outubro 2009
REpRodução: wikiMEdiA
aos leitores
“Construído em 1961 para evitar a fuga maciça de alemães orientais para o lado ocidental do país dividido pela Segunda Guerra, o Muro veio simbolicamente e fisicamente abaixo na noite de 9 de novembro de 1989, logo após a notícia – displicentemente divulgada e espalhada como pólvora – de que os alemães orientais voltariam a ter passaportes.” Este é um dos trechos iniciais da matéria que Fábio Lucas escreveu para esta edição da Continente sobre um dos mais decisivos fatos históricos da segunda metade do século 20: a Queda do Muro de Berlim, ocorrida há 20 anos. Aqueles que estão com essa idade recebem notícias do ocorrido através de relatos familiares (sobretudo dos pais que puderam vivenciá-lo) e têm na Guerra Fria um “longínquo” tema das aulas de História. Essas duas décadas conheceram mudanças velozes e reconfigurações geopolíticas inimagináveis enquanto o Muro ruía. Tudo que ficou para trás daquele fato soa anacrônico hoje, quando a disputa Socialistas Russos X Capitalistas Americanos foi dissipada e a balança pendeu para estes últimos. “Curioso” é o adjetivo que Marcelo Abreu usa para qualificar o interesse do público sobre alguns ícones da política russa que ficou conhecida como “socialismo real”. Em suas andanças pelo mundo, o repórter esteve em países do antigo Bloco
Soviético, reunindo imagens e informações daquela realidade que rapidamente era apagada dos olhos mundiais. Assim foi que ele descobriu, na Lituânia, um excêntrico parque de esculturas, composto de relíquias do estilo artístico oficial do regime, o Realismo Socialista, para o qual acorrem visitantes ávidos por conhecer (ou rememorar) o “cenário” desse capítulo da história recente. Também nesta edição tratamos de outra contenda, a Segunda Guerra Mundial, destacando o fato de o Recife ter-se tornado geograficamente estratégico para os Aliados que, na cidade, ergueram um potente quartel-general, ancorando navios de guerra no porto da cidade, criando pistas de pouso e instalando estação de rádio, entre outras atividades que acabaram colaborando para modificar a cultura local. Entrando no campo das conquistas prazerosas, tratamos da nova safra do cinema pernambucano, que atualmente se encontra em fase prolífica, tanto em quantidade quanto em diversidade, com novos e já consolidados realizadores produzindo filmes que afirmam uma “voz autoral”, por fugir das fórmulas comerciais ou facilmente assimiláveis. A matéria conta com as diferentes contribuições de Luiz Joaquim, Alexandre Figueirôa e Marcelo Costa, eles mesmos exemplos de distintas gerações que atuam com profissionalismo no campo da crítica.
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sumário Portfólio 06
Cartas
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Expediente + colaboradores
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Entrevista
Newton Moreno Dramaturgo reúne em encenação universos de Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues
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Balaio
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Peleja
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Em 1ª Mão
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50
Jr. Black Cantor estreia disco solo, apostando na variedade de timbres
Crônica
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Visuais
Matéria Corrida
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Palco
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Sonoras
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Artigo
Conexão
Crianças No mês dedicado a elas, dicas de sites educativos e de entretenimento
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Vandeck Santiago Os bastidores da produção de uma reportagem em Paris
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Baú
Cinematógrafo Há um século tinha início no Brasil o hábito de frequentar salas de exibição de imagens em movimento
As romarias de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, em seus aspectos místicos e comerciais, pelo olhar do fotógrafo
Espaço Cultural Correios Instalado em prédio histórico, sua inauguração conta com cinco mostras e abertura de edital para seleção em várias modalidades artísticas
Perfil
Aramis Trindade O ator é retratado desde as interpretações domésticas à presença simultânea em oito longas-metragens
2ª Guerra Mundial Como o Recife foi transformado em quartelgeneral do exército norteamericano
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O escritor de romances policiais Joe Nesbo descreve o Brasil como terra de pistoleiros
Literatura Letra de música é poesia?
História
Alejandro Zambrana
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José Cláudio Crônicas do navio Conte Grande
Videodança Trabalho do pernambucano Oscar Malta é préselecionado pela atual edição do programa Rumos Dança do Itaú Cultural
London Calling Disco seminal da banda inglesa The Clash completa 30 anos
Freud Um ensaio do psicanalista serviu de base ao estudo sobre a narrativa fantástica
Saída
Cristina Tejo Os novos fluxos da arte contemporânea
Pernambucanas Jardim botânico
À beira da BR-232, o lugar abriga variedade de fauna e flora da Mata Atlântica, além de exemplares exóticos
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Capa foto Toinho Melcop/Making of do filme História de um valente
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especial Cinema
especial
Treze anos após baile perfumado ter revelado nacionalmente a produção pernambucana, ela se expande e amadurece, estando hoje em desenvolvimento no Estado cerca de 40 filmes
Foi há 20 anos, numa manifestação popular e festiva, que ruiu um dos últimos monumentos da Guerra Fria, inaugurando assim uma nova configuração da geopolítica mundial
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Muro de Berlim
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Sítio histórico
Leitura
Um dos mais tradicionais pontos turísticos do Recife passa por reestruturação e abriga novos centros culturais, com temáticas da arte popular ao design contemporâneo
Seleção de escritos da arquiteta ítalobrasileira ressalta sua contribuição ao pensamento modernista no Brasil
Patio de São Pedro
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Lina Bo Bardi
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cartas 104), que resgata 70 anos de teatro para crianças em Pernambuco. LUIZ BOTELHO DRAMATURGO
Burle Marx
Agradecimento Trazer para o âmbito da cena pública a história e os desafios da Arte/Educação no Brasil, mais precisamente em Pernambuco, com riqueza de detalhes e extremo respeito pelo pensamento da categoria é a marca do texto elaborado pela jovem jornalista Mariana Oliveira, na edição de setembro da Continente. Nós que fazemos a Escolinha de Arte do Recife nos sentimos muito honrados de ver, não apenas as fotos de um espaço que resiste às imposições do mundo do consumo, mas também porque a reportagem coloca a história de uma das mais representativas figuras do ensino da arte: Noemia de Araújo Varela. Mariana, ao ressaltar Dona Noemia e tomar como foco da reportagem a abordagem triangular, criada por Ana Mae Barbosa, enfatiza os laços entre o modernismo e pós- modernismo na Arte/Educação, entre o passado e o presente. PRESIDÊNCIA DA ESCOLINHA DE ARTE DO RECIFE
Teatro Enquanto o Sul brasileiro e alguns países do chamado Primeiro Mundo redescobrem no Teatro um caminho de retorno ao humano, aqui poucos sabem o valor dessa arte. Por isso parabenizo – e agradeço – à Continente pela lucidez de sempre, mantendo um espaço para falar de Artes Cênicas e publicando matérias essenciais como a recente Vivo, perene, com sete décadas e alguns percalços (nº
Escrevo para parabenizar Danielle Romani pela reportagem sobre o verde urbano. As fotos e a programação visual ficaram muito boas. Surpreendi-me com a densidade que conseguiu dar à matéria, fato pouco comum nas revistas, mas que fazem a qualidade da Continente e sua equipe. Gostaria de fazer a seguinte consideração sobre a matéria: é comum fazer a associação dos jardins de Burle Marx com a arte, principalmente com a pintura. No entanto, especificamente para os três jardins que ele concebeu para o Recife na década de 1930, o melhor seria dizer que foram elaborados como obras de arte, não como pinturas. FÁTIMA MAFRA ARQUITETA
Bibliotecária 1 Quero aqui deixar minha indignação quanto à matéria Fiel depositária de livros e histórias, escrita por Ana Bizzotto na edição 104 da Continente... Deveria ser vergonhoso, tanto para a entrevistada, que não me parece usar a cultura que diz ter, quanto para a jornalista/revista, publicar uma matéria com esse formato, numa época em que toda a sociedade brasileira luta contra os desmandos de nossos governantes e daqueles que se fazem passar por profissionais, sem ser. Espero, no mínimo, uma retratação dessa revista e da jornalista... Nesses
termos, também conclamo a todos os profissionais da área a se manifestarem e a reivindicar ao CRB que tome as providências cabíveis ao caso, pois me parece que essa biblioteca está em desacordo com a legislação vigente, conforme o mencionado na matéria. Vamos fazer valer os nossos direitos e a nossa legislação brasileira. NILSON TIBÚRCIO DA SILVA BIBLIOTECÁRIO
Bibliotecária 2 O dicionário de Antônio Houaiss define bibliotecário como “aquele que administra uma biblioteca”. Está certo, portanto, o excelente perfil publicado por Ana Bizzotto no nº 104 da Continente. Cristina Antunes é realmente bibliotecária porque exerce com eficiência esta função, há quase três décadas, na biblioteca particular do bibliófilo José Mindlin. Erradas estão as três bacharelas em biblioteconomia que escreveram cartas em protesto publicadas pela revista nº 105. Elas invocam uma lei que o Supremo Tribunal Federal certamente invalidaria, se questionado como foi pelo dispositivo legal que exigia diploma para o exercício do jornalismo... O que faria um bacharel em biblioteconomia em bibliotecas como a de José Mindlin? Certamente procuraria classificar os livros pelo superado sistema decimal e catalogá-los de acordo com códigos igualmente obsoletos. Considero-me insuspeito para fazer estas observações porque tenho o diploma do Curso Superior de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional, fui aprovado em concurso público para a carreira de bibliotecário da Câmara dos Deputados, e, convidado por Darcy Ribeiro, organizei na Universidade de Brasília a Biblioteca Central, o Departamento de Biblioteconomia e a Faculdade de Estudos Sociais Aplicados. EDSON NERY DA FONSECA BIBLIOTECÁRIO
VOCÊ FAZ A continente COM A GENTE o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, recife-PE, CEP 50100140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone (81) 3183 2780 Fax (81) 3183 2783 email
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erratas Na entrevista com o cineasta Eduardo Coutinho (Continente, nº 105), onde se lê: “Em Moscou, o diretor de Jogo de cena assume uma deliberada invisibilidade na direção, quando delega ao grupo Galpão a responsabilidade pelo resultado da encenação” – leia-se: “Em Moscou, o diretor de Jogo de cena assume uma deliberada invisibilidade na direção, sem por isso delegar ao grupo Galpão a responsabilidade pelo resultado da encenação”. A foto da página 50 da edição nº 105 da Continente, na matéria Tradição que se perpetua às margens do Pajeú, é de autoria de Ana Lira, ao contrário do que está nela indicado. A autoria da foto de Melina Hickson para a seção Peleja, da edição nº 105 da Continente, é de Beto Figuerôa.
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colaboradores
astier Basílio
christiane Galdino
Débora nascimento
Gilson oliveira
Jornalista e poeta
Jornalista e pesquisadora
Jornalista e professora dos
Jornalista
em dança
cursos de produção fonográfica e jornalismo da AESO
Luiz Joaquim
eduardo suplicy
Vandeck santiago
Jornalista, crítico de cinema e
Senador da República pelo
Repórter especial do Diario de
mestre em comunicação
Partido dos Trabalhadores
Pernambuco
e Mais Alexandre Figueirôa • Ana Lira • André Telles do Rosário • Ângelo Monteiro • Cristiana Tejo • Diogo Monteiro • Fábio Lucas • João Simão • Marcelo Abreu • Marcelo Costa Luciana Rabelo • Olívia Mindelo • Otávio de Souza • Renata do Amaral • Tiago Eloy Zaidan
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newton moreno
Dois autores unidos pelo teatro Dramaturgo pernambucano leva o universo de Gilberto Freyre para uma livre adaptação da peça Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, conjugando dois gênios distintos texto Astier Basílio
con ti nen te#44
Entrevista
Quem entra na sede da companhia teatral Os Fofos Encenam, vê paredes cor de laranja e pequenas plantas dispostas colorindo o tom cinza da paisagem circundante. Estamos na Adoniram Barbosa, 151, no bairro da Bela Vista, em São Paulo. Chove. Na entrada, em um pequeno quadro verde, lê-se, escrito em giz, o cardápio do dia: “Cozido Pernambucano”, uma mistura de legumes com carnes defumadas que será servida como opção de jantar ao final do espetáculo Memória da cana, uma livre adaptação da peça Álbum de família, de Nelson Rodrigues. Nas dependências da sede do grupo, há mesas, cadeiras, tudo num estilo que remonta ao mobiliário das tradicionais famílias nordestinas. Além do teatro, na sede funciona um restaurante. Nas paredes, fotografias emolduradas, algo envelhecidas, com os atores representando os personagens da peça. Era como se as imagens de Nelson estivessem penduradas nas paredes da Casa-Grande de Gilberto Freyre. Dezenas de filmes e produções na televisão brasileira cristalizaram não só um lugar para a dramaturgia de Nelson,
mas também lhe impuseram uma fala: a carioca. Até mesmo os paulistas do CTP, do encenador Antunes Filho, em sua mais recente produção rodriguiana, A falecida Vapt Vupt, esgoelam-se num carioquês bem evidente. O pernambucano Newton Moreno ousou. Radicado em São Paulo há 18 anos e um dos dramaturgos mais festejados da cena teatral brasileira, Moreno quis devolver a Nelson Rodrigues sua pernambucanidade. E conseguiu. Num lance de dados uniu dois gênios que até então pareciam não ter muito em comum: Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre. Mestre em Artes Cênicas pela USP, Newton Moreno estreou como dramaturgo em 2001, com Deus sabia de tudo e não fez nada. De lá para cá, foram adaptações e textos escritos, entre os quais Agreste (2004), que o colocaram, definitivamente, no primeiro time dos dramaturgos brasileiros e com o qual levou o prêmio Shell de Melhor Autor e Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, nesta mesma categoria. Inquieto, Moreno já prepara a continuação do Memória da cana e
ensaia estrear na literatura com um livro de contos. “Risco é saudável para o artista”, acredita. continente Por que montar um Nelson Rodrigues sob a moldura de Gilberto Freyre? neWton MoReno Após o contato com Assombrações do Recife Velho, aproximamo-nos da obra de Gilberto Freyre e, obviamente, de Casa-Grande & Senzala. Como eu já tinha vontade de montar Álbum de família, comecei a reconhecer “ecos” do estudo da família patriarcal de Gilberto Freyre na obra de Nelson Rodrigues. Os dois pernambucanos e frutos desta herança de casas-grandes e educação nordestina. São dois grandes intérpretes do Brasil, aqui reunidos pelo tema da família brasileira. Então, criamos o diálogo entre as duas obras, percebendo que este olhar para dentro do ninho nos aproxima de questões de nossa formação e de nossas cicatrizes como nação. A família em questão é a família brasileira. continente Você não sentiu em algum momento que a sua proposta pudesse soar
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Filipe Redondo/Folha imagem
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mais exótica do que propriamente conjugar um projeto estético? neWton MoReno Não. Quando se lida com um suporte como Nelson Rodrigues e Gilberto Freyre, não creio haver tantos riscos de exotismo. A obra dos dois nos assegura uma jornada radical sob a tutela de dois grandes pensadores do Brasil. O sotaque, os sons, os elementos que remetem à cultura da Zona da Mata estão todos a serviço da compreensão do olhar agudo e crítico que ambos empreenderam sobre a nossa sociedade. Penso que um
Entrevista
Fotos: divulgação
con ti nen te#44
Gilberto. Parentes, sons, aromas, narrativas, enfim, tudo serviu para que eles realizassem seu próprio “álbum de família”, para que nós pudéssemos levantar o “álbum de família” de Nelson Rodrigues. Quando a peça começa, eles dividem com o público uma pequena narrativa que tem direta conexão com questões pessoais, mas estão camufladas de narrativas daquelas personagens. É como se eles afirmassem para si mesmos: “Para fazer esta peça, eu preciso estar conectado com esta minha memória”.
potencializa a crueza com que o outro nos observa e se observa. A combustão entre os dois só ajuda a promover uma “queimada” mais ácida e corrosiva. continente Qual foi a importância da memória pessoal dos atores no processo de construção desse espetáculo? neWton MoReno O terceiro eixo para a construção do trabalho foi o elenco. Todos de educação nordestina e uma paulista que assume as personagens que não se sentem parte da família, uma estrangeira em busca de aceitação. Para compor a linguagem do espetáculo, eles tiveram que empreender sua própria viagem em busca de memórias familiares pessoais – assim como Nelson e
continente Você fez uma imersão em engenhos de cana na Zona da Mata. De que maneira o contato com essas paisagens influenciou a composição do espetáculo? neWton MoReno Foi o momento definitivo para nós. Quando ensaiamos as cenas da peça de Nelson no cenário do Gilberto, sabíamos que estávamos abençoados neste casamento póstumo. Fizemos a cena entre os irmãos Glória e Guilherme, que, na peça, acontece na capela da fazenda. Ouvir as falas de Nelson ecoando naquele espaço grávido de memórias só pareceu potencializar nossa pesquisa. Assim fizemos também cenas na casa-grande e no meio do canavial. Nossa sensação, naquele momento, foi de que Gilberto abraçava Nelson.
continente Outro momento em que as obras se cruzam diz respeito à sexualidade em família. A endogamia, um tema tão presente em Casa-Grande & Senzala, que em Álbum de Família resvalou para o incesto – como foi trabalhar estes temas? neWton MoReno A ajuda de Fátima Quintas (pesquisadora da Fundação Gilberto Freyre) foi fundamental. Ela nos desvendou a estrutura dessa família patriarcal e as relações ficaram muito claras: endogamia, negociações sexuais, desmandos, religiosidade exacerbante, um microcosmo de uma
“São dois grandes intérpretes do Brasil, reunidos pelo tema da família brasileira. então, criamos o diálogo entre as duas obras, percebendo que este olhar para dentro do ninho nos aproxima de questões de nossa formação”
ideia de sociedade ao redor da mesa de jantar e de seus cômodos. Fátima nos ajudou a relacionar também as personagens de Nelson com as figuras do organograma familiar. Após ouvir sua explanação sobre a função das solteironas, ficou mais forte nosso entendimento e a construção de nossa Tia Rute. Assim operamos, também, com as outras figuras-chave dessa prole: senhor de engenho, sinhá, filhos, sinhazinha e os agregados e escravos. Por isso, queríamos, também, manter aquele canavial que envolve e sustenta aquela casa-grande, um canavial movente e ecoando gritos de senzala. continente Estamos acostumados a montagens de Nelson ambientadas no universo
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da classe média carioca – como as pessoas têm reagido a esse sotaque diferente? neWton MoReno Com surpresa e interesse. Muitas descobrem a origem pernambucana de Nelson quando vêm nos assistir. Penso que algumas peças de Nelson estão conectadas a esse olhar mais ligado à tradição, à sua raiz, a um eco desse imaginário e educação nordestina, como o Álbum de família. Outros textos têm tessitura e embocadura que devem muito à sua observação de um Brasil carioca e mais urbano. Acreditamos que nosso público
de trabalhadores para o crescente plantio no centro-sudeste do país no começo deste novo século. continente Você também escreve contos, não é? Planeja publicar algum livro no gênero? Como é sua relação com a literatura? neWton MoReno O André Brasileiro, do Angu, perguntou se eu tinha algum material e falei do meu projeto de um livro de contos, Ópera. O Marcondes Lima leu-os e selecionou algumas histórias – o que resultou no espetáculo. Trabalhamos juntos
sempre expostos e temos que entender que todo tipo de recepção é possível. Já foi dito: “Toda unanimidade é burra”. Claro que prefiro quando a recusa a algum trabalho está fundamentada e faz refletir sobre sua criação, mas, às vezes, o público pode ser atingido e manifestar sua indignação e descontentamento. Estamos aqui para provocar reflexões e sensações. Estamos aqui para provocar. Por exemplo, à época da Refeição, no Sesi, em São Paulo, algumas pessoas
“Às vezes, o público pode ser atingido e manifestar sua indignação e descontentamento. estamos aqui para provocar reflexões e sensações. estamos aqui para provocar”
tem percebido como Nelson resulta nesse caldeirão freyriano. continente A companhia pretende apostar ainda em investigações que tenham a ambiência tratada em Casa-Grande & Senzala? neWton MoReno Sim, estamos organizando um novo projeto, por enquanto intitulado Memória da cana, parte 2 – O Pentateuco. Um estudo sobre estes cinco séculos de convivência do país com a cana-de-açúcar. Nunca daríamos conta de todo esse percurso, mas queremos escolher aspectos relevantes para cada século e acompanhar a saga de uma família ligada ao cultivo da cana. Da primeira cana plantada no Nordeste à migração
na adaptação para a cena. Continuo namorando a dinâmica dos contos, penso em me iniciar nesta aventura de síntese poética e narrativa. Sou admirador de contos de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e outros. Assim como tenho adoração por peças curtas, sou viciado em pequenas narrativas. Primeiras estórias é um dos meus livros preferidos. continente Soube de uma senhora que ficou indignada com a peça As Centenárias, texto seu dirigido pelo Aderbal Freire-Filho. Como você reage a manifestações desse tipo? neWton MoReno Não estava nessa sessão, mas reajo normalmente. Acredito que nós, artistas, estamos
saíram da sala. Sabia que era um tema espinhoso, mas comprei o risco. Risco é saudável para o artista. continente Como você avalia a nova produção em dramaturgia? O texto autoral está valorizado hoje em dia? O que você acha quando as pessoas falam em crise da dramaturgia? neWton MoReno Estreei meu primeiro texto em 2001, Deus sabia de Tudo... São oito anos neste ofício e ainda há muito a descobrir e aprender. Fico feliz que as pessoas se interessem pelo meu trabalho, isto me estimula muito. Só não consigo ter este olhar pessimista. Não vejo crise. Vejo renascimento do interesse pelo autor teatral.
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BonS SeLVAGenS
Para norueguês ver Um país violento, sem lei e sem regras. Uma espécie de “casa-da-mãe-joana”. Muitos estrangeiros enxergam o Brasil desta forma, e o escritor norueguês Joe Nesbo (acima) não é exceção. Autor de série policial cujo protagonista é o detetive Hally Hole, no seu último romance A casa da dor, recém-publicado pela Record, ele passou da mão: descreve a paradisíaca praia de Arraial d´Ajuda, no litoral sul da Bahia, como um local sujo, sem graça, onde os “nativos” são indolentes, preguiçosos e totalmente corruptíveis, aí inclusos os policiais. No livro, um perigoso assassino europeu chega a São Paulo, e, para não sujar as mãos, contrata um matador de aluguel no estacionamento do aeroporto #44 de Guarulhos, e ainda dá as coordenadas de como, em qualquer recanto do território brasileiro, é possível providenciar um matador por poucas centenas de dólares. Mais um ponto para a propaganda turística brasileira. Danielle romani
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A FRASE
“minha vida não tem propósito, direção nem significado e ainda sou feliz. não consigo entender. o que eu estou fazendo certo?” charles m. Schulz
Com O senhor das moscas, William Golding fez uma tentativa de retorno a uma humanidade edênica e mostrou nossa condenação ao fracasso. Um grupo de jovens, a caminho das férias, sofre um acidente aéreo e cai numa ilha deserta. Veem nisso uma oportunidade de romper com a civilização e fazer a experiência do recomeço em novas bases, em que certa ideia de humanidade pudesse se realizar. O resultado é a demonstração de que não existe marcha a ré na civilização, não há volta à inocência da natureza, não há recomeço possível, uma vez ultrapassada a fronteira da cultura. Isso deveria nos advertir em relação às utopias. Senhor das moscas em aramaico se diz Belzebu! (Flávio Brayner)
Balaio cAnção de encomendA
Certa vez, o compositor mineiro Mamão (autor do samba Tristeza pé no chão, sucesso com Clara Nunes nos anos 1970) brigou com a namorada Nanci e fez um samba, Só esta Noite, em que ameaçava arrumar outro amor. Nele, dizia que já tinha até candidatas. Nanci, cabrocha de muita ginga no pé e voz de sabiá, acusou o golpe, sentiu ciúme, mas não tinha como responder à altura, pois não era poeta. A compositora Sueli Costa, amiga do casal, chamou Mamão às falas: o que ele tinha feito era covardia, pois usara armas que sua amada não tinha. Tomando as dores da amiga, fez o samba Nanci, a porta-bandeira, em que falava por ela. E chamou os dois para mostrar a nova música. A emoção foi tanta que os dois reataram o namoro ali mesmo e as duas composições são hits nas rodas de Juiz de Fora, cidade natal de Suely, onde Nanci e Mamão moram até hoje.
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DESENRASCANÇO, quer dizer, dAr um JeitinHo O correspondente lusitano às expressões brasileiras de quebrar o galho ou dar um jeitinho é desenrascanço: “Capacidade de resolver problemas rapidamente e com poucos meios; desembaraço”, está no Dicionário da Língua Portuguesa 2009. Pois, desenrascanço foi eleita pelos frequentadores do site de humor norteamericano Cracked como a palavra estrangeira que mais faz falta à língua inglesa. Depois da expressão portuguesa, as outras nove palavras foram as seguintes:
cRiAtuRAS
2ª - Tingo (Ilha da Páscoa) – Pedir emprestado a um amigo até ele não ter mais nada. 3ª - Sgiomlaireachd (Escócia) – Quando alguém o interrompe durante a refeição. 4ª - Tatemae e Honne (Japão) – O que se quer acreditar e em que realmente se acredita. 5ª - Shlimaz (Israel) – Alguém com mais nada que má-sorte. 6ª - Nunchi (Coreia) – Um cara que merece um murro bem dado. 7ª - Backpfeifengesicht (Alemanha) – Pessoa que merece um murro. 8ª - Mamihlapinatapai (Terra do Fogo) – Olhar que dispensa palavras para comunicar desejo. (Duda Guennes, de Lisboa)
A mALA e o cão Além de escritor, jornalista e oficial de justiça, Fernando Sabino foi um grande viajante, como atesta em De cabeça para baixo, obra em que relata sua passagem da Europa até o Oriente. Mas foi viajando pelo Brasil que o autor tomou um grande susto. Certa vez, estava atravessando a rua, puxando sua mala, quando esta foi atropelada por um táxi. Foi ter com o motorista. – Você atropelou minha mala! – Mas eu pensei que fosse um cachorro! – E se fosse? Você mataria um cão! – Não. Se fosse um cachorro, teria saído correndo.
maurício de Souza, no mês das crianças orlandeli
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Alejandro Zambrana
NOS PASSOS DAQUELES QUE CREEM TexTo Ana Lira
Que sentimentos mobilizam a fé? Em que elementos é possível traduzir uma palavra tão próxima quanto abstrata? Essas inquietações levaram o sergipano Alejandro Zambrana a acompanhar por cerca de três anos as romarias em Juazeiro do Norte, no Ceará. O fotógrafo nunca foi religioso, mas sempre ouvia o pai de um amigo contar narrativas instigantes sobre o lugar. Os relatos somaram-se ao seu interesse pelas manifestações da religiosidade popular e resultaram no ensaio Romeiros de fé. Nele, o olhar do fotógrafo vai além da devoção e da dor e contempla a fé expressa por meio do sincretismo e da representação – que transforma jornais embrulhados em materializações do Padre Cícero. Ele ainda se aproxima de situações mais críticas ao observar no cotidiano dos festejos exemplos da mercantilização da fé e seus usos para fins eleitorais. Esse debate pode ser conferido em outras imagens no site www.flickr.com/alejandrozambrana, que também contém trechos do ensaio Lambe sujo e caboclinhos, o novo trabalho de Alejandro Zambrana sobre cultura popular e religião.
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Páginas anteriores 01 DeVoÇÃo
Entre os rituais da fé dos romeiros está a renovação das velas
Nestas Páginas 02 procissÃo
Homenagem à Nossa Senhora das Candeias
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FinADos
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nossA senHorA
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ÍnDios
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AZUL e VerMeLHo
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consUMo
Visitantes do Juazeiro do Norte celebram missas e fazem orações Fiéis comparecem para missa anual de aniversário da morte de Padre Cícero Pankararú saúdam a imagem do padroeiro. O São Jorge estampado na bandeira revela sincretismo As cores predominam nas romarias em homenagem a Padre Cícero A venda de imagens e artigos religiosos é uma das bases do comércio de Juazeiro do Norte
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flávio pessoa
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Peleja
Letra de música é poesia? Por que tantas pessoas no Brasil afirmam que letra de música e poesia são a mesma coisa? Trata-se de uma polêmica antiga, de fato, mas nunca concluída. Os poetas Ângelo Monteiro e André Telles se colocam em trincheiras opostas e alimentam, com suas perspectivas pessoais, esse debate inesgotável.
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Ângelo Monteiro
André Telles do Rosário
A ligação da poesia à música é
tão antiga que data dos primórdios da cultura, pois dos cantos homéricos até, pelo menos, às cadências métricas dos trovadores do medievo, a poesia era recitada ou cantada ao som de instrumentos musicais. Um dos mais antigos – a lira – acompanhava a poesia conhecida em nossos poeta, professor dias como lírica, enquanto, sob a de filosofia e ensaísta influência árabe, chegada a nós por meio dos ancestrais ibéricos, a viola, depois do arrabil, até hoje acompanha o repente dos cantadores nordestinos. A poesia, quando épica, vive do elemento narrativo, e, quando lírica, alimenta-se das forças da língua de que se originou. Mesmo um grande compositor erudito como Wagner fazia questão de escrever o libreto dos seus dramas musicais, por saber que a letra deles serviria de mero pretexto para o desenvolvimento melódico e harmônico dos próprios temas. Talvez pela imensa e variada riqueza de sua música popular – sem falar no alcance da erudita –, o Brasil apareça como o único lugar do planeta em que letra de música é considerada, além de ensinada – inclusive no âmbito universitário – como poesia. Nos Estados Unidos – herdeiro da tradição poética inglesa –, discute-se, nas escolas, a poesia de um Dylan Thomas e não a música por vezes sofisticada de um Bob Dylan... Por aqui, entretanto, para escândalo do próprio reino animal – sem o homem –, começa no ensino médio o estudo da “poesia” de um primata do porte de Gabriel, o Pensador. Não que alguns compositores populares deixem de ser, também, poetas, como é o caso do genial Elomar, criador de um idioma próprio tanto na letra de suas canções como na música. Ou o singular exemplo de Orestes Barbosa, notável pela criação de verdadeiros poemas para a música popular como a letra de Chão de Estrelas. Em suma: poesia e música compreendem estatutos ontológicos próprios, assim como específicos valores. A letra de música – o nome já está dizendo – é o oposto simétrico da poesia, e mesmo quando esta é musicada – como muitos poemas de Bandeira o foram por Villa-Lobos – é a expressão de uma realidade autônoma dentro da literatura.
Poesia e música possuem estatutos ontológicos próprios, assim como específicos valores
toda a poesia, até a Idade Média,
tinha como meio de transmissão a interação pessoal. Nessa época, ela se assemelhava a um jogo participativo, que ocorria em momentos especiais nas vilas e nas cortes; era cotidiana em sua linguagem e visão de mundo, geralmente ligada à música e fundamentalmente sociável. Doutorando em Com o livro e a leitura individual, letras (Teoria da literatura) na Ufpe a poesia ficou mais subjetiva e mental, e os assuntos mais “sublimes”. A música e a sociabilidade desapareceram porque o modelo de interação pessoal foi alterado para outro, baseado na comunicação à distância, através do impresso. No final do século 19, e durante a primeira metade do século 20, novas tecnologias conseguiram finalmente transmitir som e imagem, e a comunicação social, até então centrada no impresso e no livro, mudou consideravelmente. Agora, vivemos um momento histórico em que tanto o livro permanece com sua importância quanto as manifestações corporais de poesia têm seu espaço, devido aos novos meios. A poesia praticada hoje tem muitas faces. Letras e poemas, apesar da diferença de suporte, são exemplos de poesia – pois há o trabalho estético com a expressão verbal em uma e na outra. E embora ainda haja quem se negue a aceitar, cada vez mais têm sido aceitos trabalhos que estudam a poeticidade em canções, nos cursos de Letras no Brasil e no exterior. Não fosse assim, teríamos de rever a história da literatura, excluindo o que veio antes da imprensa, até o Trovadorismo – que só existiu cantado, e que mesmo quando foi escrito pela primeira vez, foi num ato de transgressão aos costumes da época, e não para ser publicado, apenas para registro. Hoje em dia, a maioria das pessoas começa na poesia através da canção – com Caetano, Raul e outros compositores; para depois chegar a Drummond, Bandeira, Leminski ou outro poeta publicado em livro. As letras são as formas mais populares de poesia, no mundo todo. E a história desse gênero no Brasil é tão exuberante – com criadores do quilate de Chico Buarque, Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Vinicius de Moraes... –, que é simplesmente impossível ignorar a poesia de suas “letras”.
Letras e poemas são exemplos de poesia, pois há trabalho estético com a expressão verbal em uma e na outra
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cinEMA
Safra recorde
Marcada pela autenticidade temática e estética, produção cinematográfica de Pernambuco expande seus horizontes, apostando na liberdade artística TEXTO Luiz Joaquim
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Foi lá no comecinho de 1996,
quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood indicou O qu4trilho (BRA, 1995), de Fábio Barreto, para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro, que o espectador brasileiro começou a levar mais a sério o que estava sendo realizado por aqui. Isso porque a categoria cinematográfica estava saindo de uma ressaca política dilacerante deflagrada pelo governo Collor de Mello na primeira metade daquela década. Essa ideia da validação do cinema brasileiro pela perspectiva do estrangeiro dá margem a uma profunda discussão na ordem da filosofia, psicologia ou qualquer outra corrente de estudo em que o homem está incluído. Não convém explicar o porquê de tal validação ainda hoje persistir, mas, aparentemente, dentro do cenário nacional, o perfil da atual produção pernambucana é o que menos parece se preocupar com isso, apesar de,
paradoxalmente, vir garantindo êxitos consecutivos no exterior. Haja vista a participação, em setembro último, de Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Marcelo Gomes (codirigido pelo cearense Karin Ainöuz), na mostra Horizonte do 66° Festival de Veneza e, logo depois, exibido na mostra Première Brasil do Festival do Rio (leia sobre o filme em matéria a seguir). Gomes já estivera sob os holofotes do Festival de Cannes, em 2005, na mostra Un Certain Regard com Cinema, aspirinas e urubus. Não é o caso de listar o alcance do cinema pernambucano no exterior, mas, sim, de observar que é a autenticidade temática e estética dessa produção fator responsável pela sua aceitação em lugares de cultura tão díspares como Rússia, Coreia, Filipinas, Romênia, Suíça ou Eslováquia, entre outros. Curioso é que, hoje, 13 anos após Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, ter sido eleito o melhor filme
no 29° Festival de Brasília, o cinema pernambucano não só mantém esse perfil da autenticidade como também o expandiu e aprimorou. No momento em que você lê esta reportagem, 43 filmes, no mínimo, estão nascendo ou prestes a nascer no Estado. O próprio Lírio se debruça agora sobre o roteiro do longa-metragem Sangue azul, que escreve junto ao conterrâneo Sérgio Oliveira e ao carioca Fellipe Barbosa, tendo coprodução com a paulista Drama Filmes, de Beto Brant. Em adiantada fase de tratamento, o roteiro do trio fala da incapacidade de amar. “Será rodado numa ilha e, para isso, estivemos em maio estudando as locações em Fernando de Noronha. Esse isolamento geográfico do local vai requerer um cronograma minucioso para as filmagens”, explica Lírio, que imagina o filme pronto em 2011. E adianta: “O título diz respeito à relação dos personagens com o mar”.
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Além de Sangue azul, Sérgio Oliveira, parceiro de Renata Pinheiro em diversos projetos, como o curta Superbarroco (2008), presente na Quinzena dos Realizadores em Cannes, trabalha em outro roteiro ao lado dela. Desta vez, para um longa chamado Vago. Foi a propósito da visibilidade em Cannes, que Renata foi convidada pelo Festival de Sundance, nos EUA, e pelo asiático NHK, a submeter seu novo projeto a uma apreciação. “O filme fala de uma artista plástica, de como ela lida com sua obra, e como perambula no dia-a-dia pelo mundo, que está sempre oscilando para a realidade”, conta a cineasta, também consagrada diretora de arte. Já o antigo parceiro de Lírio em Baile perfumado, Paulo Caldas, concentra-se na captação de recursos para rodar Amor sujo (nome provisório) em fevereiro e março de 2010, com locações nos bairros recifenses de Casa Forte, Casa Amarela e Nova Descoberta. “É uma história de
Foi com a indicação de O qu4trilho ao oscar de 1996 que o público começou a valorizar a produção de cinema nacional amor contemporânea. Acontece entre um padre e uma violoncelista clássica de Minas Gerais, que vem ao Recife se apresentar no Teatro de Santa Isabel”, diz Paulo, confirmando apenas um nome no elenco, o de Maria Padilha. Nesse projeto, Paulo trabalha com Amin Stepple e Pedro Severien, de uma geração mais nova e que também desenvolve o roteiro de outro longa, o seu primeiro. “O nome ainda é temporário: Dinâmica de grupo. Já terminamos a fase de pesquisa. Vai ser protagonizado por um bandido que
chega à terceira idade vivendo o conflito de sua vida pregressa com a da velhice”. Outro roteiro de Severien, com Luiz Otávio (Lilo) Pereira, para um longa, é o ainda seminal Fim de semana no paraíso perdido. Antes dos dois trabalhos, no início de 2010, ele finaliza o curta O homem planta. “É uma espécie de comédia ecológica de humor negro na qual o híbrido de um ser humano com um vegetal tenta se adequar à sociedade”, adianta. Trata-se de uma animação tradicional em 2D sobreposta em fotos reais, desenvolvida ao lado de William Paiva, do Núcleo de Animação da Faculdades Integradas Barros Melo (Aeso), em Olinda. Pedro e Daniel Aragão – que em agosto representou Pernambuco no 37° Festival de Gramado com o curta Não me deixe em casa e agora roteiriza o longa Boa sorte, meu amor – têm o perfil típico da nova geração de realizadores pernambucanos dos últimos cinco anos.
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A lógica em seu set de filmagem é a da simplicidade (sem ser simplista), com poucos integrantes, seja pela falta de recursos, seja por uma intenção estética.
URBAnoS e PRoLÍFeRoS
Um dos primeiros a assumir essa postura foi Kleber Mendonça Filho, que a pôs em prática no seu primeiro documentário em longa-metragem Crítico (2008). Mas, para seu primeiro longa de ficção, O som ao redor, o processo deve ser diferente. Contemplado com o 2° Edital do Audivisual de Pernambuco – que beneficia este ano 13 curtas e 10 longas do Estado –, o novo trabalho de Kleber aguarda a confirmação de outros aportes para que tire do papel a história que criou, situada numa rua do bairro de Setúbal. “O que me interessa em O som ao redor é pensar sobre a repetição urbana de uma mentalidade rural como marca muito forte de nosso Estado”, explica. Enquanto a verba não chega, o
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Luci Alcântara prepara o longa O melhor documentário do mundo, que brinca com o orgulho dos pernambucanos crítico e cineasta tratou de concluir o “documentira” Recife frio, no qual mostra a consequência sofrida pela capital do frevo e por seus habitantes quando a primeira deixa de ser uma cidade tropical, vivendo sob uma constante baixa de temperatura. A intenção é lançar este novo curta em novembro, no 42° Festival de Brasília. Menos sofisticado que Recife frio foi Menina do algodão (2003), experimento codirigido com Daniel Bandeira, que trouxe Kleber ao universo dos realizadores após um distanciamento de seis anos depois de Enjaulado (1997). Bandeira, Juliano Dornelles, Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso formam a produtora Símio Filmes, e figuram como um dos grupos mais ativos e talentosos da nova geração. No final de setembro, Mascaro e Pedroso apresentaram seus novos rebentos ao Brasil, respectivamente, o longa Um lugar ao sol e o curta A balsa, na 1ª Semana dos
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Realizadores, mostra paralela do Festival do Rio de Janeiro. Enquanto isso, Dornelles trabalha na edição de Mens sana in corpore sano. O curta insere-se na categoria do fantástico, tendo como mote o conflito entre o corpo e a cabeça de um fisiculturista. Já Daniel Bandeira finaliza o curta Tchau e bênção, sobre o doloroso fim de um relacionamento amoroso, e corre atrás de elenco e locações no Rio de Janeiro para seu segunda longa, Propriedade privada. Assim como a Símio, a Trincheira Filmes tem também o perfil prolífero e jovial, reunindo três cineastas – Leo Lacca, Marcelo Lordello e Tião – com idades abaixo de 30 anos, cujas obras, juntas, já circularam por mais de 10 países. O mais recente trabalho, lançado em setembro, foi Vigias, de Lordello, que documenta a rotina desses seguranças noturnos. A obra saiu em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco, que também
contemplou um projeto independente de Marcos Enrique Lopes chamado Janela molhada, sobre a restauração de filmes pré-Ciclo do Recife (1923-1931). Lordello também trabalha na ficção Eles voltam, enquanto Lacca já desenvolveu o cronograma de filmagens e começou a rodar o curta Eu estarei te esperando (nome provisório), protagonizado por Renata Roberta. Ao mesmo tempo, Lacca conta com a seleção pelo Edital do Longa-metragem de Baixo Orçamento do Ministério da Cultura para rodar o primeiro longa, ainda sem título, que dialoga com o universo de seu trabalho anterior Décimo segundo (2007). Já Tião concentra-se em Animal político, curta com locações urbanas e rurais, que define como “uma busca pelo conhecimento e pelo autoconhecimento”. Ele colabora também na animação com massa de modelar Dia estrelado, de Nara
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Páginas anteriores 01 ReALizAdoReS
paulo caldas, amin stepple e pedro severien trabalham em Amor sujo
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PARceRiA
camilo cavalcante e cláudio assis correm atrás de recursos para a realização em conjunto de novo filme
Nestas páginas 03 O rOchedO e a estrela
documentário fala sobre a primeira colônia judaica das américas
”docUmentiRA”
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exPeRimento
o curta Homem-planta mistura animação tradicional com fotos
LonGAS
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O pacific
em PRé-PRodUção
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mASSA de modeLAR
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Recife frio, do crítico e cineasta Kleber mendonça filho
O QUE VEM POR AÍ
marcelo pedroso realizou documentário a bordo de um transatlântico Dia estrelado, de nara normande, é inspirado em pintura de van gogh marcelo lordello/divulgação
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Normande, inspirada na pintura A noite estrelada, de Van Gogh, para falar da aridez na vida de uma família.
cineBioGRAFiAS
Mais adiantado está História de um valente, de Cláudio Barroso, cujas filmagens iniciaram em setembro. Trata-se de um resgate da vida do líder comunista pernambucano Gregório Bezerra (1900-1983), protagonizado por Jackson Antunes e com Nelson Xavier no elenco. Outro cinebiografado a ganhar as telas é o filósofo pop Jomard Muniz de Brito. O filme vem pelas mãos da documentárista Luci Alcântara em JMB, o famigerado. Luci também prepara o longa O melhor documentário do mundo. O título brinca com o próprio tema investigado, que vem a ser a ideia do superlativo na cultura pernambucana. Quem terminou em setembro as filmagens de outro documentário, para
a TV, foi a veterana Adelina Pontual. Chama-se Rio Doce, CDU. O nome é o mesmo de uma linha de ônibus da região metropolitana do Recife, a partir da qual a diretora investiga o cotidiano de seus usuários. Da mesma geração de Adelina, Hilton Lacerda prepara o roteiro do longa de ficção Tatuagem, que se passa em 1978, tendo como principal cenário um lendário bar gay que existiu na capital pernambucana. Mais jovem que Hilton, mas com um currículo que já soma 13 anos de história no audiovisual do Estado, Camilo Cavalcante vai lançar o curta Ave Maria ou a mãe dos sertanejos – outro olhar para a proposta de seu anterior Ave Maria ou a mãe dos oprimidos (2003) –, além de buscar recursos para seu primeiro longa A história da eternidade, homônimo do curta de 2003. Camilo tem trabalhado com Cláudio Assis, cineasta celebrado como um dos mais viscerais da região
• Chão de estrelas, de cláudio assis • Febre do rato,de cláudio assis • Sangue azul, de lírio ferreira • Amor sujo, de paulo caldas • Dinâmica de grupo, de pedro severien • Fim de semana no paraíso perdido, de pedro severien • Boa sorte, meu amor, de daniel aragão • O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho • Propriedade privada, de daniel Bandeira • Décimo segundo, o longa (título provisório), de leo lacca • Tatuagem, de Hilton lacerda • A história da eternidade, o longa, de camilo cavalcante • Era uma vez Verônica, de marcelo gomes • Roliúde, da produtora cabra Quente filmes • Téofilo, de Josias saraiva monteito neto em PRodUção • O melhor documentário do mundo, de Luci Ancântara • Carranca de acrílico azul piscina, de Marcelo Gomes e Karin Ainoüz • História de um valente, de Cláudio Barroso em PÓS-PRodUção • Cumadre Fulozinha e a rabeca encantada, de Ademir di Paula • O rochedo e a estrela, de Kátia Mesel • Um lugar ao sol, de Gabriel Mascaro
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con especial ti nen te#44 O QUE VEM POR AÍ cURtAS e médiAS em PRé-PRodUção • A vida plural de Layka, de Antônio Flávio Tabosa • Animal político, de Tião • Café Aurora, de Pablo Polo • Calma monga, calma, de Pretrônio Freire • Do morro, de Mykaella Plotkin • Eles voltam, de marcelo lordello em PRodUção • Homem-planta, de pedro severien e William paiva (animação) • JMB, o famigerado, de luci alcântara • Eu estarei te esperando, de leo lacca • Dia estrelado, de nara normande (animação) em PÓS-PRodUção • Rio Doce/ CDU, de adelina pontual (média) • Bob Lester, de márcia mansur • Azul, de eric laurence • Poeta urbano, de antônio carrilho • Incenso, de ruth maria coelho • Dia de clássico, de rafael travassos • Recife frio, de Kleber mendonça filho • Mens sana in corpore sano, de Juliano dornelles • Tchau e bênção, de daniel Bandeira • A barca, de marcelo pedroso • O pacific, de marcelo pedroso
e do país. Claudão, como é conhecido no meio, aguarda o resultado de outros aportes até o final do ano para rodar seu terceiro longa Febre do rato, escrito com Hilton. Com a mesma atmosfera tensa dos anteriores Amarelo manga (2003) e Baixio das bestas (2007), o novo trabalho vai nos colocar no universo de um poeta marginal anarquista, que anda pelo mundo questionando a acomodação das pessoas. “Com mais R$ 300 mil já podemos rodar Febre do rato. Enquanto o dinheiro não vem, estou escrevendo com
Paulo Lins, de Cidade de Deus, o roteiro de um longa infantil chamado Chão de estrelas, no qual quero falar de lendas brasileiras, como o Saci, e entender qual é o desejo das crianças de hoje”, surpreende Cláudio. Assim como o dele, outros projetos aguardam o complemento de recursos para entrar na fase de finalização, ou mesmo de produção. Nessa situação encontram-se os curtas Azul, de Eric Laurence, Poeta urbano, de Antônio Carrilho, Café Aurora, de Pablo Polo, A vida plural de Layka, de Antônio Flávio Tabosa, Do morro, de Mykaella Plotkin, os longas de Kátia Mesel (O rochedo e A estrela) e de Marcelo Gomes (Carranca de acrílico azul piscina). Vale dizer que, em certa medida, os recentes filmes pernambucanos, quase que em sua totalidade, recebem verba do Governo do Estado via Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) – seja antes, durante ou na finalização da produção. Não é à-toa que a categoria aguarda com ansiedade a divulgação da instituição, prometida para este mês, das novas regras de um edital inserido no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) específico para o audiovisual, com investimentos no valor de R$ 6 milhões. Uma cifra mais robusta que os R$ 4 milhões do ano passado, estes já destinados a 47 projetos da área, incluindo produtos para TV, além de ações educativas e cineclubes. Luciana Azevedo, presidente da Fundarpe, ressalta que essa visão sistêmica do Governo sobre o setor é o seu grande trunfo. “Não é um trabalho só de fomento, mas também de difusão, fruição e preservação que já estamos fazendo em 94% dos municípios do Estado”, aponta. Mas há quem corra, em Pernambuco, por fora desse processo. Em maio, Ademir di Paula começou as gravações de seu segundo longa-metragem Cumadre Fulozinha e a rabeca encantada, espécie de sequência do terror que lançou em 2007, Cumadre Fulozinha. O novo filme terá mais humor que horror, embora ainda conte com personagens folclóricos, como o Caipora, além de ser rodado no interior do Estado, sem nenhum recurso público, mesmo com o orçamento de R$ 473 mil. É o cinema em sua mais pura audácia e inventividade em ação.
Artigo
AlExAndRE figUEiRôA A fEbRE dO cinEMA no final da década passada, o cinema feito em Pernambuco vivia a euforia do reinício da produção local e colhia os louros do sucesso do longa Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, um marco da então Retomada do Cinema Brasileiro, e dos diversos curtas-metragens realizados no Estado, os quais, pela indiscutível qualidade artística, eram sinônimos de prêmios em festivais e mostras. O momento apontava para uma ruptura dos modelos estéticos estabelecidos, com os cineastas levando para suas obras um olhar agudo e uma boa dose de inventividade, escapando de certa previsibilidade temática focada em questões regionais, calcada apenas em parâmetros saudosistas e construindo uma identidade múltipla aberta a outros universos e o uso de uma linguagem sintonizada com o audiovisual contemporâneo. Algumas das preocupações vigentes na época concentravam-se, por um lado, em saber se, nos anos seguintes, aquela geração conseguiria manter o grau de inquietação artística que se traduzisse em imagens criativas, e, do outro, se os recursos e as condições econômicas e técnicas de produção permitiriam escapar de uma vez por todas dos eternos ciclos que marcam o cinema feito no Brasil. De lá para cá, muitos filmes depois, o mote “cinema da retomada” passou a ser questionado, assistiu-se à emergência de novos modos de realização com a crescente consagração do suporte digital e, para alívio de todos, o cinema feito por estas bandas continua dando frutos. As dificuldades não desapareceram por completo, mas Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Marcelo Gomes, Claudio Assis, Adelina Pontual, Camilo Cavalcante, entre outros, prosseguem realizando filmes e recebendo o reconhecimento da crítica e das mostras nacionais e
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divulgação
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internacionais em que são exibidos; e uma nova geração de realizadores amplifica e diversifica o cinema local, a exemplo de Leo Falcão, Daniel Aragão, Daniel Bandeira, Kleber Mendonça, Leonardo Lacca, Tião, Luci Alcântara, entre outros. Talvez estejamos ainda bem longe do ideal em termos de infraestrutura básica para a realização e exibição de filmes. A cadeia produtiva do audiovisual local é precária, só recentemente passando a contar com uma câmera em 35 mm; os financiamentos e prêmios
os cineastas locais flertam claramente com um modelo autoral, uma forma pessoal de construir suas narrativas melhoraram, todavia, eles são tímidos, se levarmos em conta os custos de qualquer produção; cursos superiores de formação foram implantados, mas ainda estão engatinhando; e a visualização dos filmes concluídos não alcança o público de forma massiva de maneira a garantir uma possível autossustentação da produção. Apesar desses senões, quem prossegue na luta usa as armas que marcam esta e todas as gerações precedentes de cineastas pernambucanos: imaginação e ousadia.
Graças ao destemor que mescla coragem e poesia tivemos nos últimos anos obras como Deserto feliz, de Paulo Caldas; Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes; e agora estamos vendo filmes do quilate de O homem que engarrafava nuvens, belíssimo documentário de Lírio Ferreira sobre o compositor e parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, que vem causando entusiasmo por onde está sendo mostrado, e Viajo porque preciso, volto porque te amo, parceria de Marcelo Gomes com Karin Ainouz, recebido com palmas calorosas no 66º Festival de Veneza. Imaginação e ousadia que nos deixam em grande expectativa para o próximo filme de Cláudio Assis – A febre do rato; o primeiro longametragem de Camilo Cavalcanti e para os próximos projetos de Hilton Lacerda, um dos roteiristas mais produtivos no cinema brasileiro atual. Essa continuidade na produção tem sido fundamental para consolidar Pernambuco como um centro produtor de relevância no país. Mas, é bom observar que tal reconhecimento é fruto de um olhar cada vez mais universal, lançado pelos artistas do audiovisual sobre as nossas contradições socioculturais e também uma tentativa constante de flagrar o imaginário poético de nosso povo a partir de uma elaboração cujas premissas dialogam com a interseção de temporalidades e espacialidades múltiplas. A exemplo do manguebeat, um marco neste novo panorama artístico do Recife
desertO feliz
filme de paulo caldas investe na ficcionalização de uma realidade nacional: o fluxo migratório via prostituição
contemporâneo, percebe-se claramente um projeto, uma movimentação quase existencial motivando os cineastas e todos os que giram em torno da realização fílmica, incluindo neste processo produtores, atores, montadores, diretores de arte etc. E mais: os cineastas locais flertam claramente com um modelo autoral, ou seja, são artistas que prezam em primeiro lugar uma forma pessoal de construir suas narrativas, mas que, ao mesmo tempo, este “ser autoral” não é resultado de um projeto visionário idealizado por um único nome, mas, sim, uma construção compartilhada, por conta da rede de solidariedade que faz circular os artistas em grupos de afinidade e trocas. Embora, do ponto de vista comercial, tal perspectiva de um cinema autoral revele-se menos eficaz como gostaríamos, sem nenhum bairrismo (afinal o cinema não é pernambucano, não é carioca, não é gaúcho, é apenas cinema), na cena audiovisual contemporânea brasileira é impossível não reconhecer o quanto as opções estéticas dos autores citados têm sido catalisadoras de uma atenção que distingue o que tem sido feito aqui e marca tais obras de uma forma positiva e instigante. São filmes que buscam dialogar com o novo, rompem barreiras estético-ideológicas e fomentam uma inquietação que encontra eco por onde passam, pois eles são filmes capazes de provocar discussões, desvelar outras formas de confronto com as questões vividas em nossos cotidianos. É claro que existem equívocos, mas há descobertas e escolhas deliberadas na forma de filmar, na maneira de tratar os temas, na articulação das narrativas, na escolha das trilhas, na montagem, as quais, pouco a pouco, vão delineando uma maturidade expressiva, cujo maior desafio é exatamente manter tal efervescência em constante transformação. Não temos bola de cristal para prever como estaremos daqui a mais 10 anos, porém, se persistirmos neste ritmo, teremos, certamente, ainda muitas agradáveis surpresas.
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lOngA-MEtRAgEM Passagem afetiva pelo (de)sertão
Viajo porque preciso e volto porque te amo, realizado por Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, mescla ficção e documento em narrativa de um viajante à flor da pele TEXTO Marcelo Costa
na cerimônia de entrega do prêmio Robert Bresson a Walter Salles, na 66ª edição da Mostra Internacional de Cinema de Veneza, ocorrida em setembro, o cineasta brasileiro fez um discurso inflamado sobre a importância do cinema autoral como possibilidade de viagem, de descobrimento capaz de reforçar identidades e, sobretudo, de possibilitar o acesso a diferentes povos e culturas dispersos no mundo. Coincidentemente, no mesmo dia, foi exibido na Mostra Horizonte do festival o filme Viajo porque preciso e volto porque te amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, que, de certo modo, consegue dizer isso de forma mais enfática através de imagens e sons.
Após uma experiência de 10 anos, desde o início da captação, o filme finalmente parece ter encontrado seu estado de maturação – algo que fica evidente durante a projeção. É interessante pensar que esse primeiro projeto idealizado pela dupla de realizadores só veio a ser lançado depois de dois longas-metragens de Aïnouz (Madame Satã e O céu de Suely) e do filme de estreia de Gomes (Cinema, aspirinas e urubus), o que possivelmente contribuiu para o amadurecimento do projeto. “Existia a necessidade de refletir o cinema como linguagem e esse é de fato o nosso primeiro filme; ele tem o frescor, as longas horas de material filmado em diferentes formatos, a angústia de
não saber fazer”, revelou Aïnouz na conferência de imprensa do festival. O longo processo também parece estar relacionado com o vínculo afetivo e a experiência de (auto)conhecimento provocada pelo material. Sempre presente na memória familiar dos realizadores, o sertão despertava-lhes uma profunda curiosidade e o desejo de desbravar a região que lhes permeava o imaginário. Assim, eles partiram numa viagem reveladora que permitiu o livre registro das imagens, submetidas apenas à observação de um olhar sensível e emotivo. O primeiro resultado disso foi a versão em média-metragem Carranca de acrílico azul piscina, um compêndio de imagens e sons cujo sentido baseava-se na maneira como eles se relacionavam entre si, sem maiores indicações narrativas. “Após a revisão das imagens, identificamos a necessidade de redimensionar o material… e então nos colocamos o desafio de voltar àquele lugar de 10 anos, procurando entender a relação e refletir sobre o amor”, contaram os realizadores. Daí surgiu a ideia de incluir um personagem, de mesclar o cinema documental com a figura de um viajante à flor da pele em um lugar desconhecido. “Foi o ponto de partida para a construção de um diário, de um relato subjetivo. O diário
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A diStÂnciA
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o sertão sempre esteve na memória familiar dos diretores, como atesta o olhar emotivo do filme marcelo gomes e Karin aïnouz: parceria radicaliza na câmera subjetiva
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não é pra ser lido, é pra ser guardado como um segredo. Por isso a viagem contada, de certo modo, é ficcional”, afirmou Aïnouz, ao ser indagado por um jornalista italiano se o filme era totalmente documental. Nesse sentido, o filme parece ter como referência o cinema experimental proposto por Chris Marker, sobretudo em Sem sol (Sans soleil), no qual um cinegrafista narra as suas percepções em viagens pelo mundo. Inegavelmente, esse espírito de liberdade está presente em Viajo porque preciso..., pontuado pelas sensações e observações do narrador, que permitem traçar um caminho, ainda que bastante incerto, incompleto e vazio. Curiosamente, a partir do momento em que o filme investe nesse “artifício” da narração em off, ele ganha verdade através de uma maior identificação emocional com a história. Trata-se de um exemplo concreto de como a distância entre ficção e documentário é indefinida e desimportante na construção da verdade de um filme. “Kiarostami fala muito do efeito de verdade, a ideia de mentir bem. Não importa o processo para a construção do filme, o que importa é o efeito de real que existe dentro dele, independentemente de que ele seja uma ficção ou documentário”, complementou Gomes.
cÂmeRA SUBJetiVA
O personagem em questão é o geólogo José Renato (Irandhir Santos), enviado para o sertão com o objetivo de analisar a viabilidade de transposição das águas do rio naquela região árida. A escolha por um geólogo foi motivada pela relação que ele estabelece com a terra e, no caso do filme, com a questão da transposição das águas do rio – aqui tomado como mais um elemento transformador da modernidade, capaz de alterar a paisagem de maneira irreversível. Segundo Gomes, os relatos de Euclides da Cunha e de Graciliano Ramos também serviram como referência para compor as descrições e conclusões geológicas do personagem. Apesar da narração presente durante todo o filme, o personagem não aparece diante da câmera a não ser na sugestão de uma sombra. Na verdade, estamos inteiramente submetidos ao seu olhar, ao seu campo de visão, numa radicalização da câmera subjetiva no cinema, que interage com o mundo claramente em determinados momentos. Esse foi o mecanismo encontrado pelos realizadores para dar vazão às suas próprias impressões a respeito da região. Embora tivessem contato através dos relatos orais de familiares, a sensação que prevalece é a de uma
intimidade estrangeira, de alguém que mantém um vínculo a distância. Essa ideia é potencializada quando é revelado que o narrador também viaja para se distanciar de uma perda, de uma desilusão amorosa cuja ferida ainda está aberta. A frase estampada no parachoque de um caminhão, e que dá nome ao filme, se flexiona para pontuar o estado de ânimo do personagem e deixar evidente a ideia da falta, da saudade – sentimentos inerentes aos viajantes. Imageticamente isso é bem-representado pelo vai-evem de caminhões na estrada vazia e pela fugacidade das relações pessoais estabelecidas no caminho, dando-nos a sensação de que as pessoas passam pelo filme, ou pelo personagem. A preocupação em retratar a paisagem humana da região torna o filme uma experiência ainda mais sensível e delicada. A maneira digna e desprovida de preconceitos com que o personagem observa e se relaciona com aqueles que passam por ele, ou pelas lentes das câmeras, tem um efeito emotivo interessante. É o homem que brinca com o menino em cima de um balcão, as pessoas dançando em um forró ou as prostitutas à beira da estrada, pessoas que trazem a identidade de uma região por vezes esquecida, mas que carregam consigo a melancolia de um lugar perdido entre grandes vazios espaciais e os elementos de uma pretensa modernidade. Ao ser questionado na coletiva de imprensa sobre qual conceito de sertão o filme abordava, Ainouz foi enfático. “A palavra sertão é complicada. O sertão era o lugar do qual minha avó falava e onde o pai do Marcelo nasceu. Neste caso, talvez fosse melhor pensarmos num desertão, numa travessia pelo deserto: o isolamento, a distância, o abandono.” É com essa consciência que o filme provoca uma experiência sensorial impactante e extremamente cinematográfica – no sentido de que as imagens reinvindicam a sua capacidade de dizer algo e construir sentido na maneira como se relacionam. Ao final, fica a impressão de que o cinema de fato nos permite viajar, como um mergulho profundo em diferentes realidades. Resta saber quem está disposto a mergulhar.
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rgb As sete faces de Jr. Black
Cantor, que se destaca como uma das melhores vozes da nova geração de músicos pernambucanos, aposta em diversos timbres na estreia solo texto Débora Nascimento fotos Flora Pimentel
Felipe S, do Mombojó, abre a porta do elevador e grita: “Chegou!”. Ainda dentro do apartamento, na cozinha, Jr. Black não consegue responder, nem andar, após ter se engasgado com o último gole do suco de uva de caixinha. Sem fôlego, tem um terrível acesso de tosse. “Cara, pensei que fosse morrer. Aí veio aquele pensamento: se for para ir, estou pronto. Foi quando passou”. Forças superiores não lhe reservaram o mesmo destino de Mama Cass (cantora do The Mamas & The Papas que, segundo a lenda, morreu por causa de um pedaço de sanduíche). Durante o perigoso evento, o cantor teve, pelo menos, uma preocupação (além de morrer, claro): RGB, o primeiro disco solo ainda não estava pronto. Agora, alguns meses depois, o CD está finalizado, só aguardando a segunda leva da verba do Funcultura para a prensagem (o lançamento está previsto para até o final deste ano). E o prosaico acontecimento serviu de inspiração para a criação de uma das faixas, Last night Jesus came into my kitchen, um gospel com letra totalmente em inglês, sobre alguém que entrega sua alma ao Criador. Enquanto essa canção mostra um “momento de revelação”, outra foi feita para um amor que se foi (a delicada Rampa, com participação de Vitor Araújo), e mais outra, o
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funk Dança bonito, festeja um final de semana na praia com muita badalação. As letras, todas escritas por Black, passeiam por diversos temas: telúricos, existenciais, gastronômicos, amorosos, sensuais. Não é de se estranhar que Jr. Black crie suas músicas a partir de motivos tão diferentes. Essa variedade de sentimentos e situações faz parte da personalidade de José Wilson de Castro Timóteo Júnior. Não se apegar a rótulos pode ser seu lema. “A gente tem uma essência. Mas não pode ficar preso a ela, tipo ‘nasci para ser isso’”, considera. A prova está no histórico: bacharel em Direito, locutor de rádio e TV, professor de inglês, ator, letrista, compositor e cantor. No entanto, essa última faceta é a que lhe dá maior visibilidade, sendo considerado um dos (ou, quem sabe, “o”) melhores cantores da nova geração de músicos pernambucanos, e que também libera sua voz no grupo Mesa de Samba Autoral, no A Roda (cujo disco ainda vai ser lançado), no projeto Chefe Ladrão (cantando samba gangsta) e na banda do DJ Dolores, com quem seguiu em turnê pela Europa, em 2008. Em RGB (red, green, blue na síntese digital de cores), o artista mobiliza seus personagens vocais. Como se fosse um Peter Sellers do canto
RGB jr. black Joinha Records Reúne em 11 faixas: soul, funk, R&B e eletro-rock
encarna um vilão de desenho animado (quer ser dublador também), brinca inconscientemente (ou não) com o estilo de gente como Tim Maia, Barry White, Curtis Mayfield... Nos quase 45 minutos do disco, Black utiliza diversos timbres, dando o tom e o clima que quer em cada uma das 11 faixas. “Os produtores quiseram explorar mais o meu lado cantor”, conta. A Negroove, sua primeira banda, contava com o apoio de duas backing vocals. A produção do disco foi assinada pelo Sungatrio (leia-se Homero Basílio, Chiquinho e China, com quem divide um apartamento no Recife). A trinca do estúdio Das Caverna procurou o artista para produzi-lo, gravá-lo e lançar seu CD pelo Joinha Records. “Eles sugeriram fazer um trabalho mais tecnológico e sair da parada analógica, e também que eu deixasse o samba de lado e investisse mais na música negra americana”, conta Black.
De natureza dançante, RGB aposta no soul, funk, R&B e até no eletro-rock da faixa-título, que abre o disco bem para cima. O clima de pista de dança segue com Sha-Layam! (com referência à música árabe), Muito além do cenozóico (break beat com ares de Timbaland e presença de Catarina Dee Jah), Batida de mocotó (house, com backing de Cláudia Beija), Uzumaki girl (a guitarra de Marcelo Machado, do Mombojó, surge com um quê de Ennio Morricone) e Ice man (tem o baixo de Dengue, da Nação Zumbi). Cada faixa recebeu um tratamento especial, com o acréscimo à receita guitarra-baixo-bateria do tempero de sintetizadores, samplers, bandolins e até harpas e oboés. Gravado e mixado no Recife e em São Paulo, e masterizado no cultuado Classic Master (SP), RGB é fruto dessa forma colaborativa de se fazer música atualmente no Brasil e no mundo. Tem a cara de uma nova geração de bandas e artistas, baseada em coletivos e que tem como principal característica a participação espontânea e camarada dos amigos. Afinal, amigo não serve apenas para dar tapa nas costas quando a pessoa se engasga.
@ continenteonline Ouça as faixas RGB e Muito além do cenozóico no site www.continenteonline.com.br
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JARDIM BOTÂNICO Mata Atlântica em meio à pedra e cal Ainda que não tenha a exuberância de alguns dos famosos exemplares do gênero, como o do Rio de Janeiro, ele oferece ao visitante momentos de desfrute de flora e fauna nativas TEXTO Danielle Romani FOTOS Otávio de Souza 01
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o Jardim Botânico do Recife é
um espaço ainda pouco explorado pelos habitantes da cidade. Criado no dia 1º de agosto de 1979, por meio do decreto municipal 11.341, o local, que conta atualmente com cerca de 26 hectares de área, é um dos últimos redutos de Mata Atlântica nativa, escondido em meio ao trânsito pesado da BR-232, no Curado, zona oeste do Recife. Nele habitam variadas espécies de animais e aves, respira-se um clima agradável, percorrem-se trilhas, nas quais é possível observar centenas de espécimes vegetais locais e de outras culturas e países. Reaberto ao público no final do ano passado, após cerca de dois anos de reformas e investimentos, o Jardim Botânico recifense ainda é modesto, se comparado a espaços seculares como o faustoso – e artificial – Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Mas, diferentemente da grande parte dos outros jardins espalhados pelo território nacional, ele é natural, composto quase que essencialmente pela flora e fauna da Mata Atlântica, ou seja, não foi plantado ou projetado pelo homem. No espaço, é possível observar árvores nativas como sapucaias, ubaias, mungubas, visgueiros, e também se deparar com espécies quase extintas, a exemplo de paus-brasil, jacarandás e paus-de-jangada. É muito provável que o visitante se depare com grupos de saguis, coloridas borboletas e, eventualmente, com preguiças, tamanduás e tatus, além de poder ver e ouvir uma boa variedade de aves, como canários e sabiás. Os que apreciam o contato com a natureza e a prática leve ecoesportiva vão gostar do local. Atualmente, estão à disposição 17 tipos de trilhas na mata, com percursos que podem durar de 20 minutos até cerca de três horas de caminhada. Todas, orienta a administração do jardim, feitas sob a supervisão de biólogos e monitores preparados para esclarecer os visitantes sobre as peculiaridades de fauna e flora. Há, no entanto, uma trilha que pode ser feita sem monitoria, a mais simples e curta, feita em percurso com calçamento. Ainda que essencialmente natural, durante a reforma, foram feitas as primeiras instalações de canteiros
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exóticos que futuramente o habilitarão a se tornar um Jardim Botânico nos moldes oficiais, com mudas e espécies de várias partes do mundo. Diante disso, os visitantes poderão conferir espaços temáticos, a exemplo do Jardim Ecumênico, composto por plantas utilizadas em rituais religiosos de vários continentes. No canteiro indígena, por exemplo, podem-se conhecer mudas de imbuia vermelha, pau-ferro e aroeira-de-praia, esta última a base do popular elixir sanativo. No recanto dedicado às plantas usadas em rituais de origem africana, foram plantadas ervas como a guiné, o pinhão-roxo e arruda. O cristianismo também tem seus exemplares: lá se pode ver de perto a famosa coroa-de-cristo, repleta de espinhos e que, segundo a Bíblia, foi fixada em Jesus durante a crucificação. Outra atração é o Jardim Sensorial, destinado principalmente aos deficientes visuais, que é povoado por espécies aromáticas, odoríficas e táteis. Nesse recanto, a intenção é que os visitantes, cegos ou não, possam sentir os aromas, perfumes e texturas particulares de espécies encontradas.
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Há placas e informações embraille no umbral dos canteiros. O binômio natureza-comunidade, premissa de sustentabilidade, está sendo trabalhado pelos técnicos do Jardim Botânico, que faz divisa com bairros carentes como Totó, Sancho e Planeta dos Macacos. Uma das estratégias de aproximação é a oferta de laboratórios de informática para os jovens dessas localidades. Em dependências instaladas no próprio local, adolescentes são incentivados a participar de jogos educativos e a conhecer temáticas ambientais.
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Em termos de infraestrutura e cumprimento da Resolução 339, criada pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), em 2003, o espaço recifense ainda está engatinhando para chegar aos padrões de excelência previstos na regulamentação dos jardins botânicos brasileiros. Ele ainda não consta de nenhum dos três níveis criados, do A (ao qual pertence o Jardim Botânico do Rio de Janeiro) ao C. “Ainda
estamos no que chamamos de esfera de implantação. Para alcançar o patamar do Rio, será necessária uma série de providências, muito tempo e investimentos”, explica o diretor de Meio Ambiente da Prefeitura do Recife, o biólogo Mauro Buarque. Para chegar ao nível C, o mais baixo, o jardim recifense precisará possuir coleções especiais representativas da flora nativa em estruturas adequadas; desenvolver programas de educação ambiental (o que faz parcialmente), ter herbário próprio ou associado com outra instituição; possuir sistema de registro para seu acervo; desenvolver programa de pesquisa visando à conservação das espécies e possuir quadro técnico-científico compatível com suas atividades (neste caso, técnicos aprovados em concurso já se encontram trabalhando no parque recifense), entre muitas outras competências exigidas. Mauro Buarque sabe que existe um longo caminho pela frente. Mas ressalta que o espaço ganhou atenção e investimentos nos últimos anos. Ele diz que a Prefeitura do Recife está
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negociando com o Exército a integração de terras próximas, o que elevaria o parque a uma extensão de 110 hectares. “Trata-se de uma área sem potencial urbanístico, portanto; para evitar invasões, a única saída é anexar e preservar”, defende. O público do parque é composto, essencialmente, por alunos de escolas públicas e particulares, e pesquisadores – ornitólogos e botânicos, sobretudo. Turistas são raros. A média de visitação até antes de 2008 era de duas mil pessoas por ano. De janeiro até agosto de 2009 foram registrados 10 mil visitantes. “Cinco vezes mais, em um período bem menor”, destaca o diretor. Este já é um indicador do interesse crescente da população pelos ambientes naturais preservados.
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Neste enlace, o pau-de-pombo foi estrangulado pela gameleira
Nestas Páginas 02 educação
Estudantes durante visita monitorada ao Jardim Botânico
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Mutante
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fauna
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cidadania
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SuStentaBiLidade
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JaRdiM BotÂnico do Recife BR 232, Curado, Recife (Em frente ao Quartel General do 4º Exército) Aberto de seg a dom, das 8h30 às 15h30 Entrada gratuita Tel. (081) 3232.2529 E-mail. dirmam@recife.pe.gov.br
O camaleão é um dos répteis observados no local O fruto da sapucaiade-pilão serve de alimento para pequenos mamíferos Saguis fazem a festa dos visitantes acorrendo em bando No Jardim Sensorial, informações em braille estão gravadas no corrimão Oficinas sobre o meio ambiente reúnem jovens carentes
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aramis trindade
Gostinho de Guiness em festa trintona Iniciada em 1978, trajetória do ator tem na versatilidade uma das principais marcas, como pode ser conferido em sua participação em oito novos longas-metragens que estão atualmente em cartaz texto Gilson Oliveira
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Perfil
indiferente à cultura dos números
redondos, segundo a qual somente os terminados em zero (10, 20, 30...) podem servir de motivo para comemoração, Aramis Trindade está festejando os seus 31 anos de atividades artísticas. É uma festa sem convites formais para os amigos e a imprensa. Festa no interior – no interior do próprio artista. Mas quem disse que as outras pessoas não têm acesso? Basta ter uma conversa com o ator, de preferência, longa. Pelas energias positivas que Aramis coloca no ar, a experiência é recomendável principalmente para jornalistas, que, por uns bons momentos, esquecem até que o tão suado diploma – de repente, está migrando da moldura para a lixeira. Difícil é seguir um roteiro articulado de perguntas quando o entrevistado é, entre outras coisas, um talentoso – e inveterado – imitador. Uma pergunta sobre política pode ser respondida por ninguém menos que o “presidente Lula”. Já assuntos culturais fazem desfilar nos ouvidos do repórter vozes como as de “Ariano Suassuna”, “Alceu Valença” e “Roberto Carlos”. Mas é com a própria voz que Aramis Trindade responde sobre sua atual realidade pessoal e profissional: “O segredo não é correr atrás das
borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você”. Em tom igual, ao mesmo tempo filosófico e poético, o ator revela que esses versos do poeta gaúcho Mário Quintana expressam bem a filosofia que decidiu adotar como ser humano e artista: “Você precisa cuidar de si, em todos os sentidos... do seu corpo... de sua mente... No meu caso, isso tem reflexos muito positivos também no ator, pois melhora da voz ao equilíbrio emocional, o que termina estabelecendo bases seguras para se alcançar determinados objetivos. Eu gosto muito de regar o meu jardim, para que as borboletas venham”. Uma frase que também se transformou em lema existencial e artístico é “selecionar para ser selecionado”. De acordo com Aramis, na hora em que as pessoas fazem uma opção baseada no valor e na qualidade das coisas, conseguem deflagrar um círculo virtuoso em que as coisas boas também começam a optar pelas pessoas. Não dá para deixar de reconhecer que esse processo seletivo esteja dando bons frutos. Basta constatar que, nos últimos tempos, a figura magra e alongada do ator é uma das mais presentes nas telinhas e telonas brasileiras. Há 11 anos no elenco de atores
da TV Globo, Aramis tem mostrado toda a sua versatilidade na emissora participando de séries, como Sítio do Picapau Amarelo; novelas, a exemplo de Cama de gato; e quadros do Fantástico, caso de Domingo é dia de... Mas é na área cinematográfica que, em 2009, o maior número de “coisas boas” parece ter “optado” por Aramis Trindade.
De coRoinHA A cAPetA
Quatro longas-metragens prestes a estrear e mais quatro recém-iniciados. Diante da informação de que o ator está em oito novos filmes, dada por ele próprio, ocorre ao repórter uma pergunta do tipo: “Você já foi procurado por alguém do Guiness Book?”. A indagação, baseada no fato de que não é comum um artista participar de tantos filmes em tão pouco tempo, termina não sendo feita, apesar de ter deixado um gostinho de Guiness no ar, pois é interrompida pela festa interior do artista: “Véio, como muitas outras crianças, eu era fascinado pelo Sítio do Picapau Amarelo. Você não imagina como é legal, já adulto, viver intensamente essa história. Outra experiência muito boa é suceder ou compartilhar trabalhos com figuras pelas quais, também desde menino, tenho grande admiração, como Lima Duarte,
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Perfil O encontro com Chico Anysio se dá no primeiro dos quatro longas a ser lançados: Uma professora muito maluquinha, baseado em um livro homônimo de Ziraldo. No filme, com direção de Diler Trindade, Aramis interpreta o “coroinha” Pachequinho, fiel escudeiro do monsenhor Aristides, vivido por Chico Anysio. As outras produções em contagem regressiva para estrear são Reflexões de um liquidificador (dirigido por André Klotzel), Elvis & Madona (Marcelo Laffite) e Casamento brasileiro (Fauzi Mansur). As quatro novas produções concorrem para diversificar ainda mais a extensa galeria de personagens de Aramis: Cordel virtual, a luneta do tempo, com roteiro e direção de Alceu Valença; Nosso lar, dirigido por Wagner de Assis; História de um valente, de Cláudio Barroso (sobre a vida do líder comunista Gregório Bezerra); e o já citado Matraga, com direção de Vinícius Coimbra, inspirado na novela A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa, em que o ator representa o jagunço Flozino Capeta, do bando de Joãozinho Bebem, encarnado por José Wilker.
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Estar antenado com tudo que existe no mundo. Para Aramis, este é um dos fatores fundamentais para o desenvolvimento de um ator. “O teatro, como outras artes, nasceu da necessidade que o homem tem
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de imitar a natureza. Desde criança gostamos de imitar os bichos e as outras pessoas, a começar pelos nossos pais”, explica Aramis, que, por imitar personagens vivas, já passou por momentos insuspeitos. Um deles aconteceu em 1997, quando recebeu das mãos de Ariano Suassuna, na Academia Pernambucana de Letras, o prêmio do Conselho Estadual de Cultura pelo trabalho na peça Mamãe não pode saber, de João Falcão – na qual representou três personagens. Durante a entrega do troféu, ouviu do escritor: “Soube que você vive me imitando por aí. Gostaria que amanhã fosse à minha casa”. Mesmo desconfiado de que poderia receber uns “puxões de orelha”, o ator compareceu à residência do teatrólogo. O resultado do encontro não poderia ser melhor nem mais surpreendente: Ariano convidou Aramis para imitá-lo, ou melhor, representá-lo, em Curitiba, na peça A história de amor de Romeu e Julieta, em que atuava como narrador da história, no papel de Dom Pantero (homenagem a Dom Quixote, de Miguel de Cervantes). Uma das pessoas que assistiram à apresentação foi o crítico Nelson Sá, da Folha de S.Paulo, que fez grandes elogios ao ator. Outro que elogiou o
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Antônio Fagundes, Renato Aragão, José Wilker e Chico Anysio”. Lima Duarte foi Zé das Mortes na primeira versão de Paraíso, papel desempenhado por Aramis em recente remake da novela da TV Globo. Com Antônio Fagundes e Renato Aragão, o ator contracenou no seriado Carga pesada, também da Globo, e no filme Didi, o cupido trapalhão. José Wilker é um dos integrantes do elenco de Matraga, um dos filmes recentemente iniciados.
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imitador foi Alceu Valença, que, ao encontrá-lo no Recife, em um desfile do Galo da Madrugada, disse no microfone: “Você é melhor de mim do que eu mesmo!”.
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O primeiro papel representado por Aramis Trindade não teve nada a ver com humor. Foi, na verdade, bastante dramático. Principalmente para familiares e vizinhos. Aos cinco anos, durante visita à casa de amigos, ele cismou, simplesmente, de simular um
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desmaio. A encenação durou cerca de cinco minutos, mas demorou uma eternidade para os pais e as outras pessoas. A carreira artística propriamente dita começou em 1978, quando ele entrou no Circo da Raposa Malhada, em Nova Jerusalém, onde a família possuía uma fazenda. O primeiro personagem foi o palhaço Cocorote. “Sempre respiramos arte lá em casa”, lembra o ator, cujo avô, Aristófanes Trindade, era teatrólogo e jornalista. O pai, Bóris – renomado advogado, parceiro de juristas como Evandro Lins e Silva e o ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos –, aos 12 anos tornou-se “lanterninha” do Teatro Almare, de Barreto Júnior, função que exerceu até os 18 anos, quando foi promovido a bilheteiro. Pela ligação da família com o teatro, Aramis pode muito bem parodiar Orestes Barbosa e dizer: “Minha vida é um palco iluminado”. Aliás, palco e bastidores, onde sua mãe, Regina, durante anos coordenou espetáculos e comandou a equipe responsável pelos figurinos. Os filhos dele não negam o DNA. Vinícius (14 anos), Klaus (11), Roberta (6) e Marina (3) já estão se inserindo no universo artístico. Não é sem razão que o ator receita a arte como remédio para os males da
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PARA cRiAnÇAs
Como o palhaço Cocorote, com os pais, boris e regina, e o ator José pimentel em Reflexões de um liquidificador, prestes a estrear, no papel do investigador fuinha no Sítio do Picapau Amarelo, um dos personagens foi o visconde de sabugosa
humanidade, lembrando personagens de O burguês fidalgo, de Molière, peça do seu currículo. Em certo trecho do enredo, diz o mestre de música: “Por que acontecem guerras? Porque as pessoas não aprenderam a cantar”. No que é acompanhado pelo mestre de dança: “Porque os generais não aprenderam a dançar”. A múltipla relação de Bóris Trindade com o teatro também foi muito importante para Aramis, que o chama de “paitrocinador”. O neologismo refere-se ao papel de verdadeiro mecenas que o pai assumiu depois que, junto com o ator e produtor Paulo de Castro, fundou a Aquarius Produções Artísticas, responsável pela montagem de espetáculos como É, de Millôr Fernandes, Calígula, de Albert Camus, e Galileu Galilei, de Bertolt Brecht. Foi num dos grandes sucessos da Aquarius Produções Artísticas que se deu, em 1982, o batismo teatral de Aramis: a peça Aurora da minha vida, de Naum Alves de Souza, com direção de José Pimentel, um dos profissionais que influenciaram o jovem ator, ao lado dos também diretores Milton Baccarelli, Antônio Cadengue, Beto Diniz e José Francisco Filho. A projeção nacional começou em 1996, quando ganhou, no Festival de Brasília, um dos muitos prêmios de sua já extensa coleção por sua participação em O baile perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Em 1998, Aramis estreou na Rede Globo, na minissérie Auto da compadecida, de Ariano Suassuna, com direção de Guel Arraes, que depois ganhou uma versão cinematográfica. A série de convites que começou a surgir fez com que, em 2001, o ator se mudasse para o Rio de Janeiro, onde
integra o casting da Tudo de Bom Produções, junto com os também pernambucanos Lúcio Mauro, Lúcio Mauro Filho e Bruno Garcia. Ao se mudar para o Rio, Aramis Trindade já contabilizava a participação em trabalhos que, de várias maneiras, colaboraram para a dinamização da cultura pernambucana. É o caso do programa Gréia geral, que buscava resgatar a produção humorística do Estado e é considerado um dos precursores do estilo que consagrou grupos como o Casseta & Planeta.
ARte coMo DoAÇÃo
Tradicionalmente unida pela mente (devido ao trabalho intelectual desenvolvido em conjunto) e o coração (em razão da afetividade existente entre seus membros), a família Trindade, nos últimos tempos, está também muito ligada pelos rins. E este é um dos motivos dos festejos interiores de Aramis. “Doei um rim ao meu irmão Beto, e Borica, outro irmão, doou a Urbano, mais um irmão. Rapaz, a doação de um órgão é uma experiência tão transcendental que as campanhas talvez devessem se destinar principalmente às pessoas vivas”, diz o ator, que, após o transplante, deixou de beber e de fumar. “Acho que a arte em si é uma forma de doação, na medida em que, através dela, você pode ajudar a melhorar o mundo. Sinto-me muito feliz no papel de doador de arte e da vida”, comemora. Perguntado se o humorismo é também uma forma de contribuir para o bem da humanidade, Aramis encerra a entrevista declamando um texto, de autor não identificado, que acidentalmente descobriu ao comprar um cartão ilustrado com a imagem de um palhaço: “Se você tivesse acreditado na minha brincadeira de dizer verdades, teria ouvido verdades que teimo em dizer brincando. Falei muitas vezes como palhaço, mas nunca desacreditei da seriedade da plateia que sorria”.
@ continenteonline Ouça no site as imitações do presidente Lula, de Ariano Suassuna e de Alceu Valença que o ator Aramis Trindade improvisou durante a entrevista à Continente.
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cinema culto à telona no início do século 20 Há 100 anos, tinha início no Brasil o hábito de frequentar as salas de exibição que, além de promoverem a cultura e o entretenimento, serviam como espaço de convivência social
no início do século 20, chegavam ao Recife da belle époque as primeiras exibições cinematográficas na cidade. As engenhosas máquinas de projetar imagens vinham de companhias do exterior e funcionavam por temporadas em teatros, circos, festas de largo, hotéis, cafés, velódromos e casas de diversão. As projeções causavam espanto e euforia. O cinema provava ser um negócio promissor, o crescente interesse pelas exibições fazia com que as salas se multiplicassem pela capital. Na primeira edição do Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934), Gilberto Freyre informava que havia 18 cinemas na cidade, na segunda edição do mesmo guia (1942), esse número aumentara para 28 e, na terceira edição (1961), Freyre já relacionava um total de 41 cinemas na capital. Aos poucos, as pessoas mudavam o hábito de frequentar os teatros e começavam a acompanhar os filmes; o que já era febre na Europa. Nas primeiras décadas do século 20, os cinemas de bairro eram pontos de encontro dos recifenses e assuntos de conversas. Jornais publicavam colunas destinadas a comentar os filmes em cartaz e periódicos dedicados à sétima arte eram distribuídos nas salas dos cinemas. Não demoraram a surgir as primeiras produções cinematográficas locais. Entre 1923 e 1933, cerca de 120 filmes de ficção foram feitos no Brasil, 13 desses em Pernambuco. Embora
as produções norte-americanas chegassem em peso, tomando cerca de 90 a 95% do mercado, as produções locais conseguiam ter visibilidade. “Dos ciclos regionais que marcaram a evolução do cinema brasileiro antigo, silencioso, o Ciclo do Recife foi talvez o mais importante e se estendeu durante toda a década de 20”, escreveu Souza Barros, autor de A década de 20 em Pernambuco. Nas décadas de 1950 para 1960, os ares vão mudando. “Fala-se com saudades das velhas salas exibidoras como Helvética, Royal, Politeama, Pathé”, escreve Antônio Paulo Rezende em (Des)encantos modernos: Histórias da cidade do Recife na década de vinte. “Os bangue-bangues de Tom Mix, as comédias de Max Linder, os filmes seriados, as magias das suas imagens começavam a ser substituídos pela televisão”, prossegue. Na época em que surgiram os primeiros cinemas no Recife, o automóvel era muito raro, o que implicava uma distribuição dos cinemas, espalhados pelos bairros da cidade. Com o passar do tempo, condições melhores de mobilidade foram surgindo, os carros e ônibus permitiam ao público escolher quais cinemas queriam frequentar, independentemente da distância. Hoje, as salas de cinema predominam nos shopping centers, projetadas para a melhor exibição dos filmes, muito embora, sem o charme das antigas. bErNArDo VALENÇA
con ti nen te#44 cHeiRo De cAneLA
O Cine Royal (acima) era famoso por incentivar as obras do Ciclo do Recife. “Não só exibia todos, como transformava a exibição em festa e em acontecimento social de relevo”, declara Lucilla Ribeiro Bernardet, no livro O cinema pernambucano de 1922 a 1931: Primeira abordagem. O Royal fazia de cada exibição um espetáculo: enfeitava-se com bandeirolas, iluminava os arredores da Rua Nova, aromatizava a sala com folhas de canela pelo chão e aumentava o número de músicos na orquestra, elemento imprescindível no cinema mudo.
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PAtHÉ, o PioneiRo
Na noite de 27 de julho de 1909, foi inaugurada a primeira sala de cinema da cidade, o Cine Pathé (à esquerda), na Rua Barão de Vitória – atual Rua Nova –, número 45. O salão possuía 320 cadeiras, além de um camarote destinado aos seus sócio-fundadores. Quatro meses depois, na mesma rua, especificamente no número 47, surgia a primeira concorrência, firmada pelo Cine Royal, que viria a se tornar um dos mais populares do Recife, junto com o Cine Glória. Não tardou a aparecer o próximo local de exibição: em março de 1910, inaugurou-se também o CineTeatro Helvética.
Baú
PLAteiA
A crescente procura pelos filmes fazia com que as salas de exibições tivessem cada vez mais cadeiras. Os cinemas das décadas de 1940 e 1950 passavam a ser projetados para grandes públicos. Enquanto o Cine Glória (acima), de 1926, só acomodava 233 pessoas, o luxuoso cinema São Luiz, de 1952, tinha capacidade para 1.260 espectadores.
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A princípio, as salas de cinema eram chamadas de “teatros cinematográficos”, ou porque a sua arquitetura se inspirava nos teatros, ou por serem, de fato, teatros adaptados aos cinemas. Era o caso do Cine-Teatro do Parque, fundado em 1915 como teatro e adaptado em 1921 ao cinema; do Cine-Teatro Helvética, que já foi feito com o objetivo de ser cinema e teatro, e também do Moderno (à direita), de 1913, adaptado à função dois anos depois.
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circuito o cultural e renovado Pátio de São Pedro Localizado no Centro do Recife, o largo histórico abriga hoje museus, memoriais, espaços de pesquisa e de preservação, que contemplam desde a arte popular até o design contemporâneo TEXTO Diogo Guedes e Guilherme Carréra fOTOs Flora Pimentel
“Quem chegava ao recife só tinha dois pontos turísticos para visitar: a praia de Boa Viagem e o Pátio de São Pedro”, relembra Francisco Aroeira, 49 anos, com um tom ao mesmo tempo saudoso e conformado. Proprietário do mais antigo restaurante do Pátio, ele é a terceira geração de sua família à frente do Aroeira, inaugurado em 1940. O estabelecimento testemunhou antiquários, agências de turismo e estandes de artesanato darem lugar a lojas populares, amoladores de faca, vendedores de discos piratas e até a um palco. “Tudo tem a sua época, não é?”, indaga Francisco. O Pátio de São Pedro fica no centro do Recife, no bairro de São José, entre ruas apertadas para a quantidade de carros, barracas comerciais e pedestres que ali circulam. Para chegar, é preciso passar pelo corredor da Avenida Dantas Barreto ou por um de seus quatro becos, como a Travessa de São Pedro, conhecida popularmente por Beco do Veado Branco. O primeiro elemento urbanístico que se percebe é o largo, com o chão em paralelepípedos repleto de pombos, só desafiados vez ou outra por um passante. As fachadas originais das casas e da Igreja de São Pedro dos Clérigos
foram conservadas, excetuando-se algumas edificações malcuidadas. A principal mudança que o Pátio sofreu nos últimos anos, no entanto, não foi em sua forma, mas em seu conteúdo: a chegada gradativa de oito “equipamentos culturais”. A designação é genérica porque abarca um conjunto heterogêneo de iniciativas. Convivem, no local, museus, memoriais, centros culturais e espaços de pesquisa e de preservação de acervos, que contemplam desde a arte popular até o design contemporâneo. A homenagem ao maior nome do manguebeat, Chico Science, por exemplo, tem como sede a casa nº 21, cuja fachada é ornada com azulejos azuis e brancos. O Memorial Chico Science (MCS) representa a onda cultural que marcou os anos 1990 do Recife, quando o movimento agregou influências díspares na criação musical, o que acabou por influenciar a cena cultural pernambucana como um todo. “A ideia do espaço é de ação, um local para receber artistas que dialogam com o legado do mangue, abrigálos em exposição”, diz Adriana Vaz, gerente do equipamento que integra o Espaço Cultural Pátio de São Pedro. Ela enfatiza que não se trata de um
museu, que reúne objetos e artefatos do músico, mas de um local para o público conhecer um pouco da movimentação cultural da década anterior, através de um de seus maiores representantes regionais. “O Memorial também quer entender o que foram os anos 1990”, explica. O espaço é dividido em três salas: a primeira recepciona o público com imagens e texto da curadora Maria Eduarda Belém; a segunda é imersiva, com exibição de videoarte, espelhos e luzes, e a terceira se pretende aconchegante, com filmes e livros à disposição. A minibiblioteca disponível é composta por obras apreciadas pelo próprio Chico; entre os títulos, estão a literatura beatnik e os quadrinhos de Watchmen. Em funcionamento desde abril de 2009, o Memorial pode ser composto por novas iniciativas. “Gostaria muito de montar um estúdio de música aqui, mas, por enquanto, isso é só um sonho”, planeja a gerente Adriana Vaz. Se muita gente entra no MCS movido pela curiosidade sobre o manguebeat, a maioria dos visitantes do Memorial Luiz Gonzaga (MLG) já imagina o que vai encontrar. A popularidade do Rei do Baião faz com que este seja um dos espaços mais visitados do
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con sítio histórico ti nen te#44 Pátio. “Colecionadores também nos procuram, e compartilhamos informações. Isso é importante, porque melhora a qualidade do serviço que prestamos à população”, acredita Lêda Dias, gerente do MLG desde 2008. Além do trabalho de documentação e conservação do acervo, a pesquisa e a educação patrimonial fazem parte das linhas estratégicas de ação do Memorial. Assim como nos outros equipamentos, o projeto inicial do MLG previa a localização no Pátio de São Pedro, por conta de sua tradição em receber manifestações artísticas. Lêda associa o lado profano e sagrado do lugar às facetas de seu homenageado: “Nós estamos entre a igreja e o bar, um pouco como Luiz Gonzaga viveu: um homem muito religioso e profundamente ligado à cultura popular sertaneja, que possuía essa dicotomia como uma das suas características”.
BoAs trocAs
O fato de existirem equipamentos com temáticas próximas facilita o diálogo entre eles. Cada gerência possui autonomia para a realização de eventos, mas as parcerias são bemvindas. O Memorial Luiz Gonzaga, por ter seu espaço físico tomado por uma exposição permanente, já utilizou as dependências do Núcleo de Cultura Afro-Brasileira para uma oficina de acordeom, nos finais de semana. Também o Centro de Design dialoga com o Museu de Arte Popular (MAP) – recentemente promoveu oficina sobre a influência da cerâmica do Mestre Vitalino na moda. Outro exemplo dessas trocas é a relação entre o Centro de Formação em Artes Visuais (CFAV) e o Mamam no Pátio, unidade local do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães. Funcionando lado a lado, os espaços estão unidos por uma porta divisória interna, localizada no primeiro andar. As ações conjuntas são o que André Aquino, responsável pela gerência do CFAV, chama de hibridismo contemporâneo. “Nós temos uma relação de mutualismo, mas nossa identidade é preservada. O foco da atuação é complementar, pondo em prática a ideia de formação e
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o fato de existirem centros culturais com temáticas próximas facilita as trocas e atividades comuns entre eles
exibição voltada para o público e os jovens artistas”, esclarece. Entre outras atividades, o CFAV investe na qualificação de profissionais das artes, em grupos de estudo sobre crítica e na formação de um público de arte-educadores. Dentre os pontos sensíveis, André toca na questão dos limites impostos por estarem situados em patrimônios tombados pelo Departamento de Preservação do Patrimônio Construído (DPPC), da Prefeitura do Recife. “A relação com o prédio é delicada.
Temos que aprender a conviver com o local e suas limitações”, afirma, mencionando o descontentamento com os estragos trazidos ao patrimônio pelos pombos, que ali circulam livremente. O Mamam no Pátio existe desde 2006. “Fomos os primeiros a chegar, depois da Casa do Carnaval”, afirma Cristiane Mabel, gerente do espaço. A diferença entre o público que frequenta o Mamam da Rua da Aurora – também situado na área central da cidade – e a unidade do Pátio é notória. “Os interesses dos visitantes são distintos. As pessoas passam por aqui para resolver alguma coisa e entram. Lá, há um público mais acostumado a exposições artísticas”, opina Mabel. Além de possuir em seu acervo exemplares da arte moderna, o Mamam promove residências voltadas à arte contemporânea. Mesmo estando
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Páginas anteriores 01 AtuAlizAção
Chegada de equipamentos culturais modificou o perfil do Pátio
Nestas Páginas 02 MAngueBeAt
Memorial investiga os anos 1990, a partir da figura de Chico Science
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rei do BAião
Um amplo acervo musical se mistura aos objetos pessoais de Luiz Gonzaga 03
aberto para artistas de fora, a produção local é prioridade. “Os artistas locais são a nossa aposta essencial, mas ainda existe o contato com outras instituições, como as de João Pessoa e Fortaleza, para o envio de artistas para apresentar trabalhos por lá e vice-versa”, esclarece a gerente. O intercâmbio também é um mote do Centro de Design do Recife (CDR). Coordenado por Renata Gamelo, Flávia Lira e Cecília Pessoa, o equipamento procura manter contato com grupos de outros Estados e até
de outros países, como o Centro Metropolitano de Diseño, de Buenos Aires. Além disso, trabalha com a integração de profissionais da área e de estudantes de graduação, promovendo palestras e cursos. “Nossa ideia é entrar na discussão do design contemporâneo e incentivar a ousadia”, define Renata. Com o início do funcionamento do centro, no final de 2005, o primeiro passo da equipe foi pesquisar as necessidades da cidade. “Começamos mapeando as ações de design e, nesse
processo, notamos que o Centro Pernambucano de Design é mais voltado para empresas. Por isso, decidimos focar em profissionais e estudantes”, afirma. Flávia destaca a “dinâmica descentralizada” do CDR, sempre buscando realizar atividades fora do seu espaço físico. Os principais eventos no calendário anual do espaço já são o Cine Design, em setembro, e o Revela Design, em novembro. “Tentamos, além disso, inserir um pouco de design no calendário de
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con sítio histórico ti nen te#44 Patrimônio Imaterial. Um de seus principais parceiros vem de um ponto distante da cidade: a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na Zona Oeste do Recife, para a qual o centro disponibiliza material de pesquisa e abriga debates sobre trabalhos acadêmicos e lançamentos de livros. Carmem diz que é grande a procura pelo acervo e pelas exposições temporárias, e acrescenta: “Chegamos a receber cinco mil pessoas no período do Carnaval”. Ela comemora o fato de o Centro de Pesquisa e Formação estar situado no Pátio de São Pedro: “Até por ser a área mais antiga do Centro, a nossa relação é estreita. Já fazem parte do lugar e da nossa vivência com a boemia, o clima artístico e as diversas atividades culturais que ocorrem aqui. A sensação de estar em um ‘entorno cultural’ como este é aconchegante”. Um dos equipamentos vinculados à Casa do Carnaval é o Núcleo de Cultura Afro-brasileira, que é ladeado pelos restaurantes 100% Brasil e O Buraquinho. Antes sediado no prédio da Prefeitura do Recife, o espaço passou a funcionar no local em 2008. “Queremos servir de referência para a comunidade negra do Recife”, diz a gerente Claudilene Silva. O térreo traz uma exposição permanente com
localizada em ponto de encontro de foliões, a casa do carnaval é referência em pesquisa, memória e formação cultural
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atividades da Prefeitura. O recente festival de literatura A letra e a voz, por exemplo, trouxe para discutir o tema O livro desmaterializado a diretora de arte da Cosac Naify, Elaine Ramos, e Diego Todé, da Papel Finíssimo, nomes vinculados ao design gráfico e editorial”, comenta Renata.
cAsArão dA esQuinA
A casa de número 52 era um tradicional ponto de encontro de carnavalescos, principalmente de admiradores do frevo, como
Claudionor Germano, Marcelo Varela e Maurício Cavalcanti. Daí vem o nome Casa do Carnaval, pelo qual o Centro de Pesquisa e Formação é mais conhecido, mesmo que suas funções extrapolem o estudo de temas ligados à festividade. Aos poucos, o equipamento tornou-se referência em pesquisa, memória e formação da cultura pernambucana. “Nossa prioridade é dar à cultura o tratamento de patrimônio”, afirma Carmem Lélis, coordenadora e responsável pela Gerência de
os materiais pesquisados em eventos anteriores. “Mas aceitamos sugestões de mostras também”. Para a gerente do núcleo, localizarse no Pátio é simbólico, pois o espaço também abriga a Terça Negra, tradicional celebração organizada pelo Movimento Negro Unificado, como o nome sugere, às terças-feiras. Claudilene afirma não participar da seleção de programação do evento, apesar de ser procurada pelo grupo e apoiá-lo com infraestrutura e ajuda de custo. “Só em datas
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trAdição
Além de oficinas, o CFAV promove residências artísticas e grupos de estudo As gerentes do CDR pretendem discutir o design contemporâneo O MAP investe em atividades para o público infantil, como o jogo de memória com obras de Vitalino
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geStão eStratégia Para enfrentar ProblemaS Por trás da chegada dos equipamentos ao Pátio de São Pedro aqui mencionados existe a vontade de devolver ao local histórico sua competência para receber um maior fluxo de visitação turística e lazer cultural, tal como já ocorreu em períodos anteriores. “Estamos implementando mudanças no conceito da programação musical, fortalecendo a diversidade e valorizando as produções locais. Queremos conquistar novos públicos”, afirma o diretor do
Espaço Cultural Pátio de São Pedro, Fernando Augusto, um dos responsáveis pela coordenação do atual perfil do lugar, que opera sob a tutela da Prefeitura do Recife. “O Pátio é arena de tradicionais manifestações da cultura popular, onde se misturam músicos, atores, boemia e experimentalismo. Um lugar no qual desfrutamos de bares e restaurantes de comidas regionais, em que a presença humana é bastante reveladora da nossa diversidade cultural”, situa Augusto. Apesar dessas qualidades, o Pátio enfrenta dificuldades trazidas por fatores como o empobrecimento e esvaziamento do Centro, a insegurança trazida pela violência e a pequena oferta de vagas de estacionamento,
especiais, como o Dia da Mulher, sentamos juntos para pensar em possíveis atrações”, pontua. Ao lado da igreja, o Museu de Arte Popular (MAP) ganhou sua sede definitiva no ano passado. Surgido na década de 1980, o museu já tinha estado no Pátio como um anexo do Mamam, mas só a partir da reinauguração voltou a funcionar com sede própria. “Estamos em processo de mudança”, diz Marcela Wanderley, que chegou ao MAP como estagiária e há pouco foi chamada para coordenar o espaço. Uma das medidas tomadas para motivar as visitações é investir nos estudantes. “As escolas agendam a vinda e a gente faz um sistema de rodízio. Enquanto um grupo conhece o MAP, outro vai para o Luiz Gonzaga, mais um ao Chico Science, e assim por diante”, conta. Além disso, o trabalho de catalogação foi intensificado para que o acervo se torne referência em pesquisa sobre a temática. Marcela Wanderley critica o estigma associado à arte popular, que é vista principalmente sob o olhar antropológico em detrimento do artístico. “Existe o preconceito de se ver o popular como algo estagnado, mas há estética nele”, defende.
elementos que, juntos, afastam o público do local. Para administrar esses problemas em conjunto, foi criado pelo Espaço Cultural Pátio de São Pedro um Núcleo Gestor, que periodicamente discute os entraves referentes ao lugar. Estão em planejamento ideias como as de delimitar zonas de estacionamento para ônibus escolares e de turismo; padronização do horário de funcionamento dos equipamentos culturais e sua ampliação para os finais de semana; além de melhorias quanto à acessibilidade para deficientes físicos. A insegurança é uma das queixas mais graves, tanto dos frequentadores como dos próprios funcionários do Pátio.
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Conexão
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
sites para
crianças REDE SOCIAL
JOGOS
PORTUGAL
www.migux.com
www.ferryhalim.com/orisinal
www.sitiodosmiudos.pt
Com mais de 600 mil participantes, o Migux conecta crianças preocupando-se em ser divertido e educativo sem deixar a privacidade de lado.
O Orisinal é uma reunião de 60 jogos infantis. O destaque fica por conta dos belos gráficos e dos personagens delicados.
No outro lado do Atlântico, os “miúdos” encontram no site atividades que incentivam a criatividade e concentração classificadas por faixa etária.
AnDAnçAS viRtUAiS Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
cURioSiDADeS
LiteRAtURA
vARieDADeS
ecoLoGiA
Site propõe que internautas aprendam um pequeno fato inusitado por dia
Criado pela Livraria Cultura, endereço conecta leitores
Entre política, tecnologia e negócios, the Atlantic privilegia também literatura
Notícias e análises tecnológicas e ambientais são o foco do Planeta inteligente
www.theatlantic.com
http://planetainteligente.terra.com.br
A ideia de quando foi criada, em 1857, era ser uma revista sobre literatura e cultura. Mas, no meio desse caminho, a americana The Atlantic passou a ser ocupada por assuntos como política, notícias internacionais, negócios e tecnologia – chegando, inclusive, a se dedicar à crítica gastronômica. No site da publicação, é possível conferir a variedade das abordagens das matérias, sempre com profundidade e análise. O diferencial da The Atlantic é dar um espaço diferenciado para a crítica literária e poemas inéditos, organizando também anualmente uma coletânea de trabalhos de prosa e verso, a Fiction Issue. As edições feitas do fim de 1995 até os dias de hoje estão disponíveis para acesso livre; para os números de 1857 até 1995, é cobrado um pequeno valor por artigo.
A fome das crianças na porção subsaariana da África, mudanças climáticas no Sul do Brasil e automóveis movidos a hidrogênio fazem parte das galerias de fotos disponíveis no Planeta inteligente, hospedado no portal Terra. Atento ao debate sobre tecnologia e meio ambiente, o site traz também uma série de vídeos sobre economia, consumo e dicas para simplificar o dia-a-dia. Na seção de notícias, o usuário tem acesso às últimas informações sobre as novidades que dialogam com os fenômenos do mundo contemporâneo. Entre as curiosidades, um ônibus que funcionaria graças à energia gerada pelas bicicletas dos ciclistas. Na página principal, há ainda enquetes para os internautas darem sua opinião.
www.learnsomethingeveryday.co.uk Parece um calendário, um blog de curiosidades e um portfólio de ilustrações ao mesmo tempo. E até chega a cumprir estas três funções, mas o principal objetivo do Learn something every day é mesmo divertir. Todos os dias é postado um novo slide de cor berrante com um fato curioso, ilustrado por um desenho de contorno. A piada está na ironia dos desenhos lo-fi, que são expressões literais de fatos aparentemente absurdos como “no Texas é ilegal grafitar uma vaca” ou “algumas baleias cometem suicídio”. Os internautas também podem contribuir com curiosidades no site, que é uma criação do escritório de design inglês Young.
www.olivreiro.com.br A missão do site é aproximar livros e leitores. Partindo da ideia de que cada leitor é de um jeito, O livreiro reúne desde poesia, passando por quadrinhos, até obras clássicas. Também têm espaço na página livros sobre história, música, gastronomia, entre outros assuntos. Mais do que um site, O livreiro funciona como uma rede social, já que os usuários podem se tornar membros, participando de comunidades que discutem autores, romances e gêneros literários. Dividido em categorias, são listados na página inicial os livros mais lidos, os mais comentados e os mais adicionados na estante virtual de cada membro. O internauta encontra também o perfil dos autores cadastrados no site, além das últimas notícias que envolvem o universo literário.
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REPRODuçãO
bREvIDADES joRnALiSMo SeqUenciAL O portal de notícias G1 produziu uma iniciativa pouco comum à imprensa brasileira: transformou as diversas notícias e reportagens que acumulou sobre a morte de Michael Jackson em uma reportagem narrada em quadrinhos. A história começa na preparação do cantor para os 10 shows que faria na turnê This is it e descreve, segundo reportagens e relatos, a possível causa do falecimento e os últimos minutos do Rei do Pop. O texto é assinado por Diego Assis e os desenhos são de Rafael de Latorre.
DALí e DiSney
GAMeS PARA viciADoS e AMADoReS A revista francesa Amusement oferece uma abordagem diferenciada e adulta sobre o mundo dos jogos eletrônicos e a cultura gamer www.amusement.fr
Desde que os videogames deixaram de ser um interesse de nerds e passaram
a ser uma indústria que movimenta bilhões, não param de surgir revistas especializadas em cobrir as novidades da área. Seria este o caso da francesa Amusement, não fossem algumas diferenças básicas: a publicação se propõe a fazer matérias sobre jogos que sejam interessantes tanto para os mais viciados como para os amadores, além de trazer sempre uma abordagem mais adulta, em comparação à tendência adolescente da mídia em geral. Composta por um visual limpo, a revista bilíngue (francês e inglês) trabalha com outras imagens que não os comuns print screens dos games (captura do que é exibido na tela) e desenho de personagens. No site, é possível conferir algumas belas galerias, como a Made of myth, que brinca com a possibilidade de jogos clássicos realmente terem existido, a God games, em que Deus é um gamer e o mundo, a sua plataforma, e a Pixxxel (foto), que traz fotografias de modelos em poses sensuais ampliadas digitalmente para esconder detalhes e evidenciar os pixels, trazendo uma semelhança a construções feitas de Lego. Amostras das páginas diagramadas também estão disponíveis para os visitantes, apresentando o caráter de união entre games e estilo pessoal da publicação, que já foi chamada de “Vanity Fair dos gamers”.
blogs
Está disponível para a visualização no UpVideo o curta-metragem Destino, parceria entre a Disney e Salvador Dalí. A produção, que começou a ser feita em 1945 e só foi finalizada em 2003, traz uma mulher passeando por um cenário surreal, composto por obras do artista espanhol, com as quais ela interage. Apesar de estar com lançamento previsto para 2010, junto a um documentário sobre a ligação entre o pintor e a empresa, Destino apareceu como extra em alguns DVDs da Disney. Quem assina a trilha do curta é o mexicano Armando Dominguez.
MAPA De cheiRoS A pedido do New York Times, o ilustrador Jason Logan teve um ideia atraente: caminhar por Manhattan durante o dia e a noite e anotar os cheiros que sentisse. A partir daí, descreveu as sensações e localizouas em um mapa, publicado na versão online do jornal. As combinações de fragrâncias de certas ruas por vezes impressionam, como o aroma de flores com molho curry indiano na Rua 34. Em outros casos, os odores são completamente prosaicos, como o odor de cigarros e comidas fritas.
iDeiAS
PRiMeiRA PÁGinA
DicAS
www.ideas.blogs.nytimes.com
www.nascapas.blogspot.com
www.chegadebagunca.blogspot.com
Afirmações inusitadas e questões contemporâneas são o mote do Idea of the day, do New York Times, que traz links de matérias para o leitor saber mais sobre diversos assuntos. É mantido por Tom Kuntz e outros editores do jornal.
O blog reúne uma infinidade de capas de forte apelo visual, além de disponibilizar imagens de edições históricas, como a Rolling Stone com John Lennon e Yoko Ono e a Time com a queda das Torres Gêmeas.
O Chega de bagunça mostra que manter suas gavetas, seu quarto ou sua casa arrumados é uma questão de hábito. Entre as dicas, como criar novos espaços ou redescobrir os que você nem sabia que tinha.
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segunda guerra mundial Tudo por causa de uma situação geográfica favorável Durante o conflito, o Recife foi um ponto destacado no mapamúndi, transformando-se numa fortaleza, com intenso fluxo de navios e aviões do exército norte-americano TEXTO Luciana Rabelo
igor loyola/acervo ozires moraes
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História
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Muita gente passa pelo Bairro do Recife sem ter ideia de que um dia esse local histórico e turístico foi peça fundamental na estratégia de guerra dos Aliados contra as forças do Eixo. Ali bem perto, à entrada de um edifício na Avenida Guararapes, em Santo Antônio, ainda hoje se lê numa pequena placa em bronze: “Neste edifício o Comando da Quarta Esquadra e das Forças Americanas do Atlântico Sul manteve seu Quartel General durante a Segunda Guerra Mundial”, uma das únicas indicações deste capítulo esquecido
da história local, quando, em águas próximas do litoral pernambucano e no Atlântico Sul, foram afundados mais de 300 navios de 11 nações diferentes, resultando em milhares de mortes. Em 30 de setembro de 1939, o cruzador alemão Graf Spee afundou o mercante britânico Clement a apenas 120 km do litoral de Pernambuco. Começava de fato a Segunda Guerra no Atlântico Sul. Embarcações de guerra inglesas zarparam para cá, na caça aos navios corsários e mercantes alemães que tentavam furar o bloqueio do cinturão da parte mais estreita que liga o Nordeste brasileiro à África. Em maio de 1940, os alemães invadiram a França, conquistando portos e bases navais na costa atlântica. Esse fato alarmou o governo norte-americano, que temia que os alemães, utilizando-se de portos franceses na África Ocidental, pudessem ali estabelecer uma cabeça de ponte e cruzar o oceano em direção a Natal e ao Recife. Numa tentativa de conter o avanço do Eixo, o governo Roosevelt criou a Patrulha da Neutralidade, uma notória demonstração de força do poderio naval americano que começava a receber indícios perturbadores sobre golpes pró-Alemanha na Argentina, além de movimentações preocupantes da colônia alemã no sul do Brasil. Temendo um possível alinhamento de nações do continente ao Eixo, os EUA começaram a pressionar o governo brasileiro para a concessão de bases no Nordeste com o intuito de utilizar Belém, Natal e o Recife como escalas para enviar milhares de aviões, tanques e suprimentos para as forças britânicas que combatiam o Eixo no deserto da Líbia. O Recife começaria a receber, então, visitas regulares de navios de guerra americanos, que vinham sondar instalações na cidade com vistas estratégicas para que aqui fosse estabelecida uma grande base aeronaval. Em 7 de dezembro de 1941, os japoneses atacam a base de Pearl Harbor, no Havaí, e arrastam os Estados Unidos para a Segunda Guerra Mundial. Quatro dias depois, em 11 de dezembro, nove aviões Catalina desembarcam 150 fuzileiros
navais em Belém, Natal e no Recife, provocando um incidente diplomático. Os mesmos portavam armamento pesado, sem autorização do governo brasileiro. Divididos em três partes de 50 homens, os soldados deixaram as armas num navio-tanque americano, o Patoka, no porto do Recife. Sem alojamentos preparados para esses soldados, eles foram transferidos para o Hotel Central, provisoriamente, até que o escritório naval dos EUA encontrou um prédio na praia do Pina, o famoso Cassino Americano. Foi nesse prédio que os primeiros fuzileiros, recémchegados ao Brasil, ficaram aquartelados. O mesmo funcionou como enfermaria da marinha norte-americana, recebendo visitas ilustres, como a de Eleanor Roosevelt, primeira-dama dos EUA na época. Nos primeiros anos da guerra, o Brasil era um país muito distante da industrialização, sua economia era basicamente agrícola. Uma nação de proporções continentais, carente de infraestrutura necessária à sua incursão na guerra. Não possuía capacidade para grandes portos ou aeródromos militares. Por isso, os fuzileiros norte-americanos se depararam com uma realidade bastante precária quando chegaram ao país, mas rapidamente conseguiram transformar a face de uma cidade intocada pelos avanços tecnológicos estrangeiros, tornando o Recife uma rota internacionalmente conhecida.
RUFAR DoS tAMBoReS
Em janeiro de 1942, o Rio de Janeiro foi o cenário onde ocorreu a importante conferência de Chanceleres das Américas, que visava à ratificação do apoio das Nações Americanas aos EUA e o rompimento de relações diplomáticas com o Eixo. Nesse mesmo mês, a Alemanha declarou guerra aos Estados Unidos, enviando um punhado de submarinos para a costa leste daquele país com a finalidade de atacar navios mercantes que se dirigiam aos portos americanos. Denominada “Operação Rufar dos Tambores”, pegou as defesas navais norte-americanas completamente despreparadas. Foi um verdadeiro massacre. Em poucos meses, 397 navios foram afundados com mais de dois milhões de toneladas
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Flora PimeNTel
Página anterior 01 cAMP inGRAM Na área do Porto do recife, os americanos construíram alojamentos, grandes depósitos de munição e artilharia, torpedos e minas Nestas Páginas 02 ReGiStRo Placa de bronze situada na av. gruararapes registra que o bairro de santo antônio foi fundamental na estratégia de guerra dos aliados contra as forças do eixo
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AtAQUe o Baependy foi um dos vapores brasileiros afundados entre a Bahia e sergipe. o naufrágio provocou a morte de 270 pessoas
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e cinco mil tripulantes mortos. O Brasil também perdeu vários navios mercantes, uma vez que aquela era uma área de guerra e o país tinha
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História que correr o risco de enviar para lá suas tripulações com preciosa carga de matérias-primas para atender às necessidades dos EUA. Enquanto isso, as relações brasileiras com o Eixo se deterioravam, até que, em 22 de agosto daquele ano, um submarino alemão, o U-507, afundou cinco navios mercantes na costa de Sergipe, mergulhando de vez o Brasil no conflito. Com a declaração de guerra contra os países do Eixo, o que se viu foi um imenso incremento de reforços para o Recife, que passa a ter status
militar especial. A outrora pacata cidade provinciana se transformava rapidamente em uma fortaleza, com um intenso fluxo de aeronaves dos esquadrões da marinha dos EUA que compunham a Ala Aérea 16. Centenas de aeronaves do Exército norteamericano pousavam e decolavam do Ibura Field, na longa travessia do Atlântico rumo à África, além de dezenas de navios de todos os tipos de ambas as marinhas de guerra, bem como contingentes da Sétima Região Militar e da Segunda Zona Aérea. Na área subsidiária ao porto do Recife, logo denominado Camp Ingram, em homenagem ao Almirante Jonas Ingram, comandante da Quarta Frota, os americanos construíram alojamentos, grandes depósitos de munição e artilharia, torpedos e minas. Iniciava-se uma febril atividade nos centros de instrução e treinamento para as numerosas guarnições que serviam
sob o Comando da Quarta Frota. Por outro lado, medidas eram tomadas para tornar o complexo do Estado Maior do Quartel General da Quarta Frota e seus anexos em instalações apropriadas e confortáveis, para que os militares lá alojados pudessem desempenhar suas tarefas com comodidade. Um edifício na Avenida Guararapes, a apenas dois quilômetros de distância do porto, foi escolhido para a sede. Além disso, outras instalações militares foram construídas na cidade, como a Pina Radio Station, estação de rádio da marinha americana, vital para as comunicações e rastreamento de submarinos inimigos. A Estação Rádio Pina era tão importante, que, ao final da guerra, quando todos os estabelecimentos militares foram devolvidos ao Brasil, permaneceu sendo operada pelos americanos até 1956. Outra poderosa estação de rádio, a NKM, foi construída no Campo do Jiquiá, famoso por receber o dirigível Zepellin e por servir como um imenso depósito de munição do exército norteamericano. O atual Hospital da Aeronáutica, em Piedade, foi o 200th Station Hospital, com mais de 150 leitos e várias especialidades, inaugurado pelo secretário da Marinha dos EUA, Frank Knox, em 1943. O campo do
UM incAnSáveL PeSQUiSADoR esta matéria foi escrita com a colaboração do pesquisador e comandante de aviação ozires moraes, que há 10 anos vem coletando informações preciosas em publicações oficiais das marinhas americana e brasileira, bem como raros depoimentos de ex-tripulantes americanos que estiveram na capital pernambucana durante a segunda guerra mundial. o pesquisador mantém o site Sixtant – War in the South Atlantic, que disponibiliza mais de mil páginas, entre textos e fotos, com enfoque especial na capital de Pernambuco. o Sixtant é o único site estrangeiro que está hospedado na homepage da Fundação Hyperwar (http://www.ibiblio.org/hyperwar/ index.html#appendix), a maior biblioteca virtual sobre a guerra, reúnindo documentos históricos das Forças armadas norte-americanas.
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coRvetAS e coRSáRioS
Enquanto o Recife se transformava em praça de guerra, a luta no Atlântico Sul fazia milhares de vítimas. Os submarinos alemães e italianos mandaram para o fundo do mar, até o final de 1944, 331 navios. Por conta dos campos de guerra marítimos, náufragos vieram parar nas costas nordestinas, muitos deles depois de semanas agonizando em alto mar, como no caso de dois sobreviventes do navio SS City of Cairo que vagaram por 51 dias até serem recolhidos pela corveta Cananéia, a 150 quilômetros da costa pernambucana. A Quarta Frota teve em seu ápice 150 navios, fora as quase 40 embarcações da Força Naval do Nordeste, que também era baseada no Recife. Todos os dias centenas de aviões da FAB e da marinha norteamericana patrulhavam a extensa costa brasileira e o resultado foi o afundamento de dois navios corsários (incluindo o célebre Atlantis), 18 submarinos alemães e um italiano, o Arquimede, próximo a Fernando de Noronha. Dos 20 náufragos do submarino Arquimede, apenas um sobrevivente foi resgatado por pescadores na costa do Amapá, após 27 dias de odisseia no mar. Da mesma forma, o único sobrevivente de um submarino alemão, o U848, encontrado no Atlântico Sul, foi trazido para o Recife ainda com vida, mas morreu devido a queimaduras e foi enterrado no cemitério de Santo Amaro, com honras militares.
agosTo de 1942 submarinos aTacam no brasil Sábado, 15 de agosto de 1942. Na Pracinha do Diario, como é conhecida pelos moradores do Recife a Praça da Independência, o barulho das máquinas do Diario de Pernambuco que imprimiam a edição do dia seguinte se mistura ao burburinho do Centro. As batalhas entre nações europeias e os rumos do conflito mundial alimentavam as conversas naquela noite fresca e aparentemente calma. Na manhã de domingo, 16, o jornal trazia as notícias sobre a guerra do outro lado do Atlântico, em toda a primeira página, e um destaque para a cerimônia religiosa pelo restabelecimento do presidente Getúlio Vargas. Na seção de esportes, a apresentação do clássico entre Náutico e Sport, no “maior jôgo do ano”. Para quem preferisse outro programa, um reclame indicava Três semanas de loucura, um drama “arrebatador” com Vivien Leigh e Laurence Olivier, no Cine Ideal. A página feminina aconselhava o uso de água fria para tirar manchas de ovos. Um domingo na medida para o lazer e o descanso, inclusive dos jornalistas. Naquela época, os jornais não circulavam às segundas-feiras. “Navios brasileiros afundados entre Baía e Sergipe” foi a manchete na terça, 18, indicando que aquele fim de semana não fora nada tranquilo. Um comunicado do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo informava: “Pela primeira vez as embarcações brasileiras servindo no tráfego de nossas costas, no transporte de passageiros e cargas, dum Estado para o outro, sofreram ataques dos submarinos do Eixo. Nestes três últimos dias, entre a Baía e Sergipe, foram afundados os vapores Baependy, Anibal Benévolo do Lloyd Brasileiro e Araraquará do Lloyd
acervo ozires moraes/ Divulgação
Ibura, onde hoje se localiza o Aeroporto Internacional Gilberto Freyre, foi a segunda maior base aérea construída depois da de Natal, com três pistas de pouso e decolagem e tanques para armazenamento de nada menos que 200 mil barris de combustível. Uma área arrendada à Quarta Frota, entre os bairros de Tejipió e Várzea, foi transformada em uma fazenda para a criação de aves e suínos e a produção de legumes e verduras, a fim de atender à demanda de alimentos habituais da dieta dos americanos e que não podiam ser encontrados no Recife. Foi chamada de Fazenda Estrela e era considerada um modelo de organização e racionalização do cultivo.
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Nacional S/A. O inominável atentado contra as indefesas unidades da marinha mercante dum país pacífico, cuja vida se desenrola às margens distantes do teatro de guerra, foi praticado com desconhecimento dos mais elementares princípios do direito e da humanidade.” A nota também esclarecia que o governo brasileiro tomaria as providências necessárias em face do ocorrido e pedia tranquilidade à população. Mais adiante, o jornal publicava um segundo comunicado do DIP, dando conta de que mais dois navios tinham sido atacados na costa da Bahia: o Itagiba e o Arará. Apenas no afundamento do Baependy, dos 270 mortos, 170 desembarcariam no Recife. A trágica notícia foi o estopim para que se desencadeasse em todo o país uma reação popular sem precedentes em defesa da soberania nacional. A posição oficial brasileira em relação ao conflito, até então, era vacilante. Getúlio Vargas fazia o jogo duplo: ao mesmo tempo em que endossava o pan-americanismo, pregado pelos Estados Unidos, o Estado Novo flertava com os regimes fascistas. Pressionado pelos norteamericanos e em resposta aos apelos da sociedade, finalmente o governo desce do muro e anuncia, em 31 de agosto de 1942, a entrada do Brasil no confronto, ao lado dos Aliados. ricArDo MeLo
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Muro dE BErliM 20 anos dEpois Evento que marcou simbolicamente o fim da Guerra Fria e da divisão geopolítica e ideológica do mundo em dois grandes blocos é revisto por políticos e pesquisadores teXto Fábio Lucas
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o fim da Guerra Fria. A vitória do capitalismo. A derrota do comunismo. O triunfo democrático. A conquista da liberdade. A supremacia do livremercado. A derrocada do Estado dirigista e opressor. Há muitas formas de dizer o que foi a Queda do Muro de Berlim, em 1989 – assim mesmo, em maiúsculas, como uma espécie de Queda da Bastilha, 200 anos depois. Evento daqueles em que se reconhece a roda da história em movimento, a Queda do Muro de Berlim foi, no entanto, o desfecho pacífico de um processo gradual de abertura que tomava corpo na Europa no final dos anos 1980. Abertura que se desenhava na Polônia, com a ascensão do Movimento Solidariedade, na Tchecoslováquia, com as manifestações em defesa de Václav Havel, e também na Hungria e na Alemanha Oriental. Porém, sobretudo, na União Soviética, através da Perestroika e da Glasnost de Mikhail Gorbachev, que liderou uma contrarrevolução silenciosa que mudaria a face do mundo, pondo aparente ponto final no dualismo ideológico vigente desde 1945. Tão importante foi o fato que o historiador Eric Hobsbawn o situa como marco de encerramento do “breve século 20” (o marco inicial seria a revolução russa de 1917). Construído em 1961 para evitar a fuga maciça de alemães orientais para o lado ocidental do país dividido pela Segunda Guerra, o Muro veio simbolica e fisicamente abaixo na noite de 9 de novembro de 1989, logo após a notícia displicentemente divulgada e espalhada como pólvora, de que os alemães orientais voltariam a ter passaportes. Os fatos são contados em pormenores no livro 1989: O ano que mudou o mundo, do jornalista Michael Meyer, então correspondente da revista Newsweek. “Nenhuma grande crise internacional montou o palco para 9 de novembro de 1989. A queda do Muro não resultou de algum confronto entre grandes potências. Não houve retórica emocionante, qualquer ameaça de guerra, nenhum político encenando ante as câmeras”, conta Meyer. A Guerra Fria acabou em uma festa de rua, com as pessoas dançando em cima do Muro e destruindo-o a marteladas. O professor de História da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN) Haroldo Carvalho reconhece que a queda do Muro de Berlim pegou quase todos de surpresa. “Mesmo que já houvesse sinais claros do colapso financeiro da União Soviética, agravados em larga medida pela retomada da corrida armamentista norte-americana do presidente Reagan e sua ‘Guerra nas Estrelas’, não se pensava que a estrutura do poder político do Partido Comunista estivesse tão seriamente comprometida”. Ronald Reagan, aliás, é citado no livro de Meyer como um dos personagens inspiradores dos eventos de 1989, por causa de um discurso realizado em 1987, em Berlim, a alguns metros do Muro. Muitos alemães do lado oriental escutaram
A Guerra Fria acabou em uma festa de rua, com as pessoas dançando em cima do muro e destruindo-o a marteladas quando ele desafiou Gorbachev a dar um passo mais largo em suas reformas: “Abra este portão, derrube este Muro, senhor Gorbachev!”. A distância econômica entre o ocidente e o oriente europeu foi, sem dúvida, um dos motores das reformas que sacudiram os países socialistas – num ambiente bem diverso do que observamos hoje na China, por exemplo, com seu bem-sucedido “capitalismo dirigista”. Será que se o ambiente econômico fosse outro, o comunismo soviético sucumbiria? A passagem dos 20 anos da queda do Muro de Berlim suscita revisionismos diversos, entre os quais, como destaca Meyer, o que trata da instauração de uma visão de mundo simplista e perigosa: aquela que aponta a fragilidade intrínseca do poder totalitário, vulnerável a qualquer sopro vindo de fora. O intervencionismo americano que se seguiu nestas duas décadas é consequência direta deste equívoco. Na visão de João Paulo Veiga, professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), a queda do Muro, além de simbolizar o fim do conflito Leste-
Oeste, um conflito de concepção de mundo, ideológico, anunciou o início de uma nova era que, a princípio, parecia cooperativa e sem conflito. “Nos primeiros cinco anos dos 1990, o mundo viveu uma profusão de propostas e interpretações liberais, e as organizações internacionais promoveram mais conferências do que em qualquer outro momento da história”, recorda Veiga. Na esteira dessa onda liberalizante, sobressai o papel da Organização Mundial do Comércio (OMC), que se fortalece, até chegarem as crises, a começar pela do México, em 1994, seguida da crise asiática, desembocando na crise financeira global, cujo marco inicial foi o subprime americano em 2007. “E as esperanças de um mundo cooperativo vieram abaixo!”, lamenta o professor.
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E, no Brasil, como repercutiram os fatos marcantes de 1989? Na época, o país elegia Fernando Collor e dava início a uma sequência privatista que transformou a economia. Collor derrotou na ocasião o candidato Lula, que viria a ser eleito e reeleito em 2002 e 2006. Para Renato Amado, professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRN, a Queda do Muro de Berlim “possibilitou a ultrapassagem de visões marcadas pela clivagem absoluta entre dois mundos, as quais engessaram durante longos anos as reflexões sobre os complicadores da atuação e construção do Estado brasileiro, incidindo sobremaneira na extensão e na discussão da cidadania”. Segundo Renato Amado, com o fim do bloco comunista foram desarticulados os partidos e grupos que pautavam sua atuação pela reflexão sobre o regime soviético. “No caso específico do Partido Comunista Brasileiro (PCB), isto significou o esvaziamento de sua influência e a transição daqueles que nele se abrigavam para outras formas de articulação e ação partidária, o que viabilizou, por exemplo, partidos menos comprometidos com aquela reflexão, como o Partido dos Trabalhadores (PT).” Seu colega da UFRN, Haroldo Carvalho, recorda que o candidato do PCB às eleições de 1989, teve pouco mais de 1% dos votos, mostrando
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placa alusiva ao local onde antes estava erguido o muro de Berlim o ex-presidente dos eua, ronald reagan e o então secretário geral da união soviética, mikhail gorbachev: ponto final na guerra Fria alemães comemoram momento histórico sobre escombros do muro
e grupos”, afirma. Haroldo Carvalho fala sobre o triunfalismo que acometeu os partidos chamados conservadores: “A direita, de certo modo empolgada pela repercussão dada na mídia mundial, e mesmo brasileira, representante do seu próprio pensamento conservador, advogou a necessidade de redefinir o papel do Estado no controle dos movimentos sociais, mais uma vez demonizados”. Em sua opinião, depois do Muro de Berlim, as esquerdas no Brasil “tenderam a aceitar o jogo democrático, enquanto a direita se ressente e amarga (a ascensão de Lula e do PT ao poder)”.
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a “franca decadência” em que se encontrava a representação do modelo soviético em solo brasileiro. Carvalho diz ainda que o PT, por ser uma frente de correntes, desde a fundação, em 1980, se posicionou contra o socialismo soviético, apoiando movimentos como o Solidariedade, na Polônia. O vereador pelo Recife Luciano Siqueira, do Partido Comunista do Brasil (PC do B), afirma que a esquerda em geral, em todo o mundo, sofreu forte impacto dos acontecimentos, cujo marco foi a Queda do Muro de Berlim. “Isto porque, com a débâcle da ex-URSS e das democracias populares do Leste da Europa, o campo socialista (que chegara a governar um quarto da população da Terra) ficou reduzido à China, ao Vietnã, à Coréia do Norte e Cuba.” Segundo Siqueira, no entanto, seu partido não foi pego de surpresa. “Desde o início dos anos 1960, o PC do B desenvolvia a crítica teórica e política aos rumos adotados na União Soviética e nos países do Leste. Dizíamos que se processava uma ‘revisão’ dos fundamentos do marxismo-leninismo, adotando
orientação regressiva que levaria, naqueles países, ao retorno ao capitalismo.” Mas, se não houve surpresa, tampouco houve celebração. “A comprovação prática de nossas análises não nos alegrou. Até porque as repercussões sobre o movimento comunista, a luta revolucionária e progressista em todo o mudo foram e ainda são danosas”, diz Siqueira, ressalvando o fato de que a revisão teórica é benéfica: “Há males que vêm para o bem. Hoje, corre intenso movimento de atualização da teoria marxista e de redefinição estratégica da luta pelo socialismo”. De acordo com Renato Amado, não foi somente um dos lados do espectro político nacional que sofreu com os estilhaços da Europa. “O efeito da Queda do Muro de Berlim diminuiu também muito da eficiência e representatividade dos partidos e grupos identificados com a direita, resultando na desagregação e transformação de vários deles, como o PDS e o PFL. Contudo, visões e discursos construídos naquele período persistem ainda entre vários políticos, intelectuais
Ex-ministro do Meio Ambiente, atualmente na direção da Fundação Liberdade e Cidadania, ligada ao Democratas (DEM), Gustavo Krause reconhece o triunfalismo: “Parcela considerável da direita, sob forte euforia triunfalista, saudou a morte da esquerda soterrada pelos escombros do socialismo real. É uma tese que reflete uma espécie de ajuste de contas; uma revanche dialética frente a uma corrente do pensamento que esbanjou soberba no debate político ao longo de século 20”, justifica. Em que se baseava essa soberba? “Na crença em um modelo de sociedade que resultaria da inexorável marcha da história, e propunha a utopia da sociedade igualitária, construída por uma classe eleita, o proletariado. Nela seria recriado o novo homem, repleto de virtudes, entre elas a pureza ética. Não rezar pela cartilha marxista; não adotar o materialismo dialético com fonte de explicação dos movimentos da história, equivaleria a uma dissidência com a verdade revelada e uma condenação apriorística por pensar diferente.” No entanto, ressalta Krause, o “ajuste de contas” não é o mais nobre argumento para uma discussão saudável.
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Artigo
Eduardo suplicy pElo FiM dE Todos os Muros conheci o Muro de Berlim
em 1962, quando, aos 21 anos, solicitei aos meus pais que me proporcionassem uma viagem 02 para conhecer tanto a Europa Ocidental, quanto a Oriental. Surgiu a oportunidade de uma excursão relativamente barata para participar do Festival da Juventude pela Paz e Amizade, em Helsinki, na Finlândia, em julho daquele ano, e depois participar de uma excursão para a União Soviética, Polônia e Tchecoslováquia. Daí, fui convidado pelo Partido Social Democrata Alemão, ao lado de alguns outros jovens que estavam no Festival de Helsinki, para visitar a Alemanha Ocidental, ou República Federal da Alemanha, por cerca de três semanas. Estive em Hamburgo, Frankfurt, Bonn e Berlim. Nessa mesma viagem, estive na Áustria, Itália, França, Suíça, 03 Iugoslávia, Bulgária e Hungria. Quando em Berlim, fui visitar o lado oriental da cidade, assim como fui de trem visitar o interior da República Democrática Alemã, então governada pelo partido comunista. A impressão que o Muro de Berlim me deixou foi muito forte. Considero que se tratava de um exemplo maior de irracionalidade e de mau entendimento entre os seres humanos. O meu propósito era justamente o de procurar saber as qualidades e defeitos dos regimes capitalistas e dos socialistas. De um lado, impressionou-me o progresso do Mercado Comum Europeu, um dos passos importantes do que hoje constitui a União Europeia, o dinamismo proporcionado pela liberdade de funcionamento dos mercados; de outro, também pude observar que havia qualidades no sistema socialista em proporcionar
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um mínimo de atendimento à educação, à saúde, às necessidades básicas de cada pessoa. Em especial, entretanto, ao observar as limitações à liberdade de expressão, de imprensa, de formação de partidos e outras, e ao me deparar com o Muro de Berlim, símbolo da limitação à liberdade de movimento, cheguei à conclusão de que o processo de construção de uma sociedade mais igualitária e justa, que pudesse ter as qualidades do socialismo, teria que ser construída de forma democrática, conquistada pela livre vontade do povo expressa nas urnas. A queda do Muro de Berlim significou, sobretudo, essa grande vontade dos povos de todo o mundo de viver em regimes efetivamente democráticos. Também significou que nós precisamos mais e mais acabar com os muros fronteiriços, como os que ainda existem hoje, infelizmente, até mesmo na fronteira que separa os EUA do México, assim como o construído por Israel na Cisjordânia, apesar das recomendações do Presidente George W. Bush para que não fosse construído. Considero que a União Europeia se constitui num bom
exemplo para as Américas. Nós precisamos celeremente avançar no sentido de que do Alasca à Patagônia possa haver a livre circulação de capitais e de bens e serviços, e o que é mais importante, das pessoas. Para isso teremos que homogeneizar mais e mais os direitos sociais nas Américas. Um dos mais belos discursos do então candidato à Presidência dos Estados Unidos, senador Barack Obama, em 24 de julho de 2008, foi feito em Berlim perante a Porta de Brademburgo, para 200 mil pessoas, por ocasião dos 60 anos da construção do Muro de Berlim. No evento, ele ressaltou que agora não era mais o tempo de admitirmos muros que separem os que muito têm dos que pouco ou nada têm; os judeus, dos islâmicos, os cristãos, de pessoas de quaisquer religiões, os negros, dos brancos, dos amarelos, dos vermelhos, de pessoas de quaisquer origens. Espero que, logo, ele contribua para acabar com o muro que separa os EUA do México e da América Latina. E que possamos, ainda no Século 21, avançar em direção à maior liberdade de circulação dos povos de todos os continentes.
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O sociólogo Demétrio Magnoli acredita que a queda do Muro “feriu a antiga crença de que o desenvolvimento depende, sobretudo, do Estado”. Para Magnoli, o PT consolidou-se como leito para as correntes que permaneceram ligadas ao chamado socialismo real, especialmente na sua versão castrista. “Tais correntes não reformaram seu pensamento, mas amputaram seu discurso das referências stalinistas mais óbvias. A hostilidade à democracia continuou a singularizálas e, atualmente, se manifesta como hostilidade à imprensa, apego a um nacionalismo autoritário cada vez mais anacrônico e entusiasmo pelo caudilhismo ‘socialista’ de Hugo Chávez. Tais correntes lamentaram a queda do Muro de Berlim – e até hoje não entenderam o que aconteceu em 1989”, provoca o sociólogo. Haroldo Carvalho afirma que, no campo da centro-esquerda, por sua vez, o que se passou foi uma “lenta e segura tendência à direita”. Isso pode ser comprovado, segundo ele, pela crescente aproximação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), até então aliado do PT na Constituinte de 1988, com o Partido da Frente Liberal (PFL, hoje Democratas), cujos líderes “foram os mais aguerridos apoiadores dos governos militares, sobretudo no Nordeste”.
UM centRo LARGo
Em resposta a essa nova configuração – que pode fazer com que as pontas do arco político-partidário se comprimam em direção a um centro largo, de sutis matizes – o pensador italiano Norberto Bobbio criou uma classificação ideológica baseada nos conceitos de liberdade e igualdade. Ele próprio simpatizante do “socialismo liberal”, definido por Celso Lafer com um “liberal de esquerda”, Bobbio lançou critérios para nomear o que seria extrema-esquerda, centro-esquerda, centro-direita e extrema-direita. Ao se debruçar sobre o modelo de Bobbio e sua relação com a realidade nacional, Gustavo Krause é pessimista: “O anacronismo do sistema político brasileiro e o subdesenvolvimento do nosso sistema partidário desautorizam identificar um mínimo de identidade doutrinária e, por consequência,
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Capa do livro 1989 – O ano que mudou o mundo, do jornalista michael meyer, correspondente da revista Newsweek na alemanha início da construção do muro de Berlim, que ocorreu em 1961
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coerência programática: o pragmatismo e o oportunismo são regras”. A filósofa Márcia Tiburi reforça o pessimismo diante da realidade nacional. Para ela, os políticos brasileiros não sabem nem o que é história. “Por aqui tudo é sempre inconscientemente adaptado. Se cai por terra a diferença entre direita e esquerda no mundo afora, aqui vem representar apenas o despudor para o roubo da coisa pública. Aqui se provou que o roubo sem maiores comprometimentos é privilégio da política. Uma pena, pois a verdadeira política é ação que hoje em dia é posta em cena na vida privada, também ela contaminada pela corrupção”, lamenta Tiburi. O senador pelo PT Eduardo Suplicy prefere ver com otimismo as lições deixadas pelos escombros do Muro. “A queda do Muro de Berlim significou, sobretudo, essa grande vontade dos povos de todo mundo de viver em
regimes efetivamente democráticos”, escreve o senador petista em artigo para a Continente. A queda do Muro de Berlim foi um acontecimento político extraordinário, um fato local de repercussão no mundo inteiro. “Jamais alguma coisa foi tão carregada de simbolismo, ideologia e história”, escreveu Michael Meyer. Como as suas ondas de impacto ainda chegam até nós, arrefecidas pelo tempo, a incidência sobre os muros simbólicos erguidos no Brasil, quem sabe, ainda está por vir. Em qualquer ponto de nossa régua ideológica, o consenso é de que está mais do que na hora do sistema político brasileiro realinharse à parte dos grupos de interesse de sempre. Na ponte histórica de Berlim a Brasília, parece estar faltando, do lado de cá, os alicerces de uma verdadeira reforma política, de necessidade tão repisada quanto ausente nessas duas décadas sem o Muro.
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liTuânia de passado terrível a programa de lazer Parque de esculturas construído em uma das três repúblicas bálticas abarca as memórias contraditórias do socialismo real TEXTO Marcelo Abreu
Passados 20 anos da derrocada
do socialismo real na Europa, as populações que viveram sob o regime ainda lidam de forma contraditória com suas memórias. Como não é possível separar totalmente a experiência individual do contexto político mais geral, as lembranças se misturam e se confundem para criar, quase sempre, uma visão do passado cheia de ambiguidades e incoerências. Quando a Lituânia conquistou sua independência da URSS em 1991, o Muro de Berlim havia caído dois
anos antes. Sacudindo a poeira dos 51 anos que os lituanos consideram como sendo de “ocupação soviética”, eles promoveram uma limpeza geral dos símbolos materiais do poder comunista. Tudo que tivesse relação com o antigo regime acabou sendo eliminado, demolido ou jogado em depósitos e porões. Entre o material descartado estava, sobretudo, a arte monumental das esculturas, modeladas no estilo do realismo socialista ao longo do período soviético. Esculturas que, durante cinco
décadas, ornamentavam cada praça, escola e repartição pública no país. Foi com polêmica que os lituanos reagiram quando, no fim da década de 1990, um empresário chamado Viliumas Malinauskas resolveu resgatar parte desses símbolos do passado e criar um parque de esculturas dedicado ao comunismo e suas representações visuais. Malinauskas enriqueceu plantando cogumelos e amoras nos bosques do sul do país, nos primeiros anos da volta ao capitalismo, e acabou vencendo a concorrência para abrir o parque, já que se comprometeu a não gastar dinheiro público no empreendimento. Recebeu permissão para usar as esculturas durante 20 anos. Muitos lituanos se enfureceram com a ideia de ver entronizadas, de novo, as imagens de Vladimir Lênin, Josef Stalin, Felix Dzerzhinski (o temido criador da polícia secreta Cheka, depois famosa como KGB) e mais algumas dezenas de nomes de menor importância: os heróis da construção da nova sociedade e os pioneiros da militância comunista. No parlamento lituano, uma coalizão nacionalista ligada ao grupo Sajudis, que liderou o movimento pela independência, fez de tudo para impedir a construção do parque. Outras pessoas, menos inflamadas pelo discurso anticomunista, defenderam que a iniciativa poderia servir para educar as novas gerações a fim de que a história não se repetisse e lembraram a possibilidade de estimular a economia com o novo empreendimento.
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Mas o projeto vingou. O Parque Grutas de Esculturas Soviéticas, localizado nas proximidades da cidade de Druskininkai, no sul da Lituânia, tornou-se uma estranha atração, desde sua inauguração, em 2001. Por um lado, gente com mais de 30 anos o visita para relembrar o cenário de sua juventude sob o regime soviético. São pessoas que reconhecem no Grutas uma parte inalienável do seu passado. Cresceram naquele cenário de simplicidade espartana e viveram valores rígidos, culto à personalidade
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entrada do parque grutas de esculturas soviéticas, localizado nas proximidades da cidade de druskininkai, no sul da lituânia, inaugurado em 2001
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entre as figuras históricas retratadas, a estátua de um soldado soviético padrão
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e arte dogmática. A ostalgia – saudade pelo velho Leste (ost) comunista, como definiram os alemães na última década – é um componente forte de suas vidas. Por outro lado, a Lituânia é um dos casos extremos de repressão ocorrida durante o stalinismo. Baseado no acordo secreto assinado com os nazistas para dividir a Europa, Stalin invadiu o país em 1940 e deportou 360 mil lituanos para remotas regiões da Sibéria. Mais de 400 mil procuraram o exílio no Ocidente. O regime mais brando da era de Khruschev e de Brezhnev teria de carregar, nas décadas seguintes, a culpa pelo estrago feito por Stalin. Como descendentes das vítimas da perseguição e deportação, muitos lituanos de hoje não perdem nenhuma oportunidade para criticar a URSS. Ao contrário de algumas outras áreas do ex-império soviético, onde pouca coisa mudou nas últimas duas décadas, os povos do Báltico (lituanos, letões e estonianos) parecem inclementes com a memória do comunismo. Pela região, é frequente a presença de pequenos museus que relembram a ocupação, a deportação de milhares de pessoas e os militantes considerados mártires na luta pela independência.
Já na entrada do parque, a primeira coisa que se vê é um vagão de trem desativado que, entre os anos de 1941 e 1953, serviu para transportar os civis lituanos para a Sibéria em condições desumanas. A acusação contra os deportados podia ser simplesmente a de pertencer a uma família de origem burguesa ou ter algum destaque na vida intelectual do país antes da chegada dos russos. Dentro da área de 20 hectares que compõem o parque, ao longo de uma trilha circular de dois quilômetros, no meio dos bosques, pode-se observar um grande conjunto de estátuas de todos os tamanhos. A disposição lembra, intencionalmente, um campo de trabalho forçado, até com torres de controle para evitar as fugas. Quando foi inaugurado, a lista de aquisições informava que havia 13 Lênins, dois Stalins, seis Kapsukas (um dos fundadores do Partido Comunista Lituano), dois Dzerzhinskis e quatro Karolis Pozelas (líder bolchevique na clandestinidade, executado em 1926). E muitas outras esculturas, bustos, mosaicos, vitrais, ornamentos de concreto em baixo-relevo. Hoje são ao todo 86 trabalhos de autoria de 46 artistas diferentes. Todos no estilo oficial da época, o realismo socialista, uma arte
poderosa e otimista, de homens e mulheres musculosos, determinados, que erguem o punho e apontam o caminho para o que seria o inevitável futuro radiante.
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O Parque Grutas tem sido comparado a uma versão soviética dos parques temáticos de Walt Disney e chamado, ironicamente, de Stalinland ou de Stalin World. Lá foi instalado também um significativo museu de pequenos objetos relacionados ao culto do velho regime, que inclui filmes, discos, suvenires de todo o tipo (isqueiros, cinzeiros, canecas para chá, garrafas de vodca). A coleção dá grande ênfase aos anos do governo de Brezhnev (1964 a 1982) e chega até os anos da Perestroika (1985-1991). No café que atende os visitantes há um cardápio tradicional, intitulado “Nostalgia”, que brinca com o passado e inclui uma sopa do mesmo nome, um prato de carne empanada chamado “Adeus, tempos de juventude” e uma sobremesa intitulada “Reminiscência”. Há também um minizoológico e um parque de diversão para crianças com brinquedos de antigamente. No dia 1º de abril de cada ano sempre há uma programação humorística com a presença de sósias de Lênin e Stalin, crianças vestidas como jovens pioneiros, atores representando homens da nomenklatura e secretários do Partido. Mesmo assim, Malinauskas, o dono do parque, rejeita uma interpretação mais festiva do Grutas: “Isto não é um parque de exposição. É um lugar que reflete o doloroso passado de nossa nação. Não se pode esquecer ou eliminar a história, seja ela qual for”, escreveu num folheto de apresentação do local. Apesar de toda a polêmica que cerca a ideia e os debates acalorados no parlamento, o Parque Grutas se revelou um grande sucesso. Somente no primeiro ano de funcionamento, cerca de 100 mil pessoas o visitaram. Visita feita entre o peso da história terrível e as boas lembranças da juventude, quando o mundo parecia mais organizado e seguro, à sombra de uma grande estátua de Lênin.
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Karl MarX Espectro do filósofo ainda ronda a Europa Na cidade de Trier, onde nasceu o pensador alemão, interesse por sua vida resiste ao fim do comunismo e atrai peregrinação de visitantes reprodução
no país da filosofia,
Karl Marx continua sendo reverenciado como um grande pensador. Pelo menos na parte ocidental da Alemanha, onde não aconteceu a experiência socialista, Marx não perdeu muito de seu prestígio. Hoje, a casa onde nasceu, na cidade de Trier, continua sendo um ponto de peregrinação de visitantes. O local é também uma alentada recordação de que o comunismo, apenas como discurso, continua muito vivo em uma parte central do mundo de hoje: a República Popular da China. São os intrépidos capitalistas chineses, com fortes ligações com o PC de seu país, que fazem romaria à casa situada na rua Brücken, no centro da cidade. A casa-museu de Marx foi, durante a segunda metade do século 20, um local de interesse permanente para delegações oficiais dos países do campo socialista, em visitas de trabalho à então Alemanha Ocidental, e de militantes de partidos comunistas do Ocidente. Por uma curiosa ironia da história, no momento em que esse fluxo de visitantes deixava de existir – com a queda do Muro e a desarticulação dos partidos de esquerda que se seguiu –, começavam a surgir, na Europa, os grupos de chineses que, pela
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Casarão onde nasceu o pensador, em 1818, é hoje um museu dedicado ao seu legado
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marx em 1861, quando já morava em londres e escrevia O Capital
primeira vez, tinham a possibilidade de ir ao exterior. Entre uma visita a Paris e outra a Roma, nada como uma passada em Trier para ver o local onde nasceu o criador do comunismo científico e fazer uma média com o partidão chinês. Isso explica por que cerca de oito mil chineses visitam a casa de Marx todos os meses. Trier fica no Estado da Renânia Palatinado, quase na fronteira com a França e com Luxemburgo, na região do rio Mosela, famosa pela qualidade de suas uvas e de seu vinho. É uma das cidades mais antigas da Alemanha, remontando ao tempo dos romanos. Ainda hoje se mantém como uma típica pequena cidade europeia, onde a população circula a pé pelo centro, passando ao largo de barracas de feira que vendem pêssegos e morangos. O menino Karl veio ao mundo, em 1818, em um casarão burguês de vários cômodos, construído em 1727, no estilo barroco. Marx morou na cidade até os 17 anos (posteriormente também morou em outra casa, no centro, onde hoje funciona uma loja). Seguiu então para estudar em Bonn e Berlim e para atuação no jornalismo e na política em Colônia, Paris, Bruxelas e Londres. A história da casa nas décadas seguintes passou pelas peripécias da própria história da Alemanha. Foi adquirida pelo Partido Social Democrata na década de 1920. Em 1933 foi ocupada pelos nazistas e adornada com bandeiras com a suástica para abrigar um jornal próHitler. Em 1947, foi reaberta ao público como um museu. Em 1968, o então ministro de Relações Exteriores, Willy Brandt, responsável pela política de aproximação com o Leste Europeu, abriu uma exposição comemorativa
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dos 150 anos de nascimento do filósofo. Atualmente, a casa-museu é mantida pela Fundação Friedrich Ebert, ligada aos sociais-democratas. Beatrix Bouvier, diretora do Centro de Estudos ligado à casa-museu, é otimista quanto ao interesse futuro na obra de Marx. “É um pensador que continua polêmico. Sua obra é enorme e ainda comporta novas análises.” Os prósperos chineses que vão a Trier têm companhia de outros visitantes. Agora que suas ideias parecem não mais ameaçar o status quo, Marx é saudado até por conservadores como um intelectual que soube descrever como ninguém o dinamismo capitalista. Seu Manifesto comunista, de 1848, escrito junto com Friedrich Engels, é, em grande parte, uma atualíssima análise deste início de século 21 no que tange à dinâmica incontida do capitalismo e da fragilidade das relações pessoais. Seus livros voltaram a vender bem. Até certo ponto, Marx está de novo (quem diria?) na moda. A casa-museu mantém uma exibição permanente da história do comunismo científico com destaque
para a figura de Marx e as polêmicas com outros revolucionários do seu tempo (Mikhail Bakunin e Ferdinand Lasalle, por exemplo). Ressalta o trabalho do parceiro Friedrich Engels na divulgação do marxismo e na organização do movimento internacional dos trabalhadores. A exposição mostra fatos marcantes como a Revolução Russa de 1917, o desenvolvimento do socialismo real na Europa do Leste, a tendência do eurocomunismo nos anos 1970, as experiências de esquerda na América Latina. Temas espinhosos da história do marxismo não são evitados na exibição: os expurgos de Stalin na URSS, o massacre do regime do khmer vermelho no Camboja, a repressão aos estudantes na Praça da Paz Celestial, em Pequim, trecho que constrange alguns visitantes chineses. Polêmico, datado, e ao mesmo tempo muito atual, amado e detestado, Marx segue atraindo a curiosidade pública no século 21. Talvez para dar razão ao que dizia o amigo Engels: “Seu nome e sua obra haverão de perdurar através das eras”. Marcelo abreu
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Crônica
Vandeck Santiago Relato de um RepóRteR em tempoS de cRiSe 1º de agosto
Há muitos motivos para viajar a Paris. Procurar uma tumba não deve figurar entre os mais populares. Sobretudo se a tumba for de um francês que nem na França é conhecido. Caso você seja um repórter que está indo para lá pagando todas as despesas do próprio bolso e com a esperança de voltar com uma reportagem de 12 páginas de jornal – aí é que a coisa fica esquisita. Muito prazer: Vandeck Santiago, 47 anos de vida, 25 de redação, Recife, PE. Aqui no Aeroporto do Galeão, no Rio, faltando três horas até a partida do voo para Paris, não há muito a fazer a não ser consumir a espera anotando elucubrações. A viagem, que duraria 12 horas se fosse Recife-Paris, vai estender-se por 18 horas, dado que o trajeto é RecifeRio-Paris. Depois da espera virão os céus de Fernando de Noronha. Vamos passar por lá. O mesmo percurso do 447 da Air France, aquele que… vocês lembram. Talvez conseguisse não pensar nisso se eu não tivesse sido um dos repórteres que – desta vez com todas as despesas pagas – participou da cobertura do desastre, em Fernando de Noronha. Dias e mais dias engalfinhado com histórias tristes, imagens de corpos chegando em sacos, noticiário sobre a turbulência que todo avião enfrenta quando passa sob os céus de Noronha, conversas tolas com colegas sobre os últimos segundos de quem se vê despencando em direção ao fundo do mar…Ótimos pensamentos para ter antes de embarcar.
3 de agosto
Cansaço e dor de cabeça. 8h da manhã em Paris, madrugada no Recife. E se der tudo errado? E se não houver nenhuma novidade na matéria que vim fazer aqui? Pior dos pesadelos: e se não houver matéria?
Fiz os contatos antes, chequei dados, mas o imprevisto é companhia sorrateira de repórter. O pano de fundo da viagem é a crise dos jornais no mundo – queda de circulação, concorrências de novas mídias, vaticínios pessimistas, desemprego. As empresas estão tentando encontrar saídas. E os repórteres, o que devemos fazer? Estrebuchar. Melhor dizendo: reinventar-se. Tomar iniciativas. Destacar-se da massa. Investir em si próprio como quem poupa para comprar o primeiro apartamento. Especializar-se em subtemas. Tornar o seu trabalho indispensável. Fazer o que os colegas não fazem. Deve ter saído desse monturo de obrigações o impulso que me empurrou para cá. Cada um estrebucha como pode. “Sim, mas repórter agora deve pagar pra trabalhar?!...”, poderia perguntar o anjo cético. Neosaldina. À tarde, encontro com a professora brasileira Claudia Poncioni, da Universidade Ouest-Nanterre (França) e com o marido dela, o professor Jean-Yves Mérian, francês. Claúdia vai acompanhar-me à tumba de Vauthier – é este o personagem sobre o qual pretendo escrever minha matéria. Um engenheiro francês que trabalhou no Recife de 1840 a 1846. Autor de projetos como o do Teatro de Santa Isabel; introdutor do socialismo pré-marxista em Pernambuco, passagem marcante pela vida pernambucana. Gilberto Freyre publicou os diários dele em 1940 (Um engenheiro francês no Brasil, esgotado). Tudo que ele fez ao deixar o Recife é desconhecido. No Brasil, não se sabia sequer a data em que morreu – dava-se como provável o ano de 1877. Cláudia sabe a data exata. Pesquisando sobre Vauthier, ela decidiu ir de cemitério em cemitério para tentar descobrir se ele estava enterrado aqui. Encontrou-o no Cemitério de Montmartre (20, avenue Rachel). Um ônibus e uma leve caminhada depois e cá estamos nós, eu e Claudia, diante da tumba. À nossa frente, a prova do mistério de 100 anos desvendado. Na lápide: “Louis-Léger Vauthier – 6 de abril de 1815 / 2 de outubro de 1901”.
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4 de agosto
A confirmação da data já garantia o gancho do meu caderno especial. Há um desenho de Manuel Bandeira (o pintor, não o poeta) reproduzindo o rosto do engenheiro e dando 1877 como o ano da morte de Vauthier. Farei o lead a partir daí, “dialogando” com o desenho. Em reportagem de tema histórico o mais importante é trazer fatos novos, iluminando os personagens face aos novos tempos. O ritmo industrial de produção do jornalismo contemporâneo tornou isso quase impossível – o repórter precisa espremer o tempo para juntar informações, alinhavar a cronologia, entrevistar os especialistas da universidade mais próxima e correr para o fechamento. Inevitável que o resultado seja uma matéria “ligeira”, com e sem trocadilho. Talvez por não ter passado pelo endividamento em dólar dos anos 1990, e por ter custos muito menores, a imprensa regional está com limites bem mais flexíveis, permitindo que o repórter tenha o tempo e o número de páginas necessários para a reportagem. Vauthier retornou a Paris em 1846 e morreu em 1901 – nesse período de 55 anos, o que fez? Paris teve pelo menos dois acontecimentos marcantes: a Comuna de Paris (1871) e a reforma urbana empreendida pelo barão Haussmann, que deu à capital francesa a cara que ela tem hoje. Vauthier – engenheiro, homem de esquerda – terá tido alguma participação nesses episódios? Como tornar apetecível para leitores do século 21 a história de um personagem do século 19? Como não cair no eruditismo de calçada nem no simplismo da mera enumeração de datas? Dúvidas acalentadas no caféda-manhã do hotel. Em 15 de outubro de 2005 publiquei um caderno especial no Diario de Pernambuco sobre o mesmo personagem (Vauthier – A história que a França desconhece e o Brasil esqueceu). Foi graças ao caderno que a professora Cláudia me procurou em 2006, quando iniciou gestões para a realização de um colóquio internacional sobre Vauthier no Recife, dentro das comemorações do Ano França no Brasil. O colóquio virou realidade: acontece de 19 a 22
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de outubro, na Fundaj. A reportagem que estou produzindo vai sair neste período no Diario. Início de mais uma jornada metrô adentro. Destino: Marne-la-Valée. Encontro com Guillaume Saquet, da biblioteca da École des Ponts e Chaussés, onde Vauthier se formou. Mudaram os prédios, mas a escola é a mesma. Guillaume é um apaixonado pela história de Vauthier. Juntou tudo que encontrou sobre o engenheiro francês até hoje e preparou exclusivamente para mim, na biblioteca, uma exposição sobre ele. A diretora do Serviço de Documentação da instituição, Isabelle Gautheron, nos acompanha. Entre documentos – anuários, textos antigos e fotografias – está o caderno do Diario (seria ótimo se a direção do jornal visse onde a matéria veio parar).
Página anterior 01 túmulo Repórter iniciou sua peregrinação visitando a lápide de Vauthier Nesta Página 02 orientação em 10 dias, Vandeck reuniu material suficiente para sua reportagem em Paris
5 de agosto
Preparo o roteiro para, a partir das informações dadas por Guillaume, visitar todos os lugares onde Vauthier morou em Paris. Ele foi vereador por Paris de 1871 a 1887, por um partido de esquerda. Antes, em 1848, elegeu-se deputado federal, mas participou de uma insurreição contra o presidente e futuro imperador Napoleão Bonaparte III (sobrinho daquele outro, o famoso). Acabou preso e teve o mandato cassado.
6 a 9 de agosto
O caderno especial começa a tomar forma. Tem novidade, entrevistas em Paris, ideias para complementar o material no Recife. Numa das páginas farei a comparação entre Paris e Recife, em 1850 e hoje. Para o projeto gráfico, imagino entre outras coisas ilustração de pontes, simbolizando a ligação trazida por Vauthier. Também o uso do mapa do metrô e daquelas placas de ruas típicas de Paris. Preciso ainda de informações sobre a influência francesa na vida política (Joaquim Nabuco dizia que nossas revoluções eram resultado de ondulações vindas da França) e arquitetura – faço foto do Teatro de Odeon, em Paris, que seria o prédio inspirador do Teatro de Santa Isabel. Procuro o Mercado de Grenelle, que foi a inspiração do nosso Mercado de São
José. Descubro que ele foi demolido; o jeito é encontrar desenhos ou fotos do Grenelle quando inaugurado. O roteiro da reportagem tem de ser assim: 1) fatos novos; 2) enfoque original; 3) pesquisa em dissertações e teses – são um tesouro para reportagens especiais. E como o prazo apertado para as matérias impede a quasetotalidade dos repórteres de utilizarse desse instrumento, você sai na frente dos demais colegas; 4) a famosa “linha do tempo” não pode virar mera transcrição de livro e simples recurso gráfico. Devemos tratá-la com os mesmos cuidados de uma notícia: fazendo avultar os critérios de proximidade e relevância com o tema principal; 5) e se é para entrevistar especialista, que seja especialista mesmo – o camarada que estuda aquele assunto, que tem obras a respeito e, de preferência, que seja o principal conhecedor do tema. Não interessa onde esteja; no Recife ou em Uagadugu. Quando estiver com o jornal nas mãos, o leitor pensará que tudo foi fácil. Não imagina ele que, depois das angústias, tensão e dúvidas da
apuração, você vai para uma sala onde colegas gostam de ver televisão o dia inteiro. Imaginem o que é escrever uma reportagem de 12 páginas ouvindo Ana Maria Braga conversando com um louro. Ou Angélica entrevistando a celebridade do dia. Você faz o que pode: vez por outra pede aos colegas para baixar o volume; obriga-se a chegar às 7h e sair bem mais tarde, porque terá mais tempo de silêncio; e vai trabalhar aos sábados e domingos, quando a redação fica deserta.
10 de agosto
Rearrumo as malas – agora pesadas. Retorno ao metrô. Desço na estação Auber. Caminho até a parada de ônibus que leva ao aeroporto Charles de Gaulle. Morei aqui em 1992. Já voltei três vezes. Se pudesse, retornaria todo ano. Daqui a pouco estarei em casa. Só falta passar sob os céus de Fernando de Noronha.
@ continenteonline Leia matéria de Claudia Poncioni sobre Louis-Léger Vauthier no site www.revistacontinente.com.br
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centro cultural correios - ccc Recife
Avenida Marquês de Olinda, 262 Entrada Franca
Visuais CENTRO CULTURAL Cinco andares para vivenciar a arte
Instalado em prédio histórico no Recife, espaço chega com a promessa de abrir edital para seleção em várias modalidades de criação texto Renata do Amaral fotos Flora Pimentel
As dimensões do novo Centro
Cultural Correios do Recife impressionam: no prédio de cinco andares, há seis salas para exposições, auditório, sala histórica com exibição permanente de objetos da instituição, auditório e espaço para bistrô. Inaugurado em 31 de julho, o terceiro CCC do Brasil – ao lado do Rio de Janeiro (RJ) e de Salvador (BA), e de dois espaços culturais menores em Fortaleza (CE) e Juiz de Fora (MG) – já abriu as portas com cinco exposições paralelas. “Nossa ideia é transformar o prédio todo em cultura”, diz a chefe do CCC, Lúcia Moura, que participou do longo processo para abertura do CCC desde 1996, época prevista para a inauguração da área da sobreloja. Treze anos depois,
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Entre as primeiras exposições esteve a de Terciano Torres, Recife Cartum Postal
Prédio dos Correios abriga seis salas para mostras, auditório e espaço para bistrô
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ela considera que ainda há poucos espaços para a arte na cidade e acredita que o centro vai ajudar a suprir essa lacuna. “A nossa seleção independe de forças políticas, então basta o projeto ter qualidade”, garante. As inscrições para o Sistema Aberto de Seleção de Patrocínio dos Correios estão abertas até 14 de outubro e são feitas online. O edital contempla quatro áreas, num valor total de R$ 1,66 milhão, e abarca ações com realização prevista entre março de 2010 a março de 2011. A seleção será feita por uma comissão técnica sediada em Brasília e no Recife. O maior valor será destinado às artes visuais (artes plásticas, artes gráficas, cartazes, gravuras, filatelia e
fotografia): R$1.11 milhão e até R$ 120 mil por projeto. Em seguida, vem a área de música (apresentação de música instrumental, clássica e de concerto ou de gêneros brasileiros), com um total de R$ 240 mil e até R$ 80 mil por projeto. Humanidades (eventos literários e saraus) vão contar com R$ 160 mil, sendo até R$ 45 mil por projeto, e audiovisual (mostras e festivais de cinema e vídeo) terá R$ 150 mil, sendo até R$ 90 mil por ação. Os aspectos mais observados na escolha são seis: qualidade do projeto, temática, ficha técnica (análise de currículos), visibilidade, relação custo x benefício e interesse estratégico da empresa. Enquanto as primeiras exibições foram convidadas e vão funcionar por três meses – exceto a exposição filatélica, em cartaz até o fim de 2009 –, as próximas terão 45 dias de duração. As concorrências serão sempre em nível nacional e não local. Na seleção, o Nordeste ganha atenção especial.
ViSitAÇÃo JUVeniL
As mostras em exposição até 31 de outubro vão de temas tão diversos quanto o início da aviação transcontinental até divertidos cartuns e mapas sobre o Recife e Olinda (Recife Cartum Postal, do artista plástico pernambucano Terciano Torres), passando pela caligrafia (com Cláudio Gil) e pintura (com José Carlos Viana). O público jovem, em especial, é um dos alvos do novo centro. As mostras oferecem monitoria para visitação e um dos critérios para escolha é o apelo ao público infanto-juvenil. Escolas podem agendar visitas guiadas e já se tornaram, no primeiro mês
de funcionamento do CCC, um dos públicos mais frequentes. Para quem trabalha nas redondezas, o horário (de terça a sexta, das 9h às 18h, e sábado e domingo, das 12h às 18h) deve agradar, pois permite visitas na hora do almoço. O prédio reformado é uma atração à parte. Construído no início do século 20 e comprado pelos Correios em 1921, funcionou como sede da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) até a década de 1950. Depois, virou unidade administrativa nos anos 1990 até passar a funcionar apenas como agência – que, aliás, segue em funcionamento no térreo. A fachada da obra, uma composição eclética baseada no classicismo francês, foi preservada. A restauração custou mais de R$ 5 milhões e incluiu a instalação de uma clarabóia que permite a entrada de luz natural, uma escada e um elevador para garantir acessibilidade. De acordo com o assessor de imprensa do CCC, Fábio Peixoto, essa reforma era um projeto de 2004 com conclusão prevista para 2006, mas um problema com o piso de madeira da casa terminou virando uma briga na justiça com a empresa responsável e a obra só ficou pronta no fim de 2008. Alguns espaços ainda estão vazios, como o bistrô, que vai passar por uma licitação, e um quiosque para venda de livros sobre arte e suvenires das exposições. A área da cafeteria, apesar do nome, não vai funcionar como tal, mas servir como espaço para coquetéis de vernissages. Já o auditório pode abrigar desde cursos e oficinas até cineclubes ou apresentações de teatro e dança com entrada paga. O acesso ao restante do centro, no entanto, é gratuito.
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biENAL mERCOsUL O que dizem e o que pensam os artistas contemporâneos Sétima edição da mostra, em Porto Alegre, reúne obras de 150 selecionados sob o título Grito e escuta, com a proposta de centrar nos processos de criação do artista
DaniElE BuETTi/Divulgação
texto Mariana Oliveira
7ª Bienal do Mercosu
PoRto ALegRe – RS
fundacaobienal. art.br
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Visuais desde o ano passado , a mais
famosa das bienais brasileiras – a de São Paulo, criada nos anos 1950, para dar visibilidade internacional a artistas brasileiros e trazer para o país obras de grandes nomes mundiais – passou por uma de suas maiores crises ao levar ao pavilhão do Parque Ibirapuera aquela que ficou conhecida como a Bienal do Vazio. Para alguns críticos, a mostra perdeu seu foco, não tem um projeto de base e se preocupa apenas em produzir a cada dois anos uma exposição internacional de arte.
Na contramão dessa crise, atraindo cada vez mais a atenção de críticos, curadores, artistas e do público está a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre, que chega à sua sétima edição este mês. A mostra vem se consolidando desde 1997, quando surgiu com o objetivo de dar mais visibilidade à arte produzida na região – proposta hoje expandida a países que não fazem parte do grupo geopolítico. Desde a edição realizada em 2007, o projeto curatorial ampliou o círculo de participação de forma que
pudesse incluir artistas de diversas procedências, sem limites geográficos. “Nossa proposta se insere nesta linha e estende a participação a outros artistas da América Latina e do mundo. A nossa é uma bienal pensada desde o Mercosul, mais especificadamente, desde Porto Alegre”, explica a atual curadora, a argentina Victoria Noorthoon (leia entrevista a seguir), que divide a responsabilidade com o chileno Camilo Yáñez. A sétima edição da bienal, intitulada de Grito e escuta, propõe
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cURAdoR-PedAgÓgico
Dando continuidade ao investimento no programa educativo da bienal, o qual se firmou e cresceu em 2007, manteve-se o cargo do curadorpedagógico, ocupado, nesta edição, pela artista argentina Marina De Caro. As atividades educativas vêm sendo descentralizadas, estendendo-se a diversas comunidades do Estado do Rio Grande do Sul, através do programa de residências artísticas. “Antes mesmo da abertura da bienal, 12 artistas estão trabalhando em comunidades específicas dentro do Estado, traduzindo seus projetos em ferramentas específicas que possam ser logo replicadas pelos professores”, pontua Noorthoon. Além das ações junto ao público, há um projeto editorial que deve produzir peças para serem distribuídas entre os espectadores e uma rádio, que vai transmitir as ideias dos artistas para além dos limites físicos da bienal, fazendo com que um ouvinte ou leitor que esteja a quilômetros da exposição fique tão perto quanto aquele espectador que está na suas salas.
Flávia DE quaDros/inDiCEFoTo.Com/Divulgação
uma mostra centrada nos processos de criação do artista, através de suas ações e reflexões. Destacam-se tanto o artista que se pronuncia de modo contundente com a intenção de gerar uma mudança específica mediante suas ações (grito) quanto o artista que reflete sobre aquilo que está acontecendo no mundo (escuta). “A curadoria propõe uma reflexão sobre a pertinência da arte hoje e, sobretudo, sobre o rol social dos artistas, ou seja, sobre a pertinência da criação como manifestação do poder da imaginação em todas as esferas da vida pública”, conceitua Noorthoon. Os curadores querem mostrar que o criador tem a capacidade de propor um olhar sobre o mundo, abrindo interpretações da realidade e questionando paradigmas e status quo. Para isso, foram selecionados mais de 150 artistas, de países variados. Participam da mostra nomes fortes da cena contemporânea, como o argentino León Ferrari, o chileno Juan Downey, e os brasileiros Chelpa Ferro, Cildo Meireles e Iran do Espírito Santo, entre outros.
principalmente em países fora do circuito central das artes, era dar visibilidade a produções periféricas. Você acredita que a arte está de fato mais descentralizada? VictoRiA nooRthooR Sem dúvida. Por sorte, atualmente os grandes museus começam a valorizar mais a diferença, aquela proposta que não necessariamente entre num cânone específico. Tudo o que está em sintonia com a multiplicidade de aberturas e discursos que permitem questionar histórias canônicas e hierarquias antes consideradas absolutas.
Entrevista
ViCTORiA NOORTHOOR A jovem curadora argentina teve seu projeto, em parceria com o chileno Camilo Yáñez, escolhido entre os 67 inscritos na seleção para o curador-geral da sétima edição da Bienal do Mercosul. Formada em artes pela universidade de Buenos Aires, tendo atuado como curadora do Museo de Arte Latino Americano de Buenos Aires – Malba/ Colección Costantini, nesta breve entrevista, Noorthoon fala sobre o papel de uma bienal no século 21 e da arte contemporânea latino-americana. continente A Bienal de São Paulo está passando por enfrentamentos e crises. O modelo das bienais segue fazendo sentido hoje, num mundo globalizado? VictoRiA nooRthooR Claro, acreditamos na pertinência de uma bienal como a do Mercosul na América Latina, que pode ser uma plataforma de visibilidade para muitos artistas e esperamos que esta sétima bienal fomente debates, questionamentos e reflexões entre as diversas propostas dos artistas e seu público. continente Um dos objetivos da criação das bienais no Brasil e no mundo,
continente Há uma identidade latino-americana na arte? No mercado internacional ainda são esperadas obras dentro dos estereótipos? VictoRiA nooRthooR O uso dos estereótipos é inegável e a utilização desse recurso geralmente é uma estratégia fácil para chamar a atenção, uma simplificação terrível sobre a complexidade de todo o contexto cultural e, sobretudo, da localidade. É difícil hoje falar sobre a construção de identidades, num mundo marcado por fluxos de informação, migrações, mutações e diálogos. Ainda assim, há traços comuns entre determinados países que dão lugar a narrativas e histórias que podem ser colocadas em um país e ser pertinentes para outro. Mas daí a se falar de uma identidade latino-americana é um passo muito grande. continente Há limites para a arte? Você colocaria na bienal obras como a do artista costa-riquenho Guillermo “Habacuc” Vargas, que deixou um cachorro trancado numa galeria? VictoRiA nooRthooR Claro que há limites para tudo, em todas as disciplinas. Eu diria que o limite é marcado pelo rigor conceitual e pela pertinência das ações. Se as ações são pertinentes – e, como você indica, há algumas de duvidosa pertinência – serão bem-vindas. Caso não sejam, existirão outras instâncias ou feiras nas quais se possam exibir os passatempos.
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o conte Grande visto por dentro (2)
Barcelona a las cinco de la tarde
matéria corrida José cláudio
artista plástico
A travessia Dacar-Lisboa é tão longa quanto Recife-Dacar: uma semana de mar. Depois Barcelona, Cannes, Gênova e Nápoles. Em Gênova os passageiros desembarcavam diretamente num belo salão ao nível do convés, sem precisar descer para o cais por escada externa, os homens orgulhosamente exibindo dois abacaxis encangados no ombro, um para frente outro para trás, como troféus de batalha. Em Nápoles um marinheiro pediu-me para desembarcar com duas maletas em troca de dois pulôveres argentinos de lã notando que eu não levava roupas de frio. Foi a salvação. Na Itália o frio já começara, pelo menos para mim. Só Deus sabe o que ia naquelas maletas: se fosse hoje eu não levava nunca. Não consigo acreditar, como li no histórico enviado pelo amigo Arthur Carvalho, que o Conte Grande tenha ido para o desmancho em 1961, apenas três anos após minha volta. Já sonhei várias vezes entrando no navio para mais uma viagem. De vez em quando ainda ouço o alto-falante: Signori passeggeri! Il pranzo è servito! (senhores passageiros, o almoço é servido).
Eu já tinha batido a Europa toda: Itália, Paris, Bélgica, Holanda, Munique, Viena, Basiléia na Suiça e me encontrava em Madri. Um ano de Europa. Como sempre, não sabia o que fazer da vida. Pensei até em entrar para um convento. Hospedava-me de empréstimo numa pensão de tabique nada diferente das mais pobres do Bairro de São José aqui no Recife, no quarto de um brasileiro em férias. Félix Athayde, trabalhando no consulado, foi quem arranjou. Uma noite deu-me aquele desespero na hora de dormir e mesmo sem acreditar em Deus fiz-lhe um ultimato: se até o amanhecer Ele não me definisse qual a atitude a tomar, me atiraria à primeira oportunidade nem que fosse assaltar um banco. Fui dormir. No meio da noite, aquele grito assustador: “Vá embora para o Brasil hoje!” Tanto que pulei da cama e corri para o corredor pensando terem-se acordado os demais ocupantes dos tabiques com o vozeirão, que imediatamente presumi do Pai Eterno. Tudo silente: o grito tinha sido somente para mim. Esperei o dia amanhecer. Pela primeira vez olhava a Gran Via, descendo-
a, como se já distante dela no tempo e no espaço, em busca da companhia de navegação. Minha passagem, ida e volta. Lá, me atendeu um rapaz. “Quero ir para o Brasil hoje!” Viu que eu estava afobado e me explicou com calma. A coisa não era assim tão fácil. Passagem de navio só vale para o mesmo navio. Digamos que esse navio tenha feito escala em Barcelona seguindo para a América do Sul, parando na África, nos diversos portos do Brasil, Montevidéu, Buenos Aires; aí passa uma semana ou mais reabastecendo, pintando, fazendo reparos; volta cumprindo as mesmas escalas, passa por Barcelona, Cannes, Nice, Gênova e finalmente Nápoles onde para mais uma semana. Quando chegar novamente aqui, terão decorrido de dois a três meses. “A não ser que você queira pagar para trocar de navio.” Disse-lhe que isso estava fora de cogitação. “Qual é o seu navio?” Eu disse: “Conte Grande”. Ele virou-se para a tabela na parede e exclamou: “Chegou ontem em Barcelona e parte amanhã para o Brasil”. Ficou conjecturando tão interessado como se o passageiro fosse ele próprio. “Mas não vai dar para
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josé claudio
pegá-lo.” De trem, havia uma lista de espera de mais de dois meses. Só se eu fosse de avião mas isso ia custar muito mais dinheiro. Corri ao consulado para falar com Félix Athayde. Félix mexeu lá os pauzinhos e milagrosamente conseguiu a passagem. Nesse dia era milagre um atrás do outro. Cheguei em Barcelona no finzinho da tarde. Na passagem aérea estava incluído o trajeto na cidade até o local indicado pelo passageiro. Carro preto de uns cinco ou seis lugares. Fui o último a descer. O motorista muito simpático rodeou e abriu-me a porta curvando-se numa reverência: “O Conte Grande!” Olhei e vi o costado do barco, a escada subindo do cais deserto mas fechada como uma lagarta de lona. Não encontrei ninguém com quem falar. Lá no alto divisei um marinheiro debruçado na amurada. Meu italiano ainda dava para o gasto. “Sou passageiro e quero entrar no navio!” gritei e ele respondeu que só no outro dia a partir das 7 da manhã. Argumentei que não tinha onde dormir, onde passar a noite e queria falar com o comandante. Ele disse que não adiantava, que era ordem
eu já tinha batido a europa toda: itália, Paris, Bélgica, Holanda, Munique, Viena, Basiléia na Suiça e me encontrava em Madri da capitania: ninguém podia entrar em navio depois das 5 da tarde. Recuei e, maleta encostada à perna, me detive a contemplar o paredão do barco no descampado do cais. Novembro, um ventinho frio de outono avisava que a noite não ia ser de brincadeira. Pensei em me abrigar num bar dos que costumam existir em zona portuária. Ou quem sabe uma mulher me chamasse para casa, como já me ocorrera na Bahia, na cidade de Araci. Sem que eu pressentisse alguém chegou ao meu lado e me bateu no ombro direito com as pontas dos dedos. “Você é brasileiro, né?” Respondi: “Sou”. Era um rapaz magrinho, de grandes olhos, nariz aquilino, cabelo liso. “Chegou atrasado para pegar o na-
vio, né?” Eu disse: “Foi”. Ele disse: “Eu também”. Perguntou: “Que veio fazer aqui na Europa?” Lhe repondi: “Sou pintor e ganhei uma bolsa de estudo”. Ele disse: “Eu também”. Era o já bem conhecido Ivan Serpa (Rio de Janeiro, 1923-1973), ganhador do Salão Nacional. Ele me convidou para jantar por ali perto e disse que tinha alugado um quarto com duas camas, eu podia ficar na outra e era até bom porque sairíamos juntos. No navio nos encontrávamos na hora das refeições. À nossa mesa sentava um português que pensava que a batalha do Riachuelo se tinha travado na rua onde ele morava no Rio de Janeiro. Eu e Ivan matávamos o tempo discutindo pintura. Nunca mais tive oportunidade de falar com ele, falecido ainda jovem, para lhe retribuir o jantar e a noite em Barcelona, que só foi aquilo mesmo: dormir e no outro dia entrar no navio. Para relembrarmos a travessia no Conte Grande. Conte Grande que ainda vejo em sonho navegando no alto-mar da mocidade longe, mais longe até do que quando menino Arthur Carvalho via da Ladeira da Barra.
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oscar malta/divulgação
noite... em um cenário de qualquer
Palco videodança Para que não haja distinção entre o sonho e a realidade
Em Dançando para não cair... 4 TOC’s, Oscar Malta explora possibilidades deste campo artístico, criando obra em que funde elementos biográficos e estéticos texto Christiane Galdino
grande cidade do mundo, alguém se movimenta cambaleante e decide ir “dançando para não cair”. Uma cena-reflexo do ritmo alucinante dos tempos atuais que inaugura novas patologias e tecnologias a cada instante. A imagem borrada pela velocidade ou instabilidade – que parece coreografia – traz uma discussão complexa, partindo da associação entre o movimento corporal repetitivo dos portadores do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e o loop, nome dado à sequência de repetições na linguagem de vídeo. Essa é a ideia que dá origem ao argumento de Dançando para não cair... 4 TOC’s, do pernambucano Oscar Malta, pré-selecionado na edição 2009/2010 do programa Rumos Dança do Itaú Cultural. Entre os 170 inscritos de todo o Brasil, 14 propostas foram escolhidas para participar de um curso sobre dança para tela, com Miranda Pennell, em São Paulo. Na oficina, houve espaço para aprofundar o debate sobre a linguagem da videodança, e também um tempo de orientação individual, para cada criador discutir o seu projeto com a diretora inglesa. Agora, cada proponente deve enviar o roteiro do seu trabalho à curadoria do Rumos, que vai conceder a cinco trabalhos um prêmio de 20 mil reais. Nas danças gravadas em vídeo por Oscar Malta, ficção e realidade se fundem, revelando traços autobiográficos que emprestam um ambiente de sonho à sua obra. O realizador extrai das relações familiares e experiências pessoais os elementos estéticos para construir sua poética. “No começo da minha trajetória, eu explorava mais os recursos de edição, experimentando efeitos de computação gráfica em cenas de dança. Hoje estou buscando dar vida, que não seria possível a corpos em uma realidade cênica. Por isso, em Dançando para não cair... 4 TOC’s escolhi trabalhar silhuetas em contraluz para alcançar manchas audiovisuais, o corpo impossível”, situa Malta. Colocando em pauta os distúrbios urbanos, o cineasta propõe a arte como tratamento dos chamados males da alma, apresentando um estudo do movimento a partir do comportamento dos portadores do transtorno obsessivo-compulsivo. Fatos aparentemente comuns do cotidiano,
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Diretor oscar malta desenvolve pesquisa para seu mestrado em arte e mídia digital
como verificar a fechadura da porta, separar a comida no prato antes das refeições, e lavar as mãos repetidas vezes são vistos na perspectiva da dança, servindo de assunto e cenário para esta nova pesquisa.
DeFiniÇÃo PoLÊMicA
Basicamente formada da junção da dança, do vídeo e das chamadas novas tecnologias, a videodança é uma forma artística em desenvolvimento. Portanto, sua conceituação ainda é imprecisa. O formato já surgiu com identidade híbrida, pois conserva elementos da dança e do vídeo, mas não se encaixa completamente no perfil de nenhuma destas duas linguagens. Na opinião de Oscar Malta, existe videodança quando “há uma produção de dança pensada para a câmera e tela e finalizada no suporte vídeo”. Uma definição ampla que suscita polêmicas, porque abriga indistintamente as mais variadas formas, inclusive aquelas em que o corpo humano não é o sujeito da dança. “Porque entendo o corpo a partir do conceito da física e, assim, qualquer objeto pode dançar, como no caso do meu trabalho de estreia, Vida de artista (2002), em que as raspas de lápis são os bailarinos”, argumenta Malta, que atualmente desenvolve uma pesquisa sobre videodança para o seu mestrado em arte e mídia digital na Universidade Paris 1/Sorbonne. Para chegar à videodança, ele partiu de conhecimentos técnicos nas áreas de cinema, design e vídeo, adquiridos ao longo de anos de experiência atuando como designer, diretor de arte, diretor de fotografia e documentarista. Mas o percurso que pode parecer óbvio à primeira vista, na verdade, revela uma ligação anterior de Malta com o universo da dança, intimidade criada por acompanhar de perto a carreira da irmã, que é bailarina profissional, e se tornar plateia e fã incondicional da arte do movimento. “Assistindo a tantos espetáculos de dança, e utilizando meus conhecimentos em vídeo, comecei naturalmente a produzir trabalhos em videoarte, e, com o passar dos anos, percebi que se tratava de videodanças”, explica Malta, que também é autor de Aminióptico, primeiro lugar na categoria experimental
do Festival de Vídeo do Recife (2003); e Origem (2006), exibido no VII Videodance Internacional Festival, da Grécia, em 2007, entre outros. Apesar das imprecisões de um conceito ainda em construção, a videodança não é nova no Brasil. Pioneira dessa forma de expressão, a coreógrafa e videomaker paulista
colocando em pauta os distúrbios urbanos, o cineasta propõe a arte como tratamento dos chamados males da alma Analívia Cordeiro produziu a primeira videodança brasileira, chamada M3X3, em 1973. A novidade é o aumento, nos últimos anos, de mostras e festivais dedicados exclusivamente à videodança, uma expansão que ocasionou também a criação de prêmios e editais específicos, que financiam a produção dos trabalhos.
ZonAS De eXPoSiÇÃo
Em Pernambuco, reconhecido polo de cinema e dança, paradoxalmente, são poucos os incentivos à produção
em videodança. Para encarar esses e outros desafios em prol da divulgação, e consequente popularização da videodança, Malta criou, em 2007, o Play Rec – Festival Internacional de Videodança do Recife, que agora chega à sua terceira edição. Financiado pelo 2º Edital do Audiovisual de Pernambuco, o Play Rec 2009 (www.playrec2009.com) acontece de 2 a 5 de novembro no Teatro Apolo, no Recife. Além da exibição de trabalhos de todo o Brasil e dos países do Circuito de Videodança do Mercosul (Uruguai, Paraguai e Argentina), o evento terá uma minirresidência, palestras, oficinas e uma mostra intitulada Outro olhar, com trabalhos que exploram a relação dançavídeo nos mais variados formatos. “Por estar instalada na fronteira do audiovisual contemporâneo, a videodança tem a possibilidade de ocupar vários espaços e todas as telas, inclusive a do celular”, defende Malta. Além de ter a mobilidade a seu favor, a videodança conta também com a criatividade dos profissionais da dança e do cinema para se reiventar e se consolidar como uma linguagem artística. Embora instrumento recente e ainda pouco conhecido no cenário nacional, a videodança abre perspectivas para novas formas de criação e produção da arte contemporânea.
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fotos: reprodução
SaMUeL BeCKeTT Síntese de esperas e incertezas
Em Esperando Godot, dramaturgo desponta como expoente do chamado teatro do absurdo e reflete sobre anseios do homem texto Tiago Eloy Zaidan
Palco cinco personagens e um cenário que flerta com o minimalismo: uma erma estrada campestre adornada por uma árvore. Dois dos personagens, Vladimir e Estragon, postam-se no palco com um propósito – esperar um certo Godot –, a despeito de não saberem porque o esperam. No embate contra o tédio da espera, desenvolve-se um diálogo aparvalhado, por vezes sem nexo. Até que entram em cena Pozzo e Lucky. Pozzo arrasta Lucky pela coleira. Os recém-chegados entretêm Vladimir e Estragon por alguns instantes antes de se retirarem. Em seguida, surge o último dos personagens, um menino que cumpre o ofício de mensageiro. Vem para trazer um recado de Godot. O ilustre aguardado avisa que vai se atrasar, mas que chegará amanhã. No ato seguinte, a espera não se encerra e a dupla Pozzo e Lucky volta ao palco para distrair Vladimir e Estragon. Pozzo e Lucky estão, de modo inexplicável, cego e mudo, respectivamente. Depois, o recado do novo atraso de Godot é trazido pelo menino mensageiro. Este é o enredo da peça Esperando Godot, do escritor irlandês Samuel Beckett (1906–1989). Escrita em francês, em 1949, a obra só seria publicada em 1952, após ser recusada por inúmeros editores. No teatro, Esperando Godot estreou em
janeiro de 1953, pelas mãos do diretor Frances Roger Blin (1907–1984). Sobre a gestação de sua aventura beckettiana, Blin afirmaria em 1965: “Entre 1949 – 1950, eu dirigia o Théâtre de la GaitéMortparnasse, onde havia montado A sonata dos espectros. O espetáculo não ia bem, poucos espectadores se aventuravam. Mas, um dia, entre eles, estava Beckett, que voltou uma segunda vez. Pouco tempo depois, recebi a visita de sua mulher, Suzanne, que me trouxe o manuscrito de Esperando Godot (...). Àquela altura, Suzanne já havia levado Godot às antessalas de inúmeros diretores, sem o menor sucesso”. Após a estreia, as traduções de Godot ganharam o mundo. Ainda na década de 1950, a peça foi encenada em Londres e em Dublin, cidade natal de Beckett, chegando aos Estados Unidos em 1956. O inferno cíclico no qual estão presos Vladimir, Estragon e companhia, motivou o dramaturgo francês Jean Anouilh a afirmar em 1953: “‘Nada acontece, ninguém vem, ninguém vai, é terrível’. Esta fala, dita por um dos personagens da peça, é seu melhor resumo. Godot é uma obra-prima que vai provocar desespero nos homens em geral e nos dramaturgos em particular”. Não à toa – Beckett é considerado, ao lado do romeno radicado francês Eugène Ionesco (1909–1994), ícone da
corrente teatro do absurdo, distinguido por distorções, diálogos desconexos e abordagens da alienação. Mas, afinal, quem é Godot? Diante desta indagação, o próprio autor teria afirmado: “Se soubesse, teria dito na peça”. Não raro, Godot é visto como uma representação de Deus. De fato, é inevitável traçar paralelo entre a espera por Godot e o anseio milenar alimentado pela cultura judaico-cristã pela vinda do Messias. Sob a luz do contexto em que a obra foi escrita, os dois atos de Esperando Godot permitem refletir, ainda, sobre as duas grandes guerras mundiais – descortinadas em sequência como atos distintos de uma mesma peça. Durante os dois conflitos que varreram a Europa, a esperança de uma paz vindoura foi inspirada pela propaganda marcial, paz que, entretanto, insistia em não chegar. Mesmo com o fim da Segunda Guerra e a derrocada do nazismo, a prometida paz mundial passou ao largo, com o advento da Guerra Fria. O escritor irlandês, aliás, vivenciou a Segunda Guerra como integrante do movimento clandestino de resistência ao Eixo, em Paris. Nobel de Literatura em 1969, Samuel Beckett e sua obra oferecem uma síntese de elementos nevrálgicos do mundo na modernidade. Um mundo marcado por incertezas.
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flora pimeNtel
Relançamento
EDIÇÃO LUXUOSA DE MACBETH a editora cosac Naify lança no Brasil edição luxuosa de Macbeth, do dramaturgo inglês William shakespeare. com tradução do escritor manuel Bandeira, a publicação inclui posfácio de W.H.auden e ensaio fotográfico de emílio luisi, sobre o espetáculo Trono de sangue – Macbeth, dirigido por antunes filho, além de registros de montagens históricas da obra, com sarah Bernhardt, laurence olivier, peter o’toole, orson Wells, entre outros. a história é uma das mais sangrentas tragédias do autor de Rei Lear, Hamlet e Otelo. “a peça é uma sequência de combates e violências, de traições e assassínios, que se sucedem da primeira à última cena em ritmo precipitado, implacável”, assinalou Bandeira.“Macbeth, por excelência, é a tragédia da ambição”.
Circo
PARA PALCOS E PRAÇAS durante 10 dias, o recife abrigará performances de alguns dos melhores nomes do circo contemporâneo mundial dentro da programação do festival de circo do Brasil. o evento, em sua quinta edição, presta homenagem ao ano da frança no Brasil. as apresentações acontecem entre os dias 8 e 18 de outubro, no teatro guararapes, teatro de santa isabel e praça do arsenal da marinha. dentre as atrações internacionais destacamse akoreacro, Non Nova, trio Zindare e cirque fusion triskel (foto). o festival também reúne espetáculos de renomados grupos nacionais, como circo vox, Tholl, teatro mágico e palavra cantada – que vai apresentar o show O melhor do Palavra Cantada, com o repertório de 14 anos de carreira.
Casa de espetáculos
TeaTro CoMo ProTagoniSTa os pernambucanos são bons em fazer história, mas daí a saber registrá-la é outra conversa. Basta observar a produção artística e suas incontáveis lacunas de documentos, coleções e principalmente publicações que organizem o legado cultural do estado. o livro Casa de espetáculos: crônicas, críticas e comentários (sesc pernambuco, 275 págs.) chega para ajudar a cobrir um pouco desse vácuo, pelo menos no campo teatral. a partir da reunião de textos escritos pelo jornalista, crítico e ator enéas alvarez, durante as décadas de 1970 e 1980, o livro faz um apanhado de um período importante da história do teatro pernambucano. uma época em que, apesar da ditadura, se fazia e se via muita peça no recife e no interior do estado. É tanto que os colunistas-críticos da área gozavam de certo status e, ao contrário de hoje, tinham espaço garantido para escrever nos jornais. foi o caso de alvarez e de outros, como valdi coutinho e a própria dupla oliveira & marques, que assinou, durante anos, a coluna Casa de Espetáculos, que dá nome ao livro, no jornal Diário da Noite. alvarez deu sequência a esse trabalho no mesmo periódico e depois no Jornal do Commercio, com a coluna Teatro. poupandonos da poeira dos arquivos, o livro reúne justamente uma seleção desses escritos, que se dividem em crônicas, críticas, comentários e notinhas curtas (Pano Rápido), sob a organização do dramaturgo e diretor romildo moreira. uma contribuição não só à história do teatro local, mas também a do jornalismo cultural pernambucano. as crônicas eram matérias de estilo solto; as críticas gozavam de tom pessoal, em primeira pessoa; os comentários eram notícias e lembretes curtos; e o Pano Rápido parecia com notinhas de coluna social, com informações de bastidores e revelações da sociedade teatral pernambucana. tudo isso com o verniz de um tempo que deve muito aos jornais o seu registro, como uma das mais importantes (senão uma das únicas) formas de documento e fonte de pesquisa. mas sem enrolação: com todos os recortes e interesses que pautam a atividade jornalística, sobretudo a do colunista. oLÍVIA MINDÊLo
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divuLGação
Leitura
LINA BO BARDI herdeira e porta-voz da arquitetura moderna
Ler os textos que ela escreveu ao longo da vida é um modo de compreender o pensamento de toda uma geração, que via na profissão uma ação social texto Adriana Dória Matos
Quando, em 1946, Lina Bo Bardi
avistou as terras brasileiras, de dentro de um navio na baía de Guanabara, deu de olhos com um marco da arquitetura moderna no Brasil: o edifício do Ministério da Educação e Saúde, hoje Palácio Gustavo Capanema, que havia sido construído por Lúcio Costa e equipe, sob supervisão de Le Corbusier. O “branco e azul” do prédio em contraste com o azul do céu foi imagem sempre lembrada pela arquiteta, que migrava ao país fugida dos destroços da Segunda Guerra Mundial. “Eu
trazia anos de amargura, como toda minha geração. Minha geração passou por tragédias, e não se construía, se destruía. Então, era preciso inventar coisas. Inventamos jornais, revistas, fizemos um projeto desenhado sem esperança nenhuma”, disse ela à plateia do Congresso Brasileiro de Arquitetos, em 1991, um ano antes de sua morte. Era com otimismo, então, que Achilina di Enrico Bo – nascida em Roma em 1914, formada pela Scuola Superiore di Architettura di Roma e tornada Bardi ao casar-se com o
jornalista Pietro Maria – encarava a chegada a uma pátria escolhida, em que ela pretendia realizar uma arquitetura moderna, “num país novo, sem vícios e sem ruínas”. Foi no Brasil que a arquiteta construiu seu legado, sendo autora de obras como a sede do Museu de Arte de São Paulo – Masp (1957-1968); do Sesc Pompeia (1977); da Casa de Vidro (1951), em que o casal Bardi morou e onde agora funciona o Instituto Bo e P.M. Bardi; entre outras, além de trabalhos de restauro e requalificação de construções históricas, como a Casa do Benin e o Solar do Unhão, sede do Museu de Arte Moderna da Bahia, ambos em Salvador. Ocorre que Lina não se dedicou apenas a projetos construtivos, tendo realizado ilustração, design de jóias e objetos (é de sua autoria a poltrona Bardi’s Bowl, de 1951), curadoria de exposições, museografia, cenografia e figurino para teatro. Ela também foi educadora, tanto no sentido estrito – quando deu aulas em cursos de graduação em arquitetura – quanto no amplo, ao exercer nessas várias frentes uma constante militância a favor da arquitetura moderna. Neste sentido, seu trabalho como editora e articulista foi fundamental para que chegasse a um público mais amplo, de não iniciados, ao mesmo tempo em que abria um debate entre pares. “Autora de projetos marcantes e emblemáticos, Lina Bo Bardi logrou construir pouco. Seus edifícios são definidores de paisagens paulistanas e soteropolitanas, mas, se compararmos com outros arquitetos, podemos contá-los nos dedos”, escreve Silvana Rubino, na apresentação ao livro Lina por escrito, que reúne três dezenas de textos da arquiteta, publicados ao longo de 50 anos. Professora do departamento de História da Unicamp, Rubino selecionou o material junto com a arquiteta Marina Grinover; um conjunto que evidencia a persistência de Lina em defender uma arquitetura voltada ao coletivo, à simplicidade e à austeridade de meios e formas. As organizadoras destacam que “foi por escrito que os arquitetos modernos se municiaram de um novo vocabulário e mudaram o modo de falar sobre arquitetura”, lembrando que em diversas ocasiões, no século 20, houve um “porta-
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mesmo relativos ao aparato construtivo urbano, mas muitas vezes essas informações chegam sem destaque ou como um mero boletim oficial, em que se faz ausente a análise ou a interpretação. O plano diretor de uma cidade, por exemplo, é algo tão necessário e importante que deveria fazer parte das preocupações cotidianas do cidadão, mas nem sempre o que está sendo decidido é discutido. Conhecer o como se faz uma edificação, por que se escolhem determinados materiais, as tendências estéticas que se revelam em uma fachada, pensar a cidade como um organismo vivo, a economia do mobiliário doméstico, entre tantos outros aspectos, são contribuições que o pensar sob o viés arquitetônico pode oferecer. E é esta, possivelmente, a maior contribuição trazida pela leitura deste Lina por escrito: o amor que ela expressa pela profissão que escolheu e o desejo de compartilhá-la com todos, fosse através de um texto, um edifício, um museu ou uma cadeira.
Lina por escrito - textos escolhidos de Lina Bo Bardi SILvAnA rubIno E MArInA GrInovEr (orG.) cosac naify São 33 textos escritos pela arquiteta, publicados entre 1943 e 1993, em que ela exerce o papel de crítica e educadora
Resenha
marco zero AS CRÔNICAS DE UM POETA acervo continente
voz privilegiado”, alguém que servisse de guia e intérprete de seu tempo. Ao ler esses escritos de Lina Bo Bardi, constatamos a ausência, hoje, de discussões sobre a arquitetura em seu largo espectro, capazes de promover consciência crítica da comunidade sobre a complexidade de situações por ela vivida e não compreendida como parte deste campo, como se a arquitetura tivesse perdido relevância no debate público. Em um texto que escreveu em 1958, para a coluna dominical Crônicas de arte, de história, de costume, de cultura da vida, que manteve no jornal baiano Diário de Notícias, Lina indaga: “Por que a um suicídio, um desastre, uma declaração política se dá tanto relevo enquanto assunto de cultura é relegado a plano secundário, ou mesmo não mencionado? Por que então a imprensa não se ocupa, com mais assiduidade, dos problemas de arquitetura, da arte, de todas as artes?”. Estamos quase sempre informados sobre uma variedade de assuntos, alguns
Já no prefácio de Marco zero, coletânea de crônicas de Alberto da Cunha Melo publicada pela editora Cepe, o poeta Ângelo Monteiro volta sua atenção ao título significativo da obra. “A razão do título que enfeixa tais crônicas talvez se refira à busca permanente de algo radicalmente novo tanto na criação artística quanto no seu discurso interpretativo”, afirma. Pernambucano nascido no município de Jaboatão dos Guararapes, Alberto da Cunha Melo era neto e filho de poetas. Jornalista e também sociólogo, fez parte da Geração de 65 – denominação dada aos poetas surgidos na segunda metade do século passado e revelados no periódico Diario de Pernambuco. Lançou seu primeiro livro, Círculo cósmico, em 1966. A coloquialidade de seu discurso de cronista pode ser atestada na reunião destes 58 textos, veiculados primeiramente nesta revista Continente. O escritor manteve a coluna que batizou o livro desde a edição zero da publicação, de dezembro
de 2000, até o ano de 2007, quando veio a falecer. Mesmo sendo nacionalmente reconhecido por sua obra poética, nesta publicação, são as crônicas que revezam ironia e lirismo para atingir os leitores. Sustentado por um viés memorialista, esse tom é percebido em textos como Aí, mocinho! Minhas aulas de faroeste, em que o autor recorda seu tempo de infância, quando assistia aos westerns nas matinês locais. O escritor reserva espaço também para investigar a cultura contemporânea. Desconfiado em relação ao pós-modernismo, ele rejeita a hipótese da pós-modernidade em Que diabo é pós-moderno?, ao narrar seu primeiro contato com o teórico Terry Eagleton. Marco zero conta ainda com a publicação de dois de seus poemas, Cancioneiro de terceiro mundo e Belo monte, e duas páginas publicadas na revista após seu falecimento, pertencentes ao livro inédito A noite da grande aprendizagem. GuILHErME CArrÉrA
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ENSAIOS A influência de Mikhail Bakhtin
Obra organizada pela professora Beth Brait reúne ensaios sobre textos do pensador russo texto Eduardo Cesar Maia reprodução
Leitura
em um artigo intitulado
ironicamente I contain multitudes (eu contenho multidões), publicado na prestigiada London Review of Books, o crítico e teórico da literatura Terry Eagleton afirmou que, nas últimas três décadas, o pensador russo Mikhail Bakhtin tem sido mais uma indústria do que um indivíduo, “E não uma indústria apenas: uma florescente corporação internacional, com direito a grandes executivos, convenções globais e um jornal corporativo próprio”. E Eagleton completa: “No campo da teoria cultural, essa vítima do stalinismo é agora big business”. Trata-se de um verdadeiro fenômeno de “resgate acadêmico” de uma obra teórica que foi produzida no
início do século 20 e só passou a ser amplamente divulgada a partir da década de 1980. É comum que um grande pensador produza seguidores, inclusive seitas. Apesar do perigo e das aberrações que podem ser criadas pelo modismo e por essa profusão de intérpretes, todo o interesse em torno de um autor tem obviamente suas vantagens. No Brasil, por exemplo, ao menos no meio acadêmico, também se encontram discípulos fidelíssimos, que têm o mérito de ter tornado o nome de Bakhtin quase uma referência obrigatória em qualquer departamento de teoria literária e linguística do país. O mais recente produto da indústria
bakhtiniana tupiniquim é o livro Bakhtin: Dialogismo e polifonia, publicado pela Editora Contexto e organizado pela professora Beth Brait, da PUC–SP. A obra conta com comentários críticos de diversos especialistas, brasileiros e estrangeiros, a respeito de obras do filósofo russo. Além disso, o leitor encontra um texto do próprio Bakhtin, que permanecia inédito no Brasil até agora, Sobre Maiakóvski, um conjunto de observações do pensador sobre o poeta russo, que mesmo não se tratando de um artigo acabado, nos fornece uma perspectiva mais abrangente a respeito da sua compreensão da poesia como gênero em particular. A importância e influência de Bakhtin nas chamadas Ciências Humanas, particularmente nos estudos literários, ficam ressaltadas em cada ensaio dessa nova obra. A noção, bastante contestada no século passado, de que a literatura é parte inseparável da cultura – e como tal deve ser estudada – foi defendida de forma abrangente pelo russo. Para ele, só podemos penetrar na profundidade das grandes obras a partir de uma perspectiva totalizante, em que a complexidade das relações entre forma e conteúdo seja analisada. Sua visão, portanto, é irreconciliável com a perspectiva do determinismo econômico-marxista e também não se coaduna com formalismos e estruturalismos. Na parte final de Bakhtin: Dialogismo e polifonia, o leitor encontra ainda uma esclarecedora entrevista com o introdutor de Bakhtin no Brasil – o professor, crítico e tradutor Boris Schnaiderman –, na qual as dificuldades e contradições da obra do pensador, e termos fundamentais como “carnavalização”, “dialogismo” e “polifonia” são discutidos.
Dialogismo e polifonia bEtH brAIt (orG.) editora contexto comentários críticos sobre textos do filósofo russo Mikhail Bakhtin
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indicações HISTÓRIA ENSAIO
BENJAMIM R. BARBER Consumido record
“Hoje, esse éthos infantilista tem tanto poder de moldar a ideologia e o comportamento de nossa sociedade radicalmente consumista quanto o que Max Weber chamou de ‘ética protestante’ tinha de moldar a cultura empreendedora do que era na época uma sociedade capitalista inicial de produtividade”. a comparação é do autor deste ensaio que analisa o alto consumismo disseminado entre a sociedade norte-americana. para o cientista político, essa é uma estratégia criada pelo mercado para fidelizar e embrutecer cada vez mais os consumidores, que compram mais do que precisam, submetendo-se acriticamente ao capitalismo triunfante.
FLÁvIO LIMONCIC Os inventores do New Deal Civilização brasileira
centrado em pesquisas sobre a história dos eua na primeira metade do século 20, o historiador traz neste estudo uma análise de como a depressão levou o governo roosevelt a criar mecanismos de geração e redistribuição de renda, entre os quais a promoção da contratação coletiva do trabalho. o presidente americano criou um aparato estatal que permitiu ao seu governo desempenhar papel central nas disputas industriais, equilibrando os interesses de empresários e trabalhadores. À época, os sindicatos tornaramse entidades fortes, por conta da criação da national Labor relations Board e da consequente organização da categoria.
CRÍTICA LITERÁRIA
JORgE LUIZ ANTONIO Poesia eletrônica veredas & Cenários
esta foi a tese de doutorado do professor e pesquisador que, com ela, busca compreender e mapear a produção poética em contato com os processos digitais. Seu intuito foi o de apresentar conceitos e exemplos de uma produção que se “contamina” de outros meios que não a palavra, como imagens, sons, hipertextualidade. assim é que, além da argumentação teórica, antonio apresenta uma tipologia da poesia eletrônica que se dá neste ambiente, como a poesia-internet, a colaborativa e a migrante. o livro traz em anexo um cd-rom que, sugere o autor, pode ser acessado simultaneamente ao ato de leitura do impresso, num gesto de interatividade entre o livro e o computador.
COMUNICAÇAO
SEBASTIãO SqUIRRA E YvANA FEChINE (ORg.) Em Televisão Digital Sulina
o Brasil implantou seu sistema próprio de tv digital em dezembro de 2008. desde então, as discussões sobre os avanços no campo da televisão têm atraído a atenção de teóricos da comunicação. neste livro, foram selecionados 18 artigos de pesquisadores de todo o país, focados nos desafios e mudanças impostas pelas novas tecnologias. a seleção privilegiou a abrangência temática, dando ao leitor a possibilidade de entender aspectos ligados à linguagem, aos modelos de negócios da tv digital e às tendências e experiências internacionais. É uma das poucas publicações no Brasil que tratam o tema sob a ótica da comunicação.
Coletânea
escritor, jornalista, crítico literário e roteirista, Salim Miguel começou a publicar livros nos anos 1950, em Florianópolis. de lá para cá, numa produção compassada, mas não acelerada, este autor – nascido no Líbano e migrado para o Brasil ainda criança – tem oferecido ao leitor contos, novelas e romances. São conhecidas as suas obras A voz submersa (1984), Nur na escuridão (1999) e os volumes de contos O primeiro gosto (1973), As areias do tempo (1988) e O sabor da fome (2007). destaca-se na sua produção a elaboração de textos a partir
da memória, tanto de caráter pessoal, quanto referentes à história brasileira. Mas, de acordo com apreciação de regina dalcastagnè, em ambos os casos, “a sondagem do passado revivido vai além da motivação do conteúdo da obra, transformando a poética da narrativa”. Foi esta professora de Literatura da unB quem selecionou os textos de Melhores contos – Salim Miguel, agora lançado pela editora Global. na coletânea, é possível conhecer 15 narrativas do autor, publicadas entre 1951 e 1997; recorte que
pretende oferecer ao leitor obras representativas das variadas fases de sua produção literária. a ordem de entrada dos contos não obedece à cronologia em que foram originalmente publicados, mas a um critério de aproximação eleito pela organizadora em que confluem temas e técnicas narrativas. do ponto de vista da criação de personagens, há nestes contos “velhos, meninos, desertores, migrantes, loucos e desempregados”, todos abrigados na ficção de Salim Miguel.
divuLGação
SELETA DE CONTOS DO ESCRITOR LIBANÊS SALIM MIGUEL
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fotos: divulgação
Sonoras the clash clássico do rock politizado chega (atual) aos 30 anos London Calling, terceiro disco da banda inglesa, ultrapassa décadas como referência estética e ética texto Débora Nascimento
Joe Strummer (guitarra/vocal),
Mick Jones (guitarra/vocal), Paul Simonon (baixo) e Topper Headon (bateria) passaram o inverno europeu de 1979 em estúdio, concebendo aquele que seria apenas o terceiro disco do The Clash. Não sabiam os fãs o que viria: a banda preparava o disco menos punk da história.
“Menos” porque London Calling é, na realidade, o disco de punk mais bem-elaborado de todos os tempos, contrariando a regra da música-comtrês-ou-quatro-acordes. Mas também pode ser o mais punk da história, porque para criá-lo foi preciso muita coragem e rebeldia ao se quebrar paradigmas e mexer no que já estava dando certo.
Lançado há 30 anos, tornou-se um dos momentos-chaves da música, uma herança para o rock e outros gêneros. Ao promover o crossover inédito do punk rock a outros ritmos, o álbum ampliou a perspectiva estética de quem fazia música (no jazz, Miles Davis cumprira essa missão). O reflexo foi ouvido dos anos 1980 até hoje, quando “misturar” virou “lei”, fórmula e até truque. No Brasil, o impacto de London Calling pode ser comprovado nos riffs de guitarra das bandas do BRock e nos teclados da Mundo Livre S/A, uma das maiores herdeiras do estilo Clash de compor e de se comportar. No entanto, no final da década de 1970, houve críticas também, e a maior delas era que não se podia misturar reggae (música feita por negros) com punk (música feita por brancos). Mas o reggae é o punk da Jamaica, argumentara o bandleader Strummer
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– uma das figuras mais respeitadas e queridas da música, falecido em 2002, vítima de ataque cardíaco. Para dar vida a um álbum duplo e permitir que London Calling fosse vendido pela gravadora a preço de álbum simples, Strummer e a banda, que já começava a desfrutar de status de peso-pesado do rock, preferiram abdicar de parte dos direitos autorais das 19 faixas, e compor e ensaiar as músicas num estúdio que ficava nos fundos de um prédio de um estacionamento, proporcionando a solidão necessária para a coesão da banda. Ao contrário da produção do disco anterior (Give’em enough rope), cheia de overdubs (sobreposição de gravações), o produtor Guy Stevens optou por gravar a banda tocando ao vivo no estúdio (normalmente, ele elevava o nível de adrenalina dos músicos pulando e atirando cadeiras pelo ar durante as sessões). A maioria das músicas foi concluída em apenas dois takes (gravações). Mas quando a banda quis dar um toque gradiloquente, bem ao estilo do produtor Phil Spector (inventor do wall of sound), à composição The card cheat, Stevens simplesmente ordenou que gravassem todos os instrumentos novamente, sobrepostos ao primeiro take, e aí estava o seu “overdub”. Em seus 65 minutos, London Calling, que ganhou edição especial em 2004, desfila um bom punhado das melhores composições do Clash, exibindo uma série de experimentações com estilos musicais, instrumentos e técnicas de gravação. Como se fosse
uma espécie de coletânea de hits de várias bandas, o disco traz rockabilly (Brand new cadillac), pop (Lost in the supermarket), R&B (I’m not down), reggae (The guns of Brixton, que virou Balas do Jordão, nas mãos de Fred Zeroquatro), funk rock (Train in vain) e pop rock (Spanish Bombs), entre outros. Além disso, as letras abordam de forma irônica questões como desemprego, violência, solidão e consumismo. Com esse disco, cuja capa é uma paródia do bolachão de estréia de Elvis Presley, os ingleses que já cantaram I’m so bored with the USA (“Estou tão cansado dos Estados Unidos”) se transformaram em estrelas na América. Um dos maiores momentos da carreira do grupo aconteceu num abarrotado Shea Stadium, lugar onde, duas décadas antes, os Beatles promoveram uma das paradas da primeira “invasão britânica”. Após London Calling, a banda lançou ainda mais três discos, destacandose o radical álbum tripo Sandinista! e o popular Combat rock, do qual surgiram seus maiores hits, Rock the casbah, Should I stay or should I go (que está embalando a propaganda de uma gigante da telefonia móvel no país, quem diria?...) e Straight to hell, que está tocando nas rádios através da versão de Lily Allen, e que foi sampleada em Paper planes, megassucesso da cantora M.I.A. e trilha sonora do filme Quem quer ser um milionário?. Ao que tudo indica, a herança está longe de acabar.
@ continenteonline Ouça a música London Calling no site www.revistacontinente.com.br
tiger Sampleia o Bom Da ViDa Rapper faz estreia solo abordando os velhos problemas sociais, mas sob olhar otimista Nos anos 1990, paralelo ao fenômeno do manguebeat, o alto José do Pinho, na zona norte do Recife, conseguiu ganhar atenção da mídia não pela violência, mas por revelarse também um ambiente cultural. devotos, Nanica Papaya, Matalanamão eram algumas das bandas apresentadas ao grande público. dentre elas, estava a faces do subúrbio, que ganhou repercussão nacional ao fazer a inédita junção de rap com repente. À frente do faces, os MCs e dançarinos de break tiger e Zé Brown conseguiram chegar o mais longe que um grupo de rap pernambucano chegou. Em 2005, foram indicados ao grammy latino e fizeram shows na Europa – além, claro, das pequenas turnês pelo País, ganhando o respeito do movimento em lugares como são Paulo, onde o hip hop é bem-sedimentado. Criada em 1992, a dupla não se contentou com o formato tradicional do rap (MC e dJ – mestre de cerimônia e disc jockey, respectivamente), e, em 1996, incorporou ao seu som uma formação de rock, sendo ladeada por guitarra, baixo e bateria. o grupo gravou quatro
discos (dois independentes, e dois pela gravadora MZa Music). No entanto, acabou em 2006, quando seus principais mentores partiram em carreirasolo. Zé Brown lançou Repente rap repente (2009), enquanto tiger estreia Poder simbólico. lançado com apoio do funcultura, o álbum foi realizado totalmente no Recife (gravado, mixado e masterizado no fábrica Estúdio), com tiger voltando às raízes, focando seu rap mais no MC e dJ (e todas as possibilidades advindas dos samples, scratches, loops etc.), apesar de contar com teclados (Rivan Monteiro) e contrabaixo (Wagner santos). Em suas 12 faixas, o rapper continua abordando temas sociais (que não mudaram muito nessas quase duas décadas), mas embala suas palavras em bases mais dançantes e em rimas com mensagens mais positivas (“Chega de dizer que favela é só tristeza/Que é só crimes, drogas e pobreza/o lado bom existe, mas ninguém assiste”). vale lembrar que a “mensagem” séria (ainda) é o principal motivo da existência do gênero, embora os rappersmagnatas “vendam” um outro ideal. DÉborA NASCIMENto
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samba Geraldo maia imprime delicadeza em Lundum
Disco evidencia seus atributos de compositor, em músicas que contam com o participação de quarteto de instrumentistas que oferece apoio competente texto João Simão
divulgação/ fotofREE
Sonoras
geraldo maia parece ter iniciado um ciclo com o agradável Peso leve, lançado ano passado. De intérprete passou a compositor e fechou o time com uma banda afiada: O Fio da Meada, formada pelos violonistas Rodrigo Samico e Publius, Hugo Linns (baixo) e Amarelo (percussão). São músicos tarimbados, com passagens por bandas como a de Renata Rosa e a Academia da Berlinda. A banda ainda é nova, mas as antigas parcerias continuam dando o tom no trabalho do pernambucano: Maciel Melo, Marco Polo e Renato Phaelante sempre garantiram presença na obra de Geraldo Maia. Maciel Melo aparece com a reflexiva Só sei que vivendo morro, assinada também pelo cantador Dimas Barreto (“Não sei
se morrendo vivo/ Mas sei que vivendo morro”). Já o ex-Ave Sangria Marco Polo escreveu a letra de Helioiticicando, que foi musicada por Geraldo. “Vamos helioiticicar esta vida/ Vamos soltar o bloco na avenida”, prega a faixa mais maluco-beleza do CD. Outro velho parceiro, Renato Phaelante (que colaborou na pesquisa de Samba de São João, disco de 2007 dedicado ao gênero) aparece com a letra de Voltei, uma das melhores do CD (“Andei fugindo da vida/ O tempo passou nem senti/ Abraço o amor que deixei/ Quando um dia parti”). Geraldo assina apenas duas letras de Lundum – Broto de semear e Que doam-se os brios –; a maioria das faixas consiste em músicas suas, feitas para letras de terceiros.
Contemplado pelo Projeto Pixinguinha, Lundum (o nome faz referência ao ritmo que alguns consideram ser o primeiro afrobrasileiro) segue a direção certeira do trabalho anterior, embora o samba esteja mais presente neste último. O samba de Geraldo e seu grupo também é diferente, suave, contemplativo até, apesar do exagero positivo na cozinha (o percussionista Amarelo chega a gravar 10 instrumentos numa faixa só, caso de Tristeza). Bonito, o CD mostra a evolução pela qual o cantor e a banda de apoio vêm passando desde Peso leve, trabalho que trouxe uma sonoridade mais contemporânea. Além da guinada para o samba, Lundum também mostra a química alcançada pelo cantor com sua banda: da percussão aos violões, tudo é tocado, e bem-tocado, com leveza. A banda soa mais próxima de Geraldo. “Em Lundum, eu trouxe a banda para mim. Antes, eles me levaram para onde queriam”, explica o cantor, que, passado um ano, acha “radical demais” o pop de Peso leve: “Sou um cara tradicional”, define. Geraldo diz ter “colocado rédeas” na banda: trazia uma linha de voz e “cantarolava” até que ela começasse a acompanhá-lo. Talvez as “rédeas” expliquem o equilíbrio do trabalho, espécie de encontro entre o pop e as raízes, com uma ligeira predominância da segunda. Geraldo Maia, com sua banda, continua soando mais atual do que nos trabalhos que precedem Peso leve (contabiliza seis discos na carreira), mais acústico, que o próprio define como “quase camerísticos”. O intérprete que resgatava pérolas do cancioneiro nordestino agora parece querer fazer parte dele.
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INDICAÇÕES INSTRUMENTAL
JOÃO sIlVa João silva canta mais Gonzaga
maURO seNIse lua cheia – mauro senise toca Dolores Duran e sueli costa
Parceiro de luiz gonzaga e de seu irmão severino Januário, o arcoverdense João silva compôs clássicos da música nordestina como Danado de bom, imortalizada na voz do Rei do Baião. apesar da relevância de sua obra, o artista, cujos álbuns anteriores estão fora de catálogo, é pouco conhecido do público. o disco vem preencher essa lacuna, compilando gravações raras de gonzaga e silva acompanhados pelo fole de oito baixos de Januário. as faixas finais saíram dos últimos lPs do Rei do Baião, que teve sua voz preservada, apesar do acréscimo de novos arranjos às canções.
Neste Cd, o saxofonista Mauro senise põe seu sax a serviço das composições de duas mulheres: dolores duran e sueli Costa. segundo o músico, instrumentos melódicos como o seu pedem canções que tenham o que dizer. sueli Costa participa tocando o piano na execução da composição de sua autoria Sonho. senise resgata uma gravação de duran, cuja morte prematura completa 50 anos este ano, cantando How high the moon, e lhe dá uma nova roupagem introduzindo o som do seu sax. o disco, basicamente instrumental, traz apenas mais uma faixa cantada (Por causa de você), na voz de olivia Hime.
FORRÓ TRILHA SONORA
VÁRIOs Noel – Poeta da Vila Lua Music
Com alguns anos de atraso em relação ao filme (lançado em 2007), chega às lojas a trilha sonora do filme Noel – Poeta da Vila. o disco traz 29 faixas que reúnem músicas de Noel Rosa (1910-1937) e de alguns compositores de sua época, como Wilson Batista, vadico, Cartola. Já as interpretações ficaram a cargo de artistas de várias gerações (otto, arto lindsay, Wilson das Neves), em gravações inéditas. Entre os sucessos do compositor carioca da vila isabel estão registrados na bolacha: Com que roupa, Filosofia, Feitio de oração, Rapaz folgado.
Independente
biscoito Fino
ROCK
tItÃs sacos Plásticos universal Music
depois de cinco anos sem lançar um disco com obras inéditas, os titãs voltam com o Cd Sacos plásticos. as canções não fogem do estilo desenvolvido pelo grupo ao longo dos seus 27 anos de carreira. Basta ouvir os primeiros acordes da música de trabalho Antes de você, na voz de Paulo Miklos, ou da grande maioria das canções para identificar a marca dos titãs. ao longo das faixas, Branco Melo, Charles gavin, Paulo Miklos, sérgio Britto e tony Belloto assumem sua versatilidade característica, alternando os postos nos vocais e também nos instrumentos.
Copo de Espuma
o que sobra num copo de cerveja é a espuma, vaga lembrança do conteúdo inicial e indício de que a bebida está sendo apreciada. a analogia é sugerida pelo novo disco da cantora isaar frança, Copo de espuma. Esse é o segundo álbum solo da pernambucana e não é menor, nem menos bonito do que o primeiro, Azul claro. “o primeiro disco não teve a intenção de ter um conceito, ficou uma coisa mais introspectiva. Nesse segundo, eu já fiz com a intenção de ser um disco mais alegre, com músicas mais pra cima”, diz a cantora. as letras são curtas, e priorizam a sonoridade. Em poucas palavras e num balanço
tranquilo, a voz de isaar conduz o ouvinte a percorrer as 10 faixas do álbum. dez também são os anos de carreira que a cantora celebra com o lançamento desse trabalho, fruto do prêmio recebido pelo Projeto Pixinguinha 2008. o novo disco traz músicas assinadas pela cantora e regravações, como Palhaço do circo sem futuro (lirinha e Clayton Barros) e o frevo É de amargar (Capiba). a faixa que dá nome à obra tem as participações do vocalista da Mundo livre s/a, fred Zeroquatro (no cavaquinho), e da antiga parceira de isaar do grupo Cumadre fulozinha, alessandra leão (no pandeiro).
iMagENs: REPRodução
LETRAS CURTAS E BALANÇO TRANQUILO NO CD DE ISAAR
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diogo monteiro freud e a “inquietante estranheza” Para iniciar bem a leitura desta matéria, pense, condescendente leitor, em uma cena do último livro ou filme, de suspense ou terror, que você degustou. Pode ser o momento em que a governanta de A volta do parafuso, de Henry James, entende que as crianças sob sua guarda relacionamse com os fantasmagóricos exempregados da casa, ou quando a irmã supostamente morta ergue-se de sua letargia, na Queda da casa de Usher, de Poe. Pode ser no cinema, quando a pequena Reagan passa a falar em línguas mortas, em O exorcista, ou quando a voz de Carol Anne soa dentro da TV fora do ar, em Poltergeist. Se o leitor foi suficientemente colaborativo, pode recordar, ainda que levemente, essa sensação, essa inquietação que causa medo e horror, essa “incerteza intelectual” entre a realidade cotidiana e um acontecimento que parece desafiar regras tão bem estabelecidas, sobre as quais nossa existência é fundamentada. Esse mal-estar é a base do sentimento de repulsa e atração simultâneos que está presente na ampla gama de obras que exploram o terror e o suspense, com maior ou menor criatividade, com mais ou menos qualidade. Tal sentimento foi alvo de um artigo de Sigmund Freud, Das unheimliche (O estranho), publicado pela primeira vez há exatos 90 anos, no outono de 1919. Esse texto tem duas características extremamente importantes para o mundo das letras. Primeiramente, como apontou Remo Ceserani, autor de O fantástico, é talvez “o seu estudo mais agudo em termos de argumento literário”. Em segundo lugar, serviu de ponto de partida para todo o estudo realizado sobre a chamada “literatura fantástica”, dissecada no correr do século 20. Freud partiu de um dos contos fundadores dessa literatura, escrito
renata cadena
Artigo
pelo alemão E. T. A. Hoffmann, O homem de areia (Der sandmann), escrito em 1817, para discorrer sobre o unheimlich. Essa longa digressão inclui uma extensiva análise sobre o vocábulo, que aparenta não ter um equivalente exato em outra língua que não a germânica, mas pretende representar aquilo que não é familiar, conhecido, doméstico (heimlich). Ele experimenta diversas palavras em outras línguas que não definem o termo na sua acepção mais acertada, a de um estranhamento que surge justamente do que é familiar. Em inglês foi traduzido por The uncanny, na edição francesa, virou L’inquiétante etrangeté, ou a “inquietante estranheza”. Freud acaba
aparentemente se satisfazendo com uma definição retirada de Schelling: “Unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido... secreto e oculto, mas veio à luz”. O termo ficaria assim caracterizado por esse caráter ambíguo entre o que é latente e o que é manifesto na consciência do indivíduo. Psicanaliticamente, pode se dizer, grosso modo, que o unheimlich se relaciona com o processo de recalque, e nasce na vida real quando “complexos infantis recalcados são reanimados por alguma impressão exterior, ou quando convicções primitivas superadas parecem ser novamente confirmadas”, segundo nosso psicanalista. Há uma
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visitando pela primeira vez uma cidadezinha italiana, o psicanalista – por mais que tentasse tomar diferentes rumos em uma caminhada – se via sempre retornando inevitavelmente a uma pequena ruela habitada apenas por “mulheres maquiladas”, eufemismo para prostitutas. Não é preciso muita proficiência em psicanálise para conjecturar sobre o porquê de o inconsciente do austríaco insistir em levá-lo de volta à mesma piazza, não é Doutor Freud? O segundo exemplo acontece durante uma viagem de trem. Sentado em sua cabine, ele se assusta quando, por um determinado movimento do vagão, a porta da toalete se abre e ele vê um senhor de idade encarando-o. Freud conta que num primeiro momento, assustado, imagina ter se enganado de compartimento, para depois entender que a figura, a qual não tinha reconhecido e com a qual antipatizara imediatamente, era ele próprio, refletido num espelho. O unheimlich pede que o receptor se coloque no lugar da personagem – como o amigável leitor dessa matéria
A palavra germânica unheimliche representa o que não é familiar, conhecido, doméstico. em inglês, traduz-se the uncanny dissolução de limites, a ausência de delimitação do sujeito com relação ao outro, característica do tempo em que o ego ainda não estava completamente formado. Em O homem de areia, Freud avalia que o autor faz brotar no leitor esse malestar ao conduzi-lo a se identificar com o personagem principal, e a não considerar seus delírios como mera manifestação de loucura, mas como parte integrante do real. Vários temas são apresentados por Freud como passíveis de fazer brotar essa inquietante estranheza, quando convicções primitivas já ultrapassadas são aparentemente reconfirmadas, ou quando complexos infantis são reativados. O retorno do reprimido, a
indefinição entre fantasia e realidade, loucura ou sanidade, a compulsão à repetição, a presença do duplo. Temos também a onipotência do pensamento, que pode ser expressa no mau-olhado, no mesmerismo, na emissão de mensagens telepáticas, na magia. Outro ponto é a opressão da “indesejada das gentes”, a falsa aparência da morte, o medo de ser enterrado vivo, o retorno dos mortos, objetos inanimados que ganham vida, membros decepados dotados de vida própria. Ainda, o símbolo que ganha a importância e a força do que era simbolizado. Sigmund Freud cita dois casos em que o unheimlich irrompeu em sua própria vida real. Inicialmente,
fez com as cenas relembradas na abertura – para com ele se situar nessa encruzilhada, que é, na definição de Tzvedan Todorov, cânone do tema, a própria essência do fantástico. A narrativa fantástica pressupõe um mundo onde se separam o espírito e o real. Ela não existe numa obra – ou numa cultura – onde o irreal ou o fantasioso se fazem presentes e inquestionáveis. Para se temer um fantasma é preciso acreditar que eles não existam, ou que eles não são facilmente encontrados por aí, ou pelo menos crer que eles não deveriam aparecer. É isso que os faz tão especiais, tão preciosos, quando resolvem aparecer em um livro, filme, ou no nosso quarto mal-iluminado.
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Cristina Tejo
EspElhos rEposicionados
cristina tejo é curadora do Projeto Made in Mirrors e coordenadora geral de capacitação e difusão científico-cultural da Fundação Joaquim Nabuco flora pimentel
Análises publicadas na Folha de S.Paulo, em 13 de julho de 2009, sobre a cúpula do G8 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) de Áquila, não me surpreenderam, apenas corroboraram para o que venho refletindo e vivenciando como curadora de um projeto de intercâmbio chamado Made in Mirrors. Os artigos referiam-se à constatação dos países que encabeçam a liderança mundial de que o formato atual não tem representatividade e idoneidade, nas palavras do premiê italiano Silvio Berlusconi. “Parece pouco razoável tratar das mais importantes questões internacionais sem a África, a América Latina e a China”, completou o presidente francês Nicolas Sarkozy. A perspectiva é de que tenhamos em breve um G14 (o G8 adicionado a Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), um formato ainda insatisfatório para o presidente Lula, que prefere o G20 (todos os supracitados mais Argentina, Austrália, Indonésia, Arábia Saudita, Coréia do Sul, Turquia e o grupo da União Europeia) por ser ainda mais amplo. Este último agrupamento reúne 90% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, 2/3 da população global e os países emergentes do G20 representam 75% do crescimento mundial. O Projeto Made in Mirrors foi idealizado em 2006 pelo curador holandês Stjin Huijts, que trabalha há quase duas décadas na província de Limburg, no sul da Holanda. Apesar de ter notoriedade internacional, o curador decidiu não abandonar sua região natal e trabalhar para que a visibilidade de seu lugar crescesse. Entre várias estratégias de inclusão da cidade de Sittard no circuito artístico da Europa, surgiu o MIM, uma plataforma de diálogo global, mas em pequena escala e médio prazo. Os parceiros do projeto são justamente países de economia emergente, que vêm ganhando cada vez mais visibilidade e credibilidade internacionais: primeiro China, depois o Brasil e, por fim, o Egito, membro recente do projeto. O jogo de espelhamentos sugerido pelo projeto relativiza hierarquias e lugares. Os contrastes entre cada um desses países é gritante, mas em várias miradas há interfaces e distanciamentos insuspeitos entre os participantes. Bancado por dinheiro holandês, em grande parte público, o Projeto Made in Mirrors entroniza estes novos tempos de percepção de interdependências, de juntar forças, de abrir diálogos multidirecionais. Muito sensível ao contexto atual, a Holanda é um dos poucos países desenvolvidos que aposta maciçamente em projetos de intercâmbio, com instituições inteiramente voltadas para receber e suportar financeiramente redes de arte dos países em desenvolvimento. Sabe que precisa gerar oportunidades financeiras onde há muita potência criativa. Há 20 anos seria inimaginável que um país como a Holanda ou mesmo os Estados Unidos se voltariam para Brasil, Egito e China em busca de legitimidade e mesmo de modelos. Agora é uma urgência.
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