Continente #108 - Religião e arte

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fOtO: BRENO LAPROvItERA

dezembro 2009

aos leitores Se, no calendário cristão, a Páscoa é associada à dor da morte (ainda que seguida do júbilo da ressurreição), o Natal é a mais alegre das celebrações à vida. Uma época em que as casas e ruas se enchem de luzes e enfeites que lembram o nascimento de Jesus. Mas, é verdade, também, que os ícones natalinos têm servido mais para estimular o consumo que para exaltar o espírito da cristandade. Quase não somos capazes de imaginar, em tal contexto histórico, que houve um tempo em que toda a vida social girava em torno da Igreja e seus preceitos. Isso também ocorre em relação à arte. Desde o Renascimento, passando pelo cientificismo oitocentista e chegando ao “breve século 20”, houve uma gradual cisão entre religiosidade e criação artística. Nesta última edição de 2009 da Continente, estimulados pelo encontro ocorrido em novembro entre o papa e artistas de todo o mundo, propomos discutir sobre como andam essas relações nesta primeira década do século 21. Na seção Claquete, contamos com o trabalho do fotógrafo Otávio de Souza que acompanhou as filmagens de Lula, o filho do Brasil, realizando belas imagens de divulgação e de making of para o longa-metragem. Em Pernambucanas, ficamos fascinados com a inventividade exuberante do dono do Castelo de Pesqueira (foto), construção tão bemdocumentada por Breno Laprovitera. Por fim, num gesto tradicional do ciclo natalino, oferecemos um presente ao leitor: um calendário de 2010, para o qual escolhemos fotografias de trabalhadores da cana-de-açúcar, realizadas pelo pintor Lula Cardoso Ayres, nos anos 1940, uma homenagem ao artista pernambucano, que completaria 100 anos em 2010. Um excelente Ano-Novo para todos!

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sumário Portfólio

Yêda Bezerra de Mello 06

cartas

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expediente + colaboradores

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entrevista

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Gonçalo M. Tavares Romancista português comenta sua obra a partir da relação entre a criação literária e a metafísica

conexão

Música Chilenos das mais variadas vertentes divulgam trabalhos em site

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Perfil

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História

Severino Martins Júnior O insuspeito caso do cônego que coleciona arte contemporânea Munducuru e Agostinho Dois negros que, no início do século 19, lideraram tropas revolucionárias contra a escravidão

Solo do outro Bailarinas discutem as relações do corpo com o espaço a partir dos usos da Casa da Cultura

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Sonoras

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Leitura

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Matéria corrida

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Artigo

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Saída

Balaio

Mark Twain O escritor norteamericano, que era investidor, não acreditou que o telefone se tornaria um fenômeno de vendas

Palco

As experiências que a fotógrafa tem realizado ao registrar fragmentos da cena urbana revelam interesse em discutir a presença do tempo na imagem

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Bienal da Música Este ano, a mostra de música erudita teve participação recorde de compositores estreantes Hölderlin Tradução para o português da obra A morte de Empédocles, do poeta alemão, recebe o Prêmio Jabuti José Cláudio Coletiva de mestres da pintura inaugura Espaço Brennand Fotojornalismo Implicações atuais para os novos rumos da fotografia documental em impressos Leo Falcão Cineasta reflete sobre novos estilos e linguagens do cinema expandido

claquete

Lula, o filho do Brasil Cinebiografia do presidente chega aos cinemas em janeiro, com aparato de produção digno de um arrasa-quarteirão

52 Capa Foto Timothy Schenck

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especial

Arte e Religião

Pernambucanas

Castelo de Pesqueira

Como a rica e controversa relação entre essas duas grandes criações do espírito humano se estabelece em nosso tempo

Na pequena cidade do Agreste pernambucano, há 10 anos, um comerciante vem erguendo um monumento de criatividade hiperbólica

cardápio

Visuais

Comida tradicional sertaneja, preparada com cuidado e apresentação caprichada, coloca o restaurante no concorrido roteiro gastronômico paulista

Tradição de distribuir folhinhas no fim do ano continua sendo uma prática do comércio tradicional e também de grandes empresas

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Mocotó

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Dez’09

Calendários

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cartas Poetas

Cinema

Ainda menino, presenciei uma peleja entre Louro do Pajeú e Pinto do Monteiro, que foi revivida pela leitura da Continente nº 105. Foi na casa de Antônio Marinho (meu primo), hoje poeta feito, que era bebê de colo. Ler a revista longe da terra (mudei-me há dois meses) aplaca a saudade e aviva a lembrança.

Somos uma produtora com sede em Floripa, Santa Catarina, e, através de uma publicação de sua revista, edição de outubro, intitulada “Fábrica de cinema”, pudemos conhecer um pouco mais do trabalho realizado pelos cineastas de Pernambuco. Gostaríamos, se possível, travar contato com o colaborador Alexandre Figueirôa, que escreveu o maravilhoso artigo “Febre do Cinema”, como também com os demais componentes do grupo de realizadores que a referida matéria cita. De certa forma, guardadas as devidas proporções, nós aqui em Florianópolis estamos tentando construir nossa identidade dentro do audiovisual. Parabéns pela revista, as matérias e a atitude.

Bruno nascimento campinas-sp

Acaiaca Lendo a revista Continente, edição do mês de setembro, encantamo-nos com a excelente reportagem sobre o Edifício Acaiaca (foto). Entretanto, para surpresa nossa, não encontramos o nome da construtora responsável pela realização desta obra tão significativa para nosso Estado. Vocês esqueceram de mencionar o nome de uma empresa muito importante na época, que foi a construtora Figueira & Jucá. Esta empresa não só construiu o Acaiaca, mas também vários prédios na Av. Guararapres, na

Conde da Boa Vista e em outros locais de nossa cidade, entre eles, o Edifício Capibaribe, na Rua da Aurora, que foi o primeiro prédio de 20 andares no Estado. Esta homenagem nós esperávamos que fosse prestada ao nosso pai Manoel Figueira e ao seu sócio, Antônio Jucá, diretores da empresa. Gostaríamos que isso ficasse registrado numa próxima edição. maria Fernanda Figueira callou maria Figueira pontual reciFe-pe

ricardo Karam Florianópolis-sc

SugeStõeS Entre as propostas de pauta enviadas pelos leitores, algumas foram recorrentes nos últimos meses. Muitos professores da

rede estadual de ensino sugeriram matérias e artigos que trouxessem informações sobre a história pernambucana, evidenciando personagens relevantes, como Joaquim Nabuco e Valdemar de Oliveira. A redação está atenta a essas e outras propostas enviadas pelos leitores. errataS Na seção Cardápio, da edição 107, as fotos do chef Alexandre Faeirstein e do prato preparado por ele, bem como a do chef André Saburó, foram enviadas para divulgação por eles e não pela fotógrafa colaboradora Yêda Bezerra de Mello. Na mesma edição, na matéria sobre os 25 anos de lançamento do documentário Cabra marcado para morrer, leia-se no subtítulo: “Filme sobre a situação das Ligas Camponesas, rodado em Pernambuco e na Paraíba por Eduardo Coutinho, nos anos 1960 e 1980, inaugura um novo momento do documentário nacional”.

Você Faz a continente com a gente o nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, recife-Pe, CeP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. telefone (81) 3183 2780 Fax (81) 3183 2783 email

redacao@revistacontinente.com.br

Site

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colaboradores

cárcamo

carlos Sandroni

Daniel Buarque

Artista plástico, caricaturista

Professor do Departamento

Jornalista e autor do livro Por

eduardo Henrique accioly campos

e coautor de livros infantis

de Música da UFPE

um fio - O mundo explicado pelo

Economista e governador do

telefone

Estado de Pernambuco

e MaiS

Fabiana Moraes

Kleber Mendonça Filho

rodrigo Petronio

Jornalista, mestre em

Jornalista, cineasta e crítico de

Escritor, pesquisador e editor.

Comunicação e doutoranda

cinema

Autor de História natural, Pedra de luz, entre outros

em Sociologia

Anco Márcio Tenório Vieira • Breno Laprovitera • Carlos Eduardo Amaral • Christianne Galdino • Daniel Piza • Fábio Lucas • Flávio Lamenha • Jaílson da Paz • José Afonso Jr. Júlia Rebouças • Léo Falcão • Marcelo Costa • Otávio de Souza • Paulo Melo Jr. • Paulo Santos de Oliveira

goVerno Do eStaDo De PernaMBuco

superintendente de ediÇÃo

contatos com a redaÇÃo

atendimento ao assinante

goVernador

Adriana Dória Matos

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Eduardo Henrique Accioly Campos

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secretÁrio da casa ciVil

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Luiz Ricardo Leite de Castro Leitão redaÇÃo

produÇÃo grÁFica

ediÇÃo eletrÔnica

coMPanHia eDitora De PernaMBuco – cePe

Danielle Romani, Mariana Oliveira e

Júlio Gonçalves

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presidente

Thiago Lins (jornalistas)

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Roberto Bandeira

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diretor administratiVo e Financeiro

Pimentel, Guilherme Carréra e Karina Freitas

puBlicidade e marKeting

Bráulio Mendonça Menezes

(estagiários)

e circulaÇÃo

conselHo editorial:

Elizabeth Cristina de Oliveira (apoio)

Armando Lemos Alexandre Monteiro

Mário Hélio (Presidente) Antônio Portela

arte

Rosana Galvão

José Luiz Mota Menezes

Flávio Pessoa e Vivian Pires (paginação)

Gilberto Silva

Luís Reis

Nélio Câmara (tratamento de imagem)

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Luzilá Gonçalves Ferreira

Joselma Firmino de Souza (supervisão de diagramação e ilustração)

Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redaÇÃo, administraÇÃo e parQue grÁFico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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GONÇALO M. TAVARES

“Quero saber como as pessoas funcionam” Romancista português fala sobre a inquietação que o levou a escrever o livro Aprender a rezar na era da técnica, que integra a tetralogia O reino, e diz como a oposição entre a religião e a razão é refletida na criação artística texto Fábio Lucas

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Entrevista

com a tetralogia denominada O

reino, o romancista português Gonçalo M. Tavares tem conquistado prêmios literários e despertado a curiosidade em vários países. Por Jerusalém, recebeu o prêmio José Saramago em 2005 e o Portugal Telecom de 2007. Questões como o mal, a violência e a loucura são abordados pelo escritor nesses quatro livros autônomos, que podem ser lidos de forma independente. Tanto é assim que o último da série – Aprender a rezar na era da técnica – foi o terceiro publicado no Brasil, pela Companhia das Letras, que encerrará a publicação da tetralogia no país no ano que vem. Além dos temas comuns, personagens secundários num livro aparecem como protagonistas em outro, com isso o autor pretende que a leitura do conjunto extraia um “algo mais” para a obra. No dia seguinte à sua participação na Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas, em novembro, Gonçalo M. Tavares concedeu a seguinte entrevista à Continente, em que trata do antigo conflito entre a razão e o sagrado, e defende a permanência do romantismo na arte.

continente O título Aprender a rezar na era da técnica chama a atenção para uma interessante oposição. Como veio a vontade de escrever um romance a respeito? GonÇALo M. tAVAReS A origem do livro é a estranheza de ver que certas palavras religiosas tenham se mantido constantes, tendo mudado tanto a história e a paisagem do mundo. Há lugares em que a natureza ainda está muito presente, mas em cidades como Lisboa ou São Paulo nem a cheiramos. É como se ela ficasse do lado de fora, quando entramos numa casa; o que entra é a natureza controlada, como os vasos de plantas, um aquário de peixes. É uma natureza domesticada a do espaço humano no século 21. Este século é o da técnica e da racionalidade. O ponto de partida então foi investigar como isso é compatível, como poderíamos continuar a ser obcecados pela tecnologia (não eu pessoalmente, mas há pessoas que são), pelo último computador, pelo último celular, e, ao mesmo tempo, ter uma crença religiosa muito grande.

continente Por que essa coexistência entre a oração e a máquina é tão contrastante, como você diz? GonÇALo M. tAVAReS Porque são dois tipos de utopias distintas. A religião é um olhar respeitoso para o passado, é o respeito aos nossos antepassados, está ligada a terra e à família. Por outro lado, a opção pela técnica é quase o inverso: o progresso, a opção pelo novo. Portanto, é muito estranho como o respeito pelo passado e a opção pelo novo convivem ainda na mesma época. continente A incompatibilidade apresenta desequilíbrio para um dos lados, podendo significar o fim dessa convivência no futuro? GonÇALo M. tAVAReS As máquinas ocupam seu espaço há pouco tempo, talvez um século e meio, mas o conflito e o diálogo – não é só uma oposição negativa, é também uma conversa – entre a racionalidade e a crença são mais antigos. O homem sempre foi fascinado pela sua própria inteligência e pela forma como ela foi mudando o mundo e alterando a natureza, mas também sempre teve uma ligação religiosa. Então não me parece que a tecnologia elimine

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divulgação

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a crença, ou que a crença vá parar a tecnologia. Mesmo que historicamente se verifiquem conflitos. Quando apareceram as primeiras vacinas, houve uma reação religiosa em diversos países, assim como contra o antibiótico, visto como não natural, e até em casos recentes, como o primeiro coração artificial, ou algo hoje banal, como a operação de ponte safena. A resistência do meio religioso considerava que a tecnologia estava a entrar no que era mais profundo do corpo humano, e que poderia deturpar a sua essência.

GonÇALo M. tAVAReS Sim. O médico está sempre a lidar com situaçõeslimite, é uma figura muito rica. O romance é uma história das mãos, da ação delas. O médico protagonista é a princípio um cirurgião, alguém que salva as pessoas com o bisturi, com máquinas, e a certa altura percebe que os seus movimentos das mãos salvam as pessoas, uma a uma – quando ele opera alguém, ele opera apenas um indivíduo. No funeral de um irmão, ele observa um político, e fica fascinado com a forma com

continente O político se aproxima do Messias, já que promete salvar mais gente? GonÇALo M. tAVAReS O termo “salvação” é utilizado no nível médico e religioso. Aquele que é “salvo” encontrou a crença. Em termos médicos, alguém que está prestes a morrer e é resgatado – aqui surge a relação religiosa, como se o médico, ao evitar que outra pessoa morresse, fizesse algo semelhante ao profeta que consegue cativar um crente. O médico salva através da técnica, uma salvação diferente da salvação religiosa.

continente É a defesa da alma pela inviolabilidade do corpo... GonÇALo M. tAVAReS Há mesmo quem defenda a modificação do corpo humano. O artista Stelarc experimentou um terceiro braço artificial. Ele defende a ideia de que três mãos são mais úteis do que duas, e assim, por que não o corpo humano ter três mãos, se a tecnologia já o permite? Esse pensamento utilitário, racional, de três mãos, esbarra em coisas como a imagem bíblica de que o corpo humano é feito à semelhança da imagem de Deus. Só essa pequena questão de Stelarc é um choque brutal com fundamentos de nossa civilização que têm a ver com a ideia de que a

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Entrevista nossa forma, mesmo anatômica, tem relação com a imagem divina, como se fôssemos filhos de Deus. E aquilo que antes se considerava monstruoso – ter três mãos – a tecnologia mostra como uma nova utopia. Isso é um conflito muito aberto, mas nenhuma parte é tão poderosa que elimine a outra. Como dois adversários que precisam um do outro para não cair, ambos só se mantêm de pé se existir a força na direção contrária. continente O protagonista do livro é um médico. Os médicos são personagens privilegiados nesse embate, já que lidam numa ponta com a esperança que as pessoas depositam na medicina e, na outra, com toda a pressão tecnológica que empurra o universo da saúde. A escolha foi deliberada?

que ele é cumprimentado, como se a pessoa que cumprimenta o político poderoso se anulasse, desaparecesse. E o cumprimentasse como se fosse parte de um coletivo, e não uma pessoa individualizada. A partir daí, o personagem pensa que o movimento das mãos de um político, ao invés de salvar uma pessoa, como o movimento das mãos dele, pode salvar ou mandar matar 100 mil pessoas. Então abandona a medicina para fazer política. Essa parte do livro tem a ver com o que as nossas mãos fazem e as consequências disso.

continente Qual o papel da oração na nossa época, e que necessidades ela atende? GonÇALo M. tAVAReS Sempre tive fascínio pelas orações, no caso, católicas, pois foi nesse ambiente que cresci. Precisamente por não compreender a força que elas têm. Quando estou diante de um texto literário, por exemplo, da Clarice Lispector, consigo perceber por que aquilo é forte. Pelo contrário, em algumas passagens religiosas, algumas orações, se olharmos apenas para o texto, as palavras não têm a força literária de um texto da Clarice. Outra

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palavra que não tem um percurso histórico e universal. As palavras das orações são aquelas a que ninguém é indiferente, todos temos histórias com elas. Talvez venha daí a sua força.

força qualquer faz com que aquelas palavras sobrevivam tanto quanto as grandes palavras literárias. O que elas trazem atrás de si, o que provocam em nós, para conseguirem um efeito tão forte, mesmo sendo palavras aparentemente pouco entusiasmantes, é o que tento investigar.

continente A religião sempre teve influência sobre a criação artística. Na primeira década do século 21, dá para ver que peso ainda tem a religião sobre a literatura? GonÇALo M. tAVAReS Não são muitos os casos de escritores que misturam trajeto religioso e literário, mas em Portugal há casos de padres poetas. karina freitas

continente Chegou a alguma conclusão? GonÇALo M. tAVAReS O escritor não chega a uma conclusão depois de escrever um livro. Não é como chegar a um resultado matemático, ao final

“A religião é um olhar respeitoso para o passado, enquanto a técnica representa o progresso, a opção pelo novo. É estranho como convivem ainda na mesma época”

da última página sabe o resultado da conta. Mas o que eu sinto, percebendo melhor o problema, é que as palavras das orações normalmente remetem para elementos básicos como terra, ar, morte, pai – palavras fundamentais. O vocabulário é reduzido, porém se refere a coisas práticas, materiais, que todas as pessoas compreendem, com que todos já tiveram alguma experiência. A diferença de uma palavra como “terra” de uma palavra como “celular” é que todas as pessoas já tiveram uma relação com a terra. Enquanto “celular” é uma

São sempre temas fortes porque mostram o antagonismo presente entre os valores religiosos e as práticas das Igrejas e suas instituições. Nesse aspecto, o escritor, como um crítico social atento, que aponta o dedo para as coisas que não funcionam, também deve estar atento para as instituições religiosas que fazem uma espécie de sabotagem dos valores cristãos, por exemplo. Há várias formas de abordar o tema da religião e do sagrado. Não me interessa esse tema separado do resto, ou seja, quero saber como as pessoas funcionam. Para saber

como o ser humano funciona, a crença é parte natural, como a racionalidade. Para perceber o homem, é preciso perceber a crença que está no homem. Eu não quero perceber a religião à parte do homem. Não me interessa ver a crença no abstrato, não pertenço a nenhuma linha de teologia. continente E em relação à arte em geral? GonÇALo M. tAVAReS Isso muda muito, de 15 em 15 anos as coisas mudam completamente. Mas do que conheço da arte contemporânea, por exemplo, há um afastamento, não tem mais aquela ideia de inspiração, que se aproxima do pensamento religioso, de algo que não pertence ao artista e entra nele. Agora o discurso na arte é mais racional, com uma ironia e um sarcasmo excessivos sobre a ideia de “artista iluminado”. Esse artista receberia uma luz especial, do alto. Na arte contemporânea europeia, essa ideia se perdeu um pouco – e não sei se me agrada totalmente, pois às vezes se transforma a arte numa espécie de indústria, com os clientes, os produtores, os consumidores, e se perde um bocado da aura. Não que eu ache que os artistas sejam seres excepcionais. São pessoas como as outras. Mas é bom acreditar que o que fazem não é apenas um produto como outro qualquer. É bom manter o romantismo de que o livro, uma obra de arte, pode mexer com a parte mais profunda das pessoas, e não apenas ser como um iogurte que a pessoa come, um produto de consumo que se gasta rapidamente. Espero que as pessoas não caiam exclusivamente nisso. continente A literatura poderia ser considerada uma espécie de oração, na era da imagem e das mídias virtuais? GonÇALo M. tAVAReS Se se pensar no sentido de que a oração pode ser o momento em que o indivíduo “se afasta do século”, como dizem os religiosos, afasta-se dos problemas normais, das notícias e da velocidade excessiva do dia a dia, neste sentido, e somente nele, sim, um bom livro tem algo de semelhante. Porque um bom livro torna o dia mais lento, afasta-nos do cotidiano. Podemos ler um livro passado noutro país, no século 18, e é quase como se entrássemos numa outra época, saindo do século de forma direta.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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A históriA de LuLA

virtuosi

Quem ler a reportagem desta edição sobre o filme Lula, o filho do Brasil, de Fábio Barreto, com estreia prevista para o dia 1º de janeiro, poderá conferir no site o trailer do longa e fotos feitas pelo repórter fotográfico Otávio de Souza durante as filmagens em sete cidades dos Estados de São Paulo e Pernambuco, durante os três meses de gravação. Os internautas também poderão conferir mais imagens dos calendários produzidos pelo fotógrafo Renato Filho e conhecer melhor o restaurante Mocotó, que está movimentando São Paulo servindo pratos da culinária pernambucana.

Ouça o Quinteto para piano e cordas de Antonín Dvořák (foto), interpretado por alguns dos participantes do evento este ano.

Conexão

ArquiteturA O intrigante Castelo de Pesqueira ganha espaço no site, com uma seleção de fotos inéditas que ressaltam sua riqueza de detalhes.

Veja esses e outros links na seção coneXÃo, em www.revistacontinente.com.br

AndAnçAs virtuAis Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar

músicA

doAçÃo

LiterAturA

Acervo

A partir da união dos artistas, MNCL divulga produção chilena

Para ler um inédito de Luís Fernando Veríssimo

A partir de disputa online, prêmio para melhor obra

Obras digitalizadas do Instituto Moreira Salles

www.livroinedito.com.br

www.copadeliteratura.com

http://ims.uol.com.br

Se a literatura pode mudar o mundo, há controvérsias. Mas que pode contribuir para tornálo melhor, isso é verdade. Pelo menos, é o que acredita a Fundação Gaúcha de Bancos Sociais, uma entidade sem fins lucrativos que organiza a doação de livros para escolas, hospitais e comunidades carentes. Para estimular o envio, o grupo promoveu no site uma brincadeira: quando as doações chegarem a 500 mil livros, o internauta terá acesso a Os espiões, livro inédito de Luís Fernando Veríssimo. Os locais de doação e os telefones para quem deseja enviar uma quantidade maior de exemplares estão no site.

Final de Copa. De um lado, Cristovão Tezza, autor de O filho eterno. Do outro, João Paulo Cuenca, autor de O dia Mastroianni. Não se trata de uma competição esportiva: é a final de 2008 da Copa de Literatura Brasileira. Criado em 2007, o site é uma resposta aos tradicionais prêmios literários, que não explicitam o porquê de suas escolhas. Na Copa, o vencedor de cada rodada é decidido por um jurado e anunciado a partir de uma resenha. Já foram campeões Luiz Antonio de Assis Brasil, com Música perdida, e Cristóvão Tezza, com O filho eterno.

Fundado em 1990, o Instituto Moreira Salles possui um enorme arquivo sobre cultura brasileira, com 550 mil fotografias, 400 mil itens na biblioteca e 100 mil músicas. Criado pelo banqueiro e embaixador Whalter Moreira Salles, além do seu trabalho de preservação, também promove exposições e publica a revista Serrote. Em seu site, é possível ver a parte do acervo que já foi digitalizada, com obras de Chiquinha Gonzaga, Clarice Lispector, Otto Stupakoff e Lygia Fagundes Telles. Também merecem atenção as gravações raras que tocam na Rádio IMS.

www.mncl.cl

O grupo Músicos en el nombre de Chile dedica-se a promover o trabalho de mais de 400 artistas do país, sejam eles independentes ou parte do catálogo de gravadoras. A organização funciona como um empresário, fazendo serviços de assessoria de imprensa, agendamento de shows e até direção de videoclipes e a distribuição digital das canções. No site, é possível conferir as novidades sobre a música chilena e os artistas envolvidos. O destaque, no entanto, é a seção Guía de artistas, que traz o perfil de todos os associados.

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REPRODuçãO

blogs FotoGrAFiA http://afdeautofoco.blogspot.com

O jornalista e professor da UFPE Afonso Jr. noticia eventos, divulga programações e reúne galerias de imagens sobre fotografia em seu blog, além de problematizar questões concernentes à crise da mídia na contemporaneidade.

desiGn http://printpattern.blogspot.com

iLustrAçÕes Ao redor do mundo Para compor retratos de tipos urbanos, Jorge António Gonçalves passou três semanas em cada cidade e fez mais de 300 desenhos no projeto Subway-life www.subway-life.com

como seria nova York sem o sistema de metrô? Ou ainda: de que forma

os nova-iorquinos se adaptariam à vida sem a facilidade de ir de uma ponta a outra da cidade em alguns minutos, evitando o trânsito das grandes avenidas? Tal qual a Big Apple, outras metrópoles têm seu cotidiano marcado pelo transporte subterrâneo. Movido pelo interesse de desenhar os passantes, o ilustrador e autor de tirinhas Jorge António Gonçalves dedicou seu tempo a observá-los nos subways mundo afora. Além de Nova York, outras nove cidades (Londres, Berlim, Lisboa, Estocolmo, Moscou, Tóquio, Cairo, Atenas e São Paulo) ganharam desenhos de seus usuários de metrô. “Eu não escolho as pessoas, elas que me escolhem. Desenho não importa quem sente na minha frente ou esteja no meu campo de visão”, explica Jorge António. Cativa o olhar o traçado simples e, ao mesmo tempo, detalhista dos grafismos, levando em consideração que o artista os fez no intervalo entre duas paradas ou em 10 minutos, “Se a pessoa caísse no sono e perdesse a estação”, conta. “Quando as pessoas estão no metrô, elas procuram algo para fazer. Leem jornal, ouvem música. Eu optei por desenhá-las”, diz. O site, em formato de mapa de metrô, apresenta informações sobre o projeto, que se tornou livro com as imagens e ganhou também uma exposição.

O blog britânico Print and pattern se dedica a explorar o mundo do design impresso. Suas postagens trazem amostras de belas estampas, broches, adesivos, livros e ilustrações, dentre outras.

cuLturA musicAL http://outroscriticos.blogspot.com

Os heterônimos Júlio Rennó e Amélie Marie comandam o Outros críticos, que cobre a música alternativa pernambucana e brasileira. Destaque para as entrevistas pouco convencionais e as sugestões de canções e discos.

crÔnicAs http://andrelaurentino.blogspot.com

Publicitário premiado, André Laurentino dedica um tempo para escrever em seu Caderno de vidro. O autor do romance A paixão de Amâncio Amaro é recifense de nascimento, olindense de criação e paulistano de profissão.

sites sobre

culinária VÍDEOS

RECEITAS

COMPARAÇÃO

www.tvcozinhando.com.br

http://culinaria.terra.com.br

www.comacomosolhos.com

Para aprender a cozinhar, o site disponibiliza vídeos com chefs ensinando pratos variados, dicas e truques culinários.

O portal do site Terra reúne inúmeras receitas de doces a salgados, com destaque para a seção de culinária saudável.

A proposta do endereço eletrônico é tirar uma foto do produto e colocá-la ao lado da embalagem, com resultados surpreendentes.

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Portfolio

Yêda Bezerra de Mello

AS FRATURAS DO TEMPO TexTo Adriana Dória Matos

certas coisas estão ali, sob nossos olhos, e, para que as percebamos, precisamos ser instados. Então, a gente se detém e vê. Podem ser objetos e lugares, pessoas, sentimentos e conceitos, sacados de diferentes pontos de vista e tempos. No caso de Yêda, e de suas fotografias que apresentamos nestas páginas, o que a impeliu foram as discussões em um grupo de estudos sobre diferentes formas de fotografar a cidade. Ela se deu conta de que tinha mais registros de viagem que da própria cidade. Como num paroxismo, elegeu como tema o Centrão, o miolo convulsivo e decadente do Recife, espécie de tesouro e sobra. Fotografá-lo simplesmente seria repetir um gesto. Então, como reencontrar o lugar-comum? Numa primeira investida, ela se colocou num ponto fixo na Praça da Independência e fotografou ao redor. Foram 223 shots, em que enquadrou o calçamento, pessoas, veículos, edifícios, o céu. Mesmo no momento da captura, já planejara a montagem digital em quebra-cabeças, na qual as imagens se encaixariam na sequência em que haviam sido fotografadas. Já ali, naquela primeira investida, tinha em mente ideias de fragmentação do instante e fluxo de tempo, que a levavam a refletir sobre a própria fotografia. Ao desenvolver os experimentos fotográficos reunidos no livro Cameraworks, o pintor David Hockney (referência imediata quando olhamos esse ensaio de Yêda) tornou visível a discussão de que a fotografia não é tão realista quanto pressupomos, continente dezembro 2009 | 16 7

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Página anterior HoLiDAY

Edifício moderno faz parte da história de Boa Viagem e foi captado em variados horários do dia na foto 270 Nestas páginas PÁtio Do LiVRAMento

A fotógrafa intitula as imagens de acordo com a quantidade de fotogramas que contêm. A 427 parte da nave, segue pelo pátio indo pela lateral da igreja através da Rua do Livramento em direção ao Mercado de São José, captando detalhes pelo caminho inÍcio

A primeira foto da série foi esta tomada de um cruzamento da Praça da Independência com a Avenida Dantas Barreto, área central do Recife

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na medida em que, ao captar apenas o instante, ela suprime o tempo. Ao fragmentar a cena em vários pedaços e depois a recompor em uma só imagem, não apenas reintroduzimos na fotografia a noção de tempo, mas permitimos que o olhar a percorra assim como costumamos rastrear o mundo: várias vezes, sob diferentes motivações e direções. Com a decomposição da cena, melhor percebemos suas partes. Não é à toa que Hockney tenha ido buscar referências no Cubismo, em que a justaposição de diferentes pontos de vista e a fragmentação das formas, entre outros artifícios, rompiam com convenções tradicionais da pintura, como a ilusão perspectiva, desde que atentavam a realidade a partir das sobreposições do olhar inteligente e sensível, carregado de memória. E foi com o olhar da memória que Yêda fotografou o edifício Holiday, um emblema arquitetônico e humano de Boa Viagem, bairro onde a fotógrafa mora desde criança. Também de um mesmo ponto, mas em diferentes horários que percorreram o dia e a noite, ele registrou o prédio em 270 recortes, seu entorno e os transeuntes, lembrando quantas vezes passou por ali, os usos e desusos do lugar. Enquanto desenvolvia a série, realizada com uma câmera Nikon D50 e ainda em andamento, ela ia acrescentando novos desafios ao trabalho, como na fotografia 230 da Avenida Guararapes ou na 427 do Pátio do Livramento, nas quais, liberada do ponto fixo, moveu-se em torno do objeto escolhido, trazendo para imagens uma diversidade de elementos.

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Única foto da série que não foi feita em área urbana, a 76 retrata paisagem campestre em dia de chuva Com ajuda da filha, que lhe serviu de guia, Yêda percorreu da portaria de um edifício até o outro lado da avenida sem virar as costas. Na fotografia 230, cinco planos foram “achatados” verticalmente

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iMAgENs: REpRODuçãO

iMAGenS: RePRodução

MAiS que uM noMe FALSo

Mark twain e o telefone Assim como o mais popular personagem que criou, Tom Sawyer, o escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910) nunca permitiu que sua vida ficasse entediante. O self-made man, que passou por momentos difíceis, incluindo diversas crises financeiras, acostumou-se a ganhar um extra nas possibilidades que lhe surgissem. Além de trabalhar como jornalista, autor e palestrante, Samuel Clemens (seu verdadeiro nome) costumava #44 investir o dinheiro que sobrava em invenções alheias. Sonhava em um dia, com isso, tirar a “sorte grande”. Desta forma, após muitas tentativas fracassadas e consequentes reclamações da família sobre o desperdício de dólares, Twain ficou mais cauteloso diante de inventores ou amigos que lhe contavam sobre uma nova especulação na área das patentes. Um dia, ofereceram-lhe investimento em um aparelho que faria a comunicação falada entre pessoas em lugares diferentes. Considerando a ideia estapafúrdia, deixou de ficar milionário investindo no protótipo do telefone. dÉborA nAScimento

con ti nen te

A FRASE

“o malvado descansa algumas vezes, o idiota, jamais!” ortega y Gasset

No início da década de 1970, as músicas de Chico Buarque eram censuradas com frequência. Atrás da porta foi proibida por conta da palavra “pelos”; Geni e o zepelim, devido ao termo “bosta”. Chico, então, resolveu criar o personagem Julinho da Adelaide. Mais que um pseudônimo, Julinho tinha uma biografia própria e, em 1974, foi entrevistado por Mário prata, jornalista amigo de Chico. A matéria saiu no jornal Última Hora, com direito à foto da mãe do personagem, Dona Adelaide (a imagem era de uma africana, e foi tirada de uma enciclopédia, pertencente a sérgio Buarque). “O Chico Buarque está faturando em cima do meu nome”, dizia uma das chamadas. um ano após a matéria, quando o Jornal do Brasil revelou a farsa, a Censura começou a exigir cópias dos documentos dos compositores. (Bernardo Valença)

Balaio oS ÚLtiMoS PLAGiÁRioS

No ano que antecedeu sua morte, Jorge Luis Borges (1899-1986) gravou entrevistas com Osvaldo Ferrari, nas quais discutiram variados assuntos. Num diálogo sobre o filósofo Bertrand Russel, que rumou para a política, o escritor argentino comentou sobre o atraso das ideias neste campo, afirmando que os políticos seriam “os últimos plagiários, os últimos discípulos dos escritores, mas, geralmente, com um século de atraso ou um pouco mais”. (Adriana Dória Matos)

FRonteiRAS Romain Rolland, numa carta ao seu amigo Freud, perguntava-lhe sobre certo “sentimento oceânico”: uma sensação de pertencimento cósmico que o próprio Freud confessava não compreender. A paixão, sobretudo a paixão carnal, parece essa tentativa de romper a fronteira irredutível que nos separa do Outro, integrando-o ao nosso próprio corpo. Tentativa vã: o fim incontornável de toda paixão amorosa é o retorno solitário às fronteiras do Eu. (Flávio Brayner)

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“LAnce” dA PRiMeiRA dAMA Depois de ter sido o único jornalista brasileiro a presenciar a aflição do presidente João goulart na sua volta da Europa ao Brasil, Zuenir Ventura flagrou algo mais inusitado. Em Viena, parado numa calçada com sua máquina fotográfica Rolleyflex, viu um carro oficial estacionar na sua frente. uma mulher de óculos escuros, ao descer, deu um “lance” no mesmo momento em que, instintivamente, Zuenir clicou a máquina. Era a primeira dama dos Estados unidos, Jacqueline Kennedy, “Ou melhor, era a calcinha branca de Jacqueline Kennedy, já que a peça, como pude ver, aparecia em melhor ângulo do que a própria dama que a vestia”, conta no seu livro Minhas histórias dos outros. Depois de revelada, com muita cautela para não cair em mãos erradas, a foto se perdeu no arquivo do jornalista. (BV)

cRiAtuRAS

AS duPLAS de cAetAno Caetano Veloso sempre foi de dividir o palco com artistas dos estilos mais variados. Nos últimos tempos, já cantou com Roberto Carlos, sandy (da antiga dupla sandy & Junior), Alexandre pires. Em 1973, a gravadora phonogram (hoje universal Music) resolveu fazer uma série de shows com o objetivo de mostrar o potencial de seus músicos. As apresentações eram realizadas em dupla e Caetano escolheu o cantor brega Odair José. O público – que, no mesmo festival, tinha vaiado Elis Regina, acusando-a de nacionalista – também se voltou contra a dupla. Em contrapartida, Caetano falou: “Não há nada mais Z que um público classe A”. (BV)

nARRAtiVAS ViSuAiS

Quem pensa que histórias só são contadas em textos, precisa conhecer o trabalho de Duane Michals. Numa série de ensaios em preto e branco, que desenvolveu nos anos 1980 e que hoje são referências no uso que se pode fazer da relação entre texto e imagem, o fotógrafo norte-americano constrói universos fabulosos, surrealistas, em que a imaginação e as citações à história da arte são sutilmente elaboradas. Mesmo com os ótimos resultados que a expansão do campo fotográfico tem encontrado hoje, a obra desse artista continua fascinante, como todos os clássicos. (ADM)

Francis Bacon, 100 anos de nascimento do artista Por cárcamo

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arte religião no final de novembro, o papa Bento XVI recebeu artistas de variados segmentos na Capela Sistina, aquela onde Michelangelo pintou o toque de dedos entre Deus e o Homem. Seu gesto lembrava duas tentativas de aproximação da Igreja com a comunidade artística, ocorridas num século 20 progressivamente laico e marcadamente cético: um encontro semelhante promovido em 1964, no mesmo local, por Paulo VI e a publicação de uma carta de João Paulo II aos artistas, há 10 anos. Esses eventos sinalizam a vontade dos pontífices de estabelecerem um diálogo com a arte, em tempos nos quais essa parece uma tarefa árdua, sobretudo no que diz respeito às expectativas dos interlocutores. Como a arte tem expressado o interesse pelo divino e metafísico neste século 21? Onde isso se manifesta explicitamente? O ponto de partida dessas e de outras indagações foi a atitude de Bento XVI e, para discuti-las, foram convidados colaboradores que se detiveram nos campos artísticos já estabelecidos. O resultado desse intento, o leitor encontrará nas páginas que se seguem.

Um elo desfeito, ou nem tanto? continente dezembro 2009 | 23

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arte e religião Vestígios de uma relação que já foi mais próxima, mas ainda não se extinguiu texto Daniel Piza

arte e religião já estiveram bem

próximas, principalmente na Idade Média, no Renascimento e no Barroco, se pensarmos no cristianismo – e no fato de que uma de suas distinções em relação ao judaísmo e ao islamismo, por exemplo, foi o incentivo à representação visual de divindades. Na Antiguidade, claro, os gregos já haviam tratado de levar para artes como escultura e teatro as questões e o imaginário da religiosidade. Estudiosos como Eric Auerbach e Harold Bloom viram nessa proximidade uma vocação da arte para uma condição de “gnose”, ou seja, de conhecimento do invisível, de visualização do sobrenatural, como se fosse uma espécie de religião sem dogma. Foi há menos de 250 anos que a arte começou a dar menos ênfase aos temas do passado greco-cristão e a retratar, como Goya, o tempo presente e as pessoas comuns. Mesmo

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anselM KieFeR

Artista alemão, para quem a tradição é inescapável, carrega sua obra de força melancólica

como o pintor alemão Anselm Kiefer. Em sua pintura, as relações do homem com a tradição e com o cosmos são os temas mais frequentes, e sobre eles Kiefer se debruça com uma força melancólica, que flerta com o teor apocalíptico e ao mesmo tempo lhe resiste. Ele não é um conservador no sentido de outro grande artista modernista, T.S. Eliot, para quem a tradição é inescapável e ao poeta cabe comentá-la para renová-la, jamais menosprezar seu peso. Kiefer, principalmente em trabalhos mais recentes, como A queda das estrelas, parece dizer que o indivíduo deve aprender a conviver com a solidão, com a ausência de referências fixas. Em muitos artistas de primeira linha encontramos temas mitológicos e bíblicos, como Cy Twombly, que revisitou lendas como a da sacerdotisa Hero e seu amor suicida por Leandro, ou em James Turrell,

apesar da difusão do laicismo no ocidente, as questões religiosas ainda motivam as artes contemporâneas assim, o diálogo segue sempre latente em vários aspectos – sobretudo, pela força da tradição – e periodicamente ressurge à tona, em obras isoladas, nem por isso menos relevantes. E nos últimos anos não tem sido diferente, ainda que no século 21 mais gente venha se declarando não religiosa. Antes de mais nada, vivemos ainda debaixo do grande, retalhado e meio puído chapéu da modernidade, especialmente dos movimentos modernistas de 100 anos atrás. E ali o drama do homem individualista, desgarrado da certeza clássica – “exilado dos deuses”, segundo o ensaísta italiano Claudio Magris –, é assunto constante, como no Angelus novus de Paul Klee, anjo que aparenta querer reunir os fragmentos do passado para poder seguir adiante. Entre os artistas contemporâneos, há alguns exemplos que nitidamente se detêm sobre o mesmo paradoxo,

um quaker que lida sempre com a questão celestial em instalações onde a interação da luz com o ambiente é central. Mas, assim como em Kiefer, já não se trata de uma exaltação da ordem sagrada nem de seu oposto, o catastrofismo que se traduziu em guerras e holocaustos (e na frase de Adorno de que a poesia não seria possível depois de Auschwitz). Isso vale também para um cineasta como Kieslowski, extremamente influente, que nos anos 1980 e 1990 fez um Decálogo e uma Trilogia das cores em que, sobretudo no primeiro caso, buscou identificar a moralidade cristã sob os dramas contemporâneos. Em outros criadores há uma posição semelhante, embora mais contida, menos ostensiva. O escritor John Updike, por exemplo, sempre levou a visão jansenista de Karl Barth para seus contos e romances, em que a fé se torna uma espécie de metáfora oposta

à atomização urbana. O brasileiro João Ubaldo, em seu romance mais recente, O albatroz azul, também se queixou do mundo materialista e científico em que viveríamos.

teMas oBseDantes

No entanto, em alguns casos a religião também se manifesta na estética atual com os mesmos extremismos de outrora. Um cineasta como Lars Von Trier, em obras como Anticristo, é obcecado por questões da tradição religiosa, como a visão do feminino na Idade Média. A personagem de Charlotte Gainsbourg vive um pesadelo no isolamento de uma floresta que remete às bruxas que estuda nos livros, como se a culpa pela perda do filho só pudesse ser expurgada num grand guignol de vingança e desespero. Outro cineasta para quem os fenômenos inexplicáveis têm uma carga divina – e paranóica – é o indiano Shyamalan, de A vila. Por sua vez, um escritor como José Saramago parte da religião para negá-la, para associá-la a guerras e outros males da atualidade. Depois de seu O Evangelho segundo Jesus Cristo, voltou agora ao tema em Caim. O curioso é que, a exemplo de alguns evolucionistas como Richard Dawkins, ele às vezes soa religioso em sua fixação no tema. Além disso, é lido por milhares de leitores cristãos como se não fosse tão ácido crítico da religiosidade. Outro artista para quem a condição humana só é pensada do ponto de vista da herança cristã é o dramaturgo Tony Kushner, que, ele, sim, pareceu recriar o Angelus de Klee em sua peça Angels in America. Raro mesmo é encontrar um trabalho como o do compositor Arvo Pärt, de obras como Fratres e In principio. Pärt costuma ser descrito como um minimalista, mas sua música é toda voltada para o diálogo com estruturas maximalistas, com as formas grandiloquentes da arte sacra, como as de Bach. Por meio da repetição com pequenas modulações ou alterações de andamento, Pärt como que comprime a retórica de cantatas e réquiens e nelas encontra uma essência; e, por mais triste ou dramática que possa soar, sua linguagem de alguma forma recupera

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o modismo esotérico presente na cultura atual mostra o anseio das pessoas por alguma forma de transcendência como Harry Potter, de J.K. Rowling, e O código da Vinci, de Dan Brown, para não falar das adaptações de um livro dos anos 1930, O senhor dos anéis, de J.R.R. Tolkien, e muitas mais. Há também o brasileiro Paulo Coelho, de Diário de um mago e O alquimista, embora hoje não faça o mesmo sucesso, e a nova onda de livros e filmes sobre vampiros, como Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Os vampiros e os bruxos, em suma, estão em alta, talvez na esteira de acontecimentos como o 11 de setembro de 2001, que reforçou a fantasia como entretenimento, o esoterismo como escapismo. São obras que estão mais para refrigerante do que para Dante; ainda assim, mostram a força que a aproximação entre arte & religião pode ter, afinal, é uma história que, embora contada de modo mais longevo no passado, ainda parece ter um longo futuro.

arte imagens sobre a fé na contemporaneidade texto Júlia Rebouças reprodução

uma dimensão afirmativa que hoje dificilmente a arte – de preocupação religiosa ou não – se arrisca a abordar. No universo pop, por sinal, podemos encontrar ideia equivalente nas canções do “bardo” Leonard Cohen, com seu canto falado de versos muitas vezes memoráveis; em Hallelujah, por exemplo, ele menciona uma “fria e quebrada aleluia” ao se referir a uma garota – de qualquer forma, uma aleluia escassa no pop de qualquer país hoje em dia. A escassez de obras que dialoguem esteticamente com a religião, como as de Kiefer, Kieslowski e Pärt, não impede que o sentimento religioso esteja impregnado nas mais diversas expressões culturais do nosso tempo, como credulidade, como defesa da fé em forças superiores ou ocultas. Se lembrarmos alguns dos maiores sucessos da literatura e do cinema nos últimos 10 ou 12 anos, vamos encontrar livros que viraram filmes

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Qualquer pergunta sobre o vínculo

entre arte contemporânea e religião deveria vir acompanhada por uma pergunta anterior, aquela sobre o que entendemos por religião e como a vivenciamos nos dias de hoje. As respostas certamente não surgiriam com naturalidade. No rescaldo de uma intensa racionalização de crenças, talvez estejamos procurando pontos firmes para nos apoiar no que parece ser um vácuo de sentido. Neste tempo de relativizações e de uma religiosidade atenuada por diversos filtros sociais e culturais, o contrafluxo de posturas religiosas radicais complexifica o panorama ao qual a arte muitas vezes vê-se compelida a reagir. O traço controverso deste tema tão amplo faz deste texto apenas um pincelar de considerações. A relação estabelecida entre a arte e a religião de hoje é ambivalente e

polêmica, embora esta tensão entre as partes não seja uma qualidade deste período. Se arte e religião parecem estar dissociadas é porque entendemos que essa ligação, ora perdida, resultava de conjunturas sociais objetivas de momentos da história, diferenciando-se do que poderia ser uma função da arte, uma missão. A religião seria, então, para a arte contemporânea, um assunto a ser lido com criticidade, mais como peça de um sistema social com diversos componentes, menos como um filtro de compreensão do mundo pelo artista, ou sua inspiração. Em 1965, na Argentina, uma imagem de Jesus Cristo foi crucificada num avião de caça norte-americano, modelo F-107, o mesmo usado nos bombardeios dos Estados Unidos ao Vietnã. Civilização ocidental e cristã é de autoria de León Ferrari (1920),

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MeteoRo

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CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL E CRISTÃ

La nona ora é uma instalação que provocou reações apaixonadas e rendeu fortuna ao autor, o italiano Maurizio Cattelan A Guerra no Vietnã era o alvo da crítica feita pelo argentino León Ferrari com esta obra, de 1965

a falta de sentido e a relativização que marcam o pensamento pós-moderno mudou a forma dos artistas se relacionarem com a fé

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nascido em Buenos Aires, que, crítico à Guerra do Vietnã, associa a imagem de Cristo à ação bélica. A obra tornouse um ícone da arte latino-americana e Ferrari consolidou-se como uma das vozes mais relevantes na crítica à Igreja e a todas as instâncias de poder capazes de dominar, torturar e oprimir o sujeito. Sua produção arregimenta uma forte oposição às práticas cristãs que, para ele, incutem culpa no sujeito e o ameaçam sob a pena do inferno. Em 2004, uma exposição retrospectiva de Ferrari, no Centro Cultural Recoleta, foi censurada e fechada depois de acusada de blasfêmia pelo arcebispo da cidade. O debate sobre religião na arte contemporânea está comumente abrigado sob a guarda das instituições artísticas, tensionado assim pelas amarras das quais o espaço institucional não consegue se

pela ação do meteorito, espalham-se no chão vermelho. Cattelan ganhou destaque na arte contemporânea com suas esculturas de aspectos realistas. A partir do final da década de 1990, dedicou-se à produção de obras que retratavam personalidades públicas em situações improváveis, como em Him (2001), figura de cera em que Adolf Hitler aparece ajoelhado, com as mãos unidas como se fizesse uma oração. A produção de Cattelan não está relacionada apenas a uma temática religiosa, mas a uma estratégia de rendição de autoridades ligadas ao poder – incluindo neste rol o papa – fazendo-as tombar, ajoelhar-se, desestabilizar-se. Quando a obra La nona ora foi exibida em Varsóvia, em 2000, dois membros do Parlamento da Polônia foram até a instalação, removeram o meteorito e tentaram levantar a escultura do Papa. A mostra foi fechada após o incidente. Em 2001,

desvencilhar. Em 2006, no Brasil, um outro ato de censura teve lugar no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, quando a obra Desenhando com terços (2000-2003), da artista Márcia X (1959-2005), foi retirada da exposição Erótica – Os sentidos na arte. Os acionistas do banco patrocinador consideraram a obra ofensiva ao catolicismo e conseguiram, sem grandes esforços, que o trabalho saísse da mostra. O motivo da suposta injúria é que terços formavam desenhos de pênis.

HipeR-RealisMo e consUMo

Em 1999, o artista italiano Maurizio Cattelan (1960) produziu a instalação La nona ora, em que a figura do então Papa João Paulo II é atingida por um meteorito e encontra-se caída no chão. Estilhaços de vidro, supostamente arrancados da cúpula

a peça fez parte da Bienal de Veneza e no mesmo ano foi vendida pela casa de leilões Christie’s, atingindo a marca de 886 mil dólares. Considerando que o consumo é uma das formas de fruição preponderantes de nosso tempo, tornou-se comum o esvaziamento dos símbolos religiosos pelas propostas artísticas, reduzindo-os à sua iconografia. Nesses casos, a discussão não seria endereçada aos temas da igreja, mas à massificação das imagens, entre elas as sagradas. Obras do artista Nelson Leirner (1932), como O grande desfile (1984), O grande combate (1985) e O grande enterro (1986), trazem centenas de imagens de santos e entidades do candomblé, enfileiradas ao lado de bonecos e animais de plástico, soldadinhos. A organização das figuras sob a forma de aglomerados está destituída de

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É difícil encontrar na arte contemporânea a adoção acrítica de valores religiosos, sem elementos de ceticismo sensíveis, onde texturas, aromas e transparências procuram o equilíbrio. Nessa nova espiritualidade, a procura passa a ser a de um mundo interior e de sua sensibilidade orgânica. Nave deusa (1998) cria, nas palavras de Neto, um “corpo habitat”, e estimula os visitantes a uma sensação de outra pele, enquanto aguça os sentidos pelo cheiro de cravo e pela estabilidade harmoniosa de suas “patas”, que pendem ao peso da areia. Embora Ernesto Neto não filie sua produção a um pensamento religioso, a vivência de suas obras acaba levando a esse lugar. Para a arte contemporânea, o conteúdo espiritual estaria, quem sabe, no que perfura a superficialidade imagética e alcança o invisível.

arquitetura as formas da crença TEXTO Fábio Lucas

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qualquer hierarquia, emparelhando universos distintos e suas narrativas para sugerir, entre outras coisas, a divindade do kitsch. Essa destituição do sentido de sagrado parece ser parte do desejo de identificação do artista com o ser ateu e da instituição museológica com o espaço laico, talvez como herança de nossa modernidade racional e progressista. No entanto, traços de uma espiritualidade sincrética e/ ou difusa são esboçados e a arte se reveste dessa crença fluida para falar sobre a procura por algo que construa sentido numa cultura ameaçada pelo vazio, pelas distâncias afetivas e pelas barreiras sociais. Por mais que seja raro encontrar na arte contemporânea manifestações puras e simples de fé religiosa e adesão aos discursos dogmáticos, a arte revestida de espiritualidade vai procurar no corpo, em sua conexão com o transcendental, um lugar para a alma. Obras como as naves de Ernesto Neto (1964) funcionariam como esses templos de percepção. A experiência estaria centrada nos espaços

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a maioria das pessoas, quando

pensa numa igreja, lembra aquele desenho de criança que fazia na escola: uma casa comum, de linhas fáceis, a forma desvendada em poucas retas, com o símbolo da cruz sobre a cúpula, feito uma antena espiritual. Essa imagem arquetípica não vem do nada. Pode mesmo ser encontrada, sem retoques, isolada, valorizada pelo vazio circundante, nas praças principais das cidadezinhas do interior de boa parte do mundo. O arquétipo é a fonte do desenho de criança, a memória ideal presente individualmente, projetada sobre o papel quando solicitada a habitar o real. Um modelo original, na concepção da filosofia platônica, ou um símbolo ancestral transmitido democraticamente ao inconsciente coletivo, para a psicanálise do suíço Carl Gustav Jung, segundo o qual os arquétipos refletem-se nas produções culturais do engenho humano. Os famosos monumentos religiosos expressam a ideia consagrada dos locais de culto a um ser superior, necessário, infinito e eterno, que

pastoreia a condição inferior, contingente e finita dos homens. E, ainda, espelham a influência cultural da formação religiosa nas artes e na arquitetura. Segundo o arquiteto norte-americano Duncan Stroik, essa influência se estendeu por mais de 1.500 anos, até a Segunda Guerra Mundial, momento a partir do qual a cultura secular teria invertido o jogo e começado a interferir com maior peso nos projetos religiosos, através dos traços modernistas que buscam romper com o passado, e não preservá-lo. No entanto, Stroik afirma que é preciso salvaguardar as lições da arquitetura cristã. “Assim como fazer teologia significa aprender com o passado, desenhar para a arquitetura católica é ser inspirado pela tradição e pelas expressões da arquitetura religiosa testadas pelo tempo.” Apesar da notória resistência que marca a história vivida, a Igreja, enquanto instituição, tem acompanhado e, em alguns casos, apoiado a remodelação simbólica representada pela evolução arquitetônica das “casas de Deus”.

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MonUMental

Basílica de Nossa Senhora Aparecida, inaugurada em 1980, evidencia elementos construtivos da tradição católica

igrejas foi definido e demarcado na Baixa Idade Média, por volta do século 12, como românico. A partir de então, a chamada fachada “tripartítica” dominaria as construções das igrejas cristãs latinas: as torres ladeando uma nave central, com o altar ao fundo. “O século 20 tratou de romper com esse modelo canônico de forma para as igrejas”, corrobora o professor Diniz. “A forma das igrejas passou por transformações, mas a principal transformação é do espaço da própria igreja, de templo para cenário”, define o historiador. “Igrejas suntuosas não são novidades, o que difere na arquitetura contemporânea é que as igrejas se tornaram casas de espetáculo, cenários faustosos,

o século passado viu uma revolução na forma como a estrutura arquitetônica das igrejas é concebida Um exemplo é a Igreja da Santíssima Trindade no Santuário de Fátima, considerada o quarto maior templo católico do planeta, com capacidade para receber mais de 8.600 pessoas. Sua construção teve o custo de 70 milhões de euros e foi inaugurada em 2007. O projeto é do arquiteto grego Alexandros Tombazis, tendo o formato de um círculo para quem vê de fora, e de um quadrado para quem está dentro. Para Tombazis, a arquitetura celebra o encontro da arte com a técnica, e essa dupla carcaterística foi transferida para o projeto: “Já se disse que Deus está no pormenor. Por isso procuro levar os primeiros e vagos traços conceituais até ao último pormenor”, afirmou o arquiteto, em entrevista divulgada à época da inauguração da Nova Igreja, como é chamada.

RUptURa MoDeRna

De acordo com o historiador e mestre em comunicação Paulo Diniz, professor de História da Arquitetura e Arquitetura Contemporânea da Faupe e da Faculdade Damas, o espaço que se consolidou como sendo o das

tecnológicos, e jogo cênico.” Para Paulo Diniz, a forma em si já não inspira mais cuidados, o que interessa é a capacidade de fiéis que os templos possam comportar. O que não é bom, na visão de muitos, como o arquiteto canadense Bill Menzel: “É um risco que o culto vire uma experiência de entretenimento, ao invés de uma experiência participativa compartilhada em comunidade”, lamenta Menzel.

espaÇo e litURGia

Especialista em arquitetura religiosa, Regina Machado vê duas vertentes no atual cenário, uma que procura as características arquitetônicas do passado glorioso da Igreja, como se bastasse imitar uma característica externa para que esta contaminasse a instituição; e outra que pretende quebrar com tudo que é tradicional e enveredar por projetos “autorais”, modernos, revolucionários. Em sua empresa, a Reúna Arquitetos Associados, Regina desenvolve há 25 anos projetos quase que exclusivamente para a

Igreja Católica, como a Catedral de São Mateus, no Espírito Santo, e a reforma da Basílica de Aparecida, além de capelas por todo o Brasil. “Procuramos a contemporaneidade em nossos projetos, mas incorporando características da tradição católica brasileira para que o fiel encontre referências no espaço, na torre, no arco, no alpendre, no telhado de duas águas, no piso”, diz ela. “Mais que se preocupar com características arquitetônicas próprias, de outra época ou atualizada, a arquitetura deve estar obrigatoriamente a serviço da ação que se desenvolve dentro da Igreja. É a liturgia que manda no espaço.” A importância da arquitetura para a religião pode ser inferida pelas palavras de Duncan Stroik: “A igreja é uma oração que construímos. O que as nossas igrejas dizem de nós? Elas dizem que a Igreja universal é bela, permanente e inspiradora – ou que é comum, temporária e casual?”, critica o arquiteto americano, um dos responsáveis pela reformulação do currículo de arquitetura clássica da Universidade de Notre Dame, nos anos 1990, e para quem a edificação auxilia as pessoas a rezar, devendo ser valorizada como o lugar dedicado à recepção dos sacramentos. Na dialética entre o passado e o futuro, que encontramos na arquitetura religiosa, está também a relação entre o conforto do corpo físico e o desconforto espiritual, do corpo que se lança para além do universo material. “As marcas do tempo têm que ser preservadas na produção de qualquer sociedade. As obras arquitetônicas e artísticas incluem-se neste rol. São história”, resume e professora da Faupe, Celiane de Morais. “Porém, com a modernidade, há uma mudança de valores e concepções que envolvem a espiritualidade. Não precisamos mais de templos suntuosos para viver experiências transcendentais e ter o encontro com Deus. Esta experiência requer ambiente onde se respire tranquilidade, simplicidade, beleza natural e que favoreça a interiorização. Assim, os projetos de arquitetura para a vivência espiritual no século 21 devem refletir essa busca interior do homem atual”, acredita Celiane.

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cinema entre a devoção e a irreverência

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texto Kléber Mendonça Filho

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Durante o processo de lançamento

do seu último filme, o disaster movie de enorme apelo popular, 2012 (EUA, 2009), o alemão radicado em Hollywood, Roland Emmerich, falou textualmente que mostrar a destruição fantasiosa de símbolos do catolicismo como o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, ou o próprio Vaticano, “É permitido dentro de uma visão ocidental de liberdade de expressão”, mas que preferiu não mostrar, por exemplo, Meca sendo varrida por um tsunami. O cuidado confesso de Emmerich (Independence day) sobre a representação de símbolos do Islã, numa obra de entretenimento para as massas, revela não apenas tensões culturais e políticas após 11 de Setembro, como nos leva a um

dos tabus mais ciclicamente discutidos no cinema como representação artística do mundo e do ser humano: a religião. Como um artista pode ser honesto com a sua crença (ou falta de) através de uma arte, questionando dogmas que não são normalmente vistos, dada a carga de fé e respeito que interpretações da crença em Deus inspiram? Nesses últimos 30 anos, filmes vieram em ciclos de questionamento e dúvida, alguns ficaram como monumentos às incertezas mais ou menos constantes do homem. Curiosamente, esses filmes de teor iconoclasta aplicado à ideia de religião e crença parecem atrair a ira de uma ala notadamente conservadora de direita.

É uma ala muito distinta da composta por críticos ferrenhos de esquerda que se encarregam de protestar contra filmes controvertidos marcados por questões de gênero, raça e violência, como Vestida para matar (Dressed to kill, 1980), de Brian de Palma, atacado por “erotizar a violência contra mulheres”, Parceiros da noite (Cruising, 1981), de William Friedkin, por “demonizar a comunidade gay” ou Instinto selvagem (Basic instinct, 1992), de Paul Verhoeven, por “apresentar o lesbianismo como perversão sangrenta”. Curiosamente, a palavra “blasfêmia” é muito requisitada em alguns dos casos mais recorrentes de um cinema questionador da religião, especialmente a partir dos anos 1970. Liberdades maiores foram conquistadas, como

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BEN HUR

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MontY pYtHon

Filmagem de 1959 – a saga do judeu que se alia a um muçulmano para derrotar um romano materialista duas décadas depois do lançamento do heróico Ben Hur, chega às telas o paródico A vida de Brian

uma represa que estourou. Ao longo de décadas, a noção de religião filmada era pensada para atrair milhões de olhares devotos, das paixões de Cristo mudas aos épicos bíblicos de clara e evidente devoção religiosa, no discurso dos anos 1950, planejados para fisgar os olhares. Nesse sentido, basta citar o maior de todos eles, a refilmagem da Metro para Ben Hur (1959), de William Wyler, imensamente popular. Charlton Heston, o herói judeu, aliava-se a um muçulmano para derrotar um romano materialista. Ben Hur ainda era tocado pela força de Jesus Cristo.

cRUciFixos e Motocicletas

Parte do estouro percebido nos anos 1970 trouxe dois tipos de filmes. O

primeiro, obras que eram novidades inegáveis na maneira como abordavam questões e quebravam conceitos, mas que, no fundo, se revelavam devotas. Dois exemplos claros: Jesus Cristo superstar, de Norman Jewison, e O exorcista, de William Friedkin, ambos de 1973. O primeiro, uma ópera- rock pós-moderna (hoje, curiosamente datada), recontava as últimas semanas de Jesus a partir de música pop e objetos de cena, como motocicletas e metralhadoras. Ousado na forma, mas fiel às escrituras. O segundo, o popular filme de horror com a muito comentada cena onde a garota possuída pelo demônio usa um crucifixo como objeto fálico na sua vagina. O Exorcista, no entanto, termina sendo uma história sobre o poder da fé e do catolicismo. Há também um outro tipo de filme, como A vida de Brian, do grupo inglês Monty Python. O ponto de vista claramente ateu não é disfarçado. Duas décadas depois de Ben Hur, em 1979, lá está Cristo novamente no sermão da montanha; desta vez, um dos espectadores, ali em pé, ao longe, grita rudemente: “Mais alto!”. A irreverência espetacular dos Pythons satiriza instituições sagradas (um leproso reclama da sua milagrosa cura, pois não tem mais como ganhar a vida), da Bíblia à própria existência de Deus, o fervor religioso que leva ao extremismo, numa era pré-11 de Setembro. Revendo o filme, hoje, tem-se a sensação de que tudo podia nos anos 1970. Banido na católica República da Irlanda durante anos, A vida de Brian mostra que ejetar “blasfêmias” filmadas de sociedades inteiras tornou-se prática comum no cinema.

intoleRância

Toda essa questão pode ser representada por dois incidentes nos anos 1980, com dois autores de primeira grandeza que viram projetos pessoais enfrentar a fúria conservadora. Foi uma fúria, em grande parte, cega, uma vez que os filmes parecem ter sido grosseiramente malinterpretados. Em 1985, o suíço Jean-Luc Godard lançou Je vous salue, Marie, e três anos depois, o americano Martin Scorsese, A última tentação de Cristo (The last temptation of Christ). No Brasil, Marie foi proibido no

território nacional em 1986, dois anos antes de a nova constituição abolir a censura no país, mesma constituição que permitiu a exibição do filme de Scorsese nos primeiros meses de 1989. Mesmo assim, a maior rede de exibição do Brasil, na época, o Grupo Severiano Ribeiro, não o programou em nenhum dos seus cinemas. Os dois filmes, obras de reinterpretação artística e pessoal do que já conhecemos nas escrituras, trazem fator perturbador para a ordem estabelecida: humanizaram Maria e Jesus, diminuindo a distância entre os signos e o homem. Relevante destacar que parte dessa humanização parece ganhar, nos filmes, a imagem da blasfêmia em momentos pontuais de

Distintas visões de mundo dos diretores permitiram que o cinema não apresentasse uma visão unívoca, dogmática nudez e sexo ali contidos. Godard foi acusado, entre outras coisas, de mostrar Maria como jogadora de basquete (!), parte das atividades de uma jovem parisiense cujo namorado é taxista e se chama José, e que recebe a notícia de que será mãe ainda virgem através um anjo que chega de avião. No caso de Scorsese, cineasta católico que chegou a ser seminarista na juventude, com A última tentação de Cristo (adaptado do livro de Nikos Kazantzakis), lançou, finalmente, um projeto pessoal que levara anos para filmar. Nele registrava algumas das suas principais questões como homem de fé, provável reflexo dele mesmo como pessoa. Talvez como o próprio Scorsese, que abandonou o seminário, o seu Jesus é tentado por Satanás a viver como homem terreno, casado com Maria Madalena até chegar à idade avançada. Um dos seus filmes mais fortes e ressonantes, livre para pensar sobre Deus e a vida, essa obra de Scorsese ilustra o duro trânsito que existe entre a arte e a religião num mundo marcado por intolerâncias várias.

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ALexANdre SeVero/JC IMAGeM

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Paulo II escreveu, há 10 anos, uma carta aos artistas e com frequência acolhia e assistia a apresentações artísticas no Vaticano e nas peregrinações pelo mundo. Não existe, a meu ver, separação entre a Igreja e os artistas, apenas não se tornou rotina o encontro realizado por Paulo VI. Acho maravilhosa a iniciativa do papa Bento XVI, sobretudo porque, deste encontro do dia 21 de novembro, na Capela Sistina, participam artistas (homens e mulheres) dos cinco continentes.

Entrevista

dom fernando saburido o arcebispo de olinda e Recife,

dom Fernando Saburido, não apenas vê com bons olhos o diálogo da Igreja com os artistas. Ele defende uma formação melhor dos padres no campo das artes. E, no próximo ano, revela, os seminaristas passarão a estudar na Universidade Católica de Pernambuco, que reestrutura os cursos de Filosofia e Teologia, e neles a arte terá lugar privilegiado. “A Igreja tem a responsabilidade de preservar grande patrimônio histórico e cultural”, completa. Em entrevista a Jaílson da Paz para a Continente, ao falar dos padres cantores, o arcebispo afirma que a função do sacerdote é evangelizar e não ceder à tentação de ser um pop star. continente Ao analisar a proposta de encontro do papa Bento XVI com os artistas, em novembro, o diretor de museus do Vaticano, Antonio Paolucci, afirmou que o encontro poderia ser um tipo de “reconciliação após um grande divórcio”. Quem contribuiu para essa separação: a Igreja ou os artistas? DoM FeRnanDo O último encontro do papa com os artistas aconteceu em 1964, com Paulo VI. O papa João

continente Assim como no Vaticano, a Arquidiocese de Olinda e Recife não manteve, ao menos abertamente, diálogo com artistas no governo de dom José Cardoso. Já dom Helder costumava receber artistas na Igreja das Fronteiras e no Palácio dos Manguinhos. O senhor pretende reabrir esse diálogo? DoM FeRnanDo Acredito que esse diálogo nunca foi fechado. Em nossos encontros e assembleias de pastoral, por exemplo, frequentemente promovemos noites culturais, exatamente, para valorizar as expressões culturais da região. Terei todo o prazer em acolher os artistas, manter diálogo com eles e, sobretudo, estimular a arte, especialmente junto aos grupos de jovens. A arte e os esportes são de fundamental importância nos projetos de evangelização. continente Nos últimos anos, dois fatos chamaram a atenção na arquidiocese. Em Escada, o padre ordenou a retirada de azulejos seculares da casa paroquial, enquanto em Ponte dos Carvalhos, no Cabo, o padre mandou pintar de preto um painel dos anos 1960. Não é uma demonstração de despreparo dos sacerdotes para lidar com o patrimônio artístico e arquitetônico? DoM FeRnanDo Lamento o ocorrido! A Igreja tem a responsabilidade de preservar o patrimônio histórico e cultural, sobretudo nos seus templos. É importante que a diocese disponibilize assessoria para acompanhar a execução de projetos diocesanos e paroquiais. Desta forma, muitos constrangimentos serão evitados.

continente O senhor pensa em incluir aulas de arte na formação dos novos padres para evitar que se repitam histórias parecidas com as de Escada e Ponte dos Carvalhos? DoM FeRnanDo Estamos reestruturando a formação para os nossos seminaristas. Serão renovados os cursos de Filosofia e Teologia, que a partir de 2010 passarão a funcionar na Universidade Católica de Pernambuco, com acompanhamento de uma comissão formada por representantes das dioceses e congregações que mantiverem alunos nos cursos. A Arte será uma matéria que deverá ter lugar privilegiado no conjunto das disciplinas. continente De todas as artes, talvez o diálogo maior da Igreja, hoje, seja com a música. Como o senhor vê o momento atual, em que padres cantores ganham espaço na mídia brasileira e, de tanto se mostrarem, parecem pop stars? DoM FeRnanDo A missão principal do sacerdote é evangelizar. Para isso fazemos uso dos dons recebidos de Deus e que devem ser colocados a serviço dos irmãos. Se alguém tem o dom de cantar, que o faça a serviço da evangelização, testemunhando uma vida de verdadeiro discípulo de Jesus Cristo. A humildade, a solidariedade, a disponibilidade para o serviço são virtudes, entre outras, fundamentais na vida do “padre cantor” para que em momento algum ele ceda à tentação de ser pop star. Claro que, em geral, eles fogem desse tipo de tratamento. continente Depois dos padres Antonio Maria, Zeca e Marcelo Rossi, agora é a vez de padre Fábio de Melo. Em lugar de interpretar apenas músicas sacras, ele traz em seu último CD mais músicas do cancioneiro popular. Isso não confunde a figura e a missão do sacerdote com um artista laico? Ou o repertório do padre tem pouca relevância na evangelização? DoM FeRnanDo Existem muitas músicas do “cancioneiro popular” que se prestam perfeitamente para o trabalho de evangelização. É preciso, portanto, saber separar o joio do trigo. O mais seguro, porém, é que aconteça a preferência para os temas religiosos e pastorais.

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literatura o dia em que deus cessou o seu sopro divino texto Anco Márcio Tenório Vieira

no ensaio Dante e os modernos,

César Leal assinala que a “concepção arquitetônica” de A divina comédia “exige uma técnica de composição numerológica”. No poema de Dante Alighieri (1265-1321), observa Leal, os números “constituem estruturas primárias destinadas a sustentar a cadeia de símbolos e figuras alegóricas, através das quais o leitor entra em comunhão com o poeta e participa, assim, de sua viagem pelos mundos da transcendência”. Ao chamar a atenção do leitor para a presença dos números na obra de Dante (particularmente os numerais 3, 7, 9 e 10, que simbolizam a Trindade, os Pecados Capitas, as Sete Virtudes e a Suprema Sabedoria), César Leal demonstra, explícita ou implicitamente, o quanto A divina comédia é devedora da concepção teológica predominante na Idade Média Clássica (1000-1300). Todos esses símbolos e alegorias denotam um poeta inscrito na cosmologia cristã e, principalmente, defendendo uma estrutura poética como representação do mundo celeste. Assim, é menos pelo que é dito e mais pela

forma como se diz que Dante constrói uma obra que se urde com o sagrado. Porém, se Dante buscasse apenas expressar a religiosidade do seu tempo por meio dos códigos artísticos, ele seria somente o maior poeta da Idade Média Clássica. Logo, o que faz de seu poema um marco referencial da poesia ocidental ou ocidentalizada (ou o que a leva a espelhar tanto o nosso quanto o seu tempo), são, grosso modo, dois pontos. O primeiro se dá na maneira como Dante vai redimensionar a expressão do “eu” tal como se firmara na poesia medieval. No caso, tratava-se de um “eu” impessoal, objetivo e que expressava uma experiência textual. Ora, apesar da experiência de Dante ser também puramente textual, nem o seu “eu” enunciativo é impessoal (o poeta tem idade – 35 anos –, um amor nomeado – Beatriz – e um companheiro de viagem –Virgílio), muito menos ele cria artifícios de linguagem para que outrem possa “assumir” o lugar da sua imaginação e da sua “experiência” pelo mundo celeste. O segundo ponto é que, ao se inscrever no seu poema, cantando o mundo transcendente na primeira

pessoa do singular (e cantar, aqui, significa escolhas, subtrações, dar mais ênfase para determinada imagem em detrimento de outra), Dante começa a construir, no campo da literatura, o sujeito individual e, por sua vez, sinaliza para a experiência ou redescoberta da subjetividade. Sujeito individual esse e experiência da subjetividade essa que singularizarão as poéticas que doravante serão constituídas. Dessa forma, a obra de Dante é um divisor de águas entre duas concepções de mundo distintas. De um lado, forma e discurso estão inscritos dentro de um mesmo horizonte mental; de outro, ele rompe com certos princípios da tradição literária, a exemplo de arquétipos, símbolos e imagem temporais,

na poesia moderna, a razão substituiu a instituição religiosa como organizadora da realidade e dos valores morais apostando também na possibilidade do poeta recriar essa mesma tradição literária por meio da sua imaginação. Dante enuncia uma realidade que irá marcar toda a poesia moderna: a insolubilidade entre um mundo que gira em torno de Deus e outro que se move em torno do Ser; um mundo que toma a revelação como ação divina e o que vai lançar mão da Razão como instrumento de reflexão e negação dos seus princípios cosmogônicos. No meio desse turbilhão, a poesia moderna vai submergir numa crise: a da própria linguagem. Pois se na poesia de Dante linguagem e religiosidade são partes de um mesmo urdimento, de um mesmo tempo mítico, de modo que é por meio do verbo que o poeta pode, como se fosse um presciente, tocar o indizível e revelar suas verdades aos homens, na poesia moderna, diversamente, linguagem e religiosidade andam por caminhos opostos. E é por caminhar por vias distintas que a poesia moderna irá hesitar entre a disposição revolucionária de mudar o mundo e a linguagem e a disposição de voltar a um tempo mítico, religioso.

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con especial ti nen te#44 Tempo mítico esse que não apenas restabeleça o religare entre o homem e Deus e, por sua vez, recupere a inocência existente antes da Queda, como também lhe possibilite encontrar a chave que vai recuperar o Verbo primevo, aquele que irá lhe permitir urdir, mais uma vez, linguagem e religiosidade. Entre uma tentação e outra, o poeta moderno caminha entre uma religiosidade que prescinde da religião, pois não se imagina subordinando sua obra aos princípios de uma dada fé institucionalizada (como fizera Dante), e a nostalgia de uma crença religiosa na palavra como signo da revelação, da verdade encoberta, do moto-contínuo da imaginação. Quando poetas modernos, a exemplo de Jorge de Lima, Murilo Mendes e Bruno Tolentino, se autodefinem como poetas católicos, sinaliza-se aqui uma crise de mundo e, por sua vez, da palavra. Dante

a relação da poesia com a religiosidade hoje é necessariamente distinta da que se verifica em Dante jamais se definiria como tal, pois não poderia ser outra a sua condição, enquanto poeta do seu tempo. Já nossos contemporâneos precisam proclamar sua filiação religiosa e, ao fazê-la, denotam a cesura entre forma e discurso. Cesura que vem da consciência da insuficiência da linguagem, da crença no futuro como algo diverso do seu tempo presente e, principalmente, de que sua poética é resultado única e exclusivamente da sua subjetividade e imaginação. Se ainda é possível trazer para a poesia a religiosidade dos tempos míticos, é antes por meio do discurso do que pela forma. Esta, para dores de todos os que fazem uso da palavra, teve o seu canto do cisne no dia em que um poeta, há quase 700 anos, resolveu se perder em “uma selva escura”, para depois descobrir, após presenciar tantas dores e horrores, que é “o Amor que move o Sol e as mais estrelas”.

Resenha

diálogo entre o padre e o poeta não há registro de qualquer sociedade, em qualquer época, que tenha deixado de professar algum tipo de crença religiosa. O homem, dos primórdios à atualidade, mantém-se em diálogo constante com um Deus, ou muitos deles, em busca de respostas sobre a vida, a fé e, principalmente, a imortalidade. Nesta busca por religar-se ao divino, ou religare – termo latino do qual originou-se a palavra religião – um dos principais canais de “comunicação” é a arte. Em todas as suas manifestações, por todos os séculos, artistas tentaram traduzir ou desvendar o véu que afasta a humanidade da divindidade. No livro Entrelinhas, Dom Helder– Carlos Pena Filho, recém-lançado pela Companhia Editora de Pernambuco em parceria com o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC), os que se aventurarem pelas suas páginas vão se deparar com um diálogo delicado entre um pastor que transformou sua fé em poesia e um poeta que reuniu rebanhos com seus versos. Nele, dois homens que jamais se viram, mas que acreditavam na força da palavra e na possibilidade de com ela “elevar” a alma, “dialogam” sobre a beleza, a morte, o eterno e a aridez da vida: o poeta do azul, Carlos Pena Filho, e o pastor “vermelho” – como era chamado pelo Governo Militar – dom Helder Camara. O livro reflete o encantamento de dom Helder ao entrar em contato com a poesia de Carlos Pena Filho, morto precocemente aos 31 anos, em 1960, num acidente de carro. Ao ler Pena, como o chamavam os amigos, dom Helder também se aventurou pela poesia, pelas digressões sobre a eternidade e dureza agrestina. Pelo religar-se ao divino por intermédio dos versos e palavras.

Esse inusitado encontro começou em 1964, quando, ao assumir a Arquidiocese de Recife e Olinda, depois de uma estada no Rio de Janeiro, o cearense dom Helder, interessado em conhecer o Recife a fundo, em entender o espírito e a dor do povo local, pediu a amigos e auxiliares que o presenteassem com livros escritos por pernambucanos. Uma dessas colaboradoras, Christina Ribeiro, deu-lhe o Livro geral. Dom Helder não só adotou Pena como um dos seus poetas-mor, como encheu, à mão, as páginas do livro com vários comentários poéticos. Quarenta anos depois, tais páginas chegam ao público. Uma interlocução emocionada entre o que escreve Pena e o que responde dom Helder. Comunhão de “almas”, descrita por Bruno Ribeiro, diretor do IDHeC, da seguinte forma: “Eles se encontraram na paixão pelo Recife e Olinda, e por aqueles que nas suas ruas trafegam ou vivem, sofrem ou se divertem. Se encontraram no azul, que era a cor predileta do poeta e com a qual se coloriu muitos dos seus versos e sonetos. No azul do manto de Maria, uma das devoções de dom Helder”. Além dos fac-similes das anotações originais, a obra de 72 páginas e capa dura traz, também, introduções assinadas por Leonardo Boff e pelo poeta Marcus Accioly. No primeiro caso, o teólogo comenta os escritos do amigo, no segundo, o acadêmico discorre sobre a obra do poeta. Ricamente editado e ilustrado, o livro conta com a participação de 12 artistas pernambucanos: Francisco Brennand, José Claúdio, Abelardo da Hora, Romero de Andrade Lima, Luciano Pinheiro, Guita Charifker, Margot Monteiro, Tereza Costa Rêgo, George Barbosa, Tânia Carneiro Leão, Gil Vicente e Gilvan Samico. danielle romani

entrelinhas, Dom Helder-carlos pena Filho iDHec e cepe (oRG) ex-arcebispo cria poemas a partir da obra de Carlos pena

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teatro a cruz e o palco texto Fabiana Morais

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Da cruz de madeira fincada no

litoral brasileiro pelo Padre Anchieta até a cruz de espelhos na qual aparece amarrado o michê de luxo criado por João Silvério Trevisan em Hoje é dia de amor!, foram muitos os santos e demônios adentrando o palco nacional. Lugar de ascensão e expiação, o teatro é um dos lugares por excelência de uma ficção que, para purificar, tem de ser, muitas vezes, atroz. Para além do solo pátrio, pode-se afirmar que a ética religiosa/ mitológica responsável pela própria criação da encenação nunca foi deixada de lado. A dualidade santo/ demônio foi vista transmutada em pares como homem/ mulher; capitalismo/ socialismo; moral/ transgressão; ascetismo/ diversão. Como não associar a solidão claustrofóbica da espera do Godot que nunca vem ao próprio demônio moderno que é o medo de ficar só, do insucesso, da falta de perspectiva? Beckett, que nunca quis empregar um sentido religioso em seu texto, poderia concordar que sim. O fato é que não apenas o “teatro religioso” usado como instrumento de catequese pelas igrejas do país e do mundo merece ser encarado como local de exploração dos mandos e desmandos do céu e inferno. A redenção é, abertamente, um dos temas mais caros do teatro atual: no Brasil, Nelson Rodrigues e a famosa

o universo teatral foi sempre um lugar de propagação ou de discussão crítica das ideias religiosas em vários períodos modernidade inaugurada pelo seu Vestido de noiva iniciam de maneira inovadora a exploração da Paixão. Sexo (Diabo) contra Família (Deus), Desejo (Vida) versus Proibição (Morte). Fundamentalmente cristãs e patriarcais, as montagens de Nelson são alinhavadas com a culpa da transgressão – ou o desejo desta. Não por acaso, o recifense tinha pais dedicados à Igreja Batista e tias extremamente católicas. Essa herança, que marca profundamente sua obra, é vista de maneira ainda mais dramática em espetáculos como Anjo negro, repleto de referências à mitologia cristã. Como não lembrar uma culpada e desesperada Virgínia, a branca que mata os filhos para que estes não pareçam com o marido negro, Ismael? A pele escura causava desejo e repulsa na mulher que tinha outro homem como referência amorosa/ estética/ sentimental. Ele aparece no diálogo a seguir: “Outro dia, ouviu? Eu me lembrei de um rosto, mas não sabia

VESTIDO DE NOIVA

Montagem de 1976, da peça de Nelson rodrigues, exemplo da necessidade da redenção no teatro moderno

de quem era, não conseguia me lembrar do nome. Não havia meio. Depois, então, me lembrei – era o de Jesus, o rosto de Jesus (...) Ismael, quero que você me arranje um quadro de Jesus! Jesus não tem teu rosto, Jesus não tem teus olhos, não tem, Ismael!”. O marido só observa. Como concorrer com Ele – aliás, com a questionável e poderosa representação que fizemos d" Ele?

coRpo e sexUaliDaDe

Outro a provocar céus e, literalmente, homens, é Newton Moreno. Com uma espantosa delicadeza mesclada a uma violência de dois-pés-nas-caixas-dospeitos, ele olha o mundo particular do homossexualismo e conclui: Deus sabia de tudo e não fez nada, título de uma de suas primeiras montagens (2001). Nela, seis cenas curtas nos falam de amor – uma delas, lapada no ouvido, versa sobre a hipocrisia da Igreja Católica: em O confessionário, um padre gay é obrigado por um jovem transtornado a perdoálo de seus os seus pecados – caso não, o jovem promete revelar a todos a homossexualidade do religioso, sempre escondida sob a batina. Mais recente, a citada Hoje é dia de amor! aborda um dos mais respeitados períodos da Igreja – a Semana Santa – para também falar de homossexualismo. Aqui, um jovem michê de luxo toma o

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na obra teatral de ariano suassuna, a questão religiosa é tratada, simultaneamente, com respeito e humor que não há uma só maneira de acreditar em Cristo e negociar com ele. É possível falar em santidade quando não há comida em casa? Cobrar rigor e recolhimento àqueles que sempre caminharam com as unhas sujas? Como ser absolutamente fiel frente à fome? Ariano julga – com direito a tribunal, no Auto da Compadecida – e chega à conclusão de que homens e mulheres sofridos precisam ser observados com um olhar ético. Aqui, ele, devoto piedoso, se aproxima do atormentado e niilista Brecht, que costumava dizer algo como “Primeiro, a barriga. Depois, a moral”. Em ambos, nordestino e europeu, Deus pode ser temporariamente trocado por um prato cheio – ou mesmo ser substituído por este.

música mudam os meios, mantêm-se os vínculos texto Carlos Sandroni reprodução

lugar de Cristo em uma cruz, símbolo de seu sofrimento e da dor da perda de um amor que cometeu suicídio. É uma quinta-feira, dia em que a liturgia católica recomenda aos seus filhos recolhimento e contemplação: estamos a apenas algumas horas da morte de Filho de Deus. Como Jesus, sofre o rapaz que, ironia, ganha a vida sofrendo e fazendo sofrer – o sadomasoquismo é a embalagem de toda essa história vermelha. Mas o teatro atual nem sempre questiona Deus, que respira aliviado em obras como a de Ariano Suassuna, um dos dramaturgos nacionais que mais recorre ao Céu Divino e ao Inferno do Encourado para falar das próprias relações humanas – mais especificamente, dominantes e dominados. Mesmo recorrendo a um cristianismo mais “tradicional”, nordestino-medieval, com direito ao cheiro de enxofre do Coisa Ruim, Suassuna adiciona um tempero fundamental para moldar a religiosidade de suas peças: o humor. Com ele, consegue transformar questões da “Grande Teoria” em assuntos absolutamente cotidianos, mostrando

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o vínculo forte que une música e religião foi sublinhado por inúmeros musicólogos e etnomusicólogos. No Brasil, Mario de Andrade abordou longamente o assunto em seu livro Música de feitiçaria no Brasil. Nele, o escritor enfatiza o que chama de “poder coletivizador” da música, sua capacidade de fazer convergir atenções, movimentos e emoções de um grupo através do poder evocativo do som organizado. Essa capacidade – muito superior às das artes literárias ou visuais – torna a música um associado quase obrigatório de qualquer tipo de ritual coletivo. No livro citado, e também em obras como La musique et la transe, publicada em 1980 pelo francês Gilbert Rouget,

encontramos inúmeros exemplos dessa conexão, em civilizações da antiguidade e nos mais diversos povos do mundo atual. No caso do cristianismo tal como se desenvolveu no Ocidente, o vínculo não é menos forte. O canto gregoriano, cujos primeiros registros escritos nos chegam do século 9, marcava todos os momentos importantes da vida ritual na Idade Média, desde a missa até as horas litúrgicas reservadas aos monges. A ideologia modernista dos séculos 19 e 20 previu o fim das religiões – e por pouco não previu o fim da música. Se hoje em dia a primeira previsão revela-se inapelavelmente errada, no que se refere à segunda, não falta quem afirme, contra todas as evidências, que

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celeBRaÇÃo

Apesar de não serem propriamente considerados “música”, os cantos budistas para cerimônias fúnebres encontram admiradores na web

palavra para “salmo” em hebraico, e o texto provém do Livro dos salmos. O estilo musical do canto é baseado na chamada “cantilação” das Escrituras na tradição judaica, que Reich estudou nos anos 1970. Outros compositores que, desde as últimas décadas do século 20, vêm demonstrando a possibilidade de escrever música religiosa de concerto com grande capacidade de comunicação são o lituano Arvo Pärt e o polonês Henry Górecki, ambos cristãos.

canÇões popUlaRes

No Brasil, não foi apenas o cristianismo que serviu de inspiração para compositores eruditos (lembremos a Missa de São Sebastião, de Villa Lobos e da Missa nordestina, de Clóvis Pereira). A religião dos orixás também cumpriu esse papel, em obras como o oratório Candomblé, de José Siqueira, a Sinfonia dos orixás, de Almeida Prado, e a recentíssima Korin Orishá – Suíte afro-recifense (2009), de José Amaro Santos da Silva. Mas a música popular brasileira também serviu para a expressão religiosa. O antropólogo Reginaldo

a religião continua servindo com frequência como inspiração para compositores ligados à música erudita a música “propriamente dita” teria de fato acabado, em algum momento por volta da primeira metade do século 20. (Depois disso só teríamos duas “não músicas” simetricamente opostas: de um lado, não música pelo excesso, das vanguardas estéticas de Schoenberg para cá; de outro lado, não música pela insuficiência, as músicas comerciais de massa.) Mas o pior surdo é o que não quer ouvir. No âmbito da chamada “música erudita”, a religiosidade continua inspirando a criação de obras de grande valor. O americano Steve Reich, por exemplo, escreveu em 1981 a belíssima Tehillim, para quatro cantoras, madeiras, percussão, cordas e dois órgãos elétricos. O título emprega a

Prandi listou nada menos que 761 letras de canções populares gravadas no Brasil ao longo do século 20, contendo referências a orixás e outros elementos das religiões afro-brasileiras. A própria expressão “axé music”, apesar do sentido pejorativo que lhe é tantas vezes atribuído, atesta a vitalidade atual deste vínculo. E assim como as canções populares, ao falar do cotidiano, incluem naturalmente referências à religiosidade, as práticas religiosas também lançam mão da canção popular para conquistar e expressar a adesão dos fiéis. As religiões pentecostais, que tanto têm crescido no Brasil neste início de século, se notabilizam por fazer um uso reforçado da música, especialmente

de gêneros musicais cuja popularidade nasceu fora do âmbito religioso, mas que são reconvertidos graças às novas letras que lhes são atribuídas. Talvez uma das características mais marcantes da vida cultural neste início de século 21 seja a utilização da internet como meio de expressão e de circulação de conteúdos. Será que o vínculo entre música e religião resiste à prova do ciberespaço? Ao que tudo indica, sim. Por exemplo, o YouTube traz enorme quantidade de vídeos contendo exemplos de “chamada à oração” e de recitação cantada do Corão. (Faça a experiência fazendo buscas com palavras como muezzin ou reciting the Quran.) Os muçulmanos não consideram essas práticas religiosas como “música”, pois a palavra árabe musiqa, de origem latina, foi associada, no Oriente Médio, exclusivamente ao contexto profano. Mas tais práticas utilizam os sons com alturas relativamente estáveis, que no Ocidente costumam caracterizar nossa ideia de “música”. Cantos budistas, sufis, hinduístas e de inúmeras outras tradições religiosas também estão amplamente presentes na rede mundial de computadores.

canDoMBlÉ inteRnacional

A internacionalização do candomblé, fenômeno iniciado no final do século passado, que vem se acentuando conforme adentramos pelo século atual, levou consigo, é claro, a propagação da música do candomblé. Ao mesmo tempo, a mundialização da prática de tocar maracatu em grupo, que é ainda mais recente, contribuiu em parte para difundir pelo mundo rituais religiosos afro-brasileiros associados a este gênero musical. Assim, hoje é possível encontrar em Paris, por exemplo, grupos tocando maracatu, que reivindicam um certo grau de tradicionalidade pelo fato de realizarem rituais religiosos associados ao gênero. A globalização da cultura, portanto, mostra-se até agora perfeitamente compatível com a velha sintonia entre música e religião. Estamos apenas no início do século 21, mas a julgar por esses primeiros nove ou 10 anos, os vínculos que sempre uniram música e religião continuarão firmes e fortes.

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COLECIONISMO

tRoFÉU

Cônego Martins mantém em seu acervo objetos, arte postal e pinturas de Paulo Bruscky; mas também conserva variado conjunto de peças da cultura popular nordestina

Tudo começou com um Portinari Severino Martins Filho é hoje um dos importantes colecionadores privados da obra de Paulo Bruscky, artista que somente conheceu a partir de sua sala especial na Bienal de São Paulo texto Adriana Dória Matos Foto Paulo Melo Jr.

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Perfil

ele conta que foi ali, naquela

reprodução da pintura O lavrador de café, de Candido Portinari, que ganhou no Natal de 1978, quando era um garoto de 15 anos e professor do Mobral, que começou sua coleção de arte. O cartão foi emoldurado e hoje é um marco no seu vasto acervo, que inclui arte popular, abstracionistas e seu mais novo interesse, a obra multifacetada de Paulo Bruscky, de quem ele acredita ser um dos maiores colecionadores privados no Brasil, com cerca de 50 obras adquiridas recentemente. O viés colecionista deste homem de 46 anos talvez não fosse surpreendente se não se tratasse de um padre, ou melhor, de um cônego. Em 2002, Severino Martins Filho foi nomeado cura da Catedral Metropolitana de São Paulo, sendo o primeiro nordestino a assumir essa função. Ele nasceu numa família de 16 filhos no Planalto da Borborema, Agreste pernambucano, em São Joaquim do Monte, e não esquece a importância que para ele tiveram as aulas de educação artística no colégio carmelita de Camocim de São Félix, em que ele produzia pesquisas sobre períodos e estilos artísticos: “Foi quando tive as primeiras noções de história da arte”, pontua. Das aulas do ensino fundamental e da epifania oferecida pelo postal de

Portinari, Cônego Martins seguiu no seu interesse pela arte frequentando cursos teóricos e de História. Mas foram as amizades que o levaram para dentro do campo da arte. Nos anos 1980, ele conheceu a artista Wega Nery, que integrara nos anos 1950 o Grupo Guanabara e era casada com um jornalista crítico de arte. Além de ter despertado no padre o interesse pela pintura abstrata, a amizade com Wega Nery também fomentou a aproximação com outros artistas. “Ajudei na montagem de uma exposição dela e, por isso, fiquei amigo de Emanuel Araújo, que organizou o livro da exposição.” Há 30 anos morando em São Paulo, foi há 20, portanto durante essa época, que Severino Martins foi ordenado padre. “Assim como o artista tem fases, o colecionador também”, responde ele, quando questionado sobre as ondas de interesse por que passa. “Meu olhar converge sempre para Pernambuco, mas eu não tenho foco, nem faço distinção. A arte é que me atrai, não importam os meios e estilos.” Cônego Martins afirma que, mesmo estando hoje integrado à cultura paulista – e seu sotaque é um indício imediato disso –, tem um sentimento de pertencimento e identidade com a cultura pernambucana, e é possível que isso justifique a imensa coleção de cerâmicas

e xilogravuras de artistas do Estado, que ele mantém. Mas o elo identitário mais forte que o padre preserva hoje com a produção artística do seu Estado natal chama-se Paulo Bruscky. Até 2004, quando o artista participou da Bienal de São Paulo, Cônego Martins não ouvira falar nele. Achou curiosa sua forma de trabalhar e, no ano passado, quando o MAC-USP apresentou uma individual do artista, teve outro alumbramento. “Gosto da crítica social presente em sua obra, do questionamento à própria arte, do ludismo e humorismo; da arte inserida na vida.” Nos primeiros encontros, ele não se apresentou a Bruscky como padre; somente na terceira ou quarta visita ao ateliê é que revelou seu ofício. “Engraçado, mas acho que foi a partir desse momento que ficamos mais próximos”, acredita. Assim como ocorrera com Wega Nery e o Abstracionismo, foi através da obra de Paulo Bruscky que o Cônego Martins começou a interessar-se pela arte conceitual e pelos novos meios. Agora, ele exibe e comenta com alegria suas aquisições, regozija-se das peraltices do artista, dos jogos de palavras, das pequenas iluminações, sacadas dos objetos encontrados e dos acasos. Como se, para o pároco, Deus se manifestasse nas formas mais simples e insuspeitas.

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CASTELO Um sonho erguido no meio da cidade breve Há 10 anos, comerciante pesqueirense vem construindo monumento que tem entre suas referências arquitetônicas a obra de Gaudí, fortalezas medievais e símbolos da mitologia greco-romana teXto Danielle Romani FotoS Breno Laprovitera

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Pernambucanas ele pode não ser o mais bonito, o mais famoso, o maior, nem o único, afinal, 21 outros castelos estão espalhados pelo Brasil. Mas é, incontestavelmente, uma obra arquitetônica impactante, fabulosa, eclética, intrigante. Uma alegoria de dois mil metros quadrados em pleno Agreste pernambucano. Um

misto de igreja, palácio, castelo, fortaleza? Um delírio? Difícil defini-lo, pois em que outro lugar pode-se contemplar um “castelo” de cinco andares rodeado por ameias (muros semelhantes aos de fortificações), com 18 minaretes (torres encontradas nas mesquitas), “guardado” por 40 leões e 350

mulheres aladas, onde também poderão ser vistos, fixados nas paredes ou espalhados pelos jardins, elefantes, medusas, serpentes e jacarés, todos também alados? O Castelo de Pesqueira — como é chamada por alguns a construção que está sendo erguida há uma década por Edvonaldo Bezerra Torres, no bairro de Pedra Redonda, na cidade agrestina que fica a 215 quilômetros do Recife — dá margem a muitas interpretações e divagações. Mas o único consenso sobre ele é que, definitivamente, não se constitui uma unanimidade. Na opinião de alguns, é uma obra kitsch, excessiva, ostensiva. Na opinião de outros, um espaço místico, alegórico, fantástico, surreal, onírico. Até mesmo os profissionais de arquitetura confrontados com o “projeto” se inquietam com o que veem. “Trata-se de uma construção contemporânea, portanto, não pode ser enquadrada em nenhum estilo historicamente constituído, sob equívoco de cometermos um anacronismo. O próprio castelo tornase anacrônico do ponto de vista formal e funcional, pois emprega elementos retirados de tipos arquitetônicos monumentais do passado, a exemplo dos castelos medievais, que eram, ao mesmo tempo, uma fortaleza e a residência real ou senhorial e de sua corte”, explica a arquiteta e professora Aline Figueirôa, que há algumas semanas viajou com alunos a Pesqueira para examinar a construção. A também arquiteta Ana Rosa Sá Carneiro somente avistou o castelo de longe, há dois anos, quando visitou a cidade, e teve uma impressão distinta, mas ressalta que não chegou a visitar o espaço. A pedido da Continente, avaliou as fotos da construção realizadas para esta reportagem. “Apesar de sua aparência de certo modo grotesca, tem um pouco da arquitetura de Antoni Gaudí. A impressão que dá, quando se olha o objeto na paisagem, é de uma manifestação surrealista que parece emergir do solo e faz com que você se desloque do real para o imaginário, entre no mundo dos sonhos, da fantasia, do mistério. Ao mesmo tempo, admito a parcela de investigação científica do autor porque

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Páginas anteriores 1 fortAlezA

As ameias, muros usados em fortificações, guardam o castelo

Nestas Páginas 2 religiosidAde

Nas torres, símbolos das três religiões abraônicas: a Lua crescente muçulmana, a Cruz cristã e a Estrela judaica

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contrAste

A edificação se destaca e difere das casas e da arquitetura do entorno

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clArezA

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preciosismo

Internamente, nos andares superiores, vitrais coloridos e ambientes claros No térreo, único pavimento habitado, murais e móveis robustos Os móveis, com detalhes rebuscados, são desenhados por Edvonaldo Torres

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é uma história que se apresenta materialmente construída com formas e cores combinadas para causar essa transcendentalidade ou transferência do concreto para o abstrato, um mundo mágico”, descreveu a arquiteta.

de mitologiAs e gAUdÍs

A interpretação da arquiteta se aproxima do que o comerciante e bancário Edvonaldo Bezerra Torres, 47 anos, pretende transmitir com sua “obsessão”, como costuma definir o castelo, que desde 1999 constrói e reconstrói, consumindo grande parte das suas economias. Formado em matemática, administração e com o curso de Direito incompleto, Edvonaldo afirma ser um apaixonado por História e viagens, entre as quais destaca o percurso pelos castelos da Europa, a visita ao Taj Mahal, na Índia, e as várias idas a Barcelona, na Espanha, onde “esmiuçou” o patrimônio erguido por

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A impressão que dá, quando se olha o objeto na paisagem, é de uma manifestação surrealista que parece emergir do solo Antoni Gaudí. Dessas experiências resultaram quase todas as intervenções que fez no próprio castelo. Categórico, afirma que foi a Igreja Sagrada Família, parcialmente erguida por Gaudí, que o inspirou. “Resolvi que iria homenageá-lo”, conta Edvonaldo, que construiu os 18 minaretes do castelo exclusivamente em nome do “mestre”. “Ele morreu antes de concluí-los; eu os ergui aqui”, pontua. Além da obra do arquiteto espanhol, outras de suas referências constantes

são as colunas jônicas e os leões da Praça de São Marcos, em Veneza, e representações da mitologia grecoromana. Edvonaldo também pretende destacar na construção a tolerância religiosa. “Nas torres principais estão os símbolos das três maiores religiões abraônicas mundiais. Na mais alta, está a Cruz cristã. Nas outras duas, a Estrela de David judaica e a Lua Crescente muçulmana. O meu castelo é um libelo à tolerância e um apelo à paz”, afirma. Ele não revela o valor gasto na obra. Mas pelo porte da construção, que tem cinco andares, 45 metros de altura, oito quartos, 10 salas, 10 banheiros, 150 portas e janelas, mais de mil lâmpadas e 300 interruptores, e que consumiu mais de uma tonelada de tinta e cerca de 40 mil quilos de cimento – segundo contabilização dos operários contratados –, estima-se que tenham sido gastos valores na cifra dos milhões.

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Os minaretes, pinhas e colunas jônicas são recorrentes na construção Leões alados e anjos vigiam dia e noite a edificação Cerca de 350 figuras femininas aladas podem ser encontradas no local

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Répteis voadores se misturam a elefantes, medusas e serpentes

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Se externamente o castelo é abundante em referências, por dentro é limpo, composto por ambientes claros, de acabamentos na cor branca (parede e piso), que destacam o colorido sutil dos vitrais. A única área atualmente habitada é o térreo, onde Edvonaldo mora com a segunda esposa, Kaline. Esta área chama a atenção por destoar totalmente da parte superior: lá se podem conferir murais de entalhes em madeira, móveis robustos e rebuscados (desenhados pelo próprio Edvonaldo) e detalhes arquitetônicos que se confrontam com os dos outros pavimentos. O piso inferior é a casa original comprada há 20 anos por Edvonaldo, sobre a qual vem erguendo seu monumento.

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Nascido em Pesqueira, ele conta que foi criado em uma família muito pobre.

Adulto, trabalhou como funcionário público, até licenciar-se, dedicandose ao comércio. Há duas décadas, já casado e pai de dois filhos pequenos, pôde comprar a casa onde foi erguido o castelo, mas logo que se mudou para o local sua primeira mulher morreu. Com a perda, abandonou o espaço. Por 10 anos não pôs os pés lá. Quando retornou, já tinha em mente erguer o Castelo. Em volta da casa, que foi conservada, fixou 12 colunas, com três metros de profundidade e 60 cm² de largura. A “transformação” começou, segundo contam os operários, pelo jardim, onde foi fixado o primeiro leão alado. Em um recanto, há uma capela, que se assemelha a um mausoléu, sugerindo a indagação: Será que o castelo foi erguido, inicialmente, como uma homenagem à mulher morta, uma espécie de Taj-Mahal? O jardim, por sinal, será alvo das próximas investidas de Edvonaldo,

que pretende mudar “tudo”, como fez tantas vezes com o prédio principal. Antes que alguém pense que o comerciante decidiu, sozinho, erguer um prédio enorme sem consulta, um aviso: todo o projeto de engenharia foi assinado por um profissional habilitado. Apenas as “perfumarias”, os adereços, foram responsabilidades do proprietário. O tempo que falta para que o edifício seja finalizado? Edvonaldo estima em dois anos, mas sabe que é muito difícil prever... Apesar do dinheiro gasto, garante que assim que o castelo ficar pronto recomeça a vida em outro lugar. Pretende doar o espaço à cidade, uma vez que se tornou ponto turístico. “A única forma que tenho de me desligar do castelo é sair de lá.”

@ continenteonline Veja outras fotografias do Castelo de Pesqueira no site www.revistacontinente.com.br

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revoltas Dois líderes e duas formas de combater a escravidão O fim da escravatura pelo qual Agostinho Bezerra e Emiliano Munducuru lutaram só veio a acontecer 64 anos após suas heroicas mortes TEXTO Paulo Santos de Oliveira ILUSTRAÇÕES Libório Melo

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História

Foi o primeiro pensamento que sobreveio ao major Emiliano Munducuru, de madrugada, ainda maldesperto, ao tomar ciência da tragédia ocorrida na noite anterior. O dia pelo qual aguardara a vida inteira estava raiando, embora se apresentasse bastante chuvoso. “Marinheiros e caiados, todos hão de se acabar”, ele recitou, para si mesmo, os versos da quadrinha tão divulgada e repetida à boca pequena, pelas costas dos brancos, nas senzalas, no cais do porto e nos piores becos e quebradas do Recife. “Só os pretos e mulatos o Brasil hão de habitar.” Emiliano Felipe Benício, como muitos brasileiros do seu tempo, adotara um apelido indígena por patriotismo, para afrontar os europeus que humilhavam e exploravam os nativos, vindo aqui chupar a sua substância. Munducuru era o nome de uma tribo amazônica rebelde e muito valente; e ele fazia por não desmerecê-lo. Bem jovem, ainda, combatera nas tropas revolucionárias que proclamaram e mantiveram uma república em Pernambuco por 74 dias, em 1817. Quatro anos depois se metera em outro movimento, que de novo decretara a autonomia da província, na Convenção de Beberibe. Naquela ocasião, comandava o Segundo Batalhão de Caçadores da Divisão Republicana de Pernambuco, apelidado de “Montabrechas”, em plena Confederação do Equador. Pela terceira vez, em sete anos, os pernambucanos se levantavam pela democracia. Após a Independência, eles apoiaram o príncipe D. Pedro e o império nascente. Em 17 de outubro de 1822, na Matriz do Sacramento, continente dezembro 2009 | 49 8

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juraram perante Deus fidelidade à causa nacional e obediência às cortes brasilianas constituintes e legislativas, assim como a defesa da Pátria, da Liberdade e dos Direitos dos Cidadãos, vicent aut mori – até vencer ou morrer. Munducuru também fizera este juramento. E quando o jovem monarca, no ano seguinte, mandara fechar a Assembleia reunida no Rio de Janeiro e tentara enfiar pela goela do país abaixo uma constituição “digna dele mesmo”, ele igualmente se revoltara. “Como poderemos aceitar uma Carta que não fora outorgada pela Nação?”, clamava Frei Caneca. “Não é princípio conhecido pelas luzes do século que a Soberania, o poder sobre o qual não há outro, reside apenas na vontade do povo?” O major concordava com ele. Então o Imperador fizera tal e qual o pai dele, D. João VI, despachando uma esquadra para bloquear o porto do Recife. Obrigados pela fome, com bocas de fogo aos peitos, ele esperava dobrar aqueles rebeldes contumazes, e as naus comandadas pelo mercenário inglês John Taylor já

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História chegaram esbombardeando a cidade. Sem oficiais de marinha experientes em guerra naval, os pernambucanos, de novo, tal como em 1817, não puderam responder àquela ofensa. Contentaram-se em fazer navegar uma barca de registro para vigiar a barra do porto e impedir os galegos residentes na cidade de mandar alimentos e bebidas para os sitiantes. Aí, deu-se a tragédia. Na noite de 21 de junho de 1824, a barca foi abordada à traição e toda a sua tripulação covardemente assassinada.

MAtA-MARinHeiRo

A desgraça de uns, porém, costuma fazer a felicidade de outros. Munducuru entendeu que aquela poderia ser a linha torta pela qual a mão de Deus traçava o rumo certo para a nação dos homens e mulheres de pele tostada, a quem ele devia fidelidade primeira. Então correu para a sede do seu regimento, na Rua do Hospício, e despachou práticos para convocar todos os seus oficiais em suas casas, imediatamente. Também mandou convidar o major Agostinho Bezerra.

A chuva e a reunião começaram antes das seis da manhã. Munducuru não fez arrodeios. Quando a notícia da chacina da tripulação da barca se espalhar pelo bairro de Santo Antônio, onde vive a maioria dos pobres e remediados da cidade, ele alertou, essa malta, quase toda de gente escura, atravessará a ponte do Recife e atacará a colônia portuguesa, concentrada no velho bairro portuário. E com certeza promoverá o maior mata-marinheiro jamais ocorrido aqui – a não ser, é claro, que as tropas intervenham e impeçam a mortandade. Contudo, algo de muito bom poderia resultar de toda esta assuada, disse o major, e olhou para o seu convidado... Agostinho Bezerra era uma peça fundamental em seu plano. Tratava-se do único preto retinto naquela sala. Todos os demais eram mulatos, posto que pela cor ainda se dividiam os homens em armas, naquele tempo. Os corpos de primeira linha, os profissionais, também admitiam pardos até o grau de capitão, de major para cima só havia brancos. Mas a grande maioria das tropas era de milícias

formadas por brancos, mulatos ou pretos livres, separadamente; e os milicianos negros do Recife serviam no destacamento dos Henriques, cujo nome homenageava Henrique Dias, líder dos seus irmãos de cor na guerra contra os holandeses. Comandados pelo major Bezerra, eram os melhores treinados e equipados dentre todos; e, também, os que exibiam os mais belos uniformes, completamente brancos, sempre limpos e muito bemengomados e passados. A milícia dos Henriques fora dissolvida pelos portugueses após a revolução de 1817. Em seguida à Independência, porém, fora restabelecida, embora muita gente alva, principalmente os ricos, se apavorasse ao ver um preto armado, o que era natural. Mal transcorreram duas décadas desde o levante do Haiti, quando todos os caiados foram mortos ou expulsos de lá, esta sombra pairava sobre as Américas.

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A proposta apresentada por Munducuru foi de aproveitar a

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magnífica oportunidade surgida, embora perversamente, para dar início à verdadeira revolução no país: aquela que seria feita pelos homens e mulheres de cor, a maioria esmagadora da população! Porque, mesmo bem-intencionados, os líderes do atual movimento não teriam forças sequer para abolir o cativeiro. A República de 1817 não ousara fazê-lo, apenas alforriara os escravos engajados no exército. E essa Confederação somente proibira os navios negreiros de aportarem no Recife, mesmo assim um ato malrecebido pelos senhores de engenho e plantadores de algodão. Aquilo, em suma, não passava de outra festa de brancos. Por isso, em vez de reprimir a malta que iria matar marinheiros, eles deveriam, sim, juntar-se a ela. Depois dariam um jeito nos demais caiados. Unindose Montabrechas e Henriques ao populacho recifense, ninguém poderia detê-los, e, ao final daquele mesmo dia, estaria formada em Pernambuco a segunda república negra e livre das Américas...

O major finalizou declamando uma quadrinha de sua autoria: Qual eu imito Cristóvão Esse imortal haitiano Eia! Imitai seu povo Ó meu povo soberano! Os oficiais Montabrechas, depois de um curto empate, responderam ao seu comandante com vivas e salves a ele e ao povo negro e mulato do Brasil. Agostinho Bezerra pediu licença e saiu para consultar os mais graduados do seu regimento, sediados no forte de Cinco Pontas. Com pouco, Munducuru estava cruzando a ponte da Boa Vista e chegando ao bairro de Santo Antônio à frente das suas tropas, com a ralé furiosa na rabeira, mesmo embaixo de um tremendo toró. Ao entrar na Rua Nova, contudo, ele teve a maior surpresa da sua vida: os Henriques estavam lá, bem-armados e posicionados para barrar sua passagem... Foi Agostinho quem se adiantou, pedindo para dialogar. Disse a Emiliano que não concordava com massacre de civis inocentes e que

o Haiti não era aqui. O Brasil não podia ser igualado a uma ilhota caribenha, e, se eles fizessem aquilo, os portugueses, ingleses e demais brancos brasileiros se uniriam e lhes cairiam em cima, sem piedade. A liberdade dos escravos e a igualdade social haveriam de ser conquistadas aos poucos, era preciso ter paciência. De nada adiantaram os protestos de Munducuru frente à determinação e ao poderio bélico do major Bezerra, além da sua grande autoridade moral. Os Montabrechas voltaram para o quartel e os Henriques dispersaram a rafameia exaltada. Derrotada a Confederação do Equador, poucos meses depois, Emiliano conseguiu fugir para os Estados Unidos e de lá embarcou para a Venezuela, seguindo a trajetória feita pelo capitão Abreu e Lima, exilado de 1817. Igualmente ao conterrâneo que o antecedeu e com quem por lá se encontrou, engajouse nas tropas de Simón Bolívar; mas os seus rastros desapareceram da História, encobertos pela neve dos Andes. Agostinho também teve um final trágico, porém glorioso. Foi condenado à forca por D. Pedro, e nem as súplicas dos portugueses moradores no Recife, que lhes deviam a vida, conseguiram revogar a terrível sentença. Porém, como ninguém queria vê-lo morto, a não ser o imperador autoritário e vingativo, deixaram-lhe a porta da cadeia aberta. O major, contudo, recusou a oferta, alegando que uma fuga mancharia a sua honra e a sua dignidade de oficial de segunda linha, e marchou serenamente para o patíbulo. Seguiu vestindo um terno branco, em vez da alva dos condenados, com um par de lenços amarrados ao pescoço, um verde, outro amarelo, e sob os aplausos do povo e chuvas de flores atiradas pelas moças, das janelas dos sobrados. O fim da escravatura, pelo qual Agostinho Bezerra e Emiliano Munducuru lutaram, cada um à sua maneira, só viria 64 anos depois. E, até hoje, segundo as estatísticas policiais e do IBGE, os brasileiros de pele escura continuam sendo os primeiros a apanhar e os últimos a comer.

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Claquete

drama a vida difícil de um presidente vai às telas

Depois de conquistar recordes de popularidade, Luiz Inácio Lula da Silva pode fazer história também nas bilheterias, com a cinebiografia de Fábio Barreto texto Thiago Lins fotos Otávio de Souza 1

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sindicato

Lula (Ruy Ricardo Diaz) discursa para 80 mil operários na greve do ABC

Pau-de-arara

Dona Lindu (Glória Pires) parte com seus sete filhos na viagem que durou 15 dias

três mil figurantes , 130

atores, 70 locações e exibição em 400 salas. Estimativa de público de 20 milhões de pagantes e orçamento de 15 milhões de reais para rodar uma história de privações. O filme Lula, o filho do Brasil conta com números de arrasa-quarteirão desde que foi concebido. “Tive tudo o que precisava”, simplificou o diretor Fábio Barreto, na coletiva que concedeu com sua equipe na manhã seguinte à pré-estreia do longa em Pernambuco. O oitavo filme do diretor de O quatrilho, que diz ser este o seu “melhor e mais maduro” trabalho, abrange a vida do Presidente da República desde seu nascimento, em 1945, até sua prisão pela ditadura militar, em 1980. Ou melhor, até a morte de Dona Lindu, a mãecoragem vivida por Glória Pires. Experiente, a atriz

garante a regularidade de sempre, fazendo tabelinha certeira com a revelação Ruy Ricardo Diaz, impecável na representação do jovem Lula. “Foi Dona Lindu que enviou o Ruy”, exagerou Barreto. O longa (de 128 minutos) reúne um elenco seguro, que ainda conta com Milhem Cortaz (o 02 de Tropa de elite encarna o violento Aristides, pai de Lula), Juliana Baroni (Marisa Letícia) e a femme fatalle Cleo Pires, no papel de Lurdes (primeira mulher do então líder sindical). À qualidade que os atores provam se soma o trabalho do diretor de fotografia Gustavo Hadba. Familiarizado com a “cruel luz solar” do Sertão (atuou como operador de câmera no Baile perfumado,de Lírio Ferreira e Paulo Caldas), Hadba faz uso expressivo da luz natural, dando a

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terra ProMetida

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brasiL criança

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o aPrendiz

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draMa

Família chega a Santos, onde Aristides (Milhem Cortaz), pai de Lula, já vivia com outra mulher ”Filho de pobre tem que trabalhar”, era o lema de Aristides

Guilherme Tortolio interpreta o Lula adolescente Mãe e filho choram a prisão de Ziza. O irmão foi peça-chave na formação de Lula

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impressão de castigo nas cenas diurnas, algumas acompanhadas in loco pela reportagem da Continente, em janeiro. O tom de sépia da película casa com a expressão abatida de seus personagens.

MeLodraMa

Os entraves ficam no roteiro, que Fábio Barreto divide com Daniel Tendler e Denise Paraná (autora do livro homônimo, em que se baseia o filme). O diretor insiste em sublinhar que a película “humaniza” Lula, mas o único deslize do protagonista ao longo

de mais de duas horas de narrativa heróica é o conhecido episódio em que o torneiro mecânico perde o mindinho, num acidente de trabalho. Outro problema do longa consiste na sobrecarga de realidade, cansativa, que permeia a história. A intensidade do que poderia ter sido uma precisa cinebiografia fica, nesses aspectos, comprometida. Subutilizando facetas menos conhecidas do personagem, como o peladeiro, o galanteador e o aluno estudioso, Lula... poderia ter sido um filme para rir e chorar,

mas também surpreender, não fosse a predominância do apelo melodramático. O espectador pode acompanhar os percalços (para se valer de um eufemismo) da biografia de Luiz Inácio da Silva com incômodo. A emoção, curiosamente, surge com o discurso do sindicalista liderando a histórica greve do ABC paulista, em 1980. Na época, o torneiro mecânico ainda passaria por situações tristes (a prisão, a perda da mãe), mas nada que se compare às privações de sua infância

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e adolescência: enquanto o drama perde força, surge o Lula que arrasta multidões, dando mais fôlego ao filme. Numa cena feita à altura de sua história, o líder discursa à capela para os 80 mil trabalhadores presentes no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, naqueles anos 1980. Sem microfone, pego de surpresa pela multidão, Lula pede aos “companheiros” para repetirem seu discurso, num quadro com 600 figurantes multiplicados digitalmente - truque que Fábio Barreto evitou comentar “para não revelar a mágica”. Disse apenas que a cena consumiu três dias de gravação, classificando o episódio como “um dos prêmios do filme”. Resumindo: você pode conhecer esse homem, mas não conhece sua história. Porém, o melhor do filme é o Lula como já o conhecemos. O longa, que estreia em 1º de janeiro de 2010, coloca um ponto final nos “46 anos de militância cinematográfica” do produtor Luiz Carlos Barreto (pai de Fábio). O patriarca do cinema nacional se justifica: “Não tenho mais o que fazer. O longa é a síntese do Brasil. Lula é o personagem mais descolonizado que existe”, pontuou o fotógrafo de Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos) e Terra em transe (Glauber Rocha).

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causas coletivas o cinema político de Gillo Pontecorvo Contemporâneo do Neorrealismo, cineasta discutiu o colonialismo europeu e as relações de dominação entre os indivíduos texto Marcelo Costa

conjugando o empenho social e

realidade, ele propôs uma investigação das relações humanas de dominação, que aparentemente transitam com muita desenvoltura entre as fronteiras do tempo e do espaço. Seja a questão do holocausto em Kapo (1959), a luta pela independência da Argélia no clássico A batalha de Argel (1966), ou a colonização nas Antilhas, em Queimada (1969), o

RePRODuçãO/Ae

político de uma geração de cineastas que ecoavam as reivindicações dos grandes movimentos internacionais da década de 1960, Gillo Pontecorvo se debruçou sobre o tema da colonização europeia e a subjugação de povos em diferentes contextos históricos. Sobre os alicerces estéticos de um cinema voltado para a

cineasta mantém a pegada realista e o interesse no conflito opressor e oprimido. Sob influência ideológica e estética do neorrealismo italiano, Pontecorvo integrou uma geração que enxergava o cinema como uma ferramenta a serviço da realidade. De acordo com Deleuze, “O que define o Neorrealismo é a ascensão de situações puramente óticas e sonoras que se distinguem essencialmente das situações sensóriomotoras da imagem-ação do antigo Realismo”. São essas duas situações aparentemente opostas que se aproximam no cinema político italiano, com maior ênfase em uma ou outra, a depender da abordagem. Enquanto os neorrealistas se debruçaram nas mazelas sociais e nos dramas individuais e cotidianos de uma Itália devastada no pós-guerra, Pontecorvo retoma a discussão de temas de maior amplitude, a partir da valorização das

Claquete 1

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causas coletivas. Há um retorno ao cinema centrado na imagem-ação do realismo tradicional, embora seu filme de estreia mantenha o interesse na percepção sensorial da personagem. A partir de uma narrativa que converge na jovem Edith (Susan Strasberg), Kapo analisa os horrores do holocausto e sua capacidade catalisadora da crueldade humana. O filme acompanha a menina judia que, após perder os pais nos campos de concentração, se vale da prostituição para sobreviver e ser promovida a kapo – espécie de carcereiro dos campos de concentração. O rosto ingênuo, aterrorizado, e a aparência frágil de uma menina logo se transformam na expressão austera e intolerante própria da função que irá desempenhar. É um caso peculiar no qual heroísmo e vilania convivem num só corpo sob tensão; a representação clara de quão tênue é a linha que separa o oprimido do desejo em tornar-se opressor. Sob esse enfoque humanista, o filme discute a vulnerabilidade dos valores morais diante do instinto de sobrevivência. Ainda sobre as cinzas do holocausto, Pontecorvo procurou reproduzir os campos de concentração a partir de relatos de sobreviventes e ex-soldados alemães. A fotografia em preto e branco, granulada e de aparência pouco requintada, também tinha o propósito de aproximar a imagem fílmica das exibidas pelos telejornais e cinejornais da época. Foi justamente essa preocupação que o levou a expandir as fronteiras realistas no seu próximo projeto: a obra-prima A batalha de Argel. Sob o enfoque na imagem-ação, no sentido deleuziano, o filme reconstitui os principais episódios do conflito entre franceses e argelinos na luta pela independência da Argélia, a partir de um registro quase documental de acontecimentos ficcionais.

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kapo

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obra-PriMa

Neste filme, Pontecorvo analisa os horrores do holocausto e sua capacidade catalisadora da crueldade humana A batalha de Argel, proibida na França durante quatro anos, trata da luta de independência da Argélia

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Diferentemente da estrutura de Kapo, A batalha de Argel rompe com a ideia da individuação da personagem, que assume aqui um caráter coletivo: a voz de um coro pelo fim da servidão colonial. Visualmente, esse conceito é reforçado pelos rostos sofridos do povo argelino, numa extensão da prática neorrealista de representação por não atores. Logo na sequência de abertura, uma imagem dura e seca expõe a frágil figura de um homem que acaba de ser torturado. Nesse momento, a violência física – que mais tarde será expressa – cede lugar à sensação de vergonha e impotência própria da colonização. Apesar de proibido durante quatro anos na França, o filme revela a habilidade de entrar na lógica de ambos os lados, de pensar o colonizador e o colonizado, seja na argumentação da guerrilha como forma de resistência ou no discurso nacionalista francês.

VisÃo etnoLÓGica

De maneira mais crítica, Pontecorvo mantém essa lógica em Queimada (1969), um épico sobre a manipulação das colônias latinas pelas potências imperialistas. A ação se passa no século 19, numa ilha das Antilhas povoada pelo colonizador português e pela mão de obra escrava dos negros africanos para o cultivo de

cana-de-açúcar. Nesse contexto, um enviado inglês (Marlon Brando) provoca uma rebelião dos escravos para derrubar o governo, libertar a ilha dos portugueses e, enfim, abrir as portas ao “livre” comércio inglês. Nesse sentido, o filme funciona como uma alegoria dos conceitos básicos do sistema colonialista e uma ilustração das tensões entre colonizador e colonizado. Apesar da estrutura linear épica, Pontecorvo investe num realismo etnológico ao recorrer à expressão dos negros em meio às condições de opressão e a uma fotografia em technicolor que parece reivindicar uma estética terceiro-mundista da paisagem física e humana. Dentro do seu estilo rígido e inflexível, ele questiona a civilização através de um olhar lírico sobre a violência política – sobretudo na cena em que uma criança corre nua e sem rumo em meio aos corpos estendidos no chão. Talvez seja esse interesse afetivo pelo elemento humano a razão de ser desse cinema. Um cinema que depois tatearia à procura de espaço em meio à despolitização e à complexidade do cenário geopolítico mundial. Embora atual, talvez tenha perdido sentido; como um barco à vela num mar que não venta mais.

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Ve

al


INDICAÇÕES Drama

GraN toriNo

de Clint eastwood Com Clint eastwood, Geraldine Hughes, John Carroll Lynch Warner bros.

um misto da imponência dos faroestes (Três homens e um conflito) e da sisudez dos protagonistas mais recentes (Menina de ouro), em Gran Torino, Clint eastwood prova não só o poder de sua imagem, mas também o seu talento para conduzir histórias. O drama se centra na figura de Walt Kowalski. Seu racismo e sua intolerância serão testados pela amizade que ele desenvolve com uma família vizinha, após salvá-la de uma perigosa gangue .

Nacional

Documentário

de Guel Arraes Com Wagner moura, Letícia Sabatella, Andrea beltrão buena Vista

de James marsh Califórnia Filmes

romaNce

o eQuiliBrista

História

Frost/NiXoN

de ron Howard Com Frank Langella, michael Sheen, Sam rockwell Universal

O cinema de Guel Arraes construiu um caminho próprio. Percebe-se sua marca nos diálogos ágeis, na linguagem intertextual e nos cortes acelerados. em Romance, a metalinguagem é a protagonista, quando dois atores de teatro se apaixonam nos ensaios de Tristão e Isolda. Ao mesmo tempo em que recriam o clássico teatral, vivem o início de um relacionamento. um mal-entendido, no entanto, clássico elemento das histórias de amor, separa o casal.

O francês Phillippe Petit teve uma vida excêntrica. Parte dela pode ser conferida em O equilibrista, que narra seu maior desafio: atravessar, equilibrando-se em um cabo de aço, as Torres Gêmeas, na década de 1970. Vencedor do Oscar 2009 de melhor documentário, o filme mescla depoimentos de pessoas envolvidas no arriscado plano e imagens de reconstituição. A ousadia provocada por Petit é um misto de poesia e loucura, aos olhos de quem o viu atravessar os prédios.

Drama

Nacional

Drama

de Heitor dhália Com Vincent Cassel e débora bloch Universal Pictures

de dennis Gansel Com Jürgen Vogel ecofilmes/Vitória Filme

O grande mérito de Frost/Nixon, como a barra no título já expõe, é nos fazer ver que o jogo das perguntas e respostas se dá num ambiente de conflito. Dirigido pelo americano Ron Howard, o filme nos apresenta David Frost, um famoso apresentador de talk-shows, decidido a arrancar confissões do ex-presidente Richard Nixon pelos crimes cometidos no caso Watergate. Frost/Nixon é também uma bela reconstrução dos bastidores da produção jornalística.

FOTOS: DiVuLGAçãO

Claquete

Animação

uP – altas aveNturas

amaNtes

de Pete docter Com Chico Anysio (dublagem) Pixar / disney

de James Gray Com Joaquin Phoenix, Gwyneth Paltrow, Vinessa Shaw PlayArte

É inevitável recorrer ao clichê de desenho animado que agrada tanto crianças como adultos para se falar de Up. Carl Fredricksen, um vendedor de balões, amargurado,de 78 anos, decide realizar um sonho: ir morar no Paraíso das Cachoeiras, levando junto sua casa. Por acidente, Russel, um inconveniente escoteiro de oito anos, também acaba indo. Além de dosar com primor os momentos de aventura e sensibilidade, Up é mais uma prova da excelência gráfica da Pixar.

O longa dirigido por James Gray teve sua estreia mundial no Festival de Cannes 2008. Leonard (Joaquin Phoenix) se apaixona por sua vizinha (Gwyneth Paltrow), ao mesmo tempo em que se envolve com Sandra (Vinessa Shaw), a preferida de seus pais. embora a sinopse soe como mesmice, os diálogos inteligentes e a sensibilidade com que trabalha a desesperança do protagonista fizeram do filme um dos melhores do ano.

à deriva

De um cinema marcado pela direção de arte (Nina , O cheiro do ralo), o cineasta pernambucano Heitor Dhália resolveu investir na delicadeza em À deriva, dando mais espaço aos seus personagens e menos ao que eles vestem. Dhália volta seu olhar ao desfacelamento de uma família que passa as férias de verão em Búzios, litoral fluminense. O casal interpretado por Vincent Cassel e Débora Bloch se desfaz, sob o olhar adolescente da filha mais velha, vivida pela estreante Laura Neiva.

a oNda

em A onda, obra do jovem diretor Dennis Gansel, um professor deve explicar aos alunos o conceito de autocracia. Com o desinteresse dos estudantes e o descrédito sobre a relevância do tema, ele decide, a partir de pequenas imposições e sempre em nome da “comunidade”, mostrar aos seus alunos como as massas tendem a seguir palavras de ordem. uma interessante ilustração do quanto as pessoas estão dispostas a abrir mão da racionalidade por uma ideologia.

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fotos: Juan Guimarães/divulGação

solos As relações entre o corpo e o espaço

A bailarina Patrícia Cruz estreia como coreógrafa em dança contemporânea, numa parceria com Daniela Santos, no espetáculo As partes do todo texto Christianne Galdino

Palco

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Quem entra na casa da cultura,

um dos principais pontos turísticos e um dos maiores centros de artesanato de Pernambuco, e encontra tantos símbolos da alegria do povo, talvez não saiba ou não consiga imaginar a realidade cruel que foi ali vivenciada durante mais de 100 anos, quando o prédio era a Casa de Detenção do Recife. Afetado pelos problemas comuns às penitenciárias, o local foi também abrigo de presos políticos e palco de torturas físicas e psicológicas. Colocar em cena esses contrastes, tentando traduzir em movimento os diferentes significados do lugar foi o ponto de partida da bailarina Patrícia Cruz, que estreia como coreógrafa em dança contemporânea no solo interpretado

por ela e batizado de As partes do todo. Concebido em parceria com a carioca Daniela Santos, o trabalho faz parte do projeto Solo do outro, do Centro ApoloHermilo, e teve sua estreia no 14º Festival Internacional de Dança do Recife. Daniela reside apenas há um ano na cidade e tinha com a Casa da Cultura uma relação de turista, ao contrário de Patrícia que já conhecia o passado do lugar. Procurando nivelar as experiências, as criadoras mergulharam em um processo de pesquisa teórica e prática intensiva durante dois meses, absorvendo todas as informações possíveis. Patrícia conseguiu inserir doses exatas de força e sutileza na sua interpretação realista. Entre as escolhas acertadas da concepção, destaca-se

a exploração do prédio, com cenas acontecendo em vários pontos da Casa, em um diálogo intenso entre corpo e ambiente. Desde a varanda da cúpula central, passando pelos corredores, uma cela, grades e o pátio externo, tudo parece envolto no tempo passado que a coreografia consegue estabelecer. Ex-atleta de ginástica rítmica, Patrícia Cruz aproveita suas habilidades corporais, que, contextualizadas, ganham novo significado e mostram que as técnicas podem colaborar com a construção de um conceito, mesmo na dança contemporânea. No caso específico de As partes do todo, as habilidades técnicas da intérprete favorecem e ainda ajudam a compor uma personagem que simboliza

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caSa Da cULtURa

Solo do outro

teatRo HeRmiLo BoRBa FiLHo

3, 4, 17 e 18 Dez 20h

os tantos personagens da Casa de Detenção, ora tomados pela dor, ora por uma eufórica insanidade. Como se descascasse camadas de memória, ela deixa ver fragmentos da história do prédio impressos na sua dança. A forma de caminhar; a utilização da técnica circense de tecido para descer da varanda, que nos remete imediatamente a episódios de fuga de presidiários; o momento em que distribui pães aos espectadores e a própria caracterização revelam um diálogo com o cotidiano da penitenciária. As múltiplas impressões que o corpo de Patrícia vai deixando no areal que cobre o chão de uma cela vazia traduzem bem a intimidade criada com o passado do local. O fato

o solo Partes do todo, interpretado por Patrícia Cruz, cria uma intimidade com o passado do local , que foi uma casa de detenção

de as pessoas precisarem andar para acompanhar o roteiro proposto ajuda o público a se sentir dentro da cena. Os tantos símbolos da opressão do lugar, presentes na obra contrastando com a liberdade, expressam na movimentação da bailarina, construíram um discurso poético que nos fala das tantas faces que uma realidade pode ocultar.

oUtRoS SoLoS

Na edição deste ano do Solo do outro, as três artistas selecionadas tinham como ponto de partida prédios e monumentos de influência francesa, já que o projeto também fazia parte das comemorações do Ano da França no Brasil. Os lugares escolhidos, Mercado São José, Casa da Cultura e Teatro de Santa Isabel

foram palco de parcerias inéditas entre a carioca Daniela Santos, a paulista Flávia Pinheiro e Patrícia Cruz, que, apesar de ser pernambucana, viveu a infância e a adolescência em Belém do Pará. E como, segundo Daniela Santos, “não dá para separar processo criativo de processo de vida”, a relação diferenciada de cada criadora com o Recife, local onde todas residem atualmente, também acabou aparecendo no resultado final. Cada bailarina participou de dois processos como criadora, atuando como intérprete em um deles. Na medida em que as intérpretes iam conhecendo e vivenciando as histórias dos lugares, cruzando suas referências, e se integrando aos ambientes, os limites entre representação e cotidiano iam desaparecendo. Como a criação em dança contemporânea é, na maioria das vezes, uma experiência colaborativa, fica difícil definir autorias e delimitar espaços individuais e distintos de atuação entre criador e intérprete. Então, quem seria o outro? O outro pode ser também um outro espaço de criação e apresentação, um outro público, e até um outro resultado estético. Por isso, a missão das artistas do projeto foi aprender a solucionar os problemas causados pelas diferenças do outro: de formação, de movimentação, de processo criativo... Porém, resta ainda uma questão: na dança contemporânea, palco de subjetividades distintas e suposta possibilidade de realização das mais variadas formas, existe mesmo espaço para o outro, existe liberdade para ser diferente? Talvez iniciativas como Solo do outro possam nos ajudar a encontrar as respostas ou pelo menos estimular o encontro entre diferenças, pois mostram que as parcerias criativas são possíveis e não implicam na anulação da individualidade dos envolvidos. Agora, Patrícia Cruz, Daniela Santos e Flávia Pinheiro encaram um novo desafio: adaptar e apresentar os três solos (As partes do todo, Imóvi(e)l vazio e Eu tava passando e resolvi sair) no Teatro Hermilo Borba Filho, o “outro lugar”, onde acontecerá a temporada de conclusão do projeto... Mesmo sabendo que esta será uma nova experiência, um outro espetáculo...

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Cardรกpio

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MOCOTÓ Gosto bom do sertão na supermetrópole

Mistura do sabor da culinária nordestina ao estilo de atendimento de bistrô francês transforma restaurante em ponto de convergência de apreciadores da boa mesa TEXTO Daniel Buarque FOTOS Flávio Lamenha

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divulgação

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Cardápio 2

“o meu feijão é de corrrrrrda” , diz o pedido com sotaque paulista do interior, carregando no erre. Quem anota é o próprio chef, de 29 anos, criado entre as panelas do restaurante do pai, onde trabalha desde os 14. É este jovem quem recebe os clientes, comanda a cozinha, inventa receitas, numa tradição que lembra bistrôs franceses. E quando este modelo bem-sucedido de gestão e técnica se encontrou com a comida dos mercados do Recife em plena zona norte de São Paulo, o Mocotó se transformou em um fenômeno na gastronomia da cidade. O sucesso recente do restaurante de mais de 30 anos pode ser medido pela fila que se forma no local nos finais de semana – há quem espere três horas –, pelo deslocamento das pessoas de todas as partes da capital paulista até a distante zona norte – são 15 quilômetros desde o centro –, pela

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enorme divulgação que o Mocotó tem na mídia, ou simplesmente pela cara de alegria de quem come a comida sertaneja bem-cuidada servida ali. Nada de releituras e desconstruções, mas tudo o que há de mais simples e tradicional, do sarapatel ao escondidinho, preparado com cuidado de restaurante cinco estrelas e servido a preço de boteco – com porções de R$ 5 e pratos completos por R$ 15. Essa popularidade imensa e quase repentina tem o chef Rodrigo Oliveira como principal responsável. Há cinco anos, ele se aproveitou de uma viagem do pai – um pernambucano de Mulungu – e revolucionou a proposta do pequeno estabelecimento. A transformação deu certo, mas ele nega ter seguido uma fórmula. “Se soubesse o segredo do sucesso, abriria mais 10 restaurantes para poder me aposentar mais cedo.” Até 2004, o Mocotó praticamente não existia

além dos limites da Vila Medeiros. Na época, o pequeno bar tinha apenas Rodrigo e mais três funcionários para atender os 20 lugares. “Fomos crescendo aos poucos”, diz o chef, contradizendo a enorme velocidade com que o restaurante se transformou no que é hoje, com 200 lugares, quase 40 funcionários e serviço contínuo para almoço e jantar. O diferencial do Mocotó, segundo o sociólogo Carlos Alberto Dória, é o preparo técnico moderno que deu aos pratos tradicionalmente rústicos. “Ele traz nova valorização para uma gastronomia muitas vezes ignorada”, disse Dória, que tem quatro livros publicados sobre a sociologia da alimentação. “Nosso foco é em boa comida e boa acolhida. Aqui tudo é simples e de verdade”, diz o chef. “Meu pai é um anfitrião nato. O prazer dele é receber bem as pessoas, deixá-las felizes com um acolhimento

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BoLinHo QUADRADo

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nA FiLA

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cHeF

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cUMBUcA cHiQUe

Mesmo trabalhando com a culinária tradicional nordestina, o restaurante inova na apresentação dos pratos Com o crescimento da clientela, há dias em que, sobretudo no fim de semana, as pessoas chegam a esperar três horas por uma mesa Rodrigoo liveira revolucionou a proposta do lugar, que passou de um bar de 20 lugares e três funcionários para um restaurante de 200 lugares e quase 40 funcionários

Bonitosvi sualmente, os pratos têm composição simples e tradicional, preparados com esmero e a preço camarada

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Cardápio

pRopRietÁRio

Pernambucano de Mulungu, Seu Zé almeida abriu o Mocotó há 30 anos; seu prazer em receber e servir foi uma das qualidades que cativaram os frequentadores DoceS e SALGADoS

Entradas e sobremesas antecipam o desejo do chef da casa em abrir outro negócio, também na zona norte paulistana, onde servirá bolos tradicionais e tapiocas acompanhados de café

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despretensioso”, diz com voz calma, baixa, e sem a afetação que se poderia esperar de um chef premiado.

pAi e FiLHo

Com mais de 70 anos, “Seu Zé Almeida”, pai de Rodrigo e fundador do Mocotó, frequenta diariamente o restaurante. Apesar do sucesso, ele critica o fato de o filho querer “encher de firulas” os pratos ao elaborar a técnica em vez de simplesmente misturar os temperos. “Ele acha que tudo o que eu faço dá trabalho demais. Prefere tudo ainda mais simples tecnicamente”, diz Rodrigo. Trata-se de um contraste entre o preparo simples e a comida simples com detalhismo e técnica. O chef tem obsessão pelos “ingredientes”, pela base de cada prato. “A arte está em fazer o mais simples”, diz. Rodrigo juntou a origem despretensiosa do pai ao seu trabalho cuidadoso

de chef formado em faculdade de gastronomia, com experimentação em combinações e cuidado no preparo e na apresentação. “Família mais estudo”, diz. Mais marketing, ressalta Dória. “Ele achou a forma de se situar no marketing gastronômico, tornou-se um destino turístico da gastronomia paulistana”, disse, admitindo, entretanto, que isso aconteceu sem um projeto megaelaborado. O Mocotó não tem assessoria de imprensa e propaganda e é o próprio Rodrigo que atende ao telefone e dá entrevistas. “A mídia reflete a realidade, ela não cria nada. O Mocotó foi valorizado pela competência da equipe do restaurante”, explicou Dória. O resultado é que na entrada do Mocotó há um mural com 37 reportagens demonstrando o “caso de amor” do restaurante com a imprensa – é praticamente

impossível achar uma referência negativa, e esta reportagem provavelmente estará lá em breve. Desde as primeiras referências nos jornais locais em 2004, Rodrigo e o restaurante aparecem em matérias de revistas nacionais, publicações de gastronomia, além da internet, até chegar nos internacionais El País e Financial Times. Ganhador de um prêmio do Boteco Bohemia – de melhor petisco –, apontado como o melhor “Bom e Barato” pelos júris reunidos pela Veja São Paulo e pela Folha de S.Paulo, o Mocotó normalmente entrava nas disputas de restaurantes regionais, mas acabou de ser escolhido pela Época como o melhor restaurante brasileiro de São Paulo, o que abriu uma discussão sobre a própria ideia de regionalismo. “Isso nos deixou muito felizes. O Mocotó não é uma casa temática. Temos o compromisso de representar a cultura

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Rodrigo diz que o tempero do sertão não enfrentou resistência do paladar paulistano. É conhecida a rejeição do gosto local pelo uso do coentro. Alguns restaurantes de comida nordestina simplesmente aboliram o uso desse ingrediente essencial da culinária sertaneja para não afugentar os clientes. “A gente usa coentro em tudo, menos no café. As pessoas têm puro preconceito contra ele”, relata. Segundo o chef, os clientes comem sem perceber, sem reclamar e até gostam do tempero. Ele diz ainda que nenhum outro prato precisou ser retirado do cardápio ou sofreu rejeição, nem mesmo a passarinha (baço de boi), ou a tripa. Segundo ele, há ingredientes

o chef da casa afirma uma obsessão pelos “ingredientes”, pela base de cada prato. “A arte está em fazer o mais simples”

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do sertão nordestino. Queremos acabar com a pecha de que a comida nordestina é pesada, mal-acabada e mal-apresentada”, disse Oliveira.

BAnDeiRA no peito

Mesmo tendo nascido em São Paulo, onde viveu toda a vida, Oliveira se apresenta como pernambucano, pela formação bairrista que ganhou do pai. Em seu “jaleco” de chef, o símbolo do restaurante e a bandeira de Pernambuco são os principais destaques, maiores do que a bandeira do Brasil. Mesmo assim, ele nega que seu restaurante seja focado especificamente na culinária pernambucana, que lembra ter ainda uma variedade maior por conta do litoral, e não há peixes no cardápio do Mocotó. Foi em Pernambuco que se deu a formação gastronômica dele, durante uma longa viagem de carro, mas “o Sertão

não tem fronteiras de Estado. É uma questão de bioma, de cultura”. A fala de Rodrigo ganha eco na voz de Dória, que analisa essa tendência em seu mais recente livro, Formação da culinária brasileira. “A indústria do turismo fez um mal muito grande ao enfatizar só a culinária do litoral nordestino, sufocando os hábitos de comida do interior. As classificações de tipificação de comidas são artificiais. O que é comida regional? Isso não ajuda a culinária nacional. O fato de o Mocotó ser escolhido como o melhor da comida brasileira é bom e pode melhorar os restaurantes desse tipo”, disse. Quem tenta responder é o próprio Rodrigo. “A cozinha nacional é um conjunto de comidas regionais.” Segundo ele, a cozinha brasileira só vai ser grande de fato quando entender isso e o Mocotó está fazendo bem para a culinária brasileira ao levantar esta bandeira.

de qualidade disponíveis em São Paulo para fazer qualquer prato nordestino. “Esta é a maior capital do Nordeste”, diz, sobre os dois milhões de nordestinos entre os 10 milhões de pessoas que vivem na cidade. Sem plano ambicioso para expandir o Mocotó, Rodrigo contou que pretende abrir uma nova casa no primeiro trimestre do próximo ano, também na zona norte e com uma abordagem do interior do Nordeste. Não vai ser um restaurante, mas um café e confeitaria, para servir os bolos, doces e pequenos salgados. “Queremos ter três ou quatro bolos tradicionais e frescos todos os dias, para servir com café, com tapioca.” O nome vai ser Caruaru Café, e ele promete que vai ter a mesma comida cuidada e preço amigo, receita para mais um fenômeno. Mocotó Restaurante e Cachaçaria av. Ns. do loreto, nº1100 - vila Medeiros-SP Tel: (0xx11) 2951-3056 contato@mocoto.com.br

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divulgação

bIENAL DE MÚSICA Vitrine sonora contemporânea

Mais antiga mostra de música erudita do país recebe número recorde de compositores estreantes e prepara divulgação de acervo via rádio, TV e internet texto Carlos Eduardo Amaral*

Sonoras com a paralisação das obras da

Cidade da Música e a longa reforma do Theatro Municipal, a Sala Cecília Meireles tem sido o único grande espaço a oferecer programação contínua de música erudita no Rio de Janeiro, absorvendo assim, sine die, o público fiel de outras casas de concerto. Durante 10 dias, a cada dois anos, a Cecília Meireles ainda recebe os participantes e espectadores da Bienal de Música Brasileira Contemporânea, cuja 18ª edição aconteceu de 23 de outubro a 1º de novembro. Nos 12 concertos da XVIII Bienal, foram executadas 110 obras de compositores diferentes, 61 em estreia mundial. Três números recordes que se somam ao de inscrições: 396 obras

de 254 compositores – 80 destes, outro marco, nunca haviam submetido uma obra antes à comissão de seleção da Bienal. Os estreantes têm um estímulo a mais desde 2007, quando a Fundação Nacional de Artes (Funarte) instituiu um prêmio de seis mil reais para quatro peças de autores selecionados dentre os que participaram de uma ou nenhuma bienal. Outra iniciativa de fomento por parte do órgão cultural federal resultou em obras de elevado nível na abertura do evento. As cinco partituras sinfônicas tocadas na primeira noite – bem como outras cinco para grupos de câmara, apresentadas nas noites seguintes – foram contempladas em um edital de bolsas de estímulo à

produção artística em 2008. A ideia, surgida após o edital, de incluí-las na programação, além de ter-se revelado um acerto, denota que um concurso de composição ou algo similar rende bom empenho dos compositores. O edital foi inspirado no poema sinfônico O massapê vivo, homenagem do carioca radicado em Brasília Jorge Antunes ao Mestre Vitalino, e Paranambucae, para violão e percussão, do paulista Sérgio Kafejian, estreados respectivamente na primeira e terceira noites. Mais uma vez, porém, Pernambuco não constou na Bienal. Se por falta de informação dos compositores locais ou de interesse, fato é que a Paraíba marcou presença na abertura com Uiramiri, de Eli-Eri

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A ausência de uma programação paralela que incremente o evento, a exemplo de oficinas, palestras ou lançamentos de CDs e DVDs, faz com que o congraçamento não seja tão intenso quanto antes, como aponta Jorge Antunes: “Nos anos 1970 não era assim. Os compositores se encontravam, confabulavam, discutiam, trocavam experiências e opiniões e até mesmo conspiravam. Foi assim que se criou a Funarte: graças a um abaixo-assinado de compositores, durante o Regime Militar”. Já o compositor mineiro radicado em Curitiba, Harry Crowl, não vê problemas no atual formato da Bienal, mas enfatiza a importância de que eventos do gênero aconteçam em outras capitais: “A Bienal, no Rio, acaba funcionando como um catalisador de todo o Brasil. Isso é bom, mas a produção de música erudita é muito grande e não se pode dar vazão a toda essa produção com eventos esporádicos. Mais capitais deveriam promover eventos com abordagens diversas, sem o favorecimento excessivo de regionalismos”. Dado que o único Estado brasileiro a promover uma bienal de música ainda é o Mato Grosso, resta imaginar se a Funarte não poderia expandir a própria Bienal para fora do Rio de Janeiro ou fomentar eventos similares pelo país – o que favoreceria, inclusive, a contratação de intérpretes não residentes no Rio e a formação de público em regiões sem programação de música erudita contemporânea. Moura, paráfrase das representações do uirapuru na música erudita do século 20, e Intervenções II e III, de J. Orlando Alves.

PotenciAL PARA eXPAnSÃo

Duas grandes virtudes da Bienal, além da revelação de compositores e obras, residem no amplo espaço que só ela dedica à música erudita criada no Brasil – ainda bastante negligenciada, no caso da música sinfônica – e no valioso congraçamento entre os músicos. A Bienal arca com as despesas de passagens e estadia dos compositores para que eles assistam à execução de suas obras. No entanto, devido à quantidade de participantes e à duração do evento, os custos só cobrem a permanência por uma noite.

AceRVo De GRAVAÇÕeS

As mais de mil obras executadas em todas as edições da Bienal de Música e nos Festivais de Música da Guanabara de 1969 e 1970 finalmente têm perspectivas reais de se tornarem um acervo aberto. Após a digitalização das gravações da 13ª e 14ª edições, os compositores e herdeiros receberão os arquivos de áudio de suas respectivas peças para que avaliem a interpretação e autorizem a veiculação por rádio e TV. O coordenador de música erudita da Funarte, Flávio Silva, informa que o processo de digitalização das fitas vem sendo avaliado e antecipa que os compositores participantes da XVIII Bienal logo terão em mãos as

gravações, em vista do recolhimento de autorização para radioteledifusão em 2010. O projeto de divulgação inclui a disponibilização dos arquivos para audição via internet, o que dará origem a um dos maiores bancos de dados de música erudita contemporânea do mundo. A única ressalva dos compositores quanto à Bienal diz respeito às peças selecionadas a cada edição. Harry Crowl, que elogia o nível dos intérpretes convidados, reclama de um aparente conservadorismo na primeira etapa, de triagem: “Do ponto de vista estético, parece que há resistência por parte das bancas de seleção contra os jovens compositores que se expressam numa linguagem mais cosmopolita, uma censura velada àqueles que evitam uma linguagem mais neoclássica e que não se baseiam em nenhuma música tradicional brasileira”. Jorge Antunes, por outro lado, questiona a qualidade estética das peças escolhidas: “O que observei nos concertos a que assisti foi a baixíssima qualidade da maioria das obras. Fico intrigado, fazendo-me a seguinte pergunta: Será que as obras não selecionadas eram piores do que aquelas que ouvi? A Bienal se pretende eclética, mas não monta um júri eclético. Na área de música eletroacústica, por exemplo, a Funarte sempre coloca a mesma pessoa, que além de ter limitações em sua formação e conhecimentos, não é isenta”, critica. O compositor acrescenta sugestões de atividades que englobariam todas as peças inscritas, selecionadas ou não: a montagem de estandes com fones de ouvido, para audição de música eletroacústica pré-gravada, e a exposição das partituras das demais peças, sob permissão dos compositores, para manuseio e consulta. Tais ideias se somariam aos atrativos que a Bienal de Música introduziu nesta edição. Fora a premiação aos estreantes e a inclusão de bolsistas da Funarte, a curadoria concedeu o status de hors concours a todos os compositores que participaram de pelo menos 12 edições do evento.

� o jornalista acompanhou as duas primeiras noites da XVIII Bienal de Música Brasileira Contemporânea a convite da Coordenação de Música Erudita da Funarte.

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CarolinE bittEnCourt/divulgação

VIRTUOSI Encontro marcado para melômanos

Virtuosi 2009 Recife

T. 3363-0138 13-20 Dez www.virtuosi. com.br

Durante uma semana, Festival Internacional de Música de Pernambuco vai acontecer no teatro, no parque e nas ladeiras de Olinda texto Carlos Eduardo Amaral

Sonoras Assim como a Mostra Internacional

de Música em Olinda (Mimo), que este ano adentrou as igrejas de João Pessoa e do Recife pela primeira vez, o Virtuosi sai do Teatro de Santa Isabel, no Centro, e realiza o concerto de abertura no Parque da Jaqueira, na tardezinha do dia 13 deste mês, antes de fazer duas apresentações na Igreja da Sé, em Olinda, nas noites dos dias 13 e 14; embora a programação tenha segmento no salão nobre e no palco principal daquele teatro, até o dia 20. Como se tornou praxe ao longo dos últimos anos, os habitués do Virtuosi verão mais uma vez o fervor da execução do pianista Victor Assuncion, a habilidade do contrabaixista Catalin Rotaru, o humor inigualável do mestre de cerimônias Marcelo Jaffé, os inflamados discursos em portunhol de Rafael Garcia (foto) e o encontro musical com sua esposa Ana Lúcia Altino e os filhos Lito e Leo,

sem falar dos pop stars internacionais que ganharam o green card do Festival, como Antonio Meneses e Christian Lindberg. Já a lista de atrações inéditas inclui o Quarteto Harlem, a Orquestra de Câmara Música Vitae, o Quinteto de Metais da Eslovênia e cerca de uma dúzia de solistas norte-americanos e europeus. Villa-Lobos receberá destaque especial pelo cinquentenário de falecimento, pela interpretação de canções, obras para violoncelo e piano e para violão solo, além de uma exposição de fotos trazidas do Museu Villa-Lobos, no Rio. O Ano da França no Brasil também terá destaque ao longo dos oito dias do evento, com destaque para o concerto da Orquestra Virtuosi e solistas (dia 17, às 20h), em que serão executadas obras sinfônicas de Milhaud (O boi no telhado, multiplágio de compositores populares brasileiros, como Chiquinha

Gonzaga e Ernesto Nazareth), SaintSaëns, Ravel e a épica sinfonia concertante para viola e orquestra Haroldo na Itália. O ponto alto do Virtuosi 2009 será a estreia de Dulcineia e Trancoso, dos paraibanos Eli-Eri Moura (música) e W. J. Solha (libreto), a primeira ópera sob influência do movimento armorial baseada num enredo surreal que une Cervantes, Ariano Suassuna, Os Sertões, A Pedra do Reino, A bagaceira, O auto da Compadecida, Lampião, Gaudí, Francisco Brennand e Dom Sebastião. Dulcineia e Trancoso abrirá a segunda edição do Virtuosi pela paz, uma maratona de 24 horas seguidas de música para testar a paixão e a resistência do mais devotado melômano.

@ continenteonline Confira a programação completa no site www.revistacontinente.com.br

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INDICAÇÕES ROCK

MPB

rosa Celeste

Urban Jungle

ROCK

ARNALDO ANTUNES Iê-iê-iê

CÉU Vagarosa

Produzido por Fernando Catatau, o novo disco de arnaldo antunes, Iêiê-iê, vem sendo considerado um dos lançamentos mais consistentes do ano. o intérprete e compositor apostou do rock sessentista à Jovem guarda. diferentemente de Qualquer (seu último trabalho de inéditas), as letras bem-humoradas revezam ingenuidade e rimas incomuns, casadas com arranjos de pegada brega. Luz acesa talvez seja a faixa que melhor represente o perfil do trabalho. E Invejoso a narrativa musical mais inspirada.

da leva de novas cantoras brasileiras, Céu possui não só uma voz diferenciada, como também uma sonoridade própria. ao contrário de intérpretes que priorizam o samba e a reverência à MPb de letras garrafais, a paulista de timbre grave se utiliza de gêneros genuinamente nacionais para mesclá-los a ritmos africanos. Vagarosa, seu segundo álbum, engana o ouvinte em seu primeiro minuto de escuta: o sambinha que abre o disco logo se dilui em meio à releitura do reggae que ela propõe.

MPB

LUCAS SANTTANA Sem Nostalgia Independente

Em seu quarto disco, o baiano lucas Santtana inova a tradicional e nostálgica combinação brasileira de voz e violão. Munido de softwares, pedais e filtros, lucas construiu 12 faixas cheias de timbres e texturas. toda a parte percussiva foi tocada no corpo do violão. destaque para a música Super violão mashup que, como sugere o nome, é uma justaposição de trechos de músicas de artistas brasileiros importantes. o disco contou com a participação de arto lindsay, Curumin, buguinha dub, entre outros; e foi todo disponibilizado na internet.

INDIE

NUMISMATA Chorume Pimba!/Tratore

um disco camaleônico, em que se ouvem rock, balada, choro, valsa, marchinha, mambo, jazz “de cabaré”; tudo remusicado, ressignificado. Esta, uma sinopse do segundo álbum da banda paulista numismata. Chorume traz 10 canções, que se apresentam como um exercício, pela pesquisa sonora evidenciada. além dos seis integrantes fixos, há convidados, como os intérpretes Maria alcina e luiz Melodia. o grupo é competente e a audição vale pelo experimentalismo, mas deixa a desejar em unidade.

A CARAVANA DO DELÍRIO Glamourosa comédia pop

R&B

RIHANNA Rated R def Jam

Já ganhou elogios de dJ dolores e foi a banda de apoio de Wander Wildner. agora, os pernambucanos d’a Caravana do delírio lançam o seu primeiro EP com cinco músicas, gravado de forma independente. o tom do disco mistura humor e trocadilhos com cinismo e tédio. Para a caravana, o rock ’n’ roll é menos um ritmo e mais uma atitude de desinteresse em relação ao mundo, como bem explicitam as letras.

rihanna lança seu novo disco na esteira do quebra-pau com o exnamorado, o rapper Chris brown, e do bordão “adoram o perigo da rihanna”, que virou hit no Youtube. É divertido escutar sua voz robótica falando sobre o sentido da vida enquanto é “enterrada” pelas batidas dubstep do single Wait your turn ou no r&b. infelizmente não tem nada que se aproxime dos sucessos antigos Umbrella e Don’t stop the music. ninguém pode culpar a moça por ter repetido a fórmula.

ROCK

JAZZ

Independente

JULIAN CASABLANCAS Phrazes for the Young rCA

as férias do Strokes renderam mais um Cd. agora, é a vez do vocalista, Julian Casablancas, aventurar-se em carreira solo com Phrazes for the young. o britânico não foge do rock simples e eficiente de sua banda, mas acrescenta a influência dos anos 1980. os sintetizadores e a bateria eletrônica, que quase chegam à breguice, caem bem com a sua voz inconfundível. não é uma repetição do passado, felizmente: os efeitos estão bem-dosados nas oito canções do disco.

CONTRABANDA Na curva do tempo Independente

os 22 anos da banda de jazz mais antiga em atividade no recife são marcados com o Na curva do tempo. a Contrabanda, formada por Edson rodrigues (saxofone), niltinho rangel (guitarra), nando rangel (contrabaixo) e Enoque Souza (bateria), não esquece que é pernambucana ao tocar o jazz norte-americano. os sons do novo disco vão desde o frevo, maracatu, baião e forró, até a bossa-nova e o blues. o disco ainda conta com várias participações que acompanham o quinteto, entre elas, o maestro Spock.

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Leitura poesia as vidas e mortes de empédocles e de Hölderlin

Primeiro lugar na categoria Tradução, do Prêmio Jabuti, nova edição da obra do escritor alemão tem o mérito de preservar as qualidades estéticas do original texto Rodrigo Petronio

“eu caminho entre vós como um deus imortal, não mais como mortal.” Por mais estranha que essa frase possa soar aos ouvidos modernos, ela parece explicar a situação de Empédocles de Agrigento, sua vida e, sobretudo, a sua morte. Pois foram as causas fantásticas desta última que o transformaram em mito. Em uma das versões, perseguido pelos sacerdotes de Agrigento, desapareceu nas proximidades do Etna. Em outra, teria se atirado nas lavas do vulcão, gesto que é entendido como corolário de sua ascese filosófica. Em todo caso, essa condição de “íntimo da divindade”, e, ao mesmo tempo, de “exilado dos deuses”, é que gerou o antagonismo cósmico de sua filosofia, a tragédia elementar dos ciclos da vida, do mundo e da transmigração das almas. O poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770-1843) não só fundou as bases do mito de Empédocles em um

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drama em versos que é, do início ao fim, encantamento da linguagem e do pensamento unidos em um só acorde, como forneceu aquela que talvez seja a leitura mais dramática da vida do filósofo e, de saída, da vida e da obra dele próprio, Hölderlin. Esse verdadeiro testamento poético que é A morte de Empédocles (Editora Iluminuras, 2009) chega às mãos do leitor brasileiro por meio de Marise Moassab Curioni, em uma tradução impecável, com frequentes laivos de brilhantismo, fruto de anos de dedicação. Nela, Marise conseguiu o milagre de preservar o sentido, a música e, acima de tudo, o mito e os conceitos do poeta. Não por acaso, a obra acaba de receber o primeiro Lugar do Prêmio Jabuti − 2009, na categoria Tradução. Como nos adverte a tradutora, embora tenha ficado inacabada, a obra foi composta em três versões, cada uma lançando luzes sobre uma de suas facetas. Por mais difícil que seja definir o seu núcleo, talvez ele esteja no conflito entre a possibilidade e a impossibilidade de reconciliação. Ainda que o filósofo diga que está “reconciliado” com “mortais e deuses”, acredito que essa reconciliação seja apenas parcial; não é efetiva, mas simbólica. Ela se dá no nível do indivíduo, não no nível coletivo, ou seja, naquilo que constitui o essencial da tragédia enquanto tragédia. Hölderlin tinha plena noção disso. E o poeta assim o quis para que nós arquemos com metade de sua arte. Em outras palavras, para que nós finalizemos a nossa transformação. Mesmo conhecido como “amigo dos deuses” e como “homem semelhante aos deuses”, “tão divino e próximo”, para quem é tão “íntima a Natureza”, o destino demasiadamente humano de Empédocles o coloca como “anátema sagrado”. Nas

A morte de empédocles hölderlin iluminuras A tradutora Marise M. Curioni preservou o sentido e a musicalidade do poeta

contrações e distensões da Discórdia e do Amor no movimento da Esfera, o Empédocles criado por Hölderlin nos mostra que estamos tão próximos das “fontes da vida” quanto da “fuga dos deuses”, pois mesmo o “divino conhece o ocaso”. Até mesmo o divino se furta ao comércio com os homens e, quando se mostra a eles, macula-os com sua marca sacrílega. Ainda que a “Natureza seja sagrada”, vivemos em “tempos carentes de heróis”. Para Empédocles, os “deuses pátrios” não correspondem mais à sua verdade íntima, ou seja, não são suficientes para legitimar nem o humano como humano nem o divino, como divino. É em razão desse processo de isolamento que, nas palavras do sacerdote Hermócrates, o filósofo acaba “virando um estrangeiro”. Não estrangeiro da pátria e do plano temporal, mas um estrangeiro da existência atemporal, apartado primeiro dos deuses, e, por conseguinte, dos homens, por não mais compartilhar das crenças que os enraízam.

o sAgrAdo e o humAno

Em A morte de Empédocles, Hölderlin conseguiu captar a dinâmica do sagrado em toda a sua plenitude e complexidade, por meio da qual a filosofia assume as dramatis personae do poeta. Ao lê-la, somos induzidos a retirar essa máscara, chamada Empédocles, e nos vemos diante de um rosto: Hölderlin. Poeta solar, da loucura mais cristalina que já se concebeu, ele soube intuir a pulsação cósmica que subjaz ao jogo infinito dos contrários. Sendo, também, não poeta de poetas, mas um “poeta da poesia”, nas palavras de Heidegger, coube a Hölderlin fundar sua própria tradição, o que equivale, para o Espírito, a fundar-se a si mesmo, como poeta e como homem, o que é o mesmo que se desvelar como ser existente (Dasein). Assim, sua efígie parece dizer-nos que desde que saímos da Esfera, desde que saímos do Um e nos arrojamos à constante transformação, não há outra saída senão esta. Uma só vez. E “uma vez mais” — e tudo está determinado. Uma só vez. E basta. Esse é o sentido da vida. Essa é sua beleza, que sempre será trágica, pois ambas as palavras no fundo são uma coisa só.

hölderlin a combinação poética entre Classicismo e Romantismo Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843) foi um importante poeta lírico alemão. Sua poesia recolhe elementos da tradição clássica e os combina com os novos valores do romantismo. Na juventude, foi amigo dos futuros filósofos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Friedrich Schelling. Hölderlin estudou literatura e filosofia clássicas e traduziu para o alemão algumas tragédias gregas. A grande influência que recebeu da cultura helênica o afastou aos poucos da fé protestante. em Hölderlin, a visão poética e a visão filosófica estão intimamente conectadas: enquanto seus escritos filosóficos estão carregados de uma linguagem metafórica que impede uma interpretação unívoca dos mesmos, seus poemas e obras dramáticas são permeados de reflexões eminentemente filosóficas, ao lado das preocupações estético-literárias. os versos a seguir, extraídos da tradução de Marise Moassab Curioni de A morte de Parmênides, mostram a capacidade especulativa de sua poesia: “Quase sempre / os filhos da terra temem o novo e o desconhecido, / Só a vida das plantas e a do alegre animal / Aspiram ficar em seu canto, encerrados em si mesmos. / Confinados em seu âmbito, cuidam / de subsistir; sua mente nada alcança / Além, na vida”. Friedrich Hölderlin não foi um autor prolífico, mas sua literatura influenciou escritores como rainer Maria rilke e paul Celan e pensadores do porte de Martin Heidegger e Jacques derrida.

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Leitura

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noir Meio século sem Raymond Chandler

Um dos maiores escritores policiais de todos os tempos fez sua fama durante a Grande Depressão, quando dezenas de pulps circulavam com histórias de assassinatos e detetives texto Danielle Romani

considerado um dos pais do romance policial noir, Raymond Chandler teve uma vida relativamente longa (1888-1959) e igualmente atribulada. Assim como os personagens dos seus oito romances e 21 contos policiais, em especial, o durão Philip Marlowe – um dos mais famosos “detetives” de todos os tempos – passou grande parte da existência “afogando” as dores em doses de álcool, enfrentando imbróglios financeiros e convivendo com mulheres problemáticas. Ou seja: levou a vida quase da mesma forma como se desenrolavam as tramas de seus livros, à época chamados de pulp fiction (ficção barata), enfrentando gente ordinária e muitos contratempos. Nascido em Chicago, apesar de a maioria das suas narrativas serem ambientadas em Los Angeles, passou a infância na Irlanda e a adolescência na Inglaterra,

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o gênero

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à beira do abismo

o escritor não apenas se dedicou à produção de romances policiais, mas também refletiu sobre eles no ensaio A simples arte de matar Lauren Bacall e Humphrey Bogart contracenam em filmagem de 1944 de The Big Sleep, longa que contou com a participação de William Faulkner como roteirista

que o “mestre”: sua narrativa “seca como um Martini” – adjetivação que popularizou os romances noir no Brasil na década de 1980 –, seus diálogos rápidos, descrições ousadas e ações bem-estruturadas, além, logicamente, das mocinhas dúbias e fatais, tornaram-no, de longe, o mais eficiente escritor do gênero no século 20. Começou a escrever contos policiais em revistas como a Black Mask Magazine, em 1930, mas seu primeiro romance foi O sono eterno (1939), seguido de Adeus, minha adorada (1940).

“É difícil escrever bem uma história de detetive, mesmo em sua forma mais convencional”, diz chandler experiência que, de certa maneira, o tornou um cidadão do mundo, ou, pelo menos, um homem com uma visão mais abrangente do que a maioria dos americanos da época. Militar, contabilista, empresário do ramo petrolífero, e finalmente escritor, tinha como ídolo o também romancista noir Dashiell Hammett, autor de O falcão maltês (1930), que considerava um mestre e que o inspirou a produzir tramas policiais. Marlowe, seu principal personagem, que tinha 38 anos quando estreou nas pulps e era natural de Santa Rosa, na Califórnia, é uma adaptação – com um perfil mais “certinho – de Sam Spade, detetive igualmente durão criado por Dashiell. No livro A simples arte de matar, cujos volumes (dois) foram reeditados recentemente pela L&PM no formato pocket, escreveu um ensaio sobre o gênero, que virou febre na Grande

Depressão, quando dezenas de pulps circulavam com histórias de assassinatos e detetives. Nele, fala sobre a criação de uma narrativa policial; enaltece o ídolo Hammett e detrata escritores que classificava de muito “cerebrais” e pouco reais, como Agatha Christie e Conan Doyle, que considerava incapazes de produzir tramas onde se “molhavam as mãos de sangue”, como, acreditava, deveria ser um verdadeiro romance policial. Em 2009, ano do cinquentenário da morte de Chandler, muitos dos seus livros foram reeditados. A L&PM publicou uma caixa especial com cinco dos principais romances do autor, entre os quais A dama do lago (1943), Janela para a morte (1943) e O longo adeus (1953). Já a Editora Record reuniu em Chantagistas não atiram cinco contos inéditos do autor. Apesar de considerar Hammet um gênio, Chandler era melhor escritor

Suas obras também foram adaptadas para o cinema com grande êxito, como À beira do abismo (1946), dirigido por Howard Hawks, tendo Humphrey Bogart como Marlowe e Lauren Bacall como a mocinha fatal. Marlowe foi interpretado por diversos atores, a exemplo de Robert Montgomery, George Montgomery, Robert Mitchum, Dick Powell, Elliot Gould, Danny Glover, James Garner e James Caan. Adeus minha adorada também foi adaptado duas vezes para as telonas (em 1944 e 1975) e O longo adeus (1954) foi dirigido em 1973 por Robert Altman. O detetive durão manteve sua popularidade através das décadas. Ele foi personagem da série da HBO Philip Marlowe, private eye, que ficou no ar entre 1984 e 1988. Nos anos de ouro do rádio, também teve programas, como The adventure of Philip Marlowe, da NBC, transmitido em junho de 1947, tendo Van Heflin na pele do durão.

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FiCÇÃo esLaVa Livros e histórias que vêm do outro lado do mundo

Obras literárias importantes do leste europeu ganham tradução direta das línguas originais, entre as quais O percevejo, de Maiakóvski, e Felicidade conjugal, de Tolstói texto Mariana Oliveira

durante um bom tempo , os clássicos dos escritores eslavos não eram encontrados no Brasil em traduções realizadas diretamente de suas línguas originais. Muitos leram Crime e castigo e outros clássicos da literatura do leste europeu através de traduções do francês. Há alguns anos, a Editora 34 lançou a Coleção Leste, que contabiliza quase 30 livros traduzidos do russo e de outros idiomas eslavos para o português. Agora, chegam às livrarias três obras de relevância que ainda não haviam sido publicadas dentro da coleção

(O percevejo, de Vladímir Maiakóvski, Felicidade conjugal, de Lev Tolstói, e Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de Nikolai Leskov) e outra lançada em 1994, que ganha nova edição, Histórias apócrifas, de Karel Capek. Além de dois outros títulos em fase de produção: Teatro completo, de Nicolai Gogol, e Gente pobre, de Fiódor Dostoiévski. Os textos do tcheco Karel Capek, ainda desconhecido entre os brasileiros – que têm como principal referência dessa literatura Franz Kafka e Milan Kundera – foram publicados entre 1920 e 1933, e reunidos em forma de

livro postumamente, em 1945. Nesses contos, seu gênero predileto, o autor, que foi um dos responsáveis por cunhar o termo robô, retoma histórias de episódios e personagens míticos de pontos de vista inusitados. O russo Nikolai Leskov é outro escritor que demorou a ser reconhecido fora e dentro do seu país. Devido ao seu vasto conhecimento sobre os costumes e os tipos populares de seu país, é considerado um dos melhores escritores entre os que souberam narrar histórias cotidianas. Em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, o autor busca inspiração na personagem de Shakespeare para narrar a trajetória de uma garota – casada com um homem velho – que se envolve com um jovem ambicioso. A agilidade de sua narração, mesmo em se tratando de um tema banal, levou Walter Benjamin a refletir sobre esse processo no famoso ensaio O narrador. A peça O percevejo é considerada a melhor obra para teatro de Vladímir Maiakóvski. O dramaturgo e poeta sempre foi tido como um artista “a serviço do poder revolucionário”, dedicando-se a explorar inovações artísticas que pudessem refletir tal ideal. Porém, o alto grau de experimentação de sua dramaturgia gerou acusações de que suas obras não se adequavam à educação das massas operárias. Nesta peça, ele demonstra que sua fé na revolução já não é mais a mesma, mas mantém sua crítica aos costumes pequeno-burgueses. Em Felicidade conjugal, considerada a primeira grande obra de Tolstói, é Mária Aleksândrovna que nos conta sua própria história, do momento em que se encanta e se apaixona pelo maduro Sierguiéi Mikháilitch ao momento em que tudo perde a graça e a personagem começa a desejar algo, a fantasiar relações e situações mais do que vivê-las. Mária torna-se soberba, mas depois se reencontra e descobre outra vez o amor pelo marido: “A partir desse dia, terminou o meu romance com o meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa, e que ainda não acabei de viver...”.

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indicações MÚSICA

HeitoR ViLLa-Lobos Guia prático Vol. i Academia brasileira de música/ Funarte

A volta do ensino musical obrigatório e o cinquentenário de falecimento de Heitor Villa-Lobos motivaram a reedição recente de um clássico da pedagogia musical brasileira: o Guia Prático. dividida em quatro volumes, a compilação de 137 canções folclóricas, arranjadas para canto e piano pelo compositor, resultou em uma versão menor de 55 peças para piano solo, gravada por vários intérpretes. Base para a prática do canto orfeônico na era Vargas e até hoje sem paralelo no país, muitas das canções apareceram disfarçadas dentro do único musical que VillaLobos escreveu para a Broadway, Magdalena, e integram ainda hoje o repertório das cantigas de roda e de ninar de nossos avós.

ROMANCE

ENSAIO

MaRia saLett taUk saNtos (oRG.) inclusão digital, inclusão social? edições bagaço

Nesta coletânea, a doutora em Ciências da Comunicação e coordenadora do núcleo de pósGraduação em extensão rural e desenvolvimento Local da uFrpe, Maria Salett Tauk Santos, reúne textos que apontam como se dá o uso das novas tecnologias da informação e comunicação em contextos populares. Com uma metodologia fincada nas ideias de Jesús Martín-Barbero e Nestor Garcia Canclini, os ensaios tentam entender até que ponto as experiências de inclusão digital no Brasil levam também a uma inclusão social das culturas populares.

JosÉ LUÍs peiXoto Uma casa na escuridão record

“Quando acordei, não sabia do mundo senão a derrota. doía-me o corpo morno sob a roupa amassada, mole e morna. Caminhava em passos desencontrados pelo corredor”, escreve em seu novo romance o escritor alentejano José Luís peixoto, que, aos 35 anos, já soma conquistas na sua arte de contar histórias. ele recebeu o prêmio José Saramago, atribuído ao romance Nenhum olhar (2001), e vários por Cemitério de pianos, que em 2008 figurou entre os finalistas do portugal Telecom. este ano, foi lançada no Brasil Uma casa na escuridão, obra criada numa linguagem poética e profusa, e na qual estamos diante de um mundo que desmorona.

CONTOS

JosepH CoNRaD Um anarquista e outros contos hedra

Na introdução que faz ao livro, o tradutor dirceu Villa inclui Conrad numa estirpe de prosadores do final do século 19 e começo do 20 — que se delineara desde rabelais e Cervantes. esta linhagem seria caracterizada, entre outros aspectos, pela retirada da ação para o domínio do psicológico, o uso da ironia, a frustração das expectativas de desfecho, um narrador em quem não é possível confiar. As qualidades descritas podem ser conferidas na coletânea de contos – O informante, Il conde, A bruta e Um anarquista –, em que o leitor encontra o marujo Conrad em sua melhor economia narrativa. os quatro contos foram retirados do livro A set of six (1908).

Atlas

ANÁLISE GEOGRÁFICA, HISTÓRICA E LITERÁRIA DOS SERTÕES desde 2006, o instituto Brasileiro de Geografia e estatística (iBGe) vem produzindo um trabalho que extrapola suas atribuições. Com o auxílio de diversas universidades, o instituto está editando uma série de atlas que destacam regiões com identidades fortemente marcadas e presentes no imaginário nacional, fazendo uma análise geográfica, histórica e literária dessas localidades. É neste tripé – geografia, história e literatura – que se pauta o Atlas das representações literárias brasileiras, cujo segundo volume, Sertões brasileiros 1, já está

disponível nas livrarias. Seguindo a mesma linha adotada para a região conhecida como Brasil Meridional – analisada há três anos no primeiro exemplar da série –, desta vez o recorte geográfico engloba quatro regiões que já foram consideradas, ou ainda o são, como “sertões”: o vale do paraíba e a zona da mata mineira, Sertões do Leste, como eram conhecidos no século 18; as regiões de Minas e dos Currais da Bahia, os chamados Sertões do ouro do século 17; e o Sertão de Cima, como era denominada a região da Chapada diamantina. A última parte do livro

analisa o que se conhece como Sertões Nordestinos, as regiões do Cariri paraibano, do Vale do pajeú e do Cariri Cearense. ilustrado com mapas feitos por satélites e fotos, o exemplar conta como se deu a ocupação dessas áreas e também mostra como foram retratadas, e “imortalizadas”, por autores do porte de Guimarães rosa, Ana Miranda, euclides da Cunha, Afrânio peixoto e Ariano Suassuna, para citar alguns. uma bela forma de estudar a geografia nacional e a ocupação territorial. dAnielle romAni

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eCoNoMia o relançamento de uma obra que permanece

Livro mais conhecido do economista Celso Furtado, publicado pela primeira vez em 1959, recebe agora uma caprichada edição comemorativa texto Ricardo Melo

um contratempo marcou a história

de um dos mais importantes estudos sobre a economia brasileira. Na apresentação à edicão comemorativa do cinquentenário de Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado, a jornalista Rosa Freire d’Aguiar Furtado, sua mulher, revela que um problema técnico no avião em que Celso ia para a Inglaterra, em 1957, obrigou-o a permanecer um dia no Recife, cidade em que morara no fim dos anos 1930. Na livraria Imperatriz, encontrou uma edição do livro de Roberto Simonsen, História econômica do Brasil. Segundo Rosa, após um leitura atenta, Celso Furtado chegou a Cambridge pensando em explorar os dados quantitativos que Simonsen reunira sobre o período colonial. “A ideia se desdobraria no estudo de quatro séculos da economia brasileira”, ela conclui. Lançada em janeiro de 1959, Formação econômica do Brasil, obra fundamental na história do pensamento econômico brasileiro e que permanece atual, já vendeu 350 mil exemplares e foi traduzida para nove línguas (espanhol, inglês, polonês, italiano, japonês, francês,

Leitura

Formação econômica do Brasil celso FurtAdo companhia das letras edição comemorativa dos 50 anos de lançamento

alemão, romeno e chinês). São 34 edições até agora, além de algumas especiais como esta, lançada em setembro pela Companhia das Letras. Trata-se de uma bem-cuidada republicação do texto original, que cobre 294 páginas, completada por uma introdução escrita por Luiz Felipe de Alencastro e fortuna crítica, com 21 comentários, publicados ao longo dos últimos 50 anos e um caderno de fotos. Celso Furtado (1920-2004), paraibano, após voltar da França, em 1948, onde se doutorou em economia pela Universidade de Paris, integrase à recém-criada Cepal — Comissão Econômica Para a América Latina, da ONU, na qual permanece por nove anos. Em setembro de 1957 segue para a Universidade de Cambridge. Ali, no King’s College, escreve Formação. No seu retorno ao Brasil, Furtado, à frente de uma diretoria do BNDE, elabora o estudo Uma política de desenvolvimento para o Nordeste, que dá origem ao Conselho de Desenvolvimento do Nordeste, embrião da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Assume, em 1962, a pasta do Planejamento, no ministério do presidente João Goulart. Em 1964, com os direitos políticos cassados pelo Regime Militar, Celso Furtado passa a desenvolver trabalhos como pesquisador e professor no exterior, só retornando regularmente ao Brasil após a Anistia. Autor de mais 37 livros, Celso Furtado foi membro da Academia Brasileira de Letras e, como ministro da Cultura, em 1986, elaborou e implantou a primeira lei de incentivos fiscais à cultura.

Artigo

eDUaRDo HeNRiqUe aCCioLy CaMpos 50 aNos De formação econômica do Brasil o país homenageia os 50 anos do

lançamento de Formação econômica do Brasil, através de seminários, exposições, edição comemorativa e estudos sobre esta obra do economista Celso Furtado, que o projetou como um dos grandes intérpretes da sociedade brasileira. O livro é, nas palavras do autor, um afresco no qual cada segmento estruturado induz uma sugestão para o leitor continuar pensando e questionando, ajudando cada geração a captar a realidade nacional e identificar os seus verdadeiros problemas. Formação econômica do Brasil incorporou, nos poucos meses de sua concepção, a intensa experiência de um jovem economista: desde a elaboração da sua tese de doutoramento na Sorbonne (1948), na qual Celso Furtado estudou a economia colonial brasileira, à sua experiência de uma década na implantação da Cepal e à discussão sobre o subdesenvolvimento nos debates que se seguiram em importantes universidades dos países industrializados. Este texto basilar está lastreado em estudos prévios, como o artigo Características gerais da economia brasileira (1950) e os livros A Economia brasileira: Contribuição à análise de seu desenvolvimento (1954) e Perspectiva da economia brasileira (1958). Uma das características marcantes de Formação econômica do Brasil é o fato de, simultaneamente ao grande painel que apresenta da dinâmica econômica e social do país, desde a época colonial, registrar as desigualdades regionais que vão sendo construídas e consolidadas

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diVuLGAção

determinantes do diagnóstico e das propostas que depois seriam incorporados nos planos diretores da superintendência federal. No entanto, a obra de Celso Furtado evidencia não somente os determinantes da questão regional, ao estudar o “complexo nordestino”, a economia escravista mineira, a gestação da economia cafeeira e suas crises e a industrialização do país concentrada no Sudeste. Também aborda temas que permanecem na pauta de discussão dos problemas mais relevantes da sociedade brasileira. A concentração pessoal e regional da renda; os mecanismos de socialização das perdas e

o estudo de celso Furtado é referência para os que buscam conhecimento sobre os problemas do país

nessa evolução, mostrando as raízes que marcaram as grandes diferenças sociais e econômicas entre as populações nacionais. Em tal painel, o Nordeste se destaca. Aqui, cabe mencionar que dois trabalhos de Celso Furtado, que definiram sua política de

desenvolvimento para o Nordeste e orientaram a ação da Sudene, publicados ambos em 1959 – Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste e Operação Nordeste –, não podem ser dissociados de Formação econômica do Brasil. Estavam explícitos, aí, com suas cores fundamentais, os

as transferências de renda que penalizam as populações e regiões mais atrasadas; o problema da mão de obra, das relações de trabalho e do deslocamento da população; os desequilíbrios externos; o papel ativo e regulador do Estado no desenvolvimento econômico e social e o caráter singular e histórico do desenvolvimento das sociedades – estão presentes em Formação econômica, atestando a sua atualidade. O vasto painel analisado por Celso Furtado, há 50 anos, continua a influenciar não só a geração à qual o autor se referia em 1959, mas sucessivas gerações, tanto no esforço de compreensão da realidade econômica e social como na concepção de propostas e de saídas para os desafios do tempo presente. Formação econômica do Brasil constitui-se um marco permanente de referência para todos os que pretendem transformar o país em uma sociedade mais justa e solidária, a partir da consciência dos seus problemas fundamentais.

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Quatro mestres

matéria corrida José cláudio

artista plástico

A exposição de pintura Quatro

mestres inaugura a galeria do Espaço Brennand, Av. Domingos Ferreira, 1274, Pina, sentindo-me feliz de ser incluído entre os convidados Reynaldo Fonseca, Francisco Brennand e João Câmara. Francisco Brennand tem sido rumo seguro da arte de Pernambuco. Mesmo trancado no seu atelier de pintor, na sua caverna, para onde carrega as suas presas para serem devoradas, a sua ação repercute qual abalo sísmico a cada aparição de um de seus quadros, como estes três aqui salvos para nosso deleite e espanto, esse chamado à vida. O pintor nos convida a olhar os quadros com o olhar do instinto, somos instados a grudar o olhar nos seus quadros, esculturas e desenhos que propõem muitas vezes ambiguidades, como de sentir num desenho uma escultura até nos pormenores da textura de pedra bruta ou a ilusão de apalpar na escultura uma pintura em várias dimensões, lembrando-me agora da “escultopintura” de Siqueiros, dimensões além das visuais, incluindo o tempo, a dor, o som de sentimentos profundos estrangulados. Sua obra deveria ficar para sempre numa cripta sem fim como as catacumbas romanas. Cada vez me sinto isso de me sentir seguro podendo me dar ao luxo de todo tipo de lucubrações pelo privilégio de

estar vivendo aqui, sendo, além de conterrâneo, contemporâneo do pintor, inflorescência absurda que brota do chão da mata tropical, com seus bulbos, glandes e cogumelos venenosos. A pintura de João Câmara se passa na cabeça das pessoas e não o que se vê à luz do dia. Seus quadros são feitos de citações de antigas ilustrações, rótulos, fotos, numa metamorfose constante que lembra o automatismo da escrita surrealista, o processo joyciano de Finnegans Wake, os cortes, embora sem propósitos analíticos ou sintéticos, decorrentes do Cubismo, numa montagem sempre surpreendente como se o pintor propusesse um enigma, por mais minuciosamente descritiva a pintura de cada elemento ali reunido. O quadro Estampa de Justine (Sade?) faz parte dessas citações ou pseudocitações que nos ficaram na lembrança de algum postal da belle époque (um dos primeiros quadros de Gilvan Samico foi tirado da tampa de uma saboneteira de louça ainda quando ele estava pelos 20 anos e há um retrato de uma irmã de Cézanne que o pintor francês copiou de um desenho de revista de modas, inaugurando a era pop), nos causando um frêmito de “primeiro alumbramento”, o voyeurismo de quando nos deparávamos com os primeiros fetiches de vestuário

feminino no inédito ato de despir-se, o que curiosamente também participa dos quadros de Francisco Brennand, principalmente A consulesa da paz I. O outro quadro de João Câmara tem o título Pentimento (arrependimento, em italiano). Passo a palavra à escritora Lillian Hellman, livro do mesmo nome, de 1973: “À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia”. João Câmara deve ter querido trazer à tona suas antigas lembranças de ledor de gibi agora na idade e pintura maduras. Tudo toma a dimensão do sagrado, do metafísico, nos quadros de Reynaldo Fonseca, de figuras estáticas extremamente estudadas, seja figuras humanas, seja objetos, mas o que é imoto é o tempo, servindo a figuração, até o mínimo motivo de arquitetura ou decoração, sempre atemporais, para captar, não um determinado momento, mas a eternidade. Este é seu único tema. É isso que nos causa essa sensação de profundidade no tempo, do infinito, de

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mundo inalcançável, de utopia em cada milímetro de seus quadros perfeitos. Cada elemento do quadro tem a marca dessa atemporalidade mais do que a ideia de uma determinada época que por acaso uma peça de vestuário ou uma terrina de louça nos transmita. Tudo é como se fosse chamado a comparecer ao quadro na sua essência e invariabilidade ou inevitabilidade, sem abdicar no entanto de um valor indispensável: a elegância, a correção, a adequação da parte ao todo, sem o menor deslize. Quanto aos meus quadros, com exceção da paisagem Cajueiros e macaibeira, pintada no local, na Praia do Xaréu, sem mais tocá-la, os outros quadros são justamente lucubrações do quadro O descanso do modelo, de Almeida Júnior, uma obsessão desde a adolescência: deve ter sido a primeira imagem de nu feminino que me foi dado ver. Pintei mais de 20 versões, desde as mais elaboradas, com preocupação de fidelidade, às mais livres, sendo estas as últimas da série, a modelo sendo carregada pelo demônio e no meio de um delírio fálico, que intitulei de Tentações de Santo Antão.

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José cláudio

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João câmArA

Tentações de Sto. Antão I. Óleo sobre duratex, 121 x 78cm, 1980 A consulesa da paz I. Acrílica sobre tela colada em madeira, 89 x 65cm, 2008

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frAncisco brennAnd

Pandora. Óleo sobre tela, 50 x 70cm, 2009 Suzana no banho. Acrílica sobre duratex, 81 x 60cm, 1995

Tentações de Sto. Antão II, Acrílica sobre duratex, 121 x 90cm, 1981 Estampa de Justine. Acrílica sobre tela, 160 x 110cm, 2007 Figuras na paisagem. Óleo sobre tela, 65 x 100cm, 2009 Pentimento. Óleo sobre tela e madeira, 158 x 58cm, 2008

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CALENDÁRIOS Um jeito charmoso de marcar o tempo

mesmo com os avanços tecnológicos, nessa época do ano, tradição das folhinhas continua firme, às vezes ganhando status de obra de arte TEXTO Mariana Oliveira

Visuais

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RenatO FilHO/divulgaçãO

1 cOstantinO RusPOli/divulgaçãO

entre as tradições de fim de ano, está a distribuição de folhinhas. Quem nunca recebeu um típico calendário de bolso, com imagens kitsch, depois de uma compra durante o mês de dezembro num açougue, numa farmácia ou numa padaria? As folhinhas, que podem parecer até algo fora de moda, ainda resistem aos avanços tecnológicos e aos calendários dos celulares e computadores, sendo distribuídas pelas lojas de comércio tradicional ou tornando-se verdadeiras relíquias artísticas para colecionadores. Investindo nesse setor, a Indústria Brasileira de Folhinhas (Ibraf), há dois anos com loja de fábrica no Recife, vende anualmente cerca de 45 milhões de folhinhas em todo o país. “Quem não precisa ter um calendário em casa para facilitar a vida, mesmo que seja atrás da porta? E quem não quer ter sua marca o ano todo na parede, na mesa, no livro do consumidor?”, indaga, justificando as demandas do seu negócio, a proprietária da Ibraf, Sônia Maria Caraponali. A ligação de sua família com os calendários começou com o seu sogro que, durante anos, trabalhou numa fábrica de folhinhas. Foi assim que Douglas Caraponali, seu marido, então com 18 anos, passou a trabalhar na venda do material produzido por seu pai. Tempos depois, ele resolveu montar sua própria empresa e virou também um colecionador de calendários. “A concepção do calendário como um brinde é brasileira. Somos os únicos atualmente a ter essa cultura, apesar dela ter vindo da Itália”, explica Douglas, destacando que são poucos que se arriscam num setor com mercadorias sazonais, logo, de risco. A cada ano, eles produzem um mostruário com várias séries de calendários de tamanhos e tipos variados, com ilustrações diversas, impressas em todos os tipos de papel. Segundo Sônia, as ilustrações mais procuradas são as de crianças e cachorros, e as que trazem salmos da Bíblia. Mas o campeão de vendas – três milhões no ano – é o calendário comercial: não possui imagens, traz os números grandes, com espaços para alguns lembretes.

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portfólio

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cult

Há oito anos o fotógrafo pernambucano Renato Filho criou um calendário ousado, com cuidado especial com a maquiagem e o figurino

O calendário 2010 da empresa italiana Pirelli é ilustrado com imagens de 11 modelos, clicadas nas praias da Bahia

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FlORa Pimentel

Visuais 3

É com esse mostruário que seu Erivaldo Vieira de Araújo percorre cidades da Zona da Mata pernambucana, oferecendo calendários nos estabelecimentos comerciais. “Faz cinco anos que estou trabalhando com isso. Saio oferecendo e chego a vender 10 mil calendários por ano”, conta o revendedor. Depois de confirmar as encomendas, ele segue para a loja de fábrica, compra os calendários selecionados e começa a imprimir o nome do comprador, utilizando o silk, ou mesmo carimbos. Segundo Douglas Caraponali, as folhinhas são brindes com baixo custo e longo tempo de utilidade. Além das criações em massa, a Ibraf também oferece aos seus clientes a possibilidade de criar um layout específico e exclusivo. Geralmente, as lojas de maior porte terminam fazendo essa opção. A Livraria Cultura, por exemplo, cria e distribui seus calendários há cerca de

20 anos. Já virou uma tradição da rede. Todo ano são distribuídos, nas suas nove lojas, uma média de 110 mil calendários, no formato pôster. Em 2010, as capas mais criativas da Revista da Cultura vão compor o layout do material.

Apelo Ao SenSuAl

Enquanto as pequenas lojas investem recursos modestos nos calendários tradicionais, grandes empresas chegam a gastar milhões. É o caso da Pirelli e seu famoso calendário, conhecido como The cal. Criando em 1963, por Robert Freeman, o fotógrafo oficial dos Beatles, tornou-se um objeto cult, foco de vários colecionadores e fãs, que esperam os últimos dias do ano para ter acesso às imagens de belas mulheres em locações paradisíacas. Aquilo que começou como uma ação simples da filial inglesa da empresa italiana ganhou fama e tornou-se um verdadeiro objeto de desejo, já que é

distribuído para um seleto grupo e não é comercializado. Desde então, a exceção dos anos entre 1975 e 1984, quando a recessão impediu a Pirelli de investir nessa peça, modelos de todo o mundo são clicadas por grandes fotógrafos nos lugares mais inusitados. A fama é tão grande que boa parte das garotas aceita um cachê bem menor do que o habitual apenas para figurar nas páginas do The cal. A edição de 2010, lançada no final de novembro, traz 11 modelos que foram trazidas às praias da Bahia para serem clicadas por Terry Richardson. O resultado, segundo o próprio fotógrafo, é um retorno à brincadeira, ao Eros puro. Numa linha parecida, também disputado por colecionadores, mas com um orçamento bem mais enxuto, está o calendário do fotógrafo pernambucano Renato Filho. Em 2002, já com 11 anos atuando no campo da fotografia de moda e de publicidade, Renato queria

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RePROduçãO

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ibrAf

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lulA cArdoSo AyreS

a empresa, com loja de fábrica no Recife, chega a vender 45 milhões de folhinhas por ano O tradicional calendário da cepe, criado há 15 anos, vai prestar uma homenagem ao artista em 2010

produzir um portfólio diferente, em que ele pudesse ousar mais esteticamente. Um amigo lhe sugeriu produzir um calendário; assim, seu portfólio seria visto durante todo o ano. “Nasceu de uma necessidade minha de exercitar estéticas e territórios livres”, define. O material saiu, foi distribuído e virou sucesso. “É um fato. Nenhum trabalho me deu tanto retorno quanto o calendário”, afirma. Desde então, com alguma dificuldade para reunir verba, o fotógrafo produz sua folhinha chique ano a ano, com um tema específico, modelos e muita produção, da maquiagem ao figurino. O calendário de 2010 já está em fase de finalização e foi produzido em Fernando de Noronha. Segundo Renato Filho, foi sua produtora, Fabiana Pirro, quem sugeriu que a temática e locação deste ano fosse o arquipélago. “No estúdio, tudo é muito controlado; neste calendário, fazer as fotos ao ar livre é um dos meus maiores desafios.” O conceito do calendário gira em torno de uma náufraga que chegou à ilha com poucas roupas e passou, desde então, a se misturar à natureza e aproveitar elementos dela como vestuário. “Eu não quero ter um olhar apenas contemplativo, quero inserir o corpo humano dentro da natureza, trabalhando muito com o orgânico”, explica.

HoMenAGeM À culturA

A Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), que publica a Continente, também é responsável pela realização de um calendário aguardado. A tradição da imprensa oficial do Estado na criação de folhinhas começou em 1994, num evento criado por Júlio Gonçalves, atual gerente de produção gráfica. Ele fazia parte do grupo de artistas Bottega

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e teve a ideia de trazê-lo para pintar junto com os funcionários da empresa, num evento chamado Pinte na Cepe. O resultado foi publicado no Suplemento Cultural do Estado, mas, por sugestão de outro funcionário, Daniel Juvêncio, as seis imagens produzidas terminaram compondo o calendário de 1995. “Naquele primeiro, o layout foi bem tímido. Mas, nos anos seguintes, ele foi tomando vulto, ganhando vida própria”, explica Júlio. Segundo ele, o critério fundamental do calendário é sempre estar vinculado à cultura pernambucana. Nesses 15 anos, a comida, os artistas, os ritmos e os pássaros de Pernambuco já serviram de inspiração para o material. “O calendário da Cepe é uma fonte

muito rica visualmente e também textualmente. Por isso as pessoas colecionam, ele é bastante disputado”, diz o funcionário, lembrando que o material não é comercializado. O calendário de 2010 da Companhia vai prestar uma homenagem ao pintor pernambucano Lula Cardoso Ayres, no ano em que ele completaria 100 anos. Foram selecionadas 24 obras do artista, 12 para o calendário de mesa e 12 para o de parede — além disso, a agenda 2010 da Cepe também destacará sua obra. Nesta edição, a Continente também brinda seus leitores com um calendário de parede, ilustrado com ensaio fotográfico, realizado pelo artista, nos anos 1940, na Zona da Mata pernambucana.

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Artigo

JOSÉ AFONSO JR. A quem iNteReSSA A mORte dO FOtOJORNAliSmO? Desde que se deflagrou a

quebradeira financeira internacional em outubro de 2008, a pauta da mídia em crise tem ocupado espaço na agenda pública. Nos EUA, no último ano, 153 jornais saíram de circulação. Na Europa, foram mais de 50. No meio de 2009, a agência fotográfica francesa Gamma engorda o coro e entra com pedido de concordata, alegando sucessivos prejuízos que, somente no primeiro semestre, alçaram mais de quatro milhões de dólares. Na esteira dos alardes, a Gamma declara: “O fotojornalismo morreu (...) vamos ter que passar para assuntos mais profundos”. Chave desse raciocínio: já que a crise é geral, o fotojornalismo também aceita as consequências. Não é a primeira e nem será a última morte do fotojornalismo. De tempos em tempos isso se dá em função de contextos específicos. Foi assim quando surgiu nos anos 1930 a câmera Leica, que, segundo as declarações da época, não era um dispositivo “sério” em meio a um ambiente dominado pelas câmeras de médio formato e de chapas de vidro. O que aconteceu foi justamente o contrário: com a portabilidade da Leica, o fotojornalismo ganhou leveza, agilidade, proximidade e possibilidades de articular enunciados estéticos e jornalísticos de modo diferenciado até então. Outras mortes foram atribuídas quando surgiram os bancos de imagens transnacionais e a consolidação do mercado/ indústria de imagens em torno de gigantes como Corbis e Getty Images. O que orienta mais essa morte do fotojornalismo? Para iluminar a questão, temos alguns prismas. Tanto os do horizonte mais geral da paisagem da mídia e do jornalismo e, claro, as imprevisibilidades naturais de uma prática dinâmica, no caso, a própria fotografia.

imagem clássica

bettmAn/Corbis

Crianças fogem de um bombardeio de napalm, ocorrido em junho de 1972, no sul do Vietnã. A foto pertence ao acervo da gigante agência Corbis

Na paisagem da mídia, o que é cada vez mais anacrônico é a tentativa de manutenção de um modelo massificado, centralizado e de distribuição radial. Uma fórmula que se sustenta desde os anos 1960, quando o agenciamento das imagens fazia sentido em uma mídia organizada no modelo um-todos. Ou seja, gerar uma mesma produção que era distribuída indistintamente para uma série de veículos situados ao redor do mundo. Querer que esse modelo continue existindo estavelmente em um mundo conectado de modo múltiplo, de livre possibilidade de produção de conteúdo e de refuncionalização constante das ferramentas envolvidas na produção – edição – e circulação de imagens, é algo claramente descabido, fora de compasso. Sempre fomos acostumados, e os veículos também, a atuarmos como descarregadores de conteúdos. No modelo que se articula a partir de 2002, aproximadamente, com a web 2.0, esse eixo se sobrepõe à lógica do upload, ou seja, propor conteúdos, articulações entre pessoas, contextos, gerar informação fora de modelos polarizados. Esse excesso de oferta permitido pelas tecnologias de informação e comunicação se vincula a um comportamento de consumo específico: trocar a lógica de oferta daquilo que está posto; pela lógica da procura, daquilo que está proposto. Trocar o eixo-lógica: agências/ canais de TV/ imprensa tradicional por blogs/ Facebook/ Youtube. A consolidação de um modelo de comunicação em rede na lógica todos-todos é um cenário que altera também o modo de se fazer, de circular e consumir fotojornalismo. Com o excesso de fontes produzindo imagens, ocorre uma brutal queda do poder de negociação dos fotógrafos e dos preços, os canais de operação se afunilam e se deslocam esforços de

produção que saem de temas mais densos e que exigem maiores aportes de cobertura e se destinam mais ao acompanhamento de celebridades, do entretenimento e do sensacionalismo. Assuntos que demandam custo e problematização de baixo nível. O cenário de redes muda a profissão de fotojornalista. É lógico que ele não está morto, mas reajustado. Se não se percebem de modo claro as tendências, cabe refletir sobre o entorno e perceber para onde se caminha. Em primeiro lugar, a mesma lógica que se alega como sendo a causa do fim do fotojornalismo permite o surgimento de experimentos diferenciados e já articulados à lógica do uso da informação em upload. O aparecimento de coletivos fotográficos nasce do conjunto de possibilidades de articulação em rede, por afinidades temáticas ou de afetividades entre os membros. Pensar os coletivos é

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perceber um modelo que se apoia num posicionamento em função das redes, mesmo que o produto final não vá estar na internet (algo raro hoje em dia), mas que se articula em torno da sua presença e alternativas. Segundo, o tratamento e edição de imagens convergem com a multimídia, ganhando nova dimensão narrativa e permitindo justaposições com as estruturas sonoras e da imagem em movimento. É uma linguagem que não chega a ser nova, mas que tem permitido o reempacotamento de material, como no caso da Agência Magnum, através do seu braço multimídia, a Magnum in Motion, e oferecendo uma perspectiva para o fotojornalismo em modo expandido. O assunto é complexo em si, afinal, cabe a uma agência de imagem, ao fazer às vezes nada mais que slide-shows, tentar ser uma produtora de vídeos para a web?

Terceiro: pensar os canais de circulação do fotojornalismo em um ambiente de convergência de mídias. Esse é um dos aspectos mais complexos por, justamente, não apontar com clareza a velocidade com que os desdobramentos se darão. Se para o cenário da próxima década o acesso à web se dará primordialmente pelo celular que você carrega no bolso, cabe pensar como ser fotojornalista em um mundo de telas sensíveis ao toque. Retorno à pergunta: onde está a crise? No modelo atrelado a uma concepção de produtos da mídia nitidamente e progressivamente em falência, ou numa visão engessada e oportunista em função da crise? Engessada por não se permitir ver esses caminhos de crescimento e aberturas. Oportunista por jogar a responsabilidade da ruptura que ocorre agora numa crise de fundo muito mais geral e não em falhas e

acomodações acontecidas em um processo histórico. O fotojornalismo morreu? Não, para quem é capaz de enxergar esse impasse como a configuração atual, como mais um capítulo no percurso da fotografia de imprensa. Certamente, trata-se de um arranjo que foge ao modelo verticalizado da produção em que o fotojornalismo construiu muito da sua história. Nitidamente, trata-se de um movimento múltiplo, pulverizado, que se aproxima da proposição de um universo de assuntos variados e não mais mediados exclusivamente a partir do que tensiona o campo das notícias de modo hierárquico. Assim, o fotojornalismo século 21 vai absorvendo elementos da formação de gêneros próprios das mídias digitais. A sua morte só interessa a quem não consegue acompanhar a mudança do centro de gravidade onde se apoiam tais dinâmicas. O que vem de baixo nos atinge.

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Leo Falcão

O LIMBO DA LINGUAGEM em conversa recente, um amigo expressou sua opinião a

Leo Falcão é cineasta, professor, músico e designer de conteúdo

flora pimentel

respeito do meu trabalho: “Não há nada de errado com o seu cinema, exceto uma queda constante pelo artifício”. Ele se referia ao uso da metalinguagem nos meus filmes. Reconheci que foi uma leitura bastante acurada, e que de fato este me é um tema recorrente. E, dadas recentes tentativas frustradas de viabilizar outras obras que lidam com isso, esse tema parece ter-se tornado um pouco démodé. Porém, ao tomar contato com novas configurações do cinema, tenho feito algumas reflexões sobre estilo e linguagem. Essas reflexões, em maior ou menor medida, estão presentes na minha produção artística, é claro, e versam em especial sobre novas formas de pensar, fazer e consumir cinema. É notória a transição, no nível teórico, de uma simples linguagem para o conceito mais complexo de “dispositivo”, que envolve toda uma instituição (filme, sala, audiência) da qual a linguagem é apenas parte. A mudança do dispositivo é evidente: potencialidades expressivas do cinema já transcendem o espaço da sala e da audiência passiva, migrando para estatutos de exposição (aproximando-se das artes plásticas) ou interativos (relacionados a mídias digitais). Entre tantos caminhos possíveis, a linguagem parece ter-se diluído em experiências sensoriais mais intensas, muito embora a nossa necessidade milenar de consumo de narrativas possa garantir sua sobrevivência durante alguns anos. Nesses novos parâmetros, o espectador é ativo. Elementar concluir que a metalinguagem não só é parte do processo criativo (pois exige do autor o domínio de possibilidades técnicas do meio em que se está manifestando), mas também parte do processo de leitura: os conteúdos são acessados a partir da manipulação direta de mecanismos, ferramentas e convenções. O leitor, portanto, reconhece que sua leitura se dá a partir do momento em que ele articula conscientemente a linguagem. Por que, então, a metalinguagem cai em desuso enquanto temática justamente no momento em que é pressuposto para a consumação de mensagens? Talvez a resposta esteja fora da esfera temática, se pensarmos que o discurso narrativo parece funcionar melhor quando dotado de uma maior intensidade de estímulos sensoriais e cognitivos – haja vista a moda de abordagens mais cruas, despidas de sutilezas metafóricas. De qualquer modo, a linguagem deixa de ser vista como mero meio de propagação da mensagem. E, fora da perspectiva ontológica, não se pode mais considerá-la um fim. Mais do que nunca, a linguagem é o início – não mais de uma contemplação passiva, mas de um jogo de relações que transforma nossa percepção em convite à ação.

con ti nen te#44

continente dezembro 2009 | 88

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