explica Vânia Leal, coordenadora geral do projeto pedagógico. Justamente por estarem na linha de frente e estabelecerem esse contato direto com o público, os mediadores são elementos fundamentais. Para
começar, há um debate em torno de como eles devem ser chamados: guias, monitores, educadores ou mediadores. “Eu prefiro educadores ou mediadores. Não gosto de ‘guia’ porque está supondo que a pessoa é cega, não gosto de monitor porque está supondo que a pessoa não pensa, porque quem pensa é o disco rígido”, compara Ana Mae. Espera-se que um mediador de museu ou de instituição cultural seja mais que um mero reprodutor de um discurso; tenha uma postura dialógica, de troca de conhecimentos. A proposta é levar o público a ver as obras, atribuir e construir significados para ela, e não ter um grande volume de informações com datas, detalhes da história da arte, como nos audio guides. “Acho que o grande desafio da mediação é conseguir provocar as pessoas, deixá-las à vontade para se expressar, para construir significados em cima do que ela está vendo”, explica Luciano Lamer, da Fundação Iberê Camargo (RS). Já não se recomendam ações como a realizada pela Bienal de São Paulo, em
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reflexão
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mediação
a artista ana teixeira pretende mostrar aos alunos que frequentam seu ateliê em Jundiaí (sp) que a experiência da arte pode ajudar a entender o mundo hoje, espera-se que os arteeducadores, ao invés de respostas, levem questões e reflexões ao público
criistiano sant´anna/indicefoto.com/divulgação
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1998, cujos mediadores circulavam pela mostra vestindo uma camisa que dizia: “Tira-dúvidas”. “No final, o público aproximava-se até para perguntar onde era o banheiro. Esse não seria o papel do mediador”, defende Ana Mae. A partir do momento em que se pretende estabelecer uma atitude mais dialógica, torna-se necessário também que o mediador passe por uma formação completa, para além da história da arte. Em sua preparação, é preciso conhecer e pensar também o próprio campo da arte-educação e os estudos que vêm sendo desenvolvidos na área; não se deve ficar restrito aos artistas e às obras apresentadas nas mostras. “O mediador precisa ser bem-preparado, ele tem que ser alguém que problematiza”, sublinha Fernando Azevedo.
arte na escola
Porém, não é apenas o acesso gratuito às instituições e a prática de atividades pedagógicas gerenciadas por mediadores competentes que vão garantir um trabalho com resultados positivos. Por melhores que sejam as iniciativas, se o mediador não contar com o apoio do professor, o elo entre a visita a um centro cultural e a escola não se consolidará. Para a
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professora Márcia Pontes, de Belém, houve um avanço, mas a arte ainda não é reconhecida na escola com o seu devido valor. Muitas vezes o professor não tem formação na área, mas, como tem um horário vago, termina sendo escalado para ministrar as aulas de arte. “A grande questão desses professores é a auto-estima baixa. Eles são desvalorizados pelo sistema e dentro da própria escola”, diz Mônica Hoff. É de se esperar que ele se sinta perdido, ainda mais quando se trata de obras e artistas contemporâneos que ainda não estão nos livros de história da arte. “Há professores que vêm, deixam os alunos e vão circular pelo comércio das redondezas. Não há nenhuma preocupação aparente em criar um diálogo entre a disciplina que ele ministra e o conteúdo do local visitado”, destaca a arte-educadora Cilene Nabiça, que atualmente trabalha no educativo da Casa das Onze Janelas, em Belém, onde está concentrado um valioso acervo de arte contemporânea. Segundo a coordenadora do Sistema Integrado de Museus do Pará, Deusarina Vasconcelos, o objetivo de uma visita agendada não é ser um simples passeio, ela deve se transformar em atividades na escola. Para isso, é preciso também preocupar-se com a formação do professor. “É papel do museu fazer essa formação? Eu não sei. O que eu sei é que existe essa demanda. Eu sinto que nas escolas ainda tem muito uma ‘escolarização da arte’ . Eu acho que as instituições culturais têm a oportunidade de dar uma formação em que a arte esteja em primeiro plano”, diz Stela Barbieri, do Instituto Tomie Ohtake (SP), que promove cursos de longa duração para professores, cujo projeto de conclusão envolve uma ação nas escolas. No ano passado, uma equipe da Fundação Bienal do Mercosul visitou 42 municípios do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina para promover encontros com os professores e prepará-los para a futura visita à sétima edição, que começa em outubro. A equipe levava informações sobre a arte contemporânea para professores sem acesso a ela, que a
modernidade tradição no ensino da arte A arte-educadora Noemia Varela, hoje com 92 anos, conheceu a Escolinha de Arte do Brasil, em 1949, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, para a realização de um curso. Foi esse contato com a escolinha criada por Augusto Rodrigues que a aproximou definitivamente da arte-educação, num momento em que não se percebiam e valorizavam as contribuições que a arte poderia trazer para a educação. Voltando ao Recife, não demorou para que ela, juntamente com o próprio Augusto e artistas como Francisco Brennand e Aloísio Magalhães, fundassem, em 1953, a Escolinha de Arte do Recife (EAR), uma sociedade sem fins lucrativos, vinculada ao Movimento Escolinha de Arte do Brasil (MEA). Desde a sua criação, a EAR funcionou na casa de número 124, na rua do Cupim, no bairro das Graças, e teve entre seus alunos os artistas Gil Vicente e Pedro Frederico. Inspirado nas ideias de Herbert Read, o movimento propagava a concepção de arte-educação modernista, baseada na ideia da livre expressão. Nesse processo, os alunos eram preservados do
contato direto com a obra de arte, justamente por se acreditar na pureza expressiva das crianças, que não deveriam ser levadas a imitar os artistas. Outra forte influência dentro do MEA foi o pensamento de Paulo Freire, que chegou a presidir a Escolinha de Arte do Recife, nos anos 1950 – e que é lembrado até hoje pelos arteeducadores. Segundo Fernando Azevedo, atual presidente da EAR, o elo entre Noemia Varela e Paulo Freire diz respeito à concepção de ambos da educação como forma de libertação. O contato com essas duas personalidades foi determinante, por exemplo, para a opção de Ana Mae Barbosa por atuar no campo da arte-educação. Foi através da relação com os dois que a educadora entrou como estagiária na Escolinha, tornou-se professora e terminou dirigindo a instituição durante a ausência de Noemia Varela. Apesar de ter sua metodologia questionada hoje, inclusive pela própria Ana Mae, o MEA foi fundamental para a formação de toda uma geração de arte-educadores e na oficialização do ensino da arte no país. Atualmente, a Escolinha continua funcionando, no mesmo endereço, e dentro dos mesmos princípios traçados por seus pais: Augusto Rodrigues e Noemia Varela.
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escola
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formação
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material
a formação dos professores é essencial para que a visita a uma instituição cultural possa gerar projetos dentro do ambiente acadêmico os mediadores do Arte Pará 2008 pensaram o campo da arte-educação antes de entrar em contato com o público muitas instituições têm se preocupado em criar produtos que aproximem os professores da arte contemporânea
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desconhecem e que sem esse debate não poderiam desenvolver projetos ou até mesmo preparar seus alunos para o que iriam encontrar na Bienal. Em Brumadinho (MG), no Centro de Arte Contemporânea de Inhotim, o projeto Descentralizando o acesso também trabalha a formação dos docentes. A equipe de mediadores recebe, aos sábados, os professores de uma escola da região e propõe uma discussão seguida de uma visita ao espaço. Esse mesmo grupo vai à escola conhecer o ambiente em
que esses docentes trabalham e só depois os alunos são integrados, e visitam Inhotim. No final, há um acompanhamento dos projetos desenvolvidos no ambiente escolar a partir daquela visita. “Os dois encontros de formação com os professores já são com o foco da prévisita e da pós-visita. Orientamos os professores para que eles façam um trabalho de pré-visita, a ida a Inhotim seria apenas uma etapa do trabalho”, explica Janaína Melo, coordenadora do núcleo pedagógico.
Acompanhando um grupo de professores que participam de outro projeto do centro, o Escola Integrada, percebe-se como eles ainda têm grande dificuldade de entender a arte contemporânea e de diferenciá-la da moderna. Assim como a visita provoca estranhamento nos alunos, também gera o mesmo sentimento neles: “É um impacto. O medo de você estar entrando no desconhecido”, comentavam alguns professores, durante um encontro no mês de junho. Fica clara a necessidade de eles conhecerem e se apropriarem dos códigos para terem a possibilidade de, no retorno ao colégio, potencializar a visita. Segundo o relato de muitos mediadores, é sensível a diferença qualitativa do processo mediativo, quando os estudantes chegam à exposição com uma preparação anterior, focados em um projeto que terão que desenvolver em sala de aula. “Hoje, os meus alunos vão fazer uma visita e participam. Nós demos a eles subsídios para chegarem lá e entenderem aquela instalação. A minha experiência no Arte Pará foi muito positiva, para isso eu visitei a mostra antes e planejei tudo”, situa a professora de língua portuguesa Carlota Bordalho.
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o medo de confrontarse com a sua própria ignorância termina afastando o grande público das mostras de artes plásticas instituição se preocupa com a educação pelo material que produz para a criança, para o adolescente e para o docente. O professor José Estevão Haeser conta que foi à penúltima Bienal de São Paulo e, chegando lá, perguntou pelo material para o professor, mas não havia, a única alternativa era a compra do catálogo, que custava 40 reais. “Eu me senti ofendido com isso. Por isso que a Ana Mae fala que a Bienal do Mercosul deveria servir como referência para a de São Paulo.”
cUrador x arte-edUcador
Outro ponto questionado pela maioria dos pesquisadores, professores e mediadores é a relação entre a curadoria das mostras e os profissionais contratados para trabalhar a mediação com o público. Segundo Fernando Azevedo, o sistema da arte impõe uma hierarquia
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Outra preocupação dos setores educativos é a preparação de um material vinculado às mostras para ser trabalhado pelos professores. A equipe do Itaú Cultural desenvolve o Caderno do professor investigador, que levanta questões ligadas à arte contemporânea. “Por mais que existam livros à disposição, é difícil o professor ter acesso a informações sobre arte contemporânea. Por isso estamos fazendo esse trabalho, ligando com outros períodos para facilitar a compreensão”, explica Daniela Azevedo. Muitas vezes os professores esperam que o material seja uma receita, “Os 10 passos para fazer uma aula de artes”, e terminam se decepcionando. As lâminas, os cadernos ou vídeos servem como apoio na continuidade da ação dentro da escola. Segundo Ana Mae Barbosa, é possível perceber o quanto uma
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formada por artistas, curadores, críticos e historiadores. A todas essas instâncias é permitida a criação de um pensamento, mas para os arteeducadores cabe apenas reproduzir o discurso dos outros, como se eles estivessem sempre “a serviço”. Essa relação tensa entre as duas áreas termina prejudicando o processo educativo. “A entrada gratuita é um facilitador, mas não é suficiente para democratizar, pois só com a gratuidade continuam ‘em aberto’ questões como: ‘Quem faz o quê, e para quem?’ e ‘Quem escolhe o que as pessoas podem ver ou fazer?’”, aponta a professora e pesquisadora da USP Cristina Rizzi. Na busca por um equilíbrio, a Bienal do Mercosul criou, em 2007, a figura do curador pedagógico. Segundo os organizadores do evento, o artista e pesquisador uruguaio Luis Camnitzer atuou em parceria com os curadores artísticos, com o mesmo poder de decisão. Na mostra deste ano, a curadoria pedagógica continua dividindo o “poder” com a artística, reafirmando a opção declarada da Bienal de estar situada num campo também pedagógico. Os projetos educativos precisam levar em consideração os processos de exclusão do próprio campo da arte,
que, usualmente, são extremamente elitistas. “Muitos projetos educativos existem para reforçar as distinções e confirmar para o público leigo que esta parte da cultura não lhes pertence”, diz a professora e pesquisadora da UNESP Rejane Coutinho.
arte e elitismo
No livro Culturas híbridas, Nestor Garcia Canclini apresentou uma pesquisa analisando a frequência dos museus no México. O resultado mostrou que a grande maioria das pessoas que mantinham a prática eram filhas de universitários ou estavam cursando uma universidade, ou seja, uma parcela reduzida da população. Um dos motivos do grande público não ir assiduamente aos museus seria o medo de confrontarse com a sua própria ignorância. Pesquisas como essa revelam a necessidade de desconstruir conceitos elitistas e aproximar a arte do cotidiano das pessoas. “A ideia de se ver refletido no museu é básica para você realmente conquistar um público”, pontua Ana Mae. Segundo ela, o ideal seria, inicialmente, levar o museu ou a instituição cultural para as comunidades e só depois levar as pessoas aos centros culturais. Em Belém, a Fundação Curro Velho busca fazer com que a população
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casa aBerta Para que todos Visitem o museu Quem segue pelo viaduto TorreParnamirim, no sentido do bairro de Casa Forte, no Recife, certamente já passou pelo Museu Murillo La Greca, situado entre os prédios e lojas de luxo do bairro do Parnamirim e a comunidade da Vila Vintém. Apesar de ter entrada gratuita, manter um acervo permanente e quase sempre receber mostras temporárias de arte contemporânea, o museu é pouco frequentado e pouco conhecido pela população da cidade. Uma das preocupações da instituição, situada em um bairro residencial, longe do centro, é atrair para suas salas, além do público escolar, as pessoas que vivem, circulam e trabalham no seu entorno. “A maioria das pessoas que vem aqui diz que já tinha passado várias vezes, mas achava que estava fechado. Elas desconhecem o que está acontecendo aqui dentro”, explica a mediadora Fabianne Lamour. Pensando nisso,
o núcleo pedagógico elaborou uma carta que foi enviada aos vizinhos, convidando-os a entrar e apropriar-se desse território. Essa tentativa de aproximar-se da população, principalmente daquela de baixa renda, que mora nas redondezas, vem dando resultado. Agora, as crianças que entravam nos jardins do museu, apenas para colher frutos, já se arriscam a visitar uma exposição ou participar de uma oficina. O Ateliê Experimental, desenvolvido nos meses de junho e julho deste ano, trabalhou as linguagens contemporâneas e teve metade das vagas disponíveis oferecidas como bolsa de estudos às crianças da comunidade. Além de trabalhar as linguagens artísticas, a cada módulo, o ateliê colocou os alunos em contato com os próprios artistas. No módulo vinculado à pintura, o convidado foi Gil Vicente. “Eu passei pela Escolinha de Arte do Recife e nós conversávamos com artistas. Esse contato foi superimportante para mim. Foram anos fundamentais na minha formação”, lembra. Pensando nessa aproximação com os vizinhos e na busca por respostas sobre a relação do público com a arte contemporânea, a arte-educadora Cristiane Mabel desenvolveu sua pesquisa de conclusão de graduação
em Artes Plásticas com crianças da comunidade, promovendo o minicurso Experimentando Arte. Ela reuniu sete crianças da Vila Vintém, que frequentaram o museu durante três meses e a ajudaram a buscar respostas para algumas questões: As crianças são mais receptivas que os adultos? Elas aceitam a ideia de uma arte sem julgamento, feita a partir de uma técnica? Ou será que simplesmente reproduzem aquilo que está sedimentado no senso comum? A arte-educadora concluiu que, mesmo para as crianças, o conceito de arte como desenho, pintura ou escultura ainda é referência. Segundo ela, enquanto trabalhavam com obras contemporâneas, as crianças estavam sempre perguntando quando, finalmente, chegariam à pintura. Mas, ao longo das atividades, passavam a incluir, na sua “lista” de objetos artísticos, obras contemporâneas. “Esses primeiros indícios de mudança na recepção das crianças quanto às produções contemporâneas me fazem crer na importância do contato com a arte desde cedo”, pontua Mabel. Em Minas Gerais, o Centro de Arte Contemporânea de Inhotim também vem estreitando seus laços com a população que vive ao seu redor. Localizado no município de Brumadinho, a 60 km de Belo Horizonte, com pouco mais de 30 mil habitantes, o centro promove ações que visam atrair o público das redondezas para dentro de suas dependências. Antes do desenvolvimento das ações, 90% da frequência vinha de Belo Horizonte. “Agora, a ideia é fortalecer os laços com as cidades vizinhas”, explica Janaína Melo, coordenadora do núcleo pedagógico. Entre os projetos que trabalham nesse sentido está o Laboratório Inhotim Brumadinho, que seleciona alunos das escolas públicas da região e desenvolve projetos, sempre propondo uma relação e uma aproximação entre as obras expostas e a vida cotidiana da comunidade. A cada seis meses, os alunos apresentam ao público o resultado dos trabalhos.
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possa ver-se e sentir-se fazendo parte dos equipamentos culturais da cidade. Localizado num antigo matadouro, o projeto aproxima a comunidade das diversas linguagens artísticas, entre elas, as visuais. A arte-educadora Cilene Nabiça recorda um ateliê que gerenciou, no qual trabalhava questões ligadas à visualidade contemporânea. “Havia pessoas que achavam que, ao entrar na minha oficina, iriam aprender a pintar panos de prato”, lembra. Ao longo do trabalho, os alunos eram incentivados a desconstruir alguns estereótipos e buscar experiências estéticas no próprio cotidiano. “Aquela senhora que veio em busca de imagens para o seu pano de prato teve uma evolução incrível. Essa mulher, que tinha uma dimensão muito doméstica, começa a reler o cotidiano e passa a entender a linguagem mais complexa da arte contemporânea. Esse processo de aproximar as pessoas da compreensão, a partir de suas próprias vivências, foi extremamente marcante para mim”, revela Cilene.
qUebra de estereótipos
Na cidade de Jundiaí, em São Paulo, o trabalho da artista e educadora Ana Teixeira também objetiva essa quebra dos estereótipos. O Ateliê Parangolé é oferecido aos alunos da escolamodelo Antonio Cintra Gordinho, no turno da tarde. Ela conta que, quando pedia aos alunos um desenho, as crianças quase sempre optavam por desenhar os clássicos corações, florezinhas, casinhas dentro dos modelos convencionais. Ao longo do curso, a artista foi desenvolvendo atividades que mostravam que o desenho é para ser pensado, é reflexão no papel, não tem que seguir modelos pré-estabelecidos. A intenção de ações como essas não é formar artistas, mas formar cidadãos críticos e atuantes. “A gente não tem a mínima pretensão de formar artistas e deixa claro que eles não estão fazendo arte, eles estão usando a experiência da arte para se entender, para entender o mundo. As pessoas não têm a noção de que a arte é pensamento, reflexão, intervenção no mundo, na política, e a gente quer que eles percebam isso”, explica Ana Teixeira, rebatendo as
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críticas que afirmam que esse tipo de atividade termina iludindo os alunos e dando a eles a falsa impressão de que serão todos artistas. Essas hipóteses têm como base a ideia de que a sensibilidade para a arte é algo que não se ensina, é algo intrínseco, relacionado o talento de cada um. Segundo Ana Mae Barbosa, esse tipo de pensamento mantém a arte como algo elitista, distante da maioria das pessoas, feita apenas para a contemplação de poucos eleitos. “Sempre se diz que ensinar é transmissão de conhecimento, mas não é. Ensinar é provocar no indivíduo o interesse de conhecer e dar materiais para que ele construa seu próprio conhecimento. Paulo Freire fala disso como ninguém. Tem gente que diz: ‘Arte não se ensina’. Mas por que não se ensina? Se você aprendeu, é porque se ensina”.
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contato
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integração
o artista gil vicente participou de um encontro com os alunos do ateliê experimental do museu murillo la greca, no recife no centro de arte contemporânea de inhotim, em Brumadinho (mg), crianças trabalham conceitos que relacionam o meio ambiente e a arte
• esta reportagem foi realizada com bolsa-prêmio da Becas avina de investigação Jornalística. os conceitos, opiniões e outros aspectos do conteúdo da investigação são de responsabilidade exclusiva da autora.
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Bússola
adriana falcão Entre lugares, músicas e poemas, a roteirista e escritora carioca cita suas referências artísticas e a experiência de ter morado em duas cidades
Até a publicação de seu primeiro romance, A máquina (em 2000), adaptado com êxito aos palcos e telas, Adriana Falcão era mais conhecida pelas parcerias que desenvolveu com Guel Arraes (como a adaptação para TV de Auto da Compadecida) e com João Falcão, seu marido há mais de 20 anos. Com João, dividiu roteiros para televisão (A comédia da vida privada) e teatro (Cambaio, peça com músicas de Chico Buarque e direção musical de Lenine). Foi o marido, ainda, o responsável pelas adaptações de A máquina. Carioca, Adriana se mudou na infância para o Recife, onde chegou a se formar em arquitetura, curso em que conheceu João. Nenhum dos dois exerceu a profissão: ele nem se formou e logo enveredou pelo teatro, mudando-se com Adriana para São Paulo. Ela então pagava as contas como redatora de publicidade, emprego que foi estreitando o seu vínculo com a escrita, assim como as primeiras colaborações com o marido. Uma de suas parcerias mais recentes foi o roteiro do blockbuster Se eu fosse você (em colaboração com René Belmonte, Carlos Gregório e o diretor Daniel Filho). Hoje reside no Rio de Janeiro e continua colaborando com roteiros para o seriado A grande família (no ar desde 2001). Escreveu 11 livros – o último foi o romance A arte de virar a página, lançado este ano.
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Poema
Sobre a minha mãe estou apaixonada por este poema de José almino. conheço o Zé “pessoa” há muito tempo, através do guel arraes, seu irmão. inteligente, culto, elegante, dono de um humor especial, ele tem algo de delicioso que é bem próprio de alguns pernambucanos: uma espécie de sagacidade, um carisma diferente, um encanto. algo que não sei descrever. só sei sentir. descobri o Zé “poeta”ãe, com o ão ela n ca, inha m viciada recentemente. de mFiquei o porém nele.
Cantor
Museu
Geraldo Maia
Arte naïf o Museu internacional de arte naïf, no Rio de Janeiro, fica num charmoso casarão na rua cosme Velho, 561, bem ao lado do trenzinho do corcovado. É uma das maiores instituições do mundo nesse gênero de arte, com obras nacionais e internacionais, antigas e contemporâneas. tem até telas do século 15. ou tinha. infelizmente, o museu está fechado desde 2007 por falta de verbas, e parte do seu acervo está se deteriorando. torço pela reabertura desse nosso patrimônio.
Meu primeiro encontro com ele foi em 1985. desde então, geraldo tem me ninado em muitos momentos. ele já acalantou uma grande saudade, um grande desejo, uma grande agonia, um grande amor, uma grande dor, muito grandes alegrias. Quando ele canta, tudo fica grande. Para mim, se o mundo fosse perfeito, teria geraldo Maia cantando uma música de fundo enquanto a gente vivia. diVULgação/aRQUiVo
b seu, etrato o na r no r ontinuar o um trejeit tão; a lh o o bo era oc Pouso ue acredit inha mãe cozer um força que q e m d a r : a o e m ç ã lh o rás o esfor não c nos t inha m é a m quem faz o inha mãe, e eterno, e comove a como existiu a m tempo uno mãe não m está minh a e li a a s a c r h s n : a in e a , u n nu m sado, o e dig úsculo rte e o pas para a mo um esforç ito de crep ; não há e e leva ue eu faça uver um je não há mã prosódia o , q h io m d m o e a á ã o se ãos, s o gost o de r e se n mãe; a ou barulh s meus irm serve ou ais falso d o molha mãe sem a voz clara é falso, m pessoa o minha ife, até um seu retrat la já não é e c do Re a fruta e o retratos e m s u o s de e todo do qu
Projeto
Arte e medicina Canção
Lugar
Maria Bethânia gravou Lágrima, de Roque Ferreira, no seu cd Dentro do mar tem rio. a canção é lindíssima. a interpretação é de chorar, lágrima por lágrima.
nasci no Leblon. ia sempre às praias do Rio, quando criança, e tenho ótimas lembranças. Mas só quando fui morar no Recife, aos 11 anos, descobri um grande amor pelo mar. adoro as praias do nordeste. todas elas. são as minhas favoritas. Porém, o arpoador tem uma “pedramirante-conselheira-mistério” que me deixa louca. não se trata do mar, nem da areia, nem da praia. É tudo isso junto, é claro, com um negócio diferente. Fico ali paquerando o Morro dos dois irmãos, e de repente não sou eu, e de repente sou eu de novo.
Lágrima, por Bethânia
A pedra do Arpoador
o projeto a arte na medicina às vezes cura, de vez em quando alivia, mas sempre consola criado pelo professor Paulo Barreto campelo. Um castelinho de conto de fadas, anexo ao Hospital oswaldo cruz, no Bairro de santo amaro, Recife, foi especialmente construído para esse fim, através de doações. ali, crianças e adolescentes que estão em tratamento de quimioterapia têm aulas de artes plásticas, música, dança, literatura, teatro. Muitas delas se curam. todas são felizes quando estão no seu castelo. eu já fui lá e vi.
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ACAIACA Monumento moderno à beira-mar Com quase meio século de construção, edifício residencial, projetado por Delfim Amorim, introduziu na cidade preceitos construtivos de Le Corbusier TEXTO Danielle Romani FOTOS Breno Laprovitera
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Pernambucanas
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os frequentadores
da praia de Boa Viagem, no Recife, certamente já agendaram um encontro próximo, em frente ou no próprio edifício Acaiaca, localizado à beira-mar. Ícone do modernismo local, o prédio que completa 50 anos de existência em 2010 é referência histórica, point da balada praiana, e imóvel especial de preservação, defendido por lei municipal. Um monumento da arquitetura pernambucana. “O Acaiaca não é só um edifício. É um marco referencial da cidade. Não tem apenas um valor arquitetônico, tem também valor urbanístico e sociocultural. É como o Marco Zero, no bairro do Recife, pois serve de referência e de ponto de encontro”, explica o arquiteto-urbanista Luiz Amorim, professor
da Universidade Federal de Pernambuco e PHD em Advanced Architetural Studies pela University College London. Construído para ser um prédio de veraneio, pois em 1956, quando começou a ser erguido, Boa Viagem era utilizada apenas como balneário; o projeto esboçado pelo arquiteto português Delfim Amorim pretendia oferecer conforto aos veranistas que podiam pagar pelo luxo. À época, muitas famílias aderiram à novidade. “Compramos o apartamento ainda na planta e recebemos o imóvel pronto em 1960. Morávamos na rua Fernandes Vieira, na Boa Vista, e passávamos os verões e finais de semana no Acaiaca”, recorda Leda Pessoa de Melo, que decidiu morar definitivamente no prédio há 18 anos, quando ficou viúva.
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HALL
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ÁReA De SeRViÇo
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eStiLo
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AZULeJoS
À entrada social do edifício observamse os pilotis, projetados para permitir a circulação de pessoas e do ar em áreas livres Delfim Amorim considerou a localização do prédio para utilizar recursos como cobogós e elementos vazados Assunção mora em apartamento de dois quartos, repleto de obras de arte Elemento construtivo típico de Portugal, o azulejo foi usado na fachada para atenuar os efeitos do calor e da umidade
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“Sempre gostei daqui, adoro o Acaiaca. As janelas, com ampla vista para o mar, são o meu mundo”, diz a simpática senhora de 82 anos, que ocupa dois apartamentos, transformados em um, decorado com móveis antigos e peças coloniais. A paixão de Leda pelo prédio não se limita à bela vista e às boas recordações que o imóvel lhe traz. Detalhes arquitetônicos do projeto desenvolvido por Delfim Amorim, como os armários embutidos (no período, uma inovação); o peitoril ventilado, uma espécie de fenda na parede frontal do edifício, que permite a passagem de ar em dias chuvosos; e as largas janelas horizontais em todos os cômodos também tornam o Acaiaca exemplar único. “Em dias de chuva é possível ter ventilação sem que a água entre em casa. Esse é um dos pontos positivos do edifício”, diz o aposentado Virgílio Tavares, que desde 1966 é morador, e que hoje ocupa três apartamentos – transformados em um – no prédio. “Meus pais moraram aqui. Hoje moramos eu, minha irmã e minha filha, cada um no seu imóvel, só que
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em andares diferentes”, explica o senhor de 85 anos. Lúcia Helena, 53 anos, filha de Virgílio, foi uma privilegiada: teve a praia de Boa Viagem e as dependências externas do edifício como quintal para brincadeiras de infância e de adolescência. “Jogávamos vôlei, futebol, brincávamos, principalmente, na área externa do
prédio. Todo mundo solto, sem medo, e sem correr risco”, recorda a arquiteta, que adora o local, mas lamenta a atual falta de segurança no bairro.
noVoS MoRADoReS
O ambiente familiar e a relativa tranquilidade do prédio de número 3232 da avenida Boa Viagem também
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contam pontos a favor. “O Acaiaca é especial, ocupado por famílias que estão aqui há décadas e por pessoas de uma faixa etária mais velha. Todos se conhecem e se dão bem”, conta Assunção Bandeira de Melo, 72 anos. Encantada pelo prédio, Sunca, como é conhecida, ocupa atualmente um apartamento de dois quartos, repleto de almofadas, plantas, pinturas, onde o destaque é um piano no qual se exercita diariamente. “O lugar tem minha cara”, garante. O arquiteto Isnaldo Reis, 56 anos, é outro que só tem elogios ao local. “Além de ser um prédio à beiramar, tem um projeto arquitetônico fantástico: uma boa área de jardins e recreação, embora não tenha piscina; as garagens são amplas e, principalmente, as paredes são largas, impedindo que o barulho venha da avenida”, ressalta. Com quase meio século de vida, o Acaiaca atualmente tem nova configuração, com imóveis oscilando entre dois e sete dormitórios. Quando inaugurado, em 1960, tinha 52 apartamentos – de dois ou três quartos
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DecoRAÇão
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oRiGinAL
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LUMinoSiDADe
O proprietário Isnaldo Reis destaca o valor histórico do imóvel, sua vista e o silêncio – possível pela espessura das paredes O banheiro do apartamento de Isnaldo mantém as características do projeto, com azulejo azul, banheira e armários A proprietária desse apartamento reside no imóvel há 18 anos, quando se mudou de vez para lá, já que desde 1960 usava o local para veraneios
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– espalhados pelos seus 13 andares, que reformados somam hoje 33 unidades. As mudanças, entretanto, não comprometeram a qualidade do projeto original. Os imóveis continuam ventilados, luminosos e funcionais.
eScoLA Do ReciFe
Para os que desconhecem o projeto moderno, amplamente difundido no Recife pelo arquiteto Luiz Nunes, que atuou como diretor de Arquitetura e Urbanismo do governo estadual na década de 1930, um esclarecimento: o Acaiaca é um dos principais exemplares do movimento que alguns estudiosos convencionaram chamar de Escola do Recife, só que representante da sua segunda fase, na década de 1950, quando à capital pernambucana chegaram os jovens arquitetos Acácio Gil Borsoi e Delfim Amorim. Ambos traziam na bagagem as teorias difundidas por Charles-Edouard Jeanneret-Gris, francês de origem suíça, conhecido como Le Corbusier. Também traziam na formação os ideais
defendidos por dois brasileiros que já se projetavam no mundo afora: Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. “Na década de 1950, Borsoi executou prédios importantes, como o edifício União, próximo ao Parque 13 de Maio, e o Califórnia, também em Boa Viagem. Delfim Amorim se destacou com o Acaiaca, que, ao contrário do que muitos pensam, não foi o primeiro arranha-céu do bairro (título que cabe ao Pontual), mas foi criado numa perspectiva de transformação da praia de Boa Viagem”, explica o arquiteto Luiz Amorim, que, além de estudioso do conjunto arquitetônico modernista recifense, é filho do idealizador do edifício, o português Delfim Amorim. Para a construção do Acaiaca, que em tupi significa madeira de bom polimento e resistente a cupim, baseou-se em cinco preceitos de Le Corbusier. Os três primeiros eram a criação de pilotis, algo inédito à época, projetados para permitir a circulação de pessoas e do vento em uma área aberta; a construção do plano livre – teoria revolucionária que permitiu
a concepção e o arranjo das plantas, independentemente das estruturas de sustentação; e a fachada livre, igual conceito, só que aplicado à área externa. O quarto ponto dizia respeito às janelas horizontais, que, ao contrário das antigas verticais, permitiam maior entrada de luz e vento. O quinto versava sobre o teto jardim, área coletiva construída na cobertura do edifício e aberta a todo condomínio. Mas o Acaiaca não se limitou à aplicação desses princípios. “Delfim também lançou mão de soluções próprias para o local, no caso, a orla do Recife”, destaca o arquiteto, elencando o peitoril ventilado, que alguns atribuem ter sido criado por Delfim e ter sido aplicado arquitetonicamente, pela primeira vez, no Acaiaca; e o uso de azulejo nas superfícies do prédio, que atenuam os efeitos do calor e da umidade tropical. “Como português, ele manteve a tradição luso-brasileira de revestir os edifícios de azulejo, prática secular que foi adotada pelos modernistas, trazendo o material para a fachada do edifício”, destaca o arquiteto.
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História
louis-léger vauthier Contribuição supera a herança material Engenheiro especialista em pontes e calçadas, foi autor de projetos que ordenaram a paisagem, e também legaram valores morais TEXTO Claudia Poncioni
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não existe certamente
personagem mais emblemático das relações entre a França e Pernambuco que Louis-Léger Vauthier. Como outros viajantes europeus que cruzaram ou viveram no território brasileiro no século 19, Vauthier deixou sobre o Brasil textos de suma importância. Relatos de viajantes estrangeiros, franceses principalmente, já foram amplamente estudados e é reconhecido o fato de que as imagens que esses viajantes veicularam sobre o homem, a terra e o território nacional marcaram profundamente as mentalidades tanto no Brasil como na França, através de uma relação especular que forjou tanto a ideia que os franceses tiveram e têm ainda do país, quanto a que os brasileiros têm de sua pátria. Engenheiro formado pela Escola Politécnica de Paris, especializado em pontes e calçadas, Louis-Léger Vauthier, que nasceu em Bergerac em 1815 e faleceu em Paris em 1901, viveu em Pernambuco entre 1840 e 1846, onde chefiou aquela que Gilberto Freyre denominou de Missão Técnica Francesa, buscando equilibrar a influência da Missão Artística Francesa, comandada por Lebreton, que chegou ao Rio de Janeiro em 1816. Sobre sua temporada brasileira, Vauthier deixou poucos textos: apenas um diário pessoal e quatro cartas publicadas na França, em 1853, numa revista de arquitetura, e obras públicas. Seu diário teve que esperar este Ano da França no Brasil para ser publicado, numa edição francesa por mim organizada. Em 1940, em pleno Estado Novo, Gilberto Freyre e Rodrigo Mello Franco de Andrade publicaram o diário na linha de outras publicações que se inscreviam na preocupação de construção e de afirmação da identidade nacional, característica daquela época. Por isso, é altamente eloquente o fato de que o diário de Vauthier tenha sido editado pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o atual Iphan. O engenheiro francês, por encomenda do então Barão, e mais tarde, Conde da Boa Vista, presidente da província, dirigiu obras de ordenamento da paisagem
pernambucana: abertura de estradas, construção de pontes, canalização de rios, introduzindo assim novas técnicas e novos materiais, que habilmente soube associar aos saberes e aos materiais locais. A cidade colonial portuguesa, já marcada pela passagem holandesa, tornou-se palco de novas experiências arquitetônicas, com a introdução de um novo estilo de construção, o chamado neoclássico. Hoje, o Teatro de Santa Isabel, planejado por Vauthier e cuja reconstrução após o incêndio de 1869 foi acompanhada por ele, desde a França, nos mínimos detalhes, tornou-se um dos símbolos da capital pernambucana, sendo exemplo da influência do engenheiro francês na arquitetura local.
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Contudo, a importância de Vauthier para os pernambucanos não se resume a obras de engenheiro e arquiteto. Além de competente técnico, Vauthier foi militante da causa fourierista, partidário de uma corrente das escolas que Engels inscrevia sob a apelação
o teatro de Santa isabel, no Recife, foi projetado pelo francês Vauthier em estilo neoclássico e inaugurado em 1850 geral de “socialismo utópico”, em contraposição ao “socialismo científico” da escola marxista. Para além de difundir as ideias e a obra de Charles Fourier e de seus seguidores no Nordeste e na Bahia, Vauthier era um homem profundamente marcado por essa doutrina, à qual essencialmente condicionava sua percepção da realidade brasileira. Valores como esforço pessoal, trabalho, seriedade, probidade guiaram sua atuação e a apreensão do mundo que o cercava. Contrariamente a outros relatos de viajantes europeus de sua época, comerciantes ou artistas, em seu diário, Vauthier relata um cotidiano
sentido e vivido segundo a doutrina que adotara. Muito jovem – tinha 26 anos quando desembarcou no Recife – , Vauthier deixou algumas observações sobre o Brasil e os brasileiros que podem, alguma vez, chocar um leitor que não leve em conta a sua percepção e o fato de que o diário nunca foi escrito para ser lido por outra pessoa, além de seu autor. Daí o tom diferente daquele das cartas escritas para os leitores da Revue générale d’architecture et des travaux publics, em que não transparecem críticas contra o Brasil e os brasileiros, mas, sim, uma visão trabalhada, polida, das casas e dos homens que as habitavam. Hoje estas Cartas sobre as casas de residência no Brasil, escritas não no Brasil, mas do fundo da prisão política em que Vauthier se encontrava em Paris, em 1853, constituem documento fundamental para os estudiosos da história urbana e arquitetural brasileira, sendo citadas inúmeras vezes por especialistas. Desse modo, a importância de Vauthier para Pernambuco e para o Brasil extrapola o caráter material, sendo também simbólica, já que passou pelas mãos de um dos mais ilustres filhos de Pernambuco: Gilberto Freyre. A figura de Vauthier é, hoje, o resultado de uma construção simbólica resultante dessa intermediação, que foi possível pela existência dos escritos já mencionados de Vauthier sobre o Brasil. Não tivesse o engenheiro escrito um diário, não tivesse este sido encontrado por Paulo Prado, ofertado a Gilberto Freyre, anotado por ele; não tivesse esse diário se inspirado um outro livro (Um engenheiro francês no Brasil, publicado em 1940 e reeditado em 1960), não tivessem as cartas sobre as Casas de residência no Brasil sido publicadas em português por Gilberto Freyre, já em 1943 e reeditadas em 1960, Vauthier teria ido parar no limbo da história, como tantos outros técnicos, engenheiros e viajantes franceses que passaram pelo Brasil. Por isso, é a Gilberto Freyre que essencialmente se deve hoje a presença de Vauthier nas comemorações do Ano da França no Brasil.
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Tradição Tradição
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encourado cotidiano do vaqueiro memorado a couro e fio Com peças produzidas artesanalmente, Mestre Espedito Seleiro faz o cearense vestir a própria história e atrai fashionistas
ele vai moldando o couro e imprimindo, peça a peça, história do povo cearense, marcado pelo ciclo que Capistrano de Abreu chamou de Civilização do Couro. Não à toa, ganhou o título de Mestre da Cultura, concedido pelo Governo do Estado do Ceará, em 2008. Nascido em Campos Sales e criado em Nova Olinda, cidade pacata e quente do Sertão do Cariri, cerca de 500 km de distância de Fortaleza (CE), Mestre Espedito Seleiro, alcunha de Espedito Veloso Carvalho (Espedito com “s”mesmo), 68 anos, herdou do pai, que por sua vez herdou do avô, o dom de construir vestimentas e acessórios para vaqueiros. “Meu pai fazia peças de montaria, sela, alforje, careta (viseira), gibão, chapéu de couro, perneira, sapato... e me ensinou a fazer selas aos oito”, recorda. O sertão semiárido, com sua economia fundada nos ciclos do gado e do algodão, ocupando quase todo o território cearense, é responsável pelas principais características da cultura local. Nele, por quase dois séculos, dominou a Civilização do Couro, na qual quase tudo girava em torno do boi. Do seu couro eram feitas as tiras que amarravam a taipa das paredes da casa, a mobília, o vestuário, as máscaras e inúmeros outros objetos. A carne comia-se nas três refeições ou transformava-se em charque, para vender. O leite bebia-se quatro vezes ao dia e virava manteiga, queijo, doce ou coalhada.
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texto Isabelle Câmara
Segundo o doutor em Sociologia, teatrólogo e pesquisador da cultura popular Oswald Barroso, em seu livro Ceará 400 – Uma cultura mestiça, encourar-se para lidar com o gado é costume antigo e universal. Barroso escreve que nas fazendas de gado quase tudo era de couro: camas, tamboretes, cadeiras, cordas, alforjes, baús, surrões, mochila para milhar cavalo, bainhas, a amarração da taipa, a cobertura dos armadores etc. Inicialmente, o couro era curtido e trabalhado na própria fazenda, pelo vaqueiro ou outro agregado, através de técnicas rudimentares. Só no final do século passado, apareceram no Nordeste os curtumes industriais. Com eles, surgem o seleiro especializado e o artesão de couro. É nesse contexto que se insere o Mestre Espedito, visto que os traços dessa cultura vaqueira ainda influenciam fortemente o imaginário cearense. No começo da sua trajetória, ele exercitava o saber e o fazer artesanal em selas, luvas, gibões e algibeiras. Seu trabalho era comprado por vaqueiros, ciganos e tropeiros. “Todos usavam animais de montaria e eu fazia as selas e as cangalhas para eles. Só que os ciganos gostavam muito de andar em selas enfeitadas, bem bonitas, com desenhos de flores. Fazia gosto de ver!”. Entretanto, com a chegada dos veículos ao Sertão, o cavalo e a profissão de vaqueiro foram desaparecendo, assim como os
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divulgação
con ti nen te
pedido de um amigo pra fazer uma igual, todo mundo gostou.” A primeira sandália foi o passo para muitas outras, como a linha “Maria Bonita” ou a “gladiadora”, e também para uma série de acessórios. De maneira intuitiva e quase rudimentar, ele criou peças com design inovador e rústico. Dos vaqueiros, buscou referências no amplo vestuário com peças de couro. Dos ciganos, as cores fortes e contrastantes que colorem arabescos e formas que se entrecruzam de maneira harmoniosa.
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De ciGAnoS A MoDiStAS
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espedito Seleiro exporta sua produção da cidade de nova olinda
Nesta página 02 fiGurino
os gibões e acessórios de couro foram usados no filme O homem que desafiou o diabo
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AlpercAtAS
Com seus recortes em arabescos e couro colorido, as peças conquistaram os fashionistas
seleiros e a cultura do artesanato em couro. “Chegou o tempo de recessão, eu tinha que ficar nas mãos dos atravessadores, que queriam comprar tudo muito barato, isso lá por 1980... Foi quando decidi fazer sandálias e bolsas inspiradas nos desenhos dos ciganos, mas com a raiz nos vaqueiros; tanto para homem como para mulher. Os ciganos usam a sela desenhada; o vaqueiro, mais rústica. Aí eu misturo as duas coisas.” Sua primeira criação foi a “sandália de Lampião”. “Um dia, chegou na oficina do meu pai um cabra de Lampião com uma sandália. Todo mundo sabia pra quem era a sandália e meu pai fez ligeiro, ligeiro! O molde ficou comigo e, quando recebi um
O artesão viu o empreendimento crescer. Hoje, tem uma oficina em Nova Olinda, onde conta com alguns colaboradores – funcionários e filhos que se encarregam de ajudar na confecção de produtos feitos à mão e em couro de bode, boi ou porco. Mas o que o deixa satisfeito é passar o ofício adiante. “Tudo, tudo ninguém aprende, não. Todo dia é uma inovação que vem dele. É inovação com a tradição”, avalia o discípulo Rodrigo Souza da Silva, 18. O talento de Mestre Espedito Seleiro conquistou o coletivo paulistano de estilistas Cavalera, para o qual produziu peças e foi convidado de honra no desfile da marca na edição do São Paulo Fashion Week de 2005. “Foram mais de mil peças encomendadas”, lembra. Também vestiu Marcos Palmeira no filme O homem que desafiou o diabo, dirigido por Moacyr Góes; e calça os pés de clientes como Regina Casé e Guel Arraes, além de um semnúmero de admiradores cearenses. No estande que tem exibido anualmente seu trabalho na Feira Nacional de Negócios do Artesanato, a Fenearte, em Pernambuco, é intenso o afluxo de visitantes atraídos pelas composições harmônicas, arabescas e coloridas que caracterizam seu estilo. Mas a notoriedade não o atinge, e isto ele expressa quando afirma: “Nunca saí de perto de um gibão, de uma sela de vaqueiro, de um xaréu. Faço sandálias, mas eu sou seleiro!”. Através das mãos de Mestre Espedito Seleiro, a cultura do vaqueiro é costurada a fio e couro e reencontrada por diversas gerações, que podem também conhecer parte de seu trabalho no site www.espeditoseleiro.com.
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Conexão
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
sites sobre
moda CATÁLOGO
ESTILO PESSOAL
ATUALIDADES
www.net-a-porter.com
www.polyvore.com
www.modasemfrescura.com
O Net-a-porter informa sobre designers, marcas, acessórios e lingerie, e ainda permite a compra de produtos apresentados.
Com o lema “Expresse o seu estilo”, o Polyvore permite que usuários componham seus próprios sets de roupas a partir de peças isoladas.
Além de tratar de moda, o site Moda sem frescura tem como objetivo incentivar o diálogo entre arte, música, fotografia e design.
AndAnçAS virtUAiS Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
inStitUcionAL
PeSQUiSA
ArteS GrÁFicAS
FotoGrAFiA
national Gallery mostra quadros famosos em detalhes
Brasiliana USP disponibiliza acervos e documentos
revista ilustrar é iniciativa de destaque para ilustradores
vos photos libera espaço para contribuições e comentários
www.nationalgallery.org.uk
www.brasiliana.usp.br
www.revistailustrar.com
Achar imagens de quadros famosos ou históricos na internet não é difícil. O diferencial da página da inglesa National Gallery é mostrar até os pequenos detalhes de obras assinadas por Van Gogh, Rembrandt, Michelangelo, da Vinci, Monet, Cézanne, Seurat e Turner. Além de funcionar como um site institucional, trazendo notícias das exposições mais recentes e pequenas imagens e informações sobre o seu acervo, o site permite que se amplie o quadro em até seis vezes, tornando possível enxergar pinceladas e marcas do tempo. Focado em obras feitas entre os séculos 13 e 19, o museu ainda traz no endereço uma listagem do que considera as suas 30 peças mais importantes e escolhe um dos quadros do seu acervo para ser debatido a cada mês.
Funcionando como um projeto da Universidade de São Paulo, a Brasiliana USP é um acervo online de obras brasileiras, de livros a documentos. A iniciativa tem como objetivo reunir o maior número possível desse material, a fim de que pesquisas e estudos possam ser favorecidos pela fácil acessibilidade. Custeada pela maior referência em ensino superior do país, a página na web disponibiliza publicações variadas, como Os sertões, de Euclides da Cunha, Broqueis, de Cruz e Sousa e Dom Casmurro, de Machado de Assis. Dentre as raridades, pode-se encontrar o primeiro dicionário da língua portuguesa, escrito por Raphael Bluteau, além de 175 exemplares do Correio Braziliense, o pioneiro periódico nacional. O internauta pode ainda baixar os arquivos em formato PDF, bem como pesquisar por palavras específicas dentro do arquivo.
Criada, editada, escrita e diagramada pelo designer Ricardo Antunes, a revista Ilustrar tem como objetivo divulgar a arte da ilustração e valorizar o mercado profissional da área. Com início em 2007, tem todas suas 11 edições disponibilizadas gratuitamente no site, para serem baixadas no formato PDF. Apesar de seu mote, a publicação merece atenção por produzir matérias e entrevistas mais profundas, equilibrando bem uma vasta quantidade de imagens com textos mais reflexivos e críticos sobre a natureza do desenho e suas práticas. Ela se diferencia do lugar comum normalmente exercido pelos meios de comunicação que cobrem as artes gráficas no Brasil.
http://photos.blogs.liberation.fr/ vosphotos Representante da imprensa de esquerda francesa, o jornal Libération mantém na internet um blog com espaço para a postagem de fotografias. Vos photos (suas fotos) tem um layout simples, mas visa se firmar como um espaço no qual fotógrafos amadores podem enviar seus cliques. Ao considerar essencial deixar livre a imaginação, o blog, entretanto, pede para que os usuários respeitem regras básicas: difamações, propagandas políticas ou discursos religiosos ficam de lado. Os interessados devem enviar as imagens com um título e, caso desejem, com detalhes que precisem o local, as técnicas utilizadas e a inspiração do autor. As fotografias são as mais variadas, desde paisagens naturais a momentos do cotidiano.
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REPRODUçãO
brEvIDADES cenA indePendente Daniel Dias disponibilizou no Youtube a versão completa do seu documentário Música de trabalho, longa-metragem que faz um dossiê da cena musical independente brasileira em 2003. Gravado todo na estrada, o filme conta com entrevistas de bandas, produtores e jornalistas e foi dividido em 25 partes para caber no site. Para Gustavo Mini, do blog Conector, o interessante é ver que foi naquela época que as bandas começaram a investir mais na articulação, um elemento-chave do circuito atual.
STAND-UP COMEDY
MÚSicA PArA ver, FiLMe PArA oUvir Incentivando a descontração e o acaso, site estimula artistas a tocarem composições e versões inéditas de seus repertórios fora de estúdios e palcos www.musicadebolso.com.br
Uma pequena ideia tratada com dedicação pode render excelentes
projetos. É o caso do Música de bolso, versão brasileira do Les concerts a emporter, do site francês Blogothèque, que leva artistas e grupos para realizar apresentações em locais públicos inusitados. Criado há dois anos pelos cineastas Daniel Ribeiro, Tati Fujimori e Rafael Gomes e pelo jornalista Marcus Preto, o projeto ainda funciona em parceria com a produtora Ioiô Filmes e com Thomaz Resende e Fabio Issao, do Estúdio Camisa10, que fizeram o layout da página. Já são mais de 90 participações, incluindo nomes conhecidos, como Patu Fu e Arnaldo Antunes, artistas estrangeiros alternativos, como Jens Lekman e Lisa Li-Lund, e até pernambucanos como Eddie, China e A banda de Joseph Tourton, uma das aparições mais recentes. Exemplos de locações escolhidas são um ponto de ônibus (Ludov), a escadaria de um prédio (Tetê Espíndola), a calçada entre duas pistas de carros (Marcelo Camelo) e a cabine de um caixa eletrônico na Avenida Paulista (Nervoso e os calmantes). Cada gravação contém os lados A (normalmente apresentando uma canção inédita) e B, com uma música cada, e conta um pouco dos bastidores de cada vídeo. O site ainda tem um podcast – espécie de programa de rádio disponível para download –, perfis em redes sociais e um blog que traz fotos de making of e a agenda de shows dos artistas participantes.
blogs
O blogueiro Chico Barney divulgou, em seu blog, o texto de sua primeira apresentação de stand-up comedy. Trata-se, na verdade, de uma sátira ao gênero de humor que vem ganhando recente notoriedade no Brasil. Segundo Barney: “O enredo de um stand-up padrão não difere muito da conversa de elevador. Trânsito, clima, política.” Mas, no show dos comediantes, “O teu andar não vai chegar nunca, meu amigo”, brinca.
AniMAçÃo No trailer do filme Fantastic Mr. Fox, disponível em movies.yahoo.com, o cineasta Wes Anderson mostra novas experiências e técnicas cinematográficas. Conhecido pela inusitada direção de arte e personagens marcantes, como em Os excêntricos Tenembaums e Três é demais, Anderson resolveu adaptar um de seus heróis, o escritor infantil Roald Dahl. A história de Fantastic Mr. Fox conta a saga de uma família de raposas e sua luta contra fazendeiros. A trama virou uma animação stop-motion, que conta com colaboradores regulares de Wes, como os atores Bill Murray e Owen Wilson dublando e o músico Mark Mothersbaugh na trilha.
JornALiSMo
coMeS e BeBeS
QUAdrinHoS
http://blogs.diariodepernambuco. com.br/meio_ambiente
www.cacimbadeletras.blogspot.com
www.warrenellis.com
Para desvendar os sabores do Recife e das cidades próximas, os jornalistas Eliza Brito e Lucas Lima atualizam o blog nas segundas, quartas e sextas, com diversas dicas gastronômicas.
Autor de quadrinhos como Planetary e da clássica novela alternativa Crooked little vein, Warren Ellis atualiza seu blog com novidades sobre sua carreira e vida pessoal, além de trazer citações e recomendações de HQs.
Colunista do Diario de Pernambuco desde 2004, Júlia Kacowicz assumiu no ano passado o blog do Meio Ambiente, no qual incita discussões, faz denúncias e comentários sobre a temática ambiental.
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poesia Tradição que se perpetua às margens do pajeú No sertão pernambucano, vates consolidam quatro gerações dedicadas ao ofício do verso, reforçando o imaginário local de que na seca floresce a poesia TEXTO Bernardo Valença fOTOs Ana Lira
a paisagem muda pouco do
Agreste para o Sertão pernambucano. Nos tempos em que a seca não bate, o verde se faz constante por entre as serras e montes interioranos. Mas, nos arredores do rio Pajeú, uma peculiaridade denuncia algo de diferente ali: são as flores. Roxas, amarelas, brancas e laranjas, por ordem de predomínio. Elas não são tão abundantes quanto nos campos holandeses, apenas ponteiam as margens da estrada. O que, de fato, floresce nessa região é a poesia. Estar em terras de cantadores deixa a sensibilidade do visitante atinada com qualquer possível manifestação poética – o silêncio das serras parece querer ecoar algum som da viola dos antigos repentistas. Não há tanto tempo, era comum que esses violeiros frequentassem as fazendas para entoar suas cantorias de improviso da noite até o despontar do sol, nos chamados “pés-deparede”. Em cada ponto de luz dos candeeiros, portanto, dava para se ouvir distante alguém tangendo uma viola. Os donos das casas, em geral muito devotos, impunham que os primeiros motes cantados fossem sobre religião; o assunto partia da história sagrada para a história geral,
geografia, natureza etc. Desde essa época, o poeta repentista tinha que ter o conhecimento na ponta da língua – a responsabilidade era grande: se os cordéis serviam de jornais, os violeiros faziam o papel de âncoras da notícia. “Boa-tarde, poeta!”. A maioria das pessoas da região aderiu ao termo: “poeta” é um vocativo comum nessas cidades do Alto Pajeú, principalmente em São José do Egito, conhecida como “Berço da Poesia Popular”. “É um tratamento respeitoso, é um elogio chamar alguém de poeta”, diz o declamador e coordenador de cultura do município, Alan Miraestes, que, como muitos na cidade, também escreve seus versos. De tão excessiva, a expressão acaba viciando a linguagem do forasteiro. Mas esse é apenas o primeiro “sintoma”: de repente, ele pode acabar rimando tudo o que fala. “É um fenômeno natural: pessoas que vêm de outros lugares para cá, daqui a pouco estão fazendo versos”, brinca o poeta de Itapetim, Zé Adalberto. “O enigma está nas águas do Pajeú, ou nas areias brilhantes desse rio intermitente”, sugere Bia Marinho, filha de Lourival Batista (o Louro do Pajeú, “rei dos trocadilhos”) e neta, por parte de mãe, de Antônio Marinho.
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con especial ti nen te#44 Assim, foi o “espírito aventureiro” do europeu, o responsável por essa expansão que levou a poesia de viola ao Sertão do Pajeú. Como afirmaram os pesquisadores Mário Souto Maior e Waldemar Valente, na Antologia da poesia popular de Pernambuco – na procura por riquezas, os lusitanos migraram para o interior do país e, “Em sua marcha para o Oeste, o colonizador português não deixou de conduzir, em sua bagagem, a viola, para matar a saudade da terra de origem”. O fato mais surpreendente é essa poeticidade ter resistido até hoje e se tornado ainda mais latente nos últimos 100 anos. Desde o início, com autorização ou não da viola, em versos glosados, improvisados, ou na chamada “poesia de bancada” – seja em cordéis ou sonetos –, a métrica e rima sertanejas são o que há de mais presente na cultura do Pajeú.
BUsto De poeta
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Bia e Zé Adalberto compartilham de um sentimento geral da região, de que a grande quantidade de poetas e cantadores na cidade é algo inexplicável. Mas, para a história, tudo indica que a origem do canto com a viola tenha se dado através dos colonos.
GReGÓRio coMo patRono
O primeiro repentista de que se tem conhecimento é Augustinho Nunes da Costa, conhecido por “o Glosador”, que viveu na Paraíba, próximo à região do Pajeú, justamente onde o Estado faz divisa com Pernambuco. Em termos nacionais, enfatiza o professor e instrutor de poesia popular, Nenen Patriota, “O primeiro violeiro de que se tem indício foi
Gregório de Matos Guerra”. Em meados do século 17, o gongorista, seguido pelo padre Domingos Caldas Barbosa, foi pioneiro na improvisação de versos junto ao braço da viola. No livro Vaqueiros e cantadores, o folclorista Luís da Câmara Cascudo atesta a grandiosidade da cantoria, afirmando que o repentista sertanejo “é descendente do aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos Helenos, do greeman anglo-saxão, dos mongenis e metris árabes, do velálica da Índia, dos runoias da Finlândia, dos borbos armoricanos, dos escaldos da Escandinávia, dos menestréis, trovadores e cantadores da Idade Média que chegaram até os sertões através da expansão colonial”.
Quem chega por acaso nessas cidades do Sertão, talvez nem perceba as diferenças entre elas e as outras cidadezinhas do interior do Estado. Mas, com calma, nota que muitos nomes de ruas, avenidas, vilas e praças se referem aos poetas da região. O busto da praça principal de São José do Egito, por exemplo, não é de nenhum político, como de costume nessas cidades, e, sim, do poeta Antônio Marinho (18871940). O “Águia do Sertão”, como era conhecido, tem a maioria de sua obra registrada devido à memória popular. Lembrança como a de Pedro Leite, um senhor de 92 anos, provávelmente último conhecedor do jeito de tocar a toada de Marinho, que aprendeu quando novo, presenciando o poeta dedilhar sua viola. Ou como a do fazendeiro José Nunes Filho, conhecido por “Gravador Humano”, autor do livro Poetas encantadores, uma coletânea de poesias dos violeiros, de quando escutava as cantorias e decorava os seus melhores versos. Por muito tempo, a cultura se perpetuou dessa forma, através da memória do povo. Até hoje é difícil encontrar quem não saiba dizer um verso, ou que nunca tenha ouvido alguém, espontaneamente, declamar uma poesia. Em algumas cidades,
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como Afogados da Ingazeira e São José do Egito, foram pintadas poesias nas paredes das ruas. O que ressalta certa necessidade em exaltar os poetas da região, materializando essa cultura originada na oralidade. Criou-se uma espécie de literatura própria, no Pajeú. As escolas ensinam as gerações dos poetas locais, mostram aos alunos as “fórmulas” de uma sextilha, sete pés, décima, galope à beira-mar, mourão e vários outros estilos da chamada poesia nordestina. “É a única cidade do Brasil que oferece Poesia Popular como disciplina”, diz Nenen Patriota, referindo-se a São José do Egito, onde leciona a referida matéria. Em março deste ano, na mesma cidade e pelo mesmo professor, criouse a Fábrica de Poesia, atendendo alunos a partir dos nove anos e instruindo as técnicas da poesia popular. Mas não é só em São José que se incentiva a formação de poetas: em Itapetim, as escolas fazem concursos de poesia para os estudantes, além de a cidade realizar o Congresso Anual de Repentistas Amadores, ambos com objetivo de desvendar os novos talentos. Nas outras localidades do Sertão do Pajeú, o desejo dos jovens de aprender poesia não muda. Devido à veneração aos poetas de renome, os próprios pais incentivam seus filhos a aprenderem desde cedo o que é poesia. Pois, independentemente de escola, o Pajeú já é “a universidade dos cantadores”,
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como define o repentista Heleno da Silveira, que atesta: “O povo aqui já conversa rimando”.
poUca FoRMaÇÃo acaDÊMica
Os cânones da literatura pajeuzeira, porém, têm algo de peculiar. A maioria desses repentistas nunca havia frequentado um colégio, era quase toda de analfabetos, constituindo a maior representação nacional de cantadores. Na época da chamada segunda geração local, surgida nos anos 1930, raríssimos poetas tinham alguma formação acadêmica. Poucos eram como Rogaciano Leite, o “Príncipe dos Cantadores”, e o seu contemporâneo Dimas Batista, que tinha fama de repentista mais erudito,
sendo poliglota, com cinco formações universitárias (a última, Direito, concluiu aos 56 anos). Dimas era um dos famosos Irmãos Batista, trio composto por ele, Otacílio e Lourival. Foi Dimas quem, na década de 1940, inspirou o escritor Ariano Suassuna a organizar a primeira cantoria oficial no Recife, realizada no Teatro de Santa Isabel em 1946. Com 19 anos, Ariano ouviu o violeiro na fazenda de um primo seu e ficou deslumbrado. “Descobri que havia cantador que não era só igual, mas melhor do que aqueles outros todos, cujos versos eu havia lido nos livros”, disse ele, em depoimento a Adriana Victor e Juliana Lins, no livro Ariano Suassuna: Um perfil biográfico.
epicenTro da poesia
460 km
Recife
Itapetim
S. José do Egito Tabira
Afogados da Ingazeira
Tuparetama
No livro ABC de Ariano Suassuna, o escritor Bráulio Tavares descreve de modo singular a geografia da região: “A certa altura da Chapada da Borborema, o território da Paraíba projeta de repente na direção do Sul, para dentro de Pernambuco, uma ponta-de-lança que quase chega a tocar a cidade de Arcoverde, a qual escapa por pouco a essa tentativa de anexação. Em represália, Pernambuco contra-ataca ali ao lado, elevando outra ponta-de-lança na direção Nordeste, e tirando um fino da cidade de Teixeira. Essas pontas-de-lança contíguas são o epicentro da Poesia Popular nordestina, e basta a recitação dos nomes das cidades ali contidas, ou que ficam de sentinela à sua volta, para evocar um século e meio de Cantoria de Viola, de cordelistas e de poetas glosadores”.
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sÃo JosÉ Do eGito
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aFoGaDos Da inGaZeiRa
as homenagens aos poetas estão visíveis em nomes de estabelecimentos, ruas e monumentos da cidade, conhecida como “Berço da poesia popular” muitas estações de rádio locais divulgam a cantoria. numa delas, trabalha Heleno da Silveira, que apresenta o programa encontro com a poesia, há mais de 40 anos no ar
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Hélder tavareS
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Aquela primeira cantoria causou polêmica. Como um palco que havia recebido Castro Alves, Tobias Barreto e Joaquim Nabuco podia dar lugar a repentistas? Mas foi o que ocorreu, com êxito. Depois desse sucesso, o poeta Rogaciano Leite realizou, no mesmo teatro, o primeiro Congresso de Cantadores na capital pernambucana, em 1948. O pioneirismo da cantoria e do congresso realizado no Santa Isabel deu impulso a uma arte até então restrita às festas espontâneas, nas casas e fazendas do interior. Na época em que estas festas eram realizadas, a maior parte da população do Pajeú ainda vivia nos sítios, afastada dos pequenos centros interioranos. A comunicação era difícil. O quadro foi mudando e, na década de 1990, a maioria da população local já se concentrava nas pequenas cidades da região, o repente migrara para feiras e praças. Com a chegada dos novos meios tecnológicos, não custou para ele chegar também às rádios locais e palcos brasileiros.
Hoje, na região pajeuzeira, é fácil encontrar estações de rádio que divulgam a poesia. Uma delas fica na cidade de Afogados da Ingazeira, de onde se transmite o Encontro com a poesia, programa apresentado por cantadores e há mais de 40 anos no ar. Nesse espaço, Heleno da Silveira e João Paraibano cantam a poesia de
“poeta” é um vocativo comum na região. É um tratamento respeitoso que, de tão usado, acaba integrado ao linguajar do forasteiro improviso. Transmitindo versos via AM e internet, recebem os motes dos ouvintes, algumas vezes ao vivo. “Eu escutava os cantadores quando era pequeno e comecei a querer cantar também”, diz Heleno, que trabalha na rádio há 37 anos. João Paraibano de vez em quando abandona o estúdio, em geral,
em épocas festivas. “Estou com a agenda cheia, graças a Deus”, diz o repentista, referindo-se ao fato de ser requisitado para tocar em São Paulo e no Rio de Janeiro; muitas vezes, para os nordestinos que vivem lá. Quando indagado se a cantoria está acabando, exalta-se: “Minha geração é a que tem mais poetas repentistas”, afirma, com o orgulho estampado no rosto. “Muita gente diz que a cantoria está acabando, mas concordo com Apolônio Cardoso, que disse no final de um verso: ‘Quando a última viola se calar, nesse tempo nem Deus existe mais’”.
atÉ paDRes VeRseJaM
Não se sabe se a geração de João Paraibano – a terceira de cantadores locais – é mesmo a maior em quantidade, pois ninguém se ocupou em contar quantos são os poetas, repentistas ou glosadores da região. Na introdução à antologia que organizaram (Itapetim, ventre imortal da poesia), com mais de 200 poetas catalogados, Marcos Nunes e Saulo Passos escreveram: “Acabamos
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JoÃo paRaiBano
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entUsiasMo
Cantador contesta especulações de que a cantoria está perdendo força, dizendo que a sua geração é a que tem maior número de repentistas nas apresentações em espaços abertos, promovidas em datas festivas, o público reage aos desafios com aplausos e comentários
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descobrindo gente que vivia, até então, no mais absoluto anonimato”. E ainda não desvendaram todos, “Na próxima edição, eu já tenho mais uns 50 para acrescentar”, afirma Marcos. Lavrador, mecânico, barbeiro, comerciário, até um dono de bar pode ser poeta nessas terras. Em São José do Egito, até o padre da cidade escreve versos. Há missas, inclusive, declamadas com rimas, celebradas em ocasiões especiais. Como é o caso da missa organizada pelo padre Luizinho, em SJE, e da Missa do Poeta, em Tabira, sendo a primeira integralmente versejada. Não há hora específica para recitar poesias. “Casamento, batizado, inauguração de estabelecimento, enterro, formatura, despedida, chegada, nascimento de menino, vitória de futebol – banhamos de rimas todos esses momentos”, diz Dulce Lima Pessoa, integrante da Associação dos Poetas e Prosadores de Tabira (APPTA). A cidade de Dulce é, do Pajeú, a única a ter hoje uma associação atuante, surgida em 1994. A
organização ainda não tem sede, mas lançou a I Antologia de Tabira e, além de promover festas como a Missa do Poeta, em setembro, tem um programa na rádio chamado Manhã de luzes, dedicado a leituras de poesias e prosas. “A associação começou com um bate-papo de calçada”, conta o poeta e ex-presidente da APPTA,
a história aponta que foram os lusitanos migrados para o interior que inocularam a poesia de viola no sertão Dedé Monteiro, “Nossa pretensão é de divulgar, preservar e, principalmente, vivenciar a poesia”. Em Tuparetama, cidade onde também há vivência de poesia, recentemente ocorreu uma cantoria para arrecadar fundos para um poeta com doença grave. Repentistas de renome local, como Diomedes
Mariano e Sebastião Dias, voltaram às origens das mais simples cantorias e improvisaram na frente de uma bandeja, que ia se enchendo com o dinheiro dos populares comovidos com a situação. Nessas horas, o poder do pinho se mostrou mais significativo: “Minha viola irá lhe operar e meu verso servirá de anestesia (...) trouxe um frasco de verso e poesia pra fazer meu poeta melhorar”, cantava Sebastião, seguindo o mote dado na hora. Dessa forma, a poesia nordestina mostra sinais fortes de vida no Sertão, embora hoje divida espaço com manifestações da cultura de massa, que não está tão de acordo com a filosofia dos amantes do verso. Ainda assim, o poder conservador do povo sertanejo consegue manter no pedestal os seus vates. “Nossos poetas são diferentes desses repentistas de praia e feira que vemos nas capitais”, diz Nenen Patriota, em defesa dos mestres cantadores de sua terra, que, nas palavras de Câmara Cascudo, foram e são os “representantes legítimos de todos os bardos”.
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valorização para que a poesia não se dissipe com o vento
Moradores e poder público articulam ações para dar corpo ao legado dos cantadores e poetas, maiores representantes da cultura local
a poesia dos antigos cantadores
se dissipou no vento. Seus versos, quase nunca escritos, ou foram memorados por algum ouvinte – que depois os relatou – ou apenas ganharam fama de bons e se perderam. “Nós sabemos hoje que 15% dos versos feitos por Lourival Batista, Jó Patriota, entre outros poetas, perderam-se na oralidade”, diz Antônio Marinho, bisneto do poeta homônimo, primeiro cantador de São José do Egito. Isso, de certa forma, também ajudou a
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na paReDe
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entalHe
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itapetiM
Se o viajante tiver alguma dúvida de que está em terras de poetas, basta observar os versos pintados nas casas, como nesta, em São José do egito Quando soube que iam derrubar o eucalipto da praça principal de afogados da ingazeira, o artista plástico tratou de gravar nele a imagem de um violeiro o poeta mais ilustre do município, rogaciano leite, terá busto inaugurado e reforma da casa onde morou; as ações esperam atrair fluxo turístico
voláteis da cantoria de viola, de cordelistas e poetas glosadores? Além dos versos algumas vezes impressos, é preciso revelar com outros símbolos a importância que essa tradição tem para os habitantes do lugar. É o valor que adquirem as referências materiais que tem impulsionado ações tanto das prefeituras quanto dos moradores dessas cidades. Em Itapetim, a casa do seu poeta mais ilustre, Rogaciano Leite, será reformada e uma estátua em sua homenagem será erguida no centro da praça que tem seu nome. Em São José do Egito, espera-se recuperar as casas onde nasceram poetas afamados, como Cancão, tornando-as ponto de visitação pública.
iniciatiVa pRÓpRia
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marCoS nuneS/ divulgação
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mitificar esses artistas, cultuados até hoje na região do Pajeú. O desejo popular de conhecer mais sobre seus vates, de querer ouvir versos além das coletâneas e dos poucos livros publicados, que também expressa a vontade de reaver as cantorias do passado, faz com que a preocupação com o registro material seja importante naquela região: quando possível, as cantorias são gravadas e registradas. No Pajeú, um bom verso de viola é quase como um gol de futebol –
gera euforia e adesão ao “goleador”. Os ouvidos atentos do sertanejo são rigorosos – rima, métrica e beleza devem constar na poesia para que mereça um aplauso ou um grito de elogio: “Esse é grande!”. A cultura da poesia é, prioritariamente, imaterial. As letras e palavras são apenas instrumentos para a composição do sentido, ou da imagem. Mas como mostrar a um estranho que, ali, há poesia? Como torná-la palpável? Como engrandecer um século e meio de história, feita dos personagens
Na praça principal da cidade de Afogados da Ingazeira, deparamonos com a escultura em madeira de um violeiro. “Era um antigo pé de eucalipto, iam derrubá-lo de qualquer forma. Perguntei se não podia, então, fazer uma escultura”, conta o artista plástico Edierck José, autor da peça. Na mesma praça, ruínas de um antigo coreto. Ao invés de uma placa protocolar, três poesias foram gravadas para explicar o porquê da homenagem aos destroços. Poetas e poesias estão representados em todos os lugares das cidades: estátuas em praças, nomes de ruas, avenidas e vilas, hotéis, tudo faz referência aos ícones que fazem parte da história do Pajeú. As paredes pintadas com versos dos poetas, num colorido comum das casinhas do interior, são outro testemunho dessa necessidade de materialização. “Perguntei, na prefeitura, se podia pintar essas paredes, eles assentiram”, diz o coordenador de cultura e declamador de São José do Egito, Alan Miraestes. O que acontece hoje no Sertão do Pajeú é uma espécie de reconhecimento tardio. Os versos esquecidos das obras de um cantador, sem intenção de publicá-los, encontram uma cidade e sua gente buscando valorizar sua cultura, tentando redimir-se de já ter perdido versos e toadas de tantos bons cantadores. bernarDo ValenÇa
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con especial ti nen te#44 mª Júlia vieira/ divulgação
iniciação na trilha dos bons versos
a varanda da casa de Iago Tales se
debruça sobre a Rua do Poeta, em São José do Egito. É dela que o garoto de 11 para 12 anos ouve os sons das cantorias realizadas no Pátio da Feira, quando não está participando dos eventos. O interesse pela poesia popular despertou há três anos, por incentivo da família. Aos nove anos de idade, ele recitava pela primeira vez em público. Iago integra uma geração de meninos e meninas do Vale do Pajeú que estão despontando na lida com a palavra, o verso e a rima. Ele não mostra os rabiscos a estranhos, diz ficar envergonhado, mas o pai, Ronaldo Araújo, conta que não são raras as vezes em que o filho vira a noite com caderno e lápis na mão. Iago se ruboriza, mas, a pedido dos presentes, declama alguns poemas de sua autoria. O pai olha atento até o final, “Os temas dele são assim, sobre amor e sofrimento”, comenta entre risos, “Se nessa idade ele escreve essas coisas, imagine quando estiver sofrendo por amor mesmo”. Quando não está dedicado aos próprios versos, o menino aprende a recitar os de outros poetas. Além dos já consagrados, decorou os poemas de vários jovens, entre eles, seus conterrâneos Vinícius Gregório e Antônio Marinho, que conquistou o garoto com uma poesia de forte caráter social. Com 22 anos, Marinho mora hoje no Recife e é chamado para declamar poesia em todo o país. Mesmo assim, ele conta que, em suas visitas ao Sertão, não existe cachê melhor do que ver Iago Tales e outros meninos da mesma idade recitando versos seus entre os dos grandes poetas. Marinho também acha bonito que a cultura da cidade ainda tenha força: “Na idade deles, eu fazia o mesmo, declamava poemas de Louro do Pajeú, de Rogaciano Leite”, conta o poeta, que se apresentou pela primeira vez aos três anos e, aos seis, já escrevia seus próprios versos.
Nova geração do Pajeú mescla referências em busca de qualidade poética TEXTO Ana Lira e Bernardo Valença
no caFÉ Da ManHÃ
A avó de Marinho, Dona Helena, era conhecida como a “Princesa de São José do Egito”, devido à história criada pelo cordelista José Rabelo, que inventou uma espécie de lenda 08
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em que os cantadores da cidade eram faraós. Filha do primeiro deles, Antônio Marinho, e casada com o terceiro e último faraó, Lourival Batista, ela se dedicou à manutenção dessa veia poética na família, tornando-se representante de uma dinastia, uma “princesa”, no final das contas. “Quando eu era novo, minha avó ditava um poema no café-da-manhã, que eu tinha que decorar para recitar no almoço. Então, ela me dava outro para declamar no jantar. Em seguida, recebia mais um para dizer antes de dormir e, nesse momento, ela me dava o que eu deveria recitar de manhã. Isso acontecia diariamente. Ela educou assim todos os netos, mas eu gostava muito e foi o que me influenciou a seguir esse caminho”, explica o herdeiro Marinho. Os primeiros poetas da cidade, como Louro do Pajeú, Jó Patriota e Rogaciano Leite, também começaram desde cedo na arte do verso e da trova. Rogaciano – que é conhecido em vários países, tendo poesias como Os Trabalhadores traduzida em mais de 20 línguas –, aos 15 anos, enfrentou seu primeiro desafio de repente. O interesse precoce dos meninos da região é sedimentado por uma cultura formada nessas cidades, nas escolas e nas conversas que enaltecem esses “desbravadores da poesia”. “É muito difícil alguém ser isento da poesia no Sertão”, diz Antônio Marinho, “Mesmo que a família não seja de poetas, a criança acaba se interessando pelo verso”. Foi o caso de Vinícius Gregório, que, mesmo não tendo nenhum parentesco com algum poeta “grande”, se interessou pela arte. “Meu pai recitava poesias para mim na varanda de casa, daí eu despertei para a coisa”, conta. Outro fator que impulsionou Vinícius foi a saudade da terra natal, que surgiu a partir de sua mudança para o Recife, aos 14 anos. Hoje, aos 22, já tem um livro publicado, Hereditariedade. Em um mapeamento recente, publicado em livro sobre a cidade de Itapetim, os pesquisadores Marcos Nunes e Saulo Passos apresentaram duas centenas de poetas da região, a maioria deles ainda viva. A antologia conta com nomes como o de Débora Monique Lopes, 15 anos,
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HeRDeiRo
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ViZinHanÇa
Hoje morando no recife, antônio marinho pertence a uma linhagem de autores do verso sertanejo. ele viaja pelo país divulgando a tradição morador de casa na rua do poeta, em São José do egito, iago Sales já produz os próprios poemas e declama os de familiares e conterrâneos
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que se destacou ao declamar no II Festival Internacional de Trovadores e Repentistas, no Ceará, em 2005, e que começa a aparecer no meio como poetisa. Além dela, Jorge Danilo de Lira e Antônio Marcos de Freitas integram essa nova geração de poetas que, nas suas produções, ajudam a discutir e perpetuar temas caros ao povo sertanejo, como o amor pela terra, a fé e a devoção à família.
inteRcÂMBio local
O tabirense Clécio Rimas vê na articulação entre poetas e cidades da região um exemplo significativo para o cultivo da arte do verso. Durante alguns anos, ele fez parte da Associação dos Poetas e Prosadores de Tabira (APPTA) e diz admirar a instituição por abrir espaço em seus eventos a quem não é filiado: “Ela permite que os iniciantes possam mostrar os seus trabalhos e isso é fundamental”. Clécio, porém, tem a poesia popular apenas como um dos pilares de seu trabalho, o outro é o hip hop. “Acredito que o repente é o avô do hip hop, e que a embolada é o elo perdido entre essas duas formas de poesia”, diz ele, usando como exemplo o encontro entre o rapper Thaíde e Patativa do Assaré, em 2000. “Quando a gente estuda rap e a relação com a rima, encontra muita semelhança. Agora, na poesia popular, não trabalho essa relação com a música”, conta ele, “Posso dizer que sou um glosador”.
O fato de Clécio fazer glosas segue uma tendência local, pois hoje é mais difícil achar novos cantadores de viola. Fácil é encontrar aqueles que fazem seus versos resguardados em casa; com cuidado ao que poderá legar às gerações futuras. “Nossa responsabilidade é bem maior por conta do lixo cultural que existe”, diz Vinícius Gregório. “Além do mais, é inevitável ser comparado com os vates daqui”, completa. “O repentista é um artista eminentemente rural. Hoje, nos grandes centros do Brasil e na Europa, o repente é aplaudido, mas a figura do cantador é de origem rural e a viola o acompanha nesse meio. Porém, com a mudança da própria profissão, a mudança das pessoas dos sítios para as cidades, a urbanização e tudo mais, hoje a maioria é de glosadores ou poetas de bancada. Porém, ainda existem bons repentistas na nova geração”, explica Antônio Marinho. Mesmo com essa transformação, o que importa é procurar fazer um trabalho com qualidade. “A tecnologia transforma a forma de fazer arte. O que a gente não pode deixar é que isso tire a beleza de um ‘pé de parede’, a magia do verso feito no improviso”, ressalta Antônio Marinho. “A gente quer ver é a língua se disseminando, independentemente do meio”, afirma Clécio, já habituado a escrever poesia no computador: “Faço poesia até em comunidades no Orkut. O que vale, independentemente de geração, é fazer um bom verso”.
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world music uma amostra do que a globalização oferece ao jazz Festival olindense reúne grupos musicais vindos do continente africano, da Europa Oriental e também exemplares nacionais, em apresentações gratuitas texto Danielle Romani
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As irmãs Helene e célia
Faussart são assíduas nos circuitos musicais dos Estados Unidos e Europa. Franco-camaronesas, lideram a banda Les Nubians, de sonoridade sofisticada, que mescla jazz, hip hop europeu e o novo pop africano. Apesar de desconhecidas no Brasil, são consideradas expoentes da world music e, há cerca de uma década, encabeçam as listas de melhores na parada musical da revista norte-americana Billboard. Para os que gostam do gênero, uma boa oportunidade de conferir o som das franco-camaronesas se dará no início de outubro, quando a dupla virá ao Brasil para participar da quinta edição do Olinda Jazz Festival, realizado entre os dias 2 e 4, e que tem agendadas atrações internacionais e nacionais do world jazz. Para Les Nubians, a apresentação em Olinda será um marco, pois se trata de sua primeira turnê em território nacional, segundo contou Helene Faussart à Continente, em entrevista por e-mail, na qual falou um pouco sobre o mix de estilos do grupo. “Costumamos chamar nossa música de afropeia (mistura de africana com europeia), ou seja: tem toques da música africana tradicional e contemporânea, e principalmente dos ritmos originados com a diáspora africana, a exemplo do soul, reggae, zouk, compe e do hip hop. No que diz respeito às sonoridades europeias, lidamos com o pop, o rock, o clássico e a música eletrônica”, explicou a cantora, que acompanha o trabalho de brasileiros como Gilberto Gil, Djavan, João Gilberto, Carlinhos Brown, Vinicius de Moraes e Seu Jorge. O grupo Les Nubians não será o único a trazer a sonoridade africana para o palco olindense. Outro representante do continente negro será Adama Yalomba, de Mali, que trará aos ouvintes uma batida afropop, entremeada pelo uso do dan, instrumento de cordas tradicional da África Ocidental. Na mesma noite, está agendada a apresentação do grupo paulista Moleque de Rua – que já realizou vários trabalhos com Les Nubians e com a banda olindense Bongar. Ainda no rol de artistas internacionais previstos na pauta
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amsterdan Klezmer Band apresentará repertório de música tradicional judaica além do show, grupo paulista fará oficina de percussão junto com les Nubians
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do Olinda Jazz Festival, estão Oleg Fateev e a Amsterdan Klezmer Band, atrações do segundo dia do evento, batizado de Noite Cigana. Oleg, que é maestro e natural da Moldávia, fará um show centrado na música erudita e tradicional russa e do leste europeu. Segundo a crítica musical, ele é um virtuose do acordeão, e mestre na combinação de improvisos da música folk. No caso do show da banda Amsterdan, a tônica será o gênero musical judaico. A proposta para os músicos holandeses é de que eles sejam acompanhados pela Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, e saiam em cortejo pelas ladeiras de Olinda. Para o último dia do festival está prevista a apresentação do Quinteto Violado, a partir das 11h, com o espetáculo Uma canção que virou concerto, pautado na obra de Geraldo Vandré. O grupo será acompanhado pela Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório de Olinda. Chico César será a atração noturna, num espetáculo que contará com a participação de todos os artistas internacionais convidados. Os shows são gratuitos e serão realizados em palco montado na praça Monsenhor Fabrício, em frente à prefeitura local.
Ao lado do Olinda Jazz Festival, será realizado o evento Quitutes e Batuques, dedicado à realização de oficinas culturais com a comunidade local, nas áreas de música, gastronomia, teatro de bonecos e videomarketing. Sete oficinas serão realizadas no Recife e em Olinda, uma delas a cargo de Les Nubians e dos Moleques de Rua, que ficarão responsáveis por aulas de percussão, canto e confecção de brinquedos sonoros para crianças e adolescentes. A organização do evento deverá trazer, ainda, o cineasta francês Zangro e o ator Hassan Zahi, para a realização de vídeos com jovens da comunidade. As oficinas gastronômicas ficarão por conta de cozinheiras do Table d´Hote, grupo de mulheres que possuem ascendência francesa, mulçumana e africana, e que mostrarão um repertório com pratos da cozinha francesa e suas influências contemporâneas internacionais. A prioridade no preenchimento das vagas das oficinas será dada à comunidade local. Os que desejam participar devem entrar em contato com a Secretaria de Cultura de Olinda.
@ continenteonline Leia a programação completa do Olinda Jazz Festival e do Quitutes e Batuques no site www.revistacontinente.com.br
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sébastien tellier coquetel molotov coloca a dance music francesa no set Entre as atrações do festival, está a vinda do cantor que insere nas músicas para dançar pitadas de de rhythm and blues e fanfarrona sensualidade
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texto Schneider Carpeggiani
sexo, senhoras e senhores.
No Ar Coquetel Molotov centro de convenções de Pernambuco 14 a 19 set
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Sexo para as massas, viciados, voyeurs, sexo para os robôs (afinal, eles também são gente) e, sobretudo, para os fetichistas de roupas esportivas. Tanto faz se a preferência se manifesta na forma das três listrinhas da Adidas ou nas cores berrantes das suas concorrentes menos cotadas. O importante é envolver suor, esforço físico, vapor... “O meu maior desejo é fazer um filme erótico sobre roupas esportivas. E, quando ele estiver em cartaz nos cinemas, todos estarão tão interessados em misturar sexo com esportes como eu.” A declaração é do cantor/ produtor/ performer/ tarado francês Sébastien Tellier, atração mais “suada” da edição 2009 do Festival No Ar Coquetel Molotov, que toma conta do Centro de Convenções de Pernambuco, entre os dias 14 e 19 de setembro. Ano passado, monsieur fez o favor de dividir suas taras esportivas (entre outras, claro, que o homem é versátil...) com o resto do mundo no álbumconceito Sexuality. Uma escolha artística de respeitável e tradicional linhagem. Desde que Elvis balançou os quadris pela primeira vez, a música pop adora ser a nossa terapia de grupo sobre sexo. Pense em todos aqueles grupos de garotas de olhar lânguido dos anos 1960, nos metaleiros sem camisa, nas Madonnas genéricas com jeans de cintura baixa e em todos os rappers de cara malvada. O que todos eles têm em comum? Fácil: sexo, descarado ou não. Ou você acredita que I wanna hold your hand, dos Beatles, era sobre segurar a mãozinha da garota? Sexuality é um trabalho que vampiriza toda essa linhagem histórica, quando a própria ideia de álbum se esfacela
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diante dos nossos olhos e ouvidos (imagina a de um álbum conceito!). O final da primeira década deste século tem mais a ver com a rapidez do single em mp3 do que com a dedicação exigida por um disco inteiro e seus 60 minutos. É como se, musicalmente, estivéssemos assistindo ao embate entre o sexo casual X a monogamia. E monsieur Tellier escolheu a segunda opção, mesmo perigando soar anacrônico. Taras à parte, um legítimo amante à moda antiga. Produzido por GuyManuel De Homem-Christo (uma das metades do Daft Punk), Sexuality traz de volta a dance music francesa dos anos 1990 (o famigerado french touch) com pitadas de R&B, Giorgio Moroder e da própria tradição local em acreditar na força de suspiros sobre bases sintéticas – lembrem-se do (hoje) santo Serge Gainsbourg e de todos aqueles gemidos... O primeiro sucesso do álbum foi a panfletária Sexual sportswear, que mostrou ao mundo a força da crença do artista no suor dos corpos – e, claro, não estamos falando em pistas de dança, principal alvo do disco. O maior sucesso de Sexuality é Kilometer, faixa toda arquitetada no tecnopop do começo dos anos 1980, que ganhou um
remix decisivo da dupla belga Aeroplane. Com essa versão, Tellier tornou-se onipresente em sets dos principais DJs do mundo. Ele já havia lançado álbuns de sucesso mediano pelo circuito alternativo, como Universe e Politics, mas nunca havia soado tão natural, tão à frente da concorrência, como agora. É claro que nenhuma fantasia se satisfaz apenas com estímulos auditivos. Siga até o Youtube e procure os vídeos de divulgação de Sexuality. Totalmente canastrão, de roupão branco, óculos escuros e inspirado no Richard Gere do filme Gigolô americano (grande arquétipo da libido masculina), Tellier protagoniza cenas imperdíveis de como o desejo pode ser ridículo. E basta dar uma vasculhada pela internet para ver que seus shows sempre trazem performances absurdas e teatrais, para além do papaie-mamãe dos espetáculos de rock a que você está acostumado. Além de toda a sensualidade fanfarrona de monsieur Tellier, o Coquetel Molotov traz nomes como Zombie Zombie, François Virot, Those Dancing Days, Loney, Dear, Britta Persson e Lô Borges & Milton Nascimento.
sons mArcAdos Pelo sexo Jane birkin e serge Gainsbourg, há 40 anos, foram pioneiros em gemidos e sussurros Quando teve de provar ao mundo que era um artista sério, Marvin gaye escreveu, compôs e militou pelos direitos dos negros em What’s going on (1971). Reputação conquistada, partiu para a ação (para usarmos aqui um eufemismo para sexo!). Let’s get it on (1973) é o início de uma espécie de trilogia passional, que transformou o ex-garoto prodígio da Motown numa espécie de animal dos motéis, formada ainda por I want you (1976) e Here, my dear (1978). a história por trás desses trabalhos segue a cronologia básica das relações humanas: as tentativas de conquista do objeto de desejo (“somos todos pessoas sensíveis, com tanto para dar”, canta em let’s get it on), a dependência emocional que se segue à primeira noite (“Eu quero você do jeito certo”, repete no refrão de I want you) e a constatação de que é preciso seguir em frente (uma das faixas de Here, my dear tem o direto título de When did you stop loving me, When did I stop loving you). Mas nunca houve uma cantora que gemesse tanto como donna summer. ou
melhor: nunca houve uma cantora que gemesse por tanto tempo quanto donna summer. E nem estamos falando aqui do sucesso I feel love, que incrementou com sexo e glacê pop as viagens robóticas que o Kraftwerk já fazia desde a virada entre os anos 1960 e 1970. gemido duradouro mesmo foi Love to love you baby, seu primeiro hit e carro-chefe de um álbum homônimo (1975), que existe apenas para sustentar quase 20 minutos de um orgasmo. o que não é pouco! a estratégia de divulgação da música foi deixar um homem trancado e escutando a canção sem parar por 24 horas seguidas. Em 1992, Madonna lançou o álbum-síntese de como a aids verteu o desejo em paranoia. Erotica é um trabalho frio, melancólico, quase sem vida e sob medida para lembrar ao mundo que não existe diversão sem risco. É claro que não poderíamos falar da relação sexo e música pop, sem falar no álbum Jane Birkin et serge gainsbourg (ilustração), lançado no apropriado ano de 1969. É lá que está a pontade-lança de todos os gemidos futuros, Je t’aime moi non plus.
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divulgação
Há um macroargumento que
Leitura
JHUMPA LAHIRI Conflitos domésticos e dramas transculturais
Autora indo-americana chega ao terceiro livro consolidando trajetória de ficcionista hábil em manejar narrativas breves e contundentes texto Adriana Dória Matos
estrutura as narrativas de Jhumpa Lahiri: seus personagens vivem o fenômeno da transculturação e o conflito de pertencerem a uma tradição e estarem inseridos em outra. Tem sido assim desde que, há 10 anos, ela lançou seu primeiro livro, Intérprete de males (Interpreter of maladies), com o qual ganhou o Prêmio Pulitzer em 2000. À época, a autora tinha 32 anos. Nesse intervalo, ela escreveu também o romance O xará (The namesake, 2003) e, agora, apresenta novamente contos em Terra descansada (Unaccustomed earth). O conflito entre culturas que marca a produção desta autora remete às suas origens, pois que ela nasceu em Londres, filha de indianos de Bengala, e vive nos Estados Unidos, onde desenvolve a carreira de ficcionista. O fato de Lahiri estruturar suas narrativas a partir de um background de cunho antropológico poderia servir apenas ao interesse dos estudos culturais, no que a voz de uma escritora indo-americana pudesse contribuir no campo da criação literária. Mas o que torna sua obra peculiar e atraente é a habilidade com que maneja esse fundo autobiográfico para a construção de tramas em que as tradições culturais ampliam a carga dramática dos conflitos familiares. Nela, temos uma literatura que concentra sua força em situações pessoais e domésticas, que, pela intensa capacidade de observação e reflexão da autora, transcende os interesses etnográficos que possam nos levar inicialmente à leitura, colocandonos diante de situações que dizem respeito a todos nós, já que – queiramos ou não – partimos do núcleo familiar para nos lançarmos no mundo. Já em Intérprete de males a autora havia revelado a capacidade de trazer, em breves narrativas, culminâncias de situações de desajuste entre maridos e mulheres, pais e filhos, amigos, vizinhos, irmãos, amantes, manejando a técnica de construção do conto, em que um narrador – às vezes em primeira, às vezes em terceira pessoa – conta acontecimentos decisivos para seus personagens. No conto que dá título ao livro, um casal americano de origem indiana e seus filhos estão de férias em Puri, na Índia, tendo como anfitrião um senhor
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Resenha
CORDEL BANDA LARGA O GêNERO NAs PáGINAs DA wEB
terra descansada Jhumpa lahiri cia das Letras Reunião de oito contos em que a autora explora os conflitos de relacionamento tendo como pano de fundo a transculturação dos personagens
que trabalha como guia turístico e intérprete em um consultório médico. O encontro não apenas revela os abismos que podem existir entre pessoas de mesma origem e diferentes formações, mas também aqueles mais íntimos e insuspeitos, que se abrem entre marido e mulher. O conto traz um elemento surpresa em seu desfecho – que aponta para a reviravolta da trama, um golpe para o personagem do intérprete, o sr. Kapasi. Neste novo livro, em que a autora amplia seu fôlego narrativo – talvez pela experiência adquirida pela produção de um romance –, os contos ficam mais longos, mas a atenção da autora continua centrada nos dramas familiares. Terra descansada, conto que intitula e abre a coletânea, põe no mesmo plano as preocupações de uma típica dona de casa norte-americana e as de uma filha indiana, na personagem Ruma. Mesmo com uma carreira promissora, ela abriu mão do trabalho para acompanhar o marido em uma mudança profissional. Está prestes a receber o pai, que virá visitá-la em seu novo endereço. Esse breve encontro de uma semana faz com que Ruma rememore parte de sua infância e adolescência, repense sua relação com o marido e o filho, e reconheça, pela primeira vez, naquele que ela sempre chamou de Baba (pai), uma pessoa que, assim como ela, sentiuse tantas vezes comprimido pelas tradições. Há neste e em outros contos de Jhumpa Lahiri momentos de tensão e revelação que se tornam inesquecíveis tanto para os seus personagens quanto para o leitor.
Lá se vão 12 anos desde a primeira peleja virtual de que se tem notícia, entre o pernambucano José Honório e o paraibano Américo Gomes. Ao contrário do que um certo conservadorismo – ou preconceito – sugeria, a internet não provocou o fim dos folhetos em cordão, que teve seu período de auge nos 1950. Como explica Maria Alice Amorim, em No visgo do improviso ou a peleja virtual entre cibercultura e tradição, os poetas populares resistem justamente por terem firmado um pacto entre tradição e contemporaneidade, tendo a rede se tornado uma ferramenta imprescindível à preservação do cordel. É esse pacto que permeia a pesquisa de mestrado da jornalista, defendida na PUC paulista em 2007, agora convertida em livro, em edição bem-acabada da EDUC (editora da PUC). O livro de 150 páginas, além de trazer um DVD com documentário sobre os cordelistas, feito pela pesquisadora, é rico em ilustrações e anexos de
reportagens, trazendo ainda uma vasta bibliografia. Do cordel tradicional às pelejas virtuais, passando pelo parentesco com a payada sulista e as origens latinas, Maria Alice Amorim insere elementos da teoria da comunicação na pesquisa, sem perder o foco nem a linguagem acessível. A obra ainda reserva espaço à análise de clássicos do gênero, como A peleja de Cego Aderaldo e Zé Pretinho, do piauiense Firmino Teixeira do Amaral, espécie de best-seller do cordel. Dada a velocidade da web, hoje, é arriscado fazer pesquisa nesse campo: as mudanças constantes estão sempre exigindo atualizações ou até obras novas. No entanto, a consistência da pesquisa de Maria Alice Amorim e até mesmo a escassez de estudos sobre o novo circuito do cordel garantem a No visgo do improviso status de fonte de consulta indispensável para estudiosos e interessados no novo contexto dessa tradição poética. thiaGo liNs
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RepRodução
Todas essas questões são novamente suscitadas com a revalorização da obra tradutória de Manuel Odorico Mendes (1799-1864), nascido em São Luís do Maranhão. Rigoroso e criativo, esse tradutor verteu para nosso idioma duas tragédias de Voltaire, toda a epopéia homérica (Ilíada e Odisseia) e toda a obra de Virgílio (Bucólicas, Geórgicas e Eneida). As traduções de Odorico são um belo exemplo de tradução poética, no qual se observa a tentativa de manter os efeitos de som e ritmo dos versos originais, preservando, engenhosamente, mais do que o significado, o efeito poético. Há cerca de 10 anos, o grupo acadêmico Odorico Mendes, formado por professores e alunos de pósgraduação do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, trabalha A transposição das Bucólicas de Virgílio para o português na pesquisa e divulgação da obra do tradutor maranhense. Não se trata é um belo exemplo de tradução criativa, em que há uma do primeiro grupo que se dedica a tal tentativa de manter os efeitos poéticos originais tarefa, mas o diferencial alcançado por essa equipe pode ser comprovado nas texto Eduardo Cesar Maia edições recentemente lançadas pela Editora da Unicamp: a Eneida Brasileira e as Bucólicas em se tratando especificamente irreproduzível”. Do outro (coedição Ateliê Editorial), de poesia, será que existe um critério lado da trincheira, estão de Virgílio, ambas rígido e único que assegure o que é aqueles que, levando em vertidas por Odorico. uma boa tradução? O mais importante conta a impossibilidade Os textos são bilíngues e deve ser o respeito ao significado ou de uma tradução poética estão acompanhados de à forma? Essas são questões que há completamente fiel, anotações e comentários séculos dividem as opiniões de poetas, acreditam que sua dos pesquisadores do tradutores e leitores. O adágio italiano realização deve ser feita de grupo. A leitura é, assim, traduttore, traditore (tradutor, traidor) forma inventiva. Roman facilitada e enriquecida, endossa a crença daqueles que afirmam Jakobson, por exemplo, pois as notas elucidam que toda tentativa de se verter uma acreditava que “só é dificuldades vocabulares, obra de arte literária para outra língua possível a transposição sintáticas e esclarecem acaba sendo, em menor ou maior grau, criativa”. No Brasil, referências históricas e Bucólicas um ato de falsificação, que termina destaca-se o trabalho dos mitológicas. Além disso, VirGílio sempre em uma versão corrompida irmãos Augusto e Haroldo são analisadas as técnicas Ateliê editorial da original. O pesquisador literário de Campos, os quais se que o tradutor utilizou os 10 poemas pastoris que Emil Staiger, por exemplo, não achava propõem uma “arte de para reproduzir em compõem as Bucólicas são viável a possibilidade da tradução, traduzir poesia sob o signo português efeitos poéticos parte do cânone ocidental pois para ele “a poesia é singular e da criação”. dos versos originais.
Leitura
ODORICO MENDEs Erudito e criativo, tradutor maranhense é revalorizado
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indicações ENSAIO
INês BOGÉA (ORG.) Primeira estação
CRÔNICAS
UBIRATAN MACHADO Coelho Neto Global
Coelho Neto teve o privilégio de ver de perto alguns dos movimentos mais importantes da história brasileira e da vida cultural do país, como a decadência do império, a abolição dos escravos, o nascimento da República. as referências históricas e a irreverência com que tratou as mazelas da “cidade maravilhosa”, alcunha colocada por ele, são a boa da vez da coleção Melhores Crônicas, da global editora. Considerado um dos responsáveis pela evolução do gênero no Brasil, ele escreveu cerca de 8 mil crônicas. a seleção e o prefácio são do jornalista, escritor e tradutor ubiratan Machado.
imprensa oficial/ são paulo Companhia de Dança
FICÇÃO
RAYMOND QUENEAU Zazie no metrô Cosac Naify
escrito há 50 anos, o livro que retrata a odisseia de uma garota desbocada em paris ganha edição especial da Cosac Naify, que deu tratamento gráfico à altura da fama vanguardista do romance, no qual Queneau introduziu neologismos e coloquialismos, trazendo a fala das ruas para a literatura e mesclando erudição e humor. a leitura de Zazie no metrô continua instigante pelos muitos mistérios jamais decifrados, entre os quais se um dos personagens centrais é homem ou mulher.
dez profissionais de variados campos das ciências humanas escrevem sobre dança, tendo como ponto de partida a São paulo Companhia de dança, que surgiu em janeiro de 2008, com o intuito de trabalhar com remontagens de grandes clássicos, repertório próprio, ações educativas e produção de materiais de reflexão e registro. a publicação corresponde diretamente a este último propósito, por constituir-se num produto em que os textos e as imagens possibilitam conhecer o repertório recentemente trabalhado pela companhia e, ao mesmo tempo, ler conteúdos sobre a dança, arte que demanda mais atenção do mercado editorial nacional.
ENSAIO
FLORIANO MARTINs A inocência de pensar escrituras
o autor compõe um álbum de retratos com anotações sobre a vida e a obra dos personagens, como drummond de andrade, Marquês de Sade, pablo Neruda, João Cabral, antonio Bandeira, Max ernst, Marcel Schwob, Robert graves e georges duby. a amplitude dos seus interesses, ligados à cultura contemporânea, também aparece em diálogos com outros estudiosos, sobre abstracionismo, Surrealismo, Simbolismo e o romance nordestino, em que reforça a necessidade urgente de livrar o pensamento dos pequenos vícios adquiridos como imperativos acadêmicos ou jornalísticos.
Regime militar e Caso Watergate dois lançamentos da Record revelam segredos escondidos por mais de três décadas. São os livrosreportagens Olho por olho – Os livros secretos da ditadura (lucas Figueiredo), e A vida do Garganta Profunda – revelações sobre o FBI, o caso Watergate e a luta pela própria dignidade em Washington (o’ Connor & Mark Felt). o jornalista lucas Figueiredo teve acesso ao livro Orvil, escrito pelos militares no governo Médici (foto à direita) e nunca publicado; estes dão a própria versão sobre o combate à guerrilha e ao terrorismo de esquerda, na tentativa de confrontar e
desmentir informações do bestseller Brasil: nunca mais, que denunciava os casos de tortura e desaparecimento de presos políticos. em A vida do Garganta Profunda, é revelada a identidade de Mark Felt, agente do FBi que passou à imprensa informações de bastidores políticos que levaram à queda de Nixon, no processo conhecido como Caso Watergate, retratado no livro Todos os homens do presidente, dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, que deram um furo de reportagem sobre o assunto no Washington Post, em 1972.
RepRodução do livRo olho poR olho/aRQuivo eM
AQUELE LADO DA HISTÓRIA QUE TEIMA EM SE OCULTAR
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o conte Grande visto por dentro (1)
estamos em pLeno mar...
matéria corrida José cláudio
artista plástico
os restos do meu latim. “As correntezas da vida/E os restos do meu amor/ Resvalam numa descida/Como a da fonte e da flor...” (Vicente de Carvalho, “A flor e a fonte”). Quem diria que, perto dos 80, ainda haveria de me alimentar dos versos de ginasiano! E que meu latim não passaria do rosa, rosae e do amo, amat. Amavi já não estou certo de que seja latim, estudado no Colégio Marista, ou italiano, que nunca estudei, aprendido nas ruas de Roma naquele longínquo 1957, e antes, no navio Conte Grande, minha primeira viagem de “circunavegação”: assim me sentia, me sinto até hoje. Minha “heroica” travessia do Atlântico. Ai, Arthur Carvalho, para que falaste nisso? “’Stamos em pleno mar...” (Castro Alves, “O navio negreiro”). Parecia escutar a voz do poeta, eu vendo, debruçado no bico da proa, as “espumas flutuantes” (Castro Alves) do “mar sonoroso” (Homero) – mentira, que naquela época eu ainda não tinha lido Homero – sentindo-me um Fernão de Magalhães. Em vez das andorinhas (“Como roçam na vaga as andorinhas...”, Castro Alves, “O
navio negreiro”), o voo dos peixesvoadores naquele claro novembro nosso, mas que mergulhavam de novo na água a distância de uma pedrada. “Que pássaros são estes?” Resposta: “Pássaros? Ainda vamos navegar uns pares de dias para ver algum pássaro. São peixes-voadores”. Tudo na minha vida eram incertezas naqueles meus 25 anos (outubro/1957), ingrediente senz’altro, indispensável, a uma bela viagem marítima. Eu nem sequer procurei saber quais seriam as escalas. Saída, Santos; e tal dia pararia no Recife, um tempo mínimo; não daria nem para descer. Mas desci ao cais, falei com Léo, com quem me casaria uns anos depois, e não sei se vi alguém da minha família: para quê? para dizer que não sabia o que ia ser de mim? Será que parou na Bahia, onde Arthur Carvalho se deslumbrava ao contemplá-lo da Ladeira da Barra? “Mas a grande sensação era o genovês Conte Grande (...) com duas chaminés e cor do casco imaculadamente branca contrastando com o verde das colinas da Ilha de Itaparica, ao fundo” (Arthur Carvalho, “Peguei um Ita no
Norte”, Jornal do Commercio, Recife, 20/maio/2009). Uma das coisas boas da 3ª classe era ocuparmos a proa com direito à piscina de água do mar e banho à fantasia na travessia do equador. Recebíamos no peito o primeiro vento do oceano. De tamanho descomunal, o Conte Grande quase não balançava. A gente sabia do balanço quando, andando pelo meio do barco, a linha do horizonte passava pelas vigias: mar, mar, mar, depois céu, céu, céu, sensação entediante que eu procurava evitar. Só balançou de verdade no Golfo de Lion: aí, pelos corredores, viam-se garçons experimentados apoiarem a cabeça na parede, a testa encostada no antebraço; na outra mão, espalmada acima do ombro, a bandeja, qual oferenda a Netuno, rogando-lhe amainar as fúrias. Para não dizer que não enjoei, dei, comemorativamente, uma golfada na pia, porque tinha comido chocolate. Para almoçar, no restaurante enorme, um solitário argentino moreno, parecendo mais um caboclo ou o que os gaúchos chamam de crioulo, moço, cabelo cacheado, que aliás fazia parte de nossa mesa de quatro pessoas, deu
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josé claudio
conta da exagerada porção de carne que vinha para cada um de nós assim como do vinho para os quatro. De noite frequentávamos um salão de recreio acho que somente masculino com um bar onde arrisquei a primeira palavra de italiano: cheguei no balcão e pedi una birra (uma cerveja). A dormida, ótima. Tive sorte de me botarem num camarote até mais amplo do que nesses navios de luxo que visitei depois, embora o meu para quatro pessoas, beliche dum lado, beliche do outro, e dois armários duplos até o teto não muito alto, dando para tocar com o braço estendido ou um pouco mais ao que me lembre. A memória me vem aos pedaços. Por exemplo: não sei como cheguei a Santos, se dormi em São Paulo na noite anterior, e já me vejo dentro do navio me apresentando no guichê de recepção e logo levado ao camarote um andar abaixo. No Conte Grande, fora as tábuas do chão, tudo era branco, tudo muito limpo. Fiquei numa das camas de baixo, colchão pouco espesso mas confortável. Não me lembro de banheiro nem da pia onde lavava os dentes nem dos outros
Uma das coisas boas da 3ª classe era ocuparmos a proa com direito a piscina de água do mar e banho a fantasia ocupantes do camarote. Na ida fiquei sozinho e na volta me deram dois companheiros, um dos quais espanhol meio gordo, de uns 40 anos, com um chulé horrível, e um velhinho italiano muito asseado que queria, mas recusei, enrolasse no corpo por baixo da roupa não sei quantas cartelas de botões de madrepérola para assim desembarcar em Santos, mostrando-me as que já lhe revestiam o corpo, da barriga às axilas. A comida era ótima. Carne argentina à vontade e vinho italiano idem. Foi no Conte Grande que aprendi a tomar vinho. Muita gente que podia viajar na lª classe achava melhor viajar na 3ª. Na lª tinha-se de ir às refeições de paletó e a comida, assim como o vinho, de garrafa, no cardápio
e pagos. Na terceira todo mundo andava de chinelo e, no restaurante, tudo de graça. Além de camarotes, tinha também na 3ª o camerone, um dormitoriozão coletivo que cheguei a visitar por curiosidade mas por sorte me botaram em camarote na ida e na volta, não sei se especificado isso na passagem, que quem me orientou foi o amigo Arnaldo Pedroso d’Horta, tarimbado, desde conseguir a bolsa de um ano em Roma onde estudei na Accademia di Belle Arti, nel Ferro di Cavallo, uma praça em forma de ferradura na beira do Tibre, como tudo mais. Depois do Recife a primeira parada foi em Dacar, no Senegal. A brincadeira era jogarem moedas na água para os nativos, uns negrões esguios, pularem da beira do cais para pegá-las antes de chegarem ao fundo. Também fui na “mediná”, num mercado na cidade nativa, com um alemão passageiro do navio e a mulher dele. Me espantei de ver comprida fila de mulheres enroladas naqueles panos brancos da cabeça aos pés: cegas, a mão no ombro da outra, pedindo esmola. (continua)
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Visuais 01
arte de rua Proposta de diálogo de periferia para periferia Grafiteiros, dançarinos, ativistas e curta-metragistas franceses trocam experiências com grupos locais texto Olívia Mindêlo fotos Paulo Melo Jr.
Antes mesmo de o Ministério da Cultura (MinC) carimbar 2009 como o Ano da França no Brasil, as nações já mantinham variadas formas de trocas culturais, uma delas mais subterrânea, digamos assim. Neste sentido, nada de compor uma permuta previsível, do tipo exposição impressionista para cá, um grupo de samba para lá. A ordem era aproximar os países por meio de manifestações de arte da periferia, um canal pouco explorado em assuntos diplomáticos. Desde que foi criado na capital paulista, em 2007, esse tem sido o mote do projeto Intercâmbio de Cultura Urbana, que já mandou para a França e trouxe ao Brasil uma
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frAncês
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bAirro do recife
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ilhA de deus
Jean-Guy, que assina Asol, integrou a comitiva de visitantes Durante grafitagem coletiva, Galo realizou desenho de grande dimensão A comunidade local pediu aos grafiteiros que desenhassem seus nomes nos muros das casas
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leva de grafiteiros, rappers e b-boys das duas nacionalidades. Este ano, outros deles cruzaram o Atlântico e atracaram por aqui, justamente no Ano da França no Brasil. “Foi uma coincidência, mas a gente quis reforçar essa troca, porque achávamos que os projetos para o ano eram muito formais, presos à cultura erudita francesa. Então propomos que também trouxessem para cá representantes da cultura da periferia, para as pessoas poderem conhecer uma França ainda pouco divulgada”, defende o sociólogo Daniel Veloso, um dos responsáveis pelo projeto. Desta vez, além de São Paulo, Recife e Fortaleza, entraram na
rota do projeto. Em Pernambuco, Garanhuns também foi incluída. Não só muros, mas telas de cinema e palcos receberam os artistas franceses. Paulistanos e recifenses se juntaram a eles. Do lado de lá, nomes como o do grupo de rap Shaolyn Gen Zu, oriundos do gueto Montfermeil, e dos grafiteiros Jaw, Blo, Remy Uno e Asol – estes últimos do coletivo de artes visuais L’Artmada, de Marselha. Do lado de cá, Galo, Derlon, Arsênico, Bozó, R-AKN (SP), entre outros. A maioria acostumada a cruzar o oceano, a convite de quem está por trás de projetos de intercâmbio como este. Em se tratando de grafite, viagens viraram rotina entre os artistas.
“É muito mais fascinante pintar em locais como esses, tão diferentes para nós. O mais importante não é nem a arte em si, é a troca”, comenta JeanGuy, que assina, nos muros, Asol. Em agosto, ele e mais outros deixaram seus traços na Ilha de Deus, uma das comunidades mais pobres da capital pernambucana, e no Recife Antigo, onde é grande o afluxo turístico. “No caso do grafite, é muito bom viajar, porque você começa a perceber as diferenças. Aqui, no Brasil, há muito mais liberdade, com as cores e as figuras, do que na França. Lá, se faz muito mais letras do que personagens. No Brasil, é o contrário”, observa Asol, da linha dos tags (letreiros), crias
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de artistas franceses que veio ao Recife em agosto. Durante sua visita à Ilha de Deus, conversou com a Continente. continente É a primeira vez que você vem ao Recife? Mehdi biGAderne É sim. O tempo aqui foi muito rico, sobretudo o contato com as favelas e as associações. Tudo isso vai fazer com que eu volte mais forte para a França, para entender melhor os problemas sociais.
Entrevista
mehdi bigaderne Quando protestos eclodiram nos bairros da periferia de Paris, em 2005, Mehdi Bigaderne tinha 24 anos. Filho de mãe argelina e pai marroquino, ele se via diante das mesmas dificuldades dos seus vizinhos do subúrbio de Clichy SousBois, um dos palcos das revoltas. Em vez de queimar carro, Mehdi preferiu a frente política: ajudou a montar a associação Aclefeu – Association Collectif Liberté Egalité Fraternité Ensemble Unis (Basta de Fogo – Associação Coletiva Liberdade, Igualdade e Fraternidade Todos Unidos), que atua até hoje, atendendo às reivindicações do bairro. Prefeito adjunto de Clichy Sous-Bois atualmente, ele acompanhou o grupo
Visuais
diretas do movimento inicial do grafite, que se espalhou de Nova York para o mundo. O artista Blo, de Paris, concorda com Asol, embora nos muros aja de forma completamente distinta. São dele os personagens de olhos puxados, meio mal-encarados, largados pelos muros do Recife. “O grafite francês ainda é muito preso ao hip-hop. Mas eu procuro fugir disso, por essa razão gosto muito do grafite que se faz no
continente Como você compararia, então, a periferia brasileira com a periferia francesa? Mehdi biGAderne Não posso dizer que as coisas acontecem da mesma maneira. Lá não existem favelas, são conjuntos residenciais, prédios. Temos muitos problemas? Temos. Mas temos água, luz, esgoto... E não há o esgoto a céu aberto que vi aqui... continente Isso chocou você? Mehdi biGAderne Não chegou a chocar, porque sou de origem africana e já fui à região do Magreb, na África, onde vi uma condição de vida bem parecida. Agora, duas coisas me chocaram aqui: a ausência de autoridade e o contraste entre ricos e pobres. O Magreb é mais homogêneo. continente O que você quer dizer com ausência de autoridade? Mehdi biGAderne Ausência de política, de apoio mesmo. Vou dar um exemplo. Fui à favela Pantanal, em São Paulo, bem parecida com esta aqui. Conheci uma fundação privada, uma
Brasil”, confessa o artista, que achou curioso o fato de só ter visto grafite comercial (encomendados para lojas e outros estabelecimentos) aqui e na África. “Na França, isso não existe”. Além dos grafiteiros e dos rappers, também vieram ao Brasil, na caravana de 2009, um grupo de curta-metragistas franceses e o ativista político Mehdi Bigaderne, uma presença interessante nesse meio (leia entrevista). Criado em Clichy SousBois, bairro do subúrbio parisiense que ganhou os holofotes da mídia
ONG como vocês chamam, que atende três mil pessoas. A prefeitura mal entra com orçamento, dá meia dúzia de leite por semana e ainda exige que a marca dela seja colocada lá. Na França, mesmo que se diga que há muitas dificuldades, a gente sente a presença do Estado. continente Como você se posicionou diante dos protestos de 2005? Mehdi biGAderne Organizamos um coletivo e nos mobilizamos para falar com os jovens, para que não ficassem queimando carros somente... Queríamos mostrar que a organização era necessária para que nossas reivindicações fossem atendidas. Se quisermos que as coisas mudem, não podemos ficar só na violência. Em determinado momento, a revolta é importante, mas o que adianta você queimar os carros, ir para a prisão e ficar meses sem poder fazer nada pelo seu bairro? A violência não muda nada, só a mobilização diária, cotidiana, das construções políticas. continente Como você vê atualmente a questão imigratória na França, sendo um filho de imigrantes? Mehdi biGAderne A política imigratória na França é uma vergonha. A existência de um Ministério da Imigração e da Identidade Nacional é uma vergonha. Sou francês, nasci na França, mas mesmo assim, porque sou filho de imigrantes, tenho 10 vezes mais dificuldade de conseguir as coisas. E essa dificuldade é ainda maior se você vem da periferia.
com os protestos da comunidade imigrante, em 2005, ele veio ao Brasil trocar experiências comunitárias. Os episódios de 2005, aliás, também motivaram os brasileiros a criar o Intercâmbio de Cultura Urbana. Daí o convite a Mehdi. Até agora, o projeto tem dado certo e deve continuar nos próximos anos para além da cultura hip-hop, sobretudo se os apoios de algumas instituições, como o Consulado Geral da França em São Paulo e o Ministério da Cultura francês, forem adiante.
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Fotos: DivulGAção
JOSÉ barbOSa imagens de um mundo edênico e luxurioso Artista de Olinda comemora meio século de produção com a mostra Naturezas vivas, em cartaz na galeria Jacques Ardies texto Adriana Dória Matos
A iniciação artística de José
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Barbosa se deu há 50 anos, quando ele era um menino que já cumpria funções de entalhador, cortando adornos em móveis produzidos na oficina do pai, e ocorreu uma dessas aproximações entre universos diferentes, que destampam possibilidades para determinado campo, neste caso, o da arte. Eram os começos dos anos 1960 e três rapazes alugaram uma sala da movelaria, usando-a como ateliê coletivo. Viram aquele moleque trabalhando e um deles, em especial, de nome Adão Pinheiro, percebeu seu talento e investiu efetivamente nele, dando desenhos de sua autoria para José Barbosa entalhar. Ali, naquela parceria entre um jovem adulto e uma criança, está o início da carreira de um dos mais loquazes artistas de Olinda, que foi ganhando o mundo com suas obras, expondo-as por toda parte, tendo morado seis anos na Europa. No final dos anos 1970, ele já contava essa conquista, participava de exposições prestigiosas e era representado pelas galerias mais importantes de arte contemporânea do país. Quem viveu aquela época sabe dessa história de cor e salteado, ou pelo menos dela conhece algumas passagens. Acontece que o campo da arte é movente e
suscetível às novas demandas, e o que é reinante e incontornável em certo momento deixa de sê-lo em outro. Digamos então que, nesses turnos, o fulgor da carreira do artista se deu nos anos 1970 e 1980, duas décadas em que seu trabalho era referência na arte pernambucana e também brasileira, tendo em parte esse prestígio se estendido até o início dos anos 1990. Mas foi justamente no final do século 20 – e aí já podemos contar quase 15 anos – que os interesses do setor das artes migraram para outros campos, outras propostas, outros suportes e, no bojo, outros artistas. Valores absolutos foram relativizados ou completamente transferidos. Assim como aconteceu (e acontecerá, parece natural dizer) a outros artistas, o prestígio gozado por José Barbosa e sua obra arrefeceramse nesse intervalo, quando o circuito nacional de arte passou por transformações e novas hegemonias. Por isso, soa como um claro recado às vagas deste campo a epígrafe escolhida para o catálogo do artista Naturezas vivas — Pinturas, entalhes, objetos e esculturas, que diz: “A moda passa, o estilo fica”, atribuída ao estilista Yves Saint Laurent. Nesta publicação, há reproduções de trabalhos recentemente desenvolvidos pelo
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Página anterior 01 entAlhe
Feita em madeira policromada, Madona traz senso de composição harmônica e virtuosismo técnico
Nesta página 02 pAisAGeM
O peixe voador, pintura em acrílico sobre tela, é exemplar da recorrência do tema natureza na obra do artista
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artista nas técnicas a que se refere o subtítulo e que serão exibidos entre 12 de setembro e 5 de outubro na galeria de Jacques Ardies (www.ardies.com), marchand que desde 1979, a partir da base em São Paulo, tem promovido a arte naïf brasileira dentro e fora do país. O próprio José Barbosa comenta sobre o seu relativo sumiço das galerias de arte do Recife. Com a maior profissionalização do mercado de arte, deu-se a segmentação do setor, alguns galeristas tradicionais da cidade saíram do circuito ou migraram e não houve ainda uma adequação que abrigue aqueles que poderíamos chamar de artistas “sem-galeria”, os que seguiram sua trajetória artística sem ajustá-la às novas necessidades do mercado ou da crítica de arte. Ou seja, ficaram sem relevo no mercado, no circuito institucional de arte, nas mostras, seleções e premiações de destaque nacional. Embora haja público e interesse por esses artistas, a despeito da menor visibilidade e de eles terem ficado na retaguarda das tendências contemporâneas.
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MudAnÇA de estAtuto
Se antes era assimilado indistintamente ao elenco de artistas figurativos de sua geração, agora, quando a produção experimental e conceitual ganha a dianteira no campo artístico, José Barbosa se encontra sob a
classificação de artista naïf, o que interfere diretamente na recepção de sua obra. No campo da arte primitiva, naïf ou ingênua, como também é chamado esse gênero, que já foi considerado “fora da história” por alguns pesquisadores, cumprem função de divulgadores os estabelecimentos que, em geral, funcionam em pontos turísticos do Recife e de Olinda, nos quais é maior a circulação de estrangeiros e turistas, espaços mais comerciais que de apreciação de obras de arte. Não surgiu ainda em
um dos maiores entalhadores do brasil, José barbosa participou de mostras nacionais e internacionais Pernambuco uma galeria cujo acervo concentre-se na produção naïf. Um dos artistas pernambucanos que nutria o desejo de erguer um museu dedicado a essa expressão, Crisaldo Morais, faleceu sem conseguir realizar este sonho, tendo seu variado acervo particular sido desfeito e vendido em lotes. Num belo texto que escreveu para o catálogo da exposição Arte popular de Pernambuco (Espaço Cultural Bandepe, 2001), a antropóloga e crítica de arte Lélia Coelho Frota aponta a dificuldade que encontramos quando
pretendemos qualificar a produção denominada inicialmente de primitiva ou naïf. Sobretudo porque nosso exame toma partido das relações que subjazem na obra entre o social, o antropológico e o estético, muitas vezes prevalecendo na análise os dois primeiros aspectos. Dizemos que são naïfs os artistas autodidatas, surgidos nas camadas populares, e que apresentam em suas obras temáticas oníricas, pitorescas, edênicas, representações de fantasias e sonhos. Podemos, a partir desses elementos, encontrar identificações com a obra de José Barbosa, em que se destaca seu sofisticado e detalhista trabalho de entalhador, no qual os elementos da imaginação do artista mesclam-se a referências trazidas da arte sacra, da pintura do período holandês, do imaginário de origem africana, da arte popular nordestina, além de deglutições da arte moderna e da cultura de massa. Isso, sem falar do diálogo que estabelece com a obra de artistas de sua estima, como o pintor José Cláudio, o xilogravurista Gilvan Samico e o escultor Francisco Brennand. Ou seja, ele se apropria de variadas fontes para criar um repertório colorido, fértil e luxurioso, em que a natureza e suas dádivas são ofertadas com a alegria de quem esquece o cinzento e a morte. Por isso são incrivelmente Naturezas vivas, essas obras de buril e tinta do artista, com as quais ele comemora meio século dedicado ao ofício da arte.
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Fotos: DivulGAção
Zoo lógicos
JOSÉ CARLOS VIANA PINTA DESTRUIÇÃO DA NATUREZA
Livro de artista
SObre eXCeSSO e autOria As bancas e livrarias se enchem todos os meses com novos estoques de revistas. Diante delas, o leitor é convidado à profusão de imagens; muitas vezes despercebidas no grande volume de informação visual, em que fotos e ilustrações servem tanto para informar quanto para embelezar as publicações e cativar o consumidor. Dessa abundância de imagens não descuidaram os olhos do artista Marcelo Silveira, que a ela se refere num trabalho de fotocolagem e de interferência recém-lançado na forma do livro de artista Revista. O trabalho é composto de cerca de 70 colagens, que resultam de um paciente exercício de composição de “retratos” a partir de interferências diretas do artista em recortes de impressos. Ao rasgar e colar páginas, Silveira realiza novas figuras, que foram editadas em preto-e-branco. “A ideia é falar do excesso de imagem a partir do próprio excesso”, explica Silveira. Na publicação, as únicas imagens que trazem letras são de papéis picotados que desconstroem a função semântica e informativa do texto. O artista plástico desfigura e tira a identidade dos personagens e descontextualiza o sentido das fotos originais, provindas de livros de arte e de publicações de grande circulação. “Não só a face dos personagens, arranquei tudo que não me interessava”, afirma o artista, para quem o trabalho também discute a ideia da autoria, já que, depois das interferências, as fotografias não pertencem mais a quem as produziu. A Revista começou a ser gestada quando, na produção de outro trabalho, Marcelo observava álbuns e baús de fotografia antigos. “Percebi que sempre tinha um sujeito rasgado na foto, algo que alguém não quisera revelar”. Depois, a observação começou a ganhar forma. Mas Silveira não considera concluído o trabalho. “O nome Revista já brinca com essa noção de continuidade. Quero que alguém interfira, que o público dê sequência, talvez, rasgando a própria publicação e formando novas figuras”, provoca.
uma das cinco exposições em cartaz no Centro Cultural dos Correios (Avenida Marquês de olinda, 262, Bairro do Recife) é Zoo lógicos, em que José Carlos viana apresenta sua representação pictórica da destruição da natureza e do humano, em uma série de 45 pinturas em acrílico ou técnica mista sobre papel. Nascido em olinda, em 1947, viana é pintor, desenhista e gravador. Ele se mantém fiel à sua trajetória artística, marcada pela produção de grandes desenhos figurativos sobre papel ou tela, nos quais frequentemente recorre às colagens para resolver questões de espaço e textura. o caricatural e o trágico surgem como elementos narrrativos principais. Zoo lógicos permanece em cartaz até o final de outubro.
Individual
A COR DAS PALAVRAS EM ROSANA RICALDE vinte e um trabalhos de Rosana Ricalde, de sete séries elaboradas entre 2004 e 2006, podem ser vistos na exposição Palavras compartilhadas. Mix de linguagem escrita e visual, a obra dá cor, poder e muitos significados a textos literários e poéticos, sob influência da poesia concreta. Na série Contrapoemas, um dos destaques, a artista se apropria de textos de terceiros e constrói poemas com palavras antônimas. Desesperança, de Manuel Bandeira, virou Esperança. Colocados lado a lado sobre fundo cinza, o antagonismo entre os poemas é representado pelas cores (preto e branco). Até 27 de setembro, na Estação Cultural Ermírio de Moraes, Avenida Beira Mar, 990, Piedade.
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cinema francês A questão humana entre palavras e imagens No filme do cineasta francês Nicolas Klotz, a lógica empresarial e tecnicista das sociedades contemporâneas é exposta e questionada texto Marcelo Costa
Há determinados filmes
cujo maior mérito é oferecer uma leitura delicada das relações humanas em determinado período, a partir de associações com eventos recentes da sua trajetória. Essas obras partem de uma aguda consciência da continuidade do processo de construção histórica; da impossibilidade de isolar o presente dos eventos passados, como se observássemos imagens da janela de um trem em movimento, e não pudéssemos dissociar a paisagem dos episódios que a antecedem e a sucedem. É munido dessa ideia que A questão humana (FRA, 2007) analisa, de maneira dura e implacável, a lógica empresarial e tecnicista dominante
imagens: divulgação
Claquete
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INDICAÇÕES nas relações humanas na contemporaneidade. Com um argumento aparentemente simples, o filme questiona os rumos adotados pela civilização e pela noção desumanizada de desenvolvimento, na qual produtividade é a palavra de ordem. Nesse sentido, o filme de Nicolas Klotz parece dialogar bem com Admirável mundo novo, livro clássico de Aldous Huxley. Entretanto, o tom alegórico-ficcional sobre um futuro desalentador na literatura de Huxley ganha contornos de realidade nos tempos atuais representados por Klotz. No filme, Simon Kessler (Mathieu Amalric) é um psicólogo no departamento de recursos humanos de uma empresa petroquímica franco-alemã, da qual é responsável pelas políticas motivacionais e pelos processos de admissão – inclusive pela reestruturação que acarretou a demissão maciça de funcionários. Diante do comportamento confuso e aparentemente depressivo do diretorgeral da corporação, Mathias Jüst, Simon recebe a incumbência de acompanhá-lo. Sob o pretexto de reformular uma orquestra musical dentro da empresa, o psicólogo se aproxima do seu objeto de análise e de outros ex-integrantes de um quarteto de cordas formado no passado. Mas quanto mais íntima se torna a relação, maiores são os conflitos de Simon na vida profissional e pessoal. É justamente nessa contraposição entre suas convicções e a incerteza causada pela convivência com
pessoas atormentadas por fantasmas do passado que se desenvolve a linha de argumentação do filme. A imagem dura de números pintados em compartimentos da parede na sequência de abertura já dá indícios do tom crítico assumido pela obra. A cada diálogo, a cada lembrança revelada, o filme constrói um rico panorama da falência das relações interpessoais, que logo encontrará no holocausto uma espécie de arquétipo moderno da crueldade humana. A maneira como essa associação aparentemente forçosa ganha credibilidade devese à construção do roteiro e a uma direção sóbria, que reconhece nos diálogos e no subtexto ferramentas mais eficazes do que a imagem-ação em si. Há, portanto, uma evidente preocupação discursiva, uma necessidade urgente de dizer algo, mas sem jamais alterar o tom de voz. É justamente essa combinação entre a sutileza e a força da mensagem que talvez provoque o seu maior impacto, através de uma construção poética de sentido. Isso fica evidente nos diálogos que atestam a morte da linguagem pela frivolidade de expressões técnicas ou na conclusão inquietante de que episódios como o holocausto jamais devem ser encerrados em seu tempo. É com essa consciência que o filme oferece um dos melhores desfechos dos últimos anos, ao propor o resgate de uma humanidade perdida através de alguns closes e, sobretudo, da redenção das palavras – e só as palavras.
Drama
a Bela Junie
De Cristophe Honoré Com Léa seydoux, Louis Garrel e Grégoire Leprince-ringuet Imovision
Drama
a frOnteira da alvOrada
De Phillipe Garrel Com Laura smet e Louis Garrel Imovision
a impossibilidade de vivenciar o amor é o tema central da nova parceria entre Honoré e garrel (Canções de amor e Em Paris). livremente inspirado em A princesa de Clèves, de madame lafayette, o filme conta a história de uma garota que se muda após a morte do pai. na nova escola começa a namorar o tímido otto, mas descobre-se apaixonada pelo professor de italiano. as incertezas da adolescência são tratadas com uma sensibilidade peculiar.
Phillipe garrel é um foco de resistência da nouvelle vague. depois de Amantes constantes, ele volta a trabalhar com o filho, louis garrel, em mais um filme sobre as idiossincrasias e incompatibilidades do amor. François é um fotógrafo que se torna amante de Carole, atriz de cinema casada com um ausente produtor de Hollywood. através dos seus encontros, o filme discute a relação entre a arte e o amor, embora sem a mesma ressonância do trabalho anterior.
Drama
Drama
De Louis malle Com Lea massari e Daniel Gèlin Lume produções cinematográficas
De Arnaud Desplechin Com Catherine Deneuve, mathieu Amalric e Chiara mastroianni Imovision
Poucas vezes o cinema ofereceu um retrato tão radical e delicado da complexa relação entre mãe e filho. através da história de um menino que se refugia com a mãe para tratar de um problema de saúde, o filme tece um estudo sobre a relação edipiana em meio às descobertas da adolescência e às rígidas tradições de uma família burguesa. um libelo de amor e liberdade de rara beleza de um dos grandes realizadores do cinema francês.
dois filmes de sinopses parecidas podem ser bem diferentes. É o caso de Feliz Natal, de selton mello, e o filme de desplechin. ambos se valem da data natalina para exorcizar traumas familiares do passado. mas, enquanto o primeiro investe na sobrecarga dramática, o cineasta francês destila seu talento de dizer coisas duras de modo aparentemente leve, como se dispersas no cotidiano. outro belo filme com boas soluções visuais do diretor de Reis e rainha.
O sOprO dO cOraçãO
um cOntO de natal
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Crônica
O dia em que O CRÍTiCO da cahiers du cinéma se enCanTOu pOR um papagaiO texto Alexandre Figueirôa
o francês André Bazin foi um dos críticos de cinema mais influentes do século passado. Um dos fundadores e pilares de sustentação da revista Cahiers du Cinéma, em sua primeira fase áurea, nos meados dos anos 1950, quando a publicação fazia a cabeça de cineastas e cinéfilos do mundo inteiro. Preparou o terreno para a famosa politique des auteurs e foi uma espécie de pai espiritual da Nouvelle Vague (François Truffaut foi tirado da marginalidade por ele e sua esposa Janine era quase um filho adotivo para o casal), sendo ainda um dos grandes defensores e difusores do neorrealismo italiano. Seus textos, impregnados por um pensamento de viés metafísico, graças à sua formação católica e admiração pelo filósofo Henri Bergson, surpreendem pela devoção quase religiosa aos princípios construtivos da arte cinematográfica e pelo olhar acurado na compreensão da própria ontologia de uma expressão que ele ajudou a tornar maior e mais sublime. Bazin tinha a saúde frágil e morreu cedo, aos 40 anos, mas deixou um
Claquete legado valioso para a teoria do cinema. Seus escritos mais importantes estão reunidos no livro Qu’est-ce que le cinéma? e permanecem objetos de estudo para quem deseja adentrar e entender o mundo mágico das imagens em movimento. Admirador de Orson Welles, Roberto Rossellini, Robert Bresson, as reflexões de Bazin marcam, sobretudo, as discussões em torno do
realismo da imagem cinematográfica, tema ao qual ele dedicou uma atenção especial. No período de sua maior atividade como crítico, Bazin veio duas vezes ao Brasil. Na primeira, em março de 1954, integrando uma grande delegação francesa que visitou a cidade de São Paulo para participar de um festival de cinema na capital paulista; na segunda, dois anos depois, acompanhando uma missão de difusão do cinema francês em um festival, desta vez no Rio de Janeiro. Nas duas ocasiões, ele deixou registrado nas páginas da Cahiers suas impressões sobre o Brasil. No número 34 da revista (abril/1954), Bazin fez um extenso balanço do festival paulistano. No artigo, além de comentários sobre
Para obter a autorização de viagem, ele enfrentou chuva torrencial e pegou uma bronquite; em pleno carnaval os filmes exibidos, ele ressalta a gentileza da acolhida, proporcionada pelos brasileiros, e fala do encontro com Paulo Emílio Salles Gomes e com Alberto Cavalcanti, na época, morando em São Bernardo como diretor da Vera Cruz e, para quem, humildemente, ele confessa sua “miopia intelectual” de não conhecer a obra do cineasta, cuja carreira internacional iniciarase exatamente na França. O texto relativo à visita ao Rio, publicado em abril de 1956, foi mais curto e Bazin limitou-se a falar de cinema, porém, dedicou algumas generosas linhas ao filme Rio 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, classificado por ele como o “primeiro filme neorrealista brasileiro” e que, “Apesar de ele apresentar alguns defeitos técnicos e ser um pouco ingênuo e didático no seu desenvolvimento, é um filme apaixonante, o qual merece ser visto na Europa”. Contudo, o texto mais curioso de André Bazin a respeito do Brasil não fala de cinema e, sim, de um papagaio. O crítico, além de filmes, era apaixonado pela natureza e desde criança adorava
os animais. Em seu apartamento, em Paris, ele, a esposa Janine e o filho Florent, compartilhavam o espaço do imóvel com cães, gatos, pássaros e até um iguana. O artigo sobre o pássaro intitula-se De la difficulté d’être Coco, e integrou as páginas da Cahiers na edição de janeiro, de 1959, quando a revista dedicou um dossiê em homenagem a Bazin, que havia falecido em novembro do ano anterior, um dia depois de Truffaut iniciar as filmagens de Os incompreendidos, filme a ele dedicado. O texto já havia aparecido antes em
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outra publicação (Carrefour) e conta as peripécias vividas por Bazin, durante a permanência na capital paulista, em 1954, para adquirir um legítimo papagaio e transportá-lo até Paris. A crônica de Bazin é um divertido e significativo relato do olhar de um estrangeiro sobre o Brasil. Embora ele tenha descrito São Paulo como uma cidade ultramoderna, cheia de arranha-céus, e reconhecesse a existência de uma elite intelectual no país, ainda alimentava no seu imaginário a visão de um lugar exótico
e pitoresco. Nas palavras dele “desde que fora convidado para o festival em São Paulo, pareceu-lhe evidente ter que retornar à França com um papagaio”. Para Bazin, existia, “entre a ideia do Brasil e a de um papagaio, uma relação que se impõe ao espírito como a do calvados (aguardente de cidra) com a Normandia”. Nas suas cogitações da escolha do animal, Bazin conta ter eliminado o tapir, por cheirar mal; o tamanduá, pela dificuldade em alimentá-lo; a onçapintada, por aterrorizar as florestas
virgens; e o crocodilo, por não ser uma fera tão típica da América do Sul, pois existiriam espécies parecidas em outros países do mundo. Ele chegou a pensar num pequeno macaco, mas foi demovido da ideia, por temer pelo futuro do bicho e revela então que o papagaio se impôs tanto pela imagem romântica dos “lobos do mar” desembarcando no porto de Bordeaux, com uma mochila nas costas e um papagaio no ombro, quanto por duas de suas qualidades maiores: a sociabilidade e a possibilidade de conversação. Feita a escolha, Bazin passa a narrar com detalhes a odisseia percorrida para receber a autorização de levar Coco (nome dado ao papagaio comprado) para a França, que, na época, tinha sérias restrições a pássaros da família dos psitacídeos por conta da psitacose, doença infecciosa transmissível ao homem. Para conseguir um atestado de boa saúde para Coco e a anuência de embarcá-lo num avião Constellation, numa viagem entre São Paulo e Paris, que nos anos 1950 durava quase dois dias, e não enfrentar problemas com a aduana francesa, Bazin passou por aventuras dignas de um filme. Sem nunca perder a delicadeza, Bazin conta com bom humor as agruras vividas. Para obter a autorização de viagem, ele enfrentou chuva torrencial e pegou uma bronquite; em pleno carnaval, desafiou corredores ministeriais, percorreu clínicas veterinárias; enfim, os atropelos foram tantos, que o crítico revela que nunca antes havia tomado tanta consciência do cartesianismo que comanda a mente e as ações de um francês. Bom, para encurtar a história, graças ao socorro de funcionários do consulado da França, mas, sobretudo de seus amigos Paulo Emílio Salles Gomes e Almeida Salles, Coco chegou a Paris são e salvo. Sua esposa Janine o achou adorável e o papagaio continuou, para alegria de seus novos donos, brincalhão e barulhento, comendo suas sementes de girassol e amendoins como se estivesse no Brasil. Apenas um senão: apesar da bela plumagem, dos olhos dourados, Coco não aprendeu a falar francês, e nem ao menos emitia palavras em português, como tanto sonhara Bazin.
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fonte: wikimedia commons
Cardápio bistrô Uma casa simples, de comida correta e cardápio enxuto
Diferente do que ocorre na França, esse tipo de estabelecimento ganha ares de sofisticação em Pernambuco, mas mantém a vocação de lugar para o convívio de amigos TEXTO Bruno Albertim FOTOS Isabella Valle
Ainda no século 16 , o escritor Gregório de Matos, justificando, mais uma vez, o apelido de Boca do Inferno, diagnosticou que o brasileiro estaria fadado a uma eterna síndrome da mazombice. Descendente de colonizadores europeus, mas nunca um europeu, propriamente, este desterrado de nascença estaria destinado a achar inferior tudo que fosse tão nativo quanto ele próprio. O deslumbramento com o que é estrangeiro, entre os brasileiros, começaria a fenecer mais
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visivelmente nos primeiros anos do modernismo antropofágico do século passado. Ainda assim, o deslumbrado nunca se deixaria enterrar por completo. Especialmente, à mesa. Sinônimo universal de refinamento civilizatório, a culinária francesa teve um de seus conceitos e meios de expressão fundamentais deformados por essa mazombice brasileira. Ainda hoje, a classe média e a elite nacional entendem e divulgam o bistrô como sinônimo de restaurante sofisticado, caro, inventivo e reluzente. Um lugar
para, mais do que propriamente comer, ver e ser visto. Ou, como na concepção consagrada pelo sociólogo francês Pierre Bordieu, tão em voga nesta primeira década dos anos 2000, uma arena favorável para a velha prática da distinção. A ferramenta comportamental, enfim, que legitima a superioridade simbólica de uma classe sobre as demais. Chefs e cozinheiros pernambucanos de apreço à boa cozinha francesa têm aproveitado o (tímido) Ano da França no Brasil para desfazer o equívoco.
“Bistrô nada mais é do que um bom restaurante de bairro, tradicional até a alma, que serve preparos consagrados nos lares e ambientes domésticos”, diz o cozinheiro francês radicado no Brasil, Jeff Collas. Ele próprio apressase em dizer que procura fazer do seu bem-conceituado Maison do Bonfim, em Olinda, uma extensão transatlântica dos bistrôs franceses. “Claro que sou obrigado a tropicalizar algumas receitas, na medida em que não encontro os ingredientes franceses originais. Mas não pratico uma cozinha inventiva. Tento manter as tradições regionais da França”, diz ele. No cardápio, por influência confessa da efeméride, cada vez mais receitas caseiras da pátria de Carême têm ocupado lugar. Bem ao espírito dos bistrôs de bairro, a casa conta, além das opções fixas, com sugestões diárias e robustas como um coq au vin (veja receita) ou um bife bourguignon. “Bistrô é um termo quase sempre usado com equívoco”, concorda o também chef Joca Pontes. Pernambucano descendente de franceses, ele teve sua formação profissional na Escola Superior de Culinária de Paris e estagiou em alguns bistrôs da velha cidade. Para evitar confusões, o jovem profissional comanda dois restaurantes no Recife. No Ponte Nova, executa uma gastronomia autoral, contemporânea e de fusão, em que nutre matrizes culinárias francesas com técnicas e ingredientes tropicalmente orientais, como os tailandeses e brasileiros. No Villa, busca imprimir a culinária mais tradicional. “Ainda assim, não faço do Villa exatamente um bistrô, mas uma casa que tem inspiração em cozinhas do tipo”, lembra. De tão arraigado, o cardápio de um bistrô poderia estar talhado na parede do estabelecimento. “Enquanto o homem consumir travessas de pommes frites (batatas fritas) e bifes grossos, feitos em frigideira, enquanto erguer copos redondos e sólidos de vinho tinto barato, o restaurantezinho familiar e aconchegante da vizinhança continuará a aquecer nossas almas com imagens de refeições copiosas, cordiais, sem tapeação e de bons momentos entre amigos”, diz a escritora norte-americana Patrícia
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MAiSon Do BonFiM Para aclimatar-se às demandas de uma clientela diferente, os bistrôs brasileiros assumem estilo mais sofisticado que os de seus congêneres transatlânticos
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cHeF Radicado no Brasil, Jeff collas diz que procura fazer de seu restaurante uma extensão dos bistrôs franceses, mantendo as tradições regionais daquele país
Cardápio 01
Wells, colaboradora do New York Times e outras publicações, uma das autoridades estrangeiras em cozinha da França. “Em resumo, o bistrô é um pequeno restaurante da vizinhança que serve comida caseira e substanciosa. A louça é sempre grosseira e branca, sem enfeites, as mesas cobertas com papel dobrado nas pontas. O cardápio é curto e muda raramente, salvo talvez pelo plat du jour (prato do dia)”, diz ela, que mastigou – literalmente – informações por quase uma década, até publicar, em 1989, Cozinha de bistrô (Ediouro), um compêndio reflexivo de receitas deste universo.
FReScoR e coRReÇÃo
Requinte, aqui, quer dizer menos serviço militarizado, cristais e talheres de grife, do que o cuidado com os métodos corretos de cocção e o frescor dos ingredientes. Um bistrô é palco permanente de bons patês, assados aromáticos, saladas com hortaliças do dia, queijos untuosos, embutidos, batatas, boa manteiga, pescados e aves de sabor vivo, livres do condicionamento hormonal das galinhas de granja, por exemplo, sofridamente adubadas para envelhecer ao ponto de abate antes do tempo. É, sobretudo, abrigo de generosidade e fartura. “Se você pedir uma terrine,
CoC au vin
Por Jeff collas, do maison do Bonfim Ingredientes 1 galinha de capoeira 1 garrafa de um bom vinho tinto echalota ou cebola tipo coquetel a gosto 100 g de bacon picado 2 folhas de louro champinhons a gosto 1 colher rasa de farinha de trigo 1 pitada de tomilho sal e pimenta do reino a gosto Preparo doure a galinha, aos pedaços, no azeite, manteiga ou banha. Retire os pedaços, reserve. acrescente o bacon à caçarola e deixe dourar. traga a galinha de volta à panela, acrescente o trigo e dissolva-o rapidamente com uma colher de cocção. cubra com o vinho, mais o tomilho, sal e pimenta do reino a gosto. deve cozinhar por mais ou menos uma hora. cerca de 20 minutos antes de terminar a cocção, acrescente os cogumelos e as echalotas.
não receberá uma fatia translúcida sobre uma torrada, mas a terrine inteira. Peça um frango assado e chegará à sua mesa uma ave inteira, dourada, para ser destrinchada à sua frente”, lembra a senhorita Wells. Frescor é paradigma. Mas a filosofia nem sempre significa que é preciso exibir na dispensa tomates rubros como a boca de uma dançarina do Moulin Rouge ou carnes capazes de ecoar o mugido do boi, de tão frescas. Nesses restaurantes, pratica-se sabiamente os conhecimentos da cozinha do aproveitamento. Desperdício, aqui, é heresia. “Felizmente, os franceses sabem o que fazer com carnes duras, gorduras e ossos, e estão aproveitando essas partes muito bem, há séculos. Eles são sensacionais nessa arte. Deus os abençoe por isso”, diz o escritor, chef e apresentador de TV Antony Bourdain, no livro em que entrega as receitas francófilas de seu restaurante nova-iorquino Les Halles. Pop star ocidental da gastronomia, o sujeito que arrebata fãs com o talento literário verificado em sucessos de crítica e público como Cozinha confidencial (Cia. Das Letras) busca praticar, confessadamente, a mais caseira e tradicional cozinha francesa fora da França. “Essa é a essência da culinária, a base de tudo é a transformação.
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eM cliMA De BiStRô sabor francês no recife e em Olinda Bistrot du Vin apesar do nome, não é exatamente um bistrô. Requintado e bem francófilo, o restaurante tem no comando o chef Hugo Provout, um dos melhores da cidade, de técnica perfeita. no cardápio, há, claro, clássicos de bistrô e pratos mais sofisticados, como a pescada com couve-flor e mandioquinha ao creme fresco de caviar e champanhe, guarnecida de risoto de limão. o melhor: como funciona dentro do club do Vin, mais de mil rótulos de vinho estão disponíveis a preço de loja no restaurante. Rua Solidônio Leite, 26, Boa Viagem. Fone: 3326.5719. Diariamente, menos aos domingos, das 12h às 15h. Chez GeorGes o proprietário, o suíço George Thévoz, é pioneiro em promover o encontro de ingredientes regionais com a cozinha francesa. ali, carne de sol convive com foie gras. o cardápio, o preço e o serviço são de alta gastronomia, mas há espaço para clássicos como alcachofra recheadas com queijo e cogumelos. Avenida Boa Viagem, 1.906, Flat Beach Class Suites, Boa Viagem. Telefone: 3326.1879. Diariamente, das 12h30 às 15h e das 19h a 0h. 02
É transformar o ordinário em extraordinário”, escreve. Mestres entre o apuro técnico e o aproveitamento dos insumos, cozinheiros franceses têm mantido por gerações as receitas de longa cocção. Como a perna de carneiro que se desmancha em vinho por sete horas ou o citado coq au vin: o bom tinto temperado com ervas amolece por mais de uma hora as carnes de um velho galo ou galinha que teve vida saudável num terreiro. São receitas capazes de encher os ambientes com seus perfumes doces e herbáceos, longa e fartamente, antes de chegar à mesa.
La MaRSEiLLaiSE CuLinaiRE
Como instituição social, os bistrôs são filhos diretos da Revolução Francesa. Com os antigos patrões sendo – simbólica ou literalmente – decapitados, dezenas de cozinheiros se viram obrigados a trocar os fogões da nobreza pela placa na porta. “Até a Revolução de 1789, eles eram espezinhados por seus patrões nobres e não podiam parar de inventar pratos para agradar aos seus caprichosos
senhores”, lembra Tony Bourdain, explicando como, paradoxalmente, essa cozinha da abundância alimentava as panelas da escassez: “Cada naco de carne que sobrava da mesa dos aristocratas, cada pedaço de raiz, cada casca de pão, cada espinha de peixe, tinham de ser transformados em comida para servos famintos e para a família do próprio cozinheiro. Os elementos fundamentais que compõem a alta culinária do Novo Mundo – um bom filé, lagostas, camarões – estavam totalmente fora do alcance do povo francês”. A primazia no filão cabe a um certo Boulanger. “Foi então que, em Paris, por volta de 1765, ele, que tinha uma espécie de boteco perto do Louvre, teve a ideia de escrever em latim de cozinha, num cartaz acima da porta de entrada: ‘Et ego vos restaurabo’ (Eu os restaurarei). Foi assim que nasceu o nome restaurante, e ele ficou rico”, assegura o chefescritor – e verbete de primeira hora na história da cozinha no século 20 – Alain Ducasse, em seu Ducasse de A a Z (Ediouro). Quanto ao termo, ninguém
La Comédie funcionando no quintal da aliança francesa, sob o comando do banqueteiro claudio manoel, tem bem o espírito dos bistrôs: serviço simples, mas atencioso, preços acessíveis e comida bem executada da entrada à sobremesa. o melhor: amigo de vários chefs da cidade, ele tem receitas no cardápio concebidas e assinadas por profissionais como césar santos e Jeff collas. Rua Amaro Bezerra, 466, Derby. Fone: 3213.2047. De segunda a sábado, das 12h às 23h. Fecha aos domingos. La Cuisine Bistrot o lugar é charmoso, bem cuidado, não propriamente um bistrô, mas um restaurante chique que, entre outras coisas, oferece sanduíches clássicos, como o croc monsieur e standards como o medalhão a dijon. Avenida Boa Viagem, 560, Pina. Fone: 3327.4073. Diariamente, almoço e jantar, na sexta, até meia-noite. Nos outros dias, 23h. maison do Bonfim no casarão charmoso, o francês naturalizado brasileiro Jeff collas executa clássicos das culinárias regionais francesas. Rua do Bonfim, 115, Carmo, Olinda. Fone: 3429.1674. De segunda a sábado, das 12h a 0h. Domingo, 12h às 22h. Fecha às terças. ViLLa Cozinha de Bistrô a casa tem no comando o jovem chef Joca Pontes, amante das tradições culinárias francesas. não é exatamente um bistrô, mas o espírito é muito próximo dos originais. Uma espécie de bistrô chique. Rua da Hora, 330, Espinheiro. Fone: 3426.2902. Diariamente, de 12h às 15h e 18h às 23h30 (sexta e sábado, até 1h). Domingo, só até 16h. WieLLa a casa traz clássicos franceses e italianos, com alguns standards como os confits de ave e patês. É um lugar elegante, serviço impecável sob o comando do sommelier otoniel abílio, mestre na escolha de vinhos e harmonização, mas, por seu caráter francófilo, serve para matar a saudade dos bistrozinhos franceses. Avenida Domingos Ferreira, 1.274, Boa Viagem. Fone: 3463.3108.
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villA Localizado em uma casa espaçosa da Rua da Hora, no Recife, o estabelecimento trabalha com cardápio próximo do tradicional do tipo bistrô
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jocA ponteS descendente de franceses, o chef estudou na escola superior de culinária de Paris e estagiou em alguns restaurantes da cidade
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Cardápio Confit dE CanaRd Para oito pessoas Por Joca Pontes, do Villa cozinha de Bistrô
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sabe exatamente como apareceu. “O mundo, estou certa, jamais concordará com a origem exata da palavra bistrô. A explicação mais vezes citada é que os soldados russos gritavam ‘bistrô! bistrô!’, ao investir contra os cafés ao se apossarem de Paris, em 1815”, comenta a escritora Patrícia Wells. Uma das explicações garante que bistroille se referia a uma mistura de café e aguardente nas antigas tabernas. “Seja qual for a origem, todos concordam que, se é um café, um pequeno restaurante despretensioso
ou simplesmente um lugar para se desfrutar um copo de vinho e um sanduíche simples e robusto, um bistrô é um local ideal para se passar bons momentos com amigos”, continua ela. Como se vê, o espírito dos bistrôs está mais próximo dos profundamente generosos bons botequins brasileiros que dos restaurantes onde cada cliente é simbolizado por três ou quatro cifrões para poder percorrer, da entrada à sobremesa, uma refeição. No bistrô, não há lugar para xenófobos – tampouco alimento para mazombos.
Ingredientes 8 coxas com sobrecoxas de pato 4 dentes de alho amassados 2 ramos de alecrim 1 colher de sopa de mostarda 50ml de vinho branco sal grosso Pimenta do reino moída na hora 1kg de banha de porco sadia Preparo tempere as peças do pato com alho, alecrim picado, mostarda, vinho branco, sal e pimenta. deixe marinar por uma noite. Grelhe as coxas com sobrecoxas rapidamente e acomode-as em uma travessa que possa ir ao forno. cubra com a gordura já derretida e coloque no forno em 90 graus. deixe cozinhar por cerca de três horas, verificando se a carne já está quase se desmanchando. Retire do forno e acondicione com cuidado em um recipiente plástico, cobrindo com a gordura do cozimento. Guarde na geladeira. Para comer o confit, coloque-o em forno quente até dourar sua pele por completo.
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reprodução
estreia O diálogo de Hamlet e o coveiro
A partir de dois personagens de uma das maiores tragédias de Shakespeare, João Denys presta uma homenagem ao Teatro texto Rodrigo Dourado
Palco
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Sobre Hamlet, de Shakespeare,
foram escritos incontáveis tratados e teses, realizadas inúmeras encenações teatrais e produzidos um sem-número de filmes. A qualquer ator ocidental que se pergunte qual a grande personagem que sonha interpretar, a resposta será invariavelmente Hamlet. Trata-se do caso em que a criatura salta da obra, ganha vida própria e assume contornos míticos, tornase emblema/metáfora de grande tema ou questão para a humanidade. Assim é o príncipe dinamarquês, símbolo da transição entre períodos históricos e sistemas, do medievo para a Renascença, do feudalismo para a ordem burguesa. Representante da saída do homem do obscurantismo
para a racionalidade moderna. Tradução das complexas relações entre ordem privada e ordem pública. A partir de Hamlet, inúmeras outras peças surgiram. Entre as adaptações e versões, porém, talvez ninguém tenha amplificado, de maneira particular, a presença dos coveiros no texto. É precisamente das relações e tensões entre esses representantes do povo e o nobre príncipe, que surge o espetáculo Encruzilhada Hamlet, que estreia este mês no Recife. No ano de 2009, a plateia contempla a aparição, no interior de um túmulo de vidro, dos espíritos de Hamlet e do Coveiro. Como estátuas de mármore em um cemitério, inteiramente nuas e enterradas até o abdômen, as duas personagens
encenam o conflito entre o grande e o pequeno, o rico e o pobre, o erudito e o ignorante. Hamlet e o Coveiro são rejeitados pelos vermes – o primeiro, pelo risco de estar envenenado e o segundo pela intimidade que possui com a terra. Num espaço exíguo e numa situação que os obriga à proximidade, os dois têm de chegar a um pacto pela boa convivência. Essa tentativa de conciliação move as personagens, mesmo que, aqui, Hamlet esteja em franca desvantagem. Afinal, o Coveiro está em seu lugar de trabalho e, além do mais, considera-se o melhor coveiro do mundo. O príncipe, ao contrário, jamais imaginou em vida dividir com o subalterno seu descanso na morte.
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Encruzilhada Hamlet teatro Barreto Júnior 12 Set-18 out 20h (sáb e dom)
atoreS
Henrique ponzi, o coveiro (à esq.), e edjalma Freitas, Hamlet, integram a Cia. do Ator Nu, criada em 2003
transformar Hamlet e o Coveiro em duas figuras clownescas, expostas a uma situação-limite, encerradas na relação a dois. “Beckett é o mais shakespeariano dos dramaturgos do século 20 e o Encruzilhada Hamlet é uma espécie de Dias felizes”, esclarece, citando outra obra beckettiana. Nesse sentido, o Coveiro é o que se convencionou chamar de Augusto, ou palhaço vermelho, uma encarnação do mau gosto, da liberdade, do tipo popular da feira, da praça pública, sem rodeios ou papas na língua. Já o Hamlet
autor diz que os personagens são como espíritos teatrais, criados a partir de várias referências
“São dois fantasmas, dois espíritos teatrais e só isso torna possível que estejam enterrados na mesma cova”, explica João Denys, autor e diretor do espetáculo. Com uma sólida carreira teatral, iniciada em 1978, trabalhos nas funções de ator, cenógrafo, figurinista, sonoplasta, iluminador e diretor, o dramaturgo faz do texto uma mistura de influências várias, que incluem Heiner Müller – cujo Hamletmaschine foi o ponto de partida para esta montagem; García Lorca, outros textos de Shakespeare, o candomblé, e, sobretudo, Samuel Beckett. Tendo dirigido as peças Fim de jogo e Esperando Godot, ambas do dramaturgo irlandês, Denys revela na escrita seu débito com o autor ao
é o palhaço branco, altivo, nobre, distinto, sempre tentando controlar o impulso grotesco de seu companheiro. “O coveiro é exatamente esse elemento terra, que coloca o Hamlet contra a parede. Tudo que ele diz é com galhofa. Mas estará enganado quem pensar que o príncipe está por baixo, ele mantém a distância e a altivez, mas essa é a forma sutil da nobreza dizer: ‘Quando quiser, passo por cima de você como um trator’”, pondera João Denys.
interpretação
Henrique Ponzi, intérprete do Coveiro, revela que foi buscar inspiração nos vários mestres e palhaços da cultura popular para compor sua personagem. “Ele é espalhafatoso, com suas expressões, seu ruídos, seu corpo deformado, sua vulgaridade. É um espírito cachaceiro, zombeteiro, um exu”, explica, lembrando o significado da encruzilhada para o candomblé. Havendo trabalhado como ator em outro texto de João Denys, Deus danado, Ponzi demonstra intimidade com o universo do dramaturgo e fala da necessidade de buscar outras fontes
eruditas de criação, como o Macunaíma de Grande Othelo, e os palhaços fellinianos. “Isso porque o texto é muito bem-escrito, muito inteligente, político e poético. Não é uma caricatura do popular”, considera. Ao lado de Edjalma Freitas, que interpreta o Hamlet, eles formam a Cia. do Ator Nu, criada em 2003, e que já encenou os espetáculos Cartas para um mozartiano e Fio invisível da minha cabeça. Além da presença de peso de João Denys, para este novo trabalho o grupo convidou o músico Naná Vasconcelos, para compor a trilha sonora. “É um trabalho muito simples, mas muito sofisticado, o de Naná. Ele compôs três músicas, uma superior, mais ligada ao céu e ao Hamlet; uma inferior, mais ligada à terra e ao Coveiro. E uma última, que é a mistura de todas as músicas: quando os atores dançam, fazendo saudações de várias culturas, vestidos com parangolés, pedindo para o público se retirar do teatro, lembrando que o mundo não é uma peça!”, explica Denys.
metateatralidade
Na dança final, estão vestidos de amarelo-ouro — o Hamlet, lembrando o fausto das elites; e, de vermelho, o Coveiro, remetendo ao perigo representado pelas classes menos abastadas. Mais que uma atualização do texto original com forte conteúdo político, um exercício de imaginação sobre o que seria daqueles personagens no mundo contemporâneo, a encenação é uma homenagem ao próprio teatro. Como é caro a João Denys em todos os seus trabalhos anteriores – numa espécie de síntese da vida no palco; e como é caro a Shakespeare, que utiliza o recurso metateatral em Hamlet, esta Encruzilhada é o encontro de todas as cenas, de todas as espetacularidades. Uma ode à representação, uma brincadeira com o sonho e com a realidade, com a morte e a vida, daí o medo das personagens de que a peça acabe. Pois somente em cena aquelas figuras de mármore podem ganhar vida. “Se eu pudesse falar de uma mensagem, diria que a peça mostra que ainda é possível um aperto de mão, um sorriso, uma delicadeza”, indica Denys.
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divulgAção
intercâmbiO rede integra grupos sul-americanos de dança
Aliados aos avanços tecnológicos, artistas, produtores e gestores unem-se na busca por um espaço de fortalecimento da dança nos países da América do Sul texto Liana Gesteira
Palco
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o Brasil sedia, mais uma vez, o
Encontro Anual da Red Sudamericana de Danza. O evento reunirá artistas, gestores, professores, jornalistas, estudantes e membros da rede em Salvador (BA), de 16 a 21 de setembro deste ano. Uma oportunidade de alargar as fronteiras do pensamento e da produção em dança. A RSD foi criada em 2000, a partir da reunião de artistas, produtores e gestores atuantes na região sul do continente americano, com o intuito de buscar uma maior integração entre as ações artísticas, políticas e de formação profissional existentes na região. A iniciativa não corresponde a nenhum tipo de associação ou entidade jurídica, apresentando-
se à sociedade como um espaço de intercâmbio entre profissionais da dança de países da América do Sul, com projeção para atuar no Caribe a na América Central. É um exemplo das novas concepções de organização, onde as relações entre seus membros se dão de forma horizontal, sem hierarquias, e suas ações dependem do desejo e do engajamento de seus integrantes. Ao longo de nove anos, a rede projetou suas ações pelo Continente e alcançou territórios distantes, colocando em contato profissionais de diferentes localidades e contribuindo para a realização de atividades artísticas e de formação. Hoje, tem a participação de mais de 20 países
da América do Sul. O Brasil é um dos grandes parceiros dessa empreitada e mais uma vez sediará o encontro anual dos membros da rede, que no ano passado aconteceu no Recife. Em Salvador, o encontro vai contar com atividades de capacitação para os membros associados, debates, e outras ações que serão feitas em parceira com a Plataforma Internacional de Dança da Bahia. Uma das principais preocupações da rede, atualmente, é a busca por ferramentas que viabilizem a comunicação entre os seus membros. A tecnologia tem se apresentado como um dos caminhos possíveis para aperfeiçoar o trabalho em rede e será tema de uma das capacitações deste
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o grupo CoMteMpu’s, da Bahia, faz parte da rede Sul-Americana de dança lançada em 2008, a plataforma da rede na internet já reúne 1.500 membros
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ano. A atividade inclui a avaliação do funcionamento da plataforma virtual da Red Sudamericana de Danza (http:// movimientolaredsd.ning.com), que foi lançada em 2008 como um espaço de encontro, produção do conhecimento e divulgação dos artistas que dela fazem parte. A adesão a essa plataforma é gratuita e permite a criação de página de grupos de dança, artistas e entidades; a postagem de textos, fotos e vídeos; a realização de fóruns; a participação em chats; o acesso a notícias de dança, entre outras ações. A plataforma já conta com 1.500 membros e tem se apresentado como um canal eficaz de diálogo entre os integrantes. “Essa ferramenta não
hierarquiza as relações. Ela permite que você entre em contato com artistas que não seriam acessíveis de outro modo”, afirma Clara Trigo, a organizadora do Encontro da Red Sudamericana deste ano. Mesmo com o resultado positivo da comunicação virtual, instituída pelos membros da Rede, Clara ressalta a necessidade do encontro presencial como um momento importante para o desenvolvimento desse trabalho. “É o contato presencial que possibilita o engajamento das pessoas na rede”, opina. Esse foi o caso de Clara, que passou a ser membro da rede em 2007, após participar do encontro ocorrido no Rio de Janeiro. Ela foi para o evento por iniciativa própria, e este ano conseguiu levá-lo à Bahia, onde reside.
enSino da dança
Os organizadores esperam que esta edição agregue os participantes em torno do tema “Aproximação entre universidades de dança pela America Latina”, aspecto considerado basilar para a formação em dança. Em torno dele, será discutida a criação de cursos de graduação e pós- graduação em dança, formação para professores e artistas, perfil dos cursos existentes, entre outros. A Bahia se coloca como um local de referência à reflexão desse tema, pois abriga um dos cursos mais antigos de dança da América do Sul, a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia,
fundada em 1956. A experiência de 50 anos e as transformações ocorridas nas graduações e pósgraduações da Escola de Dança da UFBA podem servir como parâmetro à implantação de outras graduações em dança no Brasil, a exemplo do recém-criado curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Pernambuco, que, para a criação de seu programa, estudou a grade curricular da Escola de Dança, dentre outros modelos do país. A programação do encontro da RSD conta também com a Plataforma Internacional de Dança da Bahia, um espaço complementar das atividades em que se realizam apresentações, minirresidência, workshop, sala de intercâmbio artístico e convívio. Todas essas ações da rede partem do desejo de criar um espaço de fortalecimento da dança sulamericana, sem uma visão de cultura hegemônica ou homogênea, conceito que permeia todo o trabalho e que foi aprofundado no último encontro, no Recife, a partir da palestra “Epistemologia do Sul: Ecologia dos Saberes na Red Sudamericana de Danza”, apresentada pela professora Roberta Ramos, do Curso de Dança da UFPE, em que, tendo como base o pensamento do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, argumenta pela “inclusão do máximo de experiências de conhecimentos do mundo”, uma “ecologia de saberes”.
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refrações francesas no pensamento brasileiro texto Lourival Holanda
As comemorações do Ano da França no Brasil deram lugar a algumas revisões críticas da importância do aporte francês à cultura brasileira. Aníbal Fernandes, jornalista, professor, pesquisador, fez um balanço dessa contribuição francesa – sobretudo marcando os momentos em que os inquietos insurrectos de 1817 e 1824 empunhavam as ideias liberais, emancipatórias, que inaugurariam a modernidade em Pernambuco. A Cepe Editora — PE dá ao público Ideias francesas em Pernambuco na primeira metade do século XIX, encartada nesta edição da Continente. A conferência, pronunciada na Faculdade de Direito da Paraíba, e publicada no Diario de Pernambuco, nos idos de 1957, faz um balanço da presença francesa na construção do nosso aparato crítico. A revisão de Aníbal Fernandes vai, sobretudo, até a primeira parte do século 19. Na verdade, ele aponta, mais que analisa, certos pontos de convergência e interlocução em momentos que foram definidores. Há que reconhecer: justo, e que nenhum excesso admirativo turva. Portanto, parece muito pertinente tal publicação porque homenageia duplamente: um dos melhores representantes desse intercâmbio e ainda numa hora em que a cultura francesa balisa o pensamento contemporâneo. Um reconhecimento mais que necessário, urgente: de fato, a figura de Aníbal Fernandes se presta bem a ser um nome representativo do fermento francês no pensamento pernambucano. Hoje, quando olhamos o panorama intelectual do século 20, primeiro se percebe a marcante presença da França. Desde a vinda da “missão”
francesa na fundação da Universidade de São Paulo, que iria irradiar, Brasil afora, em debates e discussões muito frutíferas na cultura brasileira, até as últimas “modas” intelectuais que alimentam mais a mídia que o pensamento – mas que tem livre curso justamente porque se beneficiam dessa tradição. Os anos 1960 viram o apogeu do estruturalismo. No entusiasmo da recepção sacrificouse o distanciamento crítico; virou adesão, como a um credo. Paralelo a isso, já Michel Foucault apontava seus pontos fracos, como a crença excessiva no racionalismo e sua pretensão à universalidade. Basta ver a crítica contundente à essencialidade, à ontologia, desde As palavras e as coisas, 1966. Revisão necessária, mas que, aqui, até bem recentemente, valia por palavra de lei. (O que estraga o aporte do estruturalismo, assim como a recepção de Foucault, a de Deleuze,
flávio pessoa
Artigo
os anos 1960 viram o apogeu do estruturalismo. no entusiasmo da recepção sacrificou-se o distanciamento crítico a de Derrida, não é tanto a fragilidade do que eles trazem; é, sobretudo, a fraqueza de quem, aqui, recebe: por preguiça mental rapidamente transformamos tudo em receitas. E então repete-se, quer dizer, dispensa-se o pensar.) O empreendimento de Jacques Derrida era grande: minar as bases do idealismo que crê que o signo realmente representa o mundo; que o signo coincide com a complexidade do real. Isso já era uma desconfiança antiga, vinha desde Nietzsche – e Gilles Deleuze apanha a proposta e a desenvolve; envolvendo a filosofia com a dúvida sobre seu próprio discurso. Uma operação salutar. Jacques Derrida teve o infortúnio de ser “compreendido” cedo demais pelo entusiasmo americano no encontro na Universidade de Johns Hopkins, em 1966 – daí se difundiu, diluiu-se em mera moda, mundo afora. Chegou ao
Brasil, na maior parte do caso, com essa embalagem – cujo brilho fez aqui o sucesso da desconstrução, dos estudos culturais, das teorias pós-coloniais. Uma postura teórica muito pertinente – fazer valer a voz dos silenciados, dos que ficaram à margem de um sistema homogeneizador – virou “vulgata”, servindo agora a todas as concessões e condescendências. No campo literário, o estruturalismo ajudou a afugentar os meros “opinadores”, o impressionismo crítico, trazendo uma proposta de rigor nas análises. (O impressionismo crítico fica a depender do talento – raro –, da sensibilidade inteligente do crítico.) Roland Barthes levou sua contribuição até um ponto necessário, nos começos do estruturalismo; depois, chegou ao impasse do pensador que, ou se repete ou se rebela, e avança outra possibilidade crítica. E desde O prazer do texto, Barthes renovava os modos de leitura literária.
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Na época de Aníbal Fernandes a cultura francesa era uma evidência de valor. Depois da Segunda Guerra, o inglês se impõe. Nos ciclos da cultura, um natural passe de bola, salutar sempre; em dado momento é a cultura de Espanha que rege o mundo, depois a da França, agora, a americana. O mal é se apagarmos o contributo anterior, porque é justamente essa memória que pode impedir a morte na mesmice, na repetição. Pensar o mundo atual desde a perspectiva do 18 espanhol, isso traz uma renovação valiosa ao presente, porque o alarga. Pensar a velocidade da tecnologia relativizando-a com os valores que precisamos redefinir, isso contribui. Nos anos 1940, Mário de Andrade (ah, ainda Mário de Andrade!) dizia: “Nos dias que correm, com a desmedida avançada cultural dos Estados Unidos sobre nós, eu desejo afirmar livremente que a influência francesa foi benemérita,
e ainda é a melhor, a que mais nos equilibra, a que mais nos permite o exercício de nossa verdade psicológica nacional, a que menos exige de nós a desistência de nós mesmos”. Hoje tendemos a colocar um certo freio no entusiasmo afetivo de Mário. Mas não podemos deixar de partilhar seu receio de que uma influência não se contente em ser influência e seja “domínio” – como diz ele. Quando se pensa a contribuição francesa na cultura de Pernambuco, por exemplo, não se pode esquecer que foi nossa janela para um iluminismo, que apenas despontava por aqui. A presença francesa marca toda a América Latina, sobretudo no momento crucial de ruptura com a Metrópole. A Revolução Francesa é a instância modelar; e vai ser absorvida e assumida como patrimônio da vida política e cultural posteriormente. Naquele momento a influência francesa
é projetada em paradigma universalista. A difusão dos ideais iluministas (e o Iluminismo foi hasteado, sobretudo em terras brasileiras, pela Maçonaria que, enquanto se opunha ao conservadorismo da Igreja, dava lugar às novas ideias emancipatórias) e dos princípios revolucionários se fez, sobretudo, através dos livros que enformaram o espírito pernambucano daquele tempo. Basta ver entre os livros da biblioteca de Aragão e Vasconcelos, o advogado dos insurrectos de 1817, alguns volumes de Diderot, de D’Alembert, de Voltaire. Um outro ponto, e de igual significação social, é o grande número de livros de orientação positivista – particularmente no período de seu apogeu, entre 1880 e 1914. O positivismo sucede o Iluminismo em sua pretensão de encontrar um sistema que abarcasse a complexidade da vida política e social. Seria interessante estabelecer um paralelo entre a voga do positivismo (ainda que mais fundo e de maior fôlego) e a do estruturalismo, nesses finais de século. Aqui como ali, a mesma vontade de abarcar a complexidade do real num sistema; o sistema tem uma arquitetura teórica tal que faz parecer evidente o que é apenas um modo de leitura do mundo em dado momento. Mas a contribuição é considerável. No universo cultural, desde Aníbal Fernandes, mudam-se as referências – não a importância dessa interlocução com o fermento do pensamento francês. Se ontem era mais Diderot, Taine, Brunetière, há pouco foi Foucault, Lyotard, Deleuze. Não há como negar a importância do intercâmbio, da contribuição que provoca o movimento intelectual. Michel Serres instiga pensar de modo diferente e esperançoso o mundo contemporâneo (Hominescências, Bertrand Brasil, 2003). Emmanuel Lévinas aprofunda a onda do interculturalismo pensando a real acolhida ao outro (Entre nós, Vozes, 1997). Comemoração do ano da França no Brasil: é, sobretudo, um reconhecimento. Com o cuidado que a acolhida ao outro não se faça a preço de demissão de si – mas que sempre o encontro seja acréscimo; ainda que da consciência de nossas irredutíveis diferenças.
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DJ Dolores
os jecas e a arte inundações, terremotos, tufões, epidemias... A raça humana
DJ Dolores diz que é como um pato: nada, anda e voa, mas não faz direito nenhuma dessas coisas. Por outro lado, sabe com clareza que não gosta de jequice marcelo lyra
se vê encurralada pela natureza! Até mesmo o sol, aquela estrela redonda e boa-praça – que aparece risonha nos livros infantis –, aborreceu-se e hoje se dedica a tostar os seres humanos com um calor abrasador, obrigando-os a se lambuzarem de protetor solar. O sol – dessa vez, metafórico –, representado pela cultura acumulada em todos esses anos de civilização, parece, ao contrário, obscurecer-se. É que as trevas do mercantilismo – a cultura do dinheiro pelo dinheiro – encobrem-no num véu escuro e profundo, demasiadamente aterrador para os filhos das revoluções libertárias que buscam no saber uma estrada para um mundo mais iluminado, sem reis, preconceitos e mitomania. Mas é exatamente no ambiente dos ídolos ocos – de plástico! –, disponíveis nas Lojas Americanas ou, quando caros, em galerias chiques, que o jeca se esbalda. O que é um jeca? É aquela criatura que “só vê até onde a vista alcança”. Por exemplo, um jeca quando vê um quadro de Lucien Freud comenta que o peito da modelo é caído, portanto a pintura é feia ou, simplesmente, acha-o prosaicamente belo. Um jeca não tem noção de contexto histórico, nunca pensa que a cultura dialoga com a cultura, que tudo faz parte de uma complexa teia social, que a arte representa o pensamento humano, essa busca de entender o mundo, de entendermos a nós mesmos, muito acima da idéia de “belo” ou “feio”. A verdadeira jequice está na ideia muito recente do indivíduo, isolado historicamente. O slogan número um da jequice é que gosto não se discute. Talvez por isso o ambiente mais fértil para a idiotia do jeca, na atualidade, tem sido a chamada “arte contemporânea”. O ciclo começa com o “jeca-artista”, avaliado e vendido pelo “jecacomerciante”, divulgado pelo “jeca-eu-gosto-de-salgadinho-comvinho-branco” e comprado/contemplado pelos “jecas-chiques”. É bom para todos!! Nesse ecossistema, a sensação de estar em algo grande e inteligente, de sentir-se parte de uma elite sensível, capaz de olhar a gentalha por cima dos ombros, da altura de sua suposta superioridade cultural. Em troca, dinheiro para todos e o nosso “jecaartista” deita-se com as loiras da fama. O curioso é que a “arte contemporânea” e seus onipresentes conceitos são frutos do humor irônico, filosófico e, de fato, inteligente. O culpado maior, Marcel Duchamp, apontou com acidez para as inquietações da arte num período de ruptura social e surgimento de novos valores. A jequice unida não entendeu a piada, pois ironia não pertence ao seu universo, e misturou grandiloquência classicista com o que a salvaria da imobilidade: o conceito! Não tem nada o que falar? Não precisa, apenas conceitue o seu vazio. Não domina técnica? Técnica é cafona, chique mesmo é conceitualizar! Uma imagem real sobre o que escrevo deu-se há uns anos, no CAC da UFPE: um gaiato plantou um paralelepípedo numa mostra de vanguarda alemã que lá estava sendo realizada. Colado ao objeto, um papelzinho anunciava o nome da “obra”, A pedra, escrito em alemão. Durantes dias, o paralelepípedo lá ficou, admirado por jecas naquela clássica posição de queixo apoiado sobre o dedo indicador dobrado e um leve “oh!” soprado entre os lábios.
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