Continente #110 - Maestros soberanos

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fevereiro 2010

marcos michael/JC imagem

aos leitores Chegou o Carnaval. E, com ele, o artista popular que se origina das zonas periféricas das cidades transforma-se em protagonista da festa. Por todo o Estado de Pernambuco, foliões irão se fantasiar para cair na fuzarca, enquanto outros se vestem para exibir sua arte profissionalmente. São lanceiros do maracatu rural, rainhas do maracatu nação, ursos, mateus, catirinas, passistas e músicos, que vêm vencendo os desafios de se viver numa comunidade pobre. Com bermuda, alpercatas, camisa colorida, óculos escuros a postos e trompete em punho, Forró é um desses trabalhadores da folia, maestro popular que garante a alegria de muitos ao reger sua Orquestra Popular da Bomba do Hemetério - que emprega 21 pessoas desta localidade. Outro produto, criado no bairro pelo trompetista é a Escola de Música Zé Amâncio do Coco, recentemente aprovada como Ponto de Cultura, que vem colaborando para formar novos Forrós, novos Spoks... Spok, mais uma bem-vinda revelação da música pernambucana desta geração, inspirouse, ao assistir a um documentário sobre o maestro norte-americano Quincy Jones, em documentar a imagem e o pensamento de sete maestros de frevo de rua, os legendários

Edson Rodrigues, Guedes Peixoto, Duda, Clóvis Pereira, Nunes, José Menezes e Ademir Araújo. Outro ícone do nosso autêntico estilo musical, o saudoso maestro e compositor Nelson Ferreira, ganhou biografia inédita produzida pela jornalista Ângela Belfort – parece que, finalmente (e com a ajuda das leis de incentivo à cultura), a expressão musical do país será agraciada com contínua e necessária documentação. É o caso do Catálogo de Agremiações Carnavalescas do Recife e Região Metropolitana, lançado num esforço conjunto entre a Prefeitura do Recife e a Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. A publicação, bilíngue, abarca a história de 90 agremiações centenárias, representativas e/ ou campeãs de concursos carnavalescos. Trata-se de um bom começo de registro dessas manifestações, afinal, somente na RMR, existem 600 delas animando a Folia de Momo. E, a cada ano, surgem mais, provando a grandiosidade do artista popular, que não consegue ser reconhecido nas ruas quando diariamente vai ao “trabalho oficial”, mas que, em quatro dias do ano, sente-se gratificado porque algo lhe diz que é uma peça-chave para a beleza e riqueza do nosso Carnaval.

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sumário Especial Carnaval

06 Cartas

07 Expediente

08 E ntrevista

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Claquete

Conexão

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Matéria Corrida

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Leitura

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Sonora

14 Peleja

Oscar Niemeyer Nova página da web apresenta com esmero a vida e a obra do arquiteto modernista ropriedade P O espólio do artista deve ficar sob a responsabilidade da família?

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África Grupos contemporâneos mostram que a dança feita no continente vai além dos estereótipos

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Palco

Valéria Torres da Costa e Silva Pesquisadora ajuda a repensar as ideias de Gilberto Freyre no contexto contemporâneo

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+ colaboradores

Balaio

Inesperado Como o produtor Giovanni Papaléo, do Oi Blues By Night, conheceu o norteamericano Karl Dixon

Em primeira mão

Silvério Pessoa Músico se prepara para lançar projeto intitulado, provisoriamente, Nordeste Occitan

Neste mês de festa, personagens como o jovem Maestro Forró ganham ainda mais espaço, e as tradicionais agremiações, maestros e compositores são resgatados em catálogo, documentário e livro

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Documentário Lírio Ferreira resgata a história do compositor Humberto Teixeira e o imaginário do baião osé Cláudio J Ela dissera certa vez, numa entrevista: “Enterro é lindo” grande feira A Luciano Trigo discute criticamente as “feridas” da arte contemporânea Ed Motta

No décimo disco de sua carreira, músico retorna ao pop, gênero que o consagrou

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Saída

Luci Alcântara O cinema documental feito por uma “cineasta vampira”

Pernambucanas Palacete

Localizado no Marco Zero, prédio da Associação Comercial de Pernambuco (ACP), inaugurado em 1915, foi restaurado recentemente, mantendo sua principal característica: a arquitetura eclética

46 Capa FOTo Eduardo Queiroga

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Portfolio

Patrimônio

João Dias Vilela Filho, o Julião das Máscaras, dá continuidade à tradição familiar de mais de 100 anos no ofício de criar essa peça tradicional do carnaval pernambucano

Com a reabertura da tradicional sala, construída em 1952, na rua da Aurora, e fechada há três anos, o Recife se insere na tendência mundial de valorização dos grandes cinemas de rua

Cardápio

Visuais

Com uma clientela fiel, esses espaços públicos oferecem variadas opções de pratos e iguarias, capazes de agradar tanto a chefs de restaurantes requintados quanto aos boêmios inveterados

Vendendo política, arte ou bens de consumo, esses impressos efêmeros, em circulação há quase dois séculos, têm ultrapassado seu caráter informativo e estético, tornando-se parte da memória afetiva das pessoas

Máscaras

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Mercados

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Cine São Luiz

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Fev’ 10

Cartazes

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cartas Bonecas

nesse portal seria ler e conhecer a revista. Mas não dá: um ou dois míseros parágrafos é o que vocês disponibilizam na rede; nem noção da nova diagramação podemos ter. O principal motivo que levaria a uma liberação integral da versão online é: a revista é pública, logo, seu conteúdo deveria ser público.

Acabei de ler a revista Continente nº109. Gostei bastante da matéria sobre as bonequeiras. Parabéns, por considerar e valorizar devidamente os nomes de tantas artesãs! Não conhecia a revista e fiquei bastante surpresa de encontrar um conteúdo de tão boa qualidade. cris turek conde – pb

Mais bonecas Parabéns, pela matéria sobre as bonequeiras (edição de janeiro, nº 109), que recupera e valoriza uma mestra como Dona Lia! Nas referências a mim, há uma incorreção. Eu sou, atualmente, Conselheira da Secretaria de Cultura do Distrito Federal e não do Conselho de Cultura, mas não tem importância. O que sempre me causa estranhamento é quando citam que sou gaúcha (é verdade, nasci e estudei lá), mas as minhas referências pessoais e profissionais são de Brasília e do Nordeste, pois minha mãe era paraibana. Mas o que vou fazer? Nasci no Rio

Grande do Sul, está na certidão de nascimento, não posso mudar... Que bom vocês terem falado na Virgília Peixoto! Sou admiradora do trabalho dela. Novamente, obrigada. Macao goes brasilia – df

Orgulho Ao término de mais um ano, venho parabenizá-los pelo sucesso da revista Continente. Orgulho-me de, durante o ano de 2009, ter colaborado com esta prestigiosa publicação. Tiago Eloy Zaidan maceió – al

Conteúdo público Estou decepcionado com o site da Continente. O que me interessaria

helder lopes recife – pe

Resposta da redação Todas as edições da Continente são oferecidas no site, na íntegra e gratuitamente, exceto a do mês corrente. Em breve, a revista será apresentada em formato flip, o que possibilitará a visualização das páginas como elas foram concebidas na versão impressa. errata O nome correto do blog editado por Cris Turek, citado na matéria “De bonequinhas a boneconas, depende do gosto de quem faz”, publicada na edição 109, é Blog da Vila (http://www.viladoartesao. com.br/blog/author/cris/).

Você faz a Continente com a gente O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie suas críticas, sugestões e opiniões. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, fax e correio (Rua Coelho Leite, 530, Santo Amaro, Recife-PE, CEP 50100-140). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se compromete a publicar todas as cartas. Telefone

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colaboradores

Beto Figueiroa

Helder Ferrer

Humberto araújo

Marcelo sandes

Fotógrafo

Fotógrafo

Caricaturista e arquiteto

Apresentador do programa de rádio Café Colombo

Rafael teixeira

Renata cadena

samarone Lima

Jornalista

Designer

Jornalista e escritor

e Mais Alexandre Belém • Alexandre Figueirôa • Bruno Albertim • Carlos Eduardo Amaral • Christianne Galdino • Débora Nascimento • Eduardo Cesar Maia • José Teles • Luci Alcântara • Lula Cardoso Ayres Filho • Marcelo Abreu • Marcelo Costa • Marcelo Sandes • Moacyr Scliar • Patrícia Amorim • Tiago Lubambo

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Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - CEPE redaÇÃo, adMinistraÇÃo e parQue grÁfico Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 Fone: 3183.2700

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VALÉRIA TORRES DA COSTA E SILVA

“O discurso multiculturalista no Brasil é um retrocesso” Pesquisadora que realizou doutorado sobre o pensamento de Gilberto Freyre ajuda a repensar as ideias do intelectual pernambucano dentro do contexto contemporâneo texto Eduardo Cesar Maia e Marcelo Sandes

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Entrevista

A formação da identidade e

da cultura brasileira, a trajetória intelectual de Gilberto Freyre e a crítica ao “paulistocentrismo agudo” na historiografia brasileira são alguns dos tópicos comentados por Valéria Torres da Costa e Silva nesta entrevista. A pesquisadora lançou o livro A modernidade nos trópicos – Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional, baseado em sua tese de doutorado. Valéria é uma crítica do discurso multiculturalista, surgido nos Estados Unidos e que, segundo ela, só faz sentido numa sociedade como a norteamericana, etnicamente bipolarizada. Para o Brasil, ela considera que a adoção do multiculturalismo como valor é um retrocesso, uma negação da contribuição intelectual de Gilberto Freyre. “Freyre conseguiu articular um pensamento original e que permite pensar a nossa realidade em nossos próprios termos.” Graduada em ciências sociais pela UFPE, Valéria é doutora pela Universidade da Califórnia (Berkeley).

fui atrás dos artigos de recepção de CasaGrande & Senzala – em 1934, porque o livro saiu no final de 1933 – e a palavra mais utilizada para defini-lo é “revolução”. Então, é um livro que, realmente, tem grande impacto e que muda os rumos do debate sobre o nacional. Não é que Gilberto Freyre tenha tirado todos os argumentos dele da cartola; havia um ambiente criado a partir, sobretudo, do Movimento Modernista, que eu acho que era favorável e que apontava na direção de uma mudança na forma como se pensava o Brasil. Freyre foi fundamental porque ele reabilita, de certa forma, a nossa herança negra e torna possível a eleição do mestiço ou da mestiçagem como um valor nacional. Essa ideia se propagou de tal maneira que hoje é o mito com que nós, brasileiros, nos vemos. Esse discurso foi incorporado pelas pessoas.

continente Em 1933, quando CasaGrande & Senzala foi lançado, as teses racialistas ainda eram fortes... VALÉRIA TORRES Essas teses ainda continente Qual é a contribuição de Gilberto eram o paradigma geral e o próprio Freyre para a chamada “identidade nacional”, a Gilberto Freyre vai pensar dentro desse ideia de Brasil que temos hoje? modelo durante uma parte da vida. Eram VALÉRIA TORRES Na minha pesquisa, poucos os intelectuais que pensavam o

Brasil fora dessa categoria de raça, que estava em vigor – a raça como fator explicativo da sociedade brasileira. No sentido biológico, dessa “inferioridade” da raça negra e da raça indígena e do peso que isso representava na nossa formação nacional: de como isso era um impedimento importante para o desenvolvimento, a modernização e a chamada “civilização do país”. continente Há um debate hoje no Brasil a respeito do multiculturalismo, principalmente no que diz respeito a políticas públicas, como no caso das cotas raciais. Como fica isso frente à defesa da miscigenação de Freyre? VALÉRIA TORRES Em termos de uma elite intelectual e política, tem havido um movimento contrário a essa coisa da mestiçagem como um valor nacional, sobretudo a partir década de 1990, quando toda essa crítica ao chamado “mito da democracia racial” acaba se transformando em política pública. Políticas pautadas pelas ideias multiculturalistas em oposição ao discurso da mestiçagem. continente E você acha que essas políticas e ideias são um retrocesso?

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flora pimentel

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diferentes e que geraram uma cultura híbrida, mestiça, na qual brasileiros de todos os estratos, todas as tonalidades de pele, se reconhecem. Então, se temos uma tradição histórica, uma vivência de valorização de elementos de diferentes origens, por que não procuramos solucionar problemas como o racismo e a desigualdade racial dentro da nossa própria tradição em lugar de buscar modelos importados, que são muito questionáveis em termos de resultados práticos para resolver ou minimizar questões de desigualdade racial?

ficado separadas. No entanto, houve uma série de processos, devido a fatores de várias naturezas – inclusive do pouco contingente de mulheres brancas – que fizeram com que essas duas metades acabassem estabelecendo relações de muita intimidade. Havia forças atuando em sentidos diferentes, umas no sentido de separar, de manter essas metades separadas; e outras forças atuaram no sentido de aproximá-las. Foram criados espaços de promiscuidade entre a casa-grande e a senzala, e foi nesses espaços que se

divulgação

VALÉRIA TORRES Sim. Eu me alinho a intelectuais como Demétrio Magnoli e Antônio Risério, que estão tentando argumentar que esse discurso do multiculturalismo, embora pareça muito interessante e sedutor – porque dá uma impressão de uma coisa mais democrática –, é um discurso que, tal como o da mestiçagem, tem um local de emissão. O argumento desses autores, com os quais eu concordo, é o de que esse discurso foi articulado, sobretudo, a partir dos Estados Unidos, que têm uma realidade muito diferente da nossa,

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Entrevista uma história de contatos interétnicos muito distinta. E por que é um retrocesso para nós? Para os norte-americanos é muito difícil lidar com a questão étnica/ racial de outro modo. De fato, eles são uma sociedade bipolar, que tem negros e brancos. Ali, o discurso multicultural faz sentido porque é a única via de reconhecimento de minorias étnicas. No nosso caso, o que aconteceu foi que, em 1933, um intelectual brasileiro (Gilberto Freyre) conseguiu fazer um esforço intelectual de pensar fora dos paradigmas vindos da Europa e dos Estados Unidos, articulando um argumento que é superoriginal e que nos permite pensar a nossa realidade em nossos próprios termos. Nós temos, de fato, uma história de contatos íntimos entre etnias

continente Você acredita que, no Brasil, existe uma democracia racial? VALÉRIA TORRES Nós certamente não vivemos numa democracia racial, mas ela poderia ser a nossa utopia, o nosso norte. E a gente tem muito mais condição de chegar a uma democracia racial do que sociedades como a norteamericana, ou a da África do Sul. O que Gilberto Freyre nos vai dizer é que fomos formados por uma sociedade escravocrata – um regime que, em princípio, pela sua própria composição, mantém separados os senhores e os escravos, portanto, negros e brancos, já que estamos falando de uma escravidão racial. Então, essas duas metades da sociedade brasileira deveriam, por toda a lógica do sistema escravocrata, ter

“O discurso multiculturalista foi criado nos Estados Unidos, que têm uma realidade muito diferente da nossa, uma história de contatos interétnicos muito distinta”

gerou uma cultura extremamente rica, híbrida, que é a cultura brasileira. continente A economia separava, mas o desejo unia? VALÉRIA TORRES Exatamente. Criouse daí uma cultura que tem como principal característica uma espécie de tendência ou de abertura para a diferença. Todas as culturas têm algum nível de permeabilidade, sempre. Algumas têm um nível maior de aceitação de influências externas aos elementos estranhos, e outras menos. Gilberto Freyre argumentou o seguinte: “A cultura brasileira é muito permeável e o que caracteriza essa cultura é sua plasticidade”. Ou seja, um alto grau de permeabilidade e uma autodisposição

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A historiografia cultural brasileira sofre de um “paulistocentrismo” agudo. Quando falamos em movimento modernista, todo mundo pensa imediatamente em São Paulo; outros movimentos, como o que aconteceu aqui no Nordeste, são chamados de “movimentos regionalistas”. O que chamamos de regionalismo, que aconteceu no Nordeste, e, sobretudo, no Recife, também foi um movimento de renovação de ideias e da forma dos processos artísticos. Acabou sendo chamado de “regionalismo” muito

fotos: arquivo continente

para incorporar e equilibrar esses elementos estranhos dentro da sua própria dinâmica. Em Casa-Grande & Senzala, ele vai mostrando como se formou essa cultura híbrida, porque o interessante na obra é justamente o “&” que liga a casa-grande à senzala. É o olhar sobre a intimidade que vai permitir a construção dessa grande interpretação do Brasil. A visão de uma sociedade não europeia, porque nesses espaços de promiscuidade é que a herança africana e a indígena vão conseguir, na verdade, dar uma grande

aquilo que vai se perdendo no processo de modernização é objeto de atenção desses artistas nordestinos. Eles têm essa diferença inicial, mas depois esses movimentos vão convergindo e eu acho que Gilberto Freyre e Mario de Andrade também vão. Até porque São Paulo vai superar essa fase de entusiasmo com a cidade e vai voltar os olhos para o passado, para a tradição. Em Gilberto Freyre, por sua vez, as ideias se desenvolvem muito mais no sentido de superar uma visão propriamente local ou regional. Há um

“Curiosamente, Mario de Andrade não tem uma linha, pelo menos que eu tenha encontrado, falando sobre Gilberto Freyre. Eles se viam com muito estranhamento”

contribuição na formação desse todo nacional.

por contraposição ao que a gente convencionou chamar de “modernismo paulista”. Mas, na verdade, esses continente Como você compara o movimentos são convergentes. O movimento modernista, em linhas modernismo em São Paulo com o modernismo em Pernambuco, levando em conta as personalidades gerais, aconteceu como uma espécie de reação ao processo de modernização, dos líderes Mario de Andrade e Gilberto Freyre? como foi também na Europa e nos VALÉRIA TORRES Esse é um caso Estados Unidos. Em São Paulo, a primeira interessante. Sem dúvida, Mario de reação a esse processo foi de entusiasmo, Andrade foi um grande líder intelectual. Escrevia a respeito de tudo de importante de celebração da urbe, da cidade, da que era feito no Brasil. Curiosamente, ele velocidade, do cinema etc. Aqui, no Nordeste, a primeira atitude frente a esse não tem uma linha, pelo menos que eu tenha encontrado, falando sobre Gilberto processo de mudança foi de uma reação nostálgica; ou seja, em vez de celebrar a Freyre, embora tivesse, na biblioteca dele, os livros do pernambucano. É muito urbe, há uma resposta no sentido de uma curioso esse silêncio de Mario de Andrade nostalgia do mundo que vai se perdendo, das tradições, inclusive da própria em relação a Freyre. Eles se viam com cidade que vai sendo transformada – e muito estranhamento.

imenso esforço, entre os anos 1920 e Casa-Grande & Senzala, para ampliar a envergadura do olhar dele sobre o Brasil, que antes era mais focado nas questões do Recife e do Nordeste. continente Por que Gilberto Freyre assumiu o rótulo de “regionalista”? VALÉRIA TORRES É uma pena isso, mas ele aceita o rótulo. Na década de 1920, Freyre vai dizer que esse é um movimento regionalista “ao seu modo modernista”, inclusive porque ele tinha vivido no exterior e bebido diretamente nas fontes das vanguardas europeias e americanas – que não é a leitura que a historiografia cultural nossa faz, de que aqui teria havido simplesmente uma resposta às provocações de São Paulo.

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O melhor deste mês na revista Continente, no ambiente virtual

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CARNAVAL NA WEB

ANO NABUCO

Conheça no site da Continente algumas faixas do CD da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, comandada pelo Maestro Forró, além de um trecho do seu mais novo DVD. Está disponível na íntegra o arquivo em PDF do Catálogo de agremiações do Recife e Região Metropolitana, impresso pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), em parceria com a Prefeitura do Recife e a Associação dos Maracatus de Baque Solto. Ainda on-line, o visitante tem acesso ao prefácio e ao primeiro capítulo do livro O dono da música, de Ângela Fernanda Belfort, que conta a trajetória de Nelson Ferreira.

Confira no nosso site a programação de eventos e publicações em homenagem ao centenário da morte do abolicionista Joaquim Nabuco.

Conexão

CARTAZES Alguns dos mais belos cartazes de filmes vêm da Polônia e podem ser conferidos na internet. Veja a galeria de trabalhos de designers e artistas desse país.

Veja esses e outros links na seção CONEXÃO, em www.revistacontinente.com.br

andanças virtuais Lugares para ver e rever o que a web tem de bom para mostrar

REVISTAS

CULTURA

AMBIENTALISMO

COLEÇÃO

Banca de jornal on-line agrega mais de 20 milhões de páginas

Site reúne rico conteúdo sobre produtos culturais, de livros a exposições

Navegar na internet também pode preservar a natureza

Livros que enfocam a cultura nacional ganham espaço na web

http://issuu.com

http://digestivocultural.com.br

www.ecosia.org

http://aplauso.imprensaoficial.com.br

Se as versões digitais de periódicos melhoraram bastante nos últimos anos, ainda faltavam boas iniciativas que reunissem todos esses conteúdos. É exatamente essa a proposta do Issuu: funcionar como uma espécie de banca de jornal na internet. Cada editor pode subir sua publicação para o site, que é acessado por seis milhões de pessoas por mês. O destaque fica para as revistas de pequena circulação e para os exemplares em português, incluindo Os sertões, caderno especial do Jornal do Commercio, trechos da Cult e a Estudos e informações, a mais acessada em português.

Formado por jornalistas e escritores que surgiram na internet ou possuem forte relação com ela, o site Digestivo cultural é uma opção repleta de atrativos para o público interessado em jornalismo cultural e nos produtos da indústria concernente. Com cerca de um milhão de pagesviews mensais, a página, que congrega blogs, ensaios, colunas e entrevistas, se destaca por textos mais reflexivos, se comparados aos publicados na mídia impressa. O internauta tem acesso a resenhas de livros, discos, filmes, peças, exposições e até restaurantes.

Um buscador ecológico – esta é a diferença do Ecosia, site sem fins lucrativos vinculado a World Wildlife Fund (WWF). Para cada pesquisa realizada a partir de sua página inicial, dois metros quadrados de floresta tropical são salvos, sem nenhum ônus para o internauta. Quem banca a preservação de árvores em Juruena, no Mato Grosso, são os anúncios e as parcerias com o Bing da Microsoft e o Yahoo. Para completar, a energia usada na manutenção dos servidores do Ecosia é pouco poluente, fazendo o site se intitular como o buscador mais verde do mundo.

Com o intuito de preservar a memória da produção artística brasileira, o Governo de São Paulo, através da imprensa oficial, deu início à Coleção Aplauso. Trata-se de uma série de publicações que gira em torno de grandes nomes da cultura nacional e que, agora, está disponível para download na web. Enfocando vida e obra, a Aplauso rendeu homenagem, por exemplo, a Garcia Lorca, Fernanda Montenegro, Carlos Reichenbach e Fernando Meirelles. Além de personalidades, a coleção aborda também filmes recém-lançados, como Estômago e Feliz Natal.

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reprodução

blogs FILTRO http://welistenforyou.blogspot.com

Criado por Zach That e Hank Altogether, o We listen for you se dedica a opinar sobre música em geral. O objetivo é funcionar como um filtro, escutando pelo menos cinco novos discos por dia e divulgando os melhores deles.

ILUSTRAÇÃO http://blog.hiro.art.br

PASSEIO PELA TRAJETÓRIA DE UM MESTRE Página na web de Oscar Niemeyer conduz o internauta por vida e obra do maior expoente da arquitetura modernista brasileira www.niemeyer.org.br

Oscar Niemeyer é um assombro. Aos 102 anos, não bastasse a

grandiosidade de suas realizações, o arquiteto faz questão de ainda exercitar suas ideias em forma de grafismos, já consagrados como patrimônio nacional. Tamanha é a relevância de suas criações, que a Fundação Oscar Niemeyer, instituição de direito privado sem fins lucrativos, vem atuando como perpetuadora da memória da arquitetura modernista, além de estimular a pesquisa voltada ao tema. A Fundação lançou recentemente uma página na internet, consonante com o esmero visual do arquiteto. O site, impecável em tons de preto, cinza e branco, apresenta ao visitante linhas cronológicas em paralelo. Ou seja, podese acompanhar datas referentes à vida e à obra do artista – dos momentos em família à elaboração do projeto da sede da Organização das Nações Unidas –, e também ter acesso aos acontecimentos que marcaram tanto o Brasil como outros países, contextualizando as obras com o que o mundo vivia à época. Caso a ordem cronológica não agrade, o niemeyer.org.br ainda disponibiliza as informações em formato geográfico (um mapa com as indicações dos locais em que os fatos se passaram). GUILHERME CARRÉRA

Hiro, homem por trás do conteúdo e dos desenhos dos papéis de bandeja da McDonald’s, atualiza seu blog com algumas de suas obras e comenta sobre eventos e notícias ligados ao mundo da ilustração.

LINKS CURIOSOS http://randomyesusefulno.com

Funcionando como uma lista de links aleatórios que o seu autor, Chris Pederick, recebe e encontra diariamente, o Random yes, useful no reúne imagens curiosas e engraçadas, além de áudios, citações e vídeos.

DOWNLOAD http://radiobutt.blogspot.com

O Radiobutt indica links de discos alternativos para download, categorizando-os pelo estilo e indicando outros sites para mais conhecimentos sobre os artistas. Além disso, cada álbum conta com uma lista de sons similares.

sites de

escritores BEST-SELLER

CRONISTA

CRÍTICA

http://journal.neilgaiman.com

http://carpinejar.blogspot.com

http://blog.antonioxerxenesky.com

Autor de Sandman e Coraline, Neil Gaiman comenta sobre sua carreira e vida pessoal, além de indicar bons vídeos e imagens.

Premiado com o Jabuti pelo livro Canalha!, Fabrício Carpinejar inaugura novo endereço na web, em que posta com frequência textos inspirados.

Em seu blog, Antônio Xerxenesky, do elogiado Areia nos dentes, opina sobre livros e adianta informações sobre suas obras.

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renata cadena

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Peleja

O espólio do artista deve ficar sob a responsabilidade da família? É fato que a administração pública fica devendo quanto à manutenção de museus, centros culturais etc. Por outro lado, há familiares inflexíveis nas negociações do espólio, privando o público do acesso a obras que podem ser importantes. O acadêmico Moacyr Scliar defende o “interesse do bem comum”, enquanto Lula Cardoso Ayres Filho define o espólio como “um bem de propriedade dos herdeiros” do artista, discutindo um assunto que não pode ser entendido como uma simples transferência de propriedade

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A cultura de um país perpetua-se

com a preservação da sua memória. Cada vez mais, vive-se em um mundo imediatista, pleno de prazeres momentâneos e superficiais. Estamos na era do “herói inculto”. As exigências estéticas estão se modificando. Quase tudo que é medíocre virou arte e cultura. Os órgãos responsáveis pela adDetentor do espólio ministração dos patrimônios artísticos de Lula Cardoso Ayres e culturais transformaram-se em verdadeiras agências de shows e eventos. De um modo geral, no Brasil, os museus sob a responsabilidade exclusiva do poder público encontram-se à míngua. Cargos administrativos para os responsáveis pela preservação da cultura servem de moeda para ações eleitorais e nepotistas do mais baixo escalão. Foise o tempo dos intelectuais e dos especialistas. Hoje, tudo é nivelado por baixo. Os ditos “produtores culturais”, em quase toda a sua essência, são pessoas que fracassaram em suas profissões de origem e encontraram nessa atividade um fácil meio de “vencer” na vida. Dentro desse quadro em que se encontra a administração de cultura, começa a acontecer um fenômeno digno de países do primeiro mundo. Empresas e, mais especificamente, empresários privados começam a investir consistentemente na divulgação e preservação da nossa cultura, quando não utilizando diretamente seus próprios recursos, disputando com os “produtores culturais” as verbas públicas de renúncia fiscal disponíveis. Dentro desse triste quadro da administração de bens culturais, não se pode exigir de herdeiros de acervos a simples entrega dos mesmos ao poder público. Desde que haja uma plena conscientização da sua importância como bem cultural, a preservação dos patrimônios pelas famílias deve ser incentivada com linhas de crédito subsidiadas ou apoios diretos dos órgãos governamentais. Quando não houver condições de preservação pelas famílias, as instituições públicas interessadas deverão adquirir os acervos, pagando aos herdeiros um justo valor pelos mesmos. O artista é, antes de tudo, um trabalhador como outro qualquer. O seu espólio, então, é um bem de propriedade dos seus herdeiros, que devem administrá-lo como melhor lhes convier. Cabe ao Estado dar condições às famílias para preservá-lo e torná-lo acessível ao público.

Os ditos “produtores culturais”, em quase toda a sua essência, são pessoas que fracassaram em suas profissões de origem

Moacyr Scliar divulgação

flora pimentel

Lula Cardoso Ayres Filho

Alu

Ao menos no capitalismo, é ponto

pacífico: se a pessoa morre, as coisas que eram de sua propriedade ficam para a família, ou para uma fundação, ou para instituições de caridade. Isso de maneira geral. Mas quando se trata de arte, a coisa complica, como se tem visto. Digamos que alguém quer organizar uma antologia de textos, e Médico e escritor, entre os autores selecionados há um autor de O exército de um homem só falecido. De acordo com a lei, é preciso pedir autorização aos detentores dos direitos, que a darão ou não; no primeiro caso, cobrando quantias que podem ser altas. O editor seguramente não se conformará com tal decisão, argumentando que assim o público ficará privado do acesso a um texto importante. E os detentores dos direitos responderão que, se o texto é importante, os interessados devem estar preparados para pagar por ele quantias elevadas. Situações curiosas podem ocorrer. Moribundo, o grande escritor Franz Kafka que, em vida, nunca fez sucesso, chamou seu amigo Max Brod e pediu que destruísse seus inéditos, o que representava uma considerável parte do que ele havia escrito. Brod não atendeu ao pedido, e com isso a humanidade pôde tomar conhecimento de textos simplesmente extraordinários. Esses exemplos mostram como é difícil aplicar princípios gerais a algo cuja avaliação é complexa. Existem princípios gerais da propriedade intelectual, traduzidos em legislação; mas temos de reconhecer que cada caso é um caso. Duas conclusões emergem daí: a) é preciso uma instância judiciária especializada, sobretudo no que diz respeito ao estabelecimento de valores; b) como se trata de defesa da cultura, e à semelhança do que acontece na educação e na saúde, o poder público deve interferir para evitar abusos e prejuízos à comunidade. Uma figura sobre a qual talvez seja preciso cogitar é a da desapropriação. Quando está sendo construída uma estrada que deve passar por uma propriedade privada e o dono dessa propriedade não quer negociar, o governo pode desapropriá-la, pagando o preço fixado pela Justiça. Na verdade, isso é apenas ampliar a figura do domínio público que vale para as obras literárias depois de certo período. Em conclusão: há muitos interesses em jogo, quando se trata de produção artística ou intelectual, mas o interesse que deve predominar é o do bem comum.

Se a pessoa morre, sua propriedade fica para a família. Isso de maneira geral. Mas quando se trata de arte, a coisa complica

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da bomba para o mundo Trompetista que rege a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério curte o bom momento de sua carreira e da vida cultural do bairro, enquanto faz planos para o grupo, que incluem turnês internacionais

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texto Débora Nascimento

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Na zona norte do Recife , há uma

espécie de imensa cratera cercada pelo Alto José do Pinho, Alto Santa Terezinha e Alto do Pascoal. Esse lugar se chama Bomba do Hemetério. Apesar das dificuldades financeiras, a localidade começou a se desenvolver a partir da iniciativa de pessoas, como Seu Nelson do Boi e Dona Juracy, da Tribo Canindé, entre outros, que, junto a seus vizinhos, desenvolveram grupos culturais que ajudaram e ajudam a formar a grande teia de cultura que se tornou esse pequeno espaço. Um outro morador, Zé Amâncio (do Coco), sem querer, também gerou mais um produto artístico na comunidade: Francisco Amâncio da Silva, popularmente

conhecido como Maestro Forró, nome que se destacaria em meio a esse ambiente culturalmente prolífico. Famoso pela performance estrambólica, cheia de gestos e pulos, o músico ganhou notoriedade ao reger a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério sem a tradicional formalidade dos outros maestros, o que lhe rendeu a conquista de espectadores fiéis, principalmente no período carnavalesco. Neste mês, Forró está entre as atrações principais da abertura e do encerramento do carnaval recifense, no Marco Zero; terá trio elétrico no desfile do Galo da Madrugada e vai ser eternizado como boneco gigante no carnaval de Olinda, pelas mãos do artesão Sílvio Botelho, que criou

também 15 outros bonecos para representar a Orquestra da Bomba. Durante o curto espaço de tempo em que se apresenta, o músico exibe a garra, a energia e a alegria de viver – que são os mesmos ingredientes que carrega há muito tempo, quando começava a sonhar com um futuro melhor para si, sua família e seus vizinhos. “Comecei a gostar de música a partir de Zé Amâncio, meu pai, um brincante da zona da mata que veio para o subúrbio do Recife. Ele aprendeu a tocar coco de roda com a mãe dele. É um ícone da Bomba que transmitiu sua paixão pela música para mim e meu irmão, Givanildo Amâncio, que toca trompete, tuba e fagote. Vendo meu irmão estudar, apaixonei-me pelo

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Forró em show de abertura do carnaval do Recife, em 2009 Nestas Páginas 2 folia

Forró e sua OPBH, em apresentação informal no bairro da Bomba do Hemetério

resultado na música tem que saber interpretar”. Apesar de encantado com as artes cênicas, Forró optou pela música. “Não investi na carreira de ator porque não dá para viver de teatro no Recife. Então, a música venceu na minha vida sob todos os pontos de vista. Consigo sustentar minhas quatro filhas com minha arte”, revela. Dessa forma, em meados da década de 1990, Forró passou a dar aulas de música e também a viajar pela Europa, como integrante de grupos musicais. A experiência de sair do país voltou novamente a acontecer, entre os anos 2003 e 2006, quando acompanhou o DJ Dolores em suas turnês internacionais. “No leste europeu foi onde tive o maior impacto. Descobri a relação da música feita em lugares, como Eslovênia, Turquia e Macedônia, com a música do Nordeste do Brasil. Vi traços do aboio, do coco de roda...”

A ORQUESTRA

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trompete”, lembra Forró, cujo apelido adquiriu, ainda jovem, por saber cantar várias músicas do gênero musical – herança das audições de discos do seu pai. A partir desse contexto, o adolescente começou a delinear sua trajetória como artista. “Eu participava de todos os cursos de música que podia, até em outros Estados”, conta. No início dos anos 1990, Forró teve uma experiência que seria fundamental para sua performance hoje no palco: a de ator. “A partir do trabalho como diretor musical, fui convidado também para atuar. O que aprendi com essas montagens, trabalhando com ótimos diretores e atores, é que música, dança e teatro podem ser a mesma coisa”, conceitua. “Se você quiser ter um bom

Durante esses prolíficos anos, o trompetista já tinha abraçado o ideal punk do faça-você-mesmo. “Eu via e vejo na zona norte todo mundo reclamando de tudo. Mas sempre perguntei ‘o que posso fazer por isso?’ Então, abri minha casa para os interessados do bairro e comecei também a me autoprofissionalizar”. Assim, em 2002, começaram as aulas e os ensaios que modificaram sua vida e rotina familiar, pois aconteciam na sala de estar. “Afastávamos os móveis para poder tocar. O objetivo era ter excelência profissional, avançando na linguagem acadêmica, tocando bem os mais diversos ritmos locais”, conta. Desses dias de, literalmente, aperto, surgiu a Orquestra Popular da Bomba do Hemetério. “Com menos de um ano tínhamos um produto final.” Produto final que conseguiu lançar, de forma independente, dois CDs e um DVD – o lançamento deste Jorrando Cultura Ao Vivo aconteceu no bairro, numa alegre e grandiosa festa que reuniu até o prefeito da cidade, diversos artistas e, claro, a população local, que, orgulhosa, soltou fogos para comemorar o feito. Esse DVD é mais um artigo vendido na barraca da mãe de Forró, situada ao lado da casa do filho. Sai por R$ 20, alguns bons reais a menos do que nas lojas.

Um dos trunfos da OPBH, além do desempenho físico que não passa despercebido, são os arranjos provocadores – resultado do trabalho de pesquisa do próprio Forró, além de integrantes como Parrô, Waltinho D’Souza e Natanael Dádiva, que ateiam fogo em arranjos já consolidados, e até enfadados de velhos carnavais – mas vale lembrar que não se trata de uma orquestra de frevo. O conjunto toca ritmos que vão do coco, valsa, rock, samba de gafieira, cavalo-marinho, xaxado, maracatu e até foxtrote. A orquestra não fica presa ao período carnavalesco, podendo tocar o ano inteiro. Por isso foi criado, há quatro anos, um espetáculo específico para as festas de São João, o Fole assoprado. Para manter essa equipe de 21 pessoas coesa, são necessários dois ensaios semanais. Além de seus discos de carreira, a OPBH fez participações na trilha sonora do filme A máquina, de João Falcão; no CD Nação canta Pernambuco, do Maracatu Nação Pernambuco (do qual Forró foi integrante e arranjador), acompanhando Antônio Carlos Nóbrega, e na coletânea Music from

“Eu via e vejo na zona norte todo mundo reclamando de tudo. Mas sempre perguntei ‘o que posso fazer por isso?’ ” Pernambuco, distribuída pelas feiras internacionais de música. Com pouco tempo de estrada e muitos elogios pelo caminho, cabe um pergunta a Forró: qual o próximo passo para a Orquestra? “Falta continuar a caminhada.” Traduzindo a frase filosófica: fazer mais shows, lançar mais produtos (o grupo já está trabalhando no próximo CD) e conseguir fechar o contrato da primeira turnê internacional da OPBH neste ano (o produtor Paulo André Pires está à frente das negociações). “A gente não pode perder a oportunidade de fazer o melhor. Se você se melhorar, vai melhorar a sua casa, sua rua, seu bairro, sua cidade, seu país e o mundo”, aconselha o músico, de 35 anos.

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MÚSICOS DO FUTURO Aulas-ensaios atendem a moradores da comunidade flora pimentel

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Além de ter criado um dos grupos mais badalados do Recife no início do século 21, o Maestro Forró vem sendo o responsável pelo futuro profissional de diversos moradores da Bomba do Hemetério. Desde 2002, quando começaram as aulas-ensaios na sua casa, o músico deu início à realização do sonho de criar uma escola de música, que, em 2009, conseguiu virar um ponto de cultura. A coordenação de ensino é do irmão do Maestro Forró, Givanildo Amâncio. O projeto da Escola de Música Zé Amâncio do Coco se estabeleceu em novembro de 2005, com apoio do Sistema de Incentivo à Cultura Municipal. Mas durante o período em que não havia apoio financeiro,

os professores trabalharam como voluntários. Quando começou a ter uma renda mensal um pouco melhor a partir do trabalho à frente da Orquestra da Bomba, Forró não quis sair de seu bairro. Decidiu reformar sua casa. Fez um puxadinho, e criou um primeiro andar, onde agora suas filhas podem circular sem tropeçar em um instrumento. Alguns dos primeiros iniciados já partiram para outros locais, como o Conservatório Pernambucano de Música. É o caso de Guilherme Victor, 15 anos, que toca flauta, percussão e bateria. “Comecei a aprender a tocar aqui. O trabalho dessa escola tem uma importância grande para o bairro. Antigamente, os jovens da comunidade

estavam sem o estímulo de uma pessoa que pudesse ser uma referência. E Forró deu esse estímulo para nós. Estou progredindo por isso”, conta o ex-aluno, agora no quinto ano do CPM. Os estudantes da escola que se destacam têm a chance de tocar na Hemetéricos, que é mais um produto que nasce a partir das tocatas na casa de Forró. Dênis Ferreira Diniz, 14 anos, é um dos que pretendem tocar no grupo. “Vou começar a pegar as partituras para treinar”, conta. O aluno garante que a localidade ficou mais tranquila depois dessas aulas. “Esse projeto ajudou muito o bairro. Diminuiu a quantidade de crianças nas ruas fazendo coisas erradas”, diz. A mãe de Dênis, que antes não queria ter um filho músico, está agora bastante orgulhosa com o progresso do jovem com o sax – instrumento cuja aquisição moveu um grande esforço dos familiares, pois custou R$ 1,6 mil. A escola de música vem fazendo tanto sucesso no bairro que a quantidade de vagas nunca é suficiente. A mais recente inscrição foi encerrada em outubro de 2009 e teve 130 inscritos. Desses, apenas 40 foram selecionados para duas turmas de 20 – uma, para alunos entre 7 e 12 anos; outra, a partir dos 13 anos. Dois critérios de aceitação, segundo Forró, são: “quem estiver mais necessitado” (ou seja, quem tiver uma renda familiar mais baixa) e for morador do bairro. Mas esse último requisito não impede que residentes de outras vizinhanças tentem ingressar no curso. É o caso de Diogo Leite dos Santos, 20 anos, morador de Aguazinha. O rapaz vem tentando há dois anos ser aceito. “Tomei conhecimento do curso através de uma notícia na TV”, conta o candidato, que deseja aprender percussão e, quem sabe, um dia, participar da Orquestra da Bomba ou da Hemetéricos. A Hemetéricos não é dirigida diretamente por Forró. O músico que realiza os ensaios é Josué Filho, um antigo amigo do maestro da época de estudante de música. Um de seus alunos é Júlio César da Silva Pinheiro, 13 anos, que toca caixa e atabaque e está aprendendo trompete – dessa forma, se juntará ao naipe de metais do grupo, do qual agora também faz parte sua mãe, Gilvania Karla da Silva, 34 anos. (DÉBORA NASCIMENTO)

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bomba do hemetério Bairro abriga ícones da cultura popular na capital roberta guimarães/divulgação

3 ponto de cultura

As filhas de Forró, Mylena e Mayara, convivem com alguns estudantes da escola de música

4 rua aramina

Boi Teimoso é um dos mais antigos em atividade no Estado

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Não é de hoje, com o sucesso da orquestra de Forró, que a Bomba do Hemetério tem mérito para figurar nos melhores noticiários culturais do país. O pequeno bairro da zona norte do Recife possui uma considerável dezena de grupos e ícones da cultura popular pernambucana, que têm papel de destaque na gigantesca história das tradicionais festas populares nordestinas. Por exemplo: é na rua Riolândia onde se situa a sede do Maracatu Nação Elefante, uma das mais antigas nações de baque virado do país. Formado em 1800, no bairro da Boa Vista, a agremiação foi a primeira a ser conduzida por uma matriarca – até então todas eram encabeçadas por homens. A principal rainha foi Maria Júlia do Nascimento, mais conhecida como Dona Santa, que reinou até 1962, ano de seu falecimento. Para quem quiser conhecer o maracatu, são

realizados ensaios todos os domingos, das 16h às 18h30, do mês de dezembro até o Carnaval. Na Rua Bomba do Hemetério, encontra-se a sede da Tribo Canindé do Recife. O caboclinhos surgiu, em 1897, de um grupo de curumins do bairro de Afogados. Em 1910, sob a liderança do carnavalesco Manoel Rufino, chegou ao Córrego José Francisco, na Bomba. Hoje, a presidente é Dona Juracy Simões, que herdou o cargo de seu pai, sendo a primeira mulher a liderar um caboclinhos. Do mês de julho até à Folia de Momo, o grupo costuma realizar ensaios aos domingos, sempre às 19h30. Enquanto na rua Aramina, o Carnaval fica bem mais animado com a saída do Boi Teimoso, um dos mais antigos em atividade no Estado. O conjunto foi fundado em 1935, por Nelson dos Santos, que primeiro criou o Boi Mimoso, na Torre, após ter

brincado no legendário Boi Misterioso do Capitão Antônio Pereira. O Teimoso possui mais de 30 títulos de Carnaval. Seu Nelson, que morou na Bomba por mais de 40 anos, faleceu em 2006, e um de seus registros pode ser visto no filme O canto do mar (1953), clássico de Alberto Cavalcanti. No bairro também está situada uma das mais importantes escolas de samba do Estado, a Gigante do Samba. Fundada em 1942, por Mestre Zacarias, no Alto do Céu (Água Fria), a agremiação conquistou 30 títulos de campeã do concurso de agremiações carnavalescas, entre 1968 e 2003. Durante a década de 1980, a escola promovia festas que contavam com a presença de sambistas renomados no país, como Leci Brandão. Atualmente, o grupo conta com 1,2 mil componentes, e realiza ensaios às terças e sextasfeiras, na rua rua das Crianças, na Bomba do Hemetério. (DN)

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Maestro Spok inicia gravações do tão sonhado documentário que vai registrar a vida e a carreira de sete dos maiores mestres do frevo de rua texto José Teles

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Quem foi Capitão Zuzinha? A maioria dos moradores de Boa Viagem não vai saber responder a essa pergunta. Apesar de o tal capitão ser o nome de uma movimentada rua do bairro. Nascido em Catende (1989) e falecido no Recife (1962), o maestro José Lourenço da Silva, o Capitão Zuzinha, foi um dos mais importantes compositores pernambucanos do século passado e um dos formatadores do frevo. No entanto, permanece como ilustre desconhecido para a maioria dos conterrâneos. Foi com o objetivo de evitar que, no futuro, o mesmo se repetisse com outros maestros igualmente importantes, o também maestro Spok passou a acalentar a ideia de um documentário reunindo sete mestres do frevo: José Menezes (85), Edson Rodrigues (67), Clóvis Pereira (77), Guedes Peixoto (76), Ademir Araújo (67), José Ursicino da Silva, Duda

“Será o registro de uma turma que, quando morrer, não terá substituta”, lamenta Clóvis Pereira (75), e José Nunes de Souza, Nunes (78): “Na época em que Menezes e Clóvis adoeceram e chegaram a ficar na UTI, eu, por coincidência, assistia, em casa, a um documentário sobre o maestro norte-americano Quincy Jones. Lembrei de outro (filme) sobre a história do jazz e pensei, ‘Puxa, os caras registraram tudo, e a gente não tem quase nada dos antigos mestres, já falecidos, mesmo de Capiba e Nelson Ferreira há pouca imagem’. Precisamos fazer alguma coisa com esses maestros que ainda estão aí”, conta Spok.

A ideia começou a se materializar quando ele se encontrou, num bar, com o produtor Marcelo Soares, do Estúdio Muzak. Spok expôs sua proposta para o filme, e Soares a abraçou. Quem também topou participar da produção foi Marcelo Barreto, da produtora Ateliê. “Começamos a filmar bancando do próprio bolso. O pessoal da técnica, que está trabalhando, faz isso apostando no sucesso da empreitada e esperando receber lá na frente. Fizemos uma parte e demos uma parada. Estamos agora em processo de captação de recursos”, diz Soares. Assim como ele, Barreto conta que não pensou duas vezes para topar a proposta. “Pela idade de alguns dos mestres, vi que seria uma coisa que teria que ser iniciada logo. Eles, os maestros, facilitaram muito as coisas para nós. Teve alguns momentos muito inspirados, como na conversa

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Spok, no salão do auditório do Ibirapuera, antes do show com os maestros Nestas Páginas 6 frevo

Primeira reunião dos maestros aconteceu no auditório do Ibirapuera

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Maestros de frevo participam do legendário programa Ensaio

na casa do maestro Nunes”. Neto do teatrólogo Barreto Junior, Barreto está tendo dificuldade para realizar um documentário sobre o avô, pela carência de informações e imagens dele. O que lhe atiçou ainda mais a vontade de colaborar no documentário sobre a vida desses sete mestres da música pernambucana. Os produtores convidaram Eric Laurence, autor de, entre outros, dois curtas premiados, O azul e Entre paredes. “Aceitei porque sempre senti esta coisa do brasileiro não valorizar sua história. Quem deu um depoimento muito emocionante sobre isso foi o maestro Edson Rodrigues. Gravamos com ele na rua da Moeda, em frente ao bar Casa da Moeda, onde ele se apresenta tocando jazz aos domingos. Edson parou de tocar e comentou que via muita importância nesse documentário, porque os mestres com quem ele aprendeu, quase todos,

foram falecendo e não ficou quase nada deles. E para mim está ficando um trabalho muito rico, porque cada mestre tem uma personalidade própria, e sabe expressar bem esta personalidade”, comenta Laurence. Para Spok, o que também o emocionou foi ver os maestros, que já foram vistos como rivais, pela disputa dos palcos no auge dos bailes de carnaval nos clubes sociais, batendo papo como velhos amigos que são. “Colocamos todos eles juntos, contando histórias, lembrando de fatos que se passaram com eles, ou com contemporâneos.”

TRADIÇÃO DO FREVO

E, pelo que comentou Clóvis Pereira, não são apenas os grandes maestros que estão em extinção – do próprio frevo resta muito pouco. “Acho que o documentário servirá para se ver como o frevo era feito, com uma

grande orquestra, em cima de um palco. Hoje, quase não tem orquestra de frevo. Botam, andando pelas ruas da cidade, uma orquestra com poucos integrantes, caindo aos pedaços, muitos nem leem partitura, então, desafinam muito. Muitas vezes uma mesma orquestra toca em vários blocos, dá uma volta, troca de camisa, e pronto. Outro dia, num domingo, fui à feirinha da Rua do Bom Jesus e, lá, tocava uma orquestra lá que me deixou deprimido. Eles tocando, e o povo nem estava aí. Esse carnaval com shows, com artistas no Marco Zero que não têm nada a ver com a nossa tradição, leva o frevo a ser condenado à morte. Então esse documentário, que estão fazendo com a gente, será o registro de uma turma que, quando morrer, não terá substituta”, lamenta Clóvis Pereira, que não é só do frevo. Participou do Movimento Armorial, nos anos 1970, e antes disso lançou vários álbuns, em selos locais e nacionais, com ritmos variados, inclusive bossa nova instrumental. Infelizmente, tudo fora de catálogo. Zé Menezes, o decano dos mestres, desativou sua orquestra há duas décadas. Fazia carnaval contratado por órgãos públicos. “Mas pagavam muito pouco, e eu não iria levar bons músicos para ganhar aquilo, e muito menos formaria uma orquestra com músicos ruins.” Menezes também acha que os compositores de frevo estão acabando. “Só se cantam os mesmos sucessos”, comenta ele,

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que publicou um songbook, com as partituras de suas composições (fez muito sucesso com os três tipos de frevo), distribuído gratuitamente.

Spok e o produtor Marcelo Barreto durante as filmagens do documentário

ROTEIRO DOCUMENTAL

Maestro Edson Rodrigues participa de gravação na rua da Moeda

Os sete mestres do frevo terá um roteiro sem muita firulas. Tratará de levar cada um deles a contar sua vida, transportando-os aos locais onde traçaram seus passos. Visitando a cidade, a casa onde nasceram, as bandas de música nas quais começaram. “Essa parte biográfica será completada por dois shows. Um primeiro já aconteceu em São Paulo, no auditório do Ibirapuera. A Spokfrevo Orquestra tinha sido convidada, então decidimos chamar os maestros para irem com a gente. Apenas Nunes não quis ir, porque não viaja de avião. Foi uma cena emocionante”, exulta Spok. “Fomos chamando cada um ao palco por ordem de idade, eles regendo a orquestra, e o povo ovacionando. Quando terminou, Pena Schmidt (diretor musical do auditório) fez de imediato o convite para a gente voltar na mesma data no ano que vem”, continua. O segundo show será uma apresentação especial no Teatro de Santa Isabel, com data a ser ainda definida.

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Eric Laurence não tem dúvidas de que o documentário será inevitavelmente comparado ao Buena Vista Social Club, assim como foi o argentino Cafe con los maestros, que reúne mestres do tango. “Não estamos nos guiando por ele. Procuramos também contar um pouco da história do frevo. Nossa intenção é também tentar fazer com que o frevo não fique tão associado ao Carnaval. Esse show em São Paulo mostrou que ele pode ser levado às plateias fora do período

carnavalesco, e o próprio Spok, com sua orquestra, vem fazendo isso. Mas, de certa forma, deve lembrar o Buena Vista, porque esse documentário já virou praticamente um gênero.” Os sete mestres do frevo terá duas versões: uma para a TV, com cerca de 56 minutos, e o DVD, com cerca de duas horas. Em tempo: a produção agradece aos colecionadores, pesquisadores e cineastas que cederem, ou emprestarem imagens relacionadas com o frevo, carnaval e os maestros.

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nelson ferreira O dono da música em biografia inédita

A jornalista Ângela Fernanda Belfort lança livro que narra a história do músico, fundamental na consolidação do frevo em meados do século 20

reprodução

Qualquer recifense conhece, pelo

menos, a primeira estrofe do frevo Evocação nº 1, que homenageia velhos carnavalescos, blocos e os saudosos carnavais do início do século 20. O autor, o pernambucano Nelson Ferreira (na foto, com Ângela Maria), é o que se pode chamar de um clássico: compôs 600 músicas, foi um dos pioneiros da Era do Rádio e um incentivador de talentos locais. Mas seu maior feito, segundo alguns estudiosos, foi ajudar na consolidação de um gênero musical próprio do Recife, o frevo.

Foi por essas e outras façanhas do músico que a jornalista Ângela Fernanda Belfort decidiu arregaçar as mangas e produzir a biografia Nelson Ferreira, o dono da música, que em 194 páginas resgata a história e a obra desse “recifense legítimo”, que, por mero “acaso”, nasceu na cidade de Bonito em dezembro de 1902. “O maior legado que Nelson deixou foi a consolidação do frevo. O pesquisador Leonardo Saldanha afirma que, se não fosse Nelson, o frevo poderia ser uma música de gueto. Ele

contribuiu muito para a popularização do ritmo, quando abriu as portas da Rádio Clube (que era a única emissora existente no Estado) nos anos 1930 para um time de primeira, que incluía grandes compositores como os irmãos Valença, Edgar Moraes e Capiba, só para citar alguns”, explica a jornalista. Nelson Ferreira foi o “dono da música”, ou o dono do mercado musical recifense por mais de meio século. Seu trabalho começou ainda nos anos 1920, quando era regente de orquestra de cinema mudo. Depois, passou pelas ondas da Rádio Clube, como regente da orquestra e como responsável pela programação. A gravadora Rozenblit, que tinha Nelson como diretor artístico, resgatou uma parte do nosso cancioneiro popular graças a ele. A influência do compositor como o dono da música no Recife só diminuiu nos anos 1970. “Falar de Nelson foi também contar um pouco da história do Recife”, diz Ângela, que com a iniciativa de escrever o livro – que teve o patrocínio do Funcultura e que vem com a discografia e cronologia completas do artista – contribui imensamente para a perpetuação da memória deste artista completo, pois além do seu trabalho existe apenas um outro livro, já esgotado, sobre o compositor. (Danielle Romani)

Nelson Ferreira, o dono da música Ângela Belfort Comunigraf Editora À venda no Bar Mamulengo por R$ 10 (Praça do Arsenal) e na Livraria Cultura (R$ 20)

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CATÁLOGO Marco no resgate de um rico universo cultural Publicação inédita registra a história de 90 agremiações carnavalescas do Recife e Região Metropolitana, ícones da cultura popular pernambucana texto Danielle Romani

O carnaval de rua, em Pernambuco, é um evento único, plural, fenômeno popular no qual brincadeira, arte e religiosidade se entrelaçam. Com a publicação do Catálogo de agremiações carnavalescas do Recife e Região Metropolitana, parte dessa manifestação genuinamente de massa foi finalmente registrada. Editado pela Prefeitura do Recife em parceria com a Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco, o livro traz informações básicas, além de fotografias de 90 grupos que se exibem no carnaval do Recife e de cidades da Região Metropolitana, muitos deles centenários, a exemplo do maracatu de nação Estrela Brilhante e da Troça Homem do Cachorro do Miúdo, que completam 100 carnavais em 2010. A montagem e a organização do livro – que vem acompanhado por um DVD com a performance de algumas agremiações durante o desfile oficial – começaram há alguns anos, quando a Prefeitura do Recife decidiu contabilizar quantos grupos existiam na Região Metropolitana. O resultado foi surpreendente: cerca de 600. Diante de número tão elevado, tornou-se impossível reunir todos em uma única publicação. “Se abrangêssemos os 598, teríamos um catálogo telefônico, seria inviável.”, explica Maurício Cavalcanti, integrante do Comitê de Ciclos Culturais e um dos idealizadores e organizadores do livro, juntamente

com Leda Alves, Manoelzinho Salustiano e Marcelo Varella. A organização do catálogo, portanto, segundo Maurício, seguiu uma lógica: a de contemplar as agremiações que se destacavam por títulos e por serviços prestados ao Carnaval. Nesse sentido, foram selecionados os carnavalescos pertencentes ao grupo especial, à

Com tiragem de mil exemplares, a edição foi distribuída para as agremiações e apenas uma pequena parte foi destinada à venda categoria máxima do Concurso de Agremiações do carnaval pernambucano; as entidades centenárias, como os clubes Vassourinhas e As Pás; além dos considerados de grande importância e contribuição cultural para o carnaval recifense, a exemplo do Batutas de São José. Independentemente do número de agremiações contidas, a obra se fazia necessária como fonte de pesquisa e documentação. “O pontapé inicial para a elaboração do catálogo foi a edição, em 2008, do Guia do folião, um primeiro marco no resgate da história dos carnavais. Para a realização exclusiva do nosso catálogo, tivemos um ano de trabalho, montamos uma equipe fotográfica, finalizamos um DVD com

algumas agremiações, preparamos um produto que consideramos ser fundamental como registro, mesmo que inicial, desse universo tão rico, de tanta diversidade e beleza que temos no carnaval de rua, palco de manifestações genuínas e espontâneas”, explica Leda Alves, que, além de organizadora do projeto, é integrante da Comissão de Ciclos Culturais. Com tiragem de mil exemplares, o catálogo foi distribuído para as agremiações e apenas uma pequena parte foi destinada à venda, que será feita exclusivamente no Terminal Marítimo, no Armazém 12, na Central do Carnaval. “Pesquisadores e instituições que desejarem recebê-lo devem solicitar um exemplar à Casa do Carnaval, que fica no Pátio de São Pedro”, avisa Marcelo Varella, também integrante da Comissão.

COLORIDO E DETALHES

Com uma programação visual colorida, repleta de fotos, e bilíngüe, com versão em inglês, o catálogo traz uma espécie de resenha sobre as 90 agremiações, mostrando quando e por quem foram criadas, onde foram inicialmente instaladas, como estão hoje; qual o número do telefone e o endereço da sede: nome do presidente, a programação de eventos e ensaios anuais, além de curiosidades históricas. O livro vem dividido em 12 partes, que se referem às 12 categorias que participam do Concurso Oficial do Carnaval recifense. Nele, podem-se

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CArNAvAL

fred Jordão/divulgação

Páginas anteriores 10 cABocLinHoS

a tribo Canindé do recife foi fundada em 1897, no bairro de afogados

Nesta Página 11 cLUBe de fReVo

o Clube Carnavalesco misto Pás douradas, criado por um grupo de carvoeiros, inicialmente se chamou bloco das Pás de Carvão

QUem É QUem ClUbeS De FReVO têm origem nas corporações profissionais das últimas décadas do século 19, como o vassourinhas. eram conhecidos como Clube de Pedestres e conservaram os estandartes com o ano de fundação e do desfile. têm a seguinte formação: abre-alas, diertoria, balizas-puxantes, damas-da-frente, destaques, cordões, porta-estandarte, passitas e orquestras.

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conferir histórias interessantes sobre as troças, a exemplo da seguinte curiosidade: os bonecos gigantes são originários da tradição medieval europeia, e eram inspirados, supõe-se, nos mitos pagãos. A troça do Cachorro do Homem do Miúdo, que faz 90 anos, tem uma história folclórica em torno de sua criação. Conta-se que em 5 de março de 1910, na volta de um enterro, alguns amigos, associados ao Clube Lenhadores da Boa Vista presenciaram um vendedor de miúdos bêbado, cercado por vários cães. Embriagado, ele derrubou toda a carne que carregava, no chão, e os que passavam esperavam apenas que os cachorros, que o seguiam de perto, devorassem o que havia caído. Os animais não apenas deixaram intocados os miúdos, como fizeram um cerco para que ninguém os apanhasse. Nesse momento, os presentes criaram a Troça Carnavalesca

Mista Cachorro do Homem do Miúdo. E, com o vendedor e cachorros a reboque, saíram às ruas para comemorar seu primeiro carnaval. Quem quiser conferir o desempenho e a beleza das agremiações descritas no catálogo pode assistir ao Concurso, que este ano acontece no domingo, 14 de fevereiro, a partir das 15 horas e, na segunda e terça-feira, 15 e 16 de fevereiro, a partir das 16 horas, sempre na Avenida Nossa Senhora do Carmo, no bairro de São José. A festa tem hora para começar, mas não tem para acabar.

catálogo de Agremiações carnavalescas prefeitura do Recife Publicação reúne informações sobre 90 agremiações do estado de Pernambuco

TRIbO De ÍnDIOS oriundas da Paraíba, as tribos foram incorporadas ao carnaval de Pernambuco e são confundidas com os Caboclinhos. os participantes pintam o corpo de vermelho e usam camisas de veludo ou cetim, com desenhos de escudo ou machado. o som é produzido por instrumentos como maracá, bombos e gaita. exemplos: tupiniquins, tupinambá e tupi guarany.

blOCO De PAU e CORDA Criados nos bairros centrais na década de 1920, por famílias de classe média. não têm estandarte, mas o flabelo, alegoria de mão que traz a data, o nome e o símbolo da fundação. Por ordem, desfilam a diretoria, as damas de frente, os destaques, os cordões, o coral feminino e, por fim, a orquestra de pau e corda. exemplos: flor da lira e bloco da saudade.

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estandarte. a orquestra traz bombos, ganzá, gongue, reco-reco. boi da Cara branca, estrela e faceiro são alguns dos mais conhecidos.

MARACATU nAÇÃO OU De bAQUe VIRADO apresentam-se como uma corte ricamente trajada, cujo ritual gira em torno do rei e da rainha. Cada maracatu tem uma batida própria ou baque próprio. É fortemente ligado ao candomblé. as nações mais tradicionais são as centenárias elefante, fundada em 1800, e estrela brilhante, que completa 100 anos.

eSCOlA De SAMbA

MARACATU De bAQUe SOlTO OU RURAl rica expressão da cultura afro-indígena. desfila sob orientação do apito do mestre. têm figuras como mateus, Catirina, a burra e o Caçador, além do Caboclo de lança. o instrumental é composto de bombo, surdo, tarol, cuíca e gonguê, além de instrumentos de sopro. exemplos: Cambinda brasileira e Cruzeiro do forte.

CAbOClInhOS

os desfiles das escolas recifenses são um ritual em torno do canto, do visual, da música e da dança. em nosso estado, o samba adquire características próprias, como a incorporação de instrumentos de execução musical e coreografias herdadas do frevo, do maracatu, capoeira e outras expressões. exemplos: gigante do samba e galeria do ritmo.

ClUbe De bOneCOS surgiram na idade média como forma de camuflar os deuses pagãos. em Pernambuco, o primeiro da enorme família foi o Homem da meia-noite (1931). desfilam acompanhados por uma orquestra de metais ao som de frevos de rua e a principal alegoria

são os bonecos, que carregam uma faixa com o nome da agremiação e que chegam a três metros.

TROÇA CARnAVAleSCA assemelham-se aos Clubes de frevo, mas desfilam apenas de manhã ou à tarde. o improviso, descontração e irreverência são a marca registrada. apresentam-se na seguinte ordem: diretoria, balizas ladeadas por cordões, figuras de frente, passistas, fantasias, porta-estandarte e orquestra de metais. mais conhecidas: Cachorro do Homem do miúdo e Camisa velha.

de origem indígena, iniciam apresentação com porta-estandarte, seguido de dois cordões de caboclos. no centro, fica o Cacique e a Cacica. o desfile conta com o pajé, o matruá, o capitão, o tenente etc. a dança é ágil e a indumentária composta por saiotes, atacas e tangas. os instrumentos são caracaxás, flauta ou gaita. alguns grupos: 7 flexas e Kapinawa.

lA URSA OU URSO a ocorrência dos ursos tem origem no século 19 com os imigrantes italianos e com a comunidade cigana ligada ao circo. a brincadeira se caracteriza pela presença de um urso, do italiano ou domador e do caçador, acompanhado de alguns músicos. as músicas são cantadas por um coral. exemplos: urso branco do Zé, Cangaã e urso da tua mãe.

bOI De CARnAVAl os bois do Carnaval são caracterizados pela simplicidade e irreverência. têm vários persoangens, como o mateus, bastião, Catirina, doutor, arlequim, o boi, ema, a burrinha entre outros. traz apenas um cortejo aberto por um

ilustraçÕes: Zenival

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Julião das Máscaras

Mais que um adereço carnavalesco Texto: Diogo Guedes FOTOS Helder Ferrer

Mais de 100 anos trabalhando com máscaras. Parece slogan publicitário, mas é a história

das três gerações de mestres do artesanato carnavalesco pernambucano, representadas hoje por João Dias Vilela Filho, o Julião das Máscaras, alcunha herdada do avô. Seu bazar, no Varadouro, em Olinda, é uma pequena galeria de máscaras de impressionante originalidade. Feitas a partir de moldes de argila, as peças de Julião são compostas basicamente por papel reciclado. Depois de cortar as sobras e furar os olhos, o mestre começa o processo de pintura – sempre em cores fortes. “Eu crio a peça na minha mente, não olho fotos. Algumas pessoas dizem que parece com não sei o quê, mas vem sempre da minha cabeça”, relata Julião. A peça mais tradicional do seu bazar é a máscara da La Ursa de estopa, que divide espaço com gorilas, jacarés, galos, coelhos – e até ratos. Julião prefere não manter segredos sobre seu trabalho: “Tem gente que trabalha escondido para ninguém ver como se faz. Mas eu acho isso ruim. Quanto mais artistas, melhor”. A visão despreocupada revela a maturidade artística do mestre de 49 anos. “Se você é um artista que só faz uma peça, pode ter certeza que depois alguém vai copiar; mas quando você sempre cria, nunca deixa de ter algo novo.”

@ continenteonline Confira outras imagens das máscaras no site www.revistacontinente.com.br

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Página anterior 1 PALHAÇO E PAPANGU

Duas das tradicionais máscaras que compõem o conjunto de obras do artista Nestas Páginas 2 BAZAR

A barraca de Julião abre com a proximidade do período carnavalesco. No resto do ano, o mestre trabalha principalmente com encomendas

3 CONFECÇÃO

A argila utilizada nas fôrmas das máscaras pode ser reaproveitada para criação de novos moldes

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imagens: reprodução

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O STAND-UP VAI CAIR? A moda da “comédia em pé” tem lotado teatros Brasil afora, repetindo o fenômeno dos anos 1960 na Inglaterra. E, como todo movimento, tem despertado ira e desprezo (além de reconhecimento, claro). Emílio Surita, apresentador do Pânico, afirmou que o estilo “vai acabar saturando”, numa entrevista que concedeu à Rolling Stone. Já o escritor Santiago Nazarian foi mais radical: “A solução do Brasil seria todas as balas perdidas acertarem todos os comediantes de stand-up deste país”, postou em seu twitter. (Thiago Lins)

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Convidado inesperado Os músicos costumam manter seu ofício através de ensaios e shows definidos com antecedência, mas às vezes o acaso traz surpresas bastante agradáveis. Vejamos o caso do baterista e produtor Giovanni Papaléo. Certo dia, estava no Aeroporto Gilberto Freyre esperando pelos instrumentistas norte-americanos Billy Branch (gaita) e Carlos Johnson (guitarra), que fariam show no Oi Blues By Night. No desembarque, eles disseram que no mesmo voo estava um amigo norte-americano indo a São Paulo. Este, no entanto, ao saber da apresentação da dupla, decidiu adiar a viagem para passar um dia no Recife. “Achei que ele tinha cara de artista, mas não perguntei nada”, conta Papaléo. À noite, lá estava o tal gringo na plateia. Assim que os acordes começam, Giovanni fica tenso, pois #44 Branch pega o microfone e diz: “Gostaria de convidar ao palco, o grande Karl Dixon!”. Resultado: o convidado surge e rouba a cena. “Ele cantou uma música e o bar veio abaixo”, lembra o produtor. “Descobri que ele é muito conhecido em Nova York”. Dixon faz parte do grupo gospel Harlem Jubilees Singers. “Chamei-o para participar do Jazz Porto e ele acabou sendo a estrela do evento, até mais que Stanley Jordan.” Para quem quiser conferir, Karl Dixon vem participar da 3ª edição do Garanhuns Jazz Festival, que acontece entre 13 e 15 de fevereiro, em plena folia de Momo (ver programação completa no www.garanhunsjazz.com.br). DÉBORA NASCIMENTO.

con ti nen te

A FRASE

“A opinião pública é a soma das preguiças individuais” Friedrich Nietzsche

Balaio o mal DA CRÍTICA A primeira história que Adolfo Bioy Casares imaginou foi aos sete anos de idade. Tinha se apaixonado por uma prima, mas a escrita não fez jus ao sentimento. O escritor precisaria ainda de algumas décadas para decidir-se pela literatura. Nascido na Argentina, Bioy Casares foi um dos responsáveis pela sedimentação do realismo fantástico no país. Anos depois, reconhecido por livros como A invenção de Morel e Histórias de amor, o literato também impôs seu verbo para além dos livros de ficção, em um comentário enfático sobre o olhar externo à produção dos escritores: “Vivemos uma supervalorização da crítica e dos professores de literatura (...). Isso é um erro. A solução é pensar que basta, como problema, o conto que temos em mente. Devemos escrevê-lo com humildade e honestidade, como um artesanato, sem nos preocuparmos com a consideração dos críticos ou com o lugar que a obra irá ocupar na história da literatura. Estamos dando atenção demais aos críticos e historiadores, e isso me parece perigoso”. (Guilherme Carréra)

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GRANDEZA RELATIVA O ano é 1980. Um jornalista argentino se dirige a Jorge Luis Borges: “Já lhe disseram que circula pela Europa um livro de Ernesto Sábato com uma mensagem na capa que diz ‘Sábato, um autor da altura de Borges’?”. O entrevistado responde: “Sim. O que não me diriam jamais é que anda por aí um livro meu com a legenda ‘Borges, um escritor da altura de Sábato’ ”. (Eduardo Cesar Maia)

criaturas

CRISE DOS 30 Com 30 anos, o escritor Daniel Galera já afirmou que não gosta do termo “amadurecimento” - que, para ele, é sinônimo de “ideal engessado”. Tampouco se entregou à batida crise dos 30: “Pela minha experiência de vida, as crises existenciais são constantes. Algumas mais potentes que outras, mas elas não podem ser encaixadas em etiquetas cronológicas tão genéricas”. Para o bem ou para o mal, soou... maduro. (TL)

melhores...

Com o fim da primeira década do século 21, jornais e blogs logo correram para elaborar as listas dos melhores dos últimos 10 anos. O site The auteurs faz uma interessante compilação, escolhendo os seus cartazes de filmes preferidos. Ironicamente, dois dos pôsteres mais brilhantes, os de Confissões de uma garota de programa e O virgem de 40 anos, são extremamente opostos. O primeiro traz a sensualidade da atriz pornô Sasha Grey, enquanto o comediante Steve Carrel mostra a ingenuidade e a esperança do seu hilário personagem. (Diogo Guedes)

E piores Já no site Inside movies, é possível conferir uma das listas mais indigestas, a dos 40 piores filmes. Entre os 10 primeiros, atrocidades como Instinto selvagem 2 e Gigli dividem o espaço com o tenebroso número um, A reconquista, estrelando um John Travolta transfigurado num terrível alienígena. (Flávio Pessoa)

Lula Cardoso Ayres, 100 anos Por Humberto Araújo

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São luiz A magia da tela grande renasce A volta do tradicional cinema recifense reforça o movimento pela recuperação de outros históricos espaços de exibição nas capitais brasileiras texto Marcelo Abreu

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Eles nunca deixaram de existir em Londres, Paris, Berlim e em outras grandes capitais do mundo. Em muitas cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, de onde desapareceram quase completamente, há muitas iniciativas para promover o seu retorno. Agora, o Recife se insere na tendência mundial de valorização dos grandes cinemas com a reinauguração do Cine São Luiz, no tradicional ponto da rua da Aurora, e volta a ter um cinema de verdade. Para os verdadeiros admiradores da sétima arte, as modernas salas de exibição dentro de shopping centers, os chamados multiplex, não passam disso mesmo, salas de exibição – onde a pipoca parece ser tão importante quanto o filme. O verdadeiro cinema é aquele lugar especial, com edificação própria, onde um único filme é exibido de cada vez, de preferência em película de 35 milímetros, o formato que predominou nesses 115 anos de história das imagens em movimento. O governo do Estado de Pernambuco alugou o São Luiz por cinco anos ao grupo Luiz Severiano

O São Luiz foi construído em 1952, na época de ouro dos palácios do cinema presentes nas grandes cidades do mundo Ribeiro, gastou R$ 1,2 milhão na restauração e pretende usar o cinema para exibir a produção pernambucana, passar filmes do circuito comercial e para estimular o gosto pela arte entre alunos de escolas públicas e particulares. O cinema estava fechado desde 2007, quando o negócio se tornou desinteressante, do ponto de vista econômico, para os proprietários. O São Luiz foi construído em 1952, ainda na época de ouro dos grandes palácios do cinema que proliferavam em grande parte das cidades do mundo. Os arquitetos Maurício Coutinho, Américo Campello e Oscar Dubeux Neto utilizaram no projeto um estilo eclético, que mistura elementos variados, entre eles o

art déco (na fachada e no saguão do primeiro andar), para construir uma sala grandiosa que chegou a ter 1.305 cadeiras e empregava 35 funcionários. A imponência do prédio foi complementada pelo painel do artista plástico Lula Cardoso Ayres, colocado no saguão de entrada, e pela decoração interna da sala, planejada por Pedro Correia de Araújo. O Recife tinha salas de exibição desde 1909, quando foi inaugurado o Pathé, onde hoje é a Rua Nova. Algumas dessas salas duraram décadas como foi o caso do Moderno, que funcionou durante mais de 80 anos. Em 1970, por exemplo, pouco antes do início da decadência do cinema de rua, se fosse contabilizada apenas a capacidade dos cines São Luiz (1.305 lugares), Coliseu (1.770) ArtPalácio (1.336) Boa Vista (1.300), Rivoli (1.128), Moderno (805), Veneza (800) e Trianon (639), chegava-se ao número de 9.083 cadeiras, mais do que as 8.509 poltronas que existem hoje nas 44 salas de multiplex em todos os shoppings da região metropolitana. Isso sem contar os inúmeros outros cines da época no Recife, como o Torre, o Eldorado, o Brasil

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marcelo abreu

1 reinauguração

No dia 28 de dezembro, o São Luiz reabriu suas portas, em sessão solene, após três anos fechado

2 Exemplo

A restauração do Odeon, no Rio de Janeiro, é considerada uma das mais bem-sucedidas do país

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e o Albatroz. Eram cerca de 40 cinemas de verdade no final dos anos 1960.

PúBlico elegante

O São Luiz era a estrela do elenco, o grande marco nesse século de exibições cinematográficas na cidade. É sempre lembrada a elegância com que se frequentava o cinema da rua da Aurora, os homens sempre de terno e gravata, as mulheres com vestidos sofisticados. Um acontecimento social elegante, mas, por incrível que pareça, acessível a quase toda a população porque o ingresso era barato. Realidade distante da época em que a sala fechou, há três anos, quando a experiência de ir ao cinema já se assemelhava mais a um piquenique de farofeiros que abriam sacolas plásticas, consumiam hambúrgueres oleosos, espalhavam pipocas nas cadeiras e sugavam refrigerantes de latas e garrafas plásticas usando canudinhos e fazendo barulho. Tudo isso enquanto rolava o filme para uma plateia cada vez mais desatenta, despertada do sonho cinematográfico, constantemente, por seus celulares,

bombardeada por torpedos e outras espécies de banalizações. No entanto, entre as décadas de 1950 e 1980, o São Luiz foi palco de filmes memoráveis, que atraíram grandes multidões. Inaugurou com o filme O falcão dos mares, com Gregory Peck. Lá foram exibidos sucessos como Cleópatra, A noviça rebelde, as chanchadas da Atlântida, Doutor Jivago, Tubarão, as comédias dos Trapalhões. Na sessão de arte, passou o melhor da nouvelle vague e do cinema novo brasileiro.

arquitetura original

O engenheiro Lula Cardoso Ayres Filho, um dos maiores conhecedores e colecionadores de cinema do Brasil, foi quem apresentou ao governo do Estado a proposta de recuperação do São Luiz e coordenou o processo até a véspera da inauguração, em dezembro passado. Ele garante que nenhuma restauração de cinemas no Brasil foi tão fiel ao modelo original. A grande atração do São Luiz, sua decoração interna, planejada por Pedro Correia de Araújo, foi recuperada em toda a sua complexidade. O

revestimento das paredes foi inspirado numa tenda medieval usada no século 13, nas cruzadas, lideradas pelo rei francês Luís IX (depois chamado de São Luiz), com tapeçarias bordadas com os lírios da França e 16 escudos de guerra que lembram as batalhas. O teto imita uma rede de cobertura de uma tenda gigante. Tudo isso, assim como os vitrais ao lado da tela, está de novo acessível ao público. Durante os 11 meses de trabalho, foi recuperado o projetor norte-americano Simplex e incrementado o sistema de som que é um Dolby Stereo Analógico C55, com cinco amplificadores de 3 mil watts e 24 caixas de som, superior em qualidade ao sistema usado em algumas salas dos multiplex. Nesse quesito, segue a tendência mundial de revalorização do som analógico, considerado pelos especialistas como muito superior ao digital. Lula Cardoso Ayres Filho rebate as críticas feitas na imprensa local pelo fato de o som não ser igual ao de algumas salas de shopping. “Os mais jovens acham que tudo que é digital é melhor, mas falam sem conhecimento de causa.” Foram instaladas 992 cadeiras novas e um carpete vermelho, tudo seguindo o modelo original, usado nos anos 1950. O sistema de ar-condicionado também foi restaurado.

tendência mundial

Os cinemas de rua não desapareceram por igual em todas as partes. Na Europa, houve uma diminuição do número deles, mas uma cidade como Londres, por exemplo, mantém dezenas de cinemas de bairro aconchegantes, alguns independentes das grandes redes exibidoras, como o Coronet, no tradicional bairro de Notting Hill e o Everyman, em Hampstead. No centro da cidade, apenas em torno de uma única praça, encontram-se três cinemas gigantes: o Empire (1.330 lugares), o Odeon West End (duas salas com 814 e 489 lugares) e o Odeon Leicester Square – com 1.683 poltronas (onde são realizadas as grandes estreias com tapete vermelho, presença de atores, celebridades e até de membros da família real). Em Paris, a área de Montparnasse e o bairro boêmio do Quartier Latin

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con patrimônio ti nen te#44 fotos: flora pimentel

3 painel

A beleza do prédio é realçada pela obra do artista plástico Lula Cardoso Ayres, no saguão de entrada

4 restauro

A decoração interna, planejada por Pedro Correia de Araújo, foi totalmente recuperada

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ainda estão repletos de cinemas independentes e tradicionais. Em Berlim, a região em torno da Kurfürstendamm, a principal avenida da parte ocidental, tem algumas salas, com destaque para o Zoo Palast. Em Buenos Aires, voltaram alguns cinemas tradicionais na rua Lavalle, no centro. O mesmo ocorre em outras cidades do mundo. No Brasil, há várias iniciativas para restaurar os cinemas de áreas centrais. Em São Paulo, o Marabá foi recuperado, apesar de ter sido dividido em cinco salas menores, durante a reforma. Fala-se também na recuperação dos cines Ipiranga, Olido, Marrocos, Metrópole, Windsor e Paissandu, todos na região das avenidas São João e Ipiranga. No Rio de Janeiro, foi recuperado o Odeon, na Cinelândia – região central que concentrava a maior quantidade de cinemas do Brasil – e o Roxy, em Copacabana. Em Porto Alegre, discute-se há anos a volta do Capitólio. No Grande Recife, voltou a funcionar o Royal, em São Lourenço da Mata, e começa a ser recuperado o Samuel Campelo, em Jaboatão. O governo do Estado está recuperando e deve inaugurar em 2010 o Cineteatro Guarany, em Triunfo; o Polytheama, em Goiana; e o Apolo, em Palmares. E

muitas vezes preciso primeiro destruir algumas coisas para que as pessoas percebam a importância delas e tentem resgatar o que foi temporariamente esquecido. Tem sido assim com o transporte ferroviário, com os discos de vinil, com o carnaval de rua, com a alimentação natural e com as tradições em geral. Há 25 anos, seria impensável falar em verbas públicas na abertura de um cinema. Hoje, esse tipo de investimento torna-se essencial.

Programação variadA

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há planos para se construir um cinema em Fernando de Noronha. “Os bingos estão fechando e os cinemas voltando. São as pessoas reagindo ao multiplex de shopping. A reabertura do São Luiz é um marco histórico na volta do verdadeiro cinema”, diz Lula Cardoso Ayres Filho. É como se, no capitalismo, fosse

Luciana Azevedo, presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), diz que o governo considera a área do audiovisual estratégica. “É importante pela escala que ela alcança e pelo poder de sintetizar todas as artes.” E a recuperação dos cinemas faz parte da estratégia de valorização da cultura. Se a restauração do São Luiz foi um feito importante, o próximo grande desafio é manter em operação um cinema de quase mil lugares em um centro urbano cheio de problemas. E manter os filmes rolando com o interesse e a presença do público. A estrutura da programação, que já provocou polêmicas na fase final de preparativos para a reabertura, deve contar com espaço para filmes

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A programação do Cine São Luiz terá filmes de temática infanto-juvenil à tarde e filmes do circuito à noite Ang Lee, e Bastardos inglórios, do norteamericano Quentin Tarantino. No novo São Luiz, a intenção dos administradores é encontrar uma forma para impedir a entrada do público com alimentos e bebidas, para conservar o que foi restaurado e educar as pessoas à apreciação do verdadeiro encanto do mundo dos filmes. Geraldo Pinho, diretor do Museu da Imagem e do Som de Pernambuco (Mispe) e assessor da administração nas primeiras semanas do novo São Luiz, diz que é preciso que o público tenha orgulho de assistir aos filmes num ambiente limpo, bem-conservado e com boa projeção. “Ao contrário do que se pensa, filme e cinema não são a mesma coisa”, diz Pinho, com a autoridade de quem frequenta há 50 anos salas de exibição pelo Brasil, com assiduidade e paixão. “É em um cinema como o São Luiz onde a magia do filme realmente acontece.”

PROJETO RUA DA Aurora poderá ter corredor cultural A intenção do governo do Estado é que a reforma do São Luiz estimule, a médio prazo, a criação do chamado corredor cultural na rua da Aurora, com a reabertura do Museu da Imagem e do Som (Mispe) e do Teatro Arraial. Junto com o cinema, esses dois lugares se somariam ao Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam) e a outros espaços de cultura nas imediações, como a Espaço Pasárgada, na rua da União e, do outro lado do rio, o Liceu de Artes e Ofícios e o Teatro de Santa Isabel. Pelo projeto do corredor cultural, nos fins de semana, pagando só uma passagem de ônibus, a população de baixa renda teria acesso a cinema, artes cênicas e exposições em uma área do centro que ganharia nova vida. Segundo Luciana Azevedo, presidente da Fundarpe, esses espaços que fazem parte da rede estadual de estações de cultura promoveriam uma “efervescência cultural”, acessível à população de baixa renda para se contrapor à cultura de baixa qualidade, massificada pela TV e pela pirataria. A ideia é fazer uma programação integrada, aproveitando os vários

espaços, e provocar algumas intervenções urbanas na parte de trânsito e sinalização. O Mispe é o caso mais complicado, já que seu prédio precisa de uma reforma grande que resolva os problemas de estrutura no casarão na rua da Aurora. Segundo o diretor Geraldo Pinho, é provável que o museu reabra com exposições no térreo para atrair mais visitantes. Já o Teatro Arraial teve suas instalações elétricas e hidráulicas recuperadas. O projetor de cinema de 35 milímetros foi removido – vai para o Mispe – e o teatro dedicará seu espaço exclusivamente às artes cênicas: teatro, dança e circo. Pode ser que haja um espaço para música durante os dias de semana. É ideia, também, instalar um café na entrada, para movimentar o local. O Mispe, o Teatro Arraial e o Mamam ficam localizados no casario mais fotografado da cidade. Construídos a partir do ano de 1840, os casarões antigos da rua da Aurora serão mais valorizados quando o corredor entrar em funcionamento – mas, para isso, ainda não há uma data definida. flora pimentel

de temática infanto-juvenil à tarde e filmes do circuito à noite. Os curtas terão espaço na hora do almoço e às 17 horas. Haverá sessões de arte (na sexta, à noite, e no sábado de manhã) e matinês infantis aos domingos; pela manhã, o São Luiz vai funcionar como espaço de exibição de filmes para estudantes de escolas públicas e particulares, em um programa de formação de novas plateias. A existência do cinema como local coletivo onde acontece a experiência de ver um filme na tela grande é uma instituição valorizada por quem gosta da sétima arte em todo o mundo. No próprio cinema de ficção, muitas obras tratam do culto à sala de exibição como lugar fundamental na cultura do século 20. Entre eles, o alemão No decurso do tempo, de Wim Wenders, o italiano Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen, e os recentes Desejo e perigo, do chinês

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KARINA HOOVER/DIVULGAÇÃO

ACORDEOM Raízes musicais de continentes distintos

O músico Silvério Pessoa se prepara para lançar projeto musical em que o Brasil e a França dialogam, intitulado provisoriamente Nordeste Occitan TEXTO Guilherme Carréra

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Em primeira mão

Se a europa vive hoje uma situação crítica no que diz respeito a políticas de inclusão social e questões imigratórias, esse impasse não deve ser reduzido a um sintoma da contemporaneidade. A disputa territorial e a consequente supressão de identidades nacionais são fenômenos comuns à maioria dos países europeus. A Occitània, região situada no sul da França, se posiciona entre as que sofreram com a onipresença de uma nação mais poderosa, no caso, a francesa. Os registros originais datam do século 9, quando monges e sacerdotes utilizavam o idioma occitan como forma de divulgar a religião. Popularizada através de poetas

e trovadores, a língua foi um dos primeiros alvos da invasão francesa. Não era para menos: a estratégia de pôr fim à marca da oralidade facilitaria a ocupação do território e sua posterior anexação ao país. Em fuga, muitos acabaram se dirigindo à Península Ibérica. Acredita-se que, na época das Cruzadas, descendentes desses artistas embarcaram nas caravelas para a viagem alémmar, trazendo as suas tradições ao ancoradouro brasileiro. Ao perceber semelhanças entre as manifestações artísticas desenvolvidas no sul da França e na região nordeste brasileira, mais especificamente em Pernambuco, o músico Silvério Pessoa resolveu

investigar essa relação mais a fundo. No ano de 2004, em uma de suas viagens, o cantor percebeu que trabalhar os ritmos em comum entre os dois países acabaria por revelar uma nova sonoridade ao público, além de injetar força ao movimento de resistência empreendido pelos herdeiros, e ainda falantes, do occitan. Ele destaca as cidades de Marseille, Toulouse e Nice, na costa sul da França, e a medieval Cordes sur Ciel, no sudeste do país, como focos determinantes de sua pesquisa. Quatro anos depois da gênese do projeto, Silvério voltou à região para propor aos músicos, com os quais mantinha contato, uma parceria musical, chamada provisoriamente

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a produção do disco, sob sua responsabilidade, vem sendo feita majoritariamente através da internet, o que leva a pensar sobre a relevância de se lançar um CD, quando o consumo via download cresce a cada ano. “Eu ainda acredito no formato do álbum, na escolha da sequência das canções. Com certeza, o acesso às músicas foi facilitado com a virtualidade, mas o público ainda tem o fetiche da materialização do objeto artístico”, pontua.

INTERCÂMBIO

de Nordeste Occitan. O projeto, que agora entra em fase de finalização, não se resume apenas à gravação de um CD, mas também à elaboração de um site e de um circuito de palestras ministradas pelo próprio artista. “Quero colocar no mercado um trabalho em que eu possa oferecer uma discussão em torno da literatura, da cultura popular, das etnias. Minha busca é tentar entender as semelhanças entre o Brasil e a França”, explica. Segundo Silvério, um dos principais elementos presentes na base musical das duas culturas é o acordeom. “Ele representa o elo dessa corrente. Muitos grupos franceses utilizam o instrumento, da mesma

forma que nós o utilizamos no forró”, afirma. Dentre as bandas que participam do Nordeste Occitan, figuram a Bombes 2 Bal, Massilia Sound System, La Talvera e La Mal Coiffée. Integrantes do mercado independente na França, esses conjuntos musicais tocam a carreira em moldes semelhantes aos de Silvério, à margem do mercado fonográfico dito oficial. “As pessoas acham difícil se estabelecer no circuito, porém mais difícil ainda é dar continuidade ao trabalho, romper o bloqueio das grandes mídias”, comenta o intérprete, com mais de 15 anos de carreira. Fazendo a ponte-aérea, sempre que possível, Silvério diz que

O disco reunirá canções em quatro idiomas: português, francês, italiano e occitan. “Apesar de parte do público considerar caretas os trabalhos que dialogam com a cultura popular, este é um disco jovem, com batidas eletrônicas, que apresenta um panorama linguístico-musical diferenciado”, opina. Instrumentos tradicionais à parte, Silvério conta que um dos participantes, Daniel Lodo, líder do grupo La Talvera, toca também a gaita occitan, espécie de gaita escocesa, só que feita com a pele da cabra. Algo, no mínimo, inusitado. Com selo e distribuidora franceses, o Outro Brasil e Autre Distribuition, respectivamente, a relação do pernambucano com a França teve início em 2003, após ter se apresentado no Teatro Rival, no Rio de Janeiro. O produtor francês Marc Régnier ficou fascinado por sua música e o convidou para realizar uma turnê na Europa. Desde então, Silvério mantém uma conexão direta com o continente. Mas, embora tenha despontado fora do Brasil, o intérprete se mantém enraizado em Pernambuco. “Eu me sinto um nômade, mas em nenhum momento Carpina deixou de ser o centro do meu mundo. Ela é o meu planeta, em torno do qual giram meus outros satélites”, diz, referindo-se à sua cidade natal, na Zona da Mata Norte. Com o Nordeste Occitan, Silvério se prepara para promover mais uma extensa rota de shows. O lançamento no Brasil está previsto para o mês de maio, enquanto que as plateias estrangeiras devem conhecer o projeto somente em julho.

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PALACETE Distinção e ecletismo Valiosa construção de arquitetura eclética é exemplo da nobreza e importância da Associação Comercial de Pernambuco texto Diogo Guedes fotos Tiago Lubambo

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A entrada antecipa a elegância do local. Ao subir alguns degraus em mármore branco, o visitante chega ao térreo, colocado um pouco acima do nível do terreno para demonstrar o distanciamento dos nobres integrantes da Associação Comercial de Pernambuco (ACP) do resto da população, como relata o arquiteto José Luiz Mota Menezes. Em seguida, vê-se uma bela escadaria inglesa, feita de madeira de carvalho e ferro, que vai até o último andar do edifício. Por todos os seus ambientes, o palacete da ACP procura evidenciar a distinção e o poderio da organização de 170 anos. Inaugurado em 1915, a ideia de construção do edifício surgiu depois que a sede original precisou dar lugar ao Porto do Recife. O novo local, em frente à Praça Rio Branco, conhecida como Marco Zero, acabou por torná-lo um dos principais cartões-postais da cidade.

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A fachada, em estilo classicista francês, é imponente. Ao seu lado, em outras esquinas, ficam a antiga Bolsa de Valores e o Instituto Cultural Banco Real. Os dois edifícios também fazem parte do projeto de urbanização do começo do século 20. “A ideia original da Praça Rio Branco era ter a forma da palma de uma mão”, explica José Luiz, ressaltando a visão harmônica da arquitetura da área, baseada no ecletismo parisiense, movimento que pregava o uso de diversos estilos em uma mesma obra. Foi ele que esteve à frente do processo recente de restauração do edifício, além de ter lançado o livro O palacete da Associação Comercial de Pernambuco, com a história, fotos e detalhes do projeto. Celso Muniz, presidente da ACP, chegou a afirmar que o palacete talvez seja o “edifício mais rico, arquitetonicamente, do Estado”. Para José Luiz, o valor da construção está

nas singularidades em relação aos demais exemplares do ecletismo. “Apesar de ter três cúpulas, como o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a principal particularidade é a de ser um espaço que pode ser visto por todos os lados”, destaca o arquiteto. Desse modo, para se contemplar o edifício é preciso andar ao seu redor. Outra curiosidade está no seu terreno. Com 496 m², ele ocupa todo um quarteirão, privilégio que nenhum de seus vizinhos possui. “Segundo consta, foi uma exigência da ACP”, pontua Marta Almeida, assessora da presidência da instituição, também à frente da restauração. Na época, foi uma forma de a organização simbolizar o seu poderio.

Referências ao oceano

O impacto da entrada se amplia nos demais ambientes. Cada um dos três

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Página anterior 1 fachada

Completamente restaurado, o palacete fica em frente à Praça do Marco Zero, ponto central da intervenção urbana do começo do século 20 Nestas Páginas 2 cúpulas

Todos os ambientes tiveram os seus ornados e lustres recuperados pelo trabalho de profissionais

3 verba

Para a reforma dos vitrais, a ACP tentará aprovar um novo projeto de Lei Rouanet, orçado em cerca de 200 mil reais

4 raridades

O salão nobre abriga obras únicas, como o quadro de Dom Pedro II pintado por Ernest Palp, em 1870

5 elegante

Feita de ferro e madeira de carvalho, a escadaria inglesa liga o térreo ao segundo andar

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andares conta com pequenas áreas arredondadas no local das cúpulas e cômodos nos setores norte, sul e oeste. Os salões centrais, no entanto, são o principal destaque, sendo vazados no último pavimento para permitir a entrada de luz natural – também espalhada pelos 20 vitrais dispostos no prédio – pela claraboia. No centro do primeiro andar, encontra-se o principal ambiente do palacete, onde acontecem as festas e recepções da ACP. Junto com o salão nobre, que fica ao seu lado, a sala central compõe a parte da construção mais rica em ornados, todos assinados pelo decorador italiano Paschoal Florentino. Vários deles estavam bastante danificados ou até escondidos por conta do rebaixamento de gesso do teto. Coube a Lucenberg Matoso restaurá-los, em um trabalho minucioso que usou mais de 5 mil lâminas de bisturi.

Em todo o prédio, destacam-se as referências ao oceano, compostas por peixes e pelo recorrente Netuno, deus romano do mar que está presente tanto internamente como no frontão da fachada. “Apesar de ser uma Associação Comercial, o local tinha uma forte ligação com o mar. Na época da construção do prédio, a ACP praticamente comandava o Porto do Recife”, explica Marta. Segundo ela, a proposta inicial era recuperar a beleza do local. “Imaginavase uma restauração estética, mas a estrutura do prédio estava péssima”, conta, comentando que o palacete até correu o risco de ser interditado. Uma equipe de 30 pessoas trabalhou durante 10 meses na reforma, que custou cerca de 8 milhões de reais e teve a supervisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Um exemplo do cuidado foi a busca pelo aspecto original, que levou a

uma meticulosa prospecção da cor das paredes, pilastras e ornados na época da construção. No salão norte do térreo, foram descobertas mais de 15 tonalidades diferentes posteriores à primeira camada de tinta verde. A criação de marcos também foi importante, evidenciando mudanças estruturais que não foram revertidas, como o caso da abertura de passagens em paredes para implantação de banheiros, inclusive com acessibilidade a cadeirantes. Apesar da ampla reforma, nem todos os aspectos puderam ser contemplados. A sala oeste do segundo andar, pavimento onde funciona a parte administrativa da ACP, não será recuperada por falta de verba. Os vitrais também ficaram de fora, mesmo que já esteja nos planos da organização tentar aprovação de mais um projeto na Lei Rouanet para esse fim. Existem vários outros casos em que não foi possível retornar ao estado inaugural da construção: as varandas, pois não havia um modelo para servir de referência; o salão central do primeiro andar, que antes era vazado; e o frontão da fachada, que ficou mutilado, sem duas das estátuas que possuía, dentre outros. Ainda assim, José Luiz ressalta a importância de fazer o palacete voltar a ser o que chamou de uma “unidade de referência”. “Tentei ser fiel também aos usos atuais. Afinal, restaurar não é simplesmente uma busca pela forma original”, conclui, satisfeito com o resultado.

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cultura afro Dança africana é uma coisa, dança tribal é outra Bailarinos e pesquisadores questionam visão preconceituosa e simplista sobre essa arte feita hoje no continente africano texto Christianne Galdino

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marta ferreira/divulgação

Que a história cultural do Brasil

foi também escrita com vocabulários da África não é novidade, mas o que realmente sabemos da cultura dos povos africanos? Poucas são as informações que conseguem chegar aqui sem interferências e/ ou distorções. Como constatou a coreógrafa angolana Ana Clara Guerra Marques: “O Brasil mantém um olhar romântico, cultuando a imagem da eterna África selvagem, exótica e única, e deixando de contemplar, assim, todas as diversidades, até mesmo as particularidades culturais de cada país africano”. Angola é um bom exemplo dessa riqueza e sua variedade de danças vai além dos populares kuduro e kizomba, dançados em boates do mundo todo. Na capital, Luanda, o que existe são companhias de inspiração tradicional como o Yaca e o Kilandukilu, este último sediado em Lisboa desde 1998, e com uma extensão no Recife, fruto de iniciativa da Associação Pé no chão, que desenvolve projetos pedagógicos e culturais. “O trabalho com o Pé no chão foi uma das melhores parcerias que já fiz, e teve um resultado extremamente positivo. Depois de algumas aulas, conseguimos criar um embrião do Kilandukilu no Recife, apresentando um espetáculo com os jovens do projeto. E agora vamos dar continuidade ao processo de formação, com a ida de um professor de percussão nosso ao Recife para ministrar um curso completo”, conta o bailarino angolano, diretor do Kilandukilu, conhecido como Petchú. Mesmo sem formação em dança, ele assumiu a coordenação do Kilandukilu em 1988, e conseguiu alcançar projeção internacional. No repertório do grupo, muitas variações de danças: desde as de exaltação espiritual, como a kazukuta, até as carnavalescas, passando, pelo massemba, dançado em pares. O sempre difícil caminho da emigração fez com que a luta pela sobrevivência em terra estrangeira falasse mais alto e a pesquisa das danças tradicionais de Angola acabasse não acontecendo. “Chegando a Portugal, encontrei outra maneira de trabalhar, então tive que criar a minha forma de elaborar as coreografias e aulas. E fui descobrindo naturalmente o meu próprio estilo de leitura/ escrita corporal”– recorda Petchú. Pesquisadora das danças de Angola há

1 Cabo verde

Criada em 1991, a Cia. Raiz di Polón criou uma escola de formação permanente em dança contemporânea

2 portugal

Ópera crioulo, do coreógrafo António Tavares, é um espetáculo fincado na cultura caboverdiana, mas que foge dos estereótipos

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20 anos, e única a estudar as danças de máscaras do povo Cokwe, Ana Clara diz que até em Angola “é fácil as pessoas desconhecerem a panorâmica das danças locais e se enganarem, pois pouco sabem sobre a sua genuinidade e aceitam como verdade tudo que lhes é mostrado como tal. Isso porque a ideia difundida é de que basta ser negro, tocar tambor e fazer movimentos vigorosos para ser africano”.

CRIAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Sem tradição em dança cênica, Angola enfrenta também a rivalidade entre artistas de formações distintas. “Curiosamente, o desdém vai para quem apresenta um trabalho mais intelectualizado, seja no nível conceitual, seja no plano estético ou técnico. Há ainda um grande desconhecimento do que é a dança contemporânea, havendo a ideia generalizada de que é um gênero que dispensa formação. Não se sabe da história, nem dos seus precursores e motivações. Assim, qualquer um que faça algo que não identifique como tradicional, diz que é contemporâneo”,

explica Ana Clara, diretora da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, único grupo do gênero no país. Cada um a seu jeito, o autodidata Petchú e a mestra em performance artística, Ana Clara, mostram que existe muito trabalho sendo produzido no contexto da África contemporânea. Existe dança de qualidade além dos limites colonialistas, e uma diversidade que não combina em nada com a imagem que povoa o imaginário brasileiro “de uma África pura e inocente, com o seu belo pôr do sol e suas danças tribais”, como descreve António Tavares, bailarino e coreógrafo caboverdiano. Ele conta que “antes de falar das danças de Cabo Verde, é fundamental fazer um enquadramento histórico-geográfico do arquipélago, porque é exatamente aí que se encontram as marcas da formação do país: quando vieram pessoas de várias partes da costa ocidental africana e da Europa, trazidas pelos portugueses para povoar as Ilhas. Essa origem mestiça é hoje tão evidente na sua paisagem humana e linguística como também nas suas danças. Em Cabo Verde, tanto

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divulgação

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podemos encontrar danças do século 17 e 18 da Europa como elementos das danças de transe da civilização dadá, pertencente à costa ocidental africana”. Estudioso da cultura do seu país, António Tavares costuma organizar os gêneros de dança tradicionais de Cabo Verde em dois grupos: “As danças dos bailes, como morna, coladêra, mazurca, lundum, funaná; e as danças dos terreiros, como kola san jon, batuko, tabanca etc.” Mas ele mesmo avisa que essa classificação ainda deixa de fora uma série de outras danças que desapareceram ou só são dançadas por poucos. Sobre suas escolhas, o coreógrafo diz que: “Sendo um bailarino caboverdiano, criador freelancer, emigrante, cedo percebi que não havia muito por onde eu andar, eu teria que inventar a minha própria estrada. Mas, mesmo morando em Portugal, Cabo Verde continua a ser o meu laboratório criativo, é ali que começa a minha inquietude criativa. Vou várias vezes estudar, nas danças tradicionais caboverdianas, formas e fórmulas coreográficas, outros assuntos de interesse antropológico

ou político, e o seu valor artístico. A partir daí, tento arranjar ligação às temáticas atuais, à procura de uma linha pessoal, mas que possa ser lida em qualquer parte do mundo. Para mim, a criação contemporânea é uma linha livre que começa em lugar nenhum e não tem final de estação”. Desse trabalho contemporâneo, fincado na cultura caboverdiana, já surgiram espetáculos como SOBREtudo, Danças de Câncer, e a Ópera crioulo, envolvendo músicos, cantores e bailarinos em uma montagem grandiosa, que estreou em 2009, em Lisboa. De acordo com Jeff Hessney, produtor da companhia de dança contemporânea Raiz di Polón, “Há vários grupos de dança tradicional em Cabo Verde, com destaque para o Maravilhas Tropical de Porto Novo, da Ilha de Santo Antão. Já existiram muitos grupos interessantes em São Vicente também, mas a maior parte dos integrantes emigrou, não existem mais ou não têm a mesma pujança de anos atrás”. Em dança contemporânea, dos poucos grupos, quase ninguém “conseguiu resistir a esta calamidade

crioula da partida, da emigração. O único grupo que tem feito um trabalho titânico de formação de bailarinos, de socialização da dança contemporânea nas Ilhas, e de divulgação da cultura caboverdiana no estrangeiro, é o Raíz Di Pólon”, complementa António Tavares. A Cia. Raiz di Polón começou como grupo de danças tradicionais e em 1994 entrou em contato com a dança contemporânea, através do projeto Dançar Cabo Verde, dos coreógrafos portugueses Clara Andermatt e Paulo Ribeiro. Mesmo decidido a investir na vertente contemporânea, Mano Preto, diretor da companhia, não se desvinculou das tradições, até mesmo porque ele acredita “que não existe dança contemporânea sem uma referência à dança ou à cultura tradicional. Pelo menos, não em Cabo Verde”. Escolhendo permanecer em Santiago, Mano Preto investiu na formação de bailarinos, inicialmente só do seu próprio elenco. E, a partir de 2005, começou a abrir os seus ensaios diários, e vários estudantes do ensino médio passaram de observadores a alunos. Assim surgiu a Escola Raiz di

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3 mudança

Kilandukilu, de Angola, foi fundado em 1988, em Luanda; dez anos depois foi transferido para Portugal

4 brasil

Extensão do Kilandukilu foi criada no Recife a partir de um curso ministrado pelo seu diretor de Angola, Petchú

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Polón, que desde então vem oferecendo formação aos jovens e transformando o cenário da dança contemporânea caboverdiana. Sem sair de Santiago, o Raiz di Polón se lançou para o mundo, apresentandose em países como Portugal, Holanda, Estados Unidos e até na China. Mas, apesar da carreira internacional e de já ter conquistado um público para a dança contemporânea nas Ilhas, o Raiz di Polón, assim como as demais produções “crioulas” de dança, ainda não conseguiu uma projeção significativa no Brasil. Mesmo próximo geograficamente e com evidentes semelhanças culturais, o arquipélago e seus artistas continuam desconhecidos da maioria dos brasileiros. Uma contradição, principalmente em se tratando do Brasil – que é herdeiro direto da cultura africana. “A lógica do racismo no Brasil é baseada em uma negação histórica, uma tentativa de tornar invisível a presença africana. E isto muitas vezes se dá de maneira não declarada, por meio de uma supervalorização da cultura europeia e do pensamento eurocêntrico” – opina o pesquisador

Lindivaldo Júnior, que é assessor técnico da Secretaria de Cultura do Recife, além de desenvolver um estudo acadêmico sobre a história da África.

ideias estereotipadas

O desrespeito às particularidades de cada país africano é o primeiro indício de um preconceito que atravessou séculos e resiste mesmo no ambiente supostamente livre e democrático da arte. Depois de um mês trabalhando no Recife, Petchú disse que “durante toda a nossa temporada no Brasil, fomos tratados como africanos e nunca como angolanos, o que faz crer que os brasileiros desconhecem a realidade e as múltiplas formas de dança do continente”. Mano Preto acredita que talvez “a cultura africana não esteja sendo ensinada da forma que deveria nas escolas brasileiras”, o que acaba colaborando com a permanência de ideias estereotipadas, que desprezam o panorama diversificado e dinâmico da dança na África. Para Lindivaldo Júnior, “Tratar a África como algo singular é um erro, a África é plural. Fazer dança africana é também

praticar a dança dos orixás, mas não é só isso”, esclarece o pesquisador, mencionando outra confusão habitual, que é a associação da dança africana exclusivamente às manifestações ligadas ao candomblé. Ele reconhece que já houve avanços, inclusive em termos de políticas públicas, mas ainda há muito a ser feito. Jeff Hessney conta que “um curador, que estava querendo levar o Raiz di Polón a um festival em São Paulo, perguntou se o grupo não teria uma coreografia mais tribal, o que me entristeceu bastante, particularmente porque veio de um país que eu supunha estar empenhado em acabar com estereótipos”. Considerar dança africana como sinônimo de dança tribal é o mesmo que dizer que só o samba é dança brasileira. Essas questões mostram a urgência de políticas culturais que possam sanar tão graves ausências e reconstituir esses laços históricos. Reconstruir a ponte que liga a África ao Brasil é um desafio necessário, e mais que isso, é uma porta de acesso para o conhecimento da nossa própria realidade cultural, para saber quem somos de fato.

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sérgio lobo de oliveira/divulgação

panorama Resgate e reflexões de um passado próximo

Atriz Lúcia Machado revisita e atualiza monografia de 25 anos atrás para publicar denso livro que suscita análises sobre a modernidade na cena teatral pernambucana texto Alexandre Figueirôa

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Nos últimos meses, observamos em

Pernambuco o lançamento de alguns livros importantes voltados ao teatro e dignos de destaque. Dentre eles, o mais recente é A modernidade no teatro – aqui e ali: reflexos estilhaçados, de Lúcia Machado. A obra, resultado de um trabalho para atender às exigências de conclusão de um curso de especialização em artes cênicas da Universidade Federal de Pernambuco, foi escrita em 1986. Tantos anos de hibernação entre os alfarrábios da autora, uma atriz que vive e respira teatro 24 horas do dia, em vez de ser algo a depor contra o seu aparecimento, revelou-se um processo de amadurecimento do próprio exercício realizado outrora e frutificou em uma obra que nos surpreende pela

riqueza de informações, pelas reflexões suscitadas e um acabamento editorial digno de sua pretensão. O viés acadêmico nesse tipo de empreitada poderia ser algo capaz de afastar leitores. Sabemos o quanto para muitas pessoas afeitas a uma literatura fácil, impressionista e limitada à descrição de fatos, por vezes, apenas elogiosa ou restrita a enumerar eventos, qualquer imersão com mais densidade num objeto de estudo é vista como algo enfadonho e desnecessário. Mas Lúcia Machado, orientada pelo encenador Antonio Cadengue e assessorada por um grupo de colaboradores entusiasmados e cúmplices de sua pesquisa, soube contornar as armadilhas do engessamento de um texto universitário

e, sem perder de vista as exigências de praxe, nos apresenta um livro de fôlego, dinâmico e cujo valor não se encerra na monografia concebida há quase 25 anos. Além de revisar e atualizar o que pensou no passado, Lúcia Machado agregou à sua obra um material textual e iconográfico, cuja ligação em suas 450 páginas instaura um marco na literatura sobre as artes cênicas em Pernambuco. Discutir a modernidade no teatro, expressão que vem sendo solapada por inúmeros fenômenos socioculturais contemporâneos é, antes de tudo, um empreendimento desafiador numa cidade cujo panorama nas artes cênicas, infelizmente, já não traduz a pujança criativa de décadas passadas em que movimentos, companhias, encenadores

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fotos: divulgação

1 espetáculo

Na obra, a autora resgata peças importantes como Sonho de uma noite de verão, dirigida por Antonio Cadengue em 1984

2 amadurecimento

A monografia publicada há quase 25 anos foi revisada e atualizada, e contorna o engessamento do texto acadêmico

3 pesquisa

Lúcia Machado apresenta no livro o percurso da modernidade teatral, partindo do contexto universal até chegar aos palcos pernambucanos

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na busca pela originalidade de um “teatro nordestino”. Do outro, o fato de o estudo se voltar para a arte da encenação com a autora “pondo em cena os diretores”, dando-lhes visibilidade e destacando aqueles que julga serem os representantes legítimos de uma época.

Modernidade teatral

e críticos despontavam a todo momento animando a cena local, provocando intensos debates e lançando ideias para o teatro brasileiro. E aí reside o maior mérito do trabalho da autora, como bem observou Luís Reis, ao destacar no prefácio do livro duas características do estudo por ela realizado. De um lado, a captura de “um importante período de transição no teatro recifense, quando jovens diretores começam a se fazer notar”, buscando se desvincular das matrizes estéticas vigentes até então, rompendo sem, no entanto, negar o exemplo do Teatro de Amadores de Pernambuco, com sua preocupação de fazer um teatro tão bom quanto o feito em centros mais desenvolvidos, ou o Teatro Popular do Nordeste

Para chegar a esse panorama tão bem-urdido, vale ainda ressaltar o fato de a autora não ter descuidado de trabalhar os conceitos nos quais baseou seu estudo, sobretudo aqueles desenhados na base de sua reflexão, cuja referência já é posta no primeiro parágrafo, quando assinala como ponto de partida de seu estudo o que ela chama de “marcas da modernidade”. Com cuidado, ela vai então nos apresentar, mesmo de forma sintética, porém nunca imprecisa, o percurso da modernidade teatral, partindo do contexto universal até verificar como ela acontece nos palcos recifenses. Os nomes a quem Lúcia Machado dedica atenção são a prova do quanto ela compreendeu o período. Milton Bacarelli, José Francisco Filho, Guilherme Coelho, Carlos Bartolomeu, Antonio Cadengue e Beto Diniz nos são apresentados dentro de uma chave em que ressoa claramente a contribuição desses protagonistas da cena local ao teatro pernambucano até os dias atuais. Nesse aspecto, é necessário destacar a garimpagem feita por Lúcia Machado não apenas de matérias jornalísticas, mas de textos e artigos, alguns deles inéditos, de ensaístas como Mariângela Alves de Lima, Fátima Saadi e Edélcio Mostaço, que registraram e testemunharam a produção, e, ainda,

de entrevistas realizadas com os próprios encenadores. Ao confrontar o texto elaborado pela própria autora e os “intertextos” que acompanham cada capítulo, os reflexos, mesmo estilhaçados, das trajetórias desses encenadores possibilitam a emergência de uma cena orgânica no teatro recifense a partir dos anos 1970 e, finamente, sintonizada com experiências feitas alhures, sem que isso signifique mera reprodução de padrões estéticos e métodos importados. As tensões, contradições, embates e convergências nos permitem vislumbrar uma diversidade de ações das companhias e grupos teatrais, cujo cerne ideológico e estético foi a deliberada intenção de provocar o diálogo com a contemporaneidade. As montagens empreendidas por grupos como o Teatro da Universidade Católica de Pernambuco (Tucap), o Vivencial e companhias como a Práxis Dramática e a Cia. Teatro de Serafim, entre outras, nos revelam uma originalidade criativa que precisava de um trabalho como este, de Lúcia Machado, para mais uma vez galgarmos o reconhecimento digno de sermos considerados um polo de criação cênica muito além do número de espetáculos representados. Seria muito bom que os integrantes de novos grupos e companhias lessem e descobrissem esse passado tão próximo, para que a atualização estética não sofresse solução de continuidade e novas rupturas pudessem surgir, contribuindo para um fazer teatral em conexão direta com os dias atuais e não apenas calcado na revisitação de tempos saudosos.

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Cardápio

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MERCADOS PÚBLICOS Embaixadas das tradições de mesa Frequentados por clientela assídua, os mercados da Boa Vista, Encruzilhada, Madalena e de São José oferecem opções que agradam a paladares sem preconceitos texto Bruno Albertim FOTOS Alexandre Belém

É longeva e prolífica a relação do

Recife com seus mercados públicos. “Com a presença holandesa a partir de 1630, o Recife passou a dispor de mais de um mercado: o mercado do peixe, o mercado do Recife, o mercado de carne, o mercado de verduras e o Mercado Grande de Maurícia, no chamado terreiro dos coqueiros”, afirma o historiador Leonardo Dantas Silva, no prefácio do (ótimo) livrinho Mercados do Recife, do pesquisador Marcelo Lins. Desde o século 16, quando o calendário ainda exibia os anos iniciados por 1500, a cidade já dispunha de um grande e concorrido mercado público. Se, como dizia Gilberto Freyre, o paladar denuncia no homem o que lhe há de mais pátrio e intimamente

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nacional, não é menos verdade dizer que, ainda hoje, ao final da primeira década do segundo milênio, são os mercados da capital embaixadas primordiais de tradições de mesa e de panelas que nos temperam historicamente o caráter. Madalena, Encruzilhada, São José, Boa Vista... Entre outros, ali estão catedrais vivíssimas e dedicadas a pratos que contam, ingrediente a ingrediente, técnica a técnica, a formação de uma cozinha intimamente ligada à própria gênese do povo brasileiro. Uma cozinha gestada entre as tradições do colonizador ibérico e dos colonizados nativos e africanos. Gilberto, ele mesmo, era um assíduo frequentador do boxe do Dudu, famoso nas décadas de 1920 e

1930 no Mercado de São José. Tinha entre as bancas populares o mesmo prazer e orgulho que sentia ao conduzir ilustres visitantes ao aristocrático restaurante Leite. Já morando no Recife, Luiz Gonzaga matava as saudades de Exu se abastecendo de artigos como manteiga de garrafa e linguiças no Mercado da Boa Vista. São muitos os que hoje seguem aqueles passos recifenses do rei do baião. “Nos sábados, se não chegar antes de meio-dia, não se consegue uma mesa para sentar e comer”, diz dona Rejane Maria de Melo. Ela comanda há quase 10 anos as panelas do pequeno restaurante abrigado num dos boxes diante do pátio a céu aberto, onde mesas e cadeiras simples de plástico encontram espaço à sombra de grandes jambeiros. O nome do estabelecimento administrado por sua irmã Tereza Cristina não esconde que mesmo logradouros tão tradicionais estão passíveis dos efeitos linguísticos da globalização: Buchada’s Bar. Tem até, acreditem, site na internet. Apesar de o nome ser algo heterodoxo, ali, de fato, está uma das melhores buchadas do Recife. Pirão amarelinho, fumegante, bem-tirado. O bucho delicadamente costurado com as vísceras. Cocção lenta. Farinha e pimenta artesanal para a finalização do prato à mesa. “Nossa buchada já foi até para Brasília, para Minas Gerais. O pessoal encomenda, passa aqui e vai direto para o aeroporto”, diz ela, orgulhosa, revelando o segredo da iguaria. “Não é só saber fazer. O bucho

tem que ser bom, de um bode que tenha sido muito bem-tratado”, diz ela. Há quase uma década, o insumo chega do mesmo fornecedor, dono de um pequeno rebanho caprino em Vitória de Santo Antão. “Bode só presta quando vem do interior”, sentencia. Os serviços também atendem a exigências contemporâneas. No mesmo mercado, onde escravos africanos já foram comercializados, um boxezinho de nome Displastic vende in loco cachaças artesanais, uísques e vinhos importados. Ou, se preferirem, entregaos em domicílio. “Apenas nos bairros centrais”, diz o funcionário Mário. Numa antiga mercearia do lugar, os moradores ainda fazem seus pedidos e esperam o frete em casa. Iguaria intimamente ligada à história do açúcar nas terras pernambucanas, a castanha de caju confeitada é facilmente encontrada no mercado. Muita gente sai de saquinho na mão depois de uma cervejada. Os mercados não param de atrair olhares – e paladares – notórios. Um dos maiores especialistas em dicção popular no Brasil, escritor, folclorista e “sacanólogo” (“O povo gosta mesmo é de safadeza”, gosta de dizer), Liêdo Maranhão almoça quase que diariamente num dos boxes do Mercado de São José. No prédio do século 19, o mais antigo em arquitetura de ferro no país, Liêdo elege os boxes da Irmã, de Miro, do Vavá ou o do famoso Microfone, celebrizado depois de ter sido personagem de um programa de Regina Casé, como os

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Cardápio

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melhores para se pagar pouco e comer muito – e bem. Por valores entre R$ 5 e R$ 10, tem-se acesso a um prato de feijão, arroz e galinha guisada ou cabidela, pirão de chambaril ou peixe de coco. “Tem gente no Recife que tem preconceito. Eu já levei até uma pesquisadora francesa e ela adorou. Nesses lugares, a comida é nova, não sobra para o outro dia”, ensina o folclorista. O mercado, aliás, funciona num lugar de vocação que remonta ao comércio de alimentos no Recife, a antiga feira da Ribeira do Peixe. Além de lugar para uma cerveja e um pratinho de sarapatel, o Mercado de São José é boa fonte para abastecimento de pescados no Recife. “Ali, vi péssimos e excelentes peixes”, diz o chef paulistano Alex Atala, reconhecido internacionalmente como o maior representante da contemporânea cozinha brasileira. “Vi, por exemplo, saramunetes, conhecidos em São Paulo como trilha. É um peixe muito barato e desprezado no Brasil, mas uma das peças fundamentais da culinária francesa dedicada aos pescados”, diz ele. Também por lá as sacolas

O sociólogo Gilberto Freyre dizia que o paladar denuncia no homem o que lhe há de mais pátrio e intimamente nacional podem ser abastecidas com ervas como manjericão e alecrim. “Estão sempre frescas. Já fiz uma ótima farofa com elas, que batizei com o nome do Mercado de São José”, conta o chef Douglas Van der Ley, o homem por trás da cozinha do sofisticado e contemporâneo restaurante É, no bairro recifense de Boa Viagem. No prédio que denuncia o Recife modernista do final da década de 1940, as filas se formam logo às primeiras horas do sábado. O motivo está nos famosos bolinhos de bacalhau preparados por seu Manoel José Alves, no box batizado com o gentílico de sua região de origem: O Bragantino (Encruzilhada). Além do bolinho, constam no portfólio receitas que

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sua família já praticava em Bragança: bacalhau de coco, arroz de polvo, arroz de bacalhau, dobradinha, lombo assado, cabidela. Além do cardápio perene, sugestões de cada dia, como manda a boa escola dos restaurantes familiares. Segunda-feira, cozido. Quinta é dia de cabrito. Como nos primeiros tempos, o mercado permanece grande arena de artes e ofícios vários. “É ótimo porque enquanto tomo uma cerveja com os amigos, posso mandar consertar panelas, mandar ajeitar e polir os sapatos e até fazer coisas impensáveis, atualmente, como cobrir botões”, diz o executivo Saulo Fernandes, diante de um suculento prato de chambaril na Encruzilhada. “São serviços que nenhum shopping consegue oferecer”, diverte-se. Do lado de fora, um trio de forró faz a alegria de turistas e nativos, munidos com seus copos de cerveja e de caldinho, de feijão, peixe ou camarão, liturgicamente servidos no mesmo modelo clássico para a apreciação de uma gelada, o do tipo americano. Desde os primeiros tempos, os mercados da cidade recebem produtos

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Páginas anteriores 01 encruzilhada

O bacalhau é o principal ingrediente dos pratos servidos no box O Bragantino

02 madalena

Nas primeiras horas do dia, o mercado recebe os que chegam da boemia e os que saem para o trabalho Nestas Páginas

3 Almoço

A dobradinha é um dos pratos mais procurados na Confraria dos Chifrudos

4 para chegar cedo

Sábado, no Mercado da Boa Vista, é o dia em que as mesas são mais disputadas

5-6 lugar certo

Nos mercados públicos, podem ser encontradas as mais diversas especiarias do Sertão

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e insumos de várias regiões do Estado. Artigos dignos de selos de denominação de origem e status de patrimônio imaterial. Expatriados do paladar nativo costumam recorrer a eles. “O mercado é o melhor lugar para se comprar e se comer uma boa buchada de bode. Me faz matar rápido as saudades depois de muito tempo fora”, diz a atriz Hermila Guedes, sertaneja de origem, moradora de Olinda e sempre em viagem por causa da agenda profissional. No Mercado da Madalena, as irmãs Nelcita e Neurides Ferraz são notórias na oferta de especiarias do sertão. “Vendemos carne de sol, coelho, queijos, linguiças, licores, tudo vindo de cidades como Cachoeirinha. A qualidade não tem igual”, orgulha-se Nelcita, que também manda buscar algumas das melhores cachaças mineiras para expor nas prateleiras. Nas primeiras horas de sol, os madrugadores de sacola na mão se misturam aos boêmios ainda em atividade. “Às vezes, tem gente que sai da farra e às 5 horas da manhã já está no mercado, para comer uma macaxeira e rebater a bebida”,

diz o popularíssimo seu Fernando, proprietário do concorrido Confraria dos Chifrudos. O dono até tentou fazer com que o estabelecimento se chamasse Rabada do Fernando. Mas a picardia e o humor típico das mesas populares falou mais alto. Aberto no final nos anos 1970, o lugar era ponto de encontro de agentes policiais, homens que ali trocavam uma ideia, entre um petisco e um copo, antes de partir para diligências no interior. “Um dos clientes disse que ficavam fora de casa muito tempo e as mulheres faziam o que queriam”, lembra ele. “Sugeriu que a casa se chamasse Bar dos Cornos”. Seu Fernando gostou. Mas preferiu o eufemismo Confraria dos Chifrudos. “O mercado só tem melhorado, muita gente diferente”, diz ele, cuja dobradinha é muito disputada. É sua esposa, dona Maria de Lourdes, quem manipula as panelas do cardápio de raízes francamente ibéricas: patinho com charque, miúdos de galinha, guisado de bode, sarapatel. Peças de uma catedral erguida ao paladar. Uma de várias que o Recife possui.

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karina freitas

Claquete DOCUMENTÁRIO De volta ao reino esquecido do baião Novo documentário de Lírio Ferreira resgata Humberto Teixeira e o imaginário desse ritmo nordestino texto Marcelo Costa

Na cena de abertura do filme Cartola, de Lírio

Ferreira e Hilton Lacerda, em meio às imagens do funeral do compositor e sambista carioca, uma voz hesita quanto à melhor forma de começar a história: se pelo princípio ou pelo fim. Essa simples declaração, na verdade uma citação a Memórias Póstumas de Brás Cubas, expõe o caráter memorialista do material: um mosaico de

depoimentos, encenações e imagens de arquivo que remetia ao diálogo entre passado e presente. Na verdade, o filme é um exercício de reconstituição poética, via imagem e som, da cultura do samba carioca a partir da história de um dos seus personagens mais ilustres. É justamente através do aperfeiçoamento dessa estrutura que Lírio Ferreira empreende sua

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por trás da figura artística. A busca, aqui, é justamente pela faceta artística do personagem, embora a personalidade do homem e pai de família inevitavelmente venha à tona em determinado momento. “A gente era muito próximo e muito distante”, confessa Denise, compartilhando um sentimento que persistirá ao longo da projeção. O filme combina a tendência da investigação subjetiva e familiar do documentário contemporâneo com o subgênero que melhor parece dialogar com o público brasileiro: o documentário musical. Talvez essa combinação seja uma das razões do grau de interesse provocado pelo filme, tendo em vista as possíveis associações afetivas que ele passa a estabelecer com seu personagem – seja ele Humberto Teixeira ou propriamente o baião, que surge como foco de investigação. Isso fica evidente quando os depoimentos introduzem um debate sobre a origem etimológica e sonora do ritmo e imagens de arquivo dão conta do contexto histórico-nacional do momento de sua eclosão. Daí em diante, o filme se equilibra entre a busca da filha pela real dimensão artística do pai e a análise da importância do baião e do imaginário cultural que ele evoca.

RELEITURAS

nova investigação no documentário musical, ao resgatar a história do baião através do caminho percorrido por Humberto Teixeira, no filme O homem que engarrafava nuvens. Assim como no trabalho anterior, Lírio não parece disposto a construir um registro puramente didático e cronológico do personagem, mas, sobretudo, provocar um redimensionamento do baião e da contribuição artística de um dos seus principais compositores. Curiosamente, O homem que engarrafava nuvens também tem como cenário de

abertura o cemitério onde Humberto Teixeira se encontra enterrado. Mas, nesse caso, ao invés das imagens de arquivo, somos apresentados à atriz Denise Dumont, filha do compositor, produtora e idealizadora do projeto, que logo revela o seu propósito no filme: desvelar ou iluminar o lado ainda oculto do poeta e compositor de versos fundamentais do baião. Nesse sentido, o filme aparentemente apresenta uma investigação no sentido inverso da busca do homem cotidiano, cujo convívio social e familiar geralmente se esconde

É interessante perceber como a remissão ao passado, belissimamente representado pelas imagens de arquivo, é capaz de dialogar com o presente para ressaltar a sensação de nostalgia que se interpõe entre eles. Esse esforço memorialístico, entretanto, está a serviço da capacidade do cinema de oferecer releituras de fatos passados ou mesmo de descobrir ou reposicionar personagens no escorço do processo histórico que se desenhou. Isso pode ser verificado em produções recentes do documentário nacional, como Simonal – Ninguém sabe o duro que dei, ou mesmo O engenho de Zé Lins, uma tentativa de Vladimir Carvalho de resgatar o escritor paraibano do esquecimento e do eclipse provocado pela figura de Gilberto Freyre. De modo semelhante, O homem que engarrafava nuvens procura mostrar o brilho próprio de Humberto Teixeira, comumente ofuscado pela parceria com Luiz Gonzaga, embora sem o

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fotos: reprodução

1 Parceiros O homem que

engarrafava nuvens procura mostrar o brilho próprio de Humberto Teixeira, comumente ofuscado pela parceria com Luiz Gonzaga

Claquete 1

efeito comparativo presente no filmehomenagem de Carvalho. O que prevalece é a sensação de uma parceria entre partes complementares e habitantes de mundos distintos; o carisma e o desempenho de Gonzaga como cantor e músico popular de origem humilde, aliado ao intelecto e talento literário de Teixeira. A parceria rendeu pérolas da música popular brasileira, como Asa-branca, e foi a responsável pelo reconhecimento nacional e internacional do baião – ritmo intimamente ligado ao sertão nordestino. Entretanto, o filme ressalta o valor individual de Teixeira, ao resgatar composições de grande repercussão concebidas fora da parceria, como Kalu. A falta de reconhecimento, entretanto, é abordada como uma consequência do mercado fonográfico, que tende a privilegiar a figura do cantor, do artista que sobe ao palco e estabelece uma relação direta com o público. Isso, de certo modo, contribui para a sensação de o filme apontar alguém tão próximo e ao mesmo distante por permanecer na penumbra. Nascido em Iguatu, no sertão do Ceará, Humberto Teixeira se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito e frequentou altas rodas da boemia carioca sem jamais esquecer suas raízes culturais.

O filme envereda pela dificílima tarefa de reconstituir, e mesmo exaltar, um sentimento de nordestinidade sem recair numa mitologia própria desse tipo de representação. Da rabeca à sanfona, o baião e a estrutura poética do sertanejo são tratados como uma forma autêntica de “protesto lírico”, que remonta a séculos de existência, mas que eclode no Brasil como uma resposta de um povo esquecido. O impacto provocado pelo baião faz-se sentir tanto na formação de uma identidade nacional como no alcance atingido pelo ritmo internacionalmente. A maneira como o filme reconstitui esse imaginário popular demonstra o pleno domínio cinematográfico do realizador sobre o material. A associação entre o extenso material de arquivo, o áudio de declarações de Teixeira, a câmera subjetiva, a precisão dos depoimentos e a sensibilidade das apresentações musicais na construção de um sentido parece extrapolar qualquer limite previamente estabelecido. Ao analisar o universo do baião, o filme termina por revisitar ou reinventar uma espécie de imaginário nacional, habitado por episódios e figuras marcantes – de Carmen Miranda a Raul Seixas. É um filme que toma forma e se descobre dentro de si, sem maiores concessões com a linearidade.

Mas é através das associações poéticas de imagens e sons que ele consegue estabelecer o diálogo entre presente e passado, como um fluxo de memória capaz de, aos poucos, redesenhar um artista, um homem e um ritmo, e redimensioná-los no tempo e no espaço.

O TEMPO DE LÍRIO

A ideia de uma releitura moderna de um episódio passado, de uma reconstituição atualizada do cangaço foi a grande força-motriz para a realização de Baile perfumado, filme de estreia de Lírio e marco da retomada do cinema em Pernambuco. Desde então, o realizador tem demonstrado profundo interesse no cinema como um experiência temporal, algo que fica ainda mais evidente nas suas bemsucedidas incursões pelo documentário, em Cartola e O homem que engarrafava nuvens. Este último trabalho reúne as principais questões e inquietações presentes em sua obra, como a dinâmica entre passado e presente, morte e vida, e a relação entre o urbano e o sertanejo, o moderno e o arcaico, também presentes no irregular Árido movie. O homem que engarrafava nuvens é o registro autoral mais pulsante e bemacabado desse cineasta que, mesmo quando se equivoca, está sempre em busca de lugares incomuns.

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INDICAÇÕES Ficção científica

Comédia

Documentário

De Duncan Jones Com Sam Rockwell, Kevin Spacey Sony Pictures

De Todd Phillips Com Bradley Cooper, Ed Helms Warner Bros

Dirigido por Kenny Ortega Com Michael Jackson Sony Pictures

LUNAR

Trabalhando no satélite natural há três anos, Sam Bell, interpretado por Sam Rockwell, convive em sua astronave apenas com o robô Gerty (voz de Kevin Spacey). Quando passa a exigir a volta para a Terra, Bell faz uma terrível descoberta. Ótimo début do diretor Duncan Jones (filho de David Bowie), Lunar (Moon) foi eleito o melhor filme independente de 2009 pelo British Independent Film Awards, a premiação do cinema independente britânico. E por mais um vacilo das distribuidoras e exibidoras, foi direto para as prateleiras das lojas e locadoras.

SE BEBER, NÃO CASE

Vez por outra Hollywood acerta nas comédias non sense. O exemplar de 2009 foi Se beber, não case, que conquistou, inclusive, a crítica especializada. Vencedor do Globo de Ouro na categoria Melhor filme comédia ou musical, a história se passa em Las Vegas, quando três amigos curtem uma despedida de solteiro, mas se desesperam ao perceberem que o noivo sumiu 40 horas antes do casamento acontecer. A partir desse mote, o filme cria situações hilariantes, que envolvem os cassinos da cidade, um tigre e um bebê. Bem acima da média.

Comédia

THIS IS IT

BRÜNO

Tão logo o Rei do Pop morreu, empresários e produtores musicais saíram em busca de estratégias para faturar em cima do acontecimento. Kenny Ortega, diretor responsável pelos shows que o astro faria em Londres, tirou a sorte grande. Munido de imagens não apenas dos ensaios musicais, mas também dos bastidores, ele apresenta um Michael Jackson mão de ferro e, ao mesmo tempo, sensível no trato com os profissionais a sua volta. Vale a oportunidade de conhecer melhor o artista, sem os efeitos especiais grandiloquentes e costumeiros dos registros de shows de megaestrelas.

Usando a mesma fórmula de Borat, que chocou o público e tornou Sacha Baron Cohen conhecido, Brüno é uma sátira ao mundo fútil da fama e das passarelas. Interpretando um fashionista austríaco que vem aos Estados Unidos, o comediante investe na surpresa dos entrevistados, postos em situações bizarras e constrangedoras – como Paula Abdul, que chega a sentar em cima de uma pessoa como se fosse uma cadeira. Brüno é mais ficção que documentário, mas termina alcançando o que pretende ser: hilário.

De Larry Charles Com Sacha Baron Cohen, Gustaf Hammarsten Sony Pictures

Documentário

Quem ouve música com afinco, geralmente, tem a tendência de querer se aprofundar no assunto, seja lendo biografias, assistindo a cinebiografias ou documentários. Nas prateleiras, há bons títulos voltados para a área. O mais recente deles é o filme A todo volume (It might get loud), que reúne três destacados nomes da guitarra do rock, Jimmy Page, The Edge e Jack White. Em ordem de surgimento: o primeiro deles é ninguém menos do que o responsável por alguns dos melhores momentos do instrumento na história da música; o segundo é figura imprescindível no U2, talvez até mais do que Bono, e o terceiro, à frente de qualquer banda (White Stripes, Dead Weather, Raconteurs), é a maior revelação do gênero na última década. O cineasta Davis

Guggenheim não procura contar a vida de cada um; vai apresentando curiosidades e raridades. Ao longo do filme, os guitarristas vão revelando alguns de seus segredos e inspirações. Page, uma das lendas vivas do rock, protagoniza alguns singelos e memoráveis instantes, como no que aparece fazendo air guitar (!) ao curtir músicas em seu toca-discos. Não tenha dúvida de que, em algum momento, você vai agradecer por esse documentário existir, assim como deve ter feito com Jazz, de Ken Burns, e Last Waltz, de Martin Scorcese, que, a propósito, deve ter tido um pontinha de inveja de Guggenheim, quando os três encerram It Might Get Loud fazendo uma jam session tocando The Weight, clássico do The Band. (Débora Nascimento)

divulgação

TRÊS MESTRES DA GUITARRA CONTAM SEUS SEGREDOS

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luiz arrais/karinna freitas

Visuais

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cartazes Um nobre artefato do design

1 Ópera

Pôster do polonês Jan Lenica para espetáculo Wozzeck, de Alban Berg

2 política

Quando candidato, Barack Obama teve a imagem transformada em ícone pelo designer Shepard Fairey

3 psicodelia

Estilo típico dos anos 1960, utilizado por Milton Glaser, eternizou perfil de Bob Dylan

4 toulouse-lautrec

Artista francês usava a litogravura para confeccionar cartazes

Pôsteres ultrapassam caráter efêmero e informativo para ganhar status de obras de destaque das artes visuais texto Patrícia Amorim

para a intimidade da parede da sala, sem cerimônia, colando-se à memória afetiva de vidas privadas. Os cartazes, no entanto, não estabelecem vínculos apenas com a cidade e com quem os consome, mas principalmente com quem os cria. Figurando entre os mais nobres artefatos de comunicação visual, para o designer, o cartaz é pelo menos um desafio e uma dádiva. A passagem dos filmes pernambucanos Avenida Brasília Formosa, longa de Gabriel Mascaro, e Recife frio, média-metragem de Kléber Mendonça Filho, no Festival de Rotterdam, no final de janeiro, foi pontuada pela interpretação gráfica da designer Clara Moreira em ambos os cartazes. “Recife frio me exigiu muito,

me emocionava de um jeito que demorou saber o que falar sobre ele no cartaz”, conta. Para ela, esse embate durante a etapa de concepção da peça é recorrente. “Muitas vezes o cartaz é o primeiro contato que o público vai ter com o filme. É uma extensão da atividade do realizador. Então é um processo delicado. Converso bastante com o diretor, com a equipe, gosto do trabalho coletivo e adoro que o cartaz surja desse processo maior que é o próprio filme”, reflete. Arquiteta por formação, Clara conta que começou criando cartazes para o Cineclube Barravento, da UFPE, ainda na época de estudante, e lá acabou fazendo amizade com a turma que hoje integra a leva de jovens diretores

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imagens: divulgação

É difícil mensurar o encantamento que algumas imagens e letras em meia folha industrial de papel podem projetar. O semblante de Barack Obama ganha mais eloquência no cartaz de Shepard Fairey; a cabeleira de Bob Dylan se revira em mistérios psicodélicos na antológica peça gráfica de autoria de Milton Glaser; um simples fósforo aceso é mote para breves e singelas narrativas nos cartazes de Ziraldo criados para a Fiat Lux. Vendendo política, arte ou bens de consumo, esses impressos efêmeros, em circulação há quase dois séculos, têm, com frequência, ultrapassado seu caráter informativo, propagandístico, publicitário, educativo ou estético. Saltam das ruas, dos espaços públicos,

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imagens: divulgação

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5 design

Clara Moreira tem se destacado pela concepção de cartazes para a nova safra de filmes pernambucanos

6 cubanos

Pôster em serigrafia: técnica típica do país, para o filme Beijos proibidos, de François Truffaut

7 vanguarda russa

Cartaz para a Leningrad Publishing House, de Alexander Rodchenko

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do cinema pernambucano. Seu primeiro cartaz, em parceria com Raul Luna, foi para o curta Eisenstein (2006), dirigido por Tião (Bruno Bezerra), Leonardo Lacca e o próprio Raul. Na sequência, vieram os cartazes para os curtas Décimo segundo (2007), de Leonardo Lacca, Muro (2008), de Tião, para o longa Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Machado, e Balsa (2009), médiametragem de Marcelo Pedroso. Privilegiando a ilustração, em técnicas como aquarela, lápis aquarelável, nanquim, carvão e grafite, valorizada por amplas áreas em branco, Clara imprime à sua produção um estilo gráfico poético e impactante, mas sem afetações ou modismos. “A ilustração não é um fator determinante para o trabalho. Mas sempre gostei de desenhar e me

Visuais

sinto mais à vontade criando imagens através do desenho do que utilizando outras técnicas”, observa.

FORÇA EXPRESSIVA

Frente à limitação de locais para a veiculação desse tipo de impresso, à perda de espaço para outras mídias e à ascensão da comunicação online, Clara acredita que a força expressiva do cartaz, e especificamente dos de cinema, está em emocionar. “Os cartazes que se comunicam comigo se tornam suvenires de uma ideia transmitida. Eles são lembranças, tanto que os coleciono”, diz. Satisfação que está reservada também a quem os projeta. “Fazer cartazes é muito prazeroso. É o prazer de contribuir para compartilhar aquela ideia. Esses são filmes que eu amo, e que nasceram comigo”, conclui. A produção desse tipo de cartaz no Brasil, atualmente, também é

desenvolvida por empresas como a paulista Moovie, especializada em gestão para o cinema de longametragem. Liderada pelos sócios Eduardo Rosemback e Marcelo Pallotta, a agência foi responsável pelo material de divulgação de filmes como É proibido fumar (2009), À deriva (2009), Diários de motocicleta (2004) e Cidade de Deus (2002). Adotando um modelo de comercialização do filme brasileiro orientado pelo padrão do mercado internacional, projeta-se inicialmente um key-art, layout que irá conduzir a comunicação, e em seguida é desenvolvida a programação visual dos anúncios, da papelaria, das capas de DVDs e do próprio cartaz. Entre as décadas de 1960 e 1980, entretanto, esse artefato era o principal impresso na divulgação de um filme. Período que foi marcado, entre outras, pela memorável criação de Rogério Duarte para Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, e pelo impressionante trabalho de José Luís Benício da Fonseca, o Benício, um dos artistas gráficos que mais produziram para o cinema no Brasil, algo por volta de 300 cartazes. São de sua autoria pôsteres para os filmes Dona Flor e seus dois maridos (1976), Independência ou morte (1972) e Pelé eterno (2004), a produção cinematográfica dos Trapalhões de 1974 a 1991, além de cartazes para pornochanchadas como A superfêmea (1973), estrelada por Vera Fischer. Como nessa época não havia tantas opções de entretenimento, um cartaz era capaz de levar centenas de pessoas aos cinemas, diferentemente dos dias de hoje, em que a divulgação é pulverizada e faz uso de diferentes mídias, analógicas e digitais.

EXPERIMENTALISMO

Desdobrando essa questão, o designer carioca Rico Lins afirma que a potência do cartaz brasileiro está no fato de ele ser algo fora de lugar e um fenomenal catalisador de experimentalismo visual e gráfico. “Quando fiz o cartaz para a exposição Brasil em cartaz, que levei para Chaumont, em 2005, no Ano do Brasil na França, peguei carona na frase “Seja marginal, seja herói”, de Hélio Oiticica, para sintetizar o que me parece valer também para criação

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do cartaz brasileiro. Mais que um diagnóstico, é uma provocação e uma reflexão sobre o espaço do cartaz em nosso cenário cultural”, explica. Dono de uma obra gráfica inspiradora, premiada e reconhecida internacionalmente, Rico tem especial interesse em cartazes tanto enquanto criador como curador de mostras. A mais recente delas, Connexions>Conexões, reuniu trabalhos de artistas gráficos brasileiros e franceses no SESC Pompéia, entre setembro e novembro do ano passado, em São Paulo. Um pouco antes disso, no Recife, a convite do Centro de Design do Recife, desenvolveu a oficina Expressão em cartaz, na qual temas da atualidade foram interpretados em cartazes experimentais, através do uso de recursos manuais e materiais de impressão e acabamento industriais. Situação em que a dimensão tecnológica da produção do cartaz pode ser explorada pelos alunos, e, como reforça Rico, constitui uma área que tem apresentado evoluções significativas nos últimos anos. Ao longo de sua carreira – iniciada nos anos 1970 e revisitada na mostra Rico Lins: Uma gráfica de fronteira, a ser exibida no Recife entre 25 de fevereiro e 28 de março, no Espaço Cultural dos Correios –, Rico também produziu cartazes para o cinema. Empregando técnicas que vão da colagem à xilogravura, criou impressos como o cartaz para o lançamento no mercado americano de Labirinto de paixões (1989), de Pedro Almodóvar, do documentário ficcional Banana is my business (1995), de Helena Solberg, e do longa La boca del lobo (1989), de Francisco Lombardi. Todos tão instigantes e visualmente polifônicos quanto o conjunto de sua própria obra. Seduzido precocemente pelos cartazes nos anos 1960, época de ouro para essa mídia no Brasil, Rico já afirmou que eles “sintetizavam numa mensagem direta e contundente enormes doses de poesia, iconoclastia, contestação e utopia, banhando o cotidiano de drama, de informação e de opinião”. Cinco décadas depois, o Brasil, de fato, não é mais o mesmo. Mas, pensando bem, talvez não seja tão difícil assim encontrar quem ainda faça cartazes como antigamente.

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brasil Produção de cartazes cresceu no século 20 Ao passo de reformas e melhorias

urbanísticas realizadas no início do século 20, ruas das principais capitais brasileiras se habituavam ao vaivém dos muito ocupados e à indolência dos sem tanta pressa. No encalço dessa crescente fauna de tipos urbanos, mensagens publicitárias buscavam a conversão do transeunte em consumidor, vendendo do café ao rum, do biotônico ao mata-pulgas. Cena de uma moderna vida tupiniquim que não deixaria de ser notada pelo cronista carioca João do Rio, no texto A rua, publicado na Gazeta de Notícias em outubro de 1905: “Logo, nós, assustados, imaginamos o ‘homem-sandwich’, o cartaz ambulante; mandamos pregar-lhe enquanto dorme, com muita goma

8 música

Criação do designer Rico Lins para o Projeto Pixinguinha em 1985

e muita ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais gostoso, o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só em letras impressas, mas com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho de ler, para acariciarlhe a ignorância, para alegrá-la”. Tendo surgido na Europa, no século 19, em decorrência da industrialização e da urbanização – e viabilizada por uma indústria gráfica em franco desenvolvimento –, a produção de cartazes caracterizou a paisagem das metrópoles modernas na virada para o século 20. A circulação intensa de pessoas e veículos de transporte público e as demandas publicitárias do comércio, do entretenimento e da

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política fizeram do cartaz o principal meio de transmissão de informações nas grandes cidades. Um exemplo da força dessas peças gráficas no imaginário urbano durante esse período pôde ser vista, em Paris, celeiro de cartazistas como Toulouse-Lautrec e Alphonse Mucha, através das belas e alegres jovens retratadas nos cartazes do precursor Jules Chéret, as quais foram carinhosamente apelidadas de cherettes pelos parisienses, dada a enorme popularidade do impressor em função de seus cartazes em litografia. No Brasil, de acordo com o historiador Rafael Cardoso, as primeiras produções regulares de cartazes são atribuídas às campanhas de saúde pública, lançadas pelo governo nas décadas de 1900 e 1910, num esforço contra as epidemias. É, entretanto, depois da Primeira Guerra Mundial que ganha impulso a produção de cartazes comerciais no país e surge a primeira geração de grandes cartazistas, muitos deles imigrantes, como o polonês Henrique Mirgalowski e o austríaco Geraldo Orthof. Com formação em artes plásticas em seus países de origem, ambos acabaram encontrando, na ainda incipiente publicidade brasileira, e mais especificamente na arte gráfica para o cartaz de bonde, não só seu sustento longe da Europa, mas um lugar de destaque na história do design brasileiro, ainda pouco conhecida e registrada. Com inspiração no modernismo europeu e tendo como referência os cartazes de A.M. Cassandre e Raymond Savignac, os layouts dos cartazes nessa época geralmente se apoiavam em traços simples e poucos elementos visuais, em que a ilustração era fundamental. Além de Mirgalowski e Orthof, no entanto, nomes importantes como Ary Fagundes e Fulvio Pennachi figuram entre os pioneiros de uma linhagem de criadores gráficos que predominou até a década de 1960, quando entraram em cena designers com formação superior, orientados segundo os preceitos do funcionalismo e da escola suíço-alemã, trazendo uma nova abordagem à comunicação visual no país. (PATRÍCIA AMORIM)

Visuais

Entrevista

Ricardo leite a extensa produção de ziraldo Revirar impressos a princípio condenados à sua própria efemeridade e conferir-lhes o devido registro histórico é um desafio e tanto. Disposto à peleja, Ricardo Leite, sócio e diretor de criação do estúdio carioca Crama Design Estratégico, dedicou-se por sete anos a sistematizar uma das mais impressionantes produções de cartazes brasileiros, projeto que resultou no livro Ziraldo em cartaz, lançado no final do ano passado pela editora Senac Rio. Um documento que relata em detalhes as diversas nuances da extensa produção em cartaz de um dos maiores designers/ artistas gráficos do Brasil. “Quando você olha aqueles cartazes, vai vendo eventos importantes, filmes, peças de teatro, que foram imortalizados na nossa cultura. Outros, igualmente memoráveis, são mais comerciais, como as séries da Sharp e do Instituto Brasileiro do Café. Assim você vê Ziraldo mapear a história do nosso país nos últimos 60 anos”, resume. CONTINENTE A experiência de fazer o livro Ziraldo em cartaz transformou de algum modo sua percepção sobre o cartaz no Brasil? Ricardo leite Sou um designer formado com quase 40 anos de carreira, já li muitos livros sobre o design brasileiro e sempre ouvi dizer que o Brasil era um país sem tradição em cartaz. Portanto, a primeira grande surpresa que esse trabalho me causou foi me deparar com uma quantidade tão grande de cartazes. Esse livro possui em torno de 300 cartazes, selecionados de um volume muito maior, no mínimo, 500, que por sua vez são os que eu consegui

localizar, já que eles foram surgindo até o último dia. Diante desses números, comecei a me questionar: como um país aparentemente sem tradição nesse tipo de impresso possui um cartazista – que nem é um especialista nisso, considerando que o Ziraldo é sujeito multimídia – com uma produção tão grande? Daí ele me explicou que, no Brasil, na década de 1950, existiam muitos concursos de cartazes, voltados aos mais diversos assuntos, à Copa do Mundo, ao Dia do Professor, a congresso de engenharia, etc... E esses concursos pagavam bons prêmios, segundo ele. Atraíam os cartazistas que atuavam em publicidade na época e que viam ali um espaço para desenvolver seu trabalho. Esses cartazes eram colocados nas ruas e principalmente nos bondes, tidos como importantes veículos de comunicação naquele período. Assim, comecei a questionar essa visão, compartilhada tanto pelo mercado quanto pela área acadêmica, de que o Brasil é um país sem tradição em cartazes.

“Nossa bibliografia sobre design é muito pequena. Não existem muitos registros em livros iconográficos, como esse de Ziraldo” CONTINENTE O livro, de fato, privilegia um novo enfoque, já que a produção de cartazes de Ziraldo é raramente abordada na literatura sobre design no Brasil. Ricardo leite Por preconceito, pois Ziraldo brilha antes da formalização da nossa profissão no país, que tem início nas décadas de 1960 e 1970, com a ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial, primeira instituição de ensino do design da América Latina). As primeiras gerações de designers com formação superior, de base científica, acadêmica, negavam o Ziraldo, como negavam outros também. Referiam-se a eles como “artistas gráficos”, os quais acabavam não sendo aceitos no novo clube. Ziraldo às vezes comentava:

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divulgação

arquivo luiz arrais

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9 encomenda

Cartaz criado por Ziraldo para o Festival de Teatro Amador, no Recife, na década de 1980

10 lançamento

Ziraldo autografa livro feito em sua homenagem, junto ao autor Ricardo Leite

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“Aquele pessoal da ESDI, eles me criticavam. Falavam: ‘Isso é coisa de artistada!’”. Na verdade, enquanto Ziraldo usava a intuição para compor visualmente, o pessoal da ESDI tentava racionalizar tudo. CONTINENTE Como você avalia o registro da história do design gráfico brasileiro atualmente? Ricardo leite Quando eu penso no Brasil, vejo que nós nunca registramos os nossos grandes designers. Nossa bibliografia sobre design é muito

pequena. Quando existe, por conta até de custo, são livros acadêmico, teses. Não existem muito registros em livros iconográficos, como esse de Ziraldo. O que acontece é que a garotada brasileira que vem se formando, e isso por décadas já, logicamente se espelha nos heróis internacionais. Você compra o livro do (Stefan) Sagmeister e fica lá, deslumbrado. Você pega um cara mais antigo, da idade do Ziraldo, como o Milton Glaser, e conhece a obra dele de cabo a rabo. Mas você não conhece a

obra do Ziraldo, você não conhece a obra do Victor Burton, que é meu contemporâneo, e tinha que ter um megalivro. Esse registro não é feito com frequência. Está melhorando, mas ainda é muito aquém do que se produz no mundo em termos de documentação. Então é evidente que nossas gerações de designers vão sendo formadas, influenciadas, e criam suas referências visuais fundamentadas nesses grandes designers internacionais, já que esses, sim, possuem livros. A coisa da internet melhorou um pouco essa situação. Mas ainda estamos numa fase de transição, em que o registro do livro ainda é muito importante. Então, para mim, como estratégia de um país que precisa desenvolver valor agregado para seus produtos, que precisa ter designers qualificados que não criem cópias do que existe lá fora, que tenham uma personalidade única, é importante que a gente tenha um registro mais frequente da nossa produção. É claro que esse livro é uma homenagem a um cara que eu admiro, então foi também um resgate emocional, mas dentro de uma estratégia de nação que quer sair de uma exportadora de commodities para uma exportadora de produtos, é importante que os nossos designers passem a ter uma cultura visual mais referendada nos nossos próprios valores. (PA)

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Visuais 10

FEITOS À MÃO Cartaz polonês, um capítulo à parte

Nos anos 1960, geração de artistas gráficos criou uma linguagem visual única, apesar das restrições e censuras do regime comunista, sob forte influência soviética

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Pôster feito para a peça A flauta mágica, de Mozart, que foi rejeitado por um diretor teatral por medo da censura

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cinema

Cartazes de diversos autores para os filmes Laranja mecânica, Blade Runner e Apocalipse now

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(PA) (PA)

imagens: reprodução

arquivo luiz arrais

A produção de cartazes poloneses, confeccionados após a Segunda Guerra Mundial, é um capítulo à parte na história do design gráfico, e o ramo dedicado aos pôsteres de cinema deixou um legado de inúmeros impressos de beleza singular. “A política estatal fazia com que toda a divulgação cultural nacional ou estrangeira (teatro, cinema, eventos, etc) tivesse cartazes criados na Polônia, o que gerou uma sólida rede de produção e circulação no país”, conta o designer carioca Rico Lins.

Além disso, talentosos pintores com formação na Escola de Varsóvia foram comissionados pela Agência do Filme Polonês para a criação dos cartazes, os quais tinham liberdade para desenvolver um estilo próprio, independente dos padrões estéticos dos impressos americanos, japoneses ou russos. A regra era expressar artisticamente a essência de cada filme, utilizando o mínimo de elementos gráficos. O resultado, visualmente impressionante, era apreciado pela população, a qual admirava os cartazes – muitas vezes embebidos em críticas ao regime comunista – fixados nas cercas que contornam as ruínas da capital Varsóvia, cidade praticamente destruída após o conflito. Fascinada pelo tema desde 1997, quando uma aluna imigrante lhe apresentou alguns cartazes de sua terra natal, Andrea Marks, professora de design gráfico da Oregon State University, lançou em 2006 o documentário Freedom on the fence, o qual produziu e dirigiu em parceria com Glenn Holsten. Esse registro resgata uma geração de artistas gráficos como Henrik Tomaszewski, Jan Lenica, Roman Cieslewicz e outros, que, com talento e inventividade, criaram uma linguagem visual única em seus cartazes, apesar do sistema de restrições que dominou o país no pós-guerra. “O filme é exibido a plateias dos mais variados perfis. De estudantes do ensino médio a pessoas que não tem a menor ideia do que seja o cartaz polonês. Provavelmente, uma das coisas que mais impressiona o público no filme é a qualidade do trabalho feito à mão. Hoje, o computador é tão presente na produção de impressos que a possibilidade de pintar ou desenhar um cartaz é quase desconhecida. Essa peculiaridade do trabalho manual definitivamente deu ao cartaz polonês uma energia poderosa. O traço de cada artista permitiu que diversos estilos individuais emergissem e, num país muito cinza e uniforme como a Polônia durante grande parte do comunismo, os cartazes coloridos eram uma presença maravilhosa nas ruas enfadonhas”, relata Andrea. (PA)

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1 autorretrato

aricaturista não C perdoava nem a si próprio. Sua imagem destaca o nariz proeminente em cima do corpo pequenino. Abaixo, Levine, em casa, exibe seu lado suave, como pintor

Visuais

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david levine A acidez do traço mais temido da América

Caricaturista nova-iorquino retratou, com sua caneta impregnada de dura crítica, personagens famosos de todas as áreas, principalmente os políticos texto Luiz Arrais

“A sátira política salvou esta nação de ir para o inferno”, disse David Levine numa entrevista em 2008, durante a sua exposição American Presidents, na cidade de Nova York, onde nasceu, trabalhou e morreu, aos 83 anos, em dezembro de 2009, vítima de câncer de próstata e de outras complicações de saúde, no Presbyterian Hospital. Desde 2006, ao ser diagnosticada uma degeneração macular – um sério problema de visão –, trocara a caneta pelo lápis, tentando mascarar os defeitos encontrados em seus recentes desenhos, antes verdadeiras obras-primas de traços delicados e, ultimamente, verdadeiros borrões, em decorrência dos problemas oculares e motores. Levine contribuiu com cerca de quatro mil desenhos para a revista The New York Review of Books, mais de mil para a Esquire e centenas de caricaturas que encheram páginas e capas de publicações como Rolling Stone, Playboy ou The New Yorker. Desde cedo, era um desenhista exímio, estudou pintura e depois se dedicou à aquarela e às temíveis caricaturas. Pelos traços entrecortados de sua ácida caneta passaram ícones da música, das artes, da literatura e, principalmente, a galeria de políticos, ditadores de esquerda ou de direita, ordinários, crápulas de toda espécie, que ele tinha predileção em alfinetar. Somente o presidente Richard Nixon teve mais de 60 desenhos que o retratavam ora como “o poderoso chefão”, “o mentiroso de Watergate”, ora como um feto. Henry Kissinger, secretário de Estado, também não escapou à sua “crueldade”. Foi caricaturado tendo relações sexuais com uma mulher – com um globo terrestre no lugar da cabeça –, o que lhe valeu problemas com a classe feminista. Em sua defesa, Levine argumentou que mostrava o que Kissinger queria fazer com o mundo. Em outra, mostra o secretário de bunda de fora, com as costas tatuadas de bombas e caveiras, ilustração que foi recusada pelo New York Times e publicada depois no The Nation.

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Levine retratou também diversas figuras do meio artístico, tais como Picasso, The Beatles e Umberto Eco

imagens: reprodução

2 celebridades

3 políticos

secretário de Estado, Henry O Kissinger, fornicando com o mundo, foi motivo de protesto de mulheres

4 perto do fim

Um de seus últimos trabalhos, mostra o presidente Obama em traços borrados a lápis

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Os seus desenhos, copiados por muitos em todo o mundo, eram facilmente reconhecíveis: cabeças enormes sobre corpos pequenos, que retratavam figuras públicas de todas as áreas. Em contraste com suas caricaturas, suas aquarelas de cidades litorâneas e trabalhadores retratavam cenas pungentes, em cores pastéis, num realismo suave. Em perfil, publicado na revista Piauí, em novembro de 2008, traduzido da Vanity Fair, queixava-se de que, ultimamente, seus trabalhos não vinham tendo mais aceitação. Seu último desenho encomendado foi publicado em 2007.

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Desde 2006, ao ser diagnosticado um sério problema de visão, Levine trocara a caneta pelo lápis

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um enterro lindo

matéria corrida José Cláudio

artista plástico

Genoveva Rodrigues Pedro da Silva (Engenho Jussara Grande, Timbaúba, PE, 31/08/1929 – Recife 29/12/2009), Rodrigues da mãe e Pedro da Silva do pai. O avô por parte de mãe era português, Antônio Rodrigues, e o pai José Pedro da Silva, brasileiro, administrador do engenho onde a menina veio ao mundo, daí o “Pedro da Silva” do sobrenome (um dos 10 irmãos dela chama-se Pedro Pedro da Silva, Pedro duas vezes). Por sugestão do português e Ana sua mulher, Mãe Nana como a chamava a neta pintora, o nome seria Gina. Na hora do batismo, o padre, em homenagem à própria mãe, batizou-a Genoveva, nome rejeitado pela portadora, que sempre adotou o Gina como queria Mãe Nana. O nome da mãe de Gina era Alaíde, “cor de cobre, tipo índio, cabelo preto bem liso” como diz o neto Alexandre. Gina deixou dois

filhos, Alexandre e Patrícia, do pintor Antônio Alves Dias com quem era casada: Gina Alves Dias. A loucura era ser médica. Veio morar em casa de um tio, em Casa Amarela e, apresentada por este, trabalhar “no isolamento da Tamarineira entre os leprosos.” As informações são de Patrícia. Uma freira tirou-a de lá. Trabalhou no Centro Espírita com doente, sempre na enfermaria. Passou à Maternidade Santa Rita, de onde saiu a convite de Rosalvo Cavalcanti para ser instrumentadora deste e de outros médicos. Respeitadíssima. E valente: certa vez, na Santa Rita, acostumada a lidar com loucos, imobilizou com um lençol um assaltante armado de faca até a polícia chegar. Media 1,50m de altura. Sobre a causa mortis, Patrícia falou em pneumonia, infecção hospitalar associada a dificuldades

respiratórias e insuficiência renal. Fazia hemodiálise havia 10 anos, a mais antiga paciente de Pernambuco. “Amaro Andrade lutou bravamente, responsável por ter uma sobrevida tão grande. Os ossinhos ficando fracos, mas mesmo na cadeira de rodas saía, passeava, ia a banco, sentava na calçada, ensinava as crianças a cantar, esperava a passagem da seresta que, quando andava, acompanhava. Os blocos e maracatus paravam na porta para homenageá-la. Fazia flores de massa de farinha de trigo que parecia terem pulado dos quadros e ensinava à vizinhança.” Por cautela, deixara de pintar a óleo, mas às vezes, contrariando recomendações médicas, restaurava seus quadros com óleo. Pintava a guache e lápis de cor sobre papel. Tomava banho e ia à privada só, não gostando de ficar acompanhada nessas ocasiões pelo anjo da guarda Sueli

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Gina Dias. Procissão. Óleo sobre eucatex, 1965, 76 x 122 cm

(Sueli Silva de Lima, 31 anos, Rio Tinto, PB), na casa há 6 anos e que seguirá tomando conta de Lia, 5 anos, filha de Patrícia. Lia disse que quando tiver uma filha vai botar o nome de Gina, que Gina vai voltar na barriga dela. Gina morreu às 8h no hospital Unimed 1, Pça. Chora Menino. Velório na Câmara Municipal de Olinda, aonde o caixão chegou às 10h e saiu para o cemitério de Guadalupe às 10h do dia seguinte, 30/12. Na despedida da Câmara, falaram Patrícia, o marido Antônio Alves Dias que não conseguiu terminar de ler um texto que escrevera, o pastor da igreja evangélica da pintora, que leu o Salmo 23 (“O Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitarme faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas, refrigera a minha alma”), entre outros amigos, com destaque a alocução do vereador Marcelo Santa Cruz terminando com o refrão “Gina, agora

Fazia flores de massa de farinha de trigo que parecia terem pulado dos quadros e ensinava à vizinhança e sempre, presente” repetido em coro várias vezes por todos entre palmas. Patrícia acompanhou o carro fúnebre a pé segurando na porta do lado direito, do carona, ditando assim o ritmo do séquito, algumas pessoas a pé e outras de carro. Pegando pelo oitão da igreja de São Sebastião, seguiram pela Rua Henrique Dias onde pararam na casa de Gina e em outras casas de pessoas amigas, como Tia Elódia, de 90 anos, que esperava na porta. Continuaram pela 13 de Maio, parando no Largo do Amparo,

nº 326, onde morou o casal Gina e Alves Dias, na frente do Vassourinhas de Olinda: aí, uma carrocinha de CDs pirata entrou no cortejo e ficou tocando frevos até o cemitério. Patrícia só fez uma pequena pausa para apanhar um ramo de miguê para juntar ao lírio coroa-de-cristo que bota na Páscoa , mas este ano floriu dia do enterro no quintal da casa da artista. Quando o caixão cor de madeira desceu à cova, foi coberto com muitas flores, enquanto Patrícia e a amiga Sheyla entoavam em inglês uma música medieval que não sabiam direito se era Vidas verdes (Green lives) ou Folhas verdes (Green leaves). Gina devia estar adorando a animação das meninas. Como último ato, a pedido dela, jogaram alpista em cima da terra que cobria a cova, para os passarinhos. Ela dissera certa vez, numa entrevista a Celso Marconi no Jornal do Commercio, “Enterro é lindo”.

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flávio pessoa

Leitura feira na arte O conto do rei que está nu

O jornalista Luciano Trigo expõe as feridas da arte produzida hoje, mas esquece de destacar que a crise afeta todo o campo cultural texto Mariana Oliveira

Em 2004, a obra The phsysical impossibility of death in the mind of someone living (impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo), composta por um tubarão mergulhado em formol, do inglês Damien Hirst, foi vendida por 12 milhões de dólares. Dois anos depois, o comprador, Steve Cohen, recebeu a notícia de que o animal estava se decompondo. Imediatamente, o artista e o colecionador entraram num acordo e foi providenciada a substituição do tubarão. A obra do inglês e toda a polêmica em seu entorno funcionam como um ponto de partida para a argumentação do jornalista carioca Luciano Trigo, no livro A grande feira – Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea, cuja capa é ilustrada pelo tubarão de Hirst. Para o autor, esse trabalho e esse artista são emblemas da degeneração das obras e do sistema que dá suporte à arte contemporânea.

O discurso desenvolvido no livro começou a ser fundamentado em 2007, no blog Máquina de escrever, em que Trigo passou a escrever sobre a produção artística atual. Suas intuições de crítico e sua curiosidade jornalística ganharam força com a crise da Bienal de São Paulo, em 2008, o roubo das obras do MASP e ações polêmicas, como as do artista costarriquenho Guillermo “Habacuc” Vargas, que deixou, ao que parece, um cachorro preso numa galeria até morrer de fome. A posição de Trigo em relação à arte contemporânea é explicitada já no título da obra, no qual o autor faz referência a um espaço livre e tão sem critérios quanto uma grande feira, onde o que vale é o tudo vale. Para ele, o que temos hoje é um verdadeiro embuste. A velha história do rei extremamente vaidoso que contrata dois costureiros para fazerem a mais bela roupa já produzida parece servir, na perspectiva do autor, para aquilo que acontece hoje

com a arte. Os dois costureiros são, na verdade, uma fraude e não conseguem fazer a roupa. Nem por isso eles deixam de apresentar uma suposta vestimenta e levam o rei a desfilar na frente de seus súditos completamente nu, imaginando que está utilizando o traje mais belo. Ante a afirmação e a designação de que o rei está usando algo tão especial, todo o público passa a enxergar a tal vestimenta. Uma criança, com sua inocência, é a única que tem coragem de apontar e dizer: “O rei está nu”. Luciano Trigo faz o papel dessa criança, apontando aquilo que seria a “farsa” existente em parte das obras de arte contemporâneas. Com embasamento teórico, o jornalista apresenta, numa linguagem acessível, distante das pirotecnias acadêmicas, argumentos que mostram o quanto o campo das artes plásticas hoje é regido pelo mercado. Ele demonstra que, para alguns objetos serem aceitos como

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arte, a técnica não é mais fundamental. O essencial é ser aceito pelo mercado da arte, pelos outros artistas, colecionadores, críticos, galerias, museus e instituições culturais. O discurso de Trigo expõe as feridas mais profundas da arte produzida hoje, mas centra-se numa análise macroscópica deste universo. O mercado como critério estético, a ausência de técnica dos artistas, a questão do espetáculo, a arte por designação, a falência da crítica são alguns dos pontos levantados por ele. Por bater nessas teclas insistentemente, ao longo da obra, tem-se a sensação de repetição de raciocínios e argumentos. Como em qualquer área cultural, é preciso fazer uso de uma visão também microcóspica para perceber as nuances e as qualidades de alguns trabalhos. Apesar de verbalizar que não deseja declarar-se contra a arte contemporânea, e que também

não pretende “fazer um balanço sequer aproximado da produção contemporânea”, termina esquecendose de mostrar um contraponto positivo, no meio desse universo mercadológico – a exceção é um momento em que exalta a obra da artista brasileira Adriana Varejão. Talvez, além de apontar os problemas – que merecem, sim, ser discutidos e levados a público –, fosse preciso mostrar a minoria daqueles artistas que, mesmo nessa situação, conseguem produzir obras de qualidade num contexto pós-moderno – afinal, o tempo não pode voltar. O lamento de Trigo faz sentido, mas as suas causas são extremamente amplas e atingem também todos os campos da cultura, não apenas as artes plásticas. Ao dizer que a crítica de arte morreu, pode-se atestar que a crítica, seja ela literária, cinematográfica ou teatral também perdeu espaço. Os próprios cadernos culturais, antes, mantinham

críticos, traziam polêmicas com réplicas e tréplicas em suas páginas. Atualmente, o que se vê são matérias baseadas em releases ou resenhas, mas não críticas. Portanto, a crise não diz respeito apenas ao campo das artes plásticas, mas, sim, ao campo cultural, ditado, agora, muito mais por questões mercadológicas que estéticas. Não adianta desejar um retorno a outro tempo, a outra arte. O próprio autor reproduz no livro uma frase de Wassily Kandinsky: “Cada época cria uma arte que lhe é própria e que nunca renascerá”.

A grande feira luciano trigo Editora Brasiliense O jornalista sublinha o critério maior na arte contemporânea: a aceitação do mercado, em detrimento da técnica

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conversas A arte da entrevista, em três atos

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Publicação das entrevistas de Osvaldo Ferrari com J.L.Borges propicia reflexão sobre as técnicas de bons entrevistadores texto Samarone Lima

Leitura Uma das aspirações de qualquer bom jornalista que ame a literatura é ter acesso ao mundo secreto dos grandes escritores. Driblar assessores, agentes, parentes, a disputada agenda, o batalhão de leitores apaixonados, e conversar longamente. Mergulhar no mundo particular da criação, do sonho, estabelecer um diálogo que proporcione descobertas, emoções, surpresas. Abrir a porta para o encantamento. Se possível, transformar tudo em um livro. O poeta, ensaísta e jornalista argentino Osvaldo Ferrari conseguiu realizar uma parte disso. Pouco antes da morte de Jorge Luis Borges, aos 85 anos, teve 90 encontros com ele. As conversas eram gravadas e transmitidas inicialmente pela Rádio Municipal de Buenos Aires. Depois, foram publicadas no jornal Tiempo Argentino. As entrevistas aconteciam na casa de Borges. Melhor que isso: em sua biblioteca. Quando se transformaram em livros, o próprio Borges escreveu o prólogo, citando Quevedo: “Que Deus te livre, leitor, de longos prólogos e de epítetos ruins”. Data:

1

12 de outubro de 1985. Oito meses depois, Borges morreria. O leitor brasileiro acaba de ganhar, em três volumes, o fruto dessa aventura: Sobre os sonhos e outros diálogos, Sobre a filosofia e outros diálogos e Sobre a amizade e outros diálogos (Editora Hedra, R$ 20,00 cada). Se de um lado temos a surpresa com a generosidade do escritor, já cego e com sua prodigiosa memória (Borges começou a ficar cego aos 50 anos, e perdeu definitivamente a visão aos 55), a trilogia de Osvaldo Ferrari vem acompanhada de alguns pecados. O principal deles é uma espécie de gula por temas. Em cada volume, são abordados 30 temas diferentes. De Quevedo à cultura celta. Das viagens ao Japão ao culto dos livros. Da identidade dos argentinos a Kafka. Ao final da trilogia, conhecemos mais Borges, encantamo-nos em alguns momentos, ficamos a imaginar seus encontros com o célebre Macedonio Fernández, mas o bom leitor sai com o sentimento de que as conversas ficaram num plano mais geral, o da boa conversa, e de que faltou algo – o encontro.

Não há uma descrição sequer de Borges, do seu rosto e do lugar onde vive. São perguntas e respostas. Sequer o local onde aconteceram as entrevistas – a biblioteca do escritor – foi lembrado. Os melhores momentos do livro são aqueles em que Borges fala mais longamente, sem ser interrompido. Ferrari tem sua coleção de perguntas, mas em raros momentos consegue fazer dos diálogos um encontro em que os dois saiam modificados. Há muitos momentos em que os dois riem de algo. Borges nunca se emociona. Em vários momentos, nota-se que o entrevistador estava mais atento à próxima pergunta que às respostas. Em Sobre a amizade e outros diálogos, Borges dá um depoimento rico sobre sua juventude. “E eu tentei estudar russo, lá por 1918, digamos, no final da Primeira Guerra, quando eu era comunista. Mas, claro, o comunismo daquela época significava a amizade de todos os homens, o esquecimento das fronteiras, e agora me parece que representa um novo czarismo.” Ora, aos 84 anos, já próximo da morte, conhecido por sua aproximação

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Nestas páginas 1 borges

Pouco antes de morrer, o maior escritor argentino foi entrevistado por Osvaldo Ferrari

2 cortázar

Um entrevistado “minuciosamente honesto”, segundo Ernesto Gonzáles Bermejo Próxima página 3 sábato

Outro grande representante da literatura argentina foi entrevistado em 11 ocasiões por Carlos Catania

2

com a ditadura argentina, Borges revela ter sido comunista na juventude. A revelação fica como uma frase. Não repercute em Ferrari. Sua próxima pergunta: “Um novo czarismo?” Em muitos momentos, a conversa se torna cerebral demais. Ao falar de Spinoza, Borges faz uma digressão e começa a falar de inteligência e emoção na criação. “(...) mas a inteligência sem emoção não pode fazer nada, e sem emoção prévia, não há nenhum motivo para executar uma obra estética. Se não houver emoção prévia, a criação de uma obra de arte não se justifica.” A pergunta seguinte: “Exatamente. No seu caso, eu observo um equilíbrio entre o racionalismo aristotélico e a intuição e a emoção platônica”. Borges (talvez surpreso com uma observação tão intelectual) apenas comenta, lacônico: “Bem, quisera eu chegar a isso”. Há, claro, momentos em que autor e entrevistador chegam mais longe. As oito páginas sobre Macedonio Fernández são uma declaração de amor à amizade. O leitor é capaz de ver o rosto de Borges, com aquele olhar indecifrável, sorrindo levemente, ao lembrar o grande amigo,

Jornalista teve 90 encontros com Jorge Luis Borges na biblioteca do escritor, pouco antes de sua morte com quem se encontrava uma vez por semana, aos sábados, na confeitaria La Perla. A amizade permitia encontros durante a semana, mas Borges preferia adiar. “Era melhor esperar a semana toda e saber que ela seria coroada pelo encontro com Macedonio.” Às vezes, Borges saía para caminhar sozinho (na época não havia muito perigo, Buenos Aires era tranquila e Borges ainda enxergava), e carregava um sentimento: “(...) que importa o que pode me acontecer esta noite, se chegarei no sábado, e no sábado vou conversar com Macedonio Fernández”. Em alguns encontros, um tema segue vertiginosamente para outro. Geralmente, são os melhores momentos da irregular trilogia de Ferrari. Em A

inteligência poética, Borges é perguntado sobre a poesia. Fala da necessidade de “ter ouvido”, lembra a importância da “cadência”, mas termina mesmo é falando de sua vida. Para quem imaginava um velho cego, melancólico, com 84 anos, sem conseguir ler e escrever, temos uma epifania: “Se eu penso nos muitos, nos excessivos anos da minha vida, só me lembro das circunstâncias felizes”. Borges fala das muitas cirurgias a que foi submetido (sobretudo nos olhos), a parte considerável de sua vida que passou em hospitais, mas resume tudo em um só instante – uma “pequena eternidade incômoda”, que esqueceu. Pouco depois, diz que está concluindo um poema, e está a limá-lo. “Mas o tema é esse; o tema é que estes anos da minha vida provavelmente sejam os melhores. Estes anos, escrevo ali, de resignada cegueira.” Ferrari percebe a dimensão da confissão. Celebra apenas com um tímido “... Sim”. “Cegueira aceita, não cegueira queixada ou sofrida. Aceitei a cegueira bem, como também aceitei a velhice... e, é claro, aceitar a vida já é muito, não é? A cegueira é um dos acidentes da vida.” Esses momentos epifânicos, que não são muitos, valem a trilogia.

JANELA PARA A ALMA

Há exemplos de como esses encontros podem tomar outra dimensão e abrir uma janela na alma de um escritor. Tomemos como exemplo o livro Conversas com Cortázar, de Ernesto González Bermejo (Jorge Zahar Editor, 2002), que tem assombrosas 127 páginas de pura literatura. A obra, com apenas oito capítulos, é fruto das entrevistas que esse uruguaio fez com Julio Cortázar. Nesse caso, brilham as duas privilegiadas inteligências. A começar pelo prefácio, do próprio autor. “Cortázar demonstrou, a cada entrevista, ter uma santa paciência; é um homem alto e tímido, de uma fraternidade contida e um respeito impecável pelo seu interlocutor, coisa que não o impede, porém, de defender as suas opiniões com veemência quando sente que é necessário.” A elegância da escrita, já no prefácio, anuncia ao leitor a chegada de aleluias. “Poucas vezes

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Leitura 3

encontrei um entrevistado tão minuciosamente honesto como ele. Muito além da vaidade e da modéstia, a transparência quase infantil de suas verdades nasce de uma lucidez metódica que aplica a si mesmo e aos demais, sem concessões.” Antes da primeira pergunta, emerge o homem Cortázar. Nas páginas seguintes, a densidade dos diálogos permite revelações. “Se eu não tivesse escrito Rayuela (refere-se a um de seus romances mais famosos, traduzido como O jogo da amarelinha), teria me jogado no Sena.” Sem meias palavras, quando o melhor do jornalismo encontra o melhor da literatura. As perguntas são como uma bola tocada de primeira, para o jogador que está ao lado. Como o toque de Pelé para Carlos Alberto, na Copa de 1970. “Gostaria de propor, então, uma ‘peregrinação às fontes’. Onde nasce o escritor? Sua intenção inicial foi a poesia, não é verdade?” Basta a pergunta, e Cortázar se debruça na poesia. “As primeiras obras da humanidade foram poéticas. Os primeiros textos filosóficos são poemas. Os pré-socráticos, os

grandes metafísicos, por exemplo. Parmênides é poeta, Platão pode ser considerado poeta.” E uma advertência: “À prosa se chega depois”. Em muitos momentos, Ernesto usa o “como” de forma preciosa. Como foi o choque com a Europa (Cortázar viveu inicialmente de 1951 a 1955 em Paris); como se dá a passagem da poesia à prosa; como se define um bom estilo; como se deu a aprendizagem do conto. Graças a essas perguntas, Cortázar conta detalhadamente como foi o processo de feitura de O jogo da amarelinha, considerada sua obra mais revolucionária. Na última pergunta, uma amostra do que foi toda a conversa.“Finalmente, Cortázar, o que foi para você ser um escritor? Uma bênção? Uma condenação?”

ENTRE A LETRA E O SANGUE

Com a chegada cada vez maior de traduções da literatura em língua espanhola, é de se esperar que em breve o leitor brasileiro tenha à disposição Entre la letra y la sangre – Conversaciones com Carlos

Catania (Seix Barral, 1988). São 11 “jornadas” de Catania com Ernesto Sábato, outro gigante da literatura argentina. Nesse caso, o que chama a atenção é a densidade psicológica dos encontros. O entrevistador faz um diário das jornadas, iniciado em 15 de julho de 1987. “Encontrei Sábato de excelente humor. Interrompeu sua primeira tarefa do dia, que consiste em responder correspondência. Perguntei pela saúde de Matilde; Ernesto se interessou por meus livros. Nos sentamos; fiquei à frente da janela que dá para o jardim e podia ver as plantas e flores. O silêncio ali era absoluto.” O livro vem repleto de descrições sobre as reações de Sábato e do contexto das entrevistas. “Me olha com sardônica ironia”; “Fica um momento ensimesmado. Logo prossegue”; “São dez da manhã de um sábado esplêndido”; “Depois de um sorriso amargo, fica um pouco pensativo, olhando a rua”. Num dos encontros, Catania é pego de surpresa. Sábato teve um imprevisto, terá que sair antes. A entrevista é mais curta. Ao final, combinam para o retorno na semana seguinte. “Bom, porque eu gostaria de sair da luz e meter-me com você neste outro aspecto de sua personalidade: o noturno. Falar dos cegos, das premonições, dos loucos, do inferno, dos sonhos... Enfim, de tudo isso que constitui parte essencial de sua obra.” É um capítulo magistral do livro.

Sobre os sonhos e outros diálogos/Sobre a filosofia e outros diálogos/Sobre a amizade e outros diálogos OSVALDO FERRARI Hedra As obras reúnem entrevistas que são resultado de cerca de 90 encontros que Ferrari teve com Borges pouco antes do falecimento do escritor

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indicações POESIA

RODRIGO PETRONIO Venho de um país selvagem Topbooks

Após ser finalista do prêmio Jabuti com o livro de poemas Pedra de luz, o paulistano Rodrigo Petronio lança agora Venho de um país selvagem, vencedor do prêmio Academia de Letras da Bahia/Braskem. Há mais de 10 anos no mercado editorial, o escritor investiga os elementos concernentes à vida e à morte, tendo o leitor como cúmplice para que a poesia seja codificada. “Ele é, neste livro, um poeta para quem o amor propiciou o retorno ao magma de onde tudo surge e que se situa num território nos antípodas do caos”, como coloca Alfredo Fressia. Na investigação de Petronio, as figuras do homem e da mulher, a força dos deuses e a finitude se encontram.

Romance

Paulo Fernando Craveiro O boneco íntimo Nossa Livraria

Com este livro, o autor homenageia o cinema. Inspirado em Na solidão da noite, clássico inglês do cinema de horror, o romance investiga os recônditos da alma humana pela ótica de um boneco de ventríloquo, que misteriosamente ganha vida. A trama é ambientada numa cidade romena, envolvendo uma longa travessia até um país desconhecido; durante o trecho, o homem e o boneco, de forma ambígua e bizarra, se confundem na narrativa. O fato de ser conterrâneo de Vlad Tepes, o Drácula, cujo retrato, pintado por volta de 1560, integra as ilustrações do livro, dá uma pista dos sentimentos que surgem da angustiosa convivência dos personagens.

Romance

Biyi Bandele O menino de Burma Record

O romance revela, pela primeira vez, as experiências de soldados africanos na Segunda Guerra Mundial. O premiado escritor e dramaturgo nigeriano inspirou-se na vida do pai, recrutado aos 14 anos pela famosa Brigada Thunder, facção do Exército Britânico, para relatar como os soldados indianos e africanos foram fundamentais para a retomada de Burma, atual Mianmar, das mãos dos japoneses, em 1944. O livro é um diário das batalhas do grupo que formou a lendária divisão de ataque das forças britânicas na Índia, os chindits, que tiveram de enfrentar a selva indiana, em pleno inverno, além das armas inimigas, num dos episódios mais devastadores do conflito.

HQ

GUILHERME FONSECA E RENOIR SANTOS Estação Luz Devir Livraria

Escrita e roteirizada por Guilherme Fonseca, com desenhos de Renoir Santos, a graphic novel Estação Luz é inspirada no clássico Fausto, do alemão Wolfang Von Goethe, e mostra as desventuras de Wagner, um professor de meia-idade entediado com a monotonia da vida. Durante as peregrinações, ele conhece um andarilho que vive nas imediações da Estação da Luz e que o envolverá em histórias sinuosas, cheias de armadilhas. Um verdadeiro ser mefistofélico. Empolgado com as falsas promessas, Wagner se envolverá em situações das quais será difícil se libertar. Um roteiro envolvente, que utiliza elementos fantásticos e nos leva a refletir sobre os dramas e as angústias humanas.

Teoria e crítica

O mecanismo do “desejo mimético” nas obras literárias Filósofo, historiador e crítico de literatura, o francês René Girard já foi chamado, inclusive, de “Darwin das ciências humanas”, por propor teorias alternativas a concepções hegemônicas nesse âmbito. Seu primeiro livro, Mentira romântica e verdade romanesca (1961), foi editado agora no Brasil pela É Realizações. A obra detalha o mecanismo do que ele chamou “caráter mimético do desejo”. Segundo Girard, o desejo não é resultado de uma relação direta entre um sujeito autônomo e um objeto desejável: ele é sempre e necessariamente mediado por um

terceiro; cada indivíduo determina seu objeto de desejo não por discernimento ou gosto pessoal, mas porque o mesmo objeto é desejado por outra pessoa. Daí o inevitável estado de permanente insatisfação social e individual – os conflitos e animosidades surgem da impossibilidade de conciliar os desejos humanos. Para elucidar suas teses, o crítico mostra como o mimetismo é o tema dominante da literatura, utilizando como exemplo obras e personagens de grandes autores, como Cervantes, Proust, Stendhal e Dostoievski. (Eduardo Cesar Maia)

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trama/divulgação

ED MOTTA Do pop ele veio e ao pop (por ora) retornou Em Piquenique, décimo disco da carreira, o músico retorna às origens e embarca com entusiasmo no ritmo que o consagrou texto Rafael Teixeira

Sonoras 1

Ed Motta recebe o repórter em sua casa, um charmoso apartamento no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e, ao abrir a porta, revela um mundo de dois tempos distintos: um sabre luminoso de brinquedo do filme Guerra nas estrelas repousa sobre um elegante piano de cauda; rádios e instrumentos vintage convivem com celulares modernos (ele diz que tem apanhado para aprender a usar o iPhone); DVDs dividem espaço com os milhares de vinis de sua eclética e invejada coleção. Nesse universo em que passado e presente, infância e fase adulta, antiguidade e modernidade se fundem sem problemas, fica fácil compreender a recente volta do cantor, compositor e instrumentista às origens pop que o catapultaram para a fama

no fim dos anos 1980, na onda de hits sacolejantes como Manuel e Vamos dançar, que ele lançou com o grupo Conexão Japeri. Retorno esse que se mostra em Piquenique, décimo disco de sua carreira, recém-lançado pela Trama. O álbum, dançante como ele não fazia desde As segundas intenções do manual prático (2000), é um mergulho entusiasmado nas águas pop, nas quais muitos – tanto da crítica quanto do público – duvidavam de que Ed fosse se banhar novamente. O músico, afinal, vinha de Dwitza (2002), disco inteiramente instrumental, com tintas carregadas de jazz, Aystelum (2005), álbum de jazz avant-garde com ecos de musicais da Broadway, funk americano, soul music e até

samba, e Chapter 9 (2008), trabalho com influências de rock, estética meio soturna e todas as letras em inglês. Isso sem falar em 7, musical da consagrada dupla Charles Möeller e Cláudio Botelho, inspirado na fábula da Branca de Neve, cuja trilha sonora foi encomendada a Ed e estreou no Rio em 2007. No meio disso, apenas um flerte mais assumido com o pop, em Poptical, de 2003 – que, não por acaso, rendeu a estourada Tem espaço na van, sem dúvida o seu maior hit gravado nos anos 2000. Mesmo assim, era um disco cheio de sutilezas sonoras, no que não destoa em nada daqueles outros trabalhos mais audaciosos. Voltar ao pop mais rasgado, porém, não chega a ser surpreendente para o próprio Ed Motta.

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“Eu nunca achei que aquela guinada para longe do pop fosse um caminho sem volta. Tenho quatro gravadorezinhos em casa, em cada um deles eu ponho as minhas composições de um determinado estilo. Ao mesmo tempo em que vinha trabalhando com esse editorial mais liberto de formatos, eu seguia compondo pop. E, quando eu falo pop, eu digo no sentido mais amplo da palavra, que, para mim, vai do (disco) Love supreme, do (saxofonista americano) John Coltrane, que eu acho pop pra caramba, passa pelo (filme) Oito e meio, do (cineasta italiano Frederico) Fellini, até o Michael Jackson”, analisa.

ESPONTANEIDADE

Se o pop radiofônico não era uma ideia rejeitada, também não era um alvo concebido previamente. Apesar do reconhecido zelo com que encara seus discos individualmente, Ed é o tipo que leva a carreira ao sabor dos acontecimentos, abrindo espaço para a espontaneidade. “Eu não tenho ideia de como será o meu disco seguinte, não sei se daqui a cinco anos vou fazer jazz ou sertanejo. Falo isso sem fazer gênero, porque acho que seria muito mais confortável se eu tivesse uma meta traçada, mas não tenho. Meus discos são fruto de uma quantidade maior de composições que eu possuo naquele momento. Às vezes, você tem a vontade de fazer alguma coisa que não condiz com o material que tem. A turma da pilantragem, por exemplo, é uma música que eu já tinha pronta desde que lancei o disco passado (Chapter 9), mas não entrou porque não casava com a ideia. Acabou entrando agora.” Faixa número cinco do disco novo, A turma da pilantragem é a primeiríssima parceria de Ed Motta com a mulher, Edna Lopes, com quem vive há 19 anos. Roteirista de quadrinhos e artista gráfica, ela já havia desenhado o site oficial de Ed e assinado capas de discos do marido, como Aystelum e o próprio Piquenique. Mas, apesar do longo casamento, eles nunca haviam composto nada juntos. “Comentou-se na imprensa que eu tinha feito um tributo ao Simonal. Eu adoro o Simonal, mas ficou aquela

coisa estranha, como se eu tivesse feito uma música para ser tema da Copa do Mundo, justo no ano em que saiu o filme e o livro do Simonal. Foi como se eu tivesse me aproveitado da moda, quando não foi nada disso”, esclarece, para em seguida falar da letra da canção, na qual divide os vocais com a cantora Maria Rita em versos levemente erotizados, como “isso é uma massagem que eu faço em você/é muito gostoso, mas ninguém pode saber”. “Quando ficou pronta, vi que ela tinha um sabor diferente, uma malícia meio soft porn dos anos 60.” A partir dessa primeira investida, a dupla Ed-Edna foi se azeitando até compensar os quase 20 anos juntos sem uma composição sequer:

Requinte instrumental confirmado na enorme quantidade de instrumentos listados no pé de cada música, além da presença de colaboradores do naipe de Jessé Sadoc Filho, no trompete, flugelhorn e nos arranjos de metais de A turma da pilantragem, e de Kassin, na guitarra sitar na faixa Compromisso. Apesar da sofisticação, não se esvazia o potencial festivo de letras como as de Pé na jaca (“Pôs o pé na jaca/ De pirraça/Ficou sem noção/Pra não ter ressaca/Pôs na taça/Muito gelo e limão”) e de Mensalidade (“E... sextafeira é o fim do mês/Quero esquecer!”). Os versos dessa última, aliás, caíram na boca do público antes mesmo que o disco fosse lançado. E revelou-se, então, o poder da internet, graças à

1 ingredientes

Receita pop de Ed Motta mistura John Coltrane, Federico Fellini e Michael Jackson

2 CASAMENTO

O casal Ed e Edna, há 19 anos juntos, só agora assina parceria nas composições

2

das 12 faixas de Piquenique, 11 são do casal. Apenas Nefertiti é de Ed com Rita Lee – reeditando a parceria que já resultara em sucessos como Colombina (do disco As segundas intenções do manual prático) e Fora da lei (de Remixes & Aperitivos). Quase tudo é munição certa para as pistas, em um espírito desencanado que se traduz no próprio nome do disco – tão diferente dos dwitzas e aystelums que já batizaram seus CDs. “De certa forma, gravar jazz é mais fácil. Você tem que se preocupar com os arranjos, mas, na hora de gravar, mesmo, no estúdio, os ajustes técnicos são mínimos, tudo sai rápido. O pop tem uma tapeçaria muito mais intrincada”, explica.

aposta da gravadora, que havia lançado Mensalidade como single virtual no site. Das novas canções, no entanto, a preferida de Ed é Nicole versus cheng. A letra, cinematográfica, transporta o ouvinte para um filme de espionagem à moda antiga ou para as páginas de uma história em quadrinhos. “A letra é ótima, aquela coisa meio detetivesca, uma trama que vai se desenrolando, uma valise marrom, um agente secreto... Se tem um tipo de música que eu gosto de cantar, hoje, é esse”, diz Ed, delicado como em um piquenique.

@ continenteonline Escute algumas das faixas do disco no site www.revistacontinente.com.br

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sting Em uma noite de inverno...

imagens: reprodução

1 CANCIONEIRO

Apesar de seu agnosticismo,Sting revela-se atraído pela tradição religiosa

Novo álbum atualiza canções selecionadas através de reminiscências texto Carlos Eduardo Amaral

Sonoras Em fevereiro passado, Sting e

alguns amigos músicos reuniram-se em torno de uma lareira na sala da casa de campo do roqueiro, perto de Florença, para ensaiar canções europeias típicas de inverno – tanto natalinas quanto as que falam da estação em si. Era um aquecimento (literalmente falando) em vista das gravações de If on a winter’s night, álbum motivado por lembranças sazonais que acompanham o cantor desde a infância, quando entregava leite com seu pai pelas casas de Newcastle, nordeste da Inglaterra. Longe de qualquer banal coletânea (que contivesse, por exemplo, Adeste fideles ou Joy to the world), as 12 músicas escolhidas por Sting vão da contemplativa Gabriel’s message, de origem basca, à descontraída Soul cake, canção de halloween cara ao trio Peter, Paul e Mary na década de 1960. Ambas abrem uma seleção refinada e sem paralelo de carols (cantigas geralmente associadas ao Natal), canções de ninar e hinos, que abrange ainda obras de Purcell, Praetorius, Schubert e Bach. Apesar de seu agnosticismo e da recorrência de “uma atitude ambivalente ante a celebração do Natal”, Sting revela-se particularmente atraído pela parcela do cancioneiro extraída da tradição religiosa e pelos pontos de semelhança com a parte secular, tal qual na comparação que fez, no encarte do CD, entre There is no rose of such virtue (hino inglês do séc. 15) e a lullaby escocesa Balulalow.

1

Percebe-se que a maioria das canções é britânica e que até as peças alemãs estão traduzidas para o inglês. Além disso, Sting contribuiu com duas músicas inéditas: The hounds of winter e a empolgante Christmas at sea, em parceria com a harpista folk Mary Macmaster, em que imprimiu seu estilo com maestria ao poema homônimo de Robert Louis Stevenson (1850-1894), autor de O médico e o monstro. O cantor também criou letra para a sarabanda da sexta suíte para cello de Bach, em You only cross my mind in winter, e incluiu a Lullaby for an anxious child, de seu amigo Dominic Miller. Mesmo lançado pela tradicional gravadora de música clássica Deutsche Grammophon, If on a winter’s night aproxima-se muito pouco do universo erudito – ao contrário de Canções do labirinto (2006), no qual Sting, a sós com o alaudista bósnio Edin Kamarazov, aventurou-se pelas aires (árias) do compositor renascentista John Dowland (1563-1626) com ótima recepção de público e crítica. Nos dois álbuns, sobretudo, a sensibilidade do cantor filtra positivamente o repertório

e ganha todo o crédito necessário para exercer sua própria poética. A versão em DVD de If on a winter’s night, gravada ao vivo na Catedral de Durham e distribuída recentemente no Brasil pela Universal Music, traz algumas canções a mais em relação às 15 que figuram no CD (vendido no Brasil desde final de outubro), além de três intermezzi instrumentais de danças britânicas típicas, da eventual participação de um coral infantil e das interessantes explicações de Sting que aos poucos vão dando sentido ao show. Justo por não ter visto o menor sentido, já que era quase pleno verão por aqui, Sting não deu nenhuma amostra musical hibernal em sua recente vinda ao país, em novembro. Talvez seja preciso esperar uma coletânea de cunho pluvial na MPB – que no mínimo incluísse Chove, chuva, Águas de março, Oh, chuva, do Falamansa, e Abril, das Serestas de Villa-Lobos – para refletirmos melhor sobre a falta que em certas épocas nos faz o sol, ainda que não tão aguda quanto em latitudes mais distantes do Equador.

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INDICAÇÕES MPB

COCO

COCO DO AMARO BRANCO Coco do Amaro Branco Vol.2

mpb

Independente

Arterial

Idealizado desde 2001, o projeto Coco do Amaro Branco, que pretende registrar a memória musical da comunidade olindense, lança o segundo volume de coletâneas. As músicas são interpretadas por vários brincantes da comunidade que tem tradição centenária no coco. Os destaques são as crianças do grupo Estrelinhas do Coco e a homenagem ao falecido Mestre Dedo com uma regravação de Correndo fazendo vento.

Fez-se alarde em torno desse título, tirado de A metamorfose. Besteira: as referências literárias não passam do título, e o conteúdo de Certa manhã... soa como uma colagem de pensamentos incompletos. Letras à parte, o timaço que o cantor e percussionista reuniu em estúdio (entre eles, Pupillo e Dengue, da Nação Zumbi, e Catatau, do Cidadão Instigado) acaba garantindo uma audição agradável.

RAP

ROCK

Independente

RCA

DE LEVE De Love Não, o engraçadinho De Leve não está “De Love”. Quem nasce torto nunca se endireita, e letras como a de O que é que o nego quer (“Você diz eu te amo e ela acha lindo/ Mas ela conhece sua maldade e sabe que tá mentindo”) mostram que o ex-Quinto Andar continua o mesmo. Ainda bem. Neste terceiro álbum solo do rapper carioca, o que mudou foram as músicas: agora, as bases estão à altura das rimas, que, aliás, não poupam ninguém.

otto Certa manhã, acordei de sonhos intranquilos

MOISÉS SANTANA verso alegoria Lua Music

Nada mais enervante do que o convencionalismo puro. Nada mais irritante que o experimentalismo exacerbado.O baiano radicado em Sampa, Moisés Santana, encontrou o caminho do meio entre esses dois extremos. Seu terceiro CD, verso alegoria, equilibra a melodia assobiável à sonoridade contemporânea, tornando a escuta do seu disco uma experiência alegre e estimulante. E mais: Santana reafirma em sua obra tanto o direito de ser triste (sem sentimentalismos) quanto o dever de ser irônico e engraçado.

rock

lafayette & os tremendões As 15 superquentes de Lafayette & Os Tremendões Arterial

O Del Rey que se cuide. Vem do Rio Lafayette & Os Tremendões um grupo, digamos, mais original. Afinal, o tecladista é o bom Lafayette Coelho, ex-parceiro de Roberto e Erasmo. Afora o modismo retrô, o disco soa mais oportuno do que oportunista: imprescindível na formação da estética da Jovem Guarda, o tecladista ainda não foi devidamente creditado na história da música brasileira. Maldito tempo.

MPB

MPB

Som Livre

Universal

foo fighters Greatest Hits

MARIA GADÚ Maria Gadú

O jogo ainda não acabou. As pressões da combalida indústria fonográfica continuam gerando (sub)produtos. Numa entrevista de divulgação, o frontman Dave Grohl deixou claro que a coletânea saiu por meras razões de contrato, “Porque essas coisas soam como um obituário”. Mas não é para tanto. O Foo Fighters já gravou mais do que o Nirvana (a última grande banda de rock foi a primeira grande banda de Dave Grohl) e atualmente amarga apenas um hiato, uma vez que seu líder brilha no all-star team Them Crooked Vultures.

O extenso filão de cantoras brasileiras somaria mais uma com Maria Gadú, se ela não passasse de intérprete – e esse papel anda tão saturado na MPB que, mais cedo ou mais tarde, podem faltar compositores/ fornecedores. Seu álbum de estreia, homônimo, não impressiona, mas é agradável. Com letras acima da média, Gadú não precisava incluir versões no CD, mas ela teimou. Tanto que regravou Baba – isso mesmo, da coelhinha e ex-Mrs. Latino, Kelly Key. Um vacilo até ousado – mas nem um pouco criativo.

jorge ben Salve Jorge! Fez-se justiça ao violão percussivo de Jorge Ben . Os 13 álbuns reunidos na caixa Salve Jorge!, que datam de 1963 a 1976, tinham sido reeditados em CD em 1993, saindo de catálogo logo depois. Remasterizado, o box recém-lançado ainda traz raridades de bônus. Raras também são as superstições do malandro (o pacote traz 13 CDs, mas o rótulo indica 12, por causa da aversão que ele tem ao número de Zagalo). Mas esse é um pequeno detalhe de um grande artista. Salve, Jorge!

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Luci Alcântara

OBJETO IDENTIFICADO Como documentarista , em busca de um cinema de procura

Luci Alcântara é cineasta

e está finalizando o filme JMB, o famigerado

manuela galindo/ divulgação

e revelação, atuo de muitas maneiras durante a captação do que posso ou determino registrar. Num desses papéis, o de sujeito e instrumento de divulgação do outro, disposta a ouvir e observar o depoente, eu me sento e me sinto à vontade para identificar meu objeto fílmico. Munida do lema “quem cansa em quantidade alcança a qualidade” e seguindo o cineasta Nagisa Oshima, que me inspira quando diz que “os fundamentos do cinema documental são o amor pelos personagens que filmamos e o tempo que dedicamos a eles durante as filmagens”, me dano a filmar até a exaustão de uma das partes – a minha ou a do outro. Foi por esse justo motivo que meu objeto-mor, o famigerado Jomard Muniz de Britto, me cognominou “cineasta vampira”. Na verdade, durante o processo de captura a JMB, no qual assunto e personagem coincidem, a sugação se mostrou necessária nas diversas situações aleatórias e/ou planejadas, para que o discurso documental construísse a narrativa desejada. Foram várias e muitas as formas de filmar Jomard, e talvez nenhuma tenha sido fiel ao personagem-pessoa; mas, na insistência de realizar um documentário de retrato pessoal, busco uma ênfase no seu estilo e na sua expressividade, atuando como mediadora entre o ator social que fala por si mesmo e o personagem criado naquele instante imagético, em detrimento do propósito social. Um atentado audiovisual ao estilo do entrevistado, sempre em busca da mais crítica e poética modernidade. “Cuidado, senão ele vai te engolir” foi o que ouvi assim que iniciei a pré-produção. Na realidade, ele me fumou, tragou e baforou. Durante as filmagens, meu papel de sujeito ficava em segundo plano, ora quando ele me puxava ao quadro transgredindo minhas regras e revoltando-se com a condição de objeto de trabalho, ora quando encarnava Drew no meu cinema direto, e ele se transfigurava em Rouch com seu cinema-verdade, e vice-versa. Na tentativa de representar JMB como indivíduo único e distintamente mítico, priorizei seu universo paralelo de citações e preferências, para que seu talento argumentador, que é seu diferencial, quase uma marca, fosse registrado. Sua figura singular de múltiplos olhos, ouvidos e língua plural conduziu não só a minha mão de realizadora, e numa boa parte das cenas me inserindo no contexto e interagindo com o próprio, mas toda a equipe envolvida no mundo de JMB, o famigerado. Como um reinventor de possibilidades, um verdadeiro arquivo de projetos e destinações, fomentando lições de inconformismo, nos fez atravessar o tempo-espaço das linguagens audiovisuais com seu discurso poético e subjetivo com muito peso e fartas medidas tanto na forma quanto no conteúdo. Agora, na solidão da ilha de edição, a companhia de um vasto e rico material que colhi e mil ideias na cabeça, só me restam os cortes, este mal inerente à montagem, que vão doer na primeira camada da minha derme impregnada de ousadias e estripulias jomardianas.

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