Léo CALdAs
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aos leitores Quando pensamos em música erudita no Brasil, o primeiro nome que vem à mente é o de Heitor Villa-Lobos. Maestro, compositor, educador, ele criou em torno de si a aura de gênio cult, não só pela obra legada, mas por possuir “personalidade geradora de um vasto memorial de mitos, anedotas e conquistas, que nenhum outro compositor tupiniquim logrou conquistar no imaginário dos fãs da música erudita”, como afirma Carlos Eduardo Amaral, que escreveu sobre o músico para esta edição da Continente, na passagem dos 50 anos de sua morte. Você consegue apontar de memória a localização exata de Macau no globo terrestre? Poucos de nós sabemos que essa Região Administrativa da China, tendo sido colônia portuguesa, possui várias referências ao passado e à influência lusitana, sendo a mais visível delas a ocorrência de placas e letreiros bilíngues chinês/ português, como nos conta o jornalista Marcelo Abreu, na seção Viagem. Ainda com relação à cultura lusa, entre nós, bem no Centro do Recife, funciona o Gabinete Português de Leitura, que já serviu de fonte de pesquisas para intelectuais célebres, como Josué de Castro, e possui no seu acervo obras raras, entre elas 18 páginas manuscritas de um capítulo de A cidade e as serras, de Eça de Queirós. Essas e outras informações nos foram trazidas pela jornalista Fabianna Freire Pepeu, que colabora para a seção Pernambucanas deste novembro.
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cartas
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expediente + colaboradores
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entrevista
Moacir dos Anjos Curador responsável pela 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, o pernambucano fala sobre arte e política
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conexão
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Balaio
Suplemento literário Pernambuco disponibiliza todo seu material on-line
Émile Zola O escritor francês, autor do famoso artigo J’accuse, sofria obsessões cotidianas
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Bússola
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Peleja
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Pernambucanas
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Leitura
Luís Fernando Veríssimo Cronista gaúcho elenca obras de arte favoritas Mecenato Artistas consagrados devem ser beneficiados pelas leis de incentivo à cultura? Gabinete Português de Leitura Instituição abriga acervo de cerca de 60 mil títulos Matriuska Sidney Rocha lança livro de contos que se destacam pela narrativa curta
Cavani Rosas 66
Visuais
Henri Cartier-Bresson Francês cujo nome é sinônimo de fotografia tem livro sobre sua obra lançado no Brasil
72
Matéria corrida
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claquete
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Palco
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Desenhos em bico-de-pena reproduzem com detalhes edificações, interiores e exemplares da fauna e flora brasileiras
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José Cláudio A nova individual de José Carlos Viana Documentário Cabra marcado para morrer, dirigido por Eduardo Coutinho, é marco na cinematografia do país Festival Recife do Teatro Nacional Evento chega à 12ª edição investindo na pesquisa e na ocupação de espaços inusuais
Sonoras
Jazz pernambucano Músicos se apropriam de elementos desse gênero musical, alargando suas possibilidades inventivas
86
Artigo
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Saída
Samuel Johnson Há 300 anos nascia um dos precursores da crítica cultural Fred Zeroquatro Compositor se define neoludita e discute download de produtos artísticos na web
Viagem Macau
Antiga colônia portuguesa no Oriente, conquistada em 1557, transformou-se em destino turístico por sua variedade cultural e linguística
38 Capa iLuStrAção Laerte Silvino
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especial
Villa-Lobos
coletivo editorial
Transcendendo concepções nacionalistas e os limites do realismo soviético, compositor brasileiro atingiu a universalidade na criação
De modo alternativo e autoral, coletivo editorial agrupa várias propostas, publicando trabalhos de novas gerações
20
Livrinho de Papel Finíssimo
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tradição
cardápio
No Agreste, artesã persiste no ofício de fabricar utensílios de barro, controlando sua produção da coleta da matéria-prima até a comercialização
Culinária baseada em pescados e legumes, que se caracteriza pela beleza dos pratos, conquista o público brasileiro
Louceira
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Nov’09
Japonês
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cartas Regionalismo Escrevo para expressar minha opinião acerca dos últimos exemplares da Continente. Antes de tudo, meu interesse em assinar surgiu ao ver exemplares antigos na Biblioteca Municipal de Petrolina, onde resido desde o início deste ano. Matérias interessantíssimas sobre o kitsch, sobre filmes de Woody Allen e Pedro Almodóvar, sobre feminismo e cultura, dentre outras. Entretanto, desde que assinei, tenho notado que o conteúdo da revista está cada vez mais “pernambucano”, com matérias nitidamente focadas em temas locais. Não sei se, desde aquelas edições antigas, houve uma redefinição da linha editorial, marcada pela perda do epíteto “Multicultural”, redefinição que eu possivelmente não tenha acompanhado. Entendo que isso acontece até mesmo em virtude de questões maiores (patrocínio, por exemplo) que interferem no conteúdo; entendo também
que pode até ser interessante que a Continente invista em promover a cultura pernambucana, especialmente para recémchegados como eu, divulgando a produção cultural da região e dando margem ao seu apoio e à implementação de políticas públicas. Mas entendo, ainda, que, em tempos de globalização, o foco excessivo num plano identitário localista e fechado é cultural, ética e politicamente desinteressante, sobretudo da parte de uma identidade tão reafirmada no século 20, como o foi a nordestinapernambucana. Afora o fechamento das fronteiras, a limitação do olhar, a verborragia identitária e os interesses políticos em jogo, não tenho mais nada contra o regionalismo pernambucano, mas lamento profundamente que o que mais me atraía na revista - seu aspecto erudito, aberto e certa desenvoltura com que tratava temas tão inesperados - tenham sido abandonados em prol de matérias com conteúdo
Vauthier
já conhecido, porque isso é o que faz a repetição identitária: leva a encontrar o mesmo rosto sob suas diversas capas, seja ele na poesia, na escultura do interior, na música pernambucana ou nos jardins de Burle Marx, que re-dizem que o Recife é bonito, verde e está à procura de ares franceses. Não sei se uma resposta virá. Mas aí vai meu protesto, com a leve vontade de cancelar a assinatura! eLSon RaBeLo PetRoLIna
Gostei da matéria sobre Vauthier (foto). Desse jeito que vocês fizeram dá gosto ler matéria de História. Vocês deveriam fazer mais matérias como a citada anteriormente, porque isso é uma raridade na imprensa pernambucana. E as que aparecem têm com gosto de coisa antiga, que não dá nem vontade de ler. Também acho que vocês deveriam falar mais de assuntos de Pernambuco e do Nordeste, porque para falar do Sul já tem muita gente. Mas façam isso sem apelar para regionalismo de segunda categoria, façam como deve fazer uma revista de cultura. tÚLIo caRDoSo RecIfe
erratas O crédito da foto do dramaturgo Newton Moreno, na página 9, da edição 106, é da fotógrafa Alessandra Perrechi, e não de Filipe Redondo/Folha Imagem, como foi creditado.
Você faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, recife-Pe, CeP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone (81) 3183 2780 Fax (81) 3183 2783 email
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Site
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colaboradores
cláudio Bezerra
cristhiano aguiar
Fabianna Freire Pepeu
Kleber sales
Jornalista, professor e
Escritor, editor e crítico literário.
Jornalista, trabalhou no Jornal
Ilustrador. Atualmente trabalha
pesquisador em Comunicação
Desenvolve projetos para a
do Commercio, Rede Globo e Tv
no Correio Braziliense
Fundação de Cultura Cidade do
Cultura
e Mais
Leidson Ferraz
Leonardo Martinelli
irineu Franco Perpétuo
Jornalista, ator e pesquisador
Compositor e professor, com
Jornalista, colaborador do jornal
do teatro. Organizou a coleção
graduação e mestrado pelo
Folha de S.Paulo, da TV Cultura e
Memórias da cena pernambucana
Instituto de Artes da Unesp
da revista Concerto
Benjamim Taubkin • Carlos Eduardo Amaral • Daniel Piza • Débora Nascimento • Eduardo Cesar Maia • Fred Zeroquatro • Gutie • Luís Fernando Veríssimo • Marcelo Abreu • Olívia Mindêlo •
GoVerno Do estaDo De PernaMBUco
SUPeRIntenDente De eDIÇÃo
contatoS com a ReDaÇÃo
atenDImento ao aSSInante
goVeRnaDoR
Adriana Dória Matos
(81) 3183.2780
0800 081 1201
Eduardo Henrique Accioly Campos
SUPeRIntenDente De cRIaÇÃo
Fax: (81) 3183.2783
Fone/fax: (81) 3183.2750
SecRetÁRIo Da caSa cIVIL
Luiz Arrais
redacao@revistacontinente.com.br
assinaturas@revistacontinente.com.br
Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão ReDaÇÃo
PRoDUÇÃo gRÁfIca
eDIÇÃo eLetRÔnIca
coMPanHia eDitora De PernaMBUco – cePe
Danielle Romani, Mariana Oliveira e
Júlio Gonçalves
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PReSIDente
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Sóstenes Fernandes
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Ricardo Melo
Bernardo Valença, Diogo Guedes, Flora
DIRetoR aDmInIStRatIVo e fInanceIRo
Pimentel, Guilherme Carréra e Karina Freitas
PUBLIcIDaDe e maRKetIng
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Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)
Armando Lemos Alexandre Monteiro
Mário Hélio (Presidente) Antônio Portela
aRte
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José Luiz Mota Menezes
Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação)
Gilberto Silva
Luís Reis
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Daniela Brayner
Luzilá Gonçalves Ferreira
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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE ReDaÇÃo, aDmInIStRaÇÃo e PaRQUe gRÁfIco Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700
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MOACIR DOS ANJOS
Arte como estratégia política Numa de suas passagens corridas pelo Recife, curador adiantou como será o projeto da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, na qual atuará ao lado de Agnaldo Farias texto Olívia Mindêlo
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Entrevista
os últimos anos foram uma prova de fogo para a Fundação Bienal de São Paulo. Responsável por realizar um dos eventos de artes visuais mais expressivos e importantes do Brasil (e do mundo), a instituição se viu diante de uma enorme crise administrativa e financeira. Crise que reverberou no formato corajoso e polêmico do curador Ivo Mesquita de deixar um andar do Pavilhão Ibirapuera sem nenhuma obra. O fato repercutiu tanto que a 28º edição, de 2008, será sempre lembrada como a Bienal do Vazio. Passada a fase crítica, agora a fundação tem novo presidente, o empresário Heitor Martins. Ele assumiu, este ano, com a promessa de conseguir novos recursos e imprimir outros ares ao funcionamento e à imagem da instituição. O convite ao curador pernambucano Moacir dos Anjos, 46, para pensar a próxima edição da Bienal de São Paulo reflete esse momento. Sabendo disso, o ex-diretor do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam/Recife), que já esteve envolvido em vários projetos nacionais e internacionais, resolveu apostar na
mudança e aceitou o chamado para conduzir a grande mostra, com início marcado para setembro de 2010. Em uma de suas aterrissagens no Recife, o curador conversou com a Continente sobre como pretende, ao lado de Agnaldo Farias (cocurador), mostrar o poder da arte de “mudar nosso entendimento do mundo”, faceta que para ele se traduz numa palavra: política. Sem recorrer a chavões e alusões panfletárias, o curador quer reforçar esse papel da produção artística contemporânea e, ao mesmo tempo, da instituição, com a preocupação de provocar novas percepções em quem adentrar-se no Pavilhão do Ibirapuera. continente A escolha pelo tema da política para o projeto da bienal em 2010 tem a ver com esse momento institucional do qual você passa a fazer parte? MoAciR DoS AnJoS Ao longo das duas últimas décadas, a produção artística tem oferecido variadas respostas para a crise nos modos de sociabilidade pela qual o mundo contemporâneo passa. Por outro lado, porém, essa aproximação estreita com questões políticas e sociais
tem muitas vezes feito com que o que há de específico na arte se dissolva no campo mais largo da cultura. Nesse contexto, creio que é importante não somente afirmar a potência política da arte, mas também, simultaneamente, afirmar seu caráter irredutível a outros campos do conhecimento. Como várias vezes disse Godard, por meio de personagens de seus filmes, cultura é regra, e arte, exceção. continente De que maneira está pensando essa relação entre política e arte para a 29ª Bienal? MoAciR DoS AnJoS No sentido em que o filósofo francês Jacques Rancière sugere: a arte, assim como a política, possui a capacidade de abrir fendas e brechas nos consensos em que o mundo se ancora para funcionar de um certo modo, tornando visível o que não era visto ou transformando o que era ruído em discurso. Nesse sentido, diz Rancière, não é mesmo possível separar arte e política. Longe de pensar essa relação no sentido mais raso da propaganda ou da denúncia, portanto, penso que toda arte carrega em
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flora pimentel
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potência, mesmo quando não tematiza conflitos, o poder de afetar nossa experiência sensorial diante do que existe e, dessa forma, nossa maneira de entender o mundo.
divulgação
continente Seria o curador, com seu poder, ou o artista o responsável por imprimir essa visão política? MoAciR DoS AnJoS O artista, sem dúvida. O papel do curador, aqui, como em qualquer parte, é apenas dar visibilidade a certos aspectos da produção artística de um lugar
MoAciR DoS AnJoS Não há fórmula pronta ou fácil. E, sem dúvida, o desafio é grande, o que só o torna mais urgente e necessário. O importante, do ponto de vista curatorial, é apostar no aspecto sedutor da arte sem sucumbir ao mero espetáculo; apostar na capacidade que a arte tem de tocar o outro sem ser esquecida em seguida por ser desnecessária. Apostar, enfim, na política da arte. Trazer o maior número de pessoas a uma mostra como a Bienal de São Paulo – e estamos empenhados para trazer e trabalhar com 400 mil
é, a meu ver, malcolocada no Brasil. Se em países como a Alemanha, para citar um exemplo óbvio, a excessiva institucionalização do meio artístico por vezes cerceia a liberdade de produção, no Brasil é justamente a falta quase absoluta de institucionalização que cria dificuldades para o experimento artístico. Ademais, num país que, de acordo com pesquisa recente do IBGE, apenas 6% de sua população já visitaram um museu, a Bienal de São Paulo tem a responsabilidade, por seu tamanho e visibilidade, de afirmar, para
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Entrevista e tempo; propor uma organização dessa produção em que determinados significados latentes da criação artística sejam realçados. E criar estratégias e dispositivos de exposição que permitam ao público explorar essa produção desde um ponto de vista preciso, embora não excludente, de vários outros possíveis.
o maior número possível de pessoas, o que pode a arte. E a arte, como tenho o tempo inteiro dito aqui, pode muito. Assim, acredito que um projeto que afirme simultaneamente a importância institucional da Bienal de São Paulo e o poder transformador da arte tem pertinência.
continente Tendo em vista que a bienal já atravessou vários períodos da história do país, que sentido tem a proposta do evento, hoje, dentro do contexto atual da arte contemporânea brasileira, imersa na institucionalidade? MoAciR DoS AnJoS A Bienal de São Paulo teve e tem uma importância imensa na constituição e manutenção de um circuito artístico no país. Muitas vezes a questão da crítica institucional
continente Mas veja bem: os museus são gratuitos e ninguém entra, mesmo assim. Você mesmo chegou a afirmar, quando deixou a diretoria do Mamam, que o maior desafio da instituição era a visitação, em razão do projeto curatorial que escolheu para o museu. Uma das metas da próxima bienal é trazer de volta um público mais numeroso. Então, como vencer esse que é um dos maiores desafios da arte contemporânea?
“A Bienal de São Paulo teve e tem uma importância imensa na constituição e manutenção de um circuito artístico no país. Muitas vezes a questão da crítica institucional é, a meu ver, malcolocada no Brasil”
estudantes ao longo de dois meses e meio de exposição – é somente o primeiro passo, e sei que para muitas dessas pessoas a experiência não será importante. Mas outras certamente serão tocadas, movidas e transformadas por esse contato com a arte. continente O público não estaria, no geral, condicionado a uma visão essencialista da arte, em torno da construção romântica do belo e, portanto, haveria um entrave em relação à arte contemporânea? MoAciR DoS AnJoS Vejo de uma forma um pouco diferente. Diria que a maior parte dos nossos estímulos visuais (e também sonoros) vem de aparatos que reproduzem o modo consensual de organizar e entender o mundo. Vem
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residências para artistas, três seminários internacionais e publicações voltadas para o público universitário em torno de alguns temas que são caros ao projeto, além de guia, catálogo e um site que permitirá interação com a mostra mesmo com quem esteja fisicamente distante de São Paulo.
e de introduzir nela, alterando-a, algo que ela não abarca confortavelmente. O segundo motivo para querer Flávio de Carvalho na mostra é que, para além da historiografia da arte, alguns de seus trabalhos abrem fendas nas próprias convenções sociais vigentes nos momentos em que são feitos. É assim com a Experiência Nº 2, ação feita em 1931 – hoje se chamaria performance –, em que, por forçar passagem em meio à multidão de fiéis que acompanha a procissão de Corpus Christi, andando em sentido
continente O artista Flávio de Carvalho foi anunciado como um dos destaques dentro da proposta do projeto. É uma espécie de redescoberta? Como ele vai ser inserido? MoAciR DoS AnJoS Não é folha imagens
da televisão aberta, da publicidade, do cinema de Hollywood, das rádios FMs pasteurizadas etc. A arte, e aqui volto à distinção entre arte e cultura que comentei antes, trabalha em outro registro, aquele que viola o que é acordo e consenso. Nesse sentido, é aquilo que escapa tanto à razão quanto ao desejo, é o que não cabe no mapa de coordenadas precisas com que nos movemos no dia a dia de nossas vidas. A arte aponta para a utopia do que não sabemos. O entrave em relação à arte contemporânea, se o há, é fruto do esforço que nos demanda
“Flávio de carvalho (ao lado, de saia) não cabe em nenhum dos discursos consagrados da história da arte brasileira no período em que ele mais produziu, entre os anos 1930 e 1960”
de pensar a partir de um lugar que não nos é familiar. continente Na prática, como está pensando o projeto da bienal? MoAciR DoS AnJoS A 29ª Bienal de São Paulo vai ocupar todo o pavilhão do Parque Ibirapuera com obras de cerca de 120 artistas de diversas partes do mundo. Vai ter um componente educativo fortalecido e presente, pensado desde agora, junto com a curadoria. Vai ter espaços de reflexão e repouso ao longo da exposição e, se nossa equipe for bem sucedida no projeto que queremos implementar, vai ter um ritmo de percurso que entretenha e intrigue o visitante. Teremos também workshops e programas de
redescoberta, pois, evidentemente, Flávio de Carvalho é um artista muitíssimo conhecido e que estará presente em outras grandes mostras no próximo ano, inclusive numa retrospectiva no MAM de São Paulo. Mas nos interessa ter Flávio de Carvalho na mostra por dois motivos. O primeiro é que ele não cabe em nenhum dos discursos consagrados da história da arte brasileira no período em que ele mais produziu, entre os anos 1930 e 1960. Não cabe no discurso da antropofagia, no do Concretismo, no do Neoconcretismo, muito menos no de regionalismos quaisquer. Sua produção é múltipla e única. Ele nos força a reconsiderar nossa forma de entender essa história da arte brasileira
contrário ao cortejo e de chapéu na cabeça – insulto grave à época –, é quase linchado pela massa enfurecida, tendo sido salvo pela polícia, que o autuou por promover desordem pública. É assim também quando, em 1947, fez vários desenhos de sua mãe no leito de morte, registrando nessa série de retratos os últimos instantes de uma vida e os primeiros de uma morte, série que até hoje causa espanto por enfrentar um tema que continua tabu. São trabalhos que, a despeito de qualquer coisa mais que se possa falar deles, contra ou a favor, não deixam ninguém indiferente, e são prova do poder que a arte tem de mudar nosso entendimento do mundo imenso que nos circunda.
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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual
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suplemento
JAzz
A partir deste mês, o leitor pode conferir a íntegra do Pernambuco na internet (no endereço www.suplementopernambuco. com.br). Na primeira edição integralmente digitalizada, a matéria de capa disseca os quadrinhos, a relação de identidade entre autor e obra (e leitor também). A edição nº 45 ainda traz entrevista com Ruy Castro, numa conversa que vai do seu tempo de “foca” ao internetês, repudiado pelo escritor. E o perfil de Garibaldi Otávio, o jornalista que, depois de décadas, superou as imposições do cotidiano e lança, pela Cepe, o livro de poesias O girassol.
Ouça as músicas Jazz Mania, Mr. Tony (da Contrabanda), Quase que não chego em casa e Caminhando, da Saracotia (foto).
Conexão
moAciR dos AnJos Leia a entrevista completa com o curador da próxima Bienal de São Paulo, que acontece em setembro de 2010.
Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br
AndAnçAs viRtuAis Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar
liteRAtuRA
línguAs
FotogRAFiA
eXpeRimentAl
Focado em autores pernambucanos, site traz informações sobre a escrita
Forvo ensina a pronúncia correta em diversos idiomas e sotaques
Acervo da World Press Photo apresenta mais de 50 anos de fotojornalismo
this is (not) a magazine é original pela ousadia de diversas mídias
www.portaldoescritorpe.com
www.forvo.com
www.archive.worldpressphoto.org
www.thisisamagazine.com
Idealizado como trabalho de conclusão de curso da jornalista Raphaela Nicácio, o Portal do escritor pernambucano pode ser acusado de bairrista, mas cumpre o papel de valorizar a produção literária do Estado. A ideia é atingir não só os literatos, mas também o corpo de estudantes, professores e interessados em literatura. A interatividade do site é um dos fatores que chamam a atenção: para colaborar, basta enviar um texto. Também indicações de livros e autores podem ser sugeridas ao Portal. O site conta ainda com a biografia de vários escritores pernambucanos.
Por mais que se fale um idioma com fluência, a questão do sotaque é sempre um ponto discutível: há aqueles que almejam o acento perfeito e outros que valorizam a individualidade do falante. Com o slogan “todas as palavras do mundo pronunciadas”, o site Forvo tornou-se o maior guia de pronunciação da web. Os curiosos se divertem ao encontrarem na página pessoas de diversas nacionalidades pronunciando palavras búlgaras, africanas e até pertencentes ao grego antigo. As palavras ficam marcadas por categorias, como ciência, música, cinema ou comida. E ainda é possível selecioná-las por idioma.
Uma criança nua correndo depois de um ataque de nalpam, um monge meditando depois de atear fogo em si mesmo, um homem parado na frente de tanques de guerra. Todas essas fotos – clássicos do fotojornalismo – fazem parte do acervo da World Press Photo, agora disponível online. Com cerca de 10 mil imagens, o endereço mostra não só a vencedora de cada ano do seu renomado concurso anual, mas também as das subcategorias. Além da possibilidade de se acessar as fotos pelo seu ano de participação, existe também uma categorização por autores, em que se podem ver, por exemplo, as quatro imagens premiadas de Sebastião Salgado.
Criada em 2002, a revista de vanguarda This is (not) a magazine traz em seu site as versões online, por vezes exclusivas, de suas edições. A definição dos editores é simples: “Essa é uma revista sobre nada”. Dentre as inovações da publicação constam números feitos a partir de vídeos, sons, apresentações em PowerPoint e até animações em GIF (imagem em baixa qualidade). O download é gratuito, mas existem também versões impressas de cada edição, além de compêndios temáticos. A ousadia da publicação, impressa ou online, rende elogios como os do D della Repubblica: “Um livro de expressão experimental”.
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REPRODUçãO
blogs JoRnAlismo http://www.wimbleblog.com.ar/
No Wimbledon, o escritor e jornalista argentino Guillermo Piro seleciona para os leitores textos sobre política, comportamento e literatura e tece pequenos comentários críticos sobre os temas abordados.
AutoinvestigAçÃo http://lourencomutarelli.blogspot.com/
univeRso pop Dedicada à exaltação de personagens cult, a Interview coloca as celebridades também na posição de entrevistadores www.interviewmagazine.com
investigando os primórdios do jornalismo, o pesquisador em história da
mídia Jean Chalaby notou que a entrevista, como gênero jornalístico, pode ser considerada uma invenção estadunidense. Popularizada na segunda metade do século 19, passou a ser presença constante não só no jornalismo impresso, mas também nas rádios, na televisão e, mais recentemente, na internet. Tanto que, ainda em 1969, incentivou o pai da pop art, Andy Warhol, a criar uma revista. Warhol, junto com Gerard Malanga, idealizou uma publicação que se dedicasse ao culto das celebridades, já abordado pelo artista em sua obra. A Interview, como veio a ser batizada, traz apenas entrevistas, em vários casos comandadas por nomes inusitados. No site, é possível ver Jack Nicholson inquirindo a atriz January Jones; o ator Jake Gyllenhaal, de O segredo de Brokeback Mountain, tendo uma conversa informal com Natalie Portman, em que a primeira pergunta é sobre que rosto de presidente estadunidense ela acresceria ao Monte Rushmore; e o diretor Gus Van Sant conversando com a estrela da série infantil High school musical, Zac Efron, sobre móveis de decoração, sua carreira e videogames. As entrevistas estão divididas em seções como moda, arte, música, filme e cultura, e o site também traz notícias, vídeos e informações sobre eventos.
O escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli criou um blog autoinvestigativo para descobrir o motivo da sua volta às bebidas, mesclando uma narrativa pessoal e confusa com desenhos e rascunhos de seus cadernos.
compoRtAmento www.oesquema.com.br/conector/
No Conector, Gustavo Mini reflete sobre as mudanças comportamentais provocadas pela tecnologia, autoconhecimento e cultura digital. Lá, também publica semanalmente a tirinha de desenhos toscos Autopista.
Bom HumoR http://nickhornby.campaignserver.co.uk/
No blog de Nick Hornby, os leitores têm acesso a textos bem-humorados sobre, por exemplo, a relação entre o hábito de fumar de Penélope Cruz, temas literários e o Arsenal, seu time de coração.
sites de
editoras LIGEIRINHO
CONTEÚDO ABERTO
PORTUGAL
http://editora.cosacnaify.com.br/blog/
www.hedra.com.br
http://thepenguinblog.typepad.com
O recém-criado blog da Cosac Naify, além de novidades sobre os seus livros, traz notícias sobre o mundo literário e editorial.
Em seu site, a Editora Hedra disponibiliza, por meio do Google Livros, o conteúdo integral de grande parte dos seus títulos.
O blog da editora britânica anuncia com sobriedade quais os próximos lançamentos e as belas capas de suas edições.
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Portfolio
cavani Rosas
MINÚCIAS DO DESENHO TexTo Mariana Oliveira
Há pouco mais de dois anos, em matéria publicada nesta Continente, o artista pernambucano Cavani Rosas expunha sua dedicação a um vasto número de trabalhos, que incluíam ilustração científica, quadrinhos, pintura e escultura. De lá para cá, o artista, radicado em São Paulo há 11 anos, intensificou o tempo do seu dia-a-dia reservado à realização desses múltiplos projetos artísticos, em especial aos sutis e detalhados desenhos em bico-de-pena. Em sua primeira individual, em 1970, Cavani expôs apenas desenhos. Depois passou a aventurar-se também em outras técnicas, como a escultura, mas sem nunca abandonar os traços. Há alguns anos, o artista percebeu que o desenho estava se tornando uma expressão artística menos valorizada e resolveu dedicarse mais a ela. Ele usa seu talento como desenhista também em prol da ciência, reproduzindo, em ilustrações, espécies de serpentes para o Instituto Butantan. Ele acredita que essa prática, que demanda apuro técnico, serve como estudo para seus desenhos artísticos. É no espaço urbano das cidades que o artista é provocado e inspirado. Ele tem um especial interesse pela iconografia urbana e sua arquitetura exterior e interior. Aguçado por essa curiosidade, Cavani nos revela, em algumas obras, os elementos arquitetônicos e decorativos de certos recantos paulistas, como o Botequim do Hugo, que em um dos desenhos aparece sem a presença física dos humanos, mas
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Nesta série, Cavani Rosas reproduz imagens da iconografia urbana da cidade, como o Auditório do Ibirapuera botequim do hugo
Neste segundo desenho, o artista voltou ao estabelecimento para retratá-lo com a presença dos proprietários
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O edifício da sinagoga tem seu interior e exterior registrados
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com seus vestígios, e, num segundo desenho, revela, além do ambiente, a face dos seus proprietários. “Gosto de desenhar os espaços sem nenhum humano, para que possa ser observado sem referências de modos de épocas. Muitas gerações passaram por esses espaços. Mas agora já começo a desenhar humanos no Botequim do Hugo 2. São os donos do bar”, explica. Seja nos desenhos de interiores ou nos de exteriores, o artista parece ter escolhido a técnica perfeita para representar os ambientes, devido ao alto grau de detalhismo que o bico-depena possibilita. A cidade de São Paulo, seus estabelecimentos comerciais e espaços públicos são temas de um dos projetos desenvolvidos por ele, que pretende compilar o material em um livro. Em janeiro do próximo ano, será a vez dos mais antigos estabelecimentos comerciais do Rio de Janeiro passarem a ser retratados pelos precisos bicosde-pena de Cavani Rosas.
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É no Instituto Butantan que o pernambucano dedica-se à ilustração científica Os detalhes da fachada da Faculdade de Direito de São Paulo são salientados pelo uso do bico-depena Os elementos arquitetônicos e decorativos de certos recantos paulistas atraem a atenção do artista
@ continenteonline Confira outros trabalhos do artista Cavani Rosas no site www.revistacontinente.com.br
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HEITORVIlla-lObOs Criador que foi além da estética nacionalista Morto há 50 anos, compositor erudito brasileiro de maior projeção internacional construiu uma obra universal a partir da transfiguração e reelaboração de elementos do folclore e da música popular do Brasil texto Carlos Eduardo Amaral
em 1919, quarenta anos antes
de Villa-Lobos falecer, Arthur Rubinstein (1887-1982) visitara o Rio de Janeiro e bem se impressionara com a turbulência criativa do genioso compositor, recomendando-lhe que fosse morar em Paris. Cerca de uma década mais tarde, bancado pelos irmãos Arnaldo e Carlos Guinle, o carioca nascido nas Laranjeiras havia seguido o conselho do pianista polonês e se tornado sinônimo de música clássica brasileira nas salas de concerto e nos círculos intelectuais europeus. Outra década e meia adiante, Villa-Lobos consolidara seu plano de educação musical no Brasil, sob os auspícios do Estado Novo, e passara a ser uma figura cult constante nos Estados Unidos, mesmo sem falar inglês. Desde então, tamanho foi o sucesso do músico em ambos os lados do Atlântico, temperado por uma personalidade geradora de um vasto memorial de mitos, anedotas e conquistas, que nenhum outro compositor tupiniquim logrou conquistar no imaginário dos fãs da música erudita.
No entanto, se a obra villalobiana construiu, com efeito, uma identidade nacional musical (ou se ela, em vez disso, chegou na frente para ocupar um topos brasileiro na música clássica), esse processo se deu através de fórmulas de assimilação bastante diversas, conforme exemplificado ao tomarmos um breve cânone de oito peças, que pode ser aceito com mínimas reservas: O trenzinho do caipira, da segunda Bachianas Brasileiras, a Cantilena, da quinta, e o Prelúdio, da quarta; os Choros de nº 1, 6 e 10; a Melodia sentimental, de A floresta do Amazonas, e a Valsa da dor. Tem-se aí, de trás para frente, uma amostra do repertório para piano solo, uma canção, uma peça coral-sinfônica, uma orquestral, uma para violão solo, uma para cordas, uma para voz solista e conjunto de câmara e, a última, para orquestra de câmara. Além de nenhuma semelhança na instrumentação, na estruturação e na duração (aspectos meramente formais), não há uma linha estética comum sequer a duas delas – e, no caso particular dessas oito, não se observa grande equivalência estilística com outras no catálogo de Villa-Lobos.
O corpus em questão abarca desde a incorporação direta da seresta (Melodia sentimental) e do chorinho (Choros nº 1) até a diluição de ambos em uma roupagem neobarroca (Cantilena) e romântica (Prelúdio), bem como a utilização desses gêneros dentro de uma linguagem orquestral próxima à dos franceses (Choros nº 6) e de Stravinsky (primeira parte do Choros nº 10). O ponto comum a todas essas peças está em um sentimentalismo melódico típico brasileiro – observado, por exemplo, em Pixinguinha e Anacleto de Medeiros – que se amoldou ainda, sem prejuízos, à escrita pianística francesa (Valsa da dor) e a experimentações timbrísticas derivadas do Futurismo (O trenzinho do caipira). Está também na ausência de marcas fortes do realismo socialista que tanto impregnou a música clássica brasileira desde a década de 1940 e remodelou as concepções estéticas musicais da própria nação.
contenDas nacionalistas
O embate entre correntes que assimilavam tendências estrangeiras
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Getúlio Vargas recebe o maestro numa recepção no Itamaraty, na década de 1950 o compositor entre um grupo de jovens na inauguração do Conservatório VillaLobos, em 1957
Na regência, acompanhado por Felicja Blumental e a orquestra Sinfônica de Viena, em 1955
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e as que defendiam manifestações “genuinamente nacionais” agitou a música popular brasileira dentro de um espaço de 12 anos, de 1958 a 1970, especialmente através de quatro movimentos artísticos: da Jovem Guarda, num extremo dessa polarização, ao Armorial (que englobava também a música erudita),
tendo a Bossa-Nova e o Tropicalismo como meios-termos. A apologia ao “nacional” contava com ferrenhos expoentes de orientação esquerdista (como também muitos dos opositores), a exemplo de José Ramos Tinhorão e Ariano Suassuna, que, em maior ou menor grau, beberam em Mario de Andrade. Sem o escritor
paulista – quem, por sinal, primeiro disseminou no país as orientações estéticas musicais do realismo socialista, mescladas às suas pessoais –, as divergências estéticas talvez tivessem demorado mais a se revestir de conotações políticas no Brasil. Graças a Mario de Andrade, pela atuação como professor de música e estética, as celeumas que atiçaram a música popular nos anos 1950 e 1960 reverberaram primeiro na música clássica, nos anos 1930. Ele preconizou, no Ensaio sobre a música brasileira (1928), que os compositores deveriam atingir um estágio de inconsciência nacional – quer dizer, um encontro com uma “brasilidade essencial” – depois de aproveitarem temas folclóricos em suas obras (estágio de tese nacional) e elaborarem melodias próprias orientados por um tino folclórico (sentimento nacional). Villa-Lobos partiu do folclore ao conceber algumas de suas obras, mas não visava necessariamente a algo como tal “inconsciência nacional”. Às vezes, a brasilidade era uma ponte para o que o compositor
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considerava universal. Segundo relato do musicólogo Adhemar Nóbrega, em 1970, Villa-Lobos discernia suas obras entre as que tinham influência folclórica direta ou indireta, as que apresentavam “transfiguração folclórica”, algumas impregnadas por um “ambiente bachiano”, e as que representavam “pleno domínio do universalismo”, ou seja, sem (ou quase sem) resquícios nacionais. Compositores mais novos que VillaLobos e que conheceram Mario de Andrade ou o leram (Claudio Santoro, César Guerra-Peixe, José Siqueira e Camargo Guarnieri, entre outros) aderiram à teleologia nacionalista andradiana nos fins dos anos 1940 – Santoro e Guerra-Peixe com mais virulência, depois de abraçarem e rejeitarem o serialismo, a mais significativa influência estrangeira de então; Camargo Guarnieri e Siqueira, por um natural processo de maturação começado 20 anos antes.
DiRetRiZes JDanoVistas
Para chegar àquela teleologia, a “inconsciência nacional”, os compositores “andradianos” guiaramse pelas diretrizes realistas socialistas, na década de 1950, cujo principal mandamento era “escapar ao extremo subjetivismo e exprimir os sentimentos
em algumas de suas obras, a brasilidade era uma ponte para o que Villalobos considerava universal e altas concepções progressistas das massas populares”, protegendo a cultura nacional das “falsas tendências cosmopolitas”, como o serialismo. Esse preceito, descontada a demagogia patente, era caro a Villa-Lobos desde os anos 1920 e 1930, sem que ele tivesse ouvido falar de Andrei Jdanov (18961948), o temível controlador das artes no stalinismo. Esse fato não diz nada em si, posto que o nacionalismo nas Américas veio importado da Europa, sem componentes de unificação política (vide Itália e Alemanha) ou de libertação imperialista (Boêmia ou Finlândia). O nacionalismo americano desejava sobretudo dar feições estilísticas à música erudita aprendida dos grandes centros europeus (objetivo da Espanha e da Inglaterra já no Romantismo) e nesse ponto recorreu à mesma estratégia de lá: beber na música folclórica e na língua pátria.
O problema número um do jdanovismo estava na submissão às determinações estatais, dentro da União Soviética, que escondiam o gosto pessoal de Jdanov e Stálin e implicavam em censura oficial a quem se desviasse delas. Se houve intuitos nobres, tal qual a educação musical em larga escala (abraçada por Villa-Lobos, mas também antes do jdanovismo), é certo que o realismo socialista na música não tardou a caducar e já havia se tornado démodé no início da Guerra Fria, no Brasil e no mundo. De 1945 para frente, Villa-Lobos triangulava pelo Rio, por Paris e, principalmente, Nova York; tinha regido e gravado suas obras mais importantes e escrevia dentro de uma linguagem mais universalista, por vezes neorromântica, onde os elementos nacionais se apaziguaram, mas não desapareceram por completo – e Arthur Rubinstein continuava a tocar a Prole do bebê nº 1 (1918), simbolicamente lembrando que o compositor dessa obra chegara à França, em 1923, deixando bem claro: “Vim aqui para ensinar, não para aprender”.
@ continenteonline Ouça algumas composições de Heitor Villa-Lobos no site www.revistacontinente.com.br
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CONCERTOs as óperas esquecidas do maior compositor brasileiro Villa-Lobos tem obras executadas no mundo todo em 2009, com direito a resgate da parte mais negligenciada de seu catálogo, as criações operísticas texto Irineu Franco Perpétuo
não é exagero dizer que orquestras e artistas do mundo inteiro têm homenageado o cinquentenário de falecimento de Villa-Lobos. A data exata da efeméride é 17 de novembro, e, para dar uma ideia da amplitude das comemorações, vamos listar os principais eventos que acontecem no Brasil neste mês. Ao longo de novembro, o Quarteto Radamés Ganttali toca, no Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, na íntegra, os 17 quartetos de cordas do compositor. Em Brasília, a Orquestra
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A menina das nuvens foi resgatada e ganhou encenação em setembro deste ano, em Belo Horizonte o musical escrito para a Broadway, no final da década de 1940, também ganhou montagem no Brasil em 2003
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Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro executa as Bachianas brasileiras nº 1, 5 e 6 no dia 10, enquanto em São Paulo, nos dias 19, 20 e 21, Alondra de la Parra dirige a Osesp na Bachianas brasileiras nº 7 e, em Belo Horizonte, Fabio Mechetti lidera a Filarmônica de Minas Gerais no bailado Uirapuru, dia 24. Fora daqui, Paul Hillier rege a versão coral da Bachianas brasileiras nº 9 no dia 8, enquanto, no dia seguinte, Cristina Ortiz inclui várias obras do compositor no recital solo que dá no Queen Elizabeth Hall, em Londres. Em Varsóvia, a
Sinfônica de Torun, regida por Wojcieh Rodek, faz um programa completamente dedicado a Villa-Lobos nos dias 20 e 26, enquanto a Israel Camerata Jerusalem executa a Suíte para cordas em uma série de apresentações em seu país. A verdade é que, a partir de 3 de janeiro de 2009 (quando Alex Klein regeu a Bachianas brasileiras nº 4 no Porto, em Portugal), praticamente não houve dia sem que, em algum canto do planeta, uma obra do compositor tivesse sido tocada. Entre os destaques internacionais, vale mencionar as Bachianas brasileiras (na íntegra) que Roberto Minczuk regeu no Japão, com a Filarmônica de Tóquio, em 22 de agosto. E a arrebatadora execução do Choros nº 10 que David Robertson dirigiu, com a Sinfônica da BBC e os BBC Singers, em 12 de setembro, no encerramento de um dos principais festivais de música da Europa, o Proms, em Londres. No Brasil, não há como não destacar a produção acontecida entre 20 e 26 de setembro, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, que resgatou uma partitura olvidada do compositor: a ópera A menina das nuvens. Ópera de Villa-Lobos? Pois é. VillaLobos compôs centenas de obras, em todos os gêneros, da sinfonia ao quarteto de cordas, de obras para piano solo a trilhas sonoras para filmes e balés de instrumentação luxuriante, de canções a concertos para diversos instrumentos – sem falar nas formas que ele mesmo criou, como as Bachianas brasileiras. No meio de uma produção tão vasta, ainda há muito a conhecer e avaliar. E a
faceta de compositor para o teatro talvez seja a mais esquecida e negligenciada de nosso Villa. Um fato intrigante, se levarmos em conta de que Villa-Lobos foi um dos músicos brasileiros que melhor escreveram para a voz – como testemunham, por exemplo, suas Serestas e as quatro canções da Floresta do Amazonas. Não custa lembrar que sua mais célebre partitura, a Bachianas brasileiras nº 5, é um solo de soprano cujo melodismo nada deixa a dever à melhor veia de Puccini. O catálogo do Museu Villa-Lobos traz elencadas nada menos do que 10 obras do gênero de sua lavra. Contudo, de muitas delas não há notícia de performance, nem qualquer vestígio de partitura. E, no meio da lista, aparece um musical escrito para a Broadway, de nome Magdalena, que já foi até gravado pelo selo Sony, e encenado na sétima edição do Festival Amazonas de Ópera, em 2003, em Manaus. De ópera propriamente dita, a primeira foi Izaht, que só subiu ao palco em 1958, embora teoricamente tivesse sido escrita entre 1912 e 1914, e resultasse de uma fusão de dois outros trabalhos anteriores de VillaLobos, chamados Aglaia e Elisa, dos quais, contudo, nunca ninguém viu traço. Em 1920, o compositor teria feito outra ópera chamada Zoé, da qual, contudo, só existe o bailado do primeiro ato. Villa-Lobos já era um autor consagrado quando recebeu uma encomenda da Ópera de Santa Fé, nos EUA, e, entre 1955 e 1956, compôs sua ópera mais ambiciosa: Yerma, sobre texto
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con especial ti nen te#44 homônimo do poeta espanhol Federico García Lorca (1898-1936). A estreia, contudo, foi póstuma, e só ocorreu em 1971. Com acompanhamento de piano, Adriane Queiroz, a soprano brasileira da Staatsoper de Berlim, e outros cantores nacionais, cantou trechos de Yerma, em julho, na embaixada brasileira na capital alemã, e repete a dose na Cathédrale Saint-Louis des Invalides, em Paris, no dia 17 deste mês. A menina das nuvens também é uma criação da década de 1950 – e, a exemplo de Yerma, também teve estreia póstuma (no Rio de Janeiro, um ano após a morte do autor). Sua partitura para canto e piano data de 1952. Trata-se de uma ópera em três atos, com temática infantil, sobre texto de Lucia Benedetti, contando a história de uma menina que é criada nas nuvens, mas deseja voltar a terra para conhecer sua mãe e, depois de uma série de reviravoltas, acaba se casando com um príncipe. Como costuma ser a regra dentre as obras de Villa-Lobos, o material musical se encontra em estado bastante precário – ainda em manuscrito. Por isso, foi fundamental o Palácio das Artes ter chamado para dirigir a ópera o maestro Roberto Duarte, um especialista na revisão de partituras do compositor. Assim como já fez com várias grandes obras orquestrais de VillaLobos – como A floresta do Amazonas e Emperor Jones, Duarte revisou a partitura de maneira meticulosa. Em A menina das nuvens, ele achou necessário fazer alguns acréscimos. Inseriu passagens faladas da peça de Lucia Benedetti, para melhorar a compreensão do texto. E, ainda, como a ópera não tivesse abertura, mas apenas 19 segundos de introdução musical, escreveu um prelúdio de quatro minutos de duração, juntando seus principais temas. A boa notícia é que o Palácio das Artes planeja fazer um DVD que permita não apenas documentar a produção, como fazer a música de Villa-Lobos circular e ser melhor conhecida. Daí, quem sabe, alguém pode se animar a colocar de pé as outras óperas do compositor.
@ continenteonline Ouça a execução do Choros nº 10 que David Robertson dirigiu com a Sinfônica da BBC e os BBC Singers no site www.revistacontinente.com.br
Artigo
lEONaRdO maRTINEllI VIlla-lObOs E a IdEIa dE bRasIl exatamente no mesmo ano em que o compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959) falecia no Rio de Janeiro, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicava seu fundamental Visão do paraíso: Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Nesta obra, tida como um dos marcos da historiografia brasileira, Holanda se debruça sobre os motivos edênicos presentes em diferentes fontes históricas compreendidas entre os séculos 15 e 18. Neste contexto, o “descobrimento” das Américas e o seu processo de colonização foram o ponto de partida para a ideia do Novo Mundo enquanto materialização terrena do Jardim do Éden bíblico. Focando seus estudos no Brasil, Holanda analisa de que forma o país desempenhou papel central na consolidação desta ideia. Viajantes, religiosos e toda uma sorte de cronistas europeus são, em maior ou menor medida, unânimes em atribuir à exuberância e “virgindade” de nossa terra – ainda livre dos vícios do Velho Mundo – os pré-requisitos para sua eleição enquanto paraíso terreno. Se o elemento nacional foi desde seus primórdios presença constante na obra de Villa-Lobos, é importante notar que isto não ocorreu de uma única maneira. Ainda que a musicologia e a análise estética modernas estejam por lançar um olhar mais meticuloso no conjunto de sua obra, podemos nos arriscar em dividi-la em três grandes blocos que – a despeito de uma série de características comuns que integram o que se pode chamar de “estilo villalobiano” – refletem diferentes momentos de sua atividade criativa. Entretanto, apesar das diferenças inerentes à produção de Villa-Lobos ao longo de carreira, um importante fator mostra-se relativamente constante: a ideia de Brasil que o
compositor procura conferir em suas partituras e, desta forma, difundi-la pelo mundo. Neste sentido, Villa-Lobos fez coro aos seus contemporâneos americanos que também se valeram da poética Neoclássica como base de sua atividade artística. Paradoxalmente, se em sua matriz europeia o uso do elemento musical regionalista ou estrangeiro (tal como uma melodia folclórica, um padrão rítmico etc.) foi utilizado como um tempero exótico – quando não, francamente caricato –, as escolas nacionalistas americanas, em geral, apenas desenvolveram esses estereótipos regionais, no que podemos entender como um processo de apuramento do olhar
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propósitos das estruturas de poder que sustentavam a carreira do compositor. Desta forma, os pilares da obra do compositor não deixam de ser um extenso catálogo de ilustrações musicais de paisagens e passagens pitorescas do Brasil. Obras como Amazonas, Uirapuru, os ciclos de Choros e Bachianas brasileiras, as suítes do Descobrimento do Brasil e várias de suas peças de câmara e para piano solo são apenas alguns exemplos que reforçam a tese de que a estereotipia da cultura brasileira foi, neste sentido, o principal fundamentador estético de Villa-Lobos. Como se sabe, hoje em dia, muitas das paisagens e passagens evocadas por Villa-Lobos originam-se de estereótipos pré-existentes que sua obra apenas reforça. Para o homem que afirmava que “o folclore sou eu!”, a ideia que se quer passar do país é mais importante do que saber como ele realmente é. Entretanto, é importante ressaltar que a constatação desta visão edênicoufanista na poética musical de VillaLobos em momento algum põe em cheque o valor musical de sua obra, a
Deparamo-nos com Villa-lobos incorporando os diversos cronistas e viajantes europeus que visitaram o Brasil estrangeiro frente à cultura natal, e não como um olhar novo e interno para com sua tradição musical. Assim, deparamo-nos com VillaLobos incorporando os diversos cronistas e viajantes europeus que visitaram o Brasil (Staden, Martius, Spix e Rugendas, por exemplo) e que difundiram a ideia do país como paraíso terreno por conta de suas virtudes naturais e geograficamente intrínsecas. Estas “virtudes” da terra se materializam de diversas maneiras na obra do compositor. Porém, é nos títulos de suas peças que a ideia de “Brasil-Éden” tornase explícita, sendo este inclusive o fator que determina as escolhas e os procedimentos a serem utilizados no
campo da escritura musical. Tal como um viajante estrangeiro, o compositor elege como tema para suas obras não apenas do elemento nacional, mas necessariamente aquele de forte apelo exótico, cuja singularidade – ou mesmo bizarrice, como na peça para piano Feijoada sem perigo – é o elemento que garantirá a plena aceitação da obra por uma audiência internacional, que no caso de VillaLobos, se remete principalmente à sociedade parisiense do entreguerras, e somente após o término da II Guerra Mundial, parcialmente aos EUA. Além disto, esta visão paradisíaca era-lhe também muito conveniente no Brasil, mostrandose perfeitamente alinhada aos
maestria de seu métier e sua importância na história da música brasileira. Suas opções estético-ideológicas são apenas o produto do somatório de fatores políticos, culturais e musicais, à época também presentes em outros compositores brasileiros e americanos. Mas o que talvez chame a atenção no caso de Villa-Lobos é a sistematicidade com a qual se valeu destes recursos, aliado à sua controversa ligação com o Estado Novo e à ditadura de Getúlio Vargas em meio a um contexto global em que, em vários países, a ascensão dos movimentos nacionalistas teve como consequência na esfera política a consolidação de regimes autoritários e fascistas, não raro valendo-se da arte como seu cartão-de-visita.
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romance sob escombros
Em 1963, Samuel R. Delany enviou Voyage, Orestes, um romance de mil páginas, para várias editoras, que o recusaram. Anos depois, ele ficou famoso com Dhalgren, que vendeu um milhão de exemplares. Um editor lembrou-se de Voyage, Orestes e pediu para reler. Delany tinha apenas uma cópia datilografada, com seu agente literário. Mas este precisou mudar-se, e a caixa com o livro se perdeu. Havia uma cópia-carbono desta versão, numa casa onde Delany havia morado por alguns anos em Nova York. Delany foi até lá, descobriu que a casa tinha sido demolida, e que em cima dela estava sendo construída outra coisa. Ele contactou os donos da casa, que lhe disseram: “Ficou tudo lá no porão... só tinha uns trastes velhos... você falou que eram papéis sem importância...” E, de fato eram, até o momento em que a primeira via se perdeu. O livro deve estar lá. Com sorte, ainda está intacto. (BT)
Zola e a fatalidade Émile Zola era um neurótico obsessivo, desses que lavam as mãos 100 vezes por dia, ou voltam 20 vezes para ver se deixaram luz acesa ou torneira aberta. Sérgio Paulo Rouanet (em Os dez amigos de Freud) diz: “Zola precisava antes de dormir tocar várias vezes os mesmos móveis, abrir as mesmas gavetas. Contava os bicos de gás, os degraus de uma escada. De noite, abria os olhos sete #44 vezes, para provar a si mesmo que não ia morrer”. Zola morreu em 1902, durante o sono. A chaminé estava entupida e o óxido de carbono produzido pela lareira se acumulou no aposento. Suspeitouse de crime; Zola arranjara muitos inimigos entre os antissemitas, com sua participação no Caso Dreyfus. A fatalidade pertence mais ao domínio do destino do que ao do acaso. É algo que parecia escrito-nas-estrelas, predeterminado para acontecer. Fugir dela é fugir na direção de Tebas ou de Samarra, ou seja, sempre na direção desse encontro marcado com nosso futuro irreversível. bráulio tavares
con ti nen te
A FRASE
“se você quer transar, vá à faculdade. se quer aprender alguma coisa, vá à biblioteca”
Balaio tapa de luva
Conta Mauro Rosso, no prefácio do livro Contos de Arthur Azevedo, que o escritor-dramaturgo, que assinava uma coluna semanal de contos no Correio da Manhã, foi comunicado pela direção do jornal de que seria substituído. Ficaria em seu lugar o vencedor de um concurso de contos promovido pelo próprio periódico. Não deu outra: com um pseudônimo, concorreu à vaga aberta por ele mesmo... E ganhou! Em seguida, revelou a verdade aos superiores e pediu demissão. (Eduardo Cesar Maia)
punk pelo sistema Em 1976, aos 12 anos, João Francisco Benedan leu, em uma revista da sala de espera de um dentista, uma matéria sobre o Sex Pistols e seu empresário, Malcolm McLaren. Depois assistiu na tevê, num dia de domingo, a um clipe do grupo punk inglês. O adolescente ficou fascinado com a música e a postura anárquica do vocalista Johnny Rotten e do baixista Sid Vicious. “Quer dizer, o principal agente por eu ter me tornado um punk foi o próprio sistema, a revista Veja e a Rede Globo,” disse João Gordo, do Ratos de Porão. (Débora Nascimento)
Frank Zappa
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vai ter que pagar Quando chegou ao Rio, vinda de São Luiz, nos anos 1960, a cantora Alcione ganhava a vida tocando trombone nas boates da zona sul da cidade. Dava para viver, mas não para voltar de táxi toda noite para casa – e ela ia a pé. Numa dessas noites, foi parada por uma patrulhinha que desconfiou daquela menina sozinha e a levou para a delegacia. Ao chegar lá, Alcione explicou que era música, tocava na noite e tinha que voltar para casa a pé todos os dias. O delegado duvidou, mas um inspetor confirmou e ainda acrescentou que ela tinha um vozeirão. O delegado então mandou: “Se ela toca trombone, mesmo, quero ver agora”. Não restou saída. A Marrom fez um show só para ele ali mesmo e foi liberada. Anos depois, em sua primeira apresentação no Canecão, o delegado mandou um recado, pedindo uma mesa para levar a família, todos fãs. Lembrando aquela noite em que ele a liberara, a Marron não conversou: “Olha, eu vivo do ingresso do público, até canto de graça para quem precisa. No caso do doutor, já cantei uma vez e agora, para me ouvir, vai ter que pagar”. (Beatriz Coelho Silva)
cRiAtuRAS
briga de bambas As intrigas entre malandros cariocas já renderam bons sambas entre as décadas de 1930 e 1950. O exemplo mais primoroso talvez tenha ocorrido em 1935, quando o já consagrado Noel Rosa resolveu contestar Wilson Batista, compositor que estava surgindo na época. Começou quando Batista mostrou os primeiros versos do samba Lenço no pescoço: “Meu chapéu de lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso...”. Não achando que o sambista fosse digno de se chamar de malandro, Noel atacou em versos: “Deixa de arrastar o teu tamanco, pois tamanco nunca foi sandália, e tira do pescoço o lenço branco, compra sapato e gravata...”. A briga durou algum tempo e rendeu clássicos como Palpite infeliz e Feitiço da Vila, de Noel Rosa. O Frankenstein da Vila – segundo gozava Wilson Batista numa letra com esse título – morreria dois anos depois, em 1937, com 26 anos; mas a desavença com Batista já havia encerrado antes disso. (Bernardo Valença)
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COLETIVO EDITORIAL Por que eles deixariam de publicar tudo aquilo? Livrinho de Papel Finíssimo investe na autogestão, fazendo circular livros e periódicos de baixo custo que agregam diversidade de linguagens, promovendo o acesso do público a conteúdos autorais e experimentais TEXTO Adriana Dória Matos fOTOs Flora Pimentel
Pessoas se encontram e fazem coisas juntas. Enquanto curtem, vão a festas, falam de suas vidas, compartilham seus problemas, discutem ideias, planejam, imaginam. Desses encontros podem resultar conversas fantásticas sem qualquer aplicação efetiva – o que não é nada mal, em se tratando da necessidade humana de se divertir e ser feliz – ou podem ser pontos de partida para realizações que vão dar prazer não apenas àqueles do círculo, mas a outros indivíduos que, mesmo estando fora dele, vão usufruir de seus efeitos. Uma diversidade de músicas, filmes, livros e obras de arte geniais que conhecemos surgem assim, de trocas entre pessoas que se conhecem, frequentam-se, planejam e fazem coisas juntas, sem qualquer superestrutura que as sustente. A esse tipo de produção, que foge às regras e aos sistemas tradicionais, costumamos chamar de alternativo ou independente e há mais pessoas do que se pensa que gostariam de integrar esses grupos, quando não por outros motivos, pelo simples fato de poderem ter mais liberdade de criação, veiculando os próprios trabalhos das maneiras que achem apropriadas. Evidentemente, ser independente ou alternativo não
é tarefa fácil ou sempre divertida – como se poderia depreender do que foi dito no parágrafo anterior –, já que demanda também uma atitude política, uma deliberada cultura de oposição a alguns valores arraigados entre aqueles que são os “dependentes”, ou que aderiram ao establishment.
entre as referências do grupo de editores independentes está a cena underground de quadrinhos dos anos 1960, nos eUa Sobre essa fuga à cooptação, certa vez, o quadrinista Gilbert Shelton, um dos nomes à frente da revista Zap Comix, disse: “Se nós fizermos sucesso, teremos falhado. Mas, se fracassarmos, teremos sido bem-sucedidos”. Ainda que a afirmativa tenha feito alguns chamarem esta de uma “filosofia suicida”, o que a sustentava era a vontade de se manter em liberdade “lá fora”, já que sucesso, neste caso, era ser tragado pelo sistema, como interpretou Harvey Kurtzman, ao criticar a rejeição do grupo de
quadrinistas ao “livre mercado”. “Mas tornar-se parte do sistema era um fracasso, porque você inevitavelmente herdaria as condições do sistema: vida confortável, fórmulas estabelecidas, restrições editoriais, posses materiais etc.”, reconhecia o fundador da Mad. (Você pode ler essa história na apresentação que Rogério de Campos escreveu a uma coletânea brasileira da Zap Comix, editada pela Conrad.) É desse modo alternativo e autoral, calcado numa cultura de resistência, que vêm sendo publicados os títulos da Livrinho de Papel Finíssimo, editora colocada “oficialmente” no cenário artístico recifense em dezembro de 2006, mas que foi sendo aos poucos viabilizada antes dessa data, pela criação de publicações como a Fusão – “misto de revista, fanzine e catálogo”, de acordo com definição dos próprios editores –, cujo primeiro número circulou em 2004. A Livrinho surge sob inspiração de iniciativas como a citada Zap Comix e a editora Rip Off Press, ambas do underground norteamericano dos anos 1960/1970, e a Ragu, revista produzida há 10 anos em Pernambuco (leia matéria a seguir). Mas outras inspirações podem ser antevistas como motivadoras da criação dessa editora, sendo as mais evidentes a noção de identidade e a
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a entrada “oficial” em cena da editora se deu há três anos, com uma série de lançamentos simultâneos a atrair um público heterogêneo em vários aspectos, mas aproximado na busca por produtos em que se fizessem presentes conceitos como honestidade e liberdade editorial. Apropriando-se do que o sociólogo Clinton Sanders disse em 1975 sobre a contribuição das comix aos processos de identificação cultural para qualificar a relação entre editores e leitores no contexto tratado aqui, seria possível dizer que uma importante função exercida pelo tipo de trabalho praticado por editoras alternativas
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como a Livrinho de Papel Finíssimo é “dar coesão a um grupo de pessoas que se sentia estranho à cultura dominante e procurava suporte social para seu ódio e descontentamento”, porque seus produtos “refletem valores e percepções compartilhadas, sustentando um grupo de refratários e tendo um papel importante na afiliação de novos membros para a comunidade contracultural”. Seria interessante ponderar que a expressão “ódio” acima citada tem muito a ver com “negação”
ou “ação reativa”, quando se pensa nas incipientes condições editoriais encontradas ainda hoje em Pernambuco. Os editores da Livrinho, a despeito do acesso a formas tecnológicas e virtuais de edição (como gráficas rápidas e blogs), valorizam os processos artesanais de edição associados à cultura dos zines, como cópias xerográficas e acabamentos feitos à mão. Embora tenham manifestado contentamento quando receberam bolsa-auxílio da edição 2006 da Semana de Artes
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Páginas anteriores 0 01-01 maLa na mÃo
Uma das estratégias do coletivo é a distribuição direta ao público
Nestas Páginas 01-02 eStiLete
Alguns títulos são trabalhados da forma mais artesanal possível na “sede” da editora
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PoRtfóLio
Nac oleção Olho de Bolso incluem-se trabalhos com técnicas variadas, como fotografia e desenho
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Visuais do Recife – SPA das Artes, com a qual puderam alugar uma copiadora a laser (que chamaram jocosamente de “novo parque gráfico”), imprimir e fazer escoar vários títulos que se encontravam “no prelo”, o que contribuiu bastante para a divulgação da editora.
ceLeBRaÇÃo e comPRomiSSo
Além de ser uma editora que usufrui o reconhecimento entre os pares, porque é feita e frequentada por agentes da cultura artística urbana, a Livrinho
vem conquistando público nos eventos que promove para lançamentos de livros e revistas. Em geral, são festas em lugares alternativos ou cults da cidade, em que pode haver pequenos shows, discotecagem, projeção de filmes, exposições artísticas, todas associadas ao elenco de colaboradores da editora. Fora essas festaslançamento, só é possível comprar ou negociar edições através do email livrinhoeditora@gmail.com e conhecer alguns produtos acessando o blog livrinhoeditora.blogspot.com.
Um trabalho educativo também é eventualmente realizado pelo coletivo editorial, na realização de oficinas de reproarte, quadrinhos e zines; assim como há a demarcação de um território político, pela presença em movimentos sociais, como ocorreu em 2008, quando a Livrinho participou da Marcha da Maconha, tendo publicado um de seus “bestsellers”, a coletânea O fino da massa, misto de manifesto e memória do evento. Não há regularidade nas publicações, algo como um calendário
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anual de lançamentos, mas a editora vem mantendo alguns títulos – o zine Fusão e a revista de quadrinhos “sujos e ordinários” Xorume são exemplos de periódicos – e coleções como a Olho de Bolso (parceria com a Ragu), Literatura na Hora (resultado de participação no Festival de Inverno de Garanhuns) e a recém-lançada Lítera Tara, que pretende consolidar espaço para prosa e poesia dentro do seu catálogo. A Olho de Bolso, que já lançou vários títulos, alguns deles esgotados pela baixa tiragem, seguramente é a de qualidade editorial mais marcante e eclética. Publicada em formato de folheto de cordel, ela reúne trabalhos em fotografia, narrativas visuais, cadernos de anotações e rascunhos, desenho e histórias em quadrinhos, em que a autoria “intransigente”, a permeabilidade entre linguagens e o trabalho editorial afetivo, colado a cada obra, ficam evidentes. Ainda que muitos dos trabalhos sejam produzidos para a coleção, a ideia de aproveitamento ou de reciclagem também está presente nesses livretinhos, em que pinturas e
os fluxos fazem com que haja variação na composição dos integrantes do coletivo editorial desenhos feitos a esmo – em bordas de agendas e cadernos, enquanto se faz outra coisa; esboços e plantas de projetos artísticos; manchas de nanquim em folhas de papel jornal que serviram de forro em mesas de trabalho – são sobras valorizadas e tornadas em obras artísticas. É possível pensar nestes livros de bolso também como provocações, em que se encontra conteúdo artístico poético, confessional e coloquial, mas, sobretudo, satírico, irônico, violento, pornográfico e escatológico, trazendo elementos da cultura de contestação, de massa e popular, destacando-se entre elas a cultura jovem. Em alguns títulos há falhas editoriais e de revisão, não se sabe se propositadamente –
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núcLeo dURo
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PaRticiPaÇÃo
Atualmente, Leta Vasconcelos, Camilo Maia e Sabrina Carvalho são os editores fixos da Livrinho Cadernos de desenhos de Walter Vasconcelos é um dos trabalhos publicados no número sete da revista Ragu
para manter a estética da “sujeira” e do “erro”, de edições “toscas” – ou por desconhecimento técnico. Os fluxos e intercâmbios entre os integrantes fizeram com que alguns deles estivessem mais ou menos presentes nas ações deste coletivo editorial, que nem sempre foi Livrinho (em 2004 era coletivo Laboratório) e já teve à frente o fanzineiro Henrique Koblitz, o artista plástico Diogo Todé, o ilustrador Greg, o grafiteiro e designer Moacir Lago, e agora é coordenado pelo designer gráfico Camilo Maia, as arte-educadoras Leta Vasconcelos e Sabrina Carvalho, contando com a colaboração do poeta e pesquisador André Telles, todos exercendo simultaneamente o papel de editores, entre outras funções. O que é instigante em ações como a Livrinho de Papel Finíssimo é o seu caráter agregador, dinâmico, colaborativo, que certamente estimula aqueles que só estão precisando de um empurrãozinho para tomar coragem e colocar a si mesmos nas ruas, compartilhando com outros aquilo que andam pensando e criando.
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reprodUção
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ragu NÚMERO SETE CHEGA CHEIO DE BANCA foi em fevereiro de 2000
que Christiano Mascaro e João Lin – sempre eles, desde então – colocaram na praça a revista de “humor, quadrinhos e nonsense” Ragú. Era uma edição de 48 páginas, capa colorida, miolo em preto-e-branco, grampeada, seis colaboradores, em que os editores exultavam a chegada de uma publicação que valorizava o trabalho de chargistas, ilustradores, caricaturistas, quadrinistas e designers. Já naquele editorial, comentava-se (e agradecia-se) o importante papel das leis de
incentivo à cultura, graças às quais se tornava possível a realização de tal proposta, numa região fértil em produção em artes plásticas e gráficas e precária no seu desenvolvimento. Naquele momento, a Ragú herdava e se inseria nessa tradição, pois mostrava o talento dos artistas selecionados a figurar na publicação enquanto expunha a dependência do apoio institucional (público ou privado) num cenário editorial tímido. Quase 10 anos e sete revistas depois – sem contar alguns projetos paralelos, como o Ragú Cordel e o Domínio Público –, aqueles que vêm acompanhando a trajetória da revista podem observar os resultados obtidos quando há suficiente energia empreendida em um projeto, tanto no que diz respeito ao esforço pessoal, profissional e artístico de indivíduos, quanto suporte financeiro e retorno público, o tripé elementar para
o sucesso de qualquer empreitada do gênero. Porque a cada edição a Ragu – hoje grafada sem o acento agudo no U – foi encorpando, aumentando o número de páginas e o elenco de colaboradores, chegando a lugares que aquela edição 00 não previa, porque suas ambições iniciais eram do tamanho das possibilidades que vislumbrava na época: poder ser um veículo de apresentação de trabalhos de artistas pernambucanos para um público, no máximo, regional. Em agosto passado, os editores da Graffiti postaram no blog da revista (http://graffiti76. blogspot.com/2009/08/ragu.html) uma mensagem de felicitação a esse admirável crescimento: “A revista, que se dizia filha da Graffiti, suplantou a paternidade e passou uma bela rasteira na gente. Apesar de ser ainda mais atemporal que a nossa, já é, sem dúvida, o que de mais belo se produz em termos editoriais no Brasil”. Era o tom do elogio a uma nova edição, a sétima, que subiu para 240 páginas, capa dura, policromia, 33 colaboradores de seis países, lançamento e distribuição nacional e mesmo internacional. Ainda que jamais tenha adotado a atitude independente da Livrinho de Papel Finíssimo, que indica se querer mais alternativa aos esquemas oficiais de apoio e incentivo, a Ragu serve de referência a esse grupo de jovens editores e mesmo com ela compartilha a edição da coleção Olho de Bolso, antes mencionada. Num gesto de passiva curiosidade, vamos ver como estará a Livrinho de Papel Finíssimo daqui a 10 anos, tempo que levou a Ragu para chegar ao estado de crescimento no qual hoje se encontra. adriana dÓria matoS
Ragu nº 07 vÁrioS aUtoreS c. mascaro e João Lin Colaboradores de vários países mostram HQs, desenhos e cartuns
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flora pimentel
cartunista do extinto
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Bússola
luís fernando veríssimo Entre um prato, um lugar, uma música, um tempo, o cronista elege aqueles que lhe são recorrentes, também reservando espaço para os insuspeitos e as surpresas
O Pasquim, Jaguar definiu bem o escritor Luís Fernando Veríssimo: “De manhã à noite, sempre com a placa ‘Homens trabalhando’ pendurada no pescoço”. Veríssimo não costuma “perder tempo” na boemia. É tímido e de poucas palavras: tem um ar de constante observador. Na literatura, pelo contrário, as palavras são muitas. É apaixonado pelo jazz desde a adolescência, época em que morou em Washington, onde estudou saxofone. Hoje, toca sax alto em uma banda com mais quatro integrantes, Jazz 6. Um dos humoristas mais reconhecidos do Brasil, Veríssimo tem mais de 30 livros publicados. Sendo hoje um dos escritores que mais vendem livros no país. Natural de Porto Alegre, ele iniciou sua carreira como jornalista. Filho do escritor Érico Veríssimo, acabou também enveredando pela literatura e, em 1969, começou a escrever crônicas para o jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul. A obra de Luís Fernando Veríssimo também é conhecida através de outros veículos. Na TV Globo, escreveu quadros para o programa Planeta dos homens e teve seu livro Comédia da vida privada adaptado para uma série homônima – que ganhou prêmio da crítica como o melhor, no gênero, da TV brasileira. Atualmente, o humorista escreve para os jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Zero Hora. Como cartunista, criou As cobras, tiras que são publicadas em vários jornais do país.
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Artes visuais
os cinco mais Leitura
Saudade de Antônio Maria
fotoS: DiVUlGação
na época “clássica” da crônica brasileira, tínhamos rubem Braga, paulo mendes Campos e fernando Sabino. mas talvez o melhor deles fosse um quarto que nem sempre é lembrado: o pernambucano antônio maria. É o que eu releio com mais prazer.
Gosto, como se sabe, é o que mais se discute, mas certos artistas estão acima de qualquer controvérsia. Duvido que, numa eleição universal de pintores indiscutíveis não aparecesse nos primeiros lugares estes três nomes, Vermeer, Van Gogh e o americano edward Hopper, não necessariamente nesta ordem. o que os três têm em comum é uma obsessão pela luz. o que não é o caso de picasso, que entraria no lote de favoritos, mas em quarto ou quinto lugar. Já francis Bacon (abaixo), que eu colocaria nessa seleção de todos os tempos, não é unanimidade. Há quem deteste.
Comida
Lugar
lagosta é bom de qualquer jeito, mas quanto mais simples melhor. fria, com uma maionesezinha, ou grelhada na casca, acompanhada só dos gemidos de quem come. Quando a lagosta vem inteira, com suas garras e tentáculos, e você recebe, além de garfo e faca, pinças, alicates e aqueles ferrinhos para catar carne onde ela estiver, e ainda um babador ou um avental cirúrgico, então, além do prazer de comer, tem o orgulho de um trabalho bem-feito. Destrinchar faz parte da festa.
Dava para fazer um catálogo das praças mais bonitas do mundo. ou uma viagem especial, pulando de praça em praça. Começando por onde? talvez a plaza mayor de madrid. Depois as praças Vendôme e des Vosges, de paris. Sem esquecer a praça dourada de Bruxelas e a navonna de roma. e uma pracinha chamada place furstenberg (abaixo), em paris, perto da rue Jacob, que muita gente pensa que descobriu, até saber que é a praça favorita de muita gente que também pensava que ninguém mais conhecia.
Destrinchando o crustáceo
A praça é do povo
Memória
Jacaré sob o sol minha mulher não acredita quando eu conto que quando era garoto adorava praia e até fazia “jacaré”, que era o surfe no tempo em que não havia pranchas – pelo menos fora do Havaí. Sim, eu sou do tempo pré-prancha. Hoje eu digo que, se não fosse o sol, a areia e a água fria, praia até que seria bom. o comodismo é uma das doenças da velhice. ou talvez naquele tempo eu estivesse tão ocupado sendo garoto que não me dava conta de como praia é incômodo.
Musica
Do Birdland a timbaúba Uma vez ouvi a banda do Count Basie (acima) tocando no velho Birdland de nova York. a combinação da potência da banda com o teto baixo do Birdland me fez pensar que nunca mais na vida eu ouviria um som tão impactante. mas estava enganado. muitos anos depois ouvi a banda Spockfrevo ao vivo e o efeito foi o mesmo. Como esta nunca mais, pensei. mas estava enganado de novo. Há pouco, num encontro de bandas municipais em nazaré da mata, interior de pernambuco, uma banda de timbaúba, com oito trombones e seis trompetes, me pôs por terra. Quem pode resistir a oito trombones?
Cinema
Sem efeitos, por favor não sei se acontece com outros, mas tomei um fastio com os efeitos especiais no cinema. os efeitos ficaram tão espetaculares que enjoaram. São feitos para nos maravilhar, mas – pelo menos no meu caso – provocam um certo ressentimento. não quero mais ser maravilhado. Quero poder ver de novo a montagem malfeita.
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marcelo abreu
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macau 2 Em 28 km , todo um território linguístico A antiga colônia portuguesa, hoje administrada pela China, transformou-se em ponto de encontro de diversas culturas e idiomas, atraindo cada vez mais visitantes texto e fotos Marcelo Abreu
na aparência, tudo tem um jeito muito lusitano em Macau. A arquitetura tradicional com azulejos, as ladeiras suaves, os pitorescos nomes de ruas e lojas do comércio que sempre são escritos em chinês e português. No centro histórico, a cidade parece uma mistura simplificada de Lisboa com João Pessoa. Mas falta alguma coisa muito importante: pessoas que combinem com o cenário. Quase não se encontram portugueses nas ruas. Os restaurantes populares, conhecidos como “estabelecimentos de comidas”, nada servem que tenha semelhança com a familiar culinária de Portugal. À primeira vista, quem caminha na cidade tem a impressão de que a
antiga colônia portuguesa no Oriente, conquistada em 1557, acabou mesmo com a reintegração à China, há exatos 10 anos, quando tornou-se a Região Administrativa Especial de Macau. Nessa península de 28 quilômetros quadrados, a cultura e a língua portuguesa seriam agora apenas uma pálida lembrança em fachadas desbotadas que anunciam, em termos arcaicos, nomes de lojinhas pitorescas. Mas a primeira impressão pode ser enganadora. Numa pequena banca de revistas, na tradicional Praça do Senado, debaixo de uma pilha de jornais escritos em chinês, encontramos um exemplar de um diário chamado Ponto Final. O nome pode não ser animador, mas aquele
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FoTos: marcelo abreu
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livraria
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comércio
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tai long fong
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fachadas
livros portugueses à venda no antigo território macau é um importante centro de comércio na Ásia
Tradicional casa de chá no centro a legislação determina que todas as fachadas comerciais sejam bilíngues
Viagem 01
acabou sendo um ponto de partida para a descoberta do universo da resistência e da prática da língua portuguesa em terras do Oriente. Os próprios portugueses de Macau não sabem quantos são. Os números têm variado muito ao longo do tempo. Na década de 1990, nos últimos anos do domínio lusitano, a população chegou a aumentar porque o governo de Portugal queria deixar tudo arrumado para a transferência e precisou de mais funcionários. Após 1999, com a reintegração à China, houve um êxodo. Recentemente, os números voltaram a subir levemente. Numa população de 550 mil habitantes, calcula-se que entre 10 e 32 mil falam o português como primeira língua, incluindo os que vieram de Portugal e os nascidos em Macau. Os números são imprecisos porque a estratificação étnica do território é bastante complexa. Além da população de ascendência europeia, existem os macaenses mestiços, que geralmente são resultado da mistura de chineses e lusitanos, mas que usam o português
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como primeira língua. Os macaenses têm uma cultura particular. Apesar dos olhos puxados, sentem orgulho de sua origem parcialmente europeia. Têm também uma literatura própria, expressa nas obras de escritores como Henrique de Senna Fernandes e José dos Santos Ferreira.
mestiÇagem lingUÍstica
Séculos atrás, os macaenses chegaram a desenvolver o patuá, um linguajar crioulo conhecido como dóci lingu di Macau, que refletia o encontro de culturas entre europeus, chineses e outros povos da Ásia que habitavam a região. Mas hoje essa variedade linguística está praticamente extinta, sobrevivendo somente como curiosidade em alguns gêneros musicais e no folclore. Portugueses e macaenses estão, literalmente, cercados por 1 bilhão e 300 milhões de chineses. No seu entorno imediato, não se fala o chinês de Pequim – conhecido como putonghua (ou mandarim) –, mas o cantonês, dialeto importante do sul da China, que é incompreensível para
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um falante do putonghua. O cantonês está competindo, em Macau, cada vez mais, com a imigração de chineses do continente que falam outros dialetos. Se o próprio cantonês sofre a concorrência de outras línguas, o que dizer da pressão sobre o pequeno português do Oriente? Surpreendentemente, não é bem isso o que acontece. Com os negócios da China aumentando com a África e o Brasil, há um crescente interesse entre os chineses em aprender o português. E Macau, como ponto de encontro entre as duas culturas, transforma-se em ponte entre dois países de proporções continentais: a China e o Brasil. De novo, a cultura lusitana metida em grandes empreitadas. Segundo o jornalista e escritor Luís Ortet, editor da Revista Macau (publicação trimestral), residente no território há 25 anos, o governo chinês tem cumprido integralmente seu compromisso em manter as características especiais de Macau, também no que diz respeito à língua, presente em todos os setores da administração pública e no Poder
Judiciário. “Somos parte da identidade que torna a cidade diferente do resto da China”, diz Ortet. O sociólogo Rui de Sousa Rocha, diretor em Macau da Fundação Oriente e presidente do Instituto Português do Oriente (Ipor), é crítico em relação a alguns aspectos dos novos tempos no território, mas reconhece a nova força do idioma no contexto geopolítico chinês. “O valor da língua é como uma bolsa de valores, isto é, sobe e desce de acordo com as variações da economia.” O Ipor, além de ter 1.200 alunos chineses e estrangeiros matriculados em cursos de língua portuguesa, treina professores e mantém leitorados nas universidades de Xangai e Pequim. “A língua vai bem por causa do governo da China. Tornou-se útil”, afirma Rui Rocha.
o avanÇo inglÊs
Uma possível ameaça à língua de Camões é a presença crescente do inglês, que está entrando forte na cidade com os milhares de funcionários dos cassinos, que estão transformando Macau numa Las
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reprodução
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Viagem
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ponte
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religião
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las vegas
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bilingUe
ponte que liga o centro de macau às ilhas de Taipa e coloane Templos budistas e igrejas cristãs também se tornaram atrações turísticas Nova fachada do cassino lisboa. macau tornou-se a las Vegas do oriente placas em chinês e português dão toque pitoresco ao ambiente urbano
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Vegas do Oriente. Para os australianos, canadenses e norte-americanos, foram criados, nos últimos anos, dois jornais em língua inglesa, o Macau Daily Times e o Macau Post Daily, com tiragens já muito superiores às publicações escritas em português. O jornalista Rodolfo Ascenso, nascido em Angola, foi diretor do Macau Daily Times, que tem uma tiragem de 5 mil exemplares e lidera o mercado em língua inglesa. Ele fala com entusiasmo sobre a situação da imprensa. “Estamos no meio do eixo Brasil-Angola-China. Macau é um fenômeno único no mundo. O inglês cresce, o português não diminui”. Os jornais em inglês servem também aos imigrantes filipinos, que já representam 2% da população. Este é um fenômeno mais recente. São, em geral, moças que imigram das Filipinas para trabalhar como empregadas domésticas em Macau, inclusive
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com famílias portuguesas. Elas falam tagalog, a principal língua das Filipinas, e inglês. Nas bancas de revistas, já é possível ver jornais em tagalog, por enquanto importados das Filipinas. A força do português se reflete, de forma mais visível, na imprensa. Além do Ponto Final, circulam diariamente os jornais Hoje Macau e o Jornal Tribuna de Macau. O principal diário em português é o Tribuna (2 mil exemplares diários), comandado pelo jornalista José Rocha Diniz, há 27 anos no território. Diniz é daqueles que acham que Portugal é um país pequeno demais para seu próprio povo. As aventuras nos territórios ultramarinos seriam, para ele, uma válvula de escape; e Macau cumpriu e continua cumprindo esta função para uma nova geração de lusitanos. Na Rua de S. Domingos, no centro antigo, destaca-se a Livraria Portuguesa, onde se encontram obras de escritores brasileiros como
Érico Veríssimo, Jorge Amado e José Sarney. A gerente chinesa Lau Mei Ieng, que aprendeu o português e adotou o nome de Cristina, lembra do tempo em que os europeus eram os principais clientes. “No dia em que chegava avião direto de Lisboa, havia fila na calçada para comprar os jornais novos.” Agora a livraria vende mais livros da área de Direito (o sistema jurídico ainda é baseado nos códigos portugueses) e atende a muitos clientes chineses, que chegam em busca de dicionários e material didático para aprender a língua. Na Escola Portuguesa de Macau, o professor Pedro Lobo diz que o estabelecimento reflete os novos tempos desde que decidiu abrir as portas também para alunos chineses e para os de língua inglesa. “A assistência caiu, mas queremos mostrar que estamos cá”, afirma
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FoTos: marcelo abreu
macau: budista E cristã
China
Ilha de Macau
Ilha da Taipa China
Aeroporto Internacional de Macau
Nome região administrativa especial de macau (desde 1999, integrada à república popular da china). Área 28 km2.
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População 550 mil habitantes. Densidade populacional 18.428 pessoas/km2. Grupos étnicos chineses, portugueses e filipinos. Línguas cantonês, chinês, português, tagalog. Religiões budismo e cristianismo. Atividades econômicas Turismo, jogo, indústria têxtil, comércio e bancos. Moeda pataca Renda per capita us$ 39 mil
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Lobo. A escola tem cerca de 500 alunos, do primário ao ensino médio, e mantém o português como língua básica do currículo. Tudo indica que o pragmatismo chinês vai respeitar o status do território com suas características atuais, onde o bilinguismo desempenha um papel fundamental. A fórmula de “um país, dois sistemas”, que se aplica a Macau e a Hong Kong, está garantida até 2049. Isso serve ao turismo e serve de bom exemplo na estratégia de Pequim para atrair, no futuro, a ilha de Taiwan ao domínio continental. Macau deve permanecer como um enclave de língua portuguesa, uma ilhota lusitana no oceano que é o mundo chinês.
Por mais algumas décadas o português deverá ser falado e escrito nas pitorescas ladeiras de Macau, nas ruelas poéticas de nomes como Rua da Palha, Rua do Pagode, Beco do Caracol, Rua da Madeira, Avenida do Infante Dom Henrique, Rua das Estalagens, Rua da Praia Grande e Rua das Mariasinhas. Por todas elas, pode-se caminhar lendo, nas vitrines e fachadas, nomes como “Estabelecimentos de Comidas de Seng Kei Sopa de Canja”, “Mercearia Fong Seng”, “Casa de Penhores Veng San”, “Quinquilharias Tai Tong”, “Casa de Chá Tai Long Fong”, “Loja Carnes Assadas Kun Van Kau” e “Fábrica de Foguetes Chan Tai Kee”, entre muitos outros.
PIB us$ 21,4 milhões
Fontes: Serviço de Estatísticas do Governo de Macau e Direção dos Serviços de Economia
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karina freitas
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Peleja
Artistas consagrados devem ser beneficiados pelas leis de incentivo à cultura? Um milhão para a turnê de Caetano, meio milhão para o DVD de Gil. O produtor cultural Gutie é a favor do incentivo a medalhões da música brasileira, desde que se estabeleçam contrapartidas. Já o pianista Benjamim Taubkin é contra, mas chama a atenção para outras questões da cadeia produtiva
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Gutie
os criadores estão cada vez mais
dependentes de incentivos, que podem tanto significar a compra de mais um apartamento quanto do almoço do dia seguinte. Antes da criação da lei de incentivo, os preços para a locação, divulgação e outros serviços eram baseados nos valores possíveis para este mercado. O teatro em geral Diretor da cobrava 20% da bilheteria com som e produtora núcleo Contemporâneo luz incluídos. Os jornais tinham um espaço com custo reduzido para o setor. Todos os preços se adaptavam à realidade da venda de ingressos para o estabelecimento de seus valores. A partir da implementação da lei, passou-se a calcular o orçamento visando aos recursos do universo do patrocinador, elevando as cifras – o que acabou por dificultar ao artista viver apenas da relação direta com o seu potencial público. Hoje, se cobramos um ingresso de 20 reais, para um espaço com capacidade para 300 pagantes (estou falando da produção não comercial), teremos dificuldade para cobrir os gastos sem a participação de um patrocinador, mesmo com casa cheia. Os institutos de cultura, também patrocinadores, vêm realizando uma programação de entretenimento (não questionando a qualidade). Mas, por oferecerem concertos gratuitos ou a preços muito reduzidos, acabaram por acostumar o consumidor médio a não pagar, ou pagar muito pouco por estas apresentações. É comum hoje em dia achar caro 30 reais, mas depois gastar 50 ou 60 em um jantar, cerveja etc. Ou seja, o artista tem dificuldade para vender seu disco físico ou líquido, a não ser que se estabeleça uma série de estratégias de marketing - o que não é para todos –, e também para produzir seu próprio espetáculo sem passar por editais e/ou outros apoios. Nesse momento, também, todas essas anunciadas maravilhas dizem mais respeito ao single – a uma música que é a obra mais consistente de um artista, seja ele tradicional ou contemporâneo, erudito ou popular. Honestamente, não acho relevante se artistas com viabilidade comercial usam ou não essas leis. A questão, para mim, é que o novo artista tenha modelos alternativos aos que existem e se sinta estimulado a buscá-los. Mas os músicos estabelecidos prestariam, na minha opinião, um maior benefício ao setor se prescindissem desses recursos.
A questão é que o novo artista tenha modelos alternativos aos que existem e se sinta estimulado a buscá-los
flora pimentel
Divulgação
Benjamim Taubkin
Alu Quando se criam mecanismos de
incentivo, a exemplo da Lei Rouanet, o acesso aos benefícios deve ser estendido a todos, consagrados ou não. Essa abrangência, contudo, deve vir acompanhada de uma regulamentação minuciosa, de uma rigorosa fiscalização e do cumprimento das contrapartidas. Distorções nos meDiretor dos canismos têm alimentado críticas festivais rec-Beat e Continuum à concessão de benefícios a artistas consagrados. No entanto, este é o momento ideal para se discutir o tema e programar os ajustes necessários no bojo do Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – Profic, proposto pelo Ministério da Cultura para substituir a Lei Rouanet. É inconcebível a concessão de recursos públicos a um artista sem que se estabeleçam contrapartidas que resultem em benefícios também para o público-alvo. São inúmeras as possibilidades de retorno que se podem incluir em um projeto beneficiado, como, por exemplo, direcionando-o para regiões economicamente carentes, com apresentações gratuitas. Prática que, antes de tirar público pagante, como argumentam alguns produtores, atuam, na verdade, como fomentadora de um novo público potencialmente pagante, caso permita sua condição social. Devemos ter em conta o desejo das pessoas, principalmente as de baixa renda, de ter acesso à obra de seu artista preferido, que só se torna possível por meio de políticas públicas. É sabido que a va l o r i z a ç ã o mercadológica de um artista consagrado resulta também em uma natural “elitização” do mesmo. Cabe aos mecanismos das leis de incentivo romper com esse distanciamento, da mesma forma que cabe ao artista adotar uma conduta diferenciada, como cobrar um cachê menor, quando financiado com recursos públicos. Críticos à concessão de incentivos a nomes consagrados costumam questionar “o nível” desses artistas, sob o argumento de que “nomes consagrados” não são, necessariamente, sinônimos de “qualidade artística”. Apesar do caráter subjetivo presente na definição de “qualidade artística”, este seria mais um ponto fundamental a ser trabalhado no aprimoramento das leis de incentivo, ou seja, o de se estabelecer critérios de seleção de projetos que não se confundam com o gosto pessoal do analista de plantão.
cabe ao artista beneficiado adotar uma conduta diferenciada, como cobrar um cachê menor
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ENTRE LIVROS Uma beleza de biblioteca Fundado em 1850, com uma estante de apenas 20 exemplares, Gabinete Português de Leitura mantém milhares de títulos, entre os quais obras raras TEXTO Fabianna Freire Pepeu FOTOS Léo Caldas
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Sem possuir uma biblioteca particular e nem tampouco recursos
para comprar livros, era no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco e em bibliotecas públicas que o médico e cientista social Josué de Castro lia e estudava, dando início às suas pesquisas – atuais até hoje. Era o ano de 1929, momento em que ele retornava ao Recife, depois de ter concluído o curso de Medicina, no Rio de Janeiro. Sempre com um livro embaixo do braço, segundo nos conta a sua filha Anna Maria de Castro, para “parecer um pouco mais velho e ter ares intelectuais”, pegava um bonde até o centro da cidade e, no vigor da juventude, imaginamos que ele subia apressadamente a larga escadaria que o conduziria ao Salão Nobre da instituição, onde, na época, eram feitas as consultas dos leitores. Ali, isolados do barulho do mundo, muitos pesquisadores pernambucanos
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iniciaram a construção de sua obra. O sociólogo Gilberto Freyre também costumava frequentar o Gabinete Português de Leitura – foi lá, em 1971, que se deu a solenidade de seu doutoramento honorário – e a lista de seus visitantes ilustres segue extensa, incluindo até uma suposta visita de Charles Darwin em sua passagem pelo Brasil. Fundado pelo médico e jornalista João Vicente Martins, em 3 de novembro de 1850, o Gabinete Português de Leitura foi instalado, no ano seguinte, em uma pequena sobreloja no imóvel de número 40 na Rua da Cadeia Velha (atual Marquês de Olinda), no Bairro do Recife. Todo o seu acervo cabia em uma pequena estante de madeira. Afinal, eram pouco mais de 20 livros! Em 1880, já existiam 11.622 exemplares catalogados. O gabinete foi sediado em três sobrados
diferentes na Rua Imperador Pedro II, no bairro de Santo Antônio, Centro, até, finalmente, em 1921, ser reinaugurado no número 290 dessa mesma rua, onde funciona até hoje – contando com um significativo acervo, estimado em 60 mil títulos. “Nesse momento, estamos fazendo a contagem e a informatização do acervo”, explica Vicente Miranda Reis de Melo, presidente do gabinete. Quase metade dos livros já está informatizada. “Ficará para outra etapa disponibilizar on-line a ficha de leitura das obras”, informa, a exemplo do que ocorre com o acervo do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, que foi criado em 1837 e é o mais antigo do país. À parte as perdas irrecuperáveis causadas por um grande incêndio ocorrido no prédio em 1937, o acervo é formado por obras de literatura, filosofia, história, além de narrativas de viagens e estudos da raiz da
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SoB SiLÊncio
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BUSto
CABINETs São UMA cRiAção eURoPeiA do SécULo 18
Sala de leitura Eça de Queirós funciona no segundo andar, junto à Jordão Emerenciano, que abriga livros disponíveis para consulta No terceiro andar do GPL foi instalado o cabeçote do hidroavião que, em 1922, fez a primeira travessia aérea do Atlântico Sul Prédio do Gabinete integra conjunto arquitetônico histórico do Centro do Recife, localizado na mesma rua da Capela Dourada e do Arquivo Público O mais célebre escritor português de todos os tempos, Luís Vaz de Camões é homenageado pelo GPL, que possui em seu acervo uma edição de 1878 de Os lusíadas
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língua portuguesa. Há também livros de temática bem distinta como é o caso da História do jazz, do crítico americano Marshall Winslow Stearns (boa dica para quem quer entender esse estilo musical) ou, ainda, as publicações do Conde D’Aurora, que tanto influenciou os regionalistas do Recife a partir da década de 1920, sem falar em enciclopédias (nacionais e estrangeiras) e dicionários, gerais e especializados. Jornais locais também estão, diariamente, à disposição dos visitantes. Calcula-se que o gabinete receba, mensalmente, 300 pessoas, entre turistas e estudantes do segundo grau, em sua maioria. Entre as obras raras do acervo destacam-se as 18 páginas manuscritas de um capítulo de A cidade e as serras (1901), de Eça de Queirós; Historia naturalis brasiliae (1648), de Guilherme Piso; um volume de Os lusíadas (1878), de Luís Vaz de Camões; Hystoria
ecclesiastica del scisma del reyno de Inglaterra (1588), do padre espanhol Pedro de Ribadeneyra da Companhia de Jesus; e, ainda, uma edição da Potestade ecclesiastica (1479), de Augustinus Triumphus ou Augustín de Ancona. Segundo informações do gabinete, a publicação desse escritor ermitão, que habitava a província italiana de Ancona, é um dos três exemplares disponíveis no mundo. Há uma edição de 1475, em Colônia, na Alemanha, e uma de 1487, em Veneza.
ARQUitetURA ecLéticA
Instalado em um prédio de três andares, de pé direito muito alto, em estilo eclético, o gabinete está localizado numa área de grande valor histórico e arquitetônico do Recife, próximo à Capela Dourada (1697), ao Arquivo Público (1731), ao Teatro de Santa Isabel (1850) e a velhos sobrados tanto estreitos quanto charmosos. No térreo,
O surgimento dos gabinetes de leitura, na Europa do século 18, está relacionado às chamadas boutiques a lire, que eram casas onde era possível alugar livros, mediante pagamento e prazo para a sua devolução. Isso era diferente do que ocorria nas bibliotecas públicas, onde os livros eram emprestados, mas para leitura apenas em suas dependências. “O termo também suscita uma conotação atribuída a um espaço da moda, associada ao progresso e à civilização e, assim, ao requinte que os novos centros de saber irradiavam”, afirma a doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Maria de Fátima Mattos. Segundo Mattos, devido às diferenças sociais e culturais entre a França e o Brasil, a instalação desses espaços aqui ocorre a partir da iniciativa da colônia portuguesa do Rio de Janeiro, responsável pela difusão da ideia junto a uma pequena elite carioca. Os gabinetes portugueses de leitura são referenciais urbanos que trazem à tona questões ligadas à memória e à formação da identidade nacional. “O projeto arquitetônico nos remete ao estilo das arquiteturas-pátrias, apoiado na história como memória coletiva, assumindo uma função simbólica, como imagem de um poder aqui representado por meio de sua arquitetura”, explica a estudiosa. Para o imigrante, longe da pátria, a referência do lugar amparava o resgate e a manutenção da tradição. “Esses lugares simbolizaram uma memória viva e espontânea, uma obra de arte celebrativa, um evento do qual a participação da sociedade não poderia prescindir.” Em seus estudos sobre os Gabinetes Portugueses de Leitura, a pesquisadora também observou a inserção do edifício na cidade, a partir das relações de identidade e estilo, na passagem do século. É o ecletismo, segundo a pesquisadora, o estilo que se apresenta no Brasil nesse momento, fruto de uma mentalidade desenvolvimentista que vai transformar o ritmo das cidades a partir de questões de mercado. “Esse fenômeno é mais expressivo na capital da República, mas, no Recife, após o incêndio de 1937, o GPL exemplifica a expressão eclética da cidade, com a presença marcante do neoclássico, nas cores peculiares do Nordeste”, pontua.
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há uma sala polivalente para exibição de filmes e realização de conferências, sala de exposição e administração. No segundo andar, há duas grandes salas: a Sala Jordão Emerenciano abriga os livros disponíveis para consulta e a Sala Eça de Queirós funciona como sala de leitura. O Salão Nobre, no último andar, abriga os livros disponíveis apenas para a consulta de especialistas, e é climatizado. Há muito tempo está fechado às visitações regulares, em função do resumido número de funcionários da instituição, mas é possível agendar uma visita guiada. Vale a pena. O espaço é, sem dúvida, o lugar mais bonito e imponente de todo o prédio. Ali, estão a primeira estante do gabinete e outras relíquias curiosas, entre as quais o cabeçote do hidroavião que, comandado pelos aviadores Sacadura Cabral e Gago Coutinho, fez, em 1922, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Contando com cerca de 400 metros quadrados e dois belos mezaninos, à direita e à esquerda, o salão possui vários janelões que, quando abertos, permitem entrever o curso do rio Capibaribe e a passagem do tempo.
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A comunidade portuguesa trabalha em caráter voluntário, garantindo o funcionamento da instituição. Apenas sete funcionários contratados fazem o trabalho administrativo e de catalogação do acervo, além da segurança das obras e do prédio. “Os recursos para a manutenção do gabinete são oriundos das mensalidades dos associados e dos aluguéis de imóveis doados, no passado, por nossos conterrâneos”, diz Reis. O gabinete também recebe contribuições eventuais dos seus associados. São 400 sócios cadastrados, mas apenas 250 contribuem. A instituição nunca recebeu incentivos provenientes de recursos públicos – apenas foi dispensada do pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Recentemente, a diretoria do gabinete iniciou um diálogo com a Secretaria Estadual de Cultura com o objetivo de fazer parte do roteiro oficial turístico de Pernambuco. Essa aproximação com o Governo do Estado é fundamental para o planejamento e a execução de projetos futuros que garantam a atualização
do acervo e a restauração das obras raras, que hoje estão acondicionadas de modo precário e, ainda, para a reinclusão da instituição na vida pública da cidade, pois o Gabinete Português de Leitura é considerado um dos monumentos mais importantes da presença portuguesa no Estado. Para além das dificuldades administrativas e financeiras relativas à falta de atenção que se dá, no Brasil, ao bem comum, há algo mais sutil que também precisa ser levado em consideração. A importância da instituição ilustra aspectos da colonização brasileira e, mais do que isso, nos remete à história dos portugueses não como colonizadores, mas como grupo de imigrantes que tentava se afirmar culturalmente. “Conhecer essa história é acima de tudo entender esse processo de negociação da identidade de um grupo étnico e a sua busca pelo abandono dos estereótipos que o legado colonial lhes incutiu”, enfatiza Wilza Betânia dos Santos, que estuda o tema em seu mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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Gabinete Português de Leitura Recife
Fone: (81) 3224.2002 Entrada franca
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iMPonÊnciA
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oBRAS RARAS
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SALão noBRe
O projeto arquitetônico remete a estilos da arquitetura lusitana, levando o visitante à ideia de poder e à manutenção da tradição Alguns exemplares históricos estão expostos em vitrine colocada no Salão Nobre do edifício Com 400 metros quadrados, espaço guarda livros que estão disponíveis apenas para consulta de especialistas, mas é possível agendar visita guiada
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FEITA DE BARRO Louça polida à mão por Eunice A septuagenária artesã se dedica ao ofício desde os 14 anos. Ela domina todas as etapas da produção, da coleta da matéria-prima à comercialização das peças texto Danielle Romani fotos Breno Laprovitera
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Miúda, os olhos muito vivos no
rosto expressivo, Eunice Clotilde do Nascimento Oliveira, 71 anos, é uma resistente, uma das derradeiras artesãs de um ofício em vias de extinção, uma das últimas louceiras do Vale do Capibaribe, em São Domingos, distrito de Brejo da Madre Deus, no Agreste pernambucano, localidade que há meio século abrigava mais de 100 famílias vivendo exclusivamente da atividade. “Por que eu continuei? Porque é minha vida, não sei fazer outra coisa. Há 40, 50 anos, tinha umas 200 loiceiras aqui em São Domingos. Agora, só existimos eu e mais duas mulheres, o resto desistiu ou morreu”, explica a senhora. Herdeiros da sua arte? Ela afirma não haver. “Dos meus cinco filhos, nenhum quis aprender o ofício, pois acham que é muito trabalho para pouco dinheiro”, conta a artesã, sentada no chão da cozinha de casa, os cabelos desalinhados, as mãos ainda sujas do barro de uma jarra que acabara de moldar. Flagrar dona Eunice com as mãos na massa não é uma questão de sorte ou oportunidade. Apesar da idade avançada, dos problemas de visão, do reumatismo no joelho, diariamente, ela levanta às 5h30 e vai moldar na esteira os utensílios dos quais tanto se orgulha. Um “luxo” que se permite desde que passou a receber uma pensão equivalente a um salário mínimo, da Previdência Social, pois antes o dia começava ainda mais cedo; às 4 da madrugada já estava a postos, dedicada a fabricar as peças com as quais sustentou a família toda a vida. “Minha mãe se separou do meu pai quando eu tinha 14 anos e criou a gente com as louças que fazia. Mas é um serviço sacrificado demais, apesar de ela amar o que faz. Acho eu, até, que é um amor igual ao que tem pelos filhos!”, opina a filha Josefa do Nascimento Oliveira, costureira, 41 anos, que mora com a mãe, e que jamais quis aprender o ofício. A moldagem dos utensílios pode ser apontada como a “parte fácil” do trabalho. Difícil é recolher o barro e aguentar o calor do forno para cozinhar as peças em temperaturas muito acima de 500 graus. Mas, hoje, como há décadas, o barro que
molda cuscuzeiras, mealheiros, tigelas, leiteiras, jarras, vasos, pratos é recolhido por dona Eunice, na beira de um braço do Capibaribe que fica a cerca de dois quilômetros de sua casa. “A matéria-prima está lá, e a gente tem que ir onde dá, né, filha?”, divertese a artesã, que é a última louceira a comercializar seus itens na feira livre de Santa Cruz do Capibaribe, separada de São Domingos por uma ponte: todas as segundas-feiras, sob quaisquer circunstâncias, senta debaixo de uma gameleira e expõe seu trabalho. “Detesto quando é feriado e não tem feira. Gosto de ficar lá, como ficava antes, das 6 da manhã às 6 da tarde. Meu maior medo é ficar doente e não poder mais trabalhar”, conta Eunice, que no passado fazia uma média de 30 a 40 peças por semana, vendidas entre R$ 1 e R$15, e que, hoje, devido à idade, produz 25, no máximo. Diversão para dona Eunice? Além de moldar as peças de barro e dos “passeios” na feira, sua felicidade é participar de uma procissão bonita, uma missa bem-rezada, uma novena. Garante que foi graças à devoção que pôde continuar a trabalhar, pois, quando era adolescente, uma cobra picou seu braço, provocando-lhe problemas de visão. “Na época, um rezador me salvou, mas até hoje, todos os anos, no dia 13 de dezembro, participo da procissão em homenagem a Santa Luzia. Não fosse por ela, não estaria enxergando!”, acredita. Caruaruense de nascimento, mas criada desde os três anos em São Domingos, dona Eunice aprendeu o métier com a avó, Julia Maria, quando tinha 14 anos, e ainda morava num sítio próximo à cidade. Habilidosa na moldagem, muitos a questionam por que não virou santeira, não enveredou pelo caminho trilhado pelo mestre Vitalino e outros artesãos das redondezas que utilizaram o barro para retratar a vida do Agreste e do Sertão. “Não fiz porque não era da minha vontade. Sempre gostei de fazer loiça, principalmente os vasos. É a minha arte”, explica.
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O bom humor é uma constante em dona Eunice, mas ela anda especialmente feliz desde que
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Dona Eunice aprendeu o ofício com sua avó e, hoje, é um das poucas que mantêm a tradição na região do Vale do Capibaribe A artesã recolhe o barro, modela e leva ao forno todas as suas louças As peças de Dona Eunice compõem a mostra itinerante Do pó ao barro, que está circulando pela região
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seu trabalho foi transformado na exposição itinerante Do pó ao barro, mostra interativa que reúne peças de sua autoria, além de fotografias e documentário a seu respeito, e que está percorrendo quatro macrorregiões de Pernambuco (Agreste Central, Agreste Setentrional, Agreste Meridional e Sertão do Moxotó). Organizada por Roberto Assis, produtor cultural nascido na vizinha Pão de Açúcar, limítrofe de São Domingos, a exposição, bancada com recursos do Funcultura, é um tributo às profissionais que ele via dominar as feiras do Vale do Capibaribe da década de 1960, e também uma homenagem à cultura do barro. “Esta exposição tem tudo a ver com minha memória afetiva, pois
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quando eu era pequeno, e ia com minha mãe à feira, costumava ver centenas de louceiras mostrando seus produtos. Sempre levávamos para casa uma panela, para ela, e um brinquedinho de barro para mim”, recorda. Já adulto, Roberto, conhecido como Beto Normal, foi morar fora da cidade. Ao retornar, nos anos 1990, percebeu que o ofício estava quase extinto. “O uso do fogão a gás e das panelas de metal acabou com a profissão de louceira. Foi quando descobri que dona Eunice, ao contrário das outras artesãs, continuava não apenas fazendo as peças, mas também vendendo-as na feira. Ficamos amigos, passei a frequentar sua casa e, no ano passado, tive a ideia de registrar o seu trabalho, mostrar o valor que a
atividade tinha para a região e registrar uma profissão realmente em extinção”. Inaugurada em setembro, a exposição mescla 80 fotos de Rachel Daisy, todas sobre dona Eunice e suas peças, mais um documentário de 15 minutos, no qual a louceira conta sua vida e fala sobre sua arte, suas louças – e um miniateliê, onde os visitantes podem manusear o barro e fazer pequenas peças. A primeira cidade a sediar a exposição foi São Domingos, em setembro, seguida de Pão de Açúcar, em outubro. Em novembro, entre os dias 14 e 29, Do Pó ao barro será instalada na cidade de Lajedo, na antiga casa da família Vilaça. Encerrando a itinerância, em dezembro, a exposição chega à cidade de Arcoverde, e será montada na Estação Cultura, a partir do dia 5.
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reprodução
matriuska Literatura em tempos efêmeros
Linguagem e temas aproximam livro de Sidney Rocha de vertente do realismo feroz que se consolidou na ficção contemporânea texto Cristhiano Aguiar
Leitura
A ficção contemporânea no Brasil precisa lidar com um desafio: o que fazer com o agora. O relacionamento que nós, pessoas do século 21, estabelecemos com a ideia de presente é cheia de nuances que merecem reflexão. Vamos aos exemplos. Nos últimos shows que tenho presenciado, percebo um fenômeno curioso: uma boa quantidade do público, embora esteja fisicamente presente neles, prefere apertar o botão “gravar” dos seus celulares e câmeras e assistir aos espetáculos através dessas janelinhas digitais. Por quê? Ao que parece, a memória escrita pelo corpo não é mais suficiente. Temos uma fome de realidade: queremos consumi-la e armazená-la nos seus mínimos
detalhes; cada aparelho eletrônico, cada computador e cada casa possuem milhares de museus do agora. Programas de TV, vamos lembrar do Big Brother ou ferramentas da internet – lembremos do twitter –, nos vendem o “tempo real” e as “experiências do presente”. Nossa obsessão pelo presente é um sintoma das mudanças sociais e culturais das últimas décadas. Não acreditamos mais em uma Verdade da literatura, ou em uma Verdade da história, por isso o mundo parece provisório. Não compramos mais as brigas das utopias, de Deus ou do nacionalismo: a recuada destes três modos de “sair de si” – que podemos agrupar no nome bonito
de “transcendência” – nos trouxe de volta ao agora e ao imediato. Se Deus está distante ou não existe mais e se o Paraíso social não é mais alcançável, restam-nos o corpo, seus prazeres e seus riscos. Logo, os valores da espontaneidade e da subjetividade são cada vez mais reconhecidos: o Eu é o ponto de partida e chegada. Quando muitos romances e contos brasileiros se dizem “contemporâneos”, eles parecem dizer: “Eu ofereço retratos do imediato presente, relatos do corpo e deste mundo provisório”. Mas será que isto é suficiente? Cada obra literária nos ensina perguntas: que questões Matriuska, livro de contos do pernambucano Sidney Rocha, recémlançado pela Iluminuras, propõe ao
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Muitos dos temas barra pesada aproximam o livro de uma vertente de realismo feroz que se consolidou na nossa ficção contemporânea. Seguindo a trilha aberta por Rubem Fonseca, João Antonio e Dalton Trevisan, diversos ficcionistas dos anos 1990 e 2000 falam de um mundo de imediato presente, tomado pela degradação social, desconectado da transcendência, da memória, da história e de uma luz no fim do túnel. É o caso de alguns textos de Ana Paula Maia, Marcelo Mirisola, Marcelino Freire, Fernando Bonassi, Patrícia Melo, João Paulo Cuenca, entre outros. Estes e outros escritores agarram com todas as forças a velocidade e a vertigem – usando uma linguagem direta e rápida, com um imaginário vinculado ao Realismo –, num bailado em que o corpo paga o preço da miséria social em sangue, bala e sordidez, tudo isto resultando em uma literatura que se quer “em tempo real”. Contos como Sundown e Flash se aproximam bastante dessa tendência. Na verdade, as narrativas construídas por Sidney Rocha têm como espinha dorsal a fixação dos
os contos são habitados por mulheres envolvidas naquilo que foi chamado de “cotidiano desafortunado” nosso tempo e às obras literárias que lhe são contemporâneas? As matriuskas são mais conhecidas por nós como bonecas russas, aquelas que se encaixam uma dentro da outra até chegar à menor. Os contos-matriuska de Sidney Rocha são todos habitados por mulheres envolvidas naquilo que o crítico Mário Hélio, no posfácio ao livro, chama de “cotidiano desafortunado”. À medida que lemos as histórias de Matriuska, são reveladas estas mulheres ensimesmadas e suas experiências de horror e ranger de dentes. Ao contrário das bonecas russas, contudo, não chegamos à mulher final: quando fechamos os contos de Sidney Rocha, o ludismo da matriuska é substituído pelo ludismo do caleidoscópio.
instantes de angústia dos personagens, principalmente das mulheres. É possível perceber em alguns um exagero neste esforço – Zero-cal e Déjà vu poderiam ser citados. Às vezes, a “câmera” do narrador se aproxima tanto desses instantes de angústia, que a lente começa a se embaçar e o foco desafina. Assim, em Matriuska é possível notar que a busca por uma maneira de contar, de modo geral bem-urdida e sofisticada, nem sempre é garantia de que o passo adiante foi dado. Os textos de Matriuska indicam, contudo, que seu autor tem consciência do perigo de apegar-se demais à presentificação. Por isso, lançam mão do experimentalismo, da poetização da linguagem, das citações, dos
diálogos intratextuais e de uma discreta e saudável aproximação com o fantástico e as alegorias (os contos Egg e Wwwoman, por exemplo) – todos recursos que ajudam a alargar o intervalo entre a realidade e aquilo que o escritor escreve dela. Se temos bonitas imagens como “quem morre, Nestor, é feito arbusto: não dá sombra nem escora”, por outro lado, encontramos também imagens kitsch tais como “durante anos visitei o seu corpo de inverno para untá-la como a um pão de ontem” e experimentalismos que não acrescentam novos significados, transformando-se em ruído: “Jane conhecera Osvaldo quando foram vender o fiat dela, para quele entrasse noutra sociedade”. Os melhores contos abrem janelas, mesmo que a paisagem continue nublada: em Nuvem, mito, história e tempo presente se misturam formando nós de significado e ambiguidade interessantes, bem como o terrível, no bom sentido, Mastruz, que nos apresenta a tensão entre a espiritualidade laica dos tempos atuais – “da minha missa sei euzinha” – e os antigos códigos morais de um tempo que obrigava ao sacrifício de si. A partir deste tema tão cotidiano, o de que Deus é reescrito por cada um de nós de acordo com nosso conforto individual, o conto abre seus horizontes em direção a um considerável abismo metafísico, com a repetição da frase-cantilena “desígnios de Deus, desígnios de Deus...”. Bem-sucedida também é a conversa estabelecida entre os contos Matriuska e Googlemap, pois os diferentes pontos de vista sobre os personagens e suas dores acrescentam novas camadas que se tensionam e afastam as imagens clichês do feminino, perigo que ronda Matriuska e que se consolida em muito da produção contemporânea.
Matriuska sidney rocha iluminuras os 18 contos curtos exploram situações cotidianas de personagens femininas atormentadas
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arthur azevedo os méritos de um autor sem vaidades
Nova coletânea reúne contos consagrados e inéditos do jornalista, escritor e dramaturgo que retratou o Rio de Janeiro do início da República
reprodução
texto Eduardo Cesar Maia
problemas mundanos não atingem, exclusivamente preocupado com sua arte, pura e superior. Os leitores de hoje podem encontrar exemplos da arte desse importante (e peculiar) autor nacional no livro Contos de Arthur Azevedo: Os efêmeros e os inéditos, publicado numa parceria entre a Editora PUC–Rio e a Edições Loyola, com organização de Mauro Rosso (leia entrevista na página ao lado), professor e pesquisador de literatura brasileira, que também assina o texto introdutório e as notas de rodapé. Além do conjunto dos Contos efêmeros, coletânea publicada originalmente em 1897, a nova edição traz sete contos inéditos em livros (só tinham circulado em revistas da época).
FAMÍLiA LiteRÁRiA
Leitura o escritor é um animal vaidoso.
É raro que um sujeito pertencente a essa categoria profissional consiga avaliar com realismo a verdadeira dimensão e pertinência de sua própria obra. Não passa pela cabeça da grande maioria das pessoas que escrevem, seja em prosa ou verso, que 99% de todos aqueles que se arriscam nesse métier ficarão relegados ao (merecido ou não) esquecimento. Surpreende, portanto, encontrar um depoimento como este, publicado há mais de um século, do jornalista, escritor e
dramaturgo Arthur Azevedo: “(...) não solicito a glória nem a imortalidade, mas tenho a consciência de não ser um colaborador inútil. Escrevo, não para os cafés da rua do Ouvidor, mas para a cidade inteira”. Impressiona, mesmo hoje, a postura pública de “abrir mão da imortalidade” em troca da satisfação imediata dos leitores de seus contos e espectadores de suas peças. Essa atitude representa a antítese da imagem romântica que ainda guardamos do escritoreremita, nefelibata, a quem os
Irmão do maior escritor naturalista brasileiro – Aluísio Azevedo, autor de O cortiço –, Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo nasceu no Maranhão, em 7 de julho de 1855. Conta-se que, com apenas oito anos, encantado pelo teatro, começou a escrever adaptações de peças românticas. Aos 16, escreveu alguns poemas satíricos sobre pessoas importantes e desimportantes de São Luís, sua cidade natal, e, perseguido, acabou perdendo o emprego de amanuense. Dois anos depois, mudou-se para o Rio de Janeiro, lugar em que exerceu diversas atividades artísticas e jornalísticas e onde terminou seus dias, em 22 de outubro de 1908. A cidade, à época capital federal, é o cenário onde se passa a grande maioria das histórias criadas por Arthur Azevedo. A obra de Azevedo é marcada pela leveza, superficialidade, graça e simplicidade. Suas histórias – e aqui me refiro principalmente aos seus contos – são fechadas em si mesmas, com habilidade e precisão, mas não dão muito espaço para a capacidade imaginativa do leitor. Os desfechos muitas vezes se assemelham ao final de uma piada. Os diálogos são rápidos, verossímeis e ágeis; seus personagens, planos e previsíveis. Não há lugar para ambiguidades. Seu território é o do humor acessível a todos, e nisso ele foi um mestre. Seus
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Entrevista
mauro rosso dIVuLGAção/CorTeSIA do AuTor
textos prescindem de abstrações, de filosofia ou de qualquer forma de generalização idealista – ele buscava sempre o particular, o factual. O que ele ganhou com essa ampla concessão ao gosto do público médio? Talvez não somente o êxito editorial e dramatúrgico e o aplauso de um público amplo e variado, mas também logrou desenvolver uma acentuada capacidade de comunicar suas ideias de uma maneira que faria inveja aos publicitários dos nossos dias. E isso, destaca o crítico Alfredo Bosi, é fundamental para quem escreve comédias, sejam teatrais ou em prosa. Sua escrita negava artifícios e era, em grande medida, instintiva.
iRoniA e cRÍticA
Como bom jornalista, Azevedo buscava, também, em sua literatura, os fatos, o cotidiano do Rio de Janeiro de sua época, as relações pessoais, profissionais e hierárquicas numa sociedade em acelerado processo de transformação – viveu o período de transição da monarquia para a república –, tudo isso filtrado pela personalidade essencialmente crítica e irônica de um grande e bem-humorado observador de tudo quanto fosse corriqueiro, seja na política, na sociedade ou dentro das casas. Por trás de seu tom irônico, que muitas vezes se aproximava da gaiatice e da pilhéria, estava a sua verdadeira vocação: a de crítico que, conforme o adágio latino, ridendo castigat mores (rindo, castigas a moral). Tratou a literatura e a vida literária de forma natural, sem as afetações tão comuns ao ofício. Em relação à qualidade de seus contos, acredito exagerada a afirmação do organizador da coletânea de que Azevedo é “dos melhores” contistas de toda a história da literatura brasileira – o que não invalida o entendimento de que ele teve influência importantíssima como pioneiro nesse gênero e, ainda mais importante, como um dos precursores do estilo fluente e direto que foi fundamental como contraposição ao floreio linguístico que predominava em nossas letras. Com essa nova edição de seus contos, o leitor atual poderá avaliar, na obra de Arthur Azevedo, o que envelheceu e o que ainda é capaz de surpreender.
contos de Arthur Azevedo: os “efêmeros” e inéditos mauro rosso (org.) PUc Rio/Loyola Seleção de Mauro rosso, professor e pesquisador de literatura brasileira, que também assina o texto introdutório
continente Que contribuições Arthur Azevedo trouxe para a literatura brasileira? MAURo RoSSo Ele foi um multicriador. Sua obra constitui um painel da própria sociedade de seu tempo, envolvendo diversos gêneros e concebendo novas possibilidades de criação literária, como contos e crônicas dramáticas, teatro em verso e prosa, contos em versos etc. Azevedo forneceu a matriz para uma espécie de “contística carioca”, e seus textos são considerados os introdutores da classe média na temática da literatura nacional. Há, na obra de Azevedo, um conteúdo de crítica social intenso – notoriamente quanto à escravidão –, assim como, aqui e ali, manifestações de cunho político. Seus textos revelam um arguto observador da vida social, um perspicaz comentarista de comportamentos e sentimentos humanos, um atilado crítico moralista, que soube retratar as comédias e tragédias, os dramas e o burlesco dos homens, não apenas de sua época, mas de todas elas. continente O que o estilo despojado desse escritor revela sobre sua personalidade pública? MAURo RoSSo Talvez muito da crítica ou descaso com relação à
obra do autor se deva em parte à sua imagem de iconoclasta e boêmio; parte à política (era defensor incondicional de Floriano Peixoto), parte – na seara literária propriamente dita – ao seu despojamento estilístico, refletido na falta de movimentação narrativa ou de multiplicidade de situações de enredo e na “não-seriedade” de sua temática. continente Quem escreve sobre temas menores é necessariamente um escritor menor? MAURo RoSSo É certo que existe o conceito de “alta literatura” e padrões básicos de beletrismo aos quais se procura enquadrar, ou julgar, toda obra literária. Isso não significa refutar o valor daquelas que, por concepção e propósito originais, determinação autoral explícita, deliberadamente se afastem desses diapasões. É o caso dos contos de Arthur Azevedo, que não podem ser classificados como obras menores. continente Como ele se relacionou com as escolas e estéticas literárias de sua época? MAURo RoSSo Ele abominava as tendências literárias de seu tempo, que lhe pareciam nada condizentes ao modus natural de sua literatura. Criticava o falar rebuscado e retórico, que não diz nada e só serve para demonstrar uma suposta superioridade de inteligência. A simplicidade de sua narrativa, passando ao largo de divagações metafísicas, era parte intencional de seu estilo e não se devia à penúria expressional ou carência de embasamento literário – Azevedo conhecia muito bem a língua e tinha pleno domínio do fazer literário.
@ continenteonline Confira a entrevista na íntegra no site www.revistacontinente.com.br
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oriental Sushis e sashimis são mania nacional
Servidos apenas em ocasiões especiais no Japão, pratos à base de peixe cru são populares no País graças à sua leveza TEXTO Danielle Romani FOTOS Yêda Bezerra de Melo
Cardápio 01
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os japoneses chegaram ao
Brasil há pouco mais de um século. E já fizeram escola. Principalmente no que diz respeito à culinária. Em todas as grandes capitais do país, legiões de velhos e novos gourmets reverenciam restaurantes com nomes e temperos nipônicos, atraídos pelo sabor suave e leveza dos pratos. No Recife, há quase duas décadas, o fenômeno se consolidou e se alastra: casas comandadas por japoneses, seus descendentes e chefs de diversas nacionalidades, inspirados nas receitas orientais, podem ser encontradas por toda parte. Em especial, as que promovem rodízios e bufês de sushi e sashimi, iguarias que se tornaram sinônimo da culinária do Japão. Mas, ao contrário do que se pensa, sushis e sashimis estão longe de ser o alimento diário, o arroz-com-feijão nipônico. Muito pelo contrário. Apesar de saborosos, saudáveis e de legítimos representantes da culinária produzida pelos japoneses, a dupla representa para eles o mesmo que bacalhoadas e perus de Natal significam para os brasileiros. São pratos festivos, na maioria das vezes caros, e preparados apenas em dias especiais. “No Brasil, o sushi e o sashimi se popularizaram devido a vários fatores, inclusive a adaptação de ingredientes tropicais e da inclusão de novos temperos utilizados para sua elaboração, que se aproximaram mais do paladar nacional. Tanto que podem ser encontrados até em churrascarias e restaurantes de comida a quilo, onde são consumidos com saladas. Mas é importante ressaltar que eles, apesar de integrarem o cardápio de pratos tradicionais japoneses, não fazem parte da alimentação diária.”, explica Andre Saburó, chef e dono do restaurante Quina do Futuro, um dos primeiros do tipo a abrir suas portas no Recife. Os pratos “bases” da culinária japonesa, ensina o dono e chef do Sushi Yoshi, Masayoshi Matsumoto, 63 anos, nascido em Nagasaki, no Japão, são bem mais simples do que os “incrementados” sushis e sashimis servidos nos balcões locais. “O que consumimos diariamente, tanto no café-da-manhã, almoço ou jantar, com pequenas alterações, é o trio
arroz branco (gohan), sopa de missô (misso shiru) e picles (tsukemono, espécie de legumes cozidos). Esses são os nossos pratos diários. Solitários, ou acompanhados de um cozido, uma carne de porco refogada, um peixe, um feijão azuki, eles estarão sempre na refeição do japonês médio. É o nosso cardápio básico, a dieta diária de quase toda população”, explica o chef que inclui, ainda, entre os clássicos nipônicos, pratos como tempurá (pedaços de vegetais ou mariscos empanados e fritos) e sukiaki (legumes com carne).
PRoDUtoS e PRoceDiMentoS
Masayoshi Matsumoto, ou apenas Yoshi, fala com propriedade. Dono do Sushi Yoshi, inaugurado em 1997, ele comanda uma cozinha que é respeitada pelo uso de ingredientes e receitas tradicionais. Clean, como a maioria das casas do gênero, o restaurante fica no bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife. “Usamos produtos e procedimentos de preparo rigorosamente tradicionais, buscando o sabor natural dos alimentos, sem usar condimentos picantes e marcantes, bem distante dos elementos que fazem a culinária brasileira”, explica Yoshi. O chef quer dizer com isso que a maioria dos seus pratos é à base de sal e shoyo, que tornam suave o sabor das comidas. No Brasil, desde fevereiro de 1960, quando chegou ao interior do Paraná para trabalhar no cafezal de uma fazenda, Masayoshi resolveu se aventurar e acabou chegando ao Recife meses depois. Ao se instalar na cidade, investigou se haviam pastelarias. Ao perceber que existiam poucos estabelecimentos do tipo, determinou que o irmão Júlio, que ainda se encontrava em São Paulo, aprendesse a preparar a iguaria. “Logo em seguida, ele mudou-se para cá, e passamos a vender pastéis na praia e em clubes. Anos depois, em 1968, conseguimos abrir uma pastelaria na Rua 7 de Setembro, que funcionou durante décadas, até inaugurarmos os restaurantes”, explica.
HeRDeiRo ADAPtÁVeL
Shigeru Matsumoto, conhecido como Júlio, era o nome do irmão que Yoshi
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tiRASHizUSHi Sushi Yoshi
Ingredientes 3 fatias de atum 3 fatias de salmão 3 fatias de peixe branco 2 fatias de polvo cozido 2 fatias de kani kama 1 pedacinho de alga marinha (nari) 2 colheres de café de ova de peixe 2 fatias de couro de salmão assado e adocicado 1 porção pequena de gengibre (geari) 1 porção de raiz forte 1 unidade de camarão para sushi 200 gramas de arroz para sushi Sal e pimenta do reino a gosto
Cardápio
Preparo Colocar o arroz de sushi em um vasilhame ou caixa e montar os ingredientes em cima dele.
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incumbiu de aprender a fazer os pastéis, e que largou tudo em São Paulo para exercer o comércio no Recife. Julio teve sorte nos negócios. Assim como o irmão, também abriu um restaurante, localizado no Aflitos, zona norte do Recife, inaugurado em 1986 e que, para os experts em comida japonesa, é considerado um clássico: o Quina do Futuro. Julio morreu em 2001, mas deixou um herdeiro que continua comandando o pequeno império familiar. A responsabilidade de ser filho e sobrinho de dois precursores da culinária japonesa no Recife, fez com que André Saburó, atual dono e chef do Quina, tivesse que ter jogo de cintura para manter o que fora construído pelo pai. Ele soube honrar a tradição: 23 anos depois de inaugurado, o restaurante continua bem-conceituado. Para tanto, teve que adequar-se ao mercado, diversificar os pratos oferecidos e,
principalmente, fazer concessões ao paladar do brasileiro. “O boom do sushi e do sashimi aconteceu entre 1999 e 2000. Eu era o sushiman do Quina e, nessa época, a casa lotava todos os dias. Era uma loucura! Muita gente nos procurava pelo fato de oferecermos uma comida saudável e light”, recorda o chef, que no entanto ressalta: “No meio desta febre, alguns clientes, ainda não familiarizados com nossa culinária, provavam iguarias como sashimi, e tinham um impacto negativo, que se traduzia por devolverem a comida ao prato, enrolada num guardanapo. Percebi que desta forma perderíamos clientela, que essas pessoas jamais voltariam. Foi quando resolvi agir”, conta. À época, ele pesquisou a confecção de sushis não crus, a exemplo do salmão skin (grelhado), do uramaki envolvido ao contrário, mas com camarão empanado no
meio, e de um clássico da culinária nipônica-nacional – o sushi carioca –, no qual a iguaria é empanada e servida com recheio de salmão e cream cheese. “Passei a oferecer essas inovações como cortesia. Foi sucesso total, e rapidamente todas as novas criações começaram a ser pedidas pelos que comiam sushi e pelos que anteriormente não gostavam”, recorda André, que ainda as oferece no restaurante, ao lado de dezenas de inovações. Mas ele garante que os que forem ao Quina do Futuro também poderão experimentar pratos preparados à moda tradicional japonesa, só que com pequenas adaptações. “O filé de salmão no Japão, por exemplo, é temperado com sal e ajinomoto. Nada mais. No Quina, servimos o prato com um pouco mais de condimento: sal, pimenta, alho e sakê.” O mesmo acontece com os robatas, os tradicionais espetinhos japoneses, que no país onde foram criados são preparados com ingredientes pouco palatáveis para os brasileiros, como nervos, pele de galinha, ovos de codorna com casca, mas que no restaurante apresentam sabores mais “aceitáveis”. “Os robatas são clássicos das izakayas, tipos de pubs e petiscarias japonesas que usam de tudo na sua confecção. Aqui, usamos cortes compatíveis com o paladar nacional, a exemplo do atum, frango, quiabo, acelga, brócolis, filé mignon com bacon
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Página anterior 01 PoUt-PoURRi
Tirashizushi é feito à base de arroz e peixes
Nestas Páginas 02 SAL e SHoyo
Nor estaurante de Masayoshi Matsumoto, o cardápio é elaborado a partir de procedimentos tradicionais japoneses
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kojiMA
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FUSION CUISINE
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inoVAção
Casa foi iniciada em um quiosque instalado dentro de um shopping, em 1997 AlexandreF aeirstein mescla elementos da cozinha brasileira, japonesa e peruana Filé Zeppelin é um dos pratos criados para o Kojima
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FiLé zePPeLin Kojima
Para o filé 200 gramas filé mignon em medalhões 50 ml azeite de oliva Sal e pimenta do reino a gosto Para o purê 180 gramas batata inglesa 50 gramas manteiga sem sal 80 ml leite 5 gramas gengibre ralado Sal a gosto 04
Para o molho de cogumelos 100 ml molho roti 100 gramas cogumelos (shimeji, shitaki e fungi) 10 gramas manteiga sem sal Preparo Temperar e grelhar o filé no ponto desejado. Cozinhar as batatas, passar no espremedor. Em uma panela adicionar a manteiga, leite, sal, gengibre e mexer até obter um purê liso. Aquecer a manteiga e saltear os cogumelos, acrescentar o roti e deixar ferver. Montagem Colocar o purê em um dos lados do prato, o filé do outro, cobrir o filé com o molho e decorar o purê com um galho de salsa crespa.
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e cogumelo shitake. Todos fazem muito sucesso”, diz o chef, que elenca outra série de quitutes legitimamente japoneses. “O tsuki dashi é uma entrada de legumes e frutos do mar, preparada à moda japonesa. O doce de feijão, para quem aprecia sabores exóticos, é uma boa pedida para a sobremesa. Outro prato forte do nosso cardápio é o tempura, que pode ser servido com camarão ou legumes. O arroz, se o cliente quiser, vem à parte”, diz André, que observa uma curiosidade: apesar de ser considerado uma iguaria tipicamente japonesa, o tempurá tem origem diversa. “Acreditem: foi criado pelos portugueses!”, afirma.
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Se dependesse de tradição, o Kojima não seria considerado um dos
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QUinA Do FUtURo
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teMPURÁ
Cardápio
Um dos mais respeitados estabelecimentos japoneses do Recife alia elementos tradicionais do Japão à informalidade do brasileiro AndréS aburó comanda o Quina desde que seu pai faleceu. Ele fez incrementos no cardápio da casa Peixes, crustáceos e legumes empanados fazem a alegria dos que não apreciam carne crua
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melhores japoneses da cidade. Afinal, seu dono, Alexandre Faeirstein, pode ser chamado de tudo, menos de um representante da mais pura tradição nipônica. Judeu, Faeirstein começou sua aventura gastronômica por acaso, no momento em que abriu o quiosque Biroska, em 1997, que oferecia queijos e vinhos e ficava localizado nas dependências de um shopping center recifense. “Um dia, apareceu um fornecedor perguntando por que eu não servia sushi para a clientela. Achei interessante e fiz a experiência. Foi um sucesso, apesar do cara que os preparava não ser sushiman – e, sim, tintureiro – e o resultado final, sinceramente, ser de baixa qualidade. Mas todo mundo adorava!”, diverte-se Alexandre, lembrando da fase inicial. Ao perceber que a culinária japonesa era um bom negócio, fez uma proposta a um shopping para abertura de um restaurante japonês. Com arquitetura contemporânea e pratos japoneses, o Kojima se transformou num sucesso na vida do misto de chef e empresário. Só que, nos seus primórdios, quem comandava a cozinha não era Alexandre – que fazia apenas pratos “experimentais” no fogão de casa – mas o ex-dono do Futaba, o japonês Kawano Sun, que à época se encontrava desempregado.
teMPURÁ De cAMARão Quina do Futuro Ingredientes 300 g de trigo 300 ml de água 6 camarões grandes 2 rodelas de cebola 2 rodelas de pimentão 2 fatias de cenoura Preparo Temperar os camarões com alho, ajinomoto e pimenta-do-reino; depois passar no trigo seco os camarões, a cenoura, a cebola e o pimentão. Diluir 150 g de trigo em 350 ml de água gelada, empanar todos os ingredientes, colocar no óleo em temperatura de 180º e deixar fritar por cinco minutos. 07
“Kawano comandou a nossa cozinha durante quatro anos. Nesta época eu já estava envolvido no preparo dos pratos, e comecei a conhecer a parte técnica com ele, que me ensinou tudo: os cortes necessários, os tipos de peixe, o preparo do arroz, a ornamentação. Ele foi fundamental para que eu aprendesse os três preceitos determinantes da boa culinária japonesa: a beleza do prato, a garantia de que é saudável e o sabor, que tem que ser leve, obrigatoriamente”, explica Faeirstein.
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Depois de um tempo, Kawano foi embora. Por sorte, nesta época, o jovem chef conheceu César Santos, diretor da Associação da Boa Lembrança, entidade que congrega 100 restaurantes no Brasil. “Foi fundamental, pois a principal característica da associação é a troca de informações entre os chefs. Comecei a participar de festivais, trouxe para a minha cozinha a marca da culinária contemporânea e, em nove anos, aderi a fusion cuisine (gênero que funde ingredientes de várias culinárias)”, conta o chef, que atualmente mescla, no seu restaurante, elementos da cozinha japonesa, brasileira e da peruana, que tem grande influência da japonesa, e que, inclusive, é conhecida como culinária nikkey, por utilizar, na sua base, frutos do mar. Entre as inovações oferecidas pelo Kojima estão pratos como o Cordeiro Azuki, que mescla lombo de cordeiro com purê de feijão azuki e abacaxi caramelizado. Também é destaque o Camurim farofeiro, iguaria que utiliza o peixe no vapor (apenas salgado), perfumado com ervas e acompanhado com farofa, cogumelos shitake e arroz de nira (espécie de cebolinha nipônica). Faeirstein serve, ainda, um sashimi cuja base é o file de cordeiro cozido, servido com cogumelos e azeite de oliva. Para a sobremesa, recomenda outro prato criado especialmente para os clientes do Kojima: o Hakumaki, que consiste na massa de bolinho primavera recheada com goiabada e queijo (Romeu e Julieta), salpicada com açúcar e canela. A criatividade do restaurante instalado no Pina, numa casa com arquitetura e decoração modernas, vem dando frutos. Há pouco mais de um mês, Faeirstein inaugurou uma filial do Kojima em Brasília. E diz que isto é apenas o começo. kojiMA Rua Ondina, 141, Pina. Fone: (81) 3328.3585
QUinA Do FUtURo Rua do Futuro, 134, Aflitos. Fone: (81) 3241.9589
SUSHi yoSHi Rua Padre Marques Teixeira, 155, Boa Viagem. Fone: (81) 3462.2748
REPRODUçãO
cHinA, coReiA e jAPão Há mil anos, a culinária japonesa era apenas uma cópia do que se fazia na China e na Coreia. Praticamente até o século 10, tudo o que se comia no país, como o arroz e o macarrão, era preparado de acordo com os costumes vizinhos. Nos séculos seguintes, as influências passaram a ser transformadas e adaptadas. Assim nasceria a culinária nipônica. O arroz é o alimento básico. Desde o século 3. a.C. os japoneses o cultivam em campos alagados. Um dos motivos da fixação dos imigrantes nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, quando chegaram há 100 anos, foi justamente o fato de que, nesses locais, ao contrário do Nordeste, a cultura de arroz ser mais comum e farta. A grande quantidade de peixes encontrados no litoral brasileiro foi outro fator que levou tantos japoneses a se fixarem no porto de Santos, no começo do século 20. O peixe cru, apontado como um ícone da culinária japonesa, também sofreu muitas alterações no seu consumo durante os últimos séculos. Ele passou a ser
degustado nos primórdios do Império, mas somente no século 17 é que o sashimi, da forma como o consumimos atualmente, foi incorporado à dieta japonesa. Quanto ao sushi, no formato que conhecemos, enrolado com algas e decorado, foi adotado no século 19, após a reabertura do Japão ao comércio e a aproximação com os Estados Unidos. No século 15, a culinária japonesa sofreu transformações profundas, deflagradas pelas trocas comerciais com o Ocidente. No século 16, navegantes espanhóis e portugueses trouxeram mais novidades. Assim surgiu o tempurá, que consiste em empanar camarões e vegetais, e o hikado, prato feito com atum em cubos, que originalmente deveria significar “picado”. No século 16 também seria introduzida a cerimônia do chá, criada por um monge zen, que, com seus rituais e normas – a maioria delas pautadas na beleza estética – alteraria drasticamente a forma de comer do japonês. A dieta básica do povo, desde então, se pauta na simplicidade e eliminação do supérfluo, valorizando a beleza dos espaços e pratos.
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hEnrI CartIEr-BrEsson a composição exata e o instante preciso Livro e exposição em cartaz no Brasil reúnem imagens da obra de um artista que soube sintetizar rigor formal, simplicidade e complexidade temática texto Adriana Dória Matos FoToS: REPRodUçÕES do lIvRo HENRI CARTIER-BRESSON: FOTÓGRAFO
Henri cartier-bresson (19082004) é daqueles artistas de tamanha grandeza que é preciso, diante de sua obra, manter a temperança que evita duas reações igualmente ofuscantes: tomá-lo como um deus ao qual somente se devem honras, ou diminuí-lo, a pretexto da comparação com pares. Porque, somente na sua geração e no seu domínio, há nomes incontornáveis, como Robert Doisneau, André Kertész e Brassaï. As fotografias legadas por eles são a própria ideia que temos de lugares, de pessoas e de uma época, o século 20. Mais: elas são o sentimento que temos desse conjunto e atingem sobretudo aqueles que viveram o século passado, mas também os que buscam sobre ele um repertório visual, porque Bresson, Doisneau, Kertész, Brassaï – e outros aqui não mencionados – encarnam um mundo e um tempo que eternizam. É em torno
Visuais de um dos maiores “fotógrafos de rua” que nos detemos aqui, a propósito do lançamento de Henri Cartier-Bresson: Fotógrafo, um dos seus livros seminais. A chegada desse livro ao Brasil (coedição Sesc/SP e Cosac Naify), juntamente com mostra homônima que fica em cartaz em São Paulo (Sesc Pinheiros) até 20 de dezembro, está relacionada às comemorações ao Ano da França no Brasil. Lançado originalmente naquele país em 1979, reúne 155 fotografias produzidas entre os anos 1930 e 1970, escolhidas para o volume por HCB e por seu amigo e editor Robert
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AtenAS, 1953
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ÎLe De LA citÉ, 1952
Numa exata composição, o fotógrafo coloca em cena o confronto irônico entre o real e o fantástico, a velhice e a juventude, o peso e a leveza Um dos cartõespostais de Paris é revisitado através de um enquadramento panorâmico que alinha o horizonte com as pontes e concentra o tema no centro da imagem
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Delpire, constituindo-se numa síntese da sua obra. Por sua edição sem ordem cronológica e distinções geográficas, o livro nos convida a entender o porquê de ele ter sido agrupado em seis capítulos, quando não nos parece inicialmente claro o motivo de tal arrumação. Isso porque o fotógrafo, como observa o coordenador editorial para a versão brasileira, Augusto Massi, não criou chaves de abertura, como textos introdutórios, títulos e legendas que orientem compreensão, já que há nos dois primeiros capítulos, por exemplo, indistintamente, fotografias realizadas a partir da reunião de elementos caros ao artista, tais como: rua + gente + arquitetura/ natureza + composição surpreendente (o instante perfeito, intrigante ou inusitado). No terceiro capítulo, percebe-se uma guinada para os grandes grupos, multidões, movimentos sociais. O quarto capítulo, o mais curto deles, centra-se em religião. O quinto, nos portraits, mas numa edição curiosa: a cada retrato segue-se uma paisagem. Aí, novamente o enigma: que tipo de entendimento HCB pretendeu ao associar os 10 personagens fotografados às 10 paisagens que os sucedem a cada página – entre os elementos formais dos retratos e das paisagens? Que cada um dos personagens tivesse sua
imagem relacionada mentalmente, emocionalmente, psicologicamente ao ambiente retratado? Ou nada disso, apenas um “respiro” entre um portrait e outro? Não há resposta evidente. Enquanto começa francamente crítico – mordaz, até –, com fotos realizadas nos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos, o sexto e último capítulo do livro se encerra de forma afetiva, sobretudo a partir da foto que é quase um emblema: a de um garoto de expressão confiante carregando duas garrafas de vinho, uma sob cada braço, na Rue Mouffetard, 1954. Neste último módulo encontram-se outras cenas que, desde os impressionistas, são quase um decalque da França: refeições à beira do rio, banhos, nus. Como que acenando para o voyeurismo que se oculta sob cada cena fotografada – sejamos nós os capturadores ou meros assistentes – HCB encerra o livro com uma emblemática cena neste sentido (Bruxelas, 1932), em que um homem espia o que há por trás de uma lona/ tapume, enquanto outro vigia e lhe acoita, cúmplice.
o MeLHoR Do inStAnte
Assim como outros de sua geração, Cartier-Bresson foi um aficionado da pintura e do cinema, sendo que este lhe serviu de guia, já que o fotógrafo
afirmou que foram os filmes que lhe ensinaram a ver. Certa vez, escrevendo sobre André Breton, ele disse também que era ao Surrealismo que devia “obediência”, pois que este lhe fizera “deixar a objetiva fotográfica explorar os entulhos do inconsciente e do acaso”. Desde que, em 1931, aos 22 anos, Henri Cartier-Bresson tomou a rota das viagens e decidiu-se pela fotografia (contando para isso com uma inseparável Leica), nossa compreensão de mundo foi tocada. Através de suas obras, podemos entender o sentido de uma frase que ele repetiu a respeito de seu trabalho, de que a captura de uma cena era uma “operação progressiva da cabeça, do olho e do coração para exprimir um problema, fixar um evento ou impressões”. Avesso a fabricações e perseverante na busca do melhor momento de uma cena, ele também deu um depoimento valioso quanto ao modo com que “significava o mundo”: “É preciso sentir-se implicado no que se descobre através do visor. Esta atitude exige concentração, uma disciplina de espírito, sensibilidade e um sentido de geometria. É mediante uma grande economia de meios que se chega à simplicidade de expressão. Deve-se sempre fotografar com o maior respeito ao objeto e a si mesmo”.
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dIvUlgação
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teMPoRAL
Imagemr evela com dramaticidade um momento corriqueiro na vida dos ribeirinhos amazonenses
Notas de Viagem Arte Plural Galeria
Visuais
Até 22 de nov Informações: (81) 3424.4431
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thomas farkas Imagens de uma viagem em busca de um país Fotógrafo húngaro-brasileiro tem exposto parte do material que registrou em expedição à Amazônia no final dos anos 1970 texto Adriana Dória Matos
Um senhor muito educado e
tranquilo está sentado à mesa do restaurante com alguns jornalistas e fotógrafos para uma entrevista coletiva. Ele encoraja todos a perguntarem e é atentamente acompanhado em suas respostas pela esposa Marly Mariano e pela jornalista, curadora e crítica de fotografia Simonetta Persichetti, que de vez em quando intervém em suas explanações, acrescentando uma ou outra informação. Aquele homem de 85 anos, nascido na Hungria e migrado para o Brasil com a família ainda criança, é um dos importantes personagens da história da fotografia no país, não apenas pelo seu legado neste campo, mas por ter
atuado no seu fomento em diversas frentes, tendo sido professor, editor, galerista, conselheiro e empresário do ramo (dono da Fotoptica, loja de produtos fotográficos), isso sem falar em sua vasta produção fílmica. Talvez, uma das frases ditas por Thomas Farkas ao pequeno grupo que o circundava naquele almoço, sobre o que o motivou a realizar mais de 30 documentários, sintetize a integridade que caracteriza sua atuação profissional: “Mostrar o Brasil aos brasileiros é a melhor forma de fazer uma revolução”. Para ele, a fotografia pode contribuir com mudanças sociais, porque mostra e conscientiza. Um pouco do olhar antropológico do fotógrafo pode ser observado
na individual do artista, em cartaz na galeria Arte Plural. Com título homônimo ao livro Notas de viagem (Cosac Naify, 2006), a mostra reúne 22 fotografias coloridas que fizeram parte da exposição Brasil e brasileiros no olhar de Thomaz Farkas, montada em 2005, na Pinacoteca do Estado de São Paulo. A sintética seleção de imagens da exposição recifense foi realizada por Simonetta Persichetti, sendo metade dela dedicada aos retratos da população ribeirinha amazonense, documentação realizada no início dos anos 1970, quando o fotógrafo empreendeu uma viagem ao longo do Rio Negro em companhia do cinegrafista Geraldo Sarno e do compositor Paulo Vanzolini, para realização de longa-metragem sobre a região, que acabou não sendo finalizado, pela perda do material captado. Restou a fotografia, conjunto em que a personalidade empática de Farkas se revela, sobretudo no contato com as pessoas, algumas delas – não as dos retratos, que estão deliberadamente posando para a câmera – registradas em espaço tátil e improvisado, como nos registros em mercados públicos, bares, festas de rua, nos quais o expectador visualiza a proximidade estabelecida entre fotógrafo e fotografado. Com relação
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ao cenário natural amazonense, as imagens expressam a percepção do fotógrafo de que há na região um imenso contraste entre água, terra e céu, no que estes elementos foram trabalhados de forma dramática por ele, seja no enquadramento ou na iluminação (natural) escolhida. Ainda que não necessite disso para uma fruição, é importante que o espectador contextualize historicamente esta mostra de Thomaz Farkas, tanto no que diz respeito à própria trajetória do artista quanto à sua inserção nos vários momentos da fotografia no Brasil.
tRAjetóRiA
Farkas foi um dos renovadores da fotografia brasileira, nos anos 1940 e 1950, quando atuou no Foto Cine Clube Bandeirante e rompeu com vários dos paradigmas do pictorialismo então proeminente no cenário nacional. Ele realizou experiências variadas, com fotografias em preto-e-branco que tomavam partido de enquadramentos e ângulos inusitados, sobretudo do cenário urbano paulistano. Mas o fotógrafo também gostava de documentar e viajar e, neste sentido, o fotoclubismo era insatisfatório. Ao mesmo tempo, nos anos 1960-1970, o país passava por mudanças políticas e culturais que instigavam participação, se não ideológica, ao menos engajada dos artistas. E foi ao se dedicar à produção de documentários que revelassem “o Brasil aos brasileiros”, que Farkas pretendeu contribuir para esta arte de preocupação social. E ele não parou ali. Em outro sentido de “engajamento”, em 1979, inaugurou a Galeria Fotóptica, em que eram promovidas mostras de fotografia, com o intuito de criar um espaço de valorização para esta arte. É conselheiro de instituições de fomento ao cinema, à arte e à fotografia. Por suas várias atuações, não se estranha nem se duvida ao ouvi-lo dizer que ainda não “conhece” o Brasil, mas quer conhecê-lo e registrálo – ainda que saiba das limitações de um octogenário, e que pretende “experimentar” a câmera digital. Enquanto isso não acontece, ele segue produzindo retratos em preto-ebranco com sua Rolleiflex.
todo mar é um o quebra-mar, segundo Paulo melo Jr. Respeito, medo, agonia. a relação de Paulo Melo Jr. com o mar abarca diversos sentimentos. Nas águas, o fotógrafo enxerga não só a revolta das ondas, como também as entende como se fossem um ponteiro de relógio. “o mar é uma marcação do tempo, a maré que enche, a maré que vaza. Impressiona-me seu movimento contínuo”, afirma. dessa repetição ondulatória, nasceu o ímpeto para retratar o elemento marítimo. Meses depois de sua execução, as imagens reunidas formam a exposição Todo mar é um, que segue aberta ao público até o dia 14 de novembro, na dumaresq galeria de arte, em Boa viagem, zona sul do Recife. as fotografias foram tiradas da janela do apartamento de Melo Jr., do alto do 22º andar. Ele comenta que queria focalizar o mar de seu ponto de vista, por isso fez da varanda a ancoragem. a condição préestabelecida foi a de que os cliques fossem noturnos, realizados sob a luz do luar. “Eu iniciava os trabalhos depois da meia-noite e só parava por volta das 2h”, explica, acrescentando também que não houve a pressão de prazos durante o projeto. “Como fico entre o Recife e São Paulo, dependia da época em que eu estava na cidade. Tanto podia ficar uma semana fotografando, como passar um tempo sem me dedicar.” ao optar por fazer as fotos em longas exposições, Melo Jr. tinha a intenção
de transmitir as ideias de movimento e espacialidade. Segundo ele, algo que dialoga muito mais com o mar do que o congelamento de um clique comum. a presença do vento foi outro elemento importante para alcançar o efeito desejado. “Quando eu queria um mar mais revolto, era necessário esperar por ele. a ventania muda toda a imagem”, comenta. Em texto de apresentação à mostra, o professor do departamento de design da Universidade Federal de Pernambuco, gentil Porto Filho, afirma acreditar na função provocativa de Todo mar é um, já que Melo Jr. não se utiliza de subterfúgios para expor algo tão próximo ao homem. “o trabalho implicou, antes de tudo, na capacidade de converter cenas particulares em signos universais. ou seja, o artista precisou despojar a própria realidade de tudo que é transitório e acidental para, somente assim, apreender um mar universalmente familiar”, escreve. o fotógrafo revela que a clareza de sua proposta vai de encontro ao que considera um modismo na arte contemporânea: “Hoje em dia, tudo é reconstrução, recontextualização, releitura. Eu fico um pouco cansado disso, de precisar ter sempre uma tese para justificar”. a simplicidade, no entanto, não impede a sofisticação do trabalho. Todo mar é um apresenta oito fotografias coloridas ampliadas em formato 150 cm x 100 cm e três conjuntas (a sequência de uma onda) de 60 cm x 90 cm. amplas dimensões para captar um objeto infinito. GUILHerme CArrÉrA
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marIa martIns a mulher que inspirou marcel Duchamp
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Escultora brasileira, pouco reconhecida no país, ganha livro que resgata, além de sua vida e atuação artística, os motivos da ausência de seu nome no cânone da arte nacional texto Mariana Oliveira
em 1965, Maria Martins declarou:
“É verdade que os grandes pensadores e os grandes artistas são quase sempre desprezados e negados por sua geração”. Ela constatava ali o que acontecia com sua obra àquela época, e que até bem pouco tempo nunca havia sido devidamente estudada e analisada, permanecendo à margem da história da arte brasileira. Anos depois, em 1984, a então repórter Graça Ramos ouviu falar da artista pela primeira vez, quando o deputado Bacayuva Cunha contou-lhe ser sobrinho de uma escultora brasileira, que havia tido um relacionamento amoroso com Marcel Duchamp, e cujo ímpeto e vitalidade não se adequava à época em que viveu. Depois de ter descoberto algumas informações sobre a artista, Graça Ramos perdeu, como ela mesmo diz, “os rastros da escultora”. Mas, em 1997, dedicando-se ao jornalismo cultural, reencontrou-se com a vida
e a obra de Maria Martins, quando iniciou o doutorado em História da Arte na Universidade de Barcelona. A aproximação entre a obra da brasileira e o Surrealismo tornou-se tema de sua tese doutoral. O trabalho apresentado na Espanha chega ao Brasil, agora, em formato de livro/catálogo, sob o título: Maria Martins – Escultora dos Trópicos (Ed. Artviva, 286p.), em versão bilíngue. A obra vem preencher uma lacuna nas referências bibliográficas sobre a artista, num momento em que sua relevância para a arte nacional começa a ser percebida. A relação de mais de uma década com Marcel Duchamp, a quem conheceu no princípio da década de 1940, revela-se mais que um simples caso amoroso. Para o biógrafo do artista francês, Calvin Tomkins, Maria foi fundamental no retorno de Duchamp ao mundo da arte, já que desde 1923 ele havia abandonado a produção
artística, retornando somente depois de conhecê-la. Foi inspirado nela e dialogando com ela, ainda que vivessem em continentes distintos, que Duchamp criou Étant donnés, obra que só veio a público após a sua morte, em 1968. Além de apresentar a obra e a vida pessoal de Maria Martins, que viveu muitos anos fora do país, por ser casada com um diplomata, a autora problematiza e questiona os motivos que levaram a artista a ser excluída do cânone da arte brasileira. Durante os capítulos, vamos conhecendo a trajetória da escultora e percebendo que, no Brasil do princípio da década de 1950, a prática escultural ainda estava intimamente ligada aos modelos clássicos e não havia espaço para uma artista – uma mulher – que levava esta prática ao campo das vanguardas, bebendo na fonte dos surrealistas. Maria se interessava por um mundo onírico, pelos mitos amazônicos, com uma visão erótica da natureza e também do feminino, esculpindo uma mulher que sente desejo, que ganhava feições diferentes em suas mãos, rompendo as convenções e deslocando-se para um não-lugar, que ficava à margem tanto das posições clássicas quanto das construtivistas. A obra em questão vem oportunamente retirar o nome da artista desse ambiente opaco que habitou durante anos e lançá-lo à frente, encontrando seu lugar na história da arte nacional.
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Maria Martins, na década de 1940, período em que conheceu Marcel duchamp a artista ficou conhecida como “a escultora do desejo”, por trabalhos como Não esqueça que venho dos trópicos O impossível (1945), uma de suas obras mais famosas, faz parte da coleção do Museu de arte Moderna do Rio de Janeiro
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a exposição de pintura de José carlos Viana
matéria corrida José cláudio
artista plástico
Sutherland, Wilfredo Lam, De Kooning, Wools, sei 1á mais quem, mal lembro a grafia dos nomes, perdidos em catálogos roídos de cupim, ecos da década de 1950, e já em 1950 reverberação de data mais antiga; condenação latino-americana ao lixo europeu, ao resíduo, ao chorume, quando não ao plágio, como dizia Vicente do Rego Monteiro: “A vanguarda brasileira é feita de plágio”; o eterno épater le bourgeois (espantar, surpreender o burguês, isto é, o filisteu) que não espanta mais ninguém, virado rotina, esse sabor do déjà vu (já visto) que, por mais requintado, apenas indica uma escolha entre o que existe: é, amigo Zé Carlos, saúdo a tua abnegação, admiro o teu poder, o domínio do quadro grande da era pop, o teu fogo revolucionário, mas a revolução não está mais aí; há tempo não está mais aí, no prazer da degradação até material do suporte (Alberto Burri), nada a não ser o dejeto merecendo o olhar do artista como fonte do divino, como se alguma beleza a que se pudesse aspirar somente se justificasse como zombaria, através
do desdém, da dissipação, da farsa, da dilaceração, onde tudo é permitido, até o vulto das alegorias d’antanho: sim, porque a ideia de espaço é o das glórias do barroco; mas temos de estar mortos, como ponto de partida, de não acreditar em nada, não achar que nada valha a pena. Apocalíptico e apaziguado ao mesmo tempo, essa exposição no Centro Cultural dos Correios é como uma epopeia das cinzas, um canto de desencanto. Que nos resta pintar? Quanto à arte abstrata, também na década de 1950 já estava dicionarizada. Em 1975 o nosso conterrâneo, timbaubense, Mário Pedrosa, organizador da II Bienal de São Paulo, que trouxe ao Brasil a Guernica de Picasso, lança o seu “Manifesto para Tupiniquins e Nambás”, “no qual revela sua esperança de que a América Latina representaria uma alternativa para o beco sem saída a que chegara a arte da vanguarda na sociedade capitalista, depois de algumas manifestações suicidas da Body-Art” (Frederico Morais, catálogo da I Bienal de Artes Visuais do Mercosul, Porto Alegre, 1997).
Temos de partir da premissa de que somos todos ridículos e ridícula qualquer pretensão de salvar-se do niilismo. Não há nada a ser criado. Não há nada que já não esteja velozmente sendo engolido pela voragem, pelo buraco negro, e tudo são fragmentos de fósseis, brilharecos de alucinações, pedaços de um organismo que não se concatenam, pedras-da-roseta para não serem decifradas nem há o que decifrar, marchando tudo para uma disposição inicial na tentativa de, desse amálgama, surgir um amanhã que nos escapa, nem nos interessa porque não será mais nosso, um segundo bigue-bangue, da bola desse pó a que fomos reduzidos. A princípio ia caindo na velha armadilha de procurar possíveis analogias, reflexos de outros pintores, desde que não existe pintor autógeno. Mas isso também saiu da moda. É como saber com que se parece uma hemorragia. O quadro é que nos diz o seu ecce homo, o seu eis-me-aqui, resultei-me assim não sei como, nem preciso de espelho.
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pescari 2009 - Acrílico sobre telA 200 x 190cm – foto de breno lAproviterA
Quem foi que disse: “Se Deus não existe, sejamos pornográficos”, Gustavo Corção no Lições de Abismo? Mas nem pornografia hoje causa espécie, ficando difícil estabelecer o que seja ou não pornográfico ou para quem. O que fazer? Começar de novo, como o Aloísio Magalhães pós-designer ao descobrir que o design não supria, pelo menos para ele, as necessidades de artista e humildemente desenhar a lápis coqueiros do fundo do quintal aqui em Olinda? Nem me dei conta de que já passei dos limites com essas lucubrações. Aos poucos o pensamento foi se distanciando do artista mas há uma razão. É que o pintor, pintor
temos de partir da premissa de que somos todos ridículos e ridícula qualquer pretensão de salvarse do niilismo
de quadro, espécie em extinção, atividade antieconômica entre nós, superfluidade que já morreu e não sabe, e isso já lhe dá um termo de glória; o pintor José Carlos Viana é um dos nossos artistas mais talentosos, dos mais preparados, capazes e maduros, logo da maior importância para a arte daqui, do nosso mundo local, onde as coisas se decidem para nós que vivemos não só aqui mas daqui; e sua conduta não é somente dele mas, como diz a palavra, tem a capacidade de conduzir, de influir nessa mesma arte; daí a detença que de nossa parte merece, além de nos infundir a fé de que tanto somos precisados nós ainda pintores de quadros.
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arte sobre cartaz original do filme
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CABRA MARCADO Os 25 anos de um clássico do cinema brasileiro Filme sobre a situação das Ligas Camponesas, rodado na Paraíba por Eduardo Coutinho, nos anos 1960 e 1980, inaugura um novo momento do documentário nacional texto Cláudio Bezerra
“Vi pela primeira vez o filme numa sessão emocionalmente carregada, com um público de contemporâneos do velho projeto de Coutinho. Amigos, atores, cineastas da mesma geração que choraram ao final e o aplaudiram por mais de cinco minutos. Na saída, a conversa rendeu. Ninguém queria ir embora, o filme os mantinha ali, prova inequívoca de nossa tenacidade, de nossa esperança.” O depoimento emocionado é do cineasta Walter Lima Jr. em artigo publicado no número 44 da revista Filme Cultura, editada pela extinta Embrafilme, após uma projeção fechada de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, e traduz bem o que foi a chegada desse documentário. A estreia pública ocorreu na primeira edição do Festival Internacional de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro, dia 22 de novembro de 1984. Ao final da sessão, Coutinho e Elizabeth Teixeira foram ovacionados pela plateia que lotava a sala Glauber Rocha, no Hotel Nacional. Por unanimidade, Cabra marcado para morrer conquista o Tucano de Ouro de melhor filme e outros três prêmios: do Ofício Católico Internacional de Cinema (OCIC), da Associação dos Críticos do Rio de Janeiro e da Federação Internacional de Cineclubes. Era apenas o início de uma trajetória vitoriosa que rendeu 13 prêmios, sendo oito internacionais, em alguns dos mais importantes festivais de cinema do mundo. Entre eles, o de Melhor Documentário do
Festival do Novo Cinema LatinoAmericano, em Cuba, o Prêmio da Crítica Internacional e da Associação Internacional de Cinemas de Arte, no XXXV Festival de Berlim, e o Grande Prêmio Cinéma du Réel (Festival Internacional do Filme Etnográfico e Sociológico de Paris), conferido pela primeira vez a um filme brasileiro.
Produção teve recepção calorosa e logo ganhou prêmios nacionais e internacionais, como o do Festival de Berlim Concebido no início dos anos 1960 como uma ficção, no estilo do neorrealismo italiano, sobre o assassinato de um líder das Ligas Camponesas da Paraíba, João Pedro Teixeira, Cabra marcado para morrer teve as filmagens interrompidas pelo golpe militar de 1964. Dezessete anos depois, Coutinho retoma o projeto para acertar as contas com o passado. Reencontra os protagonistas do primeiro Cabra e a família Teixeira destroçada pela repressão política, e realiza um documentário que estabelece uma ponte entre o passado pré-golpe e o presente da redemocratização, a partir da trajetória pessoal do cineasta e dos camponeses, ambos, assim como o próprio filme, contaminados pelas
transformações ideológicas e estéticas vivenciadas pelo país. O professor de cinema da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Fernão Ramos, considera que “Cabra marcado para morrer é para o documentário o que Deus e o diabo na terra do sol é para o cinema de ficção. O Deus e o diabo inaugura um novo cinema brasileiro e o Cabra inaugura um novo documentário brasileiro”. De acordo com o professor, o filme de Coutinho “sistematiza” uma série de procedimentos estilísticos já presentes em alguns documentários do Cinema Novo, “a partir de uma experiência da reportagem televisiva, mas dando uma forma documentária, propriamente fílmica”. O filme rompe com a tendência dominante no documentário político brasileiro de apresentar uma mensagem sociológica por intermédio de uma voz fora de campo e/ou depoimentos de notório saber. A locução está presente, mas é diluída em três vozes que apresentam diferentes pontos de vista. Uma voz impessoal, sem ser autoritária, contextualiza os fatos do passado e do presente. A de Coutinho relata em tom de confissão o que testemunhou. A terceira aparece uma única vez, como porta-voz dos inimigos do passado, lendo com certa ironia matéria capciosa publicada no Diario de Pernambuco sobre o resultado da operação militar que apreendeu os equipamentos de filmagem do primeiro Cabra, no Engenho Galileia.
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A paisagem do engenho Galileia, em Vitória de Santo
Antão, Zona da Mata pernambucana, cenário único da ficção de 1964, e de parte do documentário de 1984, mudou ao longo desses 25 anos. O desmatamento vem diminuindo a vegetação das montanhas. Poucas famílias que participaram do movimento das Ligas Camponesas continuam no local vivendo da agricultura, e assim mesmo enfrentando muitas dificuldades para escoar a produção de verduras. A expansão da cultura orgânica em outras regiões de Pernambuco tem conquistado a preferência do público consumidor do Recife, e os produtores de Galileia, por falta de qualificação, ainda cultivam de maneira tradicional, usando agrotóxicos. Além disso, os filhos dos camponeses estudam e não querem mais trabalhar na “enxada”. Quando podem, vão morar na cidade.
Claquete Embora ativa, a Associação dos Pequenos Agricultores de Galileia sofre com a queda do número de associados e a falta de engajamento dos mais jovens. Mesmo assim, vem lutando para garantir algumas conquistas, como a construção de moradias e a capacitação dos agricultores para o modo de produção orgânica. Recentemente, a associação conseguiu reformar a casa-grande do engenho, um símbolo do movimento camponês brasileiro. Todo domingo, um grupo de moradores da nova e da velha geração se reúne no local para trocar ideias e definir ações. Somente três protagonistas de Cabra marcado para morrer continuam vivos. Cícero Anastácio da Silva, 76 anos, é o único que mora em Galileia, num pequeno sítio de dois hectares. Sem condições físicas para trabalhar
na agricultura, vive com dificuldade ao lado da esposa paraplégica, recebendo aposentadoria de um salário mínimo. Há nove anos, luta para reverter uma multa de 30% sobre a remuneração. Ele alega que houve um erro cometido por quem protocolou a sua aposentadoria como rural, quando na verdade a tinha solicitado por tempo de serviço, como vigilante. João José do Nascimento, próximo de completar 66 anos em dezembro, vendeu o sítio de Galileia e comprou três casas em um subúrbio de Vitória de Santo Antão. Vive com o salário mínimo de uma aposentadoria por idade, conquistada no ano passado, e do pouco dinheiro que recebe do aluguel de duas de suas casas. Com problemas de saúde, não consegue mais complementar a renda com os pequenos consertos de equipamentos eletrônicos, como fazia antes. É militante do PT. Elizabeth Teixeira, 84 anos, mora em João Pessoa, na Paraíba, com a filha caçula, duas netas e o
Somente três protagonistas do filme estão vivos e apenas um vive no local original das filmagens genro. Depois do filme, reencontrou todos os filhos, mas viu dois, José Eudes e João Pedro Teixeira Filho, serem assassinados. O mais velho, Abraão, morreu há dois anos, vítima de um infarto fulminante. Apesar da idade avançada e de reclamar de constantes dores de cabeça, dona Elizabeth está bem de saúde, recebeu uma indenização por ter sofrido perseguição política e vive da aposentadoria. Na medida do possível, mantém-se atualizada sobre a luta dos trabalhadores rurais, e lembra indignada que a bandeira da reforma agrária, causa do assassinato do seu marido, João Pedro Teixeira, “Passados 47 anos, continua atual”.
reprodução
gAlileiA MuDAnçAs nO CenáRiO RuRAl
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Cabra marcado para morrer reúne também procedimentos estilísticos da observação do cinema direto, a encenação e o material de arquivo do documentário clássico e a autorreflexividade típica do cinemaverdade francês. Não foi o primeiro documentário brasileiro a mostrar o documentarista na superfície da tela. Glauber Rocha, por exemplo, aparece algumas vezes no provocador Di-Glauber (1977). Mas Coutinho faz uso da metalinguagem de modo peculiar. Aposta na possibilidade do encontro com alguém desencadear um processo mútuo de revelação e de transformação. E como estava implicado nas questões abordadas no filme, só ele poderia fazer um documentário interativo como aquele. Em cena, Coutinho se expõe como diretor-personagem à procura dos seus interlocutores. E, ao dissolver as fronteiras entre a figura do cineasta e seu objeto, viabiliza uma abertura para o imprevisto do encontro entre ambos. O procedimento, ao mesmo tempo em que provoca uma interlocução vigorosa, também o
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Ficção
João mariano fazia o papel do líder assassinado em 1964. nos anos 1980, se mostra arrependido da participação Quando foi para a clandestinidade, elizabeth teixeira levou carlos (e). abraão morreu há dois anos nos anos 1960, João mariano vive João teixeira
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coloca em situações vexatórias, a exemplo da cena em que Abraão, o filho mais velho de Elizabeth Teixeira, interrompe a fala da mãe para protestar contra “todos” os regimes de governo considerados por ele como “arbitrários e violentos” contra os pobres, e exige em tom de ameaça que o filme registre e mostre o seu protesto. É ainda o encontro, ou mais exatamente o reencontro, que vai provocar um dos mais belos processos de revelação e transformação já produzidos pelo cinema documentário: a metamorfose vivida por Elizabeth Teixeira. Após 17 anos de clandestinidade, ela deixa de ser Marta Maria da Costa para reassumir, diante da câmera, a verdadeira identidade. E ao longo do filme, e em função do filme, pouco a pouco vai recompondo sua trajetória de vida até retomar o discurso militante na penúltima cena em que, de braços erguidos, relaciona as lutas do passado ao presente, sinalizando uma estratégia de ação para o futuro ao dizer o conhecido bordão da esquerda: “A luta continua”.
SeM MAniQUeÍSMo
Entre as muitas inovações que Cabra marcado para morrer trouxe para o documentário brasileiro, está também a introdução de uma personagem complexa e contraditória, nem vítima, nem herói. João Mariano, por exemplo, que fazia o papel de João Pedro Teixeira no filme de 1964, se diz contra os comunistas e mostra-se arrependido de ter participado das filmagens, por ter sido expulso da Congregação da Igreja Batista. João Virgínio, por sua vez, narra de maneira engraçada as torturas que sofreu na prisão, mas mantém a esperança de um dia ver o povo se libertar. Desiludido com a política, Braz Francisco não gosta sequer de lembrar o passado. É dos fragmentos das histórias desses protagonistas anônimos e esquecidos que o documentário vai tecendo os elos perdidos de parte significativa da história recente do país, mas sem o romantismo e a idealização do povo, presentes na tradição documentária do Cinema Novo aos anos 1970. Mas apesar de ter causado grande impacto na época do lançamento, a
influência de Cabra marcado para morrer se deu de maneira mais intensa a partir da década de 1990, quando a entrevista torna-se um procedimento narrativo dominante e a alteridade do popular favelado emerge com força nos filmes do próprio Coutinho, como Santa Marta: duas semanas no morro (1987), Boca do lixo (1992), Santo forte (1999) e Babilônia 2000 (2001), mas também em Notícias de uma guerra particular (João Salles e Kátia Lund, 1999), Fala tu (Guilherme Coelho, 2003) e À margem da imagem (Evaldo Mocarzel, 2004), entre tantos outros. As pegadas de Cabra marcado para morrer continuam ainda muito vivas na atual safra documental brasileira, marcada por uma valorização da vida privada e por um uso sistemático de procedimentos reflexivos, a exemplo de Eu vou de volta (Camilo Cavalcante e Cláudio Assis, 2007), Santiago (João Salles, 2007) e Jardim Ângela (Evaldo Mocarzel, 2008). Mas ao contrário dos filmes contemporâneos, a obra-prima do maior documentarista brasileiro conjuga a experiência pessoal com a dimensão coletiva. “O Cabra é um filme que retoma questões dos anos 1960 e você consegue ter uma visão mais ampla do Brasil, mais geral, a partir de histórias singulares. No cinema de Coutinho, a gente pode até ver isso nos filmes da favela, a singularidade aponta para um geral do país, não há dúvida nenhuma, mas é com um tipo de abordagem diferente.” A análise é de Consuelo Lins, colaboradora e estudiosa da obra de Eduardo Coutinho. Consuelo acredita que os documentaristas não se arriscam mais a lançar um olhar macro sobre o país, um dos grandes méritos de Cabra marcado para morrer. E como todo clássico, o filme de Coutinho permanece atual porque aborda de uma forma peculiar questões e sentimentos universais como sofrimento, luta política, dor, alegria, esperança e solidariedade. “Tem toda essa parte do encontro dele com alguns líderes camponeses e com dona Elizabeth que são momentos do documentário, acho que mundial até, que são extremamente fortes, e que não envelhecem. A gente ainda tem muito a aprender com o Cabra”, diz a pesquisadora.
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DRAMATURGIA Entre des-montagens e des-identidades
Festival Recife do Teatro Nacional chega à sua décima segunda edição trazendo espetáculos que expõem as inquietações da atual cena teatral texto Leidson Ferraz
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em um panorama tão diverso, como definir a “cara” do teatro brasileiro? É possível reconhecer que características se fazem mais presentes hoje? Será que dá para perceber uma identidade própria na cena teatral contemporânea do país? São questões como essas que estarão permeando o Festival Recife do Teatro Nacional, evento realizado anualmente pela Prefeitura do Recife, com uma evidência conceitual a cada nova versão, e que comemora sua décima segunda edição neste mês de novembro, entre os dias 17 e 29.
Segundo o curador Kil Abreu, a pesquisa dramatúrgica e a inquietação em ocupar espaços inusuais são dois eixos que precisam ser observados. Este último tema, especialmente, é bem pertinente para a atual realidade da produção pernambucana, já que a dificuldade de pauta nas casas convencionais, suas estruturas deficientes ou a não existência de teatros em determinados municípios têm dado um outro norte a uma parcela das realizações cênicas, com diretores optando por construir peças
e apresentá-las em salas de ensaio ou espaços abertos. Nestes últimos, sem estarem vinculados ao teatro de rua, mas ganhando o perfil de intervenções urbanas. “O festival vai apresentar exemplos desta inquietação tão presente na cena, em que a melhor maneira de definir uma identidade talvez seja mostrando os seus processos de desmontagens, fragmentação e recusa em se estabelecer em um modelo mais ou menos duradouro”, aponta Kil Abreu. Se tomarmos como referencial três peças já confirmadas na grade, todas recheadas de indicações a importantes prêmios no eixo Rio-São Paulo (ou já detentoras deles) e focadas no viés da dramaturgia, alguns elementos dessa identidade – ou des-identidades – poderão ser facilmente percebidos: a escolha acertada no texto, geralmente em narrativas fragmentárias e/ou surgindo de uma matriz clássica, com a força de intérpretes numa cena minimalista e de aparente simplicidade. Da capital paulista, Rainha[(s)] – Duas atrizes em busca de um coração, direção de Cibele Forjaz, com atuação de Gergette Fadel e Isabel Teixeira, e produção desta última em parceria com Henrique Mariano, parte do drama histórico Mary Stuart, do alemão Friedrich Schiller, e embaralha o terreno majestoso das personagens deste escritor do século 18 ao que há de mais singelo no cotidiano de duas mulheres dos tempos de hoje, as próprias atrizes em cena. A obra original de Schiller criou um encontro imaginário entre duas inimigas do século 16, a rainha da Escócia, Mary Stuart, condenada à morte depois de quase 20 anos de prisão, e a responsável por toda a sua tragédia, a rainha da Inglaterra, Elizabeth I, sua própria prima. Escrita pelas duas intérpretes em parceria com a encenadora, Rainha[(s)]... é a recriação de um texto clássico em renovada forma, por também ser revelador da intimidade das artistas no palco. O resultado promete arrebatar a plateia pernambucana, já que a peça encabeça a lista das melhores de 2008 na capital paulista, com passagens elogiosas pelos mais
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importantes festivais do país. “Aqui, temos a apropriação de elementos da dramaturgia clássica, retomados cenicamente segundo a proposta contemporânea de contracenação dos artistas com estes materiais inscritos na história do teatro. Não se trata apenas de uma recriação do texto de Schiller, mas de uma adaptação pessoalíssima, que passa pela vida das três mulheres que encabeçam o projeto”, esclarece o curador. Também de São Paulo, e apresentando ao Brasil uma primeira encenação da obra do inquietante dramaturgo e diretor teatral israelense Hanoch Levin, Réquiem, com produção das atrizes Dinah Feldman e Priscilla Herrerias, sob direção de Francisco Medeiros, traz como base inicial três contos escritos pelo russo Anton Tchecov focado na morte, “nessa mesma apropriação e re-montagem dos materiais clássicos”, pontua Kil Abreu. Numa espécie de homenagem à sua fonte inicial, mas sem reverências extremas, eis aqui mais um exemplo que aposta na subversão do arsenal clássico a partir da intertextualidade. Tudo isso com intensa carga lírica. Dividida em 15 cenas curtas e sem roteiro linear, a história versa sobre a desilusão de um velho marceneiro, artesão de caixões, que, ao chegar
A pesquisa dramatúrgica e a ocupação de espaços inusuais são dois eixos que devem ser observados no festival próximo da morte, percebe a sucessão de perdas que acumulou ao longo dos anos. Curiosamente, o texto foi escrito pelo autor também próximo da morte: Hanoch Levin faleceu em 1999, vítima de câncer, após longa agonia, e mesmo no leito do hospital, chegou a dirigir o lançamento do seu texto para o Teatro Cameri – uma das mais importantes companhias do teatro israelense. Composto de comédia e drama, o espetáculo promete fazer pensar sobre o tempo perdido e o real sentido da existência. Do Rio de Janeiro, e estreando nacionalmente a dramaturgia do roteirista de cinema e diretor de teatro canadense Daniel Macivor, In on it (Por dentro), com direção e produção de Enrique Diaz, traz à cena uma história em espiral em que dois atores, Emílio de Mello e Fernando Eiras, dão vida a uma dramaturgia sem começo, meio e fim, mas que valoriza o percurso
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réquiem
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a peça do dramaturgo e diretor israelense Hanoch levin, inspirada em três contos de anton tchecov, ganha versão brasileira que estreia no festival em Rainha[(s)] ..., há uma apropriação de elementos da dramaturgia clássica, retomados numa proposta contemporânea
de homens entre a realidade e a própria representação. “Como a ideia de fábula vem sendo revisitada nos nossos palcos, e muitas vezes o teatro tem se dedicado em embaralhar sua ordem, ou fragmentá-la, este é o caso: uma história de dois amigos, em torno do amor e da morte, mas contada de uma forma completamente inusitada”. A montagem chega ao Recife como uma das mais festejadas dos últimos tempos no país, por público e crítica. Na tentativa de revelar um arsenal identitário, é esse teatro aberto às variações, sejam de espaço ou de como re-contar uma história, que estará em destaque no XII Festival Recife do Teatro Nacional, demonstrando que a arte teatral continua provocando, confundindo, desafiando a quem por ela se deixa tocar. Vale salientar que, se a edição 2008 do evento tentou traçar um painel da cultura de grupo em diálogo com a atual realidade brasileira, esta edição talvez reforce algo cada vez mais presente no país: realizações de artistas/produtores independentes que se juntam por uma proposta estética.
@ continenteonline Confira a programação completa do Festival no site www.revistacontinente.com.br
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no improviso sim, também há esse tal de jazz pernambucano
Apesar de cachês baixos e da falta de locais para shows, cresce número de festivais e de músicos que tocam o gênero musical no Estado, em suas várias vertentes texto Débora Nascimento
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Quando um músico pede algum
conselho a Quincy Jones sobre como melhorar o desempenho como instrumentista, compositor, produtor ou arranjador, o mestre norteamericano costuma responder: “Ouça jazz”. De acordo com seu argumento, o gênero amplia a sensibilidade artística, “Faz com que suas percepções fiquem apuradas”. Essa ampliação da alma musical é um dos motivos pelos quais os músicos pernambucanos não somente estão ouvindo, mas também tocando jazz – é bem verdade que tocando jazz à sua maneira, quem sabe, formulando um jazz pernambucano. O entusiasmo desses novos músicos com o estilo musical está fazendo crescer a quantidade (e a qualidade) de novos grupos jazzísticos no Recife, tornando popular uma música que geralmente é confinada a pequenas plateias. Mas o público vem marcando sua presença nos crescentes festivais dedicados ao estilo musical, tais como o Garanhuns Jazz Festival, Olinda Jazz, Recife Jazz Festival e o Jazz Porto. “Na Era do Swing, o jazz era a música mais popular nos Estados Unidos, sendo executada nos clubes para as pessoas dançarem. Com o passar do tempo, sua estética foi atravessando vários processos de desenvolvimento, culminando num intelectualismo. Hoje se encontra num patamar de alta cultura, sendo chamado pejorativamente de música de classe-alta ou música de rico, o que é um absurdo, em se tratando de uma arte aberta às interpretações”, analisa Márcio Silva, baterista do Saracotia, um dos destaques da nova geração de jazzistas no Recife. Se afastou as grandes audiências, esse desenvolvimento do jazz, culminando com o fusion e o free jazz na década de 1970, permitiu, por outro lado, o alargamento do gênero e um maior diálogo com mais culturas. A partir dessa época, o jazz passou de estilo musical bem-definido a ponto de partida para a expressão musical sem fronteiras. “A palavra jazz surgiu com um movimento musical posterior ao ragtime, nos Estados Unidos, mas hoje em dia é sinônimo de liberdade, de repertório, de ritmos, de forma, acredito que até de postura. E também é uma filosofia que já abrange o mundo todo”, afirma o bandolinista Rafael Marques, do Saracotia.
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A prova disso está na mistura do gênero norte-americano com diversos ritmos da música brasileira. A citada Saracotia faz uma bemresolvida junção de jazz com choro e outros ritmos nacionais. As influências do trio, formado por Rafael Marques (bandolim de 10 cordas), Rodrigo Samico (violão de sete cordas) e Márcio Silva (bateria), exibem esse ecletismo e vão desde Jacob do Bandolim, Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Hamilton de Holanda e Maestro Duda a Charlie Parker, Dave Brubeck, Astor Piazzola, John Coltrane e Herbie Hancock – lembrando que alguns desses nomes também estão no currículo de mais jazzistas locais.
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contrabanda
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nova geração
Guitarrista nilton rangel “tira um som” no intervalo de show de jazz na rua da moeda, no Bairro do recife trio Saracotia se destaca entre os novos grupos, misturando choro ao jazz
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Criado há pouco mais de um ano por jovens, mas experientes músicos, o grupo vem sendo aplaudido em shows e tem desfrutado da boa repercussão proporcionada por sua página no Myspace – termômetro importante para a carreira de um artista ou grupo iniciante –, onde suas músicas podem ser ouvidas e comentadas. Ao contrário do Saracotia, que não tem disco lançado, o Trio Corjazz, surgido há um ano e meio, já tem CD (o inspirado Nosjazztinos) e vende algumas dezenas de suas unidades nos shows que está conseguindo fechar no circuito local. “Lancei o disco com 1.050 cópias. Antes do lançamento, já tinha vendido umas 400. E não temos gravadoras, empresário...”, diz o guitarrista Wallace Seixas, membro-fundador do grupo, que também liquidifica jazz com vários ritmos brasileiros. Para o músico, mesmo pequena, essa vendagem é
uma prova de que existe audiência de jazz no Recife. O otimismo também atinge um dos maiores veteranos do jazz na cidade, o contrabaixista Nando Rangel. “Grandes nomes do estilo, nacionais e estrangeiros, sempre levaram multidões aos teatros do Recife. Os shows instrumentais nas casas noturnas também atraem muitas pessoas. Isso prova que há um público consumidor dessa música, ávido por eventos regulares. Sempre escuto queixas de amantes do jazz relativas à falta de espetáculos, ou a pouca divulgação dos shows, principalmente os que acontecem nos bares”, conta o músico, que mantém a Contrabanda há 20 anos, ao lado de Edson Rodrigues (saxofone), Nilton Rangel (violão e guitarra) e Enoque Souza (bateria). “Creio que hoje é mais fácil. Já existe um mercado, ainda pequeno, mas em expansão.”
O momento de crescimento também é festejado pela banda Estuário, uma das mais novas na área. “Há, ultimamente, uma grande parcela de pessoas interessadas na nossa música, seja através da internet, do boca a boca ou de algum programa de TV. Aparece muita gente comentando sobre o som diferente e perguntando se somos de Pernambuco, pois a fama de Pernambuco é de que quem faz música instrumental aqui apenas reproduz o jazz fusion americano. Mas ainda bem que tudo isto está mudando graças a várias bandas do novo e até do antigo cenário musical nosso”, avalia o guitarrista Guga Oliveira.
LUgar Para tocar
Enquanto outros gêneros sofrem com a queda nas vendas dos discos, o jazz enfrenta, além deste, um desafio para sobreviver no mercado musical: a falta de bares e casas noturnas que
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indePendente
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versátiL
Corjazzl ançou primeiro disco com verba própria edson rodrigues é membro-fundador dos grupos Contrabanda, dixie Band e Cat and the dogs
destinem seus palcos para apresentações jazzísticas. Este é um estilo que requer, mais que ensaio, que o grupo faça bastantes shows e consiga criar, desta forma, sintonia entre os músicos. Os entraves, segundo o guitarrista Wallace Seixas, vão além: “As casas não têm tratamento acústico. Há o proprietário espertinho que rouba dinheiro dos músicos no couvert artístico. Temos problemas com a falta de continuidade das datas (um show hoje e o próximo daqui a seis meses); tem as conversas intermináveis de pessoas estúpidas que
“creio que hoje é mais fácil. Já existe um mercado, ainda pequeno, mas em expansão”, diz nando rangel pagam couvert para falar alto e perturbar tanto os músicos quanto aqueles que pagaram para ouvir a banda”. O comportamento do público é um assunto recorrente entre os musicistas. “Existe um restaurante no Recife que investe no jazz tradicional, mas eu não acho que seja um ambiente ideal para se ouvir jazz. As pessoas vão ate lá para comer e conversar, enquanto excelentes músicos estão tocando”, reclama o bandolinista Rafael Marques. “O público vai para o bar, e a música só serve de background”, completa o saxofonista Edson Rodrigues. Os músicos também sofrem com a falta de orçamento para estender os shows a outras cidades e ao Exterior. “São poucos os incentivos para levar esses projetos musicais para fora. Estive na Argentina em um festival internacional de jazz organizado, entre outras, por uma
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edson rodrigUes maestro de orquestra de frevo é um pioneiro do jazz no recife ele é mais conhecido como um dos maiores maestros e compositores de frevo. no entanto, edson rodrigues mantém uma forte ligação com o jazz, que vem desde os anos 1960, quando o espírito da bossanova extrapolou as fronteiras do sudeste e invadiu cidades de outras regiões do país. “naquela época, os músicos tocavam e não tinham informação suficiente para saber o que era jazz ou não. nosso foco era a bossa, depois começamos a fazer ligação da bossa nova com a música americana”, revela o maestro. “Hoje, jazz é sinônimo de improvisação. temos o jazz brasileiro.” ainda naquela década, o saxofonista integrou o grupo iansã, cuja formação contava com naná vasconcelos, na bateria. o quinteto chegou a tocar nos estados unidos. nos anos 1980, edson voltou a fazer turnês internacionais, que incluíram apresentações na Holanda e em portugal. naquele momento, esteve ao lado de fernando Borges, tocando frevo. “mas eu não gostava de como o frevo era tocado, era feito com poucos instrumentos. Spok agora está fazendo com dignidade.” em 1988, ao lado dos irmãos nando e nilton rangel, edson rodrigues criou a Contrabanda, que vem a ser a banda de jazz mais antiga em atividade no recife. Com o grupo, defende uma forma própria de fazer jazz. “tem músico que quer tocar música de outra cultura como se
pertencesse àquele país. toco jazz como quem toca pixinguinha. a minha visão de improvisação, meu imaginário é o choro. por isso, faço diferente. não quero ser melhor que ninguém, mas, desta forma, ninguém (estrangeiro) tocará jazz como eu.” edson rodrigues começou na música aos 13 anos. “não tinha ninguém para me incentivar. Comecei no Carnaval. pensei que sabia tocar. depois vi as limitações quando comecei a tocar com (o maestro) Zé Gomes”, lembra. desde então, virou um aluno incansável, inclusive tendo recebido diploma nos cursos superiores de Jornalismo, Geografia e música. Segundo o maestro, músicos que querem tocar jazz devem dedicar muito tempo ao estudo. “para querer tocar John Coltrane, tem que estudar John Coltrane. tem músico de jazz que nem música lê. o músico que não lê desvaloriza a profissão. o músico que não lê música é analfabeto. tem a inspiração. mas tem que ter a transpiração também”, pontua. “música, ninguém perde. o tempo em que ficamos com o instrumento é o que estamos plantando para o futuro”, aconselha. apaixonado tanto pelo frevo quanto pelo jazz, o saxofonista decidiu unir o Capibaribe ao mississipi dentro do projeto edson rodrigues dixie Band. o grupo se apresenta em pleno sábado de Zé pereira, em palco montado na rua mamede Simões, no bairro da Boa vista, Centro do recife, tocando dixieland e frevo. além dessa big band e da Contrabanda, edson também formou outro grupo, o Cat and the dogs, que toca jazz e standards.
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sPokFrevo Embalagem jazzística conquista público internacional
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associação de educadores da Berkeley of Music School (USA). Eu era o único pernambucano por lá. Vendi todos os discos que levei. Mostrei um pouco da nossa cultura”, conta Seixas. Para o baixista Nando Rangel, há ajustes a serem feitos: “A dificuldade maior ainda é a escassez de agentes, empresários e produtores interessados nesse segmento, o que impede a formação de um circuito, uma cadeia que faça escoar a crescente produção do setor, semelhante ao que existe no forró, pagode, rock, reggae, brega, sertanejo. Instituições como bancos e telecomunicações também deveriam criar programas que promovessem a música instrumental jazzística, para torná-la mais acessível ao público”.
Festivais se consoLidaM
Em paralelo ao crescimento do número de artistas e grupos, aumentou a quantidade de festivais dedicados ao gênero. Hoje, Pernambuco abriga quatro importantes eventos abertos ao público: Garanhuns Jazz Festival, Olinda Jazz, Recife Jazz Festival e Porto Jazz. Cada um traz programação variada, sempre mesclando a escalação de artistas locais e nacionais com internacionais. O baterista da Uptown Band, Giovanni Papaléo, produtor do Garanhuns Jazz Festival, realiza o evento há dois anos em pleno Carnaval no agreste pernambucano. “Realizar um festival de jazz neste período é um grande desafio”, afirma.
nos dias 13 e 14 de julho de 2008, a Spokfrevo orquestra pisou no palco sagrado do jazz, o festival de montreux. nos shows, o bandleader Spok pôde perceber na plateia a presença de diversas bandas e artistas que tocaram antes deles. os músicos no gargarejo estavam maravilhados com a execução de uma música da qual a maioria nunca ouvira falar: frevo. a embalagem jazzística do frevo feita pela Spokfrevo é um dos pontos que a diferenciam de outras orquestras pernambucanas, e o que vem, há alguns anos, despertando a atenção de produtores, imprensa e público, seja no Brasil ou no exterior. pode-se dizer que aquele show na Suíça foi um dos grandes momentos da carreira da banda. “para o público internacional, a liberdade de expressão do jazz é bastante apreciada. o jazz nos ajuda demais. mas o principal é sempre o frevo”, explica o saxofonista. Com sua formação de big band americana, a Spokfrevo orquestra vem apresentando o frevo de forma adequada, no palco, com todos os naipes de instrumentos na quantidade exata, ao contrário da apresentação enxuta das orquestras de rua (geralmente com 10 integrantes). “na rua, a música sempre foi coadjuvante do folião. o nosso sonho era que a música fosse protagonista.” Com esse arranjo diferenciado, que dá espaço ao improviso jazzístico dos integrantes, a Spokfrevo consegue o que as orquestras de frevo costumam não conseguir: tocar também fora do período carnavalesco. por ano, sem contar com as dezenas de shows em outros estados brasileiros, são três turnês pela europa – no final de outubro, o grupo se apresentou no palco principal da World music expo (Womex), em Copenhague.
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Saxofonistapr oduz o recife Jazz festival, atualmente em sua quinta edição Moacir santos
Compositor pernambucano é um dos principais nomes do chamado Brazilian jazz
“A ideia surgiu da vontade de criar algo novo no nosso calendário cultural e da necessidade de se abrir novas opções de cultura e lazer”, conta Papaléo, que também produz o Oi Blues By Night e o Jazz Porto, cuja terceira edição acontece entre os dias 26 e 28 deste novembro e abriga, entre outras atrações, o guitarrista norteamericano Stanley Jordan. Mas, para realizar o evento, Papaléo enfrenta variados percalços. “Há uma falta de conhecimento de muitos sobre esse estilo musical, e uma visão relativamente conservadora de alguns setores, que dificultam o intercâmbio musical de nossa cultura com a música de outros países. Isso é uma pena, pois esse intercâmbio seria um grande fator de desenvolvimento de música no Brasil e no Exterior”, pondera o organizador. De acordo com ele, a edição de 2009 do Garanhuns Jazz garantiu um aumento de 20% para 100% de ocupação da rede hoteleira na cidade durante o período carnavalesco, atraindo um público de mais de 15 mil pessoas. Para o produtor, os números comprovam que o jazz nunca vai estar na “moda”, mas também nunca vai ficar “fora de moda”. “Aqui existe um bom público amante do jazz e do blues, porém ele é muito exigente e só sai de casa por um bom motivo”, opina. Neste mês, acontece o Recife Jazz Festival, palco para talentos do jazz de vanguarda da América do Sul e Europa. Produzido pelo saxofonista Alex Corezzi, o evento é realizado graças a parcerias internacionais e apoio de órgãos públicos. Em sua sexta edição, o evento acontece nos dias 6 (Pátio de São Pedro), 7 e 8 (ambos na Torre Malakoff) e traz instrumentistas premiados da França, Argentina, Chile e Finlândia.
@ continenteonline Ouça músicas do jazz pernambucano no site www.revistacontinente.com.br
Artigo
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ExistE um jazz pErnambucano? assim como o termo forró,
que virou palavra agregadora para vários subgêneros, o jazz não pode ser considerado um gênero fechado em si. O estilo musical vem englobando diversos outros, a partir da própria evolução ao longo de seus 100 anos. Deste naipe, fazem parte o swing, bebop, cool jazz, fusion jazz, free jazz... Outras variantes estão relacionadas com a música de diversos continentes e até países, culminando com os Latin jazz, Asian jazz, African jazz, Cuban jazz, Brazilian jazz. O Brazilian jazz, um dos mais respeitados no mundo, ganhou projeção na década de 1960, quando o compositor carioca Antônio Carlos Jobim e o violonista baiano João Gilberto e sua esposa Astrud Gilberto invadiram os Estados Unidos e gravaram discos importantes para a história da bossa-nova. O novo gênero musical despertou a atenção por mesclar a batida do jazz à do samba. A fama mundial segue até hoje, quando muitos artistas continuam lançando CDs e fazendo shows voltados para a bossa, como as cantoras Bebel Gilberto e Joyce. Ambas mantêm um público fiel “fora de casa”, respectivamente, nos Estados Unidos e Japão. Um dos personagens importantes para esse jazz brasileiro surgiu em Pernambuco, o arranjador Moacir Santos. Nascido em São José do Belmonte, interior do Estado, o músico tornou-se um dos gênios musicais contemporâneos. O multi instrumentista foi professor de nomes como Paulo Moura, Oscar Castro Neves, Baden Powell, Maurício Einhorn, Sérgio Mendes, João Donato, Roberto Menescal, Dori Caymmi e Airto Moreira. Mesmo não sendo berço de muitos artistas ligados ao Brazilian jazz, o Recife agregou algumas figuras relevantes para
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a evolução do subgênero no país. Dentre elas, destacam-se o alagoano Hermeto Pascoal e o paraibano Sivuca, também multi instrumentistas que tiveram passagens importantes pelo Recife, ao vir trabalhar nas rádios locais. Também teve presença fundamental para o desenvolvimento da moderna música pernambucana o canto inconscientemente jazzístico do paraibano Jackson do Pandeiro – um dos maiores cantores brasileiros, ao lado de Wilson Simonal e João Gilberto, que flertaram com o jazz. Independentemente dos itens swinging, improvisação, síncope, uso abrangente de instrumentos, entre outros, a discussão sobre o que é ou não jazz vem de longe e as críticas (dos puristas) se sucedem em paralelo ao seu crescimento. No entanto, a fronteira elástica do gênero vai além do que pode determinar a crítica ou ouvintes saudosistas presos a momentos históricos do estilo. O crítico norte-americano Andrew Gilbert afirmou que o gênero possui a “habilidade de absorver e transformar influências” dos mais diversos estilos de música. É o que comprova a ambientação dos arranjos de novos nomes locais como Treminhão, Saracotia, Corjazz, Estuário e de cantores como o jovem de vozeirão Arthur Philipe. Na receita da música pernambucana, que gerou Capiba, Moacir Santos, Chico Science e Alceu, tem de tudo, até jazz com farinha. DÉborA nASCImenTo
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DANIEL PIZA SAMUEL JOHNSON: UM PRECURSOR DA CRÍTICA CULTURAL
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Artigo
Samuel Johnson (1709-1784)
ficou conhecido como “Dr. Johnson” por seus conhecimentos e por sua figura de “árbitro do gosto” numa Inglaterra que fervia literária e jornalisticamente. Era, mais que um crítico e escritor, uma espécie de autoridade moral da época, que influenciou gostos e valores de toda uma geração de leitores. Um desses valores era a importância pioneira que deu à biografia; desde Plutarco ninguém se ocupara tanto com os relatos das vidas dos escritores e artistas. Então, não deixa de ser curioso que agora, em seu tricentenário de nascimento, Johnson continue a ser lembrado, sobretudo em biografias. Só neste ano saíram três, escritas por Jeffrey Meyers, Peter Martin e David Nokes, e o que chama a atenção em todas elas é justamente o retrato moral de Johnson. Meyers, por exemplo, não se faz de rogado e descreve longamente sua inclinação sexual para o masoquismo. O doutor foi parar no divã. Ser lembrado mais em biografias alheias do que lido nos próprios ensaios parece ser a sina dele. The life of Johnson,, de James Boswell, é uma das obras-primas da humanidade, um dos volumes mais lidos de coleções como The great books of western world, da Britannica. Boswell foi assistente de Johnson e ao longo de muitos anos captou sua conversação espirituosa, suas ideias e julgamentos, e teve a arte de transcrevê-los para uma narrativa que, até certo ponto, inaugura a biografia moderna como gênero. Se você, como eu, ler primeiro a biografia escrita por Boswell e só depois for ler os textos do próprio punho de Johnson, é provável que sinta a mesma decepção inicial que senti. Os ensaios, resenhas e
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perfis não parecem ter a mesma expressividade, o mesmo humor, a mesma maneira leve e direta de abordar os assuntos. Como Oscar Wilde, o texto de Johnson só parece estar à altura da sua personalidade nos aforismos, nos epigramas agudos e mordazes que salpicam todo seu papo com Boswell, como o celébre “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Mas é uma decepção inicial, pois basta esquecer um pouco a lendária personagem – o polemista que trocava reflexões e farpas com os amigos nas tavernas de Londres, amigos que incluíam autores como Edward Gibbon, Alexander Pope, Jonathan Swift e Edmund Burke e pintores como Joshua Reynolds e Olivier Goldsmith – e se concentrar em sua produção. Ela é variada, criativa e generosa como raras outras. Primeiro, porque Johnson é o primeiro de uma tradição de jornalistas e críticos culturais que, usufruindo a liberdade iluminista de falar sobre todos os assuntos que quisesse, tirou o pensamento dos muros eclesiásticos e acadêmicos e o levou para as ruas e para as casas das pessoas comuns. Segundo, porque ele deixou uma série de avaliações pertinentes, principalmente sobre a literatura inglesa de sua época, praticou em alto nível os mais diversos gêneros literários – do ensaio à ficção, da poesia à lexicografia – e uma novela divertida como Rasselas.
FORMAÇÃO DO CRÍTICO
Nascido em Lichfield, Johnson teve infância e juventude pobres. Seu pai vendia livros, mas não conseguia pagar uma universidade como Oxford. Samuel foi dar aulas e fazer traduções, até que se decidiu mudar para Londres, onde começou a trabalhar como biógrafo, jornalista e resenhista. Mas demorou até 1750, quando, aos 41 anos, iniciou sua colaboração com The Rambler, para que obtivesse notoriedade e bemestar. Era uma coluna bissemanal (às terças e sábados) que descendia diretamente das revistas fundadas por Joseph Addison e Richard Steele, a Tatler (lançada no ano em que Johnson nasceu, 1709) e a Spectator
The Rambler foi uma revista conduzida e escrita por Samuel Johnson. Ela circulou entre os anos de 1750 e 1752 (1711), matrizes do jornalismo cultural tal como o conhecemos. Segundo ele, ler essa dupla de ensaístas era fundamental para quem desejasse desenvolver um “estilo inglês”. E Johnson o desenvolveu: ora irônico ora puritano, ao mesmo tempo muito elegante e muito crítico. (Na vida real, dizem os novos biógrafos, Johnson não era bem assim: era irascível e grosseiro com frequência.) Se um dia escrevia sobre o romance realista, no outro comentava a instituição do casamento; se um dia denegria os vícios da fala comum, no outro discutia a filosofia grega. Nada ficava de fora de sua pena. The Rambler durou apenas dois anos, e Johnson se mudou para The Adventurer (1753) e mais tarde para The Idler (1758-60). Nesse meio tempo, elaborou seu Dicionário da língua inglesa (1755), empreitada que tocou praticamente sozinho, estabelecendo
um marco nos estudos de filologia. A esta altura, já era Dr. Johnson, já era o mais temido crítico da cidade. Em 1765, a consagração viria como editor das obras de Shakespeare, que incluiu o descarte definitivo de algumas obras assinadas por “Ossian” e atribuídas ao autor de Hamlet. Nos últimos anos antes de morrer, Johnson ainda realizou outro trabalho de porte, Vidas dos mais eminentes poetas ingleses (177983), em que escreveu brilhantemente sobre Milton, Pope, Cowley e muitos outros. Johnson tinha limitações sérias, no entanto, como crítico. Para ele, a função primordial da arte era moral, e isso se vê em seu Prefácio a Shakespeare, uma das raras obras disponíveis em edição brasileira (ao lado de Rasselas). Ali se queixou explicitamente do que seria uma “ausência de objetivo moral”; na verdade, sentia desconforto diante da ambivalência de Shakespeare, cujos personagens não podem ser separados em bons e maus e suas virtudes muitas vezes trazem mais problemas que soluções. Johnson também disse que o humor de Shakespeare é “vulgar”, um esnobismo que não faz o menor sentido em relação a um autor cuja genialidade consiste antes de mais nada na mistura de registros. Mas Johnson, que também criticou alguns enredos “malconcebidos” (no que tem razão em parte, se pensarmos em Otelo, por exemplo), fez grande papel ao comentar a universalidade desses personagens, o vigor das cenas e a percepção de Shakespeare para captar lugares e comportamentos. A maior contribuição de Johnson foi abrir caminho, por meio dessa variedade de gêneros e seriedade de propósitos, para toda uma linhagem de grandes críticos que são compósitos de jornalistas e estudiosos, capazes de unir confronto e rigor, como William Hazlitt e Edmund Wilson nos séculos seguintes. Também ensaístas atuais como Harold Bloom e George Steiner o consideram um precursor. Isso não é pouco – e oxalá o jornalismo cultural contemporâneo tentasse recuperar ao menos parte do tom ensaístico que Johnson levou para os periódicos com tanto empenho e engenho.
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Fred Zeroquatro O NOVO DEUS
Fred Zeroquatro é compositor e letrista da banda Mundo Livre S/A
flora pimentel
na virada do século passado, quando o MP3 era novidade e o Napster ainda não aterrorizava os executivos da indústria fonográfica, compus o samba-rock Ligação direta, que dizia: “Não precisamos de satélites/ quem carece de cabos/ondas invisíveis pra quê/ eu só preciso das minhas pernas/ pra chegar até você”. Dez anos atrás eu já era aspirante a neoludita e não sabia. Pois foi assumidamente neoludita que a cantora pop inglesa Lily Allen se proclamou – revoltada com o download ilegal de arquivos musicais –, ao desativar seu Twitter. Acho uma deslealdade sem tamanho a forma como a outrora “namoradinha” dos modernetes passou, então, a ser tratada pela imprensa. É muito descaramento querer apontar uma “contradição imperdoável” entre o fato de a cantora ter surgido e se popularizado na internet e estar agora protestando contra o download ilegal. É de se lamentar que esse mesmo tipo de fúria raramente se dirija a “entidades” como a Microsoft, a Apple ou o Google. Também é simplório querer reduzir a discussão à “velha briga entre música e tecnologia”, como alguns tentam. Até porque essa não é uma questão que envolve só a indústria da música, mas praticamente toda a economia da cultura. Não seria interessante saber o que pensa um filósofo marxista que se dedica a uma reflexão sistemática a respeito da sociedade da mercadoria e das relações entre cultura e economia? Em entrevista concedida à jornalista Sonia Montano, o alemão Robert Kurz ironizou os criadores que precisam vender seus produtos a empresas como a Microsoft para sobreviver. Para ele, esta dependência “só pode ser suplantada por uma revolução das relações sociais de produção, e não por uma renúncia aos direitos de autor isolada e exterior”. A ideia de compartilhamento de criações via internet ele considera “um utopismo neo-pequeno-burguês, que se restringe à esfera da circulação”. Em dado momento, chega a tratar esse coletivismo eletrônico anônimo como “uma ideia horrorosa, o contrário da emancipação social”, advertindo que a terceira revolução industrial (da microeletrônica) torna o trabalho supérfluo, gerando o que qualifica como uma crise da forma capitalista de reprodução. Em meados do século passado, autores de ficção científica, bem como cineastas, pareciam querer alertar para a ameaça que poderia representar um virtual fundamentalismo tecnológico. Costumava achar meio ridículo esse alarmismo, os homens jamais se deixariam dominar por máquinas. Mas, aí, recentemente, li algo que me deu arrepios, escrito por um utópico do Vale do Silício. Queiramos ou não, devemos nos preparar para um mundo sem autores, em que todos poderemos nos beneficiar da “biblioteca líquida”. Na visão 2.0 de Kevin Kelly, “Depois de digitalizados, os livros podem ser desemaranhados em páginas únicas ou ser ainda mais reduzidos até retalhos de página. Esses retalhos serão remixados em livros reordenados em estantes de livros virtuais”. Obviamente, tudo gratuito. Um mundo em que os escritores terão que recorrer a palestras e à venda de acessórios para ganhar a vida. Palestras? Se eu não devo pagar pelo que ele escreve, por que deveria pagar para ouvi-lo? Quem precisa de escritores, compositores e cineastas, afinal? Kubrick estava certo. Devemos celebrar, pois a mente sobre-humana – e onipotente – está a caminho, aparentemente, para nos “salvar”.
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